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Noites desastrosas

A festa do centro acadêmico.

Eu não queria ir, mas não tinha como. Estive em uma festa do centro acadêmico ontem. Já era passada

a meia noite quando chegou um homem na festa. Eu o vi, do sofá marrom, conversando na porta com

um menino: tinha deixado a cadeia agorinha a pouco, cinco anos. Ele passou da porta e foi entrando

no espaço. Tentava agir como se conhecesse todo mundo, como se estivesse à vontade, mas era óbvio

que aquilo era fingimento. Parou em uma rodinha de pessoas. Desta vez não ouvi nenhuma palavra,

apenas os risos de nervoso. No centro acadêmico, depois da meia noite, você só pode rir de nervoso.

O homem prosseguiu, indo cada vez mais rumo ao coração ressequido da sala. Eu vi que mais

pessoas estavam entrando, nenhum rosto conhecido. Outra coisa que só acontece depois da meia

noite: todo mundo entra, mas ninguém nunca sai. O homem continuava a falar com quem

encontrasse. Ele queria nos convencer, um a um, que nós já nos conhecíamos. Do meio da sala ele

apontou pra mim e disse: “você lembra de mim.” Eu não lembrava. Ele então deu datas para provar

que eu me lembrava, mas eu era uma criança na época em que ele dizia ter me conhecido. Ele então

falava pra si mesmo, mas em voz alta, “que estranho por que será que você não se lembra de mim?”.

O homem então mudou de abordagem: começou parar as pessoas, de novo, uma por uma,

pedindo os números de telefone delas. Eu me recusei a passar alegando não lembrar o número, o que

é verdade. O menino da porta passou o número propositalmente errado. Outras pessoas só começaram

a fingir que ele não estava lá. Para a Carol, no entanto, o homem dispensou uma atenção diferenciada:

antes de pedir o número de telefone dela, ele enumerou os valores de todas as peças de roupa que ele

vestia. Boné, blusa, camisa, calça, cueca, meia e sapatos. Cada peça, segundo ele, custava mais de

quinhentos reais, e tudo era “Oakley.” A camisa, no entanto, era “Lacoste”: o logo da marca era

gigante, tinha o tamanho da própria camiseta. Ele prosseguiu dizendo que a Carol era muito bonita,

que ele adoraria levá-la para o carro dele. Ela afirmou que era casada, e o homem insistiu na
conversa. Outras pessoas se reuniram ao redor dele, e ficaram em silêncio, olhando. Ele então tentou

pegar uma cerveja, ninguém permitiu. Aí ele pediu por cigarros, mas já haviam fumado todos. Ele foi

até a porta, e pediu um cigarro de novo. Deram um cigarro pra ele. Então ele jogou o cigarro no chão,

pisou em cima, e foi embora. Eu não sabia mais que horas eram, e ele foi a única pessoa que eu vi

saindo de lá.

O dorminhoco

Um rapaz da faculdade politécnica anda frequentando o centro acadêmico; até ontem ele parecia

normal. Não parece mais. Este rapaz da faculdade politécnica nunca fala nada, mas, ao que parecia,

ontem, ele estava na intenção de flertar com a Raquel. No entanto, a forma que ele encontrou para

isso foi um tanto curiosa: primeiro, ele se aproveitou do fato de eu ter derrubado uma lata de cerveja

no sofá para, enquanto eu estava em pé buscando por um pano, roubar meu lugar ao lado da Raquel.

Depois, ele contrabandeou seu braço esquerdo através do encosto do sofá, por trás do pescoço dela.

Finalmente, ele comeu uma jujuba e dormiu. Sua cabeça pendeu completamente para frente, sua boca

estava aberta, ele estava totalmente desmaiado. A Raquel permaneceu no sofá, duríssima, com o corpo

dobrado enquanto o colega dormia. Eu fiquei olhando para eles por um tempo. Era proposital, ou um

acidente? Ele poderia muito bem só ter sentado lá e dormido, e aquele braço atrás do pescoço era só a

forma que ele encontrou para se ajeitar no sofá. Perguntei ao Nery se ele achava que o colega estava

nanando. Ele riu e disse “sim”.

Depois de uns minutos o companheiro acordou. Tirou o braço de trás do pescoço da Raquel e se

ajeitou novamente no sofá. Ele, no entanto, passou o braço novamente pelo pescoço dela. Assim ele

continuou, desta vez acordado, com o bracinho esticado sobre o encosto do sofá. Sem dizer

absolutamente nada, nenhuma palavra.


A festa de aniversário

Eu jurava que não iria, mas estava combinado. A festa começaria em um apartamento e depois

de um tempo lá todos nós iríamos a um bar que era ao mesmo tempo um karaoquê e uma balada.

Nada saiu como planejado. Tudo foi um desastre.

O apartamento era próximo a uma avenida muito movimentada da cidade, em uma rua muito

chique. Para mim e a Carol a localização era ótima pois poderíamos ir e voltar de ônibus. Chegamos a

um edifício todo laranja cujos parapeitos tinham a forma de uma cavidade ocular. O lobby da entrada

era todo branco, com sofás laranja. Pegamos um elevador com iluminação laranja e subimos. O

apartamento em que entramos, por sua vez, não era laranja. Lá conhecemos nosso anfitrião: eu não o

conhecia e descobri que nós somos da mesma turma da universidade. Meio baixo, levemente acima

do peso, cabelo e olhos claros, bigodinho e barbicha, ele é facilmente reconhecível, apesar de alguma

forma parecer com todo mundo. Seus pais saíram em viagem e por isso ele decidiu sediar a festa no

apartamento dele.

Todos os convidados estavam conversando na sala de tevê, entretidos consigo mesmos. Eu

estava em outro cômodo, junto com a Carol e o Nery. Ele, para iniciar uma conversa, começou a me

contar de uma monografia que estava lendo. Enquanto ele falava, alguém apareceu com uma bandeja

de jujuba, que nós aceitamos. Nery comeu uma, eu comi outra, depois, levei as jujubas para a sala de

Tevê. Após isso, elas nunca mais voltaram para a sala onde estávamos. Não que eu me importasse, já

estava satisfeito. O Nery, porém, observou em voz alta que as jujubas nunca mais voltaram, num tom

meio indignado que eu não sabia dizer se era sério ou não. Me levantei e fui atrás de algo para beber.

Encontrei um vinho e fui bisbilhotar os objetos decorativos do apartamento: na sala de Tevê

havia uma estante com as obras completas de Freud; na prateleira de baixo haviam muitos números da
revista brasileira de psicanálise; mais abaixo, uma coleção de fascículos em capa dura, que eu não

me animei em identificar. Os pais do anfitrião são psicanalistas. Eu sei porque eu perguntei. Na

prateleira mais rente ao chão, uma coleção de livros em capa dura marrom tão artificialmente

organizada que passava uma forte impressão de ter sido comprada por metro. Pelas paredes, algumas

obras em papel emolduradas. Perguntei sobre elas também, mas meu anfitrião não sabia nada, porque

nunca deu a mínima pra nenhuma delas. A Carol estava na sala de estar, tentando entender porque os

retratos de família do apartamento estavam todos virados para trás. Eu disse que talvez seja uma coisa

de classe, mas ela achou esta resposta fácil demais. Para ela, eles não queriam ser reconhecidos

porque são psicanalistas, e ser psicanalista, continuou, é uma profissão muito perigosa; algum

paciente - ou mais de um, talvez todos com exceção de eu, ela e o Nery - poderia estar entre os

convivas da festa, e, para preservar a integridade física e psicológica dos pais, o anfitrião teve a

delicadeza de virar todos os retratos. Ela pegou uma das fotografias de família e olhou longamente:

não viu nada demais.

A aniversariante realizou o chamado e parte do grupo foi para a sala de jantar. Iríamos

consagrar a primeira dose de tequila. O processo de tomar uma dose de tequila em grupo é

razoavelmente complicado, e nós tivemos que seguir uma coreografia: em primeiro lugar, eu tive que

chegar até a tequila, o que outras pessoas também estavam tentando fazer ao mesmo tempo que eu;

em segundo lugar, eu tive que colocar um punhado de sal sobre a minha mão; em terceiro lugar, eu

precisava pegar uma fatia de limão enquanto equilibrava o sal e segurava o copo de tequila. Em

seguida, esperamos todos fazerem o mesmo, e então, prosseguimos em um pequeno rito que consistia

em fazer um sinal em forma de cruz com o copo e dizer: arriba, abajo, al centro, adentro. Só aí

lambemos o sal de nossas mãos, tomamos a tequila e chupamos o limão. Fizemos isso cinco vezes.

Entre a primeira e a quinta dose, eu continuei circulando pela casa, pensando nos pais
psicanalistas. Nosso anfitrião parecia muito tranquilo para uma pessoa cujos pais praticam a cura

pelas palavras. Se ele estava protegendo a sua família de um exército de possíveis pacientes, porque

ele parecia tão à vontade? Sentei com a Carol em um sofá. Tentei conversar com ela sobre o

apartamento, mas ela não pareceu muito interessada. Nos levantamos com planos de ir atrás de mais

tequila. Na cozinha, duas pessoas conversavam sobre suas derrotas para o mercado de trabalho. O

anfitrião chamou todos para a cozinha e anunciou que o preço para entrar no bar subiu de dez para

vinte reais. Para alguns, era o suficiente para não irmos, mas ele preferiu ir mesmo assim. Talvez ele

não estivesse tão à vontade quanto eu imaginei, muitos pacientes à solta.

Fui ao banheiro fazer xixi. Ao me olhar no espelho eu me senti esquisito. Toda a tequila que eu

tinha tomado subiu à minha cabeça na velocidade de um míssil. Em poucos segundos eu passei de um

indivíduo razoável para um indivíduo terrivelmente, miseravelmente bêbado. Foi como tropeçar e

sofrer uma queda que levaria eras inteiras para acabar. Decidir ficar lá, esperando alguma coisa em

mim acontecer enquanto envolvia o vaso sanitário em um abraço. Nada aconteceu. Me arrastei para

fora do banheiro, pois havia pessoas na porta, primeiro batendo, depois perguntando se eu estava bem.

Fui para sala. Sentei-me de novo ao lado da Carol e não tive tempo de falar nada, pois aquela coisa

que eu estava esperando começou a acontecer. Voltei correndo ao banheiro, mas a porta estava

fechada. O vômito vinha irreversível e, num reflexo, eu levei minhas duas mãos à boca. O primeiro

jato vazou pelos meus dedos. O segundo jato foi diretamente contra a porta, porque ela ainda estava

fechada. No meu estômago havia tequila, vinho e batata frita. O vinho tingiu tudo de rosa, e os outros

convidados da festa vieram até mim. A aniversariante e uma amiga dela chegaram para socorrer a

porta. O anfitrião trouxe um rolo de papel toalha. Não vi quem saiu do banheiro, porque subitamente a

porta estava aberta. A aniversariante e a amiga se ajoelharam na minha frente e, de quatro,

começaram a passar o papel toalha sobre chão e a porta do banheiro. Eu fiquei lá olhando e achando

tudo muito esquisito. Será que elas eram pacientes dos pais do meu anfitrião? Tomei coragem e me
ofereci para ajudar na limpeza. Minha ajuda foi recusada de maneira muito gentil. Eu insisti mais duas

vezes, inutilmente. Bati então em retirada e voltei para o sofá. Eu me sentia uma uva que já estava

chupada.

Pouco tempo depois saímos do apartamento para finalmente irmos ao bar. Durante o trajeto eu

pensei em uma série de coisas muito importantes: pensei nas meninas de quatro; depois pensei em um

homem que vi outro dia, inteiro vestido de Oakley, será que ela frequentava algum psicanalista?

Calculei enfim quais de nós que ali estávamos poderia fazer parte do exército de pacientes perigosos

dos pais do meu anfitrião Se eu não conhecesse a Carol, suspeitaria dela. A mais perigosa de todas as

pacientes. Ela com certeza caçaria os pais psicanalistas como o Exterminador do Futuro líquido.

Andamos umas onze quadras até chegarmos ao bar. Parecia um lugar muito atrativo, mas parte de nós

não entrou. Em vez de entrar, sentei na sarjeta, abraçando meus joelhos, como um menininho.

Uma noite no bar.

Não imaginei que iria ao bar ontem, nem que veria Bernardo ser possuído na frente de todo

mundo. Mas eu fui, e eu vi. Pode ser que ele já estivesse possuído antes de chegar no bar, antes

mesmo de chegar em casa, de malas cheias, na noite anterior. Fui convidado para comemorar não sei o

quê. Comigo foi a Carol e mais algumas pessoas.

Eu estava na faculdade antes de ir ao bar, fofocando com um colega sobre o grande evento da

semana: um menino amigo nosso, em uma festa, após uma série de conversas desastrosas, arremessou

uma bituca de cigarro meio acesa, meio apagada, no rosto de uma menina. Este ato de violência,

mesmo que pequeno, criou ondas que reverberaram sem descanso sobre nosso círculo de amigos por

dias a fio. Não se falava de outra coisa, mesmo entre aqueles que não conheciam nenhuma das partes

envolvidas. Carol me telefonou com a notícia e me orientou sobre onde encontrá-la. Fomos para o bar
em grupo: Eu, Carol, Clara, Felipe e Estéfano. Bernardo, a estrela brilhante de minha noite, viria só

mais tarde. Ele estava em casa, na minha casa. Passou a tarde toda sozinha, talvez se preparando para

o espetáculo que daria.

Eu não o via há dois anos, devido à interrupção das atividades do curso durante o período da

pandemia. Nesse meio tempo, suspeito que algo mudou em seu coraçãozinho. No dia em que ele

chegou eu o encontrei na faculdade pela manhã, pois era minha tarefa acompanhá-lo até que o

expediente artístico da Carol estivesse terminado. Nós colocamos o papo em dia e eu o levei para

conhecer os novos estudantes do curso de artes. Ele entrou no curso no mesmo ano que a Carol, o

Estéfano e a Clara. Era um sucesso entre as meninas e os meninos; todos achavam alguma coisa dele:

um querido, um mistério, um gostoso, uma pessoa iluminada. E de fato, todos nós tínhamos motivos

para assim achar: ele era calado, mas sem parecer casmurro, o que valorizava muito os momentos em

que ele falava, criando este ar de mistério ao redor dele. Em sua classe, todos, em alguma medida,

gostavam dele, especulavam sobre o que ele fazia, de que ele gostava, se ele era solteiro ou não,

coisas sobre as quais ele nunca deu um pio. O ar de pessoa iluminada se originava da postura

contemplativa que ele assumia nos momentos em que falava: falava devagar, nunca parecia estar

incomodado com nada, e, mesmo quando estava, se comportava de forma afável, como se estivesse

dizendo “vem cá me dar um abraço, está tudo bem, eu te perdoo”.

Encontramos com velhos colegas dele, eu o apresentei para algumas pessoas e depois fomos para a

faculdade de filosofia e a Carol se juntou a nós em seguida. O assunto, lá, era evidentemente a

ocorrência da “bitucada”. Tudo havia acontecido anteontem e os ânimos entre os meninos envolvidos

na briga estavam acirradíssimos. Havia em curso uma guerra de versões porque ninguém

verdadeiramente sabia se a bituca estava apagada ou acesa na hora em que foi arremessada. Como

nem eu nem a Carol presenciamos o acontecimento, que se passou em um bar de karaokê no centro de

São Paulo, para nós, estas informações eram como peças de um quebra-cabeça. Nos encontramos com
um dos envolvidos e, com jeitinho, fomos recolhendo informações. A bituca estava apagada, ele nos

disse. Nós não acreditamos, pois foi ele quem a arremessou. O motivo do arremesso? Ele foi

provocado por ser oriental! A menina que o provocou também era oriental, o que tornava a versão

dele muito duvidosa, mas nem por isso menos interessante. O Bernardo estava ao nosso lado,

ouvindo, em consagrado silêncio. Em seguida às conversas da noite, decidimos ir para casa.

No caminho, também como era de se esperar, ele comentou o que ele ouviu de toda a novela da

bituca. Como poderíamos nós viver ao redor desse tipo de gente? Gente que arremessa bitucas uns nos

outros. Pior, que com um jeito todo descolado, ainda reencena o arremesso quando o pedem para

tanto. Isto não é vida, ele dizia, é muita confusão, muito drama e muita briga por bobagem. Eu e a

Carol ríamos gostoso, pois achamos a reação completamente adequada. Ele tinha um ponto, porém,

destes de que ninguém deveria rir: estas brigas e dramas fazem parte de um estilo de vida que afasta o

indivíduo da verdadeira fruição das coisas e das pessoas. Um ponto importante, sem dúvidas, do qual

eu completamente discordo. Sem briga não há vida. Não há vida nem para quem está brigando, nem

para quem gosta de espiar e, acima de tudo, não há vida para os fofoqueiros, que precisam da briga

como o peixe precisa da água.

Chegando em casa, Bernardo tirou um garrafão de conhaque da mochila e começou a beber.

Nós estávamos no meu quarto, eu na cadeira e o Bernardo na cama. Ele falava de Minas Gerais, da

namorada dele, e, principalmente, do ex namorado da namorada dele. Na verdade ele mal falava da

namorada. O que importava era o ex. Ele compunha música. Escrevia livros. Era um homem mais

velho, atormentado, cheio de tatuagens. Bernardo o adorava. Todo o resto das pessoas que ele

conhecia não eram nada perto deste homem. Bernardo as odiava. Odiava também as pessoas que

conheceu em São Paulo. Fazia pouco caso de retornar à faculdade. A esta altura, ele estava muito

bêbado. Suas sobrancelhas eram grossas e estavam cerradas, deixando ele com um aspecto de quem

sente um ódio desvairado. Era o que ele estava sentindo quando começou a falar das meninas da
faculdade. O único motivo que ele encontrou para retornar seria para fazer um estrago entre elas. Um

estrago emocional.

De qualquer forma, ontem estávamos todos no bar. Conversávamos amenidades atrás de

amenidades. A noite até então transcorria tranquila. Felipe foi embora bem cedo, porque é o que ele

sempre faz. Bernardo chegou um pouco mais tarde. Após umas cervejas, Bernardo decidiu partir para

as doses de cachaça. Ele virou a primeira dose em um gole só. Ele estava agitado e eu percebia a

beligerância reprimida toda vez que seu tom de voz subia de forma abrupta. “Então você quer virar

artista?! Quer viver de arte?!” ele perguntava aos gritos para um amigo nosso, também à mesa.

Conforme os copos iam sendo virados, mais nervoso ele ia ficando, e mais ele ia sugando toda a

atenção da mesa. Estéfano tinha passado o tempo distraído com uma menina, mas a menina tinha ido

embora, deixando ele isolado numa extremidade da mesa, sem conseguir nem ouvir, nem falar direito.

Eu sugeri que trocássemos de lugar, o que de fato fizemos. É verdade que aquele cantinho de mesa

era isolado, mas eu não me incomodei. Fiquei olhando as pessoas e elas eram só gestos e sons que eu

não conseguia discernir. Há momentos em que a gente precisa descansar, e isso significa não entender

mais nada do que os outros estão falando.

Carol começou uma conversa sobre os dramas conjugais do Bernardo, pois era óbvio que

alguma coisa estava acontecendo. Fui chamado a opinar: o tema da conversa era “ela quer devoção

total mas eu não me aguento e mando mensagens esquisitas para outras garotas.” O Estéfano estava ao

nosso lado, até então, só ouvindo. Ele começou, por não ter se enfiado na conversa das outras pessoas,

uma conversa comigo, em paralelo àquela que a Carol e o Bernardo estavam tendo. Nós estávamos,

entretanto, dispostos sobre a mesa em forma de X. As coisas ditas se interpunham de forma que

minha conversa com ele prejudicava a conversa do Bernardo e vice-versa. Em dado momento, a

Carol, distraída pela conversa paralela, me perguntou de que o Estéfano estava falando. Bernardo

resmungou então: “O Estéfano só fala merda” e depois gritou “Estéfano, você só fala merda!”. Antes
mesmo de eu começar a sentir vergonha pela situação, o Bernardo abraçou o Estéfano pelo pescoço e

repetiu: “Você só fala merda. Você é insuportável, sabia? Escuta: você é a pessoa mais neurótica que

eu já conheci.”

O silêncio na mesa foi total. Eu decidi que era hora de fugir. Levantei-me e fui até o banheiro.

Chegando lá, sentei-me no vaso sanitário e fiquei olhando para o rolo de papel higiênico. Rasguei um

pedaço de papel e comecei lentamente a cortá-lo em pedacinhos cada vez menores. Era possível que a

situação escalasse. O que será que estava acontecendo na caixola do Bernardo? Picotei o papel o

quanto pude e então decidi voltar à mesa, pois o pior já deveria ter passado. Cheguei e desta vez era o

Bernardo quem estava na extremidade da mesa, ao lado da Carol. Ele continuava pedindo doses de

cachaça. A Carol advertiu que ele não aguentaria mais uma dose, mas ele virou mesmo assim. Foi a

última. Imediatamente após virá-la ele vomitou a dose de volta para o copo. Também vomitou no

próprio cabelo. E vomitou sobre a mesa. E sobre cadeira. Depois disso ele se largou igual a um

boneco de pano. Um minuto e ele começou a se jogar por cima da Carol, que tentava afastá-lo e

limpá-lo ao mesmo tempo. Ele estava babando e tinha espuma de cerveja no cabelo. O Estéfano

tentava confusamente conversar comigo, mas eu não entendia o que ele estava dizendo. A surpresa

foi demais pra ele. Eu tentava colocar a conversa nos trilhos, inutilmente. O Bernardo gritou para o

Estéfano que ele calasse a boca, pois Bernardo ainda estava ouvindo ele falar. Aí, completamente

doido, ele começou a propositalmente se jogar para trás com a cadeira. A Carol tentou segurá-lo, e

pediu minha ajuda. Eu falei “solta, ué” e ela soltou. O Bernardo, no segundo antes de cair, arregalou

os olhos. Ele caiu de cabeça e começou a voluntariamente rolar e rastejar pela calçada. Enquanto ele

rolava eu coloquei a cadeira de volta no lugar. As meninas da mesa ao lado estavam tapando a boca

com as mãos, e os garçons estavam quietos, observando a cena.

Bernardo, ainda no chão, na tentativa de dar uma cambalhota, acertou uma mesa de espera com

os pés e a derrubou no meio da rua. Eu consegui salvar o balde de litrão que estava sobre ela e o levei
para dentro do bar. Todos os funcionários me fuzilaram com os olhos, cheios de desgosto. Sorri para

eles um sorrisão vitorioso e disse: “olha só, eu salvei o balde”. Voltei correndo para a mesa e o

Bernardo jogou uma garrafinha de água em mim. Um amigo nosso veio até nós para nos ajudar com a

situação. O Bernardo, porém, se agarrou a ele e não quis mais soltá-lo. Ele resmungava, enquanto

estava empoleirado no pescoço do rapaz, que o amor e o ódio eram feitos da mesma substância. A

Carol se aproximou de mim e disse “você vai ter que resolver isso daí”. Nessa hora eu soube: Virei o

zelador da mente perturbada do Bernardo. Eu era o gerente de McDonalds do castelo das emoções.

Primeiro resgatei nosso amigo, que olhava pra mim suplicava pelo meu nome enquanto o Bernardo

tentava estrangulá-lo. Separei os dois e percebi que apesar do Bernardo ser bem mais alto que eu, ele

era muito leve e fácil de manusear. Sentei ele direitinho na cadeira, mas ele se levantou e foi sentar

junto ao Estéfano. Aí começaram de novo a bater boca. O Bernardo tentou arrastá-lo para debaixo da

mesa, que começou a se chacoalhar todinha. As moças da mesa ao lado continuavam boquiabertas,

como estátuas, desde que a situação havia começado.

Era hora de fechar a conta, pois a situação estava insustentável. Um dos garçons chegou com a

comanda: Duzentos e quarenta e cinco reais divididos; um lanche de trinta reais; outro de quinze reais;

dez cervejas, ou onze, no valor de quinze reais cada; sete, ou oito doses de cachaça Salinas, no valor

de doze reais cada; mais a taxa de serviço. Parte da mesa pagou diligentemente. O Bernardo e o

Estéfano continuavam a gritar um com o outro, ambos bêbados. O Bernardo berrava “eu tenho o

poder para destruir a sua vida, eu posso mesmo destruir sua vida.” Ambos tentaram me ignorar. Não

deixei: bati na mesa e gritei para que eles pagassem logo. Ao mesmo tempo, eu tentava acalmar o

garçom, que estava visivelmente revoltado com as suas condições de trabalho. Demorou, mas ambos

pagaram, e nós, em silêncio, deixamos o bar.No caminho de volta Bernardo ficou quieto. E, já na

estação de ônibus, começou a gargalhar sozinho.


Pássaros

Ontem o Nery me perguntou se eu nunca, às vezes, sei lá, senti a vontade de chutar um pássaro.

Perguntei se ele tinha ficado doido e a conversa ficou por isso mesmo.

A outra festa do centro acadêmico

Já era tarde da noite e eu não tinha mais como voltar atrás. Eu estava com a Carol em uma festa

do centro acadêmico. A festa era dividida em duas partes, uma interna e uma externa. A parte de

dentro era uma garagem enorme. A de fora, um jardim, que estava cheio de todo tipo de gente.

Enquanto estávamos na garagem, aconteceu uma briga generalizada. Uns meninos do centro

acadêmico estavam brigando com o Carlos Henrique. Eu e a Carol entramos no meio da briga,

organizamos as pessoas e começamos a nos revezar em espancar Carlos. Quando chegou a minha vez,

levei ele até um canto de parede e o cobri inteirinho de joelhadas. Espanquei ele até seu rosto ficar

completamente amassado. Ele não sangrou uma gota, porém, porque era de borracha. Quando a última

pessoa da fila terminou de espancá-lo, cada um seguiu seu caminho e voltou a curtir a festa.

Um velhinho que estava na festa veio me abordar. Ele tinha um enorme bigode, era baixinho, e

se parecia muito com o gaúcho da copa do mundo de 2014. Ele se aproximou e disse no meu ouvido:

“eu amo muito você, mas hoje você vai morrer”. Então ele sacou uma pistola Chiappa calibre 22 e

atirou em mim à queima-roupa. Então eu disse a ele: “nós ainda nos veremos mais uma vez”. Depois

não consigo dizer mais nada, pois perdi completamente a minha voz. O buraco do projétil em meu

corpo começou a doer. Senti saudades do pedaço de tecido que perdi. Só sentia dor nas bordas do

buraco. Era hora de pedir socorro, pensei. Como não conseguia mais falar, saquei meu telefone e

escrevi na tela para que chamassem uma ambulância. Mostrei o telefone para as pessoas ao meu redor.
Enquanto eu esperava a ambulância, eu era perfeitamente capaz de discernir o lado direito do lado

esquerdo do meu corpo.

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