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Pa rt icípar-pesq u ísa r

;artos Rodrigues Brani


Pesqui: ía participante: Propostas e Projetos
Marcela Gajarc
tjcipante: Proposta* reflex
itodologicas
G uH e BoierK
debate sobre pe
'<qhel Thk
ítos metodológicos da pesqui
partièipante
Oedro Demo
jusa popular, ciência popular
conhecimento cien tífico .
VictohD. BonillàdQonzalcdSastillo,
lorda eAuguBto
Pesquisa^^rticipante^em um^CQntexto
ecóRomia cainponesa
Vera G ianetten e Ton-.de Wit
Em busca de umametodoloçpaNde açã<
institucional
Manuel AIberto Argumedo
A participação da pesquisa no uapalho pop
Carlos Rodrigues Brande
370
B817r
2?
edição
editorà brasiliense
Repensando a & 0 V JJ
pesquisa participante
Carlos Rodrigues Brandão (org*
• Cuidado! Escola — Paulo Freire e outros
• As Culturas Populares no Capitalismo — Nestor Garcia
Canclini

Desregulagens — Educação, Planejamento e Tecnologia como


Ferramenta Social — Laymert G. dos Santos
Diário de Campo — A Antropologia como Alegoria — Carlos R.
Repensando a
Brandão

A Escola e a Compreensão da Realidade — Maria Teresa


Nidelcoff
Escola, Estado e Ideologia — Lia Zanotta Machado
pesquisa
• Filosofia da Ciência — Introdução ao Jogo e Suas Regras —


Rubem Alves
Pesquisa Participante — Carlos R. Brandão (org.)
A Questão Política da Educação Popular — Carlos R. Brandão
Uma Escola Para o Povo — Maria Teresa Nidelcoff
participante
• Vivendo e Aprendendo — Paulo Freire e outros
1? edição 1984
Coleção Primeiros Passos 2? edição
• 0 que é Cultura — José Luiz dos Santos
• 0 que é Cultura Popular — Antonio Augusto Arantes
• 0 que é Educação — Carlos R. Brandão
• 0 que é Ideologia — Marilena Chaui
• 0 que é Método Paulo Freire — Carlos R. Brandão
• 0 que é Sociologia — Carlos R. Martins
• 0 que é Universidade — Luiz Eduardo W. Wanderley
Coleção Tudo é História
• Os Caipiras de São Paulo — Carlos R. Brandão
Coleção Primeiros Vôos
• Educação Popular — Carlos R. Brandão
• Introdução à Pedagogia — Lauro de Oliveira Lima
• Pedagogia: Reprodução ou Transformação — Lauro de
Oliveira Lima
*m
V 1985
Copyright © dos autores
Capa: João Baptista da Costa Aguiar
Revisão: José W .S. Moraes
Nobuka Rachi
índice
Participar-pesquisar — Carlos Rodrigues Brandão.............. 7
Pesquisa participante: Propostas e Projetos — Marcela Ga-
jardo .................................................................................... 15
Pesquisa participante: Propostas e reflexões metodológicas —
Guy Le Boterf .................................................................... 51
Notas para o debate sobre pesquisa-ação — Michel Thiollent 82
Elementos metodológicos da pesquisa participante — Pedro
Demo .................................................................................. 104
Causa popular, ciência popular: Uma metodologia do conheci
mento científico através da ação — Victor D. Bonilla,
Gonzalo Castillo, Orlando Fals Borda e Augusto Libreros. 131
Pesquisa participante em um contexto de economia campo
nesa — Vera Gianotten e Ton de Wit ............................ 158
Em busca de uma metodologia de ação institucional —
Manuel Alberto Argumedo .............................................. 189
A participação da pesquisa no trabalho popular — Carlos
Rodrigues Brandão ................................................... 223
brosiliense
editora brasiliense s.a.
01223 — r. general jardim, 160
são paulo — brasil
Participar-pesquisar:
Ciência sem consciência é a ruína da alma.
Rabelais, Pantagruel, VIII
J á que cada um dos autores desta segunda coletânea sobre o
assunto vai de algum modo discutir teorias e práticas de modali
dades de pesquisa participante, quero reservar para estas poucas
páginas de introdução uma questão que, por ser possivelmente
menos científica e menos política, em aparência, não tem sido abor
dada em público até aqui. Ela parece fazer parte daquilo que, sendo
sentido por todos, não deve ser falado entre ninguém, muito menos
em um livro.
Há segredos que se ocultam de teorias; assuntos do humano
que há no ofício do pesquisador e que somente o pensar sobre a
prática pessoal revela. Durante anos aprendemos que boa parte de
uma metodologia científica adequada serve para proteger o sujeito
de si próprio, de sua própria pessoa, ou seja: de sua subjetividade.
Que entre quem pesquisa e quem é pesquisado não exista senão
uma proximidade policiada entre o método (o sujeito dissolvido em
ciência) e o objeto (o outro sujeito dissolvido em dado). Fora do
domínio de qualquer interesse que não o da própria ciência, tudo se
resolve com boa teoria no princípio, uma objetiva neutralidade no
meio e uma rigorosa articulação de ambas as coisas com os dados
obtidos, no final.
Mais tarde, tempos coletivos de militância que, em sucessivos
momentos, tomaram humanos e próximos os “objetos de pesquisa” ,
trouxeram experiências e crenças que, acredito, temos compartido,
8 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 9
com variações, vários e diferentes cientistas sociais. Uma delas: só se
conhece em profundidade alguma coisa da vida da sociedade ou da chamá-lo de “irmão” , mas um próximo sobre quem a nova dife
cultura, quando através de um envolvimento — em alguns casos, rença estabelecida autoriza submeter, reduzir ou escravizar.
um comprometimento — pessoal entre o pesquisador e aquilo, ou Nos livros de História do Brasil uma construção equivalente do
aquele, que ele investiga. Outra: não é propriamente um método outro subalterno aparece de modo exemplar. Os sujeitos nomidados,
objetivo de trabalho científico que determina a priori a qualidade da através de cujas falas e ações flui o fio da história, são os senhores do
poder ou os seus emissários. São também, aqui e ali, um reduzido
relação entre os pólos da pesquisa, mas, ao contrário, com freqüên-
repertório de sujeitos populares — índios, negros e brancos pobres,
cia é a intenção premeditada, ou a evidência realizada de uma re
quando não “ mestiços” — que se destacam, seja por cumprirem
lação pessoal e/ou política estabelecida, ou a estabelecer, que sugere
exemplarmente as ordens do senhor, seja por se rebelarem, também
a escolha dos modos concretos de realização do trabalho de pensar a
exemplarmente, a elas. Henrique Dias é um caso; Zumbi, um outro.
pesquisa. Uma última: em boa medida, a lógica, a técnica e a estra
Nomes, datas e biografias são um direito legítimo de senhores
tégia de uma pesquisa de campo dependem tanto de pressupostos
e mediadores, os primeiros, pelo que fazem, os últimos, pelo que
teóricos quanto da maneira como o pesquisador se coloca na pes
criam. Os “outros” aparecem como gentes. Como povos “ nativos”
quisa e através dela e, a partir daí, constitui simbolicamente o outro
sem nomes porque, imersos plenamente em uma cultura, de que são
que investiga.
a face pitoresca, estão totalmente fora da história, de que são su
Uma das difuculdades fundamentais em uma atividade cientí
jeitos plenamente subjugados. Nos livros de “História Pátria” as
fica cujo “outro lado” é constituído também por pessoas, sujeitos
inúmeras nações indígenas são “índios” , na melhor hipótese, "tu
sociais quase sempre diferentes do pesquisador (índios, negros,
pis” e “tapuias” . Enquanto os da minha geração tiveram de decorar
camponeses, “populações marginalizadas” , operários, migrantes) é
todos os nomes dos famigerados donatários de capitanias heredi
a de como tratar, pessoal e metodologicamente, uma relação ante
tárias, até hoje as crianças das escolas não sabem de que povos, de
cedente de alteridade que se estabelece e que, na maioria dos casos,
que nações, vieram os nossos “ negros escravos” .
é a própria condição da pesquisa.
Assim, à margem da história e presentes no “livro de história”
Algumas relações de proximidade entre a prática catequética
por serem coletivamente a sua face de silêncio, índios, negros, mes
do passado, a do professor de hoje e a do pesquisador de campo,
tiços e brancos pobres são, ali, de pleno direito, os sujeitos da
ajudam a compreender, ora por opor um ao outro, ora por apro
cultura. Excluídos social e pessoalmente do ofício de participar do
ximá-los, a questão difícil da construção do outro que antecede e
fazer a história; vazios da identidade e, não raro, do próprio nome
dirige o exercício da prática.
da classe da “gente” de que são, são puros “tipos culturais” , se
A missão do pregador catequista que um dia aportou da
gundo a lógica da cultura escolar que, há muitos anos, povoa o país
Europa no país era a de fazer do outro um “como eu” , desde que
de eternos cangaceiros, mulatas, cabrochas, vaqueiros do Nordeste,
subalterno. Através de idéias inculcadas, de hábitos mudados e de
gaúchos, capoeiras, seringueiros e cantadores de cordel.
ritos de mudança impostos, destruir aquilo que separa na vida, na
Ora, também para o pesquisador social, a existência do dife
consciência e na cultura, o outro de m im , desde que, ao ingressar
rente é a condição da prática. Esta afirmação, que apenas parcial
em meu mundo, a proximidade adquirida pelo outro não venha a
mente se aplica ao historiador e ao cientista político, possui uma
abolir a diferença entre nós. O índio cristianizado e o negro bati
validade crescente no caso do sociólogo e, para o antropólogo, é o
zado, como resultado de um trabalho violento e seguro de re-signi-
próprio começo do seu credo. Assim, enquanto as histórias de suas
ficação da cultura (a morada dos símbolso) e da identidade (a mo
próprias ciências são um repertório erudito de nomes, escolas e refe
rada dos significados culturais da diferença), para ser finalmente
rências de relações entre uns e outras: segundo as suas idéias, se
um cristão como eu, desde que ainda índio ou negro, ou seja, desde
gundo as suas “contribuições” , numa análise onde sempre o resul
que nunca um outro eu. Um ser agora humano, porque cristão, mas
tado coletivo da “escola” é um somatório de trabalhos nominados de
ainda índio ou negro e, portanto, um subalterno legítimo a quem a
sujeitos plenamente pessoais, quando de novo o outro “popular”
proximidade adquirida à custa de perdas forçadas permita até
aparece, a sua pessoa some no dado, ou se dissolve num discurso
10 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 11
que, de tanto pretender ser o da “classe” ou da “categoria” , ameaça aquilo funciona “em geral” ou, em “nossa sociedade” . A Austrália
não conter a fala nem o imaginário de ninguém. Não é que o outro era ótima para isto.
“popular” não participe da pesquisa, ele não participa sequer do ser
pesquisado. “Foi dito muitas vezes que a sociedade ocidental era a única a ter
Para serem constituídos como a substância das ciências sociais: produzido etnógrafos; que residia ali a sua grandeza e, à falta de
“grupos sociais” , “culturas” , “ movimentos” , “processos” , “casos” outras superioridades, que estes lhe contestem, a única que os obriga
ou “movimentos” populares, são igualmente reduzidos, seja a um a inclinar-se perante ela, uma vez que, sem ela, não existiríam.
anonimato de seus sujeitos (aquilo mesmo que a ciência recusa com Podería também, do mesmo modo, pretender-se o contrário; se o
Ocidente produziu etnógrafos, é porque um remorso muito poderoso
horror quando fala de si própria), seja a um anonimato de suas
deveria atormentá-lo, obrigando-o a confrontar a sua imagem com a
próprias identidades sociais. Não custa refletir a respeito da boa de sociedades diferentes, na esperança de que elas refletirão idênticas
intenção que levava cientistas sociais a ocultarem cuidadosamente o taras ou ajudarão a explicar como é que as suas se desenvolveram no
nome da comunidade onde faziam os seus “estudos de comuni seu seio” (Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, pp. 384-385).
dade” . Não custa pensar a razão pela qual, durante muito tempo,
uma das características universalmente mais aceitas para definir o Houve avanços importantes. Hoje em dia existe uma com
que é “cultura popular” era justamente o seu anonimato. Ou seja, preensão ampla de que, ainda que o objetivo da ciência social seja
entre outras coisas, o que a distingue da nossa é que, enquanto o produzir explicações tão universais quanto possível, na verdade a
erudito da cultura é a necessidade da identidade pessoal do autor, pesquisa do outro em primeiro lugar serve para explicá-lo. Quando
o que torna legítima a popular é que nela ele não exista, ou porque Malinowski desembarcou sozinho nas ilhas de Trobriand, não era
foi esquecido no tempo, ou porque, não tendo atores de história, o apenas um método que ia ser reinventado ali; era uma atitude. Não
povo não deve ter também autores de sua própria cultura. Não custa mais reconstruir a explicação da sociedade e da cultura do “outro”
avaliar uma insistência do uso do questionário que, mais do que através de fragmentos de relatos de viajantes e missionários. Ir con
tornar as coisas fáceis e objetivas, estabelece, também no momento viver com o outro no seu mundo; aprender a sua língua; viver sua
da pesquisa, uma máxima desigualdade na relação entre um lado e vida; pensar através de sua lógica; sentir com ele.
o outro. Entre ele e o catecismo há uma curiosa semelhança: um
possui todas as perguntas e, o outro, todas as respostas.
“ Logo depois que me instalei em Omarakana (Ilhas Trobriand), co
Entre os primeiros homens que constituíram os “tempos mo mecei, de certa forma, a tomar parte na vida da aldeia, a buscar quais
dernos” de nossas ciências, a pesquisa do outro — mais simples, os acontecimentos importantes ou festivos, a adquirir um interesse
mais distante, menos matreiro e resistente — servia a explicar-nos, pessoal no diz-que-diz e no desenrolar dos acontecimentos da pe
ou a explicar totalidades: “o homem” , “a religião” , “os estágios da quena aldeia; a acordar cada manhã para um dia que se me apre
humanidade” (onde irredutivelmente as formas primitivas eram sentava mais ou menos como se apresenta para o nativo... Durante o
sempre as do outro e, as exemplares, as do nós). A História é épica meu passeio matinal pela aldeia, podia observar os íntimos detalhes
e, por isso, não só o senhor cabe nela como deve ser, mesmo quando da vida familiar, a higiene, a cozinha, as refeições; podia ver os
inimigo, o sujeito dos solos mais importantes. índios, negros, sujei preparativos para o dia de trabalho, as pessoas saindo para atender
tos de mundo sem classes, ou sujeitos das de baixo em nosso mundo, aos seus interesses, ou grupos de homens e mulheres ocupados em
algumas tarefas manufatureiras. Disputas, piadas, cenas familiares,
faziam momentos breves de um coral escondido, mesmo quando
eventos usualmente triviais, às vezes dramáticos, mas sempre signi
entoavam o hino do aliado. Mas a Sociologia e a Antropologia
ficativos, formavam a atmosfera de minha vida diária, assim como da
perguntam sobre relações que, cotidianas, podem ser até cômicas. deles. ... Mais tarde, no correr do dia, o que quer que acontecesse
Então é melhor perguntar sobre nós através do outro. Nada mais seria facilmente acessível; não havia qualquer possibilidade de que
simples: tomar para cada instituição ou fenômeno cultural a sua escapasse à minha observação” (Bronislaw Malinowski, “ Objetivo,
“forma mais simples” e pesquisar como funciona ali; depois, com Método e Alcance desta Pesquisa” — Desvendando Máscaras So
plicar a conclusão e tornar nobre a retórica, para explicar como ciais, p. 44).
f
12 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 13
E tudo isto por quê? Porque em todos os mundos sociais todas vista livre e a história de vida se impõem. O pesquisador descobre
as instituições da vida estão interligadas de tal sorte e de tal maneira com espanto que a maneira espontânea de um entrevistado falar
se explicam através da posição que ocupam e da função que exercem sobre qualquer assunto é através de sua pessoa. Que a maneira
no interior da vida social total, que somente uma apreensão pessoal natural de uma pessoa explicar alguma coisa diante do gravador, é
e demorada de tudo possibilita a explicação científica daquela socie através de sua “história de vida” , ou através de um fragmento de
dade. Porque, também, o primeiro fio de lógica do pesquisador deve relações entre a sua vida e aquilo a que responde. Em boa medida
ser não o seu, o de sua ciência, mas o da própria cultura que descobre que métodos e técnicas de que se arma com cuidado são
investiga, tal como a expressam os próprios sujeitos que a vivem. meios arbitrários pelos quais o investigador submete à sua a vontade
Estava inventada a observação participante. do outro, o investigado.
Este mergulho por inteiro no mundo do outro não impediu Mas o limite da redefinição a alteridade tem acontecido, entre
que uma ciência sociologicamente renovada se desobrigasse das muitos de nós, pesquisadores, quando o outro, próximo, enquanto
questões efetivamente sociais das condições de vida dos outros. um sujeito vivo mas provisório da “minha pesquisa” , torna-se o
Assim, uma Antropologia, cujo método era enfim participante, nem companheiro de um compromisso cuja trajetória, traduzida em tra
por isso tornou-se ela própria politicamente participativa, a partir balho político e luta popular, obriga o pesquisador a repensar não só
do que começou a descobrir. a posição de sua pesquisa, mas também a de sua própria pessoa.
Pesquisando e escrevendo na mesma Inglaterra de onde o A relação de participação da prática científica no trabalho político
polonês Malinowski saíra para Trobriand, o alemão Marx invertia a das classes populares desafia o pesquisador a ver e compreender tais
questão. Não é necessário que o pesquisador se faça operário ou classes, seus sujeitos e seus mundos, tanto através de suas pessoas
como ele, para conhecê-lo. Ê necessário que o cientista e sua ciência nominadas, quanto a partir de um trabalho social e político de
sejam, primeiro, um momento de compromisso e participação com o classe que, constituindo a razão da prática, constitui igualmente a
trabalho histórico e os projetos de luta do outro, a quem, mais do razão da pesquisa. Está inventada a pesquisa participante. Não
que conhecer para explicar, a pesquisa pretende compreender para porque — como querem tantos, tantas vezes — uma fração obe
servir. A partir daí uma nova coerência de trabalho científico se diente de sujeitos populares participa subaltemamente da pesquisa
instala e permite que, a serviço do método que a constitui, diferentes do pesquisador, mas porque uma pesquisa coletiva participa organi
técnicas sejam viáveis: o relato de outros observadores, mesmo camente de momentos do trabalho de classe, quando ela precisa se
quando não cientistas, a leitura de documentos, a aplicação de reconhecer no conhecimento da ciência.
questionários (Marx mesmo fez um, mas às avessas), a observação
* * *
da vida e do trabalho. Estava inventada a participação da pesquisa.
Quando o outro se transforma em uma convivência, a relação
obriga a que o pesquisador participe de sua vida, de sua cultura. Este segundo volume de documentos de/sobre pesquisas parti
Quando o outro me transforma em um compromisso, a relação cipantes é mais complicado que o primeiro. Aqui estão reunidos
obriga á que o pesquisador participe de sua história. Antes da escritos de diferentes pessoas, do Brasil, da América Latina e da
relação pessoal da convivência e da relação pessoalmente política do Europa. Como acredito que pesquisa participante não provém de
compromisso, era fácil e barato mandar que “auxiliares de pes uma única teoria, não é um método único e, muito menos, não deve
quisa” aplicassem centenas de questionários apressados entre outros tender, seja a substituir o que equivocadamente tem sido chamado
que, escolhidos através de amostragens ao acaso “ antes” , seriam de “pesquisa tradicional” , seja a constituir-se como uma “escola”
reduzidos a porcentagens sem sujeitos “ depois” . Isto é bastante própria, escolhi documentos regidos pela diferença. Deixei que fa
mais difícil quando o pesquisador convive com pessoas reais e, atra lassem aqui pessoas que defendem pontos de vista diversos, a partir
vés delas, com culturas, grupos sociais e classes populares. Quando de teorias às vezes opostas. Permiti que variasse o grau de radica-
comparte com elas momentos redutores da distância do outro no lidade de uma proposta e, ao escolher exemplos de pesquisas parti
interior do seu cotidiano. Então a observação participante, a entre cipantes, não quis recorrer justamente a casos “exemplares” , mas
14 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.)
selecionei algumas experiências possíveis. Reconheço que faz falta
na coletânea um tipo de documento, o da crítica científica e da crí
tica política das diferentes propostas de pesquisa participante. Já
que, ou por falta de textos ou por falta de coragem, não o incluí
entre os que são apresentados aqui, deixo a um outro a sugestão de
que isto seja feito em um próximo livro, se possível, breve.
Este é o momento, leitor, para anunciar em julho de 1984 a
realização, em São Paulo, de um 3? Seminário Latino-americano de
Pesquisa Participante. Muito mais do que no caso dos dois pri
meiros — um em Cartagena, na Colômbia, o outro em Pátzcuaro,
Pesquisa participante:
no México — aquele será o momento de reunirmos, finalmente, à
euforia dos primeiros tempos da “experiência” , uma crítica séria e
Propostas e projetos*
serena de sua prática. M arcela G aja rd o **
Carlos Rodrigues Brandão
Introdução
U m estilo supõe a idéia de totalidade e possibilidade histórica.
Atrai, enquanto tal, diversas manifestações que ocorrem em um
mesmo campo de atividade. Este é, pensamos, o caso das práticas
que visualizam participação, investigação e ação educativas como
momentos de um mesmo processo. Pensamos que nelas se encontra
o germe de um ou mais estilos alternativos de trabalho junto a
setores populares. Pensamos ainda que estes se inscrevem em uma
perspectiva mais ampla, qual seja, a de contribuir, por meio da pro
dução e comunicação de conhecimentos, para a criação de uma nova
hegemonia.
Muitos são os esforços desenvolvidos em torno dessa idéia.
Grande é a experiência acumulada. Várias as vertentes e propostas
que confluem para dar corpo a um estilo de trabalho que vê na
apropriação coletiva do saber, na produção coletiva de conheci-
(*) Este artigo sustenta-se integralmente em um trabalho preparado
para Research Review and Advisory Group (RRAG), do IDRC, Canadá, publi
cado primeiramente sob o título "Evolución, situación actual y perspectivas de
Ias estratégias de investigación participativa en América Latina", FLACSO,
1982, mimeo. Tradução de Julio Assis Simões.
(**) Marcela Gajardo, educadora, M. A. em Sociologia. Pesquisadora
associada da Facultad Latinoamericana de Ciências Sociales (FLACSO), Chile.
Trabalha atualmente como especialista em educação rural no Instituto Intera-
mericano de Cooperación para Ia Agricultura (IICA), escritório do Brasil.

16 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 17
mentos a possibilidade de efetivar o direito que os diversos grupos e 2) integração de investigação, educação e participação social
movimentos sociais têm sobre a produção, o poder e a cultura. como momentos de um processo centrado na análise daquelas con
Quais são essas práticas e como se têm desenvolvido, quais as teorias tradições que mostram com maior clareza os determinantes estru
subjacentes a elas? Quais são suas estratégias metodológicas e suas turais da realidade vivida e enfrentada como objeto de estudo;
projeções? Eis o que tentaremos abordar neste artigo. Para estes 3) incorporação dos setores populares como atores de um
fins, entendemos que não existe uma única maneira de definir estas processo de conhecimento, onde os problemas se definem em função
atividades. Elas são, sobretudo, processos onde coexistem raízes de uma realidade concreta e compartilhada, cabendo aos grupos
distintas, teorias diversas e estratégias metodológicas nem sempre decidir a programação do estudo e as formas de encará-la;
condizentes com os postulados gerais. 4) sustentação das atividades de investigação e ação educativa
Muitas dessas práticas aparecem indistintamente como mé sobre uma base (ou grupo) organizada de sorte que esta atividade
todo de ação e mecanismo de aprendizagem coletiva. Para alguns, não culmine em uma resposta de ordem teórica, mas na geração de
isto culmina na transformação de povo em sujeito político: sujeitos propostas de ação expressadas em uma perspectiva de mudança
que reivindicam de maneira consciente e organizada uma presença social.
ativa e de real importância na sociedade a que pertencem. Ã maneira como essas experiências evoluíram e às projeções
Outros vêem nestas práticas nestas práticas um método geral possíveis faremos referência nas partes seguintes.
para a elaboração teórica, quer no campo da educação quer no das
ciências sociais, contribuindo com isso para a diminuição das fis
suras geralmente existentes entre teoria e prática, sujeito e objeto
Origens e evolução dos estilos participativos
nas práticas de investigação social e educacional.
de investigação social e ação educativa
Não faltam aqueles que vêem na pesquisa participante um
componente de processos de planejamento social que envolvem de
terminados grupos de uma ou mais comunidades, os quais, devido à
Da investigação temática à investigação-ação: os anos sessenta
maneira como se estrutura a sociedade, vivem em condições de
dominação e pobreza. De fato, formas coletivas de planejamento
Em um ensaio recente (Zuniga, 1982), reivindica-se para
local proporcionaram nos últimos anos um contexto importante
Paulo Freire o título de “criador” de um estilo alternativo de pes
para a aplicação de estratégias participativas de pesquisa social e
ação educacional. quisa e ação educativa.
Por trás de tal afirmação, está o conjunto de experiências que,
As alternativas anteriores são uma ilustração das diferentes sustentadas pela concepção conscientizadora de educação, desenvol
faces de uma mesma moeda. Embora estejam separadas por fins veram-se em fins da década de sessenta, no âmbito das transfor
puramente analíticos, é necessário reconhecer que a existência de mações agrárias operadas em alguns países da região. Chile e Peru
tradições de pensamento distintas e de práticas de pesquisa diversas são, talvez, os casos mais significativos de ações orientadas para
conferem alcances e significados diferenciados a atividades que se incrementar a participação dos camponeses beneficiários de tais
desenvolvem sob o mesmo rótulo: pesquisa participante ou investi mudanças a fim de integrá-los a novos modelos de produção, ao
gação participativa. A assertiva anterior não impede reconhecer, no consumo e às alternativas que os modelos vigentes apresentavam,
entanto, alguns traços comuns às diversas alternativas, os quais em termos de gerar uma maior participação social. Os processos de
permitem uma primeira aproximação a estes processos. Entre eles, modernização característicos desta época e, dentre eles, os processos
cabe assinalar os seguintes: de reforma agrária, provocaram novas articulações, oposições e
alianças que permitiram o desenvolvimento da capacidade de orga
1) explicitação de uma intencionalidade política e uma opção nização dos assalariados do campo, e a possibilidade de estes apre
de trabalho junto aos grupos mais relegados da sociedade; sentarem suas demandas e reivindicações sociais. Era, pois, um mo
18 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 19
mento que possibilitava a transformação do fator educativo em a apreensão de ambos os elementos, tanto pela equipe de investi
componente de um processo geral de mudança que ampliou o es gadores como pelos próprios camponeses, deveria permitir o apro
paço de participação e mobilização popular. fundamento da tomada de consciência e das possibilidades reais e
Tal situação supunha o desenvolvimento de uma estratégia concretas de encontrar caminhos de solução.
que possibilitasse tal participação. Supunha-se então que os campo No projeto, a experiência se estruturou em dois momentos: um
neses e os grupos mais relegados da sociedade não poderíam ser de natureza sociológica, outro de natureza educativa. O primeiro
sujeitos de um processo histórico alternativo se se mantivessem como compreendia a investigação em suas fases de codificação e decodi-
uma categoria social passiva e carente. Somente aqueles setores ficação. O segundo compreendia as etapas de programação e desen
dotados de consciência de seus interesses, prática de organização e volvimento da ação educativa.
reivindicações poderíam ter uma presença ativa e de real signifi As etapas de observação e codificação se orientaram para a
cação social e política (Gomes de Sousa, 1982). Dentro deste marco construção dos códigos que possibilitaram a posterior análise das
evoluíam as idéias a respeito de investigar a percepção e o compor situações sociais detectadas como chaves para a compreensão das
tamento dos grupos menos privilegiados do campo, beneficiários formas pelas quais os camponeses construíam a realidade; sua per
potenciais de uma redistribuição da terra e atores dos processos de cepção e comportamento diante dela. A decodificação enfatizava a
mobilização popular nesse meio. análise conjunta de tais situações. A hipótese subjacente a este pro
Em tal contexto, desenvolviam-se também idéias a respeito da cessos e relações nelas contidos. Com isso, não apenas se obteria o
necessidade de delinear estratégias metodológicas que permitissem zariam seu código de percepção, provocados pela imagem utilizada
superar as dicotomias sujeito-objeto, teoria-prática, presentes nos e apoiados pela intervenção de um coordenador externo ao grupo.
processos de pesquisa educacional, possibilitando uma produção Neste sentido, a decodificação resultaria em um esforço coletivo
coletiva de conhecimentos em torno de vivências, interesses e neces para decompor e analisar as imagens e, conseqüentemente, os pro
sidades dos grupos situados histórica e socialmente. Isto é, aqueles cessos e relações nelas contidos. Com isso, não apenas se obteria o
camponeses que viviam na condição de arrendatários, uma das discurso popular, a forma como grupos e organizações descreviam e
formas mais clássicas de exercício da dominação no meio rural. interpretavam as mensagens, como também começavam a se produ
Junto a eles surgiram as primeiras propostas de trabalho participa zir mudanças na maneira de perceber as estruturas existentes, modi-
tivo. Com eles foi gerada a investigação da temática cultural campo ficando-se também o comportamento dos grupos diante delas.
nesa, conhecida genericamente como investigação temática. Assim, através de um trabalho progressivo de análise e síntese,
Esse trabalho inspirou-se originalmente nas idéias pedagó apontar-se-ia para uma compreensão cada vez mais global dos
gicas de Paulo Freire, que foi quem idealizou a pesquisa e a coor problemas, possibilitando a programação de atividades pedagógicas
denou em sua primeira fase. Os camponeses de uma unidade eco adequadas aos níveis de consciência alcançados pelo grupo e às
nômica reformada (asentamiento) foram convidados a participar de exigências de sua própria prática social e produtiva.
um estudo que possibilitaria uma programação de atividades edu A experiência a que aludimos realizou-se no asentamiento El
cativas de acordo com suas necessidades e interesses. Subjazia a esta Recurso, unidade selecionada com base nos seguintes critérios: nú
proposição um pressuposto específico: o de que qualquer ação edu mero de famílias estabelecidas, antecedentes históricos da locali
cativa deveria ser entendida como um ato de produção de conheci dade, facilidade de acesso e inexistência de investigações prévias
mentos em consonância com a realidade e a situação do campesi sobre o estabelecimento. Uma vez selecionada a unidade de traba
nato. Como na tarefa de alfabetização, era necessário investigar o lho, em acompanhamento à seqüência de passos proposta pela
“universo vocabular” e as “palavras geradoras” para implementar estrutura geral do projeto, procedeu-se à realização de uma série
um programa que permitisse aos sujeitos a tomada de consciência de visitas ao local e foram feitas algumas entrevistas com duplo
sobre sua situação; a pós-alfabetização, em sua dimensão técnica e propósito: desvendar antecedentes sobre a propriedade e sua popu
social, exigia o conhecimento daquilo que Paulo Freire denominara lação e informar aos camponeses os objetivos e a metodologia do
“universo temático significativo” e “temas geradores” . Para Freire, estudo.
20 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 21
Como resultado dessas observações iniciais, entrevista e Q U A D R O -R E S U M O N? 1
desvendamento dos dados gerais da área, reconstruíram-se as for Processos, relações, contradições
e referentes na investigação te m á tic a de El Recurso
mas de organização dos membros da comunidade e foram selecio
nadas, com base no marco teórico do estudo, as chamadas “situa Processos/
ções existenciais” que tornavam possível a codificação, a inscrição / Relações
gráfica em imagens e a posterior análise coletiva nos chamados Contradições Referentes
/ e situações ou
“círculos de investigação” . Dois critérios foram utilizados para a / referentes
/ camponeses
seleção das diversas situações a partir das quais se organizaria a
análise coletiva. De um lado, o grau de importância que estas situa 1. Processos e relações — camponês x terra — situação de trabalho
ções aparentavam ter para o grupo camponês ou o significado que o de produção na her — patrão x — situação de conflito
dade e no asen- camponeses trabalhista
grupo dava a elas; de outro, o grau de significação que tais situações tamiento — trabalho individual — trabalho individual
apresentavam com relação ao marco teórico da investigação. x trabalho coletivo da terra x trabalho
Com respeito ao primeiro critério, foram utilizados como indi — trabalho x diversão coletivo
cadores da importância atribuída pelos camponeses a determinadas — situação de jogo
esportivo
situações atuais ou passadas tanto as expressões que estes revelaram
na etapa de entrevistas como a constância com que as situações 2. Processos de — diretiva x — assembléia de
apareciam e a intensidade de sua referência. Com relação ao se gestação e estru asentados asentados
turação do poder — CORA x asentados
gundo critério, considerou-se, com base nas observações realizadas
pela equipe de investigação, os principais processos desenvolvidos 3. Processos de — pais x filhos — situação familiar
no estabelecimento rural e o tipo de relações presentes no seu socialização — educação formal x — salas de aula e
educação informal situação educativa
interior. Tiveram prioridade aqueles processos que mantinham cor
respondência com as situações concretas vividas pelos camponeses. 4. Processos de religio — Deus x crentes — Igreja e fiéis em
Em tais processos, foram distinguidos diversos tipos de relações sidade camponesa — sacerdotes x fiéis oração
estruturadas a partir de contradições que eram, ao mesmo tempo, Fonte: Ferreyra, M. E. e Fiori, J. L. (orgs.), La temática cultural de los campe-
síntese das situações observadas e expressão da estrutura de percep sinos de El Recurso, Santiago, ICIRA, 1970, mimeo.
ção a elas subjacente. Processos, relações e situações sociais consti
tuíram os elementos básicos para a elaboração de códigos e a inscri terra, vantagens e desvantagens, necessidades de uma organização
ção destes em gráficos (Gajardo, 1981:53-68). Os códigos estão sin para assegurar a comercialização e o consumo, entre outros. As
tetizados no Quadro 1, a fim de ilustrar o modo de operação nas contradições referidas aos processos de socialização tinham seu
atividades de seleção de situações, determinação de contradições e referente em situações familiares, na participação escassa ou nula
gráficos utilizados. da mulher nas atividades do estabelecimento, as altas taxas de nata
A cada conjunto de contradições postuladas para a análise lidade, o problema da educação como alternativa da migração, a
coletiva correspondia um referente das diversas situações próprias relação entre os conhecimentos práticos do camponês e a assistência
da vida cotidiana dos camponeses dessa comunidade particular. técnica, etc. No que diz respeito aos processos de tomada de decisão
Estes apareceram a partir das primeiras observações. Assim, por e estrutura de poder do estabelecimento, as situações se referiam,
exemplo, àquelas contradições referidas aos processos e relações de principalmente, às formas de participação dos camponeses e ao
produção correspondiam situações tais como: movimentos reivindi- comportamento dos dirigentes, os problemas relacionados com a
catórios no estabelecimento, as causas de tais movimentos, estrutura representatividade dos mesmos, o papel do Estado e a legitimidade
de posse da terra, desemprego e produtividade no estabelecimento, deste como entidade substituta do patrão. Por último, as contradi
comercialização dos produtos e distribuição de excedentes, proble ções referidas à religiosidade popular faziam menção à presença, na
mas derivados da produção individual ou coletiva na exploração da herdade, de uma igreja que aparecia como prolongamento da casa
22 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 23
patronal, a interferência do patrão na atividade religiosa e o papel pectiva de mudança social. É isso que explica em parte sua incidên
do sacerdote como sancionador dos atos dos camponeses, parti cia nas propostas atuais de investigação participativa e pesquisa
cularmente diante das atividades que afetavam os interesses do participante.
proprietário das terras. Junta-se a isso a importância atribuída pelos
camponeses à “ ação divina” e seu conseqüente fatalismo.
Durante os meses de outubro e novembro de 1968, procedeu- A investigação-ação e a década de setenta: duas vertentes para um
se à realização das decodificações nos círculos de investigação. mesmo conceito
Nestas reuniões, o grupo debateu em torno dos filmes projetados,
exteriorizando a sua forma de visualizar ou perceber as diversas Embora se reivindique para Paulo Freire a primazia de haver
situações. O debate foi gravado e transcrito, dando forma ao dis introduzido um enfoque renovado e de marcada conotação socio
curso camponês, corpo de análise para a determinação do universo política na educação e pesquisa educativa dos países latino-ameri
temático e dos temas geradores, eixos do planejamento educativo e canos, o conceito de investigação-ação, utilizado a partir dos anos
da programação de um ou mais cursos de ação. setenta para caracterizar os estilos participacionistas de pesquisa,
A seleção do caso anterior ilustra uma das propostas de enca provém de uma vertente mais sociológica do que propriamente edu
rar a participação dos setores populares na investigação social e na cacional. Por trás desse conceito, jaz uma forte crítica à unidade de
prática educativa. Sua resenha obedece ao fato de ter sido o pri método prevalecente nas ciências sociais, à preeminência de uma
meiro a engendrar outro conjunto de ações de características simi visão parcelada e unidimensional da realidade social, à separação
lares. Neste sentido, ele contribuiu para o desenvolvimento de uma radical entre ciência e política, à desvinculação total entre teoria e
alternativa de trabalho neste campo. Embora esta experiência, en prática nos procedimentos científicos e à manipulação da informa
quanto tal, seja pouco conhecida na América Latina, é certo que, ção para evitar a participação coletiva nos processos de gestão social
como estratégia metodológica, inspirou um número importante de e econômica, por parte das camadas de destituídos das sociedades
projetos desenvolvidos em nosso continente. Projetos onde a parti latino-americanas (Rigal, 1980). Como contrapartida do antece
cipação em seus diferentes níveis e a ação organizada para a geração dente, surge o conceito de investigação-ação que se ergue, no campo
de ações de transformação social e econômica são duas idéias que da sociologia, como reação aos paradigmas predominantes nas ciên-
permaneceram constantes, tanto nos escritos de Freire como nos ciais sociais, propondo caminhos alternativos de ação.
projetos baseados em seu pensamento. Permaneceu constante tam O trabalho mais significativo dentro dessa proposta acha-se
bém a idéia de reverter a função reprodutora da educação, rede nas experiências encabeçadas por Orlando Fals Borda, sociólogo
finindo-a como instrumento de apoio aos processos de transfor colombiano, ensaiadas em função de estudar a situação histórica e
mação sociopolítica. social dos setores mais pobres e atrasados da sociedade colombiana
A educação passou a ser entendida, em tais projetos, como e de efetivar a vinculação da pesquisa com as ações sociais e políticas
uma atividade que possibilitava aos grupos menos privilegiados desenvolvidas pelos grupos e organizações mais conscientes do país
compreender e interpretar a racionalidade e o funcionamento dos (Fals Borda, 1977). Tais experiências se sustentavam em um con
sistemas de dominação social e adquirir os conhecimentos apropria ceito de ciência que distinguia (e ainda distingue) entre ciência
dos’ para melhorar seu nível de informação e capacidade de movi popular e ciência dominante. Esta última, definida como uma ati
mento. Isso explica a ênfase especial posta na interpretação dos vidade que privilegia a manutenção do sistema vigente, capita
processos sociais e das relações de produção vigentes, bem como a lista e dependente, e a primeira definida como o “conhecimen
tendência para elevar níveis de consciência e fortalecer o nível orga to empírico, prático, de senso comum que tem sido um bem cul
nizacional dos setores populares. Provém daí também o componente tural e ideológico ancestral das camadas da base social, o qual
“ativo” , presente na investigação temática. Nesta proposta, a ativi lhes permitiu criar, trabalhar e interpretar a realidade predomi
dade de pesquisa não culminava em uma resposta de ordem teórica, nantemente por meio de recursos que a natureza oferece ao homem”
mas na geração de alternativas de ação expressadas em uma pers (Fals Borda, 1981:152).
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 25
24 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
atuais estilos de investigação participativa evidenciam uma preocu
Para Fals Borda, a ciência e o trabalho científico têm uma
pação crescente em avançar na consolidação de um estilo alternativo
nítida conotação de classe e, mesmo que se procure evitar a adje-
àqueles que tradicionalmente têm comandado as práticas de inves
tivação de tal atividade, não se pode deixar de precisar que, embora
tigação social e os processos de ensino-aprendizagem. O próprio
a ciência seja um processo totalizador e constante, expressado por Fals Borda coloca essa assertiva nos seguintes termos:
grupos e classes diversos em determinadas sociedades e conjunturas
históricas, os conhecimentos, dados, fatos e fatores se articulam
“A crise do paradigma da ‘conscientização’ levou à procura de formas
segundo os interesses das classes sociais que lutaram pelo predomí para transcendê-lo (...) A pedra filosofal da transcendência de um
nio social, político e econômico. Assim, diante da existência de paradigma a outro radicou-se na idéia de que o conhecimento para a
paradigmas científicos que servem aos interesses dos grupos social e transformação social não se radicava na formação libertadora da
economicamente dominantes, torna-se necessário contrapor para consciência, mas na prática dessa consciência. Além disso (...), dessa
digmas alternativos construídos a partir de uma aproximação aos passagem e desse sentir da práxis também se produzem um saber e
setores populares e às suas organizações de base, com o intuito de um conhecimento científicos. Até este momento, estabelecia-se nas
“entender de dentro a versão de sua própria ciência prática e de sua ciências sociais uma diferença taxativa entre teoria, de um lado, e
reprimida extensão cultural, e buscar formas de incorporá-las a prática, de outro. Havia uma tendência para definir a ciência como
necessidades coletivas mais gerais sem fazer com que percam sua pura e aplicada. Reconhecia-se certa relação entre uma e outra, no
identidade e sabor específicos” (Fals Borda, 1981:155). Grande sentido de que a teoria permitiría maior eficácia da prática, que a
prática se inspiraria na teoria e, desse modo, que essa combinação
parte dos postulados do autor, já resenhados nos parágrafos ante
faria avançar o conhecimento científico. Foi essa possibilidade que,
riores, deriva das experiências desenvolvidas com organizações po em minha opinião, permitiu superar as dificuldades ideológicas e
pulares no meio urbano e rural por grupos vinculados à Fundación políticas do paradigma da conscientização. Durante aqueles pri
Rosca de Investigacióny Accióti (FUNDARCO), hoje desaparecida. meiros anos da década de setenta, esta passagem foi denominada
Para Fals Borda, são seis os princípios metodológicos que investigação-ação” (Fals Borda, 1982).
devem ser respeitados com o objetivo de impulsionar práticas de
investigação vinculadas aos interesses do movimento popular: auten A investigação-ação na vertente educativa
ticidade, antidogmatismo, devolução sistemática, retroalimentação
de intelectuais orgânicos, ritmo e equilíbrio entre ação e reflexão e, Paralelamente ao desenvolvimento conceituai no campo socio
finalmente, desenvolvimento de uma ciência modesta basea em téc lógico, a década de setenta assiste ao desenvolvimento de uma
nicas dialógicas (Fals Borda, 1982). Por trás desses princípios, jaz estratégia metodológica no campo das prática educativas. Tal estra
toda uma postura que visa integrar os setores populares à determi tégia é também denominada como processo de investigação-ação e,
nação dos conteúdos de pesquisa, bem como incorporá-los à inves nos seus traços gerais, recolhe os momentos, fases e etapas delinea
tigação na qualidade de atores do processo.
dos por Paulo Freire para a investigação temática. A metodologia,
O investigador aparece, em tais processos, como um intelec proposta por João Bosco Pinto, encontra na experiência inicial de
tual comprometido com os interesses do movimento popular, e a Paulo Freire os elementos de um marco teórico-metodológico a
investigação-ação surge como espaço de participação social e mé partir do qual constrói diversas técnicas que vêm sendo aplicadas
todo de ação política. Como uma forma renovada de fazer política e
com maior ou menor êxito em microprocessos de planejamento inse
uma forma alternativa de fazer educação, mesmo quando esta úl
ridos geralmente em programas de desenvolvimento rural.
tima não chegue a ser explicitada. Neste contexto, não se pode
Teoricamente, Bosco Pinto sustenta sua proposta a partir do
deixar de reconhecer que, em muitas experiências baseadas na pro conceito de educação libertadora, entendendo-a como os processos
posta de investigação-ação, subjaz uma tentativa de contribuir ao que tendem a recolocar o homem oprimido, tradicionalmente conce
desenvolvimento de novas teorias e estratégias metodológicas no bido como objeto da educação, no centro do processo educativo.
campo da investigação social e da prática pedagógica. De fato, Dando prioridade à ação junto a camponeses beneficiários de pro
vários princípios que regem as estratégias e concepção presentes nos
26 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 27
cessos institucionais de mudança agrária, este autor defende a incor Q U A D R O -R E S U M O N? 2
poração da atividade educativa à transformação de uma estrutura Seq üên cia m etod o ló gica
social definida como capitalista e dependente. Concebe esta contri da investigação-ação em sua v e rten te edu cativa
buição em termos de uma redefinição da funcionalidade social da
Momento Fase e seu objeto Instrumental Atividade e prática
educação que, ao situar-se em uma perspectiva de classe, pode
contribuir para apoiar os processos de mobilização e organização — selecionar uma — mapas — definição da
popular. Nesse sentido, postula uma educação entendida como área específica — contatos área de trabalho
de trabalho para pessoais (local de desen
“um processo permanente de formação da consciência crítica dos aproximação volvimento,
setores populares, concebida esta como o desenvolvimento e o aper aos grupos de por exemplo)
camponeses
feiçoamento da capacidade de compreender criticamente a reali (definição pela
dade histórico-cultural em que vivemos, para encontrar nela a expli instituição)
cação de sua situação objetiva, assim como as formas e instrumentos
— recolher infor — documentação — compilação de
que lhe permitem superá-la mediante um esforço coletivo, sistemá mação básica — contatos pes dados (trabalhos
tico e organizado, conduzindo-os a atingir a plena participação na sobre a área de soais e insti anteriores,
gestão e direção do processo produtivo e no desfrute da riqueza, trabalho tucionais monografias,
estatísticas,
bens e serviços gerados socialmente” (Bosco Pinto, 1977:8). metas etc.)
Em termos da investigação e das ações de desenvolvimento — entrevistas
estruturais
coletivo, a definição anterior traz as seguintes implicações para os — trabalho em
setores populares: grupo interdisci-
plinar

in v e s t ig a ç à o -a ç à o
1) O acesso universal ao conhecimento científico e técnico,
— observar e rea — guias de per — elaboração de
que possibilita a participação no desvendamento (desideologização)
lizar investiga guntas uma lista de
da realidade concreta e sua efetiva transformação através do traba ções individuais — diário de campo perguntas, guia
lho. — ficha de desco de entrevistas
brimento com os campo
2) O desenvolvimento da criatividade, a fim de gerar novas neses
formas de participação em todos os níveis e aspectos que afetam o — uso do diário de
desenvolvimento social e econômico. campo, um
caderno de
3) A organização dos grupos em núcleos de base sólidos e informações das
autônomos, nos quais sejam o sujeito agente de sua própria liber entrevistas na
tação. participação no
trabalho dos
4) O emprego de meios de comunicação dentro de um sistema camponeses
no qual os grupos organizados tenham acesso direto à gestão, pro (fundamental)
dução das mensagens e seus conteúdos (Bosco Pinto, 1977:8). — execução de
fichas, formali
Os alinhamentos metodológicos para a ação educativa se inse zação e seleção
rem na concepção anterior, e métodos e técnicas se adequam ao da informação
mesmo, tomando como pontos de partida do processo educativo compilada (par
ticularmente a
tanto a realidade quanto o diálogo. A seqüência metodológica pro partir do diário
posta, da mesma forma que a de Freire, compreende o momento de de campo); ati
investigação, o de tematização e, por último, o da programação, vidade a se rea
lizar em grupo
cada um com seus instrumentos e técnicas correspondentes, con
forme indica o Quadro-resumo n? 2. continua
28 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 29
Momento Fase e seu objeto Instrumental A tividade e prática Momento Fase e seu objeto Instrumental Atividade e prática
selecionar e os grupos estra código, se
treinar os grupos tégicos são os procura:
estratégicos grupos de pro • a verificação
dutores ligados e/ou aumento
por interesses de informação
• detectaras

INVESTIGAÇÀO-AÇÃO
comuns nas re
lações de pro percepções
dução; gera que têm os
dores diretos da produtores da
riqueza social, realidade
assumem um representada
papel essencial no código
no processo — recompilar todas
de mudança as informações
estrutural em forma de
notas, grava
sistematizar a — estrutura de — construção de ções e sistema
informação relações estruturas que tizar com fichas
são extremos e estruturas
implementando
— compatibilizar — marco teó- — trabalho de
INVESTIGAÇÃO-AÇÀO

os diversos equipe para


elementos e os elementos de rico de refe-
informação com rência comparara
suas relações, teoria com a
para começar a o marco
teórico percepção dos
entender qual é grupos, para de
a percepção que (teorização)
tectar os vazios,
têm os campo distorções no
neses da comu conhecimento
nidade e seu de sua realidade
funcionamento — buscar uma
realizar a inves — código de — realização de ampla expli
tigação coletiva investigação códigos de cação e uma

TEMATIZAÇÀO
e devolver a — círculo de compreensão
investigação:
informação aos investigação são a represen dos processos
grupos campo tação gráfica ou reais de funcio
neses gestual (teatro, namento da
jogo de papéis sociedade (ana
etc.) das si lisar os elemen
tuações reais, tos, identificar
que permitem o suas inter-
diálogo nos cír relações e a
culos de investi dinâmica histó
gação rica)
— realização de — redução — temas gera- — identificar con-
círculos de temática dores juntos de ele
investigação: mentos que con
são reuniões nas formam os te
quais, a partir da mas significa
discussão de um tivos na percep-
continua continua
30 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 31
Momento Fase e seu objetivo Instrumental Atividade e prática Momento Fase e seu objeto Instrumental Atividade e prática
ção dos grupos — círculos de — realização de cír-
(temas gera cultura culos de cultura,
dores) e permi que são reuniões
tem a iniciação de grupos não
de um processo maiores do que
pedagógico de O 15 pessoas, nas
desenvolvi «< quais se busca,
mento da cons
ciência a a partir do ma
terial didático,
— detectar os tipos < elevar o nível de
de explicação consciência dos
que os campo H participantes em
neses dão aos um processo de
fenômenos, redescobri-
fatos ou proces mento de sua
sos própria reali
— identificaras dade.
debilidades e
distorções da — realização dos — círculos de — orientação dos
relação per- círculos de cultura círculos em dire-
percepção/ cultura ção ao questio
teorização namento crítico
TEMATIZAÇÃO

das interpre
elaborar um unidades peda — ordenamento de tações que dá o
programa gógicas, mate temas em uni grupo de sua
pedagógico rial didático dades, partindo realidade
do mais simples — avaliações e tra
ao mais com tamento em
plexo, do con equipe dos cír
creto ao culos de cultura
abstrato etc. o — organização de
— elaboração do »< pequenas as
material didático O sembléias e reu-
<
que representa a 2 niões dos gru-
expressão vi < pos estratégicos
sual, oral ou CD — trabalho em
audiovisual dos O grupos e em cír-
elementos ou CL culos de cultura
temas que vão
servir no código. — classificar os — grupos de
Utilizado para problemas trabalho
os círculos de detectados em
cultura (código ordem de prio
que combina ridade
elementos da — elaborar e sele-
percepção/reali- cionar projetos
dade com um de ação
guia pedagógico — difundir a ação — meios de di- — realização de
para facilitar o educativa fusão escritos. assembléia geral
diálogo) audiovisuais para apresentar
continua continua
32 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 33
projetos de planificação coletiva de diversos cursos de ação. A parti
Momento Fase e seu objeto Instrumental Atividade e prática cipação nos movimentos de devolução sistemática da realidade estu
a problemática dada e as seqüências iterativas caracterizam estas metodologias de
e os projetos de trabalho, ocorrendo em alguns projetos uma combinação entre am
ação bas, na tentativa de determinar os níveis de consciência, percepção e
— elaboração de — analisar os re- comportamento dos setores populares e planejar conjuntamente
projetos defini- cursos humanos ações que contribuam para modificar as situações existentes.
tivos e materiais
— programaras Apenas para ilustrar o exposto acima, apresenta-se no Quadro
ações 3 um esquema que indica as diferenças existentes entre as duas
seqüências metodológicas: de um lado, a que é tradicionalmente
— estabelecer — estruturas de — criação de estru-
mecanismos de controle turas de con- empregada em projetos de investigação científico-acadêmica e, de
controle dos — avaliação trole pela popu- outro, a proposta por Paulo Freire para a investigação temática,
projetos pela permanente lação, discussão ampliada posteriormente por J. Bosco Pinto, particularmente no
O população de mecanismos
— executar os pro- estruturais que diz respeito às etapas de programação, execução e avaliação de
O
< jetos e avaliá-los — execução dos projetos coletivos.
-> projetos especí-
< de forma perma- Tecnicamente, as propostas que dão forma aos estilos parti
cr nente ficos
O — avaliação per- cipativos recorrem freqüentemente ao instrumental das ciências so
O
cr manente é ação ciais, particularmente na fase de pesquisa desses processos. De fato,
crítica que os a obtenção e/ou produção de conhecimentos mediante a intervenção
executores exer
cem sobre sua e a ação não é, em nenhuma das propostas resenhadas, o único
própria ação, modo de se obter informações válidas para a programação de ati
periódica e siste vidades e/ou para o estudo de um problema particular. Ilustram
maticamente;
os resultados
essa assertiva não apenas os dados obtidos pelas experiências exis
devem ser sub tentes, mas as palavras de um investigador com relação ao desen
metidos à popu volvimento de uma delas. Assinala o pesquisador em questão, refe
lação através de rindo-se ao tipo de instrumento empregados, que:
mecanismos de
controle (traba
lho em comuni “ ... também necessitei de técnicas normais da ciência sociai uma vez
dade) que fui aceito (pela comunidade). Fiz enquetes sobre a situação da
posse da terra e a estratificação social local e estudei a história da
Fonte: Pinto, J. B. "Metodologia de Ia investigación-acción, momentos y
fases", in\ Preparación y evaluación de proyectos, Quito, Junta Nacio aldeia (mediante alguns dados e entrevistas feitas com a população
nal de preinversión, 1976, mimeo. mais idosa) (...) Por meio deste enfoque de participação, fui defron
tar-me com a estrutura político-econômica local da sociedade campo
Como se pode apreciar no Quadro 2 e será visto em outros es nesa. Os aspectos mais essenciais para a compreensão da sociedade
quemas, este estilo de investigação não utiliza uma seqüência meto aldeã se deveram ao enfoque da ação e ao diálogo com os campo
neses; ao procurar olhar sua sociedade ‘a partir de baixo’, com meus
dológica como a que se propõe para a investigação científico-aca
próprios olhos, tanto quanto era possível (...) A estrutura local de
dêmica. De fato, a maioria das propostas neste campo sugerem poder, como parte da sociedade global, tinha sérias contradições (...)
estratégias metodológicas que contemplam uma sucessão de passos Minha maior surpresa foi ver que tantos cientistas sociais estudaram
e etapas compartilhados por aqueles que investigam. Essas passa a vida rural durante anos sem descobrir estes assuntos básicos e as
gens adquirem denominações distintas de acordo com as propostas, contradições do poder.” (Huizer, 1977:217)
aparecendo como as mais difundidas as que se inserem no âmbito de
34 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 35
Q U A D R O -R E S U M O N? 3
Comparação de seqüências metodológicas Investigação cientifico-acadêmica Investigação-ação
em dois estilos de investigação social
4. Metodologia (ou marcos metodo 4. Momento 3: Programação/ação
Investigação cientifico-acadêmica Investigação-ação lógicos) Fase 1: realização de círculos de
4.1. Formulação de hipóteses estudo
4.2. Seleção e operacionalização Fase 2: irradiação da ação edu
1. Formulação do problema 1. Etapa prévia: formação da equipe de variáveis cativa
1.1. Antecedentes e elaboração de diretrizes básicas 4.3. Esboço de instrumentos Fase 3: elaboração de projetos
1.2. Justificação sobre a sociedade na qual se dá 4.3.1. Seleção da amostra e determinação de neces
1.3. Definição de conceitos o trabalho de investigação e 4.3.2. Instrumentos propria sidades educativas
1.4. Conteúdos e/ou alternativas realidade a ser abordada, dire mente ditos (en- Fase 4: execução e avaliação de
1.5. Limitações trizes gerais sobre o manejo de quetes, entrevistas) projetos de ação
técnicas e instrumentos de inves 4.4. Aplicação-piloto de instru
tigação mentos e controle de variá
veis
Passo 1: formação da equipe investi 4.5. Coleta de dados
gadora com representantes 4.6. Processamento e análises de
de setores populares dados
Passo 2: autocapacitação e inte — codificação
gração de diversas — análise estatística
percepções e experiências — construção de tabelas
assim como distintas etc.
orientações a respeito de 4.7. Interpretação dos dados
teorias sobre o modo como 4.8. Relatório final
se organiza a sociedade e o
papel da investigação social
Fonte: Gajardo, M., op. cit., p. 32.
2. Objetivos 2. Momento 1: Investigação Nenhuma das propostas que dão forma a este estilo de tra
2.1. Gerais Fase 1: construção de um marco balho emprega técnicas estatísticas sofisticadas. As experiências que
2.2. Específicos de referência se orientam com base numa compreensão da percepção e compor
Fase 2: seleção de áreas e uni tamento dos setores populares utilizam, em geral, análises de con
dades ou grupos estra
tégicos teúdo. Em nenhum caso estas experiências se valem de técnicas de
Fase 3: observação participante análise multivariada que permitam a validação e a generalização dos
ou aproximação às uni conhecimentos produzidos nos termos classicamente programados
dades específicas
pela investigação científica, nem tampouco esse é seu objetivo. O
Fase 4: investigação da proble
mática das unidades tipo de técnicas empregadas e a escassa ou nula sistematização e
específicas. Codificação/ avaliação destas experiências têm levado alguns críticos a assinalar
decodificação que o propósito deste tipo de estudos difere fundamentalmente do
da investigação científica. Não há tentativas de construir sobre a
3, Marcos de referência conceituai 3. Momento 2: Tematização experiência e o trabalho acumulados, e seus impulsos em geral não
(quadro teórico) levam em conta a contribuição de outros estudos realizados no
Fase 1: redução teórica
Fase 2: redução temática e deter campo. Muitos desses estudos não explicitam o quadro conceituai e
minação de temas gera
dores o enfoque teórico que os sustentam, nem formulam hipóteses a
Fase 3: elaboração de um pro serem comprovadas. Os “porquês” da falta de sistematização e
grama pedagógico
avaliação das experiências e, em muitos casos, da falta de rigor
continua encontram-se nas exigências colocadas pela ação em face do tra
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 37
36 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
balho de pesquisa. Questionar essa relação e seu equilíbrio consti maioria dos países, com exceção daqueles em que o sistema edu
tuem aspectos para reflexão, tendo em vista o desenvolvimento de cativo em seu' conjunto se encontra submetido a um processo geral
experiências futuras nesse campo. de democratização e/ou implementação de políticas participativas.
A observação acima ganha realce na medida em que um dos Pode-se explicar a característica apontada em função do que se
pressupostos básicos dos estilos participativos de investigação e ação chama atualmente de mudança na interlocução. Com isso, se pro
educacional é o trabalho com grupos em geral, e com organizações cura ressaltar o fato de que, nas décadas passadas, o interlocutor
populares em particular. Isso constitui elemento comum às distintas privilegiado tinha sido o Estado, e o interesse central da investigação
propostas já resenhadas. As diferenças radicam no tipo de grupos fora o de influir na concepção e aplicação das políticas sociais e
atendidos, na estratégia utilizada e na comparação entre as técnicas educativas. Na atualidade, começa-se a reconhecer os setores popu
de investigação e as ações desenvolvidas. lares e suas organizações representativas como interlocutores válidos
De modo geral, tanto a estratégia postulada pela investigação para a formulação de ações colaborativas.
temática como a investigação-ação privilegiam o trabalho cqm orga Dadas as poucas possibilidades de influir massivamente a
nizações econômicas e sociais. Os movimentos de base de operários, partir do aparelho estatal, os focos de atenção começam a se trans
camponeses e indígenas, assim como os grupos vicinais e as popu ferir em direção à busca de mecanismos que permitam uma influên
lações foram os atores aos quais se deu prioridade em termos do cia social e/ou a geração de ações relevantes. A maioria das expe
desenvolvimento de projetos de investigação ativa, particularmente riências sustentadas em estilos participativos de pesquisa apontam
durante os anos sessenta e setenta. Nos últimos anos, verifica-se um para um interlocutor distinto do Estado e dos grupos que o contro
deslocamento das experiências em direção às organizações margi lam, embora existam ainda em alguns países processos impulsiona
nais urbanas e grupos heterogêneos, nos quais se percebe algum dos pelo aparelho estatal. Todos eles têm em comum a atitude de cha
potencial organizativo. No meio rural, os programas de apoio ao mar a atenção para aqueles grupos que, pelo fato de estarem orga
movimento cooperativo e sindical, próprios das décadas anteriores, nizados ou conterem um potencial de organização, podem influir em
tenderam a ser recolocados em uma perspectiva de trabalho com processos de tomada de decisões e gerar experiências educativas dis
adultos em geral, e comunidades camponesas em particular, trans- tintas das oficiais. Isso diz respeito a outra proposta existente neste
formando-se em componentes de microprocessos de planificação campo, a qual discutiremos a seguir.
para o desenvolvimento rural. Isso fica evidente ao se observar o tipo
de base organizativa com a qual se trabalha ou se buscam imple
mentar no meio rural. Da investigação-ação à investigação militante
Para a década de oitenta, é notória a transferência dos pro
jetos do meio rural para o meio urbano, do trabalho com campo As alternativas propostas por Paulo Freire, O. Fals Borda e
neses e indígenas para com operários e populações marginais urba J. Bosco Pinto deixavam explicitamente de lado o compromisso
nas, cobrindo as mais distintas áreas de atividade e conteúdo. Isso político-partidário: isso, pelos menos, é o que aparece em um de seus
pode ser explicado, em parte, pelos efeitos da reversão das tendên escritos (Fals Borda, 1977). Outras estratégias surgidas neste mesmo
cias de democratização social em um número importante de países e período colocam tal compromisso como eixo central de sua proposta
pela conseqüente mudança nas estratégias de investigação e ação teórico-metodológica no campo da investigação social e educativa.
educativas, que passaram a considerar prioritário um trabalho orga Suas origens provêm tanto do campo das ciências sociais como da
nizativo sustentado pela atenção às necessidades mínimas de subsis educação, recebendo até agora duas denominações: investigação
tência (trabalho, moradia e saúde) dos grupos que vivem em condi militante e observação militante. A primeira proposta foi impulsio
ções de pobreza crítica. nada por um grupo de intelectuais venezuelanos e a segunda, ba
Nesse sentido, é necessário destacar um aspecto adicional, seada em um enfoque sócio-educativo, foi formulada pelos brasi
qual seja, a maior participação no trabalho com organizações de leiros Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira. Nesta última, procura-se
entidades não-governamentais e da Igreja. Isso é válido para a inter-relacionar os princípios da educação libertadora proposta por
38 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 39
Paulo Freire e as objeções levantadas à sociologia positivista pela
chamada sociologia crítica. Como esta proposta reproduz os obje Passos da investigação Instruções operacionais
tivos gerais e a seqüência de passos e etapas da investigação temá
tica, não a resenharemos neste artigo. Apresentaremos, no entanto, <1 Primeira fase da organização da — apresentação da informação
informação obtida, organizada segundo:
os traços metodológicos centrais do chamado paradigma da inves Objetivos: a) caso que se investiga
tigação militante, visto que nele aparecem dois elementos não expli a) treinar a sistematização das b) fontes de informação
citados nas propostas anteriores: os partidos políticos e o papel do informações c) interesse político imediato do
b) elaboração de modelos caso (hierarquizar com outros
intelectual orgânico. Acosta, Briceno e Lenz caracterizam o para analíticos casos)
digma da investigação militante como um modelo que compreende c) fundamentação teórica e — discussão de todo o item anterior,
política desses modelos isto é:
uma diversidade de etapas, as quais ocorrem sempre vinculadas a a) da emergência do caso
uma prática politico-partidária, de acordo com o Quadro 4. b) da validade das fontes
5. Segunda fase da organização da — apresentação dos informes perti
QUADRO-RESUMO N? 4
informação nentes aos objetivos do passo 4
Paradigma da investigação militante Objetivos: — estes informes políticos deveríam
treinar algo que se poderia chamar ser discutidos em outras ins
Passos da investigação Instruções operacionais desagregação dos modelos de tâncias do partido
análise a fim de obter subprodutos — este informe deveria ser discutido
de uma investigação na comissão que promove a
1. Posição do investigador no pro — em que e onde se trabalha (zona a) para a ação política tática investigação militante
cesso global de produção e empresas) b) para a ação política estratégica
Objetivos: — condições objetivas do trabalho c) para a formação teórica em
a) identificação da classe social — organização dos trabalhadores investigação militante
b) identificação do próprio con — relação com outros ramos da
texto de trabalho no contexto produção
— conflitos locais imediatos, quem Fonte: Acosta, M. et aiii, "Una línea política revolucionaria: Ia investigación
sociotemporal mais amplo
c) identificação da conjuntura participa (indivíduos, grupos, militante", irr. Crítica y política en ciências sociales, Bogotá, Ed. Punta
política das práticas sociais instituições, sindicatos, asso de Lanza, 1978, v. 1, pp. 361-378.
ciações, câmaras etc.)
Pesquisa participante e investigação participativa:
2. Identificação das contradições — relação entre os conflitos ime
em determinada conjuntura diatos e outros percebidos como
pritnórdios dos anos oitenta
Objetivos: exteriores
traçar linhas de ação política a — quais são estes últimos Até aqui procuramos resenhar as principais propostas pre
curto e médio prazos — instituições, indivíduos, grupos,
partidos etc. aos quais se possa
sentes nos estilos participativos de investigação social e prática edu
identificar como antagônicos cativa, com o objetivo de chegarmos ao que se conhece hoje como
— discussões sobre o tratamento investigação participativa ou pesquisa participante.
a ser dado aos conflitos A pesquisa participante surge, conceituai e metodologica-
mente, no início da década de oitenta, quando a realidade de um
3. Posição da informação — quem é afetado diretamente pela
Objetivos: situação e que tipo de informação número importante de sociedades latino-americanas se caracteriza
a) treinar a coleta de informações pode prestar pela presença de regimes autoritários e modelos de desenvolvimento
através de diferentes técnicas — identificar informação oficial mariífestamente excludentes, no aspecto político, e concentradores,
b) identificar as linhas relativas sobre a situação
a tomada de decisões, seus — imprensa e opinião pública, em no aspecto econômico. As tendências democratizantes e participa
agentes, áreas de ação etc. especial a proveniente de auto tivas próprias dos estilos modernizantes e integradores dos anos
ridades sessenta, que defendiam a incorporação de amplos setores da popu
continua lação à vida social e política, cederam lugar às exigências impostas
40 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 41
por uma reestruturação autoritária que, reduzindo as margens da O Quadro-resumo n? 5 ilustra a forma como se estruturam os
heterogeneidade, substituíram as fronteiras difusas do populismo processos iterativos — de ida e volta da informação — em uma das
por classes de perfil mais definido. estratégias metodológicas de pesquisa participante.
Nesse âmbito, continuam se desenvolvendo alternativas de
trabalho com os setores populares e continua também o delinea- QUADRO-RESUMO N? 5
mento de estratégias visando incorporar os setores populares aos Seqüência metodológica da pesquisa participante
processos de produção e comunicação de conhecimentos. É assim
a) Primeira fase: montagem institucional e metodológica da pesquisa
que surge uma proposta hoje como tendência emergente: a inves participante
tigação participativa ou pesquisa participante. Nela se sintetizam as Nesta primeira fase, a equipe promotora da pesquisa participante con
propostas anteriormente resenhadas e se incorpora a experiência juntamente com as organizações representativas da população reali
zam as seguintes tarefas:
acumulada na América Latina durante as décadas passadas. Nesse — informação e discussão do projeto de pesquisa participante com a
sentido, pode-se dizer que as diversas experiências se adequam a população e seus representantes
momentos particulares e conjunturas as quais atravessa cada socie — formulação do quadro teórico da pesquisa participante (objetivos,
conceitos, hipóteses, métodos)
dade e, com isso, emergem novas estratégias metodológicas e novas — delimitação da zona a estudar
denominações para práticas que compartilham um objetivo comum. — organização do processo de pesquisa participante (instituições e
Se se procura uma caracterização de tais processos a partir da grupos envolvidos, distribuição das tarefas, estruturas de deci
perspectiva da estratégia de investigação que utilizam hoje, deve-se são...)
— seleção e capacitação dos pesquisadores
reconhecer que, como nas décadas passadas, a maioria das expe — elaboração do pressuposto
riências tenta partir da realidade concreta dos grupos com que tra — elaboração do calendário das principais etapas da pesquisa partici
pante
balham, e defendem o estabelecimento de relações horizontais e
antiautoritárias. Propõe-se a utilização de mecanismos democrá b) Segunda fase: estudo preliminar e provisório da zona e da população
ticos na divisão do trabalho e o implemento de processos de apren em estudo
dizagem coletivos através de práticas grupais. Como as anteriores, O trabalho de conhecimento da realidade deve ser permanente ao
longo de todo o processo da pesquisa participante.
esta proposta reconhece as implicações políticas e ideológicas subja Nesta fase, deve-se combinar ou relacionar os três tipos de informa
centes a qualquer prática social, seja ela de pesquisa ou de finali ções seguintes, acerca de:
dades educativas, e propugna pela mobilização de grupos e organi — a estrutura social da população em estudo
— o ponto de vista dos habitantes das áreas geográficas e estruturas
zações para a transformação da realidade social ou para o desen sociais em estudo, e os principais eventos de sua história
volvimento de ações que redundem em benefício coletivo. — uma informação sócio-econômica e técnica, utilizando indicadores
Metodologicamente, tal enfoque, enfatizando a produção e sócio-econômicos e tecnológicos
comunicação de conhecimentos, propõe os seguintes objetivos: A retroalimentação da primeira fase
1) promover a produção coletiva de conhecimentos, rompendo Os objetivos desta entrega e discussão dos resultados são os seguintes:
com o monopólio do saber e da informação e permitindo que ambos — promover nos envolvidos e demais habitantes um conhecimento
mais objetivo da sua situação
se transformem em patrimônio dos grupos subalternos; — identificar, com os pesquisados, os problemas que consideram
2) promover a análise coletiva do ordenamento da informação prioritários e que querem estudar para solucioná-los
e da utilização que dela se pode fazer; — conhecer a reação da população diante dos resultados do diagnós
tico a fim de orientar as fases seguintes do processo de pesquisa
3) promover a análise crítica, utilizando a informação orde participante
nada e classificada a fim de determinar as raízes e as causas dos As atividades de retroalimentação supõem não apenas a elaboração de
problemas e as possibilidades de solução; meios simples de comunicação (desenhos, cartazes etc.) para apresen
tar os resultados de uma forma compreensível para todos mas também
4) estabelecer relações entre os problemas individuais e cole uma "dinâmica de grupo" para discutir esses resultados, comparar os
tivos, funcionais e estruturais, como parte da busca de soluções pontos de vista, propor novas orientações de investigação, selecionar
e discutir problemas, formular novas hipóteses etc.
coletivas aos problemas enfrentados (ÍCAE, 1981:16-18).
42 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 43
c) Terceira fase: análise crítica dos problemas considerados prioritários
e que os pesquisados desejam estudar — medidas que possam melhorar a situação a nível local
— ações educativas que permitam cumprir essas medidas
Constituição dos "círculos de estudo" — ações para promover as soluções identificadas a médio e longo
Esta terceira fase do processo de pesquisa participante está dedicada prazos, em nível local ou mais amplo
a um primeiro trabalho de análise crítica dos problemas por parte dos
"círculos de estudo" que desejam se organizar em torno desses pro Retroalimentação do piano de ação
blemas O plano de ação e sua implementação deve também dar lugar a uma
discussão e a uma avaliação permanentes de sua orientação, de seu
0 treinamento do "animador" dos círculos de estudo, a respeito de: conteúdo e de sua execução.
— metodologia de investigação sócio-econômica
— sociologia do conhecimento A pesquisa participante: um processo permanente
— dinâmica dos grupos 0 processo de pesquisa participante não termina com a quarta fase
— tecnologia (por exemplo, agrícola, se trabalha no meio rural) anteriormente descrita. A análise crítica da realidade, a execução das
— métodos e técnicas de educação popular ações programadas conduzem ao descobrimento de outros problemas,
Além disso, este animador deve ter conhecimento e experiência do de outras necessidades, de outras dimensões da realidade. A ação
meio social, econômico e cultural ao qual pertencem os membros do pode ser uma fonte de conhecimentos e de novas hipóteses.
círculo de estudo.
Análise critica dos problemas Fonte: Le Boterf, G., in De Schutter, A., op. cit., pp. 235-236.
Trata-se de partir dos fenômenos para buscar o essencial, por trás das
experiências e das relações cotidianas imediatas. Isto é, não só se deve
descrever os problemas como também explicá-los e buscar estratégias A seqüência anterior foi predominantemente aplicada em prá
possíveis'de ação. ticas de investigação e ação educativas inscritas no âmbito de pro
Primeiro momento: fazer a "representação" cotidiana do problema cessos de mudança impulsionados pelo aparelho estatal. Hipoteti
Segundo momento: questionamento da representação do problema
camente, é possível pensar que um clima favorável por parte daque
"Limitar-se a estudar o 'concreto percebido' para descrevê-lo, acu les que ocupam posições no aparelho de Estado condicionam em
mular observações empíricas para explicá-lo levaria a agregar uma grande parte o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, em termos
séria de pontos de vista, a reforçar condicionamentos ideológicos,
determinando a percepção dos participantes, a confundir causas de tempo e recursos. Para muitos, a metodologia anteriormente
aparentes com os fatores determinantes e estruturais que produzem descrita pode aparecer como um processo amplo e de alto custo,
o problema e geram a situação enfrentada." sobretudo pela perspectiva de implementar projetos visando atender
Terceiro momento: recolocação do problema comunidades pequenas com escassas ou nulas possibilidades de
Procura-se uma reformulação mais objetiva do problema através de: irradiação ou de influência social e política. Ao contrário, tais pro
— a descrição do problema (identificação dos "pontos de vista" e dos
"aspectos": enumeração, classificação e comparação das informa jetos, como microprocessos de experimentação e planificação social
ções; identificação das contradições entre vários elementos da si e educativa, valorizam-se positivamente à medida que seus resul
tuação: localização do problema no tempo) tados, diante de eventuais mudanças de política na América Latina,
— explicação do problema, isto é, determinação de suas causas não
somente imediatas como também estruturais puderem ser generalizados para o conjunto da sociedade.
A necessidade de soluções coletivas a longo prazo não elimina a pos No entanto, o apoio estatal a essas práticas é escasso na
sibilidade de tratar de melhorar a situação localmente e a curto prazo. América Latina. Isto, somado às urgências enfrentadas pelos setores
0 que vale é identificar claramente as limitações destas ações.
populares na satisfação de suas mínimas necessidades de subsistên
Atividades de retroalimentação desta terceira fase cia, levou muitos investigadores e educadores a formular métodos
Cada "círculo de estudo" pode comunicar os resultados de seu traba
lho aos outros círculos e ao conjunto da "comunidade". alternativos que, tendendo para o mesmo fim, encurtam e bara
teiam estes processos, numa tentativa de atenuar ou solucionar as
d) Quarta fase: programação e execução de um plano de ação (incluindo necessidades mais urgentes dos grupos subalternos.
ações educativas) para contribuir para enfrentar os problemas colo
cados Dentre essas alternativas, cabe destacar o surgimento de estra
0 plano de ação inclui: tégias metodológicas que adotaram ou delinearam caminhos em
— atividades educativas que permitam analisar melhor os problemas e consonância com a realidade e a conjuntura que atravessam os
as situações vividas
países e os grupos com os quais trabalham. Dentre elas, podemos
44 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 45
mencionar: as práticas desenvolvidas sob a denominação de enquete dem ser entendidas como uma atividade onde se procura modificar a
conscientizadora, método surgido como resultado do trabalho reali realidade circundante e o comportamento dos grupos, derivando daí
zado por INODEP com diversos grupos de base (López de Ceballos, alinhamentos teóricos e metodológicos suscetíveis de serem generali
1979); o autodiagnóstico resultante das experiências de investigação zados para o conjunto da sociedade.
e capacitação camporíesa no meio rural mexicano (Sotelo & Schmel- É por isso que não se pode falar em um novo paradigma, nem
kes, 1980); a enquete participativa (UNESCO, 1978); a observação numa proposta representativa de um estilo participativo de inves
militante (Oliveira & Oliveira, 1980) à qual já se fez referência em tigação, mas sim em definições diversas e experiências distintas
item anterior; a investigação na ação, da qual dão conta os projetos segundo os propósitos que se diz perseguir. Isso já foi visto ao se
desenvolvidos no Chile depois do golpe militar de 1973. analisar os diversos enfoques e propostas presentes neste campo. De
Nessas alternativas, difundidas em vários escritos esclare fato, se se observar os projetos à luz desses enfoques pode-se assi
cendo os princípios que as sustentam, pode-se constatar uma ten nalar que, dependendo de determinados momentos e conjunturas,
dência manifesta para incorporar os grupos com que se trabalha à surgem alternativas diversas de aplicação deste tipo de ações. Assim,
tarefa de definir o problema e/ou objeto de investigação, e de parti por exemplo, segundo seus propósitos e impacto, podem ser visua
cipar ativamente da coleta, sistematização e análise de dados. As lizados alguns tipos de práticas que enumeramos a seguir.
diferenças radicam no grau de participação atribuído aos setores A primeira vincula-se à planificação do desenvolvimento local,
populares durante as distintas fases do projeto e no posterior plane que proporciona um contexto de aplicação de estratégias de pes
jamento, execução e avaliação dos projetos de ação. A tipologia quisa participante, sejam estas implementadas como projetos de
elaborada por Ema Rubín de Celis (1982) ajuda a entender os níveis investigação temática, investigação-ação, pesquisa participante ou
distintos de participação dos setores populares na implementação investigação participativa. Aqui se inscreve um número importante
destes projetos. Define a autora cinco tipos possíveis de participação de projetos de desenvolvimento comunitário em geral, e de desenvol
nesses processos, a saber: 1) participação a partir da devolução de vimento rural em particular. Embora geralmente contemplem a
informação; 2) participação a partir da coleta de dados; 3) parti avaliação dos seus resultados, os projetos existentes raramente
cipação em todo o processo sobre o tema proposto pelo cientista; proporcionam antecedentes a respeito de seus resultados. Um tra
4) participação em todo o processo sobre um tema proposto pelo balho recente avaliando resultados obtidos no desenvolvimento des
próprio grupo; 5) participação na pesquisa a partir da ação educa tas experiências assinala, dentre as vantagens do método, a de ter
tiva. produzido efeitos imediatos na compreensão e no comportamento de
A participação popular varia efetivamente nas diferentes pro grupos camponeses diante da mudança social, e o fato de ter con
postas de investigação e seus projetos, podendo-se perceber inclusive tribuído para o desenvolvimento de uma pedagogia social que possi
algumas contradições entre os níveis de participação implícitos nas bilitou aos grupos o surgimento de uma organização capaz de pôr
metodologias e os pressupostos subjacentes a estas estratégias de em marcha projetos de desenvolvimento comunitário e de apoiar
trabalho com movimentos populares. processos de mudança social. Nesse sentido, destaca-se a importân
cia de um tipo de experiências que, tanto em décadas passadas como
na atualidade, se desenvolvem como componentes de políticas na
Considerações finais cionais de desenvolvimento, particularmente naquelas sociedades
onde se dão processos de abertura social e política. Muitos ele
Uma rápida mirada sobre as realizações neste campo permite mentos desse tipo de projetos foram incorporados como parte inte
constatar certa heterogeneidade de propostas e de projetos, cujo grante de políticas de cooperação técnica internacional (IICA/
elemento unificador é dado por sua inserção determinada em uma SEEC, 1983; Rahman, 1980).
perspectiva de mudança social e por se voltarem prioritariamente Um segundo grupo obedece aos propósitos de desenvolvimento
para os pólos dominados da sociedade. Qualquer que seja a deno de estilos alternativos de organização social e desenvolvimento edu
minação utilizada para caracterizar estas práticas sociais, elas po cativo. Neste caso, se inclui a maioria dos projetos de investigação
46 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 47
na ação, onde a pesquisa adquire a conotação de "aplicada” , na peito de seu impacto: a ausência de testemunhos e opiniões de
medida em que procede à devolução do conhecimento obtido junto operários, camponeses e indígenas que tenham participado deste
aos grupos com que trabalha e, ao mesmo tempo, evidencia a facti- tipo de experiência. Isto é particularmente importante se pensarmos
bilidade operacional do modelo experimentado. Essa visão situa o que a pesquisa social e educativa tem um impacto maior na medida
investigador à margem dos acontecimentos, visto que sua função em que se vincula' ou é solicitada por organismos com poder de
não se orienta para atuar sobre uma realidade, modificando-a, mas decisão, e quando os resultados coincidem com as tendências gerais
a uma observação participante da atuação de outros. que estes promovem. Este não é, evidentemente, o caso dos estilos
Sobre esta atividade, existem algumas avaliações que se so participativos de investigação e ação educativa, exceto em situações
mam aos resultados produzidos na investigação ocorrida no interior muito particulares onde estes processos coincidem com políticas
do processo. Todas elas coincidem em assinalar as vantagens de se redistributivas ou onde existe a decisão política de impulsionar pro
introduzir formas de organização e de trabalho coletivo através da cessos de mobilização e participação social.
ação desenvolvida por pequenos grupos, os quais incorporam rapi O fenômeno indicado acima é um dos mais perceptíveis na
damente novas idéias e valores, modificando também seus padrões implantação de experiências de pesquisa participante. Em certa
de comportamento. No entanto, na medida em que se trata de medida, poder-se-ia dizer que as mudanças em sua conceituação e
microexperiências de desenvolvimento educativo e organizativo, é estratégias refletem as variações das políticas de desenvolvimento
escassa ou nula sua influência ou massificação, particularmente vigentes na América Latina, as mudanças nos aparelhos governa
quando são desenvolvidos por organismos não-governamentais. Essa mentais que — por desempenharem as agências do Estado um papel
prática alternativa permite réplicas em diversas áreas, mas seus de apoio ao desenvolvimento organizativo dos setores populares,
resultados não se generalizam o suficiente a ponto de constituir uma ainda que dentro do sistema vigente — não apenas limitaram as
ação alternativa aos modelos dominantes. possibilidades de ação dos movimentos populares como procede
A terceira alternativa é a linha de trabalho que aparece vin ram, em um número importante de países, à desarticulação de tais
culada à luta pela democratização das estruturas sociais ou altera movimentos e de suas organizações. Se se observar o tipo de expe
ção profunda nas bases da sociedade a fim de superar as desigual riências desenvolvidas e sua base organizativa, é cabível pensar que
dades sociais e econômicas. Nela se inscrevem as experiências de em alguns casos elas aparecem onde existe espaço político para
investigação-ação vinculadas aos esforços de formular um novo tanto, e se reconstituíram a partir da experiência de participação
paradigma nas ciências sociais, e aquelas vinculadas diretamente dos movimentos sociais, perfilando-se como uma atividade que per
às práticas político-partidárias. Cuba e Nicarágua são os casos mais segue a criação de novos espaços onde possam se desenvolver cole
evidentes onde não ocorreram projetos isolados de investigação e tivamente modelos alternativos de trabalho social, político, econô
educação participativa, mas sim ambos os elementos se subordi mico e cultural.
naram às políticas concebidas, executadas e avaliadas pelos apa Nesse sentido, seria possível dizer que a heterogeneidade pre
relhos de Estado e pelas alianças populares no seu interior. Por sente nesses estilos de trabalho refletem, acima de tudo, as possibi
outra parte, também em países onde existem processos de abertura lidades de ação junto a setores populares dentro de limites social e
política ou condições mínimas para o desenvolvimento da capaci politicamente restritos, com vistas a elevar os níveis de consciência e
dade de mobilização popular, é possível detectar experiências inse apoiar o fortalecimento organizativo. Os modelos alternativos de
ridas em políticas concebidas pelo movimento operário e pelos seto indagação e criação cultura! já não aparecem então como um “novo
res populares em geral. Este também é, atualmente, um dos traços paradigma” de produção e comunicação de conhecimentos, mas
da proposta de investigação participativa ou pesquisa participante, como um conjunto de ações que contêm em germe os elementos que
mesmo que não se disponha de elementos avaliadores que permitam se propõem como alternativa tanto para a educação e pesquisa
dar conta de seu impacto em termos de melhorar os níveis de infor educativa quanto para a sociedade em seu conjunto. Nas palavras de
mação e capacidade mobilizadora do movimento operário e campo Gómez de Souza, são “ ações antecipadoras, experiências portadoras
nês. Um grande vazio gera, além disso, muitas interrogações a res do futuro, que podem chegar a ser laboratórios sociais e lugares de
48 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 49
experimentação. Embora muitas não dêem resultados positivos (...) , “Criando métodos de pesquisa alternativa: aprendendo a fazê-la melhor atra
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52 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 53
formas de os resolver. Desse modo, os resultados da pesquisa ficam
Primeira fa s e : A montagem institucional e metodológica da
reservados aos pesquisadores, e a população não é levada a conhecer
pesquisa participante.
tais resultados e menos ainda a discuti-los.
Essas várias características explicam a pouca eficácia que Segunda fa s e : O estudo preliminar e provisório da região e da
podem alcançar as medidas decididas a partir de tais pesquisas. De população envolvidas.
fato, essas medidas deparam com a resistência da população, que • a identificação d a estrutura social da população;
não faz questão de se engajar num projeto em cuja elaboração ela • o conhecimento do ponto de vista dos indivíduos e dos grupos das
não teve possibilidade de participar. regiões envolvidas, bem como dos principais eventos de sua his
Considerando as limitações da pesquisa tradicional, a pes tória;
quisa participante vai, ao contrário, procurar auxiliar a população • o recenseamento dos dados sócio-econômicos e tecnológicos, utili
envolvida a identificar por si mesma os seus problemas, a realizar a zando para isso “ indicadores” apropriados.
análise crítica destes e a buscar as soluções adequadas. Deste modo,
a seleção dos problemas a serem estudados emerge da população Ao final desta etapa, são organizados o feedback e a discussão
envolvida, que os discute com especialistas apropriados, não emer dos resultados desse diagnóstico com a população envolvida.
gindo apenas da simples decisão dos pesquisadores.
Terceira fase: A análise crítica dos problemas que a população
considera prioritários e que os seus membros (organizados em gru
pos de estudo) desejam estudar e resolver.
Proposta de um modelo de pesquisa participante
Ao final desta etapa, também é organizado o feedback dos
Não existe um modelo único de “pesquisa participante” , pois resultados do trabalho de cada grupo de estudo, que é comunicado
trata-se, na verdade, de adaptar em cada caso o processo às condi aos demais grupos e ao conjunto da população.
ções particulares de cada situação concreta (os recursos, as limita
ções, o contexto sociopolítico, os objetivos perseguidos etc.). Quarta fase: A programação e a aplicação de um plano de
O método que se proporá aqui deve, portanto, ser adaptado a ação (incluindo atividades educacionais) que contribua para a solu
cada projeto específico.1 Também não apresentaremos os instru ção dos problemas encontrados.
mentos (roteiros de entrevista, questionário, fichas de coleta de
dados estatísticos etc.) que correspondem a cada etapa do método Após a apresentação geral das principais fases do método,
exposto. Esses instrumentos não podem, com efeito, ser elaborados deter-nos-emos em cada uma delas em particular.
antecipadamente e sem estarem relacionados a cada projeto parti
cular de pesquisa participante e às condições específicas de sua
realização. Primeira fase: a montagem institucional e metodológica
Assentadas essas considerações preliminares, o modelo de da pesquisa participante
pesquisa participante que propomos neste artigo comporta as quatro
fases seguintes: No decorrer desta primeira fase, aqueles que promovem a
pesquisa participante, em associação estreita com as organizações
representativas da população, devem realizar as seguintes tarefas:
(1) Esses projetos podem ser, por exemplo: a elaboração de um plane
jamento educacional regional; a elaboração de um currículo escolar baseado • discussão do projeto de pesquisa participante com a população
nos problemas da comunidade; a programação de ações educativas extra-es- e seus representantes;
colares para adultos; a programação de um sistema de formação agrícola;
a seleção de tecnologias apropriadas em resposta a problemas específicos; • definição do quadro teórico da pesquisa participante, isto é, obje
a organização de uma consulta popular em determinada área (saúde, educa tivos, conceitos, hipóteses, métodos etc.;
ção, habitação); etc. • delimitação da região a ser estudada;
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 55
54
• organização do processo de pesquisa participante (instituições e • preparar uma efetiva descentralização da pesquisa participante
grupos a serem associados, distribuição das tarefas, procedimen ao nível dos grupos sociais mais oprimidos e mais afastados do
tos e partilha das decisões etc.); poder, de modo geral.
• seleção e formação dos pesquisadores ou de grupos de pesquisa; Nessa perspectiva, torna-se importante assinalar os diferentes
• elaboração do cronograma de operações a serem realizadas. grupos sociais existentes, as relações que estes mantêm entre si, a
Essas diferentes tarefas supõem o estabelecimento de uma sua função social, as ações efetivas que estes conduzem ou os obje
estrutura de orientação do projeto que assegure estes objetivos e que tivos que perseguem. Esse tipo de análise põe em xeque a noção
seja representativa das suas diferentes partes. Ela deve trabalhar em abstrata de “comunidade” (community, comunidad) e de “ meio” a
estreita relação com uma equipe de intervenção e de pesquisa, serem estudados. O próprio termo “comunidade” faz referência a
encarregada de promover as várias atividades científicas e técnicas um conjunto de indivíduos relativamente homogêneo. Ele oculta o
do processo a ser encaminhado. próprio fato da diferenciação social interna, as posições dos grupos e
até mesmo as relações conflituosas existentes entre estes últimos: em
comunidades aldeãs, os vizinhos são freqüentemente rivais. O termo
Segunda fase: o estudo preliminar da região “comunidade” mascara os interesses opostos que existem entre os
e da população envolvidas grupos sociais porque estes ocupam posições diferentes no processo
de produção. É necessário, portanto, identificar os segmentos ou as
Esta segunda fase da pesquisa participante — o diagnóstico frações de classe que constituem a “comunidade” .
preliminar e provisório — inclui três partes: Como escreve Eric Wolf:
• a identificação da estrutura social da população pesquisada; “O antropólogo, com sua experiência em comunidades restritas, sabe
• a descoberta do universo vivido pela população de pesquisados e que, por sua maneira de pensar e por seu comportamento, o arren
dos principais acontecimentos de sua história; datário se distingue do proprietário, o camponês pobre do camponês
• o recenseamento dos dados sócio-econômicos e tecnológicos. rico, o agricultor artesão do simples lavrador, o camponês responsá
vel por todas as operações agrícolas, em sua fazenda alugada ou
Estes três tipos de informação não são independentes entre si.
comprada, do trabalhador assalariado que trabalha por dinheiro sob
É necessário estudar as suas relações: as necessidades experimen a tutela de outros. Ele sabe também que convém distinguir entre o
tadas e exprimidas, por exemplo, não são independentes da posição camponês que vive perto de uma cidade e que participa dos assuntos e
ocupada no processo de produção por aqueles que as experimentam. do mercado urbanos e aquele que vive numa aldeia isolada, entre o
Trata-se, na verdade, de três momentos complementares na unidade camponês que começa a enviar seus filhos e filhas para as fábricas e
do diagnóstico. aquele que continua trabalhando nos limites do seu pequeno universo
rural. As distinções entre propriedade e participação na propriedade
em relação tanto com os mercados quanto com os sistemas de comu
Identificação da estrutura social da população nicação, tudo isso parece-lhe importante quando ele observa popu
envolvida lações ‘em campo’ ”.2
Uma das tarefas essenciais a ser efetuada durante esta fase é a
identificação da estrutura social da população pesquisada. Esse tra Por outro lado, se tomamos o caso de alguns países da Amé
balho se mostra fundamental na medida em que permite: rica Latina, a “comunidade indígena” também não constitui um
grupo homogêneo, com relações sociais harmoniosas, onde predo-
• diferenciar as necessidades e os problemas da população estudada
segundo as categorias ou as classes sociais que a compõem;
• selecionar a população para a qual e com a qual se deseja inter (2) Eric Wolf, Les guerres paysannes du 20e. siècle, Paris, Maspero,
1974.
vir;
56 REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 57
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
minariam relações de coordenação entre os membros que a consti dores devem trabalhar junto às categorias sociais mais exploradas e
tuem. Esta também não é um conjunto de indivíduos ou de famílias mais proletarizadas. De acordo com outras, será preferível escolher
como grupos privilegiados aqueles que dispõem de uma “ certa
ligadas por um consenso social ou por um sistema de valores comuns
que lhes permitisse afirmar uma identidade e se opor às diversas margem de manobra” frente ao poder.
Todas essas informações são igualmente pertinentes para or
agressões exteriores (econômicas, culturais etc.). As “comunidades
indígenas” , tais como existem hoje, são um produto da história. A ganizar depois, no processo de pesquisa participante, a atribuição
ou divisão da orientação da pesquisa e da intervenção. Da escolha
sua origem pode ser procurada ao mesmo tempo em um certo direito
dos grupos que se encarregarão da descentralização da pesquisa
consuetudinário pré-hispânico e na política colonial de “reagrupa-
mento” dos índios em encomiendas ou nos pueblos de reducción. participante dependerá a orientação política desta. Isto não significa
Em todo caso, elas constituem hoje um espaço social onde se dão e que somente os grupos formalmente constituídos (associações, sindi
se desenvolvem relações de poder, de dominação e de exploração. A catos, cooperativas, grupos religiosos etc.) intervirão na direção ou
estrutura dessas últimas é extremamente complexa, na medida em co-direção da pesquisa. Outros grupos, constituídos no momento de
tal intervenção, poderão igualmente tomar parte dela. Podemos
que se entrecruzam as estruturas tradicionais e as provenientes da
penetração de estruturas capitalistas e “modernas” . Nos “municí também levantar a hipótese de que estes últimos refletirão as divi
pios” coexistem freqüentemente estruturas tradicionais de poder, de sões ou fragmentações sociais existentes ao nível do conjunto da
tipo civil-religioso, e estruturas oficiais. Podem existir, assim, duas população. Essa tipologia dos grupos deve ser tratada com prudên
prefeituras. Também não pode passar sem referência a oposição cia. Os pesquisadores, com efeito, correm o risco de se deixarem
entre os “indígenas” e os “ladinos” (os que não são índios), as influenciar demasiadamente pelas próprias concepções ou ideolo
verdadeiras guerras de religião entre as igrejas3e as rivalidades entre gias pessoais. Daí podem resultar classificações simplistas ou mani-
os partidos políticos. queístas: os bons e os maus, os reacionários e os progressistas, os
Todo este estudo da situação social da “comunidade” , da exploradores e os explorados etc. Trabalhos de análise institucional
“população” , do “ meio” estudado é da mais alta importância para de grupos e organizações4 têm demonstrado a complexidade da
diferenciar os problemas e as necessidades em função daquela. estruturação e da dinâmica interna de tais grupos.
Os interesses, problemas e necessidades dos camponeses pro-
letarizados não serão os mesmos do artesão, dos comerciantes ou do
Descoberta do universo vivido pelos pesquisados
camponês médio, proprietário de uma extensão de terra que lhe
permite a sobrevivência da família. As “representações” das situa
ções vividas ou as aspirações podem variar segundo as caracterís O momento da pesquisa qualitativa merece ser examinado de
ticas religiosas e ideológicas. Vê-se, portanto, a utilidade dessas perto. Em que ele consiste?
Num primeiro momento, é importante compreender, numa
precisões quando se trata de organizar, por exemplo, ações educati
perspectiva “interna” , qual é o ponto de vista dos indivíduos ou
vas baseadas nas necessidades experimentadas ou nos problemas
percebidos. grupos sociais acerca das situações que vivem. Qual a percepção
destes sobre tais situações? Como eles as interpretam? Qual o seu
Por outro lado, se a pesquisa participante quer se colocar a
serviço dos oprimidos e ter um impacto social importante, é indis sistema de valores? Quais os seus problemas? Quais as suas preocu
pensável que se possa escolher, com conhecimento de causa, junto a pações? É necessário aí apreender qual é a lógica dos pesquisados,
quem e com quem ela deve intervir. Assim, diversas estratégias mesmo que, à primeira vista, as suas inferências e raciocínios pos
podem ser cogitadas. De acordo com algumas destas, os pesquisa sam parecer irracionais. Não nos esqueçamos que uma das princi
pais características da pesquisa participante é que ela parte dos
(3) Cf. Carlos Rafael Cabarus, La cosmovisión k'ekchi en proceso de (4) Cf., na França, os trabalhos de J. Guigou, G. Lapassade, R. Lourau.
cambio, São Salvador, UCA Editores, 1979.
58 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 59
problemas colocados pelos pesquisados, problemas que eles estão compreender e discutir os problemas relativos aos cultivos, às colhei
dispostos a estudar. Ela parte do mundo cotidiano do povo e escuta tas, ao regime de chuvas, à erosão do solo etc.
sua voz. Importa igualmente compreender a história vivida, reve O percurso nesse ponto é muito próximo ao do etnólogo, ao
lada pela memória individual e coletiva: quais são os conflitos, as das pesquisas “em ritmo lento” . Ele pode, com efeito, levar tempo
desconfianças, as alianças e as lutas pela terra? A história cotidiana para ser completado. Freqüentemente, é necessário longo tempo
de um povo é a da luta cotidiana contra a opressão. Em toda essa para que se adquira confiança, sobretudo nos contextos em que as
pesquisa, supomos que existe uma certa “filosofia espontânea” que relações de manipulação, de dominação e de exploração se fazem
se exprime no senso comum, no sistema de crenças e de conheci sentir, por vezes fortemente, durante ou depois das ações ditas
mentos empíricos, e que tudo isso é fundamental para relacionar a sociais ou de pesquisa. Este “ abandono” pelos pesquisadores de seus
práxis com o saber e com a cultura popular. Na linguagem de próprios critérios, neste momento da pesquisa, põe em questão
Michel Crozier, poderiamos dizer que o objetivo desta análise quali muitas das concepções “científicas” . De certo modo, uma corrente
tativa é identificar e explicar as “estratégias” de diferentes tipos de contestadora de numerosos antropólogos denuncia as práticas do
agentes nas situações com as quais eles se defrontam. Como eles etnocídio generalizado. Escrevem Miguel Chase Sardi e Marilyn
compreendem essas situações? Quais as oportunidades que elas lhe Rhenfeldt:
parecem oferecer? Quais as suas capacidades de as apreender e
utilizar? “ No Paraguai, nós, que tínhamos mais de dez anos de contato com as
Esta análise qualitativa do ponto de vista dos indivíduos e etnias do país, abandonamos as ‘notas’ e as ‘questões’, os ‘métodos’ e
grupos que compõem a “comunidade” ou o “meio social” a ser as ‘orientações em campo’ para pesquisar a partir do interior, de
categorias internas da cultura, e nos impregnamos — o que é mais
estudado é, pois, um momento importante do processo do diagnós
difícil a partir de uma perspectiva exterior — de seus fundamentos
tico. Não se trata, pois, de um simples contato com a população
axiológicos. Começamos então a notar que, entre as sociedades e as
pesquisada ou da pura “ambientação” por parte dos pesquisadores. populações das etnias oprimidas, existiam aspectos positivos integra
Um trabalho de pesquisa como este não é fácil, sem dúvida. dores que eram desintegrados pela atividade ‘integracionista’ dos
Ele exige do pesquisador uma postura muito aberta em relação à dominadores” .5
pesquisa, uma grande capacidade de se “descentrar” para “se colo
car no lugar do outro” , do interlocutor. Nesse estágio, o pesquisador
Esta abordagem qualitativa e não-estruturada, o contato di
deve “colocar entre parênteses” o seu próprio quadro de análise
reto com a “realidade” vai no sentido da redução, desejada por
para compreender o do pesquisado. Trata-se, portanto, de identi
Gramsci, da distância entre os intelectuais e o povo. Ela não está,
ficar na população os diferentes grupos sociais que a compõem.
entretanto, isenta do perigo de um certo romantismo pequeno-bur-
Trabalhando ao nível das “representações” , o pesquisador deve
guês, segundo o qual o povo ou as massas têm sempre razão e não
aceitar igualmente (o que não significa aprovar ou adotar) a ideo
podem se enganar. Junto a isso, aliás, se encontra freqüentemente o
logia dominante e seu impacto. Essa “ aceitação” supõe uma atitude
que o sociólogo colombiano Fals Borda chama de “masoquismo
positiva de escuta e de empatia, tão longamente descrita pela cor
populista” , segundo o qual o pesquisador ou intelectual deve viver
rente de psicologia social derivada de Carl Rogers. Ela também
penosamente, pôr as mãos na sujeira etc. E isso não conduziría, do
implica “viver junto” com a coletividade estudada, em partilhar o
mesmo modo, ao perigo de afundar no “ subjetivismo” , no aban
seu cotidiano, a sua utilização do tempo e do espaço: ouvir, em vez
dono da pesquisa “sobre fatos objetivos” ? O risco existe, mas não é
de tomar notas ou fazer registros; ver e observar, em vez de filmar;
sentir, tocar em vez de estudar; “viver junto” em vez de visitar. É em
geral preferível deixar de lado os cadernos de notas, os gravadores e (5) Miguel Chase Sardi & Marilyn Rehnfeldt, "Marandu, resena de una
experiencia informativa", Asociación de parcialidad indígenas, 1977. Docu
os questionários. A pesquisa nesse ponto não é estruturada. Nessa mento preparado para a reunião de especialistas nas modalidades e conteúdos
situação de pesquisa, o pesquisador se “colocará como um diapa- das entidades coletivas na perspectiva da educacão permanente. Caracas,
são” dos pesquisados. Assim, no meio rural, é fundamental poder UNESCO, 1977.
60 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 61
inevitável. Isso, ao menos, pelas duas razões que seguem: inicial sobre a região e dos arquivos, as entrevistas realizadas com técnicos
mente, não vemos por que a subjetividade dos pesquisados não de diferentes instituições públicas ou privadas (técnicos agrícolas,
poderia ser um dado objetivo a ser estudado. Além disso, essa médicos, enfermeiros, engenheiros etc.), bem como com autori
pesquisa do ponto de vista subjetivo dos pesquisados deve se combi dades locais ou regionais, grupos organizados, agências de pesquisa
nar e articular com a análise das situações vividas, mas desta vez a e de recenseamento etc.
partir de um quadro teórico de análise, juntamente com instru
Nesse momento, é necessário observar que os estudos “técni
mentos estruturados.
cos” (sobre a economia, a comercialização, o estado da habitação, a
situação alimentar etc.) são normalmente marcados pela ideologia
dominante, ou estão ligados a interesses particulares. Deveriamos
Pesquisa dos dados sócio-econômicos e tecnológicos
ignorá-los por isso? Certamente não. Eles constituem de fato fontes
apreciáveis de informação, não apenas pelos dados úteis que podem
A penetração, sem a priorí, no universo vivido pela população
fornecer (natureza dos solos, estruturas demográficas, nível de esco-
pesquisada não deve dispensar a pesquisa de dados objetivos sobre a
larização etc.), mas também pelos interesses e posições que podem
situação dela. A pesquisa participante, em seu trabalho de diag
refletir. Eles constituem, então, preciosos “reveladores” .
nóstico permanente da situação, deve associar ou relacionar os dois
momentos inseparáveis da pesquisa “não-estruturada” , do ponto de Muitas vezes não é possível nem mesmo desejável efetuar um
vista dos pesquisados e da coleta de informações sócio-econômicas e diagnóstico muito elaborado e completo durante a primeira fase. Os
técnicas, utilizando um conjunto coerente de indicadores sócio-eco recursos disponíveis (tempo, pessoal, meios financeiros etc.) não o
nômicos e tecnológicos. permitem. Além disso, as “populações pesquisadas” estão muitas
Trata-se, então, de uma “pesquisa estruturada” , fundada vezes cansadas de diagnósticos sem consequências, de estudos diver
num quadro teórico (conceitos e hipóteses) envolvendo os aspectos sos após os quais não surgem resultados nem ações conseqüentes.
sociais, econômicos, políticos e tecnológicos que se mostrem perti Por essas diferentes razões, é muitas vezes preferível realizar um
nentes para a realização do diagnóstico da situação da região a “ diagnóstico provisório” , limitado, na primeira fase. Por conse
estudar, localizando tudo em seu contexto regional e nacional. guinte, é ao longo de todo o processo de pesquisa participante que
Num diagnóstico desse tipo, os principais domínios a estudar, será possível completar o diagnóstico, que tomará então um caráter
no que concerne a uma comunidade rural, seriam: permanente.
• os aspectos biofísicos (clima, regime de chuvas, uso potencial do
solo, regime de águas);
Difusão dos resultados junto à população
• os aspectos demográficos (distribuição da população, correntes
migratórias);
• os aspectos econômicos (atividades econômicas, produção agrí Ao final desta segunda fase, os resultados obtidos são difun
cola, distribuição e aplicação dos créditos, comercialização etc.); didos junto à população envolvida, que terá assim ocasião de dis
• os aspectos sociais (saúde, habitação, comunicações e transpor cuti-los, aprová-los, questioná-los ou completá-los.
tes, organizações existentes, tradições culturais etc.); No decorrer deste feedback, são particularmente importantes
• os aspectos educativos (perfil educativo da aldeia, educação esco a discussão acerca do confronto entre os resultados do diagnóstico
lar e extra-escolar); sócio-econômico e técnico, por um lado, e as opiniões ou os pon
• a análise da situação e da atividade econômica das famílias. tos de vista exprimidos diretamente pelos pesquisados, por outro
lado.
Esta “pesquisa estruturada” poderá se apoiar em diferentes Os objetivos dessas atividades de feedback são os seguintes:
fontes de informação e utilizar procedimentos variados. Assinala • promover entre os participantes da pesquisa um conhecimento _
mos, entre outros: a análise documentada de estudos já realizados mais objetivo de sua situação;
62 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 63
• identificar juntamente com aqueles os problemas que consideram de agirem. Assim, é necessário iniciar o processo de análise e apro
prioritários e que querem estudar, a fim de procurar as suas fundá-lo durante a própria realização da ação.
soluções;
• conhecer a reação da população frente aos resultados do diag
nóstico, e isto a fim de orientar as fases seguintes da pesquisa Ás características desejáveis do orientador
participante. dos “grupos de estudo”
Tais atividades dtfeedback supõem não apenas a elaboração
de meios de comunicação simples (painéis desenhados, quadros Os grupos de estudo necessitam, na maioria dos casos, da
etc.) para apresentar os resultados de um modo facilmente com intervenção de um orientador que auxilie na realização do trabalho
preensível, mas também a animação de uma “dinâmica de grupo” de análise dos problemas. É, pois, importante que este orientador
necessária para a discussão dos resultados, a comparação dos pon tenha uma formação adequada para esta função. Entre os principais
tos de vista, as propostas de novas orientações da pesquisa, a seleção elementos que devem compor a sua formação destacaremos:
e a discussão dos problemas, a fomulação de novas hipóteses etc.
No que respeita à importância e à prioridade dos problemas, é • o método da pesquisa participante;
muito importante introduzir a reflexão sobre a diferença entre um • a sociologia do conhecimento;
problema “prioritário” (isto é, um problema-chave do qual depen • a dinâmica de grupos;
dem outros problemas), e um problema “imediato” (que pode ne • a tecnologia (tecnologia agrícola, por exemplo, se ele trabalha no
cessitar ser resolvido a curto prazo mas que não constitui um fator meio rural);
decisivo para a compreensão e solução de outros problemas). • os métodos e técnicas de educação popular.
Além disso, este orientador deverá possuir um bom conheci
mento e uma experiência concreta do meio social, econômico e cul
Terceira fase — análise crítica dos problemas considerados tural a que pertencem os membros do grupo de estudo.
prioritários e que os participantes da pesquisa desejam estudar
Esta terceira fase é consagrada a um primeiro trabalho de
A análise crítica dos problemas
análise crítica dos problemas considerados prioritários na fase pre
cedente. Para isso, formamos “grupos de estudo” , que podem ser
compostos de alunos (se, por exemplo, o processo de pesquisa parti O objetivo das atividades de análise crítica é o de promover,
cipante se realiza como uma atividade educativa no quadro do sis nos grupos de estudo, um conhecimento mais objetivo dos proble
tema escolar propriamente dito), ou de habitantes (se, por exemplo, mas e da realidade. Deve-se partir dos fenômenos para buscar o
a pesquisa participante se realiza diretamente ao nível de uma loca essencial, além das aparências e das relações cotidianas imediatas.
lidade ou região). Os problemas não devem somente ser descritos, mas explicados,
Ê importante assinalar que se trata aqui de um “primeiro” a fim de se procurar as estratégias possíveis de ação.
trabalho de análise crítica, pois tal análise não pode ser concluída Nesses grupos de estudo, o orientador estimula e desenvolve
numa etapa anterior à própria ação. As ações e os seus resultados um processo de análise que pode se articular em três momentos:6
poderíam igualmente ser estudados. A ação torna igualmente possí
vel tal análise. Não se trata somente de compreender a realidade,
(6) Trata-se antes de "momentos" que de "etapas", pois o processo de
mas de transformá-la. análise retornará várias vezes durante esses momentos, em função dos proble
Além disso, por razões sociopedagógicas, é importante levar mas estudados e de sua evolução, dos obstáculos encontrados, dos métodos
em consideração que aqueles que participam no estudo de um pro utilizados e das características do grupo de estudo propriamente ditas. A
análise não se realiza segundo um esquema linear e preestabelecido.
blema não podem alcançar os resultados de uma longa análise antes
64 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 65
Primeiro momento: A expressão da “representação” cotidiana do determinantes e estruturais que produzem o problema e engendram
problema. a situação a ser enfrentada. Isso resultaria em limitar a análise a
Nesse momento, os participantes dos grupos de estudo expri uma simples descrição das manifestações externas de um problema,
mem como “se representam” , formulam ou colocam o problema ao invés de procurar as causas fundamentais deste. Em relação a um
que querem estudar e resolver. O papel do orientador consiste, desse problema de subnutrição, por exemplo, consistiría erro considerar
modo, em auxiliar os participantes a mostrar como eles percebem o que suas causas seriam essencialmente educativas, julgando-se assim
problema, como eles o explicam, como analisam a situação e que que a vítima seria a culpada.
tipo de solução eles vislumbram. Assim, uma abordagem empírica reduziría o problema da
Para executar tal função, o orientador pode utilizar um feixe subnutrição a um problema de preparação e conservação dos ali
de questões que ele terá de adaptar, evidentemente, a cada pro mentos, sem analisar as causas determinantes de um tal problema,
blema tratado e a cada tipo de grupo. A título de exemplo, podemos tais como o sistema de propriedade e de distribuição das terras,
citar as seguintes: o sistema de crédito e de comercialização, as estratégias das empre
• de que problema se trata? sas multinacionais na indústria agrícola, a divisão internacional do
• o que já sabemos dele? trabalho etc.
• quais são os fatos que o determinam? Nesse trabalho de questionamento da representação do pro
• como se manifesta o problema? blema, é muito importante levar em consideração as contradições do
• onde ele existe? conhecimento cotidiano. Com efeito, este compreende simultanea
• quando ele surgiu? mente fragmentos de conhecimento científico, dados objetivos, uma
• quem é afetado pelo problema? consciência parcial das causas do problema e conhecimentos empí
• quais as conseqüências do problema? ricos úteis. No meio rural, existe, por exemplo, todo um “ saber
• houve ações que tentaram resolver esse problema e fracassaram? popular” sobre plantas medicinais, sobre o tratamento empírico das
por quê? doenças comuns, sobre o meio ambiente, sobre a criação de animais
8 o que poderiamos fazer para contribuir para a resolução do pro etc. que responde a necessidades reais e possui, sem dúvida alguma,
blema? uma eficácia real. Esse “capital popular” de conhecimentos não
• quais são as ações e os meios ao nosso alcance? quais aqueles pode ser subestimado. Entretanto, esses conhecimentos são também
fora de nosso alcance? etc. limitados pelo próprio fato de que não se fundamentam numa abor
dagem científica. Para retomar o mesmo exemplo da subnutrição,
Segundo momento: colocar em questão a representação do pro os camponeses que participam de um grupo de estudo estarão certa
blema. O papel do orientador consiste assim em auxiliar os parti mente conscientes de que esse problema não pode ser resolvido por
cipantes do “grupo de estudo” a questionar as suas “representa uma ação educativa de tipo “culinário” , pois que envolve outros
ções” do problema. Este momento é fundamental para o desenvol fatores como o da produção agrícola e do sistema fundiário. No en
vimento de um processo de “análise crítica” do conhecimento coti tanto, talvez eles não analisem bem o papel da alimentação na
diano de um fenômeno (problema, situação etc.). reprodução da força de trabalho, os mecanismos de crédito, o
Neste caso, a “matéria-prima” sobre a qual se exercerá o sistema nacional e internacional de comercialização dos produtos,
questionamento é a formulação dos problemas e suas representações os mecanismos de fixação dos preços agrícolas, as características de
tal como foi exprimida pelos participantes no momento precedente. um regime alimentar, o papel, as possibilidades, as condições e os
De fato, limitar-se apenas a estudar o “concreto familiar” limites das cooperativas de produção etc.
para descrevê-lo e a acumular observações empíricas para explicá- Por isso, interessa-nos deixar claro que a ação individual fun
las resultaria no acúmulo de uma série de pontos de vista, no reforço dada somente em conhecimentos empíricos não é suficiente para
dos condicionamentos ideológicos que determinam a percepção dos resolver um problema. Faz-se necessária uma ação coletiva fundada
participantes, e na confusão das causas aparentes com os fatores num conhecimento crítico e científico.
66 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 67
Nesse segundo momento, uma das principais tarefas do orien uu ios problemas, a indicação das “variáveis” nas quais é possível
tador é fazer com que os membros do grupo de estudo tomem Intervir.8
consciência do modo pelo qual eles próprios analisam um problema.
Para isso, ele deverá visualizar e conceituar a prática dos partici Ivestratégias possíveis de ação: a formulação das hipóteses de ação
pantes. Da mesma forma que no primeiro momento, ele poderá <■a avaliação dos seus resultados; a diferenciação entre as soluções
dispor de um conjunto de questões que auxiliem a refletir de ma de tipo imediato e as que são cogitadas a prazo mais longo, bem
neira crítica sobre as “representações” exprimidas. Essas questões como entre as que estão ao alcance dos participantes e as que exigem
podem nos ajudar a levar em consideração, por exemplo, o fato de um outro tipo de intervenção; a análise das ações coletivas e dos
que o problema pode ser estudado segundo diferentes pontos de vínculos necessários.9
vista, que ele apresenta diversos aspectos, que vários tipos de ação Se damos por verdadeiro que a maior parte dos problemas não
podem ser vislumbrados, que a simples descrição do problema é pode ser resolvida num nível individual e local, é importante, por
insuficiente em seus dados objetivos, que tal problema não existe tanto, delimitar com precisão os níveis possíveis de ação. As ações
apenas ao nível de uma aldeia mas também ao nível de toda uma coletivas necessárias a longo prazo não devem, entretanto, excluir a
categoria social da população etc. O tipo de questionamento a ser possibilidade de tentar melhorar a situação localmente e a curto
empreendido depende, pois, de cada grupo de estudo. O essencial é prazo. Os limites dessas ações a curto prazo devem ser bem deli
que os participantes, ao final desse trabalho, tenham consciência de neados para que estejamos conscientes das condições necessárias e
que são possíveis diversas abordagens, que as ações já cogitadas das ações a serem empreendidas numa escala mais importante, onde
comportam de fato hipóteses implícitas, que a sua colocação como poderemos, pois, influir sobre os fatores estruturais que determinam
problema é limitada, que é possível aprofundar a análise e que os problemas.
é possível completar e estruturar os dados objetivos que já pos No decorrer deste terceiro momento, é necessário que os par
suem. ticipantes compreendam que o processo de análise crítica não ter
mina aí. Trata-se tão-somente de estimular e desenvolver uma dinâ
Terceiro momento: a reformulação do problema mica e uma capacidade de análise crítica permanente. O próprio
Após o questionamento do momento precedente, chega então empreendimento de ações destinadas a melhorar a situação ou a
o momento de reformular mais objetivamente o problema a partir de resolver os problemas deve também resultar na colocação de novos
sua primeira configuração. Esse trabalho de objetivação com problemas, de novas informações, de novos obstáculos, de novas
preende: explicações, de novos conceitos etc.
A descrição do problema: a identificação dos “pontos de vista” e dos
“aspectos” ; a enumerçaâo, classificação e comparação das infor As atividades de feedback desta terceira fase
mações; a identificação de contradições entre diferentes elementos
da situação; a localização do problema no tempo e no espaço; a Nesta terceira fase, as atividades de feedback consistem em
relação deste com outros problemas; as dimensões regionais e na que cada grupo de estudo possa comunicar os resultados de seu
cionais etc.7 trabalho aos demais grupos e ao conjunto da população envolvida.
A finalidade desta comunicação é a de pôr em evidência as
A explicação do problema: a investigação das causas não apenas relações existentes entre os problemas estudados e a de aprimorar o
imediatas, mas estruturais, bem como as leis, as relações entre conhecimento que o conjunto da população dispõe da situação.
(8) Cf. Guy Le Boterf, Formation etprévision, Edições ESF-EME, 1975.
(7) Cf. Jean-François Chosson, L 'Entraínement mental, Paris, Le Seuil, (9) Moema Wiezzer, Simepermiten hablar..., Testimonio de Domitila,
1975. (Col. "Peuple et Culture"). una mujer de Ias minas de Bolivia, Buenos Aires, Editorial Siglo XXI, 1977.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 69
68 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
i . quisados. Os resultados da pesquisa serão então colocados em
Quarta fase — programação e realização de um plano de ação
iliM-ussão. As modificações alcançadas e as reações dos partici-
(inclusive ações educacionais) para contribuir para a solução dos
lMinlcs serão introduzidas no próprio processo da pesquisa. Tal
problemas
oi ividade não pode ser neutra ou desprovida de interesses, visto que
O plano de ação elaborado a partir dos problemas analisados
i Horno da informação é sempre um ato político.
deve comportar:
Na maior parte das pesquisas, os resultados em geral retor-
• atividades educativas que permitam analisar os problemas e as si ii. itn exclusivamente à “comunidade científica” . Os pesquisados
tuações vividas; m i iam “cobaias” que não têm o direito de conhecer a conclusão do
• medidas que possam melhorar a situação a nível local; iiabalho de que são objeto. Por serem considerados entes passivos,
• ações educativas que tornem possível a execução de tais medidas; fica implícito que não se os julga aptos à discussão de sua própria
• ações que encaminhem soluções a curto, médio ou longo prazo, situação, ou então que é perigoso que isso venha a acontecer. Coorde
a nível local ou numa escala mais ampla. nada pelos poderes instituídos, a pesquisa social é freqüentemente
Este plano de ação bem como a sua realização devem por sua manipulada pelos grupos dominantes. Nessas condições, o feedback
vez dar lugar a um processo de feedback, isto é, a uma discussão e aos pesquisados pode constituir um meio de reforçar as capacidades
avaliação permanente de sua orientação, de seu conteúdo e de sua de análise e de ação dos dominados. Na introdução ao depoi
realização. mento que faz das condições de vida, de trabalho, das lutas operá
O objetivo visado nesse momento é o da participação da popu rias e da repressão nas minas dos Andes, Domitila, uma mulher da
lação na esfera das decisões, do mesmo modo que ela esteve presente classe operária boliviana, insiste em sua própria linguagem sobre a
necessidade de retorno da informação e sobre o engajamento das
nas etapas anteriores do diagnóstico e da análise dos problemas.
pesquisas a serviço dos explorados:
A pesquisa participante: o processo permanente “Eu fui entrevistada por centenas de jornalistas, historiadores, mui
tas pessoas da televisão e do cinema, de diferentes partes do mundo.
E da mesma forma, eu sei que antropólogos, sociólogos e economistas
O processo da pesquisa participante não termina nesta quarta vêm visitar o restante do país e estudá-lo. Mas, de todo esse material
fase que acabamos de descrever. A análise crítica da realidade e a que eles obtêm, muito pouco retorna ao seio do povo, não é? Por isso,
realização de ações programadas conduzem à descoberta de outras eu gostaria de dizer a todas essas pessoas que, se pensam em cola
necessidades e de outras dimensões da realidade. A ação é uma borar conosco, façam com que esse material que eles conseguem
fonte de conhecimentos e de novas hipóteses. O diagnóstico, a aná retorne a nós (...) para que sirva ao estudo de nossa própria reali
lise crítica e a ação constituem, assim, três momentos de um pro dade. Sim eperm iten hablar... deve servir ao povo porque retorna ao
cesso permanente de estudo, de reflexão e de transformação da próprio seio do povo. Do mesmo modo, eu acho que os filmes, os
documentos e os estudos que são feitos sobre a realidade do povo boli
realidade, os quais se nutrem mutuamente.
viano devem regressar assim ao próprio seio do povo boliviano, para
serem analisados e criticados” .10
Algumas reflexões sobre a pesquisa participante A difusão das informações não deve, no entanto, ser demasia
damente valorizada. As atividades de feedback têm suas limitações.
Ê necessário constatar inicialmente que os grupos oprimidos não
A “retroalimentação” ou feedback esperam — felizmente — pela pesquisa participante com seus feed-
O feedback consiste numa atividade de “retorno” das infor
mações colhidas no decorrer de uma pesquisa àqueles que foram (10) Traduzido da versão em francês feita pelo autor. (N.T.)
70 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 71
backs para se organizarem, lutarem ou reivindicarem. A difusão dos outras alternativas além daquelas de que dispõem até o momento.
resultados de uma pesquisa que lhes diga respeito pode reforçar as Mas, uma vez que essas informações lhes tenham sido comunicadas,
suas capacidades de análise, de organização e de ação, mas de modo não se deve pensar que eles as ignoram, nem que agem como se as
algum pode criá-las. Além disso, o feedback não se limita a uma ignorassem. Tudo'se passa como num jogo, pois existe aí um novo
questão de linguagem, de tradução dos resultados em termos com dado. Nesse mesmo feedback, contrariamente ao que geralmente
preensíveis e adaptados aos pesquisados. Se os pesquisados não têm acontece, os técnicos da administração pública deverão ouvir os
acesso ao saber, é sobretudo porque eles não participam na elabo pontos de vista dos aldeões. Esta comunicação pode constituir uma
ração desse saber. Este último lhes é estranho, ele vem de fora. Esta pressão no sentido de uma melhor adaptação da ação da adminis
é fundamentalmente a razão pela qual um feedback único ao final tração pública às necessidades ou problemas dos aldeões. Mas, ela
da pesquisa não teria efeito. Os resultados apresentados são o ponto pode permitir também uma forma melhor de manipulá-los. O feed
de chegada de todo o percurso da pesquisa, que foi realizada por back não é a no man ’s land da pesquisa participante. Ele é também
especialistas. Não tendo participado no processo de sua elaboração, espaço de conflitos e de relações de força, lugar de manifestação de
os pesquisados não podem se apropriar dela. A pesquisa partici todos os atores implicados. A composição social dos grupos que dis
pante não deve ser definida essencialmente pelo feedback, mas cutem os resultados da pesquisa também não deve ser negligen
acima de tudo pelo fato de os próprios pesquisados se encarregarem ciada. Freqüentemente, encontramos nesses grupos aqueles que
do processo de pesquisa. Qual é, afinal, a validade científica do sempre participam de tais atividades e associações diversas, mas a
feedback? Qual o valor da elaboração e apresentação de um resul representatividade destes pode ser colocada em dúvida.
tado global, de um discurso geral elaborado a partir de discursos Essas características do feedback tornam-no aliás bastante
particulares? A própria estruturação desse resultado (apresentação interessante para a pesquisa. Não sendo neutra a informação,
da média das opiniões, escolha entre posições contraditórias, seleção quando ela intervém pode-se levantar hipóteses sobre as reações que
dos exemplos “significativos” , eliminação das informações conside ele provoca, podendo-se assim cercar melhor as estratégias que estão
radas “insignificantes” etc.), assim como a escolha da linguagem presentes.
(oral, gráfica, audiovisual etc.) são atos de poder, isto é, a imposição Em todo caso, o feedback não pode ser assimilado a uma
de um determinado código. A principal questão a ser colocada aqui simples regulação de tipo cibernético.
ainda é a mesma: quem decide sobre este código? quem seleciona as As atividades de feedback podem também ser utilizadas numa
informações? Tais questões não devem conduzir à demissão dos téc perspectiva reacionária. E este é o caso em que o que recebe a
nicos da pesquisa. O importante é que reconheçamos a existência mensagem pode tão-somente reagir, dar sua opinião, sem ter o
desse poder, que o submetamos à discussão e assim nos precave- poder de modificar o próprio conteúdo da mensagem. Em uma tal
nhamos de acreditar que a operação de feedback é uma operação situação, o “ receptor” não pode de modo algum controlar o meio de
neutra. comunicação, permanecendo limitado ao seu papel de “receptor” .
A comunicação de informações a outros é também revelar-se Esse tipo de retroalimentação é comum nas emissões radiofônicas
concordar em compartilhar o poder de que esses dispõem, orientar e em que os “ouvintes” são consultados. Do mesmo modo, ocorre na
guiar estes outros numa problemática determinada. Em certa me assim chamada “ democracia por sondagem” , em que o pesquisado,
dida, as atividades de feedback obrigam o grupo a ouvir e levar em tomado de improviso, sem ter acesso a fontes de informações diver
consideração o ponto de vista do outro. Isso não significa que essas sificadas e sem participar de debates, deve dar sua opinião para que
atividades irão preparar o grupo para agir em favor dos interesses ela entre como input no computo das opiniões individuais, graças ao
alheios. Tomemos um exemplo: num feedback realizado numa al qual uma opinião majoritária e “democrática” se elaboraria. Conce
deia rural, os habitantes conhecerão a opinião dos técnicos agrícolas bida desta forma, a democracia é apenas uma palavra e uma más
sobre os problemas de fertilização dos solos, ou a dos técnicos da cara. Outro risco ainda não deve ser esquecido, ou seja, o da utili
habitação sobre as possibilidades técnicas de aprimoramento das zação das informações acerca da situação dos explorados por parte
moradias. Eles obterão também informações técnicas e conhecerão dos grupos dominantes.
72 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) • REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 73
Como situar a “pesquisa participante” sador não.é neutro, pois se coloca a serviço dos mais oprimi
(ou “enquete-participação)? dos e “ desfavorecidos” . Esta “tomada de posição” , longe de ser
fácil, necessita de um trabalho permanente de reflexão crítica do
Normalmente, se associa a pesquisa participante à “pesquisa- pesquisador sobre as implicações teóricas e metodológicas de sua
ação” (ou “pesquisa ativa”). Entre os principais critérios que a intervenção e do processo de pesquisa-ação. Essa função que o
caracterizam, destacamos os seguintes: pesquisador desempenha constitui determinado poder que não
• A escolha dos problemas a serem estudados não se efetua a partir deve ser mascarado por uma ideologia de orientação neutra e não-
de um conjunto de hipóteses previamente estabelecidas pelos diretiva.11
pesquisadores, mas tem sua origem nas situações sociais concre • A pesquisa-ação consiste num processo educativo. Ao participar
tas que os pesquisados que participam do processo de pesquisa do próprio processo da pesquisa e da discussão permanente dos
querem estudar e resolver. A tarefa dos pesquisadores consiste em resultados obtidos, os pesquisados podem adquirir um conheci
auxiliar os grupos interessados a formular e analisar os problemas mento mais objetivo de sua situação, assim como analisar com
que estes mesmos desejam estudar. maior precisão os seus problemas, descobrir os recursos de que
• Existe entre a pesquisa e a ação uma interação permanente. A dispõem e formular ações pertinentes.
produção do conhecimento se realiza através da transformação da • Os “pesquisados” participam não apenas da discussão dos resul
realidade social. A ação é a fonte do conhecimento e a pesquisa tados da pesquisa, mas sobretudo do processo desta. A função
constitui, ela própria, uma ação transformadora. A pesquisa- da pesquisa não é a de ser “propriedade privada” dos especia
ação é uma práxis, isto é, ela realiza a unidade dialética entre a listas. Ela deve ser compartilhada, sendo possível traçar aqui al
teoria e a prática. Através da pesquisa, produzem-se conheci gumas analogias com a distribuição da função de intelectual dese
mentos que são úteis e relevantes para a prática social e polí jada por Gramsci.
tica.
• A pesquisa-ação intervém em situação reais e não em situações Outro modo de situar a pesquisa participante consistiría em
de laboratório. Trata-se de um trabalho com grupos reais, com as fazer referência à classificação realizada por Marcei Lesne12 sobre
limitações e recursos existentes, “ na sua real grandeza” , e não as “formas de trabalho pedagógico” . Este constitui, com efeito, um
nas condições artificiais em que se dá, por exemplo, a maioria das instrumento de análise bastante útil. Lembremos, de início, que
experiências de “dinâmica de grupos” oriundas da corrente psi- Marcei Lesne distingue três grandes “formas de trabalho pedagó
cossociológica. gico” :
• A intervenção se dá numa escala relativamente restrita (uma • “A forma de trabalho pedagógico de tipo transmissiva, de orien
“coletividade rural” , região, organização, ou um bairro etc.). tação normativa, através da qual se transmitem saberes, valores
Essa limitação voluntária da área de ação deve permitir um con ou normas, modos de pensar, de perceber e de agir, ou seja,
trole melhor do processo e uma avaliação mais rigorosa dos resul bens culturais e ao mesmo tempo uma organização social corres
tados obtidos. Esta característica é acompanhada, aliás, da hipó pondente. (FTP 1)
tese (implícita ou explícita) e da possibilidade da generalização • A forma de trabalho pedagógico de tipo incitativa, de orientação
dos resultados e do processo a uma escala mais ampla. pessoal, que opera principalmente ao nível das intenções, dos
• A pesquisa participante se coloca a serviço dos grupos ou cate
gorias sociais mais desprovidos e explorados. Ela busca não so
mente desencadear ações suscetíveis de melhorar as suas condi (11) Nós nos juntamos atualmente às críticas formuladas por J.-M.
ções de vida, mas também desenvolver a capacidade de análise Barbier e M. Lesne sobre a concepção do orientador que "recusa o poder",
conforme expusemos em Enquête-participation et animation, Culture et Déve-
e resolução dos problemas que enfrentam ou convivem cotidia loppement, 1970.
namente. Torna-se pois importante que a pesquisa participante (12) Marcei Lesne, Travai/ pedagogique et formation d'adu/tes, Paris,
ou a pesquisa ativa esclareça “para quem” se trabalha. O pesqui PUF, 1977.
74 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) . REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 75
motivos e das disposições dos indivíduos, procurando desenvolver • U m perfil daquele que intervém como possuidor sobretudo de
um aprendizado pessoal do saber. (FTP 2) capacidades de orientação, condução e análise de grupos. A per
• A forma de trabalho pedagógico de tipo apropriativa, centrada sonalidade do formador seria aqui como que um dos principais
sobre a inserção social do indivíduo, considerada enquanto me instrumentos da intervenção.
diação pela qual se exerce o ato de formação, como ponto de
partida e ponto de chegada da apropriação cognitiva do real. Por outro lado, a pesquisa participante se aproxima da FTP 3
(FTP 3)” 13 nos seguintes pontos:
Segundo nos parece, a pesquisa participante, pelo menos do • A pessoa em formação (o “pesquisado ativo” da pesquisa parti
modo como a concebemos, oscila entre a FTP 2 e a FTP3. Ela nunca cipante) é considerado um agente social, e não um indivíduo iso
é completamente assimilável a um desses modelos e isto porque, lado do meio social e privado das relações sociais de produção nas
definitivamente, não é a vontade dos seus promotres que a orienta, e quais se situa. Isto é particularmente manifesto na análise das
sim as determinações sociais nas quais ela se situa. necessidades, na articulação entre o conhecimento do ponto de
Entre as principais características da FTP2 podemos citar as vista dos pesquisados e o diagnóstico sócio-econômico de sua
seguintes: situação, bem como nas atividades de análise crítica dos proble
mas a serem estudados pelos “grupos de estudo” .
• Uma pedagogia do “educando” , que concebe a educação como • A existência de uma alternância entre o “meio social real” e o
um processo de apropriação do conhecimento por parte das pes
“meio de formação” . O processo da pesquisa participante, por
soas em formação, e não uma “pedagogia” , que concebe os indi suas atividades educativas, suas comissões de trabalho e grupos
víduos como receptores passivos do conhecimento. de estudo, busca constituir uma certa “proteção” necessária para
• Uma concepção daquele que intervém (seja o professor, o orien a expressão e análise das situações.
tador, ou o pesquisador) enquanto uma fonte de saber dentre • A busca de uma estreita relação entre as atividades educativas
outras, de modo que, numa situação de feedback dos resultados e as atividades concretas das pessoas “pesquisadas” e em forma
da pesquisa ou em uma de suas fases, o agente interventor infor
ção.
ma mas evita orientar os resultados da discussão.
• O fato de levar em consideração, como ponto de partida das ativi
• A organização das “situações-estímulo” , de modo a se referirem dades educacionais, o “concreto familiar” dos pesquisados a fim
aos problemas vividos pelas pessoas ou grupos em formação. de conduzir à análise crítica das situações vividas e chegar a um
Este tipo de situação é buscado pelos formadores para aí desen
“concreto construído” . Este constitui o eixo principal da análise
volverem as ações educativas.
crítica dos problemas identificados na pesquisa participante e es
• A utilização sistemática do saber do grupo, de suas potenciali
tudados pelos “grupos de estudo” .
dades e dos recursos de que este dispõe.
• A “apropriação” do real através do conhecimento e da ação, a
• O interesse privilegiado que os formadores dirigem para os pro
fim de realizar a unidade dialética da teoria e da prática.
gressos (de pensamento, de análise, de raciocínio) dos “edu-
candos” . Essas diferentes características concernentes à pesquisa parti
• Uma concepção de avaliação que dispõe de uma atenção especial cipante que acabamos de enumerar não formam uma lista exaus
em relação aos aspectos qualitativos do processo da pesquisa tiva. Foi nossa intenção escolher apenas algumas — provavelmente as
participante e de seus resultados. principais —, a fim de tentar situar o método da pesquisa-ação em
• A importância do grupo, e do pequeno grupo, como sustentá- relação às “formas de trabalho pedagógico” propostas por Marcei
culo da formação. Lesne. É importante assinalar que, apenas respeitando as profundas
diferenças, podemos situar a pesquisa participante em relação àque
les modelos. É, aliás, demonstrando interesse por esses modelos
(13) Marcei Lesne, op. cit.
que podemos saber melhor em que “ponto” estamos, quais avanços
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 77
76 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
reacionária nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o
já fizemos, quais os “ desvios possíveis” , quais as tendências em ação
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer(...).”
etc.
A denúncia pode parecer brutal, mas, em todo caso, ela incita
A pesquisa participante: seus códigos e técnicas à reflexão. Esta “obrigação de dizer” , encontramo-la bem analisada
— e justamente a propósito dos métodos de pesquisa interrogativa
— na reflexão desenvolvida por Michel M orin15 acerca da “interro
A pesquisa consiste num instrumento, ou antes, num conjunto
gação” :
de instrumentos. Os questionários, as amostragens, os relatórios, os
roteiros de entrevista, os quadros de análise, os cronogramas, as
“ A pesquisa, com efeito, qualquer que seja a forma que ela assuma,
fichas de informações, a formulação de hipóteses, as técnicas de
possui uma orientação discursiva. Sob a forma mais simples, esta
análise do conteúdo etc. são os inúmeros instrumentos encarregados orientação implica, enquanto fundamento sintático, a transformação
da coleta, do tratamento e da transmissão de informações. Esta é a interrogativa das sentenças afirmativas. Ora, tal transformação não é
função formal desse instrumental. de modo algum inocente, e se nos divertimos em desmontá-la para
Mas qual é realmente a significação e o efeito desse arsenal reconstituí-la, temos rapidamente a sensação de que essa transfor
tecnológico? Poderiamos analisá-lo na perspectiva de uma pesquisa mação no inverso vai bem além, porque diz muito mais do que o su
participante? jeito do enunciado queria dizer, isto é, vai muito além das condições
Envolvidas em sua objetividade, as técnicas de pesquisa se de produção de seu enunciado (...). Se admitimos então que toda
desejam científicas, visto que existem para construir objetivamente a transformação interrogativa implica a manutenção dos pressupostos
que o interlocutor deve aceitar em sua resposta, pdoeremos propor
verdade. Sem querer negar esse rigor científico, é necessário notar
reciprocamente que as sentenças interrogativas veiculam proposições
também que a objetividade mascara o mais das vezes — embora não
que são passíveis de ser determinadas. Indo ainda mais longe, po
sempre — o direcionamento da pesquisa. As técnicas de pesquisa demos levantar a hipótese de que esses pressupostos são elementos de
não somente recolhem os dizeres, mas também forçam a dizer. Essa um sistema de representações sociais que caracterizam uma concep
linguagem tecnológica — dos sociólogos, metodólogos e orienta ção de mundo” .
dores — impõe seu código. Os pesquisadores temem sempre deixar
escapar uma informação pertinente. Bastaria apenas um buraco na O que está em questão aqui não é a utilização da pesquisa
rede para que a pesca de dados fosse infrutífera, senão desastrosa. O para fins de exploração, dominação ou manipulação, mas é a pró
que mais tememos, no entanto, é menos o problema da perda de pria natureza da pesquisa, enquanto instrumento, o que ela impõe,
informações que o da seleção ou sobretudo o da informação forçada. a sua estrutura intrínseca.
Em última instância, poderiamos falar aqui em um totalitarismo da Diante de tais análises, é necessário rejeitar esse instrumento?
pesquisa, exatamente como Roland Barthes fala de um totalitarismo Nós não pensamos assim. Ou, então, seria necessário acabar com a
da linguagem:14 lógica e refutar toda a linguagem, toda comunicação baseada num
código. Se a pesquisa sociológica, do mesmo modo que a pedagogia,
“A linguagem é uma legislação, a língua seu código. Nós não vemos o é uma “violência simbólica” , 16 então ela emerge, como toda violên
poder que reside na língua porque nos esquecemos de que toda língua cia, da “ dialética da coerção e do consentimento” . 17 É nesse ponto
é uma classificação e toda classificàção é opressiva (...). Falar, e com que o sentido da pesquisa participante deve ser reencontrado e rees-
maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com dema tudado. A participação dos pesquisados na própria elaboração do
siada freqüência, é sujeitar. Toda língua é uma reição generalizada
(...). A língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem
(15) Michel Morin, L'imaginaire dans 1'education permanente, Paris,
Gauthier-Villars, 1976.
(16) No sentido usado por Bourdieu e Passeron.
(14) Roland Barthes, Aula inaugural no College de France, São Paulo, (17) “ La question de Ia violence", Echange et Projets, 12, 1977.
Ed. Cultrix, 1980, pp. 12-14, trad. Leyla Perrone-Moisés.
78 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 79
dispositivo (problemática, metodologia, instrumento, tratamento As palavras substituíram as coisas. Curiosa ciência do real
dos dados) da pesquisa deve permitir amenizar o que foi imposto em que os sons, os odores, as imagens, os relevos e os gostos estão
para aumentar o espaço daquilo que se institui. A participação na muito pouco presentes.
elaboração e orientação do dispositivo não deve ser um “nível a “Uma vaca, não se escreve, se vê” ...19 Triste saber que é o
mais” , ou um “grau a mais” na participação dos pesquisados, pois gaio saber dos sociólogos.20
ele constitui o núcleo essencial da participação, na ausência do qual Qual é pois o efeito produzido pela transcrição da palavra
essa participação permanece apenas um refinamento da dominação falada? O que o sociólogo ganha ou perde, escrevendo-a?
objetiva dos tecnólogos das ciências sociais (sejam quais forem, bem Dar prioridade à escritura é dar poder àqueles que aprende
entendido, os seus objetivos ou fantasmas pessoais). ram o seu código, particularmente os que freqüentaram escolas e
A pretensão da pesquisa participante não é a de suprimir os universidades. Aquele que escreve, que transcreve é o que foi à
códigos, mas fazer com que estes sejam analisados, e favorecer ao escola, que foi instruído. O pesquisador que toma notas ou que as
máximo a expressão e a emergência do código dos pesquisados. apresenta aparece ao pesquisado analfabeto, ou pertencente a uma
Mas, onde se pode tomar apoio na pesquisa para transformá- cultura essencialmente oral, como um ser que pertence a uma outra
la? Seria isso uma aposta, um desafio ou simplesmente uma hipó cultura. A palavra falada que foi dada não pertence mais ao pesqui
tese? sado, ela vai passar pelo crivo dos instrumentos da escrita (quadros,
É necessário, aliás, revermos o papel ou, sobretudo, o poder modelos, relatórios, esquemas etc.). Diante de tal monopólio, a
da escritura no trabalho de pesquisa. Quer se trate da elaboração de participação dos pesquisados na elaboração da pesquisa ou na dis
um roteiro de entrevista, da redação de um questionário, da redação cussão de seus resultados torna-se bastante difícil, e por vezes im
de um relatório ou de tomar anotações, é sempre a cultura da possível.
linguagem escrita, da escritura e da redação que predomina, que se Sob este ângulo, a “relação pesquisador-pesquisado” é com
impõe. A pesquisa sociológica está nas mãos dos que monopolizam e parável à do analista e analisando. O cliente e o pesquisado falam;
dominam a escritura. Podemos considerar a pesquisa como o con o analista e o pesquisador tomam notas e interpretam. A pesquisa
fronto entre os mestres da escritura (os técnicos, sociólogos etc.) e a social e a pesquisa-participação não estão comprometidas com um
expressão oral dos pesquisados. O mundo dos sociólogos é com modelo psicoterapêutico implícito? Nos dois casos, é o que escreve
efeito muito cinzento. Diferentemente do mundo dos etnólogos ou quem interpreta, ou seja, aquele que possui a “chave” . Nos dois
dos geógrafos, ele contém poucas imagens, fotos ou desenhos. Ã casos também, trata-se de resolver os “problemas” do cliente, seja
força de lidar com conceitos, esquecemos o sabor do concreto. um indivíduo ou um grupo.
É possível ultrapassar esta relação? Podemos imaginar uma
“Os sociólogos acabaram por impor uma imagem bastante triste da pesquisa que utilize apenas os meios de expressão ou o código dos
sociologia. A sociologia tendia a se tornar uma espécie de ciência próprios pesquisados?
bastante pomposa e loquaz; o fato de que os sociólogos não empre à medida que caminham nossas experiências de pesquisa
guem nunca uma imagem é por si mesmo um indício. Os etnólogos ativa, aparece-nos como necessário romper com a dominação da
tinham pelo menos o recurso da fotografia (mesmo que fosse para
escrita, e favorecer a emergência e a utilização dos próprios meios de
mostrar o eterno indígena com o aparelho genital coberto diante do
expressão dos pesquisados. Se a cultura é oral, utilizemos mais as
fotógrafo), faziam desenhos, esquemas, mapas; relatavam documen
tos, objetos. A sociologia tornou-se uma espécie de ciência sem con reuniões, os debates ou as narrativas. Quando se tratar de exprimir
ceito concreto.” 18 as necessidades percebidas, por que não tomar possível o uso da
(19) Título de um artigo da revista Education Permanente, 37, 1977.
(18) "Les intellectuels sont-ils hors jeu?", entrevista de Pierre Bourdieu (20) Para retomar o título de uma obra de R. Lourau, Le gai savoir des
a François Hincker, La Nouvelle Critique, 111/112, fev.-mar. 1378. sociologues, Edições UGE, 1977.
80 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 81
expressão gráfica, da fotografia, da exposição de objetos, da dança, sociedade. Existem pontos de equilíbrio, uma sinergia entre os dois
dos passeios, das experiências com plantas medicinais etc.? Pedir aos modos de produção agindo em interação. O mínimo de heteronomia
aldeões pesquisados que façam uma exposição sobre a sua situação é muitas vezes indispensável à realização das atividades autônomas.
vivida pode ser um excelente meio em vista desse objetivo. Inversamente, o excesso de heteronomia além de certo ponto acar
A pesquisa participante necessita do uso de um grande nú reta uma efeito “contraproducente” e destrói a realização das ati
mero de códigos. É apenas na medida em que essa variedade seja vidades autônomas: este é notadamente o caso da maioria dos
suficientemente grande e rica que os pesquisados poderão realmente sistemas educativos, médicos e de transportes. Na pesquisa partici
intervir ativamente, e participar da criação de instrumentos de pes pante, esta sinergia é buscada permanentemente. Como combinar e
quisa cuja linguagem será deles próprios. equilibrar as intervenções dos especialistas da pesquisa e da popu
lação? Quais são os pontos de equilíbrio e os princípios relativos ao
nível de intervenção da organização predeterminada e indispensável
A pesquisa participante: um equilíbrio difícil da pesquisa e da iniciativa espontânea e organizada dos pesqui
sados? O excesso de intervenção dos “investigadores” constitui obs
Pela transposição aqui de determinados conceitos utilizados táculo a toda capacidade de iniciativa dos pesquisados e os limita a
por Ivan Illich e seus colaboradores,21 podemos considerar a pes desempenhar um papel passivo. A ausência total de pesquisadores,
quisa participante como um processo de interação entre um “modo por sua vez, atribui ao processo um espontaneísmo improdutivo,
de produção autônoma” e um “modo de produção heterônoma” das deixa-o à dominação dos grupos mais poderosos e sob o risco da
informações. J.-P. Dupuy e J. Robert ilustram por alguns exemplos ausência de rigor científico. Na pesquisa participante, esta dialética
significativos esses dois conceitos: entre os dois modos de produção é permanente. O equilíbrio é
sempre incerto.
“Podemos aprender observando, agindo, trabalhando para os outros
e para o nosso meio: este é o modo de produção autônoma. Podemos
também ser educados, isto é, receber uma informação obrigatória da
parte de pessoas que existem para isso: este é o modo de produção
heterônoma. Podemos nos deslocar de um lugar a outro por nossos
próprios meios, utilizando nossa própria energia metabólica. Pode
mos ser deslocados de um lugar a outro como um pacote, num veículo
qualquer.”
Poderiamos acrescentar: Podemos efetuar nós mesmos uma
pesquisa sobre nossa própria situação, identificar e analisar coleti
vamente os problemas que se colocam à coletividade à qual pertence
mos: este é o modo de produção autônoma. Podemos ser pesquisados,
ser informados sobre nossa própria situação por especialistas da pes
quisa social: este é o modo de produção heterônoma. Como escrevem
J.-P. Dupuy e J. Robert, esses dois modos de produção são “ tipos
ideais” e não existem nunca “em estado puro” numa determinada
(21) Notadamente Ivan Illich, Nemesis médicale, Paris, Le Seuil, 1975;
J.-P. Dupuy & J. Robert, La trahison de 1'opulence, Paris, PUF, 1976. (Col.
Economie en Liberté.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 83
tipos de PP e diversos tipos de PA. Uma clara distinção é necessária.
A PA é uma forma de PP, mas nem todas as PP são PA.
A PP se preocupou sobretudo com o papel do investigador
dentro da situação investigada e chegou a problematizar a relação
pesquisador/pesquisado no sentido de estabelecer a confiança e
outras condições favoráveis a uma melhor captação de informação.
No entanto, os partidários da PP não concentraram suas preocu
pações em torno da relação entre investigação e ação dentre da si
Notas para o debate tuação considerada. É justamente esse tipo de relação que é es
pecificamente destacado em várias concepções da PA. A PA não
sobre pesquisa-ação* é apenas PP, é um tipo de pesquisa centrada na questão do
agir.
M ich el T h io llen t** Diversos autores concebem a PP como uma técnica de “obser
vação participante” que foi elaborada principalmente no contexto
da pesquisa antropológica ou etnográfica. Trata-se de estabelecer
Nas presentes notas tentamos esclarecer diversos problemas uma adequada participação dos pesquisadores dentro dos grupos
teóricos e metodológicos relacionados com a concepção da pesquisa- observados de modo a reduzir a estranheza recíproca. Os pesquisa
ação. Na situação atual, achamos que ninguém pode pretender ter dores são levados a compartilhar, pelo menos superficialmente, os
formulado uma concepção definitiva, acabada ou comprovada. Pre papéis e os hábitos dos grupos observados para estarem em condição
cisamos acumular os resultados de muitas experiências, avaliações e de observar fatos, situações e comportamentos que não ocorreríam
críticas e, também, suscitar uma ampla discussão. Apresentaremos ou que seriam alterados na presença de estranhos. Embora esse tipo
aqui um trabalho de “reconhecimento” e de reflexão acerca de de pesquisa seja, muitas vezes, conduzido de modo intuitivo e sem
alguns aspectos problemáticos da pesquisa-ação, inclusive seu envol sistematicidade, ele pode também seguir regras do clássico procedi
vimento no plano valorativo e a questão dos fundamentos teóricos mento de formulação de hipóteses, coleta de dados e comprova
desse tipo de pesquisa. ção.1
Na PP, a preocupação participativa está mais concentrada no
pólo pesquisador do que no pólo pesquisado. Além disso, não se
Distinção entre pesquisa participante e pesquisa-ação trata de “ ação” na medida em que os grupos investigados não são
mobilizados em torno de objetivos específicos e sim são deixados às
Muitas vezes as expressões “pesquisa participante” (PP) e suas atividades comuns. O fato de os pesquisadores participarem
“pesquisa-ação” (PA) são dadas como sinônimas ou quase sinô nas situações observadas não é uma condição suficiente para se falar
nimas. A partir do exame dos seus princípios, tais como aparecem em PA. Pois, além da participação dos investigadores, a PA supõe
na literatura disponível, podemos considerar que existem diversos uma participação dos interessados na própria pesquisa organizada
em torno de uma determinada ação. Que tipo de ação? Em geral,
trata-se de uma ação planejada, de uma intervenção com mudanças
(*) Documento apresentado na III Conferência Brasileira de Educação, dentro da situação investigada. O fato de a pesquisa estar ligada à
Belo Horizonte, junho de 1982.
(**) Doutor em Sociologia pela Universidade de Paris. Atualmente é ação não corresponde apenas ao simples objetivo de melhorar a
professor e pesquisador da COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É autor e organizador do livro: Crítica Metodológica, Investigação Social e
Enquete Operária, São Paulo, Polis, 1980. Trabalha atualmente sobre pro (1) Veja descrição dos procedimentos da observação participante, no
blemas de metodologia voltada para estudos de tecnologia, organização e contexto etnográfico, em James P. Spradley, Participant observation, Nova
comunicação. Iorque, Holt, Rinehart Et Winston, 1980, 195 páginas.
84 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 85
qualidade da observação. As expressões PA e PP não são sinônimas, maneira que não é autocentrada nem emancipatória. Por meio da
embora na prática a PA requeira uma forma de observação parti PA, grupos pretendem estudar e transformar as atitudes de outros
cipante associada à ação cultural, educacional, organizacional, polí grupos e pessoas para com determinados fatos sociais (hábitos de
tica ou outra. Ao recorrermos a métodos de PA, é preciso definir
consumo, formas de autoridade, comportamentos organizacionais
melhor o conteúdo da proposta. Pois PA podería designar qualquer etc.). Muitas vezes, essa prática leva a uma psicologização da reali
forma de pesquisa ligada a qualquer forma de ação. Se fosse o caso, dade social e não a uma conscientização sociopolítica do tipo da
seria uma proposta indeterminada e, logo, inútil. quela que é procurada pela concepção crítica da PA. Dentro de uma
visão de “ mudança controlada” , a psicossociologia das organizações
e a chamada sociotécnica propõem programas de PA que são respec
Variedade dos objetos da PA tivamente empenhados no “Desenvolvimento Organizacional” e na
melhoria da organização do trabalho ou da qualidade de vida no
trabalho.3 Os objetivos dessas práticas são bastante limitados em
Uma das características da PA consiste no fato de que seu função dos interesses empresariais relativos à modernização, eficien-
dispositivo, concebido de acordo com a sua dimensão social, esta tização e humanização do trabalho e das organizações. Na Europa
belece uma rede de comunicação ao nível da captação de informação do Norte, existem propostas de PA no contexto da sociotécnica
e de divulgação. A PA faz parte de um projeto de ação social ou da associadas à visão reformista de democratização das “relações in
resolução de problemas coletivos. Em ambos os casos os investi dustriais” (relações entre trabalhadores e empresários). Essas expe
gados precisam de um certo nível de informação. riências não podem ser consideradas como verdadeiras alternativas
A PA supõe que haja apoio, pelo menos em termos relativos, de conhecimento social. Todavia, merecem ser estudadas e ava
do movimento, da organização social, cultural, educacional, sindi liadas, e podem sugerir novos tipos de informação e novos estilos de
cal ou política na qual está concentrada. Muitas vezes, não se trata intervenção no meio industrial. Um tipo de PA instrumentalizada
de um completo apoio institucional por parte da organização, e existe' também no contexto da análise de sistemas. Trata-se de uma
sim de um apoio limitado oferecido por alguns grupos ou ele metodologia de resolução de problemas de natureza informacional e
mentos. técnico-organizacional com a participação dos analistas e dos usuá
rios dentro de uma estrutura de aprendizagem conjunta.4
A variedade das propostas de PA é proporcional à variedade
É provável que certos tipos de PA venham participar do espí
de projetos sociais inscritos em diversas conjunturas e sociedades.
rito das tecnologias e das metodologias alternativas. Isto é, de uma
No contexto da América Latina, a pesquisa-ação é sobretudo ligada
filosofia a partir da qual se pretende adequar as investigações e
à visão emancipatória, tanto no meio rural como no urbano e espe
cialmente aplicada em projetos de educação popular ou de comu mesmo certas técnicas produtivas, habitacionais, comunicacionais,
educacionais e higiênicas às condições concretas de uma atuação
nicação social.2
Quando a PA é centrada num movimento popular dotado de popular. São métodos e técnicas “apropriados” às necessidades das
autonomia, a investigação relativa à ação pode consistir na eluci populações ou coletividades. Nesta perspectiva, são procuradas
maior autonomia ou independência para com as tecnologias impos
dação da estratégia, da tática, das decisões e dos atos efetivos. Mas
nem sempre é assim. Pois existe toda uma tradição de PA instru tas pelo “sistema dominante” . Reduz-se assim a “importação” de
mentalizada dentro de práticas sociais ou organizacionais sem preo técnicas e aparelhagens custosas e as correspondentes concepções
cupação popular. Desde as suas origens, nos anos 40, um tipo de PA
é utilizado no contexto da psicossociologia norte-americana de uma
(3) Michel Thiollent, "Problemas de Metodologia", in: Vários autores,
Organização do Trabalho, São Paulo, Atlas, 1982.
(4) Paul Jobim Filho, Uma metodologia para o planejamento e o desen
(2) Maria Cristina Mata, "La investigación asociada a Ia educación volvimento de sistemas de informação, São Paulo, Blücher, MEC/SEPLAN,
popular". Cultura Popular, 2:114-121, 1981. 1979, 47 páginas.
86 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 87
tecnoburocráticas. Além disso, evita-se parte da dependência finan Há ainda outros aspectos favoráveis ao encaminhamento das
ceira e seu decorrente controle burocrático-político. propostas de tipo PP ou PA. Principalmente no tocante aos valores
•issociados ao modo de utilização dos resultados e do conhecimento
cm geral. A pesquisa acadêmica e suas convencionais técnicas de
Aspectos valorativos pesquisa predispõem a uma forma de conhecimento codificado de
acordo com regras do mundo universitário sem retorno em direção
Todos os métodos e técnicas de pesquisa são utilizados em ao povo.5 De acordo com esse tipo de crítica, a pesquisa acadêmica é
determinadas concepções da investigação de pretensão científica pouco utilizada concretamente, só serve para a obtenção de títulos
mais ou menos acentuada. De acordo com o ideal científico, pre entre uma pequena minoria privilegiada. A PA e também certas
tende-se que seja necessária a demarcação entre os aspectos cognos- formas de PP seriam um meio de melhor adequar a pesquisa aos
citivos das exigências científicas e os aspectos valorativos. No en lemas e problemas encontráveis no seio do povo. Além disso, graças
tanto, devemos reconhecer que esses últimos não podem ser tão aos canais de comunicação estabelecidos pela própria pesquisa,
facilmente descartados. Sempre estão relacionados, de alguma ma seria possível divulgar imediatamente os resultados considerados
neira, com a orientação e a seleção dos procedimentos utilizados. Na como utilizáveis dentro do meio social que os gerou.
aplicação de uma determinada linha metodológica, sempre há al Da nossa parte, abordaremos a questão da seleção ou da justi
gum pressuposto filosófico, valorativo, moral ou político. Não pre ficação da PA distinguindo duas posturas:
tendemos que a investigação seja possível de modo totalmente sepa a) A primeira consiste em propor especialmente a PP por
rado dos valores, o que, no caso, seria mais uma afirmação de estar de acordo com uma ideologia da participação popular, ou a PA
cunho positivista e paradoxal, na medida em que ela mesma corres por estar de acordo com uma ideologia da ação coletiva ou da
ponde a certos princípios valorativos. “comunhão” de espíritos.
A PP e a PA entretêm relações com certas posições filosóficas e b) A segunda faz decorrer a PA de uma alternativa metodo
valorativas. Lendo diversas contribuições à PP, podemos reparar lógica diferente das convencionais técnicas de pesquisa e a ser cienti
que há uma relação predileta com a concepção humanista, mais ficamente controlada, mesmo dentro de uma concepção geral da
freqüentemente cristã do que marxista, embora haja, em certos cientificidade que seja diferente do padrão positivista.
casos, uma afinidade entre certos aspectos da filosofia cristã e
elementos de marxismo ou de gramscismo. PP é uma proposta que A primeira postura se situa principalmente no plano dos valo
suscita muita simpatia entre aqueles que, ideológica ou até religio res e a segunda no plano metodológico e espistemológico. Nós opta
samente, enfatizam certos valores comunitários. Podemos identifi mos exclusivamente pela segunda. O que requer, de um lado, uma
car vários princípios gerais. A idéia de participação ou de ação reflexão crítica a respeito dos envolvimentos valorativos da PP e da
coletiva relacionada com a pesquisa evoca, para certos pesquisa PA (mesmo quando nos parecem “simpáticos”) e, por outro lado,
dores, a possibilidade de “comungar” , de estabelecer uma comuni uma melhor fundamentação no plano metodológico e teórico.
cação efetiva, cultural e social que é transponível com bastante Do ponto de vista científico, a PA não nos parece menos
facilidade nos planos simbólico, afetivo ou até místico. Outras idéias exigente do que outros procedimentos e, sem dúvida, exige muito
valorizadas seriam as de estar do lado dos humildes, fazer participar mais disciplina intelectual do que os pacotes de perguntas da co
os humildades da geração do conhecimento de que precisam, co mum pesquisa de opinião. Para seu próprio fortalecimento, a PA
nhecer sua própria situação etc. O comprometimento com os humil deveria ser objeto de muitas experiências práticas como também de
des, a comunhão com o povo e outras expressões semelhantes têm a um amplo programa de pesquisa metodológica e de crítica de even
ver também com o fato de minimizar a relação dirigentes/dirigidos. tuais desvios ideológicos.
Na mesma linha, é desejado que a ação seja a expressão da comu
nidade, desenvolva o sentimento de solidariedade, de autodefesa, de (5) Esse aspecto é enfatizado no livro organizado por Carlos Rodrigues
Brandão, Pesquisa participante, São Paulo, Brasiliense, 1981, 211 páginas.
compreensão mútua etc.
88 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 89
Contra o “ideologismo” Nesse quadro, a situação dos investigadores, aparentemente
paradoxal, supõe uma constante avaliação dos seus envolvimentos
Certos autores encaram a PA como sendo uma proposta de na ação observada.
caráter ideológico. Seria apenas um tipo de atividade de agitação Outros aspectos de um eventual “ideologismo” têm a ver com
difusa no seio de uma coletividade sem que haja requisitos ou pos- as condições de participação dos investigadores e dos investigados
cionamento científicos. Deve-se reconhecer que, em certos casos, nos procedimentos da PP e da PA. A nosso ver, um dos riscos que
a PA e também a PP podem estar absorvidas por uma proposta apresenta a noção de PP consiste no fato de referir-se à noção de
ideológica. No caso, seria sobretudo uma maneira de atuar dentro “participação” , sempre bastante ideologizada. Desde os anos 60,
de uma coletividade e de captar acriticamente a informação ideo em vários países, as ideologias da participação se espalham nos dis
lógica gerada por ela. O aspecto “atuação” pode inclusive consistir cursos do poder como forte argumento de manipulação e de esca-
num tipo de propaganda dos pesquisadores em direção aos mem moteamento das relações sociais e especialmente das relações de
bros da coletividade considerada. Certos partidários da PP recusam poder. O uso da noção de “participação” é sempre sujeito a inter
esse tipo de atuação e dão privilégio a uma atitude de “escuta” do pretações equivocadas. Esse uso pode trazer para dentro do campo
pessoal observado. A PP é algumas vezes apresentada como sendo da investigação as manipulações que ocorrem na concepção da polí
uma maneira de desconfiar das pretensões científicas proclamadas tica. O pesquisador deve ficar atento aos riscos associados às ideo
pelos convencionais modos de investigação e como maneira de ex logias de participação. Ao criticarmos o participacionismo, isto não
pressar o saber popular, o folclore, as crenças, a cultura e as téc quer dizer que estejamos a favor de um relacionamento sem parti
nicas populares, enfim, tudo o que se manifesta espontaneamente cipação, unilateral, exclusivo ou autoritário. Trata-se sobretudo de
no seio do povo. impedir a reprodução de certas ambigüidades — ou até paradoxos
A negação do “cientificismo” deve ser cuidadosa para que não — contidos nas propostas de participação quando, no fundo, muitos
nos leve a negar a própria idéia de pesquisa científica, o que é elementos da situação se opõem a ela. Em cada pesquisa, as condi
sempre perigoso porque a deixa aberta a qualquer manobra ideo ções da participação devem ser cuidadosamente esclarecidas.
lógica. Além disso tal posição pode levar à negação do papel decisivo Como qualquer técnica de pesquisa, os procedimentos da PA
da teoria dentro da investigação social. Deve-se; então, evitar o são utilizados dentro de um campo social cujas dimensões ideoló
regresso às posturas anticientíficas, “espontaneístas” ou “populis gicas e políticas devem ser avaliadas por parte dos investigadores e
tas” . Uma adequada compreensão do saber popular não deve ali usuários. Pelo fato de estar organizada em torno de uma ação,
mentar as posições antiteóricas e antiintelectuais. a PA supõe que todos tomem posição. O problema é delicado,
A participação dos investigadores em sistemas de PA ou de sobretudo nas situações conflitivas. A PA não pode deixar de consi
“intervenção” dentro de organizações ou de movimentos sociais não derar as oposições entre os grupos investigados. Mesmo quando não
significa que haja adesão aos valores ou ideologias dessas entidades. há conflito aparente, os membros das instituições nas quais a pes
Esse ponto é sublinhado por A. Touraine: “O sociólogo deve reco quisa ocorre são divididos por rígidas relações de autoridade ou per
nhecer sua solidariedade com as ações coletivas sem as quais lhe tencem a classes distintas.
seria impossível captar o seu objeto de pesquisa. Mas este princípio
não exige que o sociólogo adira a uma organização política ou sindi A configuração da PA é variável em função do contexto da
cal porque esta possui objetivos diferentes dos objetivos de conheci aplicação. Não são idênticas as aplicações feitas em instituições
mento, produz necessariamente uma ideologia e submete-se a exi divididas em classes e as aplicações organizadas por grupos homogê
gências táticas e estratégicas, deixando no segundo plano as exi neos com autonomia de decisão e ação.
gências do conhecimento e da pesquisa” .6 No primeiro caso, há sempre risco de envolvimento das rela
ções heterônomas, especialmente entre dirigentes e dirigidos. É pre
ciso questionar o que significa a ação (ou a participação) dos diri
(6) Alain Touraine, La voix et !e regard, Paris, Seuil, 1978, p. 251. gidos quando, no fundo, todas as decisões são monopolizadas e
90 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 91
tomadas por dirigentes. Isto é patente nas organizações industriais, A respeito do risco de misticismo, podemos observar que este
educacionais ou outras. não é inerente às propostas de PP ou PA. Certas formas de misti
No segundo caso, o problema principal consiste na elucidação cismo existem em obras positivistas, por definição contrárias a tudo
da ação do grupo animado por um objetivo consensualmente defi o que é metafísico ou místico, e também se manifesta até mesmo de
nido. No contexto sindical e político ou em associações voluntárias, modo paradoxalmente associado ao espírito de rigor lógico.8
as relações dicotômicas também existem, o que deve ser levado em Mesmo quando certos autores ou pesquisadores possuem cer
consideração na concepção da pesquisa. Talvez a PA possa contri tas inclinações místicas, isto não é suficiente para considerar que a
buir para evidenciar os fenômenos de monopolização de informação PP e a PA são essencialmente místicas. É necessário investigar com
e de poder e, também, as condições de execução da ação. mais cuidados formas de misticismo que possam interferir na con
Dentro do molde empresarial ou organizacional, que remete cepção da investigação social, especialmente quando são utilizados
ao primeiro caso, o tipo de PA utilizada em “ desenvolvimento métodos participativos e ativos, por exemplo, nos setores de estudo
organizacional” e em análises “sociotécnicas” encontra certas limi da comunicação ou da educação.
tações devido à heteronomia das relações sociais. Em certos casos, Transportada para o plano místico, a relação comunicativa
a ação se limita ao nível dos executivos ou chefes de nível interme estabelecida pela pesquisa remete aos fantasmas do vivido comuni
diário que estão inseridos no processo de PA para que, conjunta tário e ao espírito de comunhão. Não se trata de criticar o sentido
mente com os analistas, possam formular a solução de problemas humanista que anima certos pesquisadores nessas áreas. Não se
ligados à gerência e sobre os quais eles têm uma “parcela” de poder. trata de negar as razões de ser dessas concepções. É preciso evi
Procedimentos semelhantes podem envolver também os trabalha denciar melhor certas implicações extracientíficas. Seria perigoso
dores, só que sua ação é filtrada e canalizada no sentido de se propor uma PP como se fosse mero instrumento de pesquisa cientí
conformarem aos objetivos da empresa: lucratividade, produtivi fica, neutra no plano valorativo, ou como mera alternativa meto
dade, qualidade dos produtos etc. A PA aplicada nesse contexto dológica auto-suficiente, sem pano de fundo metafísico ou metasso-
estabelece, ao nível da investigação, uma forma de participação cial. Esse pano de fundo tem a ver com normas e valores humanos e
possuindo todas as ambigüidades da participação dos dirigidos no é também relacionado com visões religiosas da sociedade. Não se
plano político. deve confundir o nível da análise das relações inter-humanas com o
metanível da significação ideologizada ou “mistificada” do mundo
social. Qualquer confusão entre esses planos prejudica a clareza dos
projetos de investigação e dá argumentos às pessoas que, por di
A questão do “misticismo” versos motivos políticos e ideológicos, são hostis à PP e à PA.
As propostas de PP e, em alguns casos, de PA, são conside Filosofia da Ciência
radas como “ místicas” por parte de certos sociólogos. É o caso, em
particular, de P. Bourdieu, que é conhecido por tei criticado as téc De acordo com as nossas avaliações precedentes, pensamos
nicas de pesquisa convencional sem considerar que a PP ou outras que o desenvolvimento da PA não deva recair necessariamente nas
formas semelhantes sejam uma alternativa válida. Segundo esse posturas espontaneístas e ideológicas e que é possível manter a idéia
autor, a PP teria mais a ver com uma “participação mística na de PA dentro de uma concepção da investigação sociológica, da
prática” . A idéia de PP não satisfaria às exigências da ciência social, pesquisa educacional e da pesquisa em comunicação embasadas em
segundo as quais é necessária a “análise teórica” da prática de elementos teórico-científicos.
investigação e de sua relação com o objeto investigado.7
(8) O tema é abordado por Bertrand Russel, Misticismo e Lógica, Rio,
Zahar, 1977, p. 26 etpassim.
(7) Pierre Bourdieu, Questions de Sociologie, Paris, Minuit, 1980, p. 69.
92 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 93
A postura científica a respeito da PA existe e já foi especifi das situações de investigação são mal equacionadas, ou até mesmo
camente formulada no contexto das chamadas “ciências da organi negadas.
zação” tais como são concebidas pela corrente sociotécnica. É formu No campo da investigação social, qualquer ação, manipulação
lada, entre outros, por M. Liu, que justificou a PA dentro desse ou medida exerce um efeito tornando ambíguo o significado dos
campo de estudo como sendo uma exigência científica.9 O caráter resultados, o qual está relacionado tanto com o fato observado
ativo da investigação já existe no próprio campo das ciências da quanto com as características do instrumento de observação. No
natureza como condição de observação. No campo socioorganiza- tocante a fenômenos essencialmente qualitativos, fatos de signifi
cional, a PA possui um aspecto “catalisador” objetivamente neces cação cultural e política, não podemos ficar apegados ao quadro
sário para observar os fenômenos significativos. quantitativista dos positivistas.
De acordo com atuais discussões da filosofia da ciência, a PA Apesar dos adestramentos escolásticos, devemos reaprender a
pode ser vista como uma orientação adaptada às especificidades do estudar a vida social na sua “diversidade qualitativa” . Isto supõe
campo social, organizacional e comunicacional. Trata-se de insistir que o padrão de quantificação de performances (pesos, freqüências,
na elucidação de processos complexos e não-seqüenciais nos quais intensidades etc.) não seja considerado como nec plus ultra da cien-
está contida uma capacidade de inovação ou de criatividade. São tificidade.
processos marcados por uma grande diversidade qualitativa. É possível estudar o social a partir de modelos de natureza
Hoje em dia, tanto no campo das ciências da natureza quanto mais qualitativa e dando conta das transformações que ocorrem nas
no campo -das ciências sociais, essas idéias estão ganhando mais situações de observação. Os fatos evoluem. Nesta evolução, não se
audiência e opõem-se ao padrão da física clássica que foi transpor trata apenas de fenômenos cumulativos ou aditivos. Há também
tado pelos positivistas à área das ciências sociais. Essas idéias, é mudança na significação que adquirem os fatos observados pelos
claro, não são objeto de unanimidade, mas são discutidas por um pesquisadores. Essa significação é, em parte, atribuída pelos pes
crescente número de cientistas, sobretudo entre aqueles que ainda quisadores em função das teorias e métodos que lhes são disponí
possuem sentido crítico e independência intelectual para com as veis. Não se pode entender esse tipo de complexidade somente a
ideologias dominantes. partir de um procedimento de medição de variáveis isoladas inde
Do ponto de vista sociológico, podemos salientar a irreversi- pendentemente dos fatos de significação no qual interfere o próprio
bilidade dos fenômenos sociais, seu caráter holístico, não-repetitivo, dispositivo de pesquisa.
emergente etc. Os fenômenos comunicativos e educacionais apre De acordo com o espírito da “Nova Aliança” de Prigogine e
sentam aspectos comumente chamados “conscientização” , “criati Stengers, precisamos superar o padrão da ciência clássica no qual o
vidade” , “inovação” etc. Quando adequadamente concebida, a PA observador é eliminado e a observação concebida de um ponto de
insere-se num processo social e pretende dar conta dessas diversas vista exterior ao mundo.10 Segundo esses autores, particularmente
qualidades que os investigadores tradicionais costumam negligen qualificados nas ciências da natureza, até mesmo as ciências ditas
ciar. Especialmente quando as pessoas ou grupos estão em situação “exatas” devem sair dos laboratórios. “As situações idealizadas não
de agir, de tomar decisões, manifestam-se fenômenos qualitativos, vão nos entregar a chave universal.” O diálogo é necessário entre as
inclusive no plano da significação e da elucidação que os instru ciências da natureza, as ciências sociais, a filosofia e as outras
mentos não apreendem. Entre outros aspectos, a presença do pólo formas de saber. Segundo Prigogine, não é mais privilégio das ciên
investigador faz parte da situação investigada e interfere na signifi cias da sociedade o fato de reconhecer como necessário o “ diálogo
cação e nas possíveis interpretações. Na concepção dominante dos como os saberes preexistentes a respeito de situações familiares de
métodos de pesquisa, as propriedades emergentes e significativas cada um” . Continua o autor: “Como já acontece nas ciências da
(9) Michel Liu, Réflexions sur Ia Recherche-Action en tant que démar- (10) llya Prigogine & Isabelle Stengers, La Nouvelle Alliance. Méta-
che de recherche, mimeo., s.d., 17 páginas. morphose de Ia Science, Paris, Gallimard, 1979, 305 páginas.
94 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 95
sociedade, as ciências da natureza não poderão mais esquecer o outras possibilidades que são principalmente relacionadas com os
enraizamento social e histórico que supõe a familiaridade necessária interesses das populações consideradas.
para a modelagem teórica de uma situação concreta. Mais do que De acordo com a nossa concepção geral da metodologia, a PA
nunca, importa que não façamos deste enraizamento um obstá é uma proposta de investigação a ser articulada dentro de uma
culo...” 11 ampla visão da ação e da interação social. A investigação não pode
A disposição ativa do observador na situação observada, seu mais ser concebida de modo indiferente aos aspectos de interação
diálogo com as formas de conhecimento familiar e outros temas entre investigadores e investigados. A PA insere-se num processo
semelhantes são de maior relevância na concepção da metodologia expressivo, interativo, inovador e conscientizador. É uma orientação
das ciências sociais e adquirem respeitabilidade dentro das ciências de metodologia sociológica, podendo ser estendida a outras disci
da natureza, embora tenham nelas significações e implicações dife plinas e concretizada no contexto particular das pesquisas em edu
rentes. É da maior importância também o fato de conceber o diálogo cação, comunicação e organização. Numa certa medida, é uma
com o conhecimento familiar, não como “capitulação teórica” ou proposta de ruptura com as concepções e adestramentos dos pesqui
como “diluição” no senso comum e sim como condição de uma sadores convencionais, embora haja muitas possibilidades de “con
modelagem ou de uma teorização mais adequadas. vivência” entre diversas tendências. É preciso sublinhar que não é
A nosso ver, independentemente das sugestões específicas dos uma proposta anticientífica e sim uma proposta apenas diferente do
referidos autores, mas de acordo com uma orientação convergente, padrão “cientificista” que, hoje em dia, está sendo contestado,
a formulação de propostas alternativas em metodologia das ciências inclusive por parte de grandes cientistas da natureza.
sociais pode apoiar-se em certos princípios discutidos na filosofia da
ciência ativa, segundo a qual é possível encontrar um caminho
passando pelo diálogo com diversos interlocutores e diversos tipos de Sociologia da ação
saber, inclusive a respeito das situações familiares e abrindo novos
espaços para a teorização. Esta concepção, diferente da visão unila Mais do que uma simples técnica de pesquisa, a PA pode ser
teral e antidialógica dos pesquisadores adestrados em moldes con abordada como tema metodológico dentro do conhecimento socio
vencionais, adquire particular relevo no contexto educacional e co- lógico. No estudo da sociologia, não existe ponte intermediária entre
municacional. As suas diferenças encontram maior significação as teorias gerais e as técnicas de pesquisa empírica. Como diz
entre os próprios interessados. E. Verón: “ A grande teoria traduz-se ao nível da técnica pelo mé
Essa concepção nos parece bastante sugestiva no contexto da todo de entrevista” .12
discussão acerca de novos métodos de pesquisa de tipo PA. Uma vez Como tema metodológico, a PA remete a uma série de proble
afastadas as confusões relativas à visão ideológica ou mística, trata- mas com respeito à questão da relação entre elaborações teóricas e
se de pensar a PA como sistema de expressão e de “escuta” inserida captação de informação empírica, o que situaria o tema da PA no
no movimento ou na prática social. Trata-se de captar expressões território intermediário entre teoria e pesquisa de campo. Ao lado
ou discursos que se manifestam em diversos momentos ou em diver desta delimitação, é preciso também especificar a questão da ação,
sas situações sociais. Os atores dessas situações não seriam mantidos ou da relação entre pesquisa social e ação.
em posição de simples informantes e sim interessados na própria É bom lembrar que, independente de uma preocupação estri
conduta da pesquisa. Nesse sentido, mais do que uma técnica parti tamente metodológico-empírica, existe na tradição sociológica am
cular, a PA seria uma visão de conjunto contrária à reificante obser plas problematizações da ação social, uma das mais conhecidas
vação passiva que oferece possibilidades de utilização de tipo buro sendo a de Max Weber. A ação social é central na sociologia
crático. Em lugar deste tipo de utilização prevalecente, a PA oferece
(12) Eliseo Verón, A produção do sentido, São Paulo, Cultrix/EDUSP,
(11) Ibidem, p. 280. 1981, p. 48.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 97
96 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
pesquisas em educação, comunicação e organização. O fato de
weberiana e permanece central em diversas propostas sociológicas
associar PA e aprendizagem sem dúvida possui maior relevância na
recentes, tal como, por exemplo, a tendência acionalista de A. Tou-
raine, que desembocou numa metodologia de “intervenção socio pesquisa educacional, mas é também válido nos outros casos.
As pesquisas em educação, comunicação e organização acom
lógica” intimamente relacionada com a PA.13
panham as ações, de educar, comunicar e organizar. Os “atores”
Além disso, é bom lembrar que o tema da ação é também
sempre têm de gerar, utilizar informações e também orientar a ação,
central em discursos de cunho positivista ou neopositivista, como é o
(ornar decisões etc. Isto faz parte tanto da atividade planejada
caso dos discursos influenciados pelo funcionalismo, o sistemismo e
quanto da atividade cotidiana, e não pode deixar de ser diretamente
a cibernética. Noutros casos, a análise da ação é sistematizada na
observado dentro da PA.
área organizacional sob forma de praxiologia e, nos estudos de
comunicação, sob forma de “pragmática da comunicação” . É inte As ações investigadas envolvem produção e circulação de in
ressante notar que certos autores influenciados por essas diversas formação, elucidação e tomada de decisão e outros aspectos su
pondo uma capacidade de aprendizagem dos participantes. Estes já
tendências chegam a formular propostas relacionadas com a PA sem
possuem essa capacidade adquirida na atividade normal. Nas cir
reproduzirem, é claro, a radicalidade da PA, quando concebida a
cunstâncias particulares da PA, essa capacidade tem de ser apro
partir de orientações críticas. A referência à noção de PA, por si só,
veitada e enriquecida em função das exigências da ação em torno da
não estabelece uma ruptura com certas formas de positivismo ou de
qual se desenrola a investigação.
instrumentalismo.
O processo de pesquisa insere-se na ação. Sua orientação
Em estudos recentes, pode-se notar uma nítida preocupação
remete a considerações estratégicas e táticas, a partir das quais
teórica em torno da ação e também uma preocupação observacional,
Apesar da diversidade das abordagens, vê-se a possibilidade de um decisões são tomadas. Sua efetivação consiste na geração de infor
novo espaço de problematização da relação entre teoria sociológica e mação adequada, a ser divulgada e aproveitada em determinadas
procedimentos de investigação empírica. O dispositivo de pesquisa capacidades de aprendizagem dos atores da situação.14
associado à ação seria um meio importante para levar a cabo essa Numa relação de investigação convencional pretende-se, em
nome da objetividade, fechar ao máximo o mecanismo de captação,
problematização.
para que as respostas das pessoas interrogadas sejam emitidas sem
O que precede pode ser discutido ao nível geral da sociologia e
também nos contextos específicos da pesquisa em educação, comu efeito de apendizagem e sejam diretamente “encaixáveis” naquilo
que o investigador deseja mostrar ou justificar. Assim, perde-se de
nicação e organização. Os aspectos educativos, comunicativos e or-
vista a questão da aprendizagem e da criação ao nível das pessoas ou
ganizativos teriam a ver com formas de ação social a serem anali
grupos implicados na situação. Se fosse aproveitada, a capacidade
sadas como tais. São aspectos qualitativamente diversos, mas pos
de aprendizagem permitiría produzir uma informação muito mais
suem fortes analogias a partir das quais delineia-se a aplicação de
rica e significativa. Seria possível superar o caráter individualizado e
uma metodologia relativamente homogênea relacionando teoria e
estereotipado das respostas e possibilitar uma informação mais
ação e pesquisa sobre a ação. Em todos eles, a forma de ação envolve
“trabalhada” e direcionada em função das condições da ação.
informação e direção.
No campo da comunicação, a PA trata de informação comu
nicada no sentido da captação e também no sentido da divulgação.
Os efeitos de aprendizagem podem ser observados em ambos os sen
Capacidade de aprendizagem
tidos. Entre os objetivos da investigação, podemos considerar que o
Na PA, uma capacidade de aprendizagem é associada ao
processo de investigação. Isto pode ser pensado no contexto das (14) Em outro contexto, a interligação desses aspectos é sugerida pela
visão sistêmica tal como é discutida por Jacques Mélèse, "L'approche systé-
mique: Une transition?", in: La rencontre de 1'ingénieur et du philosophe,
(A.X.), Paris, Éditionsd'Organization, 1980, pp. 89-103.
(13) A. Touraine, op. cit.
98 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 99
direcionamento estratégico da comunicação seja um dos mais im
portantes, especialmente no caso dos meios de comunicação em • princípio de identidade: quem age? como o autor de autodefine?
massa e das outras formas de comunicação explicitamente dirigidas. • princípio de oposição: ação contra quem? como é definido o ad
Os efeitos pragmáticos da ação comunicativa podem também ser versário?
analisados em termos de aprendizagem. • princípio de totalidade: ação sobre o quê? ação em que terreno?
Numa concepção da PA mais radical do que as precedentes, Independente de alguns de seus pressupostos teóricos, esses prin
especialmente em meio operário, os objetivos da pesquisa podem cípios podem orientar, numa fase descritiva, o repertório das expres
consistir na captação e no fortalecimento da inventividade operária sões da linguagem dos atores em função dos elementos significativos
em todos os domínios (profissional, técnico, cultural, político etc.), designados na situação investigada.
em particular sob forma de potencial criador que é recalcado pela Há também todo um leque de outras expressões da ação,
organização taylorista do trabalho.15 De acordo com a visão confli- relativas à radicalidade, novidade, extensão ou intensidade etc. Em
tual da organização do trabalho industrial, a “enquete operária” um nível superior ao de um simples repertório, as expressões da ação
seria um tipo de PA com participação dos grupos de trabalhadores. podem ser analisadas pelos pesquisadores dentro de considerações
É tipo de pesquisa cujos objetivos são incompatíveis com os das PA pragmáticas. O estudo da comunicação e, especialmente, da passa
organizadas no contexto do “ desenvolvimento organizacional” ou gem da expressão ao ato remetem à pragmática, inclusive com o
da “sociotécnica” . Certos autores radicais criticam essas últimas intuito de evidenciar os freqüentes paradoxos que se manifestam
concepções como sendo instrumentos de “colaboração” de classes. nesse setor.17
O estudo da ação é muito diversificado. Abrange ele os com
portamentos conscientes ou não, no nível das pessoas ou dos grupos,
a ação planejada e decidida em grupo ou instituições. No campo
Linguagem da ação educativo e comunicativo, há também aspectos simbólicos da ação
A informação sobre a ação é captada e analisada dentro de ou, até mesmo, formas de ação simbólica.
grupos de base com a participação dos pesquisadores. Esses grupos De modo geral, atos, comportamentos, projetos, decisões, ação
simbólica são aspectos a serem considerados e analisados a partir
têm uma certa capacidade de investigação e de aprendizagem a ser
das expressões da linguagem da ação em situação. Certas discussões
facilitada e ampliada pela atuação dos pesquisadores. Nesse quadro,
a informação pode ser classificada e analisada em várias categorias de ordem sociológica, linguística e epistemológica são aproveitáveis
de elementos de linguagem utilizada na situação. Por exemplo, para quem quiser conceber procedimentos de PA.
categorias de expressões remetentes à “ação de” ou à “ação sobre” .
Isto seria um primeira distinção a partir da qual é possível ordenar
as expressões geradas na situação. Aspectos metodológicos
Na linha da sociologia touraineana, existe no plano descritivo
outro agrupamento possível que é fundamentado em três princí
pios: 16 A PA pode ser concebida como procedimento de natureza
exploratória, com objetivos a serem determinados pelos pesquisa
dores conjuntamente com os interessados. Os resultados da explo
(15) Antonio Negri, La classe ouvrière contre 1'État, Paris, Galilée, 1977. ração são úteis para elucidar a ação e para desencadear outras pes
Nos anos 60, Negri pertencia ao grupo associado aos Quaderni fíossi, que foi quisas. Na sua função elucidativa, a PA pode contribuir à formu-
responsável pela atualização da "enquete operária" no contexto italiano. Nos
anos 70, entre outras importantes contribuições teóricas, Negri desenvolveu
certos dos objetivos da "enquete operária" enquanto "enquete de massa sobre
a autonomia operária e proletária". (Op. cit., p. 296) (17) M. Thiollent, "A captação de informação nos dispositivos de pes
(16) A. Touraine, op. cit., p. 109. quisa social: problemas de distorção e relevância", Cadernos Ceru, 16:81-105,
1981.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 101
100 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
lação de objetivos, de reivindicações e outros meios de ação. Ela Terminaremos nosso rápido roteiro de questões metodológicas
pode funcionar conjuntamente com outras técnicas, mais convencio abordando o papel das hipóteses e as condições de geração de dados.
nais, de menor profundidade e de maior extensão.
1) Certos autores consideram que, na PA, não é aplicado o
Numa concepção de caráter mais instrumental do que crítico,
tradicional esquema: formulação de hipótese/coleta de dados/com
a PA pode ser orientada em função da resolução de problemas com a
provação da hipótese. De acordo com M. Liu, esse esquema não é
participação de analistas e usuários. Nesse caso, trata-se de: 1) iden
aplicável nas situações sociais de caráter emergente, com aspectos
tificar problemas relevantes dentro da situação investigada; 2) estru
de conscientização, criação etc. A PA seria um procedimento dife
turar a explicação dos problemas; 3) definir um programa de ação
rente, capaz de explorar situações e problemas para os quais é
para a resolução dos problemas escolhidos como prioritários; 4)
difícil, senão impossível, a formulação de hipóteses relacionando
acompanhar os resultados da ação por intermédio de diversos meios
variáveis precisas.18 Esse ponto de vista não é aceito por todos os
de controle (ver até que ponto o problema está sendo “resolvido” ou
partidários da observação participante. Seja como for, podemos
apenas “ deslocado”); e 5) fazer uma síntese dos resultados obtidos
considerar que a PA opera a partir de certas instruções relativas aos
em todas as fases. A comparação de várias sínteses pode chegar a
problemas identificados na situação e relativos aos modos de ação.
favorecer uma generalização do conhecimento alcançado em todas Essas instruções, ou diretrizes, possuem um caráter menos rígido do
elas. Esse procedimento de PA, ou algum semelhante, é formal que o das hipóteses. Com os resultados da pesquisa, essas diretrizes
mente utilizado por especialistas em sociotécnica e análise de siste
podem sair fortalecidas ou, caso contrário, devem ser abandonadas
mas e, nesse caso, não é incompatível com o prevalecente positi e substituídas por outras.
vismo.
A PA pode ser orientada especificamente para o contexto da 2) Os dados são produzidos pela interação do dispositivo de
tomada de decisão. Nesse caso é necessário detectar todos os grupos, pesquisa com a situação investigada. Todas as fontes documentárias
os fatores e os critérios itnerferindo na decisão de uma ação. Esse são aproveitadas. Por sua vez, os participantes e informantes trazem
caso possui analogias com o precedente. a informação viva. A informação produzida pelos atores, em função
A PA não é unidisciplinar. Embora seja ela de origem socio de seu ambiente, são de tipo fatual e opinativo. Também são capta
lógica ou psicossociológica, a PA abre um espaço de investigação no das as auto-avaliações dos atores e pesquisadores, mas não devem
qual podem se entrosar especialistas de várias disciplinas (ciências ser confundidas com a deserição da situação. Dependendo das
sociais, economia, educação, comunicação, organização e tecnolo qualificações dos pesquisadores, diversos métodos e técnicas, inde
gia). Nos casos que nos interessam, a PA pode agrupar as disciplinas pendentes da PA, podem ser utilizados nela. Por exemplo, pesqui
de base, de modo a privilegiar, em diversas situações, o equacio- sadores de formação psicológica podem aplicar técnicas de grupo
namento dos aspectos educacionais, comunicacionais e organiza que sejam de natureza a facilitar a elucidação dos problemas discu
cionais. tidos e a coordenação das tarefas. Por outro lado, com pesqui
A interpretação dos fatos observados e dos dados colhidos não sadores de formação lingüística, é possível enfatizar a análise
deve ser deixada ao senso comum nem aos impulsos dos partici de aspectos lingüístico-discursivos dentro das situações investiga
pantes. Os pesquisadores profissionais envolvidos na PA trazem a das.
bagagem teórica que possuem para estabelecer explicações e inter As precedentes observações relativas à formulação de hipóte
pretações adequadas. Estas são expressadas sob forma popular para ses e à geração de dados, necessariamente incompletas, são apenas
serem, pelo menos aproximadamente, entendidas pelos não-cientis- indicações provisórias. O estudo dos aspectos metodológicos da PA
tas que, eventualmente, possam enriquecê-las. A interpretação é abrange uma temática bem mais ampla que não podemos abordar
praticada pelos especialistas, mas não é monopolizada por eles, pois aqui.
é constantemente submetida ao entendimento dos membros dos
grupos implicados. Todas as sugestões destes últimos são levadas em
consideração. (18) M. Liu, op. cit.
102 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 103
Conclusão contrário de uma “receita” ou de uma “panacéia” . É sobretudo um
orientação de pesquisa cuja aplicação, experimentação ou interven
Sem retomarmos todos os aspectos abordados nas precedentes ção não exclui outros recursos técnicos mais convencionais que per
notas, concluiremos com um posicionamento favorável à PA. manecem necessários em determinadas circunstâncias.19 O papel da
Embora essa concepção da pesquisa, a ser distinguida da PP, metodologia consiste em descrever e avaliar as propriedades, quali
possa ser invocada por pesquisadores pouco escrupulosos, conside dades, insuficiências e distorções que são inerentes a cada técnica.
ramos que, pelo menos no plano ideal, ela possui certas qualidades A PA não pretende substituir todas as outras. Em particular, ela se
metodológicas a serem devidamente exploradas. A eventual incon aplica a grupos de pequena ou média dimensão; técnicas mais
sistência de certas pesquisas não está ligada à presença ou à au abrangentes sempre serão necessárias. No entanto, o principal de
sência de uma preocupação de tipo PA. Pois, nos meios contrários a safio da PA consiste em produzir novas formas de conhecimento
esta orientação, é fácil encontrarmos numerosos relatórios de pes social e novos relacionamentos entre pesquisadores e pesquisados,
quisa de opinião e de atitudes que, no seu gênero, são obras-primas e novos relacionamentos de ambos com o saber. Para enfrentar tal
de inconsistência metodológica e sociológica. desafio, é claro que a PA precisa ser utilizada dentro de uma proble
A PA não consiste na adoção de uma simples participação dos mática teórica de orientação crítica e não apenas instrumental.
pesquisadores no meio investigado e não significa o abandono das
preocupações teóricas da sociologia ou das outras disciplinas envol
vidas no estudo da educação, da comunicação ou da organização.
Boa parte da teoria sociológica está centrada na análise da ação
social. O desenvolvimento da PA não pode ignorar os princípios da
teoria da ação. Quando adequadamente direcionada no plano teó
rico, a PA pode contribuir para o estudo de situações, instituições,
movimentos ou processos sociais nos quais está em jogo uma ação
coletiva. Além disso, a informação captada nessas circunstâncias
pode ser objeto de diversos procedimentos cujos resultados seriam
cotejados com as interpretações teóricas. Parece-nos necessário evi
tar os riscos de uma eventual “ demissão teórica” que faria recair a
investigação no "espontaneísmo” e noutras formas de desvio.
Mesmo reconhecendo que, em certos contextos, a PA é asso
ciada a valores, ideologias ou até mesmo formas de misticismo, não
podemos condenar as tentativas de tipo PA, na medida em que são
portadoras de possibilidades metodológicas diferentes da orientação
convencional. A exploração dessas possibilidades pode ser encami
nhada de modo relativamente independente da questão dos valores.
Algumas delas são de grande relevância do ponto de vista das atuais
discussões sobre a filosofia da ciência, especialmente no tocante à
diversidade qualitativa no real e as exigências de diálogo entre diver
sas formas de saber que não se deixam mais enquadrar num padrão
único de abordagem.
Nos campos da educação, comunicação e organização, a PA
(19) Tema anteriormente abordado no nosso artigo: "Investigación-
exige dos pesquisadores uma grande dedicação e o simultâneo do Acción", in Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación, 1:76-78,
mínio das questões teóricas e práticas da investigação. A PA é o 1981.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 105
governamentais, sempre muito comprometidas com a ordem vi
gente. Ela não é menos possível entre os pesquisadores que se
querem de “esquerda” , quando, por exemplo, não problematizam
sua identidade com os dominados. Ao mesmo tempo, banqueteiam-
se na PP, por vezes, precisamente aqueles pesquisadores mal for
mados e medíocres, que alimentam a esperança de ser reconhecidos
pela fumaça que levantam, porque na verdade não possuem fogo.
Ademais, a PP ainda vive, de modo geral, mais do entusiasmo
Elementos metodológicos do que da fundamentação teórica. Alguns simplesmente se refugiam
no materialismo histórico, transformando-o numa “receita culiná
da pesquisa participante* ria” , ou seja, precisamente naquilo que se rejeitava na pesquisa
tradicional. Outros manipulam a idéia vaga de que as estruturas de
Pedro D e m o ** poder precisam ser superadas, tendo em vista a presença maciça de
marginalizados, mas não refletem sobre a questão vital, a de que
nenhuma sociedade sobrevive e se organiza sem estruturas do poder.
A participação não elimina o poder, mas busca uma alternativa
Tentaremos fazer uma aproximação metodológica da Pes
democrática dele.
quisa Participante (PP), no sentido de elaborar algumas referências
As questões são inúmeras. Não podemos pretender exauri-las
fundamentais para se constituir como gênero de pesquisa. Preocupa
mas tão-somente levantar alguns elementos metodológicos para
na PP, entre outras coisas, até que ponto é mais participação do que
aclarar a problemática.
pesquisa e em que medida participação pode ser uma maneira de
descobrir a realidade e de a manipular.
A crítica feita aos métodos tradicionais de pesquisa deve vir
Teoria e prática
acompanhada de uma contraproposta. Diriamos que, pelo menos
sob forma latente, existe na PP uma contraproposta. Mas existem “Para as ciências sociais, uma teoria desligada da prática não
igualmente sérias fragilidades metodológicas, desde a pretensão vã chega sequer a ser uma teoria. E é neste sentido que muitos diriam
de se constituir na única forma válida de pesquisa, até posturas ser a prática o critério da verdade teórica.” 1
meramente ativistas que banalizam não só a idéia de pesquisa, mas No entanto, não se pode dizer que a prática seja o critério da
também a idéia de participação. verdade, pura e simplesmente. É um critério da verdade porque o
A PP tem tudo para ser apenas a próxima farsa. Em vez de simples fato de uma teoria chegar à prática não a faz necessaria
superar a decepção histórica com respeito à utilidade das ciências mente verdadeira. Porquanto de uma mesma teoria podemos dedu
sociais para os dominados, pode refinar os controles sociais vigentes zir várias práticas opcionais, inclusive contraditórias. Assim, da
e, num pacote bonito, esconder um “presente de grego” . A farsa teoria marxista existem muitas práticas, até mesmo contraditórias, e
não seria, de modo algum, peculiaridade de instituições oficiais ou se a mera prática tornasse todas verdadeiras, teríamos verdades
contraditórias.
Neste sentido, para estabelecermos a verdade — sempre rela
tiva — de uma teoria, precisamos de outros critérios mais, como sua
(*) Cap. III de: Pesquisa Participante: mito e realidade, Brasília, UnB/ solidez teórica e lógica, sua capacidade de objetivação, sua ade-
INEP, 1982.
(**) O autor é sociólogo; foi secretário-geral do MEC na gestão do
Ministro Eduardo Portella. É professor do Departamento de Ciências Sociais da
UnB e sociólogo do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos — INEP. (1) P. Demo, Introdução à metodologia da ciência, op. cit., cap. "Teo
ria e Prática".
106 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 107
quação histórica e assim por diante. Mas é correto afirmar que, se potencialidades teóricas. A teoria contém geralmente elementos utó
uma teoria não leva à prática, nunca foi sequer teoria, porque será picos, quer dizer, irrealizáveis historicamente. Quando dizemos que
um discurso irreal ou alienante, de outro mundo. a democracia é o “governo do povo, pelo povo e para o povo” ,
Aí já temos uma característica fundamental da prática: é Irata-se de uma afirmação teórica, já que na prática não se constata
sempre uma opção da teoria que a fundamenta por trás. Da mesma que o povo, em pessoa, chegue ao governo. Chega somente através
bíblia produzem-se muitas seitas. Não é possível imaginar que de de representantes que, pretensamente, o representam. Na prática,
uma mesma teoria se derive uma única prática, a não ser sob o peso pois, a democracia não é governo do povo, mas de seus possíveis
do dogmatismo e do fanatismo. O fanatismo é precisamente isto: representantes, o que introduz inúmeras limitações conhecidas dos
parte da necessidade de interpretação única, da qual derivam uma processos democráticos.
prática exclusiva, fora da qual não há salvação. Uma coisa, para tomarmos outro exemplo, seria o socialismo
A partir daí, outra característica da prática é seu traço con como se deseja na teoria; outra coisa é o socialismo como é viável na
creto, ao contrário da teoria, que é generalizante. Assim, não se prática. A ditadura do proletariado não passou até hoje de uma pre
pratica toda a teoria, mas versões concretas dela, o que quer tam tensão teórica; na prática a ditadura é do partido. É interessante
bém dizer que a prática tende a ser exclusivista, porque opcional. A notar, por esta ótica, a evolução do socialismo ao tempo de Lenin.
teoria usa conceitos universalizantes, mesmo porque esta é uma Em teoria, o socialismo deveria ser universal, o partido deveria ser
marca própria de qualquer conceito em sentido lógico. É uma abs apenas órgão da massa, a superação das necessidades materiais
tração e que, por isto mesmo, diz respeito a todos os casos concretos através da produção ilimitada deveria ser condição prévia e assim
cobertos por ele, mas não é em particular nenhum deles. por diante. Na prática, Lenin introduziu a modificação do “socia
O conceito de democracia aplica-se a todos os casos concretos lismo num só país” , abandonou a idéia de espontaneidade da massa
históricos, aos quais imaginamos poder ajustar seu conteúdo teó (desentendeu-se, por exemplo, com Rosa Luxemburgo) e teve de se
rico, mas não se esgota nos momentos particulares subsumidos. virar num país subdesenvolvido. Por isso mesmo, o socialismo sovié
Assim, podemos dizer que a democracia americana é tão-somente tico é somente uma versão possível. A idéia de que a única interpre
um caso possível do conceito geral de democracia. Seria obtuso tação possível do socialismo deva ser a soviética é dogmatismo pri
pretender mostrar que o caso concreto da democracia americana mário e excrescência ideológica.
esgote a potencialidade do conceito geral de democracia. Ademais, toda prática é necessariamente ideológica, porque
Quando, porém, optamos pela democracia, não praticamos a se realiza dentro de uma opção política. Não é que a teoria não seja
democracia, pois isto seria mera abstração ou fuga teórica, mas uma também ideológica, porquanto o próprio distanciamento para com a
versão historicamente condicionada dela, ou seja, a versão grega, prática significa um tipo de compromisso ideológico. Mas a teoria
suíça, brasileira, do capitalismo liberal, ou outra qualquer, e assim pode imaginar-se pura, isenta, objetiva, enquanto a prática sequer
por diante. Que cada democracia em particular levante a pretensão se realiza sem a imissão ideológica. Na verdade, assume diretamente
de ser a única possível, isto já é uma questão ideológica de auto- a ideologia e é a realização de uma ideologia. Por isso é um traço
justificação, buscando manter-se e impor-se. típico das ciências sociais, que possivelmente não se aplica às ciên
À sombra desta característica, aparece outra que é o caráter cias naturais. A física, por exemplo, tem o problema de sua utili
limitante da prática, em face da teoria. Toda prática apequena a zação social, mas não é uma prática intrínseca. Embora faça parte
teoria, porquanto não ultrapassa a condição histórica de uma versão do projeto de sociedade, porque é um produto também social, a
dela. E é neste sentido que a prática sempre também trai a teoria. É ideologia aparece no tratamento dado à realidade física, não nela
comum ouvirmos que na prática a teoria é outra. Uma coisa é a mesma, ao passo que a realidade social é fundamentalmente prá
realidade teoricamente estruturada e sistematizada, outra é a reali tica, e por isso intrinsecamente ideológica. A ideologia não aparece
dade como se dá efetivamente no mundo real. somente na opção de tratamento científico dado à realidade social,
Assim, toda prática, ao mesmo tempo que realiza a teoria, mas na própria constituição da realidade social, porque está inevi
também a limita, no sentido de que não consegue esgotar todas as tavelmente polarizada entre opções históricas e políticas possíveis.
108 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 109
Não é somente dada, como a realidade física é; é também produ gem, quando escamoteamos compromissos escusos e que não gos
zida, interpretada, conflituosa e potencial. tamos de revelar, ou por inocência útil, quando não chegamos a
A prática é condição de historicidade da teoria; caso con tomar consciência do compromisso latente que é a falta de compro
trário, não acontece. A mera teoria é uma fuga da realidade. Mesmo misso.
que a prática limite a teoria, a traia e a deturpe, não há história real Não existe verdade absoluta. Na prática, ela é relativa, histó
precisamente sem limitações, sem traições e sem deturpações. Aí rica; quer dizer, superável. Nem por isso o conceito de verdade
está toda a grandeza da prática: a de ser realização histórica con absoluta perde seu sentido. Ao contrário, faz parte integrante do
creta. processo científico, sem o qual nos satisfaríamos com os produtos
Recompõe-se nisto a qualidade dialética do relacionamento relativos. Para não recairmos no simplismo de que uma determi
entre teoria e prática. Ambos os termos se necessitam e se repelem, nada versão científica se erija em parâmetro final, é mister voltar à
numa identidade de contrários. Quer dizer, um não existe sem o teoria que, em sua pretensão absoluta, encontra sempre suficientes
outro, mas cada um possui densidade própria, o que possibilita um defeitos históricos para a declarar superável. É precisamente este o
relacionamento dinâmico. De um lado temos a propensão absolu- papel da utopia; não é historicamente realizável, mas faz parte da
tizante da teoria. Somente em teoria podemos imaginar uma ciência história. Onde não há utopia, sacraliza-se uma situação dada, como
totalmente evidente, verdadeira, acabada. Na prática, é um produto se já não houvesse alternativa.
histórico, ou seja, limitado, relativo, processual, infindável. A teoria Assim, não podemos sacrificar a teoria em nome da prática,
pode ser absoluta, abstrata, utópica, universal; a prática, por sua nem a prática em nome da teoria. Nada faz tão bem à teoria como
vez, é relativa, concreta, realizada, particular. sua prática, e vice-versa. A prática, por estar exposta a todas as
O conteúdo fundamental da história é sua incompleição, não fragilidades históricas naturais, não deixa de ser importante, assim
como defeito, mas como marca própria. A tradução mais concreta como a teoria, por ser uma construção abstrata, não é inutilidade
desta incompleição é o conflito, entendido como fenômeno intrín vazia.
seco e normal. A história é dinâmica, produtiva, criativa, nova por A discussão em torno da consciência verdadeira coloca ade
que é contraditória. O factual nunca esgota o possível. O realizado quadamente este problema. Como sabemos que uma consciência é
não consome a utopia. ou não verdadeira? Por exemplo, ao atribuir ao proletariado cons
Dizemos que é mister “sujar as mãos com a prática” porque se ciência verdadeira, e aos burgueses consciência falsa, que argumen
usa a idéia de que a prática nos leva a compromissos atacáveis. Mas tos se usam?
isto não é um defeito; é característica da historicidade dialética. Esta questão não tem solução fechada, porque na prática não
Porque não há outra maneira de se fazer história, a não ser compro existe a consciência absolutamente verdadeira, mas uma consciência
metendo-se com opções políticas concretas. Como, porém, toda his relativamente verdadeira, dentro do espaço e do tempo em conside
tória é intrinsecamente defeituosa — e é por isso que se mantém ração. Não temos argumentos cabais, mas há os relativos. Por exem
histórica —, os compromissos históricos possuem conseqüentemente plo, o proletariado perfaz a maioria da sociedade; é quem realmente
defeitos. Toda prática histórica pode ser condenada, diante de produz, embora não tenha a posse da produção; é quem representa
outras opções adversas. Porquanto a prática não esgota a história, a contradição da sociedade, capitalista e a potencialidade da mu
mas a realiza relativamente. dança; são os excluídos do processo; e assim por diante. Tudo isto
O teórico foge muitas vezes da prática, porque tem medo da não é argumento cabal, porque a maioria não precisa ter razão,
condenação histórica, do compromisso atacável. Prefere criticar a porque os marginalizados também sofrem de alienação social, por
propor, porque toda proposta, se for prática, é também atacável, que o burguês também pode apreender criticamente a realidade etc.
pois não representará a perfeição histórica, mas uma versão dela. Mas são argumentos relativamente válidos e que possuem sua ver
Todavia, a fuga da prática é, à revelia, uma prática, um tipo de dade histórica.
compromisso político, geralmente conservador. Assim, ao querer Se a questão for fechada, perde-se a tônica do argumento e
mos não sujar as mãos, sujamo-las mais ainda, ou por malandra passa-se à submissão à autoridade. No socialismo, atribui-se nor-
110 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 111
malmente consciência verdadeira ao partido, que a define em seu
conteúdo concreto. Isto pode ser justificado, em nome de uma prá compromisso, mas vamos logo àquilo de que se trata de fato: que
tipo de compromisso vamos justificar?
tica histórica, no sentido de autodefesa ideológica. Mas é claro que
Ao mesmo tempo, a prática é elemento metodológico inte
prevalece o “ argumento” de autoridade. Tal característica pode
grante do processo científico, tanto no sentido de servir de constante
facilmente ser apreendida nos momentos em que se põe em questão
teste para a validade da teoria, quanto no sentido de assumir que a
a condição do partido como representante legítimo do proletariado.
própria pesquisa é uma intervenção na realidade. Assim, em ciên
No caso da Polônia, quem tem consciência verdadeira: o partido ou
o povo contrário à condução partidária? cias sociais, a prática é uma forma de conhecimento, porque através
dela testamos o conhecimento vigente e produzimos o novo, bem
Assim, parece claro que: 1) pelo simples fato de ser prática, como dialogamos dinamicamente com a realidade e conosco mes
uma teoria não precisa ser verdadeira; 2) não se define a consciência mos, na medida em que também fazemos parte da realidade social.
verdadeira fora de uma prática ideológica, ou seja, não há somente Sem o componente da prática, nossa teoria não fica histórica;
argumentos, mas opções políticas concretas. Quando se assume produzimos a típica alienação acadêmica de ver o mundo através da
uma prática, opta-se por ela, com virtudes e defeitos. Lança-se mão sala de aulas. Ao mesmo tempo, recebemos uma formação alienada,
da ideologia para justificar a prática, para enaltecer as virtudes e porque não nos serve na manipulação da realidade, nem temos
para encobrir os defeitos. Tudo isso é simplesmente histórico. Quem noção clara daquilo que é viável, daquilo que é possível, daquilo que
não tiver coragem de assumir também os defeitos da prática, jamais é realizável.
chegará à prática. O senso de relativa inutilidade que assola hoje as ciências
Por outra parte, fica patente que toda prática possui tendência sociais se deriva em grande parte do absenteísmo prático. A título de
exclusivista, porque é uma marca própria da ideologia, a busca de rigor lógico e de objetividade, montamos a farsa de expectadores de
autodefesa. Duas dimensões são aqui vitais: em teoria defendemos um estranho circo, do qual, contudo, somos necessariamente atores.
facilmente o pluralismo ideológico; na prática, praticamos nossa Não adianta escamotear a ideologia. É melhor discutir qual é a
ideologia. Por ser opção política, excluímos as demais; caso contrá preferencial.
rio, seria indiferente assumir qualquer prática. Assim, não há deci A prática traz novas dimensões ao conhecimento científico
são histórica prática, sobretudo aquelas mais ostensivas e contes- social, que são essenciais para sua construção. Em primeiro lugar,
tadoras, sem pelo menos um pouco de fanatismo, porque é em nome obriga à revisão teórica, porque na prática toda teoria é outra. Em
dele que se chega a dar a vida por um projeto político determinado. segundo lugar, leva o cientista a “sujar” as mãos, tornando-o con
Quem passa a vida “em cima do muro” , não faz história, ou é cretamente histórico, ou seja, ao mesmo tempo aproveitável e con
tragado por ela. Por medo do compromisso, inutiliza sua passagem denável. Em terceiro lugar, assume a opção ideológica e pratica a
pela história, ou serve a compromissos escusos. Isto significa, de se dá ao escamoteamento de suas justificações políticas. Em quarto
novo, que não há como fazer história, sem “ sujar-se” com ela. lugar, pode colaborar no controle ideológico, na medida em que não
Todavia, por causa disso, é importante demais sempre voltar à se da ao escamoteamento de suas justificações políticas. Em quinto
teoria, para aperceber-se do fanatismo, para aprender de outras lugar, torna a teoria muito mais produtiva, porque a obriga a ade-
práticas e para, se for o caso, até mudar de prática. Quem não volta quar-se a uma realidade processual, inquieta, conflituosa, que pou
à teoria, deixa de ser crítico e autocrítico, submergindo no ativismo co tem a ver com uma visão muito arrumada e estereotipada da
fechado e obtudo, e passa a condenar tudo que não esteja de acordo realidade social. Em sexto lugar, submete a teoria ao teste saudável
com sua teoria ou com sua prática. da modéstia, porque em contato com a realidade concreta e política
descobre-se facilmente que uma coisa é o discurso, outra a prática.
Em ciências sociais, a dialética entre teoria e prática é condi
Não esgotamos a realidade, nem temos toda a verdade na mão;
ção fundamental da pesquisa e da intervenção na realidade social.
somos apenas pesquisadores, ou seja, gente que duvida, que erra,
Se admitimos que estamos de qualquer maneira comprometidos, já
que deturpa, mas que, sabendo disso, quer reduzir o desacerto. Em
não levantamos a pretensão tola de nos isentarmos de qualquer
sétimo lugar, leva ao questionamento constante da formação aca-
112 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 11-3
dêmica, centrada em superficialidades e irrelevâncias, que divertem que a dialética seja a tábua de salvação das ciências sociais e da
a alienação universitária mas que não conseguem tornar as ciências humanidade.3
sociais baluartes concretos de realização humana, de salvaguarda da De todos os modos é preciso visualizar algo da dialética para
democracia, de vigilância indomável contra as desigualdades sociais. entender muitas das pretensões da PP. Todavia, temos aqui um
Em oitavo lugar, repõe a importância do componente político da problema logo de partida: a dialética, como qualquer outra meto
realidade, a qual não somente acontece, mas pode, pelo menos em dologia, não é unitária. É um erro primário supor que a única
parte, ser conduzida, influenciada, redirecionada; a prática traz a dialética possível ou aceitável seja o materialismo dialético. Por isso,
oportunidade histórica de construirmos, até onde é possível, nossa torna-se difícil compor elementos gerais da dialética, no sentido de
própria história, para que o projeto político seja expressão da socie serem bem comum de todas as versões praticadas, mesmo porque há
dade desejada, ou pelo menos tolerada. as antagônicas. Seja como for, levantamos aqui alguns elementos
Não conseguimos, a pretexto de objetividade e isenção ana para início de discussão e que são necessários para apreendermos
lítica, nos colocar fora da história, acima dela, ou ao lado dela, certos rumos da PP.
imaginando que isto nos daria condições melhores de a conhecer. Num primeiro momento, vale dizer que a dialética é vista
Nós mesmos somos produto histórico. Por isso estamos imersos na como a metodologia própria das ciências sociais. Isto não precisa
prática, também quando desejássemos fazer pura teoria. Porquanto coincidir com exclusivismos, como se as ciências sociais não pudes
a alienação é uma maneira de fazer história, mas é péssima, porque sem lançar mão das metodologias das ciências naturais. Porquanto
sequer sabe disso. Não conseguimos ser meros observadores de uma não há pureza metodológica, mas relativa especificidade. O que
trama que é necessariamente nossa. permite uma definição própria, mas igualmente a convivência com
Por outro lado, a prática não pode ser a porta escancarada da outras, ainda que conflitos também.
devassidão ideológica. Se for prática no contexto científico, há de Não é fácil mostrar que as ciências sociais trabalham com uma
predominar o argumento sobre a ideologia. Ao dizermos que a prá realidade tão específica que merecem ser tratadas especificamente
tica é necessariamente ideológica, não quer dizer que seja só ideolo do ponto de vista metodológico. Mas não é problema muito dife
gia cientificamente apreendida e controlada. Se não perdermos o rente aceitar que a realidade é unitária, devendo-se, pois, aplicar a
relacionamento dialético entre teoria e prática, fica mais fácil evitar ela metodologia unitária, retirada dos cânones das ciências naturais.
o ativismo e o fanatismo de uma prática que já desfez a sensibilidade Na verdade, isto depende da concepção de realidade, que pode ser
pela teoria crítica.2 explicitada, mas não propriamente demonstrada. Não dá para mos
trar dialeticamente que a realidade é dialética. Temos aí, pois, um
ponto de partida, já que não há partida sem ponto, mas que é um
Postura dialética pressuposto no sentido lídimo do termo: supomos que seja assim,
pelo menos como hipótese de trabalho. Em todo caso, a PP supõe
que assim seja e por isso lança mão da metodologia dialética.4
É praticamente impossível a PP fora de uma postura dialética.
Ao mesmo tempo, desiste-se da idéia de que a dialética seja
Sua forte crítica à pesquisa tradicional acaba coincidindo com a metodologia unitária para todas as realidades. Ela serve para captar
reivindicação de uma metodologia própria para as ciências sociais,
que não tenta imitar tacanhamente as ciências naturais. Tal postura
pode vir maculada pelos excessos mais ingênuos, desde imaginar (3) H. Lefebvre, Lógica formal/lógica dialética, Rio de Janeiro, Civili
que a dialética acabe com a lógica e a experimentação, até imaginar zação Brasileira, 1975; J.-P. Sartre, Questão de método, São Paulo, DIFEL,
1972; M. Harnecker, Los conceptos elementales dei materialismo histórico,
Buenos Aires, Siglo XXI, 1972; A. Cheptulin, A dialética materialista, São
Paulo, Alfa-Omega, 1982; B. M. Lakatos e M. de A. Marconi, Metodologia
(2) A. S. Vasquez, Filosofia da Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, científica, São Paulo, Atlas, 1982.
1977; F. Chatelet, Logos e Práxis, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972; K. Kosik, (4) H. Marcuse, "Zum Probleme der Dialektik", in Die Geselschaft,
Dialética do Concreto, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 7 (1930); H. Frey, Sociologia, ciência de Ia reahdad, Buenos Aires, 1944.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 115
114 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
passa de fase, ou seja, é provisória, porque na história tudo nasce,
fenômenos históricos, caracterizados pelo constante devir, não para
cresce, vive e morre.
captar fenômenos naturais, que são dados.5 Embora seja correto que a dialética privilegia o fenômeno da
Caracteriza profundamente a dialética a idéia de que toda transição histórica, ela faz parte da visão metodológica da ciência
formação social é suficientemente contraditória para ser historica ocidental, ou seja, também é nomotética. Concebe-se como esquema
mente superável. Embora nem todas aceitem isto, serve como ponto explicativo de mudanças históricas, mas não desaparece com o
de partida. Privilegia-se na realidade seu lado conflituoso, não como desaparecimento dos sistemas. Contém, pois, formalizações e é, no
defeito, mas como característica histórica natural. No fundo, en fundo, um tipo de lógica. Elabora, senão leis do devir, pelo menos
tende-se o histórico como conflituoso. A superação histórica é um regularidades do acontecer. Ao aplicarmos a certo tipo de fenômeno
fenômeno natural, porque predominam conflitos, não somente con histórico o conceito de revolução, supomos que embora se trate de
flitos de menor porte, mas igualmente conflitos que não consegui mudanças radicais, muita coisa aí se repete, tanto que se aplica o
mos resolver e que decretam o término de um sistema dado. Tais mesmo conceito.
contradições não são extrínsecas, embora possa haver; são intrín Ao mesmo tempo, se aceitamos que a história pode também
secas, no sentido de que fazem parte constituinte da realidade. ser feita e planejada, isto somente é possível se a admitimos pelo
A história é irrequieta, inacabada, superável, porque é contra menos regular, para ser previsível e manipulável. Decididamente,
ditória. Uma história não contraditória coincidiría com uma história não sabemos trabalhar com uma realidade que fosse irregular,
parada, tranqüila, onde já nada acontece. Ou seja, não é um fenô imprevisível, caótica ou totalmente subjetiva. Pelo menos um laivo
meno histórico. de determinismo é típico de nosso modo de fazer ciência. Mesmo a
A pedra de toque da dialética é o conceito de antítese. Do seu história não acontece de qualquer maneira, mas é condicionada, de
entendimento surgem as mais variadas versões dialéticas, inclusive tal sorte que tudo o que acontece na história é historicamente
contraditórias. De modo geral, antítese significa a vigência de con explicável. Por mais que o salto seja qualitativo e radical, foi cau
tradições dentro de determinada formação social, ou seja, a convi sado por fatores antecedentes. Não cai do céu, nem é puramente
vência num só todo de pólos contrários, o que resulta na identidade decidido pela vontade humana.
de contrários. Se a antítese for radical, leva à superação do sistema, Há também um modo próprio de ver o relacionamento entre
porque reflete um conflito que o sistema já não consegue absorver ou sujeito e objeto derivado da concepção específica de realidade social,
resolver. Se a antítese não for radical, determina a manutenção do não apenas fisicamente dada, mas também construída na história.
sistema, ainda que introduz modificações internas. A consciência histórica e a possibilidade de intervenção humana são
Simplificando as coisas, as superações históricas são traba constituintes centrais deste processo. Entre sujeito e objeto não há
lhadas por antíteses radicais que levam a mudanças do sistema. mera observação por parte do primeiro, nem imposição evidente
Antíteses não radicais induzem mudanças dentro do sistema ou a por parte do segundo, mas interação dinâmica e dialética. Acabam-
relativa manutenção da situação dada. De todos os modos, a reali se identificando, sobretudo quando os objetos são sujeitos sociais
dade histórica é uma polarização intrínseca e nisto exercita sua também, o que permite desfazer a idéia de objeto, que cabería
dinâmica própria de uma totalidade em infindável processo de mu somente em ciências naturais.
dança. A história é uma sucessão de fases. O conceito de fase intro Ao mesmo tempo, dentro do quadro da teoria e da prática,
duz os dois movimentos típicos da antítese: existe a persistência his admite-se como central o componente político, definido como a
tórica relativa, sem a qual a fase não se institucionaliza; mas não participação e intervenção do homem nos acontecimentos históricos,
o que determina a ideologia intrínseca da realidade social, que
nunca é apenas dada objetivamente, mas também construída social
(5) Assim, a idéia clássica de Engels de construir uma "dialética da mente. Embora objetivamente condicionada, o fato de que nossa
natureza” estaria em decadência. A natureza possui talvez cronologia, mas não história se desenrole da maneira que aí está é uma das opções
propriamente história; está estruturalmente dada, e por isso não é propriamen políticas possíveis.
te produzida na e pela história.
116 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 117
Colocados tais elementos esparsos, surgem já algumas diver
.1 maneira histórica própria do capitalismo de o conflito acontecer,
gências, o que ocasiona versões diversificadas na prática. Algumas
mas não se supera a característica específica conflituosa da história.
dialéticas são mais “objetivistas” , porque acentuam os condiciona
Se o dinamismo dela provém de suas contradições, que história seria
mentos objetivos. É o caso do materialismo histórico, que admite a
esta já sem contradições radicais?
intervenção política humana, mas determinada em última instância Neste desdobramento, os soviéticos inventaram a “ dialética
pela infra-estrutura econômica. Outras são mais subjetivistas, do não-antagônica” , correspondente precisamente a uma situação his
tipo hegeliano, que veem a história mais feita pelo homem do que
tórica já sem conflitos radicais, porque não apresentaria o conflito
acontecida objetivamente. E outras procuram um meio termo, atri de classes. Certamente não apresenta o conflito de classes como no
buindo ao elemento político o mesmo peso dos elementos ditos capitalismo, porque não existiría mais-valia. Mas apresenta o con
infra-estruturais. flito da desigualdade, instrumentalizado não mais pela posse ou
Ademais, a visão da antítese histórica é variada. No materia não-posse dos meios de produção, mas pelo acesso à elite burocrá
lismo histórico predomina a tendência de considerar o capitalismo o tica e partidária. Por isso mesmo, continua histórica, ou seja, con
último modo contraditório de produção, que baseia a idéia cons flituosa e superável.7
tante de entender a história até ao capitalismo como pré-história. É O conflito, teoricamente considerado, não é um problema
incisivo este texto da Contribuição à crítica da economia política: capitalista, mas da história como tal; é problema do capitalismo o
“A traços largos, os modos de produção asiático, antigo, feudal e
conflito de classes, somente.
burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas Trava-se, então, uma polêmica forte entre dialéticas de inspi
da formação econômica da sociedade. As relações de produção bur ração marxista e outras ditas histórico-estruturais. Estas admitem
guesas são a última forma contraditória do processo de produção que a história tenha estruturas dadas, como a própria infra-estrutu
social, contraditória não no sentido de uma contradição individual, ra econômica. Sobretudo, porém, a desigualdade social é uma estru
mas de uma contradição que nasce das condições de existência social tura histórica, no sentido de que não há história que não contenha
dos indivíduos. No entanto, as forças produtivas que se desenvolvem esta característica. E mais: são históricas por causa desta caracte
no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições rística. Tais estruturas, porém, não esfriam a história, como no caso
materiais para resolver esta contradição. Com esta organização social da metodologia estruturalista, mas são precisamente a fonte do
termina, assim, a pré-história da sociedade humana” .6
dinamismo histórico.8
Destarte, depois do capitalismo teríamos outra ótica da antí As superações históricas se concentram sobre a questão da
tese, já não mais radical, porque não contraditória. A idéia de que desigualdade social, que é um conflito tipicamente insuperável:
toda formação socai seria suficientemente contraditória para ser conseguimos reduzir, não eliminar. Por causa dela, continua a
historicamente superável valería até ao capitalismo. As condições sociedade inquieta, precária, problemática, superável. Por mais que
econômicas novas, capazes de satisfazer a todas as necessidades a sociedade possa sonhar com a utopia da igualdade, a realidade,
materiais superando o reino da necessidade, produziríam as condi por ser histórica, realiza formas concretas de desigualdade. O fenô
ções suficientes do reino da liberdade, radicalmente diverso. meno da desigualdade seria, assim, ao mesmo tempo, a “ desgraça”
Parece muito discutível esta postura, porque tende a camuflar e o dinamismo histórico.
os conflitos do socialismo ou de qualquer fase que venha após o O materialismo histórico, por conter a noção de que a história
capitalismo. Não seria o socialismo simplesmente uma fase histórica contraditória vai até ao capitalismo, imagina uma história posterior
como qualquer outra, também conflituosa, também superável? Se
superarmos o conflito de classes capitalista, superamos tão-somente
(7) Ch. Bettelheim, A luta de classes na União Soviética, Rio de Ja
neiro, Paz e Terra, 1976; R. Bahro, Die Aíternative: Zur Kritik des real exis-
(6) K. Marx, Contribuição para a crítica da economia política, Lisboa, tierenden Sozialismus, Rororo, 1970.
Estampa, 1973, pp. 28-29. (8) Cf. sobre a questão histórico-estrutural, P. Demo, Sociologia: uma
introdução critica, Atlas, 1983.
118 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 119
não-contraditória, sem a “dominação do homem pelo homem” ; um salto de tal ordem, que já não fosse historicamente explicável.
embora persistam conflitos, estes seriam não-antagônicos.9 Já não Por isso, a idéia de que a história futura, pós-capitalista, já não seria
se colocaria a superação histórica. Pode-se perguntar: como pode antagônica, nos parece uma expectativa possível, na ordem da uto
uma história contraditória gerar outra não-contraditória? É claro pia, mas praticamente infundada e, no fundo, uma concessão mí
que, apelando-se para as potencialidades históricas, consideradas tica.
praticamente inesgotáveis e nunca totalmente conhecidas, é permi O materialismo histórico pode igualmente exceder-se em sua
tido levantar a hipótese de uma história profundamente diferente da acentuação objetivista, secundarizando o lado da intervenção hu
conhecida. Mesmo porque a história passada não é parâmetro defi mana. A questão do poder não nos parece supra-estrutural, embora
nitivo para a futura. Mas a hipótese contrária, de que a desigual seja facilmente condicionada pela infra-estrutura material. Dificil
dade social é estrutural e disto a história retira seu dinamismo social mente a mudança nas estruturas da desigualdade se fazem sem a
próprio, também é válida e tem a seu favor a história conhecida. A intervenção dos desiguais. Para a PP, que insiste muito nesta possi
hipótese anterior está mais próxima do mito do que a segunda. bilidade de participação histórica, o “objetivismo” excessivo acaba
Por estas razões, existem divergências sobre a profundidade desestimulando, mesmo porque não há revolução sem ideologia
das superações históricas. Não parece possível defender a revolução revolucionária.
total, no sentido de que o conseqüente já não seria explicável pelo Não se trata, por outro lado, de privilegiar aspectos políticos
antecedente. Retomando o texto anteriormente citado por Marx, diz da intervenção humana na história sobre condições materiais. Nossa
ele: posição tendería a ver os dois fatores no mesmo pé de igualdade. O
lado material circunscreve precisamente os limites e possibilidades
“Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si da ação humana. Concretamente falando: mera conscientização
próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela política não adianta, porque não interessa mera pobreza partici
sua consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta cons
pada. Ê mister a produção, na mesma importância. Todavia, a
ciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe
capacidade de assumir, pelo menos em parte, seu destino histórico,
entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma
elaborando a opção política que mais pareça conveniente à comuni
organização social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas
as forças produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de dade, é a fonte da energia humana, que não se contenta em esperar,
produção novas e superiores se lhe substituem antes que as condições em observar, e muito menos em se conformar. Porquanto história
materiais de existência destas relações se produzam no próprio seio humana é aquela feita pelo homem a serviço do homem, não aquela
da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os que acontece à sua revelia. O equilíbrio entre o objetivo material e o
problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta, subjetivo político é complicado, mas é preciso obtê-lo.
descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as condições Não cremos que a questão do poder seja uma questão capi
materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos, em via talista e que, superando-se o capitalismo, supera-se o problema do
de aparecer” .10 poder. O fato de podermos considerar o capitalismo como a fase
histórica mais perversa jamais conhecida é outra coisa. É uma visão
à luz deste texto, parece claro que a superação histórica não curta descrever o capitalismo como o resumo de todos os males,
produz o novo total, mas o novo relativo, ou seja, predomina o novo tanto porque supervalorizamos a importância apenas relativa de
sobre o velho. Seria uma colocação a-histórica aquela que previsse uma fase histórica, como porque facilmente isentamos fases poste
riores da crítica, como se fossem necessariamente melhores.
Temos de reconhecer a complexidade desta discussão, bem
(9) Visão típica de F. Engels, Do socialismo utópico ao socialismo como seus reflexos ideológicos. E é uma pena que a PP não a tome a
científico, Lisboa, Estampa, 1972, p. 98. " 0 governo sobre as pessoas é subs sério, supondo-se muitas vezes ingenuamente dialética, ou imagi
tituído pela administração das coisas e pela duração dos processos de produ
ção. O Estado não será 'abolido', extingue-se".
nando que a única dialética possível seja a versão do materialismo
(10) K. Marx, op. cit. histórico. Em nossa concepção, preferimos uma visão de tipo maoís-
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 121
120 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
ta, de estilo histórico-estrutural, e que é a mais próxima das pre nalização histórica. Uma revolução que se institucionaliza, ao mes
tensões da PP.11 Em primeiro lugar, ao aceitar-se uma revolução mo tempo se realiza e envelhece. O conceito de antítese prevê as
cultural e não somente ao nível da mudança do modo de produção, duas modalidades: o movimento radical que leva à transição histó
fica superado o esquema tendencialmente monocausal de uma única rica e o movimento não-antagônico que produz a permanência
infra-estrutura que determina em última instância. Abre-se o espaço histórica.
para o político, não para substituir o econômico, mas na mesma Assim, é uma ótica apressada imaginar que a PP deva somente
ordem de importância. Se conservássemos a linguagem da infra- produzir efeitos transformadores, porque pode produzir efeitos re
estrutura, nela colocaríamos pelo menos mais a questão do poder* formistas, quando não produz efeitos conservadores e até reacioná
que é certamente condicionada pelo econômico, mas que existe em rios. Depende da ideologia política.
qualquer sociedade, mesmo quando não havia um modo organizado
de produção.12
Ao mesmo tempo, ao aceitar-se a revolução permanente, Como se entende a pp
monta-se a idéia mais realista de que é preciso abalar a história de
forma permanente, de tempos em tempos, já que não existe uma Tentaremos agora fazer um rápido percurso sobre a autode-
história não-antagônica. Por exemplo, é estrutural na história a finição da PP; para posteriormente avaliarmos sua adequação como
tendência de o partido distanciar-se da massa e tornar-se uma buro pesquisa.
cracia privilegiada. Não é uma problemática capitalista, mas sim Segundo Hall, “ a PP é descrita de modo mais comum como
plesmente social: em toda sociedade existe poder e ele caracteriza-se uma atividade integrada que combina investigação social, trabalho
principalmente pela desigualdade entre grupo dominante e maioria educacional e ação. A combinação destes elementos num processo
dominada. Para recompor a transição na rota de uma organização inter-relacionado ocasionou tanto estímulo quanto dificuldade para
cada vez mais democrática da sociedade, é preciso, de tempos em quem se engajou na PP ou experimentou entendê-la. Algumas das
tempos, conclamar uma revolução para restabelecer a oportunidade características do processo incluem:
dos dominados e submeter a seu juízo o processo social. “ a) o problema se origina na comunidade ou no próprio local de
Esta ótica, que pode ferir crenças do materialismo histórico, trabalho;
parece-nos muito mais realista. É fácil demais mostrar que o revo b) A finalidade última da pesquisa é a transformação estru
lucionário de hoje poderá ser o reacionário de amanhã. Se chegar ao tural fundamental e a melhoria de vida dos envolvidos. Os benefi
poder, verá a sociedade de cima para baixo, e procurará instaurar ciários são os trabalhadores ou o povo atingido;
uma ordem social, que esperamos seja preferível, mas será certa c) A PP envolve o povo no local de trabalho ou a comunidade
mente uma ordem institucionalizada. E isto é profundamente histó no controle do processo inteiro de pesquisa;
rico, porque não há somente transição, mas também institucio d) A ênfase da PP está no trabalho com uma larga camada de
grupos explorados ou oprimidos: migrantes, trabalhadores, popula
ções indígenas, mulheres;
(11) O. Weggel, "Der ideologische Konflikt zwischen Moskau und Pe- e) É central para a PP o papel de reforço à conscientização no
king, Beilagezur Wochenzeitung", Das Parlament, 3:28-70, 11.7.1970. povo de suas próprias habilidades e recursos, e o apoio à mobilização
(12) As sociedades ditas "primitivas" conheciam o fenômeno do poder, e à organização;
embora não possuíssem um modo organizado de produção. É claro que havia o
condicionamento da sobrevivência material, mas o acesso ao poder era instru f) O termo “pesquisador" pode referir-se tanto à comunidade
mentalizado fundamentalmente pelas crenças míticas. Ao mesmo tempo, não ou às pessoas envolvidas no local de trabalho, como àqueles com
é possível imaginar que a desigualdade política possa ser extinta pela supe treinamento especializado;
ração da carestia material. Ela existe na carestia e na abundância, porque g) Embora aqueles com saber/treinamento especializado mui
possui raízes no próprio relacionamento social entre os homens, grupos, comu tas vezes provenham de fora da situação, são participantes compro-
nidades e sociedades, e não apenas no relacionamento dos homens com sua
realidade externa. Assim, se, por hipótese, pudéssemos dominar os condicio
namentos objetivos da desigualdade, restariam ainda os subjetivos.
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metidos e aprendizes num processo que conduz mais à militância do “a) retornar a informação ao povo na linguagem e na forma cultural
que ao distanciamento” .13 na qual,foi originada;
b) estabelecer o controle do trabalho pelo povo e pelos movi
Este texto é bastante ilustrativo porque procura combinar o mentos de base;
problema da participação com o da pesquisa, acentuando — o que é c) popularizar técnicas de pesquisa;
típico — o compromisso político talvez mais do que o compromisso d) integrar a informação como base do ‘intelectual orgânico’;
com a pesquisa. Mas existe consciência da descoberta da realidade, e) manter um esforço consciente no ritmo ação/reflexão do
o que pode ser visto, por exemplo, na idéia de “transferir poder ao trabalho;
povo através do processo de conhecimento” ,14 preocupando-se mui f) reconhecer a ciência como parte do dia-a-dia de toda a
to com o problema de que o pesquisador treinado não substitua o população;
g) aprender a escutar” . 18
povo. Ao mesmo tempo, a PP significa a repulsa contra a manipu
lação das comunidades, buscando produzir o saber através da aná
Em trabalho anterior, Hall desenvolveu uma série de pontos,
lise coletiva e mantendo o controle nas suas mãos. Assim, criar saber
na ótica da pesquisa. Segundo sua visão, os princípios da PP seriam:
popular é um dos objetivos da PP, porque acredita-se que o domínio
todos os métodos de pesquisa estão impregnados de implicações
do saber é uma fonte de poder, o que colaboraria no projeto de
ideológicas; o processo de pesquisa não pode se esgotar num pro
transformação social.15
duto acadêmico, mas representar benefício direto e imediato à co
Hall reflete uma posição crítica em face do materialismo his
munidade, ou seja, dever ter alguma utilidade prática social; a
tórico, reconhecendo sua utilização possível mas de forma não-dog-
comunidade ou a população deve ser envolvida no processo inteiro,
mática, para respeitar a criatividade própria da PP, que pode ser
até à busca de soluções e à interpretação dos achados; se a meta é
gerada dentro de outras versões dialéticas, e ainda usando outros
mudança, deve haver envolvimento de todos os interessados nela; “o
métodos possíveis. Todavia, é clara a insistência sobre o problema
processo de pesquisa deveria ser visto como parte de uma experiên
do poder, no sentido de compromisso transformador.
cia educacional total, que serve para estabelecer as necessidades da
comunidade, e aumentar a conscientização e o compromisso dentro
“A PP pode somente ser julgada a longo prazo se não possui a da comunidade” ; “o processo de pesquisa deveria ser visto como um
habilidade de servir aos interesses específicos e reais da classe traba processo dialético, um diálogo através do tempo, e não como um
lhadora ou das populações oprimidas.” 16 desenho estático a partir de um ponto no tempo” ; a meta é a
liberação do potencial criativo e a mobilização no sentido de resolver
Daí a importância da criação do poder popular, que Fals os problemas.19
Borda chega a denominar “ciência do povo” ,17 dentro de um novo Em outro momento, acentuava, ao falar do envolvimento da
paradigma de conhecimento, cujos traços poderíam ser: comunidade:
“ Aqui chegamos ao princípio fundamental talvez da PP, e a seu
(13) Budd, Hall, "Participatory Research, Popular Knowledge and Po ponto mais radical de diferença tanto dos enfoques ortodoxos de
wer: a personal reflection", Convergence, 14 (3):7-8, 1981. pesquisa, como dos enfoques teóricos melhorados. O processo inves-
(14) ibidem, p. 11; Rajesh Tandon, "Participatory Research in the Em- tigativo deve estar baseado em um sistema de discussão, investigação
powerment of People", Convergence, 14 (3), 1981; usa-se o termo "empower- e análise, em que os investigados formam parte do processo ao mesmo
ment of people".
nível do investigador. As teorias não se desenvolvem de antemão para
(15) R. Tandon, op. cit., p. 21. "Knowledge has been and will continue
to be a source of power. Participatory research has been an attempt to shift
this balance of power in favour of the have-nots."
(16) B. Hall, op. cit., p. 13. (18) B. Hall, op. cit., p. 14.
(17) Ibid., p. 14; 0. Fals Borda, "Science of the Common People", (19) B. Hall, "Participatory Research: an approach for change", Con
International Forum of Participatory Research, Iugoslávia, 1980. vergence, 8:28-31, 1975.
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serem comprovadas nem esboçadas pelo investigador a partir de seu na verdade enfatiza a ligação entre teoria e prática, entre conhecer e
contacto com a realidade. A realidade se descreve mediante o pro agir, entre pensar e intervir.23
cesso pelo qual uma comunidade desenvolve suas próprias teorias e Também o retorno da pesquisa ao povo é um elemento cons-
soluções sobre ai mesma” .20
lante, o que é denominado freqüentemente de retroalimentação. De
lloterf visualiza a PP ligada a certo “processo experimental” , que é
Tandon constrói as seguintes características da PP: assim montado: formulação da problemática provisória (conceitos,
objetivos, hipóteses); escolha das variáveis a observar e dos instru
a) É um processo de “conhecer e agir. A população engajada
mentos de pesquisa; observação das variáveis; análise e síntese dos
na PP simultaneamente aumenta seu entendimento e conhecimento
dados; elaboração (afinação, transformação) de uma nova proble
de uma situação particular, bem como parte para uma ação de
mudança em seu benefício” . mática. A PP utiliza-se destes passos e é construída em três fases:
b) E iniciada na realidade concreta que os marginalizados 1) lí1fase: “exploração”geral da comunidade
pretendem mudar. Gira em torno de um problema existente. Caso a) fixação dos objetivos
haja consciência suficiente, a própria população inicia o processo e b) seleção de variáveis e dos instrumentos de pesquisa
pode até mesmo dispensar o perito externo. Mas, ainda começando c) realização da pesquisa
pelo perito, o envolvimento da população é essencial. d) síntese;
c) Variam a extensão e a natureza da participação. No caso 2) 2 “fase: identificação das necessidades básicas24
ideal, a população participa do processo inteiro: proposta de pes a) elaboração da problemática da pesquisa
quisa, coleta de dados, análise, planejamento, e intervenção na b) nova seleção das variáveis e dos instrumentos
realidade. c) realização
d) A população deve ter o controle do processo. d) análise e síntese;
e) Tenta-se eliminar ou pelo menos reduzir as limitações da 3) 3? fase: elaboração de uma estratégia educativa
pesquisa tradicional. Pode empregar métodos tradicionais na coleta a) elaboração de estratégias hipotéticas
de dados, mas enfatiza posturas qualitativas e hermenêuticas, e a b) elaboração de dispositivo de comprovação
comunicação interpessoal. c) discussão com a população
f) É um processo coletivo. d) comunidade assume estratégia
g) Ê uma experiência educativa.21 e) execução.
Neste processo de três fases há também momentos de retro
O elemento educativo é muito acentuado, talvez porque o
movimento da PP tenha sido profundamente marcado por educa alimentação: ao terminar a primeira fase; ao terminar a segunda
dores, principalmente no campo da educação de adultos.22 MacCall fase; e na altura da discussão da 3? fase com a população. Com este
processo consegue-se: identificar as necessidades; formular estraté
une a trilogia: pesquisa, educação/treinamento e organização, o que
gia de ataque; levantar os recursos disponíveis; partir para solu
ções.25 Le Boterf é um dos autores que mais caracterizam o aspecto de
(20) B. Hall, "La creación de conocimiento: Ia ruptura dei monopolio,
(23) Brian, MacCall, "Popular Participation, Research and New Allian-
métodos de investigación, participación y desarrollo", in Crítica y Política en
ces". Convergence, 14 (3):61 -78, 1981.
Ciências Sociales, Simpósio Mundial de Cartagena, v. I, Bogotá, Ed. Punta de
Lanza, 1978; idem, "Participatory Research: expanding the base of analysis", (24) O autor fala de necessidades educativas básicas (NEB), porque se
refere a um projeto educacional; mas poderia ser aplicado a qualquer projeto
in International Development Review, 4\23-26, 1977. sobre necessidades básicas.
(21) Rajesh Tandon, op. cit., pp. 24-26.
(25) Guy Le Boterf, "Descripción dei método de "encuesta partici
(22) Um dos veículos mais importantes de divulgação tem sido a revista pativa' utilizado. Una investigación sobre necesidades educativas básicas de Ia
Convergence, que traz o subtítulo: "An International Journal of Adult Edu-
populación de seis comunidades rurales en una área centroamericana". Project
cation".
IN MU D/UNESCO, Brasília, 1978, p. 12-18.
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Retomando um esquema de Moser, organiza três passos da
pesquisa da PP. Une pesquisa, com formação e ação, em cima de PP: coleta de informação no contexto da ação; discussão da infor
alguns postulados: potencialidade do grupo; para se chegar à ação é mação entre atores e entre atores e pesquisadores, para clarificar
preciso a participação do interessado; é necessária a confrontação problemas e intenções, e para trabalhar diretivas da ação social;
crítica com os resultados (retroalimentação); o técnico é educador; ação social. Estes três passos são vistos, ademais, dentro da circu
é pesquisa e é ação; a população tem expectativas, recursos, reações. laridade sistêmica da retroalimentação, já que o terceiro passo pode
Num encontro em Toronto, em 1977, foi formulada uma engatar no primeiro.
definição de PP, que Grossi assim expressa: A postura mais interessante talvez seja a apreensão de que a
PP une os enfoques objetivista e hermenêutico. De certa forma, o
“E um processo de pesquisa no qual a comunidade participa na aná
paradigma científico tradicional preocupa-se mais em “entender
lise da sua própria realidade, com vistas a promover uma transfor
mação social em benefício dos participantes, que são oprimidos. Por como somos produzidos pela sociedade, mas tem pouco ou nada a
tanto, é uma atividade de pesquisa, educacional e orientada para a dizer como produzimos ou poderiamos produzir a sociedade” . 28
ação. Em certa medida, a tentativa da PP foi vista como uma abor Entende que o materialismo histórico perfaz esta combinação:
dagem que poderia resolver a tensão contínua entre o processo de
geração do conhecimento e o uso deste conhecimento, entre o mundo “O enfoque objetivista indaga pelas características objetivas inerentes
‘acadêmico’ e o ‘irreal’, entre intelectuais e trabalhadores, entre aos diferentes modos de produção, e o enfoque hermenêutico ilumina
ciência e vida” . 26 as implicações destas características objetivas para a formação da
consciência de classe e para a auto-realização humana’’.29
Embora com possíveis exageros, a PP constitui-se num ato de
fé na potencialidade da comunidade. Por mais pobres que possam Por vezes parece que Himmelstrand confunde o enfoque obje
ser as comunidades e ainda que nunca tenham todos os recursos tivista com a pesquisa tradicional e, por outra, esquece que para o
necessários, são dotadas de criatividade, que as torna capazes de materialismo histórico clássico, por mais que se unam os enfoques,
visualizar o desenvolvimento que lhes convém.27 Busca-se, ademais, prevalece o primeiro, já que a determinação econômica é mais fun
fundamentar a idéia de que o “conhecimento não nasce nos cérebros damental. Mas é pertinente a idéia em si: a PP combina o trata
de uma parte da sociedade, mas é socialmente produzido através de mento de condições objetivas dadas com nossa capacidade histórica
um processo compartido por todas as partes. Não há diferença de intervir nelas, recolocando a importância da participação política
qualitativa entre conhecimento teórico e prático; pertencem a dife humana na história.
rentes finalidades do mesmo contínuo. Da ótica do educador, acentua-se persistentemente a idéia de
Himmelstrand, ao lado de críticas relevantes, conota a PP “aprendizagem coletiva” .
“como uma combinação inseparável de teoria, pesquisa e prática, “Em seus traços gerais, tal estratégia se desenvolve com base na reali
caracterizadas pelo diálogo entre atores e pesquisadores, iluminando dade, vivências, experiências e interesses dos membros de um grupo,
os atores, bem como os pesquisadores acerca do significado da ação se sustenta sobre uma horizontalidade e diálogo entre os que parti
pretendida, e resultando eventualmente numa autonomia aumentada cipam do ato de aprender., se operacionaliza através de métodos de
dos atores em relação aos pesquisadores e à emancipação de crenças trabalho grupai e aprendizagem coletiva e se orienta para o forta-
questionáveis e restritivas na inevitabilidade da ordem dada das
coisas” .
(28) Ibidem, p. 60; Heinz Moser, "La Investigación-Acción como nuevo
paradigma en Ias ciências sociales", in: Crítica y Política en Ciências Sociales,
Simposio Mundial de Cartagena, vol. I. Bogotá, Ed. Punta de Lanza, 1978,
(26) P. V. Grossi, "Socio-political implications of participatory re- p. 117 et passim.
search” . Convergence, 14 {3):43, 1981. (29) U. Himmelstrand, "Investigación-Acción y Ciência Social aplicada:
(27) Nat J. Coletta, "Participatory research or participatory putdown? valor cientifico, benefícios practicos y abusos". In: Crítica y Política en Ciências
Reflections on the research phase of an Indonesian experiment in non-formal Sociales, op. cit., p. 174-175.
education": Convergence, 9 (3):43 etpassim.
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lecimento organizacional dos grupos menos privilegiados. Portanto,
quisa-ação” , 35 ou da insistência sobre o aspecto do envolvimento
se vincula estreitamente com as ações que têm por objetivo estabele
cer linhas de trabalho e organização que redundem em benefício
político.
coletivo.” 30 A tônica básica, todavia, do ponto de vista metodológico é a
união entre conhecimento e ação.
Emergem, assim, três passos fundamentais: o diagnóstico co “Conhecimento e ação são dois aspectos inseparáveis da atividade
munitário, “primeira fase de um trabalho de educação participa humana. O conhecimento não é mera contemplação, nem a prática
tiva” ; “a retroalimentação no processo de PP, ou seja, a análise dos mera atividade; separada da prática, a teoria se reduz a meros
dados com participação comunitária” , e a organização de grupos enunciados verbais; separada da teoria, a prática não é mais que um
instrumentais que assumem a ação.31 É mister reconhecer que as ativismo inconducente. Não há, pois, autêntico conhecimento e au
comunidades podem assumir responsabilidade e desejam isto, ao têntica ação, se não se expressam numa permanente inter-relação
mesmo tempo que se constata que a ação exclusiva do governo não unitária.” 36
resolve os problemas.32 De modo geral o diagnóstico inicial prevê A autodefinição da PP insiste em certos traços que são, ao
três coisas importantes: o levantamento dos principais problemas longo desta sumária revisão, característicos. É patente a filiação
que a comunidade enfrenta; a especificação dos recursos humanos e educativa, a idéia de superação dos procedimentos tradicionais de
materiais disponíveis e o provimento de outros possíveis; a detecção conhecimento, a opção crítica e política, a união entre teoria e
de componentes organizacionais formais e não formais já existentes prática, o envolvimento comunitário. Em certos autores, a preocu
para a solução de problemas.33 pação com o aspecto da pesquisa mantém-se vivo e, de modo geral
Também na ótica do educador, acentua-se com força o obje não chega a ser abandonado. Porquanto sempre resta pelo menos
tivo da conscientização, ao qual se liga o nome de Paulo Freire. interesse em diagnósticos, avaliações, planejamento, levantamento
Inclui passos tais como: “crítica da realidade social vigente; mobi de dados preexistentes etc., mesmo no maior ativismo. Mas é pa
lização coletiva para a transformação social; revisão crítica da ação tente também que a teoria é freqüentemente sacrificada em favor da
implementada, replanejamento da ação futura; reavaliação do diag prática, tratando-se já de questões mais propriamente educativas e
nóstico prévio da realidade social” .34 participativas do que de pesquisa.
Também é utilizada a expressão “observação” ou “pesquisa Se aceitarmos o relacionamento dialético entre teoria e prá
militante” , seja no sentido de distinguir do conceito clássico de tica, não seria possível negar que a prática é componente essencial
“observação participante” , típico da antropologia, mas que signi também do processo de conhecimento e de intervenção na realidade.
fica somente a convivência de perto com o objeto de pesquisa, Ao mesmo tempo, a metodologia que cabe à PP é certamente a
seja sobretudo no sentido de “instrumento e estratégia da pes- dialética, porque é a que assume o contexto histórico, privilegia a
apreensão e o tratamento dos conflitos sociais, propugna a transição
histórica e acredita no fator humano como capaz de interferir em
(30) Marcela Gajardo e Jorge Wertheim, Educação Participativa: alter condições objetivas dadas. É essencial à PP o reencontro com a
nativas, (a sair pela Editora Paz e Terra).
(31) ibidem, p. 20 ef passim. capacidade criativa humana, sobretudo dos humildes, dos opri
(32) Grace Hudson, "Participatory Research by Indian Women in Nor midos, dos carentes, que, à primeira vista, tendemos a estigmatizar
thern Ontario Remote Communities” , in: Fórum o f Participatory Research, como impotentes.
Iugoslávia, 1980, p. 25: "The key to changing this unsatisfactory situation is for
government to recognize that Indian people and communities have the capa-
city and the desire to provide for their own needs, and to make available the
necessary responsability and resources so that Indian people are free to deve- (35) M. Gajardo, "Evolución, situación actual y perspectivas de Ias
lop and provide the Services that thei themselves choose". estratégias de investigación participativa en América Latina, Santiago, FLAC-
(33) M. Gajardo e Jorge Wertheim, op. cit., p. 20. SO, mimeo., p. 21; "Observação militante", artigo da revista publicada pelo
(34) F. F. Grossi, "Popular Education: concept and implications", in: Institut d'Action Culturelle, Suíça, n? 5,1978.
International Council for Adult Education, Trinidad, maio 1981, p. 71. (36) Luis Rigal, "Sobre el Sentido y Uso de Ia Investigación-Acción", in
Critica y Política en Ciências Sociales, op. cit., p. 3.
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Do que foi visto, pode-se igualmente concluir que a funda
mentação dialética da PP é incipiente. Isto já denota que é impul
sionada por pesquisadores marcados ou pela saturação teórica e
empírica de estilo tradicional, ou pela desvalorização da atividade
acadêmica, ou mesmo pela ilusão do ativismo. Cremos que vai nisto
freqüentemente o equívoco de querer superar um erro com o erro Causa popular,
oposto. A crítica, muitas vezes brilhante, contra a ciência clássica
não é seguida da necessária fundamentação do novo paradigma.
Ê disto que resulta a constante insinuação de que a PP já seria o
ciência popular
único gênero válido de pesquisa.
uma metodologia do conhecimento
É preciso entender que a PE, por maiores limitações que científico através da ação*
tenha, tem elaborado uma fundamentação extensiva e frutificou Victor D . Bonilla, Gonzalo Castillo,
uma plêiade de técnicas dignas de nota. Assim, não resta dúvida de Orlando Fals Borda e Augusto L ib rero s**
que o discurso sobre quantificação está mais adiantado que o dis
curso sobre propostas qualitativas. Nestas prolifera ainda a “con
versa fiada” , por vezes como refúgio de pesquisadores que não Prólogo
teriam condições de enfrentar o mínimo rigor lógico e empírico.
Assim, embora devendo-se reconhecer que a PP seja um gê O presente texto é um esforço de sistematizar algumas expe
nero válido de pesquisa, criativo, potencial e promissor, está cercada riências acumuladas pelos autores durante mais de um ano de tra
de banalizações excessivas, que o simples entusiasmo não pode balhos de campo em várias regiões colombianas, em contato com a
superar. realidade das populações locais, seus problemas, suas preocupações
e aspirações. Além disso, trata-se de um trabalho coletivo que repre
senta a culminação de um intenso processo de crítica e autocrítica
por parte de cientistas sociais de diversas disciplinas, de tal forma
que a presente obra pode ser considerada um verdadeiro esforço
interdisciplinar. A redação é igualmente fruto de um trabalho em
equipe.
Como resultado, acreditamos que há bases para propor um
método especialmente adequado — que aqui denominamos “es-
tudo-ação” e que leva à “investigação militante” — que permite aos
cientistas sociais responderem criticamente às exigências históricas
sem detrimento da ciência, colocando-a a serviço das camadas popu
lares.
(*) Causa popular, ciência popular: una metodologia dei conocimiento
científico a través de Ia acción, Bogotá, Publicaciones de Ia Rosca, 1972.
Tradução de Julio Assis Simões.
(**) Os autores são cientistas sociais colombianos intensamente iden
tificados com movimentos e lutas populares em seu país. Orlando Fals Borda é
reconhecido como o iniciador da "linha sociológica" da pesquisa participante
na América Latina.
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Ninguém negará a necessidade e a urgência desta atitude crí uma ideologia que pretende mostrar as sociedades capitalistas domi
tica diante da ciência social e da sociedade, com todas as conse- nantes — principalmente os Estados Unidos e seus procuradores ou
qüências prática^ que ela traz. Por isso, esperamos receber dos estandartes — como metas de desenvolvimento ou modelos de
leitores observações concretas sobre o método de estudo-ação aqui progresso e democracia para os países do chamado Terceiro Mun
proposto, que ajudem não apenas a conhecer melhor a realidade do.
mas também a transformá-la. Em conseqüência, o mundo acadêmico foi reestruturado de
acordo com as novas necessidades da administração e manutenção
Ciências sociais e neocolonialismo do império. As universidades, por exemplo, experimentaram um
rápido processo de modernização, graças ao respaldo financeiro e
A vinculação entre a ciência social e o compromisso político político das grandes corporações e das agências governamentais.
volta a ser colocada hoje com urgência. Este problema antigo ad Muitas universidades que, durante os anos da Segunda Guerra
quire nova vigência especialmente por circunstâncias históricas que Mundial tinham-se ligado ao Departamento de Defesa para a pes
contribuíram para modificar o panorama político internacional, quisa bélica, ficaram então encarregadas de obter e interpretar
sobretudo após o término da Segunda Guerra Mundial. De um lado, informações sobre sociedades pouco conhecidas, especialmente
a onda de movimentos antiimperialistas e de libertação nacional, aquelas onde os interesses do império estavam ameaçados pela in
que abalaram o poder colonial em vastas regiões da Ãsia, Ãfrica e, surreição popular. Isto explica por que, nas últimas décadas, se
mais recentemente, da América Latina: a tentativa de revolução incrementaram notavelmente os estudos de história, sociologia, an
socialista na Bolívia em 1952, as medidas antiimperialistas do go tropologia e economia bem como os departamentos de estudos la
verno de Jacobo Arbenz na Guatemala em 1954, a revolução cubana tino-americanos, africanos e asiáticos.2
em 1959, o movimento constitucionalista na República Dominicana
em 1965, o triunfo da Unidade Popular no Chile em 1970, movi
mentos guerrilheiros em vários países como Venezuela, Colômbia,
nizações guerrilheiras. Em particular, o Pentágono procurou identificar os
Peru, Bolívia, República Dominicana e Guatemala. De outro lado, fatores que conduzem os camponeses em sociedades "subdesenvolvidas" a
a ascensão dos Estados Unidos à posição de vanguarda do sistema prestarem lealdade a uma organização política clandestina, pondo em risco
capitalista-imperialista e dos interesses das grandes corporações suas próprias vidas. A Organização de Investigações para Operações Especiais
espalhadas pelo mundo, buscando por todos os meios impor sua (SORO) e o Centro de Investigação de Sistemas Sociais (CRESS) promoveram
estudos sobre as organizações revolucionárias no Vietnã do Sul, tais como Lao
dominação hegemônica nos campos econômico, financeiro, comer Dong (Partido Revolucionário do Povo), a Frente Nacional de Libertação do
cial, tecnológico, político e militar, como também no cultural e Vietnã do Sul e suas organizações de massa associadas. Também a Corpo
no educativo. Estas pretensões expansionistas do império norte- ração RAND realizou vários estudos sobre "a moral e a motivação do viet-
cong" e mantém contratos de investigação social financiados pelo Pentágono.
americano entraram em conflito aberto com os movimentos de liber Desde 1966, os grupos minoritários do Sudeste Asiático foram estudados
tação nacional e também com os países socialistas, principalmente a conjuntamente por SORO-CRESS-RAND e por várias universidades norte-
URSS e, a partir de 1948, a República Popular da China. americanas. A CRESS efetuou estudos semelhantes também na África, in
cluindo a pesquisa de minorias religiosas, étnicas e sociais. O objetivo deste
Neste cenário de conflitos de classe, de luta pelo controle do estudo foi a mobilização e a utilização de grupos minoritários por parte dos
poder político tanto no plano nacional como internacional, as ciên programas norte-americanos de contra-revolução.
(2) A universidade do Estado de Michigan orgulha-se de ter centros de
cias em geral, e as ciências sociais em particular, não poderíam ficar estudo de três continentes: um de Estudos Asiáticos, outro de Estudos Latino-
à margem da contenda. Elas se converteram efetivamente em uma Americanos e outro de Estudos Africanos. Outros programas paralelos envol
arma do imperialismo não apenas através de investigações sociais de vem vastas áreas acadêmicas tais como as comunicações internacionais, edu
cação, desenvolvimento econômico, agricultura e nutrição, administração
caráter contra-revolucionário,1 como também mediante a difusão de internacional (baseado nas experiências no Brasil e em outras partes do
mundo) e administração e política de desenvolvimento dentro de faculdades de
ciências sociais, respaldadas financeiramente pela Fundação Ford, o Departa
(1) Com a guerra do Vietnã, os Estados Unidos se interessaram cada mento de Estado dos EUA e a AID. Todos esses estudos envolvem a antro
vez mais em determinar as características sociológicas e psicológicas das orga- pologia, a economia, a sociologia, além de estudos lingüísticos.
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De 1945 a 1960, as investigações em todos os campos da ciên planos governamentais de desenvolvimento nacionais e interna
cia refletiram a preocupação com a defesa nuclear contra a URSS cionais. Mas, ao contrário do esperado pelas agências financiadoras,
com vistas a um eventual confronto armado no contexto da chamada nesses mesmos centros se formaram muitas vezes professores e
“guerra fria” . De 1950 em diante, a atenção do imperialismo diri alunos que, ao tomarem consciência do papel das ciências sociais, se
giu-se para o Terceiro Mundo, e as universidades norte-americanas puseram a serviço dos verdadeiros interesses nacionais e populares.
se adequaram mais uma vez à tarefa de ministrar o conhecimento e Precisamente no auge dos estudos e pesquisas sociais, a ciência
o pessoal necessários aos fins perseguidos. A situação latino-ameri marxista põe um pé na universidade latino-americana, oferecendo
cana foi o principal foco de atenção do imperialismo durante o um parâmetro teórico e metodológico alternativo para o estudo e a
governo de J. F. Kennedy, quando as universidades foram convo transformação da sociedade. Esse desenvolvimento inesperado das
cadas a canalizar e controlar a direção da mudança induzida de escolas de ciências sociais levou as fundações estrangeiras e os go
forma a não tocar nos interesses das classes dominantes.3 vernos nacionais a modificar seu apoio. No Brasil, com o golpe
Para tratar de ocultar esse compromisso aberto com o sistema militar de 1964, a sociologia torna-se proibida e muitos cientistas
imperialista, promoveu-se o desenvolvimento de uma ciência social sociais são expulsos da universidade, encarcerados ou exilados. Na
livre de valores. Seus mais notórios expoentes (como Knorr, Bell, Argentina, com o golpe de Estado militar de Onganía em 1966, as
Lipset, Rostow, Silvert e outros) pretendiam transcender o nível das ciências sociais são duramente reprimidas. Na Colômbia, se instau
ideologias que se achariam em plena confrontação, afirmando que raram os famosos “conselhos de guerra” contra estudantes acusados
estas haviam morrido e que, por conseguinte, era possível uma de “crime de subversão” . Essa repressão foi dirigida particular
explicação “ neutra” e “objetiva” de qualquer sistema social. Não mente às escolas de ciências sociais, onde os estudantes, sob a in
obstante, os cientistas sociais desta corrente acreditam na sociedade fluência de cientistas como Camilo Torres, conseguiram deter em
capitalista e apóiam-se no pressuposto de que o desenvolvimento parte o controle que as fundações norte-americanas haviam exercido
social, econômico e político dos países dominados segue um roteiro sobre aquelas escolas, especialmente a partir de 1960.
previamente determinado pelos Estados Unidos. Pode-se dizer que as ciências sociais, apesar do controle que
Ao mesmo tempo, no Terceiro Mundo, floresceram como sobre elas quiseram exercer de forma absoluta as classes domi
nunca as faculdades de ciências sociais, com o respaldo de funda nantes, continuam abertas ao serviço de propósitos populares. Isso
ções norte-americanas e de programas internacionais de desenvolvi se evidenciou claramente em diferentes pronunciamentos como os
mento: edifícios, bibliotecas, becas, pesquisas e professores-visi- tirados do congresso cultural de Havana (4-12 de janeiro de 1968),
tantes foram financiados generosamente. do congresso latino-americano de economistas reunido no México
Desses centros acadêmicos saíram os sociólogos, os econo em junho de 1965, do congresso cultural de Cabimas, Venezuela,
mistas e os cientistas políticos que depois de incorporaram aos em dezembro de 1970, e do simpósio de antropólogos de Barbados,
em janeiro de 1970.
Hoje, mais do que nunca, os cientistas sociais se vêem na
(3) O exemplo mais conhecido na América Latina é o chamado Projeto contingência de tomar partido, de colocarem com urgência a que
Camelot e seu afilhado, o famoso "Plan Simpático", referente à Colômbia. interesses sociais e políticos servem. Como nos tempos de Hitler, os
Tratava-se basicamente de um projeto para medir e prever as causas das
revoluções e insurreições nas áreas subdesenvolvidas do mundo. Procurava-se cientistas que guardam silêncio ou pretendem ser neutros estão, na
também encontrar os meios para eliminar essas causas ou para enfrentar revo prática, tão comprometidos com as atrocidades do sistema vigente
luções e insurreições. O Camelot era patrocinado pelo exército norte-ameri como aqueles que o fazem conscientemente.
cano mediante um contrato de quatro a seis milhões de dólares com o SORO,
uma agência da American University de Washington, D. C. As investigações Na Colômbia, diversos grupos de cientistas sociais e intelec
do SORO incluem: levantamentos analíticos de áreas estrangeiras; preservação tuais têm colocado estes dilemas sobre a relação entre política e
de informações atualizadas sobre complexos militares, políticos e sociais da ciência e, em alguns casos, foram postos à prova princípios gerais
quelas áreas; preservação de uma lista de informação rápida para o exército
com respeito a qualquer situação considerada importante do ponto de vista pertinentes. Desejou-se verificar as possibilidades reais de uma ciên
militar. cia social comprometida com as classes populares e suas lutas, o que
136 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 137
levou naturalmente a um reexame da teoria social e dos métodos de seriam objeto de simples curiosidade erudita — o que implica uma
investigação que têm vigorado no país. Os autores do presente texto atitude ingênua da parte do cientista social —; nem mais seriam
chegaram, por diferentes caminhos, a um encontro que, de uma trombetas apocalípticas para despertar as classes dirigentes e in
forma ou de outra, expressa a busca por dar a seu compromisso duzi-las a serem mais responsáveis — uma atitude moralista —;
social maior eficácia no contexto da mudança, ou protocoliza a nem permitiríam sua utilização para que as classes dirigentes se
insatisfação que sentem ante o desenvolvimento político atual, ou perpetuassem no poder, por meio de mudanças graduais e revira
ainda trata de descobrir formas de renovação acadêmica e científica voltas calculadas “cientificamente” — uma atitude conscientemente
dentro do mesmo contexto. comprometida com o sistema. Agora, essas ciências seriam postas a
É evidente que esforços como este têm implicações teóricas e serviço da causa popular, como um esforço de conter a dominação
práticas que levam a conseqüências políticas. Fundamental em todo imperialista e a exploração oligárquica tradicional, por um lado, e,
processo é determinar um método adequado que responda às neces por outro, como um meio de afiançar e dinamizar as organizações
sidades colocadas e dele derivar as técnicas de trabalho de campo autenticamente populares, equipando-as ainda melhor para atin
eficazes para os fins da mudança que se persegue e que os tempos girem seus objetivos.
demandam. O presente inventário pode servir a este objetivo. Nesse momento de reorientação intelectual e política as téc
nicas conhecidas de investigação que estariam mais próximas do que
se pretendia realizar eram as que, em antropologia e sociologia, são
Em busca de um método chamadas de “observação participante” e “observação por experi
mentação” (participação-intervenção), as quais implicam, sem dú
A primeira realização é aceitar a origem intelectual pequeno- vida, o envolvimento pessoal do investigador nas situações reais e a
burguesa de empreendimentos dessa espécie. Mas, nos casos que sua interferência nos processos sociais locais. Mas logo se viu que
nos interessam, surge uma característica que não ocorre em outros: estas técnicas tinham efetivamente pouco a dizer em face das exi
a de se haver adquirido a consciência maior de que não basta gências de vincular o pensamento à ação fundamental necessária.
conhecer a realidade, mas é preciso transformá-la, o que se torna Depois, por volta de 1969, apareceu o conceito de “inserção”
imperativo histórico em situações como a da Colômbia. Para tanto, que fez avançar o nível de compreensão teórica do cientista social (e
é necessário adotar mente aberta para o que se há de aprender com natural) sobre o novo compromisso político vislumbrado. Serviu
as novas experiências e trabalhar com técnicas às vezes modestas então como um desafio para implementar o compromisso e impul
mas igualmente eficazes nos procedimentos científicos. sionar os intelectuais à linha de ação com um quadro metodológico
Esta atitude básica de busca e descobrimento simultâneos era já um pouco mais claro. A maioria dos cientistas sociais, todavia,
o que, nesse momento e já antes, se denominava “compromisso” . captados e incorporados pela ofensiva imperialista da década atra
Este conceito — amplamente debatido em muitos círculos literários vés de seus inumeráveis projetos e planos “de desenvolvimento” ,
e científicos4 — serviu como impulso para tentarmos nos libertar dos centros de investigação, agências de planejamento, missões técnicas,
moldes “científicos” e dos parâmetros teóricos que se impunham e de seus burocratas reformistas ou intimidados pela repressão,
sobre nós como camisas-de-força. O compromisso também nessa encontraram-se psíquica e praticamente impossibilitados de aceitar
época levava a recolocar em pauta o problema do método de inves o desafio. Para aqueles que o aceitaram — em vários países —, o
tigação e a orientação do conhecimento científico. Estes não mais conceito de inserção constituiu o que às vezes se define como um
“salto adiante” , ou o impulso definidor que abre novas perspectivas.
Inicialmente, a inserção foi concebida como um passo que
(4) Ver inventário em Fals Borda, Ciência propia y colonialismo intelec implica não apenas a combinação das duas técnicas clássicas de
tual, México, NuestroTiempo, 2? ed., 1971. A polêmica estendeu-se da socio
logia a quase todas as ciências sociais, especialmente a antropologia e a ciência observação já mencionadas, e sim “ir mais além, para obter uma
política.- Desenvolve-se hoje em muitos países ocidentais, e com particular visão interior completa das situações e processos estudados com
intensidade nos Estados Unidos, Alemanha e França. vistas à ação presente e futura. Isto implica que o cientista se
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 139
envolva como agente do processo que estuda, porque tomou uma Colômbia. Existem pelo menos duas técnicas de inserção que podem
posição a favor de determinadas alternativas, aprendendo assim não ser assimiladas pelo sistema vigente e postas a seu serviço, contradi
só a partir da observação que faz como também do próprio trabalho zendo assim a tese do compromisso conseqüente que leva à ação
que executa junto às pessoas com quem se identifica” .5 válida e ao estudo pertinente e necessário da atual conjuntura. Essas
Em outras palavras, a inserção era concebida como uma téc técnicas desfocadas são: a inserção para manipular e a inserção para
nica de observação e análise de processos e fatores que inclui, em seu agitar, tal como são definidas a seguir.
esboço, a militância voltada a alcançar determinadas metas sociais, Inserção para manipular. Nas mãos de procuradores do sis
políticas e econômicas. Hoje ela continua a ser aplicada por investi tema vigente, ou praticada por aqueles que tentam modificá-lo sem
gadores a fim de realizar, com maior ou menor eficácia e entendi o compromisso conseqüente com os verdadeiros interesses da classe
mento, mudanças necessárias na sociedade. Ao mesmo tempo, a popular, a técnica da inserção pode produzir unicamente deforma
inserção, como técnica, incorpora o investigador aos grupos popu ções e resultados negativos. Alguns dos resultados que pudemos
lares, não mais de acordo com a antiga relação exploradora de observar diretamente são: 1) a deformação profissional, pela ma
“sujeito e objeto” , mas valorizando a parcela de contribuição dos neira como são empregados, remunerados e manipulados os pesqui
grupos quanto à informação e interpretação, bem como seu direito sadores, geralmente dentro de programas oficiais ou semi-oficiais;
ao uso dos dados e de outros elementos adquiridos na investigação. 2) o estabelecimento de novas formas de dependência e neocolonia-
Como se pode observar, esta concepção de inserção carrega lismo intelectual, quando se realiza a inserção com o propósito de
consigo dois determinantes: 1) constituem uma experiência de aná “impor uma linha” ou ensinar uma “ doutrina correta” ; 3) o refor-
lise, síntese e sistematização realizada por pessoas envolvidas nos mismo ou desenvolvimentismo pela busca consciente ou incons
processos como quadros comprometidos em vários níveis de estudo e ciente de fórmulas de continuidade do sistema, ou para prevenir ou
ação; 2) incluem diversos modos de aplicação local segundo várias neutralizar a insurreição popular. Nos três casos, falta o respeito
alternativas historicamente determinadas. Em essência, estas técni pela autenticidade do conhecimento e pelos próprios grupos em cujo
cas — como outras que possam ser desenvolvidas mais adiante — benefício se diz atuar. O conhecimento adquirido dessa maneira
constituem assim um método especial, o método de estudo-ação, revela-se falso e deformado por ser unicamente um reflexo dos pre
cujo objetivo é aumentar a eficácia da prática política e prover conceitos próprios da sociedade vigente, ou de seus pesquisadores, e
fundamentos para enriquecer as ciências sociais que cooperam no não da realidade mesma que se deseja conhecer. Tal “ conheci
processo. mento” conduz apenas à evolução da ordem injusta, ao paliativo
Houve alguma convergência na aplicação destes princípios em calculado para subtrair forças à pressão popular e, ocasionalmente,
vários países (conforme foi parcialmente coletado), mas falta muito à modificação parcial de instituições que deveríam sofrer uma mu
ainda para se chegar à sistematização das técnicas de inserção e ao dança radical, práticas que não erradicam as causas da injustiça,
aperfeiçoamento do método de estudo-ação. Não obstante, todos não corrigem seus efeitos nem enriquecem a ciência social, criando
aqueles que o experimentaram concordam conosco quanto a sua antes confusões e frustrações ao nível popular.
importância teórico-prática. Essa técnica é parecida com a que os antropólogos clássicos
chamaram “intervenção” (participaçâo-intervenção) e, com efeito,
pode ser o que de mais próximo à inserção bem feita podería ofere
Inserção desfocada cer a antropologia tradicional. Na Colômbia foi aplicada em regiões
rurais por assistentes sociais agrícolas e indigenistas; nos bairros das
Segundo a modalidade de aplicação, a inserção pode produzir grandes cidades, por comunidades religiosas e alguns grupos de
determinados resultados, como se deduz dos casos observados na esquerda desorientados. Aqui se colocam também as atividades da
“ação comunal” , os projetos de desenvolvimento da comunidade, a
“ ação cívico-militar” inspirada por ideólogos do Pentágono e ado
(5) Ibidem, p. 58. tada pelas Forças Armadas do país, os trabalhos do Corpo de Paz
140 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 141
patrocinado pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos dade, interferem na ação produzindo desfocagens. No caso colom
Estados Unidos, e as atividades missionárias de entidades católicas e biano, alguns profissionais têm sentido a necessidade de inserção no
protestantes (tais como o Instituto Lingüístico de Verão, Plano do processo histórico em vários níveis, especialmente local ou regional,
Noroeste de Evangelização e Desenvolvimento da Igreja Presbite como forma de romper com modelos inadequados de explicação e
riana, Plano de Desenvolvimento do Catatumbo da Fundação Me ação. Para tanto, alguns de nós abandonaram os recintos univer
nino de Deus, Ação Cultural Popular e suas Escolas Radiofônicas sitários (reconhecendo serem, em geral, fábricas de quadros para o
etc.) entre favelados, camponeses e indígenas. imperialismo capitalista) ou pusemos em quarentena os marcos de
Inserção para agitar. Outra técnica de inserção é a chamada referência da ciência ortodoxa e parcelada transmitida pela univer
“ ativação” , cuja aplicação até o momento teve efeitos duvidosos na sidade tradicional (a que se inspira em Scheler e nos foi transpor
articulação real das massas ao processo de sua própria libertação, tada mais tarde, especializada e departamentalizada segundo inte
embora tenha sido esta sua intenção. A ativação se baseia na hipó resses ideológicos e políticos encobertos pelo manto acadêmico).
tese de que quanto mais estratégica seja a mudança proposta em Saímos então a campo para experimentar a interdisciplinaridade,
uma sociedade, maior será o conflito gerado. Daí que o ativista reformular conceitos e trabalhar com as populações à base da socie
investigue contradições específicas em uma comunidade e nela se dade, descartando as três atitudes anteriormente assinaladas como
insira esperando acirrar conflitos e acentuar contradições, adotando características do intelectual alienado: a ingenuidade, o moralismo e
o papel de mecânico das forças sociais, as quais acredita com o compromisso consciente com o sistema. O conceito-guia foi o de
preender, sem no entanto se certificar de que as próprias massas colocar o conhecimento a serviço dos interesses populares, como se
estejam em condições de produzir as ações necessárias no momento detalhará mais adiante.
oportuno. Naturalmente, como modalidade teórico-prática de trabalho,
Até agora, os acontecimentos indicam (como nos casos pro esta forma de focalizar o compromisso e experimentar a inserção
movidos por alguns grupos políticos na Colômbia) que o ativista, na não constitui nenhuma novidade, já que tem sido recomendada e
verdade, consegue fomentar alguns dos conflitos postulados teori aplicada por diversos marxistas, notadamente por Lenin, Mao e
camente, mas não consegue projetá-los sobre a estrutura de classes Giap — em seus próprios termos — ao se referirem ao “observador
existente devido às limitações dos marcos de referência empregados militante” .6 O observador militante ou quadro adestrado nas téc
(muito confuso, às vezes), nem consegue fazer com que as popu nicas de investigação social e comprometido com a causa popular
lações alcancem o nível adequado de consciência política para asse traduz em realidade o compromisso, reconhecendo todas as suas
gurar a continuidade autônoma do processo iniciado. Muitas vezes o conseqüências. O resultado é uma técnica de inserção muito mais
quadro acaba expulso da comunidade sem que esta se tivesse orga decidida e eficaz do que as mencionadas anteriormente. Esta técnica
nizado realmente para a luta, alertando o inimigo e provocando sua pode ser denominada investigação militante.
reação — da qual a comunidade será a única vítima — e fazendo
com que as populações retrocedam em nível político. Por isso, esse
tipo de inserção nas circunstâncias descritas tem-se revelado contra
producente.
(6) Em Mao Tsé-tung, esta técnica — que contribui para a teoria do
conhecimento — se expressa em seu princípio "das massas às massas" e foi
especialmente aplicada na etapa de Hunan: ver suas Obras escogidas, t. III,
A investigação militante Pequim, Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1968, p. 119. De Lenin podem ser
consultadas diversas obras, especialmente Que fazer? (Trad. bras., São Paulo,
HUCITEC, 1978) e o enfoque dado aos problemas de articulação do movimento
A inserção como técnica de aproximação da realidade se ba operário na Rússia. Outro autor notável, antigo professor de história, é Vo
seia em uma combinação de atitudes e de conceitos teórico-práticos Nguyen Giap, o atual estrategista norte-vietnamita, de quem se pode ler pes
quisa sobre camponeses e outros ensaios, onde se combina a observação com
que põem em xeque muitos dos mitos entre os quais se formaram os a militância, ambos com a seriedade necessária às tarefas históricas a que se
intelectuais e que, precisamente por não corresponderem à reali propunha seu povo.
142 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 143
Pressupostos teóricos Coordenadas metodológicas
O cientista que penetra na realidade como investigador mili 1) Modo de aproximação
tante tem uma forma de conceber a si mesmo e à sua própria arte,
isto é, baseia-se em uma série de pressupostos teóricos que orientam A) Antes de vir à região, sindicato ou bairro, é necessário
sua atividade e que podem ser resumidos como se segue: informar-se o suficiente sobre esses lugares ou grupos sociais. Ler
1) a metodologia e o investigador não são duas coisas sepa livros, recortes de jornal, relatórios, documentos, fazer entrevistas
radas. Assim, a metodologia de aproximação não pode ser utilizada com pessoas que conheçam esses lugares mesmo de maneira super
ou manipulada até as últimas conseqüências por um pesquisador ficial ou oficial.
não-militante, porque apenas este pode extraí-la da teoria e de sua B) Ir ao local a fim de fazer uma inspeção ou reconhecimento
própria prática, aplicá-la, criticá-la e assegurar-se de que é ou não inicial, que pode consistir em:
válida e eficaz no que diz respeito aos fins perseguidos, se é ade a) visitas aos centros de trabalho;
quada para tal região ou tais circunstâncias. Assim, o investigador b) consultas a instituições do governo ou da empresa privada
militante imprime um caráter dinâmico ao método de aproximação. que possuam documentos sobre a região, estatísticas, planos de
Somente ele está habilitado a descobrir quais são suas aptidões e de desenvolvimento, ruas, mapas, custo de vida e empresas comerciais,
que maneira pode ser mais útil para a causa do setor popular em que industriais, extrativas ou financeiras que operam na região. Exem
está inserido. Um cientista social não comprometido com a causa plos de instituições: Câmara de Comércio, INDERENA, IDEMA,
popular nunca conseguiría isso, mesmo se soubesse de cor alguns Agência Regional do DANE, Arquivos Municipais, INCORA, ICA
conselhos práticos sobre metodologia de aproximação; etc.;
2) a metodologia é inseparável dos grupos sociais com os c) conversas com profissionais que trabalham na região para
quais o investigador trabalha. A metodologia não será a mesma saber quais são, no seu modo de entender, os principais problemas e
conforme se trate de um grupo camponês' ou operário urbano, con a importância da região, as atividades culturais e o modo de ser das
forme se trate de um grupo de trabalhadores predominantemente pessoas, quais forma foram os conflitos mais relevantes ali ocorridos
negros ou mulatos, brancos ou mestiços, ou de camponeses indí etc.;
genas; d) visitas a sedes sindicais, de usuários ou cooperativas, a fim
3) a metodologia varia, evolui e se transforma segundo as de solicitar seus periódicos ou boletins ou informar-se de suas ati
condições políticas locais ou a correlação das forças sociais, em vidades e filiações em nível nacional, do número de operários sindi
conflito velado ou aberto. Assim, se as forças reais do adversário calizados e em quais ramos da economia, enfim, sobre a existência
social forem mais poderosas que as dos explorados será então desa- ou não de operários por empreitada ou outros tipos de trabalha
conselhável um tipo de metodologia que faça abstração de tais con dores;
dições; e) entrevistas com sacerdotes, professores e outras personali
4) a metodologia depende, em grande medida, da estratégia dades do campo religioso ou educativo.
global de mudança social adotada e das táticas a curto e médio
prazo. Assim, a metodologia não é uma enumeração pura e simples C) Identificar as classes, grupos sociais ou pessoas da região
de certas regras ou princípios sem referência a uma compreensão que podem vir a ser aliados a curto ou médio prazo (autoridades
global do processo de mudança tal como foi colocada pela organi simpatizantes, membros do clero, funcionários públicos, médicos
zação popular que o persegue. etc.).
D) Averiguar quais grupos políticos existem na região e que
forma de pressão ou de controle exercem sobre grupos sociais orga
nizados, sejam estes preservadores do sistema social vigente, ques-
144 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 145
tionadores do mesmo ou simplesmente opositores alternados do go conclusões serão validadas em outras partes, mas estamos efetiva
verno, analisando os resultados reais obtidos por uns e outros. mente convencidos de que, no que se refere ao Vietnã, elas são
corretas” .7
F) Com as informações prévias ou com os dados obtidos do
“ reconhecimento inicial” , tentar uma análise primária e provisória 2) Conhecimento através da ação
das classes e da história e natureza de seus conflitos com base no O objetivo do investigador militante é colocar suas técnicas e
modo de produção predominante e as relações de produção e troca os conhecimentos adquiridos a serviço de uma causa. Esta causa é,
existentes. por definição, uma transformação fundamental da sociedade envol
F) Identificar o tipo e a natureza das lutas registradas na vente, da qual o grupo, a região ou a comunidade estudada fazem
região ou promovidas no passado por grupos sociais determinados, parte. Do ponto de vista da investigação, este compromisso implica
ou que estão se produzindo no presente (dentro do sistema, contra o metodologicamente o seguinte itinerário:
governo, contra o patrão ou corporativas, lutas cívicas ou reivindi-
A) Analisar a estrutura de classes da região ou zona para
cativas que interessam a toda uma gama de grupos sociais inclusive
determinar os setores e grupos que desempenham ali um papel-
opostos entre si, “fora da lei” e outras); analisar os resultados de
chave.
uma e de outras lutas, o tipo e o nível de consciência que as move
B) Tomar desses setores ou grupos-chave os temas e enfoques
ram ou movem (consciência corporativa, cívica ou regionalista, de
que devem ser estudados com prioridade, de acordo com o nível de
classe ou política) e o papel que desempenharam ou desempenham
consciência ou de ação dos próprios grupos.
os grupos populares em tais lutas.
C) Buscar as raízes históricas das contradições que dinami
G) Analisar os planos de desenvolvimento sócio-econômicos zam a luta de classes na região.
que podem afetar a curto e médio prazo o futuro dos grupos popu D) Devolver a esses setores ou grupos-chave os resultados da
lares, tais como deslocamento de bairros, automatização da produ investigação com vistas a atingirem maior clareza e eficácia em sua
ção, construção de vias de comunicação, instalação de novas indús ação.
trias ou de fontes de emprego reais ou fictícias. Este último ponto (a devolução do conhecimento) afeta e con
H) Fazer um inventário das formas de controle social diretas diciona toda a técnica do investigador militante. Baseia-se em um
ou indiretas exercidas pelo sistema vigente, em aplicação ou em sentido ético distinto do usual nas investigações sociais correntes e
estudo (juntas, comitês, movimentos etc.). fornece as bases para julgar a validade dos dados recolhidos em
campo. Implica fazer com que o próprio pesquisador seja objeto de
I) Estudar as características culturais e étnicas da região, e
investigação: sua ideologia, seus conhecimentos e sua prática estão
determinar provisoriamente quais são os elementos etnoculturais
submetidos ao julgamento da experiência popular. Rejeita a explo
que parecem ter desempenhado ali um papel relevante nas lutas
ração das populações (um verdadeiro saque a seu acervo cultural e
sociais e reivindicativas.
ao tesouro de sua experiência) quando estas são estudadas como
Uma vez realizados os estudos anteriores, o investigador terá “objetos de investigação” , e induz ao respeito às pessoas, à sua
em seu poder um conhecimento provisório, não definitivo nem com contribuição direta, sua crítica e sua inteligência. A necessidade que
pleto. O passo mais importante ainda está para ser dado: o conhe o investigador militante se impõe de devolver às bases populares o
cimento de dentro, através de contatos e relações políticas que ex conhecimento adquirido repousa, além do mais, no pressuposto de
pressem seu compromisso com a causa dos grupos sociais identifi que a classe popular — o campesinato, por exemplo —, embora
cados como “chaves” . Como diziam alguns investigadores militan
tes do PRP do Vietnã: “Nossa estimativa não se baseia nos livros,
mas na prática, não é feita de fora, mas de dentro, e se baseia nas (7) Wilfred G. Burchet, El triunfo de Viet-nam, Ed. Ancho Mundo,
experiências e na luta cotidianas. Não poderiamos dizer se nossas 1969, p. 185.
146 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 147
analfabeta, não é por causa disso ignorante: pelo contrário, é dona de troca prevalecentes), o que implica uma busca flexível e intensa.
de uma rica experiência de luta, conhece inúmeros modos e manei Assim, se está estudando ou trabalhando entre grupos camponeses e
ras de aprender, sobreviver e se defender; participa amiúde de uma operários (de predominância étnica negra ou indígena) e com outros
memória coletiva, que forma uma base ideológica e cultural respei grupos do proletariado na cidade e no campo.
tável e, portanto, compreende que qualquer passo adiante que se Em conseqüência, as decisões sobre investigação e ação não
pretenda dar deve estar afiançado por este conhecimento já exis podem ser tomadas unilateralmente, de cima para baixo, atrás de
tente. Em conseqüência, os setores ou grupos-chave da classe popu uma grande mesa, mas sim em conjunto com os setores-chave
lar aparecem como grupos de referência que deslocam aqueles que efetivos ou potenciais. Essa participação das organizações de base
haviam sido adotados nos meios universitários do país e nos centros coloca aos intelectuais em geral problemas teóricos, práticos e éticos
acadêmicos europeus e norte-americanos (de direita ou de es que levam a uma concepção diferente da ciência e da pesquisa,
querda), cujas figuras ou pensadores deixam de ser as autoridades como se voltará a discutir mais adiante.
finais ou inapeláveis.
Tudo isso, na prática, implica:
1) que os trabalhos são concebidos com os setores ou grupos- A incentivação
chave de base e seus órgãos de ação;
2) que a produção das técnicas de pesquisa está primordial Munidos destes conceitos e pressuposições, e com o conheci
mente voltada aos setores da classe popular em seus próprios ter mento obtido por um modo correto de aproximação, o método de
mos, isto é, escrita juntamente com eles (no caso do cientista, ele se estudo-ação leva-nos geralmente ao que se tem chamado de incen
deixa “expropriar” de seus conhecimentos técnicos e seu instru- tivação. Esta se dá quando o pesquisador militante, inserido em
menta pelos setores-chave com o intuito de dinamizar seu processo uma região ou comunidade, consegue determinar pontos de partida
histórico); reais (níveis de consciência) para reivindicações que podem levar a
3) que formas adequadas de comunicação dos resultados são esforços sucessivos na luta pela justiça (lutas cívicas, salariais, pela
requeridas, estabelecendo-se um novo “ idioma” , muito mais claro e posse da terra, por serviços públicos, escolas, postos de saúde etc.),
honesto do que o costumeiramente usado por cientistas tradicionais; até chegar a conflitos de classe orientados para mudanças mais
4) finalmente, que os conceitos e hipóteses emergentes encon fundamentais e estratégicas. Neste processo, a investigação con
tram sua confirmação ou rejeição através do contato direto e ime segue determinar os incentivos parciais que mobilizam o maior
diato com a realidade e pela utilidade que demonstrem ter nas mãos número de elementos da localidade, tanto humanos quanto mate
de setores e grupos-chave, para a formação e desenvolvimento de riais e históricos. Os incentivos provêm do tipo de problemas que as
sua consciência de classe, e de acordo com a força organizativa que comunidades experimentam, segundo a forma específica de explo
sejam capazes de engendrar. Em conseqüência, não se busca essa ração à qual as populações se acham mais sensibilizadas, sejam tais
confirmação nos esquemas teóricos de “grandes pensadores” da formas institucionais ou grupais, econômicas ou culturais.
“ciência universal” — a qual, nesse sentido, não pode existir, por Uma modalidade dessa técnica é a que se poderia denominar
que aquela que assim se considera é apenas parte do aparato de recuperação crítica. A recuperação crítica é feita quando, a partir de
dominação imposto sobre nós pelas metrópoles. uma informação histórica e de um reconhecimento efetivo adequa
dos, os investigadores militantes chegam às comunidades para es
Os setores-chave majoritariamente estratégicos para a trans tudar e aprender criticamente a partir da base cultural tradicional,
formação fundamental na Colômbia (como os de vanguarda) encon- prestando atenção preferencialmente àqueles elementos ou institui
tram-se entre as classes exploradas urbanas e rurais, isto é, as ções que foram úteis para enfrentar, no passado, os inimigos das
camadas formadas por aqueles que trabalham no processo de pro classes exploradas. Uma vez determinados esses elementos, pro
dução. Saber que setores são esses concretamente depende das cir cede-se à sua reativação, para utilizá-los de maneira similar nas
cunstâncias regionais ou históricas (modos de produção e relações lutas de classe do presente. Exemplos de práticas tradicionais ou
148 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 149
instituições recuperáveis dessa categoria são: o resguardo dos indí por exemplo, em sua história, seu folclore, seus líderes (liderazgo),
genas, o cabildo, a troca de braços, a guachinga, a tiradeira e a em sua “malícia” e experiência — o que os leva a aglutinar-se em
mina (expressões culturais e econômicas do meio rural colombiano). torno de interesses, acelerando situações críticas necessárias que
Nesta técnica, o papel dos quadros de base e outras pessoas infor conduzem a um nível mais elevado de consciência social e política.
madas dentre as classes populares (que souberam resistir à ideologia
das classes estrangeirizantes, depreciadora dos valores populares)
foi fundamental pela forma como responderam e produziram conhe Esforço próprio e ajuda externa
cimentos dentro do processo de estudo-ação. As comunidades incen O investigador militante precisa comer e atender a suas neces
tivadas dessa forma conseguiram dar um considerável salto adiante sidades, e o desenvolvimento da investigação científica demanda
no nível de consciência política. gastos em todas as suas etapas, desde o primeiro deslocamento
Esta técnica não persegue um retorno simplista ao primitivo (transporte) até a devolução do conhecimento adquirido (os meios
ou bucólico, nem fecha os olhos aos aspectos passivos da tradição, de comunicação).
nem pretende idealizar o passado.8 Trata-se simplesmente de uma Este problema financeiro deve ser colocado no grupo de base
utilização dinâmica e realista dos recursos que a memória coletiva com que se faz a investigação. O apoio financeiro da parte desses
oferece, e da infra-estrutura organizativa que as classes populares grupos, embora seja mínimo, é o mais importante porque lhes
produziram para poder passar a níveis mais aperfeiçoados de orga permite considerar diretamente o custo implicado pela defesa de
nização de acordo com a natureza da luta. Isso obriga os investi seus interesses, ao mesmo tempo que tempera o caráter através de
gadores n\ilitantes a começar seu trabalho ao nível real de consciên maior interesse e necessidade de assegurar um bom manejo dos
cia política das populações e não ao nível que os próprios quadros fundos disponíveis, quando estes representam esforço próprio: isso
têm, já que esta última possibilidade reflete uma atitude dogmática leva-os também a cuidar que o dinheiro seja empregado correta
de superioridade que, por regra geral, conduziu a lamentáveis fra mente a serviço dos grupos populares e não em benefício de pessoas
cassos na prática. oportunistas; ensina, além disso, que embora o dinheiro seja neces
Com as técnicas de incentivação vai-se às comunidades para sário, o principal — aquilo que imprime razão de ser ao financia
aprender suas realidades, contribuindo com diversos projetos de mento — é o objetivo de utilidade e prestação de serviços que tem a
colaboração local. Nestes projetos, descobre-se a ampla gama de investigação científica.
recursos com que contam os setores ou grupos de base, expressados, A importância de obter o apoio financeiro popular local ou
nacional é assinalada pela Frente do PRP do Vietnã do Sul da
seguinte forma:
(8) Os ideólogos do sistema falaram sobre a "melancolia da raça indí
gena" como algo dado e imutável (Armando Solano, Juán C. Hernández, Luis “ Nossa luta é feita exclusivamente pelo povo: as forças constituídas
López de Mesa, entre outros), ocultando ser ela uma deformação cultural
causada por sucessivas ondas de exploração econômica abençoada pela reli por nós mesmos (...) A ajuda externa nos poderia ser útil, mas os
gião colonial. Hoje defrontamo-nos com a questão de o que fazer com as esforços do povo sul-vietnamita devem continuar sendo o fator deci
massas de camponeses indígenas do país que se encontram na vanguarda da sivo” . 9
luta em muitas partes. Os conservadores buscam "introduzir inovações" den
tro de uma margem de segurança que permita a esses grupos avançar dentro
do sistema capitalista, aplicando "mudanças direcionadas". Sua filosofia se Quanto à “ajuda externa” (a que provém de fora, de outros
baseia em acreditar que o camponês é intrinsecamente resistente à mudança. grupos ou pessoas, de instituições nacionais ou estrangeiras), ela
Isso não é certo, já que ele resiste ao que não lhe convém, àquilo que vem de coloca dificuldades e implica riscos que os investigadores militantes
cima para baixo. Por outro lado, muitos revolucionários só vêem obstáculos na
tradição, esquecendo-se de que "a história de todas as sociedades é a história e as organizações de base deverão considerar em cada caso particu-
de uma luta de classes", e que essa história é a que nos proporciona evidências
e indícios a respeito do nível de consciência alcançado pelas classes populares
em uma região, sobre a qual é preciso afiançar-se para atingir o desenvolvi
mento em direção a níveis mais elevados de consciência e ação. (9) Burchet, op. cit., p. 185.
150 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 151
lar, com vistas a superá-los. A decisão de aceitar ou não a ajuda 3) A corrupção que sempre espreita os responsáveis de toda
externa não deverá ser tomada com base em um falso puritanismo organização, quando é possível o gasto de recursos sem uma estrita
financeiro que rejeite todo auxílio econômico proveniente de insti disciplina ditada pela consciência mais elevada da classe popular e
tuições, pessoas e entidades pela única razão de não estarem aber <te sua causa.
tamente comprometidas com a causa popular. Tal rejeição pode Esses perigos podem e devem ser mantidos sempre presentes e
resultar simplesmente em deixar o campo da investigação científica confrontados por meio de contínua atitude de vigilância. Se a orga
entregue apenas aos inimigos da causa. O investigador militante e as nização popular e os investigadores militantes não estão seguros de
organizações populares interessadas no conhecimento científico fa poder dominá-los, é melhor não aceitar a ajuda externa. Mas se o
rão bem em recordar que mesmo movimentos de caráter indubi estão, não aceitá-la não seria uma falta grave contra a causa popu
tavelmente popular e antiimperialista, como o já citado PRP do lar.
Vietnã, declaram a respeito que “ aceitamos toda ajuda incondicio
nal, venha de onde vier, dos países ocidentais, da França, da Ingla
terra e até dos Estados Unidos, desde que reconheçam uma inde Resumindo
pendência verdadeira ao Vietnã do Sul, retirem suas tropas e nos
ofereçam ajuda politicamente desinteressada” .10 De forma seme
lhante, toda organização popular e toda instituição que leve a cabo a As técnicas de investigação militante vão mais além das for
investigação militante deverá impor condições à ajuda externa, com mas clássicas de observação participante, survey, camuflagem,
respeito não à sua origem, mas à sua absoluta incondicionalidade. entrevista diplomática ou equilibrada e empatia sem compromisso
Isto quer dizer: 1) que se respeite a política traçada pelos grupos ulterior, todas as quais fundam-se em uma busca de consenso ou
receptores da ajuda no que se refere à concepção e ao desenvolvi acordo entre as partes. Por isso, essa modalidade de estudo-ação
mento da investigação, bem como sua aplicação ou reserva; 2) que não serve para o mero administrador de projetos, nem para o mani
os doadores não intervenham nem antes, nem durante, nem depois pulador da ação comunitária, nem para o erudito que persegue os
na investigação militante; 3) que não haja nenhum tipo de super louros da academia.
visão contábil sobre o manejo dos recursos recebidos. Nesta forma, consegue-se passar do que tem sido, na prática,
Todavia, é preciso enumerar os seguintes riscos que pode uma metodologia do consenso para o que chamaríamos uma meto
acarretar a “ajuda externa” : dologia da contradição, em conformidade com os postulados da
teoria do conflito, com a qual se trata de explicar a atual proble
1) A tendência a gerar nos grupos populares que a recebem mática colombiana (ver mais adiante). A atitude decisiva do investi
uma atitude de dependência que castra ou desestimula suas verda gador militante é o respeito para com as populações imersas nos
deiras potencialidades de auto-sustentação, chegando às vezes a processos sociais que se deseja estudar. Esse respeito se expressa
produzir uma atitude de menosprezo a seus próprios esforços; particularmente através da devolução do conhecimento aos setores-
2) O risco de permitir que o trabalho de base seja determi chave da classe popular, cujos interesses são assumidos pelo pesqui
nado pelos interesses, inclinações ou preferências dos doadores. Isso sador. Sua tarefa específica como cientista social é devolver às
às vezes se produz por ingerência direta, a qual deve ser repelida massas com maior clareza e de forma sistematizada o conhecimento
imediata e energicamente. Outras vezes é feita de forma mais sutil, que delas recolheu difusamente.
por meio da oportunidade calculada com que são oferecidos os
recursos ou pela destinação dos mesmos para certos aspectos da
investigação, que passam a ter prioridade porque “há fundos para Implicações científicas e teóricas
isso” ;
O método de estudo-ação tem o mérito de colocar e buscar a
(10) Ibidem, p. 189. interação permanente entre a reflexão e a prática diária. Por isso, os
152 REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 153
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
investigadores militanes se definem como pessoas treinadas nas téc interesses de uma aristocracia (pós-napoleônica, na Europa) que se
nicas de observação científica e formadas na prática social e política. identificou com o surgimento do capitalismo e cujas tendências par-
O trabalho se desvirtuaria e iria contra todos os seus princípios se liculares persistem até hoje.11 Também confirmamos nossa rejeição
estas pessoas praticassem um empirismo limitado a constatar os anterior, por inadequação, dos parâmetros do estruturalismo fun
fenômenos sem indagar por suas causas, ou um aventureirismo cional,12 que descreve a sociedade como o produto de um “equilí
irresponsável onde primasse o ensaio-e-erro, ou ainda se no plano da brio” baseado em um ordenamento interno e no princípio da inte
reflexão fizessem abstração dos conceitos centrais que guiam o tra gração social. Não consideramos satisfatória tampouco a escola
balho de campo e dos marcos teóricos prévios e emergentes. formalista, por encontrá-la reduzida a medições externas e mecâni
No caso dos empiristas, há outro perigo: o de enganarem a si cas dos fenômenos sociais ou a explicações limitadas da cultura
próprios pensando serem absolutamente originais, pois neste domí manifesta.13
nio não se parte do nada, já que o pesquisador chega a campo com Não é tarefa fácil para o cientista social formado nessas tradi
algumas idéias básicas e certas técnicas que foram reunidas por ções burguesas descartar seus marcos de referência, mas se atingiu
investigadores ou cientistas que o precederam ou que são produto esse ponto por meio de diferentes itinerários. Cabe recordar a obra de
do ambiente onde cresceram. Não reconhecer esta continuidade rebeldes como Camilo Torres Restrepo, que, partindo de um posi
significa desperdiçar os recursos que se tem em mãos e que possuem tivismo algo ingênuo, culmina sua vida no interior do marxismo,
o mérito de fazer os processos sociais muito menos erráticos do que plenamente identificado com a luta popular. Teóricos como Rafael
parecem. Por isso, a investigação militante, em duas diversas moda Uribe Uribe e Luis E. Nieto Arteta deram contribuições igualmente
lidades, não implica o abandono de técnicas de investigação com- importantes. Ignacio Torres Giraldo soube combinar a teoria com a
provadamente úteis, como a pesquisa atual de grupos sociais, a ação revolucionária em sua época. Todos eles procuraram enraizar-
análise histórica, a pesquisa de arquivo, a medição estatística, todas se junto ao povo e às realidades terrígenas para chegarem a postu
inseridas em marcos conceituais amplos e ágeis. Deve-se partir lados socialistas.14
então do fato de que não se trabalhou nem se trabalha em um vazio
conceituai: pelo contrário, existem roteiros técnicos e teóricos prévios
utilizados de maneira consciente ou inconsciente. (1 1 ) 0 fundador dessa escola, Auguste Comte, deu origem do mesmo
Não se deve esquecer tampouco que o capitalismo tem sua modo a uma religião da sociedade que encontrou muitos adeptos na América
própria maneira de combinar a teoria com a prática, para formar Latina. Foram seguidores do positivismo, entre nós, escritores como Carlos
Arturo Torres, Salvador Camacho Roldán, Luis López de Mesa, Rafael Bernal
suas instituições imperialistas e criar as formas de exploração conhe Jiménez e outros sociólogos.
cidas. Assim, a construção dos impérios modernos foi possível, em (12) Esta escola se origina a partir de proposições de cientistas sociais
grande medida, pelo desenvolvimento científico e tecnológico ade como Bronislaw Malinowski, A. Radcliffe-Brown e Max Weber, retomadas na
sociologia por Talcott Parsons, Robert Merton e outros da escola norte-ameri
quado aos fins perseguidos por seus próprios interesses. cana. Muitos antropólogos na Colômbia seguiram essa tendência.
Em contraste com essa corrente científica imperialista, os (13) Contribuições importantes dentro dessa escola são as do sociólogo
cientistas sociais que colocam a si mesmos como investigadores mili austríaco Moreno e de geógrafos humanos como A. Démangeon. Alguns
trabalhos (especialmente teses) da antiga Facultad de Sociologia da Univer-
tantes e seguem as pautas próprias do método de estudo-ação visam sidad Nacional podem ser classificados nessa categoria.
pôr o conhecimento adquirido a serviço dos grupos explorados e (14) Encontra-se maior inspiração no exemplo e nas obras de diversos
oprimidos, em uma causa de transformação fundamental. Em con- rebeldes nacionais que, por regra geral, os historiadores da Colômbia, refle
tindo somente os interesses das classes dominantes, ignoraram. Os materiais
seqüência, continuamos a tendência (observada já em vários cientis pertinentes existem e um dos objetivos da Rosca de Investigación y Acción
tas sociais colombianos de décadas anteriores, como se menciona Social tem sido descobri-los, recuperá-los e divulgá-los. Realizou-se assim o
mais adiante) de não se deixar dominar por escolas sociológicas que projeto de publicar as memórias do extraordinário combatente indígena do sé
culo XX, Manuel Quintín Lame, En defensa de mi raza, editado por Gonzalo
serviram na prática para afiançar o poder das classes opressoras. Castillo Cárdenas (Bogotá, Publicaciones de Ia Rosca, 1971); acaba-se de
Assim, seguimos descartando os modelos de explicação científica da publicar também a biografia política de Maria Cano, por Ignacio Torres Giraldo.
sociedade provenientes da tradição positivista, por refletirem os Impõe-se a busca da literatura sobre a luta popular desde fins do século XVIII:
154 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 155
Esta esquecida corrente intelectual que se nutre da confron deixar de ser doutrinária” .16 Portanto, não se faz aqui nenhum
tação popular com o sistema, que busca a raiz das contradições de decalque de teorias tal como foram formuladas em outras latitudes
cada época, que destaca os antagonismos e os interesses das classes e países, nem se incorre no colonialismo intelectual de esquerda que
sociais em luta aberta ou dissimulada converge para a escola socio castrou tantos grupos revolucionários e universitários, porque o
lógica do conflito social. Dentro dessa escola, evidentemente, são método de estudo-ação procura afinaçar-se nas realidades colom
pertinentes as obras de Marx — sua principal figura — e de seus bianas, nutrir-se delas ao mesmo tempo que exige uma resposta
seguidores, muito mais do que aqueles que seguiram a vertente autêntica a estas realidades em termos de atos e evidências, e não
aparentada de Bagehot e Gumplowicz. Trata-se agora de construir apenas de palavras ou debates meramente ideológicos.
sobre fundamentos intelectuais antigos que desembocam natural Tudo isso leva a recolocar a sociologia marxista do conflito em
mente na conhecida teoria da luta de classes.15 termos de especificidades históricas e condicionamentos regionais e
Esta teoria concretiza conceitos e hipóteses desenvolvidos por locais. Esta recolocação já se acha implícita nas teses atualmente em
observadores da sociedade, dentro e fora do país, o que não constitui voga sobre “dependência” e “subversão” que analisam ao macro-
novidade de maneira alguma, embora equivalha a uma tomada de nível “latino-americano” as formas concretas de exploração externa
posição ou a uma necessária clarificação teórica. Porém, não é e interna que se verificam no continente, bem como as formas de
conveniente aderir dogmaticamente a essa teoria, e sim tratar de pressão popular e suas expressões organizativas em termos da luta
redefinir conceitos à luz da evidência recolhida por quadros de antiimperialista e antioligárquica. Entretanto, essas teorias necessi
investigações militantes. É necessário recordar que a ciência social e tam ainda ser enriquecidas, matizadas e coloridas pelos condicio
a teoria social não constituem um sistema hipotético-dedutivo cujo nadores econômicos, históricos e culturais de cada região e locali
objetivo seja formular dogmas e verdades eternas, mas são, no dizer dade colombianas, o que viria a ser uma maneira própria de ver e
de Marx, “julgamentos sociais da prática” . A ciência social aparece entender, em seu conjunto, nossos atuais conflitos e a natureza de
então como deve ser na realidade, “como o produto do movimento nossa sociedade dependente e explorada. É aquilo a que se referia
histórico e como uma ciência que chega a ser revolucionária ao Torres Giraldo ao falar em “nacionalizar o marxismo” segundo as
situações concretas do país.17 Em nossa própria experiência de
campo, este esforço significou primordialmente uma grande flexibi
os comuneros com Galán à frente; os artesãos durante a revolução de 1852; lidade e abertura, no aspecto metodológico, e uma sensibilidade
os camponeses antilatifundistas do sul da Antioquia; os líderes operários e especial aos modos e maneiras historicamente assumidos pela luta
camponeses da Costa Atlântica a partir de 1918; a rica tradição guerrilheira do de classes em cada região, tendo em vista não somente as expressões
país; a tradição rebelde dos negros cimarrones e dos índios levantiscos etc.
(15) Os fundamentos da escola do conflito social encontram-se em
econômicas e reivindicativas como também as* culturais e sociais.
todos os continentes de maneira mais ou menos sistematizada. No caso do Pôde-se assim identificar zonas sócio-econômicas de predominância
Ocidente, como se sabe, sobressaem Heráclito e Políbio, Ibn Khaldun, Hob- étnica indígena ou negra onde a consciência étnica tende a coincidir
bes, Hegel e Marx. Ultimamente aparecem Mao, Giap, Lumumba, Nkrumah, com a consciência de classe e onde a história da luta de classes esteve
Nyerere e Fanon. Na América Latina: Marti, José Bonifácio e Mariátegui.
A leitura desses autores — e políticos sociais — é útil para ilustrar o quadro intimamente ligada à afirmação da etnia e de seu patrimônio histó
genérico da luta de classes na Colômbia, não para explicá-la. Entre os autores rico.18 Nessa mesma linha ganharam importância diferencial diver
colombianos mais pertinentes do século XIX, estão Manuel Ancízar e Eugênio sos fatores que poucas vezes são valorizados do ponto de vista da
Diaz, sobre o problema rural; Emiro Kastos, que colocou em 1851 a ameaça
imperialista norte-americana; Miguel Samper, por seu estudo sobre a miséria
urbana; Aníbal Galindo, Medardo Rivas e Diego Mendoza Pérez, em diversas
passagens de seus escritos. Neste século, além dos já mencionados no texto:
Alejandro López I. C., Eugênio J. Gómez, Guillermo Hernández Rodríguez, (16) K. Marx, La miséria de ia filosofia, Buenos Aires, Siglo XXI, 1971,
Indalecio L. Aguirre (estes dois últimos em suas primeiras fases); Antonio p. 109.
Garcia (especialmente suas primeiras obras), Mario Arrubla, Francisco Posada, (17) Ignacio Torres Giraldo, Maria Cano, mujer rebelde, Bogotá, Publi-
Rafael Baquero, Diego Montana Cuellar, Estanislao Zuleta, Juan Friede e cacionesde Ia Rosca, 1972, pp. 171-172.
outros, assim como Camilo Torres Restrepo, cuja obra representa a culmi (18) Ver estudos sobre etnia, cultura e classe social, a ser publicado
nação dessas tendências intelectuais e políticas. proximamente por Rosca de Investigación y Acción Social.
156 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 157
luta pela mudança radical, tais como a arte popular, o folclore, o desconhecer nem passar por alto dessas realidades, mas enfrentá-las
sentimento regional e algumas instituições como as mencionadas em de forma eficaz, deve ir se enriquecendo com a passagem das gera
outra parte deste estudo (ver p. 147) que são próprias da tradição ções que experimentam o conflito e vão em busca da justiça social e
específica de alguns setores da classe popular colombiana e que econômica. Assim concebida e praticada, a ciência é uma ferra
podem ser recuperados para sua luta atual. A soma de interpretações menta crítica para a mudança social especialmente útil quando
dessas realidades daria uma teoria própria e adequada da luta de alguns de seus marcos gerais se rompem e dão passagem a esquemas
classes e o conflito social na Colômbia, mais útil ainda para a mais adequados de explicação. Os marcos descartáveis são aqueles
determinação dos grupos-chave regionais e em termos das mudan que refletem valores sociais conservadores e servem às classes explo
ças perseguidas por eles. radoras e às sociedades imperialistas.
Naturalmente, esta teoria própria encontra-se ainda em germe Outros já demonstraram como uma explicação teórica ade
e sua elaboração constitui um desafio a todos aqueles que estão quada da realidade facilita a ação política e, simultaneamente,
atuando e estudando como investigadores militantes ou em outras como o processo chega a ser uma contribuição à ciência. Ê possível
capacidades dentro do processo histórico colombiano. que as ciências sociais na Colômbia sejam mais claras e eficazes ao
Em conseqüência, contorna-se agora a exigência de maior cabo de esforços de busca autônoma como o que se procura promo
rigor na tarefa do investigador militante. Deverão ser desenvolvidas ver através do método de estudo-ação que aqui propomos. Sobre
e ensaiadas técnicas de estudo e ação — além das já conhecidas, que viverão e serão acumulados aqueles conceitos e técnicas que passa
sejam adequadas, e outras novas — que permitam apreender a rem pela prova de fogo da experiência das massas erguidas em
complexa realidade em sua própria função, sem distorcê-la. Isto defesa de seus interesses de classe. Estes serão seguramente os
implica também a prática de uma verdadeira ciência social interdis- mesmos que futuras gerações de investigadores militantes aplicarão
ciplinar, na qual a sociologia, a história, a antropologia, a economia nas tarefas subseqüentes de reconstrução nacional, quando as clas
e a geografia se combinem na figura do investigador militante de ses populares terão o poder para decidir sobre seus próprios desti
maneira simultânea, tratando de romper os compartimentos estan nos.
ques em que estas ciências se encontram, para produzir uma ação
mais eficaz e uma teoria mais ágil e realista.
Além disso, o investigador militante deverá saber dirigir a
atenção para os fatos mais pertinentes e significativos de cada região
para fins de organização, educação e ação sobre ela; deverá combi
nar o estudo do “macro” com as análises do “micro” ; e tratará de
antecipar um determinado nível de síntese e sistematização de con
ceitos que revertam depois em informação aos grupos de base para a
constatação final da realidade. Este tipo de constatação pode ser
suficiente para ir acumulando o conhecimento do ponto de vista
científico, sem necessidade de recorrer a computadores eletrônicos
ou referir-se a parâmetros “universais” de pensadores ilustres de
outras latitudes com esse mesmo fim; e para ir construindo assim
uma ciência própria e popular que parece convergir para dimensões
igualmente universais, através de sua constatação na experiência de
todas as classes exploradas do mundo.
Em resumo: para que a ciência possa continuar existindo
como tal nas condições impostas pelo neocolonialismo econômico e
cultural como as prevalecentes na Colômbia, o cientista não pode
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 159
democratizar os processos de investigação e educação. A pesquisa
participante sustenta acertadamente que os métodos e técnicas con
vencionais tomam o grupo investigado como objeto de pesquisa e
não como sujeito principal e que não existe uma separação indese
jável entre a teoria e a prática, entre pesquisa social e ação concreta.
A pesquisa participante revela-se um enfoque de trabalho
Pesquisa participante abrangente que aparentemente elimina um conjunto dé problemas
que haviam sido encontrados na prática, por exemplo, da educação
em um contexto popular, promoção camponesa ou qualquer outro programa de
desenvolvimento rural integrado. Todavia, pode-se constatar que,
de economia camponesa* em que pese o fato de partilharem a mesma opção ideológica, os
diferentes programas que utilizam parcialmente as idéias da pes
Vera Gianotten e Toti de W it* * quisa participante têm em comum apenas o uso de meios didáticos e
técnicos de investigação não-convencionais, e alguma forma de par
ticipação da população no trabalho de campo e no planejamento de
Introdução ações concretas.
Não é demais reiterar que a pesquisa participante é um con
A pesquisa participante, como novo enfoque nas ciências so junto de procedimentos operacionais e de técnicas que podem ser
ciais, foi objeto de crescente interesse nos últimos anos em diferentes
implementadas no interior de diferentes corpos teóricos e ideológi
âmbitos de trabalho: programas de desenvolvimento rural, políticas
cos; entretanto, suas características específicas fazem dela uma fer
de planificação participativa, educação não-formal, capacitação
ramenta necessária para todos aqueles programas que buscam a
camponesa etc. A partir do reconhecimento de que os programas de
participação de setores populares na produção de novos conheci
desenvolvimento não tiveram o êxito esperado, planejava-se um
mentos (científicos) e em uma prática orientada a uma ação trans
conjunto de idéias e princípios que permitiríam reduzir os proble
formadora da sociedade.
mas encontrados: por exemplo, basear-se nas necessidades funda
Nos últimos anos, aumentou consideravelmente a bibliografia
mentais da população, buscar a participação ativa dela nos dife
sobre pesquisa participante, e é de suma importância que haja inte
rentes programas e projetos, usar métodos e técnicas de educação
resse cada vez mais crescente pela utilização desse novo enfoque.
e/ou investigação mais simples etc.
No entanto, não basta definir a pesquisa participante como
Desse modo, a pesquisa participante se situa entre as corren um processo de investigação, educação e ação onde há a partici
tes das ciências sociais que rejeitam a chamada neutralidade cien pação da comunidade juntamente com um compromisso intelectual
tífica e partem do princípio de que a investigação deve servir a apontando para a transformação social. Consideramos que se fi
determinados setores sociais, buscando uma resposta coerente que carmos por aqui, sem precisar melhor os diferentes conceitos e
permita, por um lado, socializar o conhecimento e, por outro, opções (ideológicas e metodológicas) da pesquisa participante, esta
pode correr o risco de se converter em uma nova “onda passageira”
das ciências sociais. Pensamos que já se conseguiu determinar e
(*) "Investigación participativa en un contexto de economia campe- precisar as características necessárias a serem cumpridas para defi
sina", México, II Seminário Latinoamericano de Investigación Participativa,
maio de 1982. nir uma pesquisa social como pesquisa participante; todavia, chegou
(**) Cientistas sociais e educadores holandeses com muitos anos de o momento de reconhecer que essas características por si sós não são
trabalho junto a comunidades camponesas na América Latina. Junto à Univer suficientes para entender o processo de pesquisa participante em
sidade Nacional de San Cristóbal de Huamango, realizaram em Ayacucho, no
Peru, um programa de capacitação de camponeses. Residem e trabalham todas as suas dimensões políticas, econômicas, ideológicas e cientí
atualmente na Nicarágua. ficas.
160 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 161
É nossa intenção, no presente trabalho, tentar esclarecer a tigação, para em seguida ver em que se distingue a chamada edu
diferença entre as condições necessárias e suficientes que definem cação popular da pesquisa participante.1
uma pesquisa participante como tal. Uma vez que a maior parte de Para ser um instrumento efetivo de desenvolvimento, a edu
nossas apreciações e especificações é fruto de experiências concretas cação deve abandonar as colocações acadêmicas tradicionais e con
acumuladas durante um programa de capacitação camponesa e centrar-se na tarefa de dar respostas às necessidades (sentidas e
desenvolvimento rural integrado que a Universidad Nacional de San reais) do campesinato. A realidade mostra que as respostas dadas
Cristóbal de Huamanga realiza na zona andina do Departamento de por funcionários e especialistas poucas vezes correspondem aos inte
Ayacucho (Peru), pensamos ser necessário incluir algumas idéias resses e problemas reais da população rural: daí, sustenta-se que
sobre a chamada educação popular e sobre a economia camponesa não se deve identificar a priori as necessidades, pois essa identifi
(o contexto específico em que se desenvolve a experiência). cação há de surgir a partir da realidade das comunidades, cujas
A primeira parte deste estudo trata de forma geral e teórica a populações pesquisarão com a assessoria dos profissionais. Nessa
educação popular e a pesquisa participante, buscando uma relação perspectiva, a investigação não é um instrumento empregado por
adequada entre uma opção ideológica e uma opção metodológica, especialistas para averiguar se estes estão corretos na identificação
ou seja, buscando a organicidade de ambos os processos. As idéias a priori das necessidades, mas um instrumento para suscitar a refle
expostas na primeira parte serão sustentadas a seguir, onde se xão da comunidade sobre sua situação e seus problemas. Por isso, a
oferece alguns exemplos de um caso específico de pesquisa parti investigação não é uma atividade anterior à atividade educativa,
cipante em um contexto de economia camponesa. Nessa experiência mas toma parte em todo o processo educativo, do qual a população
concreta de pesquisa participante, esta é entendida como um traba participa plena e ativamente.
lho orgânico de assessoria em um processo no qual a investigação e a Em geral, pode-se dizer que o objetivo da participação é
educação tradicionais espontâneas se convertem em investigação e influir direta ou indiretamente na transformação da realidade so
educação orgânicas. cial, nos aspectos econômicos, políticos e sociais. Ora, toda ati
vidade humana está dirigida a um objeto, para transformá-lo. O
objeto pode ser uma determinada matéria-prima, um indivíduo
isolado, classes sociais e até mesmo uma sociedade inteira. O pro
Educação popular e pesquisa participante blema, pois, não reside tanto em buscar a transformação da reali
dade social, já que qualquer atividade humana tem esse objetivo;
Nos últimos anos, a chamada “educação de adultos” não se a questão é com que objetivo e como.
situa mais entre os enfoques tradicionais de educação, inscrevendo- Muitos educadores e investigadores se entusiasmaram com as
se na perspectiva da educação permanente. Dentre os novos princí idéias de transformação social e participação. De certo modo, mui
pios da educação de adultos, o que mais se sobressai é a partici tos supõem que a aceitação de ambos os conceitos implica auto
pação, por meio da qual o indivíduo não é mais objeto e sim sujeito maticamente a conversão a uma posição comprometida com os
comprometido em seu processo educativo. setores populares.
Foi precisamente o conceito de participação que significou Existe um conceito específico de mudança social e partici
uma superação substancial nos programas de educação de adultos, pação popular que sustenta que o objetivo final é alcançar uma
especialmente aqueles destinados ao desenvolvimento (rural) inte
grado; contudo, o mesmo conceito, por outro lado, deu lugar a
muita confusão a respeito da finalidade da educação de adultos até o (1) Façamos constar que o trabalho está fundamentado em experiên
momento em que foi apropriado por vários profissionais para legi cias educativas com adultos camponeses em um contexto de economia cam
ponesa e comunidades camponesas de população indígena. As idéias expostas
timar de modo geral seu “compromisso” com os setores populares. neste trabalho se baseiam em experiências acumuladas em um programa de
Vejamos, em primeiro lugar, como se entende de modo geral a educação popular e capacitação camponesa na região alto-andina do Depar
participação da população nos programas de educação e/ou inves tamento de Ayacucho, Peru.
162 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) 163
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE
distribuição mais eqüitativa do poder, promovendo a mudança so alternativa adequada para os setores populares. No entanto, é ingê
cial em favor das populações oprimidas e exploradas, organizando- nuo pensar que o uso de meios educativos não-convencionais como o
as como força política e econômica. Essas ações devem conduzir à teatro, sociodramas, bonecos etc. é próprio da educação popular e,
mudança das condições últimas que geram a pobreza, a dependên conseqüentemente, a definem como tal, visto que os mesmos instru
cia e a exploração. mentos podem ser usados pela instrução escolar oficial.
2) Muitas vezes, procura-se superar essa limitação através de
discursos teóricos que caem num teoricismo romântico, no sentido
Educação popular
de que explicam somente ao nível teórico que a educação popular
deve ser entendida como educação política orientada para o desen
Dentro desta última perspectiva de mudança e participação
volvimento da consciência de classe das massas populares, nos dis
popular se situam os programas de educação popular e pesquisa
tintos níveis e campos em que se dá a luta de classes, indicando que
participante; ou melhor, deveríam situar-se, considerando seus dis
a educação popular constitui um grande projeto histórico alternativo
cursos teóricos. No entanto, a prática educativa e de investigação
ao sistema dominante, a fim de se atingir a nova hegemonia cultural
não superam as características comuns e correntes aplicáveis a
e política das massas populares.
qualquer tipo de educação de adultos.2 Como crítica inicial aos
programas de educação popular podemos mencionar: Conseqüências da abismai distância entre o que se sustenta
teoricamente e o que se faz na prática educativa podem ser um novo
1) O característico só está dado no processo educativo não- paternalismo ou, ainda, um romantismo extremado.
tradicional e no uso de meios e instrumentos não-convencionais. Os dois perigos, o paternalismo e o romantismo, provêm da
Assim, limita-se a ação educativa a um processo de aprendizagem interpretação e da análise feitas do conceito de “saber popular” .
dirigida,3 acreditando-se cumprir a tarefa de oferecer uma educação Por um lado, os que sustentam que a educação popular deve
proporcionar a passagem de uma forma “oprimida” de consciência
(2) Na reunião de diretores nacionais dos Programas de Educação de a um reconhecimento da verdadeira consciência de classe podem
Adultos na região da América Latina e Caribe, acontecida em 1973, haviam ser, na prática, tão paternalistas quanto os tradicionais assisten-
sido mencionadas, entre outras, as seguintes características da educação de
adultos (CREFAL, 1976):
cialistas dos anos 50 e 60. Uma descrição rápida de ambas as
1) a educação de adultos é uma modalidade de educação permanente; práticas mostra-o claramente;
2) aponta para a transformação estrutural da sociedade e para o desen
volvimento integral dos povos; • o assistencialista (rural) tradicional: “os camponeses são conser
3) coadjuva uma ação múltipla, a qual pressupõe a participação dos
membros da comunidade através de suas instituições e organizações de base; vadores, fatalistas e tradicionalistas; eu sei o que é bom para
4) reconhece expressamente o valor das potencialidades criadoras do eles, como podem e como devem participar do processo de desen-
homem para ser o construtor de seu destino individual e social; volvimento-modernização; vou motivá-los a participar” .
5) aproveita ao máximo o cabedal de conhecimentos e experiências dos • o educador popular: “os camponeses têm uma consciência falsa
adultos e da interação educativa dentro da comunidade;
6) considera o papel de educador nato que todo homem tem; facilita a e imediata, um saber popular demasiadamente influenciado pela
auto-educação permanente; ideologia dominante; eu sei o que é bom para eles, como podem
7) esforça-se por superar a rigidez própria da escolaridade e trata de e devem participar da luta de classes; portanto, vou motivá-los
implementar novas e diversas formas de ação educativa não-escolarizada.
(3) Distinguimos três processos de aprendizagem (Ludojoski, 1972:98- a participar” .
110) :
1) um processo de aprendizagem espontâneo: o sujeito aprende sem
que ninguém se proponha a ensinar-lhe ago específico. O estímulo é o am
biente social e físico e as necessidades do sujeito; 3) Um processo de aprendizagem dirigido: o conteúdo já foi progra
2) um processo de aprendizagem ocasional: não se segue uma ordem mado de antemão, assim como os meios e instrumentos. Deve-se despertar no
estabelecida de antemão pelo educador, o conteúdo não é preestabelecido, adulto o interesse por um tema que o mesmo não escolheu mas foi proposto
surge das circunstâncias substanciais; pelo educador.
164 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 165
Por outro lado, temos o perigo do romantismo, que sustenta 2) A educação popular recupera criticamente as distintas
que o povo tem todas as respostas porque dispõe do verdadeiro manifestações culturais próprias dos setores populares; recupera
conhecimento, sacralizandos-e assim o saber popular. Certas cor criticamente a história.
rentes da chamada “tecnologia adequada” situam-se nesta prática 3) A educação popular situa o conteúdo da educação no con
educativa para o desenvolvimento, práticas que, em última análise, texto sócio-histórico em que ocorrem as relações de poder e os inte
revelam-se conservadoras, considerando o campesinato como um resses de classe.
agrupamento humano que atua econômica, política e culturalmente 4) A educação popular concebe a si mesma como uma tarefa
de forma isolada da sociedade global. de sistematização permanente da experiência econômica, política e
Agora, depois de ter analisado alguns problemas iniciais da ideológica dos setores populares para colocar ações concretas no
educação popular, é necessário defini-la mais precisamente. plano econômico, político e ideológico.
A educação popular parte das seguintes premissas: 5) A educação popular converte-se em uma tarefa de classe,
isto é, uma educação real da experiência de classe, o que significa
• a educação oficial é uma conseqüência superestrutural do que
preparar as condições para que sejam os setores populares que
ocorre na base econômica;
assumam, como tarefa de classe, sua própria educação.
• na base econômica, se dá o desenvolvimento das forças produtivas
com base na unidade dialética de contradições; Em síntese, os programas de educação popular ajudam a
• estas contradições se refletem de uma forma ou de outra na esfera educação de classe espontânea a se converter em educação de classe
ideológica e, por conseguinte, também na educação. orgânica.14 A estratégia da educação popular é, pois, contribuir para
*
a organização político-econômica dos setores populares.
Se é ao nível da ideologia que se manifestam as relações e Ora, diante do problema de possíveis opções políticas, deve-se
contradições que ocorrem na base econômica, qual é, no caso da levar em conta diferentes variáveis que diferem de um país para
educação oficial, o equivalente antagônico? Ele deve ser a educação outro, de uma região para outra, de acordo com as características
popular, que não reflete os interesses da classe dominante mas os específicas do lugar onde se trabalha, o setor social, o tipo de lutas
das classes exploradas. A educação popular sempre existiu ao lado políticas a seu alcance, as organizações políticas e econômicas exis
da educação oficial como equivalente antagônico da mesma unidade tentes e, em geral, diversos aspectos conjunturais que devem ser
dialética, em forma espontânea ou estruturada. reflexionados amplamente.
A educação popular não se situa somente no plano ideológico. Em um contexto de economia camponesa e de organização
Nas formas espontâneas de educação popular, ela sempre esteve comunal (tradicional), a opção da organização intercomunal per
relacionada com ações econômicas e políticas concretas. mite ao campesinato relacionar-se com a sociedade abrangente
As formas estruturadas, ou seja, os programas de educação como classe social. O papel da educação e a investigação aponta
popular têm de se adequar ao funcionamento da educação popular para esta opção político-econômica na qual ambas se convertem
espontânea, para que ela se converta em uma verdadeira educação em instâncias populares orgânicas.
de classe, organicamente relacionada com a educação popular es
pontânea, em todas as suas dimensões e ações.
Daí seguem as características fundamentais da educação po
(4) Carlos Brandão, em palestra não publicada (Punta de Tralca, Chile,
pular estruturada: março-abril 1982), fala em converter a educação de classe tradicional em
educação de classe orgânica. Preferimos empregar o termo "espontâneo" em
1) A educação popular parte de prática concreta dos setores lugar de "tradicional", tanto pelas conotações negativas que adquiriu o con
populares e retorna a ela, buscando cientificamente as causas estru ceito "tradicional" como porque o conceito "espontâneo", no sentido grams-
turais para transformar a sociedade de acordo com os interesses ciano, é uma categoria analítica que nos ajuda a visualizar melhor a relação
entre educação popular e pesquisa participante, assim como entender com
imediatos e históricos dos setores populares, integrando a teoria e a maior clareza a relação entre senso comum e bom senso, ou seja, entre saber
prática em uma práxis social definida. popular espontâneo e saber popular orgânico.
166 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 167
No entanto, dentro dos programas de educação popular pode o problema da dominação, por exemplo, está presente na realidade
mos encontrar duas concepções (Cervantes, 1977) que não chegaram objetiva, não na reflexão sobre ela. Por outro lado, uma ação em
a entender o papel da educação no processo de transição de uma reflexão resulta em uma ação “cega” (ação pela ação). Por conse
educação espontânea a uma educação popular orgânica. guintes, o saber e a ação formam parte da mesma unidade dialética,
a práxis, como processo contínuo de reflexão-ação e ação-reflexão.
1) A concepção empiricista. Apresenta-se como um processo
Somente a ação política reflexionada tende à transformação social,
pedagógico fundamentalmente empírico, descuidando da dimensão
ou seja, a uma ação organizada.
analítica e reflexiva do processo. Tende a ser uma simplificação da
realidade social e a desvincular o conhecimento sistemático da reali Sustentamos, então, que a mera proclamação (teórica) de que
dade, relativizando o valor da teoria ou reduzindo esta a suas “a educação popular aponta para a transformação social” não serve
expressões mais simples. Como resultado, trabalha-se com uma para definir a educação popular, assim como vimos que a idéia de
visão emotiva e romântica na qual se coloca a ação pela ação “em participação em si não significa automaticamente educação po
nome do povo” . Ou então se reduz a solução dos problemas exis pular. Tampouco serve dizer que a educação popular se caracteriza
tentes à execução de projetos concretos a pedido da comunidade e por ser educação política, já que toda educação é política; apenas
com a “participação” dela, sem estarem vinculados a uma organi ocorre que a educação oficial e muitas outras formas de educação
zação político-econômica que integre os interesses das forças sociais. não-formal ocultam suas dimensões políticas, ao passo que a edu
2) A concepção pedagogista. Apresenta-se como uma concep cação popular proclama explicitamente sua orientação política.
ção caracterizada pela aplicação rígida de certos esquemas pedagó O trabalho da educação popular estruturada e dos programas
gicos e metodológicos preestabelecidos, extraídos basicamente da de educação popular deve ser um trabalho orgânico de assessoria
colocação de Freire, descuidando de tudo o que se refere à ação para que a educação popular espontânea se converta em uma edu
política como saída lógica do processo educativo. Nesta corrente se cação popular orgânica:5
situam os programas anteriormente mencionados que, ao nível teó • transformar o saber popular espontâneo em saber popular orgâ
rico, se encerram em uma busca quase obsessiva da “verdadeira nico (dimensão ideológica e científica);
consciência de classes” , assim como os programas educativos que • transformar a organização popular espontânea (tradicional) em
pensam que ao utilizarem meios didáticos e comunicativos não- uma organização popular orgânica (dimensão política e econô
convencionais (bonecos, teatro, sociodrama, audiovisuais, fotogra
mica).
fias etc.) se está desenvolvendo uma “autêntica educação popular” .
Mais adiante, veremos como muitas investigações autoprocla- É nesse processo de mudança da educação popular espontâ
madas “participantes” cometem os mesmos erros que as correntes nea para educação popular orgânica que se deve situar não apenas o
de educação popular acima mencionadas. programa de educação popular como também a pesquisa partici
Estas não chegaram a compreender a relação dialética entre o pante e todos os demais programas de promoção e desenvolvimento
saber e a ação, carecendo pois de uma clara definição e aplicação integrado, que partam do princípio de “participação da população
do que podemos chamar práxis social. na transformação social e estrutural da realidade” , já que é justa
Na educação popular, reflexiona-se sobre dados, fenômenos e mente nesse processo que a participação se converte em uma ação
processos, analisando-os como parte de uma realidade em movi reflexionada, onde se inter-relacionam continuamente o político, o
mento dentro da qual o homem não é um ser passivo. O saber, por si
mesmo, não transforma a realidade: é indispensável que o saber
esteja relacionado a uma ação organizada que o reflita e vice-versa. (5) Deve ficar claro também que a educação oficial e as outras moda
Na educação popular, deve-se então estruturar e organizar formas lidades de educação não-formal influem na educação popular espontânea; da
mesma maneira, a ideologia dominante influencia o saber popular espontâneo
de ação que dêem vida às idéias. É errado supor que através da mas não com o objetivo de transformá-lo em educação popular orgânica ou
reflexão se chegará ao descobrimento das leis gerais da realidade: saber popular orgânico.
168 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 169
econômico, o ideológico e o científico, ou seja, em uma práxis social nacional sobre pesquisa participante convocada pelo Consejo Inter
determinada. nacional de Educación de Adultos:
“ A pesquisa participante é um enfoque de investigação social por
Pesquisa Participante meio do qual se busca a plena participação da comunidade na análise
de sua própria realidade com o objetivo de promover a participação
Não só sustentamos que a educação popular deve ser um tra social para o benefício dos participantes da investigação. Esses parti
balho orgânico de assessoria no processo de mudança da educação cipantes são os oprimidos, os marginalizados, os explorados. Trata-
popular espontânea para uma educação popular orgânica, mas se, portanto, de uma atividade educativa, de investigação e ação
social” .
também que o trabalho de investigação deve se situar nesse processo
de mudança para poder converter-se em uma investigação orgânica.
Denominamos, então, pesquisa participante àquela investigação em Nesta definição estão presentes todas as proclamações que, no
que existe um trabalho orgânico de assessoria para que a investi transcorrer dos anos, foram esclarecidas com maior detalhe, quais
gação se converta em uma investigação orgânica; em outras pala sejam:
vras, quando a participação se situa no processo orgânico de pro 1) A investigação não pode aceitar a distância tradicional
dução de conhecimentos, no qual o conhecimento popular espontâ entre sujeito e objeto da pesquisa, por isso deve-se buscar a parti
neo transforma-se em conhecimento popular orgânico (conhecida- cipação ativa da comunidade em todo o processo de investigação.
mento científico). 2) A comunidade tem um acúmulo de experiências vividas e
A pesquisa participante6 em poucos anos ganhou certo prestí de conhecimentos; existe, portanto, um saber popular que deve
gio no mundo das ciências sociais e graças a valiosas experiências servir de base para qualquer atividade de investigação em benefício
concretas; sobretudo no campo da educação, os entusiastas da dela. É a comunidade que deve ser o sujeito da investigação sobre
pesquisa participante puderam delinear as suas características, não sua própria realidade.
só para distingui-la de outros tipos de investigação social mas tam 3) A pesquisa participante estabelece assim uma nova relação
bém para dar-lhe seu próprio conteúdo e definição. A pesquisa entre teoria e prática, entendida esta última como a ação para a
participante ganha cada vez mais reconhecimento oficial no mundo transformação.
científico. 4) O processo de pesquisa participante considera a si mesmo
Muitas características específicas da pesquisa participante, como parte de uma experiência educativa que serve para determinar
hoje em dia, já não são discutíveis, e os que realizam um trabalho as necessidades da comunidade e para aumentar a consciência.
nesse estilo consideram-nas indispensáveis. Estas características se 5) A pesquisa participante é um processo permanente de
referem tanto à opção ideológica como à metodologia, no sentido de investigação e ação. A ação cria necessidade de investigação. A pes
que prima a opção metodológica que, por sua vez, encontra funda quisa participante nunca estará isolada da ação, dado que não se
mentação em uma opção ideológica. trata de conhecer por conhecer.
Podemos resumir brevemente as características principais 6) A participação não pode ser efetiva sem um nível adequado
encontradas em documentos de trabalho que propõem, descrevem ou de organização, ou seja, as ações devem ser organizadas.
avaliam um projeto de pesquisa participante. Uma definição geral e
bastante acertada já foi formulada em 1977 em uma reunião inter Essas características já foram amplamente discutidas nos úl
timos anos.
Já é chegado o momento de analisar criticamente se as últimas
(6) Neste trabalho, empregamos o termo "pesquisa participante" para tentativas de pesquisa participante conseguiram produzir novas
nos referirmos à investigação-ação, à auto-investigação, à enquete partici
pativa e à pesquisa participante, já que entendemos por participação "a ação
idéias e maior precisão, ou ainda se nos contentamos com estas
reflexionada em um processo orgânico de mudança". características para definir a especificidade da pesquisa partici-
170 REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 171
CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
pante. Como foi feito com relação aos programas de educação Como os programas de educação popular, muitas investiga
popular, é oportuno mencionar algumas críticas àqueles projetos de ções sociais se contentam quando há participação da população na
pesquisa participante que consideram as características menciona coleta de dados. Além disso, para prosseguir a comparação com a
das acima como suficientes para se falar em pesquisa participante. educação popular, pensa-se cumprir as exigências de uma pesquisa
Sustentaremos que as condições mencionadas são necessárias mas participante quando se emprega técnicas simples no trabalho de
não suficientes para especificar a pesquisa participante. Não é nossa campo, rejeitando as técnicas tradicionais. A respeito disso, podem
intenção expor neste trabalho todos os pormenores da pesquisa ser feitas as seguintes observações:
participante. Neste estudo, analisaremos algumas de suas caracte
rísticas específicas para depois expor como entendemos, na prática, a) É ingênuo pensar que a pesquisa participante, por ser uma
o seu processo. pesquisa qualitativa, não pode fazer uso em determinados momen
tos de instrumentos típicos de uma pesquisa quantitativa, como, por
exemplo, o questionário tradicional preestabelecido. Se a pesquisa
for orgânica, suas técnicas e instrumentos, quaisquer que sejam,
Opção metodológica da pesquisa participante terão uma característica orgânica, isto é, “para e pela comuni
dade” . É errado pensar que a opção ideológica de uma investigação
A idéia de participação em si não implica que a investigação é definida pelas técnicas e instrumentos que são empregados.
seja pesquisa participante. Para diminuir a distância entre objeto e b) Ao rejeitar as técnicas tradicionais enfatiza-se a necessi
sujeito e para assegurar que a pesquisa participante se baseie nas dade de técnicas simples: fotografias, audiovisuais, historietas, pro
experiências e conhecimentos populares, elaborou-se um esquema gramas radiofônicos, gravações etc. Longe de querer rejeitar essas
de como assegurar a participação ativa da população no processo de técnicas, nossa pergunta é: por que elas são consideradas simples?
investigação (sintetizado em De Schutter, 1981:246). São simples porque o pesquisador está convencido de que as técnicas
A participação ativa da população se expressa através de: que ele aprendeu na universidade são demasiado complexas para
serem utilizadas pelo “povo” . Isso é correto, mas no dia em que um
• formulação dos objetivos da investigação; grupo de pesquisadores profissionais se reunir para analisar um
• definição dos temas e problemas a investigar; problema de sua própria realidade (por exemplo, a autonomia uni
• coleta de dados (uma parte ou o total); versitária) e só empregarem historietas, audiovisuais etc. se darão
• análise dos dados; conta de que a técnica de escrever uma historieta ou o guia de uma
• interpretação do significado da nova informação; fotomontagem é tão complicada quanto a elaboração de um ques
• formulação das prioridades; tionário preestabelecido.
• identificação de recursos internos e externos à comunidade; Em resumo, as técnicas e instrumentos de investigação não-
• programação das ações; convencionais por si mesmas não garantem que a investigação seja
• avaliação permanente das ações; pesquisa participante e constitui equívoco dar-lhes a conotação de
• colocação de novas exigências de informação, formação e ação. “simples” .
Lamentavelmente, em que pese este esquema manipulado por c) Um método muito empregado é o da devolução; muitas
todos, muitas vezes a participação ativa da população só se reduz técnicas não-convencioanis servem para que haja devolução de co
àquelas etapas no processo de investigação que tradicionalmente se nhecimentos adquiridos. Há momentos na investigação em que se
denomina trabalho de campo. Sem a intenção de menosprezar a deve devolver certos resultados ao grupo que está pesquisando,
validade daquelas investigações que buscam a participação crítica porém essa exigência não é feita somente ao pesquisador profissio
da comunidade no trabalho de campo, elas não podem ser conside nal, mas a qualquer pessoa envolvida na investigação. Quando em
radas como um trabalho orgânico de assessoria para que a inves uma comunidade um grupo de idosos e jovens está sistematizando os
tigação se converta em uma pesquisa orgânica. conhecimentos existentes sobre, por exemplo, plantas e ervas medi-
172 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 173
cinais, o resultado dessa sistematização tem de ser devolvido à Esse último é um exemplo de pesquisa participante inscrita
comunidade. em um marco ideológico caracterizado por um compromisso com os
Lamentavelmente, nota-se que a devolução dos resultados é marginalizados e os grupos populares.
usada como justificativa de um trabalho de pesquisa: por um lado, Sem querer, a pesquisa participante se apresenta como um
para continuar extraindo informações valiosas dos setores populares círculo vicioso: justifica-se a opção ideológica pela opção metodoló
e, por outro, para assim legitimar a opção ideológica da investi gica (ver item anterior) e, em contrapartida, justifica-se a opção
gação.7 metodológica por uma opção ideológica, enquanto as duas opções
acham-se totalmente desvinculadas. É assim que, no mesmo exem
Deve ficar claro que a participação da população no trabalho
plo de pesquisa participante, durante a fase de aproximação ao
de campo é uma justa opção metodológica e que esta opção, por sua
grupo selecionado, “ procura-se motivar o grupo a participar da
vez, determina o uso de certas técnicas e instrumentos; mas tanto a
investigação” e “o investigador deve deixar claro que vem para
participação da comunidade no trabalho de campo como as técnicas
a serem empregadas são condições unicamente necessárias e não realizar um estudo que é importante e útil para eles...” . (De Schut
suficientes para se poder falar em um trabalho orgânico de investi ter, 1981:270).8
gação (opção ideológica). Já não ouvimos falar dessas táticas há muitos anos? Não é
tarefa primordial do assistencialista (tão desprezado pelo pesqui
sador participante profissional) motivar os camponeses a participar
Opção ideológica da pesquisa participante das atividades que são úteis e importantes para eles?
Justificando-se com a opção ideológica, a pesquisa partici
Como nos programas de educação popular, trata-se de supe pante corre o risco de oferecer uma metodologia de investigação
rar a limitação da opção metodológica sustentando que esta encon que, sob as condições de resistência popular, permite a muitos
tra sua justificativa em uma opção ideológica. Isso é correto, desde profissionais continuar as suas investigações. Isto é, ao invés de
que não haja desvinculação entre as duas opções. entender a resistência popular contra tantas pesquisas que se desen
volvem na comunidade como uma resitência contra atividades não
Qualquer pesquisa com uma opção ideológica totalmente dis
inseridas em sua realidade, vivência e racionalidade econômica, ela
tinta daquela em que se baseia a pesquisa participante pode empre
é novamente explicada como outra irracionalidade da parte dos
gar técnicas não-convencionais, por exemplo, pela seguinte razão:
camponeses, justificando-se como uma opção ideológica que pro
clama que a investigação está comprometida com eles e “baseada”
“Os camponeses não entendem nada, nem sequer sabem pôr uma
em sua própria realidade.
cruz em meus testes estruturados; se não lhes explicar com desenhos e
fotografias nunca irão me entender” .
Um projeto sério de pesquisa participante não deve ter neces
sidade de “ motivar o grupo a participar de algo que é útil para ele” ,
Ou, como é sugerido a fim de ganhar a aceitação da população para pois, como já sustentamos, a participação se situa no processo
orgânico de converter o saber popular espontâneo em um saber
se executar uma pesquisa participante em uma comunidade:
popular orgânico (conhecimento científico). É inerente a esse pro
“ ... o emprego dos meios audiovisuais ajuda a conseguir uma apre cesso de mudança a participação de setores populares. Por isso,
sentação inicial com impacto” (De Schutter, 1981:273; grifo nosso). temos de rejeitar a idéia de que o método de pesquisa participante
(7) As duas primeiras críticas também foram mencionadas no parágrafo (8) A citação completa é: "O pesquisador deve deixar claro que vem
sobre educação popular; no entanto, a última (devolução de conhecimento) para realizar um estudo que é importante e útil para eles, mas que irá embora
corresponde apenas aos pesquisadores profissionais, já que o educador popu assim que tiver terminado". Foi retirada do trabalho de R. e M. Darcy de
lar, que goza de um status inferior, não tem o problema de ser criticado por Oliveira, The militant observer: a sociological alternative, Genebra, IDAC,
extrair informação para seus próprios fins. 1975.
174 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 175
implica uma seqüência de relações específicas, qual seja, a “neces nização social da comunidade e as atividades de produção e co
sidade de um compromisso de participação por parte da comuni mercialização).
dade durante um período mais amplo do que ocorre com outros • Também a investigação pode ser empregada como meio para ob
métodos de pesquisa. A única coisa que pode justificar tal solicitude ter a participação ativa da comunidade nas ações do programa de
e fazê-la bem-sucedida é a perspectiva de obter maiores benefícios desenvolvimento, que em si não é discutível.
diretos...” (De Schutter, 1981:262; grifo nosso). Sustentamos que
esta afirmação é a própria negação da legitimidade de um projeto de Os três exemplos carecem de duas condições necessárias para
pesquisa participante. se poder falar em investigação-ação:
1) não há presença da organização que guia a ação, uma vez
Investigação -ação que a ação, em última instância, é uma ação política;
2) não se trata de uma ação reflexionada, mas de ações sepa
Como a participação, a ação em si mesma não garante auto radas do trabalho de pesquisa, que neste caso é somente uma prá
maticamente que a pesquisa esteja relacionada adequadamente com tica teórica diferente da práxis social.
a ação, ou seja, que possamos falar de uma ação reflexionada.
Para que haja uma relação adequada entre pesquisa e ação,
No que se refere à relação investigação-ação, esta última pode
ser empregada como nova forma de manipulação; onde a ação não se reduza a uma mera tática (manipulativa), nem a
investigação se converta numa nova prática teórica, deve haver uma
• Ao executar um projeto de pesquisa participante, a equipe se instância mediadora, qual seja, a organização. É a organização
propõe também a apoiar ações concretas da comunidade. É assim (político-econômica) que dá garantia para que:
que o pesquisador profissional executa seu projeto de pesquisa
1) a pesquisa científica seja uma investigação própria dos se
e, ao mesmo tempo, a equipe promotora apóia a execução de
tores populares, inserida — e não apenas “baseada” — na sua
pequenos projetos (por exemplo, granjas comunitárias de peque
nos animais, oficinais de artesanato, barracas comunais etc.) realidade social; em suma, uma investigação orgânica (a opção
ideológica como objetivo final dos profissionais comprometidos);
ou desenvolve projetos de alfabetização. Fica claro que essas ações
2) o trabalho do pesquisador profissional seja um trabalho de
nada têm a ver com a pesquisa, já que não há uma relação dia
assessoria que permite ao saber popular espontâneo converter-se em
lética entre reflexão e ação, ou seja, de maneira alguma pode-se
saber popular orgânico; isto é, uma investigação-ação com um tra
falar em práxis social. Podemos nos perguntar, em outros termos,
balho orgânico de ação reflexionada (opção metodológica).
se a equipe promove a comunidade ou o pesquisador profissio
nal, ao motivar o grupo camponês a participar na pesquisa do
Essa instância de organização, onde o esforço da pesquisa é
profissional através de uma técnica manipuladora de apoio a
um trabalho de assessoria, supera as características iniciais da pes
ações concretas. Mais adiante, retomaremos a relação entre pes
quisa participante, as que chamamos necessárias mas não suficien
quisador profissional, equipe promotora e comunidade.
tes. Fazia falta à nossa afirmação a condição de organização que
• Outra técnica manipulativa é utilizar uma ação concreta para garantirá uma pesquisa orgânica.
que a comunidade faça, por exemplo, seu autodiagnóstico cum
prindo os diferentes passos da pesquisa participante (ver acima),
enquanto os resultados dessa pesquisa servem a um tema de inves
tigação que não tem nada a ver com a ação concreta, mas é o Intelectual orgânico
tema proposto pelo profissional a si mesmo (por exemplo: a ação
visa estabelecer na comunidade um posto médico, enquanto o Para terminar esta primeira parte, resta-nos uma observação:
tem a-de investigação é estudar a relação entre as formas de orga a relação entre pesquisador e grupo popular no processo de trans-
176 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 177
formar o senso comum em bom senso.9 A pesquisa participante é intelectual-moral que torne possível um progresso intelectual da
conhecida como a primeira corrente de pesquisa social que procura massa e não unicamente dos grupos reduzidos de intelectuais.”
diminuir a abismai distância entre pesquisador profissional e comu (Gramsci, 1967:73) No momento em que esse “progresso intelec
nidade. Ã parte o fato de a pesquisa participante conter um con tual” se constitui em um processo orgânico no qual o saber popular
junto de técnicas para fazer com que a população participe da pes espontâneo torna-se um saber orgânico, podemos afirmar que a
quisa (ver acima), também deu a esta tarefa um conteúdo ideo investigação é uma pesquisa participante, que aponta para sua
lógico. transformação em pesquisa orgânica.
Foi Gramsci quem esclareceu de maneira bastante acertada o Desta segunda forma de relação entre pesquisador profissio
conceito de intelectual empregado amplamente na educação popu nal e comunidade pode-se dizer que se trata de um trabalho perma
lar. No entanto, nota-se em vários trabalhos uma interpretação nente de assessoria para “elevar constahtemente o nível intelectual
equivocada do que Gramsci chama “intelectual orgânico” . das camadas populares mais amplas, o que significa trabalhar para
De acordo com as colocações de Gramsci, a relação pesqui promover ‘elites’ de intelectuais de um novo tipo, surgidos direta
sador profissional-comunidade pode-se dar, consciente ou incons mente daqueles que permanecem em contato para se transformarem
cientemente, de duas formas distintas. no núcleo expressivo básico” (Gramsci, 1967:81).
A primeira forma é aquela que tenta criar uma unidade ideo Com isso, tocamos no conceito mais conhecido de Gramsci,
lógica entre “os de cima e os de baixo” , entre o “povo” e os inte que é também o mais mal interpretado: o intelectual orgânico.
lectuais, não para que o povo produza o mesmo nível de conheci Partimos da premissa de Gramsci, segundo a qual todos os
mento científico, mas para manter os subalternos em sua filosofia de homens são intelectuais embora nem todos desempenhem na socie
senso comum, exigindo dos intelectuais que não ultrapassem os li dade a função de intelectuais. É necessário, então, criar um novo
mites desse senso comum e se adaptem ao saber popular espontâ tipo de intelectual, ligado organicamente ao desenvolvimento da
neo. organização político-econômica do setor popular. Ao criar esse novo
Reduzindo a pesquisa participante a um simples método, tipo de intelectual, o problema essencial vai ser a relação entre o
justificando a participação pelo uso de técnicas simples, pode-se cair intelectual como categoria orgânica, o intelectual tradicional e a
facilmente no erro de impedir o progresso intelectual dos setores comunidade em geral. Deve ficar claro que o intelectual tradicional
populares, ou seja, impedir uma pesquisa orgânica, o que, por sua não é um intelectual orgânico do setor popular por mais que se
vez, permite ao pesquisador profissional continuar investigando autoproclame como “pesquisador consciente de seu papel de inte
como sempre. Esse tipo de pesquisa participante pode ser criticado lectual orgânico” (De Schutter, 1981:259). A tarefa primordial do
da mesma forma como Gramsci criticou a Igreja Católica: “A Igreja setor popular é, por um lado, criar intelectuais próprios, orgânicos,
Romana sempre foi tenaz em seus esforços para impedir que se e, por outro, assimilar intelectuais tradicionais.
formem ‘oficialmente’ duas religiões: a dos ‘intelectuais’ e a das O segundo, o intelectual tradicional, tem como tarefa asses
‘almas simples’, mantendo os ‘simples’ em sua primária filosofia de sorar o trabalho de pesquisa para que o setor popular produza
senso comum” (Gramsci, 1967:70). conhecimentos científicos “orgânicos” (saber popular orgânico).
A outra forma é a antítese da mencionada acima: orienta-se Este trabalho deve ser obrigatoriamente uma pesquisa participante.
para guiar os “simples” para uma concepção superior de vida. O intelectual orgânico tem como tarefa levar adiante uma verda
“ Se se afirma a necessidade do contato entre intelectuais e deira investigação orgânica. Ambos têm uma tarefa crítica e cria
simples, não é para limitar a atividade científica e manter a unidade tiva. Crítica no sentido de apropriação da ciência e tecnologia exis
ao nível baixo da massa, mas precisamente para criar um bloco tentes, e criativa no sentido de responder científica e tecnicamente
às necessidades e interesses do próprio setor popular.
Para terminar esta parte, é oportuno falar sobre o papel da
(9) Os conceitos "saber popular espontâneo" e "saber popular orgâ
nico" têm semelhança com o que Gramsci chama de "senso comum" e "bom equipe promotora. Em todos os programas de educação popular,
senso". desenvolvimento rural e pesquisa participante, conta-se com equipes
178 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 179
promotoras. Lamentavelmente, o pesquisador profissional ou o teó • o econômico e o político (a organização popular orgânica);
rico da educação popular muitas vezes subestima o papel suma • o científico e o ideológico (o saber popular orgânico).
mente importante dessas pessoas. Se há um grupo de intelectuais
que pode se apropriar do título de “intelectual orgânico” , é este. Somente assim podemos falar de uma participação da popu
Porém, pelo fato de trabalhar sempre em conjunto com o setor lação como uma ação reflexionada, como uma práxis social.
popular e para ele, essas pessoas não têm tempo de “estudar” as Essa interação entre o econômico, o político, o ideológico e o
obras de Gramsci, de modo que o pesquisador profissional acaba científico deve encontrar sua concreção no trabalho orgânico de
sendo-lhes superior: e este se sente muito feliz e engajado com seu assessoria, daí que, na prática concreta, não existe um processo
novo título de “intelectual orgânico” . Por isso, é urgente criar estritamente seqüencial, tampouco é possível isolar ações de uma
oportunidades para que as equipes promotoras tenham tempo e dimensão das de outras. No que se refere a ações educativas, eco
possibilidades de sistematizarem suas próprias experiências. Se di nômicas e políticas, já é amplamente aceita sua inter-relação perma
zemos que os setores populares podem e devem sistematizar suas nente. Lamentavelmente, a ação de pesquisa ainda não se integrou
experiências, conhecimentos e vivências, deve-se sustentar o mesmo totalmente a este processo multidimensional de ação reflexionada,
com respeito às equipes promotoras, os representantes mais nítidos no qual também a pesquisa participante deve ser um trabalho
tanto de intelectuais orgânicos quanto de intelectuais tradicionais orgânico de assessoria.
assimilados pelo povo. Nas linhas seguintes se descreve, então, um caso concreto que
busca permanentemente fazer todas as suas ações constituírem um
trabalho de assessoria nos planos educativo, econômico, político e
científico. Os exemplos mostram claramente a inter-relação entre
Pesquisa participante em um contexto
essas esferas.
de economia camponesa: um caso O Centro de Capacitación Campesina (designado de ora em
diante como Centro) iniciou suas atividades em 1977 na zona andina
Nesta parte, analisaremos brevemente um caso concreto de do Departamento de Ayacucho, como um programa da Universidad
pesquisa participante nos Andes peruanos, em um contexto de eco Nacional de San Cristóbal de Huamanga.
nomia camponesa, para visualizar as idéias expostas anterior mente. Como já dissemos, é difícil isolar uma ação concreta da outra;
Mostramos que não basta a mera proclamação ideológica de apenas por razões estritamente práticas, podemos dizer que o Cen
que a educação popular ou a pesquisa participante devem apontar tro trabalha com:
para a transformação da sociedade. Do mesmo modo, vimos que a
participação em si não significa automaticamente educação popular 1) capacitação/educação popular;
ou pesquisa participante, tampouco é suficiente dizer que ambas se 2) investigação social e tecnológica;
caracterizam pelo uso de meios educativos e/ou técnicas de investi 3) assessoria a projetos comunitários e intercomunitários;
gação simples e não-convencionais. Consideramos tudo isso como 4) organização comunitária e intercomunitária.
condições necessárias porém não suficientes. É importante, além
disso, conceber a educação popular e a pesquisa participante como Atualmente, trabalham quatro equipes multidisciplinares em
um trabalho orgânico de assessoria para que: quatro ambientes geográficos (núcleos intercomunitários) que de
senvolvem as atividades assinaladas. Um núcleo consiste em várias
• a educação popular espontânea se converta em educação popu
comunidades, cada qual com sua organização comunitária, onde
lar orgânica;
existe um comitê intercomunitário eleito por cada uma das comuni
• a pesquisa popular espontânea se converta em uma pesquisa po
dades na assembléia comunitária que controla e fiscaliza suas ações.
pular orgânica.
A descrição anterior mostra que a comunidade camponesa
Além disso, esse processo deve ocorrer em quatro níveis: ontinua sendo a base da organização intercomunitária, porque a
180 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 181
este nível é que se controla os recursos da terra, água e força de Embora o sistema de troca por escambo (intercâmbio de va
trabalho. lores de uso entre diferentes territórios ecológicos) persista ainda,
É fundamental compreender a base econômica da organização não se pode negar os amplos contatos com o mercado.
comunitária porque é ela que determina, em última instância, as A produção é organizada pela unidade doméstica em um
possibilidades e limitações da economia familiar camponesa. contexto de economia camponesa no interior da organização comu
As comunidades na zona de trabalho são muito bem organi nitária.
zadas e ainda pouco diferenciadas. O isolamento geográfico e os Esta organização tem uma lógica própria de funcionamento
conflitos entre as comunidades parecem influir na coesão da organi que denominamos “racionalidade camponesa” : essa racionalidade é
zação comunitária. o conjunto de arranjos sociais, econômicos, tecnológicos, políticos e
As comunidades são extremamente pobres e a região é das ideológicos que asseguram a estratégia de sobrevivência, que entram
mais oprimidas do país: não existem serviços de saúde, água potá cada vez mais em contradição com a racionalidade do mercado.
vel, assistência técnica, infra-estrutura de irrigação, estradas; a pro Com base em um reconhecimento global da região (indispen
dução agropecuária é muito baixa e, juntamente com a produção sável para o profissional que ali trabalha) confrontam-se as dife
artesanal doméstica, continua sendo destinada principalmente ao rentes visões sobre a realidade em assembléias comunitárias, peque
uso da unidade doméstica. nos cursos de capacitação, grupos de discussão com autoridades
O conjunto de fatores faz com que o nível de vida da popu comunitárias, dirigentes e comuneiros em geral. Planeja-se um con
lação seja muito baixo. junto de ações alternativas que podem exigir trabalhos específicos:
Em Víctor Fajardo, província onde está situada a maior parte pesquisa, capacitação, execução de algum projeto etc. Até aqui,
das comunidades com as quais trabalha o Centro, a esperança de o profissional continua sendo o promotor ou organizador do pro
vida é de 40 anos e a taxa de mortalidade infantil, 24,3% (Amat & cesso. Reconhecendo que a comunidade cumpre funções econômicas
Leon, 1981:42). (controle da terra, água e força de trabalho), políticas (defesa dos
Encontramos o fenômeno da migração em todas as comuni recursos coletivos e individuais) e culturais (oferece uma “identi
dades, apesar de se encontrarem geograficamente isoladas. A mi dade” ao grupo humano), as atividades educacionais, de pesquisa e
gração sazonal não é tão recente, como muitas vezes se afirma, pois de promoção giram em torno destas funções. Embora o camponês
há muitas décadas a migração é uma atividade elementar na região usufrua da terra agrícola individualmente, a comunidade lhe ga
para completar a renda familiar. No princípio deste século, os rante o acesso aos diferentes terrenos ecológicos da comunidade, e
camponeses caminhavam para a Costa, numa viagem de até 8 dias, todas as áreas de pastagem pertencem à comunidade.
para trabalhar nas grandes fazendas. Eram fazendas de monocul No entanto, a organização comunitária, se encontra por sua
tura (principalmente algodão) destinada à exportação que, em época vez limitada no “enfrentamento” com a sociedade maior, e é assim
de colheita, requeriam muita mão-de-obra (Zervalos, 1982). Na dé que, a partir de 1979, se chega a colocar a organização intercomu-
cada de 60, diminui a demanda de mão-de-obra nas fazendas cos nitária como eixo central do trabalho. Na reflexão inicial sobre a
teiras e cresce a necessidade de mão-de-obra barata para a indús organização intercomunitária perfilam-se razões e motivações orga-
tria, motivo pelo qual aumenta a migração temporária. nizativas e administrativas internas (eficiência de trabalho) mas a
Na década de 70, retoma importância a migração sazonal, perspectiva é clara desde o início: encontrar uma resposta adequada
desta vez para a Selva, onde o auge da produção de café e cacau para a defesa dos interesses de todos os camponeses. Essa dimensão
requer mão-de-obra barata para a colheita. de classe se vem perfilando no trabalho permanente com a comu
É o desenvolvimento do mercado interno que, juntamente com nidade nas diferentes ações que se desenvolve; é o momento em que
os termos desiguais de troca, aumenta a necessidade de dinheiro, as atividades do Centro começam a adquirir as características de um
obtido principalmente por meio da migração sazonal, já que não há trabalho orgânico de assessoria.
maiores excedentes agropecuárias ou artesanais que possam ser Na região não existiam fatores “externos” que gerassem uma
oferecidos no mercado. experiência de luta coletiva, pois não houve ali presença importante
182 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 183
de latifúndios, o que fez com que não se tenha conhecido a expro- Para evitar o iminente perigo de um apadrinhamento assis-
priação de terras por latifundiários (embora existam algumas evi tencialista para a organização (inter)comunitária pelo Centro, este
dências históricas em Quispillaqta, onde parte dos comuneiros se optou em 1980 por não ter fundos para a concretização de projetos,
estabeleceram em caráter permanente na alta da comunidade — destinando à organização intercomunitária recursos que podem ser
4000 m sobre o nível do mar — para defender as terras comunais usados autonomamente pelas comunidades e de acordo com as
contra as invasões de latifundiários). necessidades e interesses; o manejo desse fundo ajuda também as
Na época pré-colonial, a região foi controlada pelos incas sob comunidades a procurar e exigir recursos de outras instituições
o princípio de “dividir para governar” , colocando em uma região (governamentais e não-governamentais). Tanto no manejo do fundo
relativamente pequena diferentes etnias tradicionalmente inimigas e intercomunitário como na dificílima tarefa de conseguir outros fun
de difícil controle. Estas começaram a lutar entre si para recuperar dos, o Centro tem um papel de intermediador e assessor.
identidade coletiva e as lutas entre as diferentes comunidades se Nesse contexto de organização comunitária e intercomuni
mantiveram durante séculos, até a atualidade. tária, realizam-se atividades de capacitação e investigação que po
Essas lutas asseguraram a “paz social” e fizeram com que a dem ou não ser desenvolvidas ao redor de algum projeto concreto,
região fosse abandonada todo o tempo por qualquer espécie de ser mas de qualquer maneira sempre estão ligadas a ações concretas
viços, já que não existia a necessidade de “apadrinhamento estatal” que, por sua vez, estão em relação com a organização (inter)co-
(Scott, 1976:215) para suavizar os conflitos sociais estruturais. munal.
Já que todas as comunidades se encontram entre 3 000 e 4000
Aparentemente, esse contexto não é precisamente um terreno
metros sobre o nível do mar, uma atividade importante é a criação
fértil para uma organização intercomunal; no entanto, é a partir do
desenvolvimento do mercado interno, que se expressa em problemas de gado, motivo pelo qual a saúde animal é tema de discussão e ação
sempre presente.
concretos e imediatos, que as comunidades começaram a colocar a
Uma das alternativas de solução pode ser um serviço veteri
dimensão intercomunal como forma de luta contra a contradição
nário. Atualmente, três núcleos intercomunitários estão implemen
primária. As comunidades estão se dando conta de que as contradi
ções litigiosas lhes fazem perder seus fundos (comunais), para pagar tando um posto veterinário e discutindo a forma de administrá-lo e
juizes etc., sem que haja sequer as mínimas condições para melho organizá-lo, para que seu funcionamento seja coerente com a orga
rar os níveis de vida. Ora, nem as comunidades nem o Centro optam nização comunitária existente e com a organização intercomunitária
por negar simplesmente essas contradições secundárias, em seu afã (o posto tem uma função intercomunitária).
de trabalhar somente em função da contradição primária. O que Evita-se qualquer imposição de uma nova forma organizativa
está claro é que ambos estão em um processo no qual a organização para o posto sem relação com a organização (intercomunitária.
tradicional está se superando em direção a uma organização orgâ Ao mesmo tempo, o posto torna necessária a realização de um
nica de classes. censo pelas comunidades para se conhecer o número de cabeças de
gado e estão sendo pesquisadas diferentes formas de cura tradicio
Nos encontros e reuniões intercomunais, se observa quais tipos nal em comparação com tratamentos “ modernos” para se verificar
de problemas vão sendo dimensionados como problemas de inte qual é o mais adequado segundo uma lógica dupla: a da economia
resse comum. A necessidade prioritária colocada de encontrar for camponesa e a da dinâmica da economia capitalista. Os comunei
mas coletivas de defesa contra o roubo de gado mostra que a ros, conscientes de que vale mais se basearem em seus próprios
organização comunitária de defesa contra um problema comum — recursos em vez de comprar remédios modernos sem maior conhe
que, se perdura, põe em perigo os frágeis níveis de subsistência — cimento sobre sua eficácia e conseqüências, manifestaram também
pode ser mais efetiva se estiver ligada a uma organização maior de a necessidade de saberem se seus conhecimentos empíricos, acumu
defesa, como uma forma de obter maior força na negociação com a lados durante séculos, sobre ervas e plantas medicinais são corretos
sociedade global para conseguir a homogeneidade dos interesses e, e verdadeiros; exigiram então uma pesquisa sobre a eficácia e as
assim, a identidade de classe. conseqüências do uso de remédios tradicionais. Colocaram clara-
184 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 185
mente que não lhes ajuda em nada um romantismo cego no sentido Para o Centro, é importante conhecer o número e a posse dos
de fundamentarem-se indiscriminadamente nos remédios tradicio diferentes tipos de gado, como também da posse da terra para traçar
nais: dever-se-ia investigar ambos os tipos de remédios quanto à seu trabalho futuro. Quando os profissionais iniciaram seu trabalho
eficácia e à utilidade, para se poder escolher adequadamente entre a na comunidade de Quispillaqta, da qual faz parte Yuraq Cruz, foi
as diferentes alternativas. “Adequadamente” refere-se, então, à feito um reconhecimento global da região, mas apenas com fins
dupla lógica econômica: adequados à economia camponesa e às práticos, já que eles deveriam saber da existência e das possíveis
relações que o campesinato mantém com o mercado. conseqüências de uma diferenciação camponesa no interior da co
Ora, qual é a relação entre Centro e comunidades durante munidade (distribuição de riqueza, poder etc.). Mesmo assim, era
toda essa problemática de sanidade animal, especificamente no que necessário para eles conhecer os problemas relativos ao gado, os
toca ao censo da posse do gado e à investigação sobre remédios mais importantes da região. Sabíamos de antemão que a informação
adequados? obtida estava distorcida, já que não houvera participação da popu
Deve ficar claro que a atual maneira de trabalhar entre o lação na pesquisa. Tampouco essa participação foi buscada ou
Centro e as comunidades camponesas é fruto de todo um processo motivada, o que resultava numa técnica de manipulação muito sutil,
conjunto. Ao iniciar suas atividades na região, o Centro estava longe já que a população naquele momento não sentia a necessidade de tal
de seu papel assessor; o alcance está no fato de todos terem experi pesquisa, e o Centro não poderia justificar ainda por que pensava
mentado esse processo, no qual a relação entre Centro e comuni que a pesquisa era útil e importante para ela. O que se fez foi
dades tem sofrido mudanças continuamente. Deve ficar claro tam devolver o resultado do estudo de base, através de um folheto e
bém que aquilo que chamamos de elementos minimamente neces audiovisual para começar uma discussão com a comunidade sobre a
sários de uma pesquisa participante já estão presentes nesta fase, visão que os profissionais obtiveram da realidade e sua problemá
como, por exemplo: tica.
A pesquisa logo se tornou útil e importante para a comuni
• a participação da população se expressa em todas as fases da
dade, quando se apresentou um problema agudo que afetou a pre
investigação, desde a definição do tema e a formulação dos obje
cária situação econômica de todos os comuneiros: tratava-se de uma
tivos até a interpretação da nova informação e a programação
enfermidade animal bastante generalizada e de conseqüências fa
de ações e novos temas de investigação;
tais, o alicuya (fascíola hepática). Os profissioanis conseguiram
• o uso de métodos e técnicas adequados ao tema de pesquisa,
explicar aos comuneiros que somente um tratamento coletivo pode
entre os quais a devolução permanente.
ria solucionar o problema, já que o alicuya era contagioso. Desse
O que queremos mostrar com esse exemplo é como o saber modo, a população se deu conta de que era importante e útil conhe
popular espontâneo passa a ser um saber popular orgânico, através cer o número e a posse dos diferentes tipos de gado. A assembléia
de um processo de pesquisa participante que, por sua vez, ajuda a comunitária concordou em executar um censo pecuário, encarre
tornar também orgânica a investigação. O trabalho da equipe pro gando sua organização às autoridades locais assessoradas pelos pro
motora é um trabalho de assessoria em um processo de ação refle- fissionais. As autoridades locais decidiram formar um grupo de
xionada da própria população. “pesquisadores” constituído por eles mesmos, jovens da comuni
Yuraq Cruz é uma aldeia na região Puna (4 000 m de altitude); dade e os profissionais. Foram incluídos os jovens porque são os que
a atividade principal, condicionada pelo fator climático, é o gado. sabem ler e escrever; as próprias autoridades participaram porque a
Todos os comuneiros também têm acesso ao terreno ecológico Que- assembléia declarou que não se obteria um bom censo se apenas os
chua (2000-3 500 m de altitude), onde se produz principalmente jovens se encarregassem dele, pois sendo estes pessoas sem maior
milho. A aldeia faz parte da comunidade camponesa Quispillaqta, o autoridade junto à comunidade, nem todas as famílias poderíam
que lhe assegura o acesso aos diferentes terrenos ecológicos. Pelo lhes passar as informações verdadeiras. Foi assim que um problema
fato de a atividade produtiva principal ser a criação de gado, o real e sensível deu início a todo um processo de investigação sobre a
Centro intensifica seu trabalho nessa área. atividade econômica principal: a criação de gado.
186 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 187
Mais adiante, a enfermidade provocou uma discussão sobre também por tornar-se uma investigação orgânica. Tanto os comu
suas origens e as diferentes alternativas para sua solução. Con neiros como os profissionais desempenham uma tarefa crítica e
cordou-se também em realizar uma investigação ampla sobre a criativa, buscando criticamente quais avanços da ciência e da tecno
medicina popular e a medicina moderna em pecuária. A assembléia logia existentes podem ser úteis e geram criativamente novos conhe
concordou que a equipe encarregada da pesquisa incluísse mulhe cimentos, aceitando ou rejeitando conhecimentos existentes.
res, jovens e profissionais: as mulheres porque se dedicam principal A ação reflexionada mostra-se mais claramente no último
mente a trato do gado e, portanto, têm maiores conhecimentos passo, onde se deve definir qual é a ação mais adequada no interior
acumulados sobre formas tradicionais de tratamento de doenças; da economia camponesa e das relações existentes com a sociedade
os jovens, para que aprendessem os conhecimentos existentes dos mais ampla; por exemplo, um remédio caseiro pode ter rentabili
anciãos; os profissionais, para auxiliar os diversos passos da pes dade econômica se se considera o gado como mercadoria, mas o
quisa, especialmente na análise química dos tratamentos. mesmo remédio não é rentável se o gado tem apenas valor de uso.
Os passos da investigação foram os seguintes: Existem também, naturalmente, casos inversos.
Em todo esse processo de investigação se observa claramente
• sistematização das principais doenças do gado na região;
que o papel dos profissionais já é o de assessoria; nesta fase do
• coleta de dados relativos ao conhecimento existente sobre ervas
programa, é a comunidade que se encarrega da investigação, sem
e plantas medicinais adequadas para tratar de doenças do gado;
subestimar o papel importante dos profissionais; com isso se está
• coleta de dados relativos ao conhecimento existente sobre a forma
criando sobretudo intelectuais próprios, orgânicos, e assimilando
de preparação dos remédios;
intelectuais tradicionais.
• análise das causas das doenças; os profissionais, de um lado,
A experiência demonstra que não é a simplicidade da técnica o
argumentavam que o alicuya era conseqüência da contaminação
que determina a pesquisa como participante. São os camponeses,
da água, enquanto os comuneiros afirmavam ser um castigo de
por meio de um processo de reflexão conjunta, que estão sistemati
Wamani (o deus da colina). As duas explicações são levadas em
zando suas experiências e gerando novas opções, criando assim, em
consideração; através de provas empíricas se procura a resposta um processo de educação orgânica, seus próprios intelectuais. O
adequada; papel do profissional tradicional é fundamentalmente distinto e,
• análise dos tratamentos caseiros: essa análise se realiza tanto no
apenas na medida em que se assimila a este processo, é de asses
próprio campo, através de provas empíricas (na comunidade exis
soria.
te um “laboratório de campo”) como em laboratórios reconheci
dos, para definir os elementos ativos de uma planta ou erva, isto
é, também fazem parte da investigação algumas técnicas compli
Bibliografia
cadas;
• depois de saber quais tratamentos serviríam para combater o Amat y León, C., L a d e s i g u a l d a d in t e r io r e n e l P e r u , Lima, Universidad dei Pací
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cucho, UNSCH/CCC, 1982, mimeo.
do Canindé*
M an u el Alberto A rg u m e d o ** ____
Definição participativa de um convênio
de cooperação técnica
Em fevereiro de 1980, iniciou-se a execução do convênio de
cooperação técnica entre a Secretaria de Educação do Estado do
Ceará e o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricul
tura (IICA), visando apoiar o desenvolvimento de programas de
educação integrada na zona rural do estado. Apesar de incluir o
texto do convênio algumas definições mínimas com relação aos
objetivos e metas da cooperação técnica, considerou-se necessário
começar o trabalho a partir de uma reflexão conjunta de todo o
pessoal da Secretaria envolvido na execução de ações educativas na
zona rural, procurando delimitar as principais dificuldades enfren
tadas. O plano de trabalho do convênio deveria surgir desse diálogo,
como um esforço por encontrar juntos caminhos alternativos para
superar essas dificuldades.
Assim, a primeira atividade dos técnicos do IICA foi conhecer
a realidade: situação da educação rural no estado, principais pro-
(*) Relatório de experiência de um sistema de educação rural em um
projeto de desenvolvimento rural integrado, realizado pela Secretaria de Edu
cação do Ceará e pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agri
cultura — IICA. 0 Autor agradece as informações e os materiais proporcio
nados por Beatriz Feitosa de Carvalho, que acompanhou o trabalho desen
volvido pela comunidade de Bonitinho, Canindé, CE.
(**) Peruano, educador, técnico do IICA no Brasil.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 191
190 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
blemas, ações em execução e programadas pela Secretaria e outros ticipativo que possibilitassem a construção progressiva de uma
metodologia de trabalho dos agentes educacionais junto às comuni
órgãos. A seguir, realizou-se um seminário com a participação de
dades rurais.
todos os técnicos da Secretaria que direta ou indiretamente tinham
A experiência permitiría concentrar as ações, até o momento
relação com os projetos de educação rural. O seminário teve, como
dispersas, da Secretaria de Educação e, além do mais, integrá-las às
tema central, “Educação Rural: uma estratégia de ação” , e desen
ações desenvolvidas por outros órgãos do estado na zona rural. As
volveu-se em uma série de debates em pequenos grupos e plenárias
próprias comunidades, com a cooperação de uma equipe interdis-
sobre um conjunto de parágrafos breves que pretendiam subsidiar
ciplinar de técnicos, realizariam um diagnóstico participante como
as definições estratégicas esperadas como resultado das discussões.
ponto de partida para formular um plano de ação com vistas a
Como apoio para os trabalhos de grupo, foi elaborada uma coletâ
trabalhar em conjunto para superar os principais problemas reco
nea de textos de diferentes autores que discutiam afirmações conti
das nos diversos parágrafos do texto-base. nhecidos. Tratava-se de um estudo da realidade vivida pelo grupo,
O resultado desse seminário foi um documento que definia as através de sua percepção dessa realidade, que seria o ponto de
diretrizes a serem seguidas para que a educação rural pudesse partida, a matéria-prima de um processo “ dinâmico e permanente
assumir seu papel em um programa de desenvolvimento integral, de conhecimento centrado na descoberta, análise e transformação
concebido como “um processo sócio-econômico, político e cultural da realidade pelos que a vivem” (Oliveira & Oliveira, 1981:19).
das populações rurais com vistas a melhorar suas condições de
vida” , que deverá necessariamente realizar-se “através da partici
pação consciente e crítica dessas populações na análise de seus pro Algumas palavras mais sobre as diretrizes
blemas, de suas necessidades e interesses, no encaminhamento de
soluções, na tomada de decisões e na ação orientada a transformar As três diretrizes que, segundo as conclusões do seminário,
sua situação e superar os problemas de suas comunidades no con orientariam a experiência de educação rural integrada nasceram da
texto global da sociedade” (UNESCO, 1978:14). dificuldade que os técnicos da Secretaria consideravam mais com
plexa: como integrar as ações educacionais entre elas e com as ações
A educação foi definida como uma dimensão do processo
global de desenvolvimento, como uma interação entre os sujeitos das outras instituições que atuam nas zonas rurais? A resposta a
essa questão encontra-se evidentemente nas diretrizes e foi apare
desse processo visando atingir determinados aprendizados conside
rados necessários com relação ao projeto social do grupo. As ativi cendo cada vez com maior clareza ao longo do trabalho nas comu
nidades. Era a própria situação problemática onde se manifesta a
dades educativas são assim “integradas” , de modo que contribuem
integração, na realidade vivenciada e compreendida pela população
para estender certas formas de compreender e agir sobre a realidade
que facilitam o alcance dos objetivos estabelecidos pelos próprios rural. As ações de apoio institucional só poderão atingir um ade
atores do processo. Além do mais, considera-se a educação como quado nível de articulação se são planejadas e executadas a partir
uma dimensão do desenvolvimento com capacidade “integradora” , dessa situação problemática.
na medida em que constitui a dimensão reflexiva do processo, o As instituições surgem delimitando seu campo de atuação,
momento em que os atores pensam o processo e chegam a com recortando uma realidade global para determinar sua função especí
preendê-lo como integral. fica. Cada uma reivindica depois para si aquela parte da realidade
Partindo dessas definições, estabeleceram-se três diretrizes como sua propriedade, e procura que ninguém interfira no que
fundamentais para uma educação integrada: participação da comu considera de sua competência específica. Uma vez separadas e
nidade, desenvolvimento da consciência e vinculação das atividades distribuídas as diversas dimensões da realidade social, procura-se
educativas com as ações sócio-econômicas da comunidade. Com integrar as ações institucionais. Ora, a verdadeira integração deverá
base nas conclusões do seminário e respeitando as diretrizes defi ser procurada na realidade, perguntando-se sobre a relação orgâ
nidas, o documento estimava que a cooperação técnica do IICA nica das diferentes dimensões em uma situação social concreta,
devia centrar-se na realização de experiências de planejamento par histórica e geograficamente localizada.
192 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 193
E as diretrizes apontavam já nessa direção: afirmava-se que É neste âmbito da consciência que se manifesta o potencial
era a participação da própria comunidade, o crescimento da cons integrador das ações educativas. O grupo toma consciência da reali
ciência dos sujeitos e a vinculação da educação com a situação dade como totalidáde em um contexto teórico, visualizando as inter-
concreta vivida por eles o que poderia garantir uma ação educativa relações entre os diferentes problemas. Esse processo de passagem
integrada. da consciência de um contexto concreto a um contexto teórico é o
que Freire considera um processo de conscientização (Freire, 1978).
A participação define-se como o momento em que a comuni
A terceira diretriz indica a necessidade da aprendizagem se
dade assume a ação educativa como própria, interferindo no seu
produzir nas ações que a comunidade realiza para satisfazer suas
planejamento, execução e avaliação. Essa definição se fundamenta
necessidades. No andamento mesmo da experiência, esta definição
em uma compreensão global da ação como o conjunto dos mo
foi se tornando cada vez mais clara. Inicialmente, partiu-se de
mentos em que se programa, se executa e se avalia o realizado. A
entender que toda ação educativa deveria estar ligada ou vinculada
separação desses três elementos só pode ser analítica, mas eles
às atividades econômicas e sociais da comunidade, fundamentar-se
existem na realidade como uma síntese: a ação. Quando se fala de
na experiência de trabalho dos sujeitos, valorizando suas práticas
“participação” para designar a interferência dos sujeitos em alguns
desses três momentos, trata-se só de uma paródia da participação sociais e incrementando sua capacidade para produzir mais e me
autêntica. Um momento aparece definido como supostamente parti lhorar suas condições de vida. Entendia-se esta terceira diretriz
como a proposta de integração de estudo e trabalho, de teoria e
cipativo com relação aos outros que devem ser não-participativos.
prática.
Porém, quem determina finalmente o conteúdo é aquele que con
As sucessivas discussões e a avaliação final do trabalho aju
serva a visão global dos três momentos, e só ele é o sujeito da ação,
daram a construir uma definição mais clara: a validade das ações
em um sentido pleno.
educativas demonstra-se na prática, na capacidade que delas resulte
Deve-se ainda salientar outra característica fundamental nesta para modificar as condições objetivas de vida da comunidade e não
concepção de participação: entende-se a comunidade como sujeito apenas sua consciência. Esta terceira diretriz refere-se portanto à
das ações. A comunidade define-se como “um grupo social com força potencial da educação como instrumento para transformar a
interesses comuns, com uma história e um projeto comum, situado realidade objetiva; em ordem aos interesses do grupo social prota
em um espaço geográfico determinado” (Secretaria de Educação do gonista da ação. Exige-se que as ações educativas proporcionem
Ceará, 1980:31). Ao mesmo tempo se afirma que essa participação elementos úteis para modificar a qualidade de vida das comuni
deve ser permanente, como elemento necessariamente constitutivo dades rurais e, especialmente, sua capacidade econômica que con
do processo, e não meramente circunstancial. Em conseqüência, de diciona essa qualidade.
ambas as características — coletiva e permanente — deriva uma
terceira: a participação deve ser orgânica, ou seja, desenvolvida
através de organizações democráticas que façam possível sua con
cretização. A região experimental
A segunda diretriz implica entender que toda ação educativa
deverá contribuir para incrementar os níveis de compreensão crítica Junto aos técnicos da Assessoria de Planejamento e Coorde
da realidade, a partir da consciência real e possível do grupo social. nação da Secretaria de Educação, foram definidos alguns critérios
Visando esse progressivo desenvolvimento da consciência, o ato de para escolher a região na qual se realizaria a experiência. Embora os
educar deve ser considerado como facilitar a apropriação de instru critérios atendessem aspectos econômicos e sociais, na prática pre
mentos que permitam construir uma metodologia para analisar a dominaram considerações de caráter político-institucional no mo
realidade e pôr à disposição da comunidade as informações neces mento da escolha da região. Em conseqüência, foi selecionada a
sárias e suficientes para conhecer a inter-relação entre sua situação microrregião homogênea dos Sertões de Canindé e, dentro dela, os
particular e o contexto social global no qual ela está inserida. municípios de Canindé e Caridade.
194 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 195
Essa região está localizada no centro-norte do estado, próxima Nos municípios onde se desenvolveu a experiência — Canindé
à região metropolitana de Fortaleza. Fisicamente, caracteriza-se e Caridade — predominam os pequenos estabelecimentos: 93% do
pela predominância de solos argilosos, pouco profundos, pedrego total tinham em 1975 uma extensão de até menos de 50 ha. A maio
sos, facilmente erodíveis e com tendência a empobrecer-se pela ação ria dos pequenos produtores é de parceiros ou ocupantes: 72% em
do tempo. O clima é quente e seco com uma precipitação média Caridade e 69,2% em Canindé.
anual em torno dos 700 mm, uma das mais baixas do estado. Os Os serviços estão concentrados na sede dos municípios, espe
rios são temporários, estreitamente ligados às precipitações, ces cialmente na cidade de Canindé, que constitui o centro comercial e
sando de correr logo que termine a estação chuvosa. A bacia do cultural da região, cidade-santuário e local de romarias. A Igreja
Curu representa o potencial híbrido da microrregião, e se desen desenvolve uma ação comunitária significativa, voltada para os as
volve, na quase totalidade sobre terrenos cristalinos. O Departa suntos religiosos. A assistência médica é mínima ao nível das comu
mento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) tem construído nidades rurais, obrigando o pessoal a deslocar-se até a sede do
três açudes na bacia, com mais de 300 m de capacidade. As águas município de Canindé, em caso de doença grave. O consumo de
subterrâneas são poucas, tanto pela fraca permeabilidade dos terre água poluída e a desnutrição, resultante de uma alimentação insu
nos como pelas altas perdas por evaporação. ficiente e inadequada, são fontes permanentes de doenças que afe
A atividade predominante é a agropecuária, apesar de estar tam especialmente as crianças.
fortemente limitada pelas condições físicas dominantes. As culturas Na zona rural dos dois municípios onde se realizou a expe
principais são algodão, feijão e milho; representando o algodão 94% riência, a população sem instrução supera 75%. E essa situação
das lavouras permanentes, e o feijão e o milho 82% das temporárias tende a reproduzir-se: de cada 100 alunos matriculados na primeira
do valor total da produção para o ano 1975. Quanto à pecuária, série, só 3 conseguem completar a quarta série em Canindé e ne
predomina o gado bovino, seguido em importância, segundo nú nhum deles em Caridade. Além do mais, o índice de repetência
mero de cabeças em 1975, pelos ovinos e suínos e, em muito menor supera 50% em ambos os municípios e nove de cada dez professoras
proporção, caprinos. A criação de animais de pequeno porte pode não têm primeiro grau completo.
considerar-se reduzida às aves. As terras destinam-se fundamental
mente à pecuária (53%) e à agricultura (47%), sendo só 16% desti
nados às lavouras permanentes e temporárias.
“De população dominantemente rural (73%), a microrregião Sobre os fundamentos da experiência
de Canindé apresenta baixa densidade (16,02 habitantes por km2),
contando com pouco menos de 3% da população do Estado. O cres Qual deveria ser a experiência que possibilitasse levar à prá
cimento demográfico relativo no período 1970-1980 foi de 13,36%, tica o que o seminário sobre estratégias de ação para a educação
crescendo a população rural 2,76% e a urbana 57,93%.” (IBGE, rural tinha definido como uma “ação educativa integrada” ? Era
1981) A população rural está muito dispersa, espalhada em um necessário respeitar as diretrizes definidas em comum: participação
número pequeno de vilas e aglomerados uma parte e o resto em da comunidade, vinculação com as atividades econômicas e sociais
pequenos povoados e fazendas. Aproximadamente 80% da popu dos sujeitos e desenvolvimento da consciência. Pensou-se que o
lação depende das atividades agropecuárias, predominando os acompanhamento de algumas comunidades rurais no processo de
pequenos estabelecimentos agrícolas e umas poucas médias e elaboração de seu plano educativo, visando integrá-lo, em nível
grandes empresas e latifúndios por extensão. Aproximadamente municipal, aos planos dos órgãos educativos, permitiría atender
82% dos estabelecimentos ocupavam, em 1975, 13,7% das terras essas diretrizes.
no estrato de menos de 1 ha até menos de 50 ha. Entretanto, Porém, a elaboração participativa do plano educativo devia
nos estratos superiores, de 1000 ha até menos de 100000 ha, 1,9% evidentemente ser precedida por uma ação reflexiva que levasse as
dos estabelecimentos se estendiam em aproximadamente 50% da comunidades a identificar suas reais necessidades. Perguntar sim
terra. plesmente que atividade educativa queriam só podia resultar em
1% CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 197
uma resposta alienada. Antes de refletir, é comum que as comuni pante encontra-se na determinação do sujeito, que pesquisa sua
dades ruràis, como resultado de uma longa experiência de imposi própria realidade a partir da compreensão que tem dela. A pesquisa
ções e desvalorização de sua própria cultura, escolham o que os participante “fundamenta-se na concepção da realidade como uni
mesmos técnicos colocaram dentro dela. Uma escolha verdadeira dade de aparência e essência, de modo e estrutura, de forma que
mente livre só existe depois de uma reflexão que permita superar as entender o modo particular de compreensão da realidade do próprio
respostas do senso comum e da ideologia. grupo envolvido no processo de pesquisa significa avançar na com
Esse momento de reflexão inicial consistiría em um diagnós preensão e explicitação dessa mesma realidade” (Batallán, 1982:6).
tico participativo. O diagnóstico seria uma pesquisa realizada pela Assim definida a especificidade da pesquisa participante, é
mesma comunidade, um processo de obtenção, sistematização e possível descartar falsas propostas. Quando se fala, por exemplo,
análise das informações que configuraram sua situação problemá em enfoques que “impliquem a participação das pessoas a serem
tica e um ponto de partida para formular um plano de ação com beneficiárias da pesquisa” , ou se propõe basear o processo da pes
vistas a superar essa situação. Seria, portanto, uma pesquisa parti quisa “em sistemas de discussão, investigação e análise, nos quais os
cipante, mas o que deve entender-se por pesquisa participante? pesquisados sejam incorporados ao processo do mesmo modo que o
Como diferenciar a pesquisa participante do que se denomina às pesquisador” (Hall, 1978:7), quando se fala nestes termos, enfim,
vezes como “pesquisa tradicional” ? é evidente que se trata mais de uma pesquisa “participada” e não
A linha demarcatória não está nem na capacidade de produzir “participante” , que conserva as diferenças — e as distâncias —
mudanças, o que poderiamos chamar “compromisso político” da entre destinador e destinatário, entre sujeito e objeto da pesquisa.
pesquisa, nem na capacidade de produzir conhecimento, sua vali
Podemos distinguir, basicamente, três dimensões em uma
dade “científica” .
pesquisa autenticamente participante: a produção de conhecimento,
A pesquisa participante não é necessariamente progressista
a educação e a orientação para a ação, entendida esta última como
nem revolucionária, assim como outras modalidades de pesquisa
modificação intencional da realidade (Beca, 1982:1). Assim, pode
não são também necessariamente reacionárias. “A pesquisa social
riamos defini-la como “produção de conhecimento para orientar a
como ciência, quer dizer, em sua capacidade explicativa, relativa
prática, que inclui ou abrange como parte do mesmo processo de
mente preditiva e crítica, proverá sempre a mudança, deixando de
pesquisa, a modificação da realidade” (Oquist, 1978:6), nela o
lado os exercícios descritivos do experimentalismo.” (Batallán,
conhecimento se produz simultaneamente à modificação da reali
1982)
dade. Ao mesmo tempo “adquirir conhecimento é construir, criar;
Quanto à capacidade da pesquisa participante para produzir ou seja: pesquisar. O conhecimento é reprodução da realidade pelo
conhecimentos, sua “cientificidade” , acredita-se que o conheci pensamento e só é possível aceder a ele no ato de produzi-lo”
mento se justifica por referência a uma práxis social concreta, se (Batallán, 1982:6). Daí que é impossível “ devolver” resultados da
baseia na sua utilidade para colaborar na solução “de problemas de pesquisa a grupos que não participaram de sua produção, do pro
grupos sociais específicos em conjunturas históricas determinadas” cesso de criação de conhecimento.
(Oquist, 1978:2). Segundo esse critério, uma prática pode ser consi
derada não-científica, na medida em que não tenha capacidade para Esta concepção de pesquisa participante orientou o diagnós
resolver alguma necessidade social específica. “A produção do co tico, a seleção das técnicas a serem utilizadas e as discussões na
nhecimento, como qualquer outro problema, deve ser abordada em equipe que cooperaria com as comunidades no processo. Permanen
relação a contextos históricos e sociais específicos, na busca de res temente, procurou-se ter presente que era necessário deixar o espaço
postas.” (Oquist, 1978:19) para que o grupo começasse a participar, renunciar a fazer, aceitar
Nem os defensores da pesquisa participante, que a definem os silêncios, superar as angústicas originadas na ideologia do “efi-
por sua capacidade de comprometimento político, nem seus detra cientismo” dos técnicos. A participação não é algo que possa ser
tores, que a rejeitam como não-científica, conseguem descobrir sua dado, porém, é indispensável abrir espaços para que ela se mani
especificidade. Essa característica que define a pesquisa partici feste.
198 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 199
Desenvolvimento da experiência A primeira tarefa consistiu na discussão do projeto com a
equipe técnica, em nível central e municipal, chegando a um con
A primeira dificuldade foi integrar uma equipe na qual parti senso sobre os resultados esperados, que poderíam ser assim sinte
ciparam técnicos de diferentes instituições. Entendida a educação tizados:
como uma dimensão do processo, essa integração da equipe era • Formulação de uma metodologia de pesquisa e planejamento
necessária para garantir uma reflexão sobre a situação da comuni participativos que pudesse ser utilizada pelas mesmas comuni
dade como totalidade pluridimensional e evitar cair em uma pers dades rurais, incentivando desse modo seu desenvolvimento autô
pectiva “educacionista” . Mas, foi impossível conseguir a partici
nomo e autoconfiante e incrementando seu nível de relativa inde
pação de outras instituições; embora se interessassem pelo trabalho,
pendência do exterior (Fals Borda, 1981:43).
estavam demasiado ocupadas com suas tarefas específicas, não dis
• Crescimento do nível de organização das comunidades, como re
punham de pessoal ou desconfiavam do resultado final da expe
sultado das ações de pesquisar e planejar em conjunto, e, em
riência. Mesmo ao interior da Secretaria foi trabalhoso constituir
conseqüência, um aumento do seu poder de barganha diante das
uma equipe integrada por técnicos dos diferentes departamentos e
instituições públicas, para negociar serviços que respondam a seus
coordenações, especialmente de nível central. Depois de sucessivas
reais interesses.
negociações, ficou integrada a equipe ‘com quatro técnicos da secre • Compreensão por parte dos funcionários e técnicos das institui
taria estadual de Educação, dois do Instituto Interamericano de ções educativas de nível central, regional e municipal, das vanta
Cooperação para a Agricultura, e mais seis dos órgãos municipais de gens de uma ação mais participativa e integrada, articulada
Educação de Canindé e Caridade. Posteriormente, um dos técnicos também com órgãos que apoiam o desenvolvimento rural agindo
do IICA foi solicitado para cooperar em outros projetos da Secre em outros segmentos do processo.
taria de Educação e afastou-se da equipe. Além disso, outros téc
nicos prestaram sua colaboração em alguns momentos do anda A seguir iniciou-se a etapa que se denominou pré-diagnóstico
mento da experiência.1 2 e que consistiu em uma caracterização geral dos principais proble
Os técnicos seriam capacitados através de sua participação no mas dos municípios e suas inter-relações com a situação do estado e
trabalho, para estender a experiência ao nível da microrregião e do do Brasil. Este trabalho realizou-se a partir de informações secun
estado. Partiu-se do pressuposto de que só a prática poderia contri dárias, contatos com instituições que desenvolvem ações em nível
buir para desenvolver no técnico as atitudes de compromisso, anti- local e regional, visitas aos aglomerados rurais e conversas informais
dogmatismo e renúncia a qualquer papel de protagonista, as quais com pessoas dessas comunidades. O pré-diagnóstico visava uma
constituem condições essenciais para desempenhar o papel de “faci- tomada de consciência dos próprios técnicos sobre as relações da
litador de um processo de autoconhecimento, organização e ação educação com as outras dimensões da realidade social, compreen
comunitária” (Beca, 1982:18). dendo a situação global na qual se encontravam inseridas as comu
nidades. Era importante evitar tanto o “ reducionismo” educacional
como a tendência a considerar isolada a situação de cada comuni
(1) Os técnicos que integraram a equipe durante todo o andamento da dade.
pesquisa foram: Beatriz Feitosa de Carvalho (Coordenação de Estudos e Pes Além do mais, as informações coletadas subsidiaram a seleção
quisas, Departamento de Apoio Técnico, SEDUC), Maria José Barbosa Costa
(Primeira Delegacia Regional de Educação, SEDUC), Maria Marilene Pinheiro das comunidades às quais seria proposto participar na experiência.
Jucás (Primeira Delegacia Regional de Educação), Maria Luzia Alves Jesuíno Para esta escolha, considerou-se especialmente a existência de um
(Programa de Educação na Zona Rural, PRORURAL, SEDUC), Manuel Alberto
Argumedo (Convênio SEDUC/IICA), Elga Martins Rodrigues e Maria de Jesus certo grau de homogeneidade na população e a ausência de conflitos
Magalhães Braga (Departamento Municipal de Educação — Canindé), Mariaci políticos internos graves, que poderíam ter tornado demasiado com
Ferreira Braga e Maria Simone Martins Bittencourt (Órgão Municipal de Edu plexa a iniciação dos técnicos locais na metodologia de pesquisa e
cação — Caridade).
(2) Rolando Pinto Contreras (MCA), Maria Nobre Damasceno (UFC) planejamento participativo. Atendendo a esses critérios foram sele
etc. cionadas as seguintes comunidades: Bonito, Ipueiras dos Gomes e
200 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 201
Monte Alegre, no município de Canindé, e São Domingos, no
reunião, contando em todos os casos com uma participação maciça.
município de Caridade, todas sedes do distrito do mesmo nome,
Nessas reuniões, os técnicos propuseram às pessoas da comunidade
sendo que no caso das três últimas incluíram-se também povoados
a participação em um processo de reflexão sobre seus principais
vizinhos, praticamente integrados econômica e socialmente à sede.
Tanto em Ipueiras dos Gomes como em Bonito participaram da problemas, o qual culminaria com a elaboração de um plano de
experiência aproximadamente 60 famílias o que significa aproxi ação para fazer frente aos problemas por elas mesmas detectados.
Os participantes aceitaram a proposta e falaram do que considera
madamente umas 300 pessoas. Em São Domingos e Monte Alegre
participaram ao redor de 500 pessoas, quer dizer, quase 100 famílias vam seus principais problemas, que iam sendo registrados em um
cartaz à frente da assembléia. Finalmente, foram escolhidas as pes
em cada local. Em Monte Alegre, finalmente, o trabalho ficou
centrado em uma comunidade vizinha da sede, Vazantes, que mos soas para integrar o grupo de trabalho, que se denominou grupo-
diagnóstico. Inicialmente, os grupos estavam constituídos por cinco
trou maior interesse e comprometimento durante todo o processo.
pessoas, mas no decorrer da experiência foram se incorporando ao
Como resultado do pré-diagnóstico, a equipe técnica passou a
grupo outras pessoas interessadas no trabalho. Em geral, cada
dispor de um certo referencial que facilitaria o início do diálogo com
as pessoas da comunidade e proporcionava elementos para motivar grupo contava com um agricultor, jovens ligados ao trabalho da
a participação da maioria na primeira reunião geral onde seria pro Igreja, professoras, comerciantes e artesãos.
A partir desse momento, desenvolveram-se as diferentes eta
posto o trabalho à comunidade.
pas previstas no projeto, enriquecidas pela troca de experiências
A segunda etapa começou com a constituição de equipes inte
entre as pessoas da comunidade e, no interior da equipe técnica,
gradas por um técnico da Secretaria e outro do município, para
entre os grupos que cooperavam mais diretamente com o trabalho
cooperar com o desenvolvimento do trabalho em cada comunidade.
em cada uma das comunidades. Esses momentos de trabalho junto
Procurava-se evitar um número excessivo de pessoas estranhas na
às comunidades, envolvendo a cooperação com o grupo-diagnóstico
comunidade, considerando que isso poderia atrapalhar o desenvol
que coordenava a participação ampla da comunidade no processo,
vimento autônomo do grupo interno de trabalho. Sendo poucos os
foram: a capacitação dos grupos, a pesquisa e a elaboração do
técnicos, diminuiríam as possibilidades de eles assumirem tarefas,
plano. Porém, a capacitação não foi apenas um momento inicial:
procurando demonstrar sua eficiência, ou de que as pessoas da
desenvolveu-se ao longo de todo o processo, como conteúdo das
comunidade se encostassem nos técnicos, provocando respostas pa
ternalistas. Escolhidas essas equipes, deslocaram-se até as comuni atividades de acompanhamento dos técnicos ao trabalho comunitá
rio. Tentar-se-á resumir brevemente as atividades realizadas em
dades para conviver um certo tempo com elas.
Esse momento de convivência teve por objetivo que a comu cada um desses três momentos.
nidade reconhecesse os técnicos como pessoas estranhas e os acei
tasse como alguém que tenta colaborar na realização de um trabalho
que será útil para ela mesma. Os técnicos teriam oportunidade de 1) Capacitação dos grupos-diagnóstico
conhecer as pessoas da comunidade, experimentar como viviam seu
dia-a-dia, como se comunicavam, quais eram seus hábitos e costu Esta etapa começou por uma reflexão sobre as técnicas a serem
mes, qual o papel que cada uma dessas pessoas poderia desempe utilizadas. Era necessário escolher procedimentos que estivessem ao
nhar no momento da pesquisa e da elaboração do plano de ação. alcance das comunidades para evitar que o técnico fosse o aplicador
principal, desempenhando as pessoas do grupo o papel de auxilia
Durante sua permanência no lugar, os técnicos realizavam
res. Porém, entendida a pesquisa como um processo educativo, esses
visitas domiciliares, convidando todas as famílias a assistirem a uma
procedimentos deveríam implicar um avanço para a comunidade
reunião geral na qual seria apresentada a proposta de trabalho e,
quanto à compreensão de sua realidade. Também era necessário
sempre que a comunidade aceitasse participar na experiência, seria
evitar um saber fazer que se transformasse com facilidade em fator
escolhido um grupo de pessoas que coordenasse as atividades. No
de poder, pelo fato de ser pouco comum entre as pessoas da loca
momento final desta etapa foi realizada em cada comunidade a
lidade.
202 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 203
Considerou-se que a técnica mais adequada para o processo de mas mais importantes, explicitação das relações entre problemas
pesquisa participante era a entrevista aberta, porque permitiría que aparentemente “isolados” . Já definidos por ela mesma seus “ nú
os sujeitos participassem de sua estruturação, sem se transformarem cleos problemáticos” , a comunidade poderá desenvolver pesquisas
em meros intermediários entre entrevistador e informação. Ora, era em torno desses núcleos, com metodologias e instrumentos adequa
preciso capacitar o grupo na programação e aplicação de entrevistas dos a cada problema.
e também em outras habilidades que deveria assumir durante o O técnico só participou como facilitador, colocando seu saber
processo da experiência: sistematizar as informações, elaborar men à disposição da comunidade, para que ela reelaborasse sua própria
sagens para as reuniões com a comunidade, coordenar essas reu metodologia, segundo sua racionalidade. Assim, as articulações
niões, registrar o processo etc. Antes de tudo era necessário discutir eram internas: entre o grupo-diagnóstico e o resto da comunidade.
novamente com o grupo o projeto da experiência e seu papel na Nesse sentido, procurou-se questionar constantemente o grupo para
comunidade promovendo e coordenando a participação das pessoas. que não substituísse a comunidade em nenhuma decisão e manti
A equipe resolveu realizar a capacitação numa série de encon vesse um estreito contato com ela, obrigando-a a acompanhar todo o
tros breves, próximos do momento em que as técnicas deviam ser processo.
utilizadas. Deste modo, os membros do grupo-diagnóstico estariam O grupo-diagnóstico elaborou um roteiro para realizar entre
de posse de todos os elementos necessários para recriar as propostas. vistas com as famílias da comunidade e determinou a forma como
A metodologia utilizada foi a de “aprender a fazer fazendo” , mas a seria registrada a informação. Cada um dos grupos-diagnóstico
partir de um fazer real e não simulado. entrevistou, em média, umas 40 ou 50 famílias. As informações
Durante o primeiro encontro, os grupos elaboraram as hipó obtidas nessas entrevistas foram ordenadas em um primeiro nível e
teses da pesquisa, com base na informação coletada na primeira partiu-se para a realização de entrevistas grupais, visando completar
reunião da comunidade. No processo de elaboração das hipóteses — os dados que permitiríam confirmar ou não as suposições e a com
que os grupos chamaram “suposições” , como expressão daquilo que provar a existência real de algumas contradições registradas durante
a comunidade “acha” sobre sua situação —, foram realizadas en as entrevistas familiares.
trevistas e ordenadas as informações surgidas dessas entrevistas. Reunidas todas as informações, os grupos começaram um
Cada um dos grupos colaborou com outro, entrevistando-o para processo de reflexão, agrupando-as por suposição, diferenciando
esclarecer suas suposições sobre os principais problemas “sentidos” características de causas e soluções propostas, explicitando as múl
pela comunidade e devolvendo-lhe ordenadamente a informação co tiplas inter-relações entre os diferentes grupos problemáticos. Este
lhida nessa entrevista. Finalmente, os grupos refletiram sobre o processo de análise concluiu com a elaboração de pequenos textos,
processo vivido e planejaram seu trabalho de pesquisa na comuni cartazes e, na comunidade de Monte Alegre, de uma peça teatral,
dade. que representava um momento de síntese. Este exercício preparou
os membros dos grupos-diagnóstico para a realização de uma série
de pequenas reuniões nas quais eram novamente discutidas as infor
2) A pesquisa participante mações e o próprio trabalho de sistematização realizado, introdu-
zindo-se todas as modificações sugeridas pelos participantes.
O tipo de pesquisa a ser realizado pela comunidade objeti
vava delimitar os principais problemas em função de interesses e 3) A elaboração dos planos
necessidades comuns; procurava-se atingir um consenso, no sentido
que especifica Laing (1974), de “achar com os outros um senso Nesta etapa, os grupos-diagnóstico elaboraram, a partir das
comum, compartilhado, do mundo circundante” . Durante esse tra informações das pesquisas, um plano geral da comunidade. O plano
balho, a comunidade terá realizado um processo educativo: desco geral foi concebido como a explicitação do projeto de desenvolvi
berta e reflexão de contradições na leitura de sua realidade, com mento da comunidade: registrava a solução aceita para cada um dos
preensão de algumas dificuldades como “emergências” de proble problemas sentidos como entraves para seu avanço. A partir deste
204 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 205
plano, em reuniões comunitárias, foram determinadas as priori SESP, MOBRAL, Igreja etc. Durante a realização deste seminário
dades de ação a curto e médio prazo e elaborou-se o plano educa surgiu uma nova experiência.
tivo, como relação das ações educativas que, a juízo da mesma Um grupo de pessoas da comunidade de Bonitinho, aglome
comunidade, poderíam contribuir para atingir as metas definidas rado rural vizinho à sede do distrito de Monte Alegre, apresentou-se
como prioritárias. no momento final do seminário, solicitando uma entrevista com “os
O plano educativo comunitário é um instrumento que au técnicos da Secretaria” . Eles tinham notícia do trabalho realizado
menta o poder de negociação da comunidade: quando ela sabe o que na sede do distrito, particularmente em Vazantes, e queriam que
necessita e por que necessita disso, está em condições de dialogar a equipe colaborasse para desenvolverem eles também uma expe
com os órgãos técnicos, políticos ou financeiros que venham ofere riência na sua comunidade. Eles mesmos, em um texto que intitu
cer-lhe colaboração. A comunidade já compreende que as ações laram “ Histórico da comunidade” , resumem essa situação inicial:
educativas se justificam e têm sentido para ela, na medida em que
contribuem para apoiar as soluções que integram seu plano geral. “A comunidade de Bonitinho era uma comunidade pobre e mal-
organizada. Com tantos problemas que seus próprios moradores eram
desinteressados e incapazes de sequer chegarem à conclusão de que os
A continuidade do processo e o nascimento problemas comunitários em parte seriam organizados e solucionados
pela própria comunidade.
de uma nova experiência Não tínhamos condições de nos reunir para uma palestra, um
debate, pois não conseguíamos juntar os nossos amigos. Fazíamos
Na perspectiva das quatro comunidades que tinham partici convites, mas nada! Tudo era em vão.
pado da experiência, o resultado final não podia reduzir-se a uma Depois surgiu nas nossas comunidades vizinhas com a ajuda da
compreensão mais crítica da sua realidade. Era importante “tanto a Secretaria de Educação do Estado do Ceará, na qual vimos partici
participação no processo de geração de conhecimentos sobre qual o pação e bom desenvolvimento na comunidade. Solicitamos que os
planejamento repousa, como no processo de tomada de decisões que técnicos do órgão trabalhassem conosco a fim de que pudéssemos
ele implica” (Cohen, 1981:90). O processo deveria ter contribuído pelo menos nos organizar e fazer alguma coisa” .
também para gerar uma organização capaz de coordenar a parti
cipação da comunidade na execução do plano, na avaliação e no Os técnicos de nível central e regional atravessavam nesse
replanejamento. Assim, o grupo-diagnóstico, por decisão das mes momento uma etapa difícil, com muitas exigências de trabalho e
mas comunidades, foi ampliado e convertido em grupo de trabalho discussão interna. Estava próximo já o momento de finalização do
para coordenar as atividades a serem realizadas internamente e convênio Secretaria da Educação/IICA, e era necessário definir as
negociar o apoio necessário das instituições, visando atingir as solu ações que a própria secretaria desenvolvería para garantir a conti
ções propostas no plano geral e no plano educativo. nuidade do trabalho nas quatro comunidades, o apoio institucional
Para colaborar com essa etapa do processo, a equipe técnica aos planos comunitários na área de educação. Além do mais, devia
organizou um seminário que foi realizado na cidade de Canindé, ser programada uma série de encontros de capacitação, visando
com a participação dos membros dos grupos-diagnóstico e outras transferir aos outros técnicos do Programa de Educação Rural a
pessoas representativas das quatro comunidades. Os objetivos do metodologia de acompanhamento sistematizada ao longo da expe
seminário eram facilitar a troca de experiências entre as comuni riência, e também os relatórios do trabalho realizado tinham de ser
dades e estabelecer um primeiro contato entre elas e as instituições revisados e preparados para sua edição. Em conseqüência, ficava
responsáveis por outras dimensões ou áreas do desenvolvimento difícil comprometer-se a cooperar com o processo de pesquisa e
rural. Visando possibilitar esses contatos foram convidados a parti planejamento de outra comunidade.
cipar do seminário e ouvirem os planos elaborados pelas comuni Porém, também não era possível deixar passar a solicitação:
dades, funcionários da Prefeitura, de EMAIER-CE, Secretaria de tanto pelo fato de serem as pessoas da comunidade que solicitavam a
Saúde, Comissão Estadual de Planejamento Agrícola, Fundação cooperação quanto pela possibilidade de testar uma série de “supo-
206 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 207
sições” da própria equipe técnica. Acreditava-se que os centros de Essa situação — a diferença entre Seu Joel e o resto da comu
Educação Rural, que as prefeituras municipais instalavam na sede nidade, agricultores minifundistas, e seu papel de líder — foi discu
dos distritos com a assessoria e a cooperação da secretaria estadual tida na equipe. Seu Joel tinha a única casa de tijolos de Bonitinho,
de Educação, poderíam utilizar a metodologia de pesquisa e plane uma camioneta e um velho ônibus que ele colocava sempre à dispo
jamento participativo nas comunidades rurais do distrito. Pensou-se sição da comunidade, e uma área vizinha à sua casa, aberta e com
também que o processo todo, até a formulação do plano, podia ser piso, que era utilizada para as festas e reuniões comunitárias, inclu
desenvolvido em menos tempo: a realização da primeira experiência sive para o ofício religioso. Porém, trabalhava só uma pequena ex
demorou quase um ano. Seria possível abreviar esse tempo dimi tensão da sua propriedade e só tinha condições de assalariar apenas
nuindo a “distância” cultural entre técnico cooperador e comuni a uns poucos camponeses das redondezas. Também não tinha rela
dade e afastando o processo da burocracia das instituições esta ção com as lideranças políticas do município e isso mesmo contri
duais? buía a que a comunidade fosse desatendida. Em conseqüência, a
Dessas reflexões nasceu o novo projeto: algumas pessoas do equipe estimou que os interesses de Seu Joel não eram opostos aos
grupo-diagnóstico de Vazantes — a comunidade mais próxima a da comunidade e que a diferenciação encontrava-se dentro de li
Bonitinho — que tinham vivenciado todo o processo de pesquisa e mites aceitáveis para continuar falando de “comunidade” . O grau
planejamento cooperariam com a comunidade de Bonitinho na rea de heterogeneidade não era tão grande a ponto de atrapalhar o
lização da “experiência” e uma das técnicas da equipe central — trabalho.
Beatriz Feitosa de Carvalho — e outra do município de Canindé — O trabalho começou com a assembléia da comunidade, coor
Maria de Jesus Magalhães Braga — ficariam à disposição da nova denada por Dona Railda com a colaboração de outras pessoas de
equipe para acompanhar e apoiar o trabalho. As pessoas de Vazan Vazantes. Participaram da reunião aproximadamente 200 pessoas,
tes que colaboraram com a comunidade de Bonitinho foram princi e depois de conversar sobre os principais problemas da comunidade,
palmente Dona Railda (professora, ligada ao trabalho da Igreja), escolheram seis pessoas da comunidade para integrar o grupo-diag
Lourdes (professora, de família de artesãos), Noel e Bosco (jovens nóstico: duas professoras, uma catequista e três agricultores, dois
filhos de agricultores da região). Assim começou a nova experiência, deles pequenos proprietários e outro posseiro e semi-assalariado de
uma comunidade cooperando com outra para realizar sua pesquisa Seu Joel. Posteriomente, o grupo realizou um encontro em Vazantes
e elaborar seu plano de ação. para formular as suposições e capacitar-se para realizar as entre
vistas. Os técnicos que acompanhavam o trabalho participaram
tanto do encontro de capacitação como da reunião inicial, mas
O trabalho em Bonitinho procurando interferir só quando solicitada sua participação.
Nesta primeira etapa revelava-se surpreendente para os téc
nicos a facilidade de comunicação entre os membros do grupo-
Algumas informações sobre a comunidade de Bonitinho são diagnóstico de Vazantes com as pessoas de Bonitinho. A linguagem
necessárias, antes de relatar como se desenvolveu lá a experiência. “simplificada” dos técnicos nas etapas iniciais do trabalho fluía
Trata-se de um aglomerado rural distante apenas uns quatro ou convertida em linguagem “simples” no diálogo entre as duas popu
cinco quilômetros de Vazantes, por uma estrada de terra. A popu lações rurais. Em vários momentos, os técnicos tiveram de conter
lação trabalha na agricultura, cultivando algodão, milho e feijão, e sua preocupação pela “eficiência” e pela “perfeição” , aceitando o
algumas famílias têm pequenas bodegas. A maioria dos agricultores nível real de consciência dos grupos que estavam desenvolvendo o
são minifundistas, com problemas de regularização, e existe um trabalho. Embora questionassem algumas asseverações, quando
proprietário médio, Seu Joel. Ele foi uma das pessoas que solicitou esse questionamento não era aceito, não ficavam insistindo. Procu-
que a experiência fosse realizada em Bonitinho, e colaborou ativa rava-se entender que essa consciência “ falseada” , com uma mistura
mente durante todo o trabalho, dado que era um líder na comuni de elementos culturais próprios e ideologia imposta, não é um
dade. demônio que deve ser exorcizado, mas a consciência real dos cam-
208 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 209
poneses no momento de iniciar um processo de reflexão, o ponto de 5) A situação de prédio escolar por aqui é falta de professoras e
partida do trabalho. falta de condições do povo da comunidade para reformar o pré
O grupo-diagnóstico elaborou as seguintes suposições sobre os dio.
problemas da comunidade, com base nos registros da assembléia: 6) Não está boa porque é muito pequeno. / / /
7) Está ruim porque precisa ajeitar e não ajeitaram. / /
1) muitas crianças ficam fora da escola, por falta de prédio 8) A situação de prédio escolar é que está pequeno, da data que
escolar; foi construído não foi feito mais nada nele. Só prometimentos e a
2) faltam catequistas e evangelizadores, por falta de interesse comunidade só fica esperando chegue este benefício.
da comunidade; 9) O prédio escolar está precisando de uma reforma geral para me
3) falta de cuidados com a água, por falta de interesse da lhorar nossa comunidade.
comunidade; 10) Está muito estiorado causando até medo de se dar aula quando
está chovendo. Tudo é perigo tanto para as professoras como
4) falta uma capelinha, por falta de condições da comunidade
alunos.
e incentivo;
11) A situação está mal! Só temos um prédio e mesmo assim está
5) falta energia elétrica, por falta de assistência das autori quase todo caído.
dades; 12) O prédio foi construído em 1968. E as condições de conservação
6) falta de assistência à saúde; do mesmo é das piores, muradas ao chão, falta de sanitários,
7) o GESCAP não foi suficiente; fossas; existe apenas uma sala de aula e a mesma não oferece
8) falta educação para os adultos, por falta de interesse da condições para suportar o número de alunos existentes.
comunidade; 13) Não tem respeito e está muito riym a situação dele.
9) má situação financeira e a gente não pode fazer nada na 14) Está muito sem respeito. A maior parte dos moradores fazem é
parte de saneamento; acabar de derrubar, fazem o que querem. / / /
10) falta trabalho para as mulheres. 15) Está muito feio, muito estragado, não tá com nada.
16) Anda péssimo, anda mal! / / / / /
Formuladas as suposições, o grupo programou a realização 17) Das piores. O prédio existente não oferece condições de uso de
das entrevistas. Resolveu-se formar grupos de duaS pessoas: uma fi vido à falta de conservação, por falta das autoridades compe
caria atendendo a conversação e procurando fazer com que se tentes.
falasse de todos os temas incluídos no roteiro, e outra registraria as 18) A situação do prédio se encontra em péssimas condições, haja
visto a falta de manutenção e conservação do mesmo” .
respostas. De fato, o roteiro não foi suficientemente flexível, conver
tendo-se quase em uma série de perguntas que devem ter contri
“12? O que acha do atendimento do GESCAP a menores e agricul
buído, em muitos casos, a transformar a entrevista aberta em ques tores sem terra ?
tionário. 1) O GESCAP vai muito mal, não atende nem os menores. I I I
A seguir, o grupo realizou mais ou menos 40 entrevistas fami 2) O GESCAP não tá com nada!
liares e sistematizou as informações coletadas, reunindo as respostas 3) Eu acho que vai mal. Devia ajudar mais, dar mais apoio. / / / /
a cada pergunta, com indicação da freqüência quando a resposta 4) Não é bom não! Ê muito fraco! / / / /
era semelhante. Nos exemplos incluídos a seguir, pode-se observar 5) O atendimento é péssimo até para os maiores, quanto mais a
como foi sistematizada a informação pelo grupo-diagnóstico: menores. I I I
6) Seria muito bom se realmente o atendimento fosse estendido aos
“1? Como anda a situação do prédio escolar por aqui? menores e aos que não têm terras. / / / / /
1) A situação do prédio anda mal, estragado piso até telhado. 7) Acho um problema sério; porque não beneficia a todos! Só aos
2) Acho que está faltando prédio escolar. / maiores de idade.
3) Está uma coisa demais! Muito estragado. / / / / 8) Muito importante atualmente e de grande valia neste lugar!
4) Anda um pouco fracassada. Que o prédio está quase desprezado, Mas no último alistamento não foram atendidos os menores e
faltando carteiras e a reformação. nem os maiores solteiros.
210 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 211
9) Para melhor atendimento do GESCAP; era necessário que todos achava que o conteúdo se referia a várias suposições, copiava-se em
trabalhassem, menores e solteiros; quanto os agricultores sem outras folhas para colocar uma cópia em cada um dos envelopes que
terra é mais complicado ainda. Pois os mesmos trabalham nas o grupo considerava necessários, indicando na folha com que outras
propriedades alheias, não sobra tempo para os mesmos apronta suposições se estimava que a informação estava relacionada.
rem terras para fazer os seus roçados, mesmo trabalhando em Concluída essa tarefa, o grupo passou a trabalhar com cada
terras alugadas. / / um dos envelopes, analisando as informações que tinham sido colo
10) É mais viável que esses atendimentos sejam principalmente for cadas dentro deles. Por exemplo, no envelope identificado com o
necidos a- esses elementos, em virtude dos próprios serem pes
texto: “Falta um poço profundo e faltam cuidados com a água, por
soas desalojadas financeiramente.
falta de interesse da comunidade” , tinham sido colocadas as se
11) Se não têm terras para trabalhar é porque não querem, porque
folga têm! O diário não é direito, só trabalham 3 dias para o guintes informações, uma em cada folha de papel-jornal:
patrão, o resto é deles!
“Porque nunca pensaram nisso. Se pensaram, nunca tentaram re
12) Ê muito fraco! O ganho é muito pouco que mal dá para esca
solver o problema. EF
par. / /
Ter mais cuidado, tomar água pelo menos filtrada e zelar por
13) O não atendimento do GESCAP aos menores prejudica muito,
ela. eg
tanta gente de menor que precisa comer! Os pais de família só Nossa água não tá com nada! eg
faltam é morrer para dar o sustento com uma mixaria desta. A gente bebe mais porcaria do que água. eg
14) É péssimo o atendimento, se é um beneficiamento, por que não A água não é boa. EF
beneficia a todos os necessitados?” Devemos procurar as autoridades no sentido de que construam
um poço profundo. EF
A infomação coletada nas entrevistas familiares e sistemati A solução é cavar um poço. eg
zadas pelo grupo-diagnóstico foi utilizada como material para orien Cercar o cacimbão. eg
tar o diálogo nas entrevistas grupais. Essas entrevistas grupais, que Só se tampasse o cacimbão! eg
tinham sido utilizadas para aprofundar o tratamento de alguns pro É limpar o cacimbão e só quem tira água dele é gente grande,
blemas nas outras quatro comunidades, desempenharam aqui mais pegar os meninos e amarrá-los. eg
o papel de reflexão sobre as respostas registradas nas entrevistas Um chafariz resolvia o problema. EF
familiares, e de revisão da maneira como o grupo tinha sistemati Para melhorar nossa água, antes fazer limpeza para termos
zado essas respostas. uma água bem tratada. EF
Falta de uma pessoa que junte homem pra limpar o cacimbão e
Neste momento, o grupo-diagnóstico passou a ordenar, inter também de uma autoridade que faça alguma coisa. EF
pretar e organizar todas as informações coletadas. O primeiro tra Se tivesse um local que a água pudesse ser evitada a sujeira. EF
balho foi copiar cada opinião surgida durante as entrevistas em uma Construir um poço e conservar. EF
folha de papel-jornal, indicando se procedia da conversação com as Um poço profundo. EF
famílias ou das reuniões grupais (EF ou eg). Por outro lado, pre Ê termos mais cuidado na higiene com a água. EF
param-se dez envelopes tamanho ofício, cada um deles identificado Não temos água tratada por falta de condição. EF
com o número e o texto de uma das suposições. Juntar a comunidade e pedir ajuda a algumas entidades. EF
É muito difícil, porque para nós possuirmos água mais ou
O trabalho de sistematização realizou-se em uma jornada, no menos é preciso cavar cacimba todo dia. EF
grupo escolar de Vazantes, com participação dos membros dos Não tem higiene. EF
grupos-diagnóstico das duas comunidades e dos técnicos que acom Se todos os cacimbões fossem limpos, era mais boa. EF
panhavam a experiência. Uma pessoa do grupo dava leitura a cada Maior interesse da comunidade junto das autoridades que nos
folha e se dialogava sobre o conteúdo da informação procurando pudessem ajudar. EF
definir sobre qual ou quais das suposições trazia informação. Depois Como falamos nos itens anteriores, a falta de professores, a
a folha era guardada no envelope correspondente. Quando o grupo falta de energia elétrica e a pouca formação dos moradores, fica
212 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 213
impossibilitado parcialmente um bom aproveitamento na parte de grupo em um texto pessoal e em um desenho contribui a esclarecer
saneamento. EF ainda mais tudo o que se tinha falado e ouvido sobre cada um dos
Anda em péssimas condições, visto que ainda é adotado o sis problemas.
tema cacimba, que é prejudicial à saúde de cada ingeridor. EF” .
Citam-se a seguir alguns textos elaborados por elementos do
O grupo procurou refletir sobre cada informação, descobrindo grupo-diagnóstico:
em que medida confirmava ou negava a suposição, se indicava só I. “Já falamos em todos os nossps problemas: falta de energia elé
uma caractérística do problema, se se tratava de uma causa ou de trica, que falta prédio escolar, falta de professores para adultos, que
uma solução já experimentada pela comunidade ou proposta para o falta capela, falamos sobre o GESCAP, e por fim vamos falar na má
futuro. Este constitui o momento mais importante de reflexão do situação financeira.
grupo e permitiu avançar significativamente no conhecimento dos Que é o problema maior dos problemas. Mesmo que a gente
problemas pesquisados, respeitando a percepção dos membros das tenha boa-vontade e interesse de trabalhar para nossa comunidade,
comunidades, sem puxar para além dos limites de sua consciência não temos condições. A situação financeira de nossa comunidade não
possível. é boa! Não temos condições de construirmos fossas e nem de com
O trabalho de sistematização concluiu com a elaboração de prarmos filtros para bebermos água limpa. Mas interesse temos
mapas onde eram apresentadas em forma resumida as característi demais!” M.E.R.B.
cas, causas e soluções dos diferentes problemas da comunidade. II. “Aqui em Bonitinho está faltando assistência para a saúde do
povo de nossa comunidade.
Apresentam-se em seguida alguns exemplos:
Primeiramente, nossa saúde é precária em termos de alimenta
ção. Não temos uma boa alimentação, as crianças não são bem
alimentadas. O que causa pior o problema de saúde.
6? Falta de assistência à saúde Precisamos de assistência médica ao menos uma vez por mês,
Características Causas Soluções assistência dentária, remédios e de reunião para vermos a possibili
dade da construção de um miniposto de saúde.” M.T.
Falta de assistência à Falta miniposto. Cuidar da saúde. III. “ As mulheres de nossa comunidade precisam trabalhar profis
saúde. sional para ajudarem financeiramente seus maridos nas despesas de
Falta de reunião para Médico ao menos uma
Falta médico discutir os problemas vez por mês. casa. Primeiro vamos pensar na falta de incentivo, pois elas não são
Falta remédio. da comunidade. Miniposto. incentivadas a trabalhar, a exercer uma profissão que lhes renda
Alimentação. algum dinheiro. Depois vamos pensar no salário, que é pouco. Mas
tão pouco que não lhes propõe o interesse de trabalhar, mesmo sendo
8? Falta educação para os adultos, por falta de interesse da comunidade qualquer tipo de trabalho. Como: fazerem crochê, tranças de palha,
costuras. Os lucros seriam aquela mixaria que nem chegariam a
Falta escola para Desinteresse da Arranjar professores.
os adultos. comunidade.
compensar.” M.I.F.S.
Interesse da comu
Falta de professores nidade.
para adultos. Após esse momento de sistematização das informações, o
Falta de formação da
Ajuda das autoridades grupo planejou a realização de reuniões com a comunidade objeti
competentes. vando discutir a proposta de sistematização das informações, refletir
comunidade.
sobre os núcleos problemáticos e definir prioridades para a elabo
ração do plano de ação comunitária e do plano educativo. Para
O passo seguinte foi procurar fazer com que os membros do alcançar esses objetivos, optou-se neste caso por um processo em
grupo tentassem escrever pequenos textos sobre os problemas e ilus duas etapas: a primeira consistiría na organização de pequenos
trá-los. A mesma tarefa tinha sido realizada nas outras comuni grupos de estudo com as pessoas da comunidade, e a segunda,
dades, revelando-se uma atividade importante para interiorizar a como momento final, seria a apresentação de uma peça dramati
compreensão do problema. O esforço por traduzir as reflexões do zando os problemas da comunidade.
214 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 215
O texto da peça resume os resultados da pesquisa em forma Mudando de pau pra cacete, o que o compadre acha da religião
integrada e, sempre que foi encenado, motivou novas discussões e daqui?
conversas sobre os problemas da comunidade: Está mais ou menos, ô compadre, se aqui tivesse uma capela,
era muito bom.
Mas, compadre Chico, pra ter uma capela é preciso de muita
“DRAMA DOS PROBLEMAS DA COMUNIDADE
coisa, em primeiro lugar catequistas, eu sei, uma capela aqui seria
muito bom, motivava mais o povo, o que está faltando é uma pessoa
Boa tarde, comadre Maria. que se encarregue, quer dizer, interesse da comunidade, e também as
Boa tarde, compadre Chico, tudo bem por lá? condições são poucas.
Comadre, só não está melhor, porque estou muito preocupado
com os meninos que estão sem estudar. Bom, com isso vou te contar uma coisa, sábado passado eu fui
Õi compadre, este problema está mexendo com todo mundo, matricular meus meninos no catecismo, tive foi pena de D. Rita, sabe
aqui em casa ficaram 3 meninos sem estudar, e eu não sei o que quantos meninos tinha matriculados, cem crianças de 6 anos acima
fazer, se aqui tivesse escola de noite, até eu estudava; mas é um pro só pra uma catequista.
blema, se tem quem ensine, não tem local. Você já viu o grupo, está Agora, compadre, eu pergunto, cadê o povo dessa comuni
em tempo de cair, se chove fica cheio d’água, não tem carteira sufi dade? As moças, os rapazes, em primeiro lugar, o que estão fazendo?
ciente, se aquele grupo fosse reformado, fizessem duas salas de aula e Mas é assim mesmo, não tem quem queira se responsabilizar por
completasse de carteira ficaria muito bom, daí podia ser que tivesse nada, dar uma aula aos sábados acham demais.
escola suficiente pelo menos até a 4? série. Olha, comadre Maria, se tivesse a capelinha, uma pessoa encar
Comadre, a situação está preta, acho que todas as famílias regada, depois viesse a energia elétrica, melhorava muito o nosso
estão sofrendo muito, pense bem: lá em casa somos 4 homens, 2 tra lugar.
balham no GESCAP, e 2 não trabalham porque não têm idade, mas Você acha, compadre, que nós temos alguma possibilidade de
eles comem até mais que eu que soü mais velho, agora o pagamento termos energia aqui?
falta e não sai mais, e quando sai não dá pra comprar nada, é só pra Sim, por que não?
pagar, e o tempo é pouco para GESCAP e cuidar da roça da gente. É, quem espera sempre alcança, pode ser que pelo meio de
Ê, compadre, se o governo desse uma olhadinha pra este povo tanta coisa sobre alguma coisa pras mulheres, já pensou só quem
que sofre e tivesse dó, e fizesse alguma coisa, além da situação ser ganha é professora e é pouco que faz vergonha, devia ter assim um
feia, aqui não temos nada, deveria ter aqui ao menos uma vez por mês trabalho que as mulheres pudessem trabalhar pra ajudar a seus mari
médico, dentista pra cuidar da saúde destas crianças, uma consulta, dos.
uma vacina, a gente tem que andar a pé ou mesmo de carro, mas É, eu também achava bom, mas de todo feito é ruim, tem
precisa de dinheiro para as passagens e é aquela confusão! Um lugar mulheres que sabem fazer alguma coisa, mas se fizeram não tem onde
como este, grande, de muita gente deveria ter era um miniposto. vender.
Olha, comadre, aqui é como diz, fala-se de uma coisa e puxa O que temos que fazer é trabalharmos juntos pra ver se alguma
outra, quando falamos em miniposto vem aí, você já viu aquele coisa tem solução, é o que esta comunidade espera e quer. I.C.G.”.
cacimbão do Sr. Joaquim? que a água está podre de tanta porcaria,
este povo daqui também é demais, este ano o inverno está fraco, e se
Com os quadros resultantes da sistematização discutidos e
faltar água? Ninguém tem cuidado com aquele cacimbão, se a comu
nidade se reunisse e limpasse, será que valia a pena? modificados pelas comunidades nas reuniões de estudo, o grupo
Claro, compadre, eu tenho muita fé em Deus que estes pro começou a elaboração do plano comunitário. Essas mesmas reu
blemas sejam solucionados, nós é que devemos ter cuidado com a niões proporcionaram subsídios sobre os problemas que a comuni
água que bebemos, depois de limpa, se as autoridades fizessem logo dade considerava prioritários e as possibilidades de começar a
um poço profundo, era uma boa. implementar algumas soluções por si mesma. Assim, esse plano
Sabe o que está faltando? Uma pessoa pra fazer campanhas de geral de ação incluiu as soluções que a comunidade considerava
saúde, por exemplo: campanha de filtros, fossas, farmácia comuni prioritárias e possíveis para desenvolver no prazo de um ano, até o
tária, melhoraria cem por cento. momento de dar passo a outro processo de planejamento.
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 217
216 CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.)
reunindo já fizeram bastantes tijolos e assim a gente vai guardando
A partir desse projeto de ação comunitária, o grupo refletiu para a construção, devagar se Deus quiser fazer, contamos com ajuda
sobre o tipo de atividades educativas que poderíam contribuir para de todos vocês.
atingir as soluções propostas pela comunidade. Uma vez definidas Aqui também é um problema sério d’água, pois os cacimbões
essas atividades, analisou-se o papel que o grupo-diagnóstico desem que tem estavam todos secando, foi aí que convidamos uns homens e
penharia na sua execução e a função do departamento de Educação eles fizeram limpeza no cacimbão do Sr. Joaquim, foi trabalho por
do município e da Secretaria de Educação, como instituições que que estava cheio de lama e tudo que era porcaria tinha dentro. Agora
deveríam cooperar com a comunidade na implementação das ações tem água a valer, não bem limpa, porque não presta pra beber, mas
educativas previstas. Os técnicos de acompanhamento apresenta pros animais e uso doméstico, é ótima.
ram também um informe sobre ações e programas de outras insti D. Rita, a coisa melhorou cem por cento, a gente vê que está
bem encaminhado o nosso trabalho, e pedimos encarecidamente às
tuições que atuavam no município e podiam colaborar com a comu
entidades que dêem uma olhadinha nos nossos problemas e ajudem-
nidade nas suas ações.
nos a resolvê-los, ficaremos muito gratos” .
Já elaborado o plano geral e o plano educativo, o grupo-
diagnóstico realizou uma nova assembléia da comunidade para
aprová-los e decidir sobre como seriam executadas as ações pre A comunidade resolveu organizar uma reunião na sede do
vistas. Nessa assembléia foi revisado todo o processo, desde o mo município para que o grupo de trabalho solicitasse apoio às institui
mento em que a comunidade aceitou iniciar o trabalho de pesquisa e ções oficiais com atuação na região. Eles mesmos solicitaram, com
planejamento, apresentou-se novamente o drama dos problemas da colaboração do departamento municipal da Educação, Casa de
comunidade e constituiu-se um grupo de trabalho para coordenar as Catequese, prepararam os dramas e cartazes para apresentar os
ações. resultados da pesquisa e os planos, e mimeografavam convites para
As primeiras atividades desenvolvidas foram a limpeza do as instituições e os grupos-diagnóstico das quatro comunidades que
cacimbão para melhorar a água que a comunidade utilizava, a for participaram da experiência. Na reunião, o grupo de Bonitinho
mação de equipes para fazer tijolos destinados à construção da cape- expôs os resultados de seu trabalho, solicitando apoio para imple
linha e a elaboração dos estatutos da associação de moradores. Com mentar as soluções propostas pela comunidade. Algumas das insti
a colaboração da assessoria jurídica da Secretaria de Educação, o tuições presentes consideraram-se agredidas, porque a simples lei
estatuto foi adaptado às exigências legais e publicado no Díario tura da realidade evidenciava sua omissão diante de problemas que
Oficial do estado: assim, a comunidade tinha uma estrutura jurídica estavam incluídos no cumprimento de suas funções específicas.
que aumentava suas possibilidades de receber apoio institucional. Outras apoiaram decididamente as propostas dos planos, compro-
O andamento dos trabalhos demonstrava que os esforços da metendo-se a lutar junto ao grupo e à mesma comunidade para
comunidade não eram suficientes para superar muitos dos proble atingir algumas soluções.
mas detectados. O “ desinteresse” da comunidade, que parecia no
início uma das causas principais das dificuldades, à medida que a
comunidade começava a recuperar a confiança nela mesma e a valo
rizar seus esforços, ia deixando lugar para perceber o desamparo e o
à guisa de conclusão
“desinteresse” de instituições que deviam estar a seu serviço. Como
O trabalho em Bonitinho, tanto ao nível da comunidade
o grupo tinha descoberto o poder do teatro como instrumento para
mesma quanto da equipe técnica de acompanhamento, chegou em
promover a reflexão e a participação das pessoas do lugar, um se
certa medida a convalidar a experiência. Os resultados confirmaram
gundo drama mostrou esse momento do processo:
que era possível atingir os objetivos propostos:
“Ainda bem que em alguns problemas já estamos vendo a solução, o • um grupo de técnicos da secretaria estadual, da delegacia regio
que a nossa comunidade quer resolver logo é construir uma capela,
nal e dos órgãos municipais de Educação foram treinados em
mas cadê as condições, são pouquíssimas, mesmo assim as pessoas se
218 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 219
uma metodologia de acompanhamento ao trabalho de pesquisa e
planejamento que a própria comunidade desenvolvera;
• no mesmo processo de treinamento, os técnicos foram aperfei
çoando e adequando a metodologia proposta à realidade das
populações rurais do Estado;
• as comunidades vivenciaram todo o processo de pesquisa e plane
Depois

CO jamento até elaborarem um plano geral comunitário e um plano


educativo para orientar sua ação;
• os técnicos dos órgãos municipais de Educação começaram a
compreender que os planos educativos municipais deviam ser a
base para a formulação dos planos municipais;
• um grupo de pessoas da própria comunidade foi capacitado em
Logo

^ to técnicas para promover e coordenar a participação das pessoas


do lugar na realização de ações conjuntas;
P L A N O E D U C A T IV O C O M U N IT Á R IO

• ainda mais, ficou demonstrado que esses camponeses têm sufi


ciente capacidade para promover o surgimento de outros grupos
nas comunidades vizinhas.
1) Formar clubes;

às autoridades.
posto, serviço

jovens a serem
4) Limpar cacim-
2) Pedir às auto
Fora da escola

Pedir reforma
fazer cursos.

7) Convidar os
3) Fazer mini-

catequistas.
leilões etc.
5) Reuniões,

Porém, ficaram também evidenciados os limites de um pro


ridades.

médico.

cesso de participação convocado por instituições públicas. Esses


bões.

limites levaram a equipe a profundos questionamentos, superados


só perante a evidência de que o trabalho estava efetivamente coope

6)
rando com as comunidades e não se podia abandonar o espaço,

próprio aluno a
deve ser limpa embora pequeno, que possibilitava essa ação. E essa constatação fi
Ação na escola

6) Zelar pelo seu


4) Nossa água

7) Incentivar o
cava cada dia mais clara à medida que o processo avançava: os gru

catequista.
estabeleci
pos diagnóstico cresciam por adesão espontânea de novos represen

mento.

ser um
tantes, as lideranças internas começavam a questionar seu próprio
autoritarismo e a descobrir a capacidade do coletivo para pensar e
decidir, muitas pessoas que no início desvalorizavam sua experiên
cia e desacreditavam de suas possibilidades de apreender e ensinar
1) Falta de traba

3) Falta assistên
2) Falta energia

4) Falta higiene
reencontravam-se com seu valor e suas forças. Õs técnicos podiam
Problemas

5) Falta capela

6) Reforma de
cia à saúde
mulheres

catequista
sentir nas pessoas da comunidade que trabalhavam mais ligadas a
lho para

na água
elétrica

prédio
eles “uma maior sensibilidade para os problemas comunitários,

7) Falta
disposição para continuar o processo de organização, um amadure
cimento pessoal e sobretudo uma consciência do seu papel e do
papel da comunidade na solução de sua problemática” (Ceará,
1982:75).
Mas as dificuldades existem e podem, é claro, fazer com que o
trabalho fique limitado a uma experiência em cinco comunidades
rurais, lembrada até com satisfação na história da instituição, po-
220 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 221
rém sem continuidade. Quais são essas dificuldades na percepção da se-ia chegar a colocar em evidência as múltiplas dimensões que ele
equipe? envolve e formular estratégias de ação mais detalhadas.
Com relação ao problema do tempo, o trabalho de Bonitinho
• A desintegração que define a estrutura institucional, e o pro mostrou que não é possível nem conveniente acelerar o processo.
cesso mesmo de institucionalização do Estado: cada órgão, depar
Superando entraves burocráticos, a própria comunidade foi estabe
tamento ou seção cria-se e perdura de modo que possa “recor
lecendo momentos de andamento mais ou menos rápidos, até pau
tar” com precisão a parcela da realidade que é de sua compe
sas e retrocessos que, no fim, levaram a uma duração total de
tência. Nem a proposta de trabalho, elaborada participativa
aproximadamente um ano. A equipe precisou aceitar que o ritmo da
mente, nem os resultados alcançados, aceitos e elogiados ao nível
própria comunidade para iniciar um processo de participação e re
do discurso, chegaram a ter a força necessária para promover
flexão é demorado, especialmente quando a proposta é avançar
um trabalho mais articulado, pelo menos no interior da própria
juntos.
área educativa.
® A marginalização de uma proposta inovadora de trabalho, que
pode chegar a modificar as formas rotineiras de planejamento,
execução e controle da instituição: essa marginalização, apesar
Bibliografia consultada
inclusive das boas intenções de muitas pessoas, é uma evidên
cia constatável em vários aspectos. A prioridade atribuída às Batallán, Graciela, N o ta s s o b r e la in v e s tig a c ió n p a r t i c i p a t i v a , Buenos Aires, mimeo.,
tarefas burocráticas, os escassos recursos investidos na experiên 1982, 7 páginas.
cia, o tamanho reduzido da equipe técnica e as dificuldades Beca, Carlos Eugênio, R e f le x õ e s s o b r e o p a p e l d a e d u c a ç ã o n ã o - f o r m a l n o m e io
r u r a l , Recife, IICA/Secretaria de Educação de Pernambuco, mimeo., 1982,
enfrentadas para sua constituição, a subutilização dos resultados 15 páginas.
do processo constituem alguns desses aspectos. Finalmente, um Ceará, Comissão Estadual de Planejamento Agrícola, P r o je to d e D e s e n v o lv im e n to
claro indicador desta situação foi manter cuidadosamente o tra R u r a l I n te g r a d o d o C e a r á , D ia g n ó s tic o , v. I, Fortaleza, 1979 (Publicação
CEPA-CE, 32).
balho desenvolvido afastado das equipes técnicas da secretaria Ceará, Secretaria Estadual de Educação, Programa de Educação Rural/Instituto
envolvidas com as ações do segmento Educação no Programa de Interamericano de Cooperação para a Agricultura, E x p e r iê n c ia d e E d u c a ç ã o
Desenvolvimento Rural Integrado do Ceará, sendo esse evidente R u r a l I n te g r a d a . A t i v i d a d e s d o p r é - d i a g n ó s t i c o , Fortaleza, Relatório 1, 1981,
24 páginas.
mente o espaço próprio, dentro da secretaria, para uma experiên Ceará, Secretaria Estadual de Educação, Programa de Educação Rural/Instituto
cia de “educação rural integrada” . Interamericano de Cooperação para a Agricultura, E x p e r iê n c ia d e E d u c a ç ã o
R u r a l I n te g r a d a , Fortaleza, 1984, 124 páginas.
Ceará, Secretaria Estadual de Educação, Assessoria de Planejamento e Coordenação
Além disso, a equipe técnica considera necessário revisar al — Programa de Educação Rural/Instituto Interamericano de Cooperação
guns pontos para avançar na formulação da metodologia de traba para a Agricultura, E s tr a té g ia d e E d u c a ç ã o R u r a l I n te g r a d a . D o c u m e n to
d e tr a b a lh o e l a b o r a d o a p a r t i r d o S e m in á r io ‘‘E d u c a ç ã o r u r a l: e s tr a té g ia d e
lho de pesquisa e planejamento participativo. O papel da teoria no a ç ã o " . Fortaleza, 1980, 55 páginas.
processo deverá ser esclarecido, para evitar um cego praticismo e Cohen, Ernesto, “La investigación participativa en el contexto de los proyectos de
para não cair em tautologias. Considera-se necessário promover desarrollo rural. Algunas consideraciones preliminares” , in : I n v e s tig a c ió n
p a r t i c i p a t i v a y p r a x i s r u r a l , Lima, Mosca Azul, 1981, pp. 81-102.
momentos de reflexão sobre os próprios conceitos utilizados como Fals Borda, Orlando, “ Aspectos teóricos da pesquisa participante: considerações
instrumentos para sistematizar a prática, tais como “causas” , “so sobre o significado e o papel da ciência na participação popular” , in : Bran
luções” , “contradições” , sobre sua capacidade explicativa e seus dão, Carlos R., P e s q u is a p a r t i c i p a n t e , São Paulo, Brasiliense, 1981, pp.
42-62.
limites, evitando que se transformem em simples “rótulos” . Poder- Freire, Paulo, A ç ã o c u ltu r a l p a r a a l i b e r d a d e , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978,
se-ia pensar que a continuidade do trabalho, pesquisando-se mais 130 páginas.
detidamente um problema que a própria comunidade considere Hall, Budd, "La creación dei conocimiento: la ruptura dei monopolio, métodos
de investigación, participación y desarrollo", in : C r ític a y p o l í t i c a e n c iê n c ia s
prioritário, proporcionaria a oportunidade para esses momentos de t. 2, Bogotá, Editorial Punta de
s o c ia le s . S im p o s io M u n d ia l d e C a r ta g e n a ,
reflexão. Concentrando os esforços no problema prioritário, poder- Lanza, 1978, pp. 1-11.
222 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
IBGE, C e n s o A g r o p e c u á r io : C e a r á , Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, Rio de Janeiro, IBGE, 1979, 696 páginas: tab. (Censos Econô
micos 1975, série regional, v. 1, t. 7).
IBGE, S in o p s e p r e l i m i n a r d o c e n s o d e m o g r á f ic o : C e a r á , Fundação Instituto Brasi
leiro de Geografia e Estatística, Rio de Janeiro, IBGE, 1981, 72 páginas:
tab. (Recenseamento Geral do Brasil, 1980, 9: v. 1, t. 1, n? 8)
Laing, Ronald D., A p o l í t i c a d a e x p e r iê n c ia e A v e d o P a r a ís o , Rio de Janeiro,
Vozes, 1974.
Oliveira, Rosiska de & Oliveira, Miguel Darcy de, Pesquisa social e ação educa
tiva: conhecer a realidade para poder transformá-la” . I n : Brandão, Carlos R.
A participação da pesquisa
(org.), P e s q u is a p a r t i c i p a n t e , São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 17-33.
Oquist, Paul, "La epistemología de la investigación-acción” , in : C r í t i c a y p o l í t i c a e n
c iê n c ia s s o c i a l e s .. . , o p . c i t . , pp. 3-30, t. 1.
no trabalho popular*
UNESCO, Oficina Regional de Educación para América Latina y el Caribe, “ Meto
dologia de planificación de la educación para el desarrollo integrado de zonas
rurales” , in : B o le tin d e E d u c a c i ó n , Santiago de Chile, (23-24), ago./jun.
ejul./dez., 1978. Carlos Rodrigues B ran d ão **
Para Terezinha e Paulo, para Idalice e Tião
Participação?
J á que, nos dias de hoje, na boca de quem manda o trabalho
de quem faz pode ser sempre participante, é importante rever o que
significa participar, na hora de fazer. Tal como tem sido escrita e
praticada, a idéia de pesquisa participante é recente, embora aqui e
ali algumas formas pioneiras tenham sido realizadas. Um exemplo:
o questionário da enquete de Marx entre operários que, mais do que
coletar dados sobre a sua condição, era um exercício de fazê-los
pensar, enquanto respondiam. Outro exemplo: o levantamento do
universo vocabular no método de alfabetização de Paulo Freire que,
já nos princípios da década de 60, convocava a comunidade pesqui
sada a participar tanto da pesquisa quanto dos trabalhos de edu
cação popular a que os seus dados serviam.
Quando hoje se fala sobre o assunto três princípios parecem
estar em jogo. Eles estão na base da crítica do que apressadamente
se convencionou chamar, por oposição, de pesquisa tradicional,
assim como servem para justificar a proposta alternativa de uma
pesquisa participante. Primeiro: a possibilidade lógica e política de
(*) Documento apresentado durante o II Seminário Latino-americano
de Pesquisa Participante, Pátzcuaro, México, 9 a 13 de maio de 1982.
(**) Antropólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da
UNICAMP.
224 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 225
sujeitos e grupos das classes populares (operários, suboperários, participante. Falo da questão antecedente da participação da pes
lavradores sem terra, posseiros, camponeses, migrantes, homens e quisa no interior de trabalhos de mediação com as classes populares.
mulheres de lugares e trabalhos servis) serem os produtores diretos Falo da possibilidade de transformação de uma prática científica,
ou, pelo menos, os participantes associados do próprio saber orgâ que durante tanto tempo ocultou o seu ser política, em uma prática
nico da classe, um saber que nem por ser popular deixe de ser que justamente por afirmar-se política na origem e no destino, re
científico e crítico. Um saber que oriente a ação coletiva e que, clama ser científica. Proponho pensarmos juntos, leitor, o problema
justamente por refletir a prática do povo, seja plenamente crítico e da participação da pesquisa no trabalho popular, para concluirmos,
científico, do seu ponto de vista. Segundo: o poder de determinação a partir daí, as alternativas de participação popular no trabalho da
do uso e do destino político do saber produzido pela pesquisa, tenha pesquisa.
ela tido ou não a participação de sujeitos populares em todas as suas Muito de propósito, ao invés de trabalhar sobre teorias ou,
etapas. Terceiro: o lugar e as formas de participação do conheci como é usual, sobre os dados de uma única experiência de pesquisa,
mento científico erudito e do seu agente profissional de saber, no escolhi contar uma história. Relato o caso das relações, ora difíceis,
“ trabalho com o povo” que gera a necessidade da pesquisa, e na ora francamente animadoras, entre o trabalho de pastoral popular
própria pesquisa que gera a necessidade da sua participação. de uma igreja no interior do Brasil e as pesquisas que em alguns dos
Ora, com muita freqüência, a idéia de participação na pes seus momentos foi necessário fazer. Recuo a um tempo que começa
quisa, na prática coletiva e na acumulação do saber que ambas entre 1968 (noite negra) e 1970 e conto como, ao longo de 15 anos,
deveríam produzir reforça apenas um dos lados da questão: o das diferentes alternativas de investigações de campo foram articuladas,
alternativas de presença ativa de índios, camponeses e operários no discutidas, feitas e demonstradas: umas úteis, outras desnecessá
trabalho de realizar momentos de pesquisas de campo pré-definidas rias.
e controladas por agentes eruditos de mediação.1 Participação, par Em um primeiro momento descrevo, item por item, as pes
ticipar são palavras que traduzem aí, portanto, a possibilidade do quisas feitas e as razões práticas do seu fazer, ao longo do trabalho
envolvimento do trabalho popular na produção de conhecimento de uma Igreja que a si mesma se definiu “comprometida com os
sobre a condição da vida do povo. Homens e mulheres de comuni pobres e oprimidos” de uma região do Estado de Goiás cuja vida
dades populares são convocados a serem sujeitos das pesquisas de social é inteiramente dominada pela atividade agropastoril.2 Em um
que eram antes o objeto de estudo. Mas sujeitos do quê? Em que segundo momento detalho um modelo de pesquisa participante que,
condições? Até quando? depois de pensado com muita amplitude, foi realizado apenas em
Sem deixar que se perca a força desta idéia renovadora, quero
discuti-la aqui, procurando compreender o seu outro lado, aquele
cuja complexidade não raro se acentua a tal ponto que a pesquisa (2) Fora do contexto brasileiro nem sempre é fácil compreender o
participante acaba sendo inviável, seja como pesquisa, seja como sentido de expressões como "Igreja do Evangelho", "Igreja Pobre", "Igreja da
Libertação". São títulos freqüentes e conflitivos no Brasil. São nomes, na ver
dade autodenominações, atribuídos a setores da Igreja Católica que se consi
deram alinhados político-pastoralmente com as classes populares. Não se con
(1) Agentes eruditos de mediação, agentes de mediação-, este é o nome fundem com setores apenas progressistas das igrejas católicas e evangélicas
que tenho dado para o que somos, quase todos. Profissionais com especia que lutam, em toda a América Latina, pela defesa dos direitos humanos. São
lizações setoriais (educadores, alfabetizadores, cientistas sociais etc.) que, em setores da Igreja que reconhecem ser tarefa evangélica sua o colocarem-se a
nome e através de alguma instituição promotora de programas de educação, serviço de projetos de construção de bases sociais do poder popular: a) criando
desenvolvimento etc., realizam práticas de intervenção junto a comunidades movimentos populares sob seu controle, mas destinados aos interesses das
populares. Fora o aspecto secundário de ser uma prática profissional, a carac classes dominadas; b) ajudando de forma assessora aos movimentos populares
terística mais relevante é que ela sempre ocorre como uma ponte entre a comunitários; c) apoiando os movimentos populares de classe (este, o terreno
agência e a comunidade. Uma outra característica da mediação é que o agente, mais difícil). São, no Brasil, os setores, os movimentos, os grupos e pessoas
em geral, não participa das instâncias decisórias das diretrizes de programas de mais sistematicamente reprimidos e postos sob controle político, jurídico e
intervenção sociopolítica junto às classes populares através das práticas sociais policial. Recentemente o Centro Ecumênico de Documentação e Informação
setoriais que realiza. Não é raro que esta seja, ao mesmo tempo, a condição do publicou um longo dossiê sobre a repressão oficial a tais setores da Igreja
trabalho e uma razão séria das contradições do agente de ações comunitárias. Católica.
226 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 227
uma pequena parte. Em um último momento saio dos casos conta depois de haver constituído a sua primeira equipe de trabalho,
dos para a sua crítica e, dela, para uma avaliação do sentido da buscou meios de transferir para lá a experiência do MEB com edu
participação da pesquisa nas situações em que ela se propõe uma cação popular via escolas radiofônicas.4 Um Projeto de Educação da
pesquisa participante. Comunidade — PEC chegou a ser discutido e escrito. No entanto,
antes mesmo que o PEC fosse posto em ação, dois fatos importantes
aconteceram. De um lado, os direitos da radioemissora da Diocese
Pesquisas com lavradores nos sertões de Goiás de Goiás foram cassados pelo governo e nunca mais devolvidos. De
outro lado, a equipe de agentes de pastoral concluiu, contra as
A partir do ano de 1968 começou a existir no interior de Goiás, primeiras deliberações, que era outra a realidade de vida e trabalho
dos lavradores da região e, portanto, outras deveriam ser as relações
em uma região de 13 municípios que vai desde perto da capital,
de trabalho pastoral entre a Igreja e eles.5
Goiânia, até as beiras do rio Araguaia, uma experiência de relações
Depois dos acontecimentos militares de 1964 e principalmente
entre dioceses católicas e comunidades de camponeses e lavradores,
após os acontecimentos políticos de 1968, cessaram os acordos entre
hoje tida como renovadora em muitos aspectos. Até então a pre
setores do Governo Federal e setores da Igreja Católica que até então
sença de um trabalho de Igreja na região apenas atualizara de
estiveram associados para a realização de projetos de educação e
muitas maneiras estratégias de controle de monopólios sociais e
desenvolvimento, como o que deu origem ao próprio Movimento de
religiosos. Algumas experiências de movimentos de cristãos da dé
Educação de Base. Após a desarticulação de grupos, movimentos e
cada de 60 haviam sido poucos anos antes desarticulados. Mesmo os
instituições que geraram no Brasil a idéia e a prática de Cultura
casos pioneiros de envolvimento de setores da Igreja com questões de
Popular e de Educação Popular, o Estado tomou a seu cargo a
causa popular — dos quais o problema da terra foi sempre o mais
iniciativa de produção direta de trabalhos semelhantes — mas com
intenso — deixavam por definir propostas duradouras do que co
lógica, ótica, ética e política diferentes — de educação e de comu
meçou a ser chamado de um “compromisso com o povo” , na linha
nidade, tanto em meio rural quanto nas cidades. Aos poucos, nas
de um trabalho de “pastoral popular” que participasse da história e
áreas onde bispos progressistas não o extinguiram, por falta de
da prática de realização de uma “libertação dos oprimidos” . condições de continuar realizando o mesmo tipo de prática pedagó
O bispo nomeado para ocupar a sede da Diocese de Goiás gica, o MEB foi tomado por setores conservadores da Igreja Cató-
(nome da cidade que foi a primeira capital do estado) veio da região
de Conceição do Araguaia onde, desde então até hoje, eram e são
graves e constantes os conflitos entre lavradores posseiros e empre (4) O Movimento de Educação de Base, MEB, resultou de um convênio
sas rurais.3 Durante alguns anos imediatamente anteriores à sua celebrado em 1961 entre a Confederação dos Bispos do Brasil e o governo
brasileiro. Dedicou-se à Educação de Base nas áreas rurais dos estados mais
transferência do Pará para Goiás, ele foi um dos integrantes mais subdesenvolvidos da federação. Entregue a leigos católicos, avançou em dire
ativos da equipe local do Movimento de Educação de Base. Pouco ção a uma prática de compromisso popular. Em 1964 o governador do então
Estado da Guanabara apreendeu em uma gráfica milhares de cartilhas de alfa
betização do MEB, Viver é Lutar. Após o golpe militar de 1964, o MEB foi
reprimido com violência em alguns estados. Os bispos progressistas retiraram-
(3) Posseiro é o usuário de terras ainda não tituladas. Ou seja, é o pre se dele e o denunciaram sobretudo após 1968 e 1970. Ver o estudo de Emanuel
tendente às terras sobre as quais trabalha. A expansão da fronteira agrária no
de Kadt, Catholic Radicais in Brazil (Londres, Oxford University Press, 1970).
Brasil em direção às áreas agrícolas do Extremo Oeste e à Amazônia recru
No momento há quatro teses de mestrado e doutoramento sendo elaboradas
desceu a luta dos posseiros pela defesa de terras que ocupam, alguns há mais sobre o MEB.
de 30 anos de trabalho contínuo, contra as ações expropriativas combinadas de
(5) Uso aqui as expressões costumeiras na área da Diocese de Goiás:
autoridades governamentais, fazendeiros e empresas latifundiárias de capital agente de pastoral é o profissional que, através das equipes de pastoral da
multinacional. Dois livros do sociólogo José de Souza Martins são fundamen Igreja, realiza o seu trabalho junto às comunidades; agente de base ê o nome
tais para a compreensão das questões agrárias no Brasil e, sobretudo, na
dado aos sujeitos das comunidades populares participantes dos movimentos
Amazônia: Expropriação e Violência — a questão política no campo (São populares em vinculação com a Igreja. São os lavradores, as mulheres lavra-
Paulo, HUCITEC, 1980) e Os Camponeses e a Política no Brasil — as lutas doras, os migrantes das periferias (lavradores ainda ou subempregados ur
sociais no campo e o seu lugar no processo político (Petrópolis, Vozes, 1982). banos, em maioria).
228 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 229
lica. Em tempos de acentuada repressão política a toda e qualquer Assim, as mesmas pessoas que decidiram a realização da pesquisa
experiência coletiva que redundasse em acumulação de poder popu fariam o trabalho de sua execução e usariam os seus dados.
lar, ou mesmo de poder civil, o poder de Estado acumulou estra 3) Depois de concluída a aplicação dos questionários e depois
tégicas e razões para impedir o surgimento, ou destruir a ameaça de de escrito o seu relatório, a pesquisa se convertería em um instru
continuidade de experiências de trabalhos de mobilização popular. mento: a) de conhecimento direto da “realidade local” por parte dos
A hipótese de uma outra ampla instituição nacional do tipo do agentes de trabalho; b) de base para a montagem e articulação dos
MEB foi então descartada. Do mesmo modo, na totalidade das dio planos setoriais de trabalho direto com as comunidades populares;
ceses católicas onde aos poucos se estabeleciam linhas de uma pas c) de instrumento de denúncia pública sobre processos de expro-
toral popular foram deixadas de lado ações complexas de educação priação das condições de trabalho, tanto de pequenos proprietários
duradoura. Pequenas unidades de trabalho de mediação entre a quanto de parceiros e assalariados rurais; d) de material para uso
Igreja e o povo começaram a surgir. Serão as formas pioneiras das dos grupos de trabalho pastoral.
comunidades eclesiais de base ou dos círculos bíblicos. Em Goiás, Foi feito como fora decidido. Um questionário maior do que o
por exemplo, grupos ágeis e dedicados à análise político-pastoral necessário foi elaborado, discutido e revisto (mas não reduzido).
“ da realidade” esparramaram-se por toda parte e tomaram o nome Depois de pronto e depois de treinado o pessoal de aplicação, ele foi
de Grupo do Evangelho. levado a cerca de 1900 residências de pessoas da região. Quando
Esse é o momento em que pela primeira vez surge ali a idéia de reunidos e trabalhados, os dados resultaram em um relatório que,
realização de uma pesquisa como um meio direto de se obter conhe mimeografado, foi distribuído a todas as equipes de trabalho pasto
cimentos sobre a “realidade social” capazes de servir à orientação ral.
dos trabalhos. Uma das primeiras assembléias diocesanas, onde era Alguns meses mais tarde, um número então reduzido de bis
ainda não-significativa a participação de representantes dos lavra pos do Nordeste e do Centro-Oeste deliberou apresentar documentos
dores, decidiu a realização de uma ampla pesquisa sócio-econômica de avaliação crítica das condições presentes de vida do povo de suas
com questionários aplicados junto a comunidades populares de regiões. Em um tempo de silêncio, aqueles foram exemplos quase
todos os municípios da Diocese: grupos de lavradores residentes em únicos de denúncia pública. O documento tomou como base a Pes
fazendas; famílias de camponeses sitiantes, de parceiros e de lavra quisa sócio-econômica-religiosa da Diocese de Goiás, à qual foram
dores residentes em aglomerados de sítios e chácaras ou nas vilas reunidos depoimentos de inúmeros lavradores do Estado de Goiás.
rurais, aos quais os goianos dão o nome de patrimônios; lavradores Transcrevo um momento do documento em que dados da pesquisa
ou ex-camponeses migrados para a periferia das cidades da região. são usados:
Alguns pressupostos da pesquisa sócio-econômica poderíam
ser resumidos aqui. Importante lembrar que eles apenas foram “De 1955 pessoas com quem procuramos falar, 1 210 disseram que
ficando claros ao longo do próprio trabalho e que, em alguns casos, estão desempregadas e enfrentam o trabalho que aparece na hora, no
foi muito grande a distância entre o pensado e o vivido, entre o tempo em que é maior a precisão. Quer dizer que se a gente pega três
projeto, a realização da pesquisa e a utilização dos seus dados. pessoas, só uma tem emprego com ordenado. As outras duas vivem
1) A pesquisa, depois de ter os seus usos definidos pela pró como podem, de ‘biscate’: trabalham aqui ou ali, hoje sim, amanhã
pria assembléia diocesana, seria realizada através da aplicação de não, um mês sim, outro não... todo mundo sabe como é. E todos
disseram que têm profissão. Quer dizer, o que falta mesmo é o
um mesmo longo questionário que deveria levantar todos os indica
emprego” (apud PSERDGoiás, p. 6).6
dores mais importantes das condições atuais de vida e trabalho das
famílias pobres da região: participação familiar no trabalho produ
tivo, renda familiar, condições de habitação, higiene, saúde, educa
ção, comunicação e lazer. (6) Outras pesquisas têm sido feitas em outras regiões do país. Há nelas
o objetivo de produzir dados e material de conhecimento da realidade local e de
2) Fora um assessor eventual, não seriam chamadas pessoas reunir informações que possam fundamentar denúncias feitas por setores da
alheias aos próprios quadros de agentes de pastoral da Diocese. Igreja, de sindicatos, de movimentos populares. Um exemplo pode ser a De-
CARLOS RODRIGUES BRANDÀO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 231
230
Entre 1972 e 1973 uma pequena série de acontecimentos muito Aos poucos alguns parâmetros sobre o que significava conhe
decisivos na trajetória das relações entre os agentes de pastoral e os cer “a realidade social do povo” foram sendo mudados. Não era
agentes de base produziu pouco a pouco modificações na maneira de bastante acumular dados a respeito de “condições de vida” . De um
pensar, fazer e usar pesquisas locais na região. Uma primeira inten lado, a maior parte dos agentes vivia junto aos lavradores e, convi
ção de presença da igreja local na vida e nas iniciativas setoriais de vendo com eles, aprendia com a própria observação direta da vida
organização popular tornou-se em pouco tempo um compromisso de social a apreender as suas condições. De outro lado, a partir do
aliança direta da Igreja com as comunidades populares. Uma 5? momento em que, em suas comunidades, sujeitos populares criavam
assembléia dividiu em dois momentos a história que narro aqui, os seus próprios grupos de trabalho de representação e luta, era a
a partir de sua face de produção de conhecimento para a orientação partir deles, do que enfrentavam passo a passo e do que precisavam
da prática. Desde então a “ Igreja de Goiás” reconheceu-se compro conhecer, que se definiam as prioridades de conhecimento, logo, de
missada com um projeto de libertação popular, cuja condução foi pesquisa. Assim, as investigações seguintes procuraram responder a
entendida como devendo ser dos próprios agentes do povo organi duas exigências: 1) ser um instrumento de outros instrumentos de
zados como classe. Este compromisso provocou um rompimento trabalho, como meio de produção de conhecimentos que orientas
político de prestação de serviços dos agentes de pastoral com sujeitos sem diretamente as atividades de educação popular, elas próprias
e grupos das classes dirigentes, representadas na região pelos gran pensadas como meios de organização e instrumentalização das uni
des fazendeiros e por autoridades políticas de controle. Em termos dades populares de prática social e política, de que o Movimento dos
concretos, a “opção pelo povo” orientou a prática pastoral a ser um Trabalhadores foi, durante muito tempo, uma das mais impor
serviço de criação, ajuda e apoio a grupos e movimentos populares, tantes; 2) ser um instrumento ágil de conhecimento direto de ques
inicialmente apenas de camponeses e outros trabalhadores rurais e, tões que tivessem a ver com necessidades imediatas e que pudesse
depois, das diferentes categorias de sujeitos populares migrados ser incorporado, sem dificuldades, tanto ao trabalho realizado pelos
para as cidades: operários, subempregados, artesãos, lavadeiras, agentes de pastoral nas atividades que eram próprias da Igreja (Gru
empregadas domésticas. pos de Evangelho, cursos, assembléias) quanto ao trabalho feito
Educação Popular era, então, um dos nomes que traduzia o pelos agentes de base e que eram próprias do movimento popular
trabalho ali realizado. Um trabalho exercido por agentes de media (Movimento dos Trabalhadores, sindicatos, oposições sindicais,
ção que, procurando abdicar de possuírem projetos históricos alter associações de moradores, comissões de saúde).8
nativos, colocavam-se a serviço do trabalho popular de produzi-los, Relato alguns exemplos sucessivos de pesquisas que inicial
fortalecê-los e conduzi-los através também da acumulação do saber mente, mesmo não contando com a participação popular ativa no
e do poder do saber.1*7 processo, procuravam estar participando de trabalhos populares a
que deviam servir.
núncia — caso Araguaia-Tocantins, elaborada pelo pessoal da Comissão Pas
toral da Terra (Goiânia, 1981). Outra é a pesquisa "O Peão Entrou na Roda, (8) Em Goiás há um reconhecimento de que existem trabalhos popu
o Peão", que analisa as relações entre lavradores posseiros, peões e fazendei
lares que os agentes de Igreja geram e dirigem por sua conta, ainda que mais
ros da região do rio Araguaia, no Estado de Mato Grosso (São Félix do Ara adiante agentes de base possam co-participar da direção ou possam mesmo
guaia, 1980). Esta última acaba de ser republicada no nf 13 dos Cadernos do assumi-la. São os movimentos populares da Igreja, pensados como instru
CEDI — Garimpo. (Pedidos ao CEDI: Rua Cosme Velho, 98 — Fundos — mentos de trabalho pastoral a serviço dos lavradores. São os trabalhos que a
Cosme Velho, Rio de Janeiro.) Igreja faz. Há movimentos populares das comunidades, sejam elas rurais, ou
(7) Educação Popular é o nome dado pelas equipes de pastoral de Goiás sejam de periferia das pequenas cidades. São produzidos pelas próprias comu
a todo tipo de prática de mediação que promove ou assessora os movimentos nidades e devem ser dirigidos pelos seus representantes. São os movimentos
populares. A extensão do nome "educação popular" justifica-se, em primeiro que a Igreja ajuda e parte desta ajuda assessora é o que se considera como uma
iugar, porque os seus trabalhos implicam processos de reflexão, crítica da reali das faces do trabalho de educação popular. Há, finalmente, movimentos
dade, produção de saber popular (aí coloca-se a pesquisa participante); em populares de classe em que os lavradores, por exemplo, entram como cate
segundo lugar, porque servem, como uma atividade de reflexão e organização goria de trabalho (sindicatos, oposições sindicais) ou como categoria política
de grupos populares, à melhoria das condições pessoais e coletivas de parti (Movimento dos Trabalhadores, Partido dos Trabalhadores). São os movimen-
cipação popular em seus próprios movimentos.
232 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 233
A pesquisa sobre as terras do município de Britânia
A pesquisa sobre as famílias migrantes “da roça” para as cidades
Em um dos municípios mais distantes da sede da Diocese,
Britânia, o então governador do Estado de Goiás usavá o seu poder a Todo o trabalho mais definidamente político da Igreja de
fim de pressionar pequenos proprietários para que lhe vendessem Goiás esteve durante os primeiros anos concentrado nas comuni
suas terras. Autoridades locais e capangas armados pressionavam, dades agrárias: povoados de fazendas ou povoados de camponeses.
primeiro com o pregão das vantagens na venda e depois com amea No entanto, sobretudo após o ano de 1970, ocorreu na região —
ças, aqueles que resistiam à venda forçada. De outra parte, lavra como em tantas outras de todo o território nacional — um acele-
ramento do êxodo rural. Famílias de lavradores em proporções geo
dores sem terras eram cada vez mais impedidos de plantar o seu
métricas eram forçadas a abandonarem as suas terras de proprie
arroz de subsistência no solo fértil que a seca sazonal do lago dos
dade e cultivo, como no caso de pequenos proprietários de produção
Tigres, às margens da cidade, deixava à espera da semente.
camponesa que, por pressão, pauperização ou endividamento, eram
Pouco menos de 100 camponeses acabaram vendendo suas
obrigados a vender suas terras.
propriedades. Convocados por eles e outros, agentes de trabalho
Em número ainda maior, inúmeras famílias de lavradores
pastoral da Igreja procuraram articular uma difícil resistência. Um
parceiros, agregados, eram forçadas a deixar terras de fazendas,
dos seus instrumentos foi uma pequena pesquisa feita junto a 52 porque os “ donos” as expulsavam para substituir campos de lavoura
camponeses que recém haviam vendido suas terras. Entre os itens da por pastos de gado, ou para substituir lavouras de cereais cultivadas
folha aplicada, os mais importantes eram sobre as condições em que com força de trabalho humano por lavouras mecanizadas. A “expul
se deu o processo de venda forçada. são do campo” deslocou em pouco tempo uma proporção muito
Como os dados da pesquisa seriam para servir a uma ação
grande de famílias das áreas rurais para a periferia das pequenas
imediata de resistência, sequer foi elaborado um relatório final.
cidades da região, as maiores delas com não mais do que 10000
Escrita a mão, a síntese dos dados foi devolvida às pessoas do lugar e
habitantes. No entanto, a maior parte dos trabalhadores rurais mi
serviu como instrumento de discussão em suas reuniões. Dentro de
grados para a cidade permanecia ocupada com o trabalho agrário,
uma situação onde não raro apenas o testemunho de um momento
como trabalhadores volantes (“bóias-frias”) ou como “meeiros”
de luta popular é tudo o que sobra, o material da Pesquisa dos
(lavradores parceiros). Também de 1972 em diante começou a au
lavradores de Britânia — que não conseguiram reaver suas terras
mentar geometricamente o número de trabalhadores desemprega
nem conseguiram coletivamente outras, dentro do estado — foi
dos no campo e na cidade.
acrescentado a tantos outros que, por algum tempo, foram usados
Esta era uma nova situação para os planos e trabalhos reali
em documentos públicos de análise e denúncia dos processos de
zados pelas equipes de agentes. Muitos dos próprios militantes “ de
expulsão da terra.**9
base” haviam migrado também para as “pontas de rua” da cidade.
Tornou-se urgente uma reorientação da prática política da educação
popular.
tos que a Igreja apóia. Para simplificar, estas unidades operativas da prática de Um dos instrumentos de discussão e reorientação dos tra
organização popular são chamadas de: movimentos de Igreja, movimentos
populares, movimentos de classe. Em termos gerais, chamo-os de movimentos
balhos de mediação dos agentes de pastoral foi uma “pesquisa sobre
populares. as famílias migrantes” . Ainda nesta investigação não houve uma
(9) Documentos que circulam entre os lavradores e que, em um pri participação popular. A idéia apenas amadurecia, à medida que
meiro momento, a Igreja e outras instituições eruditas comprometidas com a
causa popular faziam para os lavradores e outros grupos populares. Hoje em
cada vez mais agentes populares assumiam o controle dos movi-
dia, com o fortalecimento e a apropriação popular dos meios eruditos de comu
nicação, os próprios movimentos populares e movimentos de classe produzem
os seus boletins, volantes etc. Há uma grande circulação deles por todo o Igreja tendem a especlalizar-se na produção de material popular e eles tendem
interior do país. A Diocese de Goiás faz, para seus agentes e para as comu a tornar-se veiculadores de pesquisas. Exemplos: Grupo de Documentação e
nidades, um Boletim. Assim também, mas agora a nível nacional, o faz a Reflexão (Goiânia), Centro de Estudos do Trabalho (Belo Horizonte), URPLAN
Comissão Pastoral da Terra. Grupos comprometidos não vinculados com a (São Paulo).
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 235
234 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
mentos de Igreja (como os Grupos do Evangelho) ou dos movimen 3? etapa: o trabalho politico desloca-se, aos poucos, para os
movimentos populares de comunidade e de classe, na mesma me
tos populares, tanto ao nível da comunidade (como as associações de
dida em que os agentes de base participam efetivamente de grupos
moradores ou as comissões populares setoriais), quanto ao nível da
de decisão e das equipes de pesquisa e programação dos trabalhos
classe (como o Movimetno dos Trabalhadores, as oposições sindi
cais e, mais tarde, o Partido dos Trabalhadores — PT). da diocese.11
Os agentes de pastoral elaboraram uma pesquisa montada
ainda sobre um questionário que foi aplicado junto a cerca de
200 famílias de lavradores migrantes para as “pontas de rua” . A Pequenas pesquisas de trabalho setorial
investigação conseguia agora fazer uma síntese entre as duas ante
riores. De um lado ela produziu conhecimentos sobre indicadores de Depois de consolidada a prática de intercalar atividades de
condições de vida: moradia, saúde, educação, trabalho e salário e investigação com momentos de trabalho direto, aqui e ali surgem
vida comunitária na nova situação de residência na cidade. De outro iniciativas setoriais. Pesquisas são feitas para cobrir aspectos especí
lado, ela investigou o próprio processo do êxodo “ da roça” para a ficos do trabalho realizado, ou para sondar caminhos a seguir. Uma
cidade: as razões atribuídas à migração, o modo de vinda da família delas foi uma ampla investigação a respeito do sentido da presença e
do campo, as estratégias de reorganização da vida familiar na das contradições de uma Igreja que, sendo estruturalmente asso
cidade.10 ciada ao longo da história brasileira às classes dominantes, procura
Por volta de 1973, uma dinâmica de relações — prática polí alianças e produz trabalhos político-pastorais dirigidos de um modo
cada vez mais definido ao fortalecimento do poder dos movimentos
tico-pedagógica —► reuniões periódicas de avaliação e reorientação
de classe.
da linha de trabalhos (assembléias diocesanas ou avaliações) —►
Esta foi uma das mais demoradas e provavelmente a mais
pesquisas setoriais instrumentalizadoras da prática direta e das
inútil experiência de pesquisa da diocese. Embora tenha sido apon
reuniões — constituiu-se como uma rotina. O fortalecimento dos
tada como uma necessidade urgente, ela não nasceu de um consenso
grupos populares, não só devido à presença da Igreja de Goiás, mas
dos próprios agentes de pastoral. Por outro lado, em momento
também aos próprios processos de amadurecimento e às conquistas
de espaço por parte de comunidades e grupos políticos de lavrado algum conseguiu inserir-se naturalmente no dia-a-dia de seu traba
res, alterou significativamente o teor das relações entre os agentes de lho pedagógico. Foi totalmente desconhecida pelos militantes de
base e, assim, depois de concluída, a pesquisa habita a poeira de
base e os agentes de pastoral. A trajetória desta variação poderia ser
escrita da seguinte maneira: uma estante pouco freqüentada do Centro de Treinamento, em um
relatório com o nome de: A Igreja do Evangelho. Será provavel
1? etapa: o processo decisório e as situações de produção de mente um dos documentos mais importantes para quem no futuro
conhecimento são controlados pelos agentes de pastoral, mesmo pretenda estudar a história da Igreja de Goiás. Mas não serviu para
quando todo o trabalho de educação popular destina-se à realização orientar e fortalecer o seu trabalho.
de um projeto de “libertação popular” , cuja condução deveria ser Algumas pequenas pesquisas são realizadas para responder a
“da base” ; dúvidas a respeito do comportamento dos agentes, especificamente
2? etapa: há uma co-participação ampliada dos agentes de
base (lavradores, mulheres de lavradores, categorias populares ur
banizadas) nas assembléias e avaliações decisórias da linha de ação e
(11) Este é um duro momento dos trabalhos de um setor popular da
na co-direção dos movimentos populares da Igreja; Igreja. Aquele em que uma parte significativa dos seus trabalhos divide-se com
grupos e movimentos populares que, como tal, estão necessariamente desvin
culados de uma orientação direta e de qualquer tipo de controle direto, tanto
da Igreja Católica, quanto de qualquer outro grupo, instituição ou programa de
(10) Uma das antigas militantes das equipes de Goiás escreveu um mediação, mesmo quando eles estejam definidamente comprometidos com
estudo posterior, com base na pesquisa das famílias migrantes: O Povo das projetos de produção de poder popular.
Pontas de Rua.
236 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 237
no trabalho religioso. Questões às vezes descuidadas no calor de um ção de um processo social de libertação — deveria começar no
trabalho de educação popular ou no envolvimento dos agentes com a interior dos próprios grupos e das instituições mediadoras compro
linha de frente do Movimento dos Trabalhadores e das oposições metidas com as classes populares.
sindicais de lavradores são, no entanto, muito importantes para os Assim, qual seria o sentido e o valor de estudos, seminários e
próprios lavradores.12 Este é o motivo por que foi feita uma pequena pesquisas “sobre” o povo da região, sobre os seus problemas e sobre
pesquisa sobre o batismo. De uma ampla consulta a lavradores “ da os determinantes político-econômicos dos seus problemas? Pesqui
roça” e da cidade, foram tomados pontos de orientação do trabalho sas e estudos onde o camponês, mesmo sendo sujeito da prática
propriamente religioso. pastoral e o suposto sujeito do projeto político de libertação, não era
Até aqui apenas narrei as relações entre o trabalho popular e o sujeito, mas o objeto dos trabalhadores concretos de realização
as pesquisas realizadas pelos agentes de pastoral da Diocese de desta prática e deste projeto. Esboçava-se a partir daí a passagem de
Goiás. A primeira parte destas reflexões serve para exemplificar um pesquisas sobre para pesquisas com, e este foi o começo de um passo
modo de prática com classes populares rurais onde a pesquisa tenta bastante importante.
existir como um recurso político-pedagógico de acompanhamento
dos trabalhos. Ela serve à produção de conhecimento para a pro
gramação tanto quanto para a avaliação do que foi feito. No espaço A participação popular na pesquisa participante
entre um ponto e outro, serve para a reflexão de equipes de agentes
que trabalham na base. Quando a diocese completou 10 anos de atuação em áreas
Fora a consciência de que a pesquisa, em um contexto de tra rurais de Goiás, foi decidida a realização de uma pesquisa que
balho com comunidades rurais e de periferia, devia ser dirigida cada atualizasse o conhecimento dos agentes de pastoral e agentes de base
vez mais a elas próprias e devia, portanto, ser feita em função de sobre “a realidade social” da região, avaliasse o andamento e as
ações coletivas ali realizadas concretamente, para responder às suas condições de trabalho dos diferentes grupos e movimentos populares
dúvidas diretas, aos poucos os agentes alcançaram uma outra com — os da Igreja, os das comunidades e os das categorias de trabalha
preensão do assunto. Ela foi o caminho para a descoberta da idéia dores rurais — e ajudasse a decisão do trabalho da Igreja de Goiás
da participação popular em um modelo de pesquisa participante feito até então.
que buscava ser parte integrante de um programa de educação A primeira idéia foi a da repetição, 10 anos depois, da grande
popular e servia ao seu encaminhamento, à sua realização. “pesquisa sócio-econômica” . De imediato a proposta mostrou-se
Descobriu-se com a própria experiência que até então quase inadequada. Tinha havido um avanço muito grande em termos de
todo o trabalho de produção do conhecimento e quase todo o uso compreensão da realidade local. Se, antes, tratava-se de equipes
político-pedagógico deste conhecimento estavam concentrados nas recém-chegadas a uma área rural de atuação, agora elas contavam
mãos dos agentes de pastoral. O fato de que, em intenção e, às com 10 anos de experiências diretas junto às comunidades campo
vezes, na realidade, o conhecimento produzido com a pesquisa fosse nesas. Ao longo do tempo tornou-se claro que o trabalho diário
“usado para o trabalho popular” ou “levado ao povo em reuniões” sofria interrupções prejudiciais quando era repartido com uma ativi
não anulava a evidência de que a prática da pesquisa negava em ato dade absorvente como uma pesquisa. Os próprios sujeitos do tra
o que era a todo momento afirmado e reafirmado nas reuniões e balho de educação popular haviam sofrido mudanças de peso. Ha
assembléias: que o exercício do controle político popular — condi- viam migrado para a cidade e, com isto, transferido para as suas
periferias o pólo operativo das ações de assessoria das equipes de
agentes. Haviam constituído os seus próprios movimentos e recla
(12) Em vários municípios onde os sindicatos do trabalhador rural eram mavam uma participação mais direta em todos os espaços anterior
controlados por lavradores "pelegos", controlados pelo Estado ou por grupos mente criados pela ação da Igreja na região. Segundo alguns, a
de fazendeiros, surgiram movimentos de Oposição Sindical. Em alguns deles
houve vitórias eleitorais destes movimentos, sempre apoiados pelos agentes de própria prática dos agentes da Igreja e do campesinato era o melhor
pastoral. instrumento do conhecimento da realidade local (condições de vida e
238 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 239
determinantes dessas condições), assim como do próprio andamento e a participação — inclusive decisória — de representantes da base
da prática da educação popular e dos movimentos populares. Por (populares).
que razões perguntar com questionários aquilo que a vida respondia Por outro lado, foi decidido que nós não nos preocuparíamos
por si mesma, todos os dias? em investigar ‘setores’ da ‘realidade da região da diocese’. Procura
Surgiu então a proposta da elaboração de um modelo de ríamos principalmente pesquisar os níveis de relações sociais que
pesquisa que se incorporasse à própria prática cotidiana. Um tipo ajudem a explicar como estes vetores da vida social dos lavradores
de investigação que fosse o mais plenamente possível co-participada estão articulados agora, como eles envolvem e controlam a vida dos
lavradores e como a nossa prática está colocada frente ao que acon
por agentes de um lado e do outro; que estivesse o mais diretamente
tece neles. Não se trata, portanto, de pesquisar condições de vida, ou
possível “colada” à própria ação que grupos, equipes, movimentos e a situação das comunidades rurais, ou de periferia, quanto a isto ou
comissões da Igreja, das comunidades e do campesinato estivessem àquilo. Há um trabalho nosso — agente + base; há situações de
desenvolvendo naquele momento; que fosse um instrumento de diferentes tipos de conflitos entre categorias de sujeitos sociais em
trabalho e não um instrumento para o trabalho, ou seja, separado várias áreas da região; há diferentes formas de resposta popular. Este
dele. Que, portanto, produzisse material de conhecimento e orien- conjunto de fatos da dinâmica da vida política que a todos compro
tação ao longo de sua marcha, e não apenas em um momento final. mete é o foco da pesquisa. Esta idéia será mais desenvolvida adiante.
Por outro lado, o que se constatou era que, no momento em Ela poderia por enquanto ser representada conforme Figura 1.
que se tem um tipo de envolvimento agente-povo configurado e em Estes serão os passos durante os primeiros períodos de resolu
processo e no momento em que se tem uma associação de prática ção e realização da pesquisa: 1?) a equipe provisória de coordenação
popular + prática de mediação (o trabalho direto das comunidades deve levar a idéia à Equipe Diocesana de Coordenação para estabe
e grupos populares com a participação e assessoria de instituições e lecer ali uma discussão decisória sobre o assunto; 2?) a proposta
deverá ser amplamente debatida nas comunidades, mesmo conside
grupos de agentes comprometidos), estes eram os pólos determi
rando-se que nas discussões anteriores sempre houve representantes
nantes — as “portas de entrada” — de todas as questões a serem
conhecidas, pesquisadas e discutidas.
Este é um ponto muito importante. Ele não só abre caminho F IG U R A 1
para a participação de militantes populares na produção do seu
conhecimento, como coloca, mais do que métodos e técnicas roti
como
neiros, a própria estrutura de produção social do conhecimento conhecimento da
através da pesquisa, em função dos movimentos populares, a seu realidade social
serviço. Tratava-se de descobrir como pensar, programar e realizar da região
pesquisas compatíveis com a prática político-cultural popular, o que
é diferente de convocar sujeitos do povo a virem participar de pes
quisas sobre ele próprio e seu mundo, dentro de nossos padrões
---- relações sociopollticas------
tradicionais apenas estrategicamente “popularizados” . determinantes de tais questões
Neste momento quero calar a minha escrita e fazer ouvir-se
aqui uma fala coletiva do passado. Com algumas pequenas revisões
que em nada alteram o sentido, transcrevo um dos documentos em como
que as discussões de 1979 foram “postas no papel” . avaliação de
nossos traba • trabalhos de • nossa partici nossa prática
lhos de apoio apoio às lutas pação nas pastoral
“A sugestão vinda do grupo piloto de discussão sobre a pesquisa foi a à luta pela populares por lutas e movi
de que ela só teria sentido e só deveria ser feita se: IP. fosse uma terra melhores mentos de
necessidade real e efetiva, de algum modo consciente para o próprio condições de saúde
povo; 2P. em todas as suas etapas fosse realizada com o conhecimento trabalho
240 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 241
das bases; 3?) como material-piloto, as equipes locais deverão fazer Ora, para grupos de agentes comprometidos, a prática política
levantamentos simples, com participação popular. Estes levanta e pedagógica anterior à própria pesquisa é que deve determiná-la.
mentos da realidade local devem envolver: a) situações de conflito É que deve definir como e por que ela deve ser feita. E esta prática
entre lavradores e fazendeiros, por exemplo, assim como formas existe em um ponto de relações entre agentes de educação e agentes
populares de resistência em todas as áreas de atuação dos movimen de base (das comunidades, dos movimentos populares, dos grupos e
tos populares (terra, trabalho, direitos humanos, educação, saúde, comissões). Assim, todo e qualquer processo de produção de conhe
etc.); b) experiências de trabalho de educação e pastoral popular em cimento que venha a ser incorporado a esta prática e aos processos de
diferentes setores de atuação. transformação que ela objetiva, deve ser uma ‘empreitada’ comum
Como um passo preliminar da pesquisa, tal trabalho-piloto de que, em um mesmo trabalho, comprometa todos os grupos e sujeitos
simples levantamento de situações de conflito e experiências de prá envolvidos. Isto vale para todas as fases, tanto as de trabalho quanto
tica deverá resultar em pequenos relatórios, sobre os quais trabalha as de decisão e uso.
ríamos como base para a elaboração dos passos seguintes. Ao mesmo Sobra então uma pergunta: é possível realizar isto na prática?
tempo o pessoal de assessoria da pesquisa fará os estudos necessários Para o nosso caso existem duas idéias, dois modelos mais usuais, mas
ao seu aprofundamento. Estes estudos serão somados aos dados de nós teremos que construir juntos o nosso caminho:
nossos levantamentos, para a discussão de um modelo de pesquisa. l.° modelo:
Eis, portanto, a idéia básica da pesquisa. Não se trata de a) os agentes de pastoral discutem com os do povo a necessi
manter o controle de todo o trabalho e apenas ‘explicar’ às bases que dade da pesquisa e os seus procedimentos;
uma investigação vai ser realizada, pedir sugestões esparsas ao povo e b) os agentes resolvem sobre a metodologia e os procedimentos,
prometer que os resultados serão ‘devolvidos’ a ele. Ao contrário, a criam os instrumentos de pesquisa e os aplicam junto às comuni
idéia é a de construir uma autopesquisa. dades;
No modelo tradicional — mesmo quando o pesquisador se sente c) de posse dos dados obtidos, eles fazem o tratamento neces
comprometido com o povo — o ‘centro de direção’ é alheio a ele. Ali sário e elaboram um relatório;
se define como a investigação vai ser feita, por que ela vai ser feita e d) finalmente, simplificam os dados, colocam a linguagem do
quem vai ter que tipo de acesso aos seus dados. Assim, o mesmo povo relatório em um ‘nível popular’ e os devolvem ‘ao povo’.
considerado como ‘o sujeito’ de um processo de mudanças sociais que 2? momento:
se deseja provocar segue considerado como objeto da pesquisa feita a) os agentes discutem com os representantes do povo sobre a
para produzir o conhecimento necessário ao encaminhamento de tal pesquisa a partir de uma prática antecedente;
projeto de mudanças. O que ocorre são expropriações impostas uma b) agentes de um lado e do outro decidem sobre ela, elaboram
vez mais: os seus procedimentos (quando os agentes de educação traduzem o
a) os agentes da base não participam do processo decisório a linguajar científico em uma linguagem adequada aos lavradores) e
respeito da definição e da construção do modelo de investigação; articulam métodos e procedimentos de investigação que permitam
b) durante a sua realização, eles e tudo o que cerca as suas vi tanto uma aplicação no campo quanto um tratamento e uma análise
das (a comunidade, os grupos tradicionais ou orgânicos, suas con co-participada (mesmo que haja aí tarefas diferenciadas);
dições de vida, suas maneiras de sentir e pensar) são constituídos e c) de posse dos dados obtidos com o trabalho de campo, agen
abordados como ‘objetos de pesquisa’, algo externo a respeito do que tes e povo analisam o material, discutem o seu significado e os seus
se investiga; usos diretos (fazer relatório? levar para discussão nas comunidades?
c) as comunidades de base não participam do processo de usar como documentário atual de denúncia da situação da vida do
tratamento e análise dos resultados da pesquisa, os mesmos resul povo?).
tados que são diretamente fornecidos por elas como ‘dados da inves
tigação’; Partindo destas premissas, a proposta da pesquisa sobre a
d) finalmente, as comunidades não possuem acesso direto a situação do povo e o andamento das lutas populares na região dos
tais resultados que, muitas vezes, sequer são comunicados ao povo, municípios é a que se segue.
sendo em geral redigidos em linguagem hermética, distante de uma Não proceder a uma investigação sobre a ‘realidade social’
verdadeira discussão entre pesquisadores e agentes populares. através da captação dos indicadores do nível de vida dos lavra-
242 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 243
dores e dos migrantes para as ‘pontas de rua’. Ou seja, não Poderiamos, em princípio, desenvolver a idéia que foi colocada
proceder como na ‘Pesquisa sócio-econômica’ feita há 10 anos. por alguém em nossa primeira reunião. Muito bem, se o nosso projeto
Não concentrar, por outro lado, a investigação sobre um único de conhecimento da realidade e de avaliação de nossa prática polí-
aspecto da vida do povo ‘da roça’ e da cidade, por exemplo: tico-pedagógica sobre ela não é rigorosamente acadêmico, então não
as condições de acesso ao trabalho, à saúde e à educação. devemos recortar academicamente o ‘objeto de pesquisa’. Vejamos, o
Finalmente, não realizar uma investigação centrada em algum nosso compromisso aqui é com a libertação de um povo oprimido e
aspecto da prática que estamos desenvolvendo como um tipo não apenas com a melhoria setorial de alguns aspectos de sua vida
de avaliação de um setor único de nosso trabalho, como já foi material. O processo de realização desta ‘libertação’ são transforma
feito com outras pesquisas. ções estruturais significativas, incidindo sobretudo nos pólos de rela
ções sociais que produzem as condições de opressão (questão agrária,
Como pensar, portanto, uma pesquisa que esteja inserida ple- questão das relações capitalistas de trabalho, questão do poder popu
namente em nossa realidade e que envolva todos os tipos de pessoas lar etc.). Ora, o caminho de opção da Igreja de Goiás é o da reali
participantes de um mesmo trabalho de libertação? Um caminho zação de transformações estruturais através da conquista do poder
seria o de pensar uma investigação que nos permita compreender a popular sobre as estruturas de decisão da vida política local, regional
realidade social olhando-a através de nossa prática. Isto é mais ou e nacional.
menos o mesmo que afirmar que a pesquisa deve avaliar a nossa Assim, toda a nossa prática de pastoral popular (que temos
prática através de seus efeitos sobre a vida social da região. chamado também de uma prática de educação popular) está dirigida
à transformação de toda a realidade. Porém, ela incide com priori
Este podería ser um primeiro passo para criarmos juntos um
dade sobre alguns setores específicos de tal realidade, com a espe
tipo de pesquisa que escape dos padrões acadêmicos e se adeqüe às
rança de que haja aí um efeito multiplicador (não somos os únicos
nossas condições de trabalho e à experiência de tantos anos de envol
nem a nossa é a única região onde se dão trabalhos de mobilização
vimento lavradores-agentes em Goiás. É um caminho para tornar
popular) que, por sua vez, participe do processo de articulação de
efetiva a participação popular em uma pesquisa que, por sua vez,
relações que contribuam para a transformação de todas as estruturas
participe, como um instrumento de trabalho, dos movimentos de
sociais de teor político.
Igreja, de comunidade e de classe. Melhor do que nós são os agentes
É sobre certas áreas conflagradas de relações sociais que temos
da base os que sabem definir quais os aspectos da vida social que eles
trabalhado preferentemente. Por outro lado, é o que acontece aí no
precisam conhecer ou aprofundar para orientar a sua prática (nas
comissões, nos grupos de base, nos movimentos); que eles querem interior de tais áreas de relações o que explica da melhor maneira
aquilo que está acontecendo em toda a armação da vida social. Por
conhecer a respeito de si próprios para redefinir a sua prática (ques
exemplo, o exame da luta entre os lavradores e os fazendeiros de
tões de identidade popular, ideologia do campesinato, posição de
Britânia pela posse de terras, ou o estudo das difíceis relações entre os
classe, interesses de classe, etc.); que eles consideram relevantes como
lavradores de Juçara e a empresa de semente de capim que os con
contribuição de nosso trabalho de educação popular — nossas ativi trata a preços aviltados é o que ajuda a entender como funcionam as
dades avaliadas com melhores critérios pelo próprio povo, de acordo relações de poder em nossa região; a) entre os proprietários de terra e
como incidiram sobre ele e tal como ele a partir daí atribui signifi os seus subordinados; b) do aparato jurídico-político de poder e con
cados a isso. trole; c) dos diversos grupos da sociedade civil associados politica
Assim, ao invés de uma equipe de agentes de pastoral deter mente aos donos do poder (partidos da situação, igrejas dominantes
minar o que é importante investigar, perguntando depois aos repre etc.); d) das comunidades, da classe camponesa, de suas e outras
sentantes das comunidades e dos movimentos populares o que eles categorias de trabalhadores (pequenos proprietários, lavradores par
acham disso, nós vamos estabelecer os pontos a serem pesquisados a ceiros, arrendatários, agregados assalariados, volantes bóias-frias,
partir de um levantamento feito com esses próprios representantes. biscateiros); e) dos grupos e instituições da sociedade civil compro
É possível que tenhamos surpresas aí. Podemos chegar com algumas metidos com os grupos populares, como é o nosso próprio caso. Mais
idéias prontas e ouvir dos representantes que são outras as questões do que isso, o exame destas relações de conflito coloca em evidência
que os estão preocupando mais. A sensibilidade para ouvir e com o funcionamento, como objeto de estudo, das contradições de um tipo
preender o ponto de vista e as razões dos grupos de base é o primeiro de sociedade como a nossa e das relações concretas entre as diferentes
passo. Sem ele os outros se perdem. categorias de grupos e movimentos populares dentro do seu contexto.
244 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 245
Assim, sugiro pensarmos na possibilidade de partirmos de um balhar com métodos antropológicos, mais do que com métodos
levantamento das ‘áreas quentes’ de relações sociais e de mobiliza tradicionais, “neutros” e quantitativos. Observação participante,
ção popular que envolvem diretamente o nosso compromisso e a nossa aproveitamento de reuniões de grupos para coleta direta de dados
prática. Podemos começar por separar regiões geográficas significa “na ação” , análise de conflitos, pesquisa direta com base em “ dra
tivas (Uru Fartura, Vale do São Patrício, Serra Dourada, Rio Verme mas sociais” etc. Justamente uma das tarefas da assessoria da pes
lho) e fazer o levantamento dos setores de ação social (produção de
quisa seria a de estudar a questão e propor métodos que tomassem a
bens — terra + trabalho, organização de grupos comunitários e de
classe, saúde, educação, comunicação, religião). Neste recorte entre pesquisa um trabalho incorporado às práticas diretas das pessoas e
lugar + setor, podemos destacar aspectos das relações sociais entre grupos, ao invés de ser um tipo de trabalho à parte.
categorias de pessoas que consideremos como os mais adequados: Eis o roteiro do levantamento preliminar sugerido às equipes
1?) para explicar, através de pesquisa, o que realmente aconteceu ali locais.
(não como o povo está com relação a questões de saúde, por exemplo,
mas como estão se dando as relações de poder e como está sendo a
atuação movimentos populares X instituições de saúde na região); "Roteiro
2?) para explicar, através da integração de várias pequenas pesquisas
parciais, como funciona a estrutura social e o que está acontecendo 1) Localizar dentro do município uma comunidade rural, uma
nela agora; 3?) para explicar, como um momento de avaliação da comunidade de ‘ponta de rua’, uma fazenda, um espaço social de
pesquisa, qual e como está sendo a nossa presença e o nosso trabalho trabalho (relações de luta entre lavradores e fazendeiros, por exem
de educação popular na região. plo), onde estejam havendo situações de conflito, ou de trabalho
Tal como foi colocado antes, podemos partir de levantamentos popular significativo.
preliminares e decidir juntos quais serão os mais relevantes para 2) Definir o tipo de fato que vai ser descrito: um conflito por
serem investigados mais a fundo. Não serão todos. Não envolverão terras? um conflito trabalhista? um conflito por questões de saúde
todas as regiões geográficas, nem todos os 13 municípios. Não inci (como no caso de Itaguarú)?
dirão sobre todas as questões importantes. O fundamental é termos 3) Descrever a conjuntura em que se deu o fato que vai ser
um conjunto de situações concretas da vida social que serão reconsti descrito: a situação antecedente, a composição de forças de um lado e
tuídas como objeto de uma pesquisa feita por agentes de pastoral e do outro, os determinantes imediatos da deflagração do conflito etc.
agentes de base. Cada uma das áreas escolhidas constituirá um 4) Descrever de modo sumário, mas o mais completo possível,
mesmo ‘locus’ de pesquisa e ali será feita uma pesquisa completa, o fato escolhido. A descrição deve ser a de um acontecimento social,
articulada sobre o acontecimento social escolhido. narrado do ponto de vista das trocas e relações sociais mais impor
Depois de concluídas todas as pesquisas parciais e feitos os seus tantes participantes da questão. Se possível, incorporar pequenas
relatórios, haverá um tempo de aglutinar todo o material e, em reu entrevistas (passagens curtas) sobretudo com relação aos lavradores
niões sucessivas, inclusive nas comunidades, discutir e produzir um envolvidos.
relatório integrado das pesquisas locais. O seu objetivo será o de não 5) Descrever o encaminhamento do fato. Quais as possibili
apenas mostrar indicadores sociais da vida do lavrador, mas: a) expli dades de desenvolvimento do conflito? Em que ele está comprome
citar processos sociopolíticos de produção daqueles indicadores; b) tendo a vida e as relações entre categorias sociais de sujeitos do lugar
avaliar criticamente o nosso trabalho; c) estabelecer bases futuras de (fazendeiros, autoridades, lavradores etc.)?
atuação dos movimentos populares.” 6) Discutir o modo como os grupos e instituições sociais de
compromisso popular estão participando dos acontecimentos. Anali
sar, principalmente, o teor da participação da equipe local de agentes
Até aqui, o documento de estudo prévio da pesquisa de 1979.
de pastoral.
Como tarefa inicial, as equipes locais deveríam fazer o pequeno 7) Relacionar as fontes diretas e indiretas de dados sobre o
levantamento sugerido. Uma reunião posterior examinaria os levan acontecimento, para o caso de ele ser um dos escolhidos como objeto
tamentos e determinaria, em princípio, as regiões geográficas e os da pesquisa mais ampla.
setores de relações/práticas que se tornariam objeto de uma pes
quisa participante muito mais longa. A idéia básica era a de tra
246 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 247
As relações pesquisa/ação: problemas e alternativas como uma pesquisa ampla e participante estiveram perdidas du
rante algum tempo e só mais tarde foram em parte recuperadas.
Tal como foi pensada em primeira instância, a pesquisa parti
3) Por outro lado, alguns agentes de Igreja se negavam a
cipante cuja proposta foi redigida por mim em 1979 e reproduzida
participar de toda e qualquer prática de pesquisa que não fosse
acima não foi realizada em Goiás. Justamente entre 1978 e 1979,
iniciada e dirigida pelos movimentos de lavradores. Por que uma
quando ela foi primeiro decidida em uma assembléia anual, através
instituição como a Igreja procede a uma pesquisa e envolve nela o
do voto de agentes populares da região e dos de agentes de trabalho
trabalho dos lavradores, quando eles próprios, a partir dos seus
de Educação Popular da Igreja e, depois, pré-elaborada em duas
movimentos, sindicatos e partidos poderíam fazer isto, convidando,
reuniões de uma comissão de coordenação de pesquisa, alguns
quando quisessem, agentes profissionais para, eles sim, participa
acontecimentos muito importantes ocorreram na região da Diocese
rem dos trabalhos como assessores? (há exemplos reais disto em
de Goiás.
sindicatos de operários do Rio e de São Paulo).
1) Os movimentos populares de comunidade e de classe des 4) Finalmente, após retirar-se como instituição de iniciativas
vincularam-se de uma tutela relativa dos agentes da Igreja. Este de produção de movimentos populares —já que as classes populares
sempre foi um momento esperado e um horizonte diretor de todo o ocupavam por sua conta este espaço de iniciativas políticas —, as
trabalho de Educação Popular. Todos sabiam que o desejado era equipes de pastoral retornaram a dois tipos de atividades na região,
que, após um período de trabalho político-pedagógico de criação e fora as do trabalho propriamente religioso: a) o apoio aos movi
fortalecimento de movimentos populares da Igreja (de que os Gru mentos populares de comunidades e de classe; b) a realização de
pos de Evangelho foram o melhor instrumento), surgissem e se for trabalhos setoriais de educação popular: saúde, alfabetização, me
talecessem em todas as comunidades rurais e periféricas movimentos lhoria de condições de vida nas “pontas de ruas” etc.
efetivamente populares, ou seja, movimentos submetidos ao con
trole exclusivo de agentes locais, lavradores na sua maioria, repre Foi justamente destes últimos espaços de trabalhos de edu
sentantes da comunidade (como no caso das associações de mora cação popular que as pesquisas pensadas no item anterior foram de
dores), ou do campesinato enquanto classe (como as oposições sin novo programadas e, apenas no caso de uma delas, plenamente
dicais). Este seria o momento em que todo o trabalho de educação realizadas. Descrevo sumariamente dois exemplos.
popular atingiría um momento de maturidade. Ele passaria a agir
como espaço de assessoria de militantes eruditos (educadores, cien
tistas sociais, agentes religiosos, médicos e enfermeiras) aos próprios O meio Grito — um estudo sobre as condições, os direitos, o valor
movimentos populares, cuja prática seria então o elemento determi e o trabalho popular associados ao problema da saúde em Goiás
nante de todo o nosso trabalho de mediação. Lavradores e sobretudo mulheres das comunidades rurais e
2) Houve alguma divisão entre os próprios lavradores. Ilusão das “pontas de rua” pediram à comissão regional de saúde uma
imaginá-los como uma classe perfeita e indivisível. Operários, la “cartilha” para que nela eles aprendessem a se relacionar com os
vradores e outras categorias de subalternos aprendem com a prática
serviços médicos dos sindicatos e de trabalhadores rurais ou da
política de sua organização. O caminho é difícil e as oposições Previdência Social. Foi sugerido que, em vez de uma resposta direta
internas nos movimentos populares — algumas delas manipuladas da comissão, todos juntos participassem de uma ampla pesquisa na
de fora pelos grupos dominantes, outras incentivadas também de “região do Vale do São Patrício” . A pesquisa foi feita e, em certa
fora por grupos mediadores — não são uma exceção. Ora, agindo medida, tornou-se um modelo bastante criativo de trabalho partici
como profissionais e militantes comprometidos com projetos popu pante. De seu processo saíram: a) um relatório sobre questões e
lares e, portanto, sem aparentemente possuírem um projeto alter lutas de saúde, publicado pelo Centro Ecumênico de Documentação
nativo próprio, os agentes de pastoral dividiram-se também, o que e Informação e dirigido a agentes de educação popular; b) uma
provocou momentos de tensão e conflito dentro das próprias equipes versão popular da pesquisa escrita para os lavradores pelo médico
de pastoral. As condições de unidade necessárias a um trabalho da comissão, depois de haver sido ampla e demoradamente discu-
REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 249
248 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
comunidades, que um dos trabalhos mais urgentes seria o de um
tida pelas próprias equipes populares que realizaram a pesquisa; novo amplo estudo sobre a situação dos lavradores e famílias mi
c) a cartilha anteriormente solicitada pelos lavradores e que veio a grantes para as cidades. Criou-se uma equipe de coordenação da
chamar-se A Lamparina (existente só em versão dos lavradores e equipe envolvendo agentes de base e de pastoral. Foi resolvido que a
circulando apenas entre eles); d) um documento didático escrito pesquisa somente seria programada depois que as comunidades de
pelo médico da comissão, chamado O Relato do Meio Grito, não cada município que assumissem realizá-la decidissem a respeito de
publicado ainda.13 como ela deveria ser exercida ali. Foi previsto um segundo encontro
na cidade de Goiás, onde os representantes das comunidades leva
riam as decisões de suas bases. Então, a “ pesquisa das periferias”
A educação nas comunidades de camponeses e lavradores seria programada e posta em estado de realização.
Narrei até aqui casos e seqüências de uma história de incorpo
Em algumas comunidades foram solicitados cursos de alfabe ração de sucessivas experiências de pesquisa a um trabalho que, em
tização, de pós-alfabetização e de supletivo. A decisão das equipes termos amplos, pode ser definido como de Educação Popular. Narrei
de pastoral foi a de não implantar um “programa de alfabetização” uma história de idas e vindas, de sucessos e fracassos que vivi de
(modelo considerado como ultrapassado). Dentro de uma prática de perto, algumas vezes profundamente envolvido. Houve avanços
respostas assessoras às reivindicações das comunidades, a sugestão muito importantes, mas eles são parte dos momentos de recuo, de
foi a de participar da construção e realização conjunta de núcleos de erros. A maior de todas as pesquisas, aquela que incidiría sobre as
alfabetização, etc., apenas nas comunidades onde isto aparecesse questões a nosso ver mais relevantes, e que teria a mais significa
como uma exigência popular e onde o trabalho, desde o início, fosse
tiva participação popular, não foi levada a efeito. Outras, como a de
assumido em co-responsabilidade pela comunidade e pela equipe de
educação nas comunidades, estão quase paralisadas, porque o pró
pastoral. prio trabalho não avança. Não há condições de construirmos ali
Ampliando um pouco a proposta de investigação do universo
modelos pré-fabricados de participação e de pesquisa participante
vocabular e do universo temático em Paulo Freire, foi pensada uma para podermos escrever relatórios invejáveis. A partir do momento
pesquisa participante sobre questões e atitudes da comunidade a em que um trabalho coletivo de produção de conhecimento militante
respeito da reprodução do saber. A pesquisa é para ser realizada deixa de ser a atribuição do poder decisório de uma equipe que
apenas naquelas comunidades onde haja uma disposição em co-di- gerencia, inclusive, o controle sobre os convites e os limites da parti
vidir um projeto de escolarização popular.14 É, neste sentido, um cipação popular, ele se envolve de todos os atropelos que fazem a
primeiro passo do próprio trabalho pedagógico. rotina de qualquer tipo de ação mediadora verdadeiramente a ser
viço do trabalho popular.
A pesquisa com os lavradores e famílias migrantes
A participação da pesquisa no trabalho popular
Na 11? Assembléia Diocesana foi decidido, com voto unâ
nime, inclusive o de uma maioria absoluta de representantes das
Que idéias poderíam ser reunidas aqui a partir da pequena
história de trocas de saber entre equipes de agentes de educação
popular e comunidades e grupos organizados de lavradores? Em que
(13) O Meio Grito, em sua versão para os agentes de pastoral, foi podería nos ser útil pensar a partir de uma trajetória de 12 anos de
publicado inicialmente em Cadernos do Centro Ecumênico de Documentação e buscas dirigidas a colocar a pesquisa social como um instrumento da
informação n° 3 e, depois, em Pesquisa Participante, São Paulo, Brasiliense,
educação popular, da causa popular?
1981.
(14) Escolarização Popular é o nome da Educação Popular quando É a própria questão âa participação que está em jogo. Um dos
realizada através de atividades propriamente escolares: cursos de alfabetiza atributos mais usuais das estratégias autoritárias é justamente o de
ção, pós-alfabetização etc.
250 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.) REPENSANDO A PESQUISA PARTICIPANTE 251
convocar todos à participação. Conclamar as classes populares a um teor político de participação. Ela não é ainda um instrumento
“um amplo processo de participação” para, depois, exercer sobre político e pedagógico de produção científica de um tipo necessário
um “povo participante” projetos tutelares de controle e manipu de saber popular e de orientação de ações populares que sirvam
lação. Um dos estados da federação brasileira cujo governador é fiel efetivamente aos seus objetivos. No caso do segundo tipo de vincu
adepto do regime autoritário tem como lema, esparramado em mi lação, ainda que possa haver um baixo índice de participação popu
lhares de discursos e placas, “Desenvolvimento com Participação” . lar (em nem todas as fases da pesquisa existe uma participação da
Uma coisa é criar estratégias de “participação” popular e trans comunidade), ela é politicamente uma pesquisa participando (sendo
formá-la em um exercício de manipulação populista, e outra coisa é orientada para e servindo a) de projetos populares de produção e uso
fazer com que as práticas de mediação sejam, elas sim, participantes de saber. Isto não significa que experiências intermediárias de tra
de situações e processos de produção e fortalecimento do poder balhos de produção de conhecimento social com participação popu
popular. Uma coisa é inventar a “pesquisa participante” que jus- lar não devam ser postas em prática. Qualquer que seja o ponto de
t:íique a ilusão da co-responsabilidade política do trabalho e da início de um tal tipo de pesquisa, as determinações de sua conti
co-participação científica da produção de um saber necessário, e nuidade e a direção efetiva do uso de seus produtos serão o seu
outra coisa é tornar a pesquisa um instrumento científico, pedagó melhor meio de avaliação.
gico e político de participação nos trabalhos de produção do poder É neste sentido que eu quero tomar uma idéia recentemente
popular. exposta pelo professor José de Souza Martins para estabelecer para
O que quero recordar aqui é que a idéia de participação, em si lelos. Do ponto de vista da equação entre forma de participação da
mesma, não define nem encaminha uma experiência de educação pesquisa no trabalho popular X forma de participação do trabalho
popular, desde que educação popular seja entendida como uma popular na pesquisa, há três alternativas possíveis. Mais do que
prática de mediação com opção por um projeto histórico de produ tipos irreconciliáveis — como algumas pessoas acreditam que seja o
ção de poder do povo e de realização de sucessivas transformações caso entre a “pesquisa acadêmica” e a “pesquisa participante” —,
sociais a partir de tal conquista de poder. De igual maneira, a idéia são modalidades de trabalho científico, pedagógico e político que,
de transformação social é, em si mesma, vazia de sentido, se não dentro de uma ação mais ampla, podem ser seqüentes e comple
for definido o projeto político de classe a que o seu processo se sub mentares.
mete. A primeira opção de pesquisa descrita linhas atrás é a de uma
A idéia de participação deixa de ser adjetiva (aquela serve pesquisa compartilhada. Proposta por um programa antecedente,
para qualificar tudo) e se torna substantiva, quando se estabelece dela participam sujeitos populares mesmo que a própria pesquisa
em nome de qual projeto político ela é colocada em ação nas comu não participe de um efetivo trabalho político de acumulação de
nidades populares: 1) serve à simples ampliação de uma presença saber-e-poder populares, e não seja controlada por agentes do povo
popular em programas que, realizando serviços sociais setoriais em seus pólos de decisão, ou seja, ‘antes do começo” e “depois do
(saúde, educação etc.) às classes populares, reproduzem serviços fim” da pesquisa. A segunda opção descrita é a de uma pesquisa
políticos dominantes de preservação da ordem social estabelecida, participante. Proposta desde o interior de uma prática que associa
através da participação de mecanismos sociais de controle dos gru politicamente agentes de mediação e agentes populares, estes últi
pos e movimentos populares? ou 2) serve, passo a passo, a produção, mos participam da pesquisa porque tanto ela quanto o trabalho a
reprodução e fortalecimento de um poder de classe; de um poder que se vincula participam antecedentemente de projetos e processos
progressivamente autônomo de autocontrole e participação organi de acumulação de saber-e-poder populares. Uma terceira modali
zada nos espaços políticos de determinação da vida social? dade pode ser colocada num ponto próximo a um horizonte dese
No caso do primeiro tipo de vinculação, por maior que seja o jado. Quero chamá-la de pesquisa popular e imaginar um trabalho
teor social da “participação” (toda a comunidade é convidada a de produção de saber de classe que, proposto e dirigido desde os
participar de todas as fases da pesquisa e o seu relatório é escrito movimentos populares, envolva a participação comprometida e
“para o povo”) a pesquisa não é ainda um instrumento que possua assessora de agentes de mediação.
252 CARLOS RODRIGUES BRANDÃO (org.)
Este é o momento — e eu trago de volta idéias aprendidas com
José de Souza Martins — de pensarmos sobre a possibilidade da
redução imediata ou da extinção da desigualdade de saberes entre
tipos diferentes de agentes como fundamento da pesquisa partici
pante. Esta é uma ilusão que atrapalha porque mente. Supor que a
participação está baseada em uma relação de troca constituída sobre
uma suposta igualdade de poder e saber oculta o fato real de que,
entre o agente de mediação (um intelectual não raro de “nível
superior”) e a “comunidade” (lavradores, subempregados, operá
rios), há uma desigualdade antecedente. Tal desigualdade não se
resolve metodologicamente, nem na relação de compromisso entre
os dois lados, nem, de modo específico, no interior de uma pesquisa
participante. Constituída por relações desiguais da estrutura social
de saber e de poder, tal desigualdade é constitutiva da própria ação
mediadora do agente a quem, não raro, gostamos de dar o nome de
intelectual orgânico a serviço das classes populares. O seu trabalho
de agente é útil ao povo porque é conjunturalmente desigual, ainda
que no seu horizonte exista, na bruma da manhã, a aurora de um
mundo onde a diferença que faz a liberdade não se estabeleça sobre
a desigualdade que gera e preserva a opressão. A questão funda
mental é a de saber colocar a desigualdade a serviço.
Deve-se desconfiar de modelos únicos e de experiências exclu
sivas, cuja perfeição de laboratório justamente impede a possibili
dade de sua repeitção e de sua incorporação aos trabalhos “ de
• Fundamentos da Escola do Trabalho
base” . Não há modelos únicos e não há usos normativos de tipos de Pistrak
A Escola do Trabalho fundamenta-se no estudo das relações do homerncom
pesquisa participante. Ela é um instrumento dentro da ação popu a realidade atual e na auto-organização dos alunos. A pedagogia tra dicio
lar. O papel do intelectual (o educador, o cientista social, o agente nal, concebida para formar vassalos, é inadequada para formar cidadãos
ativos e participantes,
de mudança) é o de ser um ouvinte atento das decisões dos movi
• Cuidado Escolal
mentos populares, ou de necessidades comunitárias efetivas. É o de B. Harper, C. Ceccon, Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira, apresentação de
ser um mediador que responde, com os instrumentos do seu saber e Paulo Freire
Um livro em quadrinhos, divertido, irreverente, que ensina e convida a uma re
de sua profissão, a tais decisões e exigências, colocando-os a serviço flexão séria sobre o sistem a educacional. A crise da escola é discutida sem in
genuidade, como parte atuante do contexto histórico, social, econômico e
não da comunidade (isso a “Aliança para o Progresso” fazia), mas político da sociedade.
da prática política popular na comunidade. Este é o caminho pelo • A Escola e a Compreensão da Realidade
qual, no limite, a pesquisa participa, como um instrumento de edu Maria Teresa Nidelcoff
Crescer é se localizar no tempo e nas circunstâncias em que se vive. Ao pro
cação popular, dos movimentos populares. Quando as pessoas do fessor cabe ajudar a criança a ver, compreender, expressar, descobrir, a ssu
povo vêm participar dela, há de ser porque de algum modo ela já faz mir, para que ela possa se tornar verdadeiramente homem: capaz de c ria r e
transform ar a realidade, em comunhão com seus semelhontes.
parte de suas práticas, de seus projetos de classe e é, por isso, parti
• Uma Escola para o Povo
cipante. Maria Teresa Nidelcoff
A educadora argentina contrapõe neste livro o mestre-policial, castrador, ao
mestre-povo, que se engaja na cultura do educando. Dirigido p rincipalm en
te para os que atuam como professores e educadores em favelas, bairros
operários e periferias.

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