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SINOPSE DA OBRA

“Graças à minha voz, estou aqui, erguendo este livro.


Não sei quantas pessoas dedicarão tempo e dinheiro
para ler, comentar, discutir. Mesmo assim eu ouso me
levantar e ouso querer ser lida. Faço e trabalho com
minhas próprias forças e potências. Resistir é isso. Se
fosse graças ao apoio e às portas abertas, eu jamais teria
saído da primeira gaveta”. (Aline Cardoso)

“Escrever é um modo de sangrar. E de muito sangrar”. Essa frase de Conceição


Evaristo, ressoou em mim enquanto lia as crônicas-poemas do livro Meu coração é
uma cômoda de muitas gavetas, mais uma obra visceral de Aline Cardoso, jovem
escritora, poeta, editora e multiartista paraibana. Ler este novo livro de Aline é ser
atravessada por uma sensação contínua de sentir, sentir, sentir. Mas não seria essa
uma das principais funções da literatura? As/os escritoras/es não escrevem para nos
fazer sentir? No primeiro momento, provavelmente eu responderia que sim, o texto
literário, seja ela em prosa ou verso, busca despertar os sentidos das/dos suas/seus
leitoras/es e nos fazer sentir e muito sentir. Mas quando leio o texto de um/a autor/a
branco/a, o meu sentir é diferente de quando leio o texto de um autor negro e,
especialmente, de uma autora negra.

“Escrever é um modo de sangrar”. E na minha experiência de leitora e crítica


de textos literários, especialmente os de autoria de mulheres negras, me arrisco a
dizer que ler é também um modo de sangrar. Este primoroso livro de crônicas
despertou em mim essa sensação visceral de sangrar ao me sentir atravessada por
sua prosa-poética cortante, visceral, impactante, fonte de ferocidade poética.

Absorta pelas palavras-flecha de Aline, cuidadosamente, vou abrindo a primeira


gaveta de sua cômoda-coração, móvel inteiro, mas dividido em quatro partes. Na
gaveta “Toda poesia sangra”, somos apresentadas à imagem gráfica de um coração
cercado de “agulhas finas”, em um gesto de nos permitir visualizar corpus e corpo.
Um corpo negro. Corpo negro de mulher. Corpo de uma mãe-negra-solo, mãe-negra-
escritora, mãe-negra-paraibana, mulher-palavra-corpo, que “empunha a caneta como
se segurasse a própria vida”. Num exercício de se fazer ouvir, somos alertadas pela
autora “não nasci com jeito pra guardar silêncios, porque feito muro eu quero voz,
quero cor, quero possibilidades”. Diante da cômoda-coração de Aline Cardoso, vamos
abrindo gavetas e descobrindo as múltiplas facetas de uma escritora que sangra
enquanto cria, cria enquanto sangra, sangra-cria-procria. Aline escreve e sangra,
escreve e cria num ato de amor desesperado para garantir a subsistência da pequena
Marina, sua mais bela criação. Vera Eunice pedia comida e sapatos novos a Carolina
Maria de Jesus, que mesmo entre os despejos, escrevia, escrevia, escrevia. Escrevia
para enganar a fome. Escrevia para denunciar. Escrevia para existir. Escrevia para
ser lida, publicada, reconhecida. Escrever para Carolina Maria de Jesus era também
um modo de sangrar. Carolina, assim como Aline, segurava a caneta como quem
segurasse a própria vida. Enquanto escrevia, Carolina sonhava com outras
possibilidades de futuro para si e para as suas crianças. Tal qual Carolina, Aline
“escreve para incendiar, escreve porque só sentir ódio da injustiça, não frutifica.
Escreve para partilhar a indignação. Escreve para não morrer calada, escreve porque
tem tesão”. Aline escreve para preencher os vazios das muitas fomes que atravessam
o seu corpo e o seu calejado “peito-concha”. Quantas fomes atravessam a palavra-
corpo de Aline Cardoso? Vamos nos perguntando ao abrir as gavetas da sua cômoda-
coração. Na gaveta “Toda poesia sangra”, acometida por uma hemorragia que não
cessa, a poeta-cronista sente profundamente. Numa tentativa de amenizar a dor de
tanto sentir, as palavras gritam os silêncios, os vazios, o medo, o abandono e a solidão
de 1825 dias. Num tempo de pés sem pele, a poesia continua sangrando, e em meio
ao sangue que lava o chão, a cronista, mesmo derrapando em seu próprio visgo,
levanta, ressurge, grita, se liberta, dá um jeito, faz milagre. Em meio ao rebosteio,
Aline vai nos ensinando estratégias e caminhos para nos livrarmos dos machos
traiçoeiros e sem futuro. Depois de aprendermos a datilografar o atestado de canalha,
podemos colocar o nosso biquini mais minúsculo e mergulhar no mar da liberdade,
certas de que “não somos cruéis e muito menos lixo à disposição de resíduos tóxicos...
sejam eles emocionais, sexuais, afetivos, morais [...]. Eu não estou à mercê do
abandono. Sempre estarei comigo”.

A primeira gaveta da cômoda-coração de Aline talvez seja a mais pesada,


densa, a mais difícil de abrir e também de fechar. É preciso tomar cuidado com os
calos nas mãos da mulher que segura a caneta como quem segurasse a própria vida.
É preciso observar as fragilidades da concha-coração para que ela não endureça
ainda mais. Aline nos convoca a sentir as suas fragilidades e não ignorar as suas
dores, pois é demasiado desumano associar mulheres negras ao lugar aprisionante
da força. Atenta a frágil concha-coração de nossa poeta-cronista, vamos fechando
delicadamente a primeira gaveta de sua pesada cômoda. Antes de fechar a gaveta,
guiada pelas “recordações e movimentos” de Vó Alaíde, sua mais velha, a neta-
cronista aconselha a pequena Marina, fruto do seu ventre: “Aprenda a descobrir e
preservar o que te mantém de pé, o que te acolhe na queda e o que te mantém viva”.

Aline, com delicadeza e cuidado, abri a segunda gaveta de sua cômoda-


coração. Pensei que depois de abrir e fechar a primeira gaveta tão pesada e doída,
sentiria menos na segunda. Pensei que já tivesse treinada para os sangramentos
vindouros. Abri a gaveta “Carne dura de moer” e fui nocauteada nas primeiras linhas.
Senti o golpe. Senti a dor de sua existência sendo uma mulher negra nesse país que
nos odeia. Senti a sua/nossa dor de viver nessa máquina racista que tenta a todo
custo aniquilar mulheres negras que não aceitam fazer o jogo da subserviência e
ocupar os lugares de servidão. “A carne mais barata do mercado é a carne negra”,
tantas vezes cantou a nossa inesquecível Elza Soares. Antes de partir pro Orum, Elza
passou a cantar “a carne mais barata do mercado era a negra, agora não é mais”. Eu
quis acreditar nessa mudança, acredito que você também. Mas sabemos que mesmo
dura de moer, a nossa carne é a primeira a ser exposta, arrastada, amassada,
machucada. A gente sangra e ninguém vê. Os calos crescem em nossas mãos e
ninguém sente quando aperta. Quem cuida das mulheres negras que cuidam? Aline,
essa pergunta ressoou nos meus ouvidos enquanto eu ia abrindo pouco a pouco a
segunda gaveta de sua cômoda-coração. Enquanto eu apertava delicadamente a sua
mão para não machucar os seus calos, você me ensinava: “Não é nada duro tentar
preservar a saúde mental, não é duro poupar um pouco de vida para dedicar a quem
pari, ou ter tempo para parar e ir beber água antes de arriscar urinar meu próprio
sangue. Só que ali eu não era um ser, era uma engrenagem, uma pecinha qualquer,
de fácil descarte e substituição”. Beber água não foi suficiente para aliviar a sua
algesia, essa dor insuportável, essa sua incrível capacidade de sentir, sentir, sentir.
Você sabe que a culpa não é sua. O fardo é pesado e, na maioria das vezes, você
precisou carregar sozinha. Quem oferece ajuda uma mulher negra, poeta, mãe solo?
Quem vê os calos nas mãos de quem segura a caneta como quem segurasse a
própria vida? Pouca gente ajuda, pouca gente vê, pouca gente traz unguento para
amenizar a dor do calo que rompeu. Na ânsia de dar conta de tudo, de cuidar da
Marina, ensinar, escrever, editar, publicar, sonhar, realizar. Na ânsia de existir sendo
quem é, você foi paralisada pelas dores do Burnout. Sinto por ninguém ter visto o seu
corpo queimando, a sua angústia, medo, confusão, ansiedade, esgotamento. Sinto
por não terem visto o seu desespero, a sua carne moendo, a sua algesia. Quando a
dor estava insuportável demais, você se permitiu diminuir o ritmo. Você decidiu se
escolher e se acolher. Você precisou dizer a si mesma: “Vamos devagar pela primeira
vez? Vamos parar de correr? Agora, feche a porta, você̂ está aqui comigo. Você̂ está
aqui? Estou. Acho que estou. Então, fale, concentre-se na sua voz e em estar junto a
ela. Estar junto da minha voz tem me livrado até́ mesmo de mim. É possível salvar
alguém pela voz. Emitir alertas. A voz salva. E todo santo dia escolho não ofertar
minha voz à barganha. Escrevo!”. Escrever para não sucumbir, escrever para
continuar sonhando, escrever para buscar alimento do corpo e da alma. Escrever para
não adoecer, não entristecer, não esmorecer. Escrever para construir caminhos de
cura e emancipação.

Querida Aline, escrever é a sua arma, sua carapaça, sua libertação. Escrever
é a sua forma de dizer “minha existência não é negociável”. Acompanhando os seus
movimentos de escrita e insurgência, abri a terceira gaveta da sua cômoda-coração.
A gaveta “Livre para ser” parecia pesar menos do que as duas anteriores. Pouco a
pouco, fui percebendo a sua concha-coração se abrindo, se libertando, criando asas,
mas sem perder a raiz. Aline, na tessitura de sua liberdade, você vai nos ensinando
a reivindicar o direito do corpo-palavra e da palavra- corpo. O Ocidente nos
condicionou a separar mente e corpo como se fossem duas entidades distintas, mas
sabemos que o corpo fala com as palavras e as palavras falam com o corpo, no corpo
e sobre o corpo. Faz tempo que nossas mais velhas vêm falando sobre isso, não é?
Maria Firmina, Carolina, Lélia, Beatriz, Sueli, Conceição, Geni, Miriam, Elisa, Davis,
Morrison, Audre, bell... São tantas que muito antes de nós já sabiam da força da
palavra-corpo. E ao abrir a gaveta “Livre para ser”, ouvi o ecoar dessas vozes na sua
voz potente e fatigada. Aline, vou mantendo a gaveta aberta na urgência de te ouvir
dizer sobre o corpo do poema, o poema no corpo: “O meu corpo é parte do poema,
parte da performance, parte da intervenção. Estou tão atarefada e compromissada
com a minha liberdade para estar no mundo, que a palavra vulgaridade sequer me
chega à mente. Aprender novas maneiras para ser livre requer todo o meu foco. Deve
mesmo ser estranho não entender que o texto antes de ser escrito habita o corpo, e
que realizá-lo é atingir um estado de êxtase”. Nesta gaveta onde seu enraizado
coração reivindica o direito de ser livre, você nos ensina estratégias de emancipação
a partir das suas afiadas reflexões sobre misoginia, alteridade, autoamor. “O
machismo também mata... homens!”, ouvimos atenta o seu alerta e aprendemos que
é preciso “desintoxicar a masculinidade”. Antes de fechar essa gaveta mesclada de
tantas linhas e nós, você nos convida a dialogar sobre o ato de criar arte e crianças.
As duas tarefas são árduas, mas “neste país, para uma mãe preta, ver sua criança
crescer, ter consciência de si e vê-la sonhar ainda é um amargo privilégio”. Ser mãe
preta, escritora, poeta, editora, pesquisadora neste país que é uma máquina de moer
gente preta, sejam elas adultas ou crianças, é uma carga mental sufocante. Nessas
horas, a síndrome da impostora se agiganta, ela se aproxima cheia de uma coragem
acovardada que amedronta, anula, apavora. A impostora pode assustar, mas não
podemos nos deixar dominar por ela. Mais uma vez, peço atenção ao alerta de Aline
Cardoso: “A imagem que fazemos de nós mesmas merece ser cuidada, melhorada,
ajustada de acordo com as nossas capacidades e desejos reais e potenciais [...]
Ocupo o espaço que eu deixaria disponível ao ruído que sempre vai insistir em me
dizer que eu nunca serei boa o suficiente: para existir, escrever, pesquisar, estudar,
editar, fazer poesia, produzir, criar... Amar a mim e ao que eu faço são atos de
rebeldia”.

Movida pela rebeldia de ser livre para ser, abri devagar a quarta e última gaveta
de sua cômoda-coração, querida Aline. Na gaveta “Aqui tudo ressoa” você nos
apresenta as múltiplas facetas do seu estilo tão singular e, ao mesmo tempo, tão
plural. Como definir o estilo da escrita de Aline Cardoso? Algumas pessoas disseram
que é “afiada”, “de precisão cirúrgica”, “garras de aço”, “águas caudalosas”. Eu posso
dizer que a sua escrita é visceral, cortante, incômoda, desestabilizadora, hemorrágica,
fonte de perplexidade e de Ferocidade Poética. Gosto especialmente da descrição do
estilo “aliniano” tecida por Vó Alaíde: “essa negra é uma pinga-fogo da língua ferina”.
Com a alma na mão, coração na boca e palavras em riste, movida pela tríade “poesia,
fúria e liberdade”, Aline ecoa a sua voz para além dos muros visíveis e invisíveis e nos
convoca, uma vez mais, para praticar o exercício do diálogo e da escuta. “É no conflito
ativo entre dois lados que se extraem os sumos da língua. É no tiritar da centelha que
se estabelece a busca alteritária por uma dinâmica de redução das opacidades entre
as singularidades. Para existir diálogo é necessário a escuta ativa, aberta a fazer
concessões, a mudar de opinião, a redizer o que está posto”.
Dia desses, numa conversa com Miriam Alves, grande escritora negra brasileira
que recentemente completou 70 anos de idade e 40 anos de carreira literária, ela me
confessou: “eu não quero que me deem voz, afinal, eu sempre falei. Quero que me
deem ouvidos”. Enquanto fecho a última gaveta deste livro tão impactante de Aline
Cardoso, a figura imponente e provocativa de Miriam se avoluma e ouço sua voz
ressoar: “quem está disposta/o a escutar uma mulher negra?”. Agora, consigo ver
Miriam Alves olhando Aline Cardoso com ternura e dizendo: “Mesmo que não queiram
nos ouvir, continuaremos a falar. Continue!”. Meus olhos marejam ao vislumbrar a
cena do encontro de duas gerações de mulheres negras, escritoras, intelectuais
multifacetadas, poetas e mães solo. Em uníssono, elas questionam: “Você já se
perguntou quantas escritoras mães solo negras conseguiram concluir e publicar seus
trabalhos literários?”. Você já se perguntou quantas escritoras negras você já leu?
Você que tanto quer dar voz, já parou pra dar ouvidos?

Querida Aline, quero dizer que ao ler-escrever o prefácio de Meu coração é


uma cômoda de muitas gavetas, em vários momentos eu sangrei. Quero dizer que sei
das suas hemorragias e calosidades. Quero dizer que eu te ouvi e sempre te ouvirei.
Quero dizer que suas palavras me atravessaram feito lança afiada e me fizeram sentir.
E muito sentir. Eu sinto suas dores, seus medos, angústias, incertezas, pois esses
sentimentos também me acompanham. É um fardo que carregamos mesmo quando
não temos mais forças para caminhar. Quando a gente divide, ele pode se tornar mais
leve. Aline, a sua escrita da ferocidade poética ativou todos os meus sentidos. Ao
segurar a sua mão, eu senti os calos. Querida Aline, antes de partir para o Orum, Mãe
me ensinou a fórmula de alguns unguentos que ajudam a estancar hemorragias e
aliviar a ardência dos calos. Posso preparar para você sempre que precisar. Agradeço
por sua existência luminosa e a força de sua arte que nos ajudam a perceber os calos
e (re)descobrir remédios de cura e libertação.

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