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Nesta obra optamos por manter o mesmo

padrão de outras tradutoras brasileiras para o


termo “women of color”: mulheres de cor.
Nesta obra, a autora usa o termo “chicano”, que se refere
a uma parte importante da população hispânica dos
Estados Unidos. Este termo é empregado para designar
os cidadãos norte-americanos de origem mexicana.
Lembramos às leitoras que este livro contém artigos
publicados na década de 1980, e que, portanto, pode
conter informações factuais hoje desatualizadas.

Tradução Carla Henrique Gomes


Revisoras inglês-português Brisa Silva, Bruna Santiago Franchini,
Juliana Gimenez, Mariana Amaral,
Sabrina Falcão
Revisoras português-português Aline Peixoto, Ana Luiza Custódio,
Carolina Bertassoni dos Santos,
Mariana Ferreira, Natalia Kleinsorgen,
Taís Lago
Revisoras finais Amanda Meneguete, Letícia Bergamini Souto,
Ludmila Rodrigues, Marilia de Melo Costa,
Raquel Braga, Gabriela de Carvalho Souza
Projeto gráfico, colagens e diagramação Malacacheta Agência Criativa
Coordenadora de projeto Aline Peixoto
Sumário

Prefácio à edição brasileira 4


Prefácio à edição estadunidense 8
Introdução 11

1 Opressão 15
2 Sexismo 29
3 O problema que não tem nome 48
4 Dentro e fora do perigo: arrogância e amor 58
5 Uma nota sobre a raiva 83
6 Algumas reflexões sobre separatismo e poder 92
7 Sobre ser branca: pensando em direção a um entendimento
feminista acerca de raça e da supremacia racial 104
8 Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays: outro
ângulo da supremacia masculina, outro separatismo 119
9 Ser e ser vista: a política da realidade 139

Sobre a autora 157


Nota da tradutora 158
Você precisa ser lésbica para ser feminista? 160
Prefácio à
edição brasileira
Oitava Feminista

N
osso primeiro contato coletivo com a teoria de Marilyn Frye foi a partir de uma tradução
independente do capítulo “Opressão”, do livro Politics of Reality (Crossing Press, 1983),
em 2018. Consideramos essa leitura de uma enorme potência transformadora e, dessa
forma, optamos por debatê-la em diversos ciclos da GrupA, nosso grupo de estudos e espaço
de formação interna, além de porta de entrada de mulheres para atuar na nossa coletiva de
lésbicas e bissexuais, a Oitava Feminista1.

Tendo como base este texto, pudemos aprender a diferenciar opressão de sofrimento;
aprender a nomear as distintas formas de dominação; e refletir sobre os aprisionamentos que
concernem à realidade das mulheres, como a socialização para servir. Estes foram recursos
primordiais trazidos por Frye para nossa experiência como feministas e para os espaços que
ocupamos de construção política e multiplicação de saberes.

Além desse importante capítulo, outros escritos de Marilyn Frye são relevantes para o
entendimento da experiência feminina em uma sociedade patriarcal e heterossexual. Suas
obras possuem diversos níveis de aprofundamento, reflexões abrangentes, quando conside-
ramos os marcadores de sexo, raça e classe, mas sem perder o foco em mulheres e lésbicas. Frye
se comunica muito bem e nos envolve em questões minuciosas dos debates lesbofeministas.

Aprendemos muito sobre a importância de racializar as mulheres brancas no processo


de desmantelamento do racismo, por exemplo, quando ela se posiciona enquanto branca ao
discutir sobre raça; aprendemos a nomear a violência sexual masculina e a não abrir mão da
linguagem para descrevermos nossa experiência, quando ela, ao longo dos capítulos, justifica

1
A Oitava Feminista é uma coletiva de mulheres lésbicas e bissexuais que hoje tem membras em Niterói, Rio Bonito,
na Baixada Fluminense (RJ) e em São Paulo (SP). Temos, como principal objetivo de nossas ações, a educação
feminista na luta pela abolição de gênero. Nossas ações envolvem oficinas pedagógicas, rodas de conversa, aulas
públicas, panfletagem, arte urbana, e a presença em debates que abordam a história e a memória de mulheres, sua
saúde física e mental. A Oitava foi fundada em 2018 e atua com filosofia antissexista, antirracista e anticlassista
desde 2017, sendo uma de nossas atividades a GrupA, um grupo de estudos exclusivo para mulheres que tem como
objetivo promover o debate do pensamento feminista e preparar para a ação direta.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 4
brasileira

suas escolhas de palavras e expressões; aprendemos sobre estratégias de sobrevivência nos


movimentos sociais, quando ela discute o conceito de separatismo de maneira realista e respon-
sável. A fala de Marilyn Frye na conferência National Women’s Studies Association no fórum
de Teorias da Sexualidade, que resultou na publicação do texto “Você precisa ser lésbica para
ser feminista?” na revista Off Our Backs, é exemplo de como se fazer política e teoria lésbicas
de forma a combater a estrutura heteropatriarcal, sem individualizar questões ou culpabi-
lizar mulheres.

Esta fala, que se tornou escrita, nos marcou tanto, que decidimos trazê-la aqui, como um
bônus para quem está lendo a teoria desenvolvida por Frye e decidiu mergulhar fundo nos
conhecimentos produzidos por ela. Ao final do livro, vocês encontrarão a tradução de “Você
precisa ser lésbica para ser feminista?”, feita por Juliana Gimenez, primeiro publicada pelas
Blogueiras Radicais, posteriormente revisada e redifundida pela lesboequipe da breve e saudosa
Revista Entendidas, publicação lésbica e radical que esteve em funcionamento no ano de
2021. Neste texto, de título divertido, a autora responde à capciosa pergunta que cada uma
de nós provavelmente já ouviu em algum contexto: precisa ou não precisa ser lésbica para ser
feminista? Vá lá ler.

A sensibilidade da autora ao escrever teoria, seu compromisso com a linguagem e o rompi-


mento das barreiras da linguagem, vêm da articulação de pensamentos, debates coletivos,
percepções individuais e da atuação radical no movimento de mulheres que, até hoje, cresce
muito ao debater suas contribuições. Aliás, gostaríamos de escrever este prefácio em um tempo
onde todas as dificuldades relatadas por Marilyn Frye não dialogassem mais com a realidade
das mulheres, onde os desafios fossem outros a serem superados. Mas, apesar da publicação
dos textos aqui mencionados terem acontecido entre os anos de 1980 e 1990, ainda estamos
trabalhando para transformar as nossas realidades e abolir as opressões.

Ao acompanhar a atividade de algumas lésbicas por meio de redes sociais, conhecemos a


psicóloga e psicanalista Carla Henrique Gomes. Em suas publicações, ela tratava de assuntos
relacionados à lesbianidade e suas especificidades. Ao perceber que ela compartilhava algumas
frases de Marilyn Frye, utilizando a teórica como referência constante, entramos em contato
com ela, perguntando se ela tinha interesse em reunir suas traduções com as nossas para
publicarmos. Foi uma surpresa descobrir que Carla havia traduzido, sozinha, todo o conteúdo
de Politics of Reality (‘Políticas da Realidade’, na nossa tradução). Na ocasião, ela havia procurado
diversas editoras que pudessem se interessar pelo conteúdo, sem êxito. Decidimos então
publicá-lo de forma autônoma.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 5
brasileira

A partir daí, reunimos companheiras feministas de várias partes do Brasil para trabalhar
conosco na revisão e diagramação do conteúdo. Entramos em contato com mulheres de
dentro e de fora da coletiva. Conseguimos reunir doze voluntárias e, junto com Carla Gomes,
montamos a seguinte equipe: Aline Peixoto, Brisa Silva, Bruna Santiago Franchini, Juliana
Gimenez, Letícia Bergamini Souto, Ludmila Rodrigues, Mariana Amaral, Mariana Ferreira,
Marília de Melo Costa, Natália Kleinsorgen, Raquel Braga, Sabrina Falcão e Taís Lago.

Nossa primeira reunião com Carla para organizar o trabalho foi em março de 2022. Nessa
época, ainda restavam alguns capítulos a serem traduzidos. No mês seguinte, começamos
as revisões dividindo o trabalho em etapas: 1) revisão inglês-português, onde comparamos a
escrita original com a tradução para conferir se o sentido se mantinha; 2) revisão português-
-português, para conferir gramática, coerência e corrigir erros de digitação; 3) revisão final,
uma revisão geral por todo o conteúdo; 4) criação de projeto gráfico, colagens e diagramação;
e 5) revisão pós-diagramação.

Nós não tínhamos ideia de quanto trabalho teríamos. Em agosto de 2022, decidimos, então,
enviar um e-mail para Marilyn Frye contando as nossas expectativas e perguntando como ela
se sentiria se publicássemos e distribuíssemos sua obra de forma independente. Frye foi muito
acolhedora, nos contou que este livro havia sido traduzido dessa forma em diversas línguas e,
inclusive, se colocou à disposição para nos auxiliar, caso precisássemos de autorização formal
para posterior publicação em editora. Era quase impossível de acreditar! Nossa referência
de autora nos respondia apoiando nosso trabalho e nos incentivando a tocar o projeto com
autonomia.

Marilyn Frye é generosa, teórica coerente e ativista incansável. Temos a honra de viver
no mesmo tempo-espaço que ela e de poder chamá-la de companheira, do latim «cum pannis»
(«com quem compartilhamos o pão»), as convicções, o lesbianismo como política e o amor pelas
mulheres. Vida longa à Marilyn Frye.

Esperamos que aproveitem a leitura,

Oitava Feminista

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 6
brasileira

Hi,
I’m happy to hear from you. Thank you for putting your thought and energy into translating the PofR into Brazilian
Portuguese. It’s gratifying, and awe-inspiring, to know that the book is still, or again (?), important to women, and
I’m especially happy to know that it can reach so far and so usefully beyond my own small anglo world.
The book’s publisher has recently worked out a publishing deal with women in Spain, for their spanish translation.
I imagine they can work out something for yours, as well, if we pursue that. Tell me about your efforts in that
direction. I’ll see what I can do to facilitate the communications. Meanwhile.... this book, and various parts of it,
have been translated into many languages, “unofficially,” and the translated stuff circulated in reading groups,
activist groups, and so on, in many locations. All unofficially, and without anyone’s permission. I have learned of
it, just from the women involved, often enough to know there’s been more of that going on than I will ever know
about. I am aware of translations into Russian, Ukrainian, Japanese, Dutch, Spanish and I think also Korean. If
you end up just sharing your translation in any way that works for you, you’ll be in excellent company. I don’t own
that book, really. The women who read it, translate it, work with it, work on from it... it’s yours. Especially, as it
travels through time and across nations, cultures and languages, “ownership,” and even “authorship,” become less
and less tenable concepts.
OK. Even so. I may be able to work with the publishers, with whom I share (legally) the rights, and help get your
translation published. We’ll see.
warm regards,
Marilyn

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 7
Prefácio à edição
estadunidense

O
s principais temas dos três primeiros ensaios dessa coleção tomaram forma no início
de 1974, quando comecei a lecionar Feminismo em uma turma de Filosofia. Eles têm
sido centrais, desde então, para o curso que tenho ministrado na Universidade Estadual
de Michigan, chamado “Aspectos filosóficos do Feminismo”. Quero dedicar esta publicação de
“Opressão” aos estudantes, para quem a experiência da “aula da opressão”, no início daquele
curso, foi uma espécie de Rito de Passagem.

Eu comecei a tomar notas com a finalidade de escrever um artigo sobre separatismo já por
volta de 1970, mas a conexão entre uma política da separação (versus assimilação) e o tipo de
delimitação que é intrínseca à definição de palavras e conceitos cresceu lentamente no meu
pensamento. A intuição e construção daquela conexão foi uma parte significativa da síntese
entre política e filosofia, sem a qual eu teria que abandonar uma ou outra como se fosse insig-
nificante. Desde 1977 (ano no qual escrevi “Algumas reflexões sobre Separatismo e Poder”), eu
tenho explorado e desvendado para mim mesma o que significa mulher no sistema semântico
falocrático da linguagem, do mito e do ritual e como isso ajuda a explicar e a manter a subordi-
nação política (assimilação) de mulheres. Como ficará óbvio para algumas leitoras, este trabalho
foi muito influenciado pelo trabalho de outras mulheres, especialmente o de Grace Atkinson,
de Mary Daly e de Andrea Dworkin.

Como escritora, iniciei no meio acadêmico, onde se prepara um ensaio e, então, ele é lido
em voz alta, diante de uma plateia. Fora da academia, as pessoas às vezes ouvem discursos e às
vezes se deparam com alguém lendo uma estória ou um poema em voz alta para uma plateia,
mas a apresentação oral de ensaios não é comum. Esses ensaios são escritos, no mínimo, tanto
para os ouvidos quanto para os olhos, talvez até mais; espero que eles sejam lidos em voz alta,
dentro e fora do ambiente acadêmico.

Na maior parte dos casos, a plateia que eu imaginava, ao escrever, era a propiciada pela
Sociedade para Mulheres na Filosofia [Society for Women in Philosophy], comumente a Divisão
do Centro-Oeste. As mulheres dessa Sociedade são uma audiência maravilhosa: atentas e
empolgadas; críticas; esteticamente sensíveis, filosoficamente sofisticadas e politicamente

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 8
Prefácio à edição estadunidense

conscientes; solidárias, zangadas, obstinadas, amorosas e lógicas. O que mais uma escritora
poderia pedir?

Publicação, amor e dinheiro, claro.

Em uma época na qual era justamente isso o que eu precisava, Catherine Nicholson e
Harriet Desmoines forneceram a oportunidade perfeita para publicação em sua renomada
revista, Sinister Wisdom, na qual publicaram alegremente o que era feminista demais (para não
dizer lésbico demais) para periódicos de filosofia e filosófico demais para periódicos feministas.
Embora eu não tenha publicado muito nos anos em que elas trabalharam como editoras, a exis-
tência da revista foi vital para mim, porque significava que qualquer coisa na qual eu estivesse
trabalhando poderia ser publicada. Estou em dívida com essas mulheres por me ouvirem falar.

Amor. Uma escritora poderia querer a colaboração inteligente e bem-informada, o enco-


rajamento e o criticismo de uma amiga devotada e amante apaixonada. Eu tive isso. E me
certificarei de que ela receberá tanto quanto doou.

Dinheiro. Eu conquistei uma boa renda às custas da tolerância de mulheres e homens que,
em vários graus e em vários momentos, renderam-se à tentação de me imaginar completa-
mente louca, até perigosa, e ainda assim não tentaram, ao menos não de maneira coordenada,
me expulsar; o que me deixa feliz. Algumas pessoas, na instituição na qual trabalho, têm sido
gentis, colaborativas, generosas; algumas gostam de mim, algumas apreciam meu trabalho.
Conto tudo isso como bênçãos.

Além dos que já foram mencionados anteriormente, os trabalhos das seguintes mulheres
influenciaram meu próprio trabalho notada e significativamente: Kathleen Barry, Michelle Cliff,
Alix Dobkin, Susan Griffin, Sarah Hoagland, Susanne K. Langer, Kate Millet, Robin Morgan,
Iris Murdoch, Catherine Nicholson, Adrienne Rich. Talvez seja ainda mais importante nomear
algumas das mulheres determinadas que discutiram e argumentaram comigo, tanto de
maneira amorosa quanto irritada, sobre assuntos vitais para o meu trabalho. Primeiramente,
Carolyn Shafer, com quem estou há tanto tempo quanto me rodeio por livros, cuja erudição,
pensamento, arte e coragem originaram as raízes de muitos dos meus trabalhos e cujo criti-
cismo os expurgou de muitas falhas. Outras a quem sou grata por terem o espírito para
conversas arriscadas que são necessárias àqueles que iriam até as últimas consequências:
Sandra Bartky, Claudia Card, Michelle Cliff, Harriet Desmoines, Reatha Fowler, Alison Jaggar,
Catherina Madsen, Nellie McKay, Pat Michalek, Catherine Nicholson, Sandra Siegel, Regi
Teasley, Sarah Thomson, Barrie Thorne, Eileen VanTassel, e muitas mulheres inteligentes e
obstinadas nas minhas aulas.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 9
Prefácio à edição estadunidense

Estes ensaios são temporais e culturais. O que não deveria ser necessário dizer, mas é.
O pensamento e a teoria feministas de mulheres brancas instruídas têm sido mais acessíveis
na versão impressa, até agora, do que o de mulheres que não gozaram desses privilégios ou
sofreram o conjunto distinto de limitações que vêm com eles; este trabalho é parte inegável
desse corpo de escritos brancos e instruídos. Ele se sustenta nesses privilégios e está dentro
desses limites, assim como nos privilégios e limites mais particulares à minha história pessoal
e situação. Aos leitores que possam ser capazes de negligenciar a maneira como meu pensa-
mento é limitado pela raça e pela classe: devo pedir que levem absolutamente a sério tanto
o aviso quanto o convite implícito nos meus lembretes ocasionais de que existe uma vasta
variedade de mulheres e de vidas de mulheres das quais sei apenas o suficiente para citar, mas
a partir das quais, ou pelas quais, não posso falar. Às leitoras que jamais seriam capazes de
negligenciar essas limitações por causa do insulto ao que vocês sabem: eu não apenas solicito
suas críticas, como também peço que usem sua própria criatividade e discernimento para
aproveitar ao máximo a minha criatividade e meu discernimento, para executar as traduções
e modificações que farão deste trabalho o mais útil a vocês quanto possível.

Algumas já consideraram que os limites dos quais falo aqui são intrínsecos ao feminismo
em si. Minha vida me diz que não é o caso. Eu migrei de um liberalismo meio cristão apolítico
e imprudentemente inocente para uma sabedoria flexível de um tipo de política multilíngue
da diversidade. É um fato da minha biografia que o progresso tenha se iniciado com, e quase
somente devido ao meu envolvimento com o movimento das mulheres, e quando coragem
ou honra falham, é a lógica do feminismo com o qual me comprometo que compele minha
evolução contínua. Esse feminismo é, em sua concepção e intenção, uma política global; esse
é um de seus maiores atrativos e promessas. Eu e muitas outras estamos crescendo dentro
dessa política, dessa promessa. Crescimento é crescimento: algumas vezes existem coisas que
podem ser feitas para acelerá-lo, e outras vezes só é necessário deixá-lo em paz. Nem sempre é
óbvio o que é melhor; faz-se o que se pode.

M. F.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 10
Introdução

E
ste trabalho é um misto de filosofia e arte. É uma articulação parcial de uma visão de
mundo, da forma e da estrutura do mundo como esta filósofa o conhece; ele apresenta
imagens e camafeus que, por meio de reflexões e associações, sugerem uma história ou um
retrato mais amplo de “como as coisas são”. O objetivo deste empreendimento não é encontrar
e apresentar “fatos” (novos ou usados), mas gerar meios de conceber e de interpretar para
que iluminem os significados de coisas que já são, de certa maneira, conhecidas e estimular a
invenção de mais maneiras novas de pensar.

O que espero iluminar, certamente, não é “já conhecido” por todos. Finalmente, claro, é o
que está dentro da minha linha de visão e o que eu preciso e quero compreender. O que eu
considero já sabido será tomado como certo muito mais amplamente entre mulheres do que
entre homens. Grande parte disso são dados da experiência feminina, e muito disso eu aprendi
com as estudiosas feministas e cientistas que fizeram de sua ocupação des-cobrir1, documentar
e apresentar “os fatos” a respeito de mulheres e as situações nas quais mulheres vivem.

Um dos grandes poderes do feminismo é que ele vai longe em tornar as experiências e
as vidas das mulheres inteligíveis. Tentar compreender sentimentos, motivações, desejos,
ambições, ações e reações sem levar em conta as forças que mantêm a subordinação de
mulheres a homens é como tentar explicar porque uma bola de gude para de rolar, sem consi-
derar o atrito. A “teoria feminista” tem a ver, em larga medida, com simplesmente identificar
essas forças (ou uma gama delas, ou tipos delas) e revelar a mecânica de sua aplicação em
mulheres como um grupo (ou casta) e em mulheres individualmente. A medida do sucesso
da teoria é simplesmente o quanto torna compreensível algo que, antes, era incompreensível.

Desenvolver uma teoria desse tipo é parecido com ler os variados padrões climáticos de
uma paisagem castigada pelo clima. As observações sobre o terreno não são utilizadas como
dado, no sentido estrito da palavra, mas elas nos dão pistas. Alguns se guiarão mais por um
senso estético do padrão ou tema do que por um método científico clássico. Dependendo do
que a pessoa já descobriu, um único detalhe de uma anedota de uma experiência feminina pode
ser uma pista tão fértil quanto o resultado de um estudo estatístico com mil mulheres obtido

1
N.T.: no original, “dis-cover”.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 11
Introdução

cuidadosa e totalmente documentado, e a literatura ou uma comédia da televisão pode refletir


a forma e a velocidade dos “ventos dominantes” de maneira tão inteligível quanto a vida real.

Os resultados dessa teorização também são um pouco parecidos com mapas de correntes,
tendências e ciclos de ventos e tempestades, no sentido de que não há indicação de que cada
um dos indivíduos ou aspectos da paisagem sejam afetados exatamente da mesma maneira
pelo mesmo vento. Uma árvore enverga mais que outra: uma pode ser mais flexível, outra pode
estar mais protegida por outras árvores, outra pode ser mais velha, outra pode ter sido golpeada
por vento e inundação. Similarmente, o vento cultural dominante que poderia refrescar a
raiva de mulheres, transformando-a em depressão, ou congelá-la, transformando-a em auto
reprovação, não tem o mesmo efeito em todas as mulheres em todas as circunstâncias. Um
“vento dominante” também não é absolutamente constante. As árvores próximas à minha casa
inclinam-se para o Leste porque o vento dominante vem do Oeste. Mas elas não estão, a todo
momento de todos os dias, recebendo precisamente essa força vinda dessa direção. Às vezes
não há vento e às vezes há vento vindo do Sul. Se a proibição da raiva da mulher é uma espécie
de verdade cultural, isso não implicaria que a força dessa interdição recai sempre e igualmente
sobre cada mulher, individualmente, em toda situação.

Nenhuma de nós, em todas nossas particularidades, desdobra-se verdadeiramente


como uma reprodução perfeita dos estereótipos de mulheres que são promovidos pelos
vários segmentos de nossa cultura. Nenhuma de nós é o reflexo perfeito, mesmo das forças
culturais que nós acolhemos e adotamos, sem falar daquelas às quais resistimos deliberada-
mente. Nenhuma de nós obedece a todas as regras, mesmo que queiramos. Mas os estereó-
tipos, as regras, as expectativas comuns a nós circunda todas em uma barragem estável de
imagens verbais e visuais em veículos culturais populares, de elite, religiosos e alternativos.
Praticamente todo indivíduo está imerso, a maior parte do tempo, em um meio cultural que
fornece imagens sexistas e misóginas do que nós somos e do que achamos que estamos fazendo.
Nossa concepção não pode ser independente da cultura, embora possa ser crítica, resistente e
rebelde. Por exemplo, na medida em que uma mãe pode não maternar exatamente de acordo
com a imagem comercial de mães, as imagens cômicas ou religiosas de mães, imagens racistas
de mães da raça dela, ela não é independente do poder dessas imagens, mas vive em tensão
com elas. Sua prática é afetada por essa tensão.

Qualquer teórica seria tola em pensar que ela poderia contar para outra mulher exatamente
como as particularidades da vida dela refletem, ou em que medida não refletem, os padrões
que a teórica discerniu. Ainda assim, se é verdade que mulheres constituem algo como uma
casta que atravessa divisões como raça e classe econômica; então, ainda que as forças que
subordinam mulheres sejam modificadas, desviadas e camufladas em várias formas pelos

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 12
Introdução

outros fatores em jogo na nossa situação, nós ainda devemos ser capazes de descrever essas
forças de modo que nos ajude a compreender as experiências de mulheres que vivem em uma
gama de situações diferentes. Mas, finalmente, essa explicação não pode ser transferida de
uma mulher para a história e situação de outra, nem mesmo quando elas são muito parecidas.
Se uma pessoa teoriza algo são e correto o suficiente para ser útil para outra, a outra ainda
deve fazer uso de seu próprio conhecimento para transpor e interpretá-la, para adaptá-la aos
detalhes de sua própria vida e circunstâncias, para torná-la sua.

* No texto original a autora fez uma seção ao final da introdução de notas sobre a formatação e com justificativas para
o uso das palavras. O trecho não foi incluído nesta edição por não ser possível manter a formatação no português.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 13
1 Opressão

U
ma afirmação fundamental do feminismo é a de que mulheres são oprimidas. A palavra
opressão é uma palavra impactante. Ela repele e atrai. É perigosa e perigosamente moderna
e ameaçada. É muito mal utilizada e, às vezes, não por inocência.

A afirmação de que mulheres são oprimidas é respondida, com frequência, com a alegação
de que homens também são oprimidos. Escutamos que oprimir é opressivo aos que oprimem
tanto quanto aos que são por eles oprimidos. Alguns homens citam como evidência de sua
opressão sua muito divulgada inabilidade de chorar. É difícil ser homem, nos dizem. Quando
o estresse e as frustrações de ser homem são citadas como evidência de que opressores são
oprimidos pela sua opressão, o significado da palavra opressão está sendo ampliado ao ponto de
perder o sentido; ela é tratada como se sua abrangência incluísse toda e qualquer experiência
humana de limitação ou sofrimento, não importando sua causa, seu grau ou sua consequência.
Esse uso tem nos sido imposto; então, se negamos que qualquer pessoa ou grupo é oprimido,
parecemos estar insinuando que pensamos que eles nunca sofrem ou que não têm sentimentos.
Somos acusadas de insensibilidade e até de intolerância. Para mulheres, tais acusações são
particularmente intimidadoras, já que a sensibilidade é uma das poucas virtudes que foram
atribuídas a nós. Se formos consideradas insensíveis, podemos temer não haver caracterís-
ticas que possam nos redimir e, talvez, sequer sejamos mulheres de verdade. Assim, somos
silenciadas antes de começarmos: o nome da nossa situação é esvaziado de sentido e nossos
mecanismos de culpa escalonam.

Mas isso é um absurdo. Seres humanos podem ser extremamente infelizes sem serem
oprimidos, e é perfeitamente coerente negar que uma pessoa ou que um grupo é oprimido sem
negar que tenha sentimentos ou que sofra.

Precisamos pensar a respeito da opressão com clareza, mas há muitas coisas que mitigam
essa possibilidade. Eu não pretendo provar que mulheres são oprimidas (ou que homens não
são), mas eu quero deixar evidente o que está sendo dito quando falamos isso. Nós precisamos
dessa palavra, desse conceito, e é necessário para nós que ele seja preciso e certeiro.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 15
Opressão

▸I
A raiz da palavra opressão é o elemento pressão [press]. A pressão popular; pressionado ao cumpri-
mento de serviço militar; passar [to press] um par de calças, mídia impressa, pressionar o botão.
Prensas são utilizadas para moldar coisas ou para achatá-las, ou reduzi-las em volume, às
vezes, reduzi-las por meio da retirada de gases ou de líquidos. Às vezes, algo é pressionado por
estar entre forças e barreiras que estão tão conectadas umas às outras que, unidas, refreiam,
restringem ou previnem sua movimentação ou mobilidade. Moldar, Imobilizar. Reduzir.

A experiência mundana dos oprimidos fornece outra pista. Uma das características mais
peculiares e onipresentes do mundo, no modo como é experimentado pelas pessoas oprimidas,
é uma faca de dois gumes – situações nas quais as opções são muito reduzidas e todas elas
sujeitam o indivíduo a uma punição, censura ou privação. Por exemplo, comumente demanda-se
das pessoas oprimidas que sorriam e sejam alegres. Se obedecemos, sinalizamos nossa doci-
lidade e nossa sujeição à nossa situação e, então, não é preciso que se preste atenção em nós.
Nós nos sujeitamos a ser invisíveis, a não ocupar espaço. Nós participamos do nosso próprio
apagamento. Por outro lado, qualquer coisa para além do semblante reconfortante nos faz ser
percebidas como más, amarguradas, zangadas ou perigosas. Isso, no mínimo, significa que
seremos consideradas colegas de trabalho “difíceis” ou desagradáveis, o que é suficiente para
comprometer o sustento de alguém; na pior das hipóteses, ser vista como má, amargurada,
zangada ou perigosa tem resultado, notadamente, no fato de sermos estupradas, aprisio-
nadas, espancadas e assassinadas. Só se pode arriscar escolher a forma e o ritmo preferidos
de aniquilação.

Outro exemplo: é comum nos Estados Unidos que mulheres, especialmente as mais jovens,
estejam em um beco sem saída no qual não está tudo bem ser sexualmente ativa nem ser
sexualmente inativa. Se a mulher é heterossexualmente ativa, está suscetível a censura e
punição por ser fácil, sem princípios ou uma puta. A “punição” vem na forma de críticas,
sarcasmos e comentários constrangedores, no fato de ser tratada como uma transa fácil por
homens, desprezada pelas amigas mais contidas. Essa mulher pode ter que mentir e esconder
seu comportamento de seus pais. Ela deve fazer um número de malabarismo para conciliar
riscos de uma gravidez indesejada e contraceptivos perigosos. Por outro lado, se ela se abstém
da atividade heterossexual, é assediada com frequência por homens que tentam persuadi-la e
pressioná-la a “relaxar” e “se divertir”; é ameaçada com rótulos como “frígida”, “tensa”, “odiadora
de homens”, “vadia” e “provocadora”. Os mesmos pais que desaprovariam sua atividade sexual
podem preocupar-se porque sua inatividade sexual sugere que ela não é ou não será popular,
ou que não é sexualmente normal. Ela pode ser acusada de lesbianismo. Se uma mulher é

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 16
Opressão

estuprada e continua a ser sexualmente ativa, ela está sujeita à presunção de que gostou de
ser estuprada (já que sua atividade, presume-se, mostra que ela gosta de sexo) e, se ela não tem
sido heterossexualmente ativa, também está sujeita à presunção de que gostou de ser estuprada
(já que ela é, supostamente, “reprimida e frustrada”). Tanto a atividade sexual hétero quanto
a inatividade sexual hétero podem ser tomadas como prova de que você queria ser estuprada,
logo, claro, não foi realmente estuprada, para início de conversa. Você não pode vencer. Você está
em um beco sem saída, encurralada entre pressões sistematicamente relacionadas.

Mulheres são capturadas assim também por redes de forças e barreiras que as sujeitam
à penalidade, à perda ou à conformação. Se elas trabalham fora de casa ou não, se dependem
do auxílio do governo ou não, se têm filhos ou não, se criam filhos ou não, se se casam ou não,
se continuam casadas ou não, se são heterossexuais, lésbicas, ambos ou nenhum dos dois.
Necessidade econômica; confinamento em guetos raciais ou sexuais de trabalho; assédio sexual;
discriminação sexual; pressões de expectativas concorrentes e julgamentos acerca de mulheres,
esposas e mães (na sociedade em geral, em subculturas étnicas e raciais e na mente da própria
pessoa); dependência (total ou parcial) dos maridos, dos pais ou do Estado; comprometimento
com ideias políticas; lealdade a minorias étnicas, raciais ou a outros grupos minoritários;
exigência de respeito próprio e responsabilidade para com outros. Cada um desses fatores
existe em complexa tensão com todos os outros, penalizando ou proibindo todas as opções
aparentemente disponíveis. Estar em constante estado de competição é uma lista sem fim
de pequenas coisas. Se uma mulher se veste de um jeito, está sujeita à presunção de que está
divulgando disponibilidade sexual; se ela se veste de outro jeito, parece não “se cuidar” ou ser
“pouco feminina”. Se ela usa “linguagem forte”, está pedindo para ser considerada puta ou
vadia; se não usa, está pedindo para ser considerada uma “dama” – alguém delicada demais
para lidar com discursos robustos ou com a realidade à qual eles presumivelmente se referem.

A experiência de pessoas oprimidas é de ter suas vidas limitadas e moldadas por forças e
barreiras que não são acidentais ou ocasionais, e portanto evitáveis, mas sistematicamente
relacionadas umas às outras, de tal maneira que as captura entre essas forças e barreiras e
restringe ou penaliza o movimento em qualquer direção. É a experiência de estar engaiolada:
todas as avenidas em todas as direções estão bloqueadas ou com alguma emboscada.

Gaiolas. Considere uma gaiola de pássaro. Se você olhar fixamente uma das grades da
gaiola, não conseguirá ver outras grades. Se sua concepção do que estiver diante de você for
determinada por esse foco míope, você poderia olhar esse único fio, de cima a baixo pelo seu
comprimento, e seria incapaz de perceber por que um pássaro simplesmente não desviaria da
grade sempre que quisesse voar para algum lugar. Além disso, mesmo se você, um dia de cada
vez, de maneira míope, inspecionar cada fio, ainda não poderia entender por que um pássaro

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 17
Opressão

teria dificuldade para transpor as grades e chegar a qualquer lugar. Não existe uma proprie-
dade física inerente a qualquer uma dessas grades, nada que a análise mais detalhada pudesse
descobrir, que revelaria como um pássaro poderia ser inibido ou prejudicado por elas, exceto
de maneira mais acidental. É apenas quando você se distancia, para de olhar as grades uma a
uma, microscopicamente, e adota um olhar macroscópico de toda a gaiola, que você consegue
perceber por que o pássaro não vai a lugar algum; e então você finalmente percebe o que se
passa. Não será necessária nenhuma grande astúcia da mente. É perfeitamente óbvio que o
pássaro está rodeado por uma rede de barreiras sistematicamente relacionadas, nenhuma
das quais poderia representar o menor obstáculo para seu voo, mas que, pelas relações com as
demais grades, são tão confinantes quanto as paredes sólidas de um calabouço.

Agora, é possível compreender uma das razões pelas quais pode ser difícil perceber e
reconhecer a opressão: podem-se estudar, com muito cuidado e com alguma boa vontade, os
elementos de uma estrutura opressora sem ser capaz de perceber a estrutura como um todo,
portanto, sem ver ou ser capaz de entender que o que você está vendo é uma gaiola e que há
pessoas que são engaioladas, cujo movimento e a mobilidade são restritos, cujas vidas são
moldadas e reduzidas.

A limitação da visão a um nível microscópico rende confusões tão comuns quanto aquelas
acerca do ritual masculino de abrir a porta para mulheres. Esse ritual, que é notoriamente
difundido entre classes e raças, intriga muitas pessoas, algumas das quais o acham ofensivo e
algumas das quais não o acham. Observe a cena de duas pessoas aproximando-se de uma porta.
O homem se adianta e abre a porta. Ele segura a porta enquanto a mulher passa. O homem
passa. A porta se fecha. Alguém pode perguntar inocentemente: “Como essas malucas feminazis
podem dizer que isso é opressivo? O cara removeu uma barreira para o progresso suave e sereno
da dama”. Mas cada repetição desse ritual ocupa um lugar em um padrão. Na verdade, em vários
padrões. Há de se mudar o nível de percepção a fim de ver o panorama geral.

O abrir de portas pretende ser um serviço útil, mas a gentileza é falsa. Isso pode ser
percebido ao se notar que será feito independentemente de ter um sentido prático. Homens
enfermos e homens sobrecarregados com pacotes abrirão as portas para mulheres perfeita-
mente capazes de fazê-lo, que estão livres de qualquer fardo físico. Homens irão impor-se estra-
nhamente e empurrar todos a fim de chegar na porta primeiro. O ato não é determinado por
conveniência ou graça. Ademais, esses numerosos atos desnecessários e até nocivos de “ajuda”
ocorrem em contrapartida a um padrão de homens não sendo úteis ao não oferecer ajuda de
diversas maneiras que seriam bem recebidas por mulheres. O que mulheres experimentam é
um mundo no qual príncipes encantados comumente fazem um estardalhaço sobre serem
úteis e realizarem pequenos serviços quando eles em pouco ou nada ajudam, mas é um mundo

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 18
Opressão

no qual há pouquíssimos príncipes engenhosos e sagazes por perto quando uma assistência
substancial é, de fato, desejada, seja em relação a assuntos mundanos, seja em situações de
ameaça, assédio ou terror. Não há ajuda para lavar as roupas (deles); nenhuma ajuda para digitar
um relatório às quatro da manhã; nenhuma ajuda na mediação de conflitos entre parentes
ou crianças. Não há nada além da recomendação de que mulheres fiquem em casa depois de
escurecer, de que andem acompanhadas de um homem ou, quando não há mais escapatória,
de que “relaxem e gozem”.

Os gestos galantes não possuem um sentido prático. A relevância deles é simbólica. O abrir
de portas e serviços similares seriam realmente necessários para pessoas que, por um motivo
ou outro, estão incapacitadas – não se sentem bem, estão carregando muitas coisas etc.
Então, a mensagem é de que mulheres são incapazes. O distanciamento dos atos em relação à
realidade concreta do que mulheres precisam ou não é um meio de passar a mensagem de que
as reais necessidades delas são irrelevantes ou não são importantes. Finalmente, esses gestos
imitam o comportamento dos servos para com seus mestres e, portanto, são um escárnio para
mulheres, que são, em muitos aspectos, as servas e cuidadoras dos homens. A mensagem da
falsa gentileza da cortesia masculina é a dependência feminina, a invisibilidade ou a insigni-
ficância de mulheres e o desprezo por elas.

Não se podem observar os significados desses rituais se o foco for cravado no evento parti-
cular, em todas as suas peculiaridades, incluindo a peculiaridade das intenções conscientes
e as motivações daquele homem em particular e a percepção daquela mulher em particular a
respeito do evento naquele momento. Parece, às vezes, que pessoas adotam deliberadamente
um olhar míope e enchem seus olhos com coisas vistas microscopicamente a fim de não
ver macroscopicamente. Em qualquer grau, deliberadamente ou não, pessoas podem falhar,
e falham, em ver a opressão de mulheres porque falham em ver macroscopicamente e, por isso,
falham em notar os vários elementos da situação como sistematicamente relacionados em um
processo mais amplo.

Como a prisão da gaiola de pássaro é um fenômeno macroscópico, a opressão das situações


nas quais nós, mulheres, vivemos nossas variadas e diferentes vidas também é um fenômeno
macroscópico. Nenhuma delas pode ser vista de uma perspectiva microscópica. Mas quando
você olha macroscopicamente, consegue vê-la: uma rede de forças e barreiras que são siste-
maticamente relacionadas e que conspiram para a imobilização, a redução e a modelagem de
mulheres e das vidas que vivemos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 19
Opressão

▸ II
A imagem da gaiola ajuda a transmitir um aspecto da natureza sistemática da opressão. Outro
aspecto é a seleção dos ocupantes das gaiolas, e a sua análise também ajuda a explicar a invi-
sibilidade da opressão de mulheres.

É na qualidade de mulher (ou de chicana, ou de negra, ou asiática, ou lésbica) que se é


aprisionada.

“Por que não posso ir ao parque? Você deixa Jimmy ir!”


“Porque não é seguro para crianças.”

“Quero ser secretária, não costureira; eu não quero aprender a fazer vestidos.”
“Não existe emprego para negros nessa linha; aprenda uma habilidade da qual possa
tirar seu sustento.”

Quando você se pergunta por que está sendo reprimida, por que essa barreira está no seu
caminho, a resposta não tem a ver com talento individual ou mérito, deficiência ou fracasso;
tem a ver com seu pertencimento a uma categoria compreendida como “natural” ou “física”.
O “habitante” da “gaiola” não é um indivíduo, mas um grupo, todos aqueles indivíduos de
determinada categoria. Se um indivíduo é oprimido, é em virtude de pertencer a um grupo
ou a uma categoria de pessoas que são sistematicamente reduzidas, moldadas, imobilizadas.
Logo, para reconhecer uma pessoa como oprimida, deve-se ver essa pessoa como pertencendo
a um grupo de certo tipo.

Existem muitas coisas que podem encorajar ou inibir a percepção do pertencimento de


alguém ao tipo de grupo ou categoria que está em questão. Particularmente, parece razoável
supor que, se um dos dispositivos de restrição e definição do grupo é o do confinamento ou
da segregação física, o confinamento e a separação facilitariam o reconhecimento do grupo
enquanto tal. Em contrapartida, isso encorajaria o foco macroscópico, que possibilita que se
reconheça a opressão e promove a identificação e a solidariedade entre indivíduos do grupo
ou da categoria. Mas confinamento e segregação física do grupo como um todo não é algo
comum a todas as estruturas opressivas, e, quando um grupo oprimido é geográfica e demo-
graficamente disperso, a sua percepção como coletividade é inibida. Deve haver pouco ou nada,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 20
Opressão

nas situações dos indivíduos, encorajando o enfoque macroscópico que revelaria a unidade da
estrutura soterrando todos os membros desse grupo1.

Uma grande quantidade de pessoas, mulheres e homens, de todas as raças e classes,


simplesmente não acredita que mulher é uma categoria de pessoas oprimidas, e eu acho que
isso acontece, em parte, porque essas pessoas têm sido tapeadas pela dispersão e pela assimi-
lação das mulheres pelos sistemas de classe e raça que organizam os homens. Nossa simples
dispersão dificulta que mulheres tenham conhecimento sobre as demais e, portanto, o reconhe-
cimento da forma da gaiola que dividimos. A dispersão e a assimilação de mulheres em classes
econômicas e raças também nos coloca umas contra as outras, prática e economicamente,
o que agrega interesse à inabilidade de ver: para algumas, apego aos benefícios; para outras,
ressentimento em relação às vantagens desfrutadas pelas demais.

Para superar essa dispersão, vale lembrar que, na verdade, mulheres de todas as raças
estão juntas em uma espécie de gueto. Há um lugar para a mulher, um setor, que é habitado
por mulheres de todas as classes e raças, e isso não é definido por limites geográficos, mas pela
sua função. Essa função é a de servir aos homens e a seus interesses nos termos masculinos,
o que inclui gestar e criar crianças. Os detalhes do serviço e as condições de trabalho variam em
função da raça e da classe, já que homens de classes e raças diferentes têm interesses distintos,
percebem esses interesses distintamente e expressam suas necessidades e demandas com
retóricas, dialetos e línguas diferentes. Mas também existem algumas constantes.

Seja em lares, seja em empregos de classe social mais baixa, média ou alta, o trabalho das
mulheres de servir sempre inclui a assistência pessoal (o trabalho de empregadas, criadas,
cozinheiras, secretárias pessoais)2, serviço sexual (incluindo provisão para suas necessidades
sexuais genitais e gestar crianças, mas também inclui “ser agradável”, “estar atraente para
ele” etc.) e serviço ao ego (encorajamento, apoio, elogios, atenção). O trabalho de mulheres
de servir também é caracterizado, em todo lugar, pela combinação fatal de responsabili-
dade e impotência: nós somos responsabilizadas e nos responsabilizamos pelo desenlace
positivo para homens e para crianças em quase todos os aspectos, ainda que quase sempre não
tenhamos poder adequado para esse empreendimento. Os detalhes da experiência subjetiva
dessa servidão variam localmente. Eles variam de acordo com classe, raça e tradição étnica,

1
Assimilação forçada é, de fato, uma das políticas disponíveis aos grupos opressores em seus esforços de reduzir
ou aniquilar outro grupo. Essa tática é usada pelo governo dos Estados Unidos, por exemplo, sobre os indígenas
americanos.
2
Em classes econômicas mais altas, mulheres podem não executar todos esses trabalhos, mas geralmente ainda
são responsáveis por contratar e supervisionar quem os executa. Esses serviços ainda são, mesmo nesses casos,
responsabilidade de mulheres.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 21
Opressão

assim como de acordo com a personalidade dos homens em questão. O mesmo ocorre com os
detalhes das forças que coagem nossa tolerância a essa servidão, que é peculiar às diferentes
situações em que diferentes mulheres vivem e trabalham.

Tudo isso não significa que mulheres não tenham afirmado e, por vezes, conseguido satis-
fazer seus próprios interesses, nem significa negar que, em alguns casos e em alguns aspectos,
os interesses de mulheres coincidem com os dos homens. Mas a todo nível de raça/classe,
e mesmo através das linhas de raça/classe, homens não servem às mulheres como mulheres
servem aos homens. O “universo feminino” deve ser entendido como o “setor da servidão”,
compreendendo essa expressão muito mais ampla e profundamente do que é comum nas
discussões econômicas habituais.

▸ III
Parece ser da condição humana o fato de que todos nós, em maior ou menor grau, sofremos
frustrações e limitações, todos encontramos barreiras indesejáveis e todos somos machucados
e feridos de diversas maneiras. Já que somos uma espécie social, quase todos nossos comporta-
mentos e atividades são estruturados por algo além da inclinação individual, das condições do
planeta e da sua atmosfera. Nenhum ser humano está livre das estruturas sociais nem (talvez)
a felicidade consistiria nessa liberdade. A estrutura consiste em marcos, limites e barreiras; em
uma totalidade estruturada, alguns deslocamentos e algumas mudanças são possíveis, e outras
não são. Caso se procure uma desculpa para diluir a palavra opressão, pode-se usar o fato da
estrutura social como uma licença e afirmar que todos são oprimidos. Mas caso prefiramos
ser honestos a respeito do que é e do que não é opressão, é preciso diferenciar os sofrimentos,
os danos e as limitações e descobrir quais são elementos de opressão e quais não são.

Baseado no que já expus aqui, é evidente que, caso se queira determinar se um particular
sofrimento, dano ou limitação é decorrente da opressão desse indivíduo, é necessário olhar para
o contexto a fim de determinar se é um elemento de uma estrutura opressiva: é preciso ver se
é parte de uma estrutura enclausurante de forças e barreiras que visam imobilizar e reduzir
um grupo ou uma categoria de pessoas. Deve-se observar como a barreira ou força se encaixa
às demais e em benefício ou detrimento de quem ela funciona. Ao analisar exemplos, torna-se
óbvio que nem tudo o que frustra ou limita uma pessoa é opressivo, e nem todo prejuízo ou
dano advém da opressão ou contribui para ela.

Se um filhinho de papai branco e rico que vive dos rendimentos de seus investimentos em
minas de diamante na África do Sul quebra uma perna em um acidente de esqui em Aspen e

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 22
Opressão

espera por horas antes de ser resgatado, sentindo dor e em meio a uma tempestade, podemos
supor que ele sofreu nesse intervalo, contudo o sofrimento acaba, sua perna é reparada pelo
melhor cirurgião que o dinheiro pode pagar e logo ele está se recuperando em uma suíte
luxuosa, bebendo Chivas Regal. Nada, nesse cenário, sugere uma estrutura de barreiras e
forças. Ele é um membro de vários grupos opressores e não se torna, subitamente, oprimido
porque está ferido e sentindo dor. Mesmo que o acidente tivesse sido causado pela negligência
maliciosa de alguém e, portanto, alguém pudesse ser moralmente responsável pelo fato, essa
pessoa ainda não foi uma agente de opressão.

Considere também a restrição de ter que dirigir um veículo em determinado lado da rua.
Não há dúvidas de que essa restrição pode ser insuportavelmente frustrante quando a pista
não está andando e a do lado está livre. Certamente, até existem vezes nas quais seguir essa
regulação teria consequências danosas, mas a restrição é obviamente salutar para a maioria
de nós, na maior parte do tempo. A limitação é imposta para nosso benefício e, de fato, nos
beneficia; ela tende a encorajar o fluxo contínuo, não nos imobilizar. Os limites impostos pela
regulação do tráfego são limites que a maior parte de nós imporia a nós mesmos com satis-
fação, se soubéssemos que os outros também os seguiriam. Eles são parte de uma estrutura
que modela nosso comportamento, não para nossa redução ou imobilização, mas para a conti-
nuidade da possibilidade de nos movermos e agirmos como quisermos.

Outro exemplo: os limites de um gueto racializado em uma cidade norte-americana serve,


em alguma medida, para evitar que pessoas brancas entrem nele, tanto quanto para evitar
que os moradores do gueto saiam. Um(a) cidadão(ã) branco(a) em particular pode ficar frus-
trado(a) ou sentir-se prejudicado(a) por não poder passear por lá, para curtir a aura “exótica”
de uma cultura “estrangeira” ou para barganhar nas feiras de troca. Na verdade, a existência
do gueto, da segregação racial, priva, sim, a pessoa branca de conhecimento e prejudica seu
caráter ao nutrir sentimentos injustificados de superioridade, mas isso não torna a pessoa
branca membra de uma raça oprimida ou uma pessoa oprimida por causa de sua raça. Deve-se
olhar para a barreira. Ela limita a atividade e o acesso daqueles em ambos os lados (embora
em diferentes intensidades), mas isso é resultado da intenção, do planejamento e da ação de
brancos para o benefício de brancos a fim de assegurar e manter privilégios desfrutados,
geralmente, por brancos, como membros do grupo dominante e privilegiado. Embora a exis-
tência da barreira tenha algumas consequências negativas para brancos, ela não existe em
uma relação sistemática com outras barreiras e forças formando uma estrutura opressiva
para brancos, pelo contrário. É parte de uma estrutura que oprime pessoas periféricas e, desse
modo (e por intenção de brancos), protege e amplia os interesses dos brancos como a cultura

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 23
Opressão

branca dominante os compreende. Essa barreira não é opressiva para os brancos, embora seja
uma barreira para eles.

Barreiras têm diferentes significados para duas pessoas que estão em lados opostos a elas,
apesar de serem barreiras para ambas. As paredes físicas de uma prisão não se dissolvem para
deixar uma pessoa entrar da mesma maneira que não se dissolvem para deixar uma pessoa
sair, mas, enquanto confinam e limitam quem está dentro, podem significar para quem está
de fora proteção em relação àqueles que estão dentro, liberdade de danos ou ansiedade. Um
conjunto de barreiras econômicas e sociais e de forças separando dois grupos pode ser sentida,
inclusive de maneira dolorosa, por membros de ambos os grupos e, ainda assim, podem repre-
sentar confinamento para um e liberdade e alargamento de oportunidades para outro.

O setor de servidão de esposas/mães/assistentes/meninas3 é quase exclusivamente um


setor feminino, seus limites não apenas confinam mulheres como, em ampla medida, mantêm
os homens fora. Alguns homens, às vezes, encontram essa barreira e a experienciam como uma
restrição de seus movimentos, suas atividades, seu controle sobre suas escolhas de estilo de
vida. Pensando que eles podem gostar da vida simples de cuidador (que eles podem imaginar
como sendo livre de estresse, alienação e trabalho duro) e sentindo-se privados, já que esse
setor parece fechado para eles, os homens então anunciam terem descoberto que também são
oprimidos pelos “papéis de gênero”. Só que essa barreira foi erguida e é mantida por homens,
para o benefício de homens. Ela consiste nas forças e pressões econômicas e culturais em uma
cultura e uma economia controladas por homens, e nas quais, em todos os níveis econômicos
e em todas as subculturas, economias e tradições étnicas e raciais – e mesmo ideologias de
libertação – trabalham para manter a cultura e a economia locais, pelo menos, sob controle
masculino4.

O limite que separa o universo feminino é, geralmente, mantido e promovido por homens para
o benefício de homens, e homens geralmente beneficiam-se, sim, de sua existência, mesmo o
homem que se depara com ela e reclama da inconveniência. Essa barreira está protegendo a
classificação e o status dele como homem, como superior, como tendo direito ao acesso sexual
a uma mulher ou a mulheres. Ela protege um tipo de cidadania que é superior ao das mulheres
de sua classe e raça, seu acesso a uma maior variedade de trabalhos com melhores salários e

3
N.T.: No original girls pode ser compreendido como mulheres em situação de prostituição.
4
É evidente que isso é complicado por raça e classe. As políticas das masculinidades latinas e negras parecem ajudar
homens latinos ou negros a controlar mais dinheiro do que mulheres negras e latinas; mas essas políticas me
parecem também, em última instância, ajudar a manter a economia mais ampla sob controle de homens brancos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 24
Opressão

com maior status, e seu direito de preferir o desemprego à degradação de realizar trabalhos
com menor status, ou “de mulher”.

Se a vida ou a atividade de uma pessoa é afetada por alguma força ou barreira que a pessoa
encontra, não se pode concluir que a pessoa é oprimida apenas porque encontrou essa barreira
ou força, ou simplesmente porque esse encontro é desagradável, frustrante ou doloroso para ela
naquele contexto, ou simplesmente porque a existência da barreira, da força ou de processos
que as mantêm e as aplicam serve para privar aquela pessoa de algo de valor. Deve-se olhar para
a barreira ou força e responder a algumas questões a respeito dela. Quem a constrói e mantém?
O interesse de quem é atendido pela sua existência? Ela é parte de uma estrutura que tende
a confinar, reduzir e imobilizar um grupo? O indivíduo é membro do grupo confinado? Várias
forças, barreiras e limitações com as quais uma pessoa pode se deparar ou viver podem ser
parte de uma estrutura opressora ou não, e, se são, essa pessoa pode estar do lado opressor ou
do lado oprimido. Não se pode afirmar com base em quão alto ou quão pouco a pessoa reclama.

▸ IV
Muitas das restrições e limitações que vivemos são mais ou menos internalizadas e automoni-
toradas e são parte de nossa adaptação aos requisitos e expectativas impostos pelas necessi-
dades, gostos e tiranias de outros. Tenho algumas coisas em mente, como o confinamento da
postura feminina, o passo suavizado e a repressão masculina na expressão de seus sentimentos
(exceto raiva). Quem ganha o que por meio das práticas dessas disciplinas e quem impõe qual
pena pela relativização indevida delas? Quais são as recompensas por essa disciplina de si?

Homens podem chorar? Sim, na companhia de mulheres. Se um homem não pode chorar,
é na companhia de homens que ele não pode. São homens, e não mulheres, que requerem
essa continência; não apenas a requerem como a recompensam. O homem que mantém um
comportamento durão, forte ou relaxado (que são maneiras de sugerir invulnerabilidade) marca
a si mesmo como um membro pertencente à comunidade masculina e é estimado por outros
homens. Consequentemente, a manutenção desse comportamento contribui para a autoes-
tima do homem. É algo percebido como bom, e ele pode se sentir bem consigo mesmo. O modo
como essa restrição se encaixa nas estruturas da vida dos homens é como se a adoção de um
dos comportamentos socialmente requeridos contribuísse para sua aceitação e seu respeito
por pessoas especiais e para a própria autoestima. A prática dessa disciplina acontece para o
benefício deles.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 25
Opressão

Considere, a fim de comparar, a disciplina de posturas fisicamente enclausurantes e descon-


fortáveis e o passo suavizado das mulheres. Essa disciplina pode ser relativizada na companhia
de mulheres, assim como é geralmente mais extenuante na companhia de homens5. Como
a repressão emocional de homens, a contenção física das mulheres é requerida por homens,
mas, diferentemente do caso daquela, esta não é premiada. O que nós ganhamos com isso?
Respeito, estima e aceitação? Não. Eles zombam da gente e fazem paródias do nosso jeito
de andar. Nós parecemos bobas, incompetentes, fracas e, geralmente, conformadas. Nosso
exercício dessa disciplina leva à baixa estima e à baixa autoestima. Ela não nos beneficia. Ela
encaixa-se em uma rede de comportamentos por meio dos quais constantemente anunciamos
aos demais nosso pertencimento a uma casta inferior e nossa falta de vontade e/ou habilidade
para defender a integridade de nossos corpos ou da nossa moral. É degradante e parte de um
padrão de degradação.

O comportamento aceitável para ambos os grupos, homens e mulheres, envolve uma


contenção que parece boba e, talvez, danosa, mas seus efeitos sociais são drasticamente dife-
rentes. A contenção feminina é parte de uma estrutura opressiva para mulheres, a repressão
masculina é parte de uma estrutura opressiva para mulheres.

▸V
As pessoas são marcadas para receber as cargas opressivas pelo seu pertencimento a algum
grupo ou categoria. Muito do sofrimento e da frustração recai parcial ou amplamente no
indivíduo porque ele é membro dessa categoria. No caso em questão, é a categoria mulher. Ser
uma mulher é um grande fator para que eu não tenha um trabalho melhor do que o que tenho;
ser mulher me seleciona como provável vítima de agressão ou de assédio sexual; é o meu ser
mulher que reduz o poder da minha raiva à prova da minha insanidade. Se uma mulher tem
pequeno ou nenhum poder econômico ou político, ou conquista pouco do que ela almeja, um
grande fator causal é que ela é uma mulher. Para qualquer mulher de qualquer raça ou classe
econômica, ser mulher é significativamente inerente a quaisquer desvantagens e privações
que ela sofre, sejam grandes, sejam pequenas.

5
Ver Let’s Take Back Our Space: “Female” and “Male” Body Language as a Result of Patriarchal Structures [Vamos
retomar nosso espaço: linguagem corporal “ feminina” e “masculina” como resultado das estruturas patriarcais], escrito
por Marianne Wex (Frauenliteratur Verlag Hermine Fees, West Germany, 1979), especialmente a página 173. Esse
livro excepcional apresenta milhares de fotografias espontâneas de mulheres e homens em público, sentados, de
pé e deitados. Ele demonstra, vividamente, as diferenças sistemáticas entre as posturas e os gestos de mulheres e
de homens.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 26
Opressão

Nada disso decorre do fato de uma pessoa ser homem. Simplesmente ser homem não é o que
se coloca entre ele e um trabalho melhor; qualquer assédio ou agressão que sofre, ser homem
não é o que o coloca como possível vítima; ser homem não é um fator que poderia tornar sua
raiva impotente – pelo contrário. Se um homem tem pequeno ou nenhum poder político ou
material, ou conquista pouco do que almeja, o fato de ele ser homem não é parte da explicação.
Ser homem é algo que ele tem a favor dele, mesmo se raça, ou classe, ou idade, ou deficiência
estiver contra ele.

Mulheres são oprimidas como mulheres. Membros de determinados grupos ou classes raciais
e/ou econômicos, ambos homens e mulheres, são oprimidos como membros dessa raça e/ou
classe. Mas homens não são oprimidos como homens.

… e não é estranho que tantos de nós tenham ficado confusos e intrigados a respeito de algo
tão simples?

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 27
2 Sexismo

O
primeiro projeto filosófico que eu empreendi como feminista foi tentar dizer cuidadosa
e persuasivamente o que o sexismo é e o que quer dizer uma pessoa, instituição ou ato
ser sexista. Esse projeto me foi passado com considerável urgência porque, como muitas
mulheres chegando a uma percepção feminista de si e do mundo, eu estava vendo o sexismo
em todo lugar e tentando torná-lo perceptível aos outros. Eu pontuava, reclamava e criticava,
mas, frequentemente, meus amigos e colegas não viam o que eu declarava sexista como sexista
ou sequer questionável.

Como crítica e iniciadora do assunto, eu era a pessoa sobre quem recaía o fardo – era eu
quem tinha de explicar e convencer. Lecionar filosofia já havia me ensinado que pessoas não
podem ser persuadidas de coisas das quais não estão prontas para ser persuadidas; existem
certos complexos de vontade e de experiências anteriores que irão, inevitavelmente, bloquear
a persuasão, não importa o mérito do caso apresentado. Eu sabia que, mesmo que pudesse
explicar plena e explicitamente o que queria dizer quando afirmava que determinada coisa
era sexista, não seria capaz, necessariamente, de convencer muitas outras pessoas da precisão
dessa afirmação. O que me intrigou enormemente, contudo, era que eu não conseguia explicar
isso de uma maneira que me satisfizesse. É esse tipo de frustração moral e intelectual que, pelo
menos no meu caso, sempre gera filosofia.

O que vem a seguir foi produto da minha primeira tentativa de afirmar nítida e explicita-
mente o que o sexismo é:

O termo “sexista”, no seu núcleo e talvez na sua acepção mais fundamental, é um termo
que caracteriza qualquer coisa que crie, constitua, promova ou explore qualquer distinção
irrelevante ou impertinente entre os sexos1.

1
“Male-Chauvinism – A Conceptual Analysis” [Chauvinismo masculino – uma análise conceitual], Philosophy and
Sex [Filosofia e Sexo], editada por Robert Baker e Frederick Elliston (Prometheur Books, Buffalo, New York, 1975),
p. 66. A inadequação dessa descrição de sexismo é refletida na inadequação dos padrões da interpretação legal
do que é a discriminação sexual como é analisada por Catharine A. MacKinnon em Sexual Harassment of Working
Women (Yale University Press, New Haven and London, 1979), capítulos 5 e 6. Veja, também, minha resenha desse
livro, “Courting Gender Justice”, New Women’s Times Feminist Review, n. 17, Setembro-Outubro 1981, p. 10-11.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 29
Sexismo

Quando eu escrevi essa citação, estava pensando na miríade de instâncias nas quais pessoas
dos dois sexos são tratadas diferentemente, ou comportam-se diferentemente, mas nas quais
nada nas diferenças reais entre homens e mulheres justificasse ou explicasse as diferenças
de tratamento ou comportamento. Eu pensava, por exemplo, no direcionamento de meninos,
na escola, para aulas de Marcenaria e de meninas para Economia Doméstica, quando não há
nada relacionado a meninos ou meninas em si que os conectem essencialmente com a distinção
entre chaves-inglesas e batedores de ovos. Eu também pensava na discriminação de sexo no
trabalho – casos em que alguém aparentemente qualificado para o trabalho não é contratado
porque é mulher. Quando tentei colocar essa definição de “sexista” em uso, contudo, ela não
resistiu ao teste.

Considere este caso: se uma companhia está contratando um supervisor que irá monitorar
um grupo de trabalhadores homens que sempre trabalharam para supervisores homens,
dificilmente pode-se negar que o sexo do candidato será relevante para sua possibilidade de
realizar um trabalho bem-sucedido e de forma tranquila junto aos supervisionados (embora
o argumento seja, com frequência, exagerado por aqueles que buscam desculpas para não
contratar mulheres). A relevância é algo inserido em um sistema. Os padrões de comporta-
mento, atitudes e hábitos nos quais um processo ocorre determina o que é relevante para o
que em matéria de descrever, predizer e avaliar. No caso em questão, a atitude do trabalhador
e a cultura organizacional fazem diferença na forma como os trabalhadores interagem com o
supervisor e, em particular, tornam o sexo do candidato um fator relevante na previsão de como
as coisas irão funcionar. Então, se a companhia contrata um homem em detrimento de uma
mulher mais experiente e com mais conhecimento, podemos explicar nossa objeção à decisão
afirmando que envolve a distinção baseada em sexo, quando o sexo é irrelevante para o desem-
penho da função? Não: o sexo é relevante aqui.

Então, o que quero dizer com “sexista”? Eu pensava que, no caso de um candidato a um
cargo de supervisão, a capacidade reprodutiva do candidato não tem nada a ver com o conheci-
mento acerca do que precisa ser feito e com a capacidade de dar orientações oportunas, claras
e corretas. O que eu imaginava era a situação isenta de toda percepção e reação sexista. Só que,
claro, se todo o contexto não fosse sexista, o sexo não seria um problema em tal situação de
trabalho. Na verdade, ele provavelmente passaria completamente despercebido. É precisamente
o fato de que o sexo do candidato é relevante que é um sintoma evidente do sexismo na situação.

Falhei completamente, naquele primeiro ensaio, em captar ou entender que o locus do


sexismo está, principalmente, no sistema ou no ambiente de trabalho, e não no ato em parti-
cular. Não é correto afirmar que o que está ocorrendo de errado, em casos de sexismo, é que
distinções são feitas com base no sexo quando o sexo é irrelevante; o que está errado nos casos

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 30
Sexismo

de sexismo é, em primeiro lugar, que o sexo seja relevante e, então, que a distinção feita com
base no sexo reforce o padrão que o torna relevante.

Em um sistema cultural/econômico sexista, o sexo é sempre relevante. Para entender o que


sexismo é, então, precisamos nos afastar e observar o contexto mais amplo.

Sua identificação invade todos os momentos de nossas vidas e do discurso, não importa qual
seja, supostamente, o foco primário ou assunto principal do momento. A marcação elaborada,
sistemática, onipresente e redundante das distinções entre dois sexos de humanos e da maior
parte dos animais é costumeiro e obrigatório. Não se pode ignorar isso jamais.

Exemplos e marcas de comportamento sexuado são abundantes. Um casal entra em um


restaurante; o garçom ou recepcionista se dirige ao homem, e não à mulher. Em inglês, o médico
se refere ao homem pelo sobrenome e pronome de tratamento (Sr. Baxter, Rev. Jones) e se refere
à mulher pelo seu primeiro nome (Nancy, Glória). Você parabeniza seu amigo . O que determina
se você lhe dará um abraço, um tapinha nas costas, um aperto de mão ou um beijo será o sexo
do amigo. Em tudo o que se faz existem dois repertórios completos de comportamento, um para
interações com mulheres e um para interações com homens. Cumprimentar, contar histórias,
dar e receber ordens, negociar, demonstrar deferência ou dominância, encorajar, desafiar, pedir
informação: faz-se todas essas coisas de maneiras diferentes a depender se o outro é homem
e mulher.

Isso já foi confirmado em pesquisas sociológicas e sociolinguísticas2, mas também é facil-


mente confirmado pela experiência individual. Para descobrir as diferenças entre como se
cumprimenta uma mulher e como se cumprimenta um homem, por exemplo, apenas se observe,
prestando atenção aos seguintes aspectos: frequência e duração do contato visual, frequência
e tipo de toque, tom e volume da voz, distância física mantida entre os corpos, como e se você
sorri, uso de gírias ou de xingamentos, sua postura corporal ao cumprimentar3. Confirmei
vividamente o fato de ter dois repertórios para lidar com apresentações de pessoas quando
um estudante me apresentou a seu amigo, Pat, e eu não consegui distinguir qual era o seu

2
Veja, por exemplo, trabalhos como Body Politics: Power, Sex and Nonverbal Communication, por Nancy Henley
(Prentice-Hall, Englewood Cliffs, New Jersey, 1977); Language and Sex: Difference and Dominance, editado por Barrie
Thorne e Nancy Henley (Newbury House Publishers, Rowley, Massachussets, 1975); e Gender and Nonverbal Behavior,
editado por Clara Mayo e Nancy M. Henley (Springer-Verlag, New York, 1981).
3
N.T.: No original, “whether your body dips into a shadow curtsy or bow”, fazendo referência à maneira distinta pela
qual mulheres e homens faziam reverência ao cumprimentar pessoas – mulheres segurando a saia, dobrando o
joelho e abaixando a cabeça (“shadow curtsy”) e homens curvando o tronco (“bow curtsy”).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 31
Sexismo

sexo. Por um momento, eu congelei, completamente incapaz de agir. Senti-me inevitavelmente


presa no meio de dois caminhos – o que eu tomaria caso Pat fosse mulher e o que eu tomaria
caso fosse homem. Claro que a paralisia não dura muito. A ingenuidade e a boa vontade me
resgatam; pode-se inventar um modo de se comportar para dizer “Como você está?” a um ser
humano. Os modos habituais, contudo, não servem para todos os humanos: há um modo de
tratar mulheres e outro de tratar homens.

Interligado a todo nosso comportamento está nosso falar – nosso comportamento linguís-
tico. O pronome da terceira pessoa do singular marca o sexo de seu referente. O mesmo vale
para uma grande variedade de substantivos que usamos para nos referir a pessoas (cara,
menino, moça, vendedor entre outros, e todos os termos que secretamente indicam o sexo do
referente, como piloto, enfermeira4 etc.), e a maioria de nomes próprios (Bob, Gwen etc.)5. Na
fala, marca-se constantemente o sexo daquele do qual se fala.

A frequência com a qual nosso comportamento indica o sexo daqueles com quem inte-
ragimos não poderia ser maior. O fenômeno é absolutamente penetrante e profundamente
entranhado em todos os padrões de comportamento que são habituais, costumeiros, acei-
táveis, toleráveis e inteligíveis. Pode-se inventar meios de se comportar, em uma situação
ou outra, que não tenham marcadores de sexo, que não variem conforme o sexo das pessoas
envolvidas; mas caso se obtenha êxito em retirar todas as marcas de sexo de todo o compor-
tamento, ele se tornaria tão estranho que provocaria crises imediatas de incompreensão e
extenuantes objeções morais, religiosas ou estéticas dos outros. Tudo o que se fizesse pareceria
estranho – e isso não seria algo meramente momentâneo. Somos uma espécie gregária. Nossa
vida depende da nossa habilidade de interagir com outros em relações de trabalho, de troca e de
simpatia. O que não se pode fazer sem que se pareça excessivamente estranho ou ininteligível,
não se pode fazer sem severa perturbação dos padrões de interação dos quais a vida depende.
O comportamento marcador de sexo não é opcional: ele é obrigatório e pervasivo.

4
N.T.: No original, “pilot”, “nurse”, palavras que são neutras quanto a gênero, mas que são associadas a um sexo ou
outro em função de estereótipos culturais ligados à profissão.
5
Línguas diferem em seu grau de “carga de gênero” e existem evidências de que essas diferenças estão relacionadas
a diferenças na idade na qual crianças “desenvolvem identidade de gênero”. Em “Native Language and Cognitive
Structures – a Cross-cultural Inquiry”, Alexander Z. Guiora e Arthur Herold detalham essa evidência. Eles carac-
terizam o inglês como tendo carga de gênero “mínima”, hebraico como tendo “máxima carga de gênero” e finlandês
como tendo “zero”. Se o inglês, cujas marcas de gênero me parecem muito prevalentes, é um exemplo de “mínima
carga de gênero”, parece seguro deduzir que a marcação de gênero nas línguas humanas é, de fato, um fator signi-
ficante na experiência humana em geral. (O artigo de Guiora e Herold pode ser solicitado ao doutor Guiora no Box
n. 011, University Hospital, The University of Michigan, Ann Arbor, Michigan 48109). Estou em débito com Barbara
Abbot por trazer esse artigo à minha atenção.

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Sexismo

Intimamente relacionada à marcação de sexo habitual e compulsória está a necessidade


constante e urgente de saber ou de ser capaz de deduzir o sexo de todas as pessoas com quem se
estabelece a menor ou o mais remoto contato ou interação. Se vamos marcar o sexo das pessoas
em toda situação, então temos que saber o sexo delas. Eu precisava saber se “Pat” havia nascido
com um clitóris ou com um pênis antes de tomar o primeiro passo para que pudéssemos nos
conhecer. Se estou escrevendo a resenha de um livro, o uso de pronomes pessoais para fazer
referência ao autor cria a necessidade de saber se as células reprodutivas daquela pessoa são do
tipo que produzem óvulos ou do tipo que produzem esperma. Eu não posso perguntar as horas
sem, antes, saber ou presumir que sei o potencial papel do meu informante na reprodução. Nós
estamos social e comunicativamente desamparados se não sabemos o sexo de todos com quem
temos algo a tratar e, para membros de espécies como a nossa, esse desamparo pode ser um
risco à vida. Nosso padrão de comportamentos habituais torna o conhecimento sobre o sexo de
cada pessoa universalmente importante e primordial. Além disso, a importância e a urgência
de possuir tal conhecimento são intensificadas por outro tipo de fator que eu acho que a maior
parte das pessoas raramente notam, porque elas, geralmente, sabem o sexo dos outros.

Em uma cultura na qual é considerado pecado, doentio ou nojento (no mínimo) não ser
heterossexual, é muito importante observar os sentimentos sexuais e o sexo daqueles que os
inspiram. Se uma pessoa é autorizada a se expressar ou se satisfazer sexualmente, ou mesmo
ter um mero sentimento, com pessoas de um sexo, mas não de outro, então essa pessoa precisa
saber qual o sexo do outro antes de permitir que seu coração bata ou que seu sangue ferva em
resposta à atração sexual despertada. Muito das nossas interações e comunicações cotidianas e
aparentemente não sexuais envolvem elementos de mensagem sexual ou erótica que são rigida-
mente regulados por tabus sexuais, incluindo o tabu da homossexualidade. O ajuste ou desajuste
dessas mensagens ao sexo do indivíduo em questão pode ter consequências maravilhosas ou
desastrosas. O pensamento de que é possível entender erroneamente o sexo de outrem invoca
nada menos que um pavor canônico da violação involuntária de um poderoso tabu.

A pressão em cada um de nós para inferir ou determinar o sexo de todos os outros tanto gera
quanto é manifestada em uma grande pressão para que informemos a todos, o tempo inteiro,
qual é o nosso sexo. Porque se você tirar dos humanos a maior parte de suas amarras culturais,
não é sempre tão fácil dizer, sem uma inspeção minuciosa, quais são fêmeas e quais são machos.
As diferenças físicas tangíveis e visíveis entre os sexos não são particularmente nítidas ou
numerosas. Variações individuais nas dimensões físicas que consideramos associadas à femi-
nilidade e à masculinidade são grandes, e as diferenças entre os sexos poderiam facilmente ser
obscurecidas por decoração corporal, remoção de pelos e coisas do tipo. Um dos choques quando

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 33
Sexismo

uma pessoa erra o sexo de alguém é a descoberta do quão facilmente ela pode se enganar. Nós
não poderíamos garantir que conseguiríamos identificar as pessoas pelo sexo, virtualmente,
em nenhum momento, em lugar nenhum e sob nenhuma condição, se elas não anunciassem
seu sexo elas mesmas, se elas não o dissessem para nós de uma maneira ou de outra. Em outras
palavras, só podemos garantir que seremos capazes de identificar as pessoas por seu sexo,
virtualmente, em todos os momentos, em todos os lugares e sob quaisquer condições, apenas
se as próprias pessoas anunciarem seu sexo, se elas nos disserem de uma maneira ou de outra.

Na verdade, não anunciamos nossos sexos “de uma maneira ou outra”. Nós os anunciamos
de milhares de jeitos. Nós nos vestimos da cabeça aos pés com trajes e decorações que servem
como emblemas e símbolos para anunciar nossos sexos. Para cada tipo de ocasião há roupas
distintas, equipamento e acessórios, penteados, cosméticos e aromas etiquetados como “de
mulheres” ou “de homens” e etiquetando-nos como fêmeas ou machos, e na maior parte do
tempo a maioria de nós escolhe, usa, veste e carrega a parafernália associada ao nosso sexo.
Vai além da superfície também. Há diferentes estilos de andar, de gestos, postura, fala, humor,
gostos e até de percepção, interesse e atenção que nós aprendemos, conforme crescemos, para
sermos mulheres ou para sermos homens e que nos rotulam e nos anunciam como mulheres
ou homens. Começa cedo na vida: até crianças de colo são separadas por cor.

O fato de que nos vestimos e portamos sinais de nosso sexo, e que isso é compulsório, fica
mais claro nos casos relativamente raros em que não fazemos isso, ou não o fazemos sufi-
cientemente. Mães de crianças pequenas que não são imediatamente identificadas pelo sexo
encontram reações, que vão da crítica à indignação e da indignação à hostilidade; hippies costu-
mavam ser assediados na rua (por pessoas normalmente reservadas e educadas) com críticas
e acusações quando suas roupas e estilo declaravam confusa e contraditoriamente seus sexos.
Qualquer um, em qualquer serviço de colocação de emprego, e qualquer manual de sucesso
lhe dirá que você não pode esperar conseguir ou manter um emprego se sua roupa ou estilo
pessoal é ambíguo no anúncio de seu sexo. Você não consegue uma entrevista de emprego
calçando os sapatos ou vestindo as meias do outro sexo.

O ruído neste último exemplo indica outra fonte de pressão para que informemos uns aos
outros o nosso sexo, a saber, mais uma vez, a exigência de que as pessoas sejam e pareçam
heterossexuais. Estranhamente, uma pessoa parece heterossexual quando informa aos outros
o seu sexo de maneira muito enfática e muito inequívoca, e faz isso quando seu comportamento
e o seu corpo acumulam incontáveis indicadores conclusivos de seu sexo. Para gays e lésbicas
que querem se passar por heterossexuais, são esses indicadores que fornecem a maior parte
da camuflagem; para aqueles que desejam evitar ser presumidos heterossexuais, o truque é
deliberadamente cultivar indicadores sexuais ambíguos em roupas, comportamento e estilo.

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Sexismo

Em uma cultura na qual homossexualidade e lesbianidade são violentas e quase universalmente


proibidas, e que a heterossexualidade é anunciada por meio do anúncio do sexo, é sempre
conveniente anunciar o próprio sexo.

A informação sobre o sexo de alguém é sempre desejada, e oferecê-la é sempre apropriado,


não apenas para os interesses mais difusos e persistentes da própria pessoa, mas também dos
demais – interesses de ser e permanecer viável na comunidade humana disponível.

A intensa demanda por marcar e reafirmar o sexo de cada pessoa soma-se à exigência
exaustiva de que existam dois sexos distinta e agudamente dimórficos. Mas, na realidade,
não existem. Existem pessoas que se encaixam em um espectro biológico entre os dois pólos não
tão bem definidos assim. Em torno de 5 por cento dos partos, possivelmente mais, os bebês, em
algum nível ou maneira, não são exemplares perfeitos de macho e fêmea. Há indivíduos com
padrões cromossômicos diferentes de XX ou XY e indivíduos cujas genitálias externas exibem
algum nível de ambiguidade no nascimento. Há pessoas que têm os cromossomos “normais”
e que estão nos pontos extremos do espectro normal de características sexuais secundárias –
altura, musculatura, pilosidade, densidade corporal, distribuição de gordura, tamanho do seio
etc. – cujas aparências, no geral, se encaixam na norma das pessoas cujo sexo cromossomático
é o oposto ao delas6.

A despeito dessas variações, pessoas (majoritariamente homens, claro) com o poder para
fazê-lo, efetivamente constroem um mundo em que homens são homens e mulheres são
mulheres e não existe nada no meio e nada ambíguo; eles o fazem quimica e/ou cirurgica-
mente alterando as pessoas cujos corpos são indeterminados ou ambíguos a respeito do sexo.
Recém-nascidos com genitais “formados imperfeitamente” são imediatamente “corrigidos” por
meios químicos ou cirúrgicos; a crianças e adolescentes são dadas “terapias” hormonais se seus
corpos parecerem não estar se desenvolvendo de acordo com o que médicos e outros afirmaram
ser a norma para o sexo declarado para aquele indivíduo. Pessoas com autoridade recomendam

6
Fundamento-me, aqui, nos ensinamentos de Eileen Van Tassel, nos quais ela interpretou dados geralmente dispo-
níveis sobre as características diferenças e similaridades entre os sexos. Pode-se buscar, particularmente, Man
and Woman, Boy and Girl, escrito por John Money e Anke A. Ehrhardt (The Johns Hopkins University Press, 1972)
e Intersexuality, editado por Claus Overzier (Academic Press, New York and London, 1963). Ver também, por exemplo:
“Development of Sexual Characteristics”, de A. D. Jost em Science Journal, volume 6, n. 6 (especialmente o gráfico
na página 71), que indica a variedade de características dos sexos que ocorrem em homens e mulheres normais;
e “Growth and Endocrinology of the Adolescent” por J. M. Tanner em Endocrine and Genetic Diseases of Childhood,
editado por L. Gardner (Saunders, Philadelphia & London, 1969), que tenta fornecer padrões clínicos de avaliação
para o status hormonal de jovens adolescentes e no qual o autor caracteriza indivíduos que estão dentro da curva
normal para homens como “homens femininos”, por conseguinte, como homens “anormais”; e, similarmente, mutatis
mutandis para mulheres.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 35
Sexismo

e fornecem cosméticos, dietas, exercícios e todos os tipos de vestuário para corrigir ou disfarçar
o buço peludo demais, os seios grandes demais, os ombros estreitos demais, os pés muito
grandes, a estatura alta demais ou baixa demais. Indivíduos cujos corpos não se encaixam na
imagem de exatamente dois sexos precisamente dimórficos frequentemente estão dispostos
a ser alterados ou disfarçados pela razão óbvia de que o mundo os pune severamente por sua
falha em serem os “fatos” que confirmariam a doutrina dos dois sexos. A demanda de que o
mundo seja um mundo onde existam exatamente dois sexos é inexorável, e somos todos compe-
lidos a responder a isso de maneira enfática, incondicionál, repetida e inequívoca.

Ser fisicamente “normal” para seu sexo atribuído ainda não é suficiente. A pessoa deve
ser fêmea ou macho, ativamente. De novo, os figurinos e as performances. Pressionado a agir
de forma feminina ou masculina, o sujeito entra em conluio (con-luio, cum ludere, jogar junto)
com médicos e conselheiros na criação de um mundo onde o aparente dimorfismo sexual é tão
extremo que só se pode pensar que há um enorme abismo entre mulheres e homens, que os
dois são, essencialmente, fundamentalmente, naturalmente e totalmente diferentes. A pessoa
ajuda a criar um mundo onde nos parece que nunca poderíamos confundir uma mulher com
um homem ou um homem com uma mulher. Nós nunca precisamos nos preocupar.

Juntamente com todo o desenvolvimento, a marcação e o anúncio do sexo, há um sentimento


ou atitude forte e visceral diante do fato de que sua distinção é a coisa mais importante no
mundo: que seria o fim do mundo se não fosse mantida de maneira nítida, óbvia e rígida; que
um dualismo dos sexos, que estaria enraizado na natureza animal, é absolutamente crucial
e fundamental para todos os aspectos da vida, da sociedade e da economia humanas. Onde o
feminismo é percebido como um projeto para borrar essa distinção, a retórica antifeminista é
vivificada com o pavor de que o mundo irá acabar se as feministas conseguirem o que querem7.
A insistência de algumas feministas de que o objetivo do feminismo não é uma sociedade
“unissex” é defendida de tal maneira que sugere que elas também acreditam que a cultura ou
a civilização não sobreviveria ao apagamento das distinções. Eu acho que uma das fontes de
prevalência e da profundidade dessa convicção e desse pavor é nossa imersão nesses mesmos
padrões comportamentais, os quais venho discutindo.

7
Ver, por exemplo, Sexual Suicide, de George F. Gilder (Quadrangle, New York, 1979). Para um exemplo eloquente
da versão vitoriana dessa ansiedade e da visão de mundo que está sob ela, ver “The emancipation of women”, de
Frederic Harrison em Fortnightly Review, CCXCVII, 1 de out. 1891, como citado em uma palestra de Sandra Siegel
na Berkshire Conference on Women’s History, em abril de 1981, intitulada “Historiography, ‘Decadence’, and the
Legend of ‘Separated Spheres’ in Late Victorian England”, que relaciona concepções vitorianas de civilização com
a separação e a diferenciação de mulheres e homens.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 36
Sexismo

É um princípio universal e óbvio da teoria da informação que, quando é muito, muito


importante que uma informação seja passada, a estratégia adequada é a redundância. Se
uma mensagem deve ser entregue, ela é enviada repetidamente e pelo máximo de meios ou
plataformas que o indivíduo tem à sua disposição. Do outro lado, como receptor de uma infor-
mação, se alguém recebe a mesma informação repetidas vezes, enviada por todos os meios
que se conhece, outra mensagem também chega implicitamente: a informação de que aquela
mensagem é muito, muito importante. A enorme frequência com a qual informações sobre os
sexos das pessoas são transmitidas emite implicitamente a mensagem de que esse assunto
é de enorme importância. Suspeito que esse seja o assunto sobre o qual recebemos informa-
ções de outras pessoas com maior frequência ao longo de nossas vidas. Se estou correta, isso
explicaria o porquê de nós terminarmos com uma quase irresistível impressão, desarticulada,
de que o sexo das outras pessoas é o assunto mais importante e mais fundamental do mundo.

Trocamos informações que identificam o sexo das pessoas, ao mesmo tempo que transmi-
timos a mensagem implícita de que isso é muito importante, em uma variedade de circunstân-
cias nas quais não existe, realmente, a necessidade concreta ou óbvia de obtê-las. Existem razões,
como essa discussão tem mostrado, pelas quais você poderia querer saber se a pessoa que está
enchendo seu copo ou tratando seus dentes é homem ou mulher, ou para essa pessoa querer
saber o que você é, mas essas razões são trançadas invisivelmente no tecido da estrutura social
e não têm a ver com a pura mecânica das coisas que são feitas. Ademais, a mesma cultura que
nos leva a essa constante troca de informações simultaneamente reforça uma regra geral
que demanda que as manifestações físicas mais simples e definitivas da diferença sexual sejam
escondidas de vista em todas as circunstâncias, exceto nas mais privadas e íntimas. A dupla
mensagem da distinção dos sexos e sua importância pre-eminente é comunicada, de fato,
em parte por dispositivos que sistemática e deliberadamente cobrem e escondem da vista as
poucas coisas físicas que distinguem (em boa medida) dois sexos de humanos. As mensagens
são esmagadoramente dissociadas dos fatos concretos a que supostamente dizem respeito e
das matrizes de razões e consequências concretas e sensoriais.

Tudo isso deve confundir irremediavelmente as mentes das crianças pequenas. Sabemos
nosso próprio sexo e aprendemos que essa é uma questão primordial tão cedo – é um menino ou
uma menina – que não nos lembramos de não saber. A consciência do sexo aparece muito antes
do que as diferenças físicas em nossos jovens corpos possam se tornar relevantes. Uma amiga
minha, cuja aparência e estilo têm um pouco dessa ambiguidade de gênero que mencionamos,
passou por uma mãe e uma criança e ouviu a criança perguntar à mãe: “ela é um homem ou
uma mulher?”. A luta para adivinhar alguma conexão entre o comportamento social e o sexo
físico e a alta prioridade disso tudo parece dolorosamente óbvia aqui.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 37
Sexismo

Se alguém é levado a pensar que algo é de suma importância, mas a experiência comum
não a conecta com coisas de importância óbvia, concreta e prática, então há um mistério e,
com isso, uma forte tendência para a construção de uma concepção mística ou metafísica de
sua importância. Se é importante, mas não de uma importância mundana, deve ser de uma
importância transcendental. Tanto mais se for muito importante8.

Essa questão de nossos sexos deve ser, de fato, muito profunda se deve, sob pena de
vergonha e ostracismo, ser coberta e enfaticamente anunciada por todos os meios e de todas
as maneiras que se pode conceber.

Há mais um ponto sobre a redundância que vale a pena ser levantado aqui. Se há uma
coisa mais eficiente para fazer com que se acredite em algo do que receber essa mensagem
repetidamente, é ensaiá-la repetitivamente. Anunciantes, pastores, professores, todos nós
em profissões de lavagem cerebral utilizamos desse fato aparentemente físico da psicologia
humana de forma rotineira. A redundância da marcação e do anúncio do sexo não serve apenas
para fazer o assunto ser transcendentalmente importante, mas para fazer a dualidade sexual
que propagandeiam parecer transcendental e inquestionavelmente verdadeira.

É um espetáculo, realmente, uma vez que se percebe esses humanos tão devotados a vestirem-se,
a agirem adequadamente e a “corrigirem” uns aos outros para que todos correspondam à teoria
de que existem dois sexos nitidamente distintos e que os dois nunca podem se sobrepor, se
confundir ou se misturar. Esses hominídeos, constantemente e com uma falta de vergonha
notável, marcam a diferença entre os sexos como se suas vidas dependessem disso. É incrível
que gayse lésbicas sejam ridicularizados e julgados por “interpretar papéis butch-femme9”
e por se montarem com “trajes butch-femme”, já que ninguém sai em público completamente
montado de butch ou de femme como os respeitáveis heterossexuais fazem quando se arrumam
para passeios noturnos, para ir à igreja ou ao escritório. Críticos heterossexuais à interpretação
de papéis desviantes da norma deveriam se olhar no espelho, quando saem para uma balada
noturna, para ver quem está montado. A resposta é: todos estamos. Talvez a principal diferença

8
Para algumas leitoras será útil notar a conexão, aqui, com a doutrina de implicações conversacionais de H. P. Grice.
Há uma “regra” conversacional de que quem fala deve “ser relevante”. Como audiência, supomos que a informação
que nos é dada é relevante, e, se não podemos ver sua relevância, geralmente supomos que ela se deve a algo
escondido, ou que não estamos percebendo algo que outros conseguem notar; ou inventamos a relevância recons-
truindo a informação como se fosse a respeito de algo diferente do que pareceu ser inicialmente. (Grice, “Logic
and conversation”, The logic of Grammar, editado por Donald Davidson e Gilbert Harman [Dickenson Publishing
Company, Inc., Encino, Califórnia e Belmont, Califórnia, 1975], p. 64-75).
9
N.T.: Os papéis “butch-femme” em português podem ser traduzidos como caminhoneira-barbie.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 38
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entre heterossexuais e queers seja que, quando queers saem montados, eles sabem que estão
engajados em uma performance – eles estão interpretando e sabem disso. Os heterossexuais
normalmente levam tudo isso muito a sério, pensam que estão no mundo real, pensam que
eles são o mundo real.

Claro, em determinado sentido, eles são o mundo real. Todo esse comportamento bizarro
tem uma função na construção do mundo real.

A marcação e o anúncio do sexo são igualmente compulsórios para homens e mulheres, mas
a igualdade só vai até aí nessa questão. O significado e a importância desses comportamentos
são profundamente diferentes para homens e para mulheres.

Imagine…
Uma colônia de humanos estabeleceu uma civilização há séculos em um planeta
distante. Ela evoluiu, como todas as civilizações evoluem. Sua língua é derivada
do inglês.
A língua tem pronomes pessoais que marcam a distinção entre crianças e adultos,
e os pronomes pessoais de adultos fazem distinção entre pelos pubianos lisos e
enrolados. Na puberdade, cada pessoa assume diferentes estilos de roupas e de
comportamentos, para que se possa saber que tipo de pelos pubianos ele ou ela
tem sem um escrutínio mais profundo, o que seria considerado indecente. Pessoas
com pelos pubianos lisos adotam um estilo mais modesto e discreto e roupas que
são frágeis e confinantes; pessoas com pelos pubianos enrolados adotam um estilo
mais expansivo e atraente e roupas que são mais robustas e confortáveis. Pessoas
cujos pelos pubianos não são nitidamente lisos ou enrolados alteram quimicamente
seus pelos para que sejam nitidamente um ou outro. Uma vez que aqueles que
possuem pelos enrolados têm maior status e vantagens econômicas, aqueles com
pelos ambíguos são orientados a alisá-los, pois a vida de uma pessoa cuja categoria
é questionável é mais fácil se ela for alguém de baixo status do que alguém de
status elevado.
É tabu comer ou beber no mesmo ambiente de pessoas com o mesmo tipo de pelos
pubianos. Heterocomensalismo compulsório, como é denominado pelos críticos
sociais, embora a maior parte das pessoas ache que é apenas desejo humano natural

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 39
Sexismo

querer comer com alguém de pelos pubianos opostos. Uma consequência lógica
desse hábito, ou tabu, é a limitação de fazer as refeições apenas solitariamente ou
em pares – um tabu contra banquetes ou, como a gíria diz, glutonismo grupal.

Quaisquer que sejam as características de um indivíduo do sexo masculino que pese para
sua desvantagem social ou econômica (idade, raça, classe, altura etc.), uma que jamais pesará
para sua desvantagem na sociedade em geral é sua masculinidade. No caso das mulheres,
a situação é a imagem espelhada disso. Qualquer característica que uma mulher possa ter que
pese para sua vantagem econômica e social (idade, raça etc.), aquela que sempre vai pesar para
sua desvantagem é a feminilidade. Dessa maneira, quando a categoria sexual masculina é o
que recebe a primeira e mais enfática atenção em um homem, o que está sendo enquadrado,
enfatizado e priorizado é uma característica que, em geral, é um recurso para ele. Quando uma
categoria sexual feminina é a que recebe a primeira e mais enfática atenção em uma mulher,
o que está sendo enquadrado, enfatizado e priorizado é, em geral, uma deficiência para ela.
Manifestações dessa divergência no significado e nas consequências do anúncio do sexo podem
ser muito concretas.

Andar pela rua à noite em uma cidade expõe a pessoa ao risco de assalto. Para homens,
o risco é menor, para mulheres o risco é maior. Se alguém anuncia a si mesmo como homem,
é presumido pelos assaltantes que ele tem mais chances de se defender ou de escapar do
assalto e, se o anúncio de masculinidade é forte e sem ambiguidade, ele não é um candidato a
sofrer violência sexual. Ambos, homem e mulher, “anunciam” seu sexo pela maneira de andar,
roupas, cabelo etc., mas eles não são igual ou identicamente afetados por anunciarem seu sexo.
O anúncio masculino pesa para a proteção ou segurança do homem, enquanto o feminino pesa
para a vitimização da mulher. Não poderia ser mais imediato ou concreto. O significado da
identificação sexual não poderia ser mais distinto.

Os repertórios comportamentais da marcação dos sexos são tais que quase todas as
pessoas, de ambos os sexos, ao se dirigirem ou responderem a homens (especialmente dentro
de sua prórpia cultura ou raça) se comportam de modo a sugerir respeito básico, enquanto ao
se dirigirem ou responderem a uma mulher, se comportam de maneira a sugerir a inferioridade
feminina (tons condescendentes, presunção de ignorância, excesso de intimidade, agressão
sexual etc.). Então, quando alguém se aproxima de uma pessoa ordinariamente bem-socializada
em tais culturas, sendo ele um homem, o próprio comportamento por meio do qual anuncia sua
masculinidade evoca uma resposta solidária e benéfica; e, sendo ela uma mulher, o comporta-
mento que usa para anunciar sua feminilidade evoca uma resposta degradante e prejudicial.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 40
Sexismo

Os detalhes dos comportamentos de anunciação de sexo também contribuem para a dimi-


nuição das mulheres e a elevação dos homens. O caso é mais óbvio na questão da vestimenta.
Como feministas vêm falando por mais ou menos duzentos anos, as roupas femininas são, em
geral, restritivas, apertadas, onerosas e frágeis; elas ameaçam se desfazer e/ou revelar algo
que deveria ficar coberto se você se abaixar, se esticar, chutar, socar ou correr. Costuma não
proteger efetivamente contra os perigos do ambiente, tampouco permite que a usuária se
proteja contra os perigos do ambiente humano. As vestimentas masculinas, geralmente, são o
oposto disso tudo – são resistentes, adequadamente protetoras e permitem a movimentação
e locomoção. Os detalhes dos comportamentos e da postura femininmos também servem para
conter e restringir. Ser feminina é ocupar pouco espaço, submeter-se aos outros, ser silen-
ciosa ou condescendente etc. Não é necessário aqui examinar todos esses comportamentos,
porque isso já foi feito várias vezes e em detalhes esclarecedores em escritos feministas. Meu
ponto aqui é que, embora homens e mulheres devam comportar-se de modo a anunciar seu
sexo, o comportamento que anuncia feminilidade é, em si, física e socialmente paralisante e
limitante, enquanto o comportamento que anuncia masculinidade não é.

As variações em nosso comportamento relacionadas ao sexo tendem a beneficiar sistema-


ticamente os homens em detrimento das mulheres. O homem, anunciando seu sexo por meio
de comportamentos e roupas, está, ao mesmo tempo, anunciando e exercendo sua participação
na casta dominante – dominante dentro de sua própria subcultura e, em larga medida, entre
subculturas. A mulher, anunciando seu sexo, está anunciando e exercendo sua participação
na casta subordinada. Ela é obrigada a informar aos outros constantemente e em todo tipo de
situação que deve ser tratada como alguém inferior, sem autoridade, violável. Ela não consegue
se mover ou falar dentro das normas culturais padrões sem ser engajada em sua autodepre-
ciação. O homem não consegue se mover ou falar sem se engajar em autoengrandecimento.
A constante identificação sexual define e, ao mesmo tempo, mantém a fronteira das castas
sem a qual não haveria a estrutura de dominação-subordinação.

As forças que nos fazem marcar e anunciar os sexos estão entre as forças que constituem a
opressão de mulheres e são centrais e essenciais para a manutenção desse sistema.

Opressão é um sistema de barreiras e forças inter-relacionadas que reduzem, imobilizam


e moldam pessoas que pertencem a um certo grupo e efetiva a subordinação deste a outro
grupo (individualmente, a membros do outro grupo e, como grupo, ao outro grupo). Esse
sistema não poderia existir se os grupos, as categorias de pessoas, não fossem bem definidas.
Logicamente, ele pressupõe que existem duas categorias diferentes. Na prática, elas não devem

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 41
Sexismo

apenas se distinguir, mas ser relativamente fáceis de serem identificadas; as barreiras e forças
não poderiam ser localizadas e aplicadas propriamente se houvesse, com frequência, dúvidas
em relação a quais indivíduos devem ser contidos e reduzidos e quais devem ser dominantes10.

É extremamente custoso subordinar um grande grupo de pessoas somente aplicando força


material, como é indicado pelo custo de prisões de segurança máxima e pela supressão militar
de movimentos nacionalistas. Para a subordinação ser permanente e economicamente viável,
é necessário criar condições tais que os grupos subordinados consintam, em determinado grau,
com a subordinação. Provavelmente uma das maneiras mais eficientes de assegurar o consen-
timento é convencer as pessoas de que sua subordinação é inevitável. Os mecanismos pelos
quais as categorias subordinada e dominante são definidas podem contribuir grandemente
com a crença popular na inevitabilidade da estrutura de dominação/subordinação.

Para uma subordinação eficiente, o que se busca é que a estrutura não pareça ser um
artefato cultural mantido por decisão e hábito humanos, mas sim natural – que pareça ser uma
consequência direta dos fatos bestiais que estão além do escopo da manipulação ou revisão
humanas. É preciso soar natural que indivíduos de uma categoria sejam dominados por indiví-
duos de outra e que, como grupos, um domine o outro11. Para fazer isso parecer natural, é útil
que todos os envolvidos percebam os membros dos dois grupos como muito diferentes uns
dos outros, e essa percepção será reforçada se for possível fazer crer que, dentro de cada grupo,
os membros são muito parecidos entre si. Em outras palavras, a aparência de naturalidade
da dominância de homens e da subordinação de mulheres é apoiada por qualquer coisa que
sustente a aparência de que homens são muito parecidos com outros homens e muito diferentes
de mulheres e que mulheres são muito parecidas com outras mulheres e muito diferentes de
homens. Todo comportamento que encoraje a impressão de que humanos são, biologicamente,
dimórficos sexuais encoraja o consentimento das mulheres (e, na medida em que necessita de
encorajamento, de homens) em sua própria subordinação.

O fato de sermos treinados para nos comportar de maneira tão diferentemente, como
mulheres e homens e em relação às mulheres e aos homens, contribui poderosamente para a
aparência de um dimorfismo natural extremo; mas também as maneiras pelas quais agimos
como mulheres e homens e em relação às mulheres e aos homens moldam nossos corpos e

10
Ver o capítulo “Opressão”.
11
Ver “Feminist Leaders Can’t Walk on Water”, por Lorraine Masterson, Quest: A Feminist Quarterly (Volume II,
Número 4, Spring, 1976), especialmente as páginas 35-36, onde a autora refere-se a Pedagogia do Oprimido, de Paulo
Freire, e fala sobre o caso especial da crença feminina de que nossa subordinação é inevitável porque está enraizada
na biologia.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 42
Sexismo

nossas mentes às formas de subordinação e dominação. Nós, de fato, nos tornamos aquilo que
praticamos ser.

Ao longo deste ensaio eu pareço evitar a pergunta em questão. Não deveria tentar provar que
existem poucas diferenças entre homens e mulheres e que elas são insignificantes, se é nisso
em que acredito, em vez de presumir isso? O que eu tenho feito é oferecer observações que
sugerem que, se alguém pensa que existem diferenças biológicas profundas entre mulheres
e homens que causem e justifiquem divisões de trabalho e de responsabilidade, como as que
vemos na família moderna patriarcal e no ambiente de trabalho dominantemente masculino,
não se chega a essa crença pela de observação direta ou de evidências físicas inadulteradas, mas
porque nossos costumes servem para construir essa aparência; e eu sugiro que esses costumes
são artefatos culturais que existem para apoiar um sistema de dominação e subordinação que
é moral e cientificamente injustificável12.

Mas também, no fim das contas, eu não quero alegar simplesmente que não existem dife-
renças significantes social e biologicamente entre humanos, fêmeas e machos. As coisas são
muito mais complexas do que isso.

Os processos de internalização da cultura e a socialização são, penso eu, mal compreen-


didos se alguém os entende como processos que aplicam camadas de verniz cultural sobre
um substrato biológico. É com essa imagem em mente que se pergunta se este ou aquele
aspecto do comportamento é devido à “natureza” ou à “socialização”. Quer-se dizer: ele emana
do substrato biológico ou vem de alguma das camadas do verniz? Uma variante nessa ideia
equivocada é a imagem segundo a qual a cultura ou socialização é algo mental ou psicológico,
em oposição a algo fisiológico ou biológico; então pode-se pensar em atitudes e hábitos de
percepção, por exemplo, como “aprendidos” contra “biologicamente determinados”. De novo,
pode-se perguntar coisas como se a agressividade masculina é aprendida ou biologicamente
determinada e, se afirmarmos a primeira opção, é possível pensar em mudá-las; mas se afir-
marmos a segunda alternativa, deve-se desistir de qualquer intenção de reforma.

Minha observação e experiência sugerem outra maneira de analisar isso. Vejo enorme
pressão social sobre todos nós para agirmos de maneira feminina ou masculina (e não ambos),

12
Conferir o prematuro e poderoso artigo de Naomi Weisstein, “Psychology Constructs the Female” em Women in
Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness, editado por Vivian Gornick e Barbara K. Moran (Basic Books, Inc.,
New York, 1971). Weisstein documenta evidentemente que nem leigos nem psicólogos são minimamente confiáveis
como observadores de traços relacionados ao sexo das pessoas e que teorias de diferenças sexuais baseadas em
“experiência clínica” e em estudos preliminares são cientificamente inválidos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 43
Sexismo

então estou inclinada a pensar que se rompermos os hábitos da cultura que gera essa pressão,
não agiríamos particularmente de maneira masculina ou feminina. O fato de existir ameaças
de punição por desvios desses padrões sugere fortemente que eles não estariam postos se
não fossem as ameaças. Isso leva, creio eu, a uma conclusão cética: não sabemos se os padrões
de comportamento humano seriam dimórficos de acordo com o sexo cromossômico se não
fôssemos ameaçados e intimidados; nem sabemos, na hipótese de assumirmos que eles seriam
dimórficos, quais seriam os comportamentos humanos correspondentes, isto é, que conste-
lações de traços e tendências seguiriam nessa linha genética. Essas perguntas são estranhas,
pois não há casos de humanos crescendo sem cultura, então não sabemos que outras variáveis
culturais possíveis atuariam em uma cultura na qual o treinamento familiar para a masculi-
nidade e a feminilidade não acontecesse.

Por outro lado, à medida que se transita no mundo e, em particular, à medida que se testam
estratégias destinadas a alterar o comportamento que constituem e sustentam a dominância
masculina, frequentemente tem-se experiências extremamente convincentes da rigidez das
pessoas a esse respeito, de uma resistência em mudar que parece ser muito, muito mais
profunda do que vontade ou intencionalidade diante dos argumentos e das evidências. Como
ativistas feministas, muitas de nós sentiram isso, em particular no caso de homens, e isso
às vezes faz parecer que a flexibilidade e a adaptabilidade relativas de mulheres e a relativa
rigidez de homens são tão disseminadas dentro de cada grupo respectivamente, e encontradas
com tanta frequência e convicção que devem ser dadas biologicamente. Observam-se, então,
homens e mulheres nas ruas, e seus corpos parecem tão diferentes – é difícil não pensar que
existem vastas e profundas diferenças entre mulheres e homens sem abrir mão da confiança
conquistada com dificuldade na própria capacidade perceptiva.

O primeiro remédio aqui é tirar os olhos de uma única cultura, classe e raça. Se os corpos
de mulheres asiáticas as distanciam tanto de homens asiáticos, veja como elas também são
diferentes de mulheres negras; se todos os homens brancos se parecem entre si e são tão
diferentes de mulheres brancas, isso ajuda observar que homens negros também não são tão
parecidos com homens brancos.

O segundo remédio é pensar sobre a experiência subjetiva que temos de nossos hábitos.
Se alguém tem o hábito de torcer uma mecha de cabelo sempre que está lendo e precisa
abandoná-lo, sabe o quão “incorporado” esse hábito está, mas isso não significa que seja um
comportamento geneticamente determinado. As pessoas que dirigem para o trabalho todos os
dias costumam fazer sempre o mesmo trajeto. Se um dia pretendem fazer um trajeto diferente,
a fim de realizar uma tarefa no caminho, elas podem chegar no trabalho, fazendo o trajeto
habitual, sem se lembrarem da decisão de realizar a tarefa. O hábito de fazer esse trajeto está

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 44
Sexismo

traçado no corpo da pessoa, não se trata de uma decisão – um evento mental – que se repete
diariamente após uma reavaliação diária da adequabilidade do percurso. Também não é
genético. Somos animais. Aprender é físico, corporal. Não há um “centro de controle” separado,
imaterial, onde a socialização, aquisição de cultura e formação de hábito ocorrem e onde, por
ser imaterial, a mudança independe dos corpos e é mais fácil do que seria se ocorresse neles.

A socialização molda nossos corpos; a entrada na cultura forma nosso esqueleto, nossa
musculatura, nosso sistema nervoso central. A partir do momento em que nos tornamos
adultos de um gênero ou de outro, masculinidade e feminilidade são “biológicas”. A masculi-
nidade e a feminilidade são características estruturais e materiais de como nossos corpos são.
Minha experiência sugere que elas são modificáveis da mesma forma que se pode esperar que
os corpos assim sejam – lentamente, por meio da prática constante e de regimes deliberados
desenhados para remapear e reconstruir nervos e tecidos. Foi assim que muitas de nós conse-
guimos mudar quando decidimos deixar de ser as “mulheres” conforme a definição cultural
de “mulheres” e nos tornarmos mulheres segundo nossa própria definição. Ambas, as fontes
de mudanças e as resistências a elas, são corporais – estão entre as possibilidades de nossas
naturezas animais, quaisquer que sejam elas.

Agora, “biológico” não significa “geneticamente determinado” ou “inevitável”. Apenas


significa “do animal”.

Não é por acaso que o feminismo tenha focado, com frequência, em nossos corpos. Estupro,
espancamento, autonomia reprodutiva, saúde, nutrição, autodefesa, esportes, independência
financeira (controle dos meios de subsistência e de abrigo). Também não é acidental que, com
graus variados de intenção consciente, feministas tenham tentado criar espaços separados onde
mulheres pudessem existir, de alguma maneira, protegidas dos ventos da cultura patriarcal e
pudessem se manter eretas pelo menos uma vez. É necessário que a pessoa tenha espaço para
praticar uma postura ereta; não basta apenas querer. Para reeducar um corpo, necessita-se de
liberdade física frente àquilo que são, em última análise, forças físicas que o deformam para
adquirir os contornos do corpo subordinado.

As estruturas culturais e econômicas que criam e reforçam padrões elaborados e rígidos


de comportamentos de marcação e anúncio do sexo, isto é, que criam o gênero como o conhe-
cemos, nos moldam como dominadores e subordinados (eu não disse “moldam nossas mentes”
ou “moldam nossas personalidades”). Eles constroem duas classes de animais, o masculino e
o feminino, onde outra constelação de forças poderia ter construído três ou cinco categorias,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 45
Sexismo

não necessariamente relacionadas hierarquicamente. Poderia ainda construir um espectro de


tipos tal que sequer poderíamos experimentá-los como “tipos”.

O termo sexista caracteriza estruturas culturais e econômicas que criam e reforçam padrões
elaborados e rígidos de marcação e anunciação do sexo que dividem a espécie, de acordo com
o sexo, entre dominadores e subordinados. Atos e práticas individuais são sexistas quando
reforçam e sustentam essas estruturas, quer como cultura ou como formas assumidas pelos
animais culturalmente condicionados. Resistência ao sexismo é aquela que mina essas
estruturas por meio de ações sociais e políticas e por projetos de reconstrução e revisão de
nós mesmos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 46
3 O problema que
não tem nome1

O
fenômeno que analiso aqui é algo a que eu comecei a me referir sob o signo de chauvi-
nismo masculino. Esse termo parece ter saído de moda nos círculos que frequento, mas
o fenômeno não. Outros nomes para ele são sexismo, supremacia masculina, misoginia.
Contudo, nenhum deles parece servir, e percebam que, assim como chauvinismo masculino,
eles foram cunhados recentemente, criados por mulheres que tentavam encontrar um nome
para aquilo que a língua nativa delas não nomeia. Ele demanda algum “ismo”, já que não é
apenas uma crença ou uma simples atitude, mas um complexo atitudinal-conceitual-cognitivo-
-orientador. Olhá-lo é olhar uma encruzilhada de visão de mundo: sente-se que, com tempo
e paciência suficientes, seria possível reconstruir toda a visão de mundo multidimensional
a partir do que se pode ver em um segmento. Eu criei as palavras falismo e falista para esse
complexo e para a criatura à qual ele pertence, mas a novidade e a estranheza do termo me
incomodam. Ele sugere que a criatura é nova ou estranha, enquanto, na verdade, ela é muito
comum e familiar. Eu quase poderia usar os termos homismo e homem para o complexo e para
a criatura. Isso até seria bom, desde que eu pudesse contar com a compreensão das pessoas
de que não se pode saber, apenas olhando, quem é homem e, ainda assim, que a maior parte
das pessoas que se parecem com homens são homens e que a maior parte das que não se
parecem não são.

Revisando este ensaio, decidi me ater aos meus termos falismo e falista, tendo em mente
que a estranheza deles não é uma indicação de que o fenômeno é estranho ou raro, mas um

1
Esta é uma versão resumida e revisada de um ensaio que apareceu sob o título Male-Chauvinism – A Conceptual
Analysis no Philosophy and Sex, editado por Robert Baker e Frederick Elliston (Prometheus Books, Buffalo, New York,
1975), p. 65-79. Ele aparece aqui com a permissão da editora.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 48
O problema que não tem nome

sinal de que o inglês não possui palavras para isso2. Mesmo que se tenha pensado sobre esse
tipo de coisa antes, não faria mal ponderar a questão de por que não há nome para uma coisa
tão comum e potente como essa.

Eu intitulei este ensaio de O problema que não tem nome em uma inversão deliberada do uso
que Betty Friedan faz dessa frase como título do capítulo introdutório de A mística Feminina3.
Esse livro localiza o problema nas mulheres. O problema, defende ela, é que mulheres estão
misteriosamente insatisfeitas com a domesticidade. Como ela focou apenas as mulheres de
determinada raça e classe, e como ela não tinha uma perspectiva global ou radical, não viu que
todas as mulheres, inclusive as que necessariamente têm muito mais com o que lidar do que
apenas a domesticidade, “querem algo mais”; e que esse querer (e querendo um bom tanto menos
de outras coisas também) não é um problema. Um livro sobre o problema teria que ser sobre
homens, e não sobre mulheres. Este ensaio é, de certo modo, um esforço na direção desse livro4.

Verão, 1982

▸I
Feministas sempre foram sensíveis à fusão dos conceitos de Homem e de macho. Pessoas
tendem (e são explicitamente ensinadas) a pensar em características distintivamente humanas
como distintivamente masculinas (a racionalidade, por exemplo) e a creditar produtos ou
conquistas distintivamente humanos (como cultura, tecnologia, língua e ciência) a homens,
isto é, a machos. Junto a isso, há uma tendência (especificamente humana?) de romantizar e de
engrandecer a espécie humana, bem como de extrair de sua própria representação idealizada
um senso pessoal de singularidade e de superioridade.

2
N.T.: em português, igualmente, inexistem os termos falismo e falista (no original, phallism e phallist). Phalism não
poderia ser traduzido por falicismo, que se trata do culto ao falo, uma vez que não se resume a uma crença, mas,
como a própria autora define, trata-se de um “complexo atitudinal-conceitual-cognitivo-orientador”. O termo fálico,
por sua vez, não seria uma tradução satisfatória de phallist, visto que possui natureza adjetiva e é definido como “1.
Do falo ou a ele relativo. 2. Semelhante ao falo” (FÁLICO. In: DICIONÁRIO Priberam da Língua Portuguesa. [On-line],
2022. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/f%C3%A1lico. Acesso em: 28 ago. 2022.), não podendo ser
utilizado para nomear a criatura à qual o falismo pertence.
3
Dell Publishing Company, New York, 1963.
4
Estou em grande débito com Carolyn Shafer, com quem discuti detalhada e produtivamente todas as partes deste
ensaio em todos os estágios de seu desenvolvimento; sua contribuição foi substancial. Também ganhei com a
discussão com uma plateia de filósofos, na Universidade do Estado de Michigan, e com uma plateia em um encontro
da Divisão Oriental da Sociedade de Mulheres na Filosofia, em abril de 1974, na Faculdade Wellesley.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 49
O problema que não tem nome

Identificar-se com a raça humana, com a espécie, parece envolver certa consciência dos
traços ou das propriedades que se tem apenas por ser humano. Nisso, geralmente focam-se
esses traços distintivos, que podem ser interpretados facilmente como marcadores da elevação
dessa espécie em relação ao restante do reino animal – traços como fala, razão e sensibilidade
moral. Sendo o animal superior, a coroação do processo evolutivo, sentimos ser moralmente
aceitável e até louvável tratar membros de outras espécies com desprezo, condescendência e
paternalismo. Supervisionamos sua segurança, decidimos o que é melhor para eles, cultivamo-
-los e treinamos para servir às nossas necessidades e para nos agradar, providenciamos que
eles sejam alimentados e abrigados como nós quisermos e acreditamos que devem procriar
e ter filhotes de acordo com a nossa conveniência. Com frequência, nossa preocupação com o
bem-estar deles é sincera e nosso afeto é genuíno.

Todo ser humano, apenas por ser humano, independentemente de virtude pessoal, habi-
lidade ou conquistas, é considerado, em tese, detentor desses direitos e, em alguns casos, de
deveres em relação a membros de outras espécies. Todos os seres humanos podem, supomos,
ser absolutamente confiantes de sua superioridade inquestionável sobre toda criatura de
qualquer outra espécie, não importa quão esperta, determinada, inteligente ou capaz de sobre-
viver autonomamente ela seja. Esse conjunto de suposições pode ser chamado, adequadamente,
de humanismo5.

Falismo é uma forma de humanismo. É uma presunção de superioridade, com direitos e


deveres implicados, que não é vista como carente de uma justificação devido a virtude pessoal
ou mérito individual, e justifica uma atitude desdenhosa ou paternalista em relação a deter-
minados outros. O falista, confundindo Homem e homem, relaciona-se com mulheres com
desdém e paternalismo humanista.

Será notado que mulheres não são as únicas criaturas humanas que não são, ou geral-
mente não são, tratadas com o respeito aparentemente devido a membros de uma espécie tão
elevada quanto a nossa. Isso é verdade. Uma pretensão de direitos e deveres completamente
análoga ao humanismo é aplicada, também, em relação a crianças, idosos, doentes, aqueles
rotulados como loucos ou criminosos e por membros de raças dominantes em relação a
membros de raças subordinadas. Acontece que, aos olhos de qualquer criatura humana em
particular, apenas alguns dos outros seres vivos que são humanos (em oposição a caninos
etc.) são tomados como participantes na superioridade de espécie; os outros são tomados
como algo menos, pois são “defeituosos”, ou “subdesenvolvidos”, ou membros de alguma outra

5
N.T.: no original, humanism. Contudo, uma tradução mais exata hoje poderia ser especismo, em inglês speciesism,
termo cunhado em 1971 e popularizado em 1975. Como a palavra em inglês já havia sido popularizada quando Politics
of Reality foi publicado, optou-se na tradução por uma palavra mais aproximada da escolha da autora.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 50
O problema que não tem nome

espécie não-completamente-humana. O ponto aqui é que falistas colocam fêmeas humanas (de
quaisquer raça, idade, forma física ou caráter moral) apenas nessa última categoria. As palavras
“defeituosa” e “subdesenvolvida” são, na verdade, usadas com uma seriedade mortal em descri-
ções da psicologia e da anatomia feminina difundidas por alguns daqueles que supostamente
têm competência profissional em tais coisas. Alguns homens dizem, e às vezes escrevem, que
mulheres são de uma espécie diferente da deles.

Dado esse grau de familiaridade com os falistas, pode-se ver por que mulheres reclamam
de não serem tratadas por eles como pessoas. Essas criaturas humanas que abordamos e
tratamos sem o menor traço de desprezo humanista são as que reconhecemos, sem restrições,
como humanos. O falista aborda fêmeas com uma superioridade e uma condescendência que
quase todas nós entendemos (com frequência, erroneamente) como sendo mais ou menos apro-
priadas para encontros com membros de outras espécies e com membros “defeituosos” ou não
completamente desenvolvidos da nossa própria espécie. Isso significa apenas que falistas não
tratam mulheres como pessoas.

▸ II
O falista não trata mulheres como pessoas. A questão óbvia é: ele se recusa a dispensar esse
tratamento estando plenamente consciente de que mulheres são pessoas? Estamos lidando
com simples malícia? Dados os benefícios e os privilégios conferidos aos que são tratados como
pessoas, existem muitas razões para pensar que egoísmo e ambição gerariam uma grande
quantidade de perversidade inteligente6. Dada a notável falta de autoconsciência ou de culpa,
contudo, parece que alguns falistas devem estar envolvidos em algo mais complexo e menos
direto que isso. O falista pode acomodar as coisas de tal maneira que, para começar, não percebe
as mulheres como pessoas e, portanto, não precisará justificar para si mesmo seu fracasso em
tratá-las como tal.

O contato com casos como os de pessoas que estão extremamente doentes revela que, na
prática, aplica-se a noção de pessoa de acordo com a presença de certo comportamento em
certas circunstâncias. A ocorrência desse comportamento nessas circunstâncias, presume-se,

6
Peguei a expressão “perversidade inteligente” [no original: intelligent wickedness] do título dado ao discurso de
William Lloyd Garrison que está incluído em Feminism: The Essential Historical Writings, editado por Miriam Schneir
(Vintage Books, New York, 1972). Nele, Garrison aponta que homens “manifestam sua culpa em uma demonstração,
na maneira como eles recebem esse movimento [feminismo]… eles, que são apenas ignorantes, jamais vão se
enfurecer e ameaçar e espumar quando a luz chegar…”. Só resta acreditar que existem também alguns que, bem
conscientes desse argumento, prudentemente irão abster-se de espumar em público.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 51
O problema que não tem nome

é indicativa da presença e de alguns níveis de habilidades e de preocupações julgadas como


características ou definidoras de pessoas. Quando não se acredita que o ser em questão tem
essas habilidades ou essas preocupações em quantidades ou níveis apropriados, a orientação
para com ele muda; em alguns casos, movendo-se para uma atitude de cuidado, em outros,
talvez, em direção ao abandono.

Dado esse quadro geral, pode-se facilmente ver que as possibilidades de falhar em atribuir
humanidade para pessoas são inúmeras: 1) observar a criatura que, de fato, “comporta-se
humanamente” e acabar simplesmente por não acreditar ou não saber que o comportamento
existiu (por exemplo, uma garçonete pode antecipar o anseio de alguém por café e trazê-lo,
à plena vista; e pode-se não saber que uma performance muito humana acabou de ocorrer); 2)
alguém pode observar certo comportamento e tomá-lo como manifestação de um grau mais
baixo ou de um alcance menor de habilidades e de preocupações do que de fato ele manifesta
(as performances de secretárias, por exemplo, são frequentemente submetidas a esse tipo de
mau julgamento); 3) alguém pode observar circunstâncias que são desfavoráveis à manifestação
das habilidades relevantes, julgar essas circunstâncias como ótimas e concluir, a partir do não
aparecimento de tais habilidades nessa circunstância “ótima”, que elas não estão presentes
(crianças negras em escolas brancas [e mulheres de qualquer raça em salas de aula em univer-
sidades] são rotineiramente submetidas a essa forma de tratamento). Eu não tenho dúvida de
que pessoas que evitam perceber mulheres como pessoas fazem todas essas coisas, isoladas
e em conjunto, mas há outro dispositivo mais perverso em ação. Não é uma questão de mera
representação equivocada dos dados apresentados, mas de manipular os dados e então tomá-los
como valor nominal.

As habilidades e as preocupações características de pessoas são manifestadas apenas em


determinadas condições favoráveis. Pode-se garantir que um indivíduo parecerá não ter essas
habilidades ao ser criada uma falsa aparência de que ele está numa circunstância favorável
à manifestação delas. O indivíduo não vai, de fato, estar inserido em uma situação adequada,
o que garante que as habilidades não se manifestarão, mas parecerá que ele estava em circuns-
tâncias favoráveis e o observador, razoavelmente, irá concluir que o indivíduo não possui as
habilidades em questão. Então, para encerrar, pode-se negligenciar o fato de que se manipulou
o dado, tomar a postura de um observador ingênuo e concluir que o indivíduo não possui
as habilidades. Pais e mães estão, com frequência, em posição de fazer esse tipo de truque.
Apresentando suas filhas a situações de aprendizagem inadequadas, que eles tomarão como
adequadas, convencem-se de que descobriram nelas a inabilidade para aprender tais coisas. Um
exemplo simples disso é a tentativa de um pai ensinar sua filha a atirar uma bola de beisebol.
Ele faz alguns breves e superficiais esforços, e logo declara fracasso – o fracasso dela –, sem ter

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 52
O problema que não tem nome

investido a perseverança e a ingenuidade que ele teria dispensado no treinamento de um filho.


Não são necessários muitos desses exercícios para reconhecer a convicção do pai de que a filha
é incapaz de ter a competência física para defender a integridade de alguém e, portanto, de que
ela é incapaz de ter o tipo de independência e autonomia que ele associa à vida adulta plena.

Mas nem mesmo isso exaure as manobras disponíveis ao falista. Uma variedade de traços
e habilidades que são críticos para uma criatura ser uma pessoa são aqueles que podem se
manifestar apenas em circunstâncias de interação interpessoal nas quais a outra pessoa
mantenha certo nível de comunicação e de cooperação. Não se pode, por exemplo, manifestar
certos tipos de inteligência em interações com pessoas que tenham convicção prévia de sua
estupidez; o trocadilho inteligente é ouvido como um uso desastrado de uma palavra ou como
um non sequitur. Não se pode manifestar sensibilidade ou discrição em interações com alguém
que é desconfiado e se recusa a compartilhar informações relevantes. É esse tipo de coisa que
abre a possibilidade para a mais elegante das estratégias do falista, uma que combina muito
bem simplicidade e efetividade. Ele pode deixar de ver as habilidades e as preocupações de uma
mulher simplesmente ao não cooperar e ao não se comunicar, e pode, ao mesmo tempo, fazer
isso sem saber que o faz. A facilidade com a qual se pode não ser cooperativo e comunicativo
enquanto crê estar sendo o oposto é aparente mesmo nas relações mais casuais, com problemas
interpessoais comuns. A manipulação das circunstâncias é fácil, a falsificação é fácil e os efeitos
são amplos e conclusivos.

O poder e a rigidez da recusa do falista a perceber mulheres como pessoas são expostos em
uma manobra perceptiva curiosa que ele performa quando é obrigado ou ludibriado a perceber
um ser específico como uma pessoa e que é, na verdade, uma mulher. Aqueles traços dela que
ele pensa serem distintivamente femininos e que, em outra situação, inevitavelmente atrairiam
sua atenção, agora podem passar virtualmente despercebidos, e ela passa a ser considerada
como “um irmão”. Confrontado com a aparência dissonante de uma mulher em uma situação
na qual ele é incapaz de bloquear o fato de que ela é uma pessoa, ele bloqueia o fato de que ela
é uma mulher.

A frustração de tentar funcionar como uma pessoa em interação com alguém que está
exercendo esse tipo de controle sobre outras e sobre a própria percepção – e que não reconhece
isso – é uma das fontes primárias da raiva feminista.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 53
O problema que não tem nome

▸ III
Foi pressuposto, na seção anterior, que é óbvio que mulheres são pessoas. Do contrário,
o fracasso em perceber mulheres como pessoas não demandaria toda essa enrolação. Algumas
mulheres, no entanto, claramente pensam que há algum sentido em afirmar que são pessoas,
e a vivência de algumas mulheres é tal que elas estão inclinadas a dizer que a humanidade
lhes é negada.

Para algumas, parece haver certa ingenuidade sobre a afirmação de que mulheres são
pessoas, o que deriva do fato de que quase todo mundo, mulheres e homens, parece concordar
que mulheres são pessoas. Mas em muitas instâncias isso constitui não mais do que uma
aceitação do fato de que mulheres são biologicamente humanas (não caninas etc.) e têm certas
capacidades linguísticas e necessidades emocionais. Ao se aceitar isso, o compromisso não é
mais do que a crença de que mulheres deveriam ser tratadas com humanidade, já que somos
intimadas a tratar os muito doentes, os idosos e membros de quaisquer raças que tomemos
como inferior à nossa própria na hierarquia social. Mas a pessoalidade7 da qual estou falando
aqui é a pessoalidade “plena”. Estou falando da participação incondicional na “superioridade”
radical da espécie, sem justificação por virtude ou conquista individual – filiação incondicional
a esse grupo de seres que podem abordar todas as outras criaturas com arrogância humanista.
Membros desse grupo devem ser tratados não humanamente, mas com respeito. É fato que
nem todo mundo, nem mesmo a maioria das pessoas concorda que mulheres fazem parte desse
grupo. Afirmar que fazem não é, nem de longe, algo tão universalmente óbvio a ponto de não
precisar ser dito.

A outra afirmação – a de que a pessoalidade plena é negada às mulheres – pode também


parecer estranha, mas tem um fundo de razão. Para alguns, o conceito de pessoa parece, de
algum modo, conceitos que são, às vezes, chamados “institucionais”, tais como os conceitos de
advogado ou de cavaleiro. Para alguns, parece que “pessoa” denota um papel social ou institu-
cional, e que é possível permitir ou proibir alguém de adotá-lo. Parece que nós (pessoas) temos
algum tipo de poder de admitir a criaturas a condição de pessoalidade. Eu não acho essa visão
plausível, mas ela certamente tem apelo para algumas pessoas, e isso deve ser muito atraente
para o falista, que gostaria do poder de criar pessoas. Ele poderia entender a própria recusa
a perceber as mulheres enquanto pessoas como um exercício desse poder. Alguns falistas
dão todos os sinais de que aceitam essa visão ou uma similar, e algumas mulheres parecem
ser afeitas a ela também; consequentemente, algumas mulheres são levadas a pedir que a

7
N.T.: no original, personhood, que é utilizado pela autora em oposição ao mero reconhecimento do fato de que
mulheres são biologicamente humanas.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 54
O problema que não tem nome

pessoalidade lhes seja conferida. É uma posição peculiar de ocupar, mas esses são os efeitos
quase inevitáveis da manipulação falista sobre aqueles que não estão prevenidos. Claro que
não se pode fazer uma pessoa deixar de ser algo apenas pelo ato de desejar isso. Ainda assim,
permanece – e não sem suporte – uma vaga impressão de que é justamente isso que os
falistas fazem.

Mesmo à parte dos conceitos institucionais, existe uma certa subjetividade coletiva no
emprego dos conceitos, como ocorre com o emprego de palavras. Todo conceito tem um ou
mais usos comuns em determinada comunidade – a “comunidade conceitual”, cujo uso fixa
sua aplicação correta. Ainda que se admita que várias limitações e qualificações deveriam ser
feitas aqui, pode-se dizer que, no geral, se todos de uma comunidade na qual o conceito Y é mais
frequentemente usado declararem que X é Y, então X é Y. Para conceitos empregados apenas
por especialistas ou, digamos, usados apenas dentro de certos bairros, a comunidade conceitual
relevante consiste nesses especialistas ou nos residentes desses bairros. Em geral, a comuni-
dade conceitual cujo uso do conceito fixa sua correta aplicação consiste simplesmente em todas
as pessoas que o usam. Para determinar sua correta aplicação do conceito, identificam-se as
pessoas que o usam e, então, descreve-se e caracteriza-se seu uso.

O conceito de pessoa é um caso especial aqui. Para descobrir a abrangência da aplicação do


conceito de pessoa, deve-se identificar a comunidade conceitual na qual esse conceito é usado.
A comunidade consiste, é claro, em todas as pessoas que usam o conceito. Para identificar
essa comunidade conceitual, deve-se decidir quais criaturas são pessoas. O desfecho é que o
falista que, enganando-se a si mesmo, ajusta a abrangência da aplicação do conceito de pessoa
também está manipulando as aparências a respeito da composição da comunidade conceitual.
Homens que vivem suas vidas sob a impressão de que apenas homens são pessoas (e sob a
crença de que essa impressão é compartilhada por outros) verão a si mesmos (as pessoas) como
se constituíssem por completo a comunidade conceitual; e, consequentemente, agem como se
seu acordo sobre a aplicação (evidente) do conceito de pessoa fixasse sua correta aplicação, da
mesma forma como todos nós agimos como se nosso acordo quanto à aplicação do conceito de
uma árvore fixasse sua correta aplicação. Nós não temos o poder de fazer uma árvore deixar
de ser uma árvore, mas a subjetividade coletiva que produz a exatidão conceitual pode nos
levar à impressão equivocada de que temos. Do mesmo modo, os falistas não poderiam, se eles
constituíssem a comunidade conceitual, ter o poder de fazer uma pessoa deixar de ser pessoa.
Mas é aqui, penso, que se encontra a origem mais profunda da impressão de que a pessoalidade
é negada às mulheres.

A negação autoenganosa de que mulheres são pessoas (completas) soma-se à tentativa de


usurpar o controle da comunidade sobre conceitos em geral, ao se negar o pertencimento das

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 55
O problema que não tem nome

mulheres à comunidade conceitual, ou, ainda, ao se recusar perceber que elas fazem parte da
comunidade conceitual. O efeito não é apenas a exclusão de mulheres dos direitos e deveres
das pessoas completas, mas um banimento conceitual que garante que suas objeções a essa
exclusão simplesmente não caibam no esquema conceitual resultante. Daí vem a incrível capa-
cidade dos falistas de não entender sobre que diabos as feministas estão falando. Sua autoen-
ganação está presa a essa estrutura conceitual não simplesmente do mesmo modo como seus
princípios analíticos e apriorísticos, mas nos determinantes subjacentes a toda sua estrutura
e conteúdo. A autoenganação fixa seu entendimento acerca da constituição da comunidade
conceitual, cuja existência torna a conceitualização possível e cujas percepções coletivas deter-
minam, em linhas gerais, seu progresso.

A rejeição de mulheres por falistas é tanto moral quanto conceitualmente profunda.


A recusa a perceber mulheres como pessoas é conceitualmente profunda porque exclui
mulheres daquela comunidade por cujas concepções as pessoas se permitem influenciar – serve
como um bloqueio policial numa mente fechada. Além disso, a recusa a tratar mulheres com o
respeito devido a pessoas é, em si, uma violação de um princípio moral que parece ser o princípio
fundador de toda moralidade. Essa violação do princípio moral é sustentada por uma ativa
manipulação das circunstâncias que é sistemática, habitual e não reconhecida. A exclusão de
mulheres da comunidade conceitual as exclui, ao mesmo tempo, da comunidade moral. Então,
a manipulação aqui é projetada não apenas para driblar aplicações específicas dos princípios
morais, mas para limitar a própria comunidade moral, e é, portanto, particularmente traiçoeira.
É o tipo de coisa que permeia a esquizofrenia moral do monstro racista que é gentil, honesto
e temeroso a Deus, do autoproclamado além-homem e de outros desviantes morais. O falista
está confinado com a pior companhia moral em um armário conceitual autoprojetado – e ele
tem sofrido muito para garantir que sua fuga não seja incitada por nenhuma mulher.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 56
4 Dentro e fora
do perigo:
arrogância
e amor1

▸ Introdução
A maior parte deste ensaio destina-se a construir uma descrição de alguns mecanismos da
exploração e da escravização de mulheres por homens na cultura falocrática. Entender isso
é, obviamente, importante. De modo geral, para teorias e estratégias feministas: é essencial,
conhecer o inimigo. Contudo, existe uma necessidade mais específica de teóricas e ativistas
feministas a qual esta análise também atende em outro nível. É a necessidade de localizar um
ponto de partida para uma visão feminista radical.

A descrição dos mecanismos de exploração e de escravização produz um retrato vívido do


dano infligido às vítimas desses mecanismos. Ver tais coisas como prejudiciais é fundamental
para a minha crença de que a submissão de mulheres a tais maquinações é um mal. É aí que
uma política feminista pode surgir, mas não pode terminar. Quando vemos os efeitos dessas
maquinações como dano, implicitamente evocamos um contraste entre as vítimas e o animal
humano fêmea ileso (ileso, pelo menos, por esses processos em particular). Embora esse animal
seja desconhecido na experiência humana contemporânea, estamos comprometidas com, pelo
menos, uma abstração conceitual dele. É necessário mais do que uma abstração conceitual, se
não formos nos limitar a condenar, mas também a resistir efetivamente ou escapar. Para isso,
precisamos de uma visão revolucionária que, por sua vez, exige que tenhamos imagens ricas
de tal animal.

1
Ao trabalhar com a matéria deste ensaio, me beneficiei das discussões com C. Schaffer de muitas maneiras e em
um nível que não podem ser refletidos em notas específicas em pontos particulares do texto.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 58
Dentro e fora do perigo

Projeções feministas de mulheres ilesas à exploração e à escravização por homens, como


outras imagens revolucionárias, têm sido, frequentemente, mal nutridas com sentimentalismo
e desprezo. Nós nos elevamos diante de evidências de conquistas de mulheres e dos sonhos da
perfeição da Amazona e afundamos diante de evidências da nossa mediocridade e no pântano
da nossa própria misoginia internalizada. Se é importante imaginar mulheres intocadas pelas
maquinações falocráticas, então devemos nos encarregar de descobrir tudo o que pudermos
sobre o que pode alimentar essas projeções.

As análises no corpo deste ensaio nos contam um pouco do que precisamos saber. Elas
sugerem correções gerais para visões empobrecidas. Elas aprimoram nossa compreensão sobre
o dano praticado contra mulheres pelos processos de subordinação e de escravização e, por isso,
facilitam nosso entendimento sobre a criatura que é prejudicada. O dano está naquilo que esses
processos fazem às mulheres, as análises tornam evidente o que esses processos produzem
como resultado. Entendendo algo sobre os estágios e objetivos desses processos podemos ver
quais formas e qualidades eles impõem. Isso, por sua vez, sugere algo sobre a natureza do ser
que é sujeitado a tais processos: pode-se argumentar que esse ser não teria tido essas formas
e qualidades, se deixado imaculado. Esse tipo de pensamento em retrospecto sobre o processo
falocrático providencia pistas valiosas para a visão feminista.

▸ Coação
Coagir é induzir ou forçar alguém a fazer algo. Isso parece bastante evidente, mas alguns
usos desse conceito não o são, o que pode confundir alguém. A Lei em alguns estados, e a
opinião geral na maioria dos lugares, diria, por exemplo, que um ato não é estupro a menos
que o engajamento da mulher no ato sexual tenha sido coagido – e não se considerará o ato
como sendo coação a menos que a “suposta vítima” do “suposto crime” tenha sido, literalmente,
derrotada fisicamente, a ponto de o estuprador (ou estupradores), literalmente, controlar fisi-
camente os movimentos dos membros da vítima, bem como a localização e a posição de seu
corpo. Em qualquer outro caso, ela é vista como alguém que optou por fazer sexo em detri-
mento de outras alternativas e, portanto, não foi coagida. O curioso sobre essa interpretação
de coação é que tem a consequência de apagar a possibilidade de alguém ser coagido a fazer
algo. Se os movimentos dos membros, a localização e a posição do corpo não estão sob controle
do indivíduo, não se pode dizer que ele fez qualquer coisa, com exceção, talvez, de flexionar
algum músculo na tentativa de resistir à força. Partindo desta linha de raciocínio, poder-se-ia
argumentar que, se qualquer coisa foi feita (além de flexionar os músculos), é possível concluir

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 59
Dentro e fora do perigo

que esta pessoa não estava sob coação; e que, se “livre” significa não coagido, todas as ações e
escolhas seriam livres.

Sartre tomou essa rota econômica para liberdade e acolheu essa conclusão absurda como
se fosse profunda:

Se eu sou mobilizado em uma guerra, essa guerra é minha guerra; ela está na minha
imagem e eu mereço isso. Eu a mereço, primeiramente, porque eu sempre poderia
escapar pelo suicídio ou pela deserção (…) Pela abstenção em sair dela, eu a escolhi. Isso
pode ser devido à inércia, covardia diante da opinião pública, ou porque prefiro alguns
outros valores ao valor da recusa em me unir à guerra (…) De qualquer ângulo que você
olhar, será uma questão de escolha (…) Portanto devemos concordar com a afirmação de
J. Romains “Na guerra, não há vítimas inocentes”. Assim sendo, se eu preferi guerra à
morte ou à desonra, tudo ocorre como se eu carregasse a responsabilidade integral por
essa guerra. (…) Não há coação aqui.2

Não deveria ser surpreendente que a mesma mente pequena, acolhendo uma consistência
tola, não reconheça o estupro quando o vê e empregue a teoria mágica da “má fé” para servir
como prova. (Diante de uma mulher negando objetivamente que experimentava prazer no
coito com seu marido, a observação do psiquiatra dela de que ela odeia a experiência e o relato
da mulher de que ela deliberadamente desvia a atenção do ato e das sensações, Sartre insiste
que o que ela odeia é o “prazer”, que é dele que ela tenta se distrair e que a mulher engana a si
mesma)3. A mulher “frígida” escolhe, afinal de contas, a relação sexual ao invés de suicídio;
isso é o suficiente para convencer Sartre de que ela não pode ser uma vítima e que não pode
haver coação neste caso.

É através desse tipo de raciocínio que nós somos convencidas de que as escolhas de
mulheres em entrar e permanecer nas instituições da heterossexualidade, do casamento e da
maternidade são escolhas livres, que prostituição é uma vida escolhida livremente e que todos
os escravizados que não se levantaram e mataram seus senhores ou a si mesmos escolheram
livremente a escravidão.

Mas escolha e ação, obviamente, podem ocorrer sob coação. O paradigma da coação não
é o de aplicação direta e excessiva de força para mover ou dispor o corpo e os membros de
alguém. A situação de coação deve ser aquela em que há escolha e ação, quando o corpo e os

2
BARNES, H. E. (trad.). Being and Nothingness. Nova Iorque: Philosophical Library, 1956. p. 553
3
Ibid., p. 54

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 60
Dentro e fora do perigo

membros da vítima são movidos por sua própria força e seus movimentos são determinados
pela percepção e julgamento da própria vítima. Portanto, no caso padrão, a força envolvida
na coação é aplicada à distância, e o desejo do agente coagido deve, de alguma maneira, estar
envolvido na determinação dos movimentos corporais.

A estratégia geral envolvida em toda coação é exemplificada por um simples caso de assalto
a mão armada. Você aponta uma arma para alguém e exige que ela entregue seu dinheiro. Um
momento antes disso ela não tinha nenhum desejo de livrar-se do próprio dinheiro, nenhum
interesse em transferi-lo de sua posse para o de outra pessoa; mas a situação mudou e, agora,
entre todas as opções diante dela, entregar o dinheiro parece relativamente atraente. Sob sua
própria determinação, movendo seus próprios membros, ela remove seu dinheiro do bolso e o
entrega a você. A situação dela não mudou simplesmente, é claro. Você a mudou.

O que você fez (e eu acho que essa é a essência da coação) foi arranjar os eventos de modo
que, das opções disponíveis, a menos indesejável ou a mais atraente fosse aquela que você
queria que a vítima performasse. Dadas essas opções e o discernimento e as prioridades da
vítima, ela escolhe e age. Ninguém controla seus membros ou faz a deliberação por ela. Os
elementos de coação não repousam sobre sua pessoa, mente ou corpo, mas na manipulação
das circunstâncias e na manipulação das opções4.

O ladrão de faz-de-conta esperto notará que, naquela situação, não importa se a arma está
carregada ou não, se ele atiraria mesmo ou não. Só é necessário que seja crível para a vítima
que a arma está carregada e que a pessoa vai atirar; e morrer deve ser percebido pela vítima,
naquele momento, como mais indesejável do que entregar o dinheiro. Se ela pensar que o
ladrão não vai atirar ou se estiver sentindo-se especialmente suicida, isso não vai funcionar.
Se funcionar, ela foi coagida.

A estrutura da coação, então, é esta: para coagir alguém a fazer algo, deve-se manipular a
situação para que o mundo, na percepção da vítima, apresente uma variedade de opções entre
as quais a menos repulsiva (ou a mais atraente), no julgamento da vítima, seja a de agir como
se quer que ela aja. Dada a centralidade da percepção e do julgamento da vítima, o agente da
coação pode manipular o ambiente físico, mas, normalmente, procederia, ao menos em parte,
manipulando a percepção e o julgamento da vítima por meio de várias formas de influência e
enganação.

4
O que a pessoa que coage faz é deliberadamente criar o tipo exato de situação sobre a qual Aristóteles se debruça
em “Ética a Nicômaco”, III.1, na qual “a iniciativa em mover partes do corpo que agem como instrumentos recai
sobre o próprio agente”, mas ele faz algo que “ninguém escolheria fazer… para o próprio bem” (Ética a Nicômaco,
[traduzido livremente a partir da] tradução de Martin Ostwald. Obrigada a Claudia Card por me lembrar dessa
passagem).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 61
Dentro e fora do perigo

Presumo que humanos livres e saudáveis fariam mais daquilo que fosse coerente e que
contribuísse para a satisfação dos interesses uns dos outros e para a melhoria da capacidade de
perseguir esses interesses. Contudo, por várias razões e causas muitas pessoas querem mais e
diferentes contribuições e sob condições diferentes daquelas que são consistentes com a saúde
e a vontade daqueles de quem querem tais contribuições. Não importa quão amorosos, bene-
volentes e naturalmente cooperativos estes últimos possam ser. Por conseguinte, há coação.
No caso de um assalto, o agente da coação aproxima-se com relativamente poucos objetivos.
A estrutura imposta não precisa ser duradoura nem adaptável, nem a arma nem a mentira
precisam passar por muito escrutínio. Mas, se você desejar que a outra pessoa te proporcione
algo com frequência ou regularidade, sua operação deve ser mais complexa. Pessoas não
gostam de ser coagidas e criar uma situação que seja duradoura e adaptavelmente coercitiva
requer fazer algo mais que o ladrão a respeito da resistência e das tentativas de escapar do
dilema imposto. Desse modo, a coação é estendida, ramificada e multinivelada como sistemas
de opressão e exploração.

▸ Exploração e Opressão
Imagine alguém derrubando uma árvore com um machado. O machado é uma ferramenta;
a árvore, um recurso. O machado, quando usado adequadamente, durará por muitos anos.
A árvore, propriamente derrubada, deixa de existir; uma tora passa a existir. Uma ferramenta
é, por natureza ou feitio, constituída e perfilada de tal maneira que serve ao interesse do
usuário de causar determinado efeito, de modo que seu uso não exige sua alteração. O caso
não é o mesmo com recursos ou materiais; seu uso ou sua exploração, tipicamente, os trans-
forma. Árvores se transformam em madeira, que se transforma em polpa, que se transforma
em papel. Em cada estágio, as relações das partes, a composição e a condição da coisa usada
são significativamente alteradas no uso ou por ele. As partes e as propriedades da coisa não
foram inicialmente organizadas em referência a certo propósito ou telos, elas são alteradas e
rearranjadas para que sejam organizadas em referência àquele telos. Uma manipulação trans-
formadora é característica desse tipo de uso, da exploração de recursos ou materiais.

A exploração de seres animados ocorre de forma análoga. No caso de animais não humanos,
suas formas, as relações de suas partes, suas constituições e condições, e o modo como elas
mudam ou se movem na ausência da intervenção humana, geralmente, servem a eles mesmos
e se adequam pouco, e de maneiras não relacionadas, aos interesses humanos. Para extrair
mais uso de tais animais, geralmente, deve-se realizar alguma manipulação e alteração. Talvez
a mais simples delas seja matá-los – o análogo direto de derrubar a árvore. Para conseguir

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 62
Dentro e fora do perigo

que animais não humanos (animais de tração, por exemplo) trabalhem para eles, os humanos
criam determinadas espécies com configurações, temperamentos e capacidade de responder
ao treinamento e treinam animais dessas espécies desde a tenra idade para tolerar diversas
limitações, arreios e cargas variadas. Essas são práticas que moldam o desenvolvimento do
sistema nervoso dos jovens animais, suprimindo certas tendências a se contrair, se esconder,
dar coice, pisotear ou fugir. Pessoas usam condicionamento estímulo-resposta para habituar
os animais a responder de determinada maneira às ações e sons humanos. Por fim, os movi-
mentos dos animais são significativamente moldados e restringidos por arreios, chaves, eixos
e outras muitas parafernálias que os conectam a vários instrumentos e máquinas que seus
movimentos devem guiar, empurrar ou puxar. No fim, como uma natureza “secundária”,
adquirida por processos de docilização e de treinamento e pelas restrições físicas impostas,
essa criatura pode fazer muito pouco que não sirva a algum propósito humano5.

Algum análogo dessa “docilização” deve ser desenvolvido se uma pessoa for explorar outra
pessoa ou grupo de pessoas. Eu caracterizei opressão como uma cadeia sistemática de forças
e barreiras que tendem à redução, imobilização e modelagem do oprimido6. Em algum outro
lugar, eu enfatizei os aspectos da redução e da imobilização. Olhar a opressão em sua relação
com a exploração traz outro aspecto ao foco: a modelagem, a moldagem. Se você pretende
amarrar alguém à sua carroça, essa pessoa deverá ser remodelada. Como qualquer animal,
não é da natureza da pessoa estar preparada para atender aos interesses de outrem que não os
próprios. Mas, diferentemente dos animais não humanos, o humano é igual ao explorador em
inteligência, em termos de habilidades físicas e é capaz de respeitar-se, de saber-se portador
de direitos e de nutrir ressentimento. O explorador humano não consegue sobrepujar a vítima
humana tão facilmente.

Exploração e opressão estão em tensão uma com a outra, como se poderia esperar de coisas
que são harmônicas. Exploração eficiente requer que o explorado seja relativamente móvel,
capaz de movimentar-se e de manter-se na medida em que o trabalho em questão demande
maior inteligência, atenção ou ingenuidade. Mas isso também requer que eles não sejam livres,
fortes e determinados o suficiente para resistirem, escaparem ou não se ajustarem signifi-
cantemente à situação de exploração. Embora estruturas opressivas sirvam à exploração, as
meras alterações na limitação e no confinamento são ineficientes. Um sistema que repousa
fortemente na restrição física pressupõe e gera resistência e tentativas de fuga. Essas, por sua

5
Estou em débito com Carolyn Shafer tanto pela informação sobre a procriação e treinamento de animais domés-
ticos quanto pelas interpretações políticas disso. Veja também Woman and Nature: The Roaring Inside Her, escrito
por Susan Griffin (Nova Iorque: Harper and Row, 1978).
6
Veja o primeiro e o segundo ensaio desta coleção.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 63
Dentro e fora do perigo

vez, exacerbam a necessidade de limitação e de contenção. Esse ciclo leva a uma situação na
qual o explorado está sujeito à máxima limitação e ao máximo dano, incluindo a passividade
de um espírito quebrado.

Para alguns exploradores, a combinação do trabalho que querem feito e o ambiente de poder
no qual eles operam acomoda as ineficiências geradas pelos efeitos danosos e aniquiladores da
opressão; eles podem ter um abastecimento sem fim de humanos para converter em trabalha-
dores, e o trabalho tal que pode ser feito por alguém acorrentado e/ou totalmente abatido. Mas,
em muitos casos, a relativa escassez de trabalhadores, ou o custo de treiná-los, a necessidade
de empregar trabalhadores com talentos e inteligência e, às vezes (muito perversamente),
o apego pessoal ao explorado, tornam essa ineficiência insatisfatória. A exploração eficiente de
“recursos humanos” requer que as estruturas que orientam a ação do outro às finalidades do
explorador estendam-se ao íntimo da vítima. O explorador precisa provocar a desintegração
parcial e a reintegração modificada da matéria, das partes e das propriedades do outro para
que, como sistemas organizados, os explorados sejam orientados, em algum nível, por hábitos,
talentos, compromissos, valores e gostos para a finalidade do explorador, em oposição aos
próprios interesses como eles fariam em outra situação. Particularmente, as manipulações
que adaptam o explorado a um nicho, em uma organização alheia, precisam ser tais que haja
uma grande redução da intolerância da vítima à coação.

As melhores soluções para o problema são aquelas que o dissolvem. O que o explorador
precisa é que a vontade e a inteligência da vítima estejam desengajadas de projetos de resis-
tência e de fuga, mas que elas não estejam quebradas ou destruídas. Idealmente, a desinte-
gração e a reintegração modificada da vítima devem estabelecer um distanciamento da vontade
e da inteligência da vítima com relação aos seus interesses próprios, aproximando-as dos
interesses do explorador. Isso gerará um deslocamento ou uma dissolução do respeito próprio
e irá reduzir a intolerância da vítima à coação. Com isso, a situação transcende a forma ou
estrutura paradigmática inicial da coação; já que, se as pessoas não se importam em fazer o
que você quer que elas façam, então, de certa forma, você não estaria, de verdade, obrigando-as
a fazê-lo. No limite, a vontade e a inteligência da vítima são integralmente transferidas para um
engajamento total na busca dos interesses do dominador. O “problema” era a existência de duas
partes com interesses divergentes; esse tipo de solução (que é muito elegante, no sentido que
essa palavra é usada na lógica) apaga o conflito ao reduzir o número de partes com interesses
a uma7. Essa solução radical pode ser adequadamente chamada de “escravização”.

7
A discussão em tela parece apresentar uma imagem de exploradores que exagera sua inumanidade. Recomendo
que se leia ou se releia textos como O Príncipe, de Maquiavel, 1984, de Orwell, e The Report From Iron Mountain on
the Possibility and Desirability of Peace (DELL, 1967), para recuperar um senso adequado de proporção.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 64
Dentro e fora do perigo

▸ Escravização
Os mecanismos de escravização, nos casos deliberados e conduzidos de forma consciente,
têm sido estudados e documentados, não só, mas também, na colonização europeia do conti-
nente africano e na escravização de negros e indígenas no “Novo Mundo”. Kathleen Barry os
documentou, em seu livro Female Sexual Slavery8, aquilo que tem sido chamado de “escravidão
branca” – a escravização de mulheres e meninas, para servirem como prostitutas, esposas,
concubinas e na produção de pornografia. Gostaria de me prolongar neste último trabalho,
aqui, porque esta é a categoria de escravização que é específica ao sistema de opressão que
subordina mulheres aos homens.

Muitas feministas acharam esclarecedor comparar as situações de mulheres em geral


à escravização; ou têm visto a situação de mulheres como uma forma de escravização. Para
estadunidenses, o uso do conceito de escravidão está reservado para se referir à experiência e
às instituições da escravização de negros por brancos nos Estados Unidos. Por vários motivos,
a comparação entre mulheres em geral e negros escravizados, antes da Guerra Civil, pode
gerar enganos e é politicamente suspeita9. Contudo, a escravização literal de mulheres para
o trabalho sexual (com frequência, ambos: trabalho doméstico e sexual) é uma instituição
venerada, vigorosa, corrente e universal das culturas dominadas por homens que, rotineira-
mente, vitimizam meninas e mulheres de todas as raças, classes e etnias ao redor do mundo
inteiro. É essa instituição à qual nos referimos, quando exploramos as maneiras nas quais a
situação de mulheres é análoga à escravidão ou é uma forma de escravidão.

De acordo com Barry, a estratégia para converter uma menina em desenvolvimento ou uma
mulher independente e competente em uma prostituta servil ou em uma concubina passiva
tem três estágios: abdução, cura e criminalização.

Sob o título de abdução, vem o sequestro e a sedução, ou qualquer outro ato por meio do qual
o abdutor possa levar a menina ou a mulher de um espaço familiar para ela até um local que lhe
é totalmente estranho, onde ela não tem aliados ou conhecimento dos recursos que estariam
potencialmente disponíveis. Costumeiramente, ele a droga. Quando ela toma consciência de
seu destino, ela fica temporariamente desorientada e ignorante acerca do local onde está (qual
cidade, qual andar do prédio etc.). A vítima tem muito pouca informação sobre seus arredores;

8
Nova Jérsei: Prentice-Hall, 1979.
9
Comparar com:
HOOKS, B. Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism. Boston: South End Press, 1981. p. 143.
HOOKS, B. “Racism and Feminism”. In: Ain’t I a Woman: Black Women and Feminism. Boston: South End Press, 1981.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 65
Dentro e fora do perigo

o raciocínio está embotado para assimilar as informações que ela consegue; e não há nenhum
“outro” confiável para criticar ou validar suas percepções ou julgamentos. Em outras palavras,
o abdutor retirou dela os poderes e recursos mais ordinários, que até mesmo as pessoas mais
fragilizadas socialmente costumam manter10. Ela está com medo e inclinada a fugir, mas ele
impôs uma condição a ela na qual ela não pode fazer quase nada por si mesma.

O estágio seguinte é a cura.

Enquanto ele a mantém em cativeiro e isolamento, ele brutaliza a vítima de todas as


maneiras possíveis de se brutalizar alguém. Estupro. Agressões. Degradação física e verbal.
Privação. Desconforto intenso e duradouro. Ameaças críveis de morte.

A brutalidade do abdutor funciona de várias maneiras. Ao colocar a vítima em uma situação


de risco de morte e completamente aversiva, ele maximiza a urgência da vítima em agir em
defesa própria, ao mesmo tempo em que impossibilita isso completamente. Essa situação coloca
força máxima nos processos de alienar a mulher dela mesma, por meio do desamparo total.
O resultado é a perda radical de autoestima, de respeito próprio e de qualquer senso de capaci-
dade ou agência11. A brutalidade também estabelece intimidade, tanto por ser invasiva, quanto
pela intensidade do contato direto. Em certo ponto, o abdutor troca sua inabalável brutalidade
por uma brutalidade intermitente e variada. Isso cria ocasiões para surgirem sentimentos
positivos, por parte da vítima. Ela está, agora, em um mundo de proporções morais distor-
cidas; no qual, não apanhar, não estar sob a ameaça de morte iminente, ser autorizada a urinar
quando precisa etc, tornam-se motivos para ela ser grata. Gratidão é um sentimento positivo
e que cria vínculos. A intimidade é intensificada. De agora em diante, qualquer momento em
que o homem não a estiver torturando, é um momento em que ela se sente relativamente bem
tratada. O processo de reconstrução dos elementos de uma pessoa na forma de uma escrava
iniciou-se.

A mudança para o abuso menos constante é, também, uma forma perversa de empodera-
mento da vítima. Depois de ter estado em uma situação na qual sua presença como agente foi
reduzida a nada, ela, agora, tem a oportunidade de tentar agir para sua sobrevivência física.
Ela pode tentar descobrir aquilo que agrada e que desagrada o homem, e tentar agradá-lo e
evitar desagradá-lo, evitando ou adiando, dessa maneira, agressões e degradações – ou mesmo

10
Exceto, em muitos casos, aquelas em “instituições psiquiátricas” ou prisões.
11
É interessante notar que em Story of O, um clássico da pornografia sadomasoquista, O é proibida, nesse ponto de
seu “treinamento” e para sempre, de tocar seus próprios genitais ou seios, o que ela tendia a fazer para confortar a
si mesma. Ela é instruída a crer que eles pertencem aos homens. (Story of O, por Pauline Reage [Nova Iorque, Grove
Press, 1965]).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 66
Dentro e fora do perigo

a morte. Ela já foi aniquilada como agente; quando a agência é retomada, ela é mantida à parte
dos interesses próprios da vítima e da autopreservação. Ela pode agir indiretamente e negativa-
mente no interesse de sua própria sobrevivência física e ausência de dor, ao tentar comportar-se
de maneiras que irão adiar ou evitar os abusos masculinos; mas qualquer presença direta de
si mesma por si mesma, qualquer comportamento de autopreservação ou autoindulgência
declarado, irá desagradar o homem e, portanto, será contraproducente.

Se ele for minimamente bom nisso, o homem fará questão de ser arbitrário e caprichoso em
seus prazeres e desprazeres e de ser muito bruto quando estiver agindo com brutalidade. Isso
fará com que a tarefa da vítima de antecipar seus desejos seja extremamente difícil e manterá
os riscos altos. Tudo isso a aproxima dele: a atenção dela estará constante e exclusivamente
voltada para ele; todos os recursos de inteligência, vontade e sensibilidade dela estarão intensa-
mente engajados e focados nele. Ela, provavelmente, se tornará “grudenta” e “possessiva” – não
querendo perdê-lo de vista. Toda a vontade e os recursos que ela usaria para sobreviver estão
canalizados para servir aos interesses dele.

O estágio final, a criminalização, é necessário a fim de o abdutor poder retornar a mulher,


e seu relacionamento com ela, para uma esfera mais pública, na qual ele poderá se utilizar
desse relacionamento recém-forjado para benefício econômico próprio. Ele força a mulher
ou a menina a engajar-se em alguma atividade criminosa ou a ser cúmplice – furto, tráfico
de drogas, assassinato, prostituição, sequestro. Desta forma, ela se torna criminosa, parte do
submundo, e sabe disso. Agora, ela não pode retornar para a família, para os amigos ou procurar
a polícia. Como mulher e criminosa, ela não tem para onde escapar e tem muito contra o que
se proteger. O proxeneta e seus associados tornam-se os protetores dela contra a violência e o
escárnio da sociedade. Ela, agora, depende dele para proteção de destinos piores do que ele: ele,
que é familiar, em cujo domínio ela provavelmente consegue sobreviver ao ser e fazer tudo o
que ele desejar, e em cujo mundo ela poderá encontrar a única aceitação, viabilidade econômica,
interação social e vida emocional disponíveis para ela.

Ela, agora, é dele.

Vamos revisar a metafísica desse processo. Brutalidade e desamparo radical criam uma
fissura: a inteligência animal não tem veículo; o corpo animal avalia mal e é indevidamente
grato. O corpo inteligente deixa de existir: inteligência e corporeidade são divididas, incapazes
de amparar ou defender uma à outra, ou a si mesmas. Mente e corpo, então separados, são,
depois, reconectados; mas apenas indiretamente: suas interações e comunicações são agora
mediadas pela vontade e pelo interesse do homem. Mente e corpo podem se preservar somente
ao se submeterem a ele. A mulher ou a menina, agora, serve a si mesma somente ao servir a ele

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 67
Dentro e fora do perigo

e pode interpretar a si mesma somente em relação a ele. Ele a dilacerou em duas e enxertou
as extremidades em si mesmo, para que ela pudesse agir, mas apenas com o interesse dele em
mente. Ela foi anexada e é apêndice dele.

No caso limite o escravo é um robô: seu comportamento é determinado pelo interesse de


outrem; sua vontade, pela vontade de outrem; seu corpo funciona como veículo de outra pessoa.
Contudo, a condição do escravo, como vejo, não é exatamente a mesma que Mary Daly chamou
de “robotitude” e que Beauvoir chamou de “apenas não morrendo”12. A substância do escravo
é assimilada pelo mestre – a transferência que Ti-Grace Atkinson chamou de “canibalismo
metafísico”13. Embora a escrava não esteja engajada em “superar a si mesma”, ela está engajada
em uma superação: na superação própria do mestre. Sua substância é organizada em torno da
“transcendência” dele.

“Com o casamento, o marido e a mulher são uma pessoa na Lei. Isso quer dizer que
o próprio ser ou a existência legal da mulher é suspensa durante o casamento ou, ao
menos, é incorporada e consolidada ao ser e à existência do marido sob cujas asas,
proteção e cobertura ela performa tudo.” Sir William Blackstone, Commentaries on
the Laws of England, Londres, 1813, p. 444.
Em uma cidade universitária liberal nos Estados Unidos, no fim dos anos 1970, uma
mulher foi fazer uma carteirinha de biblioteca na biblioteca pública local. A ela foi
dito que não poderia fazê-la sem a assinatura do marido, uma política rígida; não,
ela não precisaria da assinatura de ninguém, caso fosse solteira. Isso é verdade.

▸ O Olhar Arrogante
A ideia de haver mais do que um corpo em substância, vontade e inteligência alinhadas por
trás de seus projetos tem seu encanto. Como uma mulher uma vez disse, depois de enumerar
as razões: “Meu Deus, quem não iria querer uma esposa?”14. Ti-Grace Atkinson apontou, em sua
análise sobre a raiz da opressão, que há uma enorme lacuna entre o que alguém pode fazer e
12
DALY, M. Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism. Boston: Beacon Press, 1981. p. 143 e a referência de Daly
ao texto The Ethics of Ambiguity, de Beauvoir.
13
ATKINSON, T. “Metaphysical Cannibalism”. In: Amazon Odyssey. Nova Iorque: Links Books, 1974.
14
SYFERS, J. “Why I want a Wife”. In.: KOEDT, A.; LEVINE, E.; RAPONE, A. (orgs.). Radical Feminism. Nova Iorque:
Quadrangle, 1973. p. 60-2.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 68
Dentro e fora do perigo

o que alguém pode se imaginar fazendo. Humanos possuem o que ela se referiu como “imagi-
nação construtiva” que, embora seja uma bênção de algumas maneiras, também é a fonte de
muita frustração. Isso porque ela fornece a constante provocação de realizações e ameaças
imaginadas para os quais nós não somos fisicamente correspondentes15. A maioria das pessoas
não lida com esse problema e com essa tentação escravizando abertamente, e por uso de força,
outras pessoas (embora os processos que capturam a esposa do agressor e a anexam a ele sejam,
como Barry apontou, muito parecidos com os processos do proxeneta). Mas muitas, muitas
pessoas, em sua maior parte homens, estão em uma posição cultural e material de conseguir,
amplamente, o mesmo fim por outros meios e sob outras descrições – meios e descrições que
ocultam para eles e para as suas vítimas o fato de que o fim é o mesmo. O fim: aquisição do
serviço de outros. Os meios: variações do mesmo tema de desintegração de um organismo
humano integrado e o posterior enxerto de sua própria substância neste organismo.

A Bíblia diz que toda a natureza (incluindo a mulher) existe para o homem. O homem é
convidado a subjugar a Terra e a ter domínio sobre todo ser vivo nela, o qual, diz-se, existe “para
você”, “para mantimento”16. A mulher é criada para ser a ajudante do homem. Isso captura,
em mito, a resposta primária da Civilização Ocidental para a questão filosófica sobre o lugar
do homem na natureza: tudo o que existe é recurso a ser explorado por ele. Com essa visão de
mundo, homens enxergam com olhos arrogantes, que organizam tudo o que é visto em refe-
rência a si mesmos e a seus próprios interesses. O observador apropriativo é um teleólogo, um
crente de que tudo existe e acontece com algum propósito, e ele tende a personificar coisas,
imaginando que o motivo para as ações delas sejam atitudes em relação a ele mesmo. Tudo é
“para mim” ou “contra mim”. Esse é o tipo de visão que interpreta a pedra em que se tropeça
como hostil, o parafuso que não consegue afrouxar como teimoso, a mulher que fez bolo de
carne, quando ele queria espaguete, como “má” (embora ele não tenha dito o que queria).
O observador arrogante não admite a possibilidade de que o Outro seja independente, indife-
rente. A feminista separatista só pode odiar homens; a Natureza é chamada de “Mãe”.

O observador arrogante não só adultera a Natureza que faz tanto o feijão verde, quanto
o Bacillus Botulinum, não dá a mínima se humanos vivem ou morrem17-, mas também coage
os objetos de sua percepção a satisfazerem as condições que sua percepção impõe. Ele tenta
realizar, em um piscar de olhos, o que os escravizadores e os agressores realizam com o
uso prolongado de força física; e, em grande parte, ele consegue. Ele manipula o ambiente,

15
Atkinson, op. cit.
16
Gênesis, 1:29.
17
Créditos a Catherine Madsen, de sua resenha de Wanderground, escrito por Sally Gearhart (Massachusetts:
Persephone Press, 1979), publicada no periódico Conditions, n. 7, p. 138.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 69
Dentro e fora do perigo

a percepção e o julgamento daquela que ele observa, para que as opções reconhecidas por
ela sejam limitadas e para que o curso que ela escolha seja coerente com os propósitos dele.
O próprio observador é um elemento do ambiente dela. As estruturas da percepção dele são
um fato na situação dela, como são as estruturas de uma cadeira baixa demais para que ela se
sente, ou de gestos que a ameacem.

Como uma pessoa vê as outras e como ela espera que o outro se comporte são interdepen-
dentes, e como se espera que o outro se comporte é um fator importante na determinação de
como o outro de fato se comporta. Naomi Weisstein, em “Psychology Constructs the Female”,
avaliou experimentos que mostram, dramaticamente, que isso é verdade.

Por exemplo, em um experimento, os sujeitos deveriam atribuir números a fotos de


rostos masculinos, sendo que números mais altos deveriam ser atribuídos aos rostos
que os sujeitos julgassem de uma pessoa bem-sucedida, e os números mais baixos aos
rostos que os sujeitos julgassem ser de uma pessoa que não fosse bem-sucedida. Um
grupo de pesquisadores foi informado de que os sujeitos tendiam a atribuir números
altos aos rostos; outro grupo de pesquisadores foi informado de que os sujeitos tendiam
a atribuir números baixos aos rostos. Cada grupo de pesquisadores foi instruído a seguir,
precisamente, o mesmo procedimento: eles deveriam ler, para os sujeitos, as instruções
e não dizer nada mais. Para os 375 sujeitos, os resultados mostraram claramente que
aqueles que cumpriram a tarefa com pesquisadores que esperavam números altos atri-
buíram números mais altos, e os sujeitos que cumpriram a tarefa com pesquisadores que
esperavam números baixos deram números baixos18.

Quando pesquisadores pensam que os ratos com os quais estão trabalhando foram criados
para que sejam altamente inteligentes, os ratos aprendem mais rapidamente; quando os
pesquisadores pensam que seus ratos foram criados para que sejam pouco inteligentes, os ratos
aprendem menos. E crianças cujos professores acreditavam que tinham alto QI, mostram um
aumento significativo em seu QI. Weisstein conclui: “A concretude das mudanças nas condições
produzidas pelas expectativas é um fato, uma realidade… De uma maneira significativa, as
pessoas são o que se espera delas ou, pelo menos, elas se comportam como é esperado que se
comportem”19.

18
WEISSTEIN, N. “Psychology Constructs the Female”. In: GORNICK, V. & MORAN, B. K. (orgs.). Woman In Sexist
Society. Nova Iorque: Basic Books, Inc., 1971. p. 138-9.
19
Ibidem.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 70
Dentro e fora do perigo

Os experimentos apenas delineiam grosseiramente algo que sabemos pela vivência.


Mulheres experienciam a coercitividade desse tipo de “influência” quando homens perver-
samente impõem conotações sexuais a todos os nossos movimentos. Conhecemos a pressão
palpável da redução que homens fazem de nossas objeções, como se fossem momentos para
nossa instrução. Nós, mulheres, não costumamos ter a experiência de impormos nossas expec-
tativas nas situações, fazendo com que sejam correspondidas, mas algumas das histórias mais
maravilhosas de resistência bem-sucedida de mulheres à violência masculina envolve a mulher
colocar seu agressor na posição de um menininho sob o domínio materno20. O poder das expec-
tativas é enorme, elas devem ser acionadas e respondidas atentamente e com cuidado. O obser-
vador arrogante as aciona de modo inconsciente, do mesmo modo que aciona os músculos ao
escrever o próprio nome.

A expectativa do observador arrogante cria uma espécie de molde a vácuo em volta dele,
para onde o outro é sugado e mantido. O outro, contudo, nem sempre é sugado para essa
estrutura ou nem sempre é sugado sem resistência. Na ausência dessa manipulação, o outro
não se organiza primariamente com referência aos interesses do observador arrogante. Na
medida em que o outro, a mulher, não é moldada ao desejo dele, não se encaixa na confor-
mação que ele impõe, há certa fricção, anomalia ou incoerência no mundo dele. Na medida em
que nota essa incongruência, ele não consegue experienciar isso de outra forma que não seja
considerar que há algo de errado com ela. A percepção dele é apropriativa; os sentidos dele o
informam que o mundo e tudo nele (com a eventual exceção de outros homens) está no universo
das coisas que existem para ele, que ela é, na sua constituição e em seu telos, sua servente. Ele
confia nos próprios sentidos. Se uma mulher não serve um homem, só pode ser porque ele não
é um mestre habilidoso o suficiente ou porque há algo de errado com a mulher. Ele pode até
tentar melhorar na administração das coisas, mas, quando isso falha, ele é forçado a concluir
que a mulher é defeituosa: antinatural, imperfeita, quebrada, anormal, danificada, doente. As
normas dele de virtude e de saúde estão ajustadas de acordo com o grau de congruência do
objeto percebido com o interesse do observador. Isso é precisamente errado.

Embora qualquer pessoa possa querer, por qualquer uma entre várias razões, contribuir
para a busca dos interesses de outrem, a saúde e a integridade de um organismo são uma
questão de estar organizado, amplamente, para os interesses e bem-estar próprios. O obser-
vador arrogante sabe disso quando se trata de si mesmo, mas ele se apropria de tudo e, então,
percebe como saudável ou “correto” tudo o que diz respeito a ele, do mesmo modo que a própria

20
Refiro-me, aqui, a algumas experiências minhas e a histórias como as Histórias de Sucesso incluídas em “Do it
Yourself Self-Defense”, de Pat James, em Fight Back: Feminist Resistance to Male Violence, editado por Frederique
Delacoste e Felice Newman (Cleiss Press, 1981), p. 205.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 71
Dentro e fora do perigo

substância, quando ele está saudável. Mas o que é molho para o ganso é molho para a gansa.
Ela está saudável e “funcionando corretamente” quando a substância dela está organizada,
primariamente, por princípios que se alinham aos interesses e ao bem-estar dela. Cooperação
é essencial, claro, mas não será suficiente que eu organize tudo para que você se exercite o
bastante: para ser saudável eu preciso me exercitar. Eu estar suficientemente exercitada é,
logicamente, independentemente de você estar.

A percepção que o observador arrogante tem da normalidade ou da defeituosidade do outro


não é apenas completamente errada, ela é coercitiva. Ela manipula a percepção e o julgamento
do outro na raiz, ao rotular, equivocadamente, o doentio como saudável e o errado como certo.
Uma pessoa julga e escolhe, dentro de um conjunto de valores e noções, o que “bom” e “bom para
você” significam. O ladrão-coagente elementar deixa esse conjunto de lado e manipula apenas
a situação. O anunciante comercial pode deturpar itens ou opções específicos como sendo
bons ou bons para você. Contudo, o que temos no caso do observador arrogante é a distorção
da definição de “bom” ou “saudável”. Se alguém possui o poder cultural e institucional para
fazer com que essa distorção vigore, é possível virar a outra pessoa do avesso com esse simples
truque. Esse é o tipo de coisa que torna as “reversões”, das quais Mary Daly fala em Gyn/Ecology,
tão perversas e perigosas21. Se não se consegue compreender os conceitos de certo e de errado,
de saudável e de doente corretamente e, em particular, se esses conceitos são compreendidos
equivocadamente no sentido específico determinado pelo olhar arrogante, então não é possível
cuidar de si mesma. Esse é o tipo mais fundamental de dano. Ele é efetivamente uma mutilação:
uma lesão que incapacita a pessoa de se defender22. Mutilação é parente muito próximo, moral
e logicamente, de assassinato.

O cafetão-escravizador, trabalhando com manifesta força, constrói uma situação na qual


a busca da vítima por sua própria sobrevivência […]

A filosofia e a ciência ocidentais, em sua maior parte, foram construídas sobre a


presunção de inteligibilidade do universo. Essa é a doutrina segundo a qual tudo
no universo, e o universo em si, pode, pelo menos a princípio, ser entendido e
compreendido pela inteligência, pela razão e pelo entendimento humano.
A filosofia e a ciência ocidentais, em sua maior parte, estiveram comprometidas
com a Teoria Simplista da Verdade: a teoria mais simples que dá conta dos dados é
a teoria verdadeira. (As teorias mais simples são as que postulam o menor número

21
DALY, op. cit. p. 2, 30 e em alguns outros lugares do livro.
22
Webster’s Third New International Dictionary e The Shorter Oxford English Dictionary.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 72
Dentro e fora do perigo

de entidades, requerem o menor número de hipóteses, geram previsões com o


mínimo de cálculos etc.)
A conexão parece estar evidente: apenas se a verdade for simples o universo poderá
ser inteligível.
Mas por que acreditar em qualquer desses princípios?
Se alguém acredita que o mundo é feito para que ele tenha domínio sobre e ele é
feito para explorá-lo, ele deve acreditar que ele e o mundo são feitos de tal maneira
que ele pode, pelo menos a princípio, alcançar e manter domínio sobre tudo. No
entanto, você não pode colocar coisas em uso, se não souber como funcionam.
Então, ele deve acreditar que ele pode, pelo menos a princípio, entender tudo. Se o
mundo existe para o homem, ele deve ser inteligível para uso, o que significa que
o universo deve ser simples o suficiente para ele o entender. Um universo usável é
um universo inteligível, um universo simples.
Se algo parece ser ininteligível, você pode decidir que isso é anormal ou irreal. Ou
você pode decidir que isso é o que realmente é verdadeiro e, então, declarar que
você descobriu o Problema do Conhecimento. Ou, tendo declarado o que parecia
ser ininteligível como sendo a realidade verdadeira, você pode afirmar que é, afinal,
inteligível, mas apenas aos poucos extraordinários (que, apesar de serem tão poucos,
de alguma maneira podem ser a norma do que o Homem de fato é).
… e assim vai a filosofia e a ciência do Observador Arrogante.23

[…] ou saúde e sua tentativa de ser boa sempre requerem, por uma questão pragmática naquela
situação, ações que sirvam a ele. No mundo construído pelo olhar arrogante, essa mesma
conexão é estabelecida, não pelo terror, mas por definição24.

23
N.T.: Este trecho, no livro, é uma inserção que interrompe o fluxo do texto, exatamente como foi reproduzida
aqui – no original, o texto não está em itálico, tendo sido uma opção na tradução para distinguir esta inserção do
texto em si.
24
Nem o observador arrogante nem o proxeneta trabalham em um vácuo, é claro. Eles se sustentam em uma cultura
que de muitas maneiras “amacia” suas vítimas para eles, uma economia que, sistematicamente, coloca mulheres em
posições de dependência financeira em relação a homens e uma comunidade de homens que ameaçam mulheres
com estupro a cada esquina. Também a existência de cafetões auxilia o observador arrogante ao fazê-lo parecer bom
por comparação. Ademais, o observador arrogante tem o apoio de uma comunidade de observadores arrogantes,
entre os quais estão os membros mais poderosos da comunidade como um todo ou a maior parte deles. Eu quero
afirmar que o poder da percepção, mesmo que exercida sem o “apoio comunitário” é grande, mas da maneira como
normalmente o experimentamos ele é aumentado grandiosamente pelo fato de ser uma instância da percepção
“normal” entre aqueles que controlam as mídias culturais e a maioria dos outros recursos econômicos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 73
Dentro e fora do perigo

A história oficial de homens que agridem mulheres é que eles o fazem, em grande medida,
porque sofrem de “baixa autoestima”. O que isso sugere, para mim, é que eles sofrem da falta de
arrogância e não conseguem acreditar plenamente em si mesmos como centros em torno dos
quais todo o resto (exceto alguns outros homens) gira e para os quais tudo mais se dirige. Por
causa disso, eles não conseguem exercer, efetivamente, esse poder da expectativa. No entanto,
como homens, eles “sabem” que deveriam ser centros de universos, então eles se reduzem a
tentar criar, à força, aquilo que homens mais bem-sucedidos, homens que conseguem sustentar
melhor a masculinidade, criam com a percepção arrogante. Esse é, talvez, um motivo pelo qual
alguns homens que não agridem mulheres desprezam homens que o fazem.

▸ O Olhar Amoroso
O apego do escravo bem-quebrado ao seu mestre tem sido confundido com amor. Sob a insígnia
do Amor, uma servidão voluntária e incondicional tem sido promovida como algo extático,
nobre, satisfatório e até redentor. Todos os elogios são tecidos à esposa devotada que ama seu
marido e suas crianças, pelos quais ela está disposta a dar a vida; e para o homem valente que
ama o deus pelo qual está disposto a matar e o país pelo qual está disposto a morrer.

Podemos ser enganados por essa equivalência entre servidão e amor, porque cometemos
dois erros de uma só vez: pensamos que ambos, a servidão e o amor, são altruístas ou generosos.
Tendemos a pensar neles como ligações às quais a pessoa não se engaja por interesse próprio
e não o persegue. A esposa que se casou por dinheiro, não se casou por amor, pensamos;
o mercenário é desprezado pelo patriota leal. A escrava, pensamos, é altruísta porque ela não
consegue fazer nada, além de servir os interesses do outro. Mas isso é errado. A escrava não é
altruísta nem o é o amante.

É característico de uma associação voluntária que uma pessoa sobreviva ao desagradar o


outro, ao desafiar o outro e ao desassociar-se do outro. A escrava, a esposa agredida e a esposa
não-tão-agredida-assim estão constantemente sob ameaça. Ela está em uma situação na qual
não pode – ou, razoavelmente, acredita não poder – sobreviver sem a provisão e a proteção
do outro, e sua experiência tornou crível que o outro pode matá-la ou abandoná-la se e quando
ela o desagradar. No entanto, ela sobrevive, pelo menos por um tempo. Ela pode, como Patrícia

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 74
Dentro e fora do perigo

Hearst25, direcionar sua vontade própria para sua sobrevivência. Nesse caso, o que ela faz
“para o outro” é, em última análise, feito “para si mesma” de uma maneira mais consistente e
profunda do que jamais poderia ocorrer em uma associação voluntária26. Na situação dela, de
total dependência e perigo, qualquer detalhe da ação, dos interesses ou dos desejos do outro
está irrefutável e diretamente conectado, como fato empírico, ao seu interesse em sobreviver.
Ela não vê o outro como se ele estivesse organizado em torno dos interesses dela, nem espera
isso, muito pelo contrário; mas ela não pode falhar em interpretar o outro tendo sempre em
vista o que evitará que ela seja morta ou abandonada. O olhar dela não é apropriativo, mas
está muito distante de ser desinteressado; ela não tem a opção de colocar seus interesses de
lado, de não os calcular. Por outro lado, a vítima pode sobreviver – como na História de O ou
como nos comerciais antigos de Geritol27 – somente porque o outro deseja que ela sobreviva.
Em História de O, o ápice do desagrado do mestre teria sido descobrir que O estaria interes-
sada na própria sobrevivência por qualquer outro motivo que não fosse o desejo dele de que
ela sobrevivesse; esse seria o último vestígio de “vontade”, um sinal da imperfeição do “amor”
dela por ele28. No comercial de Geritol, a mulher “cuida de si” porque a família precisa dela,
o marido irá “mantê-la” porque ela o serve tão devotamente. Nesse último caso, se é que existe
de fato tal cenário (como eu, de modo tão pessimista, penso que há), a escrava/esposa de fato
não é motivada por interesse próprio, ainda assim, seu comportamento em relação ao outro,
bem como sua percepção dele, não são desinteressados. Ela supõe o interesse dele. Ela, agora,
vê com o olhar dele, o olhar arrogante.

Em um caso como o de Patricia Hearst, no qual pode-se afirmar que a escravização não é
perfeita, o interesse próprio da vítima em estar presente e ser central é o que sustenta a coação.

25
N.T.: Patrícia Hearst é uma socialite e atriz estadunidense, neta de um magnata das comunicações. Em fevereiro
de 1974, ela foi sequestrada pelo Exército Simbionês da Libertação, uma organização marxista que atuava nos EUA.
Em troca de sua libertação, foi exigido que sua família fizesse doações de alimentos aos pobres, o que deu início ao
programa “People in Need”. Nos dois primeiros meses do cativeiro, ela foi mantida em um armário, violada pelo líder
da organização e sujeita à doutrinação de seus ideais. Em abril do mesmo ano, denunciou o programa fundado pela
sua família e anunciou que havia se juntado à organização que a havia sequestrado, adotando o nome “Tânia”, em
homenagem à companheira de Che Guevara. Hearst foi condenada a 7 anos de prisão por um assalto à mão armada
ao Hiberna Bank, em São Francisco, junto de outros membros do grupo. Em sua defesa, afirmou que foi vítima de
lavagem cerebral, tese que foi rejeitada pelo júri. Ela cumpriu 21 meses de prisão, após o presidente Jimmy Carter
comutar sua pena.
26
“Pensando em tudo aquilo de novo, percebi que precisaria estar alerta o tempo todo para evitar deixar qualquer
um deles com raiva. Prometi a mim mesma que eu jamais discordaria de qualquer coisa que qualquer um deles
me dissesse. Queria sair dali viva e vê-los serem enviados à prisão por muito, muito tempo, pelo que eles estavam
fazendo comigo” (p. 57). HEARST, P. C; MOSCOW, A. Every Secret Thing. Nova Iorque: Doubleday & Company, 1982.
27
N.T.: Geritol é uma marca de suplemento de ferro, popular nos Estados Unidos, na época.
28
REAGE, P. Story of O. Nova Iorque: Grove Press, 1965.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 75
Dentro e fora do perigo

Em outros casos, o interesse próprio da vítima é simplesmente substituído pelo interesse do


mestre. Em nenhum dos casos, a vítima está desinteressada ou é altruísta em seu comporta-
mento com relação ao, ou em sua percepção, do mestre. Ela age em seu próprio benefício e para
si mesma ou para o benefício dele e para ele.

Quem ama também não é altruísta. Se o olhar amoroso é, em qualquer sentido, desinteres-
sado, não é no sentido de que a observadora perdeu a si mesma, não possui interesses, ou ignora
ou nega seus interesses. Qualquer uma dessas alternativas a incapacitaria como observadora.
O que ocorre, certamente, é que, diferente da escrava e do mestre, a observadora amorosa
consegue enxergar sem a suposição de que o outro representa uma ameaça constante ou de
que a existência do outro está a seu serviço; tampouco ela enxerga com o olhar do outro ao
invés do próprio. O interesse dela não mistura o observador e o observado; seja empiricamente,
pelo terror, ou a priori, por conexões conceituais forjadas pelo olhar arrogante. Aquela que vê
com um olhar amoroso está separada daquele que ela observa. Existem limites entre eles; ela
e o outro são dois; seus interesses não são idênticos; eles não estão misturados em relações de
parasitismo ou simbióticas, tampouco ela acredita que eles estão, ou tenta fingir que estão.

O olhar amoroso é um oposto do olhar arrogante.

O olhar amoroso sabe da independência do outro. É o olhar de alguém que sabe que a
natureza é indiferente. É o olhar de alguém que sabe que, para conhecer aquele que é visto,
deve-se consultar algo além do desejo, dos interesses, dos medos e da imaginação próprios.
Deve-se olhar para o objeto. Deve-se olhar, escutar, checar e perguntar.

O olhar amoroso é aquele que presta determinado tipo de atenção. Essa atenção pode
requerer disciplina, mas não uma negação de si mesmo. A disciplina é aquela do autoconhe-
cimento, conhecimento dos próprios escopos e limites. O que é exigido é que se saiba quais
são os interesses, desejos e aversões próprios, os projetos, anseios, medos e desejos próprios,
e que se saiba o que é e o que não é determinado por tudo isso. Em particular, é uma questão
de ser capaz de distinguir os interesses próprios dos interesses do outro e de saber onde o seu
Eu termina e começa o do outro. Talvez, em outro mundo isso seja fácil e não uma questão de
disciplina; mas, aqui, somos criadas entre canibais metafísicos e seus robôs. Algumas de nós
são ensinadas que podemos ter tudo, algumas são ensinadas que não podemos ter nada. De
qualquer modo, nós adquirimos um imenso querer. O querer não se importa com a verdade:
ele simplifica, quando a verdade é complexa; ele inventa, quando deveria estar investigando;
ele supõe, quando deveria estar esperando para descobrir; ele seria capaz de transformar tudo
em busca de satisfação; e ele odeia aquilo que ele finalmente concluiu não conseguir mais
manipular. No entanto, a disciplina necessária não é a negação do querer. Pelo contrário, é uma

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 76
Dentro e fora do perigo

disciplina de conhecer e se responsabilizar pelo querer: identificá-lo, reivindicá-lo, conhecer


seu escopo e, através disso tudo, conhecer sua distância da verdade.

O olhar amoroso não transforma o objeto percebido em algo consumível, não tenta
assimilá-lo, não tenta reduzi-lo ao tamanho do desejo, do medo e da imaginação do observador;
logo, não precisa simplificar. Ele reconhece a complexidade do outro como algo que estará
sempre apresentando novas coisas a serem conhecidas. A ciência do olhar amoroso preferiria
a Teoria da Verdade Complexa e suporia o Infinito Encantamento do Universo.

O olhar amoroso parece generoso com seu objeto, embora ele não tenha a intenção de dar
ou de tomar; porque não ser invadida, coagida, anexada deve ser percebido em um mundo como
o nosso como uma grandiosa dádiva.

▸ O Amado
Nós, que amaríamos as mulheres – e bem –, que transformaríamos a nós mesmas e ao mundo
para que fosse possível amá-las bem, precisamos imaginar as possibilidades para aquilo que
mulheres poderiam ser, se vivêssemos livres das forças materiais e perceptivas que subor-
dinam mulheres a homens. O ponto não é imaginar uma fêmea humana não afetada por
outros humanos a seu redor, não influenciada por suas próprias percepções e pela percepção
dos outros sobre os interesses alheios, não afetada pela cultura. O ponto é apenas imaginar
mulheres não escravizadas, imaginar esses corpos femininos, inteligentes e desejosos não
subordinados a serviço de machos, individualmente ou por meio das instituições (ou a qualquer
pessoa, de qualquer maneira); não pressionada a uma forma que convenha ao olhar arrogante.

As forças das quais queremos nos imaginar livres são um guia para o que podemos ser
quando estivermos livres delas. Elas marcam a forma à qual nos moldam, mas também
sugerem, implicitamente, as formas que talvez tivéssemos sem esse molde. Pode-se supor
coisas acerca da magnitude e do sentido de tendências que algo poderia exibir quando liberado,
ao atentar-se à magnitude e ao sentido das forças necessárias para confiná-lo e moldá-lo. Por
exemplo, muita pressão é aplicada sobre nosso comportamento verbal, reforçando silêncio ou
limitando nosso discurso29. Pode-se argumentar que, sem essa força, podemos nos mostrar
eloquentes e, talvez, propensas à oratória, sem mencionar propensas a dizer coisas desagra-
dáveis aos ouvidos masculinos. A ameaça de estupro é uma força de grande magnitude que
é, entre outras coisas, aplicada contra nossa movimentação pelas cidades, vilas e campos.
29
Comparar com:
SPENDER, D. Man-made Language. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1980. p. 43-50.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 77
Dentro e fora do perigo

A implicação é que, sem ela, muitas mulheres provavelmente mostrariam ser muito propensas
à vida nômade de exploração e aventura – por que mais seria necessária tanta força para nos
manter em casa?

Para falar de modo mais abrangente: as forças da violência material e perceptiva dos
homens moldam Mulheres à dependência deles, em todos os sentidos da palavra “depen-
dência” – que precisa de; condicionada a; necessitada por; definida em termos de; incompleta
ou irreal sem; que requer o suporte ou assistência de; que é uma parte subordinada de; que é
um acessório de.

A dependência é forçada sobre nós. Não é precipitado especular que sem essa força muito ou
tudo do que muitas ou todas de nós somos e fazemos não seria dependente de, condicionado a,
necessitado por, ou subordinado a qualquer homem ou o que pertence a um homem, a homens
ou à masculinidade. O que somos e como somos ou o que poderíamos ser e como poderíamos
ser, se não fôssemos moldadas pelo olhar apropriativo é: não moldada ao homem, não dependente.

Eu não falo aqui de uma capciosa independência absoluta, que significaria jamais responder
à necessidade alheia e nunca precisar da resposta de alguém. Concebo aqui, simplesmente, um
ser cujas necessidades e respostas não estão vinculadas, por conceitos ou pelo terror, a uma
dependência em relação às necessidades e às respostas de outrem. O olhar amoroso faz a
suposição correta: o objeto do olhar é outro ser, cuja existência e caráter são logicamente inde-
pendentes do observador e que pode ser, prática ou empiricamente, independente em qualquer
questão particular em qualquer momento específico.

O significado ou a verdade dessa “independência” não é algo simples de se compreender,


tampouco é comum uma crença clara ou segura nela, mesmo entre aquelas que se identificam
a si mesmas como feministas. A inabilidade para pensar isso é uma das coisas que prende
os homens em um infantilismo eterno; é uma das coisas que torna mulheres infinitamente
suscetíveis a uma incerteza profunda em nossas demandas políticas e epistemológicas e a uma
quase fatal indecisão em nossas ações.

Quando tentamos pensar em nós mesmas como independentes, pensar em nós mesmas
como mulheres não mediadas por homens ou pelo Homem, o que tentamos é algo prodigioso
e aterrorizante; já que, por nossa própria vontade, seríamos conduzidas àquele extremo do
mundo onde a linguagem e o significado abandonam a compreensão de nossas vidas. Então,
compreensivelmente, sofremos com falhas de imaginação e falhas de coragem.

Temos aprendido amplamente o vocabulário do meninão arrogante, a nos identificar com


ele e a ver com seus olhos; nós aprendemos a pensar em agência e em poder, basicamente,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 78
Dentro e fora do perigo

da mesma maneira que ele pensa. O que podemos fazer, quando tentamos imaginar a nós
mesmas como independentes, é apenas nos colocar, astutamente, no lugar dele e nos imagi-
narmos no centro do universo, as queridinhas da Mãe Natureza e irmãs adoradas de todas as
outras mulheres.

Grande parte da teoria e da arte feminista radical, que nutriram minha imaginação, tem
sido caracterizada por ocasionais ondas desse romantismo. Parte disso é muito influenciado
por ideias de uma harmonia “embutida” entre as mulheres e entre mulheres e a Natureza. Algo
desse tipo é parte do elemento romântico no “Gyn/Ecology”, de Mary Daly; está em “Woman and
Nature”, de Susan Griffin, e é muito prevalente (não digo universal) na literatura e na arte da
espiritualidade feminina30. “The Wanderground”, um romance de fantasia que tem feito sucesso
nos círculos feministas, desenvolve tal romantismo muito explicitamente31. Essa tendência de
pensamento está notoriamente ausente em outros dois romances de fantasia, “Walk To The End
Of The World” e “Motherlines”32; e esses têm sido, por essa razão, criticados e não apreciados por
algumas feministas, por não apresentarem uma visão feminista. A mesma falha de imaginação
que seduziu algumas feministas radicais a conceberem uma visão “cor-de-rosa” de nós mesmas
e da Natureza tem moldado muito mais fundamentalmente a ala de “direitos civis” do pensa-
mento feminista. A mulher que quer “igualdade”, em muitos casos, apenas quer ser incluída
também como um dos homens, para quem o Deus dos homens fez tudo “a ser consumido”.

Tem sido sugerido a mim que nós falhamos nesses esforços de imaginação, em parte, porque
insistimos em reinventar a roda. Nós podemos dar às mulheres algum crédito: podemos supor
que nem todas as mulheres levam e tem levado vidas mediadas por homens, e que as vidas das
mulheres mais independentes poderiam prover estímulo e correção para nossas imaginações.
As mulheres com talentos excepcionais e conquistas criativas existem, bem como mulheres
cujas vidas não seguem o caminho batido. Mas também, quando olha-se detidamente as vidas
de mulheres representadas como excepcionais na história ou na própria experiência, com
frequência, vê-se tanto fatores casuais não tão excepcionais – como o patrocínio de homens
excepcionais (pelo qual supõe-se que as mulheres pagam de uma maneira ou de outra) – quanto
sinais de medos peculiares e lapsos estranhos de imaginação.

Por que mulheres tão poderosas e únicas, como Gertrude Stein, falam apenas em código,
e dificilmente em público, sobre seu relacionamento apaixonado com Alice B. Toklas? Por que

30
Conferir a revista Womanspirit.
31
Sally Gearheart (Massachusetts: Persephone Press, 1979).
32
CHARNAS, S. M. Walk To The End Of The World. Nova Iorque: Berkley Publishing Company, 1974.
     . Motherlines. Nova Iorque: Berkley Publishing Company, 1979.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 79
Dentro e fora do perigo

sufragistas brilhantes, mulheres brancas, falharam politicamente sob a pressão do racismo?


Por que Simone Weil odeia judeus e porque ela pensou que o sofrimento a tornaria boa? Por
que Simone de Beauvoir aderiu ao misógino Jean Paul Sartre? Conheço acadêmicas lésbicas
feministas talentosas que se identificam como lésbicas separatistas e estão apaixonadamente
comprometidas em fazer com que “os meninos” de seu campo reconheçam seu trabalho,
seu talento e sua inteligência; isso não faz sentido algum. Tenho escutado mulheres, cujas
conquistas e cujo espírito provam serem capazes de independência material e intelectual,
falando sobre seus maridos de forma que é inexplicável como elas continuam casadas com
esses homens. A escrita feminista, especialmente a escrita autobiográfica, é cheia de exemplos
dos mais decepcionantes, todas mulheres excepcionais, a quem recorreríamos, a quem recor-
remos – as mães, avós, tias, irmãs e primas, que têm sido nossos exemplos de força, poder,
independência e solidariedade com outras mulheres em nossas vidas reais, e de quem dizemos,
quase enlutadas, “ela, de fato, era/é uma feminista/sapatão, embora ela preferisse morrer a ser
chamada por esse nome”.

As respostas que todas essas mulheres apresentam a esses quebra-cabeças são, obviamente,
muito complexas e individuais. Mas eu acho que existe pelo menos um fio condutor em comum:
existe, no tecido de nossas vidas – nem sempre de maneira visível, mas sempre afetando sua
textura e resistência – um temor mortal de estar fora do campo de visão do olhar arrogante.
Esse olhar confere significado a todas as coisas, ao conectá-las umas às outras por meio de sua
referência a um ponto – o Homem. Nós tememos que, se não estivermos nessa rede de signi-
ficados, não existirá significado: nosso trabalho não terá sentido, nossas vidas não terão valor,
nossas conquistas serão vazias, nossas identidades serão ilusórias. A razão para esse temor,
sugiro, é que, para a maioria de nós, incluindo as excepcionais, uma mulher existindo fora do
campo de visão do olhar arrogante do homem é, verdadeiramente, inconcebível.

Essa é uma debilidade terrível. Se não temos nenhuma noção de nós mesmas como inde-
pendentes, seres não mediados no mundo, então não podemos conceber a nós mesmas sobre-
vivendo à nossa libertação; porque o que nossa liberação fará é dissolver as estruturas e
desmantelar os mecanismos pelos quais a Mulher é mediada pelo Homem. Se não conseguimos
nos imaginar sobrevivendo a isso, certamente não faremos com que isso aconteça.

Provavelmente, não existe uma distinção de fato, no fim das contas, entre imaginação e
coragem. Nós não conseguimos imaginar o que não conseguimos encarar e nós não conse-
guimos encarar o que não conseguimos imaginar. Para nos libertar das estruturas do olhar
arrogante, temos que ousar a fiar-nos em nós mesmas para criar significado e temos que nos
imaginar sendo capazes disto: capazes de tecer a rede de significados que nos sustentará em
alguma forma de inteligibilidade. Nós conseguimos fazer isso em alguma medida, mas também

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 80
Dentro e fora do perigo

cambaleamos e ameaçamos cair, como um iniciante numa bicicleta que não obtém impulso
suficiente, em parte, por falta de vigor.

Nós intuímos, corretamente, que a criação de significado é social e requer uma certa
comunidade de percepção. Nós também somos tímidas, individualmente, e buscamos “apoio”.
Então, é apenas em contraste com um fundo de uma comunidade imaginada de irrevogável
harmonia e perfeito acordo que ousamos pensar ser possível criar significado. Isso nos leva a
uma arrogância própria; porque tornamos um pré-requisito, para nossa construção de signifi-
cado, que outras mulheres sejam o que precisamos que elas sejam para constituir a comunidade
harmoniosa de acordos da qual necessitamos. Algumas mulheres recusam-se a participar dessa
construção de significados “porque feministas estão divididas e não conseguem entrar em um
acordo entre si”. Algumas que participam ameaçam retornar à proteção do pai ou a apagar
outras do movimento, caso a unanimidade não seja alcançada. Em outras palavras, ameaçamos
falhar em imaginação e em coragem, como todas as outras mulheres, excepcionais ou ordiná-
rias, caso nossas irmãs não entrem em harmonia e não concordem conosco.

Significado é, de fato, algo que surge entre dois ou mais indivíduos e requer algum nível
de acordo nas percepções e nos valores. (Ele também tende a gerar a comunidade e o nível
de acordo necessários). A comunidade exigida para significado, contudo, é precisamente a
negação de uma horda homogênea, uma vez que, sem diferença, não há significado. Significado
é um sistema de conexões e distinções entre coisas diferentes e distinguíveis. A comunidade
homogênea hipotética que imaginamos precisar não poderia ser a comunidade na qual podemos
nos tornar inteligíveis, i-mediadas, para e por nós mesmas.

Não se pode esperar, da mulher liberada, que ela nos convenha – e tal presunção apenas
nos impedirá de imaginá-la livre, pois estaríamos nos impondo a ela em nosso próprio esforço
imaginativo. Se alimentamos nossa visão com imagens filtradas pelo que supomos ser nossas
necessidades, iremos decepcionar-nos, ressentir-nos e terminaremos por gerar violência.

Precisamos conhecer mulheres como independentes: subjetivamente, em nosso próprio


ser, e em nossa apreciação de outros. Se quisermos descobrir isso em nós mesmas, creio que
precisaremos estar sob a apreciação do olhar amoroso, o olhar que pressupõe nossa indepen-
dência. O olhar amoroso não proíbe a mulher de experimentar diretamente o mundo, não a
força a experimentá-lo de modo que interesse às interpretações do observador, em cujo campo
de visão ela se move. Nessa situação, ela pode experimentar diretamente em seus ossos o
caráter circunstancial de suas relações com todos os outros e com a Natureza. Se quisermos
conhecer a independência das mulheres no ser de outros, penso que teremos que lançar um
olhar amoroso sobre elas… e esperar, e ver.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 81
5 Uma nota sobre
a raiva1

T
rata-se de uma cansativa verdade sobre a experiência de mulheres o fato de que nossa raiva,
geralmente, não é bem recebida. Homens (e, às vezes, mulheres) a ignoram, a veem como
se estivéssemos “chateadas” ou “histéricas”, ou como loucura. A atenção não é direcionada
para o que motivou nossa raiva, mas para a tarefa de nos acalmar e para o tópico da nossa “esta-
bilidade mental”. Isso é tão comum quanto meias sujas. Toda mulher sabe disso, passou por
isso. Homens percebem a raiva de mulheres como incongruente e irracional e, em muitos casos,
eles são simplesmente incapazes de criar um meio para lidar com ela: eles atacam fisicamente,
estapeando ou batendo na mulher enraivecida; ou eles recuam, justificando a incompetência
deles com falas do tipo “eu não consigo lidar com você, quando fica assim”2.

Eu não interpreto a incompreensão masculina acerca da raiva de mulheres e a falta de


habilidade deles em responderem adequadamente a ela como completamente, ou sempre, deli-
beradas e maliciosas; ou como sendo sempre, simplesmente, uma encenação criada apenas para
frustrar a raiva e para evitar agir na causa dela. Muitas vezes, nas situações que experienciei,
não me pareceu uma simples perversidade e esse julgamento também é apoiado em minha
experiência do outro lado das barreiras da opressão, como uma mulher branca encontrando a
raiva de uma mulher negra. A raiva é, de fato, sã e saudável, mas parecer louca e bizarra para
o receptor também é real. Em muitas situações, homens realmente experienciam a raiva de
mulheres como uma espécie de evento não natural e desconcertante que não tem um lugar
inteligível na ordem causal, a menos que o homem veja a mulher como “fora de ordem”.

Embora seja correto lastimar e denunciar essa estranha combinação de ignorância e incom-
petência como sexista (ou racista), isso não é intelectual ou politicamente suficiente. Podemos,
se quisermos, aprender algo com esse fenômeno.

1
Sou grata a C.S. pela valiosa crítica a rascunhos prematuros deste ensaio
2
Veja “Getting Angry”, de Susi Kaplow, e “Men and Violence”, uma transcrição da gravação de uma sessão de tomada
de consciência, em Radical Feminism, editado por Anne Koedt, Ellen Levigne e Anita Rapone (Quadrangle, Nova
Iorque, 1973).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 83
Uma nota sobre a raiva

A raiva parece ser uma reação quando se é contrariada, frustrada ou ferida. Ela vem quando seu
momentum é disperso ou desviado. Você está seguindo sua vida, cuidando dos seus interesses,
perseguindo seus objetivos, e então você é interrompida. Uma enrolação burocrática, a falta de
disposição de alguém em oferecer uma assistência razoável, a pane de um carro. A energia que
estava movendo você pelo seu percurso não consegue fluir, está bloqueada, torna-se turbulenta.
Em alguns casos, você se sente frustrada, irritada, confusa ou deprimida; em outros casos,
você fica com raiva.

As situações frustrantes que geram raiva, em oposição àquelas que apenas fazem com que
você se sinta descontente ou deprimida, são aquelas nas quais você se vê não apenas impedida
ou obstruída, mas injustiçada. Você sente raiva quando vê o impedimento ou a obstrução como
injustos ou desleais, ou quando você os percebe como resultado da malícia ou da incompetência
indesculpável de alguém. A maior parte de nós, se for impedida de ir a um show ou a um jogo
de futebol pelo clima, ficará decepcionada, talvez rabugenta, quem sabe deprimida. Mas, se
for impedida de ir porque nosso parceiro perdeu os ingressos, haverá maior probabilidade de
ficarmos com raiva. Se a pessoa agita o punho em direção ao céu, com raiva, por causa do clima,
ou ela é ridícula, ou está fingindo, ou acredita que há uma espécie de agente lá em cima cuja
responsabilidade no assunto torna a nevasca uma injustiça, ao invés de azar. A raiva supõe
não apenas que o impedimento ou a obstrução foram perturbadores, mas também que foram
uma ofensa.

Para ser injustiçada ou ser percebida como tal, você deve estar certa ou ser assim percebida.
A raiva é sempre justificada. Para estar com raiva, você deve ter algum senso de justiça ou
de direito quanto à sua posição e ao seu interesse naquilo que foi impedido, interrompido ou
ferido – e a raiva supõe uma reivindicação a essa justiça ou a esse direito. Quando você não
está “certo” ou “com a razão”, a raiva é inadequada, ou impossível3. Suponha que, no meio do
preparo de uma refeição, você se dá conta de que precisa de cogumelos. Você viu um anúncio
em um jornal que diz que uma loja em particular tem uma promoção de cogumelos. Você corre
para essa loja, mas descobre que eles não têm nenhum cogumelo, a nenhum preço. Você pode
ficar com raiva. Mas se, no fim das contas, você tiver se enganado e o anúncio era de outra loja,
isso vai fazer sua raiva perder o ímpeto. Se você não está correto em sua expectativa, você não
foi injustiçado pelo seu desapontamento.

3
Algumas pessoas são, definitivamente, descuidadas e irresponsáveis em sua raiva, e não prestam muita atenção
se estão corretas ou não, sem se importarem se sua raiva é adequada ou não. No entanto, suspeito que tais pessoas
pensem que elas estão certas em querer as coisas de seu jeito, sejam elas ou não as pessoas corretas, nas circuns-
tâncias corretas, com as expectativas corretas etc.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 84
Uma nota sobre a raiva

Existem muitos tipos e sentidos de presença, direito, posição e lugar, muitos tipos de “estar
correto”. Não quero falar, aqui, apenas de “correto” em algum sentido político ou legal. Quero
falar do sentido que é o acompanhante lógico do respeito4.

Quando uma pessoa cuida de seus interesses de maneira inofensiva e os persegue como
acredita ser adequado, empregando meios e usando recursos que tem o direito de empregar,
então o respeito dita que você permita que as ações dela, e que os objetos e as condições que
essas ações requerem, estejam sob o controle dela, ou que aconteçam tão bem quanto o destino
permitir. Se a pessoa está no meio da construção de uma estante, o respeito dita que você não
fique rondando e que não pegue o martelo sem perguntar se ela já terminou de usá-lo (a menos,
é claro, que você precise dele para defender a vida de ambas, acertando um intruso perigoso na
cabeça). Seja o martelo, legalmente, uma posse dela ou não, ele está sob o domínio dela e está
associado a ela pela rede de conexões que o propósito de seu comportamento cria. Se você sair
com ele (na ausência de algum fator mais urgente, como o intruso), seu ato supõe que você não
reconhece que é “justo” que o martelo esteja sob seu domínio: por exemplo, que você pensa que
ela não tem o direito de usá-lo porque o roubou; ou que não deveria estar montando estantes
no horário de serviço; ou que ela fez um trabalho tão ruim que não deveria sequer continuar;
ou simplesmente não pensa que ela ou o projeto dela são merecedores de qualquer reconheci-
mento ou consideração. Se você pensa qualquer uma dessas coisas, então há algo acerca dela
e/ou do projeto que você não está respeitando.

O domínio que é reconhecido no respeito a uma pessoa, a um projeto ou a um ato não é


simplesmente físico, abrangendo objetos físicos. O reconhecimento de um direito pode ditar
que se evite iniciar conversas que poderiam distrair uma pessoa, ou pode ditar encorajá-la ou
não desencorajar. Sua atenção, sua confiança, seu senso de bem-estar, sua liberdade para falar o
que pensa, seu acesso a conhecimento e habilidades são todas questões dentro do seu domínio.

A raiva implica uma reivindicação ao domínio – uma reivindicação de que se é alguém


cujos propósitos e atividades requerem e criam uma rede de objetos, espaços, atitudes e inte-
resses que são merecedores de respeito e que o objeto da raiva é uma questão correta dentro
dessa rede. Você pega meu martelo e eu, com raiva, exijo que você o devolva. Implicitamente,
eu reivindico que meu projeto é válido, que estou no meu direito de realizá-lo, que a rede de
conexões que ele cria inclui, de maneira justa, aquele martelo. Ou então você critica meu
trabalho arbitrariamente, sem que eu tenha solicitado, e eu, com raiva, direi que você cuide de
sua própria vida. Implicitamente, reivindico o direito a realizar aquele trabalho, o direito de

4
Veja “Rape and Respect”, por Carolyn Shafer e Marilyn Frye, em Feminism and Philosophy, editado por Mary
Vetterling-Bragging, Frederick A. Elliston e Jane English (Littlefield, Adams & Co., Totowa, Nova Jersey, 1977).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 85
Uma nota sobre a raiva

confiar apenas na minha própria opinião se eu quiser e na santidade da confiança que tenho
em minhas habilidades e no sucesso do projeto. Há algo que eu exijo que você respeite5.

Uma analogia útil para compreender a raiva é com os atos que o filósofo J. L. Austin chamou
de “atos de fala”6. Quando você diz algo como “eu prometo” ou “me desculpe”, você não apenas
afirma ou relata algo a seu respeito, você também se reposiciona em relação a outra pessoa.
Você compromete-se, o outro passa a contar com você. Você desfaz uma dívida, um desequilí-
brio entre bem e mal é reparado. Essa alteração de relações requer e envolve certa cooperação
da segunda parte. Você pode dizer, “prometo escrever para você”, mas o outro também deve
se tomar como alguém a quem você está obrigada e deve esperar que você faça o que disse que
faria. Se a aceitação da segunda parte não se concretizar, a relação entre os dois não tomará
a devida forma, e a “promessa” colapsa. Sua fala simplesmente paira – constrangida, não
consumada.

Ficar com raiva de alguém é parecido, de alguma maneira, com um ato de fala no sentido de
que existe uma certa força convencional que coloca as pessoas em certa orientação em relação
uma a outra; e, assim como em um “ato de fala”, essa força não pode ocorrer se não for aceita.

Uma mulher contou esta experiência: ela havia tido dificuldade para ajustar o carburador
de seu carro e, logo depois, um atendente em um posto de gasolina começou a se intrometer
e mexer nele. Ela ficou consternada e lhe disse incisivamente que parasse7. Ele ficou muito
agitado e gritou com ela, chamando-a de vadia louca.

Outras respostas poderiam ter vindo do atendente. Ele poderia ter perguntado por que ele
não deveria tocar no carburador; ele poderia ter, defensivamente, afirmado que ele só estava
olhando e não iria tocá-lo; ele poderia ter tentado persuadi-la de que era, de fato, o correto a se
fazer, para tentar alterar seu ajuste. Todas essas respostas consideram a raiva ao responder,
diretamente, às reivindicações implícitas nela: aceitando-as ou desafiando-as, aceitando ou se

5
Eu uso exemplos de uma pessoa com raiva de outra por causa de um evento porque são paradigmas simples. Claro
que se pode ficar com raiva de si mesmo, ou de várias pessoas, e que um grupo pode ficar com raiva. A imagem
apresentada aqui pode ser estendida a esses tipos de casos, mas não é meu propósito fazer isso nesse esboço.
6
J.L. Austin, How To Do Things With Words (Oxford University Press, 1962).
7
Para aqueles que não sabem sobre carburadores: essa parte do motor mistura gasolina e ar (oxigênio) na proporção
exata para possibilitar a combustão e a sua queima eficiente. Ajustá-lo adequadamente é um trabalho delicado e,
com frequência, frustrante, e seu desajuste causa uma gama de problemas. Quando você acerta, você não mexe,
e, mesmo quando você suspeita que não esteja correto, essa é a última coisa com a qual você realiza testes em seu
esforço de descobrir o que há de errado com o carro.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 86
Uma nota sobre a raiva

defendendo da acusação implícita contra ele. Ele não levou em conta a raiva e suas reivindica-
ções. Ele moveu-se para um outro terreno. O que ele fez foi irrelevante. Ele mudou o assunto –
da questão das ações dele e do carburador, para a questão do caráter e da sanidade dela. Ele
não reconheceu a raiva dela.

Privada de recepção, a raiva da mulher ficou a pairar apenas como uma expressão explosiva
de sentimento individual. Como um ato social, um ato de comunicação, ela simplesmente não
acontece. Ela é, como Austin teria dito, “não desempenhada”.

O tipo de falta de cooperação demonstrado pelo atendente do posto é uma rejeição às


reivindicações da raiva. Ele não as rejeita apenas como falsas e injustificadas, mas como reivin-
dicações tão absurdas e obviamente fora da realidade, que confundem a resposta. Rejeita-as
como reivindicações que só alguém em um estado anormal – histérico ou louco – poderia
fazer, de forma a sugerir que acusações tão obviamente fantasiosas só poderiam ser motivadas
por uma malícia febril e indiscriminada. A pessoa que faz tais reivindicações só pode ser uma
vadia louca.

A raiva de uma pessoa pressupõe certas coisas a respeito de que tipo de ser ela é e quais
tipos de relações são possíveis entre ela e outra pessoa. Os padrões de reivindicações que
alguém pode e não pode tolerar, dos atos que consegue ou não receber, enfim ela é um mapa
parcial para sua visão de mundo. Eles revelam algo do seu entendimento acerca da essência e
da relação das coisas.

Você diz que o filme é às 7:30, e eu discordo, dizendo que é às 7:00. Fico intrigada com o
seu erro, já que acho que você deve ter ligado para o cinema, como eu fiz. No entanto, ainda
estamos no mesmo mundo de crenças e de discurso. Outro dia, você diz que é o messias e que
eu deveria adorá-lo. Essa situação é bem diferente. Eu não sei como discutir com você sobre isso
(supondo que estou convencida de que queremos dizer a mesma coisa com aquelas palavras).
Tenho certos entendimentos do que um messias seria, se existisse um, do que é adorar, bem
como das circunstâncias nas quais a adoração seria apropriada. Isso está enredado muito mais
profundamente no meu entendimento básico do mundo do que minha confiança na saúde de
qualquer pessoa em particular que eu possa encontrar. Do modo como eu entendo esse mundo,
indivíduos humanos enlouquecem com muito mais frequência do que messias aparecem – se
é que eles aparecem. Se estou convencida de que você fala sério, posso apenas supor que há,
em certo sentido, algo de errado com você.

Ficar com raiva é afirmar, implicitamente, que se é um certo tipo de ser, um ser que pode
(e, neste caso o faz) estar em uma certa relação e posição em relação ao ser do qual se está
com raiva. Afirma-se que se é, de certa forma e medida, respeitável. Faz-se a reivindicação de

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 87
Uma nota sobre a raiva

respeito. Para qualquer mulher, pressupor qualquer coisa desse tipo sobre si é, na melhor das
hipóteses, potencialmente problemático e, na pior, incompreensível no mundo da supremacia
masculina, no qual mulheres são Mulheres e homens são Homens. A concepção de um homem
sobre Mulher e sobre Homem e seu entendimento sobre o tipo de relações e conexões que são
possíveis entre seres desses tipos determinam em grande medida o alcance de sua capacidade
de compreender essas reivindicações e, portanto, sua capacidade de receber a raiva da mulher.

Em alguns casos, mulheres podem sentir raiva sem muito risco de serem julgadas como
loucas, silenciadas ou espancadas. Normalmente, mulheres podem sentir raiva de crianças, ou
por crianças. Uma mulher pode sair impune se ficar brava com algum idiota que bateu uma
porta e, assim, arruinou seu suflê, ou com outro que bagunçou as páginas de um relatório que
ela digitou e está compilando. Por outro lado, é mais provável que seja punida por sentir raiva
do idiota que ajustou erroneamente seu carburador. O padrão é óbvio. Crianças, tarefas domés-
ticas e serviços secretariais pertencem a mulheres, carros pertencem a homens. Enquanto
uma mulher estiver operando limitada ao reino que é considerado o reino feminino, rotulado
dessa forma por estereótipos de mulheres e de certas atividades, sua raiva será provavelmente
tolerada, ou pelo menos não será vista como loucura. Parece-me que, em geral, se o comporta-
mento deliberado de uma mulher e a rede de interesses e autoridade que ele cria puderem ser
vistos como pertencentes ao lugar e às funções de Mãe/Cuidadora/Conservadora/Ajudante,
sua reivindicação a autoridade, interesse, presença e lugar fará sentido para outros que têm
relevância. É provável que esteja de acordo o suficiente com seu conceito de Mulher8.

Nós estamos em débito com as mulheres do século XIX por estenderem o espaço da tole-
rância à raiva de mulheres. As lutas e as vitórias de abolicionistas, sufragistas, proibicionistas
e outras reformistas tornaram relativamente seguro que mulheres se enraivecessem publi-
camente em prol de grandes causas morais. De modo geral, mulheres podem ficar com raiva
de coisas como energia e armas nucleares, poluição, guerra, crianças famintas ou pessoas
dirigindo embriagadas (isso não significa, ainda, que nós seremos levadas muito a sério. Apenas
que nossa raiva tem mais chance de ser percebida como “compreensível, mas mal-informada”).

Essa extensão, conquistada duramente, representa apenas uma pequena mudança no


conceito de Mulher. Histórica e logicamente, ela foi uma extensão de nosso “direito” de
maternar. Nós podemos ser percebidas com relativa facilidade como mães de nossas nações, ou

8
Com frequência, a raiva de uma mulher, mesmo quando ela está dentro dessa variedade de lugares sociais, não é
levada a sério, mas isso é porque tudo o que pertence a essa variedade de lugares sociais costuma ser considerado
trivial. Não ser levada a sério não é o mesmo que ser considerada louca. Ainda assim, se a mulher insiste com
persistência suficiente para que sua raiva seja levada a sério, ela pode começar a parecer louca, porque ela parecerá
ter seus valores todos confusos e distorcidos.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 88
Uma nota sobre a raiva

de nosso povo (que, em alguns casos, são representados na mitologia dominante como infantis),
ou da espécie. Em virtude disso, podemos ser compreendidas se reivindicarmos um interesse
legítimo e algum grau de autoridade na questão de sua proteção e preservação9. Também como
uma extensão da maternagem em matéria de bem-estar público ainda é permitida a raiva de
mulheres em benefício de outrem, mas não em nosso próprio benefício.

A raiva de uma mulher em nome de outros é muito mais provável de ser recebida e até
aceita do que sua raiva em seu próprio nome. É por essa razão que é mais fácil para uma mulher
ser apaixonadamente antiaborto do que apaixonadamente “pró-escolha”. Fica-se dentro dos
limites do conceito de Mulher que é mais amplamente compartilhado e mais calorosamente
sancionado quando a paixão é posta em defesa de outro (especialmente se o outro pode ser
plausivelmente representado como “inocente” e como “crianças” ou “bebês”). Pelo mesmo tipo
de motivos, as reivindicações de mulheres a algum tipo de propriedade e de autoridade em
nosso interesse pela “paz” e pela “sobrevivência da humanidade” são, geralmente, mais críveis
nessa cultura do que as reivindicações de mulheres a um tipo de propriedade e de autoridade
em nosso interesse por nossas próprias peles, genitais ou úteros. Portanto, é mais seguro
enraivecer-se com o poder nuclear do que com o próprio estupro; o primeiro é mais provável
de ser inteligível, de ser recebido.

Expandir o escopo da raiva inteligível de alguém é mudar seu lugar no universo, mudar
o conceito do outro sobre o que se é, tornar-se algo diferente nesse esquema social e coletivo
que determina os limites do inteligível. As mulheres do século XIX foram bem-sucedidas em
expandir o conceito de Mulher, que é, na verdade, o conceito de Mãe, a ponto de a mulher poder
expressar raiva em público e ser considerada inteligível. Feministas contemporâneas tomaram
para si o projeto mais radical de expandir o conceito de Mulher a ponto de a mulher poder ser
assertiva e exigir respeito nas esferas pública e privada, simplesmente em benefício próprio.
Ou seja, não como qualquer tipo ou grau de Mãe, mas simplesmente como sendo, ela mesma,
digna de respeito.

Nem toda raiva é justificada e, contanto que tenhamos conceitos de nós mesmos, dos outros e
das relações entre nós, alguma raiva será, às vezes, ininteligível. E, claro, os conceitos de outros
sobre nós nem sempre serão contestáveis. Homens distintos e, de fato, mulheres distintas,

9
Eu tenho um respeito considerável pela maternagem e acredito que as atitudes e práticas de uma boa maternagem
podem contribuir de modo valioso para a condução das coisas na esfera de políticas públicas e da moralidade. As
coisas terão mudado mais, e mais para melhor, quando pudermos maternar adequadamente sem que sejamos vistas
como Mães, e pudermos, como mulheres, realizar uma série de outras coisas também.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 89
Uma nota sobre a raiva

diferem em detalhes nos conceitos que têm de Mulher, e o que perceberiam ou poderiam
perceber como “uma mulher cuidando de sua própria vida, seguindo seus interesses por meios
e utilizando recursos que são seus por direito, para serem empregados”. Alguns homens, por
exemplo, pensam que qualquer assunto concernente ao controle de natalidade é inteiramente
uma preocupação feminina e que a virtude exige de homens que se relacionam sexualmente
com mulheres apenas que deixem as mulheres tomarem conta desse assunto. Ao mesmo tempo,
alguns maridos pensam que a fecundidade da esposa pertence inteiramente ao marido para
controlar e administrar. O primeiro tipo de homem ficaria confuso com a raiva de uma mulher
diante de sua irresponsabilidade; o segundo tipo ficaria confuso com a raiva de sua esposa,
caso ele a engravidasse. Em ambos os casos, a descoberta do que os confunde é a descoberta
de algum aspecto do que o homem pensa que uma mulher é.

Não existem duas mulheres que vivam, detalhada e diariamente, em espaços idênticos,
criados por variedades conceituais de Mulher idênticas. Algumas de nós, em verdade, temos
construído conscientemente situações para nós, nas quais somos moldadas por conceitos
escolhidos e íntegros de Mulher. Para o bem ou para o mal, em cada uma de nossas vidas, os
conceitos de outros sobre nós são revelados pelos limites de inteligibilidade de nossa raiva.
A raiva pode ser um instrumento cartográfico. Ao determinar onde, com quem, sobre o que
e em quais circunstâncias pode-se ficar com raiva e ser compreendido, é possível mapear os
conceitos do outro sobre quem e o quê se é.

Uma mulher levou esse pensamento para casa com ela e o testou. Ela andou pelo aparta-
mento que dividia, não infeliz, com seu jovem marido, testando, em sua imaginação, a viabi-
lidade de sua raiva – em quais situações ela “funcionaria”, ela seria recebida. Ela descobriu
que o padrão era muito simples e evidente. Ele seguia a planta do apartamento. Ela poderia se
enraivecer bem livremente na cozinha e, de modo um pouco menos livre e numa gama mais
limitada, na sala de estar. Ela não poderia se enraivecer no quarto.

Raiva. Domínio. Respeito.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 90
6 Algumas
reflexões sobre
separatismo
e poder1

T
enho tentado escrever algo sobre separatismo praticamente desde a aurora da minha
consciência feminista, mas para mim sempre foi, de alguma maneira, um tópico instável
que, quando tento apreendê-lo, gentilmente se quebra em vários outros tópicos, como
sexualidade, ódio a homens, a chamada discriminação reversa, utopia apocalíptica, e por aí vai.
O que eu tenho para compartilhar com vocês, hoje, é minha mais recente tentativa de chegar
ao cerne da questão.

Na minha vida, e dentro do feminismo como o compreendo, separatismo não é uma teoria
ou uma doutrina, nem uma demanda por certos comportamentos específicos por parte de
feministas, embora esteja, compreensivelmente, conectado com o lesbianismo. O feminismo
me parece um caleidoscópio – algo cujas formas, estruturas e padrões se alteram a cada curva
da criatividade feminista, e um elemento que está presente mesmo com todas as mudanças
é um elemento de separação. Esse elemento possui diferentes papéis e relações em diferentes
viradas do vidro – ele assume significados diferentes, é diversamente conspícuo, diversamente
determinado ou determinante, dependendo de como as partes se encaixam e de quem o segura.

O tema do separatismo, em suas múltiplas variações, se faz presente em tudo, desde o


divórcio até comunidades separatistas exclusivamente lésbicas, de abrigos para mulheres
espancadas até covens de bruxas, dos programas de estudo de mulheres até os bares de

1
Esse artigo foi apresentado pela primeira vez em um encontro da Society for Women in Philosophy, Divisão do
Leste, em dezembro de 1977. Foi impresso pela primeira vez no livro Sinister Wisdom 6, Summer 1978. Também está
disponível como panfleto do Tea Rose Press, P.O Box 591, East Lansing, Michigan, 48823. Antes de ser publicado,
recebi muitos comentários prestativos daqueles que ouviram ou leram o ensaio. Incorporei alguns, tomei nota de
outros. Tive ajuda de Carolyn Shafer para ver a estrutura dele na completude, em particular, as conexões entre
parasitismo, acesso e definição.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 92
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

mulheres, da expansão do direito à creche até o direito ao aborto. A presença desse tema
é vigorosamente obscurecida, trivializada, mistificada e abertamente negada por muitas
apologistas feministas, que parecem achá-lo constrangedor, enquanto é abraçado, explorado,
expandido e ramificado pela maior parte das teóricas e ativistas mais inspiradoras. O tema da
separação é notoriamente ausente ou negativamente qualificado na maior parte das iniciativas
que considero ser soluções pessoais e projetos band-aid, como a legalização da prostituição,
contratos liberais de casamento, melhoria do tratamento de vítimas de estupro e ações afir-
mativas. Está claro para mim, em meu próprio caso, pelo menos, que a contraposição entre a
assimilação e separação é uma das principais coisas que guiam ou determinam as análises
de várias teorias, ações e práticas como reformista ou radical; como indo à raiz do problema
ou como sendo relativamente superficial. Então minha questão, nesse tópico, é: o que há, na
proposta separatista, em qualquer ou todas as suas várias formas e graus, que a torna tão
básica e tão sinistra, tão excitante e tão repelente?

A separação feminista é, naturalmente, a separação, de vários tipos ou modos, dos homens e das
instituições, relacionamentos, papéis e atividades que são definidas por homens, dominadas por
homens e que operam para o benefício de homens e a manutenção de privilégio masculino – esta
separação sendo iniciada ou mantida pela vontade das mulheres. (O separatismo masculinista
é a segregação parcial de mulheres dos homens e dos domínios masculinos pela vontade dos
homens. Essa diferença é crucial). A separação feminista pode tomar muitas formas. Terminar
relacionamentos amorosos ou evitar relacionamentos próximos ou relações de trabalho; proibir
alguém de entrar em sua casa; excluir alguém da sua empresa, ou de sua reunião; retirar a
própria participação em alguma atividade ou instituição, ou evitar participação; evitar comu-
nicação e influência de certos meios (não escutar música com letras sexistas, não assistir
TV); recusar compromisso ou apoio; rejeição a ou grosseria dirigida a indivíduos ofensivos2.
Algumas separações são realinhamentos sutis de identificação, prioridades e compromissos, ou
dedicar-se a causas que apenas incidentalmente coincidem com pautas da instituição na qual
se trabalha3. Deixar de ser leal a algo ou a alguém é uma separação e deixar de amar alguém
também o é. As separações feministas raramente ou quase nunca são buscadas ou mantidas
diretamente para fins pessoais ou políticos. O mais próximo que chegamos a isso, penso eu,
2
Adrienne Rich: “... me faz questionar toda a ideia de ‘cortesia’ ou ‘grosseria’ – certamente constructos deles,
uma vez que mulheres tornam-se ‘grosseiras’ quando ignoramos ou rejeitamos ofensas de homens, enquanto a
‘grosseria’ masculina é, normalmente, pontuada com a tática ‘Você não tem senso de humor?’”. Sim, eu também.
Eu abraço a grosseria, nossa polidez compulsiva/compulsória é o que, com frequência, nos coage a ingressar em
suas “sociedades”.
3
Ajuda de Claudia Card.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 93
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

é a separação como um recuo instintivo de autopreservação da misoginia sistemática que nos


rodeia4. Geralmente, as separações são trazidas e mantidas para o bem de algo mais, como
independência, liberdade, crescimento, invenção, irmandade, segurança, saúde ou a prática de
costumes novos ou heréticos5. Com frequência, as separações em questão evoluem, sem preme-
ditação, conforme a pessoa segue seu caminho e encontra várias outras pessoas, instituições
ou relacionamentos inúteis, obstrutivos ou nocivos e os deixa de lado ou para trás. Às vezes,
as separações são planejadas conscientemente e cultivadas como pré-requisitos ou condições
para seguir cuidando da própria vida. Às vezes, as separações são realizadas ou mantidas
facilmente, ou com um sentimento de alívio e até alegria; às vezes, são realizadas ou mantidas
com dificuldade, à base de vigilância constante, ou com ansiedade, dor ou luto.

A maior parte das feministas, provavelmente todas elas, praticam alguma separação de homens
e de instituições dominadas por homens. Uma separatista pratica a separação consciente-
mente, sistematicamente e, provavelmente, mais generalizadamente que as demais e advoga
pela separação como parte da estratégia consciente de liberação. Ao contrário da imagem
da separatista como uma escapista covarde6, é dela a vida e o programa que inspiram mais
hostilidade, depreciação, insultos e confrontações e, geralmente, é contra ela que sanções econô-
micas operam de modo mais decisivo. A pena pela recusa a trabalhar com ou para homens é,
geralmente, a fome (ou, no mínimo, ter que viver sem assistência médica7); e, se a política de
não cooperação é mais sutil, seu sustento ainda está constantemente ameaçado, uma vez que
não é uma partidária leal, um membro adequado da equipe, ou o que quer que seja. As penas
por ser lésbica são ostracismo, assédio e insegurança no trabalho ou desemprego. A pena por
recusar as iniciativas sexuais de homens é, com frequência, o estupro e, talvez ainda mais
frequentemente, a renúncia a coisas como oportunidades profissionais ou de emprego. E as
separatistas vivem com o fardo adicional de serem consideradas por muitos como depravadas
morais, intolerantes que odeiam homens. No entanto, há uma pista aí: se você está fazendo algo
que é tão estritamente proibido pelos patriarcas, você deve estar fazendo alguma coisa certa.

4
Ti-Grace Atkinson: “Deveria dar mais atenção aqui para nossa vulnerabilidade a agressões e a degradações e ao
separatismo como proteção”. Tudo bem, mas, então, temos que enfatizar, novamente, que deve ser a separação a
nosso comando – tivemos o suficiente da separação deles imposta a nós para nossa “proteção”. (Não há como negar
que, em minha vida real, proteção e manutenção de espaços de cura são grandes motivos para separação).
5
Ajuda de Chris Pierce e Sara Ann Ketchum. Veja “Separatism and Sexual Relationships”, em A Philosophical Approach
to Women’s Liberation, eds. S. Hill e M Weinzweig (Wadsworth, Belmont, California, 1978).
6
Respondendo Claudia Card.
7
Créditos pela brincadeira devidos a Carolyn Shafer.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 94
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

Existe uma ideia circulando tanto na literatura feminista quanto na antifeminista de que
mulheres e homens geralmente vivem em uma relação de parasitismo8, um parasitismo do
macho sobre a fêmea... Isto é, genericamente falando, a força, energia, inspiração e o cuidado
de mulheres que mantêm os homens, e não a força, agressão, espiritualidade e a caça feita por
homens que mantêm as mulheres.

Fala-se, ocasionalmente, que o parasitismo ocorre no sentido contrário, que a mulher é a


parasita. Contudo, pode-se invocar a aparência da mulher como parasita apenas se for tomada
uma visão muito limitada da vida humana – historicamente restrita, insuficiente a respeito
de classe e raça e na concepção do que são bens necessários. Geralmente, a contribuição de
mulheres para o sustento material é e sempre foi substancial; em muitas épocas e lugares ela
era suficiente por si só. Pode-se e deve-se distinguir entre uma dependência material parcial
e contingente, criada por um certo tipo de economia monetária e estrutura de classe, e a
quase onipresente dependência espiritual, emocional e material dos homens em relação às
mulheres. Atualmente, homens provêm, de vez em quando, uma porção do sustento material
das mulheres, dentro de circunstâncias aparentemente criadas para dificultar que mulheres
possam prover a si mesmas. Contudo, mulheres provêm e, geralmente, têm provido homens
de energia e espírito para viver; os homens são cuidados pelas mulheres. E, aparentemente,
homens não podem fazer isso por si mesmos, nem mesmo parcialmente.

O parasitismo de homens sobre mulheres é, da forma como vejo, demonstrado pelo pânico,
raiva e histeria gerados em muitos deles pela ideia de serem abandonados por mulheres. Mas
isso é demonstrado de uma forma que, talvez, seja mais genericamente persuasiva por evidên-
cias literárias e sociológicas. Evidências citadas no trabalho de Jesse Bernard The Future of
Marriage e no de George Gilder Sexual Suicide e Men Alone mostram de modo convincente que
homens tendem a sofrer com adoecimento mental, pequenos delitos, alcoolismo, enfermidade
física, desemprego crônico, vício em drogas e neurose em um número chocantemente signifi-
cativo e em um grau alarmante, quando privados do cuidado e da companhia de uma compa-
nheira ou cuidadora do sexo feminino. (Por outro lado, mulheres sem companheiros homens
são significantemente mais saudáveis e felizes do que mulheres com companheiros do sexo
masculino). A literatura masculinista está repleta de indicadores do canibalismo masculino,
de homens obtendo o sustento essencial de mulheres. Imagens de canibalismo, visual e verbal,
são comuns na pornografia: imagens comparando mulheres a comida e sexo a comer. Como
documentado no livro Sexual Politics de Millett e muitas outras análises feministas da literatura

8
Notei isso pela primeira vez quando li Beyond God the Father, por Mary Daly (Beacon Press, Boston, 1973). Veja
também Women’s Evolution, de Evelyn Reed (Pathfinder Press, Nova Iorque, 1975) para pistas valiosas sobre o cani-
balismo masculino e a dependência masculina.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 95
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

masculinista, o tema de homens sentindo prazer ao bater, estuprar ou matar mulheres (ou
apenas fazer bullying com elas) é comum. Essas interações com mulheres, ou melhor dizendo,
essas ações infligidas a mulheres, fazem com que homens se sintam bem, orgulhosos, revigo-
rados, fortalecidos. Homens ficam drenados e esgotados ao viverem sozinhos ou com outros
homens e parecem reviver e se revigorar, restaurados, ao irem para casa e terem seu jantar
servido, trocarem as roupas por peças limpas, fazerem sexo com a esposa; ou passarem no
apartamento de uma amiga que lhe sirva café ou um drink e serem acariciados de uma forma
ou de outra; ao pegarem uma prostituta para uma rapidinha ou para um mergulho em suas
fantasias sexuais escapistas preferidas; ou ao estuprarem refugiadas de suas guerras (estran-
geiras e conterrâneas). As assistências de mulheres, sejam elas deliberadas ou não, grátis ou
pagas, são o que restauram a força, a vontade e a confiança em homens para seguirem com o
que eles chamam de vida.

Se é verdade que um aspecto fundamental das relações entre os sexos é o parasitismo


masculino, pode ser útil explicar por que certas questões são particularmente excitantes para
os leais ao patriarcado. Por exemplo, diante de vantagens óbvias do acesso facilitado ao aborto
para o controle populacional, para o controle do bem-estar e para assegurar a disponibilidade
sexual de mulheres para homens, é um pouco surpreendente que os leais sejam tão inflexíveis
e enfurecidos em sua objeção. Mas veja...

O feto vive parasiticamente. É um animal distinto, vivendo da vida (do sangue) de outra
criatura animal. É incapaz de sobreviver com recursos próprios, com nutrição independente,
incapaz mesmo de simbiose. Se é verdade que homens vivem parasiticamente de mulheres,
parece razoável supor que muitos deles e aqueles leais a eles se sensibilizem, de alguma
maneira, com o paralelismo entre sua situação e a do feto. Eles poderiam, facilmente, se iden-
tificar com o feto. A mulher que é livre para ver o feto como um parasita9 pode se tornar livre
para ver o homem como um parasita. A disposição de mulheres para cortar o fio da vida para
um parasita sugere uma disposição para cortar o fio da vida para outro. A mulher que é capaz
(legalmente, psicologicamente, fisicamente) de rejeitar um parasita de modo definitivo, inde-
pendente e por interesse próprio é capaz de rejeitar, com a mesma determinação e indepen-
dência, o fardo semelhante de outro parasita. Aos olhos do outro parasita, a imagem do aborto
totalmente autodeterminado, que não envolve nem mesmo um ritual de submissão ao poder
de veto masculino, é a imagem espelhada da morte.

9
Caroline Whitbeck: evidências transculturais sugerem que não é o feto que é rejeitado em culturas nas quais o aborto é
comum, é o papel da maternidade, o fardo, em particular, da “ilegitimidade”; em locais onde a instituição da ilegitimidade
não existe, as taxas de aborto são baixas. Isso me leva a pensar que a rejeição de mulheres ao feto é ainda mais dire-
tamente uma rejeição ao masculino e ao seu mundo do que imaginei inicialmente.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 96
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

Outra pista, aqui, é que uma linha de argumento contra o aborto livre e descomplicado é o
argumento escorregadio de que, se for possível dispensar de fetos livremente, os velhos serão
os próximos. Velhos? Por que os velhos seriam os próximos? E por que essa grande preocupação
com eles? A maioria das pessoas idosas é mulher e os leais ao patriarcado não são, geralmente,
tão solícitos com o bem-estar de qualquer mulher. Por que velhos? Porque, penso eu, na divisão
patriarcal moderna do trabalho, os velhos também são parasitas das mulheres. O pessoal
antiaborto parece não se preocupar a respeito do espancamento de esposas e do assassinato
de esposas – não há apoio popular amplo ou emocional para interromper essas violências.
Eles não se preocupam com assassinato e com esterilização involuntária em prisões, ou com
assassinatos em guerras, ou com assassinatos pela poluição e por acidentes industriais. Ou
essas coisas não são reais para eles, ou eles não conseguem se identificar com as vítimas; de
todo modo, não é à matança em geral que eles se opõem. Eles se preocupam com a rejeição por
mulheres, a critério das mulheres, de algo que vive parasiticamente em mulheres. Suspeito que
eles se inquietam não porque velhos são os próximos, mas porque homens são os próximos.

Existem outras razões, claro, para os leais ao patriarcado ficarem perturbados com o aborto
sob demanda; uma grande razão sendo a de que seria uma forma significativa de controle
feminino sobe a reprodução e, pelo menos sob certos ângulos, parece que o progresso do
patriarcado é o progresso em direção ao controle masculino da reprodução, começando pela
posse de esposas e perpassando a invenção da obstetrícia e da tecnologia de gestação extraute-
rina. Abrir mão desse controle seria renunciar ao patriarcado. Contudo, tal objeção ao aborto é
muito abstrata e requer uma visão demasiado histórica para gerar a histeria que existe atual-
mente em reação contra o aborto. A histeria, penso eu, deve ser explicada mais em termos de
um pressentimento muito mais imediato e pessoal de expulsão pela mulher-útero10.

Eu discuto aborto aqui porque me parece ser o terreno mais publicamente emocional e
fisicamente dramático no qual os temas do separatismo e do parasitismo masculino estão se
desenvolvendo atualmente. Entretanto, existem outros locais para esse debate. Por exemplo11,
mulheres com a consciência recentemente desenvolvida tendem a abandonar casamentos e
famílias, seja completamente por meio do divórcio, seja parcialmente, por meio da indisponibi-
lização de seu trabalho de preparo de alimentos, manutenção do lar e servidão sexual. Mulheres
acadêmicas tendem a tornar-se alienadas de seus colegas e mentores homens e a não mais
servir como caixa de ressonância, impulsionadora de ego, editora, amante ou revisora. Muitas

10
Claudia Card.
11
As instâncias mencionadas são escolhidas por sua relevância para as vidas das mulheres em particular que foram
citadas nessa palestra. Existem muitos outros tipos de instâncias a serem desenhados de outras formas de viver
das mulheres.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 97
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

mulheres em processo de despertar, tornam-se celibatárias ou lésbicas; e as outras tornam-se


consideravelmente mais exigentes a respeito de quando, onde e em quais relacionamentos elas
farão sexo com homens. Os homens afetados por esse separatismo geralmente reagem com
hostilidade defensiva, ansiedade e induzindo sentimento de culpa, sem mencionar o declínio
em discussões ilógicas que se equiparam ou superam as imagens mais fantasiosas que eles
têm da irracionalidade feminina. Minha alegação é que eles estão com muito medo porque
dependem muito profundamente dos benefícios que recebem de mulheres e esses separatismos
os privam desses benefícios.

O parasitismo masculino significa que homens devem ter acesso a mulheres, é o Imperativo
Patriarcal. No entanto, a recusa feminista é mais que uma remoção (redirecionamento, realo-
cação) substancial de bens e serviços porque Acesso é uma das faces do Poder. A recusa de
mulheres ao acesso masculino a elas corta substancialmente o fluxo de benefícios, mas tem
também a mesma forma e carrega um forte presságio de uma tomada de poder.

Diferenças de poder sempre são manifestadas em assimetrias no acesso. O Presidente


dos Estados Unidos tem acesso a quase todos para quase qualquer coisa que ele possa vir a
querer, e quase ninguém tem acesso a ele. Os super ricos têm acesso a quase todo mundo;
quase ninguém tem acesso a eles. Os recursos dos empregados estão disponíveis para o chefe,
enquanto os recursos do chefe não estão disponíveis para os empregados. Os pais possuem
acesso incondicional ao quarto das crianças; a criança não possui acesso similar ao quarto dos
pais. Estudantes ajustam-se ao horário de trabalho do professor; professores não se ajustam aos
horários dos estudantes. Das crianças é exigido que não mintam; os pais são livres para excluir
crianças com mentiras, a seu critério. O escravo é incondicionalmente acessível ao mestre.
Poder total é acesso incondicional; completa falta de poder é ser acessível incondicionalmente.
A criação e manipulação de poder são constituídas pela manipulação e controle do acesso.

Grupos, encontros e projetos exclusivamente femininos parecem ser muito bons em causar
controvérsia e confronto. Muitas mulheres ofendem-se com eles; muitas têm medo de ser aquela
que anuncia a exclusão de homens; são vistos como um dispositivo cujo uso precisa de muita
elaboração e justificativa. Penso que é dessa forma porque exclusão consciente e deliberada de
homens por mulheres, de qualquer coisa, é uma insubordinação flagrante e gera, nas mulheres,
medo de punição e de represália (medo que é, com frequência, justificado). Nossa própria timidez
e desejo de evitar confronto geralmente nos impede de fazer muito no que diz respeito a grupos
e encontros exclusivamente femininos. E, quando o fazemos, invariavelmente, nos deparamos
com o herói masculino que desafia nosso direito em fazê-lo. Apenas uma pequena minoria

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 98
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

de homens enlouquece quando um evento é anunciado como sendo apenas para mulheres –
um único homem tentou invadir o evento exclusivo para mulheres “Grito contra o Estupro”
e apenas alguns esconderam-se debaixo das cadeiras do auditório para tentar espiar uma
reunião apenas para mulheres na convenção da NOW (Organização Nacional de Mulheres) na
Filadélfia. Esses poucos, contudo, detectam algo que seus com-patriotas menos raivosos deixam
escapar. A reunião exclusivamente feminina é um desafio fundamental à estrutura de poder.
É sempre o privilégio do mestre entrar na cabana do escravo. O escravo que decide excluir o
mestre de sua cabana está declarando a si mesmo como não-escravo. A exclusão de homens de
reuniões não apenas os priva de certos benefícios (sem os quais eles podem sobreviver); é um
controle de acesso, portanto, uma tomada de poder. Não é apenas perverso, é arrogante.

Torna-se mais evidente, agora, porque há sempre uma aura desestimulante de negatividade
acerca do separatismo – uma que é ofensiva para a pollyanna feminina em nós e que cheira a
algo meramente defensivo para a teórica política que habita em nós. É esta: primeiro: quando
aqueles que controlam acesso tornam você totalmente acessível, seu primeiro ato para retomar
o controle deve ser negar acesso, ou deve ter essa negação de acesso como um de seus aspectos.
Não é porque você está carregada de negatividade (não feminina ou politicamente incorreta),
é por causa da lógica da situação. Quando começamos de uma posição de completa acessibi-
lidade, deve haver um aspecto de negação (que é o início do controle) em todo ato e estratégia
efetivos, sendo os efetivos, precisamente, os que alteram o poder, por exemplo, aqueles que
envolvem manipulação e controle de acesso. Segundo: quer alguém diga “não”, ou se recuse a
ceder ou ponha um fim a uma situação ou rejeite algo, numa ou noutra ocasião, a capacidade
e a habilidade de dizer “não” (efetivamente) é logicamente necessária para o controle. Quando
estivermos no controle do acesso a nós mesmas, haverá algum “não” dito e, quando estivermos
mais acostumadas a isso, quando for mais comum, uma parte ordinária da vida, não parecerá
tão proeminente, óbvio ou tenso... Nós não vamos parecer a nós mesmas ou a outros como
sendo particularmente negativas. Nesse aspecto de nós mesmas e de nossas vidas, pareceremos
a nós mesmas, prazerosamente, como sendo seres ativas com um impulso próprio, com forma
e estrutura suficientes – com integridade suficiente – para gerar fricção. “Nossa experiência
em dizer não será um aspecto da nossa experiência sobre a nossa definição.”

Quando nossos atos ou práticas feministas têm um aspecto de separação, estamos assumindo
poder ao controlar acesso e, simultaneamente, ao afirmar uma definição. O escravo que exclui
o mestre de sua cabana, portanto, declara a si mesmo como não escravo. Definição é outra face
do poder.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 99
Algumas reflexões sobre separatismo e poder

Os poderosos, normalmente, determinam o que é dito e dizível. Quando os poderosos


rotulam, apelidam ou batizam algo, aquilo se torna o que eles nomearam. Quando o Secretário
da Defesa chama algo de negociação de paz, por exemplo, então o que quer que seja o que ele
nomeou como negociação de paz é uma instância para negociar paz. Se a atividade em questão
é elaborar os termos de uma negociação de reatores nucleares e redistribuição territorial,
completada com arranjos para os refugiados que resultarem disso, então isso é pacificação. As
pessoas elogiam e os negociadores ganham prêmios Nobel da Paz. Por outro lado, quando eu
chamo um certo ato de fala de estupro, meu “nomear” não o torna um. Na melhor das hipóteses,
terei que explicar, justificar e esclarecer exatamente o que nesse ato de fala é abusivo nesse
sentido e, então, os outros aquiescem, dizendo que o ato foi como um estupro ou poderia ser
chamado, figurativamente, de estupro. Meu contra-ataque não será considerado como um
simples caso de autodefesa. E o que eu chamo de rejeição ao parasitismo, eles chamam de perda
das virtudes femininas da compaixão e do “cuidado”. Geralmente, quando mulheres renegadas
nomeiam algo de uma maneira e os leais ao patriarcado o chamam de outra, os leais conseguem
o que querem12.

As mulheres geralmente não são as pessoas que fazem as definições, e não podemos,
a partir do nosso isolamento e da nossa impotência, simplesmente começar a chamar as

12
Esse parágrafo e o seguinte são passagens que têm provocado as questões mais substanciais de mulheres que
leem o ensaio. Uma coisa que causa problemas aqui é que estou falando de um lugar ou posição que é ambíguo –
é localizado em dois sistemas diferentes e não comunicáveis de pensamento-ação. Acerca do patriarcado e da
língua inglesa, há um uso generalizado sobre o qual eu/nós não temos o controle que a elite masculina tem (com
a cooperação de todos os leais ao patriarcado comuns). Em relação ao novo ser e aos significados que estão sendo
criados agora por lésbicas feministas, nós temos autoridade semântica e, coletivamente, podemos definir e definimos
com efeitividade. Penso que é apenas mantendo nossos limites, por meio do controle concreto do acesso a nós,
que podemos afirmar aos outros uma definição própria do que somos e, assim, forçar sobre eles o fato de nossa
existência e, então, abrir a possibilidade de possuir autoridade semântica com eles. (Escrevi coisas relevantes para
essa discussão no artigo “Male Chauvinism – A Conceptual Analysis”)*. Nossa ininteligibilidade para os leais ao
patriarcado é fonte de orgulho e deleite em alguns contextos, mas se não tivermos uma efetividade no uso dessa
ininteligibilidade, enquanto continuamos, gostemos ou não, a ser sujeitas ao uso deles, então ser totalmente
ininteligível pode ser fatal. (Uma amiga minha teve um sonho no qual as mulheres estavam reunindo-se em uma
cabana no limite da cidade e elas tiveram a ideia de que deveriam colocar uma placa na porta que se conectaria com
o sistema de significados patriarcal, pois, caso contrário, homens poderiam ficar demasiado curiosos/assustados
com elas e poderiam quebrar a porta para entrar. Elas colocaram a foto de um peixe na porta). Claro, você pode
dizer que ser inteligível a eles pode ser fatal. Bem, talvez seja melhor estar na posição de tomar decisões táticas a
respeito de quando e como ser inteligível e ininteligível.
* Em Philosophy and Sex (por mais improvável que seja), editada por Robert Baker e Frederick Elliston (Prometheus
Books, Buffalo, Nova Iorque, 1976).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 100


Algumas reflexões sobre separatismo e poder

coisas diferentemente do que outros chamam e fazer com que isso valha. Há um dilema
Humpty-Dumpty13 aí. Ainda assim, somos capazes de nos apropriar de definições para nós
mesmas quando repadronizamos o acesso. Ao assumir o controle sobre o acesso, desenhamos
novos limites e criamos novos papéis e relações. Isso, embora cause alguma tensão, perplexi-
dade e hostilidade, está, em certa medida, dentro do escopo de indivíduos e pequenos grupos,
o que não ocorre com a redefinição verbal direta, pelo menos à primeira vista.

Pode-se ver o acesso ocorrendo de duas formas, “natural” e humanamente arranjada.


Um urso tem o que você pode chamar de acesso natural à cesta de piquenique do humano
desarmado. O acesso do patrão ao serviço pessoal da secretária é um acesso humanamente
arranjado; o patrão exerce poder institucional. Me parece, olhando por certo ângulo, que as
instituições são padrões humanamente desenhados de acesso – acesso a pessoas e a seus
serviços. No entanto, instituições são artefatos de definição. No caso de instituições intencional
e formalmente desenhadas, isso é muito evidente, pois as definições relevantes são fixadas
explicitamente por leis e Constituições, regulamentos e regras. Quando se define o termo
“presidente”, definem-se presidentes em termos do que podem fazer e do que lhes é devido
por outros oficiais, e o que “podem fazer” é uma questão de seu acesso aos serviços de outros.
Similarmente, definições de reitor, estudante, juiz e policial criam padrões de acesso, e definições
de escritor, criança, proprietário e, claro, de marido, mulher e homem e menina. Quando se muda
os padrões de acesso, se força novos usos de palavras sobre aqueles afetados. O termo ‘homem’
é forçado a mudar de significado quando o estupro não é mais possível. Quando tomamos
controle do acesso sexual a nós, do acesso ao nosso cuidado e da nossa função reprodutiva,
acesso a nossa maternagem e sororidade, redefinimos a palavra ‘mulher’. A mudança no uso é
imposta a outros por uma mudança na realidade social, não aguarda o reconhecimento deles
de nossa autoridade para definir como legítima.

Quando mulheres se separam (se recusam a ceder, rompem, se reagrupam, transcendem,


deixam de lado, se retiram, migram, dizem não), estão, simultaneamente, controlando acesso
e definindo. Somos duplamente insubordinadas, uma vez que nenhuma dessas duas coisas
é permitida. Acesso e definição são ingredientes fundamentais na alquimia do poder, então
somos duplamente, e radicalmente, insubordinadas.

13
N.T.: Humpty-Dumpty é uma personagem de uma rima anglófona infantil que aparece em várias histórias, como
em Alice no País das Maravilhas, na qual acontece o seguinte diálogo:
“Quando eu uso uma palavra”, Humpty-Dumpty disse num tom um tanto desdenhoso, “ela significa exatamente o
que eu quero que ela signifique – nem mais, nem menos.”
“A questão”, disse Alice, “é se você pode fazer as palavras significarem coisas diferentes.”
“A questão”, disse Humpty-Dumpty, “é quem manda – só isso.”

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 101


Algumas reflexões sobre separatismo e poder

Se essas são, então, algumas das formas nas quais o separatismo está no cerne da nossa luta,
isso ajuda a explicar o porquê de ele ser um assunto tão controverso. Se há uma coisa que deixa
as mulheres enjoadas, é tomar o poder de fato. Contanto que se pare quando estiver à beira de
fazer isso, os patriarcas, em sua maior parte, terão uma atitude indulgente. Temos medo do
que acontecerá conosco quando realmente os assustarmos. Esse não é um medo irracional.
Na nossa experiência no movimento, a atitude defensiva, áspera, violenta, hostil e irracional
na reação ao feminismo tende a se relacionar com a ousadia da separação como estratégia ou
projeto, o que desencadeia essa reação. As separações envolvidas no abandono por mulheres
de seus lares, casamentos e namorados, separações de fetos e a separação que o lesbianismo
traz são todas bastante dramáticas. Isto é, elas são dramáticas e ousadas, quando perce-
bidas dentro do enquadramento oferecido pela visão de mundo patriarcal e pelo parasitismo
masculino. Questões tocantes ao casamento e ao divórcio, lesbianismo e aborto tocam homens
individualmente (e seus simpatizantes) porque eles podem sentir a relevância disso para eles
próprios – eles podem sentir a ameaça de que eles possam vir a ser os próximos. Portanto,
a heterossexualidade, o casamento e a maternidade, que são as instituições que, de modo mais
óbvio e pessoal, mantêm a disponibilidade de mulheres para homens, formam a tríade central
da ideologia antifeminista; e espaços exclusivamente de mulheres, organizações exclusiva-
mente de mulheres, reuniões exclusivamente de mulheres, salas de aula exclusivamente de
mulheres, são tornadas ilegais, suprimidas, assediadas, ridicularizadas e punidas – em nome
daquela outra instituição patriarcal bacana e duradoura, a Igualdade dos Sexos.

Para algumas de nós, essas questões podem parecer quase estrangeiras... estranhas para
ocuparem o palco principal. Estamos engajadas no que nos parece nossas insubordinações
ousadas: vivendo nossas vidas, tomando conta de nós mesmas e umas das outras, fazendo
nosso trabalho e, em particular, falando aquilo que pensamos. Ainda assim, o pecado original é
a separação que isso tudo pressupõe; e é por isso, não por nossa arte ou filosofia, ou por nossos
discursos, nem por nossos “atos sexuais” (ou abstinência), que seremos perseguidas, quando
o pior acontecer.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 102


7 Sobre ser branca:
pensando em
direção a um
entendimento
feminista
acerca de raça
e da supremacia
racial1

▸I
Feministas brancas não chegam a um pensamento renovado e sério acerca do racismo de forma
espontânea. Somos pressionadas pelas mulheres de cor. Mulheres negras têm comparecido
e falado em conferências, reuniões e festivais feministas, apontado que suas necessidades e
interesses não são levados em consideração ou respondidos e que muito do que feministas

1
Essa é uma versão levemente revisada do texto de um discurso que fiz a uma audiência mista na Universidade
Cornell, patrocinado pelo Programa de Estudos das Mulheres, pelo Departamento de Filosofia e pelo James H.
Becker Alumni Lecture Series, no dia 29 de Outubro de 1981. No processo de revisão, contei com os comentários
e com as críticas de Nancy K. Bereano, Michele Nevels, Carolyn Shafer, Sandra Siegel, Sharon Keller e Dorothy
Yoshimuri. Esse ensaio, mais do que qualquer outro dessa coletânea, reflete diretamente minha localização e é
limitado por ela, tanto culturalmente quanto no processo de mudança. A última coisa que eu gostaria é que ele fosse
lido como minha última compreensão, ou o entendimento completo, do que a branquitude é e do que ela significa
para uma feminista branca. Em nenhum momento eu o vejo dessa forma ou desejo que ele o seja.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 104


Sobre ser branca

brancas dizem e fazem é racista. Algumas feministas brancas são conscientes e agem contra
o racismo desde o início e espontaneamente, mas o tópico do racismo chegou, por necessidade,
nos jornais e periódicos feministas, na Associação Nacional de Estudos das Mulheres, em
centros de mulheres e livrarias femininas nos anos recentes, não tanto pelo clamor de femi-
nistas brancas, mas porque mulheres negras exigiram isso.

Apesar disso, muitas feministas brancas têm, em certa medida, respondido à demanda; o que
quero dizer com isso é que elas têm, até certo ponto, escolhido escutar o que, geralmente, está
em seu poder de ignorar. Às vezes, escutar é, como qualquer pessoa do meio sabe, algo muito
defensivo; algumas vezes embotada pelo medo; algumas vezes, de modo alarmante, parcial ou
distorcido. No entanto, é interessante que eu e outras feministas brancas tenhamos ouvido
as objeções e as demandas, pois penso ser um aspecto do privilégio de raça o fato de ter uma
escolha – uma escolha entre as opções de escutar ou não escutar. Isso é, em parte, o que ser
branca te oferece.

Essa questão dos poderes que feministas brancas têm por serem brancas apareceu de
um modo muito concreto para mim em uma situação da vida real há um tempo. De forma
consciente, e com o encorajamento de várias mulheres negras – amigas e mulheres que se
expressavam na imprensa feminista –, algumas mulheres brancas formaram um grupo de
tomada de consciência para identificar e explorar o racismo em nossas vidas, com o objetivo de
desmantelar as barreiras que bloqueiam nosso entendimento e nossa ação nessa questão. Como
é óbvio pela descrição, certamente pensamos que estávamos fazendo a coisa certa. Algumas
mulheres negras falaram conosco sobre sua visão de que seria racista fazer dele um grupo
para mulheres brancas apenas; discutimos nossos motivos e convidamos mulheres negras que
quisessem participar do grupo a irem à reunião para maiores discussões.

Em uma reunião comunitária depois disso, uma mulher negra nos criticou com muita
raiva por sequer pensarmos que poderíamos atingir nossos objetivos trabalhando apenas com
mulheres brancas. Dissemos que não era nossa intenção que esse tipo de trabalho em parti-
cular, ao longo de poucas semanas, fosse tudo o que fizéssemos e contamos que decidimos, no
início, organizar um grupo aberto a todas as mulheres pouco depois que nossas reuniões com
mulheres brancas se encerrassem. Bem, o que algumas de vocês irão supor sem que eu conte é
que não poderíamos ter dito algo menos satisfatório como resposta às críticas. Ela explodiu em
raiva: “Vocês decidiram!”. Sim. Nós consultamos as opiniões de algumas mulheres negras, mas,
ainda assim, nós decidimos. “Não é isso que nós devemos fazer?”, nos perguntamos, “tomar a
responsabilidade, decidir o que fazer e executar?”. Ela pareceu enraivecida pela nossa tomada
de decisão, pela nossa ação, pela nossa inação. Pareceu que fazer nada seria racista, e qualquer
coisa que fizéssemos seria racista só porque nós fizemos. Começamos a perder as esperanças;

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 105


Sobre ser branca

nos sentimos confusas e encurraladas. Pareceu que o que nossa crítica estava dizendo deveria
estar correto, mas o que ela estava dizendo não parecia fazer sentido.

Ela me pareceu louca.

Isso me interrompeu.

Eu parei, refleti e pesei essa aparência. Era familiar. Eu sei que é enganosa e defensiva. Eu
a conheço de ambos os lados; já fui considerada louca por outras pessoas demasiado honradas,
tímidas ou defensivas para compreender a enormidade da nossa diferença e a significância de
suas ofensas. Eu recuei. Para me equilibrar, busquei o que eu sabia quando não estava assustada.

Uma mulher foi chamada de “esquizofrênica”. Ela disse que seu pai estava tentando matá-la.
Ele estava enfurecido: angustiado e confuso porque ela não queria beber o café que ele comprou
para ela por medo de que ele houvesse envenenado a bebida. Como ela poderia pensar aquilo?
Mas, então, por que ela enlouqueceu e foi reduzida à incompetência pelos processos familiares
e sociais que se seguiram? O pai dela estava tentando matá-la? Não, claro que não: ele era um
homem bem-intencionado que amava sua filha. Mas, ao mesmo tempo, sim, claro. Tudo nele
que fosse paternal, incluindo suas decisões cuidadosas sobre o que melhoraria as coisas para
ela, são venenosas para ela. O Pai é a morte d’A Filha. E ela sabe disso.

O que é que a mulher negra que nos critica sabe? Eu sou racista quando eu (uma mulher
branca) decido o que devo tentar fazer para tentar crescer e curar as feridas e cicatrizes do
racismo entre lésbicas e feministas? Eu sou racista se decido não fazer nada? Se decido me
recusar a trabalhar com outra mulher branca sobre nosso racismo? Minha decisão, qualquer
que seja, é um veneno para ela. É isso que ela sabe?

Toda escolha ou decisão que faço ocorre numa matriz de opções. O racismo distorce e limita
essa matriz de várias maneiras. Eu estar no lado branco do racismo deixa uma variedade de
opções diferentes disponíveis para mim do que as que estão disponíveis para uma mulher
racializada. Como uma mulher branca, tenho certas liberdades. Quando eu as uso, de acordo
com meu julgamento branco, para agir sobre o racismo, minha iniciativa reflete estranha-
mente na matriz de opções dentro das quais ela é feita. No caso em mãos, eu estava decidindo
quando me identificar com mulheres brancas e quando me identificar com mulheres negras,
de acordo com o que eu pensava que iria reduzir meu racismo, potencializar meu crescimento
e melhorar minha política. Ficou claro por que nenhuma decisão que eu fizesse escaparia de
ser um exercício de raça e privilégio. (Ainda assim, isso não pode ser uma desculpa para não
tomar uma decisão, embora talvez sugira que uma decisão deva ser feita a um nível diferente).

Ser branca torna impossível que eu seja uma boa pessoa?

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 106


Sobre ser branca

▸ II
O que é esse “ser branca” que me coloca em tanto problema, depois de tantos anos me parecendo
ser tão benigno? O que é o privilégio de raça? O que é raça?

Primeiramente, existe a questão da cor da pele. Supostamente, se é branco quando se é


branco. Quero dizer, se é um membro da raça branca se a pele é branca. Contudo, não é bem
assim. Muitas pessoas cuja pele é branca, pelo que não queremos dizer, realmente, que seja
branca, são negras ou mexicanas ou porto-riquenhas ou indígenas. E algumas pessoas cuja pele
é escura são brancas. Nativos da Índia e do Paquistão são, geralmente, contados como brancos
neste país, apesar de talvez parecerem escuros para o estadunidense branco médio. Embora
não se possa negar que concepções de raça e de branquitude têm muito a ver com fetiches
acerca da pigmentação, me parece que ela não é o Cerne da Branquitude. Pele clara pode fazer
com que uma pessoa seja contada como branca, mas não a torna branca.

A branquitude é, aparentemente de maneira óbvia, um constructo social ou político de


algum tipo, algo elaborado sobre conceitos de pertencimento ou ancestralidade comum e
sobre associações etnocêntricas anciãs de bom e mau com claro e escuro. Aqueles que moldam
esses conceitos de branquitude, que elaboram esses conceitos são, primariamente, um certo
grupo de homens. É o constructo deles. Eles construíram uma concepção deles sobre “nós”, seu
pertencimento, sua nação, sua tribo. Usos mais antigos da palavra “raça” em inglês, de acordo
com o Dicionário Oxford, deixam isso evidente. As pessoas de uma raça são aquelas com uma
linhagem ou ancestralidade em comum. Pessoas e cores similares poderiam ser de raças dife-
rentes. A conexão de raça à cor foi um desenvolvimento histórico e não eclipsou inteiramente
o significado anterior. Raça, como definida e concebida pelos árbitros masculinos e brancos,
ainda não é, inteiramente, uma questão de cor. Pode-se ser muito claro e, ainda assim, se há
pessoas não brancas na linhagem, se pode ser classificado como negro, indiano etc.

Por outro lado, há a experiência de pessoas com pele clara de contextos familiares e culturais
que são negros, ou outro grupo racializado que pessoas brancas tendem a descredibilizar ou
cujas histórias costumam gerar desconfiança. Existe uma pressão vinda de pessoas brancas
para embranquecer pessoas de pele clara. Michelle Cliff fala sobre isso em seu livro Claiming
An Identity They Thought Me To Despise2(Reivindicando Uma Identidade Que Supuseram Que
Eu Desprezasse). Cliff é uma mulher de pele clara que parece ser branca para maior parte
das pessoas brancas. Ela encontra resistência e até hostilidade entre brancos direcionadas à
assertiva de que ela é negra. Em outro caso, uma amiga minha de quem tenho sido bastante

2
Peserphone Press, Watertown, Massachusetts, 1980.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 107


Sobre ser branca

próxima, de maneira intercalada, ao longo de 15 ou 20 anos, notou que eu estava supondo que
ela fosse branca: ela me contou que havia me dito ser mexicana há anos. Aparentemente, eu
não escutei, ou esqueci, ou foi conveniente para mim embranquecê-la3.

O conceito de branquitude não é apenas usado, nesses casos; ele é brandido como uma
espada. Brancos exercem um poder de definir quem é branco e quem não é, e são zelosos
com esse poder4. Se uma pessoa de pele clara, mas de pertencimento racializado, afirma ser
branca e a pessoa branca descobre sua origem, eles veem que uma pessoa que pode ser um
marginal decidiu o que ela é. Porque a pessoa branca não pode permitir essa decisão, ela deve
ser revertida. Por outro lado, quando alguém foi expressa e definitivamente “decidida” como
branca por brancos, sua afirmação de que não é branca deve ser contestada; de novo, porque
alguém que é potencialmente um marginal não pode ser autorizado a definir os limites. Para
esse indivíduo, uma pessoa branca está dizendo: eu decidi que você é branco, então você é
branco, porque o que eu digo sobre quem é branco e quem não é branco é definitivo.

Ser branco é ser membro de um seleto grupo, um grupo familiar que é autodefinido. Do
mesmo modo que repúblicas universitárias, o poder de definir a filiação é guardada de uma
forma muito zelosa. Embora uma variedade de traços e de histórias sejam relevantes para
definir se alguém será incluído ou excluído do grupo, uma coisa essencial é o fato de que o
grupo é autodefinido, que exerce o controle do acesso à filiação. Membros podem flexibilizar
as regras de filiação a qualquer momento, se isso for necessário para afirmar sua autoridade
plena e exclusiva em decidir quem é um membro; de fato, flexibilizar as regras é a expressão
ideal dessa autoridade.

Uma expressão particularmente insidiosa disso emerge quando membros do grupo autode-
nominado “superior” tendem a oferecer casualmente a filiação, dando “generosamente” a outras
pessoas “o benefício da dúvida”. Se a questão acerca da raça não surge, ou se ela não surge
explicitamente ou descaradamente, a pessoa será considerada como branca por outras pessoas
brancas, uma vez que a suposição contrária seria considerada (do ponto de vista de brancos)
um insulto. Um paralelo a isso é a presunção arrogante da parte de pessoas heterossexuais
de que qualquer pessoa que conhecem seja heterossexual. A questão, muitas vezes, deve ser
forçada a surgir, explícita e descaradamente, antes que uma pessoa heterossexual considere a
possibilidade de que uma pessoa seja lésbica ou homossexual. Caso contrário, mesmo se alguma

3
Como Ran Hall apontou: “a definição de embranquecer – uma ocultação ou envernizamento de falhas – não implica
melhorar ou corrigir um objeto ou uma situação, mas encobrir a realidade com um disfarce barato e inferior (a
branquitude)”. Ver “dear martha”, em Common Lives Lesbian Lives: A Lesbian Quaterly, N. 06, 1982, p. 40.
4
Consultar “O problema que não tem nome”, nesta coletânea, para a discussão de especismo e para a efetividade
desse poder.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 108


Sobre ser branca

dúvida surja, será dado o ambíguo benefício da dúvida, ao invés de se pensar “mal” da pessoa,
ou seja, de se suspeitar de um “desvio”.

O paralelismo da heterossexualidade e da branquitude se sustenta em pelo menos mais


um aspecto. Em ambos os casos, existem certos membros do grupo dominante que sistemati-
camente não dão o benefício de suas dúvidas. Parecem estar à procura de pessoas sobre quem
possam supor serem pessoas que querem se passar por membros de seu clube. Esse é o tipo
de pessoa que são incrivelmente sensíveis a pistas de que alguém é Mulato, Judeu, Indiano ou
gay e ficam ansiosos para notificar outros sobre a suposta tentativa dessas pessoas de serem
“normais” ou “brancas” (ou o que quer que seja), embora a pessoa possa não estar sequer
tentando5. Esse tipo é comumente reconhecido como racista, antissemita ou homofóbico,
embora o outro tipo, aquele que “graciosamente” deixa a pessoa possivelmente desviante/
escura se passar por normal/branca, é com frequência considerada uma boa pessoa e não uma
pessoa intolerante. Pessoas dos dois tipos me parecem igualmente arrogantes: ambas estão se
apropriando do poder da autodefinição e, portanto, afirmando que definir é uma prerrogativa
exclusiva delas.

Penso que quase toda pessoa branca engaja na atividade de definir o pertencimento
no grupo de pessoas brancas em uma dessas maneiras, de forma bastante inconsciente e
constante. É muito difícil, em casos individuais, abrir mão desse hábito e esperar a pessoa
decidir por si mesma a que grupo ela pertence.

A tendência de membros do grupo conhecido como branco de ser generosamente inclusiva,


de contar como branca qualquer pessoa que não seja obviamente não-branca, parece ser uma
parte de um outro hábito de membros desse grupo, o hábito de falsa universalização. Como
feministas, estamos muito familiarizadas com a universalização masculina disto: homens
escrevem, falam e presumidamente, portanto, também pensam como se o que quer que seja
verdade para eles fosse verdade para todos. Pessoas brancas também falam de forma universal.
Grande parte do que tem sido escrito por feministas brancas está limitado por esse tipo de
falsa universalização. Muito do que temos dito está correto apenas se considerarmos como

5
Eu não incluí, de forma geral, judeus na minha lista de exemplos de grupos “raciais” porque, quando o fiz, críticos
judeus desse material disseram que as maneiras nas quais o antissemitismo e as outras formas de racismo se dife-
renciam e se assemelha tornam essa simples inclusão enganosa. Incluo judeus entre meus exemplos aqui porque a
respeito dessa questão de ser permitido “se passar” ou não (a pessoa querendo ou não), especificamente, o antissemi-
tismo é similar a outros tipos de racismo. Embora muitos judeus sejam politicamente brancos de muitas maneiras
nesse país, quando “passam” como não-judeus, o que eles podem conseguir é o tratamento e a recepção devida
ao americano “branco” comum. Paradoxalmente, embora judeus não sejam equivalentes a não-brancos, a passa-
bilidade ainda continua a ser passar como branco. Meus agradecimentos a Nancy Borreano pela útil discussão
dessas questões.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 109


Sobre ser branca

sendo a respeito de mulheres e homens brancos dentro da cultura branca (mulheres e homens
brancos de classe média, na verdade). Na maior parte do tempo, nunca nos passou pela cabeça
modificar nossos substantivos de acordo; em nossa mente, as pessoas sobre quem escrevíamos
eram pessoas. Não pensamos em nós mesmas como brancas.

É uma descoberta importante para membros de grupos dominantes o conhecimento


de que são membros de um grupo, saberem que são apenas parte da humanidade. Descobrir
que na cultura em que nasci e cresci a palavra “mulher” significa mulher branca, assim como
descobrimos antes que a palavra “homem” significa humano macho, foi de tirar o fôlego. Essa
expansão súbita do escopo da percepção pode produzir uma onde de consciência da arbitra-
riedade das definições, da fragilidade desses limites. Escapar torna-se imaginável.

O grupo ao qual pertenço, presumidamente em virtude da minha pigmentação, não é


consagrado pela natureza para ser reconhecido social e politicamente como um grupo, mas
é consagrado pelos próprios membros, por meio de seu acúmulo de poder de definição com
motivação política e de interesse próprio. O que isso pode significar para pessoas brancas é
que nós não somos brancos por natureza, mas por classificação política e, portanto, é possível,
por princípio, desfiliar-se. Se ser branco não é apenas uma questão de cor da pele, algo que está
para além de nossa capacidade modificar, mas de política e de poder, então talvez os indivíduos
brancos, em uma sociedade definida pela supremacia branca, não estejam fadados a dominar
pela lógica ou pela natureza.

▸ III
Algumas de minhas experiências fizeram com que eu me sentisse encurralada e enganada
para que minhas ações ficassem presas em uma rede que as conecta, inexoravelmente, às suas
origens no privilégio branco e a consequências opressoras para pessoas racializadas (especial-
mente para mulheres não brancas). Evidentemente, se alguém quer se desenredar de tal destino
ou desse fatalismo (caso aquele sentimento fosse enganoso), a primeira regra de procedimento
deve ser apenas: eduque-se.

Pode-se e deve-se buscar educar-se e superar as terríveis limitações impostas pela igno-
rância abismal inerente ao racismo. Existem armadilhas, claro. Por exemplo, pode-se escor-
regar para um estado de espírito que provoca um distanciamento em relação àqueles sobre os
quais se está aprendendo como “objetos de estudo”. Enquanto alguém se educa a respeito das
experiências e perspectivas de pessoas que desconhece, em parte como uma forma de corrigir
os erros da própria conduta, deve também estudar a própria ignorância. Ignorância não é algo

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 110


Sobre ser branca

simples: não é uma simples falta, ausência ou vazio, e não é um estado passivo. Ignorância desse
tipo – a ignorância determinada que a maioria dos estadunidenses brancos tem a respeito
de povos indígenas, a ignorância, por negligência, que a maioria dos estadunidenses brancos
tem a respeito da história de povos asiáticos neste país, a ignorância empobrecedora que a
maioria dos estadunidenses brancos tem da linguagem dos negros – a ignorância desse tipo é
o resultado complexo de muitos atos e de muitas negligências. Para se dar conta disso, é neces-
sário apenas que se escute o verbo ativo “ignorar” na palavra “ignorância”. Nossa ignorância é
perpetuada de várias formas e nós temos várias maneiras de perpetuá-la.

Eu estava em um sarau de poemas da feminista lésbica negra Audre Lorde. Em seus poemas,
ela invocou deusas africanas, nomeando várias delas. Depois da leitura, uma mulher branca
levantou-se para falar. Ela disse, primeiro, que desconhecia as religiões africanas e a história
cultura, então pediu que a poeta soletrasse os nomes daquelas deusas e que lhe contasse onde
poderia pesquisar mais sobre as histórias delas. A poeta respondeu, contando que há uma
bibliografia, no final do livro que ela estava lendo, que poderia oferecer informações relevantes.
A mulher branca não agradeceu a poeta e sentou-se. A mulher branca (que eu sei que é culta)
disse: “Entendo, mas você poderia soletrar o nome delas para mim?”. O que eu vi foi uma mulher
branca comprometida com a própria ignorância e sendo teimosa em sua defesa. Ela poderia se
convencer de que não poderia usar a bibliografia se a mulher negra não soletrasse os nomes
para ela. Ela diria que tentou reparar a própria ignorância, mas a poeta não cooperou. A poeta.
A poeta negra que se dispôs a incluir a bibliografia em seu livro de poemas6.

No livro The Invisible Man7 de Ralph Ellison (um livro de valor feminista considerável),
pode-se ver as estruturas da ignorância branca pela perspectiva dos ignorados. Nada que o
protagonista pode fazer o torna visível. Todavia, ele é frustrado por um véu opaco e denso feito
de mentiras que homens brancos contam uns aos outros sobre homens negros. Ele é ignorado
até o ponto de quase morte.

Também há um relato esclarecedor acerca de algumas estruturas de ignorância branca em


uma estória chamado “Meditations on History”, de Sherley Ann Williams8. Nele, um homem
que está escrevendo um livro sobre como administrar escravos está visitando um lugar onde
uma mulher escravizada está sendo mantida até que seu bebê nasça para que, quando eles a

6
Não quero dizer que ela disponibilizou a bibliografia especificamente ou primariamente para educar mulheres
brancas, mas é razoável supor que ela pensou que seria útil para qualquer mulher branca que pudesse aparecer
com uma curiosidade adequada.
7
Random House, Nova Iorque, 1952.
8
Em Midnight Birds, Stories of Contemporary Black Woman Writers, editado por Mary Helen Washington (Anchor
Doubleday, Nova Iorque, 1980).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 111


Sobre ser branca

enforquem por ter tentado fugir e por matar um homem branco, seu dono possa ao menos
ter o beber para compensá-lo por sua perda. O escritor está entrevistando a mulher para
descobrir por que ela matou o traficante de escravos e por que e como os escravos escaparam.
(A ignorância dele já está, obviamente, evidente, juntamente com algumas das estruturas que
a motivam e sustentam). Ele fica irritado com o cantarolar dela, mas não lhe passa pela cabeça
que aquilo pode significar algo. Pelo modo que ela canta, a mulher é capaz de conspirar com
outros escravos no local; ela lhes diz que seus amigos virão resgatá-la e os notifica de quando
isso ocorrerá, eles cooperam e ela escapa. A presunção dele o fechou para o conhecimento, sua
ignorância foi construída por ele mesmo. Sua ignorância foi também encorajada e usada pela
mulher escravizada, que deliberada e razoavelmente jogou com ela, fingindo ser burra, robótica
e desorientada. Certamente não era do interesse dela contradizer as suposições dele de que sua
cantoria era irrefletida e de que ela era demasiado estúpida para estar planejando uma fuga.
A ignorância funciona assim, criando as condições que garantam sua continuidade.

Mulheres brancas podem mergulhar em nossa própria experiência como mulheres para
obter conhecimento dos modos como a ignorância é complexa e intencional, porque conhe-
cemos, pelas nossas interações com homens brancos (e não necessariamente apenas com
homens que são brancos), a “ausência” imposta a nós por não sermos levadas a sério e perce-
bemos suas motivações e sabemos que não é um lapso acidental.

Se alguém se questiona sobre os mecanismos da ignorância, de como uma pessoa pode estar
presente, ver e ouvir, e ainda assim não saber, uma das respostas está na questão da atenção.
O homem na história de William sonha acordado constantemente sobre como o livro dele será
um sucesso, tem fantasias convincentes de sua própria fama e reconhecimento – reconhe-
cimento por homens brancos, evidente. Ele está muito mais interessado em quem precisará
agradar e impressionar do que no assunto em questão. Membros de grupos dominantes estão,
costumeiramente, ocupados com a tarefa de impressionar uns aos outros e de importarem-se
mais com isso do que com o que acontece à sua volta. Novamente, mulheres brancas podem
aprender com a própria experiência em relação a homens (mais frequentemente brancos).
Muito do que fazemos envolve uma grande ânsia do que receberemos de homens – mentores,
amigos, maridos, amantes, editores, membros de nossa educação, profissão ou grupo político,
comitê de revisão, pais. Com nossa atenção focada nesses homens, no que imaginamos deles,
não conseguimos prestar atenção no assunto em questão e iremos permanecer ignorantes
acerca de coisas que são perfeitamente aparentes. Portanto, sem qualquer esforço específico,
esses homens brancos podem direcionar mulheres brancas para o trabalho de falseamento,
mesmo enquanto tentamos nos educar. Uma vez que mulheres brancas são quase homens
brancos, sendo brancas, pelo menos, e às vezes mais ou menos homens honorários, podemos

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 112


Sobre ser branca

nos agarrar a uma esperança de verdadeira adesão ao grupo dominante e poderoso; e, se nosso
alvo estiver, portanto, focado neles por essa esperança fútil, podemos ficar presas em nossa
ignorância e na deles por toda nossa vida. (Alguns homens racializados caem na armadilha
análoga de esperar pela adesão ao grupo dominante e poderoso, dessa vez em função do sexo.
Com a atenção deles focada no poder e no dinheiro, eles não conseguem ver mulheres, da raça
deles ou de qualquer outra). Atenção tem tudo a ver com conhecimento.

▸ IV
O apego das mulheres brancas aos homens brancos tem muito a ver com nosso privilégio de
raça, com nosso racismo e com nossa falta de habilidade para compreendê-los. Raça e racismo
também têm muito a ver com o apego de mulheres brancas aos homens brancos. Precisamos
olhar essas conexões mais detidamente.

No intervalo de poucos dias, há pouco tempo, encontrei três coisas que se encaixaram como
peças de um simples quebra-cabeças:

1. Escutei um relato no rádio sobre o novo “Klan9”. Ele incluía uma gravação de um homem
fazendo um discurso defendendo que a raça branca está ameaçada de extinção. Ele
comparou, explicitamente, a raça branca às espécies animais que estão sob o risco de
extinção e que são protegidas por lei. Ele também ressaltou, com preocupação, o fato de
que dez anos atrás a população canadense era 98% branca e agora é apenas 87% branca10;
2. Em uma reportagem no jornal feminista Big Mama Rag, foi apontado que “eles” estão
tornando praticamente impossível que mulheres brancas abortem, enquanto realizam
a esterilização forçada de mulheres negras tanto nos Estados Unidos quanto ao redor
do mundo;
3. Na revista feminista Conditions, n. 07, havia uma conversa entre várias lésbicas negras
e judias. Entre outras coisas, elas discutiam a questão da pressão sobre elas para terem

9
NT.: referência à Klu klux klan, organização de extrema direita com inspiração protestante que ganhou força em
diversos momentos na história dos EUA. Em sua forma contemporânea, é caracterizada pelo anticomunismo, pela
homofobia, ideologia neonazista e anti miscigenação. Na década de 1950, promoveram diversos ataques contra
pessoas negras e contra a luta por direitos civis.
10
Esse relato passou brevemente e não tive como tomar notas, então não posso atestar as estatísticas levantadas por
ele ou a precisão da minha lembrança acerca das estatísticas apresentadas por ele, mas esses números refletem,
precisamente, a magnitude do “problema” e do problema dele.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 113


Sobre ser branca

bebês negros ou judeus, a fim de contribuir para a sobrevivência de suas raças, que estão
ameaçadas de extinção11.

Eu penso nisso tudo. Por séculos e por uma variedade de motivos, na maior parte econô-
micos, homens brancos europeus estiveram ao redor do mundo, conquistando, colonizando e
escravizando pessoas que classificam como escuras, merecendo o ódio e a raiva dessas pessoas
em magnitude proporcional à morte de milhões de pessoas. Por séculos, esses mesmos homens
brancos sabiam que eram minoria na população mundial e, mais recentemente, muitos deles
acreditaram na doutrina de que a negritude é geneticamente dominante. Homens brancos têm
suas razões para estarem com medo da extinção racial12.

Começo a pensar que esse medo é uma das fontes cruciais do racismo branco, mesmo entre
os não raivosos que não participam ativamente da Kultura do Klan. Isso sugere uma leitura
da imensa pressão da cultura dominante sobre “mulheres” para que sejam mães. A cultura
dominante é branca, e sua pressão é para que mulheres brancas tenham bebês brancos.
As imagens nas revistas das glórias da maternidade não mostram mulheres brancas com
pequenos bebês pardos. Feministas têm reconhecido, comumente, que as pressões de mater-
nidade compulsória sobre mulheres racializadas não é apenas a pressão para manter mulheres
submetidas, mas para manter o crescimento populacional de suas raças; menos comumente
temos pensado que as pressões da maternidade compulsória sobre mulheres brancas não são
apenas pressões para manter mulheres submetidas, mas pressões para manter o crescimento
da população branca.

Esse aspecto da maternidade compulsória para mulheres brancas – a ânsia de homens


brancos pela sobrevivência de sua raça13 – não tem sido explícita ou articulada ao longo das
vidas e no cotidiano de mulheres brancas nos meus círculos de convivência, e a pressão para

11
Muitos negros, neste país, têm uma perspectiva global que revela que embora o racismo branco tenha seu
aspecto genocida, negros nos EUA, certamente, não são toda a raça negra. Para essas pessoas, a ideia de que
suas raças estejam ameaçadas de extinção pode não ter a força que teria para aqueles com uma perspectiva mais
“estadunidense”.
12
Edward Fields, um ideólogo e propagandista do Klan, foi questionado se homossexuais são uma ameaça à raça
branca. Ele respondeu que são, e prosseguiu, dizendo: “Nossa taxa de natalidade é extremamente baixa. Estamos
abaixo da taxa de reposição, abaixo de 2,5 crianças por família. A raça branca está decaindo rapidamente, somos
apenas 12% da população mundial. Em 1990, seremos apenas 10% da população mundial. Seremos uma espécie
extinta se a homossexualidade continuar a crescer, se o casamento interracial continuar a retirar pessoas da raça
branca, se nossa taxa de natalidade continuar a cair” (citado em “Into The Fires of Hatred: A Portrait os Klan Leader
Edward Fields”, de Lee David Hoshall com Nancy A. F. Langer, em Gay Community News, Novembro, 1982, p. 5).
13
O chauvinismo masculino faz homens pensarem em si mesmos como a raça branca. Nesse contexto, é apropriado
chamá-la raça deles, e não “nossa” raça.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 114


Sobre ser branca

fazer bebês tem sido mediada pela pressão para o “planejamento familiar” (que interpreto
como um projeto de controle de qualidade). Contudo, o que é comum e explícito nos círculos
essencialmente brancos, onde o racismo corre profundo e majoritariamente silencioso, é um
outro fenômeno curioso.

Nos ambientes exclusivamente ou majoritariamente brancos nos quais tenho vivido e


trabalhado, quando mulheres começam a falar sobre feminismo e sobre feminismo lésbico,
somos frequentemente desafiadas com a asserção de que se as coisas fossem como queremos
a espécie se extinguiria. (Nossos críticos partem do pressuposto de que se mulheres tivessem
escolha, nós nunca faríamos sexo e nunca teríamos filhos. Isso revela muito da visão dos
próprios críticos acerca das alegrias do sexo, da gravidez, do parto e da maternidade.) Eles
dizem que a espécie se extinguiria. O que suspeito é que os críticos confundem a raça branca
com à espécie humana, assim como os homens têm confundido machos com à espécie humana.
O que os críticos estão dizendo, uma vez decodificado, é que a raça branca pode ser extinta.
A demanda para que mulheres brancas façam bebês brancos a fim de possibilitar a sobrevi-
vência da raça não é explícita, mas penso que tem sido feita repetidamente de forma disfarçada
como uma pregação em contextos exclusivamente brancos sobre nosso dever de garantir a
sobrevivência da espécie.

Muitas mulheres brancas, certamente muitas feministas brancas do meio com o qual estou
familiarizada, não pensam de forma consciente que homens brancos possam temer a extinção
racial e, para dizer o mínimo, querer nossos serviços para manter seus números. Talvez aqui,
no centro dos Estados Unidos, muitas mulheres brancas estejam sentindo-se tão seguras
na dominância branca que não lhe ocorrem tais pensamentos receosos sobre haver pessoas
brancas o suficiente no mundo. Mas também, porque nós, mulheres brancas, pudemos pensar
em nós apenas como mulheres e homens quando, na verdade, estávamos olhando para mulheres
brancas e homens brancos, temos interpretado nossas conexões com esses homens apenas em
termos de gênero, sexismo e dominação masculina. Precisamos considerar o desejo deles por
dominação racial nessas equações.

Simplesmente como mulheres, como meras mulheres neste mundo, nós, que somos
mulheres e brancas, somos pobres, mal-educadas, vítimas e desprezadas. Mas porque nós
somos ambos, mulheres e brancas, pertencemos ao grupo de mulheres do qual homens do grupo
racialmente dominante escolhem suas parceiras. Por causa disso, nos é dado algum acesso aos
benefícios que eles têm como membros do grupo masculino racialmente dominante – acesso
a benefícios materiais e educacionais e o benefício ilusório de aproveitar, em segunda mão,
sentimentos de superioridade e de supremacia. Nós também temos o benefício ilusório de uma
certa esperança (uma falsa esperança, no final) que mulheres de raças subordinadas não têm,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 115


Sobre ser branca

nomeadamente, a esperança de tornar-se efetivamente dominante com os homens brancos,


como suas “iguais”. Este último falso benefício nos conecta mais profundamente a eles em
solidariedade racial. Um feminismo branco liberal buscaria “equidade”; praticamente não se
espera de nós que digamos que queremos o mesmo status econômico e social dos, digamos,
chicanos. Se o que queremos é equidade com nossos irmãos brancos, então o que queremos é,
entre outras coisas, nossa própria participação, em primeira mão, na dominação racial, ao invés
da dominação substituta de segunda mão que ganhamos como o grupo dominante entre as
mulheres. Não é de se surpreender que esse feminismo não tenha credibilidade entre mulheres
racializadas.

Raça é um laço que nos une aos homens: “nós” sendo mulheres brancas, e “homens” sendo
homens brancos. Se não desejamos estar limitadas na subordinação aos homens, devemos abrir
mão de negociar com nossa pele clara pelo privilégio de homens da raça branca. E, por outro
lado, se nos distanciamos do serviço reprodutivo para homens brancos (nos vários sentidos e
dimensões de “reprodução”), a ameaça que representamos não é apenas à masculinidade, mas
também à branquitude. A dominação e o controle de mulheres brancas pelos homens brancos
são essenciais para o projeto deles de manter a dominância racial. Essa é, provavelmente, parte
da explicação do porquê a reação contra o feminismo se sobrepõe, no tempo e nas pessoas, com
a intensidade e a franqueza renovadas do racismo branco neste país. Quando o controle deles
sobre as mulheres “deles” é ameaçado, a confiança deles na sua dominância racial é ameaçada.

É perfeitamente evidente que isso não foi percebido antes por muitas de nós, mas, para
mulheres brancas, um feminismo radical é ameaçador à raça branca como construída e insti-
tuída presentemente neste país. A disposição crescente de mulheres brancas para renunciarem
aos benefícios materiais e ao apoio egóico disponível por meio de conexões com homens brancos
nos tornam muito mais difíceis de conter e controlar como parte da base de sua dominância
racial. Para muitas de nós, a resistência à dominação masculina foi, antes, e muito natural-
mente, uma ação simples para nossa própria libertação de uma degradação e tirania que
odiávamos por si mesmas. Mas, nesse contexto racial, nossa busca por libertação (eu não digo
“de equidade”) é, intencionalmente ou não, desleal à Branquitude.

Recomendo que nós façamos dessa deslealdade uma parte explícita de nossa política e a
abracemos publicamente. Isso pode nos ajudar a nos mantermos afastadas de políticas super-
ficiais de apenas querer o que nossos irmãos brancos têm e nos ajudar a nos desenvolvermos
rumo a uma desfiliação genuína dessa Branquitude que tem, finalmente, tão pouco a ver com
a cor de nossa pele e tanto a ver com racismo.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 116


Sobre ser branca

▸V
De certa maneira, é verdade que ter a pele branca significa que tudo o que faço estará errado –
no mínimo um exercício de privilégio injustificado – e que encontrarei a raiva razoável de
mulheres racializadas em cada esquina. Contudo, “branco” também designa uma categoria
política, um tipo de fraternidade política. Tomar parte dela não é, no mesmo sentido, um
“destino” ou “natural”. É possível resistir.

Existe uma linha exata na questão do racismo branco que é, de fato, bastante correta, no
sentido que, como uma pessoa branca, não se deve jamais reivindicar não ser racista, mas
apenas antirracista. O motivo é que o racismo é tão sistemático e o privilégio branco é tão
impossível de se escapar que estamos, simplesmente, encurralados. Em certo nível, isso é
perfeitamente verdadeiro e dever ser sempre levado em consideração. Tomado como a verdade
completa e final, é também insuportável e perigosamente sombrio. Isso nos colocaria numa
posição moral sem esperança de alguém que acredita no pecado original, mas em nenhum
mecanismo de redenção. No entanto, a supremacia branca não é uma lei da natureza, e a
cumplicidade individual a ela também não é.

Feministas recorrem a uma distinção entre ser macho e ser “um homem” ou masculino. Eu
convoquei homens da minha convivência a se colocarem contra a masculinidade. Pedi a eles
que pensem sobre como podem parar de ser homens, e não estava recomendando uma cirurgia
de mudança de sexo. Eu não sei como eles podem parar de serem homens, mas eu penso que
isso é concebível e que é um conselho de esperança. Do mesmo modo, posso me colocar contra
a Branquitude: eu posso dar a mim mesma a ordem para parar de ser Branca.

Eu não quero insinuar que posso me desfiliar por meio de um ato privativo de vontade
ou por qualquer estratégia pessoal. Certamente, também não é alcançável por simplesmente
pensar que é possível. Pensar ser concebível não isenta de trabalho ou protege a pessoa de
ser responsabilizada. Muito pelo contrário, pode ser um requisito necessário para assumir a
responsabilidade e convida o trabalho honrado da imaginação radical.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 117


8 Feminismo
lésbico e o
movimento pelos
direitos gays:
outro ângulo
da supremacia
masculina, outro
separatismo1

M
uitos homens gays e algumas lésbicas e feministas presumem que é razoável esperar
o apoio ou a participação delas em organizações e projetos políticos e culturais gays,
e muitas pessoas acham que é razoável esperar que gays entendam e apoiem as causas
lésbicas e feministas. Mas essas duas expectativas são, em geral, visivelmente frustradas.

Com raras exceções, lésbicas – e, em particular, feministas lésbicas – não têm visto os
direitos gays como uma causa tão importante ou consideram que a associação a organizações
gays seja recompensadora o suficiente para manter interesses que não sejam temporários.
Provavelmente com ainda menos exceções, gays não consideram as preocupações lésbicas e
feministas próximas o suficiente das deles, a ponto de provocar uma ação política de apoio
ou uma reflexão atenta e séria. Organizações políticas e culturais gays que recebem e agem
ostensivamente no interesse de homens gays e de mulheres gays, geralmente, têm poucas

1
Este ensaio é uma revisão de uma palestra que dei em um evento, na primavera de 1981, na cidade de Grand Rapids,
em Michigan, organizada pelo capítulo de Grand Rapids da organização católica gay, Dignity, e cofinanciada por
Aradia. Meus agradecimentos a Larry Manglitz e Calien Lewis por ver a necessidade e por fazer algo a respeito.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 119


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

lésbicas como membros, quando há, e organizações políticas e culturais lésbicas e feministas,
não importando se buscam ou aceitam homens, têm pouco apoio de homens gays, quando há.

Todos nós, desviantes, sofremos com o fato de que a cultura dominante é, ao menos publi-
camente, intolerante a desvios do que pode ser chamada de “sexualidade missionária”: sexuali-
dade organizada em torno da relação sexual entre o macho dominante e a fêmea subordinada.
Lésbicas e gays estão sujeitos ao escárnio e ostracismo, abuso e terror, em ambos os casos por
razões que fluem, de alguma forma, das estruturas sociais e políticas de sexo e gênero. Imagens
populares de lésbicas e gays são imagens de pessoas que não se encaixam nos padrões de
gênero impostos sobre os sexos. Ela é vista como a fêmea que não é feminina, e ele é visto como
o macho que não é masculino. Em muitos Estados e locais, lésbicas e gays encontram-se unidos
sob uma necessidade política comum, quando devem lutar contra Essa ou Aquela Proposta
de Lei, que sanciona legalmente a lesão civil de seus direitos, ou está sob ataque de grupos
como Moral Majority ou Ku Klux Klan. Homens gays parecem ser, na perspectiva de muitas
mulheres, menos sexistas do que homens heterossexuais, presumivelmente porque não estão
sexualmente interessados em mulheres. E o compromisso feminista para a autodeterminação
sexual inclui, para muitas feministas, um comprometimento com os direitos gays.

Coisas como essas levam à suposição de que há, de fato, uma afinidade política e cultural
entre homens gays e mulheres – lésbicas e/ou feministas –, e, então, a supor que a ausência de
qualquer aliança firme e generalizada deve ser explicada pelo fato de haver algum obstáculo
ou barreira, algum fator acidental de estilo, linguagem ou desinformação, que obscurece os
interesses em comum ou dificultam a cooperação. Eu não compartilho dessas suposições.

Uma cultura hostil a qualquer sexualidade que não seja a missionária é, também, hostil às
mulheres – a cultura é sexista, misógina e supremacista masculina. Por causa dessa realidade
cultural, os mundos do que os clínicos chamariam de mulheres e homens “homossexuais” são
muito diferentes: nós desviamos de normas muito distintas; nossos desvios estão situados de
formas muito diferentes na visão de mundo e na estrutura política da supremacia masculina;
nós não somos alvos das mesmas fobias e dos mesmos ódios. Se alguns de nós sentimos alguns
fios de simpatia que nos conectam e, portanto, quisermos ser amigos das causas uns dos outros,
a primeira coisa que deveríamos fazer é buscar um entendimento justo das diferenças que nos
separam. No entanto, essas diferenças acabam por ser tão profundas que lançam dúvidas à
suposição de que há qualquer afinidade cultural ou política básica sobre a qual alianças possam
ser construídas.

Um olhar sobre alguns dos princípios e valores da sociedade e da cultura da supremacia


masculina sugere, imediatamente, que o movimento masculino pelos direitos gays e a cultura

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 120


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

gay masculina, como são conhecidas em suas manifestações públicas, são, em muitos pontos
centrais, consideravelmente mais congruentes do que discrepantes com essa falocracia, que,
por sua vez, é tão hostil a mulheres e ao amor direcionado a mulheres com o qual lésbicas estão
comprometidas. Entre os mais fundamentais desses princípios e valores estão os seguintes:

1. A presunção da cidadania masculina.


2. Adoração do pênis.
3. Homoerotismo masculino, ou amor ao homem.
4. Desprezo por mulheres, ou ódio a mulheres.
5. Heterossexualidade compulsória masculina.
6. A presunção de acesso fálico generalizado.

Enquanto se explora o significado desses princípios e valores, as culturas masculinas


gay e heterossexual começam a ficar tão parecidas que se torna um enigma o porquê de os
homens heterossexuais não reconhecerem seus irmãos gays, da forma como certamente não
reconhecem, às custas físicas e psicológicas destes.

1. A presunção da cidadania masculina é o princípio de que se, e apenas se, alguém é


homem, essa pessoa tem certos direitos apriorísticos, como o direito à propriedade e à
sua livre disposição, à integridade física e à liberdade de movimento, a ter uma esposa e
à paternidade, a recursos para poder se sustentar e assim por diante2. Embora homens
dominantes aceitem, entre eles, certos tipos de justificativas para reduzir ou negar tais
direitos humanos (por exemplo, a necessidade de criar um exército), a suposição é de que
eles possuem esses direitos. Se outros os negam a um homem de forma arbitrária, ou
seja, sem reconhecer que essa negação requer certo tipo de justificativa, então surge a
implicação de que ele não é verdadeira ou completamente um homem ou macho. Se ele
aceita o fardo de precisar provar, isso também sugere que ele não é real ou completa-
mente um homem ou macho. Portanto, o que é chamado de “discriminação” – a restrição
arbitrária de direitos dos homens, uma restrição não acompanhada por certas justifica-
tivas – é sentida como “emasculação”, e aqueles cujos direitos estão sendo restringidos
tendem a responder reafirmando sua masculinidade.

2
Obviamente, o que é considerado um direito à cidadania varia de nação a nação e, dentro de cada nação, homens
têm entre si mais de uma classe de cidadania.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 121


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

Vários movimentos que lutam por Direitos Civis nesse país, sob liderança masculina,
tendem a adotar essa abordagem, que obviamente não questiona, mas se fundamenta,
na suposição implícita da cidadania masculina. Um feminismo pelos direitos civis,
mesmo aqueles que pretendem ser moderados, é pressionado a desafiar essa suposição
e, portanto, a ir na direção de um desafio mais radical à ordem vigente, pelo fato de ser
constituído por mulheres3. A única alternativa de mulheres, diante do desafio mais
radical, é de reivindicar o lugar de mulheres como Homem4, o que já foi tentado, e não
considero tão absurdo quanto possa parecer; mas essa reivindicação não é tão fácil de
se explicar ou de incorporar a uma retórica política persuasiva.
Uma vez que o movimento pelos direitos gays é constituído por pessoas muito abertas e
definitivamente classificadas como “mulherzinhas” ou “afeminadas”, pode parecer lógico
que uma estratégia política gay inteligente seja a de desafiar a suposição da cidadania
masculina. Alguns gays, individualmente, tendem a essa direção e, portanto, a uma
afinidade política com mulheres, mas o movimento pelos direitos gays, no geral, tomou
o curso de reivindicar a masculinidade de seus constituintes, supondo que a presunção
dos direitos dos homens gays vão seguir a esse reconhecimento. Ao fazer isso, eles
concordam e apoiam a reserva da cidadania plena a homens e, portanto, alinham-se com
os adversários políticos do feminismo.
É, de fato, verdade que homens gays, falando genericamente, são homens e, portanto, pela
lógica do pensamento falocrático realmente deveriam estar inclusos sob a presunção
da cidadania masculina. Na verdade, como alguns gays compreenderam (mesmo que a
mente popular ainda não tenha compreendido), geralmente eles são, de forma signifi-
cante, e talvez em todas as formas importantes, até mesmo mais leais à masculinidade
e à supremacia masculina do que outros homens5.

2. Na cultura falocrática, o pênis é divinizado, fetichizado, mistificado e adorado. A litera-


tura masculina prova com uma redundância convincente que homens heterossexuais
identificam-se com seus pênis e estão simultaneamente e estranhamente alienados

3
Existem boas razões políticas para ter levado 72 anos desde a primeira demanda pública para o sufrágio feminino
até a ratificação da emenda do sufrágio e para a Emenda dos Direitos Iguais, que foi primeiramente analisada pelo
Congresso em 1920, não ter ainda virado lei, 64 anos depois. O princípio da cidadania masculina (e não feminina)
é fundamental para a sociedade falocrática.
4
N.T.: no original, a autora utiliza “manhood”, que significa, igualmente, humanidade e masculinidade.
5
O homoerotismo celebrado no Simpósio de Platão e aplaudido em certos círculos gays contemporâneos é claramente
elitista no geral e especificamente supremacista masculino.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 122


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

deles6. A cultura é tal que homens podem caracterizar mulheres como homens castrados
sem que isso seja comumente visto como idiota ou risível. É uma cultura na qual a
identificação do pênis ao poder, presença e criatividade é considerada plausível – não
o cérebro, os olhos, a boca ou as mãos, mas o pênis. Nessa cultura, qualquer objeto
ou imagem que se assemelhe ou que sugira as proporções de um pênis ereto estará
revestido (ou supostamente) de poderes místicos, semânticos, psicológicos ou sobrena-
turais. Não há nada na cultura ou na política masculina gay, da forma que aparecem nas
ruas, nos bares, na mídia gay, que desafie essa crença na mágica do pênis. Na cultura
heterossexual, a adoração ao pênis em representações simbólicas é aberta e comum,
mas o amor masculino ao pênis real tende a ser um caso mais enrustido, expressado de
forma privada ou dissimulada, ou disfarçada pelo humor ou pela brutalidade. Homens
gays, geralmente, são apenas mais diretos quanto a isso: menos ambivalentes, menos
contidos, mais abertos.
Se a adoração ao falo é central na cultura falocrática, então gays, em sua maioria, agem
mais como padres fervorosos do que infiéis, e o movimento por seus direitos pode ser o
fundamentalismo da religião global que é o Patriarcado. Nessa questão, a proximidade
da cultura masculina gay com a cultura masculina heterossexual e o abismo entre elas
e as culturas de mulheres são enormes, de fato.
Mulheres, geralmente, têm uma boa razão empírica para associar valores e sentimentos
negativos ao pênis, uma vez que ele está amplamente conectado com a degradação,
o terror e a dor delas. O medo ou o desprezo que isso pode gerar podem ser parentes
próximos da adoração, mas também há a experiência nem tão incomum do tédio, da
frustração e da alienação durante os tipos de encontro com pênis que são propagan-
deados como excitantes, realizadores e transcendentais. Na medida do possível, quando
se vive sob a ameaça de estupro, a postura de muitas mulheres em relação ao pênis
varia entre a indiferença e o desprezo, atitudes que são contrários à adoração. Lésbicas
e feministas, que podem conhecer mais seguramente a dispensabilidade do pênis para a
gratificação física de mulheres e para a sua identidade e autoridade, podem estar ainda
mais propensas do que a maioria à postura de não adoração. É entre mulheres, especial-
mente feministas e lésbicas que as não crentes são encontradas. Nós e os gays estamos
em lados opostos nessa ortodoxia falocrática.
Deixe-me interpor que, embora eu deprecie e zombe da adoração ao pênis, não desprezo
seu prazer. Suspeito que, se o pênis fosse muito mais desfrutado e menos adorado,

6
Como C. Shafer apontou, de acordo com esse uso de “identificar-se com”, a identificação pressupõe a alienação, uma
vez que apenas se pode identificar com algo que não se é.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 123


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

o entendimento de todos a respeito da sexualidade masculina e feminina, de poder e de


amor, mudariam a ponto de serem irreconhecíveis, e para muito melhor. Contudo, não
leio a cultura masculina gay como essa cultura radical do desfrute, apesar de sua retórica
hedonista e do número de bons cozinheiros que produz. Existem sugestões dessa heresia
apenas marginalmente, e voltarei a esse assunto mais tarde.

3. O terceiro princípio da supremacia masculina que listei foi o princípio do homoero-


tismo masculino. Não estou falando de algum tipo de homossexualidade “reprimida”
em relação à qual a intensa heterossexualidade de tantos homens é compreendida como
uma reação. Falo aqui não de homossexualidade, mas de homoerotismo, que não é algo
que eu acho que esteja sendo reprimido.
Na linguagem e na visão de mundo dominantes de homens heterossexuais, “sexo”
equivale ao que eu chamei de “sexo missionário”. Apesar da variedade de coisas que
pessoas realmente fazem com e para outras pessoas privadamente, sob a insígnia de
“fazer sexo” ou “ser sexual”, imagens culturais de sexo e de “atos sexuais” referem-se e
pertencem predominantemente a um coito genital entre macho-dominante e fêmea-
-subordinada, ou seja, à foda. Como tem sido frequentemente documentado, a maioria
dos homens reivindica (na verdade, insiste) que não há conexão essencial entre sexo
(isto é, foder) e amor, afeto, conexão emocional, admiração, honra ou qualquer outra
emoção de desejo e apego. Dizer que homens são heterossexuais quer dizer apenas que
eles engajam no sexo (na foda) exclusivamente com (ou sobre, ou contra) o outro sexo,
ou seja, mulheres7. Tudo ou quase tudo o que pertence ao amor, a maioria dos homens
heterossexuais reserva exclusivamente para outros homens. As pessoas que admiram,
respeitam, adoram, reverenciam, honram, a quem imitam, idolatram e com quem formam
profundas conexões, a quem estão dispostos a ensinar e de quem aceitam aprender,
e cujo respeito, admiração, reconhecimento, honra, reverência e amor eles desejam...
Estes são, predominantemente, outros homens. Em suas relações com mulheres, o que
passa por respeito é gentileza, generosidade ou paternalismo; o que passa por honra é a
remoção do pedestal. De mulheres eles querem devoção, serviço e sexo.
A cultura heterossexual masculina é homoerótica; ama homens. Isso é perfeitamente
consistente com ser hetero-sex-ual, uma vez que, nesse esquema, sexo e amor não têm
nada essencial, e o pouco que tem a ver um com o outro é acidental.

7
Quando um homem que considera a si mesmo como firmemente heterossexual fode um garoto de programa ou
outro homem, geralmente, ele considera o outro como uma mulher ou como tendo sido feito mulher por esse ato.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 124


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

A cultura gay masculina também é homoerótica. Não existe quase nada que sugira
alguma medida de amor a mulheres, e todos os elementos de paixão e conexão, incluindo
todos os tipos de prazeres e de desejos sensuais, estão abertamente envolvidos em
relações entre homens. O amor ao homem é simplesmente mais transparente aos
amantes e mais completo para homens gays do que para homens heterossexuais.
É claro que a cultura lésbica e lesbofeminista também é em geral homoerótica. Lésbicas/
feministas tendem a reservar emoções, conexões e desejos para mulheres e de querê-los
de outras mulheres. Nós tendemos a ser relativamente indiferentes, eroticamente,
a homens, na medida do possível da socialização e sobrevivência em uma cultura supre-
macista masculina. Não amar homens é, na cultura da supremacia masculina, possivel-
mente o pecado mais execrável. Penso ser um indicativo disso o fato de a indiferença
de “lésbicas” ou de “feministas” ser identificada diretamente com ódio ao homem. Não
amar homens é tão vil, nesse conjunto de valores, que não pode ser concebido como a
mera coisa passiva que é, como mera ausência de interesse, mas deve ser vista como
uma inimizade ativa.
Se o amor ao homem é a regra na cultura falocrática, como penso que é, logo o homoe-
rotismo masculino é compulsório; então gays deveriam estar listados entre os fiéis, ou
os leais e seguidores da lei, e lésbicas e feministas seriam as pecadoras e criminosas ou,
se percebidas politicamente, insurgentes e traidoras.

4. Dada a precisão do dualismo entre macho/fêmea e masculino/feminino no pensamento


falocrático, o ódio à mulher é o corolário óbvio do amor ao homem. O desprezo por
mulheres é uma coisa tão comum nesta cultura que, às vezes, é difícil de se ver. Ele
é expresso em grande parte do que se passa como humor e no entretenimento mais
popular. Sua presença nas culturas erudita e acadêmica também foi documentada
exaustivamente por pesquisadoras feministas em todos os campos. É divulgado pela
publicidade e pela indústria da moda. Toda a pornografia heterossexual, incluindo a
chamada pornografia “lésbica” produzida por homens para a audiência masculina, exibe
um ódio a mulheres inflexível8. Treinadores esportivos e sargentos de treinamentos
militares expressam seu nojo quando seus subordinados performam inadequadamente,
chamando-os de “mulheres”, “moças”, “meninas” e outros nomes mais degradantes para
mulheres. O ódio a mulheres é uma parte importante do que sustenta a supremacia
masculina; suas funções, na sociedade falocrática, são diversas. Entre outras coisas, ele

8
Ver Pornography: Men Possessing Women, de Andrea Dworkin (Perigee Books, Putnam, 1981). E “Sadomasochism:
A Violence, Eroticized Powerlessness”, em Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis, editado por Robin
Ruth Linden, Darlene R. Pagano, Diana E. H. Russel e Susan Leigh Star (Frog In The Well, 1982), p. 125.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 125


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

sustenta a solidariedade masculina ao colocar mulheres tanto separadas quanto abaixo


de homens. Isso ajuda a manter uma fronteira clara e definitiva entre o “nós” masculino
e os “outros”, e ajuda a sustentar a ilusão de superioridade que motiva a lealdade entre
os homens. Homens, não raramente, demonstram o desprezo por mulheres em rituais
para expressar e, assim, confirmar para eles mesmos e para outros sua masculinidade, ou
seja, sua participação leal no “nós” masculino e seu direito aos privilégios da filiação. Essa
é uma das funções das trocas de histórias de “conquista”, diminuição casual, estupro
coletivo, e outras atrocidades mais ou menos graves9.
Em uma cultura que odeia mulheres, uma das coisas horrendas que pode acontecer a um
homem é ser tratado ou visto como uma mulher ou como feminino. Essa degradação o
torna um alvo adequado de estupro e de escárnio e retira dele a presunção de direitos
civis. Esse destino terrível recai sobre gays. Na sociedade, em geral, se é sabido que um
homem é gay, ele está sujeito a ser marcado no nível de seu status sexual, de sua autori-
dade pessoal e de direitos civis destinados a mulheres. Isto é, obviamente, muito injusto,
uma vez que a maioria dos gays são tão homens quanto qualquer homem: ser gay não é
incompatível com ser leal à masculinidade e comprometido com o desprezo a mulheres.
Algumas das coisas que levam pessoas heterossexuais a duvidarem da masculinidade
de homens gays são, na verdade, provas dela.
Uma das coisas que convence o mundo heterossexual de que homens gays não são
verdadeiramente homens é o estilo afeminado de alguns gays e a instituição gay de
personificar mulheres, ambas associadas à homossexualidade, na imaginação popular.
Contudo, à medida que as analiso, a efeminação e o vestir de roupas femininas não
demonstram amor ou identificação com mulheres ou com o feminino.
Em sua maior parte, essa feminilidade é afetada e caracterizada por um exagero teatral.
É um deboche casual e cínico de mulheres, para quem a feminilidade é a armadilha
da opressão, mas também é uma espécie de jogo, uma brincadeira com aquilo que é
tabu. É uma travessura tolerada, suspeito, mais por aqueles que acreditam em sua
imunidade à contaminação do que por aqueles que têm dúvidas ou temores. Rapazes
arrogantes que têm certeza de sua imortalidade são os que fazem as acrobacias no
parapeito, cinco andares acima do nível da rua. O que a afetação ou feminilidade de
homens gays me parece é um tipo de esporte sério no qual homens podem exercitar
seu poder e controle sobre o feminino, assim como em outros esportes se exercita o
poder e o controle físico sobre elementos do universo físico. Alguns gays alcançam,

9
Ver Woman Hating, Andrea Dworkin (E.P. Dutton, 1974) e Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism, por
Mary Daly (Boston: Beacon Press, 1978), especialmente a Primeira e a Segunda Passagem, para a discussão completa
dos sintomas e das funções do ódio à mulher.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 126


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

de fato, uma maestria prodigiosa do feminino e são, frequentemente, tratados por


aqueles do meio com o respeito destinado a heróis10 . Contudo, a maestria do feminino
não é feminina. É masculina. Não é a manifestação do amor a mulheres, mas do ódio a
mulheres. Alguém com essa maestria poderia ser o primeiro a reivindicar a masculini-
dade. Tudo isso sugere que a afirmação comum de que homofobia pertence aos que têm
menos segurança em sua masculinidade pode não estar tão errada assim. A efeminação
flagrante e evidente de gays ridiculariza o distanciamento ansioso e supersticioso de
homens heterossexuais em relação ao feminino11. Existem gays que estão inclinados a
comemorar esta conclusão, que se sentirão presunçosos e regozijados com uma análise
como esta, que sugere que são superiores a outros homens, isto é, superiores em sua
masculinidade. Eles revelam claramente que, de fato, passam no teste desprezo-às-mu-
lheres da masculinidade12.
(Existe uma política mais gentil que está por trás da afetação feminina de alguns gays.
Pode ser uma forma de diversão que envolve a sátira não de mulheres ou de homens
heterossexuais, mas de toda a instituição do gênero – uma brincadeira deliberadamente
irreverente com uma das idiotices mais sagradas da cultura falocrática. Essa pode ser a
ação política necessariamente alegre de um rebelde de gênero, em vez de um exercício
de masculinidade. Certos tipos de alegria em conexão com o que é, no fim das contas,
a parafernália da opressão de mulheres pode se tornar uma piada de mau gosto. No
entanto, quando a tolice é feita sob a forma de uma boa piada sobre o patriarcado, ela
revela uma leviandade potencialmente revolucionária sobre a séria questão da mascu-
linidade e, portanto, pode expressar uma política mais compatível com o feminismo do
que a maioria das políticas dos gays.)
Talvez seja esperado que, uma vez que homens gays podem ser, de certa forma, vítimas
do ódio a mulheres, eles podem ter desenvolvido uma identificação incomum com
mulheres e, portanto, uma aliança política com elas. Essa é uma possibilidade política
que é posta em prática por alguns gays, mas, na maior parte dos casos, essa identifi-
cação é realmente impossível. Eles sabem, mesmo que não articuladamente, que sua
classificação juntamente de mulheres é baseada num desentendimento profundo. Como

10
Imitadores de mulheres são um elemento básico no entretenimento oferecido em bares e boates gays e eles se
apresentam para uma audiência muito apreciativa. O talento deles é reconhecido e admirado. Os melhores, entre
eles, viajam o mundo, como outras pessoas que trabalham com entretenimento, e seus nomes artísticos são bem
conhecidos no país todo. Eles são uma espécie de ídolos.
11
Obrigada a C.S. pela percepção de que a efeminação gay tem tão pouco a ver com mulheres, a ponto de sequer ser
a sátira de mulheres que pensei que fosse.
12
Essa observação é devida a C.S.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 127


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

a maioria de outros homens que, por uma razão ou por outra, experimentam um pouco
do que é ser uma mulher em uma cultura de ódio a mulheres, eles estão inclinados a
protestar não pela injustiça de qualquer pessoa ser tratada de modo tão mesquinho, mas
pela injustiça de eles serem tratados dessa forma, uma vez que não são mulheres. A iden-
tificação da cultura heterossexual entre homens gays e mulheres normalmente serve
apenas para intensificar o investimento de homens gays em sua indiferença e em sua
distinção em relação ao outro feminino. O que resulta disso não é aliança com mulheres,
mas estratégias designadas para demonstrar publicamente a identificação de homens
gays com homens, sobre e contra mulheres. Tais estratégias devem envolver uma forma
ou outra de demonstração pública de dominação masculina e subordinação feminina.
Não é fácil conseguir organizar ações e aparições públicas que apresentem, simultanea-
mente, a homossexualidade de gays e o correto desprezo da supremacia masculina pelas
mulheres. A efeminação afetada exibe isso, mas é popularmente mal compreendida.
Seria perfeito se alguns dos vários homens gays que são casados aparecessem com suas
esposas em programas de audiência nos quais homens pudessem conversar animada-
mente sobre as alegrias de amar homens, e suas esposas pudessem sorrir e ser adequa-
damente solidárias, dizendo que apenas desejam que seus maridos sejam felizes. Mas
não existirão muitos voluntários para esse trabalho. Quem, então, são as mulheres que
aparecerão ao lado e atrás de homens gays, representando o outro feminino na relação
adequada em contraste com a masculinidade deles? Lésbicas, é claro. Homens gays
podem, de modo convincente, apresentar a si mesmos como homens, isto é, como seres
definidos pela superioridade em relação a mulheres, se existirem lésbicas no movimento
pelos direitos gays – uma vez que homens estão sempre ou quase sempre na posição
visível de liderança. Ao ter mulheres em volta, visíveis, mas em posições subordinadas,
gays podem demonstrar publicamente sua separação e distinção de mulheres, bem
como sua atitude “apropriada” diante de mulheres que é, no fim das contas, a de ódio às
mulheres13.
A cultura gay masculina e o movimento pelos direitos gays, em suas manifestações
públicas visíveis, parecem se conformar, tranquilamente, ao princípio fundamental da
supremacia masculina, que é o ódio às mulheres. Qualquer um que tenha passado tempo
em um bar gay pode esperar isto: homens gays, como outros homens, fazem piadas que
rebaixam e vilanizam mulheres, os corpos de mulheres e os genitais de mulheres de
maneira comum, casual e alegre14. De fato, em alguns círculos, o desprezo por mulheres

13
Esse ponto é devido a John Stoltenberg. Ver “Toward Gender Justice”, WIN Magazine, 20 mar. 1975. p. 6-9.
14
Ver “Sexist Slang and the Gay Community: Are You One, Too?”, por Julia P. Stanley e Susan W. Robbins, The
Michigan Occasional Papers Series, n. XIV.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 128


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

e a repulsa física por corpos femininos são abertamente aceitos como apenas o outro
lado da atração de homens gays por homens.

5. O quinto princípio da supremacia masculina que listei é o princípio da heterossexua-


lidade compulsória. É uma regra a respeito de fazer sexo, ou seja, sobre a foda “missio-
nária”. Essa atividade é, geralmente, compulsória para homens nessa cultura. A foda é
uma grande parte de como mulheres são mantidas em subordinação a homens. É uma
encenação ritualística que reafirma constantemente a subordinação e habitua tanto
homens quanto mulheres a fazê-lo, tanto no corpo quanto na imaginação. Também é
um dos componentes do sistema de comportamentos e valores que constituem a mater-
nidade compulsória para mulheres. Também se presume que uma grande parte da foda
mantenha a crença de mulheres em sua própria heterossexualidade essencial, que, em
troca (para mulheres, não para homens), conecta e reforça o heteroerotismo feminino,
isto é, o amor aos homens nas mulheres. É muito importante para a manutenção da
supremacia masculina que homens fodam mulheres, muito. Então isso é requisitado,
é compulsório. Fazer isso é cumprir com o dever e uma expressão de solidariedade. Um
homem que não fode ou que não foderá mulheres não está cumprindo com sua parte.
Ele não é um membro leal e confiável do time.
Alguns homens gays, certamente, são desviantes nessa questão e advogariam pela tole-
rância para com seu desvio sem as penalidades que, agora, estão ligadas a ele. Eles podem
violar a regra da falocracia, mas em muitos casos, o fazem apenas por detestar cumprir
com seu dever, uma vez que aprenderam muito bem suas lições de odiar mulheres.
A relutância deles em cumprir com essa parte da masculinidade deve-se apenas a um
desequilíbrio no qual a requisição de odiar mulheres tomou uma forma e alcançou uma
intensidade que a coloca em tensão com esse outro requisito da masculinidade. Essa
divergência da vida gay com a cultura da supremacia masculina claramente não é uma
recusa aos valores fundamentais da supremacia masculina, mas uma manifestação das
tensões internas a esses valores.
A relutância de alguns gays em foder mulheres não parece ser central na homosse-
xualidade masculina para o “ser gay”, da forma como é apresentada e defendida pelo
movimento pelos direitos gays. Este parece, em sua maior parte, tolerar o requerimento
da heterossexualidade, seu porta-voz parece demandar apenas que homens não estejam
limitados à heterossexualidade, isto é, que o contato genital e o sexo sejam permitidos
como parte de suas relações homoeróticas com outros homens. Eles apontam que muitos
gays são casados e que muitos homens que engajam no que é chamado de homossexua-
lidade também fodem mulheres – isto é, eles são homens “normais” e obedientes. Eles

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 129


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

apontam que muitos gays são pais. Eu não pretendo conhecer os dados demográficos:
quantos gays fodem mulheres ou as engravidaram, ou mesmo quantos deles estão
comprometidos com essa linha de persuasão em seu papel como ativistas por direitos
gays. Mas esse é de fato um dos temas centrais na retórica pelos direitos gays. Homens
que seguem essa linha não são aliados políticos de mulheres. Eles mantêm sua solidarie-
dade com outros homens a respeito de manter o sistema funcionando e apenas querem
o crédito por isso, apesar de algumas de suas outras atividades e inclinações.

6. Agora chegamos ao único dos fundamentos principais da cultura e da sociedade da


supremacia masculina no qual há uma divergência real entre ela e os valores e prin-
cípios do que é rotulado como homossexualidade masculina. Mesmo aqui a situação é
ambígua, pois o movimento pelos direitos de homens gays só quer muito de algo que é
realmente muito claro para homens heterossexuais.
Nessa cultura, homens em geral consideram que, em virtude de sua masculinidade
genital, têm o direito de acessar o que quiserem. Os tipos de limitações que eles reco-
nhecem a essa acessibilidade generalizada do universo são aquelas impostas por outros
homens por meio de coisas como sistemas de propriedade privada, a existência do Estado
e as regras e rituais de limitação de violência entre homens. Em sua identificação com a
Humanidade, eles não reconhecem limitações em seu acesso a qualquer outra coisa no
universo, com a possível exceção daquelas impostas pela própria sobrevivência física da
Humanidade, e podem até ignorar ou zombar em função de alguma crença estranha na
Humanidade como imortal e eterna. A tradução dessa arrogância masculina cósmica
ao nível do corpo masculino individual é a presunção do indivíduo ao direito quase
universal de foder – de afirmar sua dominação masculina individual sobre tudo o que
não for ele próprio, usando qualquer coisa para sua gratificação fálica ou autoafirmação
a nível físico ou simbólico. Qualquer objeto físico pode ser urinado sobre ou dentro,
ejaculado sobre ou dentro, ou penetrado com seu pênis, assim como qualquer animal
não humano ou qualquer mulher, sujeito apenas às limitações impostas pelos direitos
de propriedade e costumes sociais locais – e mesmo esses estão longe de serem invio-
láveis por seu pênis ereto que, dizem eles, não tem consciência. A única limitação geral
e quase inviolável ao acesso fálico masculino é que homens não devem foder outros
homens, especialmente humanos adultos machos de sua própria classe, tribo, raça etc.
Essa é a única regra importante da cultura falocrática que os homens gays violam,
e essa violação é central ao que é defendido e promovido pelo movimento dos direitos
de homens gays.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 130


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

Mas note a forma como esse desvio das regras do jogo da supremacia masculina funciona.
É a recusa de uma limitação ao acesso fálico, é a recusa em refrear o ser masculino. É um
excesso de arrogância fálica. O princípio fundamental é o do acesso fálico universal.
O que está em disputa é apenas uma qualificação dele. A cultura gay masculina não
nega ou rejeita o princípio; ela o abraça.
Uma grande parte do que mantém a supremacia masculina é o cultivo constante da
masculinidade no genital masculino. Masculinidade envolve a crença de que, como
homem, se é o centro de um universo que é desenhado para alimentá-lo e sustentá-lo e
para ser regido por ele, assim como a crença de que qualquer coisa que não se conforme
a sua vontade possa ser, e talvez deva ser, disciplinado pela violência. Até aqui, realmente
não haveria espaço no universo para mais do que um ser masculino. Deve haver um fator
de equilíbrio, algo que proteja os seres masculinos uns dos outros. Com certeza, existe
uma forma de “tabu do incesto” construído na masculinidade padrão: um ser propria-
mente masculino que não vitimize ou consuma outros seres masculinos em seu grupo
familiar15. Este é um tema moderador, como a regra de honra entre ladrões.
Dentro do grupo familiar, seres masculinos podem competir de várias maneiras bem
definidas e ritualizadas, mas eles se identificam uns com os outros de tal forma que
não conseguem se ver como “Outro”, isto é, como matéria-prima para a gratificação dos
apetites. Esse misturar-se em uma horda com determinados outros seres masculinos,
que às vezes eles chamam de “camaradagem masculina”, é o que garantiria aos seres
masculinos uma porção crucial de segurança entre seres masculinos que, na arrogância
infantil solipsista, de outra forma se aniquilariam cegamente. A proscrição de fodas
entre homens é o arremate da masculinidade, o princípio limitante que evita que a
masculinidade se torne simplesmente uma tempestade de fogo sem fim com egos indi-
ferenciados. Como tal, essa proscrição está necessariamente sempre em tensão com o
restante da masculinidade. Essa tensão estrutura a masculinidade, mas também é para
sempre problemática. Enquanto homens forem constantemente socializados dentro da
masculinidade, o espectro da possibilidade de eles enlouquecerem está sempre presente.
A reação fóbica de um homem heterossexual à homossexualidade masculina pode, então,
ser vista como um medo de uma masculinidade irrestrita, ilimitada, desgovernada.
Claro que a questão é maior e mais complexa do que apenas isso, mas é isso também,
entre outras coisas.

15
Uso o termo “familiar” aqui em um sentido específico. O grupo em questão pode ser definido mais ou menos
amplamente por classe, raça, idade, afiliação religiosa, origem étnica, língua etc. e pode ser uma gangue de rua,
uma “família” mafiosa, uma corporação, estudantes em uma escola específica, uma máquina política etc.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 131


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

Para amenizar esse medo, o que a retórica e a ideologia do movimento pelos direitos de
homens gays tentou fazer foi convencer homens heterossexuais de que o sexo anal e
oral entre homens não significam necessariamente violações da regra contra homens
perseguirem ou consumirem outros homens, mas, pelo contrário, são expressões da
camaradagem entre homens. Eu não pretendo saber se ou com qual frequência o sexo
anal ou oral são basicamente estupro ou camaradagem, ou como não são nenhum,
então não vou me oferecer para resolver essa questão. O que quero observar é apenas
isto: se é a afirmação de homens gays e de seu movimento que a foda entre homens é
realmente uma forma de camaradagem masculina, uma intensificação e completude
do homoerotismo que é básico para a supremacia masculina, então eles próprios estão
argumentando que sua cultura e suas práticas são, no fim das contas, perfeitamente
congruentes com a cultura, as práticas e os princípios da supremacia masculina.
De acordo com a imagem que emergiu nesse ponto, a homossexualidade masculina é
congruente com uma extensão lógica da cultura da supremacia masculina heteros-
sexual. Parece que homens heterossexuais apenas não compreendem a congruência
e assustam-se com a “extensão lógica”. Em resposta, o movimento pelos direitos de
homens gays tenta educar e encorajar homens heterossexuais a apreciar a normalidade
e a falta de perigo que homens gays representam. Essa lógica não desafia os princípios
da cultura da supremacia masculina.
Em contraste, qualquer política concernente à dignidade e ao bem-estar de mulheres não
pode deixar de desafiar esses princípios, e o feminismo lésbico, em particular, está total-
mente em desacordo com eles. O estilo, as atividades, os desejos e valores da feminista
lésbica são óbvia e profundamente não congruentes com os princípios da cultura da
supremacia masculina. Ela não ama homens. Não reserva sua paixão e suas trocas
verdadeiras aos homens. Não odeia mulheres. Pressupõe a equidade entre os corpos
de mulheres e homens, ou até a superioridade e normatividade do corpo feminino. Não
tem interesse em pênis para além de uma preocupação razoável sobre como homens o
usam contra mulheres. Ela reivindica direitos civis para mulheres sem argumentar que
mulheres são realmente homens com partes diferentes. Não vive como o complemento
da regra da heterossexualidade para homens. Não está acessível ao pênis; não vê a si
mesma como um alvo natural da foda e nega que homens tenham o direito ou o dever
de fodê-la.
Nossa existência como mulheres não possuídas por homens e não acessíveis ao pênis,
nossos valores e nossa atenção, nossa experiência do erótico e a direção de nossa paixão
nos coloca diretamente em oposição à cultura da supremacia masculina em todos os

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 132


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

aspectos, tanto que nossa existência é quase impensável dentro da visão de mundo
dessa cultura16.
Longe de haver uma afinidade natural entre lésbicas feministas e o movimento pelos
direitos gays, vejo suas políticas como sendo, em muitos aspectos, diretamente opostas
uma à outra. A direção geral da política de homens gays é de reivindicar a masculini-
dade e o privilégio masculino para gays e de promover uma ampliação no alcance da
presunção de acesso fálico a ponto de ser, de fato, absolutamente ilimitado. A direção
geral da política feminista lésbica é de desmantelar o privilégio masculino, apagar a
masculinidade e reverter a regra de acesso fálico, substituindo a regra de que o acesso
é permitido a menos que especificamente proibido pela regra de que é proibido a menos
que especificamente permitido.

Existem outras possibilidades. Homens gays, pelo menos aqueles que não vêm de classes
econômicas mais altas e/ou que não são brancos, experimentam o ódio, o medo e o desprezo de
homens heterossexuais17, eles experimentam ostracismo e restrição de direitos ou vivem com
a ameaça disso. Gays são aterrorizados e vitimizados significantemente mais do que outros
homens de sua classe e raça por valentões, assaltantes e fanáticos religiosos do mundo. Eles
toleram, como fazem as mulheres, assédio legal e ilegal e insultos que nenhuma pessoa com
respeito próprio deveria tolerar. Dessa marginalização e vitimização, poderia e deveria haver
algo mais construtivo, progressista – de fato revolucionário – do que as políticas de assimilação
que consistem principalmente das reivindicações de masculinidade e pedidos de compreensão.

Ainda que um homem perceba a si mesmo como “diferente” a respeito da sua relação às
categorias de gênero em seus desejos sensuais, em suas paixões; ele percebe a si mesmo em um
contexto cultural que lhe oferece a dualidade masculino/feminino para se encaixar. Por um lado,
é “oferecida” a ele a cultura dominante sexista e heterossexista que o rotulará como feminino e
o castigará; e por outro lado é “oferecida” a ele uma subcultura gay masculina muito misógina
e hiper masculina; ele é convidado a se unir a um movimento pelos direitos gays que é, basi-
camente, masculinista, mediando as duas, tentando construir pontes de entendimento entre
elas. Se ele tem o bom gosto estético e político para achar tudo acima repugnante, ele só pode
fazer o que feministas lésbicas têm feito: inventar. Ele deve se movimentar, assim como nós, em
direções anteriormente indescritíveis. Precisa inventar o que masculinidade é, quando não é
moldada e endurecida até resultar na masculinidade heterossexual, na hipermasculinidade ou

16
Para explicação e elaboração dessa afirmação, ver “Ser e ser vista: a política da realidade”, nesta coletânea.
17
E mulheres também, incluindo algumas lésbicas. Mas as atitudes negativas de mulheres em direção a qualquer
grupo de homens não geram tantas consequências quanto as de homens.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 133


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

na efeminação gay. Para um homem sequer começar a pensar sobre essa invenção, é valioso ou
necessário ser desleal à falocracia. Para um homem gay, isso significa ser o traidor da mascu-
linidade que homens heterossexuais sempre pensaram que ele fosse.

Qualquer homem que queira se aliar a mulheres deve entender os valores e os princípios da
cultura falocrática e como sua própria vida está entrelaçada a eles, e deve rejeitá-los e tornar-se
desleal à masculinidade. Homens que buscam essa aliança precisam reinventar o que é ser um
homem. A intuição inicial que muitas de nós já teve de que gays podem estar mais propensos
do que homens heterossexuais a serem amigos de mulheres tem, talvez, este tanto de verdade
nela: para homens gays, mais do que para homens heterossexuais, as sementes de alguma
motivação e de alguns recursos para realizar essa virada radical estão construídas dentro
da situação política e cultural deles no mundo. A diferença do homem gay pode ser a fonte da
faísca que pode ser a mãe da invenção e pode fornecer recursos para essa ela.

Um dos privilégios de ser normal e ordinário é uma certa inconsciência. Quando se é consi-
derado a norma no ambiente social, não é necessário pensar sobre isso. Com frequência, em
discussões sobre preconceito e discriminação escuto afirmações como estas: “não penso em
mim mesmo como heterossexual”; “não penso em mim mesmo como branco”; “não penso em
mim mesmo como homem”; “sou apenas uma pessoa, penso em mim mesmo como uma pessoa”.
Quando se está dentro da norma, não é necessário saber o que se é. Quando se é marginalizado,
não se tem o privilégio de não saber o que se é.

Essa ausência de privilégio é a presença de conhecimento. Como tal, pode ser um grande
recurso, considerando apenas que a pessoa marginalizada não despreza o conhecimento e
cobiça a inclusão no convencional, a inconsciência da normalidade. Contudo, o conhecimento
e a marginalidade podem ser abraçados. A alternativa a abraçá-los é apagar o significado da
própria experiência com a finalidade de passar por normal – fingindo que a diferença não é
nada, realmente, nada mais significante que uma preferência por carros importados, Bourbon
ou roupas com estilo country. Gays e lésbicas são todos desviantes sexuais: nossos corpos se
movem nesse mundo por caminhos muito diferentes e encontram outros corpos de modos
muito diferentes e em lugares diferentes do que os corpos da maioria heterossexual. Nada
poderia ser mais fundamental. A diferença não é “mera”, não é desimportante. O que quer que
haja em nós que anseie por integridade deve acompanhar o conhecimento, não o desejo de
perder a consciência dentro da normalidade.

Eu não posso dizer a outra pessoa como o conhecimento de sua marginalidade irá se
ramificar, ao longo de suas experiências de vida, em mais conhecimento, mas acho que é seguro
dizer que, uma vez que nossa marginalidade é tão central para nossos corpos e para a não

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 134


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

conformidade de nossos corpos com as categorias corporais e comportamentais das culturas


dominantes, temos acesso ao conhecimento de corpos que foram perdidos e/ou apagados nas
culturas dominantes. Em particular, gays e lésbicas têm acesso ao conhecimento do prazer
corporal, sensorial e sensual que é quase totalmente bloqueado nas culturas heterossexuais da
supremacia masculina, especialmente nas ramificações mais dominadas por estilos e valores
brancos, cristãos, comerciais e militares. Na medida em que a cultura gay masculina cultiva,
explora e expande suas tendências para a busca do prazer corporal simples, em oposição a
suas tendências para o fetichismo, fantasia e alienação, parece que ela poderia alimentar novas
concepções muito radicais, até então impensáveis, do que é viver em um corpo masculino.

A ortodoxia falocrática acerca do prazer do corpo masculino parece sugerir que o esforço
muscular extenuante e o orgasmo associados à foda são suas formas mais elevadas. Essa
doutrina serve aos propósitos de uma sociedade que requer, intensivamente, fodas e uma
população masculina que se imagina como guerreiros. Contudo, os prazeres corporais que
existem nos atos que expressam a supremacia masculina e o domínio físico certamente não
são os paradigmas, a amplitude, a altura ou a profundidade do prazer disponível para alguém
que vive em um corpo masculino. Há alguma intuição nesse sentido na cultura gay masculina,
e os guardiões da supremacia masculina não querem que isso seja conhecido. Uma busca direta
e entusiástica dos prazeres do corpo masculino não levará os homens, suspeito eu, à masculi-
nidade, não direcionará os homens a uma vida de caça aos outros e de conquista da natureza;
não mais do que a busca por prazeres corporais conduz mulheres à heterossexualidade mono-
gâmica e à feminilidade. Posso apenas recomendar que homens se empenhem em descobrir e
inventar a que isso poderia levar.

Outra coisa genérica que pode ser dita com segurança sobre os recursos fornecidos pela
marginalidade é que ela abre a possibilidade de ver estruturas da cultura dominante que estão
invisíveis a quem está dentro dela. É uma bênção em particular de gays e de lésbicas que, de
muitas maneiras, somos tanto Cidadãos quanto Exilados, membros da família e estranhos.
A maioria de nós foi criada como heterossexual; muitos de nós foram heterossexuais e muitos
de nós podem e passam como heterossexuais boa parte do tempo. Muitos de nós conhecem esse
mundo heterossexual por dentro e, se quisermos, por sua borda externa. Podemos olhar para
ele com a precisão e a profundidade de uma visão binocular. Com o conhecimento disponível a
nós de nossa posição à margem das coisas, podemos basear nossas invenções de nós mesmos,
invenções do que uma mulher é e do que um homem é, em uma compreensão realmente notável
dos humanos e da sociedade humana como têm sido construídos e mal construídos anterior-
mente. A vontade é um elemento extremamente necessário.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 135


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

Tem sido política das feministas lésbicas de nos apresentarmos publicamente como pessoas
que escolheram os padrões lésbicos de desejo e de sensualidade. Quer como indivíduos sintamos
que nascemos lésbicas ou que somos lésbicas por decisão, reivindicamos, como agentes moral
e politicamente conscientes, uma escolha positiva a fazer: reivindicar nosso lesbianismo
para tirar o máximo proveito de suas vantagens. Isso é central ao nosso feminismo: que
mulheres podem conhecer seus próprios corpos e desejos, interpretar suas próprias correntes
eróticas, criar e escolher ambientes que encorajam mudanças escolhidas em tudo isso e que
um erotismo feminino, independente de homens e da masculinidade, é possível e pode ser
escolhido. Reivindicamos essas coisas e lutamos no mundo pela liberdade de todas as mulheres
as vivenciarem sem punição e terror; acreditando também que, se o mundo permitir o erotismo
feminino autodeterminado, será um mundo inteiramente diferente. Tem sido a política geral
do movimento pelos direitos de homens gays negar que a homossexualidade é escolhida ou
digna de ser escolhida. Na arena pública, o posicionamento primário desse movimento tem
sido: “Seríamos heterossexuais, se tivéssemos escolha, mas não temos escolha” complemen-
tado por: “Nós realmente somos apenas humanos, como vocês”. A implicação disso é que é
apenas humano desejar ser heterossexual, e apenas demasiado humano ter falhas e travas.
Enquanto se desculpa pela diferença, afirmando-a como algo sobre a qual não se tem controle,
essa combinação de temas tenta afogar essa mesma diferença em uma lavagem sentimental
da humanidade comum.

Para que os benefícios da marginalidade sejam colhidos, a marginalidade deve, em certo


sentido, ser escolhida. Ainda que, na história individual, se experiencie os padrões de desejo
como dados, e não escolhidos, deve-se negar, resistir, tolerar ou abraçá-los. Pode-se escolher
um estilo de vida devotado a mudá-los, disfarçando-se ou escapando das consequências da
diferença, ou um estilo de vida que tome as diferenças como parte integrante de sua posição
e localização no mundo. Caso se tome a rota da negação e da evitação, não se pode utilizar a
diferença como recurso. Não se pode ver o que há para ser visto de seu ponto de vista avanta-
jado ou conhecer o que pode ser conhecido por um corpo localizado de tal forma, caso se esteja
preocupado com desejar não estar lá, negando a particularidade da própria posição, deserdando
a si mesmo.

O poder disponível para aqueles que escolhem, que decidem a favor do desvio das normas
heterossexuais, pode ser muito grandioso. A escolha, a decisão, desafia as doutrinas do deter-
minismo genético que turvam o fato de que a heterossexualidade é parte de uma política.
A escolha desafia o valor colocado na normalidade heterossexual. E a escolha coloca o agente
da escolha em uma posição de criar e explorar uma visão diferente.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 136


Feminismo lésbico e o movimento pelos direitos gays

Muitos homens gays, incluindo muitos em posição de liderança no movimento pelos


direitos dos gays, simplesmente não quiseram esse tipo de poder. Eles não quiseram qualquer
mudança fundamental nas políticas e na sociedade ou qualquer novo conhecimento radical;
simplesmente quiseram sua parte devida (geralmente homens brancos) do acordo. Contudo,
outros começaram a entender o poder potencialmente curativo e revelador da diferença e
estão começando a se comprometer com o projeto de reinventar o ser homem a partir de uma
posição positiva e escolhida na margem externa das estruturas da masculinidade e da supre-
macia masculina.

Se há esperança para uma coordenação dos esforços e das percepções de feministas lésbicas
e de homens gays, é aqui nas margens que podemos encontrá-la, quando estamos trabalhando
a partir de fundamentos escolhidos em nossas diferentes diferenças.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 137


9 Ser e ser vista:
a política da
realidade1

▸I
Na primavera de 1978, em um encontro da Divisão do Centro-Oeste da Sociedade de Mulheres
na Filosofia, Sarah Hoagland leu um ensaio intitulado “Epistemologia Lésbica”, no qual esboçou
o cenário seguinte:

Nos esquemas conceituais das falocracias, não há categoria que descreva “mulher iden-
tificada com outra mulher”, “mulher que ama mulher” ou “mulher centrada na mulher”,
ou seja, a lésbica não existe. Isso coloca a lésbica na posição interessante e peculiar de ser
algo que não existe, e essa posição é um ponto de vista privilegiado em relação à realidade
que não a inclui. Ela garante certa liberdade das restrições do sistema conceitual; dá a
ela acesso a conhecimentos que são inacessíveis àqueles cuja existência é admitida pelo
sistema. Lésbicas podem, portanto, realizar certas formas de críticas e descrições e certas
invenções intelectuais inimagináveis até então.

Hoagland estava incitando lésbicas feministas a começar esse trabalho e ela não tentou
dizer antecipadamente o que poderia ser visto dessa posição epistêmica excepcional.

Alguns críticos desse ensaio, arrepiando-se com a sugestão de que lésbicas poderiam
ser abençoadas com quaisquer poderes exóticos ou oportunidades especiais, foram rápidos
em demandar uma definição da palavra “lésbica”. Eles sabiam que se a definição de “lésbica”
apresentasse certos padrões de contato físico como definitivos, então a reivindicação de que
1
Essa é uma versão levemente revisada do ensaio que apareceu em Sinister Wisdom, 17, com o título To Be And Be
Seen: Metaphysical Misogyny, publicada em 1981.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 139


Ser e ser vista

os esquemas conceituais falocráticos não incluem lésbicas seria obviamente falsa, uma vez
que falocratas obviamente podem e de fato se apropriam, com suas mentes predatórias, de
imagens verbais e visuais de mulheres posicionadas de certa forma, fisicamente, em relação
umas às outras. E eles também sabiam, por outro lado, que qualquer definição que seja mais
“espiritual”, como “mulher identificada com mulheres”, será flexível o suficiente para permitir
a quase qualquer mulher se incluir como lésbica e a reivindicar para si esse privilégio episte-
mológico emocionante.

Outros críticos, que acharam o cenário de Hoagland envolvente, mas que detestavam glori-
ficar a condição de exílio, pressionaram para uma definição de “lésbica” que fosse ao mesmo
tempo precisa e esclarecedora – uma definição que lançaria luz sobre o que significa dizer que
lésbicas são excluídas dos esquemas conceituais falocráticos e que poderia, inclusive, fornecer
algumas pistas do que lésbicas poderiam ver a partir desse estranho e inaceitável não-lugar.

Essas pressões, combinadas com a propensão inerente dos filósofos a considerar como
procedimento metodicamente organizado apenas aquele que se inicia com definições, fizeram
com que a assembleia fosse inevitavelmente conduzida à tentativa de definir o termo “lésbica”.
Mas sem sucesso. Esse termo é extraordinariamente resistente aos procedimentos padrões
da análise semântica. Finalmente me ocorreu que a imprecisão do significado do termo era,
em si mesma, uma pista de que o cenário de Hoagland estava certo. Se, de fato, a existência
lésbica não é admitida pelo esquema conceitual dominante, a consequência é não conseguirmos
construir uma definição do termo “lésbica” da maneira que recomendaríamos a editores
bem-intencionados de dicionários. Se um esquema conceitual exclui algo, o vocabulário padrão
daqueles que dominam o esquema não será adequado para definir um termo que denota essa
coisa. Se o cenário de Hoagland está correto, então o que quer que eventualmente façamos como
meio de definir a palavra “lésbica”, essa definição irá evoluir dentro de um empreendimento
mais amplo e não pode ser o início para compreender e avaliar esse cenário.

Outro meio de começar é sugerido pela observação de que mulheres de todos os tipos
e cores, incluindo lésbicas, mas também incluindo não lésbicas, sofrem apagamento. Isso é
verdade, mas também me parece que Hoagland está correta: a exclusão de lésbicas da realidade
falocrática é diferente e está relacionada a um saber atípico. A dificuldade reside em tentar dizer
precisamente o que isso significa. Para dar um jeito nisso, precisamos explorar as diferenças e
as conexões entre o apagamento de mulheres em geral e o apagamento de lésbicas.

Essa investigação a respeito do que não está englobado por um esquema conceitual
apresenta problemas que surgem porque o esquema em questão é, pelo menos em geral,
o próprio esquema de quem investiga. Os recursos para a investigação são, principalmente,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 140


Ser e ser vista

retirados do próprio esquema cujos limites estamos tentando ultrapassar a fim de conceber
o projeto. Essa iniciativa, portanto, me coloca em uma espécie de flerte com a falta de signi-
ficado – dançando em uma região de lacunas cognitivas e espaços semânticos negativos2,
mantida no ar apenas pelo ritmo e pelo impulso do meu próprio movimento, tentando sondar
abismos que são geralmente admitidos como inexistentes e mapear as tensões que os criam.
O perigo é cair na incoerência. Mas os esquemas conceituais são econômicos nas comple-
xidades, de modo que suas estruturas e subestruturas imitam e refletem umas às outras e
pode-se, então, localizar indiretamente os buracos e as lacunas que não podem, pela sua própria
natureza, ser nomeados diretamente.

Eu começo com um lembrete semântico.

▸ II
Realidade é aquilo que é.

A palavra “real”, em inglês, origina-se de uma palavra que significava régio, de ou perten-
cente ao rei.

“Real” em espanhol significa relativo à realeza3.

Propriedade real é aquela que é própria ao rei.

Os imóveis reais4 são os imóveis do rei.

Realidade é o que pertence a quem está no poder, é aquilo sobre o qual ele tem poder, é o
domínio dele, sua propriedade, é próprio dele.

O rei ideal reina sobre tudo o que a vista alcança. A vista dele. O que ele não pode ver não
é régio, não é real.

Ele vê o que é próprio a ele.

Ser real é ser visível ao rei.

O rei está em seu gabinete.


2
Frase de Julia Penelope Stanley.
3
N.T.: No original, “royal”.
4
N.T.: No original, “real estate”, termo em inglês utilizado para referir-se às propriedades imobiliárias e ao mercado
imobiliário.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 141


Ser e ser vista

▸ III
Eu digo: “Eu sou uma lésbica. O rei não considera lésbicas. Lésbicas não são reais. Não existem
lésbicas”. Para dizer isso, uso a palavra “lésbica” e, portanto, pode-se pensar que existe uma
palavra para tal coisa e, portanto, que a coisa deve ter um lugar no esquema conceitual. Mas
não é o caso. Deixe-me levar você em uma visita guiada por alguns poucos dicionários, para
exibir algumas razões para dizer que lésbicas não são nomeadas no léxico do Inglês do Rei.

Se você procurar a palavra “lésbica” no The Oxford English Dictionary5, você encontra uma
explicação que diz que é um adjetivo que significa da ou pertencente à Ilha de Lesbos e uma
explicação que descreve longa e favoravelmente um utensílio chamado régua de Lesbos, que é
um dispositivo flexível de medida utilizado por carpinteiros. Ponto final6.

O Webster’s Third International7 oferece uma definição mais pertinente. Ele nos diz que
lésbica é um ser humano do sexo feminino que é homossexual. Seguindo, descobre-se que
“homossexual” significa de ou pertencente ao mesmo sexo. O exemplo esclarecedor fornecido é
a frase “gêmeos homossexuais”, que significa gêmeos do mesmo sexo. O estudioso atento pode
concluir que uma lésbica é uma mulher do mesmo sexo.

Uma edição recente do Webster’s Collegiate Dictionary nos diz que uma lésbica é uma
mulher que faz sexo ou mantém relações sexuais com outras mulheres. Tal definição seria
aceita por muitos falantes da língua e pelo menos parece ser coerente, ainda que demasiado
restrita. Contudo, a aparência é enganosa, pois essa descrição também cai na falta de sentido.
A palavra-chave nessa definição é “sexo”: fazer sexo ou ter relações sexuais. Mas o que é fazer
sexo? Vale a pena seguir essa linha de pensamento porque as explicações pertinentes do dicio-
nário obscurecem um ponto importante sobre a lógica do sexo. Esclarecer esse ponto ajuda a
ver que existe um fechamento semântico contra o reconhecimento da existência de lésbicas,
e isso também prepara o caminho para entender a conexão entre o lugar da mulher e o lugar
da lésbica a respeito do arranjo falocrático8.

5
N.T.: Um conhecido e tradicional dicionário da língua inglesa.
6
N.T.: No dicionário atualizado, constam outras definições.
7
N.T.: Ao contrário do dicionário Oxford, que tem uma pretensão mais universal, o Webster’s Third International
foca o uso e o desenvolvimento da língua inglesa no território dos Estados Unidos da América.
8
A análise que segue é minha própria interpretação de uma descrição desenvolvida por Carolyn Shafer. Minha versão
dela também é informada pela leitura de “Sex and Reference” de Janice Moulton, Philosophy and Sex, editado por
Robert Baker e Frederick Elliston (Nova Iorque: Prometheus Books, 1975).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 142


Ser e ser vista

Geralmente, dicionários concordam que “sexual” significa algo da ordem do pertencente


à união genital entre um animal fêmea e um macho e que “fazer sexo” é praticar o coito – sendo
que coito é definido como a penetração de uma vagina por um pênis com ejaculação. Minha
própria observação do uso me leva a pensar que essas descrições são inadequadas e enganosas.
Alguns usos desses termos encaixam-se na descrição do dicionário. Por exemplo, pais e tera-
peutas, normalmente, lembram jovens mulheres que, se elas querem ser sexualmente ativas,
precisam lidar de maneira responsável com a possibilidade de engravidar. Nesse contexto,
a palavra “sexualmente” está sendo usada de modo muito claro em um sentido que concorda
com a definição dada. Mas muitas atividades e eventos se enquadram sob o termo “sexual”
aparentemente sem desvio semântico, embora eles não envolvam penetração peniana da
vagina de uma fêmea humana. Penetração peniana de quase qualquer coisa, especialmente
se for acompanhada de ejaculação, conta como fazer sexo ou ser sexual. Ademais, eventos que
não podem, de modo plausível, ser vistos como pertinentes à ereção, penetração e ejaculação
penianas não serão, em geral, considerados sexuais; e eventos que não envolvam penetração
ou ejaculação peniana não serão consideradas como fazer sexo. Por exemplo, se uma garota é
acariciada e excitada por um homem e chega ao orgasmo, mas o homem se abstém da pene-
tração e da ejaculação, o homem pode dizer, e falantes da língua inglesa em geral concordarão,
que ele não fez sexo com ela. Não importa o que esteja acontecendo, ou (deve-se mencionar)
o que não esteja acontecendo, a respeito da excitação ou do orgasmo feminino, ou em relação
à vagina, pode-se dizer sem desvio semântico que um par fez sexo ou que não fez sexo; o uso
desse termo gira inteiramente em torno do que está acontecendo com o pênis.

Quando se consideram primeiramente as definições de “sexo” e de “sexual” do dicionário,


parece que toda a sexualidade se resume à heterossexualidade, por definição, e que o termo
“homossexual” seria internamente contraditório. Existem usos do termo de acordo com os
quais é exatamente o que ocorre. Mas no uso comum e padrão não há nada semanticamente
estranho em dizer que dois homens fazem sexo um com o outro. De acordo com esse uso,
qualquer situação na qual um ou mais pênis estejam presentes é uma situação na qual algo
que pode ser chamado de fazer sexo pode ocorrer. Mas nessa definição aparentemente “mais
ampla” não há nada que mulheres possam fazer, na ausência de homens, que poderia, sem
estranheza semântica, ser chamado de “fazer sexo”. Falar de mulheres que fazem sexo com
outras mulheres é como falar de patos que se envolvem em queda de braço.

Quando o dicionário define lésbicas como mulheres que fazem sexo ou que têm relações
sexuais com outras mulheres, ele define lésbicas como logicamente impossíveis.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 143


Ser e ser vista

Ao procurar por outras palavras no léxico que possam denotar esses seres que são
não-nomeados “lésbicas”, pode-se pensar em termos no vernáculo como “dyke”, “bulldagger”9
e por aí vai. Talvez seja bom que os dicionários padrão não finjam fornecer definições relevantes
de tais termos. Geralmente, esses dois termos são usados para indicar mulheres que são vistas
como se estivessem imitando, vestindo-se como ou tentando ser homens. Qualquer que seja
a extensão da classe de mulheres que são percebidas como se estivessem fazendo tais coisas,
obviamente não é coextensiva à classe das lésbicas. Quase toda feminista, e muitas outras
mulheres também, já foram percebidas como se quisessem ser homens, e um grande número
de lésbicas não é percebido dessa forma. O termo “sapatona” tem sido apropriado por algumas
lésbicas como um termo de orgulho e de solidariedade, mas neste uso é quase ininteligível para
a maior parte dos falantes da língua inglesa.

Uma das definições atuais de “lesbianismo” entre lésbicas é amar mulheres – o polo oposto da
misoginia. Vários dicionários que consultei têm explicações para “misoginia” (ódio a mulheres),
mas não para “filoginia” (amor a mulheres). Encontrei um que define “filoginia” como carinho
por mulheres e qualquer outro dicionário define filoginia como Don Juanismo. Obviamente, nada
disso significa amor a mulheres como é pretendido por lésbicas, vasculhando o vocabulário em
busca de maneiras de se referir a si mesmas. De acordo com os dicionários, não existe termo
no Inglês para o polo oposto da misoginia nem para pessoas cuja orientação característica em
relação a mulheres seja o polo oposto da misoginia.

Arremessando a rede mais amplamente, pode-se procurar palavras mais vitorianas, como
safismo e safista. No Webster’s Collegiate, “safismo” é definido apenas como lesbianismo. Mas
o The Oxford English Dictionary introduz outra reviravolta. Sob o título de “safismo”, está uma
explicação para “safistas”, segundo a qual safistas são aquelas adictas a relações sexuais anti-
naturais entre mulheres. O fato de essas relações serem caracterizadas como antinaturais
é revelador. Porque aquilo que é antinatural é contrário às leis da natureza ou contrário à
natureza da substância da entidade em questão. Mas o que é contrário às leis da natureza não
pode acontecer: isso é o que significa chamar essas leis de leis da natureza. E eu não consigo
fazer aquilo que vai contra a minha natureza, pois, se eu o fizesse, seria da minha natureza
fazê-lo. Chamar algo de antinatural é dizer que não aquilo não pode existir. Essa definição
define safistas, ou seja, lésbicas, tanto naturalmente impossíveis quanto logicamente impossíveis.

A noção de que o lesbianismo não é possível na natureza, de que não é da natureza de


ninguém ser lésbica, tem uma vida própria mesmo entre algumas pessoas que sabem,

9
N.T.: Esses termos são gírias, em inglês, para referirem-se a lésbicas, similares aos termos, em português, “fancha”
ou “sapatão”.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 144


Ser e ser vista

factualmente, que existem certas mulheres que fazem e tendem a fazer certas coisas com
outras mulheres e que sinceramente confessam certos sentimentos e atitudes em relação a
mulheres. O lesbianismo pode ser visto como não natural, no sentido de que, se alguém vive
como lésbica, não se supõe que isso seja apenas quem ou como ela é. Em vez disso, presume-se
que seja uma forma de aflição ou o resultado de tentativas malsucedidas de resolver um tipo se
problema ou resolver um tipo de conflito (e se ela pudesse encontrar outra forma, ela aceitaria
e, então, não seria mais lésbica). Ser lésbica é entendido como algo que não poderia ser a confi-
guração natural de alguém, mas que deve ser uma configuração forçada a alguém por algum
tipo de força que lhe é, em algum sentido básico, “externa”. “Ser lésbica” é entendido aqui como
algumas pessoas entendem “ser um delinquente” ou “ser um alcoolista”. Não é da natureza de
alguém, do mesmo modo que a doença não é da natureza de alguém. Para ver esse sentido de
“antinatural”, pode-se contrastá-lo com a presumida “naturalidade” da heterossexualidade de
mulheres. Conforme a maior parte das pessoas vê, ser heterossexual é apenas ser. Não é inter-
pretado. Não é entendido como consequência de qualquer coisa. Não é visto como uma possível
solução para algum problema, ou como um meio de agir e de sentir que alguém elaborou ou ao
qual foi conduzida pelas circunstâncias. Nesse tipo de visão, todas mulheres são heterossexuais
e algumas mulheres, de algum modo, acabam agindo diferentemente. Nessa visão, ninguém é,
no mesmo sentido, uma lésbica.

Existem pessoas que acreditam na existência real de pervertidos e desviantes. O que


compartilham com aquelas que não acreditam é a visão de que os comportamentos e as atitudes
em questão não são naturais para humanos. A escolha a ser feita, então, quando confrontado
com alguém que diz ser lésbica, é acreditar nela e classificá-la como não inteira ou realmente
humana, ou como plena e realmente humana e não acreditar que ela é uma lésbica.

Lésbica.

Uma pessoa da Ilha de Lesbos.

É bizarro que, quando eu tento me nomear e me explicar, minha língua nativa me oferece
uma palavra que é tão estrangeira, tão falsa, tão irremediavelmente inapropriada. Por que eu
sou designada por um termo que significa uma das pessoas de Lesbos?

O uso da palavra “lésbica” para nos nomear é um desdobramento em várias partes, um


eufemismo em camadas. Para nos nomear, passa-se por uma referência à ilha de Lesbos, que
por sua vez é uma referência indireta à poeta Safo (que, dizem, vivia lá), que por sua vez é uma
referência indireta aos fragmentos de sua poesia que sobreviveram a milênios de patriarcado,

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 145


Ser e ser vista

e isso, por sua vez (se você ainda está nos acompanhando), é uma evitação profilática de
mencionar diretamente o tipo de criatura que escreveria tais poemas ou a quem tais poemas
seriam escritos... Supondo que você sabe o que está nesses poemas escritos em um dialeto
grego há mais de dois mil e quinhentos anos em uma pequena ilha em algum lugar no mar
Egeu, escuro como vinho.

Este é um feito verdadeiramente notável de silêncio.

O filósofo John Langshaw Austin, comentando a conexão entre língua e concepções da


realidade, disse o seguinte: “Nosso estoque em comum de palavras incorpora todas as distin-
ções que homens acharam que valiam a pena delinear e as conexões que acharam que valiam
a pena marcar, ao longo de várias gerações”10.

nosso

estoque comum de palavras

homens encontraram

distinção não vale a pena delinear


conexão não vale a pena marcar

Por mais revelador que isso seja, ainda dissimula. Não é que as conexões e as distinções não
valham a pena de delinear e marcar, é que homens não querem delineá-las e marcá-las, ou não
ousam fazê-lo.

▸ IV
Quando se diz que algo ou uma classe não é admitida como possível por um determinado
esquema conceitual, ou que não está “dentro dos valores entre os quais as variáveis do sistema
alcançam”, ou que não está entre os compromissos ontológicos do sistema, existem pelo

10
Retirado de “A Plea for Excuses”, Philosophical Papers (Oxford University Press, 1961).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 146


Ser e ser vista

menos três coisas que isso pode significar. Uma é simplesmente que não há um termo simples
e direto no sistema para a coisa ou classe e nenhuma forma muito satisfatória de explicá-la.
Por exemplo, é nesse sentido que os esquemas conceituais Ocidentais não admitem as forças
ou arranjos chamados “karma”. De fato, eu não sei se é adequado dizer “forças ou arranjos”
aqui, e isso é parte do argumento. Uma segunda coisa que pode significar, quando se diz que
algo não está no escopo dos conceitos do esquema, é que o termo que ostensivamente indica a
coisa é internamente contraditório, como no caso de quadrados redondos. Nada pode estar ao
mesmo tempo em ambas: a classe denotada por “redondo” e a classe denotada por “quadrado”,
dado o que essas palavras significam. Uma terceira coisa que se pode querer dizer, quando se
afirma que um esquema não inclui certa coisa, é que, de acordo com princípios fundamentais ao
contexto mais amplo de como as coisas existem no mundo, ela não poderia existir na natureza.
Um exemplo disso é a negação de que poderia existir um animal que fosse o cruzamento entre
um cachorro e um gato. A crença de que tal coisa poderia existir seria inconsistente com as
crenças sobre a natureza do mundo e dos animais que estão na base de vastos pedaços do
restante da nossa visão de mundo.

Lésbica é a única classe que eu já me propus a definir, o único conceito que já me propus
a explicar, que pareceu ser excluída de mais de uma dessas maneiras. Como as considerações
revistas aqui parecem mostrar, ela é excluída de todas as três formas. Você pode “não acreditar
em lésbicas”, assim como não acredita na possibilidade de “cachorro-gatos”, ou como não
acredita em quadrados redondos, ou pode simplesmente ser incapaz de acomodar lesbianismo
do mesmo modo que não consigo acomodar a noção de karma – não se articula adequadamente
com o resto dos meus conceitos, não pode ser incluído no meu repertório ativo de conceitos.

A redundância dos dispositivos de fechamento que existem aqui é uma das coisas que
me leva a dizer que as lésbicas estão excluídas do esquema. A sobredeterminação, o exagero
metafísico, sinaliza uma manipulação, uma pressa em apagar, em desviar o olhar, a atenção,
a mente. Onde há manipulação, há motivação, e não me parece plausível que a razão resida nos
detalhes da vida privada de certas mulheres. O significado desse apagamento e de sua tota-
lidade e conclusividade tem a ver, penso eu, com a manutenção da realidade falocrática como
um todo e com a situação de mulheres em geral a propósito desta realidade.

▸V
No início, eu falei que lésbicas não são reais, que não existem lésbicas. Quero dizer também
que mulheres em geral não são admitidas pelo esquema falocrático, não são reais; não existem

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 147


Ser e ser vista

mulheres. Mas o dilema de mulheres a propósito da realidade dominante é complexa e paradoxal,


como é revelado na experiência mundana de mulheres na gangorra da demanda e da negli-
gência, de serem galanteadas e agredidas, de serem cortejadas e ignoradas. As observações
que me levaram a dizer que não existem mulheres na realidade falocrática também começam
a revelar elementos do paradoxo. Essas observações são familiares a feministas; elas estão
entre as coisas às quais voltamos repetidamente, à medida que novas camadas de significação
se tornam acessíveis ao nosso entendimento.

Existem dois tipos de apagamento de mulheres que se tornaram, agora, “observados


frequentemente”. Um é a concepção de história humana como a história de atos e organiza-
ções de homens; o outro é um registro longo e sórdido, na civilização ocidental, do assassinato
e da mutilação de mulheres. Ambos apagamentos se estendem em direção ao futuro, um na
ficção e na especulação, o outro nos projetos tecnológicos de seleção de espermatozoides para
aumentar a proporção de bebês do sexo masculino, de gestação extrauterina, de clonagem, de
reconstrução transexual do masculino em feminino. Ambos os tipos de apagamento parecem
entrelaçados na acirrada batalha religiosa e política entre aqueles homens que desejam o
controle masculino centralizado das funções reprodutivas femininas e os homens que desejam
controle masculino individualizado das funções reprodutivas femininas. (Falo de brigas sobre
aborto, esterilização forçada, condições de parto e etc)

Uma pessoa razoável pode pensar que esses esforços para apagar mulheres revelam um
reconhecimento vívido de que existem mulheres – de que projetos de eliminação ideológica e
material de mulheres pressupõem a crença na existência do objeto a ser eliminado. De certa
forma, eu concordo. Mas também existe um modo peculiar de relacionar crença e ação, que eu
penso ser característico da construção da realidade falocrática, de acordo com o qual se pode
considerar que um projeto de aniquilação pressupõe a inexistência dos objetos sendo elimi-
nados. Este modo é uma inversão insana do procedimento razoável de se ajustar a visão para
que esteja de acordo com a realidade como descoberta ativamente: é um modo de acordo com
o qual uma pessoa parte de uma visão firmemente sustentada, composta de imagens fabulosas
de si mesma, e adota como projeto pessoal a alteração do mundo para que ele fique de acordo
com aquela visão.

Um exemplo poderoso dessa prática estranha me foi apresentado por Harriet Desmoines,
que estava lendo sobre a expansão dos Estados Unidos no continente norte-americano.
Parece que homens brancos, ao encontrarem a vasta e rica pradaria no meio do continente,
chamaram-na de deserto. Eles conceberam um deserto, a tomaram por um deserto e, um século
depois, é um deserto (um fato que atualmente é obscurecido pelo uso anual de megatoneladas

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 148


Ser e ser vista

de fertilizantes químicos). Será que eles realmente acreditavam que aquilo que viam era um
deserto? É uma questão de registro que isso é o que eles disseram que viam.

Existe um outro exemplo desse tipo de prática encontrado no campo científico e médico,
que me foi apresentado pelo trabalho de Eileen Van Tassel. É a suposição padrão, nas disci-
plinas de biologia humana e de medicina humana, de que a espécie consiste em dois sexos,
macho e fêmea. Evidências físicas concretas de que existem indivíduos de sexo indeterminado
e que “caracteres sexuais” ocorrem em espectro e não como fenômeno “tudo ou nada” não
são reconhecidas como evidências existentes, mas removidas, apagadas por meio de “curas”
e “correções” químicas e cirúrgicas11. Nesse caso, como no caso da rica e viva pradaria, o apaga-
mento do fato e a destruição dos objetos concretos não demonstram reconhecimento do fato
ou do objeto; pelo contrário, são manifestação direta da crença de que esses não são os fatos e
da crença de que tais objetos individuais não existem.

Se é verdade que esse modo de conexão entre crença e ação é característico da cultura
falocrática, então se pode construir ou reconstruir crenças que são fundamentais para o
sistema conceitual/científico dessa cultura ao inspecionar seus projetos e ao se considerar que
aquilo em que se acredita é o que os projetos tornarão verdade. Como notado anteriormente,
existem agora, e existe há muito tempo, projetos cujo fim será um mundo sem mulheres nele.
Fazendo o caminho reverso, pode-se concluir que aqueles que têm este projeto acreditam que
não há mulheres.

Para muitas de nós, a ideia de que não há mulheres, de que não existimos, começou a surgir
quando compreendemos, pela primeira vez, o sentido do chamado “homem” “genérico”, que
não é genérico. A palavra “mulher” deveria significar fêmea da espécie, mas o nome da espécie
é “Homem”. O termo “Homem fêmea” tem uma tensão de impossibilidade lógica que está
ausente em termos paralelos como “gato fêmea” e “terrier fêmea”. Faz suspeitar que o conceito
da espécie que está operando aqui é um segundo o qual não existem fêmeas da espécie. Penso
que se pode começar a entender o que isso significa ao ver como colide com outro fenômeno
interessante, nomeadamente o fato extraordinário de que tantos homens de tantas posições
na vida declararam tantas vezes que as mulheres são ininteligíveis para eles.

Lendo ou escutando os discursos de homens sobre a ininteligibilidade de mulheres, imagino


que homens sejam como pessoas que, por alguma razão, podem ver tudo, a não ser carros,
e ficam constante e dolorosamente perplexos com as explosões e rugidos, baques e solavancos
que eles não podem evitar, controlar ou explicar. Mas não é bem assim, pois tais homens

11
Ver a nota de rodapé 6 em “Sexismo”, nesta coleção.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 149


Ser e ser vista

parecem, sim, reconhecer nossa existência física ou, pelo menos, a existência de algumas de
nossas partes. O que eles não veem é nosso espírito.

O esquema falocrático não admite mulheres como autoras da percepção, como pessoas
capazes de ver. O homem entende sua própria percepção como algo que ao mesmo tempo gera
e é gerado por um ponto de vista. Entende-se que o homem é autor de nomes; homens têm um
certo status como ponto de origem intelectual e perceptivo. Na hipótese de o esquema falocrá-
tico permitir a compreensão de que mulheres possuem percepção, em algum nível, ele exibe as
percepções de mulheres como passivas, repetitivas da percepção de homens, sem autoridade.
Aristóteles disse sem rodeios: Mulheres são racionais, mas não têm autoridade12.

Imagine duas pessoas olhando uma estátua, uma de frente, e outra de trás, e imagine que
a que está na frente acha que a que está atrás deve estar vendo exatamente o que ela vê. Essa
pessoa não consegue entender como a outra pode criar uma descrição tão diferente da dela.
É como se se supusesse que mulheres são robôs ligadas aos sentidos de homens – não usam
os próprios sentidos, não são autoras da percepção, não têm ou geram um ponto de vista. E,
então, eles não conseguem imaginar de que forma é nossa configuração interna, para que
possamos produzir certo resultado desde um ponto de partida que eles presumem ser idêntico
ao deles. A hipótese de que estamos vendo de um ponto de vista diferente e, portanto, estamos
simplesmente vendo algo que ele não consegue ver, não está disponível a um homem, não está
em seu repertório, desde que a concepção total dele sobre a situação não inclua a concepção
de mulheres como perceptoras com autoridade como ele é, isto é, desde que ele não conte
as mulheres como homens. E não surpreende que um homem como tal ache as mulheres
incompreensíveis.

▸ VI
Pelas razões dadas e nos modos indicados, penso que há muita verdade na alegação de que o
esquema falocrático não inclui mulheres. Mas enquanto mulheres são apagadas na história
e na especulação, fisicamente liquidadas em expurgos ginocidas e banidas da comunidade
daqueles com autoridade perceptiva e semântica, nós somos, por outro lado, regular e siste-
maticamente convidadas, seduzidas, bajuladas, coagidas e até pagas para estarmos associadas
íntima e constantemente a homens e a seus projetos. Nisso, a situação de mulheres em geral é

12
Politics I 13, 1260 a 13. Isso chamou minha atenção pela primeira vez por um artigo, “Aristotle Views On Women In
The Politics”, apresentado nas reuniões da Divisão do Oeste da Sociedade das Mulheres em Filosofia, no outono de
1974, por Jan Bidwell, Susan Ekstrom, Sue Hildebrand e Rhoda H. Kotzin.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 150


Ser e ser vista

radicalmente diferente da situação de lésbicas. Lésbicas não são convidadas a participar – da


família, do partido, do projeto, da procissão, do esforço de guerra. Existe um lugar para uma
mulher em todo jogo. Esposa, secretária, servente, prostituta, filha, assistente, babá, amante,
costureira, revisora, enfermeira, confidente, massagista, indexadora, datilógrafa, mãe. Qualquer
um desses é um lugar para uma mulher, e mulheres são muito encorajadas a os ocuparem.
Nenhum desses é um lugar para uma lésbica.

A exclusão de mulheres do esquema falocrático é impressionante, aterrorizante e, com


frequência, fatal, mas não é simples e absoluta. A existência de mulheres é, ao mesmo tempo,
absolutamente necessária e irredutivelmente problemática para a realidade dominante e para
aqueles comprometidos com tal realidade, pois nossa existência é pressuposta pela realidade
falocrática, mas não é e não pode ser englobada ou admitida por essa realidade. A existência de
mulheres é um fundo sobre o qual a realidade falocrática se projeta em primeiro plano.

Uma cena em primeiro plano é criada pelo movimento desse plano sobre um fundo estático.
Figuras de primeiro plano são perceptíveis, são definidas, têm identidade, apenas em virtude
de seu movimento contra um fundo. O espaço no qual o movimento das figuras de primeiro
plano ocorre é criado e definido pelo movimento delas em relação umas às outras e contra o
fundo. Mas nada no fundo está dentro ou faz parte ou está englobado pela cena e pelo espaço em
primeiro plano. O fundo é não visto pelo olho que está focado das figuras do primeiro plano,
e se algo, de alguma maneira, atrai o olhar para o fundo, o primeiro plano se dissolve. O que
atrairia o olhar para o fundo seria qualquer movimento repentino ou bem definido no fundo.
Portanto, não deve haver nenhum movimento no fundo, ou apenas um burburinho constante
de movimentos pequenos, regulares e repetitivos. O fundo deve ser totalmente desprovido de
ação para que o primeiro plano continue a se manter unido, isto é, para que ele perdure como
um espaço no qual existem objetos discretos em relação uns aos outros.

Imagino a realidade falocrática como sendo o espaço, as figuras e o movimento que consti-
tuem o primeiro plano, e imagino as atividades constantes, repetitivas e sem intercorrências de
mulheres como constituindo e mantendo o fundo contra o qual este primeiro plano se projeta.
É essencial à manutenção da realidade do primeiro plano que nada nela remeta de qualquer
maneira a qualquer coisa no fundo, e ainda assim ele depende absolutamente da existência
do fundo. É útil levar essa metáfora para um modo mais concreto – pensando na realidade
falocrática com uma produção dramática em um palco.

Os movimentos dos atores sobre os cenários e o pano de fundo do palco constituem e


mantêm a existência e as identidades dos personagens em uma peça. O cenário, os adereços,
as luzes e assim por diante são criados, fornecidos, mantidos e, ocasionalmente, rearranjados

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 151


Ser e ser vista

(de acordo com o roteiro) por ajudantes de palco. Os ajudantes de palco, seus movimentos e os
resultados desses movimentos ficam de fora, não fazem parte da realidade dos personagens.
A realidade, na estrutura em que as ações de Hamlet têm sentido, seria rompida ou estilhaçada
se qualquer coisa que Hamlet fizesse ou pensasse se referisse, de alguma forma, aos ajudantes
de palco ou às atividades deles, ou se esse borrão de atividade de fundo se tornasse, de qualquer
maneira, eventos que capturassem a atenção.

A situação dos atores é desesperadamente paradoxal. Eles estão absolutamente compro-


metidos com a manutenção e a realidade do personagem: participar como personagem na
criação contínua da Realidade é a razão de ser deles. A realidade do personagem deve ser
vivida com concentração feroz. O ator deve estar imerso na peça e não pode se distrair com
qualquer pensamento pelo cenário, pelos adereços ou pelos assistentes de palco, para que a
continuidade do personagem e a integridade da realidade dele não se dissolva ou quebre. Mas,
se o personagem deve ser vivido tão atentamente, quem irá supervisionar os assistentes de
palco para se certificar que eles não fiquem barulhentos, saiam mais cedo, caiam no sono ou
abandonem o trabalho? (Infelizmente, não há um deus ou um anfitrião divino para servir de
Diretor e de Gerente de Palco). Aqueles com o compromisso mais intenso com a manutenção da
realidade da peça são, precisamente, aqueles mais interessados no comportamento adequado
dos assistentes de palco, e esse interesse compete diretamente com aquele compromisso. Não
existe nada que o ator gostaria mais do que se não houvesse assistente de palco instituindo,
como fazem, uma constante ameaça à existência em si, à vida em si, do personagem e, portanto,
ao sentido da vida do ator; ainda assim, o ator está irrevogavelmente atado aos assistentes de
palco pelo seu compromisso com a peça. Hamlet, claro, não tem tais problemas; não existem
assistentes de palco na peça.

Para escapar de seu dilema, o ator pode abandonar a cautela e perder-se no personagem, de
modo que assistentes de palco tornam-se inimagináveis e, portanto, não problemáticos. Ou ele
pode construir e adotar a crença de que os assistentes de palco compartilham exatamente de
suas percepções e interesses e que eles estão tão comprometidos com a peça quanto ele – que
eles são como robôs. Em tal hipótese, ele pode supor que eles sejam absolutamente confiáveis e
seguir com suas tarefas obstinadamente e sem ansiedade existencial. Uma terceira estratégia,
que é, de um jeito macabro, mais sã, é a de tentar resolver o problema tecnologicamente, cons-
truindo robôs de fato para servir de assistentes de palco13. Dada a primazia de seu compro-
misso com a peça, todas as soluções devem envolver uma forma ou outra de aniquilação dos

13
Essa solução é discutida em The Transsexual Empire: The Making of The She-Male, por Janice G. Raymond (Boston:
Beacon Press, 1979).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 152


Ser e ser vista

assistentes de palco. Ainda assim, todas as três hipóteses requerem a existência de assistentes
de palco; sendo que a terceira, espera ele, a requer por apenas um pouco mais de tempo.

A solução para o problema do ator que vai parecer mais benigna com relação aos assistentes
de palco, pois apaga o apagamento, é o de treinar, persuadir e seduzir os assistentes de palco
para que amem os atores e para que tomem os interesses e compromissos dos atores para si
mesmos como se fossem próprios. Uma vantagem significativa para essa solução é que atores
podem seguir adiante sem a culpa ou confusão que poderiam surgir com a aniquilação, subs-
tituição ou o esquecimento falso dos assistentes de palco. Como se vê, evidentemente, nem
essa é perfeita. Assistentes de palco, na escravização de seus compromissos, podem tornar-se
confusos e pensar em si mesmos como atores – e então eles podem perturbar a peça ao tentar
entrar nela como personagens, ao tentar participar na criação e na manutenção da Realidade.
Mas existem várias formas conhecidas para lidar com essas intrusões, e essa parece ser, de
modo geral, a solução mais popular para o dilema do ator.

▸ VII
Todos os olhos, toda a atenção, todo o apego deve estar focado na peça, que é a Realidade
Falocrática. Os assistentes de palco não podem ser notados, senão de maneira oblíqua e filtrada
pelo interesse da peça. Qualquer coisa que ameace a fixação da atenção na peça ameaça uma
dissolução cataclísmica da Realidade em Caos. Mesmo o pensamento da possibilidade de
uma distração é uma distração. É necessário inventar dispositivos e construir sistemas que
bloquearão o crime de pensamento de conceber a possibilidade de um foco direto e atencioso
a qualquer outra coisa que não seja a Realidade.

O potencial sempre presente para um desastre cosmológico reside no fundo. Não há nada
na natureza do fundo que o induz a ser apropriadamente domesticado: ele não é feito para
servir ao primeiro plano, ele apenas está lá. O policiamento da atenção, portanto, faz parte
da vocação dos falocráticos leais. Eles devem tornar radicalmente impossível prestar atenção
a qualquer coisa no fundo, eles devem tornar impossível pensar ser possível que o olhar de
alguém se prenda a qualquer coisa no fundo.

Podemos deduzir desse entendimento da motivação deles o que é que leais ao patriarcado
estão motivados a proibir de se conceber. O que não pode ser concebido é um espectador para
quem o fundo seja interessante, dramático, estimulante – cuja atenção se prende nos assis-
tentes de palco e seus projetos. Os leais não podem apenas identificar tais espectadores e

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 153


Ser e ser vista

mata-los, pois isso focaria a própria atenção dos defensores no criminoso, portanto no crime,
portanto no objeto do crime, e isso interromperia a própria atenção dos defensores na Realidade.

O rei está em seu escritório. O rei é ambicioso e considerará seu tudo o que ousar. Mas essa
ambição impõe limites naquilo que ele ousa coletar.

▸ VIII
O que o rei não pode contar é um espectador cuja percepção passa do primeiro plano da
Realidade e foca o fundo. Um espectador cujo olhar é atraído para aqueles que trabalham como
assistentes de palco – as mulheres. Um espectador para cujo olhar a mulher tem autoridade,
tem interesses próprios, não é um robô. Um espectador que não tem motivação para querer
que não existam mulheres, um espectador que não seja leal à Realidade. Podemos tomar o
relato do espectador o qual deve ser impensável, para que a Realidade se mantenha, como o
início de um relato do que uma lésbica é. Pode-se tentar dizer que uma lésbica é alguém que,
em virtude de seu foco, de sua atenção, de seu apego, é desleal à realidade falocrática. Ela não
está comprometida com a manutenção dessa realidade e com a manutenção daqueles que a
mantêm e, pior, seu modo de deslealdade ameaça a dissolução completa dessa realidade em
um piscar de olhos. Isso parece extremo, evidentemente, talvez até histérico. Mas, escutando
cuidadosamente a retórica das margens fanáticas dos defensores falocráticos, pode-se ouvir
que eles de fato pensam que feministas, que eles bem razoavelmente julgam ser lésbicas, têm
o poder de derrubar a civilização, de dissolver a ordem social como a conhecemos, de causar a
morte da espécie, por nossa mera existência.

Mesmo os fanáticos não acreditam realmente que uma lésbica rebelde solitária pode, em um
piscar de seus olhos demoníacos, atomizar a civilização, claro. Dada a coletividade de esquemas
conceituais, a maneira como eles se sustentam no acordo, um perceptor rebelde não tem o
poder de fazer tudo desmoronar – um fato também verificado pela minha própria experiência
como uma rebelde não-tão-poderosa. O que os defensores temem, e nisso eu penso que eles
estão mais ou menos certos, é um contágio da percepção rebelde a tal ponto que a concordância
na percepção que sustenta a Realidade comece a se desintegrar.

O evento de tornar-se lésbica é uma reorientação de atenção em um tipo de conversão


ontológica. É caracterizado por um sentimento de dissolução do mundo e por um sentimento

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 154


Ser e ser vista

de desengajamento e reengajamento do próprio poder como perceptor. Que tal conversão


aconteça sinaliza sua possibilidade a outros.

Heterossexualidade para mulheres não é simplesmente uma questão de preferência sexual,


não mais do que o lesbianismo é. É uma questão de orientação da atenção, como é o lesbianismo,
em um contexto metafísico que não é controlado nem por mulheres heterossexuais, nem por
lésbicas. Atenção é um tipo de paixão. Quando se tem a atenção em algo, se está presente de
um modo particular em relação a essa coisa. Essa presença é, entre outras coisas, um elemento
de presença erótica. A orientação da atenção de alguém também é o que fixa e direciona a
aplicação do trabalho físico e emocional de alguém.

Se a lésbica vê as mulheres, a mulher pode ver a lésbica a vendo. Com isso, há um floresci-
mento de possibilidades. A mulher, sentindo-se vista, pode se dar conta de que pode ser vista;
ela também pode ser capaz de saber que uma mulher pode ver, isto é, que pode ser autora de
uma percepção. Com isso, entra, para a mulher, a possibilidade lógica de presumir sua auto-
ridade como perceptora e de deslocar a própria atenção. Assim, há o surgimento da escolha,
e isso se abre sobre todo o mundo de mulheres. A visão da lésbica mina o mecanismo pelo
qual a produção e a constante reprodução da heterossexualidade para mulheres deveriam
ser automáticas. A inexistência de lésbicas é uma parte no mecanismo que deveria eliminar a
possibilidade de escolha ou alternativa na raiz, nomeadamente no ponto de concepção.

A manutenção da realidade falocrática requer que a atenção de mulheres esteja focada em


homens e nos projetos de homens – a peça; e que a atenção não esteja focada nas mulheres –
as assistentes de palco. Amor a mulheres, como orientação espontânea e habitual da atenção,
é, então, direta e indiretamente, hostil à manutenção dessa realidade. Aí reside a razão para
a meticulosidade do fechamento ontológico contra lésbicas, o poder dos excluídos, e talvez a
chave para a libertação de mulheres da opressão em uma cultura dominada por homens.

▸ IX
Meu objetivo central aqui não foi afirmar e provar uma tese rígida, mas apenas dizer algo
suficientemente claro, inteligível, para que possa ser entendido e sobre o qual se possa refletir.
Lésbicas estão fora do esquema conceitual, e isso é algo posto, não apenas o modo que as coisas
são. Pode-se começar a ver que lésbicas são excluídas pelo esquema, e que isso é motivado,
quando se começa a ver a qual propósito a exclusão pode servir em conexão com a manutenção
de mulheres em geral em seu lugar metafísico. Também é verdade que lésbicas estão em uma
posição para ver coisas que não podem ser vistas de dentro do sistema. O que lésbicas veem

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 155


Ser e ser vista

é o que as faz ser lésbicas e sua visão é o motivo pelo qual devem ser excluídas. Lésbicas são
aquelas que veem mulheres. Quando se é suspeito de ver mulheres, se é cuspido sumariamente
para fora da realidade, por meio da lacuna cognitiva e espaço semântico negativo adentro. Se
você perguntar o que aconteceu a tal mulher, podem te contar que ela se tornou uma lésbica
e, se você tentar descobrir o que uma lésbica é, te contarão que não existe tal coisa.

Mas existe.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 156


Sobre a autora

M
arilyn Frye ensina Filosofia, escreve e se
dedica ao trabalho doméstico e à manu-
tenção do lar. Ela ajudou a administrar uma
livraria e um centro de lésbicas, trabalhou em
Estudos de Mulheres, e é sócia em uma pequena
editora. Nascida em Tulsa, Oklahoma, em 1941, Frye
viveu no Centro-Oeste, em ambas as costas dos
Estados Unidos e no Oeste do Canadá. Ela cresceu
sendo a mais nova de duas filhas em uma estável,
tradicional (mas notavelmente não violenta), devota
família cristã.

A autora recebeu seu diploma de bacharel pela


Universidade de Stanford em 1963, e de doutora pela
Universidade Cornell em 1969, ambos em Filosofia.

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 157


Nota da
tradutora
Carla Henrique Gomes

O
pensamento desenvolvido por Marilyn Frye nessa obra é encantador por sua generosi-
dade e por sua atualidade. Generosidade evidente desde a primeira página até a última –
seja nos elogios tecidos às colegas que contribuíram com o desenvolvimento dos textos,
no cuidado de agradecer e creditar cada ideia que lhe foi instigada por outras mulheres, no
encorajamento para que mulheres lessem e traduzissem esta obra para que se tornasse mais
acessível…

Ela tem a coragem de abordar questões urgentes e complexas, mas de maneira acessível e
sem perder o rigor conceitual. Apresenta conceitos como sexismo e opressão de forma crista-
lina e navega por temas como supremacia branca e separatismo feminista com sensibilidade
e um inabalável compromisso feminista.

Apresenta o olhar amoroso como um horizonte ético revolucionário e ousa nos convidar
a imaginarmos uma mulher livre das amarras patriarcais, imaginarmos todas as mulheres
livres da opressão.

Não se poupa – e tampouco poupa outras mulheres brancas – de refletir sobre um viés
feminista acerca da supremacia branca, implicando cada feminista no rompimento com o
pacto da branquitude.

Mostra o lesbianismo de maneira revolucionária, demonstrando que ser lésbica presenteia


mulheres com uma perspectiva única digna de ser valorizada e, porque não, escolhida diaria-
mente como fonte de orgulho.

Pelo rigor, pela objetividade e pela generosidade, esta obra se torna um valioso acréscimo
para a coleção de feministas com estudos mais avançados ou iniciantes nesse percurso. A obra
foi elogiada e citada de forma recorrente por outras autoras feministas, como Claudia Card e
Sheila Jeffreys na introdução do livro “Beauty and Misogyny: harmful cultural practices in the
West” (ainda sem tradução para o português).

POLÍTICAS DA REALIDADE ► 158


Você precisa
ser lésbica para
ser feminista?1

Q
uando fui convidada a falar nesta sessão, entendi que seria um espaço e um momento
focados em dar atenção às vozes de lésbicas para o propósito, ao menos em parte, de
sinalizar e facilitar um compromisso renovado sobre os problemas do heterossexismo
entre nós e na nossa vida acadêmica, nos programas e nos projetos institucionais. Fiquei
maravilhada quando li no folheto da pré-conferência que esta sessão foi intitulada “Teorias
da Sexualidade”. Estou ainda mais maravilhada com a descrição deste fórum no programa.2

Acredito que este título e esta descrição devem ser um tipo de código. As mulheres hete-
rossexuais têm uma sexualidade apenas quando há mulheres obviamente lésbicas ao redor,
cujas presenças sexualizam todo mundo presente: então, se a palavra sexualidade aparece, você
pode inferir que há lésbicas na cena. Por uma lógica similar, você poderia assumir que a sessão
plenária intitulada “Teorias de Raça” no folheto pré-conferência não consistiria em pessoas
brancas [N. T.: colorless, no original] teorizando de maneira abstrata e neutra sobre Raça, mas
estaria cheia de mulheres de cor, e será sobre o que elas decidirem falar a esta conferência da
NWSA [National Women’s Studies Association – Associação Nacional de Estudos das Mulheres].
Usar tais códigos exercita o heterossexismo e o racismo, e obriga o leitor, o decodificador,
a valer-se de lógicas heterossexistas e racistas para interpretar a mensagem.

1
Publicado inicialmente na revista Off Our Backs, v. 20, n. 8, da edição de agosto/setembro de 1990, este texto tem
como base uma palestra de Marilyn Frye na Décima Segunda Conferência Anual da NSWA (NWSA Twelfth Annual
Conference), especificamente no Fórum de Teorias da Sexualidade. A tradução que vocês encontram aqui foi feita
por Juliana Gimenez, inicialmente para o site Blogueiras Radicais, posterialmente revisada e republicada em 2021
pela Revista Entendidas.
2
Pensamentos feministas reconheceram há muito tempo a natureza dual da sexualidade: tanto um prazer empo-
derador quanto um terreno perigoso para exploração potencial. Esse painel explora pensamentos acadêmicos
feministas recentes que estendem nosso entendimento sobre sexualidade nos reinos pessoal e político.” Programa
da Décima Segunda Conferência Anual da NSWA (Program of the NWSA Twelfth Annual Conference), p. 63.

VOCÊ PRECISA SER LÉSBICA PARA SER FEMINISTA? ► 160


BÔNUS

Esse título parece ter intenção de transmitir algo bastante diferente a um público mais
amplo – a comunidade acadêmica local e jornalistas. Para eles, tem a intenção de indicar que
tratamos (inequivocamente) de assuntos relacionados ao sexo, mas o fazemos da maneira mais
segura, mais trivial, mais profissional, mais higiênica – nós o abstraímos dos corpos e dos atos
e neutralizamos seu valor – por isso a palavra sexualidade, que é abstrata e soa neutra em valor.
E o título indica que não falaremos realmente sobre sexualidade, mas de teorias sobre sexuali-
dade. Enquanto o primeiro pode ser um pouquinho… uhn... “úmido” (desconfortável), o segundo
só pode ser, sem sombra de dúvidas, puramente acadêmico e seco como pó. Convencido pelo
título de que essa sessão será indiscutivelmente entediante e “feminina”, aquele público geral
não dará nenhuma atenção a ela, e podemos nos safar com atos indecentes bem debaixo de
seu nariz, e a NWSA não precisará explicar por que foram dadas às lésbicas essa plataforma e
essa legitimação.

Evitar associação pública com lésbicas e com lesbianismo é um exemplo de heterossexismo.


Neste caso, revela uma ausência de entendimento do porquê de lésbicas e lesbianismo serem
centrais para a libertação das mulheres e de por que a NWSA tem uma seção lésbica. Expressa
medo de ser associada a lésbicas e, finalmente, um medo de ser lésbica.

Vou provocar e abordar diretamente esses medos aqui. Falarei aqui de maneira bem direta,
por impaciência e por causa do meu peculiar e levemente perverso otimismo.

Chega um momento em todos os meus cursos sobre feminismo em que minhas alunas hete-
rossexuais colocam a pergunta: você precisa ser lésbica para ser feminista?. Eu não sei o quanto
outras professoras de Estudos das Mulheres ouvem essa pergunta. Minha sala de aula é uma
situação que faz com que se preste atenção à conexão entre feminismo e lesbianismo. Eu sou
lésbica, e deixo isso claro para minhas alunas de Estudos das Mulheres, e eu as exponho a uma
grande variedade de pensamentos maravilhosos e fortes de feministas de diversas culturas
e lugares que são lésbicas. Na sala de aula, essa pergunta sinaliza nossa chegada ao ponto em
que recém-chegadas ao feminismo estão começando a alcançar o entendimento de que atos
sexuais, desejo sexual e o medo e o tabu sexuais são profundamente políticos, e que as políticas
feministas são tanto sobre o uso de nossos corpos, sobre a manipulação de desejos e excitação,
sobre as ligações de intimidade e lealdade quanto sobre os estereótipos de gênero, oportuni-
dades econômicas e direitos legais. Essa pergunta introduz a fase em que começaremos a nos
conciliar com o fato de que o político é pessoal, bem pessoal. Mas o que acontece nas minhas
aulas claramente não é o único motivo para o surgimento dessa pergunta.

VOCÊ PRECISA SER LÉSBICA PARA SER FEMINISTA? ► 161


BÔNUS

▸ Acusações antifeministas
Uma coisa que leva estudantes a colocar essa questão é que muitas delas comumente se
deparam com pessoas que aparentemente acreditam que, se você é feminista, então você deve
ser lésbica. Pessoas que não são lésbicas feministas extremistas.

Eu costumo perguntar para as mulheres nas minhas aulas de Estudos das Mulheres se elas
já foram chamadas de lésbica ou sapatão ou se já foram acusadas de serem lésbicas, e, quase
sempre, a maioria diz que sim. Uma mulher foi chamada de lésbica quando rejeitou as inves-
tidas de um homem em um bar; outra foi chamada de “butch” quando abriu e segurou a porta
para um amigo homem; outra foi questionada se era lésbica quando desafiou uma descrição
machista de outra mulher feita por um homem. Uma mulher disse a um homem que não queria
fazer sexo com ele e foi chamada de lésbica. Uma jovem mulher disse à mãe que estava indo a
Washington participar de uma grande marcha “pró-escolha”; a mãe, desaprovando e temendo
pela segurança da filha, disse: “Oh, então agora você vai sair e virar lésbica?”. Uma mulher que
se divorciou do marido e agora vive sozinha foi motivo de fofocas que sugerem que ela seja
lésbica. Uma mulher disse que é frequentemente tida como lésbica por causa de seu biotipo
atlético e por se recusar a usar saias. Uma mulher que não sente excitação e não tem orgasmos
com seu marido foi questionada sobre suas tendências lésbicas por seu médico e terapeuta.
Uma mulher contou que suas amigas se referem às suas aulas de Estudo sobre Mulheres como
“suas aulas de lesbianismo”: muitas outras mulheres disseram que suas amigas fazem o mesmo.

Essas trocas mostram evidentemente que uma mulher que é feminista, ou faz qualquer
coisa ou demonstra qualquer atitude que seja claramente feminista, é tida como lésbica.

▸ Ansiando por uma análise radical


Mas, os antifeministas e misóginos não são os únicos que sugerem às novas feministas que
elas não podem ser feministas sem serem lésbicas. Muitas feministas heterossexuais, incluindo
muitas professoras de Estudos das Mulheres, sugerem isso a elas de diversas maneiras.

Estudantes que são expostas a dados bem conhecidos sobre espancamento de esposas,
estupros na rua e estupro por conhecidos, pornografia, abuso sexual infantil, incesto e outras
violências contra mulheres, e a qualquer análise feminista profunda e acurada sobre as estru-
turas patriarcais do casamento, reprodução e maternidade; estudantes que são expostas à
análise feminista das religiões patriarcais e da mitologia promulgada pela cultura popular
nas sociedades contemporâneas; estudantes que entendem alguma coisa sobre trabalho pago

VOCÊ PRECISA SER LÉSBICA PARA SER FEMINISTA? ► 162


BÔNUS

e não pago de mulheres em várias economias modernas, e as práticas e instituições que


determinam a acumulação e a distribuição de riquezas; estudantes que têm alguma ideia do
escopo e do propósito de conspirações históricas contra as mulheres, tais como a Inquisição,
e do apagamento das mulheres da história, e da campanha de propaganda após a Segunda
Guerra para converter mulheres trabalhadoras em donas de casa-consumidoras; tais alunas
compreendem que isso com que estamos lidando é profundo, que vai às raízes da civilização e
da sociedade e está gravado nas fontes mais profundas dos nossos pensamentos e das nossas
paixões. Elas entendem que qualquer resposta adequada a isso requer uma análise radical,
estratégias radicais e imaginação radical, e que a rebelião será perigosa e custosa. O programa
dos Estudos das Mulheres – para seu mérito – as ajuda a avaliar o caráter e a magnitude
dos problemas; então elas buscam, nesses estudos e em nós, recursos para responder a esses
problemas – recursos intelectuais, espirituais, artísticos, emocionais e políticos. Mas, quando
elas expressam essa necessidade, frequentemente escutam, implícita ou explicitamente, que
apenas lésbicas buscam análises radicais e soluções radicais e que apenas lésbicas as oferecem.
(E deve ser acrescentado que as circunstâncias constantemente conspiram para sugerir a
mulheres de cor que apenas mulheres brancas são lésbicas.)

Por exemplo: estudantes registram queixas à comissão coordenadora do curso de Estudos


das Mulheres dizendo que seus cursos não são radicais o suficiente, e um membro importante
da comissão supõe que elas sejam lésbicas. As alunas insatisfeitas, das quais poucas se iden-
tificam como lésbicas, percebem essa reação, e aquelas que não são lésbicas aprendem que
estão desajustadas, vivendo uma contradição, pois elas querem sua radicalidade e sua rebelião
estimuladas, e elas não são lésbicas. Estão dizendo para elas que um feminismo forte e raivoso
que não aceitará nada menos que ir à raiz do problema pertence às lésbicas.

Outro exemplo: alunas que cursaram outra disciplina dada por uma feminista lésbica e
trazem as ideias dessa disciplina para um outro curso de Estudos das Mulheres e têm essas
ideias depreciadas pela professora, dizendo que tais ideias seriam consideradas apenas por
lésbicas separatistas. Mas essas alunas consideraram essas ideias e as acharam interessantes,
até mesmo atraentes, e se sentiram empoderadas apenas por pensarem em tais ideias. Está
sendo dito a elas que essas ideias pertencem a lésbicas, e que mulheres heterossexuais não
acreditam nessas coisas ou as levam a sério.

VOCÊ PRECISA SER LÉSBICA PARA SER FEMINISTA? ► 163


BÔNUS

▸ Não dar exemplo de deslealdade


Estudantes sentam nas salas de aula de professoras heterossexuais (ou até mesmo de profes-
soras lésbicas que passam como heterossexuais) que vivem em conformidade com as normas
feitas por homens de feminilidade, na aparência, na voz, nos gestos e nas políticas, que parecem
de todas as maneiras serem mulheres normais e aceitáveis para as normas patriarcais, que não
afastam os homens, com maridos e filhos e uma quantidade razoável de aprovação masculina,
que mimam seus alunos homens e por vezes são intimidadas por eles em suas aulas. Para
algumas estudantes, toda sua exposição a professoras heterossexuais é uma exposição a
professoras que não são exemplos, não aprovam e não encorajam qualquer insubordinação
radical, qualquer deslealdade a homens e seus projetos, qualquer blasfêmia contra homens e
seus deuses. Em geral, a experiência que mulheres estudantes têm de ver tais coisas repre-
sentadas, de ouvir a violência dos homens contra mulheres serem nomeadas sem reservas,
de ouvir zombarias engenhosas sobre a arrogância dos homens é dada por lésbicas – tanto
professoras quanto alunas. Professoras heterossexuais de Estudos das Mulheres, em grande
medida, deixam toda a tarefa de “ser radical” para lésbicas, deixam o fardo, a esperança e o
entusiasmo de forçar os limites para as lésbicas. Elas deixam a raiva e o êxtase para lésbicas.

Mais um exemplo: alunas de Estudos das Mulheres planejam e realizam uma vigília à
luz de velas para expressar sua preocupação com a violência contra mulheres. Elas distri-
buem panfletos sobre a vigília para todas as professoras de Estudos das Mulheres para que
sejam lidos em sala de aula. A participação é relativamente pequena. Afora uma mulher da
pró-reitoria convidada como oradora, todas as professoras e administradoras que comparecem
são lésbicas. A mensagem não passa despercebida às alunas. Outra vez, as mulheres heterosse-
xuais deixaram às lésbicas o papel de conduzir até mesmo as mais simples formas de militância.

▸ Definida pela não conformidade


Há a semente de algo que poderia ser chamado de teoria da sexualidade das mulheres latente
na recepção dessas novas feministas por parte tanto de não feministas quanto de muitas
feministas na academia. Essa teoria conecta a sexualidade feminina à conformidade ou à não
conformidade com as normas de feminilidade e com a participação em práticas e instituições
que definem a ordem social patriarcal nos dias atuais. De acordo com essa teoria, a mulher
que adere às normas patriarcais de feminilidade em ação ou atitude, e que não desafia ou se
rebela contra as instituições patriarcais, é heterossexual. A mulher que não obedece às normas
femininas, ou que desafia e se rebela contra as instituições patriarcais, é lésbica. A diferença

VOCÊ PRECISA SER LÉSBICA PARA SER FEMINISTA? ► 164


BÔNUS

entre a acusação explícita de lesbianismo por parte de não feministas ou antifeministas e a


associação implícita de radicalidade feminista ao lesbianismo que ocorre em muitos contextos
acadêmicos é apenas uma diferença no grau e no tipo de não conformidade necessário para
alcançar o status de lésbica. Feministas são, por definição, em algum grau, não conformadas
com as normas patriarcais de feminilidade, e rebeldes em algum grau contra as instituições
patriarcais; então, por essa teoria, feministas são lésbicas em algum grau. Isso implicaria que
aquelas que são muito feministas, intransigentemente feministas, extremamente feministas,
radicalmente feministas, TÊM que ser lésbicas, inequivocamente.

Essa teoria foi primeiro articulada na linguagem contemporânea como “teoria da sexua-
lidade”, precisamente na época em que, historicamente, sexualidades foram inventadas. E,
não acidentalmente, esse foi um tempo de reação extrema contra o feminismo. “Sexualidade
feminina” (=heterossexualidade feminina) e “inversão da mulher” [N.T.: female “inversion”,
no original] (=lesbianismo) foram definidas desde o princípio em termos de conformidade e
rebeldia da mulher, isto é, em termos de feminismo e reação contra o feminismo. Essa teoria da
conexão entre feminismo e lesbianismo não é apenas uma ficção ad hoc inventada por pessoas
leais ao patriarcado para servir como uma desculpa para rejeitar e vilanizar o feminismo e as
feministas. Uma conexão intrínseca entre feminismo e lesbianismo é apenas uma manifes-
tação histórica específica de uma antiga e intrínseca conexão entre a ordem social patriarcal/
fraternal e a heterossexualidade feminina.

▸ Mecanismo-chave
Eu acredito que toda teoria e prática feminista ao fim nos leva à seguinte proposição: que
a dinâmica característica central e o mecanismo-chave do fenômeno global de dominação
masculina, opressão e exploração das mulheres é a quase universal heterossexualidade
feminina. Todas as instituições e práticas que constituem e materializam essa dominação (e
simultaneamente organizam a vida dos homens em relação uns aos outros), ou pressupõem
uma quase universal heterossexualidade feminina, ou a fabricam, regulam e impõem, ou
ambos.

Para que mulheres sejam subordinadas e subjugadas aos homens em uma escala global,
e para que os homens se organizem eles próprios e entre eles como fazem, bilhões de mulheres,
praticamente todas que vivem neste planeta, devem ser reduzidas a uma tolerância mais ou
menos disposta à subordinação e à servitude aos homens.

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BÔNUS

As premissas principais dessa redução são as premissas das relações e dos encontros hete-
rossexuais – flerte, contato sexual, sexo, casamento, prostituição, a família normativa, incesto
e abuso sexual infantil. É nesse terreno de conexão heterossexual que meninas e mulheres
são habituadas ao abuso, ao insulto e à degradação, que meninas são reduzidas a mulheres –
a esposas, a vadias, a amantes, a escravas sexuais, a auxiliares administrativas, a trabalhadoras
da indústria têxtil, a mães de filhos dos homens. As premissas secundárias dessa inscrição da
subordinação nos corpos das mulheres são as premissas dos rituais de preparação de meninas
e mulheres para o intercurso, relações e vínculos heterossexuais. Eu me refiro ao treinamento
para comportamentos adequados, vestuário e decoração, todos os quais são treinamentos para
que nos habituemos à restrição e à distorção corporal; eu me refiro a dietas e exercícios e regi-
mentos de beleza que habituam o indivíduo à privação e à punição e ao medo e à desconfiança
de seu corpo e de seu conhecimento; à clitoridectomia e a outras formas e tipos de mutilação
física e espiritual; todos os quais não têm propósito ou função cultural ou econômica, se as
mulheres não tivessem de ser preparadas para maridos e amantes homens, cafetões, “clientes”
da prostituição e chefes.

▸ Colando mulheres a homens


Sem abuso (heteros)sexual, assédio (heteros)sexual e a (heteros)sexualização de todos os
aspectos dos corpos e dos comportamentos das mulheres, não haveria patriarcado, e qualquer
outra forma ou materialização de opressão que pudesse existir não teria as formas, os limites
e as dinâmicas do racismo, do nacionalismo etc. que nos são familiares. Os significados da
heterossexualidade feminina são muitos, e não têm o mesmo papel político em todas as socie-
dades e culturas. Mas, na maioria delas, ela cola cada mulher adulta a um ou mais homens de
sua casta, classe, raça, nação ou tribo, fazendo dela uma apoiadora leal de qualquer política a
que esses homens venham a aderir, apesar de ela ter pouco ou nenhum papel na configuração
ou na definição de tal política, independentemente de essa política ser libertadora ou opressiva
e independentemente de ela ser ou não libertadora para mulheres. Nos casos particulares de
dominação de raças e classes, a heterossexualidade feminina junta as mulheres, por solida-
riedade racial/de classe, aos homens dominadores, e oferece como propina por sua compla-
cência parte dos benefícios que seu homem extorque dos outros grupos. A heterossexualidade
feminina, literalmente sexual ou não, está profundamente implicada no racismo das mulheres
brancas em nosso tempo e em nossos espaços presentes; a deslealdade à civilização dos homens
brancos que Adrienne Rich recomenda às mulheres brancas não é possível sem a deslealdade
ao homem a que a mulher está ligada pela instituição da heterossexualidade. E também
acontece dentro de grupos raciais ou étnicos que são oprimidos que, se uma mulher não é

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satisfatoriamente complacente às normas da heterossexualidade feminina para a satisfação


de algum homem, ele cinicamente abusa da real e necessária lealdade política da mulher ao
grupo, colocando-a de volta na linha com o argumento de que sua não complacência ou revolta
contra as normas da feminilidade é deslealdade a sua raça ou comunidade.

Feministas lésbicas notaram que, se a instituição da heterossexualidade feminina é o


que transforma meninas em mulheres e é central à replicação contínua do patriarcado, então
o abandono dessa instituição pelas mulheres é uma estratégia (talvez dentre outras) para o
projeto de desmantelamento das estruturas patriarcais. E se os encontros, as relações e as
conexões heterossexuais são as premissas para a inscrição dos imperativos patriarcais nos
corpos das mulheres, faz sentido abandonar tais premissas. E se a heterossexualidade feminina
é central para a forma como o sexismo e o racismo são conectados numa simbiose estranha e
paradoxal, faz sentido que a não participação nessa instituição possa ser parte de uma estra-
tégia para enfraquecer tanto o racismo quanto o patriarcado.

Mulheres falando por vozes feministas que não são lésbicas responderam dizendo que a
retirada da participação na instituição da heterossexualidade feminina é apenas uma solução
pessoal e disponível apenas para poucas; não é uma estratégia política ou sistemática. Eu penso,
pelo contrário, que essa pode ser uma estratégia sistemática, porque a heterossexualidade
feminina é construída. Se nós mulheres tomarmos a construção de nós mesmas e as institui-
ções e práticas que nos governam em nossas próprias mãos, nós podemos construir algo novo.

▸ Horrores a-históricos
Qualquer defesa da heterossexualidade feminina enquanto inevitável me parece (arrepio)
a-histórico e (horror) essencialista. Mas deixe-me colocar a questão de outra maneira, antes
que eu perca as membras da plateia que já estão entediadas com essas terríveis acusações, ou
que não conhecem esse jargão.

O comprometimento com a naturalidade, ou inevitabilidade, da heterossexualidade


feminina é um comprometimento com as relações de poder que são expressas e mantidas pelas
instituições da heterossexualidade feminina nas culturas patriarcais em todo o mundo. Pessoas
que têm poder mantêm esse poder em parte usando-o para tornar a-históricas suas próprias
condições históricas – isto é, elas tornam os pré-requisitos do seu poder como “dados”. Elas o
naturalizam. Uma parte vital de fazer a dominação masculina generalizada ser tão perto do
inevitável quanto uma construção humana pode ser é a naturalização da heterossexualidade
feminina. Homens têm criado ideologias e práticas políticas que naturalizam continuamente

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a heterossexualidade feminina em todas as culturas desde a aurora dos patriarcados. Freud


e Lacan são naturalizadores da heterossexualidade feminina. Eles dizem que a heterossexua-
lidade feminina é construída, mas se resgatam dessa aparente deslealdade à masculinidade
dizendo que essa construção é determinada e tornada inevitável pela natureza da civilização,
ou natureza da linguagem.

A heterossexualidade feminina não é um impulso biológico ou uma atração erótica ou


a ligação de uma mulher, individualmente, a um outro animal, que por acaso é um homem.
A heterossexualidade feminina é uma realidade histórica concreta – um conjunto de institui-
ções e práticas sociais definidas e reguladas por sistemas de parentescos patriarcais, pelas
leis civis e religiosas, por costumes morais aplicados vigorosamente e por valores e tabus
profundamente arraigados. Essas definições, essas regulações, esses valores e tabus são sobre
fraternidade masculina e opressão e exploração das mulheres. Elas não são sobre calor humano,
diversão, prazer, reconhecimento profundo entre pessoas. Se algum desses últimos surge
dentro das fronteiras dessas instituições e práticas, é porque calor humano, diversão, prazer
e reconhecimento estão entre as coisas que seres humanos são naturalmente capazes de ter,
não porque a heterossexualidade é natural ou é uma premissa natural para tais benefícios.

▸ Uma recusa obstinada viva


Então, é possível ser feminista sem ser lésbica? Minha inclinação é dizer que o feminismo, que
é completamente antipatriarcal, não é compatível com a heterossexualidade feminina, que é
completamente patriarcal. Mas eu antecipo a seguinte réplica:

“Supor que toda relação, conexão ou encontro nas formas de paixão, ou eróticas, ou genitais,
abrangendo qualquer forma de envolvimento pessoal entre um homem e uma mulher, devem
pertencer a essa instituição patriarcal chamada ‘heterossexualidade feminina’, que devem
ser sufocadas sob esse título… supor isso é supor que somos todos totalmente formados pela
história, pelas instituições sociais e pela linguagem. Esse é um tipo de determinismo desespe-
rançado que é politicamente fatal e contradito por sua própria presença aqui enquanto lésbica”.

Eu concordo que não posso abraçar nenhum absolutismo histórico e nenhum determi-
nismo social. O projeto permanente de feministas lésbicas de nos definirmos a nós mesmas,
nossas paixões, nossas comunidades é uma recusa obstinada viva de tal determinismo. Mas o
espaço livre para criação existe apenas quando é ativamente, agressivamente, corajosamente
e persistentemente ocupado. Histórias e culturas patriarcais minam esses espaços constante-
mente, por coerção, por suborno, por punição e moldando a imaginação. O que estou dizendo

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é que, se você quiser ter uma conexão homem/mulher compromissada ou ocasional – erótica,
reprodutiva, de formação de lar, de companheirismo, de amizade – que não é definida pelas
instituições patriarcais de heterossexualidade feminina de sua cultura, então você precisa
criar uma possibilidade para isso. Eu estou dizendo que, na minha visão, essa possibilidade
não existe na história e na cultura patriarcal. Se existisse, não seria patriarcal.

Seguindo uma dica dada por Sarah Hoagland há muitos anos, eu argumentei em meu artigo
To Be and Be Seen [N. T.: Ser e Ser vista, em tradução livre para o português] que não existem
lésbicas no universo do patriarcado. Um argumento similar e mais genérico é útil aqui.

▸ Virgens, fora-da-lei
A palavra virgem não significava originalmente uma mulher cuja vagina não havia sido tocada
por um pênis, mas uma mulher livre, não prometida, não casada, “não vinculada a” e não
possuída por nenhum homem. Significava uma mulher que era sexualmente, e portanto social-
mente, pertencente a ela mesma. Em qualquer universo do patriarcado, não existem Virgens
nesse sentido, e portanto Virgens devem ser inefáveis fora-da-lei, párias, pensáveis apenas
enquanto negações; sua existência, impossível. Lésbicas radicalmente feministas reivindi-
caram, e têm inventado formas de viver, uma Virgindade positiva, num desafio criativo às
definições patriarcais do real, do significativo. A questão à mão deve ser pertinente: alguém
irá, alguém poderá conseguir, inventar e construir modos de viver a Virgindade que incluam
viver conexões eróticas, econômicas, de construção de lar, de parceria, com homens? O que deve
ser imaginado aqui são mulheres que estão dispostas a se engajar em conexões com homens
por escolha, que são mulheres selvagens, não domesticadas, completamente desafiantes da
heterossexualidade feminina patriarcal. Tais mulheres estarão vivendo vidas sexualmente,
socialmente e politicamente desviantes e impossíveis quanto as vidas de lésbicas radicalmente
feministas. Eu penso que consigo imaginar um pouco de como elas seriam se viessem a existir.
Eu consigo fazer um esboço parcial de tais mulheres:

Elas não se vestem ou se decoram de acordo com o mecanismo que sinaliza a conformi-
dade das mulheres com a feminilidade definida por homens dentro de sua cultura e que molda
seus corpos para tal conformidade. Elas não se fazem “atraentes” nos moldes convencionais
femininos de sua cultura, e então pessoas que ignoram sua beleza animal dizem que são feias.
Elas mantêm tanta flexibilidade econômica quanto possível para assegurar-se de que podem
voltar à independência a qualquer momento em que a parceria econômica as esteja forçando
a uma aliança que não foi completamente escolhida. Elas não mais fariam sexo quando não

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achassem que iriam apreciar, da mesma forma que não correriam nuas na chuva quando não
achassem que iriam apreciar isso. Suas interações sexuais não são premissas para que pessoas
com pênis se tornem homens e pessoas com vagina se tornem mulheres.

Essas Virgens que se conectam com homens não tentam manter a ficção de que os homens
que elas preferem são melhores que os outros homens. Quando elas são ameaçadas por pessoas
que se sentem ameaçadas por elas, elas não apontam suas conexões com homens como provas
suavizadoras de que não odeiam homens. Elas não se beneficiam com a proteção dos homens.
Elas não pressionam suas filhas e suas alunas a se relacionarem com homens, como elas fazem,
para que se sintam validadas por meio das escolhas de outras mulheres. Elas não consideram
trazer nenhum homem a encontros feministas que não foram especificamente abertos para
eles, e elas ajudam a criar e a defender (e apreciam) espaços exclusivos de mulheres.

Essas Virgens que se conectam com homens não são manipuladas pela orquestração da
aprovação e da desaprovação masculina, pela orquestração das necessidades de homens e
crianças, reais ou falsas, necessárias ou evitáveis. Elas não são redutíveis à conformidade por
pavor ou ansiedade sobre coisas lésbicas e não têm medo de sua própria paixão por outras
Virgens, inclusive aquelas que são lésbicas. Elas não precisam ser respeitáveis.

Essas Virgens se recusam a participar da instituição do casamento, e não apoiam ou


testemunham os casamentos de seus irmãos preferidos. São opositoras convictas do matri-
mônio. Elas sofrem pressões enormes para que se casem, mas resistem. Elas não consideram o
casamento um privilégio. Nem mesmo o suborno dos benefícios do plano de saúde do marido
as seduz ao matrimônio, nem mesmo quando elas e seus parceiros ficam velhos e se tornam
mais ansiosos em relação a sua saúde e estabilidade financeira. Essas Virgens têm uma amizade
forte, confiável, criativa, duradoura, sustentadora, ardente com mulheres. Sua imaginação e
suas políticas são mais moldadas fundamentalmente pelo desejo de empoderar mulheres e
de criar amizade e solidariedade entre mulheres do que por um compromisso de apaziguar,
confortar e mudar homens.

Essas Virgens que se conectam com homens não sentem que podem ser elas mesmas e ao
mesmo tempo estar “no armário”; elas são assumidas como mulheres libertas e não confor-
madas, um fenômeno muito notável na cena política e social. Elas se fazem visíveis, audíveis
e tangíveis umas às outras, elas criam comunidades e irmandades entre elas e com Virgens
lésbicas, e elas apoiam umas às outras em seus territórios selváticos. Elas fazem traquina-
gens e criam problemas juntas. Elas encontram maneiras de criar lares e calor humano e
companheirismo e intensidade com ou sem homens inclusos. Elas criam valores e criam
significados, assim, quando a pressão para se conformar com a heterossexualidade feminina

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patriarcal é grande, elas têm um contexto e uma comunidade de resistência para as apoiar e
para dirigir suas energias na invenção de novas soluções para os problemas que a conformidade
aparenta resolver. Elas criam música, romances, poesia, arte, revistas e jornais, ações políticas
e programas. E, em suas revistas e jornais, elas articulam sua imaginação, suas diferenças
culturais e políticas, seus vários valores; elas repreendem umas às outras, elas apoiam umas
às outras, elas prestam atenção umas às outras.

▸ Lésbica ou não, você precisa ser uma desviante


Esses seres são possíveis? Você consegue foder sem perder sua virgindade? Eu penso que
tudo vai contra isso, a decisão não é minha. Cabe àquelas que desejam viver isso. Algumas
mulheres têm esperança de que você precise, sim, ser uma lésbica para ser uma feminista
verdadeira, extrema, criadora-de-problemas, pois como elas não são lésbicas e nunca no mundo
se tornariam lésbicas, elas têm uma desculpa para não pensar e agir de forma radicalmente
feminista e para não alienar homens. Muito do que passa por medo do lesbianismo, veja, é,
realmente, medo dos homens – medo do que eles podem fazer àquelas que não se conformam.
Mas eu detesto fornecer essa desculpa.

Essa é minha fantasia: uma aluna pergunta em classe se ela precisa ser lésbica para ser uma
verdadeira feminista, e eu respondo que, lésbica ou não, você precisa ser uma mulher herética,
desviante, e não domesticada, um ser impossível. Você precisa ser uma Virgem, e eu acrescento
(ainda de uma maneira fantástica)… “um lugar em que você pode encontrar outras Virgens
com quem brincar e com quem aprender a virgindade é o Programa de Estudos das Mulheres”.

Essa fala foi preparada para uma sessão na conferência da Associação Nacional de Estudos
das Mulheres (National Women’s Studies Association – NWSA) desse ano. Como sempre, eu quero
agradecer a minha companheira Carolyn Shafer por sua ajuda em reunir e articular esses
pensamentos. E, ao me fazer duras críticas, que me ajudaram a aperfeiçoar esse trabalho de
diversas maneiras, ela acabou sendo responsável por uma ou duas das melhores frases.

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