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Hallhane Machado
Introdução
O início do século XX, como se sabe, foi um período turbulento para diversas áreas do
saber. Depois que se viu destruir a soberania da geometria euclidiana, que se questionou os
fundamentos das matemáticas, viu-se ainda desmoronar a física newtoniana e surgir teorias
muito peculiares como as geometrias não-euclidianas, a teoria da relatividade de Einstein, da
mecânica quântica de Heisenberg. Viu-se surgir “pensamentos espantosos,” como caracteriza
Bachelard. Pela quantidade e amplitude dos abalos sofridos pelos diversos domínios do
conhecimento, a própria razão foi colocada em questão. No meio filosófico francês, a palavra
“crise” havia se tornado tão comum que Brunschvicg demandava uma especificação sobre qual
crise seus contemporâneos se referiam quando se punham a discorrer sobre o tema.
Nos anos 1930, o contemporâneo de Brunschvicg, o interessado nas discussões
epistemológicas e herdeiro da postura filosófica de Comte, caracterizada pelo apego à história
das ciências, testemunhava outros dois acontecimentos singulares. Assistia a recepção de um
movimento filosófico muito distinto, o Círculo de Viena, para o qual aquele lugar central da
história das ciências era ocupado pela lógica. Ele assistia também o surgimento de duas posturas
filosóficas, formuladas por autores de seu mesmo contexto intelectual, que transformavam
completamente o estatuto da história no interior das reflexões sobre as ciências. Trata-se do
surgimento de uma epistemologia histórica de Gaston Bachelard e uma história filosófica de
Alexandre Koyré. Este trabalho tem como objetivo analisar a hipótese de que a recepção
francesa do Círculo de Viena e o surgimento das posturas filosóficas bachelardiana e koyreana
são frutos de uma mesma preocupação: o problema das crises da razão. As teses do Movimento
austríaco foram vistas – o que entende-se facilmente atendando-se para seu Manifesto – como
uma proposta de solução para tal problema. Isso explica os dois congressos realizados em Paris,
em 1935 e em 1937, a publicação das traduções de obras célebres dos integrantes do
Movimento, de resenhas, de comentários, explica o espaço dado pelas revistas e por instituições
1
O trabalho exposto aqui apresenta frutos de uma pesquisa de mestrado, realizada de 2014 a 2016, na Universidade
Federal de Goiás, apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
importantes do contexto intelectual da França. Por outro lado, as concepções de Bachelard e
Koyré transformavam a história, outrora considerada como um método imprescindível de
análise da razão, como um estado no qual esta sempre permaneceu. Assim, as crises eram
explicadas como momentos de destruição e construção dos conceitos e teorias científicas,
processo comum, onde não se testemunhava uma ruína da razão, mas sua mais intensa
manifestação, pois constituía o momento em que ela renovava as próprias bases que a
sustentavam. No momento em que observaram, analisaram e viram que não se podia admitir a
proposta do Círculo de Viena de solução para o problema das crises, Bachelard e Koyré, ao
formular outra concepção de razão e dar à história um novo estatuto, formularam outra resposta
ao problema, distinta daquela vienense em seu conteúdo, mas semelhante em sua radicalidade.
2
Para uma exposição minuciosa das crises susceptíveis de serem apontadas na primeira metade do século XX, ver
GATTINARA, Enrico Castelli. “L’idée de la synthèse: Henri Berr et les crises du savoir dans la première moitié
du XXe siècle.” Revue de Synthèse, Paris, 1996, p. 23- 25.
reflexão é histórica, essa história é crítica, e essa história é igualmente uma história da
racionalidade.”3 A filiação dessa perspectiva também é outro lugar comum. É, como se sabe,
remetida a Auguste Comte. Brèhier, em uma sessão da Société française de philosophie, de
1934, já admitia isso. Ele aponta Comte como o precursor da ideia de que existe uma história
das ciências, existe, efetivamente, uma história da razão.
Era de se esperar, seguindo essas considerações apenas, uma postura que poderíamos
descrever a partir de dois aspectos. Primeiro, em relação às crises: se a ideia de que a razão tem
uma história é uma ideia, de fato, afirmada e profundamente admitida pelo meio intelectual
francês, o problema das crises não constituiu, propriamente, um problema inquietador, pois já
nasceu com uma possível via de solução. Perante às crises, tem-se a história. Recorre-se a ela
para explicá-las. Não há uma franca preocupação. Segundo, em relação a outras vias de solução:
se há uma história da razão é porque, certamente, não há uma razão rígida e absoluta que poderia
ser delineada de modo preciso, pois não há conjuntos de elementos e articulações fixas. Ora,
essa é a condição de possibilidade para que se possa aceitar a lógica enquanto método de análise
da razão. Uma proposta lógica para solução do problema seria, de imediato, recusada.
Na década de 1930, essas duas expectativas retiradas daquelas considerações são
frustradas. Pois as discussões e as atitudes dos autores do contexto intelectual francês as
contrariam totalmente. Em relação à postura ante a crise, numa sessão da Société Française de
Philosophie, de 14 de abril de 1934, autores colocavam em questão a história enquanto método
de análise dos conceitos científicos. Seria ela uma método fecundo para a compreensão das
ciências? As “verdades” científicas não se distanciam da história? De outro modo, existiria
mesmo uma história das ciências? 4 O que é a ciência? Se ainda surgiam essas questões, era
porque não havia uma postura firme em relação à ideia da historicidade da razão, e, então, uma
via segura de solução para a questão das crises. Em relação a outras vias de solução, a frustração
perpetua e se intensifica. O meio filosófico francês atentou-se para um movimento filosófico
que, ao invés da história, virava-se para a lógica, como saída para as inquietações levantadas
pelas crises: o Círculo de Viena.
3
BRAUNSTEIN, Jean-François. “Bachelard, Canguilhem, Foucault. Le ‘style français” en épistémologie.’” In:
WAGNER, Pierre (org.). Les philosophes et la science. Paris: Gallimard, 2002, p. 923.
4
ENRIQUES, Federigo. “Signification de l’histoire de la pensée scientifique.” Bulletin de la Société française de
philosophie. Armand Colin, Paris, t. XXXIV, 1934, p. 84.
O Círculo de Viena e sua recepção na França
Blumberg e Feigl caracterizam o Círculo de Viena como “um dos fenômenos mais
interessantes na filosofia moderna”,5 fenômeno também denominado de “Positivismo Lógico”,
“Empirismo Lógico”, “Escola de Viena”, ou ainda, “Neopositivismo”, fenômeno marcado pela
“convergência duas grandes tradições: a tradição empírico-positivista e a tradição lógica
[logicista]”.6
Para Wagner e Alberto Pasquinelli, o logicismo foi a principal corrente filosófica
influenciadora do movimento vienense. Para eles, tal corrente trazia uma perspectiva inovadora
e profícua, a qual influenciou aquele que hoje é o mais conhecido membro do grupo: Rudolf
Carnap. Frege e Russell demonstraram muito mais do que apenas uma tentativa do que
usualmente se denomina de “redução” das matemáticas à lógica. Seria o grande mérito dessa
tentativa, segundo Wagner, a descoberta da
5
BLUMBERG, Albert. E. ; FEIGL, Herbert. [1931] “Le positivisme logique.” In: WAGNER, Pierre; BONNET,
Christian (org.). L’âge d’or de l’empirisme logique. Paris: Gallimard, 2006, p. 135.
6
idem, ibidem.
7
WAGNER, Pierre. “Carnap et la logique de la science.” In:______. (org.). Les philosophes et la science. Paris:
Gallimard, 2002, p.252 e 253.
1928, projeto que, em traços importantes, está presente no Manifesto esboçado um ano depois.
Mas o logicismo não constituiu a única corrente filosófica que teria influenciado o
Empirismo Lógico. Como Blumberg e Feigl indicam, a corrente empirista foi fundamental para
esse Movimento. De fato, poderia parecer paradoxal a união lógica-empiria. Contudo, elas estão
imbricadas de tal modo que sua separação torna incompreensível as concepções e o projeto do
grupo vienense. A análise lógica, destacada por eles como principal elemento de diferenciação
do Movimento ao qual pertenciam, assenta-se sob o dado empírico. Essa base forma o critério
de sentido dos termos e enunciados analisados. É uma ideia que perpassa constantemente os
trabalhos do Movimento: um termo só possui sentido se sua definição reconduz a um dado
sensível; um enunciado apenas é legítimo, tem sentido, caso reconduza a um fato da
experiência. Esse é o fim de toda análise. Tanto Wagner, quanto Sebestik, ou Mélika Quelbani,
ou Brenner, ou Christian Bonnet, além dos próprios integrantes do Círculo, como Schlick,
Carnap e Frank, apontam a influência da tradição formada por Hume e Mach – aliás, muito
mais do que o positivismo de Auguste Comte. O fenomenismo, a rejeição da metafísica, a
concepção de ciência unitária – que Frank admite claramente ter recebido de Mach – são as
heranças aceitas pelo Movimento austríaco.
Vê-se logo de início que se tratam de perspectivas bem distintas daquelas do meio
filosófico francês, que esboçamos. Ainda assim, o movimento vienense encontrou na França
um lugar favorável à exposição de suas convicções e teses.
Em 1935, no anfiteatros da Sorbonne, o grupo austríaco realizou um congresso que,
segundo Bonnet e Wagner, “representa uma etapa decisiva na internacionalização do
Empirismo Lógico”. Tratava-se do “I Congresso Internacional para a Unidade da Ciência”,
onde noventa comunicações foram apresentadas, de autores de mais de quinze países.
Certamente, um congresso dessa magnitude não foi realizado sozinho. Como testemunham as
atas do Congresso de 1935, o evento recebeu contribuições do Instituit International de
Coopération Intellectuelle (IICI), do Institut d’histoire des sciences et des techniques, do
Centre International de Synthèse (CIS) e da Revue Scientifique. Mas o congresso de 1935 não
foi o único realizado em solo francês. Dois anos depois desse evento, acontecia, novamente na
Sorbonne, o “III Congresso Internacional para a Unidade da Ciência”. Tratava-se de uma sessão
do Neuvième congrès International de Philosophie, o afamado Congrès Descartes. Contudo,
mesmo que agora se encontrassem em meio a muitos filósofos de variadas correntes de ideias
e integrassem apenas uma pequena sessão que representa um terço da quarta e última parte do
Congresso,8 não é verdade que passaram desapercebidos.9
A presença pública do Círculo de Viena na França se fez sentir também de outras
maneiras. O planejamento do Congresso de 1935 incluía uma preocupação em oferecer a seu
público anfitrião uma série de trabalhos que o inserissem no campo do debate austríaco, “para
fazer conhecer as teses mestres da doutrina destinada a servir de eixo para as discussões”,10
salienta Rougier. Aqui também, o Movimento foi amplamente apoiado por instituições
francesas. Já no início da década de 1930, uma massa de textos do grupo é traduzida e publicada
sobretudo pela editora Hermann, na coleção Actualitès Scientifiques et Industrielles e pela
Revue de synthèse.11 Na década de 1930, como bem ressalta Bonnet, o público francês já
dispunha de uma quantidade substancial de trabalhos dos integrantes do Empirismo Lógico.
Outro espaço de projeção do movimento austríaco na França foi composto pelas reações
às teses expostas. Os congressos e os trabalhos traduzidos e publicados dos membros do Círculo
de Viena, que expusemos aqui, tiveram repercussão nesse país. Na década de 1930, um
considerável número de revistas publicou vários textos e referências relacionadas a esse
contato, como a a Revue de métaphysique et de moral, a Revue philosophique de la France et
de l’étranger, a Revue Thomiste, a Revue scientiphique, além da Revue Thalès e da revista
Recherches philosophiques, e é claro, da revista do Centre International de Synthèse (CIS).
Se afirmamos e discorremos aqui sobre uma “recepção francesa” é justamente devido a
esses espaços de projeção que o movimento vienense encontrou. Os congressos, as traduções,
as resenhas, os comentários formam uma conjuntura que acreditamos ser suficiente para
falarmos em uma “recepção”. Mas como afirma Bourdieu, a recepção de ideias é algo complexo
que não se dá por mero acaso. O Círculo de Viena encontrou hospedagem na França por um
motivo. Bem, existe uma preocupação que perpassa o interesse de todas as instituições, destaca-
8
Sem dúvida, trata-se de um Congresso bem maior que o de 1935. Trezentas e vinte comunicações de autores de
trinta e oito países são apresentadas. Mais de onze mil congressistas comparecem.
9
É o que testemunha Raymond Bayer, secretário geral do comitê de organização do evento e responsável pela
publicação dos seus anais. Bayer, ao discorrer sobre o Neuvième Congrès International de Philosophie, inicia e
termina seu artigo apontando os trabalhos do Movimento vienense. Cf. BAYER, Raymond. “Le IXe Congrès
international de philosophie.” In: Revue de Synthèse. Paris, 57, 1937, p. 159-166.
10
ROUGIER, Louis. Avant- Propos. Actes du Congrès..., op. cit., p. 4.
11
Trabalhos célebres como L’ancienne et la nouvelle logique (1933), de Carnap, Sur le fondement de la
connaissance (1935), de Schlick, Logique, Mathématique et connaissance de la realité (1935), de Hahn, Analyse
logique de la psychologie (1935), de Hempel e L’Encyclopédie comme modèle (1936), de Neurath, são
disponibilizados para o público francês. Outros textos são redigidos especialmente nessa língua visando a
exposição dos traços gerais do Empirismo Lógico. É o caso de La logique de la science et l’École de Vienne
(1935), escrito pelo Général Vouillemin - aliás, principal tradutor dos trabalhos publicados pela editora Hermann
- e Le développement du Cercle de Vienne et l’avenir de l’empirisme logique (1935), de Neurath.
se, a editora Hermann e o Centre International de Synthèse, e os autores aí envolvidos: era
preciso debruçar-se sobre as ciências e suas novas teorias. Ora, o Círculo de Viena, embora de
maneira diferente, apresentava tal “debruçar”, apresentava uma via de explicação para os
problemas que atormentavam a filosofia das ciências e a epistemologia francesas.
Os autores do cenário filosófico francês, entenderam, o que faz muito sentido, as
concepções e teses do movimento vienense como uma proposta. Proposta essa que pretendia
dar uma resposta aos abalos, aos desmoronamentos de teorias científicas outrora tão apreciadas
por sua estabilidade, feitos, sobretudo, por Einstein e Heisenberg. Foi por serem entendidas
como reflexões assentadas em um campo comum de discussão - campo no qual comungavam
das mesmas preocupações - entendidas como possível remédio, como solução para as crises da
razão, que as reflexões do Movimento austríaco receberam atenção. Para os franceses, os
membros do movimento vienense comungavam do mesmo problema e ofereciam uma possível
solução.
12
MEYERSON, Émile. Du cheminement de la pensée. Paris: Vrin, 2011.
13
CAVAILLÈS, Jean. “L’École de Vienne au congrès de Prague.” In: Revue de métaphysique et de morale. Paris,
42, n.1, 1937, p. 137-149.
Lautman,14 Bachelard,15 Koyré16 e Enriques,17 autores do cenário filosófico francês,
assinalavam problemas considerados graves. Em todos esses esboços, encontra-se um profundo
incômodo em relação às teses apresentadas pelo grupo vienense. O Círculo de Viena
apresentava os traços de uma perspectiva lógica por excelência.
Por “lógica”, os autores franceses, o que é bastante compreensível, entendiam
“logicismo”, e “logicismo” significava dizer, formalismo absoluto, tautologia perfeita,
demonstração completa do raciocínio através de técnicas lógicas, substituição do pensamento
atual graças ao simbolismo. Assim entendiam os autores do meio intelectual da França. E é esse
caráter absoluto, categórico, da proposta vienense que é apontado nas críticas feitas. É ele que
é ressaltado por Meyerson quando discorre, em seu Du cheminement de la pensée, sobre
demarché do pensamento, rigorosa e tautológica. É ele que é ressaltado por Cavaillès, quando
explana, em um artigo de 1935, sobre a concepção vienense de ciência como domínio exclusivo
do demonstrável. E é justamente esse caráter absoluto da proposta vienense que Enriques
delineia explicitamente.
Enriques resumiu em poucas palavras o que era inaceitável para os autores do contexto
intelectual francês: os absolutos. Nem empirismo, nem idealismo, tampouco formalismo
absoluto poderiam fornecer uma resposta satisfatória ao problema das crises da razão. Destas
retirava-se uma lição. É preciso livrar-se dos absolutos. É preciso livrar-se dos manuais, das
receitas dos passos certos e claros que caracterizariam o trabalho do investigador, das definições
que traçam a razão como em um domínio “puro”, ora a base empírica, ora a arquitetura racional,
ora a lógica autônoma.
De fato, os autores do meio filosófico francês, atentaram-se, analisaram as concepções
e teses do Movimento, mas não as admitiram. A proposta austríaca deveria ser recusada.
14
LAUTMAN, Albert. “Le congrès international de philosophie des sciences.” In: Revue de métaphysique et de
morale. Paris, 43, n.1, SUPPLN4, 1936, p. 113-129.
15
________. “Resenha de.” [HAHN, Hahn. Logique, mathématiques et connaissance de la réalité. Paris,
Hermann, v.1, 1935.] In: Recherches philosophiques. Paris, vol. V, 1935-1936.
16
KOYRÉ, Alexandre. “Resenha de.” [JÖRGENSEN, Jörgen. A treatrise of formal logic, its evolution and main
branches, with its relation to mathematics and philosophy. Copenhague, London: Humphrey Milford, 1931.] In:
Revue Philosophique. Paris, n. 7-8, 1936, p. 136-140 ; KOYRÉ, Alexandre. “Resenha de.” [STEBBING, Lizzie
S. Logical positivism and analysis. London: Oxford University Press, 1934.] In: Recherches philosophiques. Paris,
vol. IV, 1934-1935, p. 434-435 ; KOYRÉ, Alexandre. “A filosofia Jean Cavaillès.” Trad. Fábio Ferreira de
Almeida. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia: Almeida &
Clément Edições, 2010; KOYRÉ, Alexandre. Épiménide, le menteur. Ensemble et catégorie. Paris: Hermann,
1947.
17
ENRIQUES, Federigo. “Philosophie sientifique.” In: Actes du Congrès international de philosophie scientifique.
Sorbonne, Paris, vol. I, 1936, p. 23-27.
Portanto, o problema das crises da razão permanece.
18
GATTINARA, Enrico C. “La nécessité de l’histoire.” In: Les inquiètudes de la raison. Paris: Vrin, 1998, p. 53-
89.
rupturas. Uma questão de método e não de descoberta,19 é a diferença fulcral, para Bachelard,
que demarca um novo, de um antigo, espírito científico. Essa diferenciação é, certamente, de
longa amplitude. A demonstração do real é acompanhada por uma aposta sobre o que ele é. A
diferenciação bachelardiana refere-se à mudança de uma perspectiva metafísica e
epistemológica, não se assenta apenas sobre uma investigação científica – stricto sensu. Quer
dizer, essa modificação está no plano de referência do real e das operações científicas que se
ordenam a partir dele. É uma mudança de conteúdos e formas de articulá-los, que aparecem sob
a etiqueta de “método” porque, para Bachelard, eles estão sempre imbricados. Após discorrer
sobre as transformações do conceito de velocidade de Aristóteles até Einstein, Bachelard
afirma:
19
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Trad. Juvenal H. Júnior. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro,
1968, p. 16.
20
ibidem, p. 50 e 51.
´Portanto, se a razão se modifica de tal forma, então qualquer característica que se possa
lhe atribuir deve ser acompanhada de uma especificação que remete às categorias históricas de
tempo e espaço. Quer dizer, “a razão é produto da história”. Daí a importância da “história dessa
história”, mas agora por um motivo diferente daquele do contexto filosófico francês. Ela é
indispensável não para confirmar ou infirmar as teses da filosofia21 sobre a essência da razão,
por ser um método profícuo. Sua importância vai além. Essa história é indispensável porque
pode nos ensinar sobre a razão e as crises que a atormentam. E então, temos um nova resposta.
Ao debruçar-nos sobre a passagem das geometrias euclidianas às não-euclidianas, do sistema
físico newtoniano ao einsteiniano, enfim, o que se vê no início do século XX, compreendemos
a “razão na crise e não a crise na razão”.22 Compreendemos a razão que saiu de si mesma, que
rompeu “seus próprios quadros”.23 Assim, essa “crise” não é a manifestação de uma debilidade
ou falência. É a manifestação do trabalho da própria racionalidade sobre si mesma, da sua
capacidade de se renovar. A crise nada mais é do que um renovo, uma mutação, donde surge
um novo tipo de razão. Para Bachelard, trata-se de uma “crise de crescimento normal.”24 Ao
analisar a história e depreender as mudanças profundas, aprende-se que “o espírito científico é
essencialmente retificação do saber”.25 É polêmico. É por isso que o “espírito tem um estrutura
variável desde o instante em que o conhecimento tem uma história”.26 Crises, portanto, são
comuns.
Em Koyré isso é ainda mais notável. Existiram, também para ele, outras crises. Mas há
uma que se destaca entre as outras por sua amplitude. Para Koyré, houve um crise ainda maior
que aquela à qual testemunhavam. É a crise dos séculos XVI e XVII, momentos de abalos do
pensamento filosófico e científico, de substituição da perspectiva aristotélica em detrimento da
galileana e cartesiana. Koyré admite o conceito bachelardiano de mutação intelectual, mas faz
uso, como se sabe, da ideia de “revolução”. Portanto, se, para Bachelard, do espírito científico
do século XVIII e XIX ao espírito do século XX, não se passa senão por mutação, para Koyré,
do pensamento filosófico e científico (físico) aristotélico ao de Galileu e Descartes, não se passa
21
E aqui trata-se de uma concepção específica de filosofia, isto é, o produto da meditação do sábio em seu
isolamento, especulação.
22
BACHELARD, Gaston. “La psychologie de la raison.” In:______. L’engagement rationaliste. Paris: Les press
universitaires de France, 1972, p. 27.
23
BACHELARD, Gaston. O novo..., op. cit., p. 150.
24
ibidem, p. 149.
25
ibidem, p. 147.
26
idem, ibidem.
senão por “revolução.”
Koyré fala-nos explicitamente de seu objetivo central nos Études Galiléennes, mais de
uma vez. Em uma passagem elucidativa, ele explana:
27
KOYRÉ, Alexandre. Estudos Galilaicos. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1992, p. 262. No original: “c’est la marche même de la pensée galiléenne qui nous intéresse ici. ” Cf. ibidem, p.
211.
28
KOYRÉ, Alexandre. Estudos..., op. cit., p. 352.
29
ibidem, p. 353.
Koyré, portanto, esforça-se por mostrar, ao longo dos Études Galillénnes, a construção
histórica de algo que tomamos como “dado”, a matematização do físico, e assim, mostrar “a
razão na crise” mais devastadora, para Koyré, dentre todas as outras. A razão que no itinerarium
in veritaten caminha destruindo e reconstruindo sua própria fundamentação, seu próprio quadro
de referência donde retira o que é evidente e o que é absurdo, o que é verdadeiro e o que é falso,
o que é possível e o que é impossível. Donde retira seu ponto de partida para suas deduções,
quadro de referência difícil de delineá-lo, pois se “desvanece frente seus resultados, os
conceitos e as leis sedimentadas nos manuais”.30 Dando-nos conta disso, não é preciso nos
espantarmos com as transformações abruptas das teorias científicas. São manifestações da
própria racionalidade em seu trabalho sobre si mesma, em sua renovação profunda, em sua
mutação, em sua revolução, depois da qual, ganhando novos contornos, torna-se um novo tipo
de razão. É assim que, em Bachelard e em Koyré, a ideia de crise entra na própria ideia de
razão.
Há, portanto, com esses autores, a formulação de uma nova concepção de razão, e sua
novidade consiste, sobretudo, em considerá-la como produto da história. Mas também, como
dissemos, há a atribuição de um novo estatuto à história da história da razão. De simples
método, a história enquanto saber, passa a ser um agente, pois ela ensina. Não está mais
submetida à filosofia das ciências. Esta deve estar disposta para retificar suas hipóteses, “é
preciso que [ela] se aplique em ultrapassar seus próprios princípios”.31 É preciso que se
disponha a alterar sua concepção clássica de razão. E se a história nos ensina, não há mais um
problema inquietador. A história mostra que sempre haverá crises, ruína dos “métodos” e
“planos de pensamento”. Outro modo de afirmar isso: a história mostra que sempre haverá
renovação da razão, reconstrução de fundamentos. Não há mais necessidade de salvá-la, pois
não há condenação.
Conclusão
30
JORLAND, Gérard. La science dans la philosophie. Paris: Gallimard, 1981, p. 50.
31
JAPIASSÚ, Hilton. Para ler..., op. cit., p. 39.
crises da razão. Foi no momento em que os autores do meio filosófico francês observaram,
analisaram e criticaram as teses do Movimento, e concluíram que elas não poderiam fornecer
uma resposta satisfatório ao problema, é que essa outra postura foi tomada. Um postura que
negou radicalmente os elementos problemáticos apontados nas concepções austríacas. Se o
maior defeito nelas encontrado foi justamente o de traçar uma razão absoluta, Bachelard e
Koyré negaram tal ideia até o fim. A razão não é tautológica, puramente lógica, não é rígida e
imutável. Levaram, contudo, tal negação até mesmo aos traços rígidos ainda presentes na
filosofia das ciências e epistemologia francesas. A razão não é tampouco flexível, elástica,
capaz de abarcar todas as teorias científicas já feitas pelo homem, permanecendo, assim, eterna.
A admissão da historicidade da razão, postura sem dúvida iniciada por Bachelard e Koyré, ruía
a aceitação de todos os traços delineadores de uma razão fixa, inclusive aqueles do próprio
contexto intelectual francês. Se há essa postura radical, posicionamento no qual estão
embasados a epistemologia histórica de Bachelard e a história filosófica de Koyré, isso deve
também pela passagem do Círculo de Viena na França.
Referências
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