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SINOPSEDAOBRA
SINOPSEDAOBRA
Querida Aline, escrever é a sua arma, sua carapaça, sua libertação. Escrever
é a sua forma de dizer “minha existência não é negociável”. Acompanhando os seus
movimentos de escrita e insurgência, abri a terceira gaveta da sua cômoda-coração.
A gaveta “Livre para ser” parecia pesar menos do que as duas anteriores. Pouco a
pouco, fui percebendo a sua concha-coração se abrindo, se libertando, criando asas,
mas sem perder a raiz. Aline, na tessitura de sua liberdade, você vai nos ensinando
a reivindicar o direito do corpo-palavra e da palavra- corpo. O Ocidente nos
condicionou a separar mente e corpo como se fossem duas entidades distintas, mas
sabemos que o corpo fala com as palavras e as palavras falam com o corpo, no corpo
e sobre o corpo. Faz tempo que nossas mais velhas vêm falando sobre isso, não é?
Maria Firmina, Carolina, Lélia, Beatriz, Sueli, Conceição, Geni, Miriam, Elisa, Davis,
Morrison, Audre, bell... São tantas que muito antes de nós já sabiam da força da
palavra-corpo. E ao abrir a gaveta “Livre para ser”, ouvi o ecoar dessas vozes na sua
voz potente e fatigada. Aline, vou mantendo a gaveta aberta na urgência de te ouvir
dizer sobre o corpo do poema, o poema no corpo: “O meu corpo é parte do poema,
parte da performance, parte da intervenção. Estou tão atarefada e compromissada
com a minha liberdade para estar no mundo, que a palavra vulgaridade sequer me
chega à mente. Aprender novas maneiras para ser livre requer todo o meu foco. Deve
mesmo ser estranho não entender que o texto antes de ser escrito habita o corpo, e
que realizá-lo é atingir um estado de êxtase”. Nesta gaveta onde seu enraizado
coração reivindica o direito de ser livre, você nos ensina estratégias de emancipação
a partir das suas afiadas reflexões sobre misoginia, alteridade, autoamor. “O
machismo também mata... homens!”, ouvimos atenta o seu alerta e aprendemos que
é preciso “desintoxicar a masculinidade”. Antes de fechar essa gaveta mesclada de
tantas linhas e nós, você nos convida a dialogar sobre o ato de criar arte e crianças.
As duas tarefas são árduas, mas “neste país, para uma mãe preta, ver sua criança
crescer, ter consciência de si e vê-la sonhar ainda é um amargo privilégio”. Ser mãe
preta, escritora, poeta, editora, pesquisadora neste país que é uma máquina de moer
gente preta, sejam elas adultas ou crianças, é uma carga mental sufocante. Nessas
horas, a síndrome da impostora se agiganta, ela se aproxima cheia de uma coragem
acovardada que amedronta, anula, apavora. A impostora pode assustar, mas não
podemos nos deixar dominar por ela. Mais uma vez, peço atenção ao alerta de Aline
Cardoso: “A imagem que fazemos de nós mesmas merece ser cuidada, melhorada,
ajustada de acordo com as nossas capacidades e desejos reais e potenciais [...]
Ocupo o espaço que eu deixaria disponível ao ruído que sempre vai insistir em me
dizer que eu nunca serei boa o suficiente: para existir, escrever, pesquisar, estudar,
editar, fazer poesia, produzir, criar... Amar a mim e ao que eu faço são atos de
rebeldia”.
Movida pela rebeldia de ser livre para ser, abri devagar a quarta e última gaveta
de sua cômoda-coração, querida Aline. Na gaveta “Aqui tudo ressoa” você nos
apresenta as múltiplas facetas do seu estilo tão singular e, ao mesmo tempo, tão
plural. Como definir o estilo da escrita de Aline Cardoso? Algumas pessoas disseram
que é “afiada”, “de precisão cirúrgica”, “garras de aço”, “águas caudalosas”. Eu posso
dizer que a sua escrita é visceral, cortante, incômoda, desestabilizadora, hemorrágica,
fonte de perplexidade e de Ferocidade Poética. Gosto especialmente da descrição do
estilo “aliniano” tecida por Vó Alaíde: “essa negra é uma pinga-fogo da língua ferina”.
Com a alma na mão, coração na boca e palavras em riste, movida pela tríade “poesia,
fúria e liberdade”, Aline ecoa a sua voz para além dos muros visíveis e invisíveis e nos
convoca, uma vez mais, para praticar o exercício do diálogo e da escuta. “É no conflito
ativo entre dois lados que se extraem os sumos da língua. É no tiritar da centelha que
se estabelece a busca alteritária por uma dinâmica de redução das opacidades entre
as singularidades. Para existir diálogo é necessário a escuta ativa, aberta a fazer
concessões, a mudar de opinião, a redizer o que está posto”.
Dia desses, numa conversa com Miriam Alves, grande escritora negra brasileira
que recentemente completou 70 anos de idade e 40 anos de carreira literária, ela me
confessou: “eu não quero que me deem voz, afinal, eu sempre falei. Quero que me
deem ouvidos”. Enquanto fecho a última gaveta deste livro tão impactante de Aline
Cardoso, a figura imponente e provocativa de Miriam se avoluma e ouço sua voz
ressoar: “quem está disposta/o a escutar uma mulher negra?”. Agora, consigo ver
Miriam Alves olhando Aline Cardoso com ternura e dizendo: “Mesmo que não queiram
nos ouvir, continuaremos a falar. Continue!”. Meus olhos marejam ao vislumbrar a
cena do encontro de duas gerações de mulheres negras, escritoras, intelectuais
multifacetadas, poetas e mães solo. Em uníssono, elas questionam: “Você já se
perguntou quantas escritoras mães solo negras conseguiram concluir e publicar seus
trabalhos literários?”. Você já se perguntou quantas escritoras negras você já leu?
Você que tanto quer dar voz, já parou pra dar ouvidos?