Você está na página 1de 4

História das Ciências, Teoria da História, História Intelectual

(Apresentação do livro “Historicidade e Objetividade”, de Lorraine Daston* )

Tiago Santos Almeida


Pesquisador no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo
(Grupo de Pesquisa Khronos: História da Ciência, Medicina e Epistemologia)

Francine Iegelski
Professora no Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

O texto a seguir é a apresentação do livro “Historicidade e Objetividade”, de Lorraine Daston,


que será publicado, ainda em 2017, pela editora Liber Ars. O livro foi organizado por Tiago
Santos Almeida, e os textos selecionados foram traduzidos por Francine Iegelski e Derley
Menezes Alves (IFS). Kaori Kodama (FIOCRUZ) escreveu o texto da orelha.

***

Lorraine Daston é uma das mais importantes e inovadoras historiadoras da


atualidade, justamente num campo, a história das ciências, que ainda carrega o estigma de
provincial branch, termo utilizado por Arnaldo Momigliano para descrever a situação de não-
pertencimento pleno da história antiga ao campo histórico na primeira metade do século
passado. O título deste livro, Historicidade e Objetividade, não indica apenas um dos principais
temas das pesquisas desenvolvidas por Daston no Instituto Max Planck para a História da
Ciência, em Berlim – a história dos ideais e das práticas da objetividade científica –, mas um
dos problemas mais fundamentais da epistemologia e da história das ciências.
A ausência, até aqui, de traduções brasileiras dos trabalhos de Daston deixava uma
lacuna considerável para um público mais amplo e interessado em acompanhar os debates mais
vivos na historiografia das ciências. A tradução muito raramente marca o começo da recepção
de um autor num contexto nacional diferente do seu: ela é, antes, o sinal de um efeito já sentido
sobre um contexto intelectual e, nesse caso, também profissional. Dez anos atrás, Silvia
Figueirôa, numa resenha do livro Objectivity (2007), escrito por Daston em parceria com Peter
Galison, já dizia: “Sem dúvida, este livro é polêmico e dá (muito) o que pensar. Mas já nasceu
como referência obrigatória para as pesquisas sérias em História, Filosofia, Sociologia ou
Antropologia da ciência e da tecnologia e mereceria, em minha opinião, uma cuidadosa versão
em português” i . Os sete textos reunidos aqui, publicados ao longo de duas décadas, não
substituem a leitura dos livros de Daston, nem diminuirão o desejo de vê-los traduzidos para o
português (esperamos, na verdade, que produzam o efeito contrário), mas permitem
compreender o processo de formação e a consolidação de seu “programa historiográfico” para
a história das ciências.
Em meados dos anos 90, Daston apresentou a “epistemologia histórica” como um
programa capaz de aproveitar as contribuições e de escapar das limitações específicas das três
grandes escolas de história das ciências do período: a escola filosófica, a sociológica e a
histórica. Para Daston, o problema não residiria nas metodologias empregadas por cada uma
daquelas escolas, mas na parcialidade das relações que elas estabeleciam entre o conhecimento
e seus objetos: seja o viés preponderantemente idealista da primeira, o estruturante da segunda
ou o demasiadamente preso ao particular da terceira. Assim, a sua epistemologia histórica busca
se distinguir menos pela crítica dos programas historiográficos anteriores ou concorrentes que
pelo tipo de questões que decide enfrentar.
A causa que suscitou as investigações de Daston foi, muitas vezes, seu espanto diante
da ideia, bastante aceita e difundida, segundo a qual historicizar equivaleria a relativizar, ou
pior, a invalidar. De fato, as relações entre a historicidade e a objetividade do conhecimento
científico foram centrais para o desenvolvimento do “estilo epistemológico-histórico”ii, em suas
diversas filiações. Aliás, aqueles que acreditam que a epistemologia histórica feita no Max-
Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte não é apenas diferente, mas indiferente ou hostil
àquela gestada no Institut d’histoire des sciences et des techniques, em Paris, podem ficar um
tanto desconcertados diante das referências que Daston faz a Gaston Bachelard no artigo sobre
a “economia moral das ciências”, aqui publicado. Porém, enquanto um autor como Canguilhem
explorou o problema da historicidade e da objetividade por meio de investigações altamente
especializadas nos domínios da história das ciências da vida e da história da medicina, Daston
voltou sua atenção para temas que podem ser mais facilmente compartilhados por historiadores
das ciências naturais e das ciências humanas, como as condições sociais e as emoções
cognitivas necessárias para o exercício de certos tipos de racionalidade.
Sua epistemologia histórica reabilita o recurso da comparação entre ciências que já não
eram mais comparadas devido ao seu alto grau de especialização. Sem ignorar essa
provavelmente irreversível especialização, um dos méritos da abordagem de Daston para a
história das ciências é o de possibilitar um programa de trabalho comum, capaz de reunir
pesquisadores vindos de diferentes áreas, interessado pelas categorias, conceitos e práticas
fundamentais para a ciência moderna. O livro Biographies of scientific objects – organizado
por Daston a partir dos textos apresentados em um simpósio sobre “o vir a ser e a morte dos
objetos científicos”, realizado no Instituto Max Planck para a História da Ciência, em 1994 – é
um dos melhores exemplos da fecundidade desta abordagem. Entre os autores e objetos
biografados, encontramos tanto Hans-Jörg Rheinberger, com seu estudo sobre as partículas
citoplasmáticas enquanto objeto constituído na junção da citomorfologia, da bioquímica e da
biologia molecular, quanto Marshall Sahlins e o estudo da cultura como principal objeto da
antropologia.
Parece-nos que uma quantidade não-negligenciável de historiadores chegou à história
das ciências por meio da teoria da história, e vice-versa. Não é difícil entender a sedução que
um campo exerce sobre o outro. A história das ciências fomentou um bom número de problemas
na teoria e na metodologia da história, como a relação entre ideias, discursos e contextos, ou as
questões ligadas à temporalidade e à escrita da história – pensemos, por exemplo, no
debordamento de certos debates para fora de seu campo original de elaboração, como
internalismo vs. externalismo, anacronismo vs. história do presente e continuidade vs.
descontinuidade, e também de certas noções, como “ruptura” e, claro, “paradigma”. Num
movimento de aproximação mais profundo, talvez até estrutural, a partir dos anos 80, os
historiadores buscaram operar, relativamente tarde se comparado aos historiadores das ciências,
uma aproximação entre epistemologia e historiografia, como se quisessem realizar uma espécie
de conjunção entre os dois termos, visando, nas palavras de François Hartog, “não uma
epistemologia ‘dura’ (muito distante), nem uma história da história ‘plana’ (muito internalista),
mas uma abordagem atenta aos conceitos e aos contextos, às noções e às circunstâncias, sempre
mais cuidadosa com suas articulações, preocupada com a cognição e com a historicização”. Em
resumo, Hartog continua, “algo como uma epistemologia histórica ou uma historiografia
epistemológica” iii . Vale lembrar que o texto programático “Uma história da objetividade
científica”, aqui publicado, no qual Daston apresentou a epistemologia histórica, foi
originalmente preparado para um colóquio dirigido por Hartog, no ano de 1996.
Foi inevitável que uma pergunta viesse importunar a imaginação daqueles nossos
colegas formados na conjunção entre teoria da história e história da ciência: é possível escrever
a história da história como história da ciência? Caso sim, qual tipo de história da ciência?
Verdade seja dita, sem a intenção de provocar, essas perguntas são feitas em voz alta mais
frequentemente nos simpósios da SBHC que nos da ANPUH... Fato é que, assim como os
historiadores da astronomia, da biologia ou da medicina, os historiadores da história foram
atraídos pela história intelectual. Seguindo por esse caminho, encontraram nos trabalhos de
Daston um grande número de temas que poderiam ser utilizados na exploração dos diferentes
correlatos da ideia de “história como ciência”: a imparcialidade como virtude epistêmica dos
historiadores do século XVIII; a economia moral da revolução metodológica da historiografia
no século XIX; a persona do historiador; a biografia do tempo como objeto da história etc. Mas
não resta dúvida de que a principal contribuição dos trabalhos de Lorraine Daston para os
historiadores da história é a confirmação da possibilidade de uma epistemologia em ato, ou seja,
não um tribunal que determinará se a história atingiu ou não a objetividade e, caso sim, quando
e como, mas uma “exploração histórica das múltiplas significações e manifestações da
objetividade” em história. Afinal, para citar Hartog mais uma vez, os historiadores aprenderam
que “a objetividade não é separável das formas de objetivação”iv.
Quem seguir os textos dessa coletânea em ordem cronológica não ficará surpreso
quando, chegando no último artigo, encontrar um chamado à intensificação dos esforços pela
construção de uma “história comparada das humanidades” e de uma “epistemologia das
humanidades”. Os elementos para essa história e para essa epistemologia foram dispostos nos
textos anteriores, e, de fato, já haviam sido notados por certos historiadores da história mais
familiarizados com a obra de Lorraine Daston. No Brasil, essa aproximação ainda é um pouco
tímida, com notáveis exceções, e foi muitas vezes realizada de modo indireto, por exemplo,
através dos trabalhos de Herman Paul. O resultado mais visível dessa recepção parcial ou
mediada é o fato de que certos objetos, digamos, historiográficos foram retidos das linhas de
investigação abertas por Daston, mas não como parte de uma epistemologia histórica das
ciências humanas ou de uma “historiografia epistemológica”. Os historiadores interessados em
promover a reintegração encontrarão nessa coletânea não apenas palavras de incentivo, mas
verdadeiras contribuições.

Niterói, julho de 2017.

*
DASTON, Lorraine. Historicidade e Objetividade. Org. Tiago Santos Almeida. Trad. Derley M. Alves; Francine
Iegelski. São Paulo: Liber Ars, 2017 (no prelo).
i
FIGUEIRÔA, Silvia F. de Mendonça. “Objectivity”. In: RECIIS – Revista Eletrônica de Comunicação,
Informação e Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 107-110, jul.-dez., 2008.
ii
Sobre essa ideia de epistemologia histórica como um “estilo”, Cf. BRAUNSTEIN, Jean-François. “Historical
Epistemology, old and new”. In: SCHMIDGEN, Henning. Epistemology and History. From Bachelard and
Canguilhem to Today’s History of Science. Berlim: Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte, 2012. -
(Preprint 434).
iii
HARTOG, François. “La tentation de l'épistémologie?”. In: Le Débat, n° 112. Paris: Gallimard, 2000, p. 81-82
(retomado em HARTOG, François. Évidence de l’histoire. Paris: Gallimard, 2005, p. 286-293).
iv
Ibidem, p. 81.

Você também pode gostar