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O poder das palavras

A interpretação que damos às palavras que ouvimos é crucial. Por vezes, pode levar a mal-
entendidos. Pensemos, por exemplo, nas confusões decorrentes de algumas trocas de
mensagens.
As palavras possuem um forte impacto sobre as nossas emoções. Nessa sequência podem
desencadear determinadas reações, fazer tomar determinadas decisões, e por vezes, até levar
a mudar o curso da nossa vida.
Pensemos nas palavras de encorajamento como motivam e dão força para andar para a
frente, nas palavras de conforto que consolam e suscitam um sentimento de segurança, nas
palavras de amor que enchem a alma, ou por outro lado, as palavras de escárnio que magoam,
as de ameaça que provocam medo e recuos, os insultos que suscitam zanga e destroem os
vínculos.
Parte inferior do formulário
Quantas pessoas relatam que ouviram determinada coisa de alguém e aquilo o fez avançar ou
recuar completamente em dado momento da sua vida. Uma palavra ou uma frase que ecoa,
ressoa e provoca no outro pensamentos em série.
Também dá-se o caso de serem guardadas palavras que se repescam em algumas ocasiões.
Estão no canto da memória, e de tempos a tempos, são evocadas. Enquanto adultos
lembramo-nos de palavras da infância, que a mãe, o pai, a avó, o avô diziam. E como ficam
gravados tais dogmas e colados à pele psíquica! Ecoam como baluartes e funcionam como
mandamentos conduzindo nossos valores e escolhas ao longo de vida. De forma consciente
e/ou inconsciente.
A interpretação que damos às palavras que ouvimos é crucial. Por vezes, pode levar a mal-
entendidos. Pensemos, por exemplo, nas confusões decorrentes de algumas trocas de
mensagens. A confusão que se gera pelo modo como ouvimos, à nossa maneira, e
depreendemos um sentido diferente daquele que as proferiu. Também a carga que damos a
certas palavras pode deturpar o entendimento das mesmas quando usadas entre
interlocutores que atribuem diferentes ressonâncias ao sentido latente dos adjectivos.
Adensam os alvoroços comunicacionais quando assentes em jogos metafóricos. Se, para
alguns bons entendedores meias palavras bastam, para outros, poucas ou muitas palavras
causam imenso ruído e rumor.
Como é bom quando encontramos alguém que fale a nossa língua. Que entenda o idioma do
nosso sentir semântico. A base desse entendimento trará profícuos diálogos. Acrescentará a
compreensão mútua e a ligação empática.
Nem sempre temos atenção com as palavras que usamos para nos expressar. Não temos de
adoptar uma postura hipervigilante e pouco espontânea mas devemos considerar, em alguns
contextos, o impacto que podem ter nos nossos ouvintes. Pensar antes de falar é prudente
sobretudo por isto. Ter esta noção é relevante para cuidar dos outros com devido respeito.
Não é necessário pactuarmos de palavras concordantes, mas considerar que aquilo que
dizemos tem poder e afecta certamente o receptor.
Não há propriamente boas nem más palavras. Há bons e maus entendimentos. Claras e
imprecisas percepções. Abertos e fechados diálogos. Boas e más conversas. Proveitosas e
desgastantes relações.
https://observador.pt/opiniao/o-poder-das-palavras/
(PODCAST)Valter Hugo Mãe:
"Encontrei nas palavras um
instrumento poderoso"
Fascinado pelas palavras desde criança, o autor regressa à
infância em "Contra Mim". Diz que talvez tenha sido criança
demasiado tempo e que a escrita começou como uma forma de
colecionar palavras.

As palavras certas das pessoas simples

A linguagem importa. E a linguagem da verdade é diferente da linguagem


da mentira. Compare-se com a linguagem de Putin e Lavrov. Quem mente
por regra pode, por definição, dizer tudo.
05 mai 2022, 00:1954

Desde que começou a guerra que me é impossível, ao ver


televisão, não ouvir até ao fim as palavras que os refugiados
ucranianos, na sua inenarrável derrelicção, contra o pano de
fundo de uma paisagem de escombros e negrura maléfica, nos
dizem sobre a sua situação. Não é que não me apeteça mudar de
canal – é até quase uma necessidade vital –, mas obrigo-me a
assistir a tudo, por uma espécie de respeito pelo sofrimento
alheio. Um sofrimento de um tipo particular: não o sofrimento
provocado pela doença ou por uma catástrofe natural – não teria
a mesma reacção nestes casos –, mas aquele suscitado pela acção
perversa de outros seres humanos. E não de nenhum indivíduo
anónimo particular, agindo por conta própria – mais uma vez,
aqui sentir-me-ia livre para passar a outra coisa –, mas de um
indivíduo que mobiliza a acção colectiva de um Estado que
concentra toda a sua força na aniquilação de um povo e de uma
nação.

E uma coisa que me surpreende muitas vezes nas palavras dessas


pessoas, às quais presto toda a atenção que posso, é o acerto na
descrição da situação em que elas se viram, de um momento para
o outro, mergulhadas. Compreenderam, subitamente, que tudo é
possível, e exprimem essa avassaladora compreensão sem ceder
por um só instante àquilo que Tocqueville designou um dia por
“sensibilidade demonstrativa”, uma exibição convencional e quase
ritual da profundidade do sofrimento próprio. Não: são palavras
quase sempre breves que dizem da forma mais simples e verídica
que se pode imaginar, com plena evidência, o sem-sentido que se
apossou da sua vida individual.

Quando, por exemplo, nos falam da inexplicabilidade última do


mal. Uma mulher, chegada a Zaporíjia, vinda dos túneis da
fábrica de Azovstal (enquanto escrevo, a barbárie ataca em força
os que ainda lá ficaram), depois de relatar a destruição pelos
russos do exterior do edifício, que, passados dois meses no
interior, vira pela primeira vez, perguntava-se sobre a guerra de
Putin: “O que é que é preciso ter na cabeça para ter essa ideia?”. É
uma questão aparentemente anódina, que qualquer pessoa se
pode colocar no mais banal dia-a-dia a propósito de coisas que lhe
são indiferentes. Mas ali ela exprime o problema essencial do
sem-sentido que a destruição da vida por uma decisão humana
nos coloca. O que é que Putin “tem dentro da cabeça” para “ter a
ideia” desta guerra? No fundo, é a questão que não paramos de
nos colocar, só que ali posta num contexto que a torna a questão
evidente, dada a radicalidade da situação na qual se encontra
quem faz a pergunta.

A linguagem importa. E a linguagem da verdade é diferente da


linguagem da mentira. Compare-se com a linguagem de Putin e
Lavrov. Querem “desnazificar” a Ucrânia. Querem “libertar o
mundo da influência do Ocidente”. Acusam os judeus de anti-
semitismo. O próprio Hitler seria judeu, o que tornaria verosímil
que Zelensky fosse nazi. Os exemplos desta linguagem não se
contam. Um fio condutor os une: a regra da mentira. A forma da
mentira é a única coisa que “têm na cabeça”. Quem mente por
regra pode, por definição, dizer tudo. Se amanhã disserem que
Abel matou Caim não será surpreendente. Tudo, de facto, é
possível.

Esta atitude supõe um particular descomprometimento da


linguagem face à verdade, típica dos regimes autocráticos e
totalitários. O mínimo que se pode dizer é que não há aqui
vestígio da busca da verdade que encontramos nos diálogos
socráticos. O que, bem vistas as coisas, tem talvez uma explicação
que, embora marginal, deve ser tida em conta. A literatura e a
música (e até, embora muito menos, a pintura) que a Rússia nos
legou são para todos fundamentais: não seríamos o que somos
sem elas. E a filosofia? Contrariamente ao que se passa com a
Alemanha, a Grã-Bretanha, a França, a Itália e os Estados Unidos,
para citar os exemplos maiores, ou a Índia e a China, não há
qualquer filosofia russa que seja fundamental. Pode-se
perfeitamente escrever uma história da filosofia sem mencionar
um só autor russo. Não pretendo que a filosofia nos imunize
contra a mentira totalitária: há demasiados contra-exemplos para
que uma tal proposição seja plausível. Mas certamente que a
filosofia – pelo menos aquela que, como na tradição greco-
ocidental, se encontra na origem ligada ao nascimento da
democracia – nos protege um pouco da mentira, ou pelo menos
nos ajuda a dela recuperar.

Deixemos, no entanto, a Rússia de lado e pensemos nos delirantes


de cá. O PC, com a sua denúncia do “neo-nazismo” reinante na
Ucrânia, partilha, por velho contágio mimético, os hábitos de
pensamento de que Putin é, à sua maneira, o herdeiro. Ouvir um
comunista é ouvir uma máquina de palavras – a célebre “cassete”
– cujo contacto com a realidade é puramente acidental. Até a
maníaca repetição de fórmulas sublinha esse lado maquinal. E as
máquinas de palavras são indiferentes à verdade. Como são
indiferentes à verdade os conspiracionistas sortidos, de esquerda
ou de direita, que vêem na invasão da Ucrânia a resposta justa e
inevitável a uma urdidura dos Estados Unidos e dos seus velhos
aliados britânicos, que arrastariam consigo a União Europeia. Os
conspiracionistas são, em geral, analfabetos que confundem uma
desconfiança originada pelo que se chama “egoísmo lógico” com
uma forma de cepticismo. Dito de outra maneira: recusam-se a
acreditar no que o comum acredita porque isso os faz sentir
intimamente detentores de uma verdade oculta que não está ao
alcance da maioria. Também a estes a mentira os atrai como uma
luz inesperada e lhes faz descobrir um mundo de possibilidades
infinitas que o banal respeito pela verdade infalivelmente
restringiria.

Por tudo isto, vale a pena ouvir com atenção as palavras certas
das pessoas simples que nos falam da sua história e do seu
sofrimento nestes tempos terríveis. Por respeito para com elas – e
também para, graças a elas, nos protegermos do apreço pela
mentira que as máquinas de palavras comunistas e o egoísmo
lógico dos conspiracionistas manifestam todos os dias.

PS. A propósito do Presidente da Câmara de Setúbal, André


Martins – chegado a “Os Verdes” vindo, suponho, do PCP – e da
sua relação com o senhor Igor Khashin, suspeito de funcionar
como espião russo, colocou-se-me uma questão quase metafísica:
o que levará uma pessoa a desejar ser um “verde”? Uma súbita
epifania? Um doce enlevo da alma? A descoberta de que só a
natureza é comunista? A convicção de que “Os Verdes” possuem
um projecto de sociedade que em nenhum outro lugar se
encontra? Uma irreprimível dissidência – que horror! – com o
PCP? É um tema fascinante, embora ligeiramente bizantino, para
o qual prometo ainda descobrir uma boa resposta.

https://observador.pt/opiniao/as-palavras-certas-das-pessoas-
simples/

A batalha
Lembrando Aljubarrota, lembremos também o que a falta de sensibilidade à
História e à memória, a desatenção ao povo e a aceitação passiva da
“legitimidade reinante” podem trazer.
27 ago 2021, 00:1250
Toda a gente sabe que as identidades nacionais não são graníticas
nem estão fechadas a interpretações e a reinterpretações; mas
ninguém parece saber, ou querer saber, que o processo que está
em curso não é a sua “reinterpretação”: é a sua estratégica
desconstrução e diluição num tolerante todo transnacional,
mediante o contrito cancelamento de um “passado de opressão e
violência”. Ora, daqui, poderá vir tudo menos a anunciada
“libertação do jugo das pertenças” e a insinuada paz na Terra
entre “a população” de boa vontade.

Num tempo de leviandade e ignorância em que, em nome de


grandes e fluidos princípios humanitários, se faz uma guerra
silenciosa mas impiedosa à História e às identidades nacionais –
um tempo particularmente permeável à ilusão de que as
declarações universais das Nações Unidas ou o crescente rol de
direitos da União Europeia são mais importantes para a defesa
das liberdades e dos interesses dos cidadãos do que a
independência das nações – a memória da História, da nossa
História tornou-se num bem essencial.

Conhecer, reconhecer, recordar, os momentos de nascimento, de


risco e de consolidação da nossa independência não será, por isso,
um exercício fútil.
Para nós, Portugueses, Aljubarrota é um desses momentos
fundacionais, um momento de risco e de consolidação do que
somos, ou do que também somos e também nos determina. Ou do
que não quisemos então ser.

Nos finais do século XIV, com a independência em risco depois da


morte de D. Fernando, o momento era de crise.

Como quase todas as crises de poder medievais, a crise de 1383-


1385 começava por ser uma crise de legitimidade e de sucessão
dinástica. D. Fernando não tinha herdeiro varão, mas tinha, do
seu casamento com Leonor Teles, uma filha, D. Beatriz, prometida
ao rei de Castela, D. João I. O Tratado de Salvaterra de Magos, de 2
de Abril de 1383, ratificava a promessa e, numa série de cláusulas
conformes com correcção político-jurídica do tempo, entregava
Portugal a Castela.

E recomeçou a guerra entre Portugal e Castela, embora a guerra


quase fosse o estado natural das coisas entre os Estados
medievais e, dentro deles, entre feudos e clãs. A guerra que então
começava era também um episódio da Guerra dos Cem Anos,
entre franceses e ingleses, e nela também pesava a divisão da
Igreja, com um Papa em Roma e outro em Avinhão.

No reinado de D. Fernando, as guerras com Castela tinham sido


sucessivas e a terceira correra mal para Portugal; daí o Tratado
de Salvaterra – uma tentativa de reequilíbrio, negociada na mó de
baixo. D. Fernando morre em Outubro de 1383, pouco depois do
Tratado, e Leonor Teles, a viúva, fica regente.

O Conde de Andeiro, principal conselheiro da Rainha-Regente e


pró-castelhano, é então morto por D. João, Mestre de Aviz, e por
outros patriotas. D. João de Castela volta a invadir Portugal em
1384 e Nun’Álvares derrota os castelhanos nos Atoleiros. E em
1385, nas segundas Cortes de Coimbra, João das Regras, depois de
demonstrar a ilegitimidade de todos os pretendentes – D. João de
Castela, os Infantes D. João e D. Dinis, filhos de D. Pedro e Dona
Inês de Castro, e D. João Mestre de Avis, filho natural de D. Pedro
e de D. Teresa Lourenço –, persuade as Cortes a aclamar o Mestre,
“de Pedro único herdeiro/ Ainda que bastardo, verdadeiro” (como
depois dirá Camões). E fá-lo em nome de uma nova legitimidade
identitária, numa decisão pioneira de reivindicação proto-
nacional que se afasta do direito feudal, favorável ao Rei de
Castela, e da legitimidade reinante, que levava a grande nobreza
a apoiar Castela (aprendi com Martim de Albuquerque que em
1383-1385 a divisão das elites se dava entre os chefes das grandes
casas e os bastardos e filhos segundos).

Em Coimbra – com o apoio político e jurídico de João das Regras –


funcionou a dupla D. João Mestre de Avis/Nuno Álvares Pereira,
dupla que vai ser decisiva para a vitória. De resto, Nun’Álvares
terá também sido bastante persuasivo nas Cortes, apresentando-
se em Coimbra com um séquito de homens armados, por via das
dúvidas e dos duvidosos.

Quando o Rei de Castela vem reivindicar os seus direitos pela


força, invadindo Portugal na Primavera de 1385, esta dupla já
está consolidada. A avançada castelhana pela Beira Alta sofre a
derrota de Trancoso, mas é em Aljubarrota que tudo se joga.

Da batalha, temos os relatos de dois cronistas da época – Froissart


e Lopez de Ayala –, a Crónica do Condestabre e, algumas décadas
depois, a de Fernão Lopes. Há também cartas de D. João de
Castela a cidades de Espanha, a explicar a batalha e a derrota.
Modernamente, sobretudo à volta das “covas do lobo” e das obras
de defesa dos Portugueses, que teriam armadilhado a investida
castelhana, há uma polémica – aberta por Afonso do Paço, com os
contributos de Alcide de Oliveira, Gastão de Melo Matos, Salvador
Arnault, Nuno Valdez dos Santos e outros – que, mais tarde, João
Gouveia Monteiro veio esclarecer.

Mas o que mais aqui se destaca é a decisão de Nun’Álvares de dar


batalha, e batalha decisiva, e de para isso fazer as preparações
necessárias, que incluíam as tais disposições defensivas no
terreno. Bem pelo contrário, e como conta Ayala, do lado
castelhano dominou a arrogância, o menosprezo, ou mesmo o
desprezo, pelos Portugueses, dos orgulhosos senhores castelhanos
e dos muitos nobres portugueses passados para o lado castelhano.

E foi a batalha, com os resultados que se conhecem. Como em


outras grandes batalhas antigas (Canas, por exemplo), a decisão
foi rápida. Quebrada a linha da frente castelhana, começou a
debandada e o massacre dos vencidos.

A estratégia seguida em Aljubarrota por Nun’Álvares não era


original: tinha sido inaugurada por Eduardo III e pelos ingleses
nas batalhas de Crécy e Poitiers na Guerra dos Cem Anos e era,
fundamentalmente, uma adaptação inteligente e realista da
táctica aos recursos humanos e materiais disponíveis. Os
franceses eram mais numerosos e tinham uma cavalaria
superior. Por isso, os ingleses escolheram uma batalha a pé, com
os arqueiros a cobrir a infantaria, em posições vantajosas, e
ganharam em Crécy, em 26 de Agosto de 1346. Dez anos depois,
foi a vez do Príncipe Negro, filho de Eduardo III, vencer o rei de
França, em Poitiers.

Nun’Álvares tinha, com certeza, conhecimento destes sucessos.


Havia também uma colaboração próxima com os ingleses: as
cidades marítimas de Lisboa e Porto eram ligadas
comercialmente a Inglaterra e tinham tomado partido pelo
Mestre. De Inglaterra tinham também vindo umas centenas de
arqueiros, que alinharam em Aljubarrota e que foram decisivos.

Quando, ainda na instrução primária da “longa noite fascista”,


estudei História de Portugal, os castelhanos eram 32 mil e os
portugueses 7 mil. Depois li no Oliveira Martins que alguns desses
castelhanos eram não-combatentes – parte do imenso trem
logístico que seguia o exército e que, com a pilhagem, o abastecia
–, o que baixava o número de inimigos no terreno para uns 20
mil, enquanto o dos portugueses subia ligeiramente para cerca
dos 10 mil. Entretanto, João Gouveia Monteiro fez o estudo crítico
da “Batalha Real” e a Fundação de Aljubarrota, instituída graças a
um significativo legado de António Champalimaud, continua a
estudar e a divulgar Aljubarrota às novas gerações.

Independentemente dos números e do ineditismo da estratégia, o


mais importante, desde o início da crise, é a vontade de liberdade
e de independência dos Portugueses (estimulada pelo tratamento
que os castelhanos tinham dado ao povo nas invasões do reinado
de D. Fernando); ou o facto de essa vontade colectiva de
resistência ter sido bem interpretada, assumida, enquadrada e
guiada por uma dupla de líderes – D. João, Mestre de Avis, e Nuno
Álvares Pereira – com a assistência jurídica e institucional de João
das Regras.
Aljubarrota foi o choque da determinação portuguesa com a
ambição castelhana de unificar a Península. Ambição que, 200
anos depois, com Filipe II, triunfaria – mas que seria outra vez
vencida em 1640 e nas campanhas da Guerra da Restauração. Até
hoje.

E no entanto, há uns anos, em nome de considerações


economicistas, cancelou-se o feriado que lembra esse 1º de
Dezembro de 1640, o feriado em que se celebra ou devia celebrar
a nossa secular vontade de independência. E não foi um governo
de esquerda que o cancelou.

Lembrando hoje Aljubarrota, lembremos também que a falta de


sensibilidade à memória e à História, a falta de coragem e de
liderança e a aceitação passiva e acrítica da dependência, da
“legitimidade reinante” e da “modernidade transnacional”
costumam anteceder tudo o que é invasão, saque, ocupação,
cancelamento.

https://observador.pt/opiniao/a-batalha/

Personagens
Romance e história, através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-
nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos géneros permite-nos pôr no
devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam.

11 nov 2021, 07:1529


Há uma passagem do Ricardo II de Shakespeare que vive comigo
desde que primeiro a li. É no princípio da quinta cena, a
penúltima da peça, do acto V. Ricardo encontra-se na sua cela e
em breve será assassinado. Entretanto, vai tentando comparar a
prisão onde vive com o mundo. Mas o mundo é povoado por
homens e na sua cela ele está sozinho. É, no entanto, preciso
convocar a presença humana. E, para isso, “o meu cérebro tornar-
se-á a fêmea da minha alma; a minha alma será o pai: ambas
engendrarão uma geração de ideias constantemente produtoras e
todas essas ideias povoarão este pequeno mundo, e povoá-lo-ão
de inconsequências, como é povoado o universo; pois não há
pensamento algum que se satisfaça”.

Em circunstâncias menos trágicas, tal é a experiência do leitor,


com a diferença que o cérebro e a alma se encontram nos livros,
nos quais a procriação das ideias se oferece como espectáculo a
quem os lê. Dependendo daquilo que se poderia chamar a nossa
energia de crença, as personagens engendradas pela imaginação
do autor vão preenchendo essa particular cela que é a nossa
mente. As personagens vão saindo da noite do mundo e passamos
a viver no meio delas, como se a prisão não existisse, nem a nossa
solidão.

Ando, por razões profissionais, a reler aquelas que são talvez as


duas maiores obras de prosa do nosso século XIX, o Portugal
Contemporâneo e Os Maias. E, sem surpresa, constato mais uma
vez que as personagens do livro de Eça se imprimem na memória
de um modo muito mais claro e definido do que as de Oliveira
Martins. Não me surpreendendo, como disse, a coisa maravilha-
me. Mesmo sabendo muito bem a razão de isto ser assim: a
diferença entre os géneros literários que são o romance e a
história.
É que, no primeiro caso, as personagens são por inteiro, no que
possuem de mais relevante, uma criação do autor e os seus gestos
e intenções têm, tanto quanto possível, uma forma acabada que
não apela, para a sua compreensão inteira, a nada de exterior ao
romance, pelo menos no que ao prazer da leitura diz respeito.
Para as conhecermos integralmente, basta-nos a leitura do
próprio romance. Se se quiser, por exemplo, saber quem são João
da Ega ou Dâmaso Salcede basta-nos ler Os Maias. Não é preciso
andar a buscar noutros livros características que nos ajudem a
identificá-los. Eles estão ali inteiros, de corpo e alma.

No caso das personagens históricas, a situação não podia ser mais


diferente. Por mais efectivos que sejam o estilo, o saber e a visão
do historiador, por maior que seja o seu poder não só de
persuasão, mas de convicção, há sempre um resto que sobra, e
esse resto temos de o ir procurar noutros livros, que nos ajudarão
eventualmente a corrigir a imagem que o livro que lemos nos dá.
Em Oliveira Martins, por exemplo, D. Pedro. Será que o seu traço
dominante era a vaidade, como Oliveira Martins não se cansa de
repetir? Para as personagens do Portugal Contemporâneo, mesmo
nos casos que nos aparecem dotados de uma maior evidência,
como o de Teles Jordão e do seu filho, “o menino”, que logo se
fixam na memória, temos de confrontar Oliveira Martins com
outros historiadores, como, limitando-nos aos nossos
contemporâneos, Vasco Pulido Valente, Maria de Fátima
Bonifácio ou Rui Ramos. Mais, talvez, até nos casos em que a
caracterização de Oliveira Martins é razoavelmente unívoca – a
daqueles que escapam à sua crítica impiedosa do liberalismo:
Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Herculano e, em parte (por
causa do Frei Luís de Sousa), Garrett, quase todos “vítimas” – do
que quando – como D. Miguel ou Saldanha – ele usa de um estilo
que, para nos dar a imagem da vida, é feito de caracterizações
contraditórias, e que é, de resto, extraordinariamente conseguido.

Se isto é assim, é por uma razão simples de perceber. É que a


história conhece um abismo que o romance ignora. O abismo é o
da existência real passada. É – vale a pena usar aqui o jargão
filosófico – um abismo ontológico. Lidamos, na história, com
personagens que existiram realmente no passado, e o puro facto
dessa existência constitui um resíduo que não é nunca
inteiramente capturável pelo espírito. A “revivescência” que
Michelet procurava, e que Oliveira Marins buscava também,
deixa sempre margem para a pergunta ingénua, mas
imprescindível, porque nela se encontra a maravilha da história:
terão sido realmente assim? Uma pergunta que, obviamente, o
romance não nos convida a fazer.

A história mostra-nos incansavelmente, com um sucesso variável,


que o passado existe (não digo: existiu; digo: existe). Quando o
consegue de forma satisfatória, é um milagre maior, sobretudo
nos nossos tempos, em que tudo conspira para, por processos
frustes ou subtis, o negar mais ou menos selectivamente. No
romance não é assim. Também por uma espécie de milagre,
embora de natureza muito diversa, tudo, mesmo que o romance
lide com um tempo distante do nosso, aparece dotado da
evidência do presente. Porque o romance não conhece o abismo
que a história conhece. Não há nele qualquer existência real
passada que resista à captura do nosso espírito. Os
Maias comunicam directamente com o nosso presente, sem
necessidade de mediações ou explicações. Aristóteles, e depois
dele Schopenhauer, tinham razão em afirmar que a poesia (e é
legítimo acrescentar: o romance) é mais universal do que a
história, que se encontra presa ao contingente. Mas é preciso
acrescentar que é o contacto sempre precário com esse
contingente, esse contingente cuja existência é um enigma
perpetuamente renovado, que torna a história um dos mais
fascinantes géneros literários.

De qualquer maneira, romance e história, através dos seus tão


diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E
cada um dos géneros permite-nos pôr no devido lugar os
fantasmas carcereiros que nos gritam a reivindicar a nossa
atenção à sua dúbia existência. Por estes dias: Costa, Marcelo e
Rio. E, pondo-os no seu devido lugar, vamo-nos protegendo, na
medida do possível, do péssimo espectáculo que eles, presenças
humanas que não apetece convocar, nos dão. Não é pouco.

https://observador.pt/opiniao/personagens/

Uma visão provocatória da


identidade portuguesa
É este o nosso mal, permanecermos encerrados numa bolha silenciosa que
nos inspira a acreditar na fantasia de que em Portugal se produz a melhor
comida, os melhores atletas, os melhores escritores...

14 mar 2020, 00:1610


Em O Labirinto da Saudade (1978), obra fundamental para
entender a cultura contemporânea portuguesa, Eduardo
Lourenço identifica os portugueses como um povo passivo,
letárgico, pouco original e avesso à audácia que, de maneira a
fugir de um presente decadente, marcado por crises e catástrofes
múltiplas, passa o tempo contemplando as caravelas dos séculos
XV e XVI. O leitor de agora perguntar-se-á se o filósofo tem razão,
se os portugueses de hoje, os tais da “geração mais bem
preparada de sempre”, que trabalham na Europa e se adaptam e
estudam e falam línguas, continuam cabisbaixos e em negação
em relação a uma realidade que não lhes é generosa.
Seremos ainda um povo que oscila entre negras depressões e
exageradas euforias, entre complexos de inferioridade e esse
“benfiquismo exarcebado” que, em fátuos momentos de glória,
nos inspira a bradar que não há ninguém melhor do que nós?

Lendo Lourenço e outros intelectuais, escritores e poetas que


meditaram sobre questões ligadas à identidade portuguesa (desde
Oliveira Martins a Teixeira de Pascoaes, a lista é interminável),
ficamos com a sensação de que os portugueses têm vivido
fechados, obcecados consigo próprios, intrigados com a
implacabilidade das crises e com a incapacidade revelada por
sucessivos governantes de encontrar caminhos para a superação
da tristeza e da saudade. Para quem vive fora de Portugal e
assiste à distância às conquistas e desgraças dos lusitanos, não
custa perceber que há muito sentido nestas descrições e que
ainda hoje choramos com aquela canção melancólica e
modorrenta chamada fado. Desde o porteiro do prédio à senhora
Maria do terceiro esquerdo, ninguém hesita em bradar que “isto
vai cada vez pior”, que lá fora (na Europa, na América), longe dos
esquemas e das corrupções, é que se vive bem e em abundância.
Em Portugal, diz a mesma senhora Maria, ressentida com a vida
madrasta que levou, é só esquemas, manigâncias e
favorecimentos, e quem quiser chegar longe tem de ser primo ou
sobrinho de algum doutor. Porém, ao mesmo tempo que isto
ocorre, coitado daquele que se atreva a criticar Portugal a um
português: é imediatamente sacudido com hinos patrióticos e com
referências aos excelsos séculos de história, aos versos de
Fernando Pessoa, aos sermões de Padre António Vieira e aos
feitos heroicos dos Descobrimentos.
Subscrevendo as ideias do referido filósofo português, diria que
ter muitos séculos de história é algo que nos enche de orgulho e,
ainda que apenas momentaneamente e devido às mais estranhas
razões, nos faz esquecer as misérias do presente. Quando há uns
anos Cristiano Ronaldo ergueu um troféu em Paris, após a
selecção portuguesa de futebol ter vencido os franceses, não era
um jogador quem ali estava, mas Vasco da Gama ensinando aos
estrangeiros o significado de ser português. Quando Salvador
Sobral ganhou o festival eurovisão da canção e foi recebido entre
lágrimas e aplausos no aeroporto da Portela, quem ali estava era
Camões, Cabral e todos os heróis pátrios condensados naquele D.
Sebastião. Tudo isto quer dizer que tantas tristezas e cortes e
austeridades transformam qualquer pequena vitória numa
espécie de redescoberta do Quinto Império.

O que com este pequeno artigo pretendo afirmar é que o século


XXI, a abertura de fronteiras e os avanços na escolarização não
nos salvaram dessa tristeza aguda, desse problema de existir
pobres, fatalistas, com breves relâmpagos de euforia. Neste
império espiritual à beira-mar erguido ainda moram o atraso, o
provincianismo, a inveja e os burocratas do romance de António
Lobo Antunes que impedem que Luís de Camões retornado de
África enterre o caixão do pai. O benfiquismo exacerbado de que
fala Eduardo Lourenço é consequência de décadas de míngua e
de medo e sobrevive à custa de optimistas discursos políticos que
intentam perpetuar o marasmo. À sua maneira, cada português
tem carregado o fardo dos Descobrimentos, tem carregado a
histórica cruz de querer ser mundo sem conseguir ser europeu ou
cosmopolita ou aberto ao mundo. Saímos de Portugal sem
abandonar a aldeia, carregamos o soturno fado para Nova Iorque,
comemos bacalhau e côdeas em Queens, seguimos dizendo que
vai tudo mal, que antigamente é que era, e que se fossem todos
como nós, melhor servidos estaríamos. É este o nosso mal, não
conseguirmos ser quem deveríamos ser, não sabermos ser outros,
permanecermos encerrados numa bolha silenciosa que nos
inspira a acreditar na fantasia de que em Portugal se produz a
melhor comida, os melhores atletas, os melhores escritores, os
melhores tudo que o mundo alguma vez verá.
https://observador.pt/opiniao/uma-visao-provocatoria-da-
identidade-portuguesa/

As pedras nunca saberão o que é


o amor
A promessa feita no dia do seu matrimónio -- indissolubilidade, fidelidade e
fecundidade -- implica o desejo de manter o próprio e frágil amor dentro do
Amor absolutamente seguro e estável de Deus.

16 fev 2018, 00:0229


Acusa-se novamente a Igreja católica de ser obcecada com o sexo,
como se fosse incapaz de reconhecer o seu bem e o tentasse
denegrir. Mas nada está mais longe da verdade.

A Igreja está a falar para os seus filhos, para aqueles que sendo
batizados, decidem livremente abraçar a vocação matrimonial
como caminho para a sua felicidade, uma felicidade que se deseja
viver agora mas cuja plenitude só se alcançará na eternidade, no
encontro definitivo com Jesus Cristo, a Verdade feita carne,
resposta definitiva ao coração e desejos mais profundos do
homem. Só o Seu amor infinito e misericordioso pode sustentar o
nosso amor humano tão finito e limitado. Por mais belo e
verdadeiro que seja o amor que une um homem e uma mulher, as
fragilidades, incompreensões, desilusões, sofrimentos também
estarão presentes nessa relação.

Nesses momentos, mais do que nunca, o amor prova que está


para além das emoções. Um amor que se abre ao sacrifício. “As
pedras nunca saberão o que é o amor” canta uma canção
mexicana. Nem mesmo os animais sabem de que se trata pois
regem-se apenas pelo instinto e a sua prática sexual é uma mera
manifestação corporal. Bem diferente é a união conjugal que,
quando vivida como doação, vai muito para além do ato sexual. É
uma entrega do corpo e da alma; uma decisão de permanecer
juntos, duas liberdades que se aceitam e se comprometem para
sempre. Uma comunhão que desafia transformar dois caminhos
num só. E isto é tarefa de uma vida inteira.

Não é fácil, nem tal foi prometido alguma vez, mas sendo o
matrimónio cristão um sacramento, ele é sinal de um Outro —
Jesus Cristo — que estando presente, sustenta a promessa dos
esposos. Uma presença oferecida primordialmente na Eucaristia,
no mistério do Seu profundo amor pela humanidade. Esforçar-se
por viver o matrimónio sem o reconhecer como sinal visível do
amor de Cristo pela sua Igreja, é reduzir essa aliança sacramental
a um contrato, é pretender amar com meras capacidades
humanas, transformando o matrimónio num ideal belo, mas só
realizável para alguns virtuosos.

E por essa razão a Igreja sempre apelou a que os casais unidos no


sacramento do matrimónio se sustentassem na Eucaristia. A
Eucaristia não como um prémio para os bons, antes um remédio
de imortalidade que eleva o amor conjugal à graça de redenção.
Os dois cônjuges unidos ao amor de Cristo, sabem que existe uma
fidelidade maior, para a qual se dirigem, e que se revela e
intervém permanentemente na sua história conjugal. A promessa
feita no dia do seu matrimónio — indissolubilidade, fidelidade e
fecundidade — implica o desejo de manter o próprio e frágil amor
dentro do Amor absolutamente seguro e estável de Deus.

Se por alguma razão um dos cônjuges for infiel ao seu


compromisso e a relação acabar em separação, a certeza da
fidelidade inequívoca de Jesus Cristo a cada um dos cônjuges deve
animá-lo a manter-se fiel ao amor de Deus, continuando a ser
alimentado por Ele na Eucaristia. Querer procurar outro parceiro
para abafar a sua dor e solidão, em vez de recorrer Àquele que
deseja plenamente manter-se ao Seu lado é responder com
infidelidade à infidelidade de que foi vitima. É sair da comunhão
desse amor divino. Não é que Jesus Cristo o abandone, pois tal
nunca acontecerá, mas é o próprio que relega Deus para um
segundo lugar não cumprindo o primeiro mandamento de “amar
a Deus sobre todas as coisas”. É adulterar a sua relação com Deus
substituindo o amor incondicional de Jesus Cristo por um amor
humano que preencha a carência afetiva. Mas esse amor
humano, que em tudo pretende ser como o sacramental, na
realidade não o é, e o ato sexual que une o homem e a mulher não
é comunhão do corpo e da alma nem sinal do amor indissolúvel
de Cristo pela sua Igreja.

Quando a Igreja recomenda aos seus filhos divorciados que


contraíram um casamento civil a absterem-se de relações sexuais
se desejarem receber os sacramentos, não está a pretender
castigar os menos afortunados, nem muito menos pedir-lhes o
impossível, antes está a afirmar que essa união não é expressão
verdadeira do amor cristão. A Igreja não está a propor essa
exigência contando meramente com as forças humanas do casal:
pela oração e sacramentos é possível redescobrir que o amor a
Jesus Cristo garante muito mais a felicidade do que qualquer
amor que se afaste de Deus. Sem os olhos da fé, tal não se
compreende. Sem uma experiência de Cristo, nem os próprios
homens saberão o que é o amor. Não são somente as pedras que
desconhecem esse amor.

Adequ

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