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CAPA

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Textos de acordo com a nova ortografia.
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada desde que
levados em conta os direitos autorais.

E-book organizado pelo grupo de pesquisa em Literatura, Gênero e Psicanálise (LIGEPSI) e pelo Laboratório de
Estudos Literários e Psicanalíticos (Lab-LitPsi), sob a coordenação do Prof. Dr. Hermano de França Rodrigues.

p. 262
RODRIGUES, Hermano de França. ASSIS, Guilherme Ewerton Alves.
MOREIRA, Wanessa de Góis. FREITAS, Matheus Pereira. SILVA, Frederico
de Lima. RAMALHO, Mariana Pinheiro

A aljava pesarosa de Eros: os Amores e seus retalhos nas alcovas literárias


[recurso digital] / Hermano de França Rodrigues, Guilherme Ewerton Alves de
Assis, Matheus Pereira de Freitas, Wanessa de Góis Moreira, Frederico de Lima
Silva, Mariana Pinheiro Ramalho – João Pessoa, PB: 2023.
ISBN: 978-65-5886-359-5

Capa: Guilherme Ewerton Alves de Assis.


Editoração: Guilherme Ewerton Alves de Assis.
Revisão: Prof. Dr. Hermano de França Rodrigues; Guilherme Ewerton Alves de Assis.

Conselho Científico:
Prof. Dr. Hermano de França Rodrigues (UFPB)
Prof. Dr. Jailto Luiz Chaves de Lima Filho (UFPB)
Prof. Dr. Aristóteles de Almeida Lacerda Neto (IFMA)
Profa. Dra. Fabiana Souza Silva Mendes de Araújo (UFPB)
Profa. Dra. Eneida Maria Gurgel de Araújo (UEPB)
Profa. Me. Maria Medeiros (UFPB)
Prof. Me. Frederico de Lima Silva (UFPB)
Prof. Me. Ivanildo da Silva Santos (UFPB)
Prof. Me. Leonardo Monteiro (IFPB)

ligepsi@gmail.com
João Pessoa – PB
2023

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Sumário
1. Amor de mãe: análise do conto O menino sujo, de Mariana Enriquez ........................ 6
Ana Cecília Moreira Elias
Fabianna Simão Bellizzi Carneiro

2. Amor dos homens néscios .......................................................................................... 14


Ingrid Karina Morales Pinilla
Fatima Regina Da Vera Cruz Ribeiro
Rosilene Macedo Correa

3. Androides sonham com histórias de amor? ................................................................ 23


Alexandre Manoel Fonseca

4. E mais vi val morrer ca tal coita sofrer: a cantiga de amor medieval como instância
inaugural poética das dores de amor .......................................................................... 32
Wendel de Souza Borges

5. O (des)amor materno transfigurado pela lembrança: uma análise da obra O peso do


pássaro morto, de Aline Bei........................................................................................ 49
Tayane Fernandes dos Santos
Silvana Maria Pantoja dos Santos

6. Dos estremecimentos da alma às súplicas lamuriosas do corpo: vestes psíquicas em


retalhos nas ‘deflorações literárias’ de Lygia Fagundes Telles ................................... 58
Guilherme Ewerton Alves de Assis
Hermano de França Rodrigues

7. Edy, musa inspiradora dos versos de Eulálio Motta, nos poemas No mundo dos
sonhos e Para esquecer .............................................................................................. 77
Patrício Nunes Barreiros
Sheila Cardoso Cerqueira

8. Amor e casamento no romance Uma alma de mulher, de Guiomar Torresão ............ 87


Bianca Gomes Borges Macedo

9. Entre as bênçãos de Eros e a sombra da repressão: desejo e erotismo na lírica de


Irene Dias Cavalcanti ................................................................................................ 101
Marcelo Medeiros da Silva
Roberta Thamirys Temoteo Rodrigues

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10. “Psicopatas do amor”: uma leitura analítica e social de “O cobrador” de Rubem
Fonseca ..................................................................................................................... 113
Camilo de Lélis Lima de Souza

11. O paraíso são os outros: construções acerca do vínculo afetivo a partir de Valter Hugo
Mãe ........................................................................................................................... 128
Raquel Martins Firmino
Karlla Christine Araújo Souza
Ailton Siqueira de Sousa Fonseca
Débora Carlos de Andrade
Tereza Raquel Dantas Araújo Oliveira

12. As nuances do amor familiar na construção temporal da obra “Pequena coreografia


do adeus”, de Aline Bei ............................................................................................. 137
Yasmin de Andrade Alves
Sofia Fidélis de Lisboa

13. Mortos de amor (2023): paixões que enlouquecem ................................................... 149


Adriana Falqueto Lemos
Paulo Arnaud Carvalho
Rossanna dos Santos Santana Rubim

14. O abandono do eu diante da maternidade em A filha perdida, de Elena Ferrante .... 159
Sofia Fidélis de Lisboa

15. Proibida para menores: literatura erótica e o editorial da Revista Literária Pixé ....... 170
Igor Paulo Rodrigues Pereira

16. Diálogos com Clarice e Winnicott: do nascido ao acontecido ................................... 179


Raquele Aparecida da Costa Vilalta
Leopoldo Pereira Fulgencio Junior

17. Do êxtase ao vazio: o amor erótico em “As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire .. 186
Isaque Coelho Cavalcante
18. Da história contundida e dos corpos postos pra jogo: uma leitura da prostituição
masculina como quebra de expectativa de amor romântico na canção Garoto de
Aluguel, de Zé Ramalho ............................................................................................ 195
Anne Natalí Rodrigues Gomes
Auricélio Ferreira de Souza

19. A Concha Vazia do Amor .......................................................................................... 210


Simone Ravizzini

20. Eu então o que serei? Transcendência e sacralização como suportes temáticas na


canção ‘O amor é um ato revolucionário’, de Chico César ........................................ 217
Gabriela Régia de Oliveira Lima
Auricélio Ferreira de Souza

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21. Verm’emplumado: o amor como corda [dis]sonante na lírica de Augusto dos Anjos
................................................................................................................................. 226
Júlio César de Araújo Cadó

22. O que se transmite de uma mãe à filha, seria o enigma?.......................................... 237


Stefanny Thaianny da Costa Duarte
Daniel Silva Guedes

23. “Contornar as rasuras do amor”: as mulheres de Silvina Ocampo e Tamara


Kamenszain .............................................................................................................. 247
Priscila Silva de Sá Santos
Cleber da Silva Luz

24. Viagens a Lesbos, excursões do desejo: homoafetividade feminina nos portos


literários de Lygia Fagundes Telles............................................................................262
Guilherme Ewerton Alves de Assis
Hermano de França Rodrigues

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Amor de mãe: análise do conto O menino sujo, de
Mariana Enriquez

Ana Cecília Moreira Elias1


Fabianna Simão Bellizzi Carneiro2
Universidade Federal de Catalão - anacecilia3r@gmail.com

Universidade Federal de Catalão - fabianna_bellizzi_carneiro@ufcat.edu.br

Acompanhando os avanços tecnológicos, as estruturas sociais no século XXI têm apresentado significativas
mudanças, contudo isso não equivale dizer que as transformações seguem de modo linear e homogêneo.
As mulheres, por exemplo, estão conquistando novos espaços e redefinindo a própria identidade, desse
modo ser esposa e mãe, deixa de ser uma obrigatoriedade, como se fosse inerente à mulher e passa a ser
uma opção. Na literatura contemporânea, sobretudo nos livros de autoria feminina, nota-se uma produção
voltada a questões mais pontuais concernentes à condição feminina. Temas como violência contra a mulher,
o patriarcado, opressão, ganham um novo contexto, distante, inclusive do cânone masculino que prevaleceu
por anos no meio literário. Objetiva-se, neste trabalho, uma leitura crítica do conto “O Menino Sujo”, da
escritora argentina Mariana Enriquez (1973), que compõe a coletânea As Coisas que Perdemos no Fogo,
publicada no Brasil em 2017, de forma a trazer à lume um importante antagonismo: a condição de duas
mulheres de diferentes posições sociais. Uma delas é uma mulher de classe média que decide permanecer
morando em um bairro do subúrbio, na casa que no passado fora de seus avós; e uma mulher dependente
química, grávida e mãe de outra criança, denominada, “menino sujo”. A idealização do amor materno em
oposição a maternidade vivenciada “nas ruas” é a temática do conto e pauta das discussões deste trabalho.
A metodologia pauta-se em leituras teóricas de autores que serão devidamente referenciados.

Palavras Chaves: Literatura; Identidade; Mulheres; Maternidade.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E ANALÍTICOS

Ao longo da história as vozes femininas foram silenciadas de diversos modos. Ao enfatizar


temas como a opressão feminina, Mariana Enriquez insere-se como um dos nomes de destaque no
atual grupo de escritoras sul-americanas. Sua produção contribui para a quebra da hegemonia da
língua inglesa de autoria masculina, em especial da literatura de horror.

1 Ana Cecília Moreira Elias – é doutoranda do Programa de Pós–Graduação em Estudos da Linguagem da


Universidade Federal de Catalão sob orientação da Profa. Dra. Fabianna Simão Bellizzi Carneiro.
2 Docente do curso de Letras da Universidade Federal de Catalão e Docente Permanente do Programa de Pós-

Graduação em Estudos da Linguagem da mesma Instituição. Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em


Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia.

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A importância de suas obras acentua-se, também, por lançar luzes a questões que sempre
foram importantes para as mulheres mas que na atualidade se tornam urgentes, como: denúncias
contra a violência doméstica; remuneração desigual em ambiente profissional; compartilhamento
das tarefas domésticas; projetar-se socialmente sem amarras patriarcais; construir a própria
identidade; reinvindicação de condições sociais e econômicas para mulheres que se encontram em
situação de desamparo, enfim, as mulheres reivindicam suas histórias. Conforme sublinha Marcia
Tiburi (2018, p. 79):

As mulheres representam uma imensa multidão de seres que não puderam se tornar quem
eram, ou quem desejam ser, porque foram educadas para servir aos homens. Para se
tornarem seres que servem a outros seres sem esperar nada em troca. Ainda há pessoas
que defendem ideias assim. Que exploram mulheres enquanto mães, empregadas
domésticas, trabalhadoras do comércio, ou das grandes corporações, ou como prostitutas
[...].

Há que se reconhecer, no entanto, que a luta feminina contra os abusos sofridos, apesar de
apresentar novas configurações, não é algo recente. Entre ganhos e retrocessos, as mulheres lutam
ao longo de muitos anos, formando grupos de resistência que datam, de acordo com Dora
Barrancos (2022, p. 22), desde o século XV, com Christine de Pizan, “que escreveu O livro da cidade
das damas, em 1405, e Marie Le Jars de Gournay, a quem se atribui a obra Escritos sobre a igualdade de
homens e mulheres, de 1622”. Na Argentina, em especial, Barrancos (2022) observa que o feminismo
chegou no final do século XIX, pelas mãos da médica Cecilia Grierson, muito direcionado à urgente
transição para a modernidade.
Assim como seus países vizinhos sul-americanos, o país argentino também sentiu, durante
séculos, a opressão patriarcal e a repressão durante regimes políticos, e isso não passou incólume
pelas mãos de artistas sensibilizadas e engajadas à luta feminina e também cientes de que pelas vias
da tessitura literária, em especial a literatura de horror, podemos falar sobre temas que nos assolam.
Conforme pontua Mariana Enriquez em entrevista concedida a Oscar Nestarez (2021, p. 15):
“Acho que, no geral, é muito interessante o diálogo entre o horror e o realismo, e, nos nossos
países em especial, a política confere uma dimensão ao horror que tem relação direta com a vida
cotidiana”.
Observamos importantes questões referentes à condição feminina em “O Menino Sujo”.
Em linhas gerais, o conto traz a história de uma mulher, sem nome definido, que decide morar na
casa que fora de seus avós, situada em um bairro decadente, Constitución. Observa a narradora

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que “o bairro ficou marcado pela fuga, pelo abandono, pela condição de indesejado. E está cada
vez pior. (ENRIQUEZ, 2017, p. 10).
Ainda que contrariando sua família, que pensa que a narradora está louca por escolher
morar naquela casa e naquele local, a moça faz a mudança. Em frente a sua casa, uma mulher
grávida habita um prédio abandonado com seu filho: “Está grávida de poucos meses, embora
nunca se saiba quando se trata das mães viciadas do bairro, tão magrinhas. O filho deve ter uns
cinco anos, não vai à escola e passa o dia no metrô, pedindo dinheiro em troca de santinhos de
Santo Expedito” (ENRIQUEZ, 2017, p. 11). Um dia, o menino bate à porta da narradora e
chorando menciona que sua mãe havia sumido. Ela sai com o garoto pelas ruas lotadas do bairro,
e isso dificulta a procura pela mãe do menino:

Naquela noite, as três quadras estavam quase vazias de travestis, mas cheias de altares.
Lembrei o que se celebrava: era 8 de janeiro, o dia do Gauchito Gil. Um santo popular
da província de Corrientes que se venera em todo o país, especialmente nos bairros
pobres — embora haja altares por toda a cidade, inclusive nos cemitérios. Antonio Gil,
segundo se conta, foi assassinado como desertor no fim do século XIX: um policial o
matou, pendurou-o numa árvore e o degolou. Mas, antes de morrer, o desertor disse ao
policial: “Se quiser que seu filho se cure, precisa rezar por mim”. O policial obedeceu,
porque seu filho estava muito doente, e o menino se curou. Então o homem baixou
Antonio Gil da árvore, deu-lhe sepultura e, no lugar onde se havia esvaído em sangue,
foi levantado um santuário, que existe até hoje e que a cada verão recebe milhares de
pessoas. (ENRIQUEZ, 2017, p. 15)

O pouco contato que tivera com o menino, faz com que ela comece a desenvolver afeição
por ele, cortada quando os dois encontram a mãe do garoto usando drogas. Furiosa, quase agride
a narradora, pensando que ela queria roubar seu filho. Dias depois, uma criança é encontrada
decapitada no bairro. A narradora se sente culpada, pensando que poderia ter acolhido o garoto na
noite em que ele procurava pela mãe. Novamente à procura da mãe, a narradora a encontra e
questiona em que lugar estaria seu filho, no que ela responde que “deu” o garoto, deixando no ar
a dúvida se o menino degolado era o garoto ou não. Mais ainda: isso deixa uma espécie de tristeza
e melancolia na narradora, como se ela pudesse ter evitado todo o imbróglio.
Importante destacar que a narradora não tem nome, ao passo que a casa é apresentada em
seus pormenores e quase com “credenciais”:

escolhi morar na casa dos meus avós paternos em Constitución, um molhe de pedra e
portas de ferro pintadas de verde na rua Virreyes, com detalhes art déco e antigos
mosaicos no chão, tão gastos que, se me ocorresse encerar o piso, poderia inaugurar uma
pista de patinação. Mas sempre fui apaixonada por essa casa e, na infância, quando a
alugaram a um escritório de advocacia, lembro-me do meu mau humor, do tanto que
sentia saudade daqueles cômodos de janelas altas e do pátio interno que parecia um
jardim secreto [...]. (ENRIQUEZ, 2017, p. 9)

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Elódia Xavier (Apud Melvee, 2018) pressupõe que a residência representa, na literatura escrita por
mulheres, majoritariamente o lugar de submissão feminina, de espera, por vezes do abandono e da
solidão. Enriquez subverte isso. No conto, a casa é apresentada como lugar de pertencimento e
autorreconhecimento, é a via de conexão da protagonista com o seu próprio passado. O “jardim
secreto” representa o acesso para suas memórias e partes internas de si, que não podem ser
compartilhadas, nem “violadas” por estranhos. A protagonista esclarece que reside sozinha por sua
escolha, inclusive contrariando as perspectivas de sua mãe, que gostaria que a filha morasse em um
local mais seguro:
Gosto do bairro. Ninguém entende por quê. Eu, sim: faz com que me sinta certeira e
audaz, desperta. Não restam muitos lugares como Constitución na cidade, que, exceto
pelas favelas da periferia, ficou mais rica, mais amável, intensa e enorme, porém fácil para
viver. Constitución não é fácil e é bonito, com todos esses recantos que um dia foram
luxuosos, como templos abandonados e depois ocupados por infiéis que nem sequer
sabem que, entre aquelas paredes, já se escutaram louvores a velhos deuses.
(ENRIQUEZ, 2017, p. 11)

O nome da criança e de sua mãe também não são citados, são apenas “o menino sujo e a
sua mãe, “que dormem em três colchões tão gastos que, empilhados, têm a mesma altura que um
comum”. (ENRIQUEZ,2017, p. 12). A protagonista tem uma amiga, Lala, cabelereira, de origem
uruguaia. Por meio de diálogos entre as duas amigas o enredo desenvolve-se:

Uma noite, depois do jantar, a companhia tocou. Estranho: quase ninguém me


visita a essa hora. Exceto Lala, em uma ou outra noite em que se sente sozinha,
e ficamos escutando rancheras tristes e tomando uísque. Quando olhei pela janela
para ver quem era – ninguém abre a porta diretamente neste bairro se a
companhia toca por volta da meia noite -, vi que ali estava o menino sujo. Corri
para buscar as chaves e o deixei entrar. Tinha chorado, dava para notar pelos
sulcos claros que as lágrimas haviam marcado em sua cara encardida. Entrou
correndo, mas se deteve antes de chegar à porta da sala de jantar, como se
precisasse da minha autorização. Ou como se tivesse medo de seguir adiante.
(ENRIQUEZ, 2017, p. 15)

Retomamos, aqui, o confronto das personagens, exatamente quando a narradora e a mãe


do garoto se encontram após a mãe se perder do menino. Nesse momento de confronto das
antagonistas, a mãe do “menino sujo” parece representar o amor natural, instintivo da maternidade,
aquele modo de amar que a sociedade espera de uma mulher, não importam as condições adversas.
Contudo, o ideal de que todas as mulheres nasceram para ser mães é uma construção histórica que
perpassa as mentalidades, e que atenderam a interesses semelhantes dentro das colônias espanholas

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e portuguesas, neste caso, basilares na construção tanto da Argentina quanto do Brasil enquanto
nações. Para a manutenção dos interesses de domínio e exploração das metrópoles nas colônias,
era necessário sobretudo o controle dos hábitos, costumes, da língua, enfim da cultura da
população residente nas terras coloniais. Era imperativo aumentar o número populacional e ao
mesmo tempo manter os corpos doceis.
O ideal de família era imposto discursivamente pelo Estado aparado pela Igreja Católica,
por conseguinte a imagem da mulher era associada a representação da Virgem Maria, ou seja, da
Mãe Imaculada. Assente Mary Del Priore (2009, p. 41):

[...] Mas pensar a história das mães significa, sobretudo, perceber que o fenômeno
biológico da maternidade, sua função social e psicoafetiva, vai transformar-se, ao longo
deste período, num projeto de Estado moderno e principalmente da Igreja para
disciplinar as mulheres da colônia [...].

No conto de Enriquez (2017), a narradora desenvolve um olhar muito crítico em relação a


toda situação. A moça não quer ter filhos, porém quando sua vida é interceptada pela vida do
garoto, algo estranho acontece. Ela abdica do papel de mãe, mas parece-nos que não abdica daquilo
que massivamente é chamado de “amor de mãe”. Tal se mostra na noite em que ela recebe a notícia
de que haviam encontrado um menino decapitado:

Contei a Lala sobre o encontro, na noite em que ele tinha tocado minha campainha. Por
que não cuidei dele, por que não averiguei como tirá-lo da mãe, por que pelo menos não
lhe dei um banho? Se tenho até uma banheira antiga, bonita, grande, que mal uso, na qual
tomo duchas rápidas sozinha e só muito de vez em quando desfruto de um banho de
imersão, por que pelo menos não lhe tirar a imundície? E, sei lá, comprar-lhe um patinho
e aquelas varinhas de fazer bolhas de sabão para ele brincar. Podia ter dado um banho
nele tranquilamente e depois ido tomar o sorvete. E, sim, era tarde, mas na cidade há
supermercados que não fecham nunca e vendem tênis, e eu poderia ter comprado um
par para ele, como fui deixá-lo andar descalço, de noite, por essas ruas escuras? Não podia
ter deixado que voltasse para a mãe. Quando ela me ameaçou com a garrafa, eu deveria
ter chamado a polícia para que a levassem presa e ter ficado com o menino comigo ou o
ajudado a entrar em processo de adoção por uma família que o quisesse. Mas não. Fiquei
irritada com ele por ser mal-agradecido, porque não me defendeu... da própria mãe!
Fiquei irritada com um menino aterrorizado, filho de uma mãe viciada, um menino de
cinco anos que vive na rua!
— Que vivia na rua, porque agora está morto, degolado! (ENRIQUEZ, 2017, p.19)

O conflito da personagem representa o próprio medo do amor. Zygmunt Bauman (2004),


observa que na contemporaneidade, as pessoas têm medo do para sempre, elas desejam ter sempre
uma porta aberta para poderem sair de uma relação do mesmo modo que entraram. O paradoxo
de desejar a segurança de um amor estável ou preserva-se de criar laços com o outro é constante.
Bauman (2004, pp. 08-09) ainda postula que

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Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos
ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um se
transforma no outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam – embora
em diferentes níveis da consciência. No líquido cenário da vida moderna, os
relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e
profundamente sentidos da ambivalência. É por isso, podemos garantir, que se
encontram tão firmemente no cerne das atenções dos modernos e líquidos indivíduos-
por-decreto, e no topo de sua agenda existencial.

Trazendo as considerações de Bauman (2004) para o conto, vemos que a angústia da


protagonista representa o sentimento de afeição que ela teve pelo “menino sujo”, especialmente ao
ter que reviver o fluido momento que esteve em contato direto com ele, principalmente ao pensar
que hoje ele poderia ser o garotinho “que vivia na rua, porque agora está morto, degolado!”
(ENRIQUEZ, 2017, p. 23). Isso a faz viver todo o lado sombrio do amor líquido, inquietante, do
sentimento da compaixão, talvez de um amor materno, que não foi sólido o suficiente para uma
medida que representasse o para sempre:

[...] E, sim, era tarde, mas na cidade há supermercados que não fecham nunca e vendem
tênis, e eu poderia ter comprado um par para ele, como fui deixá-lo andar descalço, de
noite, por essas ruas escuras? Não podia ter deixado que voltasse para a mãe. Quando ela
me ameaçou com a garrafa, eu deveria ter chamado a polícia para que a levassem presa e
ter ficado com o menino comigo ou o ajudado a entrar em processo de adoção por uma
família que o quisesse. Mas não. Fiquei irritada com ele por ser mal-agradecido, porque
não me defendeu... da própria mãe! Fiquei irritada com um menino aterrorizado, filho de
uma mãe viciada, um menino de cinco anos que vive na rua! (ENRIQUEZ, 2017, p. 23)

Não há dúvidas quanto ao fato de estarmos diante de uma personagem, no caso a narradora,
de grande complexidade. Não vemos nela o sentido maniqueísta da heroína romântica que não
mede esforços para salvar uma pessoa indefesa, ainda mais sendo uma criança em tão tenra idade.
A narradora recua, não toma medidas legais, não aciona a polícia ou assistência social. Ela
simplesmente não sabe o que fazer ou como agir, o que acaba por aproximar a personagem do
leitor implícito.
Nos últimos parágrafos do conto, através do noticiário, descobre-se que a criança
assassinada não era “o menino sujo”, era na verdade uma criança de outro bairro, que não se soube
porque foi conduzida para aquele local. É nesse momento que se dá o reencontro entre a narradora
e a mãe do garoto:

Eu me aproximei devagar e, quando ela me viu, houve um reconhecimento imediato em


seus olhos. Imediato! Os olhos se estreitaram, se achinesaram: ela quis sair correndo, mas
algo a paralisou. Uma tontura, quem sabe. Aqueles segundos de dúvida me serviram para
bloquear a passagem, parar diante dela, obrigá-la a falar. Empurrei-a contra a árvore e a
mantive ali. Ela não tinha força suficiente para resistir. (ENRIQUEZ, 2017, p. 30)

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A protagonista indagou, aflita, onde estava “o menino sujo” e quis saber também o que
teria acontecido em relação a gravidez, afinal já havia passado o tempo de gestação. A mulher que
estava sem saída, negou, respondeu que não tinha filho. “- Eu não tenho filho! - Gritou, e sua voz
grossa demais, me despertou”. (ENRIQUEZ, 2017, p. 31). Novamente o sentimento de culpa, os
questionamentos sobre os seus atos e também sobre a própria identidade tomaram conta da
personagem principal:

O que eu estava fazendo? Enforcando uma adolescente moribunda em frente à minha


casa? Talvez minha mãe tivesse razão. Talvez eu precisasse me mudar. Talvez, como ela
dissera, eu tivesse uma fixação pela casa porque me permitia viver isolada, porque ali
ninguém me visitava, porque estava deprimida e inventava para mim histórias românticas
sobre um bairro que, na verdade, era uma merda, uma merda, uma merda. Foi isso o que
minha mãe gritou e eu jurei não falar mais com ela, mas agora, com o pescoço da jovem
viciada entre as mãos, pensei que a minha mãe podia ter um pouco de razão.
(ENRIQUEZ, 2017, p. 31)

Por fim, a protagonista continuou com os seus conflitos internos; a moça quando já não
estava mais presa em suas mãos, gritou, “eu dei ele [...]. E depois acariciou o ventre vazio com as
duas mãos e disse, bem claro e alto: - E este eu também dei. Prometi os dois”. (ENRIQUEZ, 2017,
p. 32). Apesar disso, a narradora resistiu. Permaneceu na casa, mantendo o livre arbítrio para
construir a sua identidade e começar sua própria história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos, ao longo do conto, que o arco temático, ao colocar duas mulheres em situação
antagônica: uma mãe que vive em situação de rua; e a moradora de uma casa que para seus
familiares estava aquém de sua situação, acaba por metaforizar inquietações que acompanham as
mulheres desde sempre: nem todas optam por exercerem a maternidade, entretanto, recusar a
maternidade não significa ser incapaz de amar. Além disso, através do olhar da narradora, que
observava o imóvel da esquina ocupado por uma mulher grávida, dependente química e o seu filho,
sempre sujo, percebemos que a narrativa demonstra para o leitor as mazelas das desigualdades
sociais do espaço urbano, dores por vezes passadas como invisíveis aos olhos da sociedade.
Também vimos que a casa pôde ser lida como construção da própria identidade da
narradora, pois foi nesse local que, contrariando aquilo que se esperava – jovem recém-formada,
separada dos pais, iniciando sua vida em bairro que lhe trouxesse status, a narradora subverte essa
ordem e inicia sua própria história. A narradora duvidou de sua capacidade: “Talvez eu não fosse

12
a princesa no castelo, mas a louca encarcerada na torre” (ENRIQUEZ, 2017, p. 31), e isso também
lhe ajudou a se construir, o que não é nenhum problema, afinal os tropeços também fazem parte
de nosso percurso.

REFERÊNCIAS
BARRANCOS, Dora. História dos Feminismos na América Latina. Rio de Janeiro: Bazar do
tempo, 2022.

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.

DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo Condições Feminina, Maternidades e Mentalidades


no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

ENRIQUEZ, Mariana. “O menino sujo”. In: ENRIQUEZ, Mariana. As Coisas que Perdemos
no Fogo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.

MELLVEE, Fernanda. As Mulheres e a Casa na Literatura: uma relação nem sempre feliz. 12 de
março de 2018. Disponível em: https://artrianon.com/2018/03/12/as-mulheres-e-a-casa-na-
literatura-uma-relacao-nem-sempre-feliz/ Acesso em: 25 de jun. de 2023.

NESTAREZ, O. O horror que emana do poder: uma entrevista com Mariana Enriquez.
Literartes, [S. l.], v. 1, n. 15, p. 13-24, 2021.

TIBURI, Marcia. Feminismo Em Comum Para Todas, Todes e Todos. Rio de Janeiro:
Rosas dos tempos, 2018.

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Amor dos homens néscios
Profa Dra. Ingrid Karina Morales Pinilla
Universidade Federal do Amazonas
karinamorales@ufam.edu.br

Fatima Regina Da Vera Cruz Ribeiro


Universidade Federal do Amazonas
reginaveracruz18@gmail.com

Rosilene Macedo Correa


Universidade Federal do Amazonas
rosilenecorreaufam@gmail.com

Resumo
Com subsídio dos estudos da historiadora Sarah Grieco sobre o amor e a sexualidade no século XVII,
analisa-se a crítica às contradições amorosas dos homens, no poema barroco “Homens néscios”, da escritora
Mexicana Sor Juana Inês De La Cruz. A poetiza aborda o papel masculino no jogo amoroso como uma
característica negativa, usando o adjetivo “néscio” que significa “carente de inteligência ou de razão”. Assim,
o poema desde o começo até o final é transgressor, tendo em conta que é uma autora que questiona atitudes
do gênero masculino, em um contexto patriarcal. O eu poético atribui culpa aos homens por provocar as
mulheres a fazer coisas “reprováveis”, evidenciando a mentalidade da época associada ao cânone moral que
considera o prazer sexual como “incitação ao mal”. Também, critica o posicionamento irracional e
contraditório dos homens, pois exigem um decoro inflexível da mulher, ao mesmo tempo que lutam pela
correspondência de seus desejos eróticos. E ao final, seja qual for o resultado é sempre negativo para a
reputação feminina.

Palavras-chave: Homens néscios; Sor Juana Inés; Amor no Barroco.

Sor Juana Inés de la Cruz3 (1651-1695) foi uma importante figura literária e cultural da
Nova Espanha, denominado atualmente como México. Ela nasceu na cidade mexicana San Miguel
Nepantla, e, desde jovem, mostrou um grande interesse pela literatura e pela aprendizagem.
Durante sua infância foi educada em casa pelo seu avô paterno, que lhe ensinou a ler e escrever em
espanhol e náuatle, sendo esta última a língua dos astecas.
Aos 16 anos, ingressou no convento chamado Carmelitas Descalças, local onde recebeu
sua formação religiosa e literária. Desde então, rapidamente destacou-se como uma escritora

3A breve biografia de Sor Juana Inés de la Cruz, descrita neste trabalho, tem como embasamento os trabalhos de
Lopes & Silva (2018) e Fernández & Tamaro (2004).

14
talentosa e erudita, publicando seu primeiro poema, "A Laude" em 1680. Na sua obra literária, ela
aborda temas como a fé, a razão, o amor e a natureza, e escreveu tanto em prosa quanto em verso.
Apesar do talento literário, Juana Inés teve que enfrentar críticas e oposição por parte da igreja e
da sociedade mexicana, sendo questionada por estudiosos e líderes religiosos por sua defesa no
direito das mulheres à educação e por sua crença na importância da razão e da ciência. Além das
suas atividades literárias, também se envolveu em questões políticas e sociais, ajudando a fundar
uma escola para meninas em seu convento. Assim, as alunas podiam receber uma educação que
incluía ciências, línguas e músicas. Com uma postura pautada no senso crítico, usava sua influência
e sua posição enquanto escritora para defender a igualdade e os direitos das mulheres.
Esta relevante escritora morreu em 1695, vítima de uma epidemia de tifo, mas sua obra
literária e seu legado como defensora da educação e dos direitos das mulheres continuaram a
influenciar a cultura mexicana e latino-americana até os dias atuais. Ela é considerada uma das
maiores escritoras da literatura hispano-americana e uma prestigiosa figura na história da literatura
mundial. Também é considerada uma voraz defensora das mulheres através de suas obras literárias.
Nesse sentido, destaca-se seu poema intitulado “Homens Néscios”, publicado em 1689, que se
tornou um marco de reivindicação dos direitos e espaços femininos.
O poema “homens néscios” nasce em um contexto histórico em que as mulheres vêm
sendo acusadas durante muito tempo por teólogos misóginos e por clérigos sexualmente frustrados
de serem réplicas de Eva, a mãe de todos os homens. Nessa época, século XVII, de acordo com a
historiadora Sara Matthews Grieco (1991, p.93), as mulheres eram representadas como tentadoras
e enganadoras, cujo principal objetivo na vida era seduzir homens inocentes e entregá-los ao
Satanás. Em vista disso, o amor e a sexualidade, na época do Barroco, estavam imersos em uma
promoção radical da castidade e do pudor em todas as áreas da vida quotidiana.
Antes de começarmos a análise do poema “homens néscios” é importante ressaltar a
intrepidez da escritora Sor Juana Inês de la Cruz em abordar a temática do amor e a sexualidade,
tendo em conta seu contexto e seu papel como religiosa. Esses assuntos eram extremamente
controlados pelas autoridades civis e religiosas da época. De acordo com Grieco (1991, p. 11), nos
séculos XVI e XVII predominavam dois estereótipos de comportamento amoroso: relações
conjugais moderadas, frequentemente sem amor, visando colocar no lar um herdeiro, ao mesmo
tempo que relações extraconjugais proporcionavam o cenário para o prazer sexual, também sem
amor. A esse respeito, tanto a literatura médica, quanto os tratados de teologia e os manuais de
moral promoviam uma visão natalista da atividade sexual, na qual o prazer era apenas permitido

15
para a procriação. Nesse sentido, Grieco (1991, p. 100) expõe que as autoridades religiosas
consideravam como pecado mortal não só todo o ato sexual praticado fora do casamento, mas
também todo o ato conjugal que não fosse realizado em função da reprodução. Para isso,
baseavam-se nas considerações de figuras religiosas de autoridade, tais como São Jerônimo e Santo
Tomás de Aquino.
De acordo com Grieco (1991, p.100), são Jerônimo declarara que o marido que abraçasse
a mulher com paixão excessiva era um “adúltero” porque a amava apenas para seu próprio prazer,
como o faria com uma amante. Essa teoria, reafirmada por São Tomás de Aquino, e repetidas
inúmeras vezes pelos autores de manuais de confissão ao longo dos séculos XVI e XVII, denúncia
a paixão no casamento que condenava tanto a mulher apaixonada como o marido libidinoso. Além
disso, a posições adoptadas pelo casal, inclusive, segundo Grieco (1991, p.100), estavam sujeitas a
um controlo rigoroso. A posição retro ou more canino (a não confundir com a “sodomia”) era
considerada contrária à natureza humana, pois imitava a cópula dos animais. Mulier super virum era
igualmente “não natural”, na medida em que colocava a mulher numa posição ativa e superior,
contrária ao seu papel social passivo e subordinado. Todas as acrobacias eróticas para além da
fórmula aprovada (a mulher deitada de costas e o homem por cima) eram consideradas suspeitas,
na medida em que privilegiavam o prazer em detrimento da procriação. A única posição que
favorecia a implantação da semente masculina era a que, de forma simbólica, era associada ao gesto
do lavrador a lavrar a terra.
Já no título do poema “hombres necios” (DE LA CRUZ, 2009, p. 92-93), anuncia-se que
vai se tratar de uma característica negativa dos homens, dado que o adjetivo “necio” significa
“carente de inteligência ou de razão”. Na continuação analisamos o poema “hombres necios”,
registrando a tradução em português, em nota de rodapé, de Anderson Braga Horta (2000).
Na primeira estrofe o eu poético atribui culpa aos homens por provocar as mulheres a fazer coisas
que eles reprovam, estendendo a queixa ao longo do poema, de forma cada vez mais incisiva:

Hombres necios que acusáis


a la mujer sin razón
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis:

si con ansia sin igual

16
solicitáis su desdén
¿por qué queréis que obren bien
si las incitáis al mal? 4
A hipérbole “ansia sin igual”, da segunda estrofe, mostra o esforço excessivo ou ansiedade
dos homens por conquistar às mulheres. E com a pergunta retórica, na continuação, reclama-se do
fato dos homens querer que as mulheres se comportem “bem” quando eles as incitam ao “mal”.
Com esse questionamento se evidencia a mentalidade da época associada ao cânone moral que
considera o prazer sexual como “incitação ao mal”. Na sequência se critica o posicionamento
irracional e contraditório dos homens, pois:
Combatís su resistencia
y luego, con gravedad,
decís que fue liviandad
lo que hizo la diligencia.

Parecer quiere el denuedo


de vuestro parecer loco
al niño que pone el coco
y luego le tiene miedo. 5

Nos versos supracitados se desaprova a ambígua postura masculina “parecer loco” que
exige um decoro inflexível da mulher, mas ao mesmo tempo luta pela correspondência de seus
desejos. Seja qual for o resultado é sempre negativo para reputação feminina.
No seguinte verso se faz alusão a duas figuras femininas da antiguidade que representam
arquétipos antagônicos da mulher, Thais6 e Lucrécia7:
Queréis, con presunción necia,
hallar a la que buscáis,
para pretendida, Thais,

4 Homens néscios que acusais a mulher sem ter razão, sem ver que sois a ocasião daquilo de que as culpais: se com
ânsia sem igual solicitais seu desdém, por que quereis que ajam bem, quando as incitais ao mal?
5 Guerreais-lhes a resistência e logo, com gravidade, dizeis que foi leviandade o que fez a diligência. Parecer quer o

denodo de vosso parecer louco o menino que faz coco e fica a tremer-se todo.
6 Thais foi uma cortesã ateniense, conhecida como amante de Alexandre, o Grande, e apontada como a responsável

pelo incêndio de Persépolis.


7 Lucrécia era considerada um modelo de castidade dentro do mundo cristão.

17
y en la posesión, Lucrecia. 8
Aquí se destaca o desejo incoerente dos homens. Eles querem “ter por perto” uma Thais e
chamar de “sua” uma Lucrécia, porém criticam ambas posturas: a primeira por fácil e a outra por
inacessível. Essa crítica se intensifica no seguinte verso com o uso da metáfora do espelho:
¿Qué humor puede ser más raro
que el que, falto de consejo,
él mismo empaña el espejo
y siente que no esté claro? 9

O espelho representa a virtude da mulher que o homem suja e assim mesmo ele a condena.
E continuam as antíteses de “favor” e “desdén” que os homens procuram:
Con el favor y el desdén
tenéis condición igual,
quejándoos, si os tratan mal,
burlándoos, si os quieren bien. 10
Se a mulher o rejeita, o homem reclama, e se por outro lado, ela cede a seus desejos, ele se
“burla” dela. Essa contradição da vontade masculina se critica de forma mais contundente na
continuação:
Opinión, ninguna gana;
pues la que más se recata,
si no os admite, es ingrata,
y si os admite, es liviana.

Esse verso, analisado desde uma perspectiva histórica enuncia o preço do amor que as
mulheres pagam. Segundo Grieco (1991, p. 115), para a maioria das mulheres o preço a pagar para
poderem dispor dos seus próprios corpos e afetos era muito superior ao que era pago pelos
homens. Cada vez menos protegidas contra as consequências da sedução e da concubinagem, as
mulheres eram igualmente discriminadas pela duplicidade do padrão de adultério em vigor.
Siempre tan necios andáis

8 Quereis, com presunção néscia, achar a que perseguis, se para noiva, Taís, se para amante, Lucrécia.
9 Que humor pode ser mais raro que o que, falto de conselho, ele mesmo embaça o espelho e clama por não ver claro?
10 Ante o favor e o desdém tendes condição igual: clamar, se vos tratam mal, zombar, se vos querem bem.

18
que, con desigual nivel,
a una culpáis por crüel
y otra por fácil culpáis. 11

Nos versos acima, também se critica a mentalidade do homem da época, usando de novo
o adjetivo “necio” que representa os devaneios morais do sistema patriarcal. Independente do
comportamento feminino ela sempre vai ser culpada: “ingrata” ou “leviana”, “cruel” ou “fácil”.
Em vista disso, o eu poético questiona a lógica da configuração da mulher que o homem
aparentemente quer:
¿Pues cómo ha de estar templada
la que vuestro amor pretende
si la que es ingrata, ofende,
y la que es fácil, enfada? 12

Mas, entre el enfado y pena


que vuestro gusto refiere,
bien haya la que no os quiere
y quejáos en hora buena. 13

Dan vuestras amantes penas


a sus libertades alas,
y después de hacerlas malas
las queréis hallar muy buenas. 14

Vejamos que as interrogações são parte fundamental da construção dos versos. As


perguntas são dirigidas de forma firme e impassível aos homens que desqualificam às mulheres
apaixonadas:

11 Toda opinião sua é insana; pois a que mais se recata, se não vos admite, é ingrata, se vos admite, é leviana. Sempre
tão néscios andais que, com desigual nivel, uma culpais por cruel, outra por fácil culpais.
12 Como há de estar temperada a que vosso amor pretende, se a que é ingrata vos ofende, se a que é fácil vos enfada?
13 Mas, entre o enfado e a pena que vosso gosto refere, bem haja a que não vos quere e em boa hora vos condena.
14 As vossas amantes penas dão-lhes aos seus vôos alas, e depois de ruins torná-las, querei-las boas pequenas.

19
¿Cuál mayor culpa ha tenido
en una pasión errada:
la que cae de rogada,
o el que ruega de caído?

¿O cuál es más de culpar,


aunque cualquiera mal haga:
la que peca por la paga,
o el que paga por pecar?

Pues ¿para qué os espantáis


de la culpa que tenéis?
Queredlas cual las hacéis
o hacedlas cual las buscáis. 15

Na integra de seis versos, que possuem preguntas retóricas, é questionada a hipocrisia dos
homens sedutores e sua posição moralista. Além disso, no verso anterior, o eu poético admoesta
os homens para assumirem a culpa que eles têm. E concluindo o verso lhes dá ordens aos homens
sobre como devem se comportar, através do paralelismo “Queredlas cual las hacéis o hacedlas cual
las buscáis”.
Cabe ressaltar que nesse contexto histórico, consoante a historiadora Sara Grieco (1991,
p.95), aos olhos das autoridades religiosas e civis, comandadas por uma mentalidade patriarcal,
existiam, basicamente, dois tipos de comportamento sexual, um aceitável e outro repreensível. O
primeiro era o conjugal e praticado em função da procriação. O segundo era governado pela paixão
amorosa e pelo prazer sensual, sendo seus resultados ilegítimos. Porém, a paixão sensual também
era condenável no interior do matrimônio, pois ameaçava o controle da afetividade conjugal e a
saúde dos filhos, além disso colocava em risco “a capacidade do casal de amar a Deus contaminados
como estavam pelo amor terrestre mais do que pelo amor espiritual” (GRIECO, p.96). Nesse

15Quem culpa maior tem tido em uma paixão errada: a que cai porque rogada ou o que roga de caído?
Ou qual é mais de culpar, se ostentam a mesma chaga, a que peca pela paga, ou o que paga por pecar?
Por que, pois, vos espantais das culpas em que incorreis? Querei-as qual as fazeis ou fazei-as qual buscais.

20
sentido, quando se ordena aos homens que aceitem as mulheres como elas são, está se advogando
pela quebra dos cânones sociais em prol da igualdade da mulher.
Na sequência, para concluir o poema, evidencia-se a revolta do eu lírico a respeito da
desigualdade entre os sexos, que deixa às mulheres em um estado de inferioridade, reprimidas de
viver suas paixões:

Dejad de solicitar,
y después, con más razón,
acusaréis la afición
de la que os fuere a rogar. 16

No verso supracitado, o eu poético continua dando ordens para os homens. Desta vez,
solicita que parem de tentar influenciá-las para depois acusá-las, colocando em relevo as relações
de poder, na qual o homem está num nível privilegiado. Conclui-se com a estrofe que diz:
Bien con muchas armas fundo
que lidia vuestra arrogancia,
pues en promesa e instancia
juntáis diablo, carne y mundo. 17
O eu poético julga que os homens juntam “diablo, carne y mundo”, noções bastante
representativas do Barroco que remetem simbolicamente ao pecado. Além disso, o fato de estarem
juntos esses três símbolos é uma advertência para os homens néscios de que suas ações podem
leva-los até o diabo. Tudo isso, tendo em conta que o sexo era pecaminoso, no século XVII,
autorizado apenas dentro do casamento, e, mesmo assim, apenas na sua função de procriação,
segundo linhas estritamente definidas pela Igreja e pelo Estado.

Considerações Finais
No poema “Hombres Necios” se retrata o amor, entre homens e mulheres, na sociedade
do século XVII, a través do julgamento que eu poético faz de forma irónica às atitudes amorosas

Deixai de solicitar, e depois, com mais razão, acusareis a afeição da que vos for suplicar.
16

Ah, com muitas armas fundo que lida vossa arrogância, pois em promessa e em instância juntais diabo, carne e
17

mundo.

21
dos homens. Além disso, nesse relacionamento desarmônico entre homens e mulheres, que é
revelado no poema, vislumbra-se a reivindicação da mulher para ter igualdade de direitos,
especialmente no sentido amoroso. Isso tudo sem perder os traços barrocos, Sor Juana Inés de la
Cruz, usando noções moralistas de sua época instiga os homens para refletirem sobre seu
comportamento e pararem de encaminhar pelos caminhos do “mal” às mulheres.

Referências
DE LA CRUZ, Sor Juana Inés. Obras completas de Sor Juana Inés de la Cruz. Edición,
introducción y notas de Antonio Alatorre. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2009.
FERNÁNDEZ, Tomás., TAMARO, Elena. Biografia de Sor Juana Inés de la Cruz. En Biografías
y Vidas. La enciclopedia biográfica en línea [Internet]. Barcelona, España, 2004. Disponível
em: <https://www.biografiasyvidas.com/biografia/j/juana_ines.htm 0>. Acesso em: 29 de maio
de 2023.
HORTA, Anderson Braga. Poetas do século de ouro espanhol: Poetas del siglo de oro
Español. Seleção e tradução de Anderson Braga Horta; Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo
Rivera. Brasília: Thesaurus. 2000.
GRIECO, Sarah F. Matthews. “O corpo, aparência e sexualidade”. p. 71 - 120. In: DUBY,
Georges. PERROT, Michelle (Orgs). História das Mulheres no Ocidente – Vol 3: Do
Renascimento à Idade Moderna. Direção de Arlette Farge & Natalie Zemon Davis. Tradução
de Alda Maria Durães et. al. Porto: Edições Afrontamento, 1991.
LOPES, Adriana. SILVA, Acir. Precursora da crítica feminista? Quem foi Juana Inés de la Cruz?
Revista Travessias. Cascavel. v. 12, n. 4, ed. esp., p. 149 – 162, dez. 2018.

22
Androides sonham com histórias de amor?
Alexandre Manoel Fonseca
Universidade Federal de Uberlândia
alexandre.fonseca@ufu.br

RESUMO: a música e as experiências amorosas, sejam elas dolorosas, festivas ou miraculosas, sempre
andaram de mãos dadas. Para muitos pensadores, os amantes sempre caem no golpe fatídico da idealização
e da expectativa, afinal, este último parece ser o sopro vital dos apaixonados. Por meio de uma análise de
reverberação mitológica, este estudo tem a intenção de aproximar a canção "No One Dies From Love", do
quinto álbum, Dirt Femme (2022), da cantora sueca Tove Lo; do mito grego de Pigmalião. Para este estudo,
pretendemos utilizar autores que conceituam amor e seus pormenores, como Platão (O Banquete) e Emilio
Mira Y López (Quatro gigantes da alma); além dos meandros do discurso mitológico, apresentados por Ovídio
(As metamorfoses) e Thomas Bulfinch (O livro de ouro da mitologia). Dessa forma, mostraremos que ao criar uma
narrativa musical, com um clipe de referências retrofuturistas, a cantora pretende demonstrar um amor
efêmero e desbalanceado, onde um dos amantes ama de forma platônica e pujante; enquanto o outro
descarta parceiros como bonecas cibernéticas compradas em catálogos. Afinal, mesmo morrendo de amor,
alguns ainda precisam continuar vivendo.

Palavras-chave: No One Dies From Love; Pigmalião; Amor; Mito.

Começo essa comunicação na tentativa de responder a pergunta-título: afinal, androides


sonham com histórias de amor? Não sou um androide ou uma máquina feita a partir de botões,
parafusos, fluxos artificiais, placas-mães, chips ou condutores. Não posso assumir esse “local de
fala”. Mas, sei quem, em tese, possa. E, como jornalista, diariamente sou obrigado a pensar em
personagens com falas cruciais para reportagens, entrevistas e notícias. Para responder essa
pergunta-título, antes de adentrar na análise da qual me propus sobre uma tentativa de aproximação
entre uma canção pop e um mito grego; consultei as ferramentas do ChatGPT — novo artifício
tecnológico que tem gerado debates sobre as novas fronteiras ultrapassadas sobre a relação homem
e máquina.
Em minha primeira empreitada, solicitei que a inteligência artificial me respondesse:
androides sonham com histórias de amor? E ele, que chamarei de Chat, comentou:

Como inteligência artificial, não posso afirmar com certeza se os androides sonham com
histórias de amor, pois isso envolve a experiência subjetiva e os processos internos de
um androide, que não tenho acesso direto. No entanto, posso discutir essa questão com
base em uma perspectiva geral.
Os androides são projetados para imitar a inteligência humana e se assemelhar a nós em muitos
aspectos. Eles podem ser programados para exibir emoções e sentimentos, incluindo amor.
Dependendo do design e da programação de um androide específico, ele pode ser capaz
de sonhar ou ter pensamentos imaginativos, assim como os humanos.

23
Se um androide tiver a capacidade de sonhar, é possível que ele sonhe com histórias de
amor. No entanto, é importante lembrar que os androides não têm uma experiência
subjetiva igual à dos seres humanos. Eles podem ser programados para entender e imitar
emoções, mas a profundidade e a complexidade dessas emoções podem ser diferentes
das experiências humanas.
Em resumo, embora os androides possam ser programados para exibir emoções e
sentimentos, incluindo amor, e possam ter a capacidade de sonhar, não podemos afirmar
com certeza se eles sonham especificamente com histórias de amor, já que isso depende
de fatores individuais e do design do androide em questão. (CHAT, 2023 - grifos meus).

Para Chat, o vislumbre de uma relação afetiva entre seres humanos e máquinas, talvez, em
um futuro não muito distante, seja uma questão complexa e especulativa, pois “algumas pessoas
acreditam que, à medida que a tecnologia avança, pode haver uma maior integração entre humanos
e máquinas, permitindo relacionamentos mais próximos e interações significativas” (CHAT, 2023).
Em continuidade, Chat pondera também que “no entanto, é importante notar que a construção de
relacionamentos verdadeiramente significativos entre humanos e máquinas envolve questões éticas,
sociais e filosóficas complexas” (2023).
Por fim, pergunto ao meu ilustre entrevistado, se ele acredita no amor.

Como inteligência artificial, não tenho a capacidade de acreditar ou experimentar


emoções como os seres humanos. O amor é uma emoção complexa e subjetiva que
envolve uma variedade de aspectos, como conexão emocional, cuidado, intimidade e
comprometimento. É uma experiência profundamente humana. (CHAT, 2023 - grifos meus).

Experiência profunda e profundamente humana. Sigmund Freud, em Além do Princípio do


Prazer, correlaciona o amor como fator civilizador, pois é no desenvolvimento da humanidade que
o amor é capaz de atuar como unificador, uma vez que é ele o responsável por metamorfosear o
egoísmo em altruísmo. Como apresenta Octavio Paz, em A dupla chama: amor e erotismo, não
existe nenhuma civilização que não possua poemas, canções, lendas, mitos e/ou contos sobre o
amor e que não discorram acerca de “sua mútua atração e os esforços e dificuldades que devem
enfrentar para se unirem” (PAZ, 1994, p. 34-35). Assim, por meio dos mitos e narrativas sagradas,
nos é transmitida a ideia de que o território amoroso é imantado pela dificuldade do encontro de
duas pessoas.
Antes de adentrar na análise propriamente dita, devo apresentar meu objeto de análise antes
de defrontá-lo com as teorias que possam o permear. O single “No One Dies From Love” foi
lançado no dia 3 de maio de 2022, como faixa integrante do Dirt Femme, quinto álbum de estúdio
da cantora sueca, Tove Lo. Em relação a canção, Lo comentou para a RollingStone, que ela foi forjada
por meio de emoções avassaladoras decorrentes de uma separação. “Quando você fica muito
tempo com alguém e acaba de repente, é como se uma parte de você tivesse morrido. Essa pessoa

24
agora é um estranho para você”, disse Lo (MIER, 2022). Completando: “Todas as memórias estão
contaminadas. Na primeira parte do rompimento, você acredita que não deveria se sentir bem com
nada que tiveram juntos" (MIER, 2022).
Na letra, Tove relaciona o amor à sombra da morte. Não a morte propriamente dita da
matéria, mas sobre o processo de finitude dos sentimentos; a morte como processo de mudança
— “Nós éramos tão mágicos, por que acabar assim? / Eu sei que você está furioso, sim, assim
como eu/ Você tem bons motivos, mas eu também tenho/ O que realmente aconteceu aqui? Eu
gostaria de saber” (LO, 2022)18. Por sua natureza, a mudança carrega em si uma ambivalência de
experiências. Talvez, seja por isso que o amor desprenda em muitas pessoas a sensação de medo,
pois a mudança que o amor oferta pode ser miraculosamente avassaladora ou dolorosa. Para Maria
de Lourdes Borges em Amor (2004), “o amor, na sua forma avassaladora, dissolve tudo o que é
fixo” (p. 19). Para alguns amantes, a sensação de não ter controle sobre a situação pode ser
amedrontadora e terrível, pois desejamos amar o que é conhecível e apaziguado. Aliás, arrisco em
dizer que nós procuramos no amor à luz para todos nossos problemas, uma recompensa por
termos resolvido todos os nossos conflitos. Porém, os caminhos do amor são imprevisíveis e
tortuosos.
No refrão de “No One Dies From Love”, Tove canta: “Ninguém morre de amor/ Acho
que vou ser a primeira/ Você vai se lembrar de nós/ Ou as memórias já estão muito manchadas
de sangue?” (LO, 2022)19. O fim do amor para os amantes pode significar o fim da própria vida.
Pois, afinal, o que serei sem meu bem? Para os antigos gregos, estamos sempre à procura de nossa
parte perdida, por isso a ânsia pela nossa “cara metade”. N’O Banquete, Aristófanes, um dos
convidados de Agatão, comenta sobre a origem dos homens. Antes, éramos divididos em três
gêneros: masculino, feminino e um andrógino; ser dotado de uma forma insólita: composto por
um dorso arredondado, os flancos circulares, quatro mãos, quatro pernas, dois rostos, “mas a
cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo
mais como desses exemplos se poderia supor” (PLATÃO, 1972, p. 28-29). Dotados de força e
audácia, esses seres desafiaram os deuses do antigo panteão. Entretanto, Zeus, munido de laboriosa
astúcia, prevendo algum possível ataque, resolve castigá-los:

18 Tradução do site Letras. “We were so magical, why end this way?/ I know you're furious, yeah, just like me/ You
got good reasons, but I do too/ What really happened here? I wish I knew”.
19 Tradução do site Letras. “No one dies from love/ Guess I'll be the first/ Will you remember us/ Or are the

memories too stained with blood now?”

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“Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com
a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada
um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós,
pelo fato de se terem tornado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se
ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os
cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando”. Logo que o disse
pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou
como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe
o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria
mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar.
Apolo torcia-lhe o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama
ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente
no meio do ventre, que é o que chamam de umbigo. (PLATÃO, 1972, p. 29).

É dessa forma que os deuses explicam a nossa “possível necessidade” de ir ao encontro de


nossa parte faltante. Estamos tentando resgatar uma natureza ancestral perdida e separada. Somos
seres mutilados que tentam, novamente, se reunir na esperança de completude perfeita. Ou na tola
tentativa de sermos um só corpo e espírito com o ser amado. Tomarei como ponto deflagrador
essa ação de reencontro que alguns teóricos conceituam como a base do amor romântico.

***

No clipe de “No One Dies From Love”, somos apresentados a um mundo distópico e
retrofuturista. De acordo com Elie During, no artigo O QUE É RETROFUTURISMO? –
INTRODUÇÃO AOS FUTUROS VIRTUAIS (2013), a palavra retrofuturismo é atribuída Lloyd
Dunn, “praticante da colagem sonora, cofundador dos Tape-Beatles e animador da revista
experimental Retrofuturism, um rebento neossituacionista do fanzine PhotoStatic, criado em 1983 nos
Estados Unidos” (DURING, 2013, s/p). Juntando dois termos que parecem antagônicos, Retrô e
futuro, o retrofuturismo pode ser caracterizado pelo

cruzamento de tecnologias ou formas de vida “futuristas” com outras tidas como caducas
ou ultrapassadas; de maneira mais geral, o termo assinala a transposição dessas
tecnologias e formas de vida a suportes ou a molduras de outro tempo. Em todos os
casos, “retrofuturismo” sugere a interpenetração de visões do futuro e de visões do
passado, e a imbricação de umas com as outras. Pois é evidente que as visões do futuro
podem ser elas mesmas datadas; na maioria das vezes o são, e é justamente aí que reside
toda a questão do retrofuturismo. Observando as coisas um pouco mais de perto, duas
tendências principais se destacam.
Para abreviar, haveria, de um lado, um fascínio divertido pelo futurismo “retrô”, pelas
imagens associadas às visões datadas do futuro; de outro, o imaginário ucrônico dos
mundos do passado, repintados com as cores do futuro: um “retrô” futurizado, se
quiserem. (DURING, 2013, s/p).

26
A partir dessa estética dicotômica, somos apresentados a um conto de fadas
retrofuturístico. Em um teaser da canção intitulado de “No One Dies From Love (Disney Princess
Edit)”, uma narradora comenta:

“Era uma vez, em um futuro passado, uma cantora solitária que ansiava por algo mágico.
Algo que faria o seu coração tocar como as batidas das suas músicas favoritas. Era um
amigo? Era um amor? Ela não estava certa. Mas ela sabia que tinha achado e que nunca
deixaria isso ir. Muitas tentativas em preencher seu vazio, mas até agora nada conseguiu.
Até… ninguém morre de amor. Adivinhe? Eu serei a primeira” (LO, 2022).

No começo, uma mulher nitidamente famosa, encontra-se entediada cercada por flashes.
Em sua luxuosa casa, após folhear um catálogo de compras, ela decide adquirir um modelo
chamado Annie 3.000. Ao chegar, a “Cantora Solitária” fica maravilhada com seu novo
“brinquedo”, enquanto tenta se comunicar com o androide de silhueta feminina. Annie só ganha
vida quando a Cantora toca em seu coração mecatrônico e diz que ela não se chama Tove, mas,
sim Annie. Um coração apagado brilha.

Imagem 1 - No catálogo, pode-se ler “Ela mudará sua vida para sempre. Com você onde quer que você vá”.
No segundo frame, o coração brilha quando Tove se apresenta e o toca. A robô ganha “vida” após saber seu
nome.
Fonte: YouTube.

Annie ganha vida e serventia após ser apresentada a uma identidade. Foi preciso que uma
outra pessoa a apresentasse para ela mesma. A partir disso, dona e criatura passam a dividir a vida
juntas: jogos, festas, passeios de moto. Com o passar do tempo, algo entre elas cresce, o que,
aparentemente, parece ser afeto. Mas, antes do primeiro beijo, existe uma escalada. Troca de
olhares, toques de dedos… algo começa a brotar, a iluminar entre elas.
De acordo com Emilio Mira Y López, em Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor e o dever
(1960), em uma de suas primeiras fases, o amor ilumina o objeto amado. Antes de tudo, o sociólogo,
psiquiatra e psicólogo, pondera que, de antemão, convém “salientar que o amor não é algo que nos

27
“chega”, nos “invade” ou “cai” sobre nós, e sim um especial modo de ser que sobrevém em nosso
íntimo, apoiado e estimulado por certas condições e fatores situativos” (LÓPEZ, 1960, p. 192-
193). Nesta fase inicial, somos “condenados” a contemplar e adorar o outro ser; aperfeiçoando-o
e iluminando seus aspectos mais positivos. Para enfatizar essa fase e conceituá-la melhor, López
recorre ao filósofo Joaquín Xirau Palau que diz:

“Em presença do amor a pessoa ou coisa amada sofre ante o olhar do amante uma
verdadeira transfiguração. O olhar amoroso vê nas pessoas e nas coisas qualidades e
valores que permanecem ocultos a um olhar indiferente ou rancoroso. Todo ser possui,
ao lado características superficiais que se oferecem a quem quer às olhe, uma infinidade
de propriedades, boas ou más, que permanecem em seu íntimo, e ainda muitas outras
que, embora ignoradas, é possível que algum dia venham a se manifestar e mude
totalmente sua fisionomia interior ou exterior. Há portanto, em todo ser, algo atual e
latente. E entre todas as propriedades e valores que possui uma pessoa ou uma coisa ,
superficiais ou profundas, virtuais ou atuais, os há bons e maus, melhores e piores,
detestáveis ou excelentes.
Ora, o olhar apaixonado percebe no ser amado o conjunto de todas as qualidades e
valores que o integram e destaca, em primeiro lugar, aqueles que entre todos possuem
qualidade ou valor superior. A partir daí, tende a incrementá-los e a sublimá-los, a por
tudo o mais na sua dependência, e a levar, se é necessário, com esforço, sua imperfeição
à plenitude.
O amor é, portanto, claridade e luz. Ilumina no ser amado suas recônditas perfeições e
percebe em conjunto o volume de seus valores atuais e virtuais” (LÓPEZ, 1960, p. 193-
194).

Apaixonada, Annie se entrega à sua dona. Mesmo sem lábios, se beijam. Afinal, o que pode
impedir os amantes? Em muitas histórias, percebemos que as diferenças não importam aos
amantes; eles só querem se entregar a completude perfeita. Entretanto, relembra López que essa
fase pode se dar como uma rápida centelha ou como um lento amanhecer.

Imagem 2 - Annie e a Cantora Solitária se entregam.


Fonte: YouTube.

28
As máquinas são sempre entendidas como seres perfeitos. Não erram. Aliás, não podem
errar, ao contrário dos humanos, porque já nascem preparados para a função da qual foram
designados ou preparados. Se Annie seguir à risca o lema publicitário da sua campanha, ela
acompanhará seu amo até onde ele a quiser. Ao contrário de uma pessoa, os andróides não
aprendem com sucessivos erros. Mas, existe perfeição nos relacionamentos? Assim como Annie,
Galateia também foi criada para ser perfeita; incomparável aos demais seres naturais, humanos de
nascença. Na narrativa grega, Pigmalião era um exímio escultor de Chipre que somente via defeitos
nas mulheres da ilha, abominando suas imperfeições e devassidão. Seu talento era tão grande que,
certo dia, esculpiu uma estátua tão perfeita que se não fosse a frieza do mármore, passaria por um
ser humano. Segundo Thomas Bulfinch, “a arte, por sua própria perfeição, ocultava-se, e a obra
parecia produzida pela própria natureza. Pigmalião admirou sua obra e acabou apaixonando-se pela
criação artificial” (2006, p. 71). Seu amor pela sua criação era tão grande, que ele a vestia e adornava
tal qual uma verdadeira mulher, de carne e osso.

Imagem 3 – Pigmalião e sua criação perfeita feminina


Fonte: Angelo Bronzino, Wikipédia.

29
Em As Metamorfoses, Ovídio comenta que a agonia da impossibilidade amorosa entre criador
e criatura chegou aos ouvidos da deusa do amor, Vênus. Durante o ritual dedicada a antiga deusa,
enquanto novilhas eram cobertas de ouro e sacrificadas; e os incensos pairavam pelo ar da ilha,
Pigmalião se aproximou dos altares e proferiu:

Se tudo podeis dar, ó deuses, eu desejaria que fosse minha esposa — não se atrevendo a
dizer 'donzela de marfim', completa: 'parecida com a minha donzela de marfim'. A
própria Vênus, que estava presente à festa, recoberta de ouro, percebeu o que queria dizer
a súplica, e, como presságio favorável, a chama se acendeu três vezes e uma língua de
fogo correu pelo ar. (OVÍDIO, ano, p. 190).

No regresso do seu lar, Pigmalião deita-se no leito junto com sua estátua esculpida e, ao
tocá-la, percebe que já não era mais um pedaço de pedra, e sim uma mulher viva. Então, o ilustre
escultor, “com palavras exaltadas, rendeu graças a Vênus, e aperta, enfim, de encontro à boca uma
boca que não era falsa. A virgem sente o beijo e enrubesce” (OVÍDIO, ano, p. 191). Dessa relação,
me pergunto: a criação teve outro destino a não ser amar seu criador? Galateia teria outra opção
ou ela foi criada apenas para amar o exigente Pigmalião? Certamente, não. Ela foi, literalmente,
criada a partir das expectativas em relação ao sexo feminino que o escultor projetou em sua arte.
Ao contrário da estátua, Annie não foi criada para o amor propriamente dito; mas, assim como
uma estátua que ganha vida, seu coração robótico pulsa e vibra pelo seu objeto amoroso. Sendo
assim, tanto o mito de Pigmalião quanto a música de Tove Lo abordam a ideia de dar vida a algo
que era inicialmente inanimado. No mito, a estátua ganha vida através da intervenção divina,
enquanto na música, Tove Lo fala sobre como o amor pode trazer uma nova dimensão e vitalidade
à vida de alguém.
Ambas as obras exploram a ideia do amor idealizado e da busca pela perfeição nas relações.
No mito, o escultor cria uma estátua perfeita de sua amada idealizada, enquanto na música de Tove
Lo, há referências ao desejo de amor perfeito e incondicional. Ambos os trabalhos podem ser vistos
como reflexões sobre as expectativas e as realidades complexas do amor romântico. Infelizmente,
Annie 3.000 não consegue realizar seu projeto amoroso, pois é descartada por um modelo mais
novo, chamado Eva; o que prova o desbalanço da relação idealizada. E, devido sua experiência ou
inexperiência no campo da desilusão, em um ato extremo e dramático, ela arranca seu próprio
coração mecânico, preferindo a morte do que a perda. Assumindo, aqui, um discurso bíblico de
que o amor é forte como a morte, nem mais ou menos, iguais. Por isso, a aproximação das duas
experiências que só existem no tempo humano.

30
Referências bibliográficas
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. Ediouro, 2006.

CHATGPT. Androides sonham com histórias de amor? [Entrevista concedida a] Alexandre Manoel
Fonseca. Online. Minas Gerais. 10 de jun. 2023.

DURING, Elie. O que é retrofuturismo?: introdução aos futuros visuais. Introdução aos futuros
visuais. 2013. Disponível em: <https://artepensamento.ims.com.br/item/o-que-e-
retrofuturismo-introducao-aos-futuros-virtuais/>. Acesso em: 10 jun. 2023.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2016.

LÓPEZ, Emilio Mira Y. Quatro gigantes da alma: o medo, a ira, o amor e o dever. Rio de Janeiro
(RJ): Editora José Olympio, 1960.

OVÍDIO. As Metamorfoses. Ediouro, 1983.

PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Editora Abril, 1972.

31
E mais vi val morrer ca tal coita sofrer: a cantiga de
amor medieval como instância inaugural poética das
dores de amor20

Wendel de Souza Borges


Universidade Federal de Uberlândia – wendelsborges@gmail.com

Resumo: Com o surgimento da poesia trovadoresca na Provença no final do século XI e com a sua difusão
pela Península Ibérica no século XII, a cortesia amorosa, ao menos idealmente, passou a representar o modo
pelo qual os trovadores cantavam suas dores de amor pela inacessibilidade da concretude de seus desejos,
engendrando na literatura o sofrimento que pode ser identificado ao serviço cortês e à coita. Esse
repositório literário construído na Europa entre as centúrias XI e XV deixou características residuais na
literatura brasileira, sendo que uma delas é constituída pela inserção da coita e os outras como a vassalagem
amorosa, a conexão entre sentimento amoroso–imaginário religioso e o uso do senhal foram relevantes por
moldar e para fundamentar um homem carente de satisfação no aspecto do sentimento e de suas emoções.
Portanto, alicerçado sobre a Teoria da Residualidade Cultural e Literária; e em uma metodologia analítico-
comparativa, é possível perceber tais características em todos os momentos da literatura brasileira, de Padre
José de Anchieta à Cecília Meireles, passando por Gregório de Matos e Gonçalves Dias.

Palavras-chave: Trovadorismo; Literatura brasileira; Dores de amor.

É inegável que há uma produção literária que tem o amor e suas dores como aspecto
motivador em sua construção. Deste modo, pode-se estabelecer elos entre a literatura produzida
na Península Ibérica a partir do século XII e que migrou para o Brasil no século XVI com as
produções literárias desde então, identificando os vestígios deixados pelo Trovadorismo durante
esse trajeto. Da literatura quinhentista do padre José de Anchieta à modernista Cecília Meireles e
permeando a obra barroca de Gregório de Matos; do romântico, Gonçalves Dias, a sátira e a lírica
dos trovadores e jograis galego-portugueses mantiveram-se ativas no decurso processual do labor
literário brasileiro.
Consoante Fustel de Coulanges (1961, p. 30), “felizmente o passado nunca morre por
completo para o homem. O homem pode esquecê-lo, mas continua sempre a guardá-lo em seu
íntimo, pois o seu estado em determinada época é produto e resumo de todas as épocas anteriores”.
Portanto, a literatura é construída pelo acúmulo de sedimento residual21. Este, “de natureza cultural,

20 Artigo extraído da Tese de Doutoramento intitulada "Literatura, história e representação: do Trovadorismo galego-
português à contemporaneidade em Adolfo Mariano", orientada pelo Prof.º Dr.º João Batista Cardoso e defendida na
Universidade Federal de Catalão em fevereiro de 2022.
21 Raymond Williams (1979, p. 124-129), assim, conceitua o que vem a ser residual: “Por “residual” quero dizer alguma

coisa diferente do “arcaico”, embora na prática seja difícil distingui-los. Qualquer cultura inclui elementos disponíveis

32
é dotado de vigor, aproveitável a qualquer momento pela força criativa, em razão da faculdade que
lhe é inerente, de vir a ser nova obra” (ROBERTO PONTES, 2014, p. 113). Isto é, proveniente
de outros tempos, o que é residual na literatura tem por objetivo frutificar o elemento da novidade.
É pertinente observar como essa literatura trazida da Europa se desenvolveu no Brasil e como, por
vezes associada a elementos culturais dos nativos e dos escravizados, persistiu residualmente em
formas e temas no decorrer dos tempos literários nacionais. É oportuno perceber que certas marcas
e características de literaturas do passado permanecem ativas na produção literária subsequente,
como é o caso do fin’amor:

Um amor puro, perfeito, delicado, cujo desenrolar envolvia o frenesi provocado


pelo erotismo e pelo controle do desejo, uma vez que cantava o amor ora
inacessível, que não espera recompensa, apenas se submete totalmente à amada,
com o compromisso de honrá-la e servi-la com fidelidade e discrição, ora carnal
e adúltero. O fin’amor será o modo próprio de amar, ou de se comportar perante
o ser amado, da cortesia. (MENDES, 2013, p. 49)

No universo do Trovadorismo medieval, o teor geral na cantiga de amor condiz com o


idealismo, a submissão e a reverência entre aquela que é objeto do amor e aquele que luta pelo
reconhecimento do sentimento que por ela ele nutre. A aura de espiritualidade que caracteriza as
relações durante o período medieval contamina a atmosfera amorosa que perpassa a cantiga de amor.
Mas a despeito dessa aura, o apelo erótico não se esgota, porque o homem encontra uma forma de
espiritualizar seus sentimentos elevando-os à categoria do eterno, daqueles elementos que
encontram sobrevivência num mundo que não se esgota na existência terrena. Atentemos para
esses aspectos no seguinte trecho de D. Dinis22 que, serve a seu propósito neste estudo, que é o de
exemplificar com uma cantiga de amor as questões postas acima. Eis a cantiga23, composta no século
XIII:

Em gram coita, senhor,


Que peior que mort’é,
Vivo, per boa fé,

do seu passado, mas seu lugar no processo cultural contemporâneo é profundamente variável. Eu chamaria de
“arcaico” aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo,
a ser “revivido” de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante. O que entendo pelo “residual”
é muito diferente. O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está vivo no processo
cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento ativo do presente. Assim, certas experiências,
significados e valores que não se podem expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante,
ainda são vividos e praticados à base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e
cultural anterior”.
22 Biografia disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=25&pv=sim
23 Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=510&pv=sim

33
E polo voss’amor
Esta coita sofr’eu
Por vos, senhor, que eu

Vi polo meu gran mal,


E melhor mi será
De morrer por vós já
E, pois meu Deus non val,
Esta coita sofr’eu
Por vós, senhor, que eu

Polo meu gran mal vi,


E mais vi val morrer
Ca tal coita sofrer,
Pois por meu mal assi
Esta coita sofr’eu
Por vós, senhor que eu

Vi por gran mal de mi,


Pois tan coitad’and’eu24

As dores de amor, portanto, estão na vanguarda da construção poética da literatura


ocidental. Assim como nas cantigas de amor, essa temática é presente também nas cantigas de amigo,
como nesta de Martin Codax, provável jogral galego, cuja produção situa-se na última metade do
século XIII:

Ai Deus, se sab'ora meu amigo25


com'eu senheira estou em Vigo!
E vou namorada...

Ai Deus, se sab'ora meu amado


com'eu em Vigo senheira manho!
E vou namorada...

Com'eu senheira estou em Vigo


e nulhas gardas nom hei comigo!
E vou namorada...

24 As cantigas foram traduzidas livremente de acordo com o glossário disponível em


https://cantigas.fcsh.unl.pt/glossario.asp
Em grande sofrimento, senhora,/Que pior que morte é,/Vivo, por boa fé,/E pelo vosso amor/Esta desdita sofro
eu/Por vos, senhora, que eu/Vi pelo meu grande mal,/E melhor me será/De morrer por vós já/E, pois meu Deus
não vale,/Esta dor sofro eu/Por vós, senhora, que eu/Por meu grande mal vi,/E mais vi vai morrer/Aqui tal coita
sofrer,/Pois por meu mal assim/Esta coita sofro eu/Por vós, senhora que eu/Vi por grande mal de mim,/Pois tão
coitado ando eu./
25 Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=1311&tr=4&pv=sim

Ai, Deus, se sabe agora de meu amigo/Como eu estou sozinha em Vigo/E vou namorada/Ai, Deus, se sabe agora de
meu amado/como eu em Vigo sozinha pernoitarei/E vou namorada/Como estou sozinha/E ninguém me guarda/E
vou namorada/Como eu em Vigo sozinha pernoitarei/E nenhuma vigia comigo trago/E vou namorada/E ninguém
me guarda/Exceto meus olhos que choram comigo/E vou namorada/ E nenhuma vigia comigo trago/Exceto meus
olhos que choram ambos/E vou namorada.

34
Com'eu senheira em Vigo manho
e nulhas gardas migo nom trago!
E vou namorada...

E nulhas gardas nom hei comigo,


ergas meus olhos que choram migo!
E vou namorada...

E nulhas gardas migo nom trago,


ergas meus olhos que choram ambos!
E vou namorada...

Nesse exemplo, o sujeito poético feminino se põe a clamar pela chegada do amado e indica
que essa espera é motivo para seu sofrimento, uma vez que ela está sozinha na praia de Vigo e
ninguém a vigia, logo, uma oportunidade para o encontro do casal. Sua vida, suas realizações estão
ligadas à chegada do navegante que há de vir à praia depois da pescaria ou depois da guerra.
A partir de então, assistimos a toda uma produção literária que tem, como já mencionado,
o amor e suas nuances como temáticas na literatura do padre José de Anchieta; na obra barroca de
Gregório de Matos; no romantismo de Gonçalves Dias; como nos escritos modernos de Cecília
Meireles. Sendo assim, é possível traçar um itinerário da literatura oriunda da Península Ibérica na
produção literária do Brasil, de maneira a identificar os vestígios deixados pelo Trovadorismo
durante essa trajetória.
Conforme Eduardo Portella (2005, p. 12), “Anchieta deve ser entendido como uma
manifestação de cultura medieval no Brasil. E medieval não somente pelo seu comportamento”,
mas, pela sua construção poética que oscilava entre o sagrado e o profano, o que o caracterizou
como um poeta de transição, no entanto, “no caso particular de Anchieta, a sua própria condição
de jesuíta fazia-o, pelo menos, um homem pouco apegado ao Renascimento puro” (PORTELLA,
2005, P. 13). Todavia, essa transição é presente no momento histórico em que viveu: o
Renascimento clássico emergente, objetivando sobrepujar as formas literárias medievais, não a
ponto de com elas desaparecer, porém, relegando-as às camadas populares, cuja mentalidade muda
com mais vagar reforçando o uso da memória26.
Aliás, é justamente por sua crença na memória que Anchieta elabora um projeto poético que
visava não somente a um fazer artístico, mas um meio didático de evangelizar o gentio, calcado na
memorização. Com esse intento construiu uma poesia de formas modestas, dotada de apuro

26Le Goff (1990), ao tratar da memória discorre que a individualidade está sujeita ao coletivo, sendo assim, a memória
é organizada e compartimentada socialmente servindo de parâmetro entre elementos do passado e do presente.

35
musical, que rompeu as fronteiras idiomáticas entre os dois povos27 e fez com que o indígena nativo
assimilasse, através da memória ou da simples memorização, a cultura do português recém chegado,
propiciando, assim, uma interação e uma integração de culturas. Esse tipo de poesia pode ser
exemplificado com o texto A Santa Inês, presente em Portella (2005, p. 14),

Cordeirinha linda,
como folga o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo!

Cordeirinha santa,
de Iesu querida,
vossa santa vinda
o diabo espanta.

Vossa formosura
honra é do povo,
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Vinde mui depressa


ajudar o povo,
pois com vossa vinda
lhe dais lume novo.

Vós sois, cordeirinha,


de Iesu formoso,
mas o vosso esposo
já vos fez rainha.

Também padeirinha
sois de nosso povo,
pois, com vossa vinda,
lhe dais lume novo.

Santa padeirinha,
morta com cutelo,
sem nenhum farelo
é vossa farinha.

Ela é mezinha
com que sara o povo,
que, com vossa vinda,
terá trigo novo.

CANTAM:

27 Alfredo Bosi aborda essa questão na obra Dialética da colonização (1992). Disponível em:
https://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Bosi,%20Alfredo/Dialetica%20Da%20Colonizacao.pdf
Acesso em 18/01/2022.

36
Entrai ad altare Dei
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Iesu, que é sumo rei.

Nessa cantiga, redigida à moda da medida velha28 e dedicada à Santa Inês, o poeta adota um
caráter devocional típico das cantigas de amor e das cantigas de loor. Assim, embora a cortesia seja
direcionada a uma santa da Igreja Católica, a “virgem mártir mui formosa” ocupa o espaço da nobre
dama que tem suas qualidades cantadas no alaúde do trovador. Isso se confirma e se reforça com
outra característica da cantiga de amor: no uso do senhal, recurso utilizado, também, por Afonso X,
nas Cantigas de Santa Maria29. Então, adotando os simbólicos senhais, Cordeirinha, Padeirinha e até
mesmo rainha, Anchieta confere a esta, dessa maneira, uma posição nobiliárquica de suserana de
alta categoria social, a quem o poeta deve o seu louvor. No entanto, essa rainha tem como qualidade
a benevolência social. Preocupada com a situação do povo, provê-lhe, conforme Bosi (2006, p. 21),
“as necessidades materiais, como a nutrição, o calor e o medicamento”. Portanto, o poeta traduz
nesse poema, as urgências do homem comum do medievo, alheio ao Renascimento intelectual que
emergiu a partir da Itália em finais do século XIII e tardiamente em Portugal em meados do século
XV.
Essa posição de nobreza referente ao lugar ocupado, acontece porque o poeta invoca a
ideia de matrimônio entre a santa e “Iesu, que é sumo rei”. Há, nesse conúbio, a presença de um
platonismo típico dos jograis e trovadores, uma vez que o amor é idealizado e nunca pleno de
concretude. Anchieta produz uma poesia simples, entretanto, consoante Portella (2005, p. 15), sua
“lírica é rica e múltipla através de seus diversos sentimentos: de amor, de admiração (para com
Deus), de dor (para com o mundo), de denúncia (para com o homem)”. Porém, de acordo com
Portella (2005, p.17), uma poesia “medieval também pela sua forma poética, seus ritmos, sua
métrica. A sua própria linguagem apresenta, por vezes, traços nitidamente medievalizantes”, como
pode ser observado no verso “Entrai ad altare Dei”, em que o poeta propõe um jogo de palavras
no intuito hibridizante de uma junção entre o latim, língua canônica e o seu descendente, o
português, língua usual e corrente. Logo, pode-se reafirmar que Anchieta promove a continuidade
da Idade Média, que atravessa o Renascimento para emitir laivos no Barroco brasileiro.

28 De acordo com Bosi (2006, p. 29), “na literatura, a medida velha, o teatro vicentino com sua descendência espanhola,
a novela de cavalaria, a crônica de viagens, a prosa ascética e devota ilustram a permanência das formas medievais”.
29 Nas Cantigas de Santa Maria, conjunto de canções dedicadas à Nossa Senhora e atribuídas ao rei castelhano, D. Afonso

X, os senhais, rosas das rosas/fror das frores, dona das donas/sennor das sennores, são utilizados. (GOUVÊA; OLIVEIRA,
2020)

37
No Brasil, o Barroco desponta, didaticamente, no início do século XVII, com a publicação
da obra Prosopopeia, de Bento Teixeira, editada em Lisboa, em 1601. Embora Bosi (2006, p. 34)
afirme que “no Brasil houve ecos do Barroco europeu durante os séculos XVII e XVIII”, foi,
sobretudo, com o padre Antônio Vieira e Gregório de Matos, que o Barroco se erigiu na Bahia e
delineou seus contornos no horizonte da arte literária brasileira. Arte esta que, engendrada no
panteão histórico das transformações e agitações ideológicas e culturais da centúria XVII, entendeu
que as projeções do Renascimento não se sustentavam mediante as angústias e aflições do homem
setecentista.
O padre Antônio Vieira inscreve-se nas letras tanto da literatura brasileira quanto na
literatura portuguesa. Sua origem humilde na cidade de Lisboa, em 1608, sendo ele filho de um
soldado da cavalaria e uma padeira, como atesta Ronaldo Vainfas (2011, p. 19), levou-o, com a
família, para terras brasileiras. Ora, sabe-se que a Idade Média persistiu junto à baixa estratificação
social, portanto, Vieira e a família traziam consigo as práticas e a mentalidade inerentes ao medievo.
Ou seja, de acordo com Raquel Guimarães (2012, p. 30), “Vieira é um homem medieval, porque o
medievo o sobreviveu em várias maneiras”. Por isso, sua natividade portuguesa e a sua vida
eclesiástica na colônia, o coloca entremeio ao novo e ao velho mundo, logo, uma ponte a ligar a
Idade Média portuguesa ao Brasil.
Como se pode observar no trecho do Sermão da bula da Santa Cruzada, presente em Vieira
(2008, p. 253), “tomai a Bula da Santa Cruzada, e sem sair de Lisboa fostes a Compostela, fostes a
Roma, fostes a Jerusalém porque as graças que lá haveis de ir buscar aqui se vos concedem, não
diversas, nem menores, senão às mesmas”. No fragmento em questão, o eloquente Vieira faz uma
alusão aos procedimentos bélicos impingidos aos mouros à guisa de guerra santa na Península
Ibérica, em particular Lisboa, do mesmo modo em que destaca as principais cidades sacras da
Europa medieval.
O outro expoente do Barroco nacional é Gregório de Matos. Sobre este, Oliveira, Silva e
Leite (2019, p. 3), afirmam que é um “poeta que soube retratar a sociedade, os costumes e as
situações da vida colonial brasileira através dos versos satíricos, cheios de ironia, com um
maravilhoso jogo de rimas, de palavras e imagens”. Gregório de Matos insere-se no panteão
satírico, seguindo o exemplo da poesia trovadoresca de escárnio e de maldizer. No entanto,
Segismundo Spina (1995, p. 48) afirma que o Boca do Inferno “militou por todos os setores da poesia:
na sátira, na lírica profana e religiosa, na encomiástica, explorando também todas as formas
versificação”. Portanto, além de hábil versejador e crítico social, sabe-se que Gregório de Matos,

38
segundo José Silva (2005, p. 124) era “tocador de violão e cantador de modinhas” e, desse modo,
consoante Oliveira, Silva e Leite (2019, p. 12), “também é considerado antecedente do cancioneiro
brasileiro, pois fazia versos à lira, apoiando-se em violas de arame para compor solfas e lundus”.
Bem ao gosto dos trovadores e jograis do medievo, o poeta baiano, além da música, também
desfiou uma lírica impregnada de questões amorosas, morais e laudatórias.
Na lírica profana pode-se vislumbrar características da literatura do Trovadorismo
medieval, como no soneto Terceira impaciência dos desfavores de sua senhora, presente em Matos (2010,
p. 254),

Dama cruel, quem quer que vós sejais,


Que não quero, nem posso descobrir-vos,
Dai-me agora licença de arguir-vos,
Pois para amar-vos tanto me negais.

Por que razão de ingrata vos prezais,


Não pagando-me o zelo de servir-vos?
Sem dúvida deveis de persuadir-vos
Que a ingratidão a formosenta mais.

Não há cousa mais feia na verdade;


Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará uma fealdade?

Depois que sois ingrata, me parece


Torpeza hoje, o que ontem foi beldade
E flor a ingratidão, que em flor fenece.

Neste poema, o tema da dama sem compaixão, tão caro aos trovadores provençais e galego-
portugueses, é retomado. A senhora, nomeada apenas pelo senhal, “dama cruel”, por quem o eu-
lírico clama e declara seu amor é indiferente e mesmo sádica, por negar-lhe o que espera ser
correspondido. Sendo assim, a expectativa seria a de levar o leitor a crer que essa indiferença por
parte da dama faria o eu-lírico dela se distanciar, no entanto, o que ocorre é a intensificação da
beleza feminina por meio desse descaso, uma vez que a “ingratidão a formosenta mais”. Esse
sofrimento pode ser identificado ao serviço cortês e à coita, como nos versos, “Não pagando-me o
zelo de servir-vos? E pois para amar-vos tanto me negais”. Certo de que o eu-lírico deseja servir à
dama louvada e a impossibilidade de concretizar essa experiência o leva a padecer de amor.
Logo, deve-se concluir que o Barroco manteve características inerentes às trovas medievais.
Seja na sátira, seja na lírica ou na encomiástica, os temas, as formas suaves e musicais e os motivos
que moviam as cantigas de amor, de amigo e as de escárnio e de maldizer do medievo ibérico persistiram

39
no decorrer do século XVII nos escritos de Antônio Vieira e Gregório de Matos, alcançando o
alvorecer do século XVIII, atravessando a literatura árcade que despontava no universo das letras
e, em meados do século XIX, refortalece com o nascimento do Romantismo no Brasil.
Desse modo, o Romantismo traz para a literatura do século XIX o material que, conforme
Elizabeth Martins (2003, p. 304), “possibilitado pela tradição oral que guardamos em nossa
literatura sob a forma de sedimentos mentais, herança de jograis, trovadores, segréis, contadores e
cantadores medievais ibéricos”, fornece elementos e características que se tornaram usuais dos
poetas brasileiros, como a coita, por exemplo. No fragmento do poema O trovador, de Gonçalves
Dias (1959, p.136-137), reproduzido abaixo, podemos ver o que estamos afirmando; isto é, além
do explícito título, a presença de aspectos referentes à beligerância cavalheiresca e ao sofrimento
por amor.

Não queiras amar, não; pois que a′sperança


Se arroja além do amor por largo espaço.
Tens, brilhando ao sol, a forte lança,
Tens longa espada cintilante d′aço.
Tens a fina armadura de Milão,
Tens luzente e brilhante capacete,
Tens adaga e punhal e bracelete
E, qual lúcido espelho, o morrião.
Tens fogoso corcel todo arreiado,
Que mais veloz que os ventos sorve a terra;
Tens duelos, tens justas, tens torneios,
Que os fracos corações de medo cerro;
tens pajens, tens valetes e escudeiros
E a marcha afoita, apercebida em guerra
Do luzido esquadrão de mil guerreiros.
Oh! não queiras amar! — Como entre a neve
O gigante vulcão borbulha e ferve
E sulfúrea chama pelos ares lança,
Que após o seu cair torna-se fria;
Assim tu acharás petrificada,
Bem como a lava ardente do vulcão,
A lava que teu peito consumia
No peito da mulher — ou cinza ou nada —
Não frio, mas gelado o coração!

O Trovadorismo tem lugar nesta pesquisa, pois estamos comparando momentos históricos
no âmbito da literatura, porque, segundo Pontes (1999, p. 1),

Todos sabemos que a transmissão dos padrões culturais se dá através do contato


entre os povos no processo civilizatório. Assim, pois, com os primeiros
portugueses aqui chegados com a missão de firmar o domínio do império luso
24 nos trópicos americanos, não vieram em seus malotes volumes d’Os Lusíadas

40
nem das Rimas de Luís de Camões, publicados em edições princeps apenas,
respectivamente, em 1572 e 1595. Na bagagem dos nautas, degredados, colonos,
soldados e nobres aportados em nosso litoral, entretanto, se não vieram
exemplares impressos de romances populares da Península Ibérica nem os
provenientes da Inglaterra, Alemanha e França, pelo menos aqueles homens
trouxeram gravados na memória os que divulgaram pela reprodução oral das
narrativas em verso. Assim, desde cedo, e à míngua de uma Idade Média que nos
faltou, recebemos um repositório de composições mais do que representativo da
Literatura oral de extração geográfica e histórica cujas raízes estão postas na
Europa ibérica do final da Idade Média, justamente quando ganhavam definição
as línguas românicas.

Portanto, esse repositório literário proveniente da Europa do século XV, deixou resíduos
na literatura brasileira, sendo que um deles é constituído pela inserção da coita e os outros que, pela
sua transformação e organização, foram relevantes por moldar e para fundamentar um homem
carente de satisfação no aspecto do sentimento e de suas emoções. Aspectos como a questão de
vivências tipicamente humanas antagônicas àquela sensibilidade que movia personagens e ações na
épica dos primeiros dias; isto é, da Antiguidade Clássica.
O Trovadorismo é um fruto literário das questões postas em movimento pelas três
categorias sociais, os oratores, os belatores, e os laboratores30, conforme George Duby (1982). Havia,
então, naquele período histórico, uma efervescência suscitada pelas guerras e pelas questões
religiosas, o que causou um fluxo considerável de humanos em deslocamento, originando, dessa
forma, um movimento imigratório em relação à cultura peninsular. É interessante, pois, observar
a relação existente entre a imigração e as origens do Trovadorismo na Península Ibérica.
Para explicar essa relação, podemos inferir dois aspectos primordiais sobre a chegada da
poesia trovadoresca na região ibérica. Vale lembrar que o primeiro aspecto reside no fato de que,
ao noroeste da península, situa-se a cidade galega de Santiago de Compostela, local em que, segundo
a fé cristã, estão enterrados os ossos do apóstolo São Tiago. Durante a Idade Média, era, à exceção
de Roma e Jerusalém, o maior centro de peregrinação da Europa. Consoante isso, deslocavam-se
para esse centro urbano, maciças hordas de peregrinos oriundas de todo o continente que, em sua
lenta jornada, estabeleciam contato com o Trovadorismo em Langue d’oc ou Langue d’oil, ou seja,
atravessavam a região em que hoje se situa a França, ao Sul ou ao Norte, onde se falavam os
respectivos romances. Dessa forma, levavam consigo a cultura local e ainda, se faziam acompanhar
de jograis e trovadores que muitas vezes, encerravam sua itinerância na sagrada cidade da Galiza.

30Mantivemos o original tal qual em Duby, que classifica as categorias hierárquicas medievais em homens que oram,
que lutam e que trabalham, ou seja, o clero, a nobreza e a plebe.

41
Outro ponto que pode ser lembrado é a Cruzada. Sabe-se que as cruzadas foram um
movimento cristão para expulsar os mouros e reaver o domínio sobre a terra santa de Jerusalém.
No entanto, aqui podemos levantar dois pontos das cruzadas. O primeiro trata dessa
particularidade retro mencionada da imigração, todavia, o combate aos mouros que haviam se
instalado na Península Ibérica também pode ser considerado uma cruzada, que atraía e agregava
cavaleiros provenientes de diversos lugares da Europa. Esses, muitas vezes, vilões ou da
aristocracia, praticavam a arte de trovar.
O segundo reside no fato de que esse levante cristão também foi utilizado como subterfúgio
de combate e controle dos grupos considerados hereges pela Igreja Católica. E destes, podemos
citar os cátaros ou albigenses, em cujo meio, muitos jograis e trovadores coexistiam, conforme
Barros (2007, p. 97),

Parece procedente vincular o idealismo cortês a um diálogo com essa


espiritualização albigense, já que a maioria dos trovadores provençais vivia no
meio cátaro. A poesia provençal mantém, de forma similar, uma relação de
encantadora ambiguidade para com a heresia cátara: ao mesmo tempo, uma suave
tensão entre o desejo amoroso terreno e a espiritualidade cátara e, por outro lado,
uma simpática assimilação da mística cátara como inspiração para uma mística
profana. Isso não impediu que o amor cortês rapidamente se difundisse para
outros meios cortesãos não cátaros, já que o favorecia seu componente associado
ao circuito feudo-vassálico. Um componente carregou o outro, a vassalidade
amorosa serviu de veículo ao amor idealizado. Quando o trovadorismo provençal
entrou em declínio, após a cruzada anticátara, já tinha deixado raízes da
Alemanha à Península Ibérica.

Ou seja, o esfacelamento do núcleo cátaro e os fatores já abordados retroativamente,


provocaram, portanto, um cisma em que muitos dos poetas cantores pertencentes ao meio
albigense, acabaram por se fixar nas terras de Espanha e Portugal, onde encontraram a liberdade
para desenvolver o talento literário na arte da composição, seja no aspecto lírico ou satírico. Um
exemplo disso, é o caso da relação, segundo José Cabo31 (2012, p. 28), de possível mecenato entre
o poeta provençal, Marcabru e a família Cabrera.
Depois de dois séculos de prevalência do modelo trovadoresco, em meados do século XIV,
conforme Spina (1997, p. 26), “o homem começara a acordar de seu milenar sonho medievalista.
As experiências na arte, a partir daí procuram colocar o homem como centro de suas preocupações
culturais”. Isto é, tal afirmação estabelece relação com o interesse da cultura pelo homem, algo que

31Cabo (2012, p. 30), ressalta ainda o vínculo da família Cabrera “desde os inícios do século XII ao itinerário de
peregrinação” do caminho francês de Santiago de Compostela.

42
já era notado também no medievo, por meio da presença do amor e do riso na temática dos
trovadores.
Enfim, se fôssemos buscar um elemento que, fazendo parte do campo da estética, pudesse
funcionar como um liame que liga as distintas vertentes literárias, no campo do lirismo desde o
século XII até as formulações estéticas do século XX, esse elemento certamente seria a coita,
conforme já referenciado neste artigo. Entretanto, não podemos ignorar que aqui e ali a coita
permaneceu apenas na lembrança e nos textos, como ocorreu, por exemplo, nos períodos clássicos
da literatura; ou seja, nos períodos em que a literatura se limitou a representar a realidade nos
moldes colocados em movimento por Aristóteles (2015) na mimese e por Roger Chartier (1990),
na teoria da representação.
Eis, então, porque escolhemos para demonstrar essas afirmações textos do Trovadorismo
ibérico, como o de Martin Codax e o de D. Dinis, outrossim, textos e autores que figuram na
composição literária brasileira entre os séculos XVI e XX, como José de Anchieta, Gregório de
Matos, Gonçalves Dias, e ainda, para fundamentar essa discussão, o poema O amor em Leonoreta, de
Cecília Meireles.
No caso de Cecília Meireles, o sofrimento se repete e a fuga aparece mais uma vez como
solução. O eu lírico vislumbra a viagem e nesta a possibilidade de fuga de uma realidade que a
insere em um universo de sofrimento. Vejamos o poema de Meireles (2001, p. 687-701):

Pela noite nemorosa,


só por alma te procuro,
ai, Leonoreta!
Leva a seta um rumo claro,
desfechada no ar escuro...
O licorne beija a rosa,
canta a fênix do alto muro:
mas é tal meu desamparo,
Leonoreta, fin’roseta,
que a chamar não me aventuro.

Rondo em sonho a tua porta,


por silêncios esvaída.
Ai, Leonoreta,
sejas viva, sejas morta,
apesar de sofrer tanto,
puro amor é minha vida.
Com três séculos de pranto,
fez-se de sal a espineta
que me acompanhava o canto.

Leonoreta, fin’roseta,

43
branca sobre toda flor,
ai, Leonoreta,
nos bosques atrás do mundo,
por mais que eu não to prometa,
encontrarás meu amor,
desgraçado mas jucundo,
sem desgosto e sem favor.
Leonoreta, não te meta,
en gran coita a minha dor!

O licorne beija a rosa,


canta a fênix do alto muro...
Ai, Leonoreta,
salamandras e quimeras
vêm saber o que procuro.
Pela noite nemorosa,
tornam-se os picos das eras
vales rasos de violeta...
Não me digas que me esperas!
Não me acenes com o futuro...

Eu sou das sortes severas,


Leonoreta, fin’roseta.
Ai, Leonoreta,
e só do sonho inseguro.

Nesta cantiga de clara inspiração medieval, há uma ênfase única que perpassa todo o poema.
Ambientado em um espaço onírico com a presença de elementos do fantástico do medievo, como
licornes, a fênix, salamandras e quimeras, estabelece elos com o surrealismo inerente à poesia
modernista da autora. No poema, o eu-lírico afirma que a personagem encontrará o seu amor, mas
ele dela nada espera, nem o amor nem ilusões futuras, somente a coita e o sonho lhe são reais.
Cecília Meireles, portanto, retoma uma personagem, Leonoreta, cantada primeiramente em versos
atribuídos ao trovador João Lobeira32, ativo no último quartel do século XIII, na cantiga Lai de
Leonoreta, presente em Graça Lopes e Manuel Ferreira (2011)33, sendo que não é demais repetir que
há entre eles uma distância medida temporalmente em oito séculos. Essa distância, porém, não
deixa de indicar a repetição da mesma qualidade temática, assentada na residualidade cultural e
literária,

Senhor genta,
mi tormenta
voss’amor em guisa tal,
que tormenta

32 Biografia disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=69&pv=sim


33 Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=231&tr=4&pv=sim

44
que eu senta
outra nom m’é bem nem mal
- mais la vossa m’é mortal!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss’amor!
Das que vejo
nom desejo
outra senhor se vós nom,
e desejo
tam sobejo
mataria um leom
- senhor do meu coraçom!
Leonoreta,
fin roseta,
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss’amor!
Mia ventura
em loucura
me meteu de vos amar:
é loucura
que me dura,
que me nom posso en quitar
- ai fremosura sem par!
Leonoreta,
fin roseta
bela sobre toda fror,
fin roseta,
nom me meta
em tal coi[ta] voss’amor!

Outro aspecto importante e que cabe aqui analisar é o lamento do eu-lírico pela ausência
do amor perdido. Há no poema uma idealização de um amor que se encontra no passado, mas que
se presentifica pela sua representação no discurso literário. Uma versão do poema aparece também
na célebre composição de 1508, a novela de cavalaria, Amadis de Gaula (MANUEL LAPA, 1970).
Conforme Vicenç Beltran (1991), esta Leonoreta, personagem em cujo nome acresceu-se o sufixo
eta em um sentido de diminutivo de afeição, seria uma referência e uma maneira de homenagear D.
Leonor de Guzmán, frequentadora da corte de Afonso XI, de Castela. Conforme Lênia Mongelli
(2000, p. 244.), “se Cecilia Meireles escolheu Leonoreta para especificar seu conceito de Amor, é
porque bem viu ser difícil falar do tema sem remontar à Idade Média e aos trovadores, que
forneceram à posteridade as receitas das quais ninguém, nunca mais, pôde prescindir”, pois a

45
personagem simboliza a dama inacessível a quem devotamente o eu-lírico dedica seu amor, ou seja,
um sentimento que sobreviveu ao tempo e às gerações literárias, do século XII ao século XX.
Assim sendo, este artigo buscou abordar os tempos literários, averiguando autores em cujos
escritos, é possível perceber, em meio aos sedimentos de características e aspectos de influências
retroativas, elos entre os movimentos literários e o alicerce da literatura medieval, sobretudo, do
Trovadorismo ibérico, presente e identificável em todos os momentos da literatura brasileira, em
menor ou maior grau. Por isso, outros estudos e pesquisas foram realizados em função dessa
investigação, dentre eles podemos citar os trabalhos de Portella (2005), de Oliveira, Silva e Leite
(2019) e de Mongelli (2019).
A temática, as formas, a musicalidade e as dores de amor do Trovadorismo persistem,
outrossim, em canções da música popular brasileira. Para exemplificar, temos a presença do eu-
lírico feminino nas composições Esse cara (1989)34, do músico e poeta, Cazuza, e em A outra
(2003)35, da banda carioca, Los Hermanos. Ainda, é perceptível o sentimento da coita em Tua cantiga
(2017)36, de Chico Buarque e Cristóvão Bastos. Logo, há uma ampla gama de possibilidades
investigativas que carecem ainda de estudo e análise.

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48
O (des)amor materno transfigurado pela lembrança:
uma análise da obra O peso do pássaro morto, de
Aline Bei
Tayane Fernandes dos Santos¹
Silvana Maria Pantoja dos Santos²

¹Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: tayanefernandesdossantos@gmail.com


²Universidade Estadual do Maranhão/Universidade Estadual do Piauí. Bolsista Produtividade CNPq. E-
mail: silvanapantoja3@gmail.com

Resumo: A memória, sendo um espaço de armazenamento de informações e de experiências que podem


ser boas ou ruins, configura-se como uma das mais importantes faculdades do ser humano. A partir dela, o
indivíduo constrói-se e reconstrói-se, tanto de forma individual como coletiva. Nesse sentido, o presente
trabalho propõe analisar o processo de rememoração da protagonista da obra O peso do pássaro morto (2017),
de Aline Bei. Para tanto, considera-se a experiência dela com o filho. O trabalho tem como base teórica o
pensamento de Badinter (1985), para tratar do amor materno; Candau (2016), para as reflexões sobre
memória; Ginzburg (2017) e Seligmann-Silva (2002), no que se refere às discussões sobre melancolia e
trauma. A personagem principal, mulher-mãe, apresenta uma identidade conflitante, tendo em vista que não
consegue ter uma relação “normal” com o filho, por ele representar a memória viva de um momento
doloroso em sua vida, a experiência do abuso sexual.
Palavras-chave: Memória; Amor maternal; O peso do pássaro morto.
Introdução
eu nunca
vou conseguir contar, no fundo
não devo querer.
ainda assim,
nada
justifica a minha ausência, se decidi ter o filho,
então
eu devia ter vivido a minha decisão plenamente ao
invés de ficar procurando os restos
do Pedro
nos olhos do lucas, restos da noite
que eu não fui comer pizza e que eu devia
tanto
ter ido comer
a Pizza, restos do sonho de ser aeromoça.

(Aline Bei, 2017)

O texto literário tem como traço fundamental a ficcionalidade, de modo que o mesmo não
carrega compromisso com a realidade. Entretanto, como assevera Antonio Candido (2002, p. 79)
“[...] é difícil pôr de lado os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram

49
ao mundo onde vivemos”. Temos aqui então, um paradoxo: por mais que não objetive retratar
fielmente a sociedade, a literatura está intrinsecamente ligada a contextos e problemas latentes do
meio social, de acordo com as transformações e propostas ideológicas, políticas e históricas, mesmo
que seja para desnudá-las aos leitores empíricos e “abrir feridas” que pareciam não existir.
Quando tratamos da literatura contemporânea podemos associar a problemática, delineada
acima, às diferentes formas de representação da maternidade ao longo dos tempos. Se até meados
do século XX a maternidade era sinônimo de realização para a figura materna e, assim, representada
em textos literários de maneira determinista, nos últimos anos, principalmente em escritos literários
de mulheres, a maternidade tem se apresentado sob nova perspectiva, revelando faces outras do
“ser mãe”, como bem destaca Sitta (2020).
No âmbito da literatura brasileira contemporânea temos obras que podem suscitar grandes
discussões da crítica literária e acadêmica sobre o tema, a exemplo de A teta racional (2016) de
Giovana Madalosso; Com armas sonolentas (2018), de Carola Saavedra (2018) e O peso do pássaro morto
(2017), de Aline Bei, sendo esta, objeto de análise do presente artigo.
Todas as obras supracitadas desconstroem o significado romantizado da maternidade.
Dessa maneira, “Entram em cena personagens de mães arrependidas e de mães que expõem os
percalços da maternidade, tratando da relação complexa com o próprio corpo grávido e das
complicações das tarefas relativas aos filhos”. (Sitta, 2020, p. 102).
Por sua vez, o processo de rememoração tem, também, ocupado terreno de valor na
literatura brasileira contemporânea, tanto a de caráter individual, no que diz respeito à importância
para formação identitária humana, de maneira íntima, quanto coletiva, referindo-se à representação
da história e cultura de uma determinada comunidade. Como destaca Bernd (2021, p. 52) “Uma
obra literária pode ser considerada contemporânea, mesmo quando evoca temáticas muito antigas
desde que essas temáticas sejam ressignificadas no presente”.
Desse modo, este trabalho tem como objetivo analisar o processo de rememoração da
protagonista da obra O peso do pássaro morto (2017), da escritora brasileira contemporânea Aline Bei,
considerando a experiência da personagem central com o filho.
A ressignificação da condição materna em O peso do pássaro morto advém, principalmente,
por meio do viés memorialístico, com isso compreendemos a importância dessa temática no fazer
literário de Aline Bei. A autora escreve sobre temas que já foram retratados em outros momentos
da história, mas nos prende em sua narrativa, entre outras questões, justamente por trazer em seus

50
escritos a face invisibilizada dos fatos, como é o caso da desconstrução do amor materno como
algo pré-determinado à figura feminina.
Aline Bei nasceu em São Paulo, no dia 9 de outubro de 1987 e, ainda tão jovem, vem se
destacando, cada vez mais, no cenário literário brasileiro contemporâneo. A escritora é formada
em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena e em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 2018, a autora foi ganhadora do prêmio São Paulo de
Literatura, na categoria de autores estreantes com menos de 40 anos, com sua obra de estreia, O
peso do pássaro morto (2017).
Além dessa obra, destaca-se o conto Rua sem saída (2020) e o romance Pequena coreografia do
Adeus (2021). É comum que as narrativas escritas por Aline Bei se apresentem por meio de versos,
um primeiro impacto, além de fugirem aos padrões gramaticais, como uso “correto” de pontuação,
emprego de letras maiúsculas, espaçamentos, dentre outros que atestam o tom contemporâneo da
escritora e chamam atenção do leitor.

O peso do pássaro morto: a maternidade em meio à lembrança da dor


O peso do pássaro morto (2017) apresenta uma narradora autodiegética que relata os
acontecimentos marcantes de sua vida em um percurso que vai dos 8 aos 52 anos de idade. A
narrativa se desenrola a partir do ponto em que a protagonista perde sua melhor amiga, Carla, de
forma brutal e repentina, ao ser atacada por um cão. O acontecimento deixa sequelas na personagem
principal durante o seu percurso de vida, já que o ocorrido se dá quando ela tinha apenas 8 anos.
Entretanto, um dos maiores impactos sobre a personagem central é o episódio do abuso
sexual. Na adolescência, ela sofre esse tipo de violência que lhe deixa uma marca traumática e desse
abuso é gerado um filho. A personagem, afetada por sentimentos de tristeza e dor, não consegue
se adaptar à nova realidade como mãe, logo, não consegue amar o filho como gostaria. A
protagonista se isola socialmente, tendo em vista que não consegue também se relacionar
amorosamente com outra pessoa, nem tão pouco fazer amizades. Aliás, ela parece preocupada em
revelar a sua coleção de perdas, sejam físicas ou simbólicas, cujas cicatrizes traumáticas vão se
formando em sua memória. Segundo Ginzburg, o trauma funciona como uma marca permanente
e dolorosa, que transfigura o ser, com capacidade de torná-lo melancólico. Afirma Ginzburg:
O comportamento melancólico é caracterizado por um mal-estar com relação à realidade.
Para ilustrar, é como se o sujeito se voltasse indignado: “como pôde me apresentar
alguém para amar e depois tirar de mim?”. A realidade é observada como um campo de
desencantamento e desconfiança. Contemplativo, o sujeito não se conforma com a perda.

51
Embora objetivamente possa ter sido informado do que ocorreu, não aceita a situação,
sendo seu objeto de amor insubstituível por qualquer outro. (2017, s./p).

Como podemos observar, o indivíduo melancólico tem dificuldade em lidar com a realidade
na qual se insere, tornando-se refém de si mesmo. Conforme Tiburi (2004), a melancolia se origina
na consciência do sujeito sob forma de limitações, gerando um adoecimento, mas não uma
patologia. A afetação do melancólico refere-se a um conflito racional, uma vez que este
experimenta uma sensação de desamparo ante a realidades em que se encontra.
Tiburi defende que a melancolia não se manifesta como causa, mas a própria é a causa, a
sinalização da ferida, pois “o melancólico é o filósofo, eterno mineiro das origens, não de uma
ferida sua, mas da ferida que é a substância do mundo, a quem a pergunta desponta como soberano
alien, monstro advindo da profundeza desconhecida da alma” (Tiburi, 2004, p. 55). Na obra O peso
do pássaro morto, a personagem central parece viver sempre atormentada pelo seu passado, o que a
faz ficar presa em si mesma.
Vejamos no fragmento abaixo a reflexão da protagonista vendo-se como “mãe” e
procurando entender como lidar com este novo fato em sua vida:

[...] e te olhar
é
a coisa mais difícil
porque você lucas
é a cara do Pedro
tem o olho
do Pedro
a boca, o cabelo, o jeito de andar [...]
é reviver aquele maldito dia em segredo [...]

(Bei, 207, p.101, itálicos da autora)

A narradora tenta desviar-se de lembranças ruins, mas é impossibilitada. Na leitura que faz
do filho, vê a imagem do abusador, Pedro, cujo nome está grafado com inicial maiúscula, ao
contrário do filho, “lucas”, escrito com inicial minúscula. A letra maiúscula simboliza a força do
abusador e a influência que a violência cometida por ele exerce sob a personagem; o segundo, a
fragilidade do ser gerado e o seu des(valor) na vida da personagem, a qual se esforça para aceitar,
mas encontra dificuldades. Assim, “Pedro” representa o trauma e “lucas” a lembrança da qual a
personagem busca se esquivar.
Dessa forma, a memória tem a capacidade de ativar lembranças aparentemente esquecidas,
mas que permanecem latentes e que podem vir à tona a partir de acontecimentos do presente. A
partir da memória o indivíduo se reconstrói, porém também pode ser tornar refém do passado.

52
Mas será que a memória é também tão moldável a ponto de o indivíduo poder escolher o que
lembrar e o que esquecer?
Para Candau (2016), o indivíduo não tem o poder de escolha, visto que a recorrência ou
não da lembrança provém das marcas que os acontecimentos experienciados deixam em cada um,
sejam elas negativas ou positivas. No trecho supracitado, percebemos que a mãe vê no filho algo
que gostaria de esquecer, mas ao contrário, ele a faz “reviver” a imagem do abusador, levando-a
ter repulsa pela criança.
Conforme Carvalho; Santos (2016, p. 4522) “A memória traumática pode ser entendida
como o surgimento de uma lembrança que pode ocasionar sempre uma ameaça ao sujeito”. O
indivíduo trava uma luta constante com a memória contra as lembranças dolorosas, na tentativa de
superá-las.
No trecho acima temos a revelação do pensamento da personagem - não a exposição das
impressões dela sobre o filho - isso porque a personagem se tornou introspectiva, silenciada pela
violência sofrida. Como assevera Seligmann-Silva (2002), uma das reações ante um acontecimento
traumático é o silêncio, já que a pessoa se sente impossibilitada para narrar o trauma.
Acrescentamos que isso é decorrente de um mecanismo de defesa do cérebro, não uma escolha, já
que não lembrar implica não sofrer. Seguindo tal linha de raciocínio, convocamos o pensamento
de Candau (2016), ao destacar que:
[...]o sujeito que experimenta um sentimento interior de tristeza terá, talvez, a tendência
a recordar experiências qualificadas como tristes, conferindo assim uma visão
tendenciosa de sua própria vida. Essa dependência do contexto participa, portanto, da
reconstrução das lembranças. (2016, p. 76).

A lembrança, por esse viés, é uma categoria que torna mais sensíveis os indivíduos em
relação às suas experiências. Na maioria das vezes, não consegue superar um acontecimento
desagradável, nem conviver com a lembrança que ela suscita, pois é como se o momento
continuasse atormentando-o.
Além de não termos o poder de controlar as lembranças, é válido ressaltar que a memória
pode ser também ativada com base em variados meios: através do contato com um fato marcante,
por meio de objetos, cheiros, lugares, como podemos constatar no excerto a seguir:
às vezes
penso
que nunca
vou esquecer a morte
daqueles pássaros
ou a noite do Pedro em casa
corto um tomate
pra fazer o almoço

53
e penso que o tomate sou eu
a faca
é o Pedro, já cortei o meu dedo assim uma porção de
vezes, com outras frutas também, mas o tomate
por ser vermelho
e ceder já no primeiro
corte,
principalmente.
às vezes
penso que só lembrarei dessas 2 coisas pro resto da
vida, a minha mão na cara do lucas, a mão do
Pedro na minha cara,
a cara do lucas e a cara do
Pedro, acima de qualquer
memória.
(Bei, 2017, p. 96- 97).

A protagonista revela que a lembrança da violência sexual sofrida aos 17 anos lhe persegue
em seu presente, até em seus afazeres mais triviais, como no ato de cortar um tomate para fazer
seu almoço. O tomate e a faca funcionam como metáforas: a fragilidade do tomate diante da lâmina
que o atravessa e faz jorrar o líquido vermelho, representa a própria protagonista frente ao seu
agressor (Pedro) que detém o poder e a dilacera, em meio à sua impotência em reagir. Em outra
interpretação, o tomate e a faca são os elementos desencadeadores da lembrança traumática.
Além das implicações que o trauma causou na relação entre mãe e filho são notórias
também outras faces de sua vida, impactadas pela violência sofrida. A personagem central sente-se
bloqueada socialmente: não consegue envolver-se amorosamente com ninguém, nem realizar seus
sonhos, como o de ser comissária de bordo, implicando no aniquilamento da sua vida profissional.
A partir disso, percebemos a forma latente das sequelas deixadas pelo abuso sexual, resultando na
memória da dor. Isso se reflete na identidade maternal da protagonista. Dessa maneira, as
impressões sobre a maternidade, mais especificamente, sobre a amamentação, são afetadas pelo
estado de concepção da criança.
[...] quando um bebê nasce
uma Flor brota
no peito e sai
pelo leite da mãe.
é assim
que os bebês crescem
se alimentando dessa
Flor invisível
algumas pessoas
chamam ela de
amor.
procurei a tal
no meu peito descampado
por nove
meses e depois

54
no hospital, [...]
em casa,
com o menino no
berço
e os anos passando
procurei em cada canto
(nenhum sinal de Flor).

(Bei, 2017, p.64-66).

A “flor” é a metáfora do amor materno (grafado com inicial maiúscula para atestar a
presença expressiva do sentimento materno), ou melhor, sentimento construído socialmente e que
a personagem não consegue manifestar pelo filho. No fragmento acima, percebemos o transcorrer
do tempo refletindo-se no testemunho melancólico, por meio das expressões: “procurei [...] por
nove meses” (no percurso gestacional); “no hospital” (após o parto); “os anos passando”
(crescimento da criança).
O amor da mãe, não direcionado ao filho devido às implicações do trauma, são depositados
sobre um cão abandonado. Por osmose, o sentimento afetivo vai se desdobrando como se um filho
fosse.

em são paulo37
o Vento ganhou banho,
levou ponto,
tomou vacina.
o veterinário disse que foi corajoso
meu ato
sorri sem jeito.
- ele ficou até com cara de menino. - eu disse
passando a mão no pelo dele.
- não ficou? mas olha,
foi bom você ter falado nisso.
porque mesmo que não dê para gente saber qual é a
idade exata dele,
dá pra saber que ele já é bem idoso.

(Bei, 2017, p. 111).

Podemos observar no fragmento acima, cuidados com Vento (nome dado ao cão de rua
que a protagonista adota) que a personagem central passa a ter, cuidados maternais e de afetividade.
Durante o crescimento de Lucas, a mãe revela o apego da criança à cuidadora. Esta situação era
um alívio para a protagonista, visto que minimizava o distanciamento e falta afetiva da mãe para
com o filho.

quando estamos sem Bete,

37 Nome próprio grafado em minúsculo pela autora.

55
os cômodos da casa
ficam ainda mais
vazios[...]
a Bete é algo tão importante
entre eu e o Lucas
quanto uma ponte
para o viajante que quer chegar

(Bei, 2017, p. 81).

A protagonista contraria a visão de que o amor materno está inscrito na vida da mulher,
como um dom pré-determinado. Como afirma Badinter (1985, p. 21), “O amor materno é apenas
um sentimento humano. E como todo sentimento, é incerto, frágil e imperfeito. Contrariamente
aos preconceitos, ele talvez não esteja profundamente inscrito na natureza feminina”.
O adjetivo “vazio”, grafado em letra maiúscula infere maior expressividade ao relato da
narradora, a maternidade para ela era um espaço não preenchido totalmente. A inicial maiúscula
também está no nome “Bete”, a cuidadora de Lucas, que exerceu mais o papel materno do que a
própria personagem central, já que ela é o elo entre mãe e filho. A protagonista entende que era
preciso fazer uma “viagem” para conseguir ter um mínimo de relacionamento com Lucas e também
se encontrar como mãe. Há no trecho um paradoxo, pois mãe e filho encontram-se no mesmo
espaço físico, mas distanciados, visto que a lembrança traumática sempre coloca uma barreira entre
eles.
Ademais, em nossa sociedade, enraizada por uma cultura patriarcal, muitas mulheres
passam pela mesma dor que a figura feminina representada em O peso do pássaro morto (2017). Chama,
então, a atenção o fato de a protagonista não ter seu nome revelado em nenhum momento da
narrativa, isso vai ao encontro das vítimas silenciadas pelo mesmo tipo de violência sofrida por ela.

Considerações finais
No decorrer deste estudo analisamos a rememoração da protagonista da obra O peso do
pássaro morto (2017), de Aline Bei com ênfase na experiência traumática vivida por ela, decorrente
do abuso sexual sofrido na adolescência, que impacta na sua condição materna.
Em O peso do pássaro morto foi possível constatar que a mulher-mãe apresenta conflitos por
não conseguir ter uma relação com o filho, nos moldes regidos pela sociedade. Mesmo sem
conseguir nutrir afeto pela criança, não deixa de ter os cuidados necessários com ela.
A lembrança traumática bloqueia a protagonista, por meio de um mecanismo de defesa
desenvolvido pelo cérebro. No entanto, cenas do presente, como a imagem do próprio filho ou a

56
cor vermelha do tomate em contato com a lâmina faz vir à tona a imagem do seu abusador,
fazendo-a entrar em um processo melancólico. Paradoxalmente, o eu dirige a si mesmo suas queixas
e culpas, em vez de atribui-las àquele que lhe causou algum mal.
A melancolia desencadeia uma anulação que podemos considerar uma espécie de morte,
isso porque a pessoa é destituída de ânimo para a vida. A lembrança traumática interfere nas ações
de pessoas afetadas por uma violência, o que impede o encontro dela consigo mesmo e com a
realidade a sua volta. E é justamente o que acontece com a protagonista de O peso do pássaro morto
(2017), ela carrega, então, os fragmentos de experiências dolorosas que a paralisam e a impedem
de exercer o amor maternal. Assim, a latência da dor perpassa as várias fases da vida dela, com
implicações no seu desenvolvimento pessoal e social.
Por fim, constatamos que Aline Bei tem contribuído com a literatura brasileira
contemporânea, ficcionalizando temas considerados tabus pela sociedade, de maneira singular e
autêntica. A partir disso, a escritora levanta reflexões pertinentes no campo da memória, do trauma
e das configurações da maternidade no meio social.

Referências
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Tradução: Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Nós, Edith, 2017.
BERND, Zilá. Literaturas do Depois: o extremo contemporâneo como representificação de omissões do
passado. Rev. Bra. Lit. Comp., Porto Alegre, v. 23, n. 42, p. 50-62, jan./ abr., 2021.
CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2016.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Textos de intervenção. São Paulo: Duas
Cidades, Editora 34, p. 77-92, 2002.
CARVALHO, Itana Silva; SANTOS, Silvana Maria Pantoja dos. A representação da memória do trauma
no romance metaficcional Mãos de cavalo, de Daniel Galera. In: XV Encontro ABRALIC, 2016, Rio de
Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2016. p. 4521-4529. Disponível em:
https://abralic.org.br/anais/?ano=2016. Acesso em 26 jun. 2021.

GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, SP: Autores Associados, 2017.
SELIGMANN-SILVA, Márcio de. Literatura e trauma. Pro-Posições, Campinas, SP, v. 13, n. 3, p. 135–
153, set./dez., 2002.
SITTA, Gabriela Dal Bosco. As mães na literatura: atualidade de um tema. Revista de Estudos
Acadêmicos de Letras: UNEMAT Editora, v. 13, n. 2, p. 101-116, dez., 2020.
TIBURI, Márcia. Filosofia Cinza. A Melancolia e o Corpo nas Dobras da Escrita. Porto Alegre: Escritos,
2004.

57
Dos estremecimentos da alma às súplicas lamuriosas
do corpo: vestes psíquicas em retalhos nas
‘deflorações literárias’ de Lygia Fagundes Telles

Guilherme Ewerton Alves de Assis (UFPB/UNICSUL/LIGEPSI)38


Hermano de França Rodrigues (UFPB/PPGL/LIGEPSI)39

“Pegara o corpo de Lina sem seu consentimento e usara dele como se fosse um prato de comida. Depois jogara fora.
Sem hálito, sem vida.”
Adriana Lisboa, em Sinfonia em Branco (2013 [2001])

RESUMO: Desde os Estudos sobre a histeria, o sexual aparece enquanto uma sedução real, de caráter
traumático, que, reprimida e sem ter conseguido reação, na época, transforma-se em um componente
patogênico. Nesse primeiro momento, Freud ainda não percebia a existência de sexualidade infantil. Ao
constatar que não há traços de realidade no inconsciente e que o número de histéricas era consideravelmente
grande para a quantidade de pais supostamente perversos, Freud inverte a teoria do trauma e constata que
as cenas de sedução da infância eram, na realidade, fantasias em que a criança era ativa. Em que pese o
abandono do trauma e do abuso como (des)estruturantes da sexualidade, o pai da psicanálise retoma, depois
da segunda tópica, concepções de como o abuso sexual vivenciado pela criança, jovem ou adulto, pode ser
desagregar e fragmentar a subjetividade humana, que respalda, doravante, ideias laplancheanas e
ferenczianas a respeito da sedução generalizada e a questões traumáticas advindas de experiências reais,
respectivamente. Nas plagas das deflorações psíquicas, o presente trabalho tem por intento,
esgarçando os alfarrábios literários, investigar o abuso sexual, seguido de morte, de Dolly, no conto
homônimo de Lygia Fagundes Telles, presente em A noite escura e mais eu (1995). Na trágica narrativa,
deparamo-nos com a jovem Dolly, uma aspirante a atriz, cujo corpo, após ser violado sexualmente, é
encontrado, por Adelaide, sem vida em sua casa. Para tanto, recorre-se a textos psicanalíticos que consignam
a respeito das seduções, violações e abusos sexuais, quais sejam: Estudos sobre a histeria (1895), Sobre a
sexualidade feminina (1931) e A feminilidade (1933), de Sigmund Freud; Da teoria da sedução restrita à teoria da
sedução generalizada (1992) e O crime sexual (2015), de Jean Laplanche; e Confusão de línguas entre os adultos e a
criança (1932), de Sándor Ferenczi.

PALAVRAS-CHAVE: Lygia Fagundes Telles; Estupro; Psicanálise; Abuso sexual.

38 Graduado em Letras – Língua Portuguesa (UFPB). Graduado em Filosofia (UNICSUL). Mestrando em Literatura,
Teoria e Crítica, no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL-UFPB).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8606450392344888. E-mail: guilhermeewerton10000@gmail.com.
39 Doutor em Letras – Língua Portuguesa (UFPB). Especialista em Psicanálise: Teoria e Prática (EPSI). Lattes:

http://lattes.cnpq.br/7615268087421599. E-mail: hermanorgs@gmail.com.

58
Introdução
Na base do pensamento psicanalítico, as histéricas sofriam de um trauma psíquico, que tinha
a ver com um abuso sexual em sua infância. Eis que a questão da sedução sexual e do estupro, seja
pertencente à realidade ou à fantasia, convida o pai da psicanálise a se debruçar sob o corpo teatral
da histeria, que clama e suplica por seu entendimento. Desde os primórdios, a defloração sexual de
uma criança seduzida e, com efeito, seu trauma no corpo que, em convulsão histérica, suplica, é
objeto de investigação da ciência psicanalítica. Na base do pensamento psicanalítico, Freud
acreditava que o discurso histérico era, na verdade, queixas e denúncias inconscientes de abusos
que os(as) pacientes sofreram, na infância, de seus pais ou cuidadores. Desde a histérica Anna O.,
paciente fundadora da Psicanálise por Breuer, Freud encontrava, em suas ruminações, uma
etiologia sexual. Embora tenha sido analisanda de Breuer, o pai da psicanálise, através do relato de
seu amigo, foi além na análise do caso. Freud e Breuer têm uma divergência, uma vez que cada um
tem um modelo sobre a histeria. Para Breuer, a etiologia histérica era decorrente de uma retenção ou
uma contenção frente a um determinado incidente. Assim, como a paciente não conseguira reagir,
retém emoções e afetos, que, por conversão, deslocar-se-ia para uma parte do corpo e surgiria a
sintomatologia histérica.
Freud, por outro lado, concordava com essa concepção do colega, mas ia além: esse
incidente, que não foi respondido à altura, é de natureza sexual. Na interpretação do caso, Freud
percebera que a histeria de Anna O. era, na verdade, um teatro erótico, o qual Breuer rejeitou e
considerou desnorteante – enquanto Breuer recuou ante a Eros, Freud o enfrentou. Nesse
corolário, desde os primórdios da teoria psicanalítica, a sexualidade é o pilar fundador.
Desde os Estudos sobre a histeria, o sexual aparece enquanto uma sedução real, de caráter
traumático, que, reprimida e sem ter conseguido reação, na época, transforma-se em um
componente patogênico. Nesse primeiro momento, Freud ainda não percebia a existência de
sexualidade infantil. Ao constatar que não há traços de realidade no inconsciente e que o número
de histéricas era consideravelmente grande para a quantidade de pais supostamente perversos,
Freud inverte a teoria do trauma e constata que as cenas de sedução da infância eram, na realidade,
fantasias em que a criança era ativa. Em que pese o abandono do trauma e do abuso como
(des)estruturantes da sexualidade, o pai da psicanálise retoma, depois da segunda tópica,
concepções de como o abuso sexual vivenciado pela criança, jovem ou adulto, pode ser desagregar
e fragmentar a subjetividade humana, que respalda, doravante, ideias laplancheanas e ferenczianas
a respeito da sedução generalizada e a questões traumáticas advindas de experiências reais,

59
respectivamente. Nas plagas das deflorações psíquicas, o presente trabalho tem por intento,
esgarçando os alfarrábios literários, investigar o abuso sexual, seguido de morte, de Dolly, no conto
homônimo de Lygia Fagundes Telles, presente em A noite escura e mais eu (1995). Na trágica
narrativa, deparamo-nos com a jovem Dolly, uma aspirante a atriz, cujo corpo, após ser violado
sexualmente, é encontrado, por Adelaide, sem vida em sua casa. Para tanto, recorre-se a textos
psicanalíticos que consignam a respeito das seduções, violações e abusos sexuais, quais sejam:
Estudos sobre a histeria (1895), Sobre a sexualidade feminina (1931) e A feminilidade (1933), de Sigmund
Freud; Da teoria da sedução restrita à teoria da sedução generalizada (1992) e O crime sexual (2015), de Jean
Laplanche; e Confusão de línguas entre os adultos e a criança (1932), de Sándor Ferenczi.

As súplicas do corpo histérico: entre seduções das fantasias e abusos traumáticos da


realidade
O jovem neurologista Sigmund Freud, em 1885, a fim de aperfeiçoar a sua prática médica,
obteve uma bolsa pós-doutoral de sua universidade, para o Salpêtrière, em Paris. Embora, em terras
parisienses, tenha se dedicado inicialmente a estudos microscópicos sobre os cérebros infantis, o
Dr. Freud ficou deslumbrado com o médico Jean Martin-Charcot, reconhecido por suas
investigações neurológicas e patrono da neurologia e da anatomopatologia, cujas técnicas
reconduziram os estudos de quem seria o pai da Psicanálise, permitindo a saída dos microscópios
e impelindo-o em direção ao que, aparentemente, poderia ser considerada as ruminações de uma
ciência psicológica. Apesar de ser considerada uma fraude e uma prática charlatanesca no meio
médico, a hipnose era utilizada por Charcot nos casos dos pacientes histéricos – um grande
hipnotismo era a histeria. Ante esse tratamento histérico, assistindo às teatrais “Aulas da terça-
feira”, que eram seguidas por apresentações clínicas e, às sextas, mais teóricas, Freud se debruçou
sob o estudo do fenômeno histérico, assim como, seguindo os ensinamentos do seu mestre francês,
dedicou-se à aprendizagem da hipnose. Freud, então, torna-se aluno e admirador desse grande
mestre parisiense, cuja influência possibilitou-o chegar, neurologista, a terras francesas e sair,
carregando em sua bagagem, espólios que formariam a Psicanálise.
Assim, no inverno de 1885, Freud inicia seus estudos no curso de Charcot, cujos encontros
práticos, conduziram-no a seguir as teses do mestre francês. Diferente do que acreditavam os
médicos gregos e mediévicos, a histeria não era uma simulação, nem ao menos uma “doença do
útero” – sua etiologia e sintomatologia se desenvolviam tanto em homens como em mulheres.
Embora ainda vislumbre resquícios neurológicos na histeria, como uma etiologia fisiológica do

60
psiquismo, o movimento charcotiano afastou a causalidade histérica das lesões neurológicas e da
concepção de que seria uma degenerescência da mente, como apontavam alguns alienistas. A
contribuição charcotiana, no ramo dos estudos histéricos, foi a de produzir, por intermédio da
hipnose, um quadro da histeria, expurgando-a da Psiquiatria e alocando-a nas empreitadas
neurológicas – o lugar do histérico, portanto, não deveria ser em um hospício, mas em um hospital.
Nesses estudos, Charcot desenvolve a teoria do trauma, que foi adotada por Freud no início, cuja
ideia central era a de que ocorreu um abalo traumático, numa época infantil, em que o corpo físico
e psíquico não conseguiu lidar. O trauma, entrementes, formaria uma injução permanente, uma
grande hipnose, que, por conversão, manifestava-se no corpo, por meio de paralisias, nevralgias,
espasmos, crises epiléticas, entre outros sintomas histéricos. Essa revolução charcotiana foi
tamanha que o estudante Sigmund chega a declarar, em missiva, a sua noiva:

Charcot, que é um dos maiores médicos, um gênio, um homem sério, abala


profundamente minhas ideias e intenções. Depois de algumas conferências, são
como se fosse de Notre Dame, com uma nova percepção de perfeição [...]. Se a
semente algum dia vai dar frutos, não sei; o que sei com certeza é que nenhum
outro ser humano agiu sobre mim dessa forma (GAY, 1989, p. 60 – 61).

Por causa de Charcot, Freud abandonara sua área de estudos em Neurologia, a


anatomopatologia e a histologia, e partira para investigações capazes de distinguir a patologia
psíquica do adoecimento físico. Uma outra contribuição às bases do que seria a Psicanálise, é que
Charcot, a respeito da histeria, afirmava “é sempre a coisa genital” – concepção que influenciará
Freud a sustentar a tese de uma teoria sexual das neuroses, assim como encaminhará a Psicanálise
para a investigação do inconsciente numa ordem sexual. Todavia, apesar da idealização, Freud logo
se distancia desses constructos científicos, pois Charcot estava mais preocupado em achar uma
explicação fisiológica para histeria, buscando sobretudo montar quadros clínicos com sintomas
repetitivos em detrimento de uma possível cura. Ademais, em seu afã teatral, o mestre francês não
considerava a importância da fala dos seus pacientes. Voltando para Viena, Freud apresenta uma
conferência, na Associação de Psiquiatria e Neurologia, defendendo a teoria da sedução como
etiologia da histeria. A recepção dos médicos presentes fora, como menciona Freud em carta a
Fliess, desagradável e gélida. Kraft-Ebing40, presidente da mesa, comenta, após o eloquente
discurso do Dr. Freud: “Parece um conto de fadas científico” (GAY, 1989, p. 100). Sem saber, esse

40 Psiquiatra alemão, cuja obra Psychopathia Sexualis (1886), categorizou os desvios/perversões sexuais, investigando
ideias como fetichismo, sadismo, masoquismo.

61
importante psiquiatra alemão estava antevendo o que Freud, doravante, perceberia: no
inconsciente, não há traços da realidade – o que perambulam são as fantasias. Portanto, se a
realidade perde seu lugar, a fantasia entra em cena. No que diz respeito ao que Freud apresentou
nessa conferência, Krafft-Ebing, afinal, quase acertara; eram, realmente, “contos de fadas” ou um
compêndio de contos de fadas que seus pacientes, pela via da fantasia, diziam-lhe. O discurso dos
neuróticos, assim como os contos de fadas, carregando o mágico e o fantasístico: primeiro, mora
na terra do nunca, o eterno infantil do adulto e, em segundo, no tempo de “Era uma vez”, que
remonta ao pré-histórico, o qual, sem saber ter ideia, sempre é uma suposição, um produto
inventivo41. Portanto, o roteiro do teatro da análise, cujos conteúdos são, amiúde, “contos de
fadas”, é escrito por uma criança e encenado pelo infantil. Em síntese, a criança do adulto 42, na
análise, coloca a sua fábula em cena com a persona do analista – a fada que permite a realização de
suas fantasias.
Solitário na medicina vienense, Freud, por intermédio do seu antigo professor Ernest von
Brücke, encontrou, no fisiologista austríaco Joseph Breuer (1842 – 1925), o respaldo científico e
emocional necessário para continuar sua empreitada para montar um projeto de uma psicologia
científica. Semelhante a Freud, Breuer se interessava pela utilização da hipnose no tratamento da
histérica. Contudo, no manejo breuerniano, a hipnose era um meio para permitir que os pacientes
retomassem e narrassem incidentes traumáticos, esquecidos de sua infância. Por se tratar da uma
descarga do afeto ligado à experiência traumática, essa técnica foi chamada por Breuer como
“catártica”, pois se tratava da conciliação entre a hipnose e a fala livre do sujeito, cujo intento era
produzir ab-reagir, descarregando as emoções reprimidas. Nesses rudimentos dos estudos sobre a
mente, acreditava-se que a neurose histérica teria sua origem em um trauma sexual, um abuso
durante a infância: “Quando, no procedimento ‘catártico’ que Breuer e eu introduzimos,
investigava-se cada vez mais os traumas psíquicos de que derivavam os sintomas histéricos,
chegava-se finalmente a vivências que pertenciam à infância e diziam respeito à sua vida sexual [...]”
(FREUD, 2016 [1906], p. 351). Assim, Freud e Breuer sustentavam a tese de que a causalidade da

41 Preambularmente, tem-se o não-sentido, o que Lacan (1985 [1964]) chama de Real. Trata-se de uma pré-história,
que é sempre uma suposição, posto que, sem saber o que houve, o sujeito inconscientemente forja fantasias para tentar,
debalde, criar corpo a esse tempo sem bordas. Para lidar, portanto, tem-se que inventar, fabular. Tendo-se em vista
que a linguagem só surgirá quando, no narcisismo, o sujeito tem consciência de si e se identifica, pré-histórico do
indivíduo remete ao que é anterior à linguagem, ao que é impensável e impossível de simbolização – escapa ao
Simbólico (LACAN, 1985 [1964]).
42 Assim como Freud (2019 [1900]) percebera que o conteúdo latente dos sonhos dos adultos eram sempre uma

realização de um desejo de natureza infantil: “[...] numa Psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre menos
adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância.” (CALLIGARIS, 2010, p. 1 – 2).

62
histeria estava relacionada com uma sedução real, um traumatismo de ordem sexual. N’Os estudos sobre
a histeria, ambos dissertam acerca do trauma como um “choque” em um corpo ainda não capaz de
lidar. Ante a ocorrência de um abuso e/ou de uma sedução real, caso o afeto não tenha conseguido
expressão para enfrentá-lo na época, o trauma e seus respectivos sintomas surgem como uma
maneira de lidar. Frente ao relato das histéricas, que sempre se voltava para narrativas de caráter
sexual, relacionado a pais ou cuidadores, Freud considerava que algumas crianças, por não terem
corpo físico e psíquico para lidarem com um abuso, não conseguiram ab-reagir43 e, com efeito,
produziram sintomas no intento de descarregarem a tensão psíquica.
Embora a sedução, no caso das pacientes de Freud, não fosse real, as histéricas não mentiam;
esses relatos histéricos, cujo conteúdo, amiúde, atravessam violências sexuais, eram a mais
profunda verdade, pelo menos no inconsciente dos pacientes. Portanto, a primeira definição da
histeria, segundo Freud, resume-se à célebre frase: “as histéricas sofrem, sobretudo, de
reminiscências.” (FREUD, 2016 [1893 – 1895), p. 19). O gérmen da histeria localiza-se em uma
cena traumática, de sedução, que se convertia, sem poder reagir, em sintomas histéricos, por isso:
teoria do trauma. Um exemplo de conversão histérica, causado por incidentes infantis, é no conto
“Papoulas em Feltro Negro”, presente no livro A noite escura e mais eu (1995), de Lygia Fagundes
Telles, cuja protagonista, recordando episódios de sua infância e suas reverberações na atualidade,
afirma: “Tive bronquite quando criança – eu disse e de repente descobri uma coisa curiosa, a
simples lembrança infantil me fazia tossir novamente. A tosse da memória.” (TELLES, 2018
[1995], p. 426). Na histeria, o sintoma, capaz de desvirginar o corpo e deixá-lo em carne viva, é a
tosse das reminiscências traumáticas, abusivas e sedutivas dos primeiros tempos. Doravante, Freud
inverte a teoria: o “infantilismo da sexualidade” tomou o lugar dos “traumas sexuais” que a criança
supostamente sofreu – a sedução real é substituída pelas fantasias sexuais infantis.44 Para pôr em
marcha essa mudança crucial para a teoria psicanalítica e, finalmente, chegar ao campo das fantasias

43 Ab-reação: “Descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento
traumático, permitindo assim que ele não se torne ou não continue sendo patogênico. A ab-reação, que pode ser
provocada no decorrer da psicoterapia, principalmente sob hipnose, e produzir então um efeito de catarse, também
pode surgir de modo espontâneo, separada do traumatismo inicial por um intervalo mais ou menos longo.”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 23).
44 “Superestimei a frequência desses acontecimentos (inquestionáveis, de resto), pois também não estava em condições,

naquela época, de distinguir seguramente entre as enganosas recordações infantis dos histéricos e os traços dos eventos
reais, e desde então aprendi a explicar muitas fantasias de sedução como tentativas de se defender da recordação da
própria atividade sexual (masturbação infantil). Com esse esclarecimento descartou-se a ênfase no elemento
“traumático” das vivências sexuais infantis, e restou a compreensão de que a atividade sexual infantil (espontânea ou
provocada) prescreve a direção que será tomada pela vida sexual após o amadurecimento” (FREUD, 2016 [1906], p.
353).

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e da sexualidade infantil, Freud levou em consideração um conjunto de incidentes, como: a)
fracasso nas análises; b) como o número de histéricas era exorbitante, incluindo pessoas de sua
família, pressupor um abuso/trauma real, urgia-se dizer, equivocadamente, que todos os pais são
perversos e abusadores; e c) no inconsciente, não há vestígios da realidade, não há uma distinção
entre verdade e ficção. Portanto, as revelações de supostas seduções, de pais e cuidadores stripper
teases, eram, verdadeiramente, fruto de fantasias e imaginações da criança. Afirmar que a criança,
inconscientemente, tem fantasias de ordem sexual, equivale a dizer, com efeito, que há sexualidade
infantil:

Se os histéricos fazem remontar seus sintomas a traumas inventados, então o fato


novo é que eles fantasiam tais cenas, e a realidade psíquica exige ser apreciada
juntamente com a realidade prática. Logo houve a percepção de que essas
fantasias se destinavam a encobrir, adornar e situar num nível mais elevado a
atividade erótica dos primeiros anos da infância, e então, por trás dessas fantasias,
apareceu a vida sexual da criança em toda a sua amplitude (FREUD, 2012 [1914],
p. 187).

No fim de suas férias de 1887, Freud escreve a Fliess: “Não acredito mais na minha
neurótica.” (FREUD, 1986 [1887], p. 265). Não por coincidência, três semanas depois do envio
epistolar dessa emblemática frase, Freud se corresponde novamente com Fliess, na carta de 15 de
outubro de 1897, afirmando que entrara em ruminações solitárias (autoanálise), cujo movimento foi
uma recondução a sua própria infância, a fim de buscar traços residuais (reais ou não). O método
autoanalítico que Freud empreendia era, assim como na clínica, o da associação livre. “Nos últimos
quatro dias, minha autoanálise, que considero indispensável para o esclarecimento de todo o
problema, prosseguiu nos sonhos e me forneceu as mais valiosas elucidações e indícios.”
(FREUD, 1986 [1987], p. 271). Esse movimento de autoanálise, que Freud empreendeu a si
mesmo, permitiu-lhe uma investigação de reminiscências fragmentárias, assim como a constatação
de desejos, barrados pelo recalque, ocultos. Reconheceu, como pode-se observar na sua
autoanálise, que sua jovem mãe Amália Freud foi objeto de suas fantasias e sonhos. Em uma
continuação da maternidade, percebera que a sua babá católica, que lhe ofertava carinhos, também
foi desejada edipicamente por ele (GAY, 1989). Outrossim, com a morte do seu pai, um ano antes
dessa carta a Fliess, Freud percebeu, em si mesmo, assim como os irmãos da horda, sentimentos
ambíguos: angústia pela perda do pai, mas, com ímpetos parricidas, regozijo. Nessa mesma missiva,
Freud iria perceber vestígios da peça Édipo Rei, de Sófocles, como desejos amorosos e hostis aos
pais, em sua própria infância e, universalizando, em todas as outras crianças: “Descobri, também

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em meu próprio caso o fenômeno de me apaixonar por mamãe e ter ciúme de papai, e agora o
considero um acontecimento universal da infância [...]” (FREUD, 1986 [1897], p. 273). Assim,
através de tentativas de reconstrução com pedaços torturantes de sua tenra infância, como buscou
montar o esqueleto do psiquismo humano.
Em 1899, dois anos depois de perder a crença no discurso histérico e perceber a existência
de desejos edípicos, Freud escreve a Fliess: “É possível que uma teoria da sexualidade seja a
sucessora imediata do livro dos sonhos.” (FREUD, 1986 [1899], p. 380). O abandono da teoria da
sedução, longe de afastar Freud do campo da sexualidade, aproximou-o ainda mais e o permitiu
chegar às fantasias infantis: as revelações da fala histérica eram, na realidade, produtos do
inconsciente. A partir do abandono da teoria da sedução e o “afastamento da realidade”, estavam
abertas as alas para a identificação do complexo de Édipo e das fantasias inconscientes – primazia
dos estudos psicanalíticos. A despeito do seu abandono, a primeira etiologia da histeria, conforme
a Psicanálise, é significa, pois, além de ser substancial para o entendimento do abuso sexual e da
compreensão do “trauma”. O traumatismo, nessas tramas penetrantes das subjetividades, pode ser
compreendido como uma desmedida de imposições e excitações em direção a um corpo que, à
revelia ou à contragosto, é submetido. Com efeito, extrapolando a capacidade de dar contornos a
essa vivência, transborda-se e escapa à capacidade de elaboração e tolerância psíquica do sujeito.
Quando um indivíduo se lança em direção a outro, sem consentimento, penetrando-o física e
psiquicamente – Winnicott (2013 [1963] aponta que ocorre um estupro quando violam o verdadeiro
self do indivíduo, por exemplo –, deflorando seu corpo e/ou sua subjetividade, a vítima tentará,
talvez debalde, uma vez que a capacidade de simbolização foi desestruturada, elaborar essa invasão
da sexualidade adulta em seu mundo ainda imaturo ou incapaz de recepcioná-lo. Não à toa, a
violação sexual é: “[...] uma surpresa catastrófica que submerge o sujeito e derruba-o, lançando-o
em uma torrente rumo a um lugar que ele não desejava ir. É rompida uma bolha protetora, na qual
o sujeito se guardava. Desorganiza-se o seu mundo e observa-se uma confusão [...]” (MALGARIM;
BENETTI, 2010, p. 22). O momento em do “rompimento da bolha”, sentido como não historicizado
pelo sujeito estuprado, pode ser vislumbrado no conto “A língua do P”, de Clarice Lispector, que
relata a história de uma professora, no mesmo vagão que dois estranhos, que estão orquestrando o
seu estupro no momento em que passarem pelo próximo túnel: “Queriam dizer que iam currá-la
no túnel...O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se
conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí e que piorava. Me socorre, Virgem Maria!
Me socorre! Me socorre!” (LISPECTOR, 2020 [1974], p. 68).

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Escuro e claustrofóbico, eis o que escapa à vítima do estupro: o túnel, local onde a realidade
e a fantasia, para tentarem dar contornos ao trauma, mesclam-se, assim como as reminiscências se
perdem e se confundem. Após o trauma, o cosmo psíquico é preenchido, amiúde, com fragmentos
e retalhos, claudicantes, precários e incertos, que o sujeito tenta compor o mosaico da sua vida
antes da experiência traumática, no intento de retomá-la. Na Valsa nº 6 (1951), de Nelson
Rodrigues, põe-se em cena Sônia, uma adolescente de 15 anos, em monólogo, que tenta retomar
lembranças, mescladas com retalhos da realidade e da fantasia, do dia em que foi estuprada e,
depois, assassinada por Paulo: “Vejo restos de memória, boiando num rio, [...] Num rio que talvez
não exista [...] Vejo também pedaços de mim mesma por toda parte... (numa revolta) Meu Deus,
como era mesmo o meu rosto, meus cabelos, cada uma de minhas feições? [...] Minha senhora,
esqueci meu rosto.” (RODRIGUES, 2012 [1951] p. 21). Por outro lado, o frenesi ou o arroubo do
“túnel”, do ponto de vista do agressor perverso, cujas barreiras da lei se abalam e são ultrapassada
pelo seu desejo, pode ser vislumbrado como uma movimentação inconsciente, posto que, por
vezes, a mera vontade consciente de refrear os impulsos torna-se incapaz e insuficiente ante a vítima.
Numa nota de rodapé, em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), Freud declara: “[...] o caso
não é diferente de um ataque sexual contra uma mulher, onde o ataque do homem não pode ser
repelido por sua força muscular total porque parte dos seus impulsos inconscientes encorajam o
ataque.” (FREUD, 2018 [1901], p. 221) 45. Pelo ponto de vista da vítima, a impossibilidade de reação
(ou ab-reação) da vítima após o estupro, pode ser vislumbrada, por exemplo, no conto “Almoço
na Serra do Domingo de Carnaval”, presente no livro O cobrador (1979), de Rubem Fonseca:

Estávamos andando por dentro do bosque, indo na direção do rio. Sônia havia
colocado um roupão sobre a roupa de banho. Paramos em frente à cachoeira.
Tirei o roupão de Sônia e coloquei-o no chão. É pena que você não esteja de
calção, podíamos tomar um banho de cachoeira, disse Sônia aflita. Deita, eu disse.
Não, meu bem, por favor. Agarrei os ombros de Sônia e sacudi o seu corpo. Por
favor, você está me machucando. Obriguei-a a deitar-se. Arranquei o seu biquíni.
Vira de costas, anda. Você acha que é assim que um homem trata a mulher que
ele ama? Cala a boca, eu disse, agarrando-a com força. Quando acabei, levantei-
me e fui embora sem olhar para trás (FONSECA, 2019 [1979], p. 111).

A “reação se perde” no bosque dos desejos do outro e as marcas, que não passam
incólumes, permanecem sem serem historicizadas, para fora da história da vítima do abuso, aos
moldes das histéricas, cujas lembranças foram “caladas”, lançadas e enclausuradas no porão da

45Cumpre salientar, aqui, que Freud não está justificando os atos infelizes praticados pelo abusador, mas apenas fazendo
uma observação de que existem causações inconscientes que o conduzem a tais atos. Caso praticados,
inconscientemente ou não, devem ser punidos com o rigor da lei.

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arcada dentária de sua boca, pelas mãos acachapantes do abusador. Em que pese o abandono da
teoria da sedução, quando perceber que as cenas de abuso são, na verdade, algumas vezes, produções
das fantasias, Freud continua acreditando que há casos de violências sexuais reais, que, incutindo
uma carga psicopatogênica, são capazes de desestruturar a sexualidade e o desenvolvimento do
indivíduo. Ainda nos ensaios sobre a histeria, inclusive, Freud relata o caso da jovem Katharina,
que, em análise, contara que fora abusada por seu tio quando tinha 14 anos: “Pelo modo de defesa
que relatou, parece que não reconheceu claramente o ataque como sexual. Depois, ao ser
questionada se sabia o que ele pretendera com ela, respondeu: ‘Naquela época, não’, apenas muito
mais tarde isso se tornou claro para ela.” (FREUD, 2016 [1893-1895], p. 98). Na epícrise do caso,
Freud, comparando as vivências eróticas reais (violência sexual) com momentos traumáticos,
declara: “[...] histeria fundada em traumas sexuais, que impressões do tempo pré-sexual, que
permaneceram sem efeito sobre a criança, depois adquirem força traumática como lembranças,
quando a compreensão da vida sexual se abre para a moça virgem ou a mulher.” (FREUD, 2016
[1893-1895], p. 101). Contrapondo a prevalência das fantasias na teoria freudiana, Laplanche (2015)
recorre ao artigo Confusão de línguas entre os adultos e a criança (1932), de Ferenczi, para abordar
vivências reais de abuso sexuais sofridos. Nesse texto, o psicanalista húngaro repudiou
veementemente o posicionamento da corporação psicanalítica da época, por causa de sua aparente
“neutralidade” frente a situações de deflorações reais que os pacientes estavam enfrentando ou já
enfrentaram. Sem apagar a presença das fantasias, Ferenczi apontou, por meio da psicanálise, que
o analista tem que estar preparado para seduções e abusos sexuais reais – o que levou Freud à
revolta, pois tal movimento abalaria sua teoria das fantasias sexuais:

Até crianças pertencentes a famílias honradas e de tradição puritana, com mais


frequência do que nos atrevemos a pensar, são vítimas de violências e violações.
Ora são os próprios pais que buscam dessa maneira pato- lógica um substituto
para suas insatisfações, ora são pessoas de confiança, membros da mesma família
(tios, tias, avós), ora, ainda, são os preceptores ou a criadagem doméstica que
abusam da ignorância ou da inocência das crianças. A objeção, qual seja, a de que
se trata de fantasias infantis, isto é, de mentiras histéricas, lamentavelmente perde
força em consequência do número considerável de pacientes em análise que
confessam, eles mesmos, haver chegado às vias de fato com crianças
(FERENCZI, 1992, p. 100).

Ferenczi consigna, em discordância com Freud, longe de colocar todo discurso de violência
sexual na ordem das fantasias, compreende e identifica movimentos e forças externas como
traumáticas. Embebendo-se das doses reais e fantasmáticas da sedução e do abuso sexual

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anunciados por Freud, o psicanalista francês Jean Laplanche, no artigo Da teoria da sedução restrita à
teoria da sedução generalizada (1992[1988]), faz uma articulação entre a teoria da sedução sexual por
parte de adultos a crianças proposta por Freud antes da virada do século XIX, ainda nos Estudos
sobre a Histeria, e a teoria do trauma e do abuso sexual revistos e reinseridos nos escritos maduros
da psicanálise, após a segunda tópica. Segundo Laplanche, a sedução restrita, compreendida por Freud
nas análises das neuróticas, tinha por característica um adulto perverso, “incriminado por Freud”,
era conhecido pela criança, assim como a sedução era da ordem da agressividade, da intrusão e da
violência. Ante o abusador, a vítima é imatura e está despreparada, seja em níveis psíquicos seja em
níveis somáticos: “A imaturidade, a ‘impotência sexual inerente às crianças’, é assim avaliada por
Freud em relação a uma espécie de escala de desenvolvimento [...]” (LAPLANCHE, 1992, p. 109).
Por isso, sem ter condições de lidar com as iniciativas sexuais do adulto, a criança coloca-se em
uma posição passiva, experienciando a sedução de modo traumático. Imersa em sentimentos de
angústia e agonia, a criança – ou a vítima de estupro –, permanece letárgica e incapaz de agir
ativamente em relação à sedução, o que, transbordando à capacidade de elaboração, conduz ao
trauma. Cumpre salientar, segundo Laplanche, que a “passividade” da vítima não diz respeito
somente a uma imobilização gestual ou corpórea, mas a uma incongruência de compreender –
simbolizar – a mensagem que lhe é súbita e bruscamente endereçada.

Máculas do corpo, deflorações da memória: ‘gotas de sangue’ destiladas de/em Dolly


Em meados dos anos 40, durante o curso de Direito na Faculdade do Largo de São
Francisco, a paulistana Lygia Fagundes começa a se encaminhar pela ficcionalidade literária,
escrevendo e publicando os seus primeiros escritos, como o livro Porão e sobrado (1938) e Praia viva
(1944). Nessa época, a jovem Lygia frequentava Jaraguá, uma mistura de livraria, salão de chá e
galeria de arte, visitada por muitos artistas e escritores, como Mário de Andrade e Oswald de
Andrade. Em contexto de Estado Novo e Getulismo, prevalecia a censura à imprensa e a muitos
movimentos artísticos. Contudo, a escritora de As meninas (1973) já era bastante subversiva e
resistia, juntamente com os intelectuais de Jacarandá, às perseguições do governo de Vargas.
Doravante, sepultando esses escritos primevos, os quais a escritora os nomeia de “juvenilidades”,
Lygia considera o início de sua carreira literária a partir do seu célebre romance Ciranda de Pedra
(1954), reputado, por Candido (1989), como a sua maturidade literária.

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Com sua estreia oficial em 1944, com Praia Viva, Lygia é, comumente, albergada na
chamada Geração de 45, também conhecida como a Terceira Fase do Modernismo. Após o ardor
ufanista da Semana de 22 e o apego ao regionalismo dos anos 30, a Geração de 45, impregnando-
se do neoclássico, embebeda-se do Existencialismo sartreano, cujas ideias acabaram de chegar ao
Brasil, assim como, ainda prevalecentes, recorre ao experimentalismo das vanguardas, tais como o
Expressionismo e o Surrealismo (LUCAS, 1999). Além, também, de recorrer a aparatos literários,
como o estilo indireto livre e o fluxo de consciência, essa Geração Pós-moderna, afastando-se um
pouco da brutalidade do sertão, prefere representar, caleidoscopicamente, registros da vivência
interior e subjetiva dos personagens. Não à toa, em 1944, no mesmo ano em que Lygia publica
Praia Viva, seu primeiro livro de contos, Clarice Lispector publica Perto do coração selvagem, seu
primeiro romance.
Assim, vislumbrando esse retrato do interior dos personagens, as narrativas de Lygia
exploram, amiúde: manifestações do inconsciente; fantasias e memórias infantis; estados oníricos;
intimidações da velhice e da morte; loucura; estruturas edípicas; linguagem, aos moldes de
associação livre, vertiginosamente fragmentada, entre outros retratos incônscios. Não à toa,
alinhando-se a escritores da Geração de 45, como Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende e Aníbal
Machado, Bosi (2017 [1982], p. 414) vislumbra Lygia Fagundes Telles na categoria de “escritores
de invulgar penetração psicológica”. Nesse sentido, a dama da Literatura Brasileira apresenta um
forte pendor à estética memorialista, intimista e autoanalista, em que os personagens, esquivando-
se, não se dispõe a lidar com o contraste eu/mundo e, com efeito, preferem subjetivar as tensões
e os conflitos. Tal apego à interioridade dos personagens torna a ficção de Lygia um terreno fértil
para ser colocada no divã e esgarçada por ciências capazes de investigar o inconsciente e suas
vicissitudes, como a Psicanálise.
No conto “Dolly”, presente no livro A noite escura e mais eu (1995), deparamo-nos com uma
brutal defloração sexual de Dolly, seguida por seu assassinado, após uma longa noite de festa e
bebedeira. Em um relato repleto de flashbacks, Adelaide, responsável por contar a trágica histórica,
remonta o passado de Dolly, no viço da juventude, uma aspirante a atriz, assim como relata, em
minúcias, a atmosfera sufocante e agônica do presente, no quarto de Dolly, vítima de estupro.
Entre idas e vindas, ao longo do conto, deparamo-nos de que modo ocorreu o encontro entre
Adelaide e Dolly, antes da sua morte. Interessada em dividir o aluguel da casa, a jovem Dolly coloca
um anúncio no jornal que logo interessa a Adelaide: “E se desse certo morar numa casa dividindo
as despesas com a dona? Queria tanto ter um quarto só meu [...]. Achei a casa engraçada, achei a

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moça meio desmiolada mas tão bonita e não era o que eu queria [...]. Quando me despedi dessa
Dolly, já sabia que não ia voltar.” (TELLES, 2018 [1995], p. 386). No início da narrativa, quando
Adelaide está voltando para casa em um bonde, percebe uma gota de sangue, sem explicação para
o leitor, em sua luva. Embora queira voltar para o lugar, ainda desconhecido, que deixara, continua
no bonde, voltando para sua casa: “Dolly! eu repito e sinto aquele aperto no estômago mas não
tenho mais vontade de puxar a sineta, descer e voltar correndo até a casa amarela, queria tanto fazer
alguma coisa mas fazer o quê?!” (TELLES, 2018 [1995], p. 386).
Em um movimento narrativo retrospectivo, Adelaine conta que esquecera alguns cadernos
na casa de Dolly e, por isso, foi buscá-los. Todavia, ao chegar na casa da sua amiga, não é atendida,
mesmo depois de tocar a campainha. Pelo olhar de Adelaide, o leitor entrever, nas frestas da janela,
a (des)organização cênica da casa de Dolly, que compõe o cenário opressivo e inquietante, uma vez
que, por entre a bagunça dos móveis e artefatos da casa, eminentemente poderia aparecer um corpo
mutilado: “[...] reparei que a luz estava acessa. Estranhei, ainda era dia. Estranhei também a
desordem, cinzeiros e copos espalhados por toda parte, dois pratos com restos de comida ali no
chão, mas me lembrei que Dolly é artista e em casa de artista deve ser assim em noite de festa, teve
festa.” (TELLES, 2018 [1995], p. 386). Acompanha-se, pelo murmúrio da voz e pelos vacilantes
olhos, a entrada aflitiva de Adelaide, que esperava, inicialmente, que sua amiga estivesse em sono
profundo: “Quando entrei na casa estava de luvas. Chamei, Dolly! O gato apareceu e fugiu. No
silêncio, a desordem. A luz acesa. A porta do escritório estava entreaberta. Espiei e vi Dolly na
cama debaixo de um acolchoado. Chamei de novo, Dolly! mas sabia que ela estava morta.”
(TELLES, 2018 [1995], p. 387). Eis a descrição nauseante de Adelaide frente ao corpo-objeto de
estupro seguido de morte de Dolly, cujo sangue – espúrio –, fruto de uma defloração, destila
hemorrágica e repulsivamente, criando um lamaçal coagulante pelas rachaduras do piso do quarto:

Espiei debaixo da cama e então vi a poça de sangue negro, quase negro. Perto da
poça uma garrafa vazia que rolou da cama. Rolou ou foi jogada lá embaixo?
Estendi o braço e com a ponta do dedo fiz rolar a garrafa de vinho que veio
vindo até quase tocar nos meus joelhos. Uma crosta de sangue já coagulado já
cobria todo o gargalo da garrafa até chegar à circunferência da boca onde a crosta
parecia mais amolecida, fechando essa boca feito um dedal. Dois filetes de sangue
tinha escorrido e seguiram paralelos até o rótulo, onde pararam endurecidos
sobre duas letras douradas, um B e um A, o relevo das letras servindo de dique
para segurar as gota. Abri a boca para respirar e senti o cheiro morno que vinha
de debaixo da cama, aquele cheiro corrompido de uma goiaba que apodreceu e
rachou (TELLES, 2018 [1995], p. 387).

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Eis que a narradora, Adelaide, descobre como aquela gota de sangue salpicara em sua luva:
fora no momento em que empurrou a garrafa incrustrada com o sangue de Dolly. Ante a cena
desbusolante, Adelaide repara no corpo em frangalhos e súplicas de Dolly, que, para o momento
do seu ‘uso’, fora despido apenas as vestes inferiores: “Dolly estava deitada de costas e vestia uma
bata de cetim preto decotada e curta [...]. Tinha as pernas ligeiramente encolhidas de encontro ao
ventre, as mãos tentando enlaçar as pernas. Debaixo, a mancha de sangue formando uma grande
ronda no lençol.” (TELLES, 2018 [1995], p. 387). Em O tabu da virgindade (1918), Freud aponta a
defloração, compreendida como uma “injúria narcísica”, é uma experiência traumática para a
mulher, que acarretaria um “estrago” no órgão sexual (e psíquico): “a defloração também é um ato
significativo, mas ela se tornou objeto de um tabu, de uma proibição que chamaríamos de religiosa.”
(FREUD, 2019 [1918], p. 157). Depois de um estupro, a única movimentação tolerada para uma
mulher, que passa a ser vislumbrada pela cultura como um “produto estragado” é o silêncio, dirigir
a violência e a culpa para si mesma. O estupro é colocado, pela sociedade, como algo que não deve
‘se recuperar’, um horror que não pode e nem deve ser nomeado: eis que a violência sexual é um
ato iniciático que esculpe e modela a carne para produzir uma mulher esgarçada, que jamais pode
ser, pelo menos psiquicamente, fechada.
Além disso, articulando com o olhar fixo de Adelaide ao nauseabundo sangue que jorra de
Dolly, Freud, nesse mesmo texto, aponta que o tabu da virgindade é sustentado por diversos fatores
– sendo um deles, o horror – e fascinação – ao sangue46, que coincide com o horror à menstruação:
“Na defloração, a moça sangra; a primeira explicação baseia-se, então, no horror ao sangue que
sentem os primitivos, que o consideram a sede da vida. [...]. A primeira relação sexual é certamente
um ato preocupante, e muito mais, se nele acontecer de verter sangue.” (FREUD, 2019 [1918], p.
162). A defloração é vista, pelos neuróticos – assim como pelos abusadores –, como um “ato
mágico”, posto que é uma ferida que sangra, objeto de regozijo para alguns sádicos, no gozo da
anulação do outro, do seu discurso e do seu corpo, por exemplo. Laplanche (2015), não à toa, aponta
o sadomasoquismo como uma das possíveis motivações para o crime sexual, recorrendo, inclusive,
ao Bate-se em uma criança (1924), paradigmático texto sobre o desejo perverso e sádico do sujeito.
Compreendo o corpo da vítima enquanto o território inexplorado e, à contra- vontade, negado ao

46 O horror ao sangue, ou o tabu do sangue, já fora percebido por Freud na vida dos primitivos e dos neuróticos, em
Totem e tabu (1912 – 1913): “Os numerosos tabus a que estão sujeitas as mulheres dos selvagens durante a menstruação
são motivados pelo supersticioso horror ao sangue, e nisso também possuem um fundamento real. Mas seria injusto
ignorar a possibilidade de que esse horror ao sangue também serve a propósitos estéticos e higiênicos, que em todo
caso têm de vestir-se de motivações mágicas (FREUD, 2012 [1912 – 1913], p. 101 – 101).

71
abusador, o estupro surge como uma colonização exploradora do corpo, capaz de dizimar, controlar e
aniquilar. Em complementação a essa ideia, Lacan (1998 [1964]) insiste sobre o fato de que o
“masoquismo” ter sido uma invenção masculina, de homens abusadores, que visam justificar e
respaldar a sua própria fantasia de dominar e subjugar a mulher; não por acaso, o discurso de
muitos violentadores sexuais é que as vítimas estavam o instigando para à brutalidade do ato: “Será
que podemos nos fiar no que a perversão deve à invenção masculina, para concluir que o masoquismo da
mulher é uma fantasia do desejo do homem?” (LACAN, 2003 [1958], p. 740). No Seminário 10 (1962 –
1963), o psicanalista francês responde ao questionamento e reafirma que o masoquismo feminino,
que faz com que os homens suponham que as mulheres “desejam ser violentadas”, são, na verdade,
produto de fantasias masculinas. No caso do conto, a despeito do(s) deflorador(es) não serem
mencionado(s), pode-se perceber, pela barbaridade do fato de que o estupro foi “finalizado” com
uma garrafa de vinho penetrada, a dominação masculina e o seu desejo sádico, incutido na
“liberdade sexual” que Dolly, quando viva, tinha.
Pode-se ainda vislumbrar um prazer escópico de Adelaide, que, comportando-se como um
voyeur, ao passo que se horroriza, permanece olhando e relembrando a cena de sua amiga estuprada.
A própria mácula do sangue infiltra-se em seu próprio corpo, a despeito do seu desejo se purificar
depois da espúria e ‘imunda’ experiência, como se, por ter tido contato, a moléstia pudesse, como
a repulsa aos leprosos, infectá-la: “[...] sei que preciso me livrar delas [das luvas], não ver nunca
mais o sangue que pingou e virou uma estrelinha irregular, escura, me livrar das luvas e seguir meu
caminho.” (TELLES, 2018 [1995], p. 385). A despeito do seu desejo de se esquecer do que
enxergara, por meio do ato de abandonar a luva, a gota que respingou, torna-se um símbolo que a
faz lembrar do ocorrido, tornando-se impossível livrar-se da memória – metonimizada na luva. Ao
final da narrativa, finge esquecer a luva com sangue no banco do bonde, mas eis que surge o
fantasma inexorável das lembranças: “– Moça, sua luva, esqueceu sua luva! – O cobrador me avisa
aos gritos. Agradeço quando ele me atira as luvas e vem uma vontade de rir porque penso na Dolly
que deve estar rindo de mim, não na Dolly desvaída, mas na outra, na Dolly de olhar acesso e
cabeleira cintilante.” (TELLES, 2018 [1995], p. 396). Se, na histeria, para Freud, prevaleciam as
lembranças de um passado traumático, na violência sexual permanece a mesma ‘doença da
memória’, mas, neste caso, as reminiscências ganham contornos angustiantes e, muitas vezes,
diferente dos histéricos, conscientes, capazes lançar, amiúde, âncoras na vida da vítima,
(re)conduzindo-a ao episódio traumático, eis a memória olfativa, de Ana Clara, de As meninas (1973),
de Lygia Fagundes Telles, enquanto um sintoma, busca, no sótão das lembranças, a primeira

72
experiência – traumática e violenta – amorosa, que é reencenada e intercalada com/nas novas
experiências da adultez:

Fechei a boca mas ficou aberta a memória do olfato. A memória tem um olfato memorável.
Minha infância é inteira feita de cheiros. [...]. O vômito das bebedeiras daqueles
homens e o suor e as privadas mais o cheiro do Doutor Algodãozinho. Somados,
pomba. Aprendi milhões com esses cheiros mais a raiva tanta raiva tudo era difícil
só ela fácil. [...] repeti enquanto a mão arrebentava o botão da minha blusa. Onde será
que foi parar meu botão eu disse e de repente ficou tão importante aquele botão
que saltou quando a mão procurava mais embaixo porque os seios já não interessavam mais.
Por que os seios já não interessavam mais por quê? O botão eu repeti cravando
as unhas no plástico da cadeira e fechando os olhos pra não ver o cilindro de luz
fria do teto piscando numa das extremidades e o botão? [...] As unhas arrebentando
o elástico da minha calça e arrebentando a calça e enfiando o dedo de barata-aranha pelos
buracos todos que ia encontrando tinha tantos lá na construção, lembra? […] (TELLES,
2009, p. 41-42, grifo nosso).

Pelo lado da vítima do abuso, a arquitetura pré-traumática nem sempre é possível de ser
lembrada, uma vez que o sujeito reincide e repete, assim como os seus pacientes que chegavam da
Primeira Guerra em Além do princípio do prazer (1920), o trauma – ou, pelo menos, sua lembrança,
seu episódio. Insofismavelmente, o elemento da “repetição” é uma marca da Psicanálise, uma vez
que, desde os primórdios, Freud constata que as histéricas sofriam de lembranças, de
reminiscências não historicizadas, que se repetiam. Ou seja, o que não é historicizado pelo sujeito
é capaz de conduzi-lo ao sofrimento. Nesse sentido, assim como “as histéricas sofrem de
reminiscências”, o indivíduo sofre de assombrações que não foram historicizadas. Freud, em
Recordar, repetir e elaborar (1914), diz que acreditava, no início da Psicanálise, que seria necessário o
paciente recordar o que, na sua trajetória, não foi historicizado, tendo uma espécie de insight – por
isso que, nos primórdios da clínica, o pai da psicanálise usou o método catártico. Nos primeiros
anos da ciência psicanalítica, Freud acreditava que o esquecimento ocultava a causa e a verdade da
doença, por isso que utilizou, também, como método a hipnose, no intento de quebrar o bloqueio
da memória e chegar ao episódio traumático. Se, no caso de Dolly, as lembranças traumáticas do
estupro não reaparecem, uma vez que logo depois de violentada, é morta, Ana Clara, personagem
de As meninas (1973), célebre romance lygiano, relembra constantemente, durante seus novos
relacionamentos em sua vida adulta, do abuso sexual que sofrera quando criança, durante os
atendimentos com o Dr. Alodãozinho, o dentista da família. Não à toa, em Sobre a sexualidade
feminina (1931), o mestre vienense consigna, voltando-se à sedução não fantasística: “Também a
sedução real é frequente, por parte de outras crianças ou de pessoas que dela cuidam, que buscam sossegá-

73
la [...]. Quando há a sedução, ela normalmente perturba o curso natural de desenvolvimento; muitas
vezes deixa consequências profundas e duradouras.” (FREUD, 2010 [1931], p.173 – 174, grifo nosso).
Em 1933, em sua Conferência d’A feminilidade, Freud reinsere a teoria da sedução real em
seus escritos, situando-a na história pré-edípica da menina, mas, se no tratamento com as histéricas
o sedutor era o pai, no reaparecimento da teoria da sedução, a sedutora é comumente a mãe. Eis
que, segundo Freud (1933), a fantasia toca a realidade e a violação sexual real emerge do terreno da
sedução fantasiosa47, posto que: “[...] foi realmente a mãe que, nos procedimentos de cuidados
corporais, estimulou, e talvez tenha despertado pela primeira vez sensações de prazer nos genitais.”
(FREUD, 2019 [1933], p. 324). Em Moisés e o Monoteísmo (1939), uma de suas últimas contribuições
à ciência psicanalítica, o psicanalista, no afã de definir traumas sexuais, diz, reafirmando os riscos
referentes ao abuso sexual, que há experiências sexuais que deixam marcas indeléveis no corpo
físico e psíquico do indivíduo, ainda que, sucumbam à força do recalque: “Denominamos traumas
as impressões experimentadas [...]. Os traumas são ou vivências sofridas no próprio corpo ou percepções
sensoriais, geralmente de algo visto e ouvido; ou seja, vivências ou impressões.” (FREUD, 2018 [1938], p. 60 –
61, grifo nosso).

Conclusão
Investido por conceitos psicanalíticos a respeito do abuso sexual, da sedução e do estupro,
investigou-se umas vozes mais perturbadoras e emblemáticas da literatura brasileira
contemporânea: Lygia Fagundes Telles. Em suas narrativas, as experiências sexuais e a sexualidade,
em si, raras vezes seguem enquadres prototípicos; sobressaem, assim, personagens cuja sexualidade
é, amiúde, desestruturada por vivências infantis, como uma família ordeira que interdita todas as
possibilidades de experiências sexuais da filha no conto O espartilho (1991) ou por realizações sexuais
impossíveis, como o caso da impotência sexual de Conrado, em Ciranda de Pedra (1954). Em Dolly
(1995), deparamo-nos com o relato trágico e agônico de Adelaide, uma amiga e narradora em
terceira pessoa, que depara com o corpo brutalmente violado de Dolly, uma jovem atriz, cujo
arremate dilacerante foi a penetração de uma garrafa de vinho em sua vagina. Apenas pelo olhar de
Adelaide, o leitor caminha pela cena de um crime sexual, tropeça nas roupas e artefatos lançados

47 Essa concepção já está presente, nos escritos freudianos, desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905),
inclusive: “Em primeiro plano está a influência da sedução, que trata a criança como objeto sexual prematuramente e
a faz conhecer, em circunstâncias de forte impressão, a satisfação das zonas genitais, que ela, então, é geralmente
obrigada a renovar pela masturbação. Tal influência pode vir de adultos ou de outras crianças [...]” (FREUD, 2016
[1905], p. 52).

74
ao chão e se desestabiliza, sentido o fedor ferruginoso e nauseante do sangue que borbulha do
corpo, que, outrora em estremecimentos e protestos, encontra-se letárgico.

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76
Edy, musa inspiradora dos versos de Eulálio Motta,
nos poemas No mundo dos sonhos e Para esquecer
Orientador: Dr. Patrício Nunes Barreiros
Universidade Estadual de Feira de Santana
mail: patricio@uefs.com.br

Autora: Ma. Sheila Cardoso Cerqueira


Universidade Estadual de Feira de Santana
E-mail: sheilacardoso75.9186@gmail.com

Resumo
Este trabalho pretende elaborar uma breve análise dos poemas No Mundo dos Sonhos e Para Esquecer, do poeta
baiano Eulálio de Miranda Motta (1908-1988). A ideia é refletir sobre o amor puramente plantônico que o
autor desenvolveu ao longo de sua poesia romântica. Edy, figura emblemática dos versos do poeta,
representa um amor puro, virginal, inalcançável e fugaz. Para o autor, a possibilidade de realização desse
amor só é possível no universo onírico. O eu lírico sofre pela saudade daquilo que poderia ter acontecido e
não aconteceu. O suporte teórico utilizado para o desenvolvimento deste trabalho foram: Araújo (2011);
Barreiros (2012); Coutinho (2014); Magalhães (1998); Motta (1983); Lima (1995); Santos (2017); Rougemont
(1998).
Palavras-chave: Poesia; Mulher; Amor platônico.

INTRODUÇÃO

O interesse pelo estudo e análise da poesia amorosa de Eulálio Motta, surgiu do contato
com o projeto de pesquisa Edição das Obras Inéditas de Eulálio Motta, coordenado pelo professor
Patrício Barreiros, que organizou o acervo do escritor e é responsável pela edição das suas obras
inéditas. Essa relação se deu durante a graduação em Letras Vernáculas, na Universidade Estadual
de Feira de Santana, quando me identifiquei com as pesquisas realizadas a partir do acervo e que
me motivaram a participar, como voluntária, no 6º semestre, do projeto de iniciação cientifica, em
2017. Nessa ocasião, tive a oportunidade de manusear alguns manuscritos do escritor e realizei a
conferência de edições (semidiplomáticas) feitas por outros bolsistas do projeto.
Foi por meio da conferência desses documentos que tive contato com a poesia de Eulálio
Motta, consultando os manuscritos preservados no acervo. A leitura do manuscrito contraria a
ordem natural da leitura da obra de um escritor. O mais comum é ler o texto impresso, preparado
para os leitores. Na leitura dos poemas manuscritos, nota-se que o sentimento de amor pela mulher
amada é uma das temáticas mais recorrentes. Além dos poemas, nos cadernos que manipulei,

77
constavam cartas, anotações do cotidiano, crônicas, panfletos, cordéis e, especialmente, sonetos
que abordavam a temática da mulher amada.
Desse modo, deu-se sequência aos estudos da obra de Eulálio Motta, concentrando-se na
poesia amorosa do autor, especialmente aquela que trata de sua musa inspiradora, com a dissertação
de mestrado intitulada “A poesia Amorosa de Eulálio Motta”, defendida em 16 de Junho de 2020,
pelo programa de Pós-Graduação em Estudos Literários e Diversidade Cultural, na Universidade
Estadual de Feira de Santana. Nesse sentido, buscou-se fazer um mapeamento da poesia amorosa
que reverbera em sua escrita e o amor não correspondido que deixou profundas marcas em sua
vida. A jovem Edy tornou-se a musa inatingível de Eulálio Motta e, segundo relatos dos seus
amigos, o poeta costumava contar essa história de desilusão amorosa não apenas em seus poemas,
mas também em conversas cotidianas.
Segundo Barreiros, Eulálio Motta fez da escrita uma forma de marcar sua existência no
universo, ele modelou a sua identidade e traçou uma imagem para si mesmo. (BARREIROS, 2010,
p. 25). É possível considerar as obras do autor como um labirinto inesgotável e multifacetado,
principalmente porque é notório o desejo de Eulálio Motta pelo registro de seu legado no mundo
literário presente em um acervo que revela a sua passagem no tempo, suas múltiplas identidades e
sua contribuição para a literatura baiana.

DELIMITAÇÃO TEÓRICA
De modo geral, o poema é uma estrutura composta por versos, estrofes e rimas que se
revelam na composição escrita do poeta. Todas as expressões, sentimentos e emoções que fazem
parte do processo de criação poética do autor são únicas e se esgotam em cada poema. Para o
ensaísta Paz (1982, p.20), em seu livro O Arco e a Lira, cada poema é um objeto único, criado por
uma ‘técnica poética’ que morre no mesmo instante da criação. O poema não é como uma receita
de bolo, mas é uma invenção de quem sabe criar um universo de sentimentos através das palavras.
Ainda conforme o teórico da poesia moderna, Octávio Paz (1982) a ideia sobre poesia é pautada
na seguinte questão: “[...] a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de
transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual é um
método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. [...]” (PAZ, 1982, p. 15). É a
partir dessas reflexões que analisa-se a poesia na vida do poeta Eulálio Motta e, muitas vezes, ela
desmembra fatos da vida do escritor, possibilitando-lhe alcançar pontos extremos da condição
humana.

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Em Confidência mineira: o amor na poesia de Carlos Drumond Andrade, a autora Lima
(1995) enfatiza que em todos os planos, o poema se exibe e expressa os contratempos e úlceras da
história, atrelado aos versos, é visível a angústia de quem fala. Nesse sentido, é possível perceber
que, o amor na poesia de Eulálio Motta, se enquadra na criação de um plano imaginário que
expressa as chagas e feridas do autor, visto que o sofrimento pela não concretização do amor parece
ser seu combustível para a continuidade de sua inquietação. A criação do início, meio e fim dessa
história de amor foi conduzida pelas possíveis experiências e escolhas do poeta.
Em hipótese, o amor na poesia de Eulálio Motta não viveu perdido nos entrelaces e
misteriosos caminhos da vida. O autor apenas escolheu certo distanciamento. Observa-se que o
“eu” das poesias expressam a temática amorosa. Fala de um amor firmado em experiências
realizadas somente no universo onírico, mostrando que o eu lírico não cumpriu o ápice da paixão
carnalmente nem mesmo nos sonhos.
No poema intitulado “Para Esquecer”, supõe-se em seus versos aspectos do tédio, do
descontentamento e da frustração amorosa que vivia o poeta. O eu lírico expõe seu arrependimento
ao recordar-se do passado, trazendo-o para um tempo deslocado, que é o presente, como declara
na primeira estrofe do poema: “Muito tempo já havia, me pesava/ A lembrança infeliz do meu
amor/ E crescia demais e se alastrava/ Dentro do meu peito a árvore da dor,” (BARREIROS,
2012, p. 127). As lembranças do passado atormentavam-no, o eu lírico estava convencido da perda
da amada, mas o esquecimento era algo impossível. O eu lírico utiliza uma metáfora cuja árvore é
notada como aquela que pulsava seu coração e, junto ao tempo, deixou as marcas e a dor. Querer
esquecer já o fazia lembrar, conforme os seguintes versos: “Quis esquecer... Mas (Ilusão traiçoeira!)
/ Para a gente esquecer padece tanto/ Que é melhor se lembrar a vida inteira!”. Pressupõe-se que
Eulálio Motta estaria se referindo à moça pela qual ele foi apaixonado na adolescência. Ele a
conheceu na porta da farmácia em que trabalhava e todos os dias contemplava a beleza daquela
jovem ao passar por aquele lugar.
Nas variadas relações amorosas, existem possibilidades da realização desse amor de maneira
recíproca ou não. Com a poesia amorosa do poeta Eulálio Motta, o eu lírico parece manter-se na
individualidade. O amor é oferecido à musa através de sua poesia, mas não há retribuição. Essa
relação amorosa parece não ter sido concretizada, restando apenas vestígios de palavras e
imaginação que guiaram o poeta por toda vida.
O amor, como nos versos do soneto de Camões (1980, p. 83) “é fogo que arde sem se ver,/
É ferida que dói, e não se sente;/ É um contentamento descontente,/ É dor que desatina sem

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doer.” Sem buscar controlar os impactos da paixão que arde sem se ver, o eu lírico revela seus íntimos
sentimentos e sensações causadas pelo amor que ora traz conforto, ora domina a aura do amador,
retratando as compulsões e dramas que vivem os apaixonados.
Nos poemas No Mundo dos Sonhos e Para Esquecer, de Eulálio Motta, essa postura não é
diferente. Apesar de descrever em sua poesia um amor virginal, inalcançável e incontrolável, o
poeta tinha consciência da impossibilidade de concretização dessa experiência amorosa, optando
por narrar sua saudade das poucas vezes que olhou para sua musa.
Sobre o uso estético da linguagem que reconhece os valores do texto escrito, Coutinho
(2014). explica que “[...] é a literatura que exprime a alma brasileira, no contato da realidade
histórica, social, psicológica, humana, característica da civilização brasileira” (COUTINHO, 2014,
p. 22). A literatura possui papel fundamental para a história da humanidade e exprime a alma
brasileira, expressa as identidades de um povo, as suas civilizações. Eulálio Motta está inserido
nesse sistema que muito contribuiu para a história do país.
Além de representar a literatura brasileira por meio da escrita, Eulálio Motta deixou seu
legado de vida nas poesias simples que recordam o seu cotidiano, sua infância, adolescência e
paixão. O poema em versos livres aparece como tendência marcante na sua escrita a partir de um
dado momento, mas a paixão por Edy está sempre presente.
Segundo Jorge Araújo (2011), o Romantismo brasileiro teve sua estética ligada aos traços
do lirismo europeu, visto que a riqueza do patrimônio lírico brasileiro está pautada nas influências
aderidas a esse movimento quando chegou ao Brasil. Sobre o Romantismo no Brasil e os ecos que
residem no entorno desse movimento, cita-se o amor, que, para Jorge Araújo (2011, p. 10-11), “[...]
não sendo nem sempre material, é petrarquiano (ou seja: utópico, platônico, idealista, abstrato),
levando evidente a inscrição com a realidade da pessoa amada, mas portando o mito da onipotência
do sentimento amoroso, nela projetada uma ilusão necessária [...]”. O amor continua sendo o
grande mágico e antídoto para os poetas dessa geração, o que une a duplicidade existente dos
sentimentos evasivos e abstratos.
No prefácio de Suspiros poéticos e saudades, Gonçalves de Magalhães, outro poeta que se alia
à expressão lírica ainda na primeira geração do Romantismo, revela os emaranhados da existência
humana e anuncia a importância de o poeta ser e estar inserido nos mais variados lugares, sejam
eles de dor ou de alegria, ficção e realidade. Como expõe Jorge Araújo (2011, p. 14), [...] “o
indivíduo romântico pressente a vida como drama indelével”. O poeta não perde o desejo de
encantar e a missão de “vibrar as cordas do coração” do eu e de outrem.

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O poeta transpõe os limites, refaz a realidade avistada e elabora sentidos inimagináveis. A
poesia tece não apenas os caminhos da vida, mas aquece a caminhada e é também responsável pela
perpetuação e compreensão dos sentimentos universais, das crises existenciais, das musas
enaltecidas, dos amores carnais, angelicais, juvenis, alcançados ou não. A proposta da poesia é
também de representação das dores e alegrias da vida humana.
A poética de Eulálio Motta representa uma frustração amorosa, certa crise existencial,
excessivo apelo premonitório a respeito da morte, a rememoração da infância e da adolescência,
que demonstra a sua insatisfação com a velhice. Palavras como obsessão, macabro, sofrimento,
insônia, amor não correspondido, saudade, ela, o fim, entre outras são comuns nos textos de
Eulálio Motta e demonstram certa insistência por parte do poeta em intensificar a falta, a
rememoração do que poderia ter acontecido e não aconteceu.
O que explicaria as escolhas da poesia lírico amorosa que Eulálio Motta descreveu?
Rougemont (1988) mobiliza a reflexão com uma pergunta e responde, talvez, com respostas que
podem se encaixar no que se deseje desvendar acerca de Eulálio Motta. Ele diz: “Por que
preferimos a narrativa de um amor impossível a outra qualquer? É que amamos a ardência e a
consciência do que arde em nós. Ligação profunda do sofrimento e do saber. Cumplicidade da
consciência e da morte! [...]” (ROUGEMONT, 1988, p. 44).
Dessa forma, Rougemont explica que o romântico ocidental tem um apreço favorável ao
sofrimento e às dores subjetivas causadas pelo amor, levando em consideração o privilégio do poeta
que transcreve esse espírito de sentimento, leva o amante a uma consciência intacta do que gira em
torno de si mesmo e que só pode ser esclarecido na escrita, ou seja, nos versos.
Rougemont (1988, p. 44) define “[...] o romântico ocidental como um homem para quem
a dor, especialmente a dor amorosa, é um meio privilegiado de conhecimento”. Ou seja, através
dos dramas amorosos, das inquietações do eu lírico na poesia e da falta de realização e concretização
do ato amoroso, gera uma evolução no ser, e, consequentemente, na capacidade de entendimento
dos fatos e das coisas.
O poeta Eulálio Motta construiu, ao longo de sua trajetória, um conjunto diversificado de
obras. Entretanto, só conseguiu realizar três publicações de livros em vida. O primeiro, em uma
única edição, o livro Ilusões que Passaram..., de 1931, publicado pela Officinas Gaphicas d’A Luva,
foi dedicado aos irmãos Durval, Nelson, Amando e Arnaldo, como especificado na folha de rosto
desse livro.

81
O segundo livro, Alma Enferma, de 1933, veio a lume pela imprensa Vitória da Bahia e,
segundo nota do autor, foi publicado em benefício de um hospital que estava sendo construído em
Mundo-Novo. Eulálio Motta (1933) mesmo afirmou que “Este livreco não foi feito para ser lido.
Foi feito para ser vendido. Compra um exemplar”. O poeta se encarrega de validar a importância
da compra de um exemplar, insinuando, talvez, a insignificância dada por algumas pessoas da região
aos livros que tratavam de poesias.
Do terceiro livro, Canções de Meu Caminho, foram feitas duas edições; a primeira em 1948,
pela tipografia D’O Serrinhense. Sobre as duas edições desse livro, no prefácio que é reproduzido
na segunda edição, o próprio poeta questiona e responde os motivos que o fizeram reeditá-lo:

Tem vinte anos? Nasceu na Bahia? Faz versos... E acontece que eu tive vinte anos e nasci
na Bahia. Os vinte anos se passaram e os versos ficaram em dois livrecos que publiquei
nos tempos ginasianos. Depois, outros versos vieram. Catei nos “fazidos”. Fiz a mesma
coisa com os que vieram depois dos vinte anos. E juntei-os neste caderno sob o título de
“Canções de meu caminho...” (MOTTA, 1983, p. 11).

O poema “No mundo dos sonhos...” se encontra no livro Canções de Meu Caminho (1983).
Segundo Santos (2017), o poema “No mundo dos Sonhos” dispõe de três testemunhos: dois
datiloscritos e um impresso. Esse poema resume, já na velhice do poeta, o amor que não se
desenvolveu. Para se concretizar, a relação só é possível oniricamente. O beijo, o abraço e o sorriso
simbolizam os desejos do eu lírico nessa poesia. O toque entre os corpos deu-se apenas através dos
sonhos e nada mais. Ao despertar, há o retorno angustiante ao real: “E depois de um beijo
inesquecível,/ acordei!/ Acordei para sofrer a verdade!/ deserto.../ solidão.../ velhice.../ presença
triste da realidade!”. A fuga da realidade e a felicidade só se concretizam no universo dos sonhos.
Nesse sentido, o amor só é possível diante das sensações e desejos que se realizam no tempo dos
sonhos.
O livro de poesias Canções de Meu Caminho (1983) é subdividido em quatro seções e,
ainda na seção “Ela”, na sequência do poema “No Mundo dos Sonhos”, aparece o poema
intitulado “ESQUECE!”, que faz referência ao poema que analisado anteriormente. No momento
em que o próprio sujeito lírico toma consciência de que vivia a experiência de um sonho, ele
desperta e diz para si mesmo: “Inútil tentativa:/tentar dessedentar/ em fonte que secou./O templo
de meu sonho/ está deserto./ Fogo apagado./Fonte que secou./Casa vazia/onde a fantasia
morou.../Não mora mais ninguém.../silêncio...solidão...”. Na tentativa de demonstrar as

82
impossibilidades de concretização desse amor, o poeta recorre às metáforas para potencializar suas
afirmações. O eu lírico, em seu momento de lamentação, relata que foi inútil tentar matar a sede
desse amor carnalmente. O sofrimento, a solidão e o silêncio rodeavam-no, acumulando
desesperança. A fantasia fez morada e ninguém e nada mais.
Nas estrofes seguintes, é notório o descompasso e desespero do eu lírico ao despedir-se de
tudo e de todos, como se a morte já estivesse ao seu lado e fosse sua única solução. Já que a
mocidade havia passado, só restara ao poeta o clamor ofegante e o adeus para tudo e todos que
estavam à sua volta, vendo como única possibilidade de ser feliz a resposta da sua amada. Como
essa resposta era impossível, o amor se manteve situado dentro das poesias e próximo das clássicas
histórias de amor, como diz nos versos seguintes:

[...]
Para que a vida voltasse...
seria preciso
que o impossível acontecesse:
uma carta dela para mim chegasse...
ou que ela em pessoa, aparecesse...
Novo sol nasceria
Novo dia!
E a poesia
não me deixaria
sozinho!
Voltaria
para meu convívio,
derramando canções em meu caminho...
E a realidade
a me dizer, cruel:
Esquece! Esquece!
“Porque o impossível nunca acontece”
(MOTTA, 1983, p. 27-28).

Os versos fortemente marcados pela imaginação do poeta rodeiam a sua poesia lírica e seu
aspecto temático envereda-se pela magia da linguagem e das experiências que poderiam ter sido,
mas não foram. Sobre esses versos, tece-se o dito, o impacto da linguagem que, com as palavras,
narra uma realidade transparente e derrama nos caminhos do poeta a crueldade e necessidade de
esquecer aquilo que já virou parte do ser.

83
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O poeta confronta o amor no plano da existência, mas reconhece que sua efetivação, nesse
contexto, só se realiza no mundo dos sonhos ou com a morte do ser, para que aí sua musa pudesse
aparecer e despedir-se dele.
Seu amor é doado sem a concretização do ato sexual e sim de maneira contemplativa,
fazendo-o retornar à infância e à adolescência para relembrar os momentos de paixão desmedida,
em que via seu amor passar. Aparentemente um amor pautado no virginal, que não conseguiu
atingir o desejo carnal. Eulálio Motta é um poeta que externou a desilusão amorosa sem perder de
vista o enaltecimento da mulher amada, que se tornou sua única possibilidade de ser feliz.
A saudade do passado entrelaçada à poesia amorosa são sentimentos universais que
acompanham o homem há muitos séculos. Em especial, nos poetas que optaram por cantar seus
dramas amorosos e suas lamentações, o amor à moda dos ultrarromânticos, o enaltecimento da
mulher amada, o sofrimento do sujeito lírico ao revelar-se inquieto e frustrado com a vida são
temáticas que estão enraizadas, expressando, simbolicamente, os sentimentos inerentes à grande
parte da sociedade. Levando em consideração as concepções de amor e suas maneiras de expressão,
no caso da poesia de Motta, o exercício sexual seria um sacrilégio.
Observa-se que o poeta revisitou o passado e buscou liberdade dentro da escrita para traçar
sua trajetória. O constante hábito de narrar suas histórias para seus amigos fez com que o poeta
Franklin Maxado escrevesse um poema intitulado “Amor Platônico” e o dedicasse a Eulálio Motta.
Nesse poema, ele descreve a possível relação amorosa de Eulálio Motta e as possibilidades de o
poeta ter-se utilizado de sua licença poética para narrar esse amor e justificar o fato de não ter se
casado nem ter tido filhos.

ANEXOS DOS POEMAS


No Mundo dos Sonhos

Madrugada de primeiro de outubro,


de 1981...

ELA... no mundo dos sonhos...


apareceu novamente

84
para mim...
estendeu-me os braços,
sorrindo...
Tomei-lhe os braços,
dizendo: ─
“Até que enfim,
Você!”
E depois de um beijo inesquecível,
acordei!
Acordei para sofrer a verdade!
deserto...
solidão...
velhice...
presença triste da realidade!

Para Esquecer

Muito tempo já havia, me pesava


A lembrança infeliz do meu amor,
E crescia demais e se alastrava
Dentro em meu peito a árvore da dor,

Quando, um dia, tristonho, eu meditava


Sob um frio sereno de sol-pôr,
Um amigo, a meu lado, me falava
Num gesto belo de um consolador:

Esquece, oh meu amigo! O esquecimento


Tem no mundo esgotado muito pranto...
E esmurando muito sofrimento...

85
Quis esquecer... Mas, (ilusão traiçoeira!)
Para a gente esquecer padece tanto
Que é melhor se lembrar a vida inteira!

REFERÊNCIAS

BARREIROS, P. N. Sonetos de Eulálio Motta. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012.


CAMÕES, L. V. de. Lírica completa II. Lisboa: Casa da Moeda, 1980.
COUTINHO, A. Conceito de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2014.
LIMA, M. M. L. V. Confidência mineira: o amor na poesia de Carlos Drummond de Andrade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.
DIAS, A. G. Poesia e prosas completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
MOTTA. E.M. Canções de Meu Caminho. 1983.
PAZ, O. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
ROUGEMONT. D. O amor e o Ocidente. Editora Guanabara. 1988.
SANTOS, T. V. dos. Edição de Canções de meu caminho de Eulálio Motta. 2017. 366f. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários) – Departamento de Letras e Artes, Universidade Estadual de Feira de
Santana, Feira de Santana. 2017. Disponível em:
<https://eulaliomotta.files.wordpress.com/2018/07/dissertac3a7c3a3o-taylane-vieira.pdf>. Acesso em:
16 mai. 2023.
SOUSA. A. J. Retrós de espelhos: o Romantismo brasileiro com lentes de aumento. Editus -1 ed.
2011.

86
Amor e casamento no romance Uma alma de mulher,
de Guiomar Torresão

Bianca Gomes Borges Macedo


Universidade do Estado do Rio de Janeiro - biannca.mac@gmail.com

Resumo: Este trabalho tem por objetivo a análise da personagem feminina Cecília do romance Uma alma
de mulher (1869) da escritora portuguesa Guiomar Delfina de Noronha Torresão (1844-1898). A menina
Cecília tem 16 anos e deve ocupar o seu lugar na sociedade oitocentista: o casamento. Naquele período, os
relacionamentos atendiam aos interesses da família. O amor, apesar de desejável, não seria indispensável
entre os casais. O casamento era a garantia da ordem patriarcal legitimada pela religião cristã materializada
na figura da Igreja Católica. Nesta relação está presente o estatuto social de “objetos de troca”
(BOURDIEU, 2014) determinado às mulheres, definidos conforme os interesses masculinos e a posição de
submissão do feminino estabelecido pela dominação masculina. Com os pressupostos teóricos contidos em
Ivone Leal (1986), Michelle Perrot (2007, 2009) e Pierre Bourdieu (2014), buscaremos refletir sobre a
temática do amor e da construção social das condições do casamento nas relações de ordem social, dos
costumes e ideologias presentes no contexto histórico feminino.

Palavras-chave: Uma alma de mulher; Guiomar Torresão; Personagem feminina; Amor; Casamento.

INTRODUÇÃO
O romance começou a ocupar uma posição canônica no contexto literário português a
partir da década de 1840. O mercado editorial desenvolvia-se largamente e o jornal saía do círculo
restrito dos assinantes ricos. Nesse ambiente, o romance-folhetim vinha como fórmula de ficção
em série alimentando a curiosidade e o apetite dos leitores e das leitoras. O momento era de
acentuado aperfeiçoamento dos meios de produção e da difusão da obra literária. As mulheres que
escreviam conquistam assim uma poderosa oportunidade, pois “mais do que os livros, foram os
jornais e as revistas os primeiros e principais veículos da produção letrada feminina, que desde o
início se configuraram em espaços de aglutinação, divulgação e resistência” (DUARTE, 2017, p.
14). Nomes como o de Antónia Gertrudes Pusich, Maria Peregrina de Sousa, Maria José da Silva
Canuto, Maria Amália Vaz de Carvalho, Ana de Castro Osório, entre outros, também ganharam o
espaço da imprensa periódica oitocentista.
Um nome de destaque é o de Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883), proprietária e diretora
do periódico Assembleia Literária, inaugurado em 1849. Segundo aponta Ivone Leal:

A partir deste momento inaugura-se uma nova fase no periodismo feminino. Pela
primeira vez um periódico destinado a mulheres não resultava da concepção e
execução de um projeto que a dedicação varonil oferecia ao belo sexo ou às

87
damas e donzelas, de um modo ou outro confirmando-as nos papéis sociais e no
gostos e interesses que eram considerados como natural e inalteravelmente os
seus (modas, romances, religião e moral, crônicas de alta sociedade, poesia, um
ou outro texto de cultura geral) (Leal, 1986, p. 85).

Pusich não apenas ousou revelando a sua identidade nas publicações como também
rompeu com o padrão de assuntos destinados às leitoras da época. Ela deu espaço à luta em defesa
da instrução feminina ao invés de tratar sobre modas no jornal. A sua contemporânea Guiomar
Torresão também é um exemplo feminino no exercício da escrita e na defesa pela instrução das
mulheres como forma de emancipação.
Guiomar Delfina de Noronha Torresão (Lisboa, 1844-1898) era de família burguesa.
Desde cedo ela teve que prover a sua subsistência. Deu lições de instrução primária e de francês,
ao mesmo tempo em que se iniciava na escrita. Com apenas vinte anos de idade, Guiomar Torresão
escreveu o seu primeiro romance, Uma alma de mulher, publicado pela escritora no folhetim do
periódico lisbonense A Voz Feminina em 1868 e, depois, em livro no ano de 1869.
Torresão colaborou com periódicos em Portugal e no Brasil, como Diário de Notícia, Diário
ilustrado, Artes e Letras, Ilustração Portuguesa e A Leitura, mas tornou-se mais popular com sua
participação no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro e chegou a editar o seu próprio, o Almanaque
das Senhoras. Guiomar foi jornalista, poetisa, ficcionista, ensaísta, tradutora e dramaturga. Algumas
de suas obras são: Uma Alma de Mulher (1868), A Voz Feminina (1869), Rosas Pálidas (1873), A
Família Albergaria (1874), Meteoros (1875), No teatro e na Sala (1881), prefaciado por Camilo Castelo
Branco, e A Educação Moderna (1884). Nunca casou nem teve filhos, tendo vivido até a data de sua
morte com Maria Felismina de Noronha Torresão, sua irmã.
Mesmo sofrendo duras repressões e consideradas incapazes intelectualmente e moralmente
pelo Antigo Regime, as mulheres portuguesas também reivindicaram a inserção feminina pelo
direito à igualdade. A função social da mulher oitocentista ainda estabelecia a vida privada protegida
pela figura masculina e com as principais atribuições pertinentes a elas: ser boa esposa, mãe e dona
de casa. Fugindo dos modelos exigidos, algumas mulheres não seguiram o que era estabelecido e o
uso da escrita tornou-se uma tentativa de emancipação.

“UM TRIBUTO GRANDIOSO” EM UMA ALMA DE MULHER

A primeira menção sobre o amor aparece na dedicatória do livro. Guiomar Torresão dedica
a obra à mãe, D. Maria do Carmo Inácia Pinto de Noronha:

88
Quisera eu que este livro que lhe ofereço minha mãe, modesto e pobre como é,
fosse um tributo grandioso de amor filial; que se algumas flores contem com elas
engrinaldasse a fronte, embora a ninguém mais deliciasse o perfume.
Se é ousado o íntimo anhelo da minha alma, castigue-mo o seu amor, que eu dele
nem sei nem posso eximir-me48 (Torresão, 1869, p. 5).

O gesto da escritora é uma clara declaração do amor que sentia pela sua mãe. Um amor do
qual ela não tinha como fugir posto que era um sentimento natural. Guiomar nunca se casou e teve
uma longa vivência com a sua progenitora. Sem dúvidas, os laços fortalecidos entre elas
contribuíram para demonstrar a importância do amor e da figura maternal em algumas das suas
narrativas.

CECÍLIA
Cecília é uma personagem escrita com a pena da jovem escritora Guiomar Torresão no
século em que a discussão sobre o direito de igualdade entre todos os indivíduos e a argumentação
acerca das diferenças entre os sexos são retomadas (Perrot, 1988, p. 177).
Embora em muitos momentos do seu relato pessoal a narradora-personagem se descreva
com características românticas - melancolia, sentimentalidade, saudosismo e ligação com a natureza
- isso não impede de percebermos traços de certa autonomia feminina na sua representação. As
experiências que a personagem conta ao longo da narrativa contribuem para a nossa discussão
acerca das transformações na sociedade portuguesa oitocentista e corroboram a ideia desta obra
ser “inofensiva apenas na superfície”49 (De Souza Mariano, 2021, p. 426).
A abertura da narrativa traz a dor de Cecília que se vê órfã aos dez anos de idade: “Apesar
de que naquela idade os desgostos têm apenas a duração da espiral de fumo que o vento desfaz;
recordo-me no entanto com indizível melancolia a sensação que produziu na minha imaginação
infantil, a ausência dessa luz divina, que se chama mãe” (Torresão, 1869, p. 11). A falta materna era

48 Optamos por atualizar as citações, para melhor aproximar a escritora do público contemporâneo.
49 No artigo “Entre a nobreza do talento e a dos pergaminhos: a sociedade portuguesa sob a ótica de Guiomar Torresão

em Uma alma de mulher” (2021), a professora Juliana de Souza Mariano aponta que a história de amor impossível
presente no romance é o esconderijo de “importantes reflexões não só sobre o campo dos afetos, mas também sobre
a sociedade portuguesa do século XIX e seus conflitos de classe e gênero” (p. 426). Disponível em:
http://dx.doi.org/10.12957/seminal.2021.58264

89
uma lembrança extraordinária na vida daquela criança que passou para a tutela da tia baronesa
de***. Conforme ela, a sua tia:

[...] fazia os maiores esforços, particularmente nos primeiros meses, para que eu
não sentisse a falta dos carinhos que perdera: mas os seus afagos assemelhavam-
se mais aqueles que se dispensa ao fraldiqueiro estimado, do que os mimos
prodigalizados ao filho estremecido.
Era uma pessoa suscetível de tudo compreender, exceto a abnegação do amor
maternal (Torresão, 1869, p. 11).

Porém, Cecília foi criada entre flores e mimos e não sabia ser indiferente. Ela era
“naturalmente afetuosa” (Torresão, 1869, p. 12). No estudo A criação da consciência feminista: a luta de
1.200 anos das mulheres para libertar suas mentes do pensamento patriarcal (2022), a historiadora Gerda
Lerner (1920-2013) aponta a divisão natural que se fazia dos sexos:

Homens são ‘naturalmente’ superiores, mais fortes e mais racionais, por isso
foram criados para dominar. Como resultado, homens são cidadãos políticos e
representam e são responsáveis pelo sistema. Mulheres são ‘naturalmente’ mais
fracas, têm capacidade intelectual e racional inferior, são instáveis em termos
emocionais e, portanto, incapazes de participação política. Elas ficam de fora do
sistema (Lerner, 2022, p. 24).

Desse modo, o amor que Cecília sente pela tia é fruto de um comportamento que incorpora
os efeitos da “violência simbólica” que ela sofre por ser mulher. A respeito desse tema, o sociólogo
francês Pierre Bourdieu (1930-2002) dá a sua contribuição ao esclarecer que:

As paixões do habitus dominado (do ponto de vista do gênero, da etnia, da cultura


ou da língua), relação social somatizada, lei social convertida em lei incorporada,
não são das que se podem sustar com um simples esforço de vontade, alicerçado
em uma tomada de consciência libertadora.[...] É o que se vê, sobretudo, no caso
das relações de parentesco e de todas as relações concebidas segundo esse
modelo, no qual essas tendências permanentes do corpo socializado se
expressam e se vivenciam dentro da lógica do sentimento (amor filial, fraterno
etc.), ou do dever; sentimento e dever que, confundidos muitas vezes na
experiência do respeito e do devotamento afetivo, podem sobreviver durante
muito tempo depois de desaparecidas suas condições sociais de produção. [...]
(Bourdieu, 2014, p. 61-62)

A tia é a figura que conscientiza a sobrinha sobre o lugar demarcado para a mulher na
sociedade em que viviam. A moça não relata anseios de cunho libertador para a sua vida, pois o
forte apelo sentimental na sua representação apoia o seu papel inconsciente de dominada.

90
O sentimento amoroso em Cecília atende à marca do feminino frágil, emocional, submissa
e servil, ou seja, não deixa as mulheres ganharem o lugar de agente para que se cumpra com a
determinação dos padrões estabelecidos pela sociedade patriarcal.
Morando na casa da tia, no Alentejo, Cecília vivia entregue apenas aos seus livros e as suas
flores. Já tinha 16 anos. No primeiro “sintoma” da idade, ela “pensava talvez com mais reflexão
que de ordinário, na mágoa da orfandade” (Torresão, 1869, p. 12) enquanto olhava a vasta paisagem
pela janela do seu quarto. Sua imaginação reproduz a imagem da mãe:

Desenhou-se-me nos ares o vulto angélico de minha mãe: pensei na infância, nos
óculos dessa santa debruçando-se para o meu leito, e espargindo-o de flores;
tentava dar uma forma distinta a essas vagas reminiscências que me acudiam a
mente!...
Pus-me a desfolhar uma rosa que tinha entre os dedos, seguindo com olhar
melancólico as folhinhas levemente rosadas que a aragem levava uma após outra.
[...] (Torresão, 1869, p. 12-13).

A representação angelical da mãe de Cecília remete à Maria, mãe de Jesus. O “vulto”


determina uma figura feminina sem corpo. De acordo com o estudo Imagens do feminino: fantasias e
fantasmas (2003) da professora Paula Mourão (1951):

A partir das escassas referências que lhe são feitas nos Evangelhos sinópticos, os
autores foram desenvolvendo uma biografia simbólica de Maria, atribuindo-lhe
traços de que a iconografia largamente dá conta; salientemos a virgindade
conservada depois da concepção e da maternidade, que a institui como figura
paradoxalmente sem corpo, ou sem corpo de desejo, a que o dogma da assunção
dá sentido - pois o seu corpo, ascendendo ao céu depois de morto, escapa à
mortal condição de se tornar putrefacto, evidência do humano. Virgem, mãe,
mulher recolhida a um segundo plano e a uma discreta presença, ela configura o
acolhimento maternal, a consolação, o papel de intermediária entre Terra e Céu,
e ainda outros traços que o tempo e o desenvolvimento textual e iconográfico
vão consolidando (Mourão, 2003, p. 226).

A mulher, denominada “santa”, ganha traços divinos que se conotam ao ser sublime. Essa
personagem romântica retrata a mulher bondosa cuja sexualidade serve à concepção de filhos,
honra do marido e da família. O perfil enquadra a reunião de todas as condições para o pleno
exercício da “dominação masculina” (Bourdieu, 2014, p. 54) que deixou para os corpos das
mulheres a limitação ambígua - maternidade e erotismo - a respeito do assunto sexual relacionado
a elas (Birman, 2016, p. 59).

91
Um caminho que apontamos na perspectiva estrutural em que se encontra Cecília é
pensarmos na ideia amorosa materna deturpada, pois o “poder simbólico não pode se exercer sem
a colaboração dos que lhe são subordinados e que só se subordinam a ele porque o constroem
como poder” (Bourdieu, 2014, p. 63). A personagem, construída dentro do modelo conservador e
patriarcal do seu país, apenas vive o seu tempo e acompanha a promoção da assunção da
maternidade agindo como um instrumento da sociedade ocidental.
Retornemos ao quarto de Cecília. A contemplação da lua através da janela dá lugar a uma
conversa da moça com a tia. Não apenas vem o anúncio da partida para Lisboa nas palavras da
baronesa:

Criança! esqueces que tens dezesseis anos, que é mister ocupar na sociedade que
te reclama, o lugar a que tens incontestáveis direitos? Chegou o momento em
que cumpre dizer-te, és uma senhora, e como tal devo apresentar-te no mundo,
sempre disposta a acolher com homenagens a quem é jovem, e feliz; a quem pôde
erguer a fronte resplandecente com a dúplice aureola do dinheiro e dos
pergaminhos. Previno-te de que entre senhoras encontrarás mais facilmente
rivais do que amigas; sobretudo se reduzires à fé o cético coração de algum D.
Juan. Oh! assevero-te que uma vez lá nem te passará pela mente a lembrança
deste obscuro cantinho do mundo. A sociedade com a multiplicidade das suas
fascinações, possui indubitavelmente mais aroma em uma só, do que o que todas
as tuas flores exalam (Torresão, 1869, p. 13-14).

Cecília não se despede apenas das suas flores e da boa gente do Alentejo que deixará para
trás, mas também, da vida de menina. Ficou abalada e sentiu a necessidade do seio materno para
abrigar-se. Revelou que a mãe não teria a aridez nas palavras, pois derramaria “a suave meiguice do
seu amor” (Torresão, 1869, p. 14) na alma da filha.
Em Lisboa, Cecília deve ocupar o seu lugar de destino: o casamento. Era chegado a hora
haja visto que o código civil de 1867 fixa os doze anos como a idade nupcial inicial da mulher
(Pimentel; De Melo, 2015, p. 98). Para conseguir um marido que atenda a sua posição social, a
personagem se ocupa com os passeios, bailes e espetáculos do novo “mundo elegante”
(TORRESÃO, 1869, p. 15). A exposição das mulheres solteiras nesses espaços pode ser comparada
com a exposição dos vestidos nos ateliês de moda, ou seja, elas se tornaram objetos simbólicos
constituídos pela dominação masculina (Bourdieu, 2014, p. 96). Naquele mundo “tão festivo e
afetuoso” (Torresão, 1869, p. 16) as moças eram mercadorias negociáveis apresentadas aos
pretendentes.
Victor de Andrade e o conselheiro *** são os pretendentes à mão da nossa protagonista.

92
“ENTÃO COMO LOUCO TENTEI ESQUECER-TE”: O AMOR IMPOSSÍVEL

Cecília denominou Victor de Andrade como o futuro Rafael, pois ele era um artista com
talento brilhante na pintura. Ao encontrá-lo em um baile, a moça o descreveu: “Transparecia-lhe
na fronte altiva e elevada, o gênio que lhe faiscava na mente, descerrando-lhe vastos horizontes.
Observando-o, pareceu-me isolado, melancólico no seio daquela multidão loquaz; instintivamente
segui-o com um olhar de simpatia” (Torresão, 1869, p. 16).
Com o tempo, o artista passou a visitá-la. Ela relatou a atração pelas simpatias do rapaz,
pela nobreza e melancolia do seu porte. Porém, quando o amor era o tema das conversas, a moça
se revoltava com o discurso de Victor porque ele zombava e denominava o sentimento como um
“desvario de cabeça exaltada” (Torresão, 1869, p. 21).
Cecília descobriu que amava Victor de Andrade após um episódio de ciúme:

Compreendia que o meu pranto era insensato, que não havia causa determinada
para ele; todavia a dor espremia-me fel no coração, dobradamente amargo, por
ser o primeiro. Presenti confusamente, através da angústia que me aniquilava, que
a despeito de tudo, amava Victor!!
Exprobrava-lhe o seu amor por outrem, como se ele me houvesse dito uma
palavra sequer que testemunhasse esse sentimento!...O coração sofria o cruel
suplício da decepção, sem ter haurido uma só das delícias do amor! Por fim
triunfou o orgulho, paixão nobre, e tão necessária à dignidade da mulher
(Torresão, 1869, p. 25).

Este é o início do amor impossível que Cecília carrega em seu coração. Um amor
socialmente impossível que reverbera o exagero nos sentimentos e na melancolia conforme
escrevia a tradição romântica. Victor também ama Cecília. Ela é o seu “anjo” (Torresão, 1869, p.
44). O gesto de Guiomar Torresão remete ao do autor Alexandre Herculano (1810-1877) que
chama a mulher de “anjo terrestre” no romance Eurico, o Presbítero50 (Cruz, 2009, p. 163). O ser
celestial é uma marca da mulher amada no Romantismo português.
Cecília e Victor vivem a infelicidade de pertencerem a diferentes extratos sociais, e portanto,
o amor não é um determinante para selar a união do casal. A moça entendia a sua posição abastada
e admite o que sabe: “[...] Erguiam-se entre nós barreiras insuperáveis, o ouro, e os pergaminhos!

50Eurico, o Presbítero (1842) é o romance de maior sucesso editorial de Alexandre Herculano. Para saber mais sobre a
obra e o autor, leia a dissertação de mestrado “Pouca luz em muitas trevas: Eurico, o Presbítero no liberalismo português”
(2009), de Carlos Eduardo Soares da Cruz. Disponível: https://www.academia.edu/7400433/

93
Verdade ou ficção, razão ou absurdo, que importava, se a consequência inevitável era a separação?!”
(Torresão, 1869, p. 34). Estava condenada ao seu destino e não havia escolha para o amor.
Mais tarde, ela conversa com Victor. Ambos sofrem pelo amor impossível de se realizar.
Ele suja de sangue o lenço que leva à boca e ela desmaia de tristeza. Sentiam um amor fatal e a tia
se mostrava indiferente a eles. A cegueira sentimental do amor romântico envolve os dois
personagens. O sofrimento e a angústia aumentam com o passar do tempo. O rapaz está doente e
Cecília encarregou a prima Georgina que lhe desse informações a respeito dele. Ele escrevia cartas
para a amada e ela chorava sobre os escritos.
Em meio a todo o sofrimento da moça, a tia exige que ela esteja no baile de máscaras. Lá,
ela revê Leonor. Dessa vez, a beleza daquela mulher não desperta ciúme em Cecília:

Apesar de todas as minhas prevenções não pude eximir-me à admiração que me


causou a sua beleza, singularmente realçada por um magnífico costume a Luiz
XIV.
Os cabellos empoados e levantados graciosamente na fronte, emmolduravam-
lhe artisticamente o rosto da alvura do lírio, e de uma candidez que desmentia
absolutamente a maldade do seu proceder. A figura alta e majestosa sobresaía e
adaptava-se elegantemente com aquele vestuário palaciano (Torresão, 1869, p.
66).

As mulheres se olham. Cecília afirma que não suporta o olhar de Leonor, pois ao mesmo
tempo em que ele a indigna também a fascina. Naquela noite, após a descoberta do plano de um
conquistador para enganar Leonor, Cecília sente repugnância e age para salvar a bela mulher das
garras daquele D. Juan.
O fato sela a amizade entre Leonor e Cecília. Uma amizade duradoura e fiel. Leonor cuida
da febre e da palidez da amiga nos momentos em que a moça sofre com a decepção causada pela
prima Georgina e com a tristeza causada pela perda do homem amado e da tia baronesa. A bela
mulher é a “carinhosa e dedicada enfermeira” (Torresão, 1869, p. 83) da amiga. Viajaram juntas.
Leonor lia para Cecília e a animava. A personagem afirma que “Leonor era o ideal de amizade”
(Torresão, 1869, p. 84).
Com o passar dos tempos, Cecília se reestabelece de todos os golpes da vida e o seu sustento
é a amizade de Leonor e a companhia sempre ativa do conselheiro.

“O AMOR É UMA VISÃO DESLUMBRANTE”: O CASAMENTO


O conselheiro *** frequentava a casa da baronesa. Cecília o descreve e o apresenta:

94
Fisionomia impassível refratária a traduzir uma só das sensações da alma.
Nariz proeminentíssimo, separando uns olhos sem cor prefixa; lábios grossos
constantemente entreabertos com um sorriso que poderia ser espirituoso, mas
que só era complacente.
O conselheiro administrava os bens de minha tia, e julgando-se talvez obrigado
a ser amável para comigo, desvelava-se prodigalizando-me a maior soma de
cuidados e atenções: o meu reconhecimento impunha-me o sacrificar-lhe durante
a noite algumas horas de conversação, ou a tocar e cantar as músicas que me
pedia (Torresão, 1869, p. 21).

O cortejo de uma moça abastada não era difícil para um homem, mas parece que Cecília
não sabe disso apesar da demonstração de certa desconfiança na descrição que faz do conselheiro.
Isso descarta qualquer alternativa de aproximação mais afetuosa dele.
Embora na segunda metade do Oitocentos, as pessoas estivessem mais desejosas pela
“convergência entre a aliança e o amor, o casamento e a felicidade” (Perrot, 2009, p. 125), o
romance de Guiomar Torresão tem a tia baronesa como a mulher negociante da vida matrimonial
da sobrinha e, baseado na lei civil, temos a incapacidade feminina de “governar a si própria” (Leal,
1986, p. 84). Esses fatores configuram a visão da tia pela necessidade de um marido à altura de
Cecília e da herança dela. No que tange este assunto, ela dá a mão da sobrinha ao conselheiro ***:

Já antes do senhor conselheiro me pedir a tua mão, adivinhara os seus


sentimentos, e confesso que grande satisfação me causaram; creio desnecessário
enumerar-te os excelentes dotes que tornarão verdadeiramente feliz a mulher a
quem der o nome de esposa; tu própria há tido não poucas ocasiões de notá-los,
e dessa circunstância vem decerto a visível afeição que lhe dispensas. Fiz desta
digressão um como festejo prematuro, certa de que de boamente transigirás com
os nossos desejos; tanto mais que aos olhos de todos tu passas já como noiva do
conselheiro (Torresão, 1869, p. 27).

Cecília recebe a notícia com espanto e indignação. Ao contrário de uma figura masculina
que, no lugar dela, teria o título de herdeiro e gozaria de um tratamento privilegiado por parte da
família, a moça carregava o título de mulher e os bens deixados com a morte do seu pai precisam
da figura masculina para a administração deles. Portanto, conforme menciona Perrot (2009), o
casamento era um negócio conduzido pelos parentes, pelos amigos e pelos próximos e:

[...] as estratégias matrimoniais se diversificam e se tornam complexas. O dinheiro


assume formas variadas: móveis, imóveis, negócios e ‘esperanças’. Outros
elementos entram em linha de conta: o nome, a consideração, a ‘situação’ (as

95
profissões liberais gozam de grande estima), a ‘classe’ e a beleza fazem parte dos
termos de troca [...] (Perrot, 2009, p. 124).

A baronesa reforça a ordem social na condução da vida matrimonial da sobrinha de acordo


com as suas conveniências financeiras. Cecília explica:

percebi a ambição de conservar a todo o risco um administrador zeloso que em


vez de diminuir-lhe as rendas as aumentava engrossando o capital: dando-me ao
mesmo tempo um marido cuja fortuna colossal, e proverbial generosidade a
colocava ao abrigo de quaisquer reclamações, com relação ao meu patrimônio,
provavelmente diminuído (Torresão, 1869, p. 28).

São os interesses capitalistas que reduzem o valor da moralidade na sociedade portuguesa.


Cecília entende que o conselheiro tinha capacidade absoluta de gerir a vida financeira. O dinheiro
é o produto que garante o seu abrigo matrimonial visto que, além da homogamia, o dote também
estava entre as regras que condicionam o bom casamento. A filósofa e feminista Elizabeth Badinter
(1944) em Um amor conquistado: o mito do amor materno (1985) explica no que consistia a tradição em
torno do casamento até a metade do século XVIII. Resumidamente:

[...] para fazer um bom casamento, era preciso encontrar uma noiva que tivesse
uma idade adequada à do pretendente, um bom dote segundo seu nível social, e
que fosse virtuosa. Quanto mais se descia na escala social, mais a aptidão para o
trabalho se tornava necessária. Se todos esses critérios estivesse satisfeitos,
passava-se imediatamente da assinatura do contrato ao casamento. Não havia
necessidade de noivados prolongados. Casado(a) com um(a) desconhecido (a) a
quem jamais se dirigira a palavra até algumas horas antes, imagina-se facilmente
que amizade se podia ter por essa pessoa. Unidos assim durante séculos, nossos
ancestrais certamente ignoravam muitas vezes tudo sobre o amor no dia de seu
casamento (Badinter, 1985, p. 49).

Badinter admite que é inegável afirmar que não havia amor nas relações antes desse período,
contudo, ela nos atenta para a falta de importância desse sentimento que passa a ocupar uma
posição de valor na sociedade ocidental.
O aceite de Cecília em contrair matrimônio com o conselheiro sem a promessa de amor,
mas “assegurando-lhe a constância de uma amizade verdadeira” (Torresão, 1869, p. 28) atende ao
interesse social estabelecido ao sexo feminino. Na construção de uma relação a dois ela relega o
sentimento amoroso a segundo plano.

96
Com o desenvolvimento dos acontecimentos em sua vida e entregue à impossibilidade de
se casar com o homem amado, a personagem confia o seu segredo ao futuro esposo e confessa ao
conselheiro ***:

[...] Amo Victor de Andrade com um destes amores que surgem no arrebol da
vida, para só findarem no acaso dela; amor imenso santificado pelas lágrimas de
ambos!
Sei que nunca pertencerei a Victor, mas por isso mesmo não quero nem devo
pertencer a outrem.
Poderia dizer-lhe que lhe fazia esta confissão unicamente impelida pela
generosidade, não querendo iludir-o dando-lhe uma esposa sem amor, um
coração morto para todos os afetos, a não ser aquele que lhe deu vida; bastante
franca porém para não ocultar a verdade através de artifícios prefiro expor-lhe o
que sinto. É porque recuo perante o enorme sacrifício de ser esposa de um
homem a quem não amo; por que não posso de maneira alguma aceitá-lo, que
lhe confessei os meus sentimentos (Torresão, 1869, 56).

Ele ficou comovido com as palavras da sua prometida. A situação o fez entender que Deus
lhe negou “a ventura” de chamar a moça de “esposa” e, por isso, ele dá o nome de “filha”
(Torresão, 1869, p. 57) à Cecília.
Porém, os contratempos da vida deram novos caminhos para Cecília. A morte da tia a
deixou rica com apenas 20 anos, mas ela se achou só no mundo. Ela lamentava “sem ter um braço
protetor para amparar-me, uma razão madura para dirigir-me!..” (Torresão, 1869, p. 90). Desse
modo, as visitas do conselheiro se tornam assíduas como no tempo antigo. Cecília já via muita
bondade e singeleza nele. Além disso, percebia que a franquesa e a despretensão na fisionomia do
homem faziam ela se esquecer da sua fealdade.
Em uma conversa com Cecília, Leonor comenta que apesar do jeito generoso e delicado
como evitou qualquer retorno as suas pretensões com Cecília, o conselheiro ainda esboça interesse
pela moça:

[...] Leonor confessou-me que ele lhe havia falado de mim com profundo
interesse, manifestando claramente quanto se julgaria feliz se eu quizesse
conceder-lhe a minha mão, e com ela a minha amizade; pois que bem conhecia
não poder aspirar a outro sentimento, que não estava em idade de inspirar.
Leonor accrescentou que muito a havia sensibilizado a maneira bondosa e
comovida com que o conselheiro se expressara; e que tanta dedicação e
generosidade mereciam recompensa (Torresão, 1869, p. 91).

Entretanto, a personagem escrita por Guiomar Torresão segue a tradição romântica e


responde que o amor entre Victor e ela foi “santificado pela dor” e o laço que se desprendeu na

97
terra “é só para apertar-se mais indissolúvel no céu” (Torresão, 1869, p. 91). Cecília acha-se uma
desgraçada.
Por dois anos, Leonor, Cecília e o conselheiro vivem uma amizade intensa. A moça afirma
que “Leonor e ele eram os dois únicos e exclusivos motores” (Torresão, 1869, p. 93) da existência
dela.
Após o aniversário de Cecília, o conselheiro tenta declarar o seu amor à moça, mas não
consegue. Leonor o ajuda: “- Sim, ela bem sabe que vossa excelência a adora, que todos a amam!”
(Torresão, 1869, p. 101). Envergonhado com a ausência de uma resposta, ele pede perdão à amada
completando com a frase “[...] que pensa em prender a planta viçosa ao roble carcomido!”
(Torresão, 1869, p. 101).
Neste momento Cecília percebe que, dentro dela, se revelou um sentimento por ele. Ela o
amava e revela: “A gratidão tem destas suaves ilusões!..” (Torresão, 1869, p. 101). Ao que parece,
Cecília percebe as atitudes bondosas do conselheiro e a gratidão que sente pelo gesto dele passa a
ser confundida com a sentimento amoroso. Ela pede à amiga:

Dize-lhe Leonor, murmurei quase em segredo, que a pobre planta, batida pelo
sopro do vendaval, necessita amparar-se ao roble para não cair; dize-lhe que se
estes restos do que fui lhe inspiram ainda algum amor que eles se reanimarão
talvez para retribuir-lhe, como deve ser retribuido o amor de um nobre coração
(Torresão, 1869, p. 101-102).

Neste momento, a emoção toma conta da vida dos três personagens. O conselheiro se
ajoelha aos pés de Cecília e beija-lhe as mãos. Ele balbucia frases que ambas não entendem. Leonor
os abraça. Ela ri e chora ao mesmo tempo. Ali, eles combinam que o casamento será realizado
dentro de três meses e que, em família, Leonor viveria com eles.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossos dias, cada vez mais se afirma a necessidade de conhecimento de “parte
considerável da Literatura produzida do passado” (Anastácio, 2005, p. 428) para o preenchimento
das lacunas deixadas na História Literária. Neste sentido, o estudo da obra ficcional de Guiomar
Torresão é um importante contributo.
Ao analisarmos a personagem Cecília nossas reflexões se lançam a partir da sua vida.
Envoltos nas suas atitudes, comportamentos e modos de agir em situações que vivencia,
experienciamos a “visão da vida” (Candido; Rosenfeld; De Almeida Prado; Gomes, 1976, p. 51)

98
que decorre do romance, portanto, o tema do amor e do casamento na perspectiva da personagem
corrobora a importância da discussão sobre a representação das mulheres na escrita de autoria
feminina do século XIX.
Cecília é o modelo de mulher ideal do Romantismo. A personagem precisa cumprir o seu
destino. O amor não é preponderante para este acontecimento. O casamento deve atender a
necessidade da administração dos seus bens, portanto, ela não tem o direito da escolha. Torresão
colabora com as reflexões acerca do amor e do casamento e ela traz novas nuances para pensarmos
as relações, os afetos e a família coma representação de uma personagem feminina que demonstra
certa ruptura com os padrões estabelecidos no seu tempo.

REFERÊNCIAS

ANASTÁCIO, Vanda. " Mulheres varonis e interesses domésticos": reflexões acerca do


discurso produzido pela história literária acerca das mulheres escritoras da viragem do
século XVIII para o século XIX. Universidade Aberta, 2005.

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir


Dutra. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. 370p.

BIRMAN, Joel. Gramáticas do erotismo: A feminilidade e suas formas de subjetivação em


psicanálise. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. Rio de


Janeiro: BestBolso, 2014.

CANDIDO, A., ROSENFELD, A., DE ALMEIDA PRADO, D., & GOMES, P. E. S. (1976). A
personagem de ficção (pp. 51-80). São Paulo: Perspectiva.

CRUZ, Carlos Eduardo Soares da. Pouca Luz em Muitas Trevas: Eurico, o Presbítero no
Liberalismo Português / Carlos Eduardo Soares da Cruz. Rio de Janeiro: UFRJ-PPG Ciência da
Literatura, 2009. Disponível em https://www.academia.edu/7400433/

DE SOUZA MARIANO, Juliana. ENTRE A NOBREZA DO TALENTO E A DOS


PERGAMINHOS: A SOCIEDADE PORTUGUESA EM TRANSFORMAÇÃO SOB A
ÓTICA DE GUIOMAR TORRESÃO EM UMA ALMA DE MULHER. Caderno Seminal, n.
39, 2021, p. 417-455. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/seminal.2021.58264

LEAL, Ivone. “Os papéis tradicionais femininos: continuidade e rupturas de meados do século
XIX e meados do século XX”, A Mulher na Sociedade Portuguesa – Visão Histórica e
Perspectivas Actuais, vol. II, Coimbra, Instituto de História Económica e Social, Faculdade de
Letras, 1986, p. 83-93.

99
LERNER, Gerda. A criação da consciência feminista: a luta de 1.200 anos das mulheres para
libertar suas mentes do pensamento patriarcal; tradução Luiza Sellera. – São Paulo: Editora
Cultrix, 2022.

PERROT, Michelle. História da vida privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira


Guerra/organização Michelle Perrot; tradução Denise Bottmann, Bernardo Joffily - São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.

PIMENTEL, Irene Flunser; DE MELO, Helena Pereira. Mulheres portuguesas. Lisboa: Clube
do Autor, 1ª edição, 2015.

TORRESÃO, Guiomar. Uma alma de mulher. Lisboa: Tipografia de J. G. de Sousa Neves,


1869.

100
Entre as bênçãos de Eros e a sombra da repressão:
desejo e erotismo na lírica de Irene Dias Cavalcanti
Marcelo Medeiros da Silva
Universidade Estadual da Paraíba
E-mail: marcelomedeiros_silva@yahoo.com.br

Roberta Thamirys Temoteo Rodrigues


Universidade Estadual da Paraíba
E-mail: roberta.temoteo@aluno.uepb.edu.br

RESUMO

O presente trabalho consiste em uma leitura crítica da poesia de Irene Dias Cavalcanti. Para tanto, vamos
nos ater aos livros Eu mulher, mulher (1971) e Lirerótica (1974). Nossos objetivos são verificar como a
expressão do desejo erótico emerge como marca da transgressão aos códigos comportamentais impostos
ao feminino na Paraíba da década de 70 do século passado e, ao mesmo tempo, compreender como, nessas
obras, erige-se, sem reservas, um discurso de exaltação do sexo a partir de uma óptica feminina. Para
subsidiar nossa análise, acostamo-nos ao pensamento de Bataille (1987), Durigan (1985), Soares (1981) e
outros estudiosos/as da relação entre escrita, autoria feminina e erotismo. Esperamos contribuir para os
estudos acerca da produção literária de autoria feminina, em especial para aqueles que procuram refletir
sobre como a palavra literária tem servido de esteio para que mulheres possam falar de corpo, desejo e
sexualidade, apesar dos interditos sociais.

Palavras-Chave: Erotismo. Poesia de Autoria Feminina. Literatura Paraibana.

INTRODUÇÃO
Assim como em outras esferas sociais, a cena literária foi perpassada por interditos e
coerções de toda ordem que visaram impedir a entrada das mulheres, como bem narrou Virginia
Woolf em Um texto todo seu (2006), texto emblemático na reflexão acerca da relação mulher e escrita,
notadamente no que tange ao apagamento da presença e da contribuição das mulheres no campo
literário.
A política de ocultamento e de silenciamento da produção literária de autoria feminina foi
bastante proposital e veio à tona a partir das denúncias do movimento feminista por volta da década
de 1970, quando se procedeu a uma leitura crítica de nossa tradição literária a partir, especialmente,
dos estudos das imagens da mulher em obras canônicas e, consequentemente, da denúncia do quão
essas imagens estavam assentadas em estereótipos, concorriam para legitimar a sujeição do
feminino ao masculino e incidiam no modo como as próprias mulheres viam a si mesmas porque
as representações sobre o feminino, instauradas por nossa historiografia literária, repetiam modos
de ser e de existir pautados na submissão feminina e naturalizados como próprios das mulheres.

101
No campo dos Estudos Literários, o impacto das epistemologias feministas se fez notar a
partir da introdução de novas ferramentas de leitura – como as categorias de gênero e
interseccionalidade – e também da necessária e sempre urgente revisão do cânone literário, mas
também das práticas institucionais e editoriais de produção e circulação dos impressos (Golubov,
2017).
Em decorrência da necessidade de revisão e de resgate, são impulsionados estudos que
colocaram em xeque a tradição literária, denunciada como androcêntrica, e que se preocuparam em
trazer à tona autoras e obras que, em virtude das desigualdades de gênero, foram impelidas ao
obscurantismo. Na esteira desses trabalhos, o presente artigo é um pequeno recorte de uma
pesquisa em desenvolvimento na iniciação científica (PIBIC/UEPB, cota 2022/2023), voltada para
o estudo de uma autora – Irene Dias Cavalcanti – que, por causa de moralismos e coerções sociais,
pagou um preço alto não apenas por ousar escrever, mas, em especial, por atrever-se a falar de
corpo, desejo e erotismo a partir de uma perspectiva feminina.
Considerando-se que a relação mulher, escrita e sexualidade tem sido algo indigesto, de maneira
que, em se tratando de desejo, as mulheres-escritoras têm, mais uma vez, a sua fala sequestrada, o
presente trabalho tem como objetivos refletir acerca de como, na poesia de Irene Dias Cavalcanti,
a expressão do desejo erótico emerge como marca da transgressão aos códigos comportamentais
impostos ao feminino na Paraíba da década de 70 do século passado e, ao mesmo tempo,
compreender, ainda que brevemente, como, em tal poesia, erige-se, sem reservas, um discurso de
exaltação do sexo a partir de uma óptica feminina.
Na consecução desses objetivos, tomaremos como corpus alguns poemas que integram os
livros Eu mulher, mulher (1971) e Lirerótica (1974) e que, a nosso ver, são exemplares do modo como
o erotismo e a sexualidade feminina estão representadas na lírica de Irene Dias Cavalcanti. Por fim,
esperamos contribuir para os estudos acerca da produção literária de autoria feminina, em especial
para aqueles que procuram refletir sobre como a palavra literária tem servido de esteio para que
mulheres possam falar de corpo, desejo e sexualidade, apesar dos interditos sociais.

Uma louca lírica: brevíssimas notas biográficas


Natural da cidade de São José de Mipibu, interior do Rio Grande do Norte, Irene Dias
Cavalcanti nasceu em 20 de maio de 1927. Com a morte do marido, muda-se para João Pessoa,
onde se forma em Direito e passa a exercer a função de assessora jurídica e a colaborar em jornais
como O Norte e Correio da Paraíba.

102
Apesar do caminho promissor no campo da lírica amorosa, com a publicação de Eu mulher,
mulher (1971) e Lirerótica (1974), obras que foram muito bem elogiadas por críticos da época, Irene
Dias migra da poesia para a prosa, atitude essa que lemos como uma reação frente aos ataques
recebidos pela poetisa de leitores e leitoras pudicos da provinciana e conservadora Paraíba da
década de 1970 do século passado.
O adormecimento da poetisa e o surgimento da romancista é um processo através do qual,
nas palavras de Sérgio de Castro Pinto, deixando de lado “a postura quase sempre contemplativa
da poesia lírica”, Irene Dias Cavalcanti passa a investir “maciçamente no enredo, na urdidura, na
trama, enfim, nas peripécias que permeavam o antigo gênero épico, do qual o romance é o seu mais
legítimo sucessor”.
De sua faceta como romancista, foram publicados os seguintes títulos: A menina do velho
senhor (1996), O amor do reverendo (2009), O médico e a noviça (2011) e Palhaço azul (2017), obras em que
se nota a ficcionalização de eventos biográficos que marcaram a vida da escritora e que servem
como pano de fundo para expressar o desejo feminino por liberdade, inclusive a sexual, e denunciar
as coerções de que são vítimas as mulheres, especialmente, aquelas que se insurgem contra os
códigos comportamentais e morais do sistema patriarcal.

A lírica erótica de Irene Dias Cavalcanti: estertores de gozo e revolta


Como já o dissemos e como corrobora o verbete que lhe é dedicado no Dicionário Literário
da Paraíba, organizado por Idelette Muzart, “[os] poemas [de Irene Dias Cavalcanti foram]
recebidos com aplausos por Virginius da Gama e Melo e Juarez da Gama Batista, seus amigos e
prefaciadores de seus dois livros de poesia”, mas causaram alvoroço entre leitores e leitoras da
época, pouco acostumados “ao erotismo na poesia, prática que, embora venha desde a antiguidade
greco-latina, ainda sofre restrições significativas” (Santos, 1994, p. 97).
A vivência erótica, em virtude dos mecanismos de controle, criados por instâncias como a
família, a religião, a escola, e das desigualdades de gênero, ainda é bastante assimétrica. Enquanto
aos homens era facultado o direito ao prazer, às mulheres era lhes roubado o direito ao gozo, já
que elas deveriam apenas garantir os herdeiros para o marido. Nesse caso, o corpo, a sexualidade
foram transformados em mecanismos de confinamento do feminino. Por isso, afirma Borges
(2013, p. 336): “Confinar o corpo da mulher à esfera da reprodução é um dos mecanismos mais
antigos de subordinação social e submissão da mulher ao poder masculino. A subalternidade chega
mesmo a ser condição de perfeição das mulheres, seu modo-de-existir no mundo”.

103
De há muito, as mulheres vivem uma luta constante que envolve a reivindicação não apenas
por direitos básicos, como educação, trabalho, cidadania, mas também pelo direito ao controle do
próprio corpo, o que lhes permite não apenas falar sobre desejo, prazer, sexo, mas também
vivenciá-los, já que a sexualidade feminina está dentre os tabus sobre os quais se erigiu a nossa
sociedade que, de base patriarcal, fomentou a dominação do homem contra a mulher e criou
instituições que legitimam essa e outros tipos de violência a fim de garantir o poderio masculino e
naturalizar a pretensa inferioridade feminina. Por isso, afirma Beauvoir (2009, p. 16), “A
humanidade é masculina, e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é
considerada um ser autônomo". A desigualdade entre os gêneros é, portanto, histórica e cultural e
determina as relações de poder entre homens e mulheres, as quais se manifestam, inclusive, no
campo da sexualidade e nas relações com o próprio corpo, terreno em que o homem tem trânsito
livre, mas que, para as mulheres, se configura como uma espécie de campo minado em virtude das
inúmeras interdições que procuram controlar o corpo, o desejo e a sexualidade feminina.
Ao ousar escrever e ao fazê-lo a partir da expressão de temas tabus (desejo, sexualidade,
erotismo), Irene Dias Cavalcanti instaura uma dupla transgressão: a de um discurso erótico e a sua
enunciação por uma voz no feminino. Como sintetiza Santos (1994, p. 97), na poesia de Irene, a
representação do erotismo “se faz em poemas de índole confessional, que brotam de um só fôlego,
impregnados de um misticismo erótico” e que também revelam a consciência do eu lírico de a
solidão é o preço que deve pagar ao ousar falar de mulher e desejo em um cenário repressor.
Ao falar do desejo no feminino, a autora deparou-se com um terreno muito pouco
amistoso, como ela mesma afirma: “quando falei de sexo, de amor e solidão, de erotismo e sensuais
cantares, fui saudada com uma convulsão de protestos, por pessoas indignadas com a minha
ousadia” (Cavalcanti, 2013, p.17). Em outras palavras, na lírica de Irene Dias Cavalcanti não
imperam o medo, a culpa e o receio de desejar. Em seus poemas, a repressão não se instaura. Pelo
contrário, é a expressão dos impulsos sexuais e desejos eróticos mais recônditos que vem à tona,
apesar das coerções e interditos sociais que, durante séculos, têm procurado castrar das mulheres
o desejo erótico, a vivência da própria sexualidade, impedindo-as de conhecerem as delícias do
próprio corpo.
Talvez, por isso, a potência erótica perpassa a poesia de Irene Dias Cavalcante como
manifestação não apenas do desejo sexual, mas também do anseio por liberdade. Apesar dos
mecanismos de repressão, o discurso do desejo em Irene Dias não é marcado pela culpa ou pela
sombra do pecado a partir de uma perspectiva cristã. O eu-lírico que se apresenta em cada um dos

104
poemas fala do corpo, do desejo, da sexualidade com naturalidade e sem tabus, como podemos
perceber no poema a seguir:

Eu falo
simplesmente
dessas coisas,
como falam
os meigos
passarinhos,
falo de vida
de amor e
solidão,
de erotismo
e sensuais
cantares…
digo de
sexo e
afetuosos
Laços…
falo a
linguagem
cálida dos amantes,
eu falo,
grito, falo
e grito, tanto,
qual ritmo,
sem fim
das melodias…
(CAVALCANTI, 2013, p.27)

A ideia do poema é a de que falar sobre desejo, em especial, o feminino, deveria ser natural,
porque faz parte da natureza do homem e da mulher sentir desejo, ser afetado por sua sexualidade.
Essa naturalidade, porém, em nossa sociedade, não foi possível de ser alcançada em virtude de as
questões em torno do erótico, do sexo, do desejo terem sido convertidas em tabu, isto é, as
representações eróticas estão, inapelavelmente, subordinadas “aos valores morais, que controlam
as representações a partir de determinados interesses bem localizados; aos econômicos, que
censuram para preservar o ‘bom rendimento do trabalho’; e aos políticos, cerceando e punindo a
fim de manter e preservar o sistema como um todo” (Durigan, 1985, p.26).
Contrapondo-se a esse cenário de interdições e controle, o discurso do eu lírico em Irene
Dias irrompe como um grito de libertação e em favor da naturalização do desejo e da sexualidade
feminina bem como do falar sobre tais assuntos sem receios e medos, razão por que, nos versos
iniciais, lemos: “Eu falo/ simplesmente/ dessas coisas, /como falam/ os meigos passarinhos, …”.

105
O eu lírico reivindica o poder de se falar abertamente do sexo, do desejo e do afeto (“falo de vida
/de amor e /solidão, /de erotismo/ e sensuais/ cantares… /digo de /sexo e/ afetuosos
/Laços…”) a partir da perspectiva da mulher e sem o receio de vir a ser condenada por falar de
temas que, em virtude de uma educação repressora, são tidos como impróprios ao feminino e
devem ser interditados às mulheres.
As repetições das palavras grito e falo demonstram que o eu lírico deseja confrontar aqueles
que tentaram calá-lo, reiterando que, apesar das investidas de silenciamento, não se logrará êxito,
colocando-se como resistência a favor da exaltação da voz da mulher, como também por seu direito
de falar sobre os próprios desejos. Em virtude disso, o discurso poético instaurado por Irene Dias
Cavalcanti se nos afigura como bastante transgressor, tendo em vista que, conforme já assinalamos,
ao longo da nossa história literária, a expressão do desejo erótico a partir de uma voz e perspectiva
femininas foi sempre algo negado às mulheres, apesar de algumas exceções dentre as quais se insere,
a nosso ver, a referida poeta e romancista, que se atreveu a desejar e a expressar esse desejo por
meio da escrita de poemas.
Dito de outra forma, no discurso poético de Irene Dias Cavalcanti, ecoa um grito de
libertação de um sujeito feminino desejante, grito esse que pode se dirigir ao próprio eu-lírico,
como em uma espécie de monólogo interior, ora a figuras de interdição social (a família, a igreja, a
sociedade em geral) ou ao objeto de afeto que é sempre pressuposto, mas nunca nomeado. De toda
forma, trata-se de um grito que se alastra por todos os poemas dos livros que estamos, neste
trabalho, analisando. A título de exemplificação, fiquemos com o próximo poema:

Despe o meu
corpo,
descobre a
minha
alma… há um jardim
de flores
variadas
há uma
violeta
que murchou,
precisando
de ser
ressuscitada
há uma rosa
vermelha
desbotada
necessitando
alento e
colorido,

106
despe o meu
corpo,
descobre a
minha
alma
que encontrarás
um lírio
perfumado…

(CAVALCANTI, 2013, p.36)

O discurso formulado pelo eu lírico configura-se como um pedido efervescente de uma


mulher que, em meio a metáforas florais, arde em desejo. Logo, aqui, a retórica das flores
(comumente utilizada para referir-se à genitália feminina e falar de sexo, desejo e erotismo) está a
serviço da expressão da pulsão erótica. De acordo com Chitas (201), “Desde o início dos tempos
que a palavra ‘vagina’ foi demasiado forte, demasiado pungente, demasiado ofensiva para ser dita
ou retratada em toda a sua carnalidade”. Por isso, a necessidade de floreá-la. Considerando isso,
somos levados a ler que, ao longo de todo o poema acima, o eu-lírico vale-se do recurso às flores
(violeta, rosa vermelha e lírio) para falar de sua própria vulva e das sensações de repressão (a violeta
murchada, a rosa vermelha desbotada) e de explosão do desejo sexual (o lírio perfumado).
Senão, vejamos. O eu-lírico pede ao outro do seu afeto que desnude o corpo e desvele a
alma dela: “Despe o /meu/corpo, / descobre a/ minha/ alma…”. Com isso, ergue-se sobre os
versos iniciais um rogo ao amado para que visite o corpo da amada e a faça ir além da matéria,
acesse o seu interior para que ela possa chegar ao último estágio do prazer carnal – o gozo. O
amado, aqui, é convidado a atuar como agente ressuscitador do “jardim de flores variadas”. O eu-
lírico não se compraz, portanto, com o sexo solitário. Deseja a participação do outro para que as
flores do desejo voltem a ter viço, brilho e cor.
As flores que compõem esse jardim das delícias carnais não são quaisquer flores: violeta,
rosa vermelha e lírio. De acordo com Chevalier (2007), em seu dicionário de símbolos, “talvez a
violeta seja a cor do segredo: atrás dela realizar-se-á o invisível mistério da reencarnação ou, ao
menos, da transformação” (Chevalier, 2007, p. 960). Essa ideia de transformação é a que mais se
afina com o conteúdo subjetivo do poema, uma vez que a violeta a que se refere o eu-lírico está
murcha e ele anseia a sua transformação: “há uma/ violeta/ que murchou, /precisando/ de ser/
ressuscitada”. Da mesma forma, a rosa aparece como expressão de algo – o desejo sexual – que
feneceu, uma vez que está “desbotada/ necessitando/alento e/ colorido”.

107
No arranjo erótico desse buquê de flores em que se configura o poema, o lírio concorre
para colorir com o manto diáfano da pureza o desejo expresso pelo eu lírico, que, apesar de arder
em chamas, aguarda a chegada do amado para aplacar o desejo que a consome e regar com alento
e afeto as flores do jardim até então ressequido pela solidão. Além disso, o lírio, com o poder
inebriante de seu perfume, acentua, ainda mais, a sensualidade do corpo do eu lírico que se oferece
ao amado e que necessita da fisicidade desse outro para satisfazer o desejo em que o próprio eu
lírico se enreda, se contorce. Todo o poema revela-se, então, como um convite para o encontro
entre corpos e as flores, nesse caso, concorrem para a comunicação entre os amantes. Elas dizem,
pois, da latência de um desejo – o sexual – que precisa ser satisfeito.
Com isso, a satisfação desse desejo não se dá sem que haja também a expressão de certa revolta
por parte do eu lírico feminino quanto às políticas de controle que incidem sobre o próprio corpo
das mulheres e sobre o direito de elas sentirem e darem prazer, como podemos observar a partir
do poema a seguir:

Para quê?...
Para que
Estes lábios,
Para que
Estes seios,
Para que
Este útero
E estes ovários?...
Para que
este corpo,
Para que
esta alma,
para que
esta febre
e esta
sensibilidade?...
os lábios
Fremindo,
os seios
arfando,
o útero
pedindo,
os ovários
clamando...
o corpo
agitando,
a alma
chorando
a febre

108
queimando
e tu,
sensibilidade?
sensibilidade
sentindo,
sentindo,
sentindo,
desejo querendo,
querendo, querendo
porque não
querer?
foi feito
para isso...
porque não
fazer?...
não entendo
o porquê
não entendo
e não faço,
não faço
por quê?
O medo
Talvez,
o medo de
quê?
o medo
não sei
não sei
de onde
vem...
só sei que
serei eternamente
NINGUÉM...
(CAVALCANTI, 2013, p.38-40)

A tônica do poema acima é o questionamento acerca da natureza do próprio corpo e as


angústias em não poder atender aos chamados da carne. Como sabemos, o corpo feminino sempre
foi motivo de debates, objetificação, inspiração de obras de artes, fantasias e desejos de outrem,
mas nunca foi pertencente à própria mulher. Ele existe na condição de objeto de desejo e desfrute
de um outro, o homem, o patriarca, o dominador. Contra essa lógica de dominação, o eu lírico se
contrapõe ao indagar sobre o porquê de possuir traços e membros tidos como próprios do
feminino (lábios, seios, útero e ovários) se não pode usufruir dos prazeres por eles oferecidos: “para
que/ estes lábios, / para que/ estes seios, / para que este útero/ e estes ovários?”. Aqui, parece-
nos que o poema, nas fímbrias do seu discurso, coloca em xeque a ideia de que o corpo feminino
tenha sido feito apenas para a reprodução, de modo que a mulher precisa anular a expressão do

109
seu desejo. Todavia no poema encontra-se uma complementariedade entre um corpo erotizado e
o desejo por liberdade, projetando-se nos seus versos a imagem da transgressão feminina que
questiona e rompe o silêncio castrador imposto por uma sociedade repressora e reivindica um
duplo direito: o direito ao prazer e o de poder dizer que sente prazer. No poema, observa-se a
presença de um corpo erotizado que busca viver sua sexualidade e saciar o seu prazer, pois, para o
eu lírico, o corpo, com todas as suas células, órgãos, é fonte de prazer e, como tal, deve ser
explorado e experienciado pela própria mulher.
Por isso, nota-se certo tom de revolta nos questionamentos feitos pelo eu lírico na busca
de sentido para sua existência, já que, frente aos impeditivos morais, sociais e religiosos, não tem
autonomia para realização dos seus próprios desejos: “para que/ este corpo, / para que/ esta alma,
/ para que/ esta febre/ e esta/ sensibilidade?...”. A febre de que é acometido o eu lírico é o sintoma
do prazer reprimido. A impossibilidade de concretização do desejo sexual faz com que o eu lírico
guarde em si toda a pulsão erótica que deveria explodir como gozo durante a posse do outro por
quem anseia. Há uma luta pelo ato sexual e pelo gozo, daí por que o questionamento sobre a razão
de não poder sentir prazer ou de praticar o ato sexual, visto que é próprio dos seres humanos serem
afetados por desejo. Este é “, na concepção psicanalítica, o desejo de preencher a falta, de recuperar
o objeto perdido da vivência da satisfação alucinatória” (Soares, 1999, p.24).
A não vivência da sexualidade é, para o eu-lírico, condição de nulidade do sujeito: “o medo
de / quê? /o medo/ não sei/ não sei/ de onde/ vem.../ só sei que/ serei eternamente /
NINGUÉM...”. Por isso, o anseio de dizer que deseja, que almeja possui o outro e por ele ser
possuída. É na vontade da vivência e de combate do controle da sexualidade que o eu-lírico se
firma como sujeito do próprio corpo e do próprio desejo, como se fora dessa vivência não houvesse
outra razão de ser e de existir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do pequeno recorte que fizemos da obra de Irene Dias Cavalcanti, é possível
perceber que a sua lírica é perpassada pelos signos do desejo, do prazer, do sexo, da solidão e da
ânsia por liberdade, os quais, em conjunto, dizem muito da força motriz de que se alimenta a poesia
da autora: o impulso erótico que permite a liberação dos mais recônditos desejos do corpo e da
alma por um sujeito lírico emparedado por dogmas morais e religiosos que visam castrar a mulher
do poder de gozar e, mais ainda, de enunciá-lo em prosa ou em verso. Por isso, quando emerge
na Paraíba conservadora da década de 1970, a poesia de Irene Dias Cavalcanti é vista como um

110
acinte e deixa nódoa no brim dos falsos pudores da sociedade paraibana, especialmente, a da capital
do Estado.
Em outras palavras, a valorização do prazer e do gozo feminino é, pois, a pedra de toque
da lírica de Irene Dias Cavalcanti que traz para o interior de seus poemas a figura de um sujeito
feminino que se coloca como senhora do próprio corpo e dos próprios desejos e que não sucumbe
aos mecanismos de controle e repressão. Apesar desses mecanismos e por entre eles, segue a voz
da poeta, abrindo caminhos para que possa irromper o desejo de mulheres que veem no corpo e
no erótico uma forma de liberação do que a sociedade machista intenta castrar.
Por isso, percebemos que a voz lírica em Irene Dias Cavalcanti não quer esconder o que
sente. Parafraseando Moraes (2015), podemos dizer que a poeta fala de dentro e no feminino a
partir de uma perspectiva que revela a consciência de que o erótico pode ser literário e, sendo
literário, assenta-se em uma ética que não recusa o prazer, mas faz dele pedra angular de sua poesia
onde o princípio do prazer reina descontraído e desafia “os códigos falocêntricos, derrubando o
condicionamento imagístico tão zelosamente conservado durante séculos pela tradição” (CUNHA,
1999, p. 162).

REFERÊNCIAS
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BEAUVOIR, Simone de. Segundo o sexo. 2.ed. Tradução de Sergio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 2009.

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Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.

CAVALCANTI, Irene Dias. Eu mulher, mulher – Lirerótica. João Pessoa: UFPB, 2013.

CUNHA, Helena Parente. O desafio da fala feminina ao falo falocêntrico: aspectos da literatura de
autoria feminina na ficção e na poesia dos anos 70 e 80 no Brasil. In: RAMALHO, Christina (Org.).
Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999, p.151-171.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores,
números). Tradução de Vera da Costa e Silva. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2007.

CHITAS, Irina. O jardim das delícias terrenas: uma análise da palavra. Curiosidade, Vogue, Portugal,
2018. Disponível em: <https://www.vogue.pt/palavra-vagina>. Acesso em: 17 de maio de 2023.

DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. Série princípios. São Paulo: Ática, 1985.

111
GOLUBOV, Nattie. La crítica literária feminista: una introducción práctica. Universidad Nacional
Autónoma de México, 2017.

MORAES, Eliane Robert. Antologia da poesia erótica brasileira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015.

SOARES, Angélica. A paixão emancipatória: vozes femininas da liberação do erotismo na poesia


brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1991.

SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Dicionário Literário da Paraíba. João Pessoa: A UNIÃO,
1994.

112
“Psicopatas do amor”: uma leitura analítica e social
de “O cobrador” de Rubem Fonseca

Camilo de Lélis Lima de Souza


Clínica Particular de Psicologia e Psicanálise
camilollsouza63@gmail.com

RESUMO: Trata-se de uma leitura do conto “O Cobrador” de Rubem Fonseca, aplicando excertos tanto
da Psicodinâmica quanto da teoria psicanalítica freudiana e lacaniana sobre o amor entre personalidades
psicopatas, considerando esta nosografia para os personagens principais do conto. Tem-se como objetivo
atualizar o ambiente da violência instituída após o golpe de Estado no Brasil em 1964, oferecendo-se outra
visão sobre o comportamento violento e delitivo do Cobrador, ampla e originariamente considerado como
heroico, subversivo e revolucionário por alguns críticos literários. Para tanto, como metodologia, faz-se um
breve apanhado da fortuna crítica dessa obra, justificando essa visão outra contrária ao establishment
literário tanto na leitura de outros críticos como através de conteúdos apoiados na Psicopatologia,
suscitando o questionamento da existência do amor na psicopatia e, em existindo, o estatuto e as condições
desse relacionamento afetivo. Um resultado observável é a constatação avaliativa unânime da crítica sobre
Rubem Fonseca ser um autor cuja produção ficcional é identificada pelo signo da violência, sendo seus textos sucintos,
afiados e subversivos, servindo para compor ficções que se prestam bem para análises de personagens identificados com
certas patologias mentais. Além disso, o conto O Cobrador justifica-se apresentá-lo como integrante do grupo
“Psicopatas do amor”, juntamente com Edgar Allan Poe e Rinaldo de Fernandes, na programação do II AMOLIT – II
CONGRESSO NACIONAL SOBRE AMORES LITERÁRIOS. A conclusão a que se chega é de que a
aplicação da teoria freudiana e lacaniana sobre o amor entre psicopatas ao conto é possível porque se pode
falar de amor na psicose, desde que não haja um sujeito de desejo nessa relação delirante fundada na
erotomania, e sendo este sujeito apenas um instrumento de satisfação de um Outro.

Participando do AMOLIT II, reporto-me à sua primeira edição, quando, em plena


pandemia de covid-19, nos reunimos on-line, ainda assustados e isolados, mas esperançosos e
confiantes no que o engenho humano poderia fazer para nos salvar das ameaças de um ser tão
invisível quanto malévolo, cujos malefícios vêm ainda ceifando vidas que, só no nosso país, se
somam mais de 700 mil.
Neste Brasil, os que beiramos os 60 anos de idade nunca havíamos tido contato com o Real
da morte de forma assim tão direta e chocante, a ponto de mais de quatro mil óbitos pela mesma
doença serem notificados num só dia e divulgados pela imprensa. E para nos deixar ainda mais
perplexos, o presidente da República à época, de triste memória, como reposta a todo esse caos,
não se sensibilizando nem um pouco com o sofrimento das pessoas mortas por asfixia devido à
síndrome respiratória aguda grave, nem se importando com a dor das famílias enlutadas, simples e
cinicamente afirma que não tem nada a ver com essas mortes. Nunca a finitude humana foi tão
vilipendiada.

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Essas tristes recordações nos remetem a um tempo de trevas que quem aqui têm menos de
50 anos certamente não viveu ou não conhece, a menos que tenham lido nos livros de História do
Brasil contemporâneo ou visto algo a respeito em alguma mídia eletrônica. Lembremos que, nessa
época, anos 70 do século XX, nós sofríamos sob o apogeu da ditadura militar instaurada no Brasil
em 1964, esta que durou até 1985. Sendo assim, é nesse clima de violência política e social que
vinha se desenvolvendo no Brasil desde o golpe de 1964, precisamente em setembro de 1979, que
Rubem Fonseca publica uma coletânea de contos em um livro intitulado “O cobrador”, que tem o
conto de mesmo título como o primeiro texto dessa obra lançada. Esse livro “O cobrador” foi
reeditado várias vezes, já estando na sua nona edição, esta publicada em 2022 pela editora Nova
Fronteira.
“O Cobrador” foi a quinta coletânea de contos de Rubem Fonseca. Antes dela, Rubem já
havia lançado “Os Prisioneiros”, que marca a sua estreia como autor em 1963; em 1965 é a vez de
“A Coleira do Cão”; seu terceiro livro é “Lúcia McCartney”, de 1969; e, em seguida, “Feliz Ano
Novo”, de 1975. Em 1973, Rubem Fonseca ainda havia escrito a novela “O Caso Morel” e a
antologia “O homem de Fevereiro ou Março. Marçal (in FONSECA, 2022, p. 7) afirma que, de
certa forma, “O Cobrador”, em 1979, marcou o encerramento de um primeiro ciclo em sua obra
porque, nos anos seguintes, ele publicou quatro romances em sequência: “A Grande Arte”, em
1983; "Bufo & Spallanzani”, em 1986; “Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos”, em 1988; e
“Agosto”, em 1990. Somente em 1992 é que Rubem Fonseca volta a publicar contos com o volume
“Romance Negro e outras Histórias”.
José Rubem Fonseca, este é seu nome completo, nasceu em 11 de maio de 1925, em Juiz
de Fora, MG, e morreu no Rio de Janeiro, onde residia desde a infância, em 15 de abril de 2020.
Durante esses seus profícuos 94 anos, ele publicou 32 livros, entre contos, romances e crônicas,
sendo a sua última obra o livro de contos “Carne Crua”, lançado em 01 de novembro de 2018.

SOBRE “O COBRADOR”

Recorrendo à fortuna crítica sobre a escrita de Rubem Fonseca de forma que justifique apresentá-lo
como integrante do grupo “Psicopatas do amor”, juntamente com Edgar Allan Poe e Rinaldo de Fernandes,
a avaliação unânime da crítica é de que ele é um autor cuja produção ficcional é identificada pelo signo da
violência, sendo seus textos sucintos, afiados e subversivos. Bom, isso não causa nenhum espanto mais, tanto
quanto a verdade de que a violência é constituinte da história brasileira, desde da chegada do primeiro europeu

114
a nossa terra brasilis até hoje, abrangendo tanto o contexto histórico como o social, o político e o econômico.
Só que para entendermos a representação dessa violência no campo da arte e da literatura, devemos
contextualizá-la para que se produza algum sentido, para que ela não se dissolva na formação natural específica
de tudo que compõe o humano no seu âmbito geral ou nacional, sem sua nuance sociológica.
Grosso modo, a origem dessa representação da violência especificamente na literatura remete-se ao
romance policial pós-Arthur Conan Doyle e Agatha Christie, quando chega aos Estados Unidos o roman noir,
o romance negro, tendo como pano de fundo uma sociedade adoecida. Isto porque o enredo desses
romances estavam diretamente relacionados aos acontecimentos dos anos posteriores à queda da Bolsa de
Nova York e da Lei Seca nesse país, período em que as atividades criminosas lá se expandiram desde o
universo burguês até o interior de todas as esferas sociais e empresariais. Como as tramas não cabiam mais
num ambiente requintado tradicional, a realidade violenta inspirou o surgimento de outra espécie de romance
policial, desenvolvido a partir do estilo dos americanos Dashiel Hammet, este considerado o pai do romance
policial nos Estados Unidos, e Raymond Chandler (REIMÃO, 1983, p. 51, apud REIS, 2018, p.20).
É dessa forma que Fernanda Mara Azevedo (2019 – 2020) explica o fato de que a nova realidade
econômica dos Estados Unidos, a partir da quebra da Bolsa em 1929, e sua consequente crise financeira,
gerou um caos tão generalizado na sociedade de forma que a violência passou a dar o mote da criação de
estórias do gênero romance negro no estilo de Hammet e Chandler. Segundo ela, esse tipo de romance
acabou sendo adotado no Brasil por escritores como Rubem Fonseca e Luiz Alfredo Garcia-Roza,
“especialmente por situarem o crime num mundo sem valores autênticos e numa sociedade corrompida”
(AZEVEDO, 2019-2020, p. 161).
Quando Rubem Fonseca publicou “O cobrador”, em 1979, Marçal Aquino (in FONSECA, 2022)
ainda nos conta que o Rubem estava muito raivoso porque seu livro de maior sucesso, o “Feliz Ano Novo”,
lançado em 1975, havia sido objeto da Censura logo no final do ano seguinte. Os censores não só proibiram
a circulação deste livro, que já havia se transformado num best-seller com mais de 30 mil volumes vendidos,
como também determinaram a apreensão de todos os exemplares existentes nas livrarias. Mas o Fonseca
processou a União por perdas materiais e danos morais e vingou-se como bem sabia fazer no plano literário,
publicando esses dez contos, entre eles, “O cobrador”, que abre o livro.

ENREDO DE “O COBRADOR”

Protagonista do conto homônimo do título do livro, o cobrador é um personagem que reúne o


máximo da brutalidade humana com alguns toques até de poesia e muito desejo de vingança por tudo que

115
ele acredita que lhe foi negado. De forma contundente, enlouquecidamente irado e com a total certeza do
que quer, ele golpeia sem meias palavras diretamente o leitor, tendo como cenário a realidade violenta dos
grandes centros urbanos corrompidos tanto pelas disparidades sociais como pela falta de liberdade imposta
pela ditadura militar no final dos anos 70.
Nessa perspectiva, o clima de vitória na Copa do Mundo de 1970, a vida sob os auspícios do “milagre
econômico” brasileiro e a magia das imagens da TV em cores, tudo isso se derrete ante a crueza e a violência
expressas nas estórias de Rubem Fonseca, funcionando como um reverso do discurso ufanista do governo
militar. Assim, narrado em primeira pessoa, esse conto relata o percurso de um personagem do sexo
masculino que, depois de um procedimento no consultório de um dentista, resolve sair às ruas de sua cidade,
o Rio de Janeiro, cobrando o que ele sente que lhe devem: “estão me devendo comida, buceta, cobertor,
sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo” (FONSECA, 2022, p. 8). Esse personagem, que
não revela sua idade, nem qual o seu nome de batismo ou no registro civil, depois se autoproclamará o
Cobrador. Ele pertence à classe mais baixa da sociedade, “dos fodidos”, como se autodenomina. Não se sabe
nenhum antecedente seu quando ele simplesmente explode todo seu ódio contra dentistas, comerciantes,
industriais, advogados, médicos, funcionários, executivos, e afirma que toda essa canalha está lhe devendo
muito e que não vai pagar mais nada e, doravante, só cobrará (FONSECA, 2022, p. 9).
Esse primeiro episódio acontece num consultório odontológico, quando o narrador, ao dizer ao
dentista que não tinha o dinheiro para pagar a extração do dente que lhe doía, dirige-se à porta de saída. “Ele
bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e
pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas”
(FONSECA, 2022, p. 9). Então o narrador saca seu revólver do casaco, aponta para o peito do
dentista e passa a destruir com pés e mãos tudo dentro do consultório, torcendo para que o dentista
reagisse para que ele estourasse sua barriga. Mas ele não o fez desta vez; apenas acertou o joelho
do dentista com um tiro.
No decorrer do conto, o narrador descreve em detalhes ainda mais quatro crimes de
assassinato perpetrados com requintes de crueldade e sadismo e ainda a prática de um estupro. As razões
pelas quais executou esses atos delituosos são sempre justificadas com base numa dívida que ele
sente que toda a sociedade lhe deve e que tem que pagar dessa maneira.
Interpretando esse protagonista, Antonio Rediver Guizzo (2011, p. 32) constata que ele e
seus pares são pessoas de uma classe social destituída do mínimo necessário à vida em termos de
“objetos, ações, serviços e relações que garantam a subsistência, o conforto e, principalmente a
satisfação dos indivíduos das demais classes [...]”. Guizzo (2011) afirma ainda que a resposta última

116
encontrada pelo narrador, como constituinte dessa classe, diante desse agressivo apartheid social,
é recorrer às armas e à violência para “confrontar-se e sobrepor-se aos indivíduos mais
privilegiados, com os quais mantém, em seu psiquismo, uma relação declarada de repulsa e
revanchismo”.
Sobre esses fenômenos sociais e psicológicos complexos façamos algumas perguntas: se
vivemos numa sociedade extremamente desigual como viemos expondo, por que só um número
reduzido de indivíduos no mundo real tem essa reação abjeta extrema de cobrar com a vida do
outro aquilo que lhe falta? O que leva em tese uma pessoa a delinquir? Que características
descrevem um sujeito com comportamentos semelhantes ao do narrador?
Tentando oferecer apenas um esboço à guisa de resposta, tendo em vista a complexidade
dessas questões, primeiramente sobre a razão de que só poucos indivíduos agem como nosso
protagonista no mundo real, a verdade cabida para o escopo deste trabalho é que ainda há pessoas
que não seguem o processo civilizatório que tornou possível a formação das nossas diferentes
sociedades ao longo dos séculos. Por isso a existência das leis, do Estado e suas instituições para
barrar e/ou punir quem internamente não contém seus impulsos antissociais. Este processo é
descrito por Norbert Elias, o qual se inspirou nos estudos de Sigmund Freud sobre o recalcamento
e os destinos da pulsões na formação psíquica dos indivíduos (DELZESCAUX, 2016, apud
COSTA, 2018).
Sobre o que leva em tese uma pessoa a delinquir, os motivos são tão variados e profundos
quanto é o conhecimento humano e, escolhendo a Psicodinâmica como um fundamento, então,
para a situação do personagem “o cobrador”, vislumbramos tratar-se, dentro da Psicopatologia, de
um caso grave de psicopatia. Desta forma, sem o rigor que um psicodiagnóstico exige, e apenas
contemplando o campo nosográfico a partir do discurso de um personagem de ficção, daremos o
palpite, baseado numa leitura psicanalítica do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais, o DSM-5, de que esse cobrador sofre do Transtorno da Personalidade Antissocial,
apresentando ainda comorbidade com os transtornos narcísico e paranoide (DSM-5, 2014). Trata-
se de uma liberalidade diagnóstica, considerando a fundamentação teórica psicanalítica dos
transtornos da personalidade em que os primeiros DSM’s, até o DSM-3, foram produzidos.
Nessa esteira, quanto às características de um sujeito mentalmente doente como demonstra
ser o protagonista narrador, apontemos alguns traços adaptados também do DSM-5 a respeito do
psicopata ou sociopata: “fracasso em ajustar-se às normas sociais relativas a comportamentos
legais, repetindo atos que constituem motivos de prisão; irritabilidade e agressividade,

117
caracterizadas por repetidas agressões verbais e físicas ou homicídios; ausência de remorso, uso da
indiferença ou racionalização em relação a ter ferido, maltratado, roubado ou assassinado outras
pessoas” (DSM-5, 2014).
Complementando essas características doentias, temos ainda que os traços de comordidade
com o transtorno da personalidade narcisista e paranoica tornam o psicopata também muito
sensível a críticas ou derrotas em razão da vulnerabilidade de sua autoestima, desenvolvendo
também “um padrão de desconfiança e suspeita difusa dos outros a ponto de suas motivações
serem interpretadas como malévolas” (DSM-5, 2014), já que têm certeza que as pessoas vão
explorá-lo e causar-lhe danos.
Assim é que, no pensamento do narrador, sua violência contra os grã-finos não é sem razão,
mas tem o significado de reagir contra os sentimentos de humilhação, degradação e vazio que a
desigualdade econômica e social lhe impõe, negando-lhe tanto bens essenciais para uma existência
digna, quanto os que atendem exclusivamente a seu prazer pessoal. Ele lista: “Tão me devendo
colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira
Fazenda, sorvete, bola de futebol” (FONSECA, 2022, p. 11). E essa lista vai crescendo com outros
itens durante a narrativa, de acordo com as experiências que se depara.
Como acabamos de nos inteirar, nosso protagonista, em razão da narração de suas ações delituosas
violentas por motivos irracionais, comprova ser um sujeito muito perigoso, ainda que um bom número dos
críticos literários consultados, como Luciana Paiva Coronel (2013), Cristiane Sucheski Contin (2006),
Ângela Maria Rubel Fanini (2006) e Antonio Rudiver Guizzo (2011), enxerguem suas atitudes como a de
um herói solitário numa espécie de luta armada contra a exploração sofrida em razão da estrutura
socioeconômica imposta pela classe dominante.
Discordando desses críticos citados e dessas suas leituras românticas sobre um despossuído louco e
assassino que se julga poeta, aproximamo-nos da opinião de João Luiz Lafetá (1993), para quem o narrador
protagonista é um marginal inculto e miserável que acerta “suas contas com a sociedade por meio da violência,
assassinando pessoas”. E Lafetá explica o pensamento e as atitudes do autonomeado “o cobrador”:

Não se pode dizer, [...] que o choque se dê entre o eu e mundo, como confronto entre a subjetividade
rica de conteúdos e uma objetividade social vazia. A mola desencadeadora da violência, aquilo que
move o personagem, parece estar aquém (ou talvez além) de qualquer busca de sentido: para esse
pária da sociedade brasileira o sentido acabou, e o vazio de sua vida só pode ser preenchido pelo
ódio sangrento, que, aliás, de tão rotinizado, parece menos ódio do que frieza psicótica (LAFETÁ,
1993, p. 130).

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E quanto aos seus sentimentos? Como será que eles existem em tais condições.

RELAÇÕES PSICOPÁTICAS
Partindo então do pressuposto de que estamos lidando com um personagem psicótico de
alta periculosidade, e não com um herói romântico incompreendido que luta por justiça, pincemos
como se dão suas relações sentimentais com as quatro mulheres com quem conviveu, para ficar
apenas com sua atuação com o sexo oposto. Lembremos que não podemos perder de vista esse
elemento transgressor do conto de Rubem Fonseca, apresentado pela fusão da figura do escritor
com a figura do bandido, sem, com isso, comprometer a verossimilhança, mas antes formando um
narrador-poeta que é o protagonista da violência.
Assim, seguindo um roteiro macabro de alimentação das bestialidades humanas, o cobrador
é fisgado pela primeira mulher no espaço da rua. “Coroa”, estudante de colégio noturno, “peitos
murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos
de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre” (FONSECA, 2022, p. 13). Mesmo ou
talvez porque se trate de uma relação consentida entre iguais, o narrador não se sente satisfeito,
pois ela é tão “decrépita” quanto “a situação em que vive”. Sendo mais uma “fodida”, “sua relação
com essa mulher não é movida por prazer ou desejo”, “nem culmina em gozo a relação”
(GUIZZO, 2011, p. 35), até porque seu narcisismo não o permite. Tal qual um bicho que encontra
uma fêmea no cio, parece mais uma resposta natural ao seu instinto sexual.
Seu segundo encontro com uma mulher foi através de um estupro contra a dona de um
apartamento onde ele entrara disfarçado de bombeiro e ameaçando com um revólver:

Tirei o Cobra de dentro da caixa. [...] Amarrei a empregada, fechei sua boca com
esparadrapo. Levei a dona pro quarto. Tira a roupa. Não vou tirar a roupa, ela disse, a
cabeça erguida. Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo.
Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro.
Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas [...]
(FONSECA, 2022, p. 14).

Em termos comparativos, seu traço psicopático, caracterizado pelo ataque agressivo contra
quem se lhe contrapõe, sem contar com a violência do estupro em si, ficou mais evidente do que
na relação com a “coroa”, até porque com a coroa tudo se deu numa relação consentida, embora
não se tenha mencionado em nenhum momento prazer ou gozo. Desta vez, sem considerar a
violência do ato contra a dona do apartamento, ele constata: “Como já não tinha medo de mim,
ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu” (FONSECA, 2022, p. 15). Entendemos,

119
portanto, que as duas mulheres, mesmo com diferença de grau, ambas foram violentadas, reduzidas
a meros objetos porque, se com a “coroa” houve consentimento, ela foi coisificada como um troço
usado para descarga sexual momentânea em função de sua condição socioeconômica. Mas é
evidente que a mulher do apartamento sofreu maior violência porque, além do estupro e das
agressões físicas e psicológicas, teve ainda de ouvir a pilhéria dele, dizendo ao sair, “vê se não abre
mais a porta pro bombeiro”, culpabilizando sua negligência.
Dona Clotilde é a terceira mulher com quem o cobrador mantém um relacionamento. Ela
é a dona do sobrado onde ele mora e tem com ela um sentimento quase filial, tanto se oferecendo
para passar escovão na sala, como lhe aplicando injeções na sua nádega, “seca como uma folha
velha e amassada de papel de arroz” (FONSECA, 2022, p. 16) Por essas bondades, dona Clotilde
sente que ele foi um anjo enviado por Deus para ela, uma vez que há três anos está deitada numa
cama, só se levantando para ir ao banheiro. Mas o narrador entende que ela não tem nenhuma
doença orgânica e poderia muito bem andar para onde quisesse, porque diz ele que todo seu mal
está na cabeça, o que a fez atrofiar seus músculos e não ter mesmo forças para nada. Por sua
compreensão muito particular sobre as possibilidades de mudanças e de extinção do sofrimento
humano, ele pensa consigo mesmo: “Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca” (FONSECA, 2022, p.
16).
Finalmente, Ana é a quarta mulher que entra na vida do narrador e causa-lhe uma verdadeira
revolução. Ele a vê na praia e deseja: “Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada
em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, [...]. Se despedem e a branca vai andando na direção de
Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizer”
(FONSECA, 2022, p. 15). Ela é de uma classe superior à sua, moradora de Ipanema, endinheirada
e dona de um carro modelo Puma conversível, “garota de 20 anos, cheia de dentes e perfume”
(FONSECA, 2022, p. 16), que certamente deve estar na lista do Cobrador de coisas suas a adquirir.
Mas é com Ana por quem ele se envolve afetivamente e tem com ela uma relação que vai além do
sexual, explicitada nos termos com que descreve a primeira vez em que têm um momento íntimo:

Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a
roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na garganta,
lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora estamos deitados,
um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, [...]Eu não tenho medo de você, Ana
diz. Nem eu de você. Eu te amo. (FONSECA, 2022, p.18).

Ana é uma prova do narcisismo do narrador, sendo a demonstração clara de que o intuito
do cobrador é puramente individual, não tendo nada de social porque, ao querer Ana, ele estratifica

120
as mulheres, separando aquelas das classes superiores para relações estáveis e “verdadeiras”,
enquanto “as mulheres das classes inferiores servem aos prazeres momentâneos” (GUIZZO, 2011,
p. 37). Além disso, Guizzo (2011) aponta para o fato de que, sendo Ana da classe alta, “permite
que a transgressão social saia do âmbito individual” em que o cobrador vinha se mantendo antes
de conhecê-la, e adentre uma dimensão macro conforme seu delírio de grandeza: “Meu ódio agora
é diferente. Tenho uma missão. [...] Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu
o mundo seria melhor e mais justo [...] Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas
o louco da Magnum.” (FONSECA, 2022, p. 18).

O AMOR ENTRE PSICOPATAS


É notória a transformação do discurso do narrador após sua associação com Ana, esta que
já transparecera possuir algum distúrbio ao revelar que a vida dela não tinha sentido e que já pensara
em suicídio. Pouco se sabe dos procedimentos de Ana antes de se envolver com o Cobrador;
apenas que ela tinha conhecimentos de explosivos e que mostrava grande voracidade com
alimentos, pois “come vorazmente como se a qualquer momento fossem levar o prato embora”
(FONSECA, 2022, p. 18). Ela diz muito sobre ela mesma através desse diálogo entre eles depois
do sexo: “Você só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no
armário, [...], aponta pra mim. [...] Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa. Já.
Foi bom? Foi. Como? Um alívio. Como nós dois na cama? [...] (FONSECA, 2022, p. 19).
Ainda que suscite odiosos preconceitos sociais enraizados na nossa formação, é inevitável
desconfiarmos de que algo não vai bem quando experiências como a de Ana, uma moça de 20
anos, de origem rica, habitante de bairro nobre, deixa-se aproximar, interessa-se e envolve-se com
um tipo “fodido” como o cobrador se descreve. Inclusive essa associação que ela faz do ato de
matar alguém com o ato de fazer sexo induz que ambos entraram na loucura do outro, formando
o que se conhece por “folie à deux” ou loucura a dois.
Mas, lembrando do pensamento de Blaise Pascal já popularizado, de que “o coração tem
razões que a própria razão desconhece”, pensamento que nos remete ao sentimento do amor,
sabemos que ele é um afeto inerente à condição humana desde o nascimento no que diz respeito
ao seu processo de subjetivação. E sendo o ponto alto do enredo desse conto o enamoramento
entre um bandido psicopata e uma moça jovem, rica e bonita, este acontecimento confirma a
verossimilhança dessa trama, bastando lembrarmos do caso Suzane Richthofen (KOPP, 2023).

121
Mas ainda assim levanta o questionamento se realmente existe o amor numa relação em que pelo
menos um dos sujeitos é psicopata.
Para destrinchar esse desafio, vamos nos valer de algumas simplificações dos estudos e
ensinamentos da psicanálise de Freud e Lacan sobre o amor na psicose, explicados na dissertação
de Mestrado de Éder Galiza Cirilo, em 2020, pela UNICAP de Pernambuco.
Antes, porém, vamos retomar as três estruturas clínicas de personalidade: neurose, psicose
e perversão, as três posições possíveis diante da falta constituinte do sujeito. Começando pela
neurose, sabemos que ela está ligada ao reconhecimento da falta como impotência, de forma que
o sujeito consegue ainda ter um pensamento racional e distinguir o certo do errado. O sujeito tem
a necessidade de seguir as normas para atingir a completude e se esforça para fazer tudo de forma
correta, sentindo-se culpado se não conseguir cumprir com essa expectativa. Já a psicose é uma
estrutura que não permite a percepção da falta, afetando a capacidade de julgamento.
Diferentemente do neurótico, o psicótico não reconhece as leis ou, mesmo que as reconheça, se
sente indiferente a elas. Por não sentir culpa, pode até distinguir o certo do errado, mas por se
colocar sempre em primeiro lugar, e não possuir capacidade empática, tende a seguir o que
considera bom para si, independentemente do que é “certo ou errado” para a sociedade ou
comunidade onde está inserido. E finalmente a perversão, cujo traço marcado pela busca do prazer
é constante. Neste caso a pessoa sabe que existe a falta, que existem normas, além de ser capaz de
reconhecê-las, mas tende a transgredi-las. No lugar de sentir culpa, o perverso costuma desfrutar
desses momentos, sentindo ansiedade somente nas ocasiões em que deseja transgredir e não
consegue (TAVARES et alli., 1990, p. 70-78).
Deste modo, Freud (1900-1901/1972), em “A Interpretação de Sonhos”, introduziu a ideia
de como se dá o movimento da libido na psicose ao compará-la com o processo onírico. “Nessa
obra, ele volta a atenção para uma maneira primitiva de funcionamento do psiquismo, no qual a
energia psíquica de caráter sexual flui na direção de recatexizar a imagem mnemônica da percepção
de uma primeira experiência de satisfação, mecanismo este designado por ele de regressão”
(CIRILO, 2020, p. 68). É em direção a essa experiência de satisfação que há uma regressão da libido
na psicose, tanto é que Roudinesco e Plon (1998, p. 622) explicam que é na reconstrução da
realidade que o psicótico investe em si mesmo, sendo esse investimento do amor em si mesmo
uma forma de trazer de volta esse estado primeiro do processo de constituição do sujeito, em que
ele é o próprio objeto do amor. Esse momento, marcado pelo lugar de objeto amado, é o que é
perseguido na psicose, ou seja, o de manter o lugar de ser amado.

122
Prestemos atenção a essa citação: “No processo libidinal da psicose, há um desvio de
interesse do mundo externo para o ego. Ao se retirar a libido das pessoas e objetos externos, o
psicótico não a substitui na fantasia como ocorre no neurótico; ao contrário ela é dirigida para o
ego, tal qual ocorre no narcisismo” (Freud, 1914/1974, apud CIRILO, 2020, p. 69).
Para melhor compreender isso que está sendo posto, Cirilo (2020, p. 69) retoma o assunto
da constituição psíquica, já que, “a cada separação com os diversos objetos externos com os quais
o ser humano se relaciona, revive-se o estado de desamparo do nascimento”, formulando daí a
seguinte pergunta: “será que o amor pode ser compreendido como uma tentativa de recapturar o
que falta, devido às perdas que levaram a uma reatualização do estado de desamparo?” Cirilo (2020,
p. 70) entende que sim, e baseia-se no que Lacan (1956-1957/1995, apud CIRILO, 2020) propõe
no Seminário 4, “ao traçar uma linha de raciocínio que articula a existência do amor a partir da falta”.
Mas Cirilo (2020) ainda cita o problema que passa a surgir disso, perguntando como se
explicaria o amor na psicose, já que nessa estrutura há uma rejeição da falta. E ele solta esta
provocação: “será que não há amor na psicose, como muito já foi posto em pauta nas discussões
psicanalíticas?” (CIRILO, 2020, p. 70), ao que ele responde da seguinte maneira:

O próprio ensino de Lacan (1956-1957/1995), ainda no Seminário 4, oferece uma resposta


plausível ao dizer que pode haver no amor um despossuir-se de ser sujeito para preencher
a falta do objeto amado. E como essa é a forma de amor que aparece na psicose, [...] é
preciso lembrar que, no movimento do amor, o que é amado é o que está para além do
sujeito; é justamente o que não se tem. Pensando agora no amor com relação ao Outro,
na pessoa que ocupa, por exemplo, o lugar de mãe, existe nesta uma necessidade do que
para ela é sentido como falta, isto é, o falo. Essa falta pode ser atenuada pela satisfação
encontrada na relação fálica com uma criança. A criança como real na função de filho
vem aí assumir, para essa pessoa, a função simbólica da sua necessidade imaginária
(LACAN, 1956-1957/1995). [...] É na psicose que existe essa tendência de assumir e se
fixar na representação do falo para um Outro. Nesse lugar, com o valor de ser amado, a
criança visa a manter esse Outro sempre presente devido às frustrações vividas quando
de suas ausências. A criança tenta ser tudo o que falta a esse Outro para garantir sua
presença. Diante da demanda de uma criança que é essencialmente insatisfeita, Lacan, no
Seminário 5, diz que o ser humano tem como solução buscar um Outro só pra si, e a isso
ele chama de amor, ou seja, esse movimento de ter um Outro todo seu. O amor aqui é
visto como um efeito de se tentar ser objeto da satisfação da demanda de um Outro
(CIRILO, 2020, p. 71-72).

Compilando excertos da teoria psicanalítica de Freud e Lacan sobre este tema, Ferraro
(2009, apud CIRILO, 2020, p. 72), explicando o pensamento lacaniano, diz que o amor na relação
com o Outro, que é o lugar da função materna, é definido como uma procura, desde o início da
vida até o seu fim, como uma busca de ter esse Outro todo seu. Porém, na neurose, Lacan traz o
amor como uma ação de dar o que não se tem, relacionando esse dar como um complemento do

123
que falta na relação com um Outro barrado, onde existe o significante da falta. Já “na psicose, a
relação é com um Outro a quem nada falta, um Outro não barrado, imperativo e poderoso, o qual
será a condição de alienação do sujeito. Deste modo, como na psicose a relação é com um Outro
a quem nada falta, fica o indivíduo impossibilitado de se constituir como ser desejante”. Ao se
cogitar a relação com o Outro, “o amor na psicose é diferente do amor na neurose”. Na psicose,
não existe o significante da falta no Outro, e assim o amor se dá pela ocupação do lugar de objeto
do Outro. Logo, já que na psicose o que existe é uma posição como objeto de gozo diante do
desejo não simbolizado do Outro, é possível falar do amor na psicose, mas só se a condição de
sujeito for abolida (CIRILO, 2020, p. 72).
Cirilo (2020) ainda argumenta se seria inadequado pensar que o psicótico não ama, ou até
mesmo que é incapaz de amar. Isto porque, enquanto em Freud o psicótico ama a si mesmo, em
Lacan é o Outro absoluto que é amado (ALOUCH, 2010, apud CIRILO, 2020). Isso pode ser
resumido da seguinte forma:
em Freud, do ponto de vista do amor como investimento libidinal, o amor na psicose é
puramente narcísico, ou seja, toda libido é investida na primeira imagem de satisfação
constituinte do ego. Já em Lacan, do ponto de vista do amor em relação ao Outro, o
amor na psicose é o tamponar a falta percebida do Outro, sendo seu objeto de satisfação,
amando dessa forma uma imagem do Outro como completo (CIRILO, 2020, p. 73).

Jacques-Allain Miller discute a viabilidade de se avaliar “esse caráter mortífero do amor


quando o sujeito ama a si mesmo ou ama um ideal pelo qual substituiu a realidade do parceiro. O
entendimento dele é o de que o psicótico ama o Outro de um modo que só pode ser encontrado
em uma ficção delirante” (FERRARI, 2009, apud CIRILO, 2020, p. 73). Esse entendimento está
em Lacan que, em 1966, disse que “o amor na psicose pode se dar pela erotomania mortificante”,
isto é, “um delírio que está ligado à ideia alucinada de ser amado por um Outro”. Em 1975, Lacan
“propõe a psicose como um fracasso no que concerne ao amor” porque “na psicose não se pode
assumir a posição de sujeito do desejo” (MUÑOZ, 2010, apud CIRILO, 2020, p. 73).
Sobre a erotomania, ela é “uma certeza delirante de ser amado pelo Outro”
(BRESSANELLI, 2007, apud CIRILO, 2020, p. 74). É a “convicção de ser amado por um outro
que o aprecia como objeto de alto valor. A erotomania é como um amor que tem a convicção de
fazer apenas UM, que remete ao mito da complementariedade, sendo um Outro completo, da
unidade perfeita. A erotomania é uma tentativa de junção, uma teoria que impele à unificação”
(TYSZLER, 2005 apud CIRILO, 2020, p. 74).

124
APLICAÇÃO DA TEORIA DO AMOR ENTRE PSICOPATAS AO CONTO
Concluindo essa teoria sobre o amor na psicopatia e aplicando seus termos à relação de
enamoramento entre o casal, Ana e o Cobrador, entendemos que este caso, sim, apresenta
elementos suficientes para se pensar numa relação erotomaníaca delirante em que pelo menos um
certamente é psicopata e o outro se também não o for, pelo menos tem um pé bem próximo da
psicose. Essas impressões são extraídas do conteúdo apresentado pelo cobrador tanto em suas falas
e pensamentos como nos de sua companheira de delírio. Assim o narrador se expressa em seus
parágrafos finais:

Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal [...]. Ana Palindrômica saiu
de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre
tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido
fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e
acho que já estou preparado para essa mudança de escala” (FONSECA, 2022, p. 20).

Então, reforçando esse delírio assassino do Cobrador, Ana dá a sua contribuição alucinada
a partir da sua loucura compartilhada, dizendo para ele: “O mundo inteiro saberá quem é você,
quem somos nós; Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve”; e o cobrador
confirma: “O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facão” (FONSECA, 2022, p. 21).
Seguindo esse compartilhamento de ideias tresloucadas, próprias de uma parelha que se
associa pela combinação de suas idiossincrasias extravagantes, o Cobrador, em delírio, escreve um
manifesto para os jornais, anunciando a sua boa-nova cheias de reflexões:

Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, [...]. Nada de sair matando a
esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado
prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu
erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me
ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim
mudaremos o mundo. [...]” (FONSECA, 2022, p. 21).

O conto termina com a descrição da disposição das armas na mala do carro, com o
Cobrador tendo a certeza de que Ana atira tão bem quanto ele, ainda que não saiba manejar o
facão, mas entendendo que essa arma agora é obsoleta. Dão um até logo a dona Clotilde, como se
fossem fazer a coisa mais simples do mundo num Baile de Natal, onde não faltará nem cerveja,
nem peru, nem muito sangue e horror.
Para concluir, dizemos que se pode falar, sim, de amor na psicose, desde que não haja um
sujeito de desejo nessa relação delirante fundada na erotomania, e sendo este sujeito apenas um
instrumento de satisfação de um Outro.

125
REFERÊNCIAS
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misto de policial e psicanálise. PragMATIZES – Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura. Ano 10, n. 18, p. 155-181. Niterói: UFF, 2019-2020]. Disponível em:
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CIRILO, Éder Galiza. O amor e a dor na psicose: um estudo psicanalítico. Dissertação [mestrado
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COSTA, André Oliveira. Norbert Elias e a psicanálise: envolvimentos e alienações. Psychologica.


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FONSECA, Rubem. O cobrador. 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022.

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completas de Sigmund Freud, v. V. (1900-1901). Rio de Janeiro: Imago, 1972.

FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução. In J. Strachey (Ed.), Obras


psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XIV. (1914). Rio de Janeiro: Imago, 1974.

GUIZZO. Antonio Rediver. Rubem Fonseca: a representação da violência e das relações de


poder enquanto agressão ao leitor no conto “O Cobrador”. Terra roxa e outras terras –
Revista de Estudos Literários. V. 21. [S.l.: s.n., 2011]. Disponível em:
<http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa>. Acesso em 08 jun. 2023.

KOPP, Daniele. Relembre o caso e saiba quem é Suzane von Richthofen, condenada pelo
assassinato dos pais. Canal ciências criminais. Porto Alegre: [S.n., 2023]. Disponível em <
https://canalcienciascriminais.com.br/relembre-caso-suzane-richthofen/> Acesso em 08 jun.
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LAFETÁ, João Luiz. Rubem Fonseca, do lirismo à violência. Revista Iberoromania. n. 38.
Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1993. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br>article>.
Acesso em 09 jun. 2023.

126
MURARO, Cauê. Rubem Fonseca, escritor que renovou a literatura brasileira no século 20,
morre aos 94 anos. G1. Rio de Janeiro: Globo, 2020. Disponível em: <
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/04/15/morre-no-rio-o-escritor-rubem-
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REIS, Murilo Eduardo dos. Caracterização do romance policial em Rubem Fonseca. Dissertação.
99 f. (Mestrado em Estudos Literários – Faculdade de Ciências e Letras). Orientador: Maria Célia
de Moraes Leone. Araraquara: Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", 2018.
ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
1998.

TAVARES, Eda Estevanell; STEIN, Maria Lúcia Müller; NUNES, Otávio Augusto Winck.
Estruturas clínicas: questões preliminares. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
v. 1, n. 1 (1990). Porto Alegre: APPOA, 1990.

127
O paraíso são os outros: construções acerca do
vínculo afetivo a partir de Valter Hugo Mãe
Raquel Martins Firmino
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte / raquelmfirminopsi@gmail.com

Prof. Dra. Karlla Christine Araújo Souza


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte / karllasouza@uern.br

Prof. Dr. Ailton Siqueira de Sousa Fonseca


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte / ailtonssfonseca@gmail.com

Débora Carlos de Andrade


Universidade Estadual do Rio Grande do Norte / deboracarlos6@gmail.com

Tereza Raquel Dantas Araújo Oliveira


Faculdade Católica do Rio Grande do Norte / raqueltereza0@gmail.com

RESUMO
Diante da célebre máxima de Jean-Paul Sartre “o inferno são os outros”, o autor Valter Hugo Mãe sente-se
convocado à reflexão sobre as vicissitudes da natureza relacional. Em sua obra “O paraíso são os outros”
o autor tece uma série de reflexões sobre o amor e sobre como acontece a ligação dos casais. O livro é uma
narrativa inusitada e irreverente de uma menina, onde é feito uma série de elaborações sobre o amor e o
vínculo afetivo, através da óptica da menina, personagem do autor. Por meio da inocência narrada, cativa o
leitor e levanta questões relevantes sobre a construção de um vínculo amoroso. Por meio dos recortes
literários do livro, será elaborada a discussão sobre as formações de vínculos afetivos. Considerando os
campos da literatura, filosofia e psicanálise para construção do diálogo sobre o amor, ponderando também
sobre vínculos afetivos na contemporaneidade. Esse artigo é uma abordagem transdisciplinar, elaborada no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas – PPGCISH/UERN e do Grupo
de Pesquisa do Pensamento Complexo GECOM/UERN
PALAVRAS-CHAVES: Amor; Vínculo afetivo; Literatura; Psicanálise.

ABSTRACT
Faced with Jean-Paul Sartre's famous maxim "Hell is other people", author Valter Hugo Mãe feels
summoned to reflect on the vicissitudes of the nature of relationships. In his work "Paradise is other
people" the author weaves a series of reflections on love and on how couples bond. The book is an unusual
and irreverent narrative of a little girl, where a series of elaborations on love and the affective bond are made
through the point of view of the little girl, the author's character. Through the innocence narrated, it
captivates the reader and raises relevant questions about the construction of a love bond. Through the
book's literary clippings, a discussion about the formation of affective bonds will be developed. Considering
the fields of literature, philosophy, and psychoanalysis to build a dialogue about love, also pondering on
affective bonds in contemporaneity. This article is a transdisciplinary approach, elaborated in the scope of
the Post-Graduation Program in Social and Human Sciences - PPGCISH/UERN and the Complex
Thought Research Group GECOM/UERN
KEY WORDS: Love; Affective Bond; Literature; Psychoanalysis.

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1 INTRODUÇÃO

Os casais são criados por causa do amor.


Eu estou sempre à espera de entender o que é.
(Valter Hugo Mãe)

Em 1943, o escritor e filósofo Jean-Paul Sartre escreveu a peça teatral Entre quatro paredes,
uma das obras mais famosas do autor, conhecida, dentre outras coisas, por estimular diversas
reflexões sobre a existência humana, a responsabilidade individual e as relações afetivas. Ao todo,
a peça é composta por um complexo diálogo entre as personagens Inês, Estelle, Garcin que são
obrigadas a viverem juntas em um ambiente fechado. A parte mais marcante da peça acontece no
final do diálogo entre Inês e Garcin, quando este refletindo sobre sua condição diante da presença
e do olhar inevitáveis dos outros “todos esses olhares sobre mim... todos esses olhares me comem”,
afirma: “O inferno são os outros” (SARTRE, 2007, p.125).
Em uma de suas obras mais recentes, O paraíso são os outros, o escritor Valter Hugo Mãe
repensa literariamente essa máxima de sartriana e cria uma narrativa para mostrar o que, para Sartre,
não foi possível em sua peça teatral: o outro lado das relações com os outros, o paradoxo das
relações humanas. Assim sendo, nosso objetivo é discutirmos, de forma interdisciplinar, sobre a
formação dos vínculos afetivos a partir dessa máxima de Mãe “O paraíso são os outros”.
O olhar infantil da pequena Halla lançado ao amor é delicado e curioso, uma combinação sem
dúvida estimulante. A narrativa certeira e emocionante sobre as formas de amar é despertada no
livro do Valter Hugo Mãe O Paraíso são os outros, afinal o que há de paraíso nesse espaço particular
do constructo relacional? O amor é um sentimento paradoxal: é. simultaneamente almejado e
temido por muitos, sobre o qual há muitas possibilidades e caminhos a percorrer.
Os seres humanos são de natureza relacional e o amor que circunda essas relações afetivas
é um forte elemento de sustentação psíquica. Freud (2010) em seu estudo de Introdução ao Narcisismo,
fomenta uma discussão revolucionária sobre o Eu (Ego) e o investimento libidinal da psiquê, pois
essa ultrapassa as barreiras dos narcisismos e deposita libido em objetos, que nesse contexto é
também relações interpessoais. E com isso afirma “Mas afinal é preciso começar a amar, para não
adoecer, e é inevitável adoecer, quando devido à frustração, não se pode amar.” (FREUD, 2010, p.
20).

129
No livro O paraíso são os outros, que está em tela nessa essa discussão, é possível encontrar
diálogos importantes sobre esse amar ao inesperado, como se dá a formações relacionais afetivas e
que além do envolvimento é também um sentimento de compromisso e entrega. “O amor constrói.
Gostarmos de alguém, mesmo quando estamos parados durante o tempo de dormir, é como fazer
prédios ou cozinhar para mesas de mil lugares.” (MÃE, 2018, p. 9).
Há sempre algo que fisga para que o gostar aconteça. Esse é, sem dúvida, um grande
mistério da natureza humana. Se dispor à uma construção única de uma relação que nasce do
encontro de seres distintos é certamente um trabalho; os amantes estão diante de algo
extraordinário e singular e descobrem um com o outro e um no outro uma maneira de relacionar-
se. É justamente o íntimo inventivo dessa relação amorosa que é cultivado a importância dos
amantes entre si.

2 AMOR: UM TRABALHO DO INFANTIL


“Os casais formam-se para serem o paraíso” (MÃE, 2018, p.43). Essa é uma das
inquietações que a pequena Halla, personagem do romance de Mãe, propõe-se a pensar. A menina
se indaga sobre a construção das relações amorosas, amor que lhe parece pertencer aos adultos e
aos casais.
A sutileza da questão, sustentada por uma criança, reside na não aceitação de respostas
fáceis. O que fazem os casais que se amam? O que faz o amor com os casais? O que tem a ver o
amor com o cuidado? E a esperança? A paciência constrói o amor ou seria o contrário? Diante
dessas perguntas, Halla inventa suas respostas, suas apostas.
“Os adultos apaixonam-se ao acaso” (MÃE, 2018, p. 26) é outra percepção da garota sobre
a construção do amor. Os adultos? Para a narradora do livro, apaixonar-se por alguém é tarefa de
gente grande, coisa de tempo futuro, é preciso saber esperar e ter paciência. A ironia, presente na
obra, reside em fazer de uma questão infantil o trabalho dos adultos: “amar é um trabalho bom”
(MÃE, 2018, p. 9).
Não será o amor um trabalho do infantil?
Ao escutar as mulheres consideradas histéricas, Freud se depara com um conteúdo que
aparece nas entrelinhas do discurso, algo que remetia para além das memórias da infância, mas as
lembranças inventadas, recalcadas da consciência, narradas com amor, ódio, fantasia. Não
interessava apenas os fatos, mas o modo de o sujeito narrar-se (FREUD, 2016).

130
O infantil é aquilo que está ligado a instância psíquica, não obedecendo tempo cronológico,
não se atendo aos fatos, mas escorregando entre as palavras, revelando-se e ainda assim encoberto
com o véu da fantasia. Se a lógica de Descartes era “penso, logo existo”, ao afirmar a dimensão do
inconsciente enquanto um tempo infantil, Freud inverte a proposição ao escancarar que ali, onde
o sujeito não pensa, ele existe (FREUD, 2016).
Valter Hugo brinca com essa máxima ao propor, através das indagações de Halla, que, ali,
onde o sujeito se vê encruzilhado na própria fantasia, despindo verdades para bordar invenção, é
que é possível amar. Quem ama é o sujeito do infantil. “O amor é um sentimento que não obedece
nem se garante” (MÃE, 2018, p. 26), afirma a narradora. Caetano Veloso, certa vez, cantou algo
parecido ao dizer “E vê só que cilada o amor me armou/Eu te quero e não queres como sou/Não
te quero e não queres como és/Ah! Bruta flor do querer51”.
O amor escapa ao sujeito que ama porque nasce ao caso do infantil e se endereça ao ser
amado como demanda de mais amor. Lacan, no Seminário 20, afirma “porque o amor demanda o
amor. Ele não deixa de demandá-lo” (LACAN, 1955, p.13).
A pequena Halla parece dar-se conta disso “Os casais são criados por causa do amor. Eu
estou sempre à espera de entender o que é. Sei que é algo como gostar tanto que dá vontade de
grudar” (MÃE, 2018, p.16). Já não importa se perto, porque mesmo o tão perto é longe, é o desejo
de ter o outro grudado em si, feitos uma só carne. Uma vontade que esbarra na impossibilidade.
Não é possível fazer de dois, um só. Ainda assim, é na tentativa que o sujeito deixa aparecer os
enigmas da identificação com o outro. O amante ama, no ser amado, aquilo que lhe remete ao seu
próprio narcisismo (LACAN, 1985). O brilho que salta aos olhos do amante revela, não o acaso da
paixão, e sim, um sujeito enamorado com a sua própria fantasia de amor infantil.
É por esse traço singular, único, que a relação entre os amantes se dá na ausência da
completude. O amor enlaça no embaraço o desencontro dos enamorados. O diz-encontro que
aparece na falta. Anne Carson, em seu livro chamado Eros, escreve que há “algo de puro e
indubitável na noção de que eros é falta” (CARSON, 2022, p. 31). Para a escritora, a noção de amor
se liga ao impossível da realização do desejo, ainda que convoque o desejo ao movimento.
A relação, feita pela pequena Halla, entre amor e trabalho atualiza essa dimensão do amar
que suscita ao amante investimento, libido, aposta, lançar-se ao mar e narrar ao outro sua fantasia,
sua falta e sua incompletude. Nessa artimanha, não são os sujeitos que se movimentam, o desejo é
que dança e se lança conjugando o verbo, “eros é verbo” (CARSON, 2022, p. 38).

51 VELOSO, Caetano. O Quereres. Alemanha: Polygram: 1984. Vinil, 3:11min.

131
A narradora parece estranhar as respostas que encontra para suas inquietações e afirma
“Aguardarei desconfiada. Não aceito as coisas às pressas. Preciso de pensar” (MÃE, 2018, p. 53).
Sendo o amor um trabalho infantil, resta sobre um ele um não saber, um mistério, um véu, como
cantou Chico Buarque: “Não se afobe, não /Que nada é pra já /Amores serão sempre amáveis
/Futuros amantes, quiçá /Se amarão sem saber /Com o amor que eu um dia /Deixei pra você” 52.

3 OFERTO-TE MINHA FALTA

O encontro entre duas diferenças é um evento, algo contingente, surpreendente [...]. O amor não é simplesmente o encontro e as
relações fechadas entre dois indivíduos e, sim, uma construção, uma vida que se faz [...]
(Alain Badiou)

Existe uma liga que dá substância à aproximação de pessoas: é justamente o amor, nas suas
diversas expressões e maneiras de existir que faz esse laço de união e bem querer. Diz Halla que o
amor é “algo como gostar tanto que dá vontade de grudar. Ficar agarrado, não fazer nada longe.
Os casais são isso: gente muito perto.” (MÃE, 2018, p. 16). E acrescenta:

Reparo desde pequena que os adultos vivem muito em casais. Mesmo que não
sejam óbvios, porque algumas pessoas têm par, mas andam avulsas como as
solteiras, há casais de mulher com homem, de homem com homem e outros de
mulher com mulher. Depois, há casais de pássaros, coelhos, elefantes, besouros.
[...] tudo por causa do amor (Mãe, 2018, p. 9).

Lacan (1995) nos fala que se ama o outro justamente na dimensão da falta, no amor se
oferta exatamente o que não se tem. Os amantes ofertam suas faltas e o gesto torna-se ponto de
partida para construção relacional. A psicanalista Ana Suy Kuss em seu livro de contos Não pise no
meu vazio, discorre sobre como nos apaixonamos pelos furos. “Amar é permitir que o outro brinque
com os seus vazios.” (KUSS, 2017 p.110). Amar é dar as suas faltas e dessa forma estar disposto a
amar o outro em sua existência igualmente faltosa.
Clarice Lispector também nos adverte sobre a falta no amor. No conto O ovo e a galinha há
um recorte sobre o amor onde é possível reafirmar que o sentimento amoroso é de natureza faltosa,

52 BUARQUE. Chico. Futuros Amantes. São Paulo: BMG, 1991. Cd. 3:31min

132
tal como a condição humana e ainda mais, é preciso sempre reinventar o amor, não tendo
definições prontas para ele. Estar aberto a essa ideia radical é necessário para experienciar o amor.

Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor,


porque amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder
todas as outras ilusões. Há os que se voluntariam para o amor, pensando que o
amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza.
Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor
(LISPECTOR, 1998, p.55).

Compreendendo que não existe satisfação plena para o desejo, pois este é metonímico,
desliza furos ou vazio dos objetos substitutos, jamais sendo satisfeito por completamente. Tendo
em vista que a satisfação totalitária não é possível, pois a sua realidade é apenas psíquica. Por meio
da metaforização do desejo que só é expresso com a condição de que algo dele se perca. Tendo em
vista que, a linguagem não incorpora a totalidade do desejo, é possível observar o amor como uma
aposta para transformar o desejo em demanda, concedendo a esse encontro uma satisfação parcial
do desejo (KUSS, 2019).
A maneira como somos acometidos pela paixão e pelo amor é de uma dimensão
inconsciente, por mais que seja elaborado um check list rebuscado do que seria uma parceria amorosa
ideal, o sentimento do afetivo, de fato, não obedece ou garante que essas fantasias sejam atendidas.
Os adultos apaixonam-se ao acaso, ainda que façam um esforço para escolher
muito ou com muita inteligência. Já aprendi. O amor é um sentimento que não
obedece nem se garante. Precisa de sorte e, depois, empenho. Precisa de respeito.
Respeito é saber deixar que todos tenham vez. Ninguém pode ser esquecido.
(MÃE, 2018, p. 26)

Badiou (2013) expõe a ideia que amor é um encontro de dois que seguem sendo Dois e não
o Um. O mundo passa a ser visto, experienciado e praticado pela radicalidade contida no encontro
das diferenças, sendo a relação uma construção duradoura feita pelo casal a seu modo, sustentando
as individualidades e elaborando uma forma de viver a dois, para o filósofo, essa relação amorosa
advinda da diferença e não da identificação, é como uma aventura obstinada que não desiste no
primeiro obstáculo, uma construção que necessita de tempo, investimento e muito trabalho. Mas
como nos ensina a personagem da Halla “amar é um trabalho bom. A minha mãe diz.53”

53 Ibdem

133
4 AMORES DE HOJE
Nos tempos do capitalismo tardio, o apaixonamento vem ficando cada vez mais raro, e
alguns filósofos e sociólogos tentam explicar o “porquê” das pessoas se apaixonarem tão raramente
hoje em dia. A paixão tem se tornado cada vez mais rara devido ao “desaparecimento do outro”
que surge junto com o narcisismo extremo que vem transformando profundamente nossa
sociedade atual (STROMQUINT, 2021).
Em nossa sociedade se estabeleceu uma fantasia em torno das relações amorosas, com o
estabelecimento da união os dois sujeitos abandonariam sua singularidade e passariam a ser um só,
fortalecendo o ideal de amor perfeito e até mesmo das ditas “almas gêmeas”. Diante da cultura do
consumo, existe a promessa de aprender a arte de amar à semelhança do uso das mercadorias, vive-
se à procura do produto e do amor perfeito, o prazer imediatista e sem esforço. Com isso, tudo
leva a marca da precariedade, dos produtos de consumo: celulares, automóveis e televisores até
vínculo empregatício e casamento (BAUMAN, 2004).
O amor pela semelhança é a exaltação social consumista, o relacionamento como um bom
negócio. Mais uma vez Halla em suas indagações sobre as relações, expões o quanto a diferença é
preciosa e característica humana. “As pessoas são tão diferentes. Aprecio muito que o sejam. Fico
a pensar se me acharão diferentes. Adoraria que achassem. Ser tudo igual é característica de azulejo
na parede e, mesmo assim, há quem misture” (MÃE, 2018, p.32)
Esse amor na sociedade “racional” prediz que amamos quando encontramos pares
perfeitos ideais, e se esquece que o amor está para sustentar as diferenças. Como o próprio Valter
Hugo Mãe nos traz: ser tudo igual é característica de azulejo. Como já dito anteriormente, concluir
o check list perfeito não é garantia que o amor irá acontecer.
Em tempos onde o outro se tornou um bem de consumo o amor está cada vez mais distante
das relações, tendo em vista que tal sentimento está para além do nosso narcisismo, amar seria
justamente fazer esse movimento em direção ao novo, pois o amor pode ser entendido como um
convite para que o sujeito saia do próprio gozo (KUSS, 2015).
Na sociedade capitalista abordada por Liv Stromquint (2021) as pessoas não são mais
amadas e sim consumidas, a racionalização anda na contramão do amor, que por muitas vezes já
escancarou não ser dos sentimentos mais inteligentes. É preciso compreender que “O amor é um
equívoco que dá dignidade à vida.” (SUY, 2022, p. 109).
O universo íntimo relacional deve ser visto com maior delicadeza e empenho, para que
relações reais possam acontecer é preciso entrar devagar no território do outro. O amor que reside

134
no olhar, em escutas longas e atentas, reconhecer erros e acertos, essa pode ser uma boa forma de
construir continuamente uma relação, afinal, “o amor também é namorar com cuidado” (MÃE,
2018, p.11).
5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A obra de Valter Hugo Mãe, O paraíso são os outros, é uma narrativa que nos faz revisitar a
máxima sartriana, ao mesmo tempo em que nos faz refletir sobre nossos próprios erros, pois para
ele “Só crescemos quando reconhecemos os nossos erros” (MÃE, 2014, p.8), algo caro as
personagens de Entre quatro paredes.
Para Mãe, as nossas relações precisam ser reinventadas constantemente para não se
tornarem infernais: “invento a felicidade para compor todas as coisas e não haver preocupações
desnecessárias” (MÃE, 2014, p.10), porque inventar é uma forma de não aceitar a fatalidade das
coisas.
Para o autor, o inferno é viver sozinho e sem amar, já que nossa humanidade não começa
em nós e sim em nossas relações com os outros. Amar é difícil, dar trabalho, é uma condenação
que salva, pois sem amar viveremos o inferno da solidão. Mesmo que o olhar e o julgamento dos
outros sobre nós pese é inevitável o convívio com eles. Somos seres de relações. Portanto, não se
trata mais do olhar dos outros sobre nós, mas de como nós nos olhamos nesse olhar dos outros.
Os outros não são o inferno. Os outros são nosso paraíso, porque “a nossa felicidade depende de
alguém” (MÃE, p.11). Quando entendemos melhor isso, compreendemos melhor a beleza de ser
e conviver com os outros. Se estamos todos nós condenados a convivermos, essa condenação
também nos salva. É no inferno que descobrimos o paraíso. Sobretudo, quando descobrimos que
“o importante é desenvolvermos coisas boas, das de pensar, sentir ou fazer” (MÃE, 2014, p.10).

REFERÊNCIAS
BADIOU, Alain.; TRUONG, N. Elogio ao amor. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.

CARSON, Anne. Eros o doce-amargo. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022.

FREUD. Sigmund. Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2016.

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2010 pp.37-
68.

135
KUSS, Ana Suy. Não pise no meu vazio. São Paulo: Patuá, 2017.

KUSS, Ana Suy Amor, desejo e psicanálise. Curitiba: Juruá, 2019.

LACAN, Jacques. O Seminário livro 4. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1995.

LACAN, Jacques. Seminário 20 mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LISPECTOR, Clarice. O ovo e a galinha. In: Felicidade clandestina: contos, p. 49-59. 1 ed. Rio
de janeiro: Rocco 1998.

MÃE, Valter Hugo. O paraíso são os outros. Rio de Janeiro: Biblioteca azul, 2018.

MÃE. Valter Hugo. O paraíso são os outros. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

SUY, Ana. A gente mira no amor e acerta na solidão. São Paulo: Planeta do Brasil, 2022.

STROMQUIST, Liv. A rosa mais vermelha desabrocha: o amor nos tempos do capitalismo
tardio ou porque as pessoas se apaixonam tão raramente hoje em dia. São Paulo, SP: Quadrinhos
na Cia, 2021.

136
As nuances do amor familiar na construção temporal
da obra “Pequena coreografia do adeus”, de Aline
Bei
Yasmin de Andrade Alves1
Sofia Fidélis de Lisboa2
Universidade Federal da Paraíba. yasminandradealves99@gmail.com
Universidade Federal da Paraíba. sofiafl@gmail.com

RESUMO: O trabalho presente busca interpretar e entender as nuances do amor familiar e suas
manifestações em “Pequena coreografia do Adeus” (2021), a fim de acompanhar a vida da protagonista Júlia
e a influência desse fenômeno na construção temporal da obra. Aline Bei traz, através da narrativa, o
desenvolvimento de uma estética relacionada à dança, perpassando pelas fases da vida, tais como a infância,
a adolescência e a vida adulta. Ao começar lentamente com a infância, a narrativa apresenta rupturas por
meio das relações amorosas dentro da vida familiar das personagens, demarcada por melancolia, violência
psicológica e carência afetiva. Progressivamente, cria-se um espaço que exibe as feridas que perduram no
corpo e na mente. Dessa maneira, este trabalho pretende, partindo de Irigaray (2017), desvendar os
desenvolvimentos narrativos, com vistas ao tempo, associando-os às relações amorosas, pois, sendo o amor
familiar a maior influência da imagem que a personagem tem de si mesma e de sua vida, entende-se que ele
também exerce força sobre a dança do tempo e sobre o silenciamento feminino. Busca-se, portanto, utilizar
os estudos de Bourdieu (2023), Gilbert e Gubar (2017), Collins (2019), Ribeiro (2019), Scott (1990) e Rosa
(1998).
Palavras-chave: Aline Bei; amor familiar; literatura; autoria feminina.

Introdução
A literatura brasileira de autoria feminina contemporânea está ganhando cada vez mais
espaço ao dar voz para autoras que exploram temáticas há pouco tempo discutidas. Pode-se citar
como exemplo a escritora Carla Madeira, com sua obra Tudo é Rio, cuja trama perpassa a violência
doméstica, o ciúme doentio, num movimento de denúncia às “formas de amar”. Nesta obra,
observa-se como muitas relações foram, por um longo período, tratadas como normais, sobretudo
aquelas que existiam em detrimento da felicidade de uma das partes. Na mesma direção,
encontramos Aline Bei, escritora da obra selecionada como corpus neste estudo, Pequena Coreografia
do Adeus (2021), que coloca em questão o silenciamento sofrido pela mulher desde a infância, muitas
vezes demarcando a forte influência das relações familiares no próprio desenvolvimento, o que

1 Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. Possui graduação
em Letras (Língua Portuguesa) pela mesma instituição.
2 Graduada em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade Federal da Paraíba.

137
inclui as maneiras de pensar, a personalidade, as tomadas de decisão, a autoimagem e a noção de si
mesma.
A obra é dividida em três partes – Júlia, Terra e Escritora – sendo cada uma delas
relacionada a uma parte da vida da personagem principal, Júlia, partindo da infância e seguindo até
a fase adulta. Dessa maneira, pretende-se analisar o silenciamento presente na construção temporal
da narrativa, considerando que o leitor fica diante da história de vida de uma mulher, demarcada
por diversas situações de violência simbólica. Neste ponto, caberá analisar a solidão presente nas
formas com as quais Júlia se relaciona, aspecto que reflete uma experiência nitidamente feminina,
dado o contexto androcêntrico das relações em questão, sobretudo familiares. Para tal, serão
desenvolvidas as nuances da relação entre dominantes e dominados e como a violência simbólica
é um fator crucial no desenvolvimento e no andamento da vida das mulheres (Bourdieu, 2023).
Seguindo adiante, serão observados os fatores de ruptura que contribuem nas relações
amorosas dentro da vida familiar das personagens, posto que todas elas, incluindo a figura paterna,
carregam melancolia, resquícios de violência e carência afetiva. O conceito de melancolia será
desenvolvido aqui como um sentimento de abatimento físico e moral, não sendo categoria analítica
para maiores definições. Para a análise, o sentimento melancólico é levado em consideração através
da falta de impulso emocional das personagens e da desmotivação por causa da solidão,
principalmente, e do abandono. A fim de limitar a definição desse sentimento, a pesquisa não
adentra nas questões psicopatológicas, mas, sim, na influência das ações provenientes desse
sentimento nas relações amorosas dentro do lar e na relação da personagem consigo mesma.
Diante da percepção dos aspectos direcionados às relações de gênero presentes na obra, é
preciso, também, partir de Irigaray (2017), a fim de desvendar os desenvolvimentos narrativos e a
força sobre a dança do tempo na experiência feminina. Dessa forma, Irigaray (2017, p. 82) pontua
que, ao existir um sistema binário social e psicológico de gênero, o feminino é sempre descrito como
defeito, inverso do único sexo que monopoliza o valor. Na mesma direção, a análise é pautada na
ideia de que o androcentrismo molda relações familiares. A respeito desse fenômeno, pode-se defini-
lo segundo o que pontua Llanos (2010), ou seja, uma prática comum e generalizada, que vai além
da linguagem discursiva, visto que está presente também nas práticas culturais e institucionais,
como é o caso da família. Nesse caso, constata-se que a solidão e a busca pela dança, que fazem
parte da construção temporal da narrativa, são consequências dessas dinâmicas de poder, ou seja,
uma estratégia política.

138
O silenciamento através da dança das palavras: construção político-temporal da narrativa

Na primeira parte da obra, é apresentado ao leitor o lar da protagonista e suas condições.


Sua configuração familiar é marcada pela hostilidade agressiva da mãe e pela ausência do pai, o que
tem como consequência uma vida triste e difícil, sobretudo para a criança Júlia. É na primeira parte
que a personagem encontra na dança uma forma de tentar ser boa em algo, ou ao menos ser vista
como boa/capaz. Mesmo assim, depara-se com frustrações familiares diante de sua paixão pela
dança. Na segunda parte, o leitor acompanha sua saída da casa onde cresceu, para morar sozinha,
em uma pensão próxima ao seu local de trabalho. Ao longo do caminho, Júlia encontra pessoas
que a ajudam a amenizar a sensação de falta de pertencimento, proveniente da crescente rejeição e
ausência do pai e do tratamento materno.
Aline Bei traz, em sua escrita, o desconforto da protagonista como meio de produzir
questionamentos acerca do que é família. Essa temática, do ponto de vista da autoria feminina,
pode ser ressaltada sob a perspectiva de gênero dentro da construção literária, ou seja, do uso da
linguagem, sobretudo pelas mulheres. Existe, no coletivo, uma ideia muito forte de que a
constituição familiar deve ser unida e de apoio mútuo, mas isso não configura, muitas vezes, a
realidade. A carga emocional negativa que muitos enfrentam é o que Júlia também enfrenta, e
contra o que tenta lutar na vida adulta.
Partindo da noção de gênero e do uso dessa temática no âmbito da manifestação da
linguagem, ou seja, na literatura, Nelly Furman (1978) afirma que a leitura é um processo de
discernimento de estruturas de significação em qualquer texto. Isso significa que os leitores homens
que se encontram do lado de fora, que não são familiarizados com os sistemas simbólicos
integrantes da experiência feminina, sobretudo nas obras de mulheres, necessariamente descartarão
esses sistemas como indecifráveis. Da mesma maneira, como postulam Gilbert e Gubar (2017, p.
224), ao citarem Stanley e Robbins (1977), entrar numa tradição de linguagem literária e formas
convencionais que já estão solidificadas há séculos de androcentrismo – apropriação masculina da
linguagem literária – exige um esforço de recriação dos processos conceituais por parte das
escritoras.
Assim, o silenciamento e as dinâmicas familiares, que se manifestam como dinâmicas de poder,
destacados por Aline Bei reforçam a ideia proposta por Cixous (2022), de que a linguagem encobre
um adversário invencível, visto que é gramática dos homens. Nesse sentido, é válido ressaltar que
as autoras supramencionadas pontuam três fatos a respeito da presença das mulheres na escrita:

139
(1) a história da literatura (e, com isso, a historicidade da literatura) é uma ficção; (2) na
medida em que nos ensinam a ler, nos engajamos com paradigmas, não com textos; e,
por fim, (3) uma vez que a base a partir da qual atribuímos valor estético a textos nunca
é falível, imutável ou universal, devemos reexaminar não somente nossa estética, mas,
também, os preconceitos e pressuposições herdados que informam os métodos críticos
que, em parte, moldam nossas respostas estéticas. (Gilbert; Gubar, 2017, p. 228)

Portanto, o silenciamento demonstrado na obra também se faz presente na própria história


das mulheres e sua participação na literatura. Forma-se, dessa maneira, um palimpsesto de fatores
que direcionam a leitura ao fenômeno do androcentrismo, influente, inclusive, e como dito
anteriormente, no percurso da vida da mulher, bem como é demonstrado na experiência da
personagem principal de Pequena Coreografia do Adeus. É a contínua reinterpretação do passado, que
está intimamente ligada com a contínua reinterpretação do presente sobre si mesmo (Gilbert;
Gubar, 2017). Os efeitos da obra são intrínsecos ao contexto das ações dos personagens, assim
como aos contextos da própria obra, historicamente situada e repleta de símbolos referentes às
experiências das mulheres.
Ao considerar que a leitura eficiente da obra consiste na relevância dos valores e das
concepções de mundo das mulheres, pode-se dizer que a opção pela construção narrativa por meio
de versos leva o leitor a um movimento de intensidade semântica sufocante: assemelhando-se a
uma dança, que é um dos pilares de busca pela felicidade por parte de Júlia, o mecanismo exercido
para comunicar-se com o leitor evidencia os altos e baixos, pausas e progressos, cansaços e
impulsos, através da organização formal da obra. Observa-se que, em algumas partes, a narrativa
segue de maneira fluida, ao passo que, posteriormente, ocorre o que seria uma pausa, quando tudo
desanda na vida e na mente da protagonista.
Segundo Orlandi (1997), em seu estudo As formas do silêncio no movimento dos sentidos, o
silenciamento possui diferentes abordagens, concepções e discursos dentro de uma perspectiva
cultural. O silêncio pode ser parte das emoções (também como uma forma de expressá-las), da
introspecção do indivíduo e da resistência. Nesse sentido, silenciar-se também pode ser uma forma
de resistir a um conflito, configurando-se como uma estratégia. Por outro lado, o silenciamento
coagido ou historicamente condicionado diz respeito, principalmente, às organizações sociais,
principalmente pautadas nas relações de gênero. Sendo assim silenciar-se é estrutural e socialmente
diferente de passar por um silenciamento.
As “palavras dançantes” que são encontradas ao longo da narrativa são a forma que Júlia
encontrou de poder falar algo para o outro, sendo este o leitor. Este último se faz presente na
narrativa não apenas pelo processo de leitura da obra, mas, também, pelo movimento de escrita da

140
própria personagem, que se descobre escritora e busca nas palavras um conforto para suas
experiências familiares. Esses movimentos de dança das palavras, se analisados na perspectiva da
autora Aline Bei, estão de acordo com o que Todorov menciona em A Literatura em Perigo (2009,
p. 52): “nesse momento da história, a arte encarna tanto a liberdade do criador quanto a sua
soberania, sua autossuficiência e sua transcendência com relação ao mundo”. O belo da dança das
palavras é libertário não só por ser diferente, mas por transcender a forma de comunicar.
Ainda a respeito da dança das palavras e do silenciamento, relacionado tanto à autoria
quanto à narrativa, cabe mencionar o que Bloom descreve como ansiedade de influência do artista, que
tem como base os trabalhos de seus predecessores. É neste ponto que as mulheres se percebem
“órfãs”, visto que esse modelo de história literária é exclusivamente masculino e necessariamente
patriarcal, como defendem Gilbert e Gubar (2017, p. 190). As autoras têm, portanto, uma ansiedade
de autoria. No mesmo direcionamento que Freud, acerca do desenvolvimento psicossexual
masculino e feminino, “também a teoria masculinista da ansiedade da influência de Bloom não
pode ser simplesmente revertida, ou invertida, para dar conta da situação da escritora” (Gilbert;
Gubar, p. 192). Os escritores homens, que estão inseridos na linguagem masculina e repassaram os
símbolos de uma sociedade patriarcal ao longo dos anos, simbolizam a autoridade até mesmo na
sua ansiedade de influência. Os contextos femininos retratados em obras de autoria feminina são,
portanto, transgressoras, no sentido de que não há narrativas precursoras desse ponto de vista.
Em Pequena Coreografia do Adeus, encontram-se associadas a escrita de Aline Bei e a escrita e
manifestação da personagem Júlia, ainda mais forte quando revelado o desenvolvimento da
personagem e a sua passagem de um estado de solidão dependente para um estado de solidão
independente, momento em que há a compreensão de seu entorno e de suas questões mais
profundas. Júlia passa pela experiência de uma linhagem matrilinear perdida, em que não há em
quem se inspirar, fato que resulta na sua opção pelo isolamento da família.
É pertinente explicitar que sua mãe, uma mulher que também passa pela situação de
abandono (do marido), materializa a imagem da mulher “histérica” de que tanto a psicanálise falou
no século passado. Mesmo com momentos de demonstrações afetuosas, a mãe de Júlia é uma
mulher que passa por uma experiência de maternidade conturbada, o que tem como consequência
um comportamento agressivo com a filha. Ainda mencionando as estudiosas,

histeria, a doença com a qual reconhecidamente Freud começou suas investigações acerca
das relações dinâmicas entre psique e soma, é, por definição, uma “doença feminina”, não
tanto por derivar seu nome da palavra grega para útero, hyster (o órgão que supunha causar
esse distúrbio emocional, no século dezenove), mas porque a histeria ocorria
principalmente em mulheres na Viena da virada do século, e porque durante o século

141
dezenove se supunha que essa doença mental, como tantas outras desordens nervosas,
era causada pelo sistema reprodutivo feminino, como se a elaboração partisse do conceito
de Aristóteles de que a feminilidade era em si uma deformidade. (Gilbert; Gubar, 2017,
p. 199)

Sendo de ordem patriarcal, as mulheres foram associadas ao adoecimento, tendo como


origem a manifestação de sua sexualidade, o mesmo que ocorre com a mãe de Júlia. A reação de
violência e de revolta na experiência da maternidade, que é, por si só, uma experiência comum às
mulheres, representa um discurso que não pode ser produzido. A insatisfação com a vida
matrimonial e a maternidade reforçam o que Irigaray (2017, p. 146) menciona acerca do discurso
da mulher: “o complicado é que não pode haver nenhum ‘discurso da mulher’ produzido por uma
mulher, e que, além do mais, falando estritamente, a prática política [...] é de um canto a outro
masculina”. Da mesma maneira, a maternidade também é ditada por homens e é vítima do
androcentrismo. O mutismo é propiciado nesse contexto, de forma que “a mulher não existe senão
como excluída pela natureza das coisas, que é a natureza das palavras” (Irigaray, 2017, p. 102).
Corroborando, então, com o que foi explanado anteriormente, tanto a mãe de Júlia quanto
a própria Júlia passam pelo silenciamento provocado e compulsório. Além disso, as experiências
amorosas, sobretudo as institucionalizadas, como é o caso da família, demonstram ser firmadas
sobre o androcentrismo, confirmando-se como dinâmicas de poder. Na obra em estudo, Júlia
exterioriza seus sentimentos e pensamentos em seu diário, único lugar que sente ser ela mesma.
Narrando suas emoções mais intensas, a linguagem poética determina a comunicação e a forma de
expressão, exibindo uma necessidade de ter o carinho dos pais e a expectativa de que tudo pode
mudar quando os dias são bons. Situada nessa configuração, Júlia não é apenas uma filha que passa
por situações de abandono, mas, também, é uma mulher em formação em um mundo cuja realidade
é de exploração material, física, emocional e psicológica, quando se tratando de mulheres:

A mulher, portanto, está uma situação de exploração específica em relação ao


funcionamento das trocas: sexuais, mas, de maneira mais generalizada, econômicas,
sociais, culturais. Ela não “entra” nelas a não ser como objeto de transação, a menos que
aceite renunciar à especificidade do seu sexo – cuja “identidade” lhe é, aliás, imposta
segundo modelos que lhe permanecem estranhos. A inferioridade social da mulher
reforça-se e complica-se pelo fato de que ela não tem acesso à linguagem, a não ser pelo
recurso a sistemas “masculinos” de representação, que a desapropriam de sua relação
consigo própria e com as outras mulheres. (Irigaray, 2017, p. 97).

A confusão dos seus sentimentos e a contradição que sente acompanha a narradora-


protagonista por todo o livro, pois, ao mesmo tempo em que queria uma família, ela não se sente
segura com as agressões verbais da mãe nem protegida pela figura paterna. Este último tenta de
tudo para se manter o mais ausente possível, ocasionando mais uma relação de subordinação em

142
detrimento da necessidade da filha. A única figura masculina ao longo de toda a infância de Júlia é
o pai, que a faz se sentir invisível e diante de uma disputa matrimonial entre pais que optaram pelo
divórcio. Ambos a utilizam como maneira de atacar um ao outro.
No início da trama, percebe-se que Júlia inicia sua dança sendo exposta à infelicidade, num
momento em que, ao estar brincando com uma amiga no parque, encontra o seu pai sorrindo e
sendo feliz com outra mulher:

Sabe, Pai
te ver andando com aquela Mulher na praça
me fez entender
que você saiu de casa porque a nossa casa
ou seja a Mãe
era um lugar inóspito para você derramar o seu amor
uma terra infértil, não chove
pelo contrário, o sol torra cada pedaço de vida de um jeito
que não sobra nada no horizonte e ainda assim
eu nasci (Bei, 2021, p. 18)

Essa invisibilidade sentida pela protagonista demonstra que ela assiste à vida dos outros
através de uma janela, como se fosse uma espectadora da própria vida que não tem voz para se
expressar, porque qualquer coisa que possa dizer pode ser um motivo para seu silenciamento, como
é perceptível neste trecho:

foi quando Eles atravessaram a rua como se Dançassem


sumiram ensolarados
eu invisível...
mas
pra mim eles ficaram duas estátuas no meio da praça:
uma mulher de beleza cinematográfica
e
um homem feliz que era meu pai sempre triste quando estava ao meu lado
eu quis correr
atrás deles … (BEI, 2021, p. 14)

Assim, é cabível retomar o conceito de androcentrismo proposto por Llanos (2010). A autora,
além de afirmar que esse fenômeno é uma prática que vai além da linguagem discursiva e perpassa
os diferentes setores sociais, sobretudo as culturas e as instituições (incluindo a família), determina
que esse fator produziu um determinado tipo de sujeito, que deu voz a si mesmo e passou a
representar o homem universal, causando a exclusão ou a interdição de outras vozes, ou seja,
marginalizando ou desqualificando outras concepções de ser humano.
O androcentrismo configura-se, então, como uma dinâmica de poder, o que faz das
instituições alvos dessa dinâmica. A fim de desviar disso, as mulheres podem estabelecer estratégias

143
políticas, incluindo a priorização de imagens e de símbolos que contornassem as representações
simbólicas e os conceitos normativos que exercem poder na produção do gênero, como afirma
Scott (1990). Portanto, quando diante de uma personagem que utiliza a palavra e o discurso em
movimento, especialmente ao entregar ao leitor a experiência da ausência de relações de amor no
círculo familiar, é possível identificar uma voz contra-hegemônica, nos termos de Djamila Ribeiro
(2019), ou seja, um discurso potente que é construído a partir de outros referenciais e que tem o
objetivo de pensar outras possibilidades de existência que vão além do regime dominante.
As experiências de silenciamento, abandono e conflitos nas relações familiares de Júlia, ao
ser exposta no movimento das palavras dançantes, ressaltam a posição da personagem de atribuir
à palavra a sua formação como ser feminino e de demonstrar como as relações amorosas são parte
de sua autopercepção como mulher na vida adulta. Sob outra perspectiva, poder-se-ia dizer que
esse ponto presente na obra segue o que Patricia Hill Collins (2019) defende acerca da autodefinição
das mulheres. Segundo essa autora, quando as mulheres falam por si mesmas e se autodefinem, a
sua voz se torna uma estratégia política de enfrentamento da visão colonizadora. Sendo assim, são
vozes silenciadas que produzem saberes transgressores, insurgentes, que protagonizam novas
narrativas. Estas, por sua vez, constituem-se como práticas discursivas alternativas, visto que estão
imersas num sistema simbólico ressignificado e exercem poder positivo sobre a subjetividade feminina,
nos termos de Braidotti (2004).
Para entender a proximidade e o distanciamento, tanto das relações interpessoais quanto
nas relações entre a protagonista consigo mesma, a literatura apresenta personagens que
representam papéis exercidos na sociedade, ou papéis de gênero. Conforme defende Rosa (1998),
a literatura expõe situações sociais verossímeis com a realidade, revelando o comportamento
humano de acordo com suas vivências e com o seu contexto de vida. Esse não é, entretanto, um
critério essencial. Sabe-se que a literatura diz mais respeito ao indivíduo do que, necessariamente,
à realidade. A criação de uma ambientação introspectiva através da narrativa é, desse modo, um
dos recursos que a escritora utiliza para que o leitor entenda a personagem. Ao reproduzir os
pensamentos, as dúvidas, os questionamentos, o leitor compreende os valores do eu feminino na
obra, capturando interações sociais, econômicas e culturais.
Desde a infância, o que Júlia entende pelo relacionamento dos pais é resumido em dor. Para
ela, as relações pessoais podem ser dolorosamente trágicas e destrutivas. Esta é uma maneira de se
pensar conhecida pelas mulheres, considerando a violência simbólica a que estão sujeitas no sistema

144
androcêntrico. Ela busca, através do seu silêncio, algum sinal de afeição, algo que diga que ela é
amada e isso faz com que se agarre a migalhas de amor para se sentir vista:

Quando pequena, por exemplo, eu tinha medo


de Sombra
gritava
da cama
e minha mãe dizia: é você, Júlia. a sombra é você. (BEI, 2021, p. 133)

Quando tenta expressar suas vontades, Júlia nunca é ouvida, resultando no sentimento de
diminuição interna e minimizando seus sentimentos e ações. O medo que sente em dizer algo para
a mãe perdura por grande parte da vida de Júlia; quando a figura materna se ausenta por um tempo,
o primeiro pensamento da protagonista é: “juro que não seria má ideia se ela morasse mesmo por
lá” (Bei, 2021, p. 65).
A violência simbólica a que estão sujeitas as mulheres pode ser desenvolvida, aqui, através
do que Bourdieu (2023) define como dominação masculina. Segundo o autor, é na dominação
masculina que se encontra o “exemplo por excelência desta submissão paradoxal”, que resulta
daquilo que ele chama de “violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias
vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do
conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última
instância, do sentimento” (Bourdieu, 2023, p. 12).
Ao adentrar no aspecto da construção simbólica, Bourdieu (2023, p. 45) afirma que essa
construção “não se reduz a uma operação estritamente performativa de nominação que oriente ou
estruture as representações”. Indo além, “ele se completa e se realiza em uma transformação
profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de
construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo [...]” (Bourdieu,
2023, p. 45). É interessante mencionar que um dos aspectos diferenciais de gênero na perspectiva
da dominação masculina é o silêncio. Segundo Orlandi (1997), existem duas categorias de silêncio:
o silêncio fundante e a política do silenciamento. O primeiro é definido com uma relação entre silêncio e
significação, isto é, não se configura pela ausência de som e, sim, pelo que está dentro das palavras.
Com isso, podemos dizer que Pequena Coreografia do Adeus é uma narrativa configurada por este
primeiro tipo, pois todos os não ditos são contemplados pelo abandono e solidão, que é uma
experiência fruto da dominação:

[...] confesso que isso me machucava cada vez menos.


era quase melhor falar com a folha

145
que apenas escutava
silenciosa, mas atenta
quente
e sempre receptiva à minha dor. (Bei, 2021, p. 85)

Nesse caminho, Young (1982) define a solidão como a ausência de satisfação nos
relacionamentos. Desse modo, entende-se que as relações consigo mesmo e com os outros são
validadas para que haja uma identificação da solidão, havendo ausência de intimidade e de
proximidade com o outro.
Mesmo os solitários mais convictos falam de um sofrimento pela falta de um
companheiro, e de como é penoso não ter ninguém ao lado quando o telefone toca de
madrugada; e ainda, o quanto receber uma notícia ruim, sozinho, é desesperador.
Acrescenta-se a isso tudo, que nem sempre é satisfatório ter de pegar a agenda do telefone
e sair pelos bares para dar um jeito na vida sexual [...] ademais, revelam que é um desalento
não ter ninguém para cuidar (RUSSEL, 1984).

Outro aspecto fundamental relacionado ao silêncio está na existência de práticas silenciosas


inerentes às mulheres. Uma delas é mencionada por Bourdieu (2023): a intuição. Longe de ser um
fator da biologia do sexo feminino, a intuição feminina é considerada uma “forma peculiar da
lucidez dos dominados” e é “inseparável da submissão objetiva e subjetiva que estimula, ou obriga,
a atenção, e as atenções, a observação e a vigilância necessárias para prever os desejos ou pressentir
os desacordos” (Bourdieu, 2023, p. 58). Júlia, na narrativa, utiliza sua intuição para identificar os
movimentos da mãe, da casa e das possíveis consequências de qualquer atitude que poderia tomar.
É, portanto, uma experiência associada às relações de dominação, bem como demais estratégias
simbólicas utilizadas pelas mulheres, afinal, “mais sensíveis aos sinais não verbais (sobretudo à
inflexão) que os homens, as mulheres sabem identificar melhor uma emoção não representada
verbalmente e decifrar o que está implícito em um diálogo” (Bourdieu, 2023, p. 58).
Ainda mencionando o autor acima citado, pode-se afirmar que as estratégias simbólicas
(magia, por exemplo, ou, no caso da obra, a dança) são insuficientes para subverter a relação de
dominação e
acabam resultando em confirmação da representação dominante das mulheres como
seres maléficos [...]. É o caso, sobretudo, de todas as formas de violência não declarada,
quase invisível por vezes, que as mulheres opõem à violência física ou simbólica exercida
sobre elas pelos homens, e que vão da magia, da astúcia, da mentira ou da passividade
[...] ao amor possessivo dos possessos, como o da mãe mediterrânea ou da esposa
maternal, que vitimiza e culpabiliza, vitimizando-se e oferecendo a infinitude de sua
devoção e de seu sofrimento mudo em doação sem contrapartida possível, ou tornada
dívida sem resgate. (Bourdieu, 2023, p. 58-60)

Com isso, percebemos que a trama carrega a solidão e o silenciamento de Júlia, quando, no
estilo da linguagem, as letras menores se referenciam ao seu eu interior, dando a entender que a sua

146
voz e seus pensamentos, escritos desta maneira, mostram a minimização que ela faz consigo
mesma. As linhas que indicam o fim de cada capítulo são, pode-se dizer, o silêncio que ela sente ao
falar algo, como uma espécie de exaustão.
Portanto, ao longo da narrativa, Júlia percebe que ela só pode contar consigo própria, seja
para expressar algo ou para buscar uma espécie de consolo que não terá de terceiros. O abandono
do pai a deixa vulnerável para que a mãe se torne uma espécie de “marido”, isto é, transformando-
a em um elemento em que pode descontar a raiva, corroborando com o que Bourdieu (2023)
afirma:

parti pra cima dela


- você não cala a boca (soco) não cala essa boca (soco)
minha amiga de boca sangrando
no banco da frente
a mãe da minha amiga sangrando de raiva no banco
da frente
eu também sangraria
em breve
quando a minha mãe tirasse a Cinta
do armário. (BEI, 2021, p. 16)

Sendo assim, esses momentos de violência demonstram que a protagonista teve sua infância
corrompida pelos momentos de agressão da mãe, pelo abandono do pai e que, em algumas
situações, os comportamentos e as reações são repetidos/as, demonstrando a continuidade e
perpetuação dos símbolos demarcados pelo androcentrismo, materializados nas ações e na
violência simbólica.

Considerações finais

Considerando o exposto, é evidente que a narrativa é demarcada e finalizada com o


sentimento de perda, apesar de seu final relativamente feliz. A ausência de uma criação respeitosa
e inclusiva, assim como sua formação enquanto ser feminino, a fez querer fugir: “não, não, uma
criança tem que morar com a mãe! - mas eu não sou mais uma criança! e quando eu tinha sido?”
(Bei, 2021, p. 84). Nota-se, por fim, que a protagonista experimenta na dança das palavras como
uma forma de construir um espaço seguro para si, mesmo que haja sequelas dos tratamentos
externos e do auto-silenciamento e minimização. Dessa maneira, esses dois últimos aspectos
podem ser vistos como consequência das relações de dominação que estão presentes na vida de
Júlia, e a dança é utilizada como uma forma de estratégia política tanto na escrita de Aline Bei
quanto na construção temporal da história de Júlia, que tenta se expressar e utilizar a linguagem,

147
seja por meio das palavras ou da performance do corpo, para que, na fase adulta, não continue
presa aos moldes familiares e às experiências de desamor vivenciadas.

Referências
BEI, Aline. Pequena Coreografia do Adeus. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2021
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2023.

BRAIDOTTI, Rosi. Diferencia sexual, incardinamiento y devenir. MORA – Revista del Instituto
interdisciplinario de Estudios de Género, Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires, n. 5
(1999), pp. 8-19.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. Conhecimento, consciência e a política


do empoderamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 295-303.

GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. Infecção na sentença: a escritora e a ansiedade de autoria.


In.: BRANDÃO, Izabel. et al (org.). Traduções da cultura: Perspectivas críticas feministas
(1970-2010). Florianópolis: EDUFAL, 2017.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas:


Unicamp, 1997.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Pólen Editorial, 2019.

ROSA, S. História da Educação no Brasil: a Literatura como fonte alternativa. Texto presentado
en el IV Congreso Iberoamericano de la Educación Latinoamericana, Santiago, Chile, 1998.

RUSSELL, D., et al. Social and emotional loneliness: An examination of Weiss’s typology of
loneliness. Journal of Personality and Social Psychology, v. 46, p. 1313-1321, 1984.
SCOTT, Joan W. Gênero. Uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade.
Porto Alegre: UFRGS, v. 16, n. 2, 5-22, jul./dez. 1990.
YOUNG, J. E. Loneliness, depression and cognitive therapy: Theory and applications. Em: L.
A. Peplau &amp; D. Perlman (Eds.), Loneliness: A sourcebook of current theory, research and
therapy. New York: Wiley, 1982.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad: Caio Meira. –. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

148
Mortos de amor (2023): paixões que enlouquecem
Adriana Falqueto Lemos
Paulo Arnaud Carvalho
Rossanna dos Santos Santana Rubim

Instituto Federal do Sul de Minas Gerais - Campus Pouso Alegre, e-mail: adriana.falqueto@ifsuldeminas.edu.br
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus Avaré, e-mail: arnothor@gmail.com
Instituto Federal do Espírito Santo - Campus São Mateus, e-mail: rossanna@ifes.edu.br

Resumo: O trabalho visa a leitura crítica do mangá Mortos de Amor (2023), de Junji Ito, com vistas a
compreender como o amor se expande não convencionalmente, ou seja, de forma doentia, na narrativa em
questão. A história gira em torno de Ryusuke, que retorna com sua família para a cidade onde viveu
durante sua infância. A cidade segue a tradição de ler a sorte com estranhos nas encruzilhadas,
pedindo conselhos amorosos. Com a chegada de Ryusuke, começam os rumores, notícias sobre
garotas que estão cometendo suicídio após receberem concelhos amorosos de um belo jovem
vestido de preto que perambula pelas encruzilhadas em meio a densa névoa. Ryusuke começa uma
investigação para encontrar e parar o belo garoto da encruzilhada. A leitura crítica se sustenta
utilizando-se de teorias freudianas e lacanianas que versam sobre a paixão como projeção. Ainda, é com a
teoria de sombra e persona de Jung que conseguimos compreender as questões concernentes ao
protagonista atormentado Ryuusuke. Essa leitura, em contraponto com teorias psicanalíticas, revela novas
formas de enxergar o amor e a obra de Ito, autor que vem ganhando cada vez mais destaque no Brasil e no
mundo.

Palavras-chave: Mortos de amor; Junji Ito; Paixão; Horror; Freud.

Mortos de amor (2023) é um mangá escrito e desenhado por Junji Ito, renomado artista
japonês dedicado ao gênero de horror. Essa narrativa foi publicada, primeiramente, em 1996, de
forma seriada, em uma revista de mangás de horror voltada ao público jovem feminino (shoujo
mangá), totalizando 4 capítulos. Posteriormente, esses capítulos foram organizados e
comercializados em volume único, no ano seguinte, no formato de uma coletânea com 6 outros
contos. Em 2001, a narrativa foi adaptada para um filme homônimo, Shibito no koiwazurai, com
roteiro adaptado pelo próprio autor e dirigido por Kazuyuki Shibuya. Em 2021, a Viz Media,
editora estadunidense, publicou uma versão em inglês dessa coletânea, intitulada Lovesickness: Junji
Ito Story Collection. Tal edição recebeu o prêmio Eisner em 2022 (considerado o Oscar dos
quadrinhos), na categoria asiática de Melhor Edição dos EUA para Material Internacional.
O título original, 死びとの恋わずらい (Shibito no koiwazurai), poderia ser traduzido
como “Doença de amor dos mortos”, já que 死びと significa “morto” e 恋わずらい “problemas

149
de amor”. A escolha “Mortos de amor” é curiosa, já que a narrativa gira em torno de pessoas que,
de fato, enfrentam problemas amorosos. Assim, a “doença” desses “mortos” poderia ser
interpretada como uma paixão doentia. Lovesick, título do mangá em inglês, remete mais ao termo
“paixão” do que amor, por isso, atentamo-nos a pensar a narrativa do ponto de vista da paixão.
Para fins desta análise, ativemo-nos aos quatro capítulos iniciais do mangá em questão, que
constituem de maneira mais consolidada o que pensamos fazer parte do ideário original do autor,
quando da primeira publicação. Esses capítulos, consolidados, narram acontecimentos misteriosos
que têm lugar na cidade natal do jovem adolescente Ryuusuke, perturbado pelo passado. O
adolescente tem memórias que o revisitam de forma intensa quando ele volta a viver na localidade.
Na cidade, as jovens têm por prática cultural abordar estranhos em encruzilhadas para perguntar
sobre suas sortes, pedindo conselhos anônimos. Contudo, concomitantemente ao retorno do
jovem à cidade, inicia-se uma série de comportamentos obsessivos e suicídios relacionados a um
indivíduo identificado apenas como “o lindo garoto da encruzilhada”, e que surge sempre envolto
em forte névoa, como podemos perceber na figura a seguir.

Figura 1- Aparição do lindo garoto da encruzilhada em meio à névoa

150
Fonte: Ito, 2023 (p. 20).

Acreditamos que a prática retratada por Jinju Ito, de abordagem a estranhos em


encruzilhadas para pedir aconselhamento, está relacionada a um jogo japonês chamado Tsujiura (
辻占), que é um método de previsão do futuro shintoista (BEINORIUS, 2016, p. 108), no qual a
pessoa teria uma previsão do futuro de acordo com quem cruzasse a encruzilhada - por exemplo,
a resposta para a demanda dependeria do sexo da pessoa, se ela estava acompanhada ou não, etc.
Antigamente, adivinhos tinham barracas para atender clientes em encruzilhadas; esse tipo de prática
é detalhada em obras clássicas da literatura japonesa como o Manyoshu (Coleção das dez mil folhas),
um coletânea de poemas datada de aproximadamente 756 d.C.
A névoa que circunda toda a cidade é um elemento pictórico recorrente nas cenas do
mangá, principalmente nas representações da aparição de sujeitos em diferentes encruzilhadas.
Esses cenários nebulosos e difusos parecem deixar o protagonista Ryuusuke, a princípio,
angustiado. A neblina pode ser compreendida como forte símbolo do que não é perceptível, da
“falta de certeza”, do denso obstáculo encontrado tanto quando da busca pela verdade, quanto na
expiação do pecado da indiferença que parece perseguir o protagonista, que, no passado, deixa de
se posicionar positivamente frente a um pedido de conselho de uma mulher desesperada,
acreditando então ser responsável pelo suicídio dela.
É nesse cenário nebuloso de angústias e incertezas construído por Ito que visualizamos
mulheres apaixonadas, que tentam descobrir o futuro de suas relações amorosas - se seus
sentimentos serão correspondidos -, fazendo perguntas para o homem da esquina, ou seja, jogando
o Tsujiura. Isso evitaria que elas se expusessem aos seus objetos de paixão, antecipando a possível
recusa. Entretanto, quando em busca de apaziguar suas evidentes inseguranças e fraquezas, por
não conseguirem decidir seus próprios caminhos, essas mulheres se deparam com um indivíduo
visto como ideal de perfeição; figura longilínea e andrógina, que vai ao encontro do perfil de beleza
valorizado pela cultura dos idols (FIGURA 2), representantes da cultura pop oriental que se
destacam na música, principalmente, e que arregimentam grande número de seguidoras,
mundialmente. Enxergamos tal escolha estilística como um artifício para melhor alcançar o
público-alvo do mangá: meninas adolescentes e jovens mulheres.

151
Figura 2 - Representação andrógina do lindo garoto da encruzilhada

Fonte: Ito, 2023 (p. 68, 135 e 171).

Nossa premissa de identificação do “lindo garoto da encruzilhada” como alguém que


transita entre gêneros é ratificada pela visualização desse recorte de cenas (FIGURA 2) que
representam a entidade misteriosa. Vemos um indivíduo com silhueta alongada, com poses que
parecem pensadas, tal como um modelo em uma passarela com as mãos ocultas em bolsos e
possibilitando a percepção da leitura de movimentos corporais suaves e etéreos (em nenhum
momento identificamos cenas nas quais o lindo garoto tenha demonstrado truculência corporal);
lábios delineados e cheios; sugestão de pigmentação em olhos e lábios que indicam uso de
maquiagem; traços delicados e misteriosos, tal como a névoa que sempre o circunda.
Ocorre que o que se desdobra na narrativa de Mortos de amor, a partir da chegada de
Ryuusuke, é um desencadear de uma maldição, pois tamanha é a idealização do poder da sorte
proferida pelo “lindo garoto da encruzilhada”, essa que sempre é uma negativa do sucesso
amoroso, que as mulheres que com ele se encontram acabam por desenvolver um comportamento
obsessivo e enfatuado em direção ao seu interesse amoroso e, por fim, se suicidam. Mas tendo
morrido, não encerram consigo suas dores, permanecem perambulando pelo mundo dos vivos,

152
principalmente o do angustiado Ryuusuke, e apresentam comportamento mais intensamente
obsessivo (FIGURA 3).
Figura 3 - Morta obcecada

Fonte: Ito, 2023 (p. 125).

É interessante notar a elipse que se forma na narrativa: Ryuusuke se parece fisicamente com
esse homem que está nas encruzilhadas decidindo o futuro amoroso das pessoas, logo, foi ele quem
iniciou o processo repetido pela aparição. Quando criança, disse, sem medir o peso de suas palavras,
que uma mulher não teria sucesso amoroso. Ao acreditar na veracidade da previsão, a mulher se
suicida. Assim, esse comportamento parece estar se repetindo quando as mulheres encontram esta
aparição muito similar a Ryuusuke, e acreditam no que ele diz como se esta fosse uma
determinação. Na verdade, ali está a maldição.
Considerando esse cenário de paixão, incertezas no amor e atitudes extremas e obsessivas,
que persiste e se intensifica após a morte das jovens, a questão abordada por nós gira em torno da
forma como o amor e seus desdobramentos são retratados no mangá. Para tal, dialogamos com
teorias freudianas e lacanianas que versam sobre a paixão como projeção, e com as noções de
sombra e persona de Jung para entendermos o conflito do protagonista Ryuusuke.
A palavra paixão “vem do verbo páthein e significa ser afetado, padecer, sofrer, suportar”
(ROCHA, 2008, p. 136, destaques do autor). Segundo o autor, “[...] duas são as manifestações

153
semânticas mais importantes do páthos: o sofrimento e a paixão”. Ainda, segundo Rocha (2012, p.
266),

O apaixonado projeta, ou transfere, sobre o objeto de sua paixão, as idealizações


narcísicas de sua infância, e tem a ilusão de que, nesse objeto idealizado, está o segredo
de tudo o que lhe falta. A ilusão da completude narcísica alimenta a ideia de que o objeto
da paixão amorosa pode preencher o vazio da falta, que é constituinte de nossa existência.
Com ele, tudo se tem, sem ele, nada se tem e nada tem sentido. Na paixão amorosa,
revive-se a ilusão da completude narcísica infantil, que fazia da mãe tudo para a criança,
e da criança tudo para sua mãe. [...] O apaixonado quer a todo custo reconquistar o
paraíso perdido de sua infância.

Ou seja, encontrar o que falta no outro talvez seja o que foi apontado por Lebrun ao afirmar
que “toda paixão desde o seu despertar já infringe a lei que me constitui como ser razoável, todas
as paixões, na sua origem, já me conduzem ‘para fora de mim mesmo’” (LEBRUN, 2006, p. 25).
Afinal, se apenas podemos nos completar no outro estaremos buscando algo nosso que está fora
de nós mesmos, como proposto por Freud (apud ROCHA, 2012). Essa ideia de que o objeto de
desejo está do lado de fora também se apresenta em Lacan quando este distingue “o amor como
paixão imaginária e o amor como dom ativo. O primeiro equivale ao desejo de ser amado e nada
mais é do que desejo de captura, isto é, desejo de capturar o outro como objeto” (POLLO;
BARBOSA, 2016, p. 440). Já que está fora de quem está apaixonado, o desejo só poderia ser o de
conseguir para si, capturando e aprisionando o objeto da paixão.
Assim, segundo Azevedo (2001), uma pessoa apaixonada tem seus conteúdos
desestruturados e pode passar a se sentir invadida por pensamentos inconscientes a ponto de agir
de forma descontrolada, quase que numa vivência psicótica; “[...] com freqüência, os apaixonados
se vinculam por seus núcleos neuróticos e mesmo psicóticos produzindo uma ligação conjugal
doentia, na qual esse vínculo deve ser transformado ou rompido” (AZEVEDO, 2001, p. 10).
Retomamos então a questão do estar fora do corpo e do desejo de completar-se com o que
apenas o outro tem a lhe oferecer - ou o que lhe falta, a parte faltante que está perdida no outro e
que o fará se sentir inteiro novamente. Essa busca, porém, fará com que o apaixonado se esqueça
de quem é, de seus próprios conteúdos, e o colocará em estado de “fora de si”, ou seja, “psicose”,
“doença”, “paixão”. Os conselhos enlouquecedores da bela aparição parecem fomentar ainda mais
a sensação de paixão e psicose, na medida em que as mulheres não conseguem mais se diferenciar
do seu objeto de desejo.
Talvez por isso a narrativa parta da questão da paixão e das vicissitudes do tema - sobre a
correspondência ou não desse sentimento - para desaguar em outras searas, como, por exemplo,

154
das questões inerentes ao sofrimento pungente advindo da incerteza das coisas, das dúvidas que
permeiam a existência do ser humano. Pois, no esteio na narrativa analisada, as dúvidas e
sofrimentos baseiam-se nas relações afetivas e nos conflitos internos entre o que seria certo ou
errado e no estigma da culpa e da responsabilidade de Ryuusuke.
O sofrimento que observamos nas personagens parece nascer da incerteza de que os seus
sentimentos serão correspondidos, mas a questão do sofrimento sobre as dúvidas se alarga na
narrativa, abarcando a culpa do protagonista no seu papel como responsável pela morte de uma
mulher, que se suicida depois do que ele diz.
Outro trecho interessante da narrativa diz respeito a uma mulher que, insistentemente, pede
conselhos a Ryuusuke, e este decide dar conselhos bons para impedir que a aparição dê conselhos
e amaldiçoe as pessoas. A mulher nunca cessa de pedir conselhos, cada vez mais, seguindo o
adolescente em todos os lugares, profundamente perturbada, evidentemente imbuída de
sofrimento intenso e palpável por não saber como lidar com as suas próprias dúvidas (FIGURA
4). A busca por respostas no outro parece só fazer com que o apaixonado se distancie cada vez
mais de si mesmo, e Ito demonstra que nenhuma resposta ou atenção será o suficiente para um
indivíduo que não consegue servir de parâmetros para si mesmo, e que segue buscando sempre no
outro algum sentimento de afirmação.

155
Figura 4 - A mulher perturbada

Fonte: Ito, 2023 (p. 91).

Em Mortos de amor, as personagens estão esperando respostas - será que seu amor será
correspondido? Levando-se em consideração os postulados por Freud (apud ROCHA, 2012),
Lacan (apud POLLO; BARBOSA, 2023; AZEVEDO, 2001), e Lebrun (2006), dizemos que as
mulheres do mangá de Ito buscam descobrir se seus objetos de desejo, os sujeitos das paixões,
corresponderão aos seus sentimentos e se poderão ser aprisionados.
Na narrativa, não é possível que se tenha certeza de que o “lindo garoto da encruzilhada”,
uma aparição, deixe de ter conexão com Ryuusuke. Esse homem da neblina está sempre sorrindo
e se diverte com o sofrimento das jovens apaixonadas, e na medida em que Ryuusuke tenta evitar
que a aparição aja, ele começa a ficar parecido com o belo rapaz - sua orelha aparece furada.
Portanto, pode ser que a narrativa, desde o momento em que o protagonista surge novamente na
cidade e vê a neblina, seja uma experiência de expiação, para que o adolescente entenda o cuidado
que essas pessoas apaixonadas demandam. A fragilidade em que estão num momento de incerteza
pode fazer com que tenham atitudes psicóticas, já que acreditam que só poderão ser felizes caso
recuperem sua completude naquele outro pelo qual estão apaixonadas. Essa paixão doentia que

156
permanece viva, mesmo depois que as vítimas já morreram, faz com que se pense que elas não
conseguem encontrar pacificação. É possível ver isso na história Reishi, amiga de Midori (interesse
amoroso do jovem protagonista), que se mata por não conseguir ser correspondida por Ryuusuke.
Depois de morta, ela continua seguindo o belo rapaz da esquina, assim como outras mulheres. Ela
só consegue descansar quando o próprio Ryuusuke a acolhe e explica que ele não é o homem por
quem ela está apaixonada - o “lindo rapaz da encruzilhada”.
Ainda sobre isso, é importante notar que o capítulo em que os personagens desconfiam
que Ryuusuke seja a aparição da esquina se chama “A Sombra”, o que coaduna com a ideia de Jung.
A sombra é o lado sombrio e “rejeitado” pela pessoa, e a persona seria o lado que a pessoa toma
para si (JUNG, 2012). Assim, “a integração destes opostos, sombra e persona, irá passar por uma
aceitação de si mesmo, sobretudo daquelas áreas ou partes que não condizem com a imagem
produzida pela persona, a qual é, usualmente, uma imagem refletida de uma certa norma cultural”
(SOUZA, p. 23). Ocorre que, quando entramos em contato com algo que nos incomoda - algo no
outro que nos apresenta como incômodo, é possível que estejamos entrando em contato com nossa
própria sombra que foi sublimada (STEIN, 2006).
Assim, observamos que o grande incômodo gerado pela aparição em Ryuusuke é
claramente o contato que o protagonista tem com sua própria sombra. Da mesma forma, a
resolução desse conflito, segundo Jung, está na aceitação dos dois polos, no encontro da
conformidade com a não-conformidade. Tornar consciente o que estava oculto na sombra é o que
faz com que a narrativa se encaminhe para a conclusão, quando o protagonista conta para Midori
que ele foi responsável pela morte de sua tia. Ao aceitar sua sombra, ele é despedaçado por ela, o
que parece ir ao encontro do desfecho da narrativa de Ito ora analisada, quando Ryuusuke entrega-
se à morte e às mortas enlouquecidas de paixão, à guisa de tentar enfrentar a entidade. Podemos
perceber na atitude dele uma desistência de viver por não suportar mais a angústia da culpa e/ou a
dor pela morte da pessoa que amava, ou mesmo o proverbial sacrifício final, querendo que, com
isso, o “lindo garoto da encruzilhada” se dê por satisfeito e não mais amaldiçoe outras jovens.

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SOUZA, Marcos Bráulio de. Sombra e persona na psicologia junguiana. Trabalho de


Conclusão do Curso (Graduação em Psicologia). Universidade de Caxias do Sul, 2020. 48p.
Disponível em: https://repositorio.ucs.br/11338/9074. Acesso em: 12 jun. 2023.

STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma: uma introdução. 5ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
Trabalho original publicado em 1998.

158
O abandono do eu diante da maternidade em A filha
perdida, de Elena Ferrante

Sofia Fidélis de Lisboa


Universidade Federal da Paraíba
sofiafl@gmail.com

Resumo: O romance “A Filha Perdida”, da escritora italiana Elena Ferrante, esclarece algumas colocações
acerca da figura feminina como mãe nos tempos contemporâneos, isto é, a mulher que se divide entre a
maternidade e a liberdade diante das possibilidades para o feminino nos tempos atuais e como essa
ambivalência fez com que a protagonista, Leda, se tornasse um ser abandonado e que abandona. Ferrante a
partir da sua escrita ambienta as questões femininas através da introspecção, perpassando pelo passado da
protagonista, que abandonou suas duas filhas ainda pequenas para buscar os seus objetivos profissionais e
o presente, no qual ela desenvolve uma relação com uma mãe jovem, Nina. O desenvolvimento dessa
temática foi fundamentado na obra “As margens e o ditado”, da Elena Ferrante, que expõe seu processo de
escrita em relação a obra analisada, na teoria da Simone de Beauvoir (1970), que distingue o ser mãe e o ser
mulher, Robert Humphrey (1976) para analisar o fluxo de consciência de Leda. Sob essas óticas, tem-se
como resultado que Elena Ferrante mostra na obra a maternidade de modo visceral, no qual a mãe não se
arrepende do abandono para encontrar a si mesma e a complexidade do que é ser mulher diante das pressões
da sociedade patriarcal.
Palavras-chave: Maternidade; Fluxo de Consciência; Abandono; Feminismo.

Introdução

Este artigo propõe-se a analisar a construção do abandono do eu diante da maternidade


através do fluxo de consciência e da epifania, partindo de uma trajetória da solidão da mulher no
mundo contemporâneo até o seu momento de revelação, após uma longa narrativa de reflexões
sobre perder a si mesma após tornar-se mãe, tendo como corpus a obra da escritora italiana Elena
Ferrante intitulada A Filha Perdida (2016). Levando em consideração a segunda metade do século
XX e a coincidência do crescimento do movimento feminista, a autora começa a trabalhar na
construção do espaço e do protagonismo feminino desafiando a cultura patriarcal, que ao longo
dos anos foi e é considerada como instrumento de repressão tanto do pensamento cultural como
ideológico.
Elena Ferrante é conhecida pelo mistério que envolve a sua identidade, porém não é por
isso que ela quer ser reconhecida. Em seu livro, Frantumaglia (2003), explica que os seus livros falam
por si e não por ser quem ela é e por conta disto, temos em suas tramas mulheres que buscam se

159
afastar das imposições patriarcais para alcançarem a si mesmas e os seus desejos que por muito
tempo foram esquecidos.
Arrependimento é uma palavra que se usa muito quando se trata da maternidade. Existe
uma frase que caiu no ditado popular “nasce uma mãe, nasce uma culpa” e Elena Ferrante tenta
desmistificar esse sentimento em torno do que é ser mãe. Leda é uma das suas protagonistas que
não tem essa culpabilização dentro de si, ela não se arrepende de ter abandonado suas filhas quando
estas ainda eram pequenas. Talvez, a única culpa que a protagonista sente é de não ter feito isso
antes.
A temática que a autora traz é de mulher para outras mulheres, no qual a espera é um fator
importante na narrativa. Segundo Ferrante, no seu livro As Margens e o Ditado (2023) “narro à espera
de que, de uma escrita bem plantada na tradição, surja algo que embaralhe as cartas para que a
mulher abjeta e vil que sou encontre um modo de se fazer ouvir (p.33). Entendemos que a técnica
ferranteana é trazer o seu processo pessoal como mulher para as suas personagens femininas,
transformando a ficção em auto ficção.
O romance deste artigo começa sendo algo que se assemelha ao amor, no qual uma mulher
relembra seu passado como mãe ao observar uma jovem cuidando da sua filha pequena, mas ao
passar as páginas percebemos que é um romance de desamor. Os questionamentos internos da
protagonista nos fazem pensar que pode ser um romance de formação, no qual ela descobre coisas
sobre si que poderiam fazê-la pedir perdão para suas filhas, mas fica claro que Elena Ferrante em
seus livros não faz ninguém se formar.
Tendo essa ideia sobre maternidade, a narração ferranteana, neste artigo busca-se
compreender o mito da maternidade e como a autora constrói seus personagens para que eles se
tornem tão críveis. Perpassando por teorias como de Simone de Beauvoir sobre ser mulher vs ser
mãe, da maternidade na Itália, fluxo de consciência.

A maternidade como mito


O conceito de maternidade vem sendo difundida ao longo do tempo para dar espaço para
conversas mais atuais, no qual as mulheres, agora, possam falar sobre a maternidade real. Por muito
tempo, tinha-se como base para este conceito um discurso patriarcal, em que a mulheres são
instruídas para serem mães, mesmo muitas não tendo o “instinto materno” ou simplesmente não
querendo serem mães.

160
A luta feminista na segunda metade do século XX ajudou para que esse conceito se
difundisse, dando a chance para que as mulheres tivessem opções e escolhas em suas vidas, não
deixando que o patriarcado tivesse poder sobre si mesmas e sobre seus corpos.
Na história do feminismo, as suas fases são apresentadas em “ondas”, sendo a primeira
muito relacionada à conquista dos direitos civis e do direito ao voto, com vistas a reformas políticas.
Na segunda onda, que se passa nos anos 60, tornam-se mais relevantes os movimentos de liberação,
embarcando nas questões pautadas na sexualidade e apresentando as diferenças dos aspectos
referentes, que são: biologia, experiência, discurso, inconsciente e condições socioeconômicas.
Segundo Zinani (2015) a segunda onda “compreende a discussão do patriarcalismo”, relacionando
as problemáticas que o discurso feminista traz como ponto central para a liberação feminina. A
terceira onda do feminismo considera as discussões sobre pós- colonialismo, teoria queer,
sexualidade, entre outros.
Em A Filha Perdida, temos um indício da quebra do padrão esperado pela mulher, quando
a protagonista diz:

“Mas aquela proximidade estranha era rara. Os incômodos, os desgostos, os conflitos


delas tornavam a se impor, continuamente, e eu me amargurava, sentia culpa. De alguma
maneira, eu era sempre a origem e o ponto de fuga dos sentimentos delas. Acusavam-se
em silêncio ou gritando. Ressentiam-se não apenas da má distribuição das semelhanças
evidentes, mas também das secretas, aquelas que percebemos tarde, a aura dos corpos,
justamente, a aura que atordoa como uma bebida forte.” (FERRANTE, p. 74-75)

A relação de Leda com suas filhas nunca chegou ao ponto de completude esperado pelo
discurso patriarcado, pois sempre houve um sentimento de que algo nunca estaria ali. A
proximidade era rara entre elas como se toda aquela relação fosse pautada no sentido de
estranhamento. Mesmo que tenha tentado na primeira infância das meninas ser o ideal da figura
feminina como mãe, Leda se questiona de o porquê estar fazendo tudo aquilo, de abdicar sua vida
para ser um todo para as duas crianças.
Ferrer (2015) propõe uma visão acerca da maternidade na literatura italiana no século XX,
explicando que o significado deste tema é desenvolvido através de manifestações políticas, sociais
e culturais no país, além do desenvolvimento do feminismo no século XX, que busca uma
ressignificação no status da maternidade, revisando todo o paradigma que foi imposto tanto pela
religião católica, predominante na Itália, e pelo fascismo. A pesquisadora cita a estudiosa Giovanna
Miceli Jeffries, que explana um pouco sobre este tema:

161
Enquanto o catolicismo e o fascismo concorreram para a maternidade institucionalizada
como o único e supremo objetivo da feminilidade - com o estabelecimento subsequente
da estereotipada «mamma» italiana na cultura popular e também étnica - o movimento
de libertação e emancipação das mulheres no início dos anos setenta criticou e
desestabilizou essa imagem ao recuperar o controle das mulheres sobre seus corpos,
também como a qualidade política, privada e econômica (JEFFRIES, 1997, p. 212)

Em O Segundo Sexo (1970), Simone de Beauvoir traz o conceito do homem dominante e da


mulher dominada como algo que sempre existiu. Na antiguidade a figura feminina era vista como
algo a ser admirado, por isso a existência de esculturas, mitos como Afrodite/Vênus, a exaltação
era algo recorrente. Mas, conforme a sociedade foi avançando a mulher começou a ser vista pelo
seu sistema reprodutor, como uma matriz para a perpetuação da espécie (BEAUVOIR, 1970, p.
28).
Quando avançamos no romance percebemos que as personagens femininas, Leda e Nina,
são exemplos de uma maternidade compulsória vindo do discurso patriarcal. Pois, ao se tornarem
mães, mesmo ainda grávidas, elas afastam-se de si mesmas para dar lugar à um eu mãe. Um eu que
se distancia da personalidade que construíram ao longo do tempo para girarem em torno do outro,
segundo a filosofa francesa “o papel do macho restringe-se à fecundação”. (BEAUVOIR, 1970, p.
56).
Leda ao se tornar mãe aos vinte e três anos teve que abdicar dos seus estudos, do se tornar
mulher, para girar em orbita do bebê, a princípio por escolha dela, mas conforme a gestação e a
maternidade foram passando, os questionamentos internos começaram a crescer, pois seu marido
continuava a vida normalmente, crescendo na carreira e sendo pouco participativo na criação das
meninas.

[...] Oportunidades perdidas. As ambições ainda eram ardentes e alimentadas pelo corpo
jovem, por uma fantasia que somava um projeto a outro, mas eu sentia que meu anseio
criativo era castrado cada vez mais pela realidade das obrigações da universidade e pela
necessidade de explorar as oportunidades de uma possível carreira (FERRANTE, 2016,
p. 87).

Hélène Cixous, em 1975, escreveu um texto que encorajava mulheres a escrever mesmo
que houvesse resistência e o canônico masculino. Neste texto pode-se entrelaçar com os dias atuais
nas quais as mulheres devem pegar as suas histórias para si, suas vivências, seus traumas, para que
outras mulheres conseguissem se identificar. Elena Ferrante é uma das escritoras do mundo
moderno que traz isso, mulheres críveis e ambíguas.

162
A (in)consciência do eu feminino
Neste contexto, teremos uma ruptura de expectativas em relação à linguagem e à
abordagem que a escritora nos traz, dando ênfase ao corpo da mulher e o seu “eu” interior. Para
Hita (2002, p.340), essa desconstrução incorpora novas vertentes para a existência de uma
identidade feminina, dando local para marcadores de vivência, raça, etnia, cultura, religião,
orientação sexual, mostrando que desde os anos de 1990, a identidade da mulher vem ganhando
uma pluralidade e afastando-se de uma concepção tradicional.
Então, a partir do ponto de localização da mulher em sua determinada realidade, Braidotti
(2002) nos explica que um dos pontos para a fuga de uma concentração marcada pelo patriarcado
é a linguagem. Portanto, Elena Ferrante faz uso de uma narrativa em primeira pessoa
encaminhando-se para as regiões do consciente e do inconsciente feminino, retratando as
diferentes vivências femininas no mundo e abordando temas como a sensualidade, maternidade,
abandono, tornando o ambiente exterior como segundo plano da narrativa, esse estilo de escrita
encontramos também em Virginia Woolf, Clarice Lispector, entre outras.
Deste modo, esse tipo de linguagem e narrativa desenvolve uma nova forma de
relacionamento com o leitor, ocorrendo uma aproximação entre o leitor, autor e texto. Os textos
literários de autoria feminina, escritos por mulheres para mulheres, ganham força e voz no espaço
literário. Havendo um reconhecimento por parte do leitor sujeito feminino ao se identificar e se
auto reconhecer na obra “A vida feminina com todas as suas características biológicas e seus
contextos situacionais” (ARRIAGA, 2003, p.2). Esse novo aspecto fez com que a escritora italiana
criasse em suas obras uma consciência da realidade e dando espaço próprio para um novo tipo de
imaginário.
Ao optar pelo anonimato a autora preserva a sua liberdade de criação, sem as cobranças
externas de um reconhecimento. Com um trabalho que se aproxima da realidade, Elena Ferrante
compreende o lugar que suas protagonistas mulheres ocupam, havendo uma brincadeira entre a
identidade de suas personagens e sua própria. Em A Filha Perdida, quando sua protagonista se
abandona em pró da maternidade, esta sofre uma crise de quem ela é, qual é o seu lugar no mundo,
trazendo para o leitor reflexões do seu consciente e das recordações de uma infância sem amor.
Historicamente o sujeito feminino é enlaçado em uma posição de silenciamento, definido
pelo seu gênero e o seu papel social e sexual muitas vezes reafirmado na sociedade patriarcal como
lembrete de qual é o seu “verdadeiro” local. Em “A Filha Perdida”, temos um indício deste padrão
esperado pela mulher, quando a protagonista pensa “Ordens, gritos, insultos, um prolongamento

163
da vida nas suas palavras, como um nervo lesionado, que assim que é tocado, arranca junto com a
dor qualquer compostura” (p. 21), pois na sua consciência o seu pai não era presente por conta das
maneiras e ações da sua mãe, então Leda se moldou para que ela não ficasse sozinha que nem sua
mãe.
Portanto Elena Ferrante denuncia a necessidade de imposição da sociedade para que as
mulheres precisem mudar seu jeito para se adequar a uma figura masculina e quando estes as deixam
elas não sabem mais quem são.
Desde o início sentimos o sofrimento da protagonista, pois ela encerra o primeiro capítulo
com a seguinte frase “As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos
entender” (FERRANTE, p. 6). O que deveria ser uma viagem de férias se tornou uma provocação
de sentimentos que há muito tempo estavam guardados, havendo uma ruptura de uma linha
constante para um fluxo de consciência que se emaranha entre passado, presente e até mesmo
futuro. Freud (1899), explica que a memória não é fixa, as lembranças vão sendo construídas a
partir de uma re-transição, isto é, quando aquele fato chega nos seus pensamentos há uma
modificação do que realmente aconteceu, adaptando se a cada vez que o sujeito conta sobre aquele
determinado fato. Portanto, o tempo não se mantém em uma cronologia certa, o passado, presente
e futuro vão se misturando.
Considera-se essa ruptura da vida de Leda como ponto de partida para a introspecção da
mulher após o abandono, nos trazendo uma desestabilização de uma situação que traz desgastes
emocional e psicológico, ocasionando episódios de confusão até chegar ao ponto da epifania, no
qual há um esclarecimento e reconstrução emocional e psicológico.
Outro ponto de análise são os relacionamentos em A Filha Perdida, Elena Ferrante nos
mostra diversos tipos como: mãe-filha, mulher-mulher, esposa-marido além das relações
introspectivas como mulher-psicológico, mulher-espelho. Cada relação é um ponto em que Leda
se abre com o leitor, e o foco principal está no relacionamento da mulher com o seu próprio
psicológico, que ao longo das páginas vamos desdobrando cada vivência, cada camada de uma
mulher, mostrando um certo tipo de acúmulo que nos trouxe para aquele estado.
Por conta desta manifestação feminista acerca do tema no século XX, temos algumas
quebras de tabu que a sociedade espera nas relações entre mãe e filhos, Elena Ferrante propõem
uma realidade mais nua acerca da maternidade, ampliando a diferenças e incompatibilidade entre
mãe e filha, que nem toda relação parental é desenvolvida de forma saudável e até certo ponto toca

164
no quesito que nem toda mulher nasceu para ser mãe, desmistificando o senso maternal que
esperam que as mulheres tenham.
Neste pretexto de família, temos a relação esposa-marido, que ao longo da narrativa
percebemos o papel de gênero que nos é dado. Com o estudo formulado por Goffman (1975) e
Berger (1978), o papel feminino e masculino é determinado pela inserção de cada um na sociedade,
configurando uma abordagem tradicional e patriarcal. Baseado neste ponto, o fluxo de consciência
de Leda analisa um momento chave, no qual ela abdicou-se de si mesma por conta do seu marido.

Eu havia desejado Bianca; um filho é desejado com uma opacidade animal reforçada pelas
crenças populares. Ela chegara cedo, eu tinha vinte e três anos, e o pai dela e eu estávamos
no meio de uma árdua luta para continuarmos a trabalhar na universidade. Ele conseguiu,
eu não. O corpo de uma mulher faz mil coisas diferentes... [...] Sua vida quer se tornar a
de outro. (FERRANTE, p. 45)

Ao perder-se de si mesma após essa abdicação forçada por parte do seu marido, Leda volta-
se para a criação da base familiar, vivendo para os outros e não para si. Portanto, quando o
abandono ocorre, ela fica mais desesperada pelo fato de não saber mais qual é o seu papel, invés
do amor que sente pelo seu marido. A narrativa nos é construída parte pelo desespero dos
pensamentos de uma vida que ela não conhece, seus monólogos interiores e sua análise de certos
momentos, demonstra uma tentativa de resgatar partes da Leda da infância, adolescência e início
da vida adulta, como forma de montar uma Leda que se mantenha em equilíbrio para o presente.
A solidão pela qual a narradora-protagonista passa por consequência do abandono destaca
o processo gradual de desintegração da sua personalidade, transformando suas incertezas e
inadequações em um isolamento forçado por si mesma. Esta parte de auto isolamento e
questionamento do viés “quem eu sou”, assemelha-se com a protagonista Esther Greewood do
livro A Redoma de Vidro (1963) da escritora norte-americana Sylvia Plath, no qual o episódio
depressivo pode desencadear uma “estória silenciada” segundo Elaine Showalter. Por conta da
instabilidade mental das protagonistas, tanto Ferrante quanto Plath, mostram histórias de mulheres
depressivas cuja voz está sendo silenciada, expondo uma trama subentendida das mulheres que
lutam por uma libertação.
O modo intimista que a escritora nos traz nessa obra tem um viés de um romance
introspectivo. Esquecendo-se um pouco do todo, dos objetos sociais, para dar ênfase ao íntimo do
sujeito e dos seus sentimentos conflitantes, das suas objeções, aproximando o leitor à reprodução
dos pensamentos do indivíduo protagonista. Esse tipo de narrativa na literatura pode ser chamado
de fluxo de consciência, explorando uma temática psicológica e abordando as diversas
complexidades que o ser humano é. O fluxo de consciência não vai haver fronteiras entre a voz do

165
narrador e o seu eu íntimo, os desejos, falas e ações vão se misturando em um jogo de desordem,
apresentando uma estrutura caótica dos acontecimentos durante o livro.
William James (1979) é um dos percussores da expressão “fluxo de pensamentos” na psicologia,
no qual explica que este fluxo é um processo ativo da consciência em organizar informações
constantes. Quando passamos para a literatura, esta expressão deriva-se, sendo nominada de “fluxo
de consciência”, que tem como proposta categorizar um tipo de escrita, de obra, considerando a psique
como tema central daquele conteúdo.
Robert Humphrey (1976) em seu livro O Fluxo da Consciência (um estudo sobre James Joyce, Virgínia
Woolf, Dorothy Richardson, William Faulkner e outros) afirma que o escritor que se propõem a escrever
com este estilo precisa buscar dois ideais:

1) representar a verdadeira textura da consciência, e (2) destilar algum significado para


o leitor. Isto constitui um dilema para o escritor, porque a natureza da consciência
subentende um senso de valores particular, associações particulares e relacionamentos
particulares, peculiares a essa consciência; por isso, é mais enigmática para uma
consciência de fora. (p.58).

Em A Filha Perdida, vemos que Elena Ferrante busca representar a consciência de Leda,
uma mulher que não se culpabiliza por suas escolhas sejam escolhas do passado ou do presente.
Buscando os “porquês”, a reclusão do mundo, querer saber do outro. Neste trecho do livro, temos
nosso primeiro contato com a consciência da narradora-protagonista, dando imersão aos seus
pensamentos e começando a história.

Senti-me ansiosa. Dizia a mim mesma: vá mergulhe; devem ter esquecido a bandeira no
mastro. E, enquanto isso, eu ficava na beirada testando cuidadosamente à água com a
ponta do pé. Minha mãe, só de vez em quando, aparecia no topo das dunas e gritava
comigo como se eu ainda fosse uma menina: Leda, o que você está fazendo? Não viu a
bandeira vermelha? (FERRANTE, p. 6)

A criação de uma ambientação introspectiva através do monólogo interior é um dos


recursos que a escritora utiliza para que o leitor entenda a personagem. Ao reproduzir os
pensamentos, as dúvidas, os questionamentos, Leda dirige-se a si mesma registrando o mergulho
em seu eu interior, enfim mostrando tudo que o que ela passou e está passando diante do contexto
que lhe é posto.
Ao passar por esse mergulho de introspecção e fluxo de consciência ao longo dos meses
após o abandono do seu marido, vemos Leda aos poucos passando por uma epifania. A epifania
vem do grego “epiphaneia” (epi = sobre; phaino = aparecer, brilhar) e tem como significado
aparição ou manifestação. No caráter literário este termo segundo Affonso Romano de Sant’Anna
(1973, p. 187) é dado como “relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira,

166
mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação.” Ou seja, ao passar por um
episódio revelador a protagonista é iluminada por uma revelação, saindo do transe que a prendia
em sua consciência, percebemos a epifania de Leda neste trecho:

Eu mesma estava brincando naquele momento, uma mãe não é nada além de uma filha
que brinca, aquilo me ajudava a refletir. Procurei minha pinça de sobrancelhas, tinha algo
na boca da boneca que não queria sair. Recomeçarei a partir daqui, pensei, desta coisa
(FERRANTE, p. 152)

Nessa perspectiva pode-se dizer que Elena Ferrante utiliza-se da epifania como objetivo
principal para a “redenção” de sua protagonista. Pois, após passar por momentos de escuridão e
sem ter a noção da realidade que estava voltada, Leda acorda numa realidade em que ela não faz
parte da família que se aproximou na praia, a boneca que sequestrou não é sua e nem dá suas filhas,
e a epifania provocará uma mudança radical em si mesma, para que ela consiga voltar a si mesma
e tentar botar ordem em sua realidade.

Conclusão

A partir disto podemos traçar uma linha de estudo que parte do fluxo de consciência de
uma mulher abandonada, perpassando pelo seu passado, uma infância sem amor materno, um
casamento jovem, maternidade. Com todo esse histórico que nos é mostrado com base na mente
desta mulher para entender suas atitudes, quem ela se tornou e quem ela deixou de ser, em uma
linha descontínua de pensamentos, chegamos ao ponto da epifania no qual tanto a mente da
protagonista quanto a sua realidade começam a ganhar uma nova organização.
Com um viés baseado no protagonismo feminino no mundo contemporâneo, Elena
Ferrante mostra em sua obra os estigmas ainda enraizados na sociedade patriarcal, revelando as
inquietações, cobranças, lugar de pertencimento, trazendo o sujeito leitor a repensar os surgimentos
das novas identidades femininas como forma de discutir o papel de gênero, sexo e feminismo.
As mulheres representadas na obra A Filha Perdida vivem papéis reforçados pelas relações
que elas assumem ao longo da vida com seus maridos, amantes, filhos, colegas de trabalho, pai,
entretanto essas relações ao longo da história vão perdendo o seu significado quando acontece o
abandono ou quando se sentem sozinhas e vão dando lugar ao questionamento de quem elas são.
A solidão é um anunciador para o processo de transformações do eu interior da mulher, que ocorre
através do fluxo de consciência que é uma base de estruturação do interior para o exterior. A trama
que a escritora italiana promove vem dar importância à epifania, “O século XX foi um período

167
crescente para a epifania. As ocorrências foram aumentando em intensidade e em frequência entre
os autores, e esse período foi fértil para cultivar essa característica em narrativas.”
(NASCIMENTO, 2016, p. 44) criando assim um estilo de aproximação com seu público-alvo, que
são as mulheres, alcançando um sentimento de simpatia e empatia das situações similares.
Portanto o tempo, espaço, analogias que é dirigido pelo fluxo de consciência ajuda na configuração
do auxílio da compreensão dos aspectos psicológicos da protagonista e ao chegar no ponto de
epifania há uma espécie de “iluminação” que ajuda o sujeito feminino a encontrar o eu x o mundo e
o eu x consciência, mostrando a problemática de seu tempo recluso e assim voltando-se para a lucidez
de sua realidade.

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SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1973.

169
Proibida para menores: literatura erótica e o editorial
da Revista Literária Pixé
Igor Paulo Rodrigues Pereira/PPGEL-UNEMAT1

RESUMO: A partir da edição especial Proibida para menores, publicada em novembro de 2021, da Revista
Literária Pixé, periódico literário mato-grossense, que nesta edição busca dar espaço a produção artística e
literária erótica, propomo-nos, especialmente, por intermédio do editorial, abordarmos sobre as
considerações que convoca sobre a literatura erótica e defrontá-las com o que críticos e teóricos versam
sobre o tema, inclusive, ao que tange a literatura na contemporaneidade. Ao discutirmos os apagamentos,
as exclusões e as censuras que este fazer artístico sofreu ao longo dos séculos, visamos refletir sobre esta
literatura na contemporaneidade, o que dialoga com as obras literárias que compõem a edição. Nesse
sentido, a Pixé dá espaço tanto a autores contemporâneos, quanto a escritores canonizados. Portanto, o
periódico garante inúmeras formas de invocar Eros para a interioridade da ficção. Teremos como principal
aporte teórico Foucault (1988), Bataille (1987), Durigan (1985), Perrone-Moisés (2016), entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura erótica. Erotismo. Editorial. Revista Literária Pixé.

INTRODUÇÃO
A literatura, como toda expressão artística, sofreu e ainda sofre censuras, apagamentos e
silenciamentos sobre o próprio fazer artístico, sobre o que pode ou não ser narrado, sobre a forma
de narrar, sobre quem pode narrar. Neste sentido, sempre que um escritor, ou um grupo de
escritores, se desvencilha do que a sociedade, do que o governo, do que a crítica considera como
bom ou ruim, sobre o válido e o inválido, sobre o estético e o não estético, há uma ruptura na
forma de se fazer arte, de se fazer literatura ou o que consideramos literatura.
Enquanto manifestação humana, a literatura não se encontra a parte dos julgamentos
sociais, desde que existe literatura, existe repressão da sociedade sobre os artistas e a própria obra.
Porém, conforme há mudanças na sociedade e de sociedades, a literatura acompanha tais processos
históricos e sociais, podendo ter mais liberdade ou ser ainda mais reprimida. Contudo, não
queremos traçar aqui um levantamento histórico sobre as repressões que o fazer literário sofreu, e

1
Mestrando em Estudos Literários/PPGEL, pela UNEMAT de Tangará da Serra, no ano de 2023. Licenciado em
Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, Campus Pontes e Lacerda - MT no ano de 2021.
E-mail: igor.paulo@unemat.br

170
sim deixarmos claro que desde que exista arte, literária ou não, haverá formas de censura, o que
muda de um século a outro, de sociedade a outra, são as formas de se censurar e o olhar que cada
sociedade tem sobre a obra de arte.
Neste sentido, há alguns gêneros literários que sofrem, desde sempre, silenciamentos e
apagamentos, falamos, por exemplo, da literatura erótica. Literatura esta que trata sobre a
sexualidade humana, sobre o prazer e seus usos, sobre o uso do corpo para si e para o outro, sem
regras, sem julgamentos, que fala sobre as possibilidades do homem em amar e ser amado. Porém,
enquanto a obra erótica busca tratar sobre os dramas humanos, representar o homem a partir de
um viés sexual e/ou amoroso, tal como ele é, há setores sociais que não recebem bem tais obras
literárias. Quem não se lembra do caso de Oscar Wilde? Leiamos:

Oscar Wilde, em 1985, foi submetido a processos pela Corte Criminal de


Londres, acusado de ter produzido literatura obscena. No prefácio ao Dorian Gray
(1980), defendeu-se das acusações e proferiu sua fase célebre, repetida a todo
momento por aqueles que se preocupam em estudar a relação entre literatura,
censura e obscenidade: “Não existe essa coisa de um livro moral ou imoral.
Livros são bem escritos ou mal escritos. E é só” (DURIGAN, p. 23, 1985)

Na maioria das vezes aquele que reprime é quem possui o poder em suas mãos, o aparato
estatal e jurídico à sua disposição. Desta forma, fica-nos claro que a história da literatura que trata
sobre os prazeres e desejos sexuais humanos, é uma história de repressão, é a história de uma
sociedade autoritária, mas também a história de luta, de resistência, inclusive daqueles que buscam
falar em nome do reprimido.
Dito isto, buscamos neste artigo tratarmos sobre a literatura erótica mediados pela
discussão que a décima primeira edição especial da Revista Literária Pixé, denominada Proibida
para menores, publicada em novembro de 2021. Publicação esta que possibilita um suporte e a
circulação de obras literárias eróticas.
No que diz respeito ao editorial, trata-se de uma seção na qual o periódico literário utiliza
para dialogar com seu leitor e anunciar o tema e/ou as intenções do periódico. Além disto, de
forma concomitante, no caso em análise, exerce um papel crítico literário, tendo consigo
características de um ensaio. Mas o papel crítico que exerce não é o acadêmico, produzido na e
para a universidade, e sim para os mais diversos leitores e divulgada pela imprensa, por exemplo,
como define Resende (2016, p. 57-58) ao descrever em seu artigo que pretende discutir outra faceta
da crítica literária:

171
(...) escolho, pois, uma determinada espécie – ou faceta – da crítica literária: aquela que
se realiza, de modos diversos, no espaço público, como a divulgada pela imprensa, ou a
que acontece em eventos através da curadoria de festas, feiras, exposições. Ou seja,
práticas críticas que pretendem alguma forma de interferência na circulação de obras, na
divulgação – não marqueteira e mesmo de resistência a recursos do mercado – de autores
ou obras, propondo diálogo e troca.

Antes de partimos para nossa discussão principal, devemos abordar algumas considerações sobre a
Revista Literária Pixé. Ela é uma revista literária digital (que possui algumas edições publicadas em formato
impresso) que deu espaço para que escritores contemporâneos publicassem poemas, contos, crônicas e
resenhas críticas. Idealizada pelo escritor e advogado Eduardo Mahon, a primeira edição (Edição Piloto) foi
publicada em março de 2019 e desde então foi um periódico literário que deu suporte para a divulgação e
circulação da produção artística literária produzida, em sua grande maioria, em Mato Grosso, mas forneceu
espaço também a escritores e/ou artistas nacionais ou internacionais. Sua última edição foi publicada em
maio de 2023, encerrando as atividades com um total de cinquenta e duas edições, sendo trinta e cinco
edições regulares e dezessete edições especiais, sendo uma destas edições especiais o material utilizado neste
artigo.

ENTRE TEXTO ERÓTICO E EDITORIAL


Diante a tantas formas de iniciarmos nosso debate sobre como o editorial da edição especial
Proibida para menores e a literatura erótica se relacionam, ou melhor, a forma com a qual a Pixé
contribui pensarmos a literatura, e esta literatura em específico, partiremos em conjunto à discussão
que o editorial lança no parágrafo inicial, porém, não nos prenderemos apenas ao que ele diz
expressamente, pois fazer isto se trataria de uma simples releitura sobre o tema. Salientamos isto
porque não buscamos apenas reafirmarmos o que a revista já discute sobre a literatura erótica, mas
traçarmos uma relação entre editorial e conteúdo artístico. Leiamos:

Oh, tempos! Oh, costumes!”. Não há nada de novo no corpo, no desejo e, claro,
na literatura erótica. É uma expressão humana como qualquer outra. Há textos
bons e textos ruins, o moralismo que se escandaliza com desejos reprimidos e
recalcados também é velhíssimo. (...) De qualquer forma, o sexo continua sendo
um tabu, se for tratado de forma explicita. Sobretudo o ato sexual que não se
conforma aos modelos convencionados. Trata-se, antes de tudo, de uma questão
estética. (REVISTA LITERÁRIA PIXÉ, 2021, p. 03)

172
O debate com o qual o editorial inicia não possui nada de novo quando pensamos a respeito
da crítica e teoria literária. Isto se dá pelo fato de que a argumentação presente dialoga com o que
vários críticos e teóricos já pensaram sobre a literatura erótica e sobre a sexualidade humana.

Capa da décima primeira Edição Especial da Revista Literária Pixé

Revista Literária Pixé – Proibida para menores, 2021, Edição Especial nº 11

Foucault em a História da Sexualidade I: A vontade de saber (1988) aborda sobre o tabu em falar
sobre sexo, no controle que passa a ser exercido sobre a possibilidade de se enunciar sobre ele a
partir do século XVII: “definiu-se de maneira muito mais estrita onde e quando não era possível
falar dele; em que situações, entre quais locutores, e em que relações sociais; estabeleceram-se,
assim, regiões, senão de silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição: entre pais e filhos, por
exemplo (...)” (FOUCAULT, 1988, p. 23 - 24). E da mesma forma que não se pode falar
abertamente sobre sexo, não se pode escrever sobre sexo, o que reflete a uma censura também nas
artes eróticas.

173
Porém, como viemos desde a introdução abordando, infelizmente a literatura não está
imune do viés moralizante, da crítica preconceituosa, especializada ou não. A literatura, enquanto
produção humana, é atravessada por discursos moralizantes e uma das funções que ela pode tomar
frente a isto é a resistência. Apenas por existirem, por serem escritos, os textos eróticos já exercem
esta resistência e o fato de uma revista literária contemporânea trazer em si textos que expressam
esta representação artística de cunho sexual e amorosa, é aliar-se a esta resistência que ocorre há
décadas. De toda forma, o editorial da Pixé (p. 03, 2021) aborda: “O texto submisso às teologias
moralizadoras é, em geral, medíocre. O contrário também se dá.” Assim, uma obra artística deve
ser lida, criticada por fatores estéticos literários e não por discursos sociais moralizantes, deve ser
debatido a partir de sua consistência, da sua potência literária. Uma obra consistente se perpetuará
independente da crítica, como vimos no caso de Oscar Wilde, do qual sua obra existe e é lida no
nosso século e continuará sendo nos próximos.
O trato que o editorial dá sobre tais campos de saberes é resultado de um acúmulo de
conhecimentos e debates sobre literatura, que resultou hoje na possibilidade de discutirmos, ainda
que de forma muito tímida, dentro da academia, sobre estas obras literárias que representam uma
expressão artística que tem o sexo, o prazer como parte de sua constituição. A fim de esclarecermos
o conceito que aqui empregamos sobre erotismo, sobre esta literatura, temos o seguinte
entendimento a partir do que Bataille (1987, p. 11) considera, leiamos:

A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens,


mas aparentemente, só os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade
erótica, e o que diferencia o erotismo da atividade sexual simples é uma procura
psicológica independente do fim natural encontrado na reprodução (...)

O que vai ao encontro do que Paz (1994, p. 12) afirma sobre o erotismo estar além do
simples ato sexual que visa a reprodução, como acontece com os animais. No erotismo, atividade
própria do ser humano, o sexo atende a finalidade diversa ao da reprodução, da perpetuação da
espécie, é uma ação mais complexa, social e histórica. Desta forma, Paz (1994, p. 12) diferencia o
erotismo do ato sexual, o que estabelece relação com a forma com a qual Bataille define o erotismo:

Embora as maneiras de relacionar-se sejam muitas, o ato sexual significa sempre a mesma
coisa: reprodução. O erotismo é sexo em ação, mas seja por desviá-la ou por negá-la,
suspende a finalidade da função sexual. Na sexualidade o prazer serve para a procriação;
nos rituais eróticos o prazer é um fim em si mesmo ou tem finalidades diferentes da
reprodução.

174
A Pixé anunciar em seu editorial que: “Não há nada de novo no corpo, no desejo e, claro,
na literatura erótica.” (REVISTA LITERÁRIA PIXÉ, 2021, p. 03) Notamos como o editorial
manipula conhecimentos sobre o uso do corpo, o texto erótico e sobre o erotismo, atividade
essencialmente humana e não natural, vinculada ao desejo.
Outro fato a se destacar é que ao enunciar não haver nada de novo, demonstra a consciência
temporal e histórica que faz parte também da história da literatura. Por exemplo, a edição organiza
ao longo obras eróticas como o poema de Safo, de Lesbos, escrita em 612 a. C., Soneto do Pau
Decifrado, de Bocage (1765 – 1805), A bunda, que engraçada de Carlos Drummond de Andrade e
Corpos Nus, de Vagner Braz, poeta contemporâneo mato-grossense, entre outros, o que traz um
aspecto temporal e histórico ao leitor.
Porém, não haver nada de novo diz respeito ao fato de sempre ter existido literatura erótica,
ao passo de que sempre houve também, o silenciamento de tal literatura. Ainda hoje, na
contemporaneidade, a literatura erótica continua sendo produzida e, o principal, sendo consumida
por leitores. O que muda, necessariamente, é a sociedade e a forma de se produzir esta literatura.
São novas perspectivas, novas possibilidades, novos sujeitos podendo narrar. Assim, quando
afirma: “Esta edição especial da Revista Pixé, cuidadosamente organizada por Samuel Lima, oferece
aos leitores a oportunidade de entender que a expressão literária sobre o sexo também é uma ficção
que sofre mudanças de acordo com as relações sociais de cada sociedade.” (REVISTA
LITERÁRIA PIXÉ, 2021, p. 03), está nos insinuando que erotismo sempre foi material
constituinte da literatura, o que não deixa de acontecer na produção do século XXI, que chamamos
de contemporânea, como nos diz Perrone-Moisés (2016, p. 45): “Na falta de melhor designação,
chamemos a literatura das primeiras décadas do século XXI de literatura contemporânea.”
A possibilidade de se ter uma revista literária que fornece mecanismos de suporte e
circulação para esta literatura, que desde sempre foi vista como “menor” ou não literária, é
resultado de mudanças sociais e históricas. Conecta-se também ao fato de que, na
contemporaneidade, a literatura é múltipla, como afirma Beatriz Resende (2008, p. 17) ao falar
sobre algumas características da literatura contemporânea; “A terceira constatação, e talvez a mais
importante para esta reflexão, é consequência da fertilidade, da juventude, e das novas
possibilidades editoriais: a multiplicidade. Multiplicidade é a heterogeneidade em convívio, não
excludente.”

175
Na contemporaneidade, existem diversas formas de expressões literárias e diversas formas
materiais de a literatura se fazer existir materialmente. Este fato faz com que a literatura
contemporânea não precise passar pelo jugo da crítica para se fazer circular. “A verdade é que os
jovens escritores não esperam mais a consagração pela ‘academia’ ou pelo mercado. Publicam como
possível, inclusive usando as oportunidades oferecidas pela internet.” (RESENDE, 2008, P. 17).
Na possibilidade de os escritores autopublicarem, a literatura tende a ganhar com o processo, e na
multiplicidade e variedade do que é escrito, podemos e devemos incluir as obras eróticas.
Outra relação é a de a Pixé, além de estar em consonância com a tendência contemporânea,
ou melhor, as tendências, o editorial do periódico exerce, de certa forma, um papel de extensão.
Isto é, extensão daquilo que a academia produz sobre literatura, sobre saberes normalmente
exclusivos à crítica literária. Nessa extensão, possibilita que o leitor não acadêmico, e obviamente
o acadêmico, tenha acesso ao conhecimento produzido por intelectuais e possa refletir sobre a
literatura, inclusive, sobre a literatura a qual sua edição dá espaço: a erótica. Ao fazer isto, há uma
contribuição para com a literatura como um todo, o debate crítico não fica enclausurado na
academia.
Qual então outra relação possível que podemos fazer a partir desta discussão? A de que a
revista dialoga, com a tendência contemporânea, oportunizando que textos eróticos sejam
publicados e circulem, como nunca antes aconteceu na história:

A quantidade e a diversificação de outrora não se comparam com o que existe


atualmente. Há uma verdadeira avalanche de textos eróticos, um verdadeiro boom
de erotismo em nossos dias: concursos de contos eróticos, contos eróticos
femininos, aumento crescente de títulos de revistas eróticas, sucessivas tiragens
e edições de revistas eróticas já existem e, muitas delas, consagradas, etc.
(DURIGAN, 1985, p. 83)

A possibilidade de se falar sobre esta literatura abertamente, hoje, não apenas nesta edição
especial, mas em outros meios literários, é um dos fatores que contribuem com a própria literatura.
E a Píxé se vê então parte do movimento literário contemporâneo, possibilitando espaço para a
multiplicidade literária deste século. Isto faz com que a própria revista possa ser alvo desses
discursos e dessa censura. Contudo, ela assume tais riscos e deixa claro, inclusive, no editorial em
discussão:

176
Por que muitas pessoas vão se incomodar com esta edição especial da Pixé? Dirão que
queremos inverter o que é natural. Dirão que pretendemos tirar as coisas do lugar. Dirão,
ainda, que celebramos exceções, minorias ou até mesmo anomalias. Pois bem. O que está
acontecendo hoje não é uma inversão, mas um reposicionamento ético. Pode incomodar
e soar agressivo, mas não é. O que nos parece mais violento e menos justo é saber que
nossos “costumes”, nossa “educação”, nosso “mundo”, tudo isso formava um mundo
profundamente seletivo e excludente. Ninguém está descobrindo a roda! O povo todo
sabe que nosso percurso histórico foi forjado por exclusões, apagamentos,
silenciamentos. São milhares que não sobreviveram às pedradas da religião, do moralismo
e de conceitos pseudocientíficos que antagonizam normalidade e anormalidade,
superioridade e inferioridade, pureza e contaminação. (REVISTA LITERÁRIA PIXÉ,
2021, p. 03)

Assim, ela garante que haja espaço para que a produção atual, tão diversa e plural, chegue
a mais leitores e que escritores novos disputem espaço junto a escritores já consolidados. A
extensão que faz é dos saberes acadêmicos, bem como das próprias obras literárias eróticas, ainda
que menos debatidas na academia, mas não são menos produzidas.
Neste século, o espaço no qual a literatura erótica se insere é, sem dúvidas, maior e menos
excludente daquele dos séculos anteriores. Não cabe apenas a crítica ter a ciência de que os textos
ficcionais que abordam os prazeres e amores também são obras literárias, expressões humanas
como todas as demais. Cabe também aos leitores, à população ter acesso à obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos anteriormente que o editorial da Revista Literária Pixé dialoga com a produção literária
disposta na edição especial. O faz de forma a ampliar os saberes literários e estender aos leitores
conhecimentos sobre literatura, e neste caso, literatura erótica.
Dito isto, a pergunta que fica é: o que há de amores literários na Pixé? Entre as várias formas
de responder escolho esta: o que não há de amores? As várias obras de ficção dispostas na edição
dizem respeito a várias formas de amar, de se narrar o sexo, de se ficcionalizar o prazer, de se
declarar à pessoa que ama. Na literatura não há forma certa ou errada de se demonstrar afeto, de
se falar sobre sexo, de invocar Eros. O que há é a multiplicidade de formas.
A edição especial abre espaço para as várias formas de se ficcionalizar o amor, as múltiplas
formas de se expressar os prazeres amorosos ou sexuais. É um ato de amor à literatura. É afirmar
um compromisso com a literatura. É um ato de respeito aqueles que resistiram à censura. “São
milhares que não sobreviveram às pedradas da religião, do moralismo e de conceitos

177
pseudocientíficos que antagonizam normalidade e anormalidade, superioridade e inferioridade,
pureza e contaminação.” (REVISTA LITERÁRIA PIXÉ, 2021, p. 03)
Quando falamos sobre amores literários, não nos referimos apenas aos representados
ficcionalmente, não devemos nos limitarmos a pensá-los apenas enquanto obras artísticas, mas nas
expressões de amor e dedicação a eles manifestados em todas as suas formas. E quando dizemos
isto, devemos nos referir ao amor expresso a literatura pelo leitor, quando lê e se emociona, ao
escritor quando escreve, ao crítico quando “trabalha” e àqueles que se esforçam para exaltá-la das
mais diversas formas, como a Pixé. Estes amores literários, hoje, são mais livres e plurais porque
houve aqueles que amaram antes de nós. Dito isto;
Os intelectuais e as publicações hão de ajudar na travessia para que, na virada do
barco, não sejam todos atirados ao mar. Haverá espaço para a tradicional família
papai-e-mamãe? Sim, é preciso garanti-la. Mas também haverá espaço para a
família mamãe-e-mamãe ou papai-e-papai. Deve haver espaço para tudo e para
todos. E, se não houver, há de ser criado. A existência de alternativas não deve
excluir, anular, cancelar o outro. (REVISTA LITERÁRIA PIXÉ, 2021, p. 03)

REFERÊNCIAS
BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução: Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução: Maria
Thereza da Costa Albuquerque; J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988
MAHON, Eduardo. EDITORIAL. 11ª edição especial. Revista Literária Pixé, 2021. Disponível
em: <https://www.revistapixe.com.br/edicoes-especiais>. Acesso em 5 de junho de 2023.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução Vladyr Dupont. São Paulo: Editora
Siliciano, 1994.
PERRONE-Moisés, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das
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RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008.
________________. O prazo de validade da Crítica Literária. In: Literatura e artes na crítica
contemporânea. Heidrun Krieger Olinto, Karl Erik Schøllhammer, Mariana Simoni, orgs. Rio
de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.

178
Diálogos com Clarice e Winnicott: do nascido ao
acontecido
Autores: Raquele Aparecida da Costa Vilalta; Leopoldo Pereira Fulgencio Junior.
Instituição de origem: Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia do Desenvolvimento Humano e
Aprendizagem, raquelevilalta@usp.br / Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia do
Desenvolvimento Humano e Aprendizagem, lfulgencio@usp.br.

RESUMO: O bebê apenas nascido, mas não acontecido enquanto sujeito, busca sôfrego pela experiência
de pertencimento absoluto no encontro com seus primeiros alvos amorosos. Deste encontro amoroso
inicial, a passagem entre o “nascido” e o “acontecido” é facilitada – do contrário, barulhentos serão os ecos
posteriores nas experimentações do viver, como nos retrata Clarice Lispector em sua crônica “Pertencer”.
De acordo com os pressupostos da teoria psicanalítica do desenvolvimento emocional de D.W. Winnicott,
estes ecos poderão se manifestar enquanto sintomas no âmbito intrapsíquico e interrelacional. Enquanto
qualidade clínica, um fenômeno nomeado por ele como “regressão” poderá se configurar no campo de
trabalho. Este movimento regressivo – inclusive apontado na obra clariceana - poderá viabilizar a
transformação destes barulhentos ecos em um sujeito “acontecido”, pertencente de um lugar próprio
somente se amparado em um novo encontro sob certas especificidades. Tecendo uma interlocução entre a
obra da autora citada e da teoria psicanalítica em questão, este trabalho traz uma reflexão acerca do primeiro
encontro/ desencontro amoroso humano, suas marcas e as possibilidades deste inaugural encontro de
pertencimento vivido a posteriori.

Palavras-chave: Psicanálise; Desenvolvimento emocional; Winnicott; Amadurecimento.

Longe de esgotar a complexidade das sobreposições processuais envolvendo as relações


amorosas e seus impactos no amadurecimento emocional, este trabalho pretende uma construção
teórica atravessada pelo recorte de alguns aspectos da teoria do desenvolvimento emocional do
psicanalista Donald Winnicott em diálogo com a crônica “Pertencer”, de Clarice Lispector. Este é
um trabalho desenvolvido a partir de um recorte da dissertação desenvolvida sob a orientação do
prof. Leopoldo Fulgencio, pelo depto de Psicologia do Desenvolvimento Humano e
Aprendizagem da Universidade de São Paulo.
Atravessada por algo do imperecível de uma natureza humana engendrada tanto na
estrutura teórica construída pelo psicanalista inglês quanto, pelas vias da transmissão literária, na
intensidade da escrita poética clariceana. Cada um a sua maneira microfona as lamúrias dos
encontros e desencontros humanos, entre o nascido e o acontecido, como buscarei pincelar aqui.
Clarice Lispector, escritora que adota e é adotada pelo Brasil ao imigrar com toda a sua família, em
busca de refúgio e recomeço após deixarem a Ucrânia em decorrência das tragédias disparadas pela
Guerra civil russa. Em uma de suas entrevistas, chegou a dizer “Naquela terra eu nunca pisei; fui
carregada de colo” (GOTLIB, p. 132) - colo, palavra tão cara a este psicanalista com quem este

179
trabalho dialoga.
Winnicott, pediatra inglês que logo se aproxima e se aprofunda nos estudos da então jovem
Psicanálise em sua época, desenvolve um pensamento próprio, que não deixa de ser Psicanálise
mas que dilata o olhar para fenômenos humanos até então interpretados e cuidados a partir de uma
ótica freudiana. Se a Psicanálise até então tratava de cuidar do “andarilho na cama dos pais”,
passamos a olhar o sofrimento humano sob a ótica do “bebê no colo dos pais” (LOPARIC, 1997,
p. 385).
E de que forma isso tudo se costura com a temática do amor parental e os efeitos disto
para a vida dos seres humanos? De que forma podemos pensar os encontros e desencontros no
início da vida e seus ecos para as demais relações na vida de alguém, inclusive nas suas relações
amorosas? Para entrar neste terreno, relembro a citada frase de Freud (1997):

E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado
em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e
a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante
de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que
ainda não tornamos acessíveis à ciência (p. 4-5).”

Com base neste primeiro argumento, trechos literais da crônica da autora acompanharão as
proposições psicanalíticas do ponto de vista da teoria do desenvolvimento de Winnicott.

Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente,
a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou. Tenho certeza de
que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não
importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a
ninguém. Nasci de graça (LISPECTOR, 2004, p. 52).

Esta realidade do bebê, das urgências de suas necessidades no início de vida, é uma realidade
empírica absoluta. Na crônica da escritora, encontramos palavras capazes de se conectarem com
esta fome humana, como ela nomeia mais à frente, marca registrada de toda vida em seu início. E
para alguns, por uma vida toda.
Winnicott não considera o desenvolvimento humano dissociado da dependência ambiental.
Tendo em vista os níveis do depender relacional - que no início da vida seria absoluto (cuidados
básicos para sobreviver e existir), seguido ao relativo, e nunca um independer total, mas rumo à
independência (WINNICOTT, 1988). O ambiente (na figura dos pais e/ou cuidadores) e os
cuidados oferecidos, no início primordialmente físicos, será o principal responsável por prover,
manter e facilitar a saúde do bebê e sua continuidade de ser e existir. A Psicanálise como método

180
de tratamento terapêutico pode lidar com o efeito engendrado por esta posição ontológica. Ao
privilegiar a função ambiental no desenvolvimento humano, Winnicott (1959/2016) reposiciona as
classificações patológicas (como as psicoses, as defesas maníacas deflagradas, as depressões).
A partir de uma rede de cuidados suficientemente bons, o bebê humano pode ter esta sua
fome inicial suficientemente saciada. No início, o desenvolvimento humano está em relação
absoluta com o ambiente. Winnicott nomeou de “dependência absoluta” este período em que não
há uma separação entre o bebê e seu meio. O bebê está nascido, mas ainda não acontecido, uma
vez que ele não se dá conta de sua própria existência. Bebê e mãe/ ambiente seriam uma coisa só
– pertencidos um ao outro.
Quando há um encontro entre o que o bebê precisa e a capacidade do ambiente de prover
esses cuidados, dizemos que pôde se constituir um encontro suficientemente bom. A subjetividade
do bebê vai se constituindo a partir da qualidade deste encontro.
“Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.” (LISPECTOR, 2004, p.
52).
Ora, se temos recursos humanos como fundantes de nossa própria humanidade, é preciso
uma espécie de cola que possa unificá-los, corpo e alma, e a partir disto inaugurar alguma
subjetividade própria. Esta cola, como estou chamando aqui, é de responsabilidade do ambiente
em oferecer, facilitando uma integração psicossomática (psique-soma), complexo processo
desencadeado no percurso do amadurecimento humano desde o nascimento, de acordo com
Winnicott (1952/2016). “Bons cuidados produzem um estado de coisas em que a integração
começa a se tornar um fato, e uma pessoa começa a existir ali (tradução literal, p. 57) .”
Uma espécie de potencialidade amorosa que se pode experimentar.

O bebê passa a ter a experiência de um si-mesmo que, do ponto de vista do


observador, só existe porque o ambiente foi suficientemente bom adaptando-se às
necessidades daquele bebê. No início, essa vivência não é exatamente contínua, mas
intermitente. É a sua repetição, sustentada pelo ambiente, que tornará tal integração,
ou tais integrações, para ser mais preciso, mais estáveis. Este si-mesmo, assim
experienciado, não pode ser considerado um eu interno porque ainda não há dentro
e fora, o bebê é uma unidade com a mãe, e esse si-mesmo só existe com esse
ambiente, o ambiente é parte constituinte do si-mesmo (FULGENCIO, 2013, p.
135).

Logo, se o ambiente é visto, na teoria winnicottiana, como facilitador, também o será seu
oposto, dificultador dos processos potenciais do bebê.
Ainda que esse bebê não saiba objetivamente da existência do ambiente, ele o sente. Está

181
denunciado nas palavras da crônica clariceana, ao registrar “nasci de graça”. Podemos supor que
este encontro inicial aconteceu, na verdade, na qualidade de um desencontro?
“Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E
uma espécie toda nova de 'solidão de não pertencer' começou a me invadir como heras num muro.”
(LISPECTOR, 2004, p.53 )
O sofrimento de não pertencer, não ter pertencido e não encontrar perspectivas de que
possa ocorrer no futuro. Sob a dimensão ontológica winnicottiana, há uma tendência inata pela
continuidade do ser, que não sendo estática, parte do início da vida e dá-se em complexos processos
maturacionais frente às experiências vividas (WINNICOTT, 1949/2016). Esta continuidade e as
“tarefas” desenvolvimentais subjacentes só ocorrerão na companhia e presença de um ambiente
que as facilite e as favoreça. Caso contrário, o risco de perder o jeito de ser gente, como descrito
na crônica, rondará a subjetividade do indivíduo.
“Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no
entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai
podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.” (LISPECTOR, 2004, p.53)
Nascida, apenas! Não é o bastante, grita a personagem. É preciso, necessário e urgente
presenças nutritivas, aquelas que mantém um certo quantum de afeto e de experiências que
enriqueçam a alma e abasteçam o que virá a ser um si mesmo. Não se trata de sacríficios em nome
do amor, submissões, mas da experiência de um afeto primordial, pequena em meio a um vasto
cotidiano, mas que guarda a potencialidade daquele que de nascido pode tornar-se acontecido.
Esta poderia ser uma crônica de muitos daqueles que procuram auxílio terapêutico ou
psicanalítico profissional. Na literatura, variados são os casos descritos. Captados no discurso verbal
dos pacientes, os relatos variam desde um sentimento de futilidade e sentir-se irreal, pobreza afetiva
nas interações sociais e incapacidade de ser original (comprometimento da espontaneidade) até os
extremos de um profundo desamparo, pensamentos e ideações suicidas, tentativas de suicídio
(Little, 1992; Winnicott, 1954/2016). Tal experiência subjetiva pode ser barulhenta e incômoda:

Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se
tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado
de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo
me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de
tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos
(LISPECTOR, 2004, p.53).

A personagem quer, em suas palavras, pertencer, mas guarda para si esta necessidade. Diz

182
ser tomada por uma espécie de contenção para evitar o que seria um certo drama. O indivíduo está
nascido, mas ainda não está – ou não se sente – acontecido. Há uma interrupção no processo de
desenvolvimento emocional, acarretando prejuízos em sua relação com o mundo externo, sua
forma de se conectar às pessoas, consigo mesmo.
É necessário, para uma retomada do desenvolvimento emocional interrompido e para que
uma nova configuração de seu modo de ser e estar no mundo possa ser alcançada, ter um ambiente
– que pode ser por exemplo uma relação psicoterapêutica de confiança – que favoreça e facilite
este processo. Esta é a potencialidade que guarda um sobrevivente desses primeiros desencontros.
Há uma espécie de espera por um encontro potencial, um encontro que, através de um setting
terapêutico, poderá ser facilitado - mas não exclusivamente. Pela vida, quantos não são os encontros
que resgatam algo de nossa humanidade, ou mesmo encontros tão potentes que não só resgatam
mas inauguram um lugar existente de pertencimento?
Quando experienciam um processo terapêutico psicanalítico, pode despontar em tais
indivíduos a necessidade de uma regressão à dependência. O fenômeno não se configura como
uma resistência, como interpretado pela psicanálise clássica. Mesmo que vivida com certa dualidade
– como a própria personagem da crônica nos traz, reconhecendo a necessidade de pertencer, mas
temendo o resultado de tal experiência -, a regressão é um fenômeno clínico observado em
pacientes que vivenciaram alguma falha ambiental num período precoce de vida e que
desenvolveram um mecanismo defensivo para proteger o núcleo de seu Eu de falhas ambientais
posteriores (WINNICOTT, 1954/2016). Essa organização psíquica defensiva pode até proteger o
núcleo desse Eu ou self, mas cria uma espécie de vácuo entre o sujeito e seu entorno; não há
contato real e sentido como verdadeiro.
A regressão é parte de um processo de cura (Winnicott, 1988; Winnicott, 1954/2016), não
se tratando de resistência ou fuga, mas de necessidade – de regredir à dependência relacional.

O termo regressão, portanto, agora tem uma aplicação clínica na regressão à


dependência. É uma tendência ao restabelecimento da dependência e, portanto, o
comportamento do ambiente torna-se algo que não pode ser ignorado se a palavra
regressão for usada. (…) A tendência à regressão em um paciente é agora vista como
parte da capacidade do indivíduo de promover a autocura. Dá uma indicação do
paciente ao analista sobre como o analista deve se comportar, em vez de como ele
deve interpretar. Associado a este assunto está o fato clínico da autocura por meio
de um processo de regressão que é muito comumente encontrado fora do tratamento
psicanalítico (WINNICOTT, 1959/2016, p. 448-49).

Nesse sentido, a retomada do amadurecimento emocional torna-se viável quando as

183
condições de confiabilidade em setting terapêutico são oferecidas a partir das necessidades pessoais
do indivíduo implicadas no processo. Ainda que parte de um processo de cura, como mencionado
anteriormente, tal fenômeno remonta a um período de precariedade psíquica, configurando-se
como uma experiência de sofrimento e desconfiança para o paciente. Ainda que a confiaça na
relação com o terapeuta esteja mantida, sentimentos de vergonha e embaraço podem deflagrar no
decorrer do processo uma vez que a dependência emocional estabelecida expressa intensas
vulnerabilidades, inclusive negadas pelo sujeito (Price, 2016). Retomo um trecho anterior da
crônica:

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que
me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou
pobre (LISPECTOR, 2004, p. 52).

Pertencer implica depender. O pertencimento é a busca, mas a consequente dependência é


temida e evitada. Um paradoxo que pode ser vivenciado e atravessado através das experiências
relacionais.
Pensar a regressão como fenômeno da clínica psicanalítica é convidativo visto que,
inclusive, a partir deste campo de estudo muito se tem documentado sobre a experiência em
diferentes perspectivas, seja em termos de fracassos e sucessos, manejo, técnica e prognósticos.
Todavia, considerando os fundamentos da teoria do desenvolvimento emocional como integração,
ambiente de confiabilidade, tal fenômeno se manifestará não só no setting clínico, mas também em
outros ambientes como instituições hospitalares, órgãos de atendimento em saúde pública,
atendimentos em psiquiatria, entre outras terapêuticas; contextos educacionais e pedagógicos,
potencializando a necessidade de discussão e disseminação sobre a concepção winnicottiana desses
conceitos. A discussão proposta por este trabalho traz um material literário, uma crônica, reveladora
desta necessidade humana que talvez se possa traduzir como uma busca por contato com as partes
desconhecidas de si mesmo, mas que permanecem assombrando o sujeito em sua interioridade e
em sua relação com o mundo – porém, somente engendrado nas relações interpessoais é que estas
partes de si poderão ser integradas de maneira suficiente, sob o ponto de vista da teoria do
desenvolvimento emocional.
“A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que
eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver (LISPECTOR, 2004, p. 54).”
Há que se conquistar o direito por pertencer, primeiramente, a vínculos e relações, mas

184
principalmente aqueles que promovam encontros e travessias do nascido para o acontecido em
cada um de nós, e entre nós.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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FULGENCIO, L. A situação do narcismo primário para Winnicott. Rev. bras. psicanál, São Paulo , v.
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<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-
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GOTLIB, Nádia Battella. Da Rússia ao Recife. In: ______. Clarice: uma vida que se conta. Editora
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LISPECTOR, Clarice. Pertencer. In: _______. Aprendendo a viver. Editora Rocco: Rio de Janeiro. 2004.
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LITTLE, M. I.. Ansiedades psicóticas e prevençao; registro pessoal de uma análise com Winnicott.
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PRICE, L. Better Late Than Never: The Reparative Therapeutic Relationship in Regression to
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WINNICOTT, D. W. Natureza humana. Rio de Janeiro: Editora Imago. (1988)


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___________, 'Anxiety Associated with Insecurity', in Lesley Caldwell, and Helen Taylor Robinson
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185
Do êxtase ao vazio: o amor erótico em “As Flores do
Mal”, de Charles Baudelaire

Isaque Coelho Cavalcante


Graduando em Letras – Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Piauí – (UFPI) -
isaquecavalcante@ufpi.edu.br

Resumo: O presente trabalho investiga a maneira como o amor erótico aparece no livro As Flores
do mal, do poeta francês Charles Baudelaire. Publicada pela primeira vez em 1857, As Flores do mal
reúne uma vasta produção poética na qual são apresentados temas variados, como o tédio, a
modernidade, a melancolia, o tempo, a morte, a embriaguez, a revolta, dentre outros. Embora não
tenha sido considerada em análises literárias com muita ênfase iguais aos eixos temáticos frequentes
na fortuna crítica do poeta francês, pode-se considerar a recorrência do erotismo em sucessivos
poemas dessa obra baudelairiana. Nesse sentido, busca-se compreender as representações eróticas
em As Flores do mal a partir das sensações de êxtase e vazio causadas nos sujeitos líricos. Para tal
finalidade, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, fundamentada na leitura de discussões acerca do
erotismo, êxtase e vazio. Além disso, as teorias lidas são relacionadas com um conjunto de poemas
de As Flores do mal separado junto ao corpus de análise. Os poemas analisados sugerem ora a
exaltação extática ao desejo pelo corpo, ora uma nostalgia devido ao distanciamento de prazeres
carnais, provocando nos sujeitos poéticos uma sensação de vazio sensual. Nota-se, portanto, que
o erotismo, assim como a cidade, o vinho e o ópio, é uma das tentativas de evasão do tédio e do
sofrimento vivenciadas pelos sujeitos líricos dentro da construção interna de As Flores do mal.
Palavras-chave: Erotismo; Charles Baudelaire; Êxtase; Vazio.

Introdução

Ao longo do tempo, o erotismo serviu como instrumento de representação do desejo, do


prazer e da sexualidade, para caracterizar o ato erótico. Desde a Antiguidade Grega, a partir da
erótica libertária dos helênicos, até às imagens metafóricas desestabilizadoras dos surrealistas, no
início do século XX, chegando à contemporaneidade, com as inúmeras expressões do Eros, o
campo artístico surge como uma das formas mais representativas nas quais o erotismo apareceu
como objeto de arte.
Dentre as manifestações artísticas, deve-se observar na literatura uma íntima relação com o
erotismo. Considerando o erotismo como uma metáfora, a qual transforma a sexualidade em
poética corporal, Paz (2001) expressa que há um elemento unificador entre poesia e ato erótico: a
imaginação. A ação de imaginar atua como condutora de transformação do sexual em erotismo, e

186
do linguístico em poesia, porque “transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e
metáfora.” (Paz, 2001, p. 12).
Na medida em que elabora a atividade sexual humana, a imaginação desvincula a
reprodução do ato erótico. O erotismo ultrapassa o caráter de reprodutor sexual, pois a busca
psicológica humana, através dos processos imaginativos, converte o sexo em atividade erótica
passível de ser representada. Nesse sentido:

A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas,
aparentemente, só os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica, e o
que diferencia o erotismo da atividade sexual simples é uma procura psicológica
independente do fim natural encontrado na reprodução e na preocupação das crianças.
(Bataille, 1997, p. 10).

De acordo a perspectiva de Bataille (1997), o erotismo é um elemento da interioridade


humana, vivenciado como transgressão. Na literatura, especialmente na poesia erótica, esse aspecto
transgressor surge por meio da sublimação, ligada ao subentendido, transformada pelo jogo
metafórico envolvido na construção poética, uma vez que o universo literário “é uma astúcia da
razão para falar do proibido.” (Kothe, 1981, p, 236).
O dado implícito presente na poesia erótica busca capturar as fantasias envolvidas no plano
imaginário acerca do ato erótico, que foi experienciado ou desejava ter sido. Aliada à imaginação,
a memória atua como um pêndulo estruturador do erotismo literário, movendo-o entre o passado,
vivido, real, e o futuro, fantasiado, ansiado pela concretização decorrente dos prazeres. Como
menciona José Paulo Paes:

[...] O que ela busca [a poesia erótica], antes e acima de tudo, é dar representação a uma
das formas de experiência humana: a erótica. Representar é re-presentar, tornar
novamente presentes – presentificar – vivências que, por sua importância, mereçam ser
permanentemente lembradas: na mitologia grega, Mnemosina, a memória, era mãe das
nove Musas ou artes. Pois a arte faculta o reviver, no plano imaginário, o essencial do
que se viveu ou se aspirou a viver no plano do real. (PAES, 2006, p. 15).

O caráter temporal entre o passado e o futuro, estruturador do erotismo na poesia, à


procura de presentificar a experiência erótica, aparece em vários poemas da obra As flores do mal
(2011), do poeta francês Charles Baudelaire, publicada pela primeira vez em 1857. Nessa obra
baudelairiana, o erotismo, a imaginação, a memória e a fantasia agrupam-se aos sentimentos de
vazio e êxtase, como é possível observar nos poemas Perfume exótico, O balcão e A cabeleira.

187
Baudelaire e as Flores do mal

Charles Baudelaire é um dos poetas fundamentais da lírica moderna ocidental. Tendo


nascido em 1821, na capital Paris, o poeta francês teve uma vida turbulenta, que envolveu a perda
do pai ainda na infância, uma vida boemia, iniciada aos 18 anos de idade, uma relação conturbada
com a mãe e o padrasto, bem como um descontrole da herança paterna. Vivendo em circunstâncias
financeiras debilitadas, Baudelaire faleceu no ano de 1862.
As dificuldades durante a vida, contudo, não impossibilitaram Charles Baudelaire de
produzir uma obra de extrema inspiração na literatura europeia posterior ao desenvolvimento de
sua produção literária. Conforme Auerbach (2007), a distinção da poesia baudelairiana, e sua
influência subsequente, nasceu pela elevação efetivada a certos assuntos, tornando sublimes temas
os quais não tinham sido tratados com grandiosidade até à época, meados do século XIX.
Baudelaire retratou os recorrentes dramas e as inquietações do indivíduo ao estar diante da
modernidade. A obra baudelairiana se tornou influente, posto que “Baudelaire é capaz de predizer
à sua época o “Grand Soir” apocalíptico, porque viu o abismo do tempo no gouffe da sua própria
alma. A poesia de Baudelaire exprime igualmente as convulsões do seu tempo e as angústias de
todos os tempos.” (Carpeaux, 2020, p 75).
Embora tenha escrito Spleen de Paris, livro que reúne poemas em prosas, e diversos textos
críticos sobre a arte, é a obra As flores do mal que reúne quase toda a composição poética de
Baudelaire. A partir da segunda edição, datada de 1861, as Flores do mal passou a ser ordenada
segundo uma divisão em seis partes: Spleen e ideal, Quadros parisienses, O vinho, Flores do Mal, Revolta e
Morte.
De acordo com Friedrich (1978), essa repartição torna as flores do mal um organismo
concentrado, no qual existe um ligamento de cada uma das partes dentro de uma coesão interna
da obra. Em ordem temática, a divisão formal do livro encadeia, seguindo a ordem das partes,
inicialmente, poemas sobre idealidade, queda e a melancolia. Em seguida, nas outras partes, há
várias tentativas de evasão ao spleen melancólico da parte inicial, como a cidade, o vinho, a
destruição, a revolta e, por fim, a morte.

Figuração do erotismo em As flores do mal: êxtase e vazio

Além dos temas angustiantes, do tédio pela condição no mundo, da pintura citadina, dos
versos evasivos, da destruição que conduz à revolta, verifica-se a recorrência do amor erótico em

188
inúmeras páginas de As flores do mal (2011). Auerbach (2007) indica que o tradicionalismo da poesia
amorosa, com teor de sublime, quase inexiste no livro, sendo a ênfase realizada por Baudelaire
focada na sexualidade exposta. No poema Perfume exótico, observa-se essa externalização sexual,
com o erotismo misturado ao sentimento extático:

Perfume exótico

Quando, de olhos fechados, noite outonal, quente,


Respiro o odor dos seios teus, tão calorosos,
Vejo se desdobrar os páramos ditosos
A que ofuscam os fogos de um sol permanente;

Uma ilha preguiçosa onda dá a natura


Árvores singulares, frutos saborosos;
Homens de corpo forte, esbelto e vigoroso,
E mulheres do olhar da franqueza mais pura.
Por teu olhar guiado às paragens mais belas,
Vejo um porto repleto de mastros e velas,
Ainda fatigados da vaga marinha,

Enquanto esse odor verde dos tamarineiros,


Que circula no ar inflando-me a narina,
Mescla-se na minha alma ao som dos marinheiros.
(Baudelaire, 2012, p. 45 – tradução Mário Laranjeira).

Em Perfume exótico, ao fechar os olhos, o eu lírico passa por um processo de entorpecimento


ao imaginar o cheiro dos seios “calorosos” da amada. Assim como a maioria dos poemas de As
flores do mal, os versos estão estruturados em doze sílabas poéticas. O longo alexandrino ajuda a
ditar o ritmo lento do poema, que acompanha o movimento vagaroso do devaneio erótico do
sujeito poético.
No poema, o odor dos seios desencadeia o êxtase no eu lírico, arrebatando-o aos “páramos
ditosos”, lugar de uma embriaguez erótica. Os seios são comparados a uma ilha de frutos
saborosos, de gosto inesquecível. Esse espaço belo, com cheiro de tamarineiro, é recuperado por
meio da memória, revivendo uma experiência sexual do passado, mas que passa a ser lembrada na
noite de outono, ardente.

189
O erotismo aparece no poema fazendo o eu lírico escapar de si, fragmentado que foi pela
visão erótica fantasiada. Nos versos, o elemento extático é fixado ao aspecto erótico, como
tentativa de fuga do real. Se no real existe a impossibilidade da perfeição, os seios são um símbolo
de contraposição a essa imperfeição. A quebra da realidade decorre dos estados, nos quais o sujeito
poético viveu e buscou reviver, de instantes que “se fundem no ato amoroso; e, durante uma fração
de segundo, o homem entrevê um estado mais perfeito.” (Paz, 2006, p. 177).
Se no poema Perfume exótico o erotismo serve como uma ascensão constituída pelo êxtase,
motivada pela exaltação sensual, em versos do poema O balcão, por outro lado, o retrato erótico é
apresentado como um uma falta, uma ausência causadora de vazio:

O balcão

Mãe de toda lembrança, amante das amantes,


Ó tu, o meu prazer! Tu, todo o meu dever!
Tu lembrarás, por certo, os afagos constantes,
A doçura do lar e o doce anoitecer,
Mãe de toda lembrança, amante das amantes!
As noites alumiadas no ardor do carvão,
E as noites no balcão, veladas de ondas róseas,
Quão suave era o teu seio! E bom o coração!
Dissemos vezes mil imorredouras coisas,
As noites alumiadas no ardor do carvão.
Que belos são os sóis nas noites aquecidas!
Como o espaço é profundo! E o coração potente!
Ao debruçar-me em ti, rainha das queridas,
Eu cria respirar esse teu sangue olente.
Que belos são os sóis nas noites aquecidas!
Ficava a noite espessa igual biombo então,
E os meus olhos, no escuro, os teus olhos achavam
E eu bebia teu sopro, ó doçura! ó poção!
(...)
Sei a arte de evocar os minutos ditosos,
E revivo o passado ao teu joelho abraçado.
Pois que adianta buscar os teus dengos langorosos
Fora do corpo teu e coração amado?
(...)
Essas juras, perfumes, beijos infinitos,
Renascerão de abismo a nós interditados,
Como sobem ao céu os sóis já reunidos

190
Após serem nos mares profundos lavados?
- Ó juras! Ó perfumes! Beijos infinitos!
(Baudelaire, 2012, p. 56-57 – tradução Mário Laranjeira)

No poema O balcão, o eu lírico rememora as noites vividas com a “amante das amantes”,
na tentativa de evocar momentos eróticos desejosos de serem repetidos. As cenas de intensa
sensualidade, tendo o balcão como sustentáculo, mostram o sujeito poético excitado por ter junto
a si o objeto de seu desejo. O uso frequente das exclamações nos finais dos versos denota raiva e,
ao mesmo tempo, angústia em decorrência da mulher ausente.
O poema possui um tom de agitação, provocado pela atmosfera de ardência devido à
vontade de reviver os atos eróticos noturnos de amor intenso. Ao longo do poema, verifica-se a
utilização de termos vinculados ao calor, por exemplo, “ardor”, “carvão”, “aquecidas”, que
marcam, semanticamente, os estados eróticos de saudade do eu lírico. A lembrança é tão acentuada,
que se torna uma metáfora do fogo, o qual incendeia tanto os pensamentos quanto os sentidos do
sujeito lírico.
No poema, percebe-se uma oposição entre o desejo do corpo, do ato erótico, e o vazio
originado pela não presença corporal. A falta da amante conduz o eu lírico não apenas a descrever
as aspirações das noites eróticas remotas, mas o leva ao sentimento de vazio, uma desolação diante
da lacuna deixada pela amada. Nos versos finais da quinta estrofe, a duplicidade sentimental é
comprovada quando o sujeito poético expressa a impossibilidade de viver sua paixão abatida longe
do corpo da mulher.
Esse vazio, no entanto, sem proporcionar qualquer motivo paralisante, traz, na verdade,
um impulso esperançoso. No término do poema, o sujeito poético formula um questionamento
acerca do reencontro com a amada. Embora tenha um abismo entre os amantes, o eu lírico constrói
uma pergunta carregada de esperança, cheia de ânsia de ouvir novamente as confissões trocadas,
os instantes vivenciados e os beijos ininterruptos, querendo viver tudo antes vivido, no balcão
iluminado pela luz do carvão.
Em A cabeleira, os versos sugerem uma aproximação tripla, entre erotismo, vazio e êxtase.
O poema narra um movimento oscilante em relação ao erótico, que vai do deslumbramento à
vacuidade:

191
A cabeleira

Ó velo, até junto ao colo a se estender!


Ó cachos! Ó abandono que a perfume cheira!
Êxtase! Para a alcova escura preencher
Das lembranças dormentes nessa cabeleira,
Como um lenço agitá-la no ar eu vou querer!
(...)
Como espíritos outros na música vão,
O meu, ó meu amor! no teu perfume nada.
Irei aonde o homem e a saciada planta
De seiva pasmam sob o tempo mais ardente;
Sede-me, forte trança, a onda que me levanta!
Conténs, ó mar de ébano, um sonho ofuscante
De velas, remadores, mastros flamejantes:
Um esplêndido porto em que minha alma está
A beber o perfume, todo o som e a cor;
Onde os barcos deslizam no ouro e tafetá,
Abrem seus vastos braços a enlaçar a glória,
De um céu puro onde freme o eterno calor.
Enfiarei a cabeça embriagada de amor
Nesse negro oceano em que o outro se enliça;
E minha alma sutil de marola ao sabor
Saberá encontrar-vos, fecunda preguiça,
Balanços infinitos de olente torpor!
(...)
Sim, muito tempo! Sempre! A mão nas tuas tranças,
Vou semear rubis, pérolas e sáfiras,
A fim de aos meus desejos nunca surda seres!
Não és, acaso, o oásis que sonhos me inspiras,
Onde sorvo abundante o vinho da lembrança?
(Baudelaire, 2012, p. 46-47 – tradução Mário Laranjeira)

Em A cabeleira, logo na estrofe inicial, o êxtase e o vazio são descritos em diálogo com o
erotismo. Em um quarto escuro, solitário, o eu lírico evoca as “lembranças dormentes”, que
causam, assim como em Perfume exótico, uma transcendência. No entanto, o voo extático é
suplantado por uma voz saudosista, a qual mira na “cabeleira” distante um preenchimento da
solidão do sujeito poético, ausência dramatizada como em O balcão. Há, no eixo temático do poema,
o par opositivo resultante do ato erótico relembrado, que vai do êxtase ao vazio.

192
Na segunda estrofe, a imagem dos “espíritos” nadando no perfume do corpo da amada,
fragrância comparada aos efeitos transcendentes da música, expressa a enlevação do eu lírico,
buscando superar o vazio presente em si. A força de encanto desse odor mágico, conduz, na estrofe
seguinte, o sujeito poético às selvas longínquas. Dando continuidade na evocação, no verso
seguinte, a trança, referência ao cabelo, volta a ser o impulso do êxtase, trazendo à tona o “mar de
ébano”, o sonho que ofusca, que inebria o eu lírico.
Se na estrofe anterior existia a travessia marítima, na quarta estrofe acontece o embarque.
A paragem portuária metaforiza o corpo, o lugar de encontro do eu lírico com o ato erótico. Por
meio de processos sinestésicos, de início, o perfume, os sons e tudo que envolve a amada é ingerido.
Em seguida, no primeiro verso da quinta estrofe, o sujeito poético, “embriagado de amor”, imagina
a penetração. Quando o penetrar sexual acontecer, decorrerá, para a alma, movimentos
ininterruptos.
Na última estrofe, a tonalidade extática cede ao despertar do eu lírico, o qual volta à
realidade. O retorno ao real é povoado pela indicação de que as lembranças eróticas ocorreram há
bastante tempo, fazendo o sujeito poético, no verso inicial, lamentar: “Sim, muito tempo!”.
Acordado, voltado ao tempo presente, o eu lírico, nos três versos finais do poema, retoma a
oscilação entre vazio e êxtase, clamando pela execução de seus desejos, para preenchê-lo, e
questionando, mas afirmando simultaneamente, o êxtase erótico que a mulher distanciada
representa: “Não és acaso, o oásis que sonhos me inspiras, Onde sorvo abundante o vinho
abundante da lembrança?”

Considerações finais

Nos três poemas analisados, o erotismo mantém uma relação direta com as emoções dos
sujeitos líricos. O ato erótico é descrito a partir da interioridade, causando sensações díspares, o
vazio e o êxtase. Nas análises realizadas, foi possível observar que, em As flores do mal (2011), a
subjetividade erótica é uma gangorra, na qual, de um lado, existe o enaltecimento excitante ao
desejo corporal, que leva ao êxtase, ao sonho, ao transcendente e, em contrapartida, evidencia uma
constante reminiscência em virtude da falta do prazer carnal, ocasionando um vazio pela falta do
ato erótico.
Além disso, observa-se um caráter evasivo do erotismo nos poemas analisados. Como
pontuado por Friedrich (1978), em As Flores do mal são elaboradas distintas maneiras de evasão na
luta contra o sofrimento e o tédio, como o álcool, o espaço urbano, a revolta, dentre outras. A

193
partir dos poemas analisados, verifica-se no erotismo um meio, também, de escape. A fuga erótica
é construída, na obra, conforme os processos imaginativos e nostálgicos, dando ao erotismo,
sobretudo, um mecanismo de desprendimento do ser, uma ultrapassagem da concretude mundana,
para estabelecer a construção de paraísos outros, nos quais tenham, apenas, sensualidade e gozo.

Referências

AUERBACH, Eric. Ensaios de Literatura Ocidental: filologia e crítica. Organização de Davi


Arrigucci Jr. E Samuel Titan Jr. Tradução de Samuel Jr. e José Marcos Mariani de Macedo. São
Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2007.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Martin Claret,
2011.

CARPEAUX, Otto Maria. Retratos e Leituras. Curitiba: Danúbio, 2020.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a medos do


séculos XX. Tradução: Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KOTHE, Flávio R. Hermenêutica Literária e Psicanalítica. In: KOTHE, Flávio R.


Literatura e Sistemas Intersemióticos. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1981.

PAZ, Octavio. O Labirinto da Solidão. São Paulo: Paz e Terra, 2006.


---------------------. A dupla chama: amor e erotismo. 2. ed. Trad. Wladir Dupont. São
Paulo: Siciliano, 2001.

194
Da história contundida e dos corpos postos pra jogo:
uma leitura da prostituição masculina como quebra
de expectativa de amor romântico na canção Garoto
de Aluguel, de Zé Ramalho

Anne Natalí Rodrigues Gomes

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, campus Tauá. Membro do Núcleo de Estudos
em Cultura e Arte (NECA/IFCE-Tauá). Membro do Núcleo de Estudos Teórico-Críticos em Escrita Literária e
Interações Linguísticas – NETCELIL/IFCE campus Tauá. annegomes1000@gmail.com

Auricélio Ferreira de Souza

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, campus Tauá. Coordenador do Núcleo de
Estudos em Cultura e Arte (NECA/IFCE-Tauá). Vice-líder do Núcleo de Estudos Teórico-Críticos em Escrita
Literária e Interações Linguísticas – NETCELIL/IFCE campus Tauá. auricelioferreirasouza@gmail.com

RESUMO: A disputa pelo poder expõe é no corpo suas marcas. Ele é, assim, resultante de um permanente
esculpir, que às custas de fricções, fraturas, fissuras vai dando conta de uma experiência de desejos,
interdições, ficções e subjetividades. O corpo é espólio, disputado entre os desejantes, sempre
vigiados/interditados pelas fronteiras da moral. Este breve estudo pretende discutir em que medida a canção
Garoto de Aluguel (Taxi boy - 1980), de Zé Ramalho, projeta uma discursividade que pode ser lida como
ativador da potência mercadorizante do corpo masculino no jogo da prostituição. Como se tece ali uma
cena enunciativa em que o enunciador se coloca ao mesmo tempo como mercadoria, coisa à venda,
precificada, mas também, como força de coisificação do outro a quem se dirige/alicia (enunciatário), numa
espécie de processo de ‘sujidade’, contaminação dos amantes que, despidos da indumentária do amor
romântico, deitam seus corpos nesse jogo, no qual, o sentimento ali (se há) é negocial, pecuniário, venal:
“Minha profissão é suja e vulgar/Quero um pagamento para me deitar/E junto com você estrangular meu
riso/Dê-me seu amor que dele não preciso”. O método utilizado será a análise discursivo-estrutural presente
na fisiologia própria desse tipo de produção (literomusical). Para a leitura proposta nos valeremos de
itinerário interdisciplinar: dos postulados semióticos (Pierce, Eco, Lotman e outros), procedimentos de
Análise do Discurso de Linha Francesa, proposituras da Teoria Social de Pierre Bourdieu, Teoria da
Representação Social de Serge Moscovici, além de incursões pela da Teoria Crítica (Escola de Frankfurt) e
Crítica Pós-Colonial.
Palavras-chave: Amor; Corpo; Sub-Representação; Masculino; Prostituição.

A prostituição é uma prática que, desde sempre, se move sobre uma base instável, dúbia ou
contraditória. Ora definida como uma profissão (dita das mais antigas que se conhece), ora
assentida como um “mal” necessário à certo nível de manutenção da ordem social. As forças de
controle que advogam em favor da última prerrogativa, estão, na verdade, defendendo a
manutenção da ordem social através de regulação da sexualidade: entendem que a prostituição
desempenha um papel importante no ordenamento coletivo, permitindo a liberação de tensões e a

195
satisfação das necessidades/fantasias sexuais de indivíduos que, de outra forma, poderiam recorrer
a comportamentos considerados socialmente inaceitáveis1. Nessa perspectiva, a prostituição pode
funcionar como dispositivo regulador de frustrações (sobretudo, sexuais), espécie de “sistema
compensatório” pelo qual, a energia libidinal conduzida de forma controlada, conteria excessos,
inviabilizaria condutas desviantes e, assim, preservando a ordem social. Ter-se-ia, pois, o corpo
como potência e o sexo como um poder que dele emana.
Contudo, se faz extremamente oportuno compreender aqui, que recorrer aos vocábulos
sexo e sexualidade comporta perspectivas teórico-críticas distintas. “[...] sexo está ancorado em marcadores
físicos, biológicos e fisiológicos, tais como vagina, pênis, útero, cromossomo, também refere-se ao ato sexual, e é
atemporal” (Guimarães, 2007, p.26). Para Villela & Arilha (2003, p.97) o termo comporta ao menos
três significados possíveis e correlacionáveis:
Um primeiro assinalaria a posição do sujeito na reprodução sexuada: fecundante (macho)
ou gerador (fêmea); um segundo estaria referido aos órgãos genitais externos. Um
terceiro, ainda não presente nos dicionários, mas amplamente disseminado, diz respeito
ao uso do termo sexo precedido do verbo fazer - fazer sexo - como sinônimo de ato
sexual.

Já sexualidade, segundo Guimarães (2007, p.26), compreende um termo relativamente


novo.
Surge apenas no século XIX, devido a necessidade de se falar, pensar e entender o sexo.
Sua diferença mais significativa em relação ao termo sexo é que nela está inserido o social,
como nos coloca Hawkes (1999, p.8), ao afirmar que a sexualidade refere-se a uma
“identidade escolhida ou designada”, definida pelo psicológico, não pelo físico. É
entendida, conforme a autora, como “expressão do desejo sexual”.

Arregimentando ambos os campos de força acima mencionados (corpo e fisiologia + plano


de expressão do desejos emanados desse corpo) a prostituição é, portanto, desde sempre,
atravessada por compreensões que contradizem, pressionam e violentam (física e
psicologicamente) o indivíduo prostituído: ele é signo simultaneamente do desejável, do buscado,
do reconhecido como transbordo e prazer entre as quatro paredes da alcova, mas também do
interdito, do que se esconde e se nega fora destas paredes, à luz das convenções e regramentos
sociais. Embora este corpo e o que ele representa e agencia articule um conhecimento já público
em diferentes culturas e contextos, operando uma troca comercial, ao mesmo tempo não se aplicam

1 Na Antiguidade Grega, segundo Guimarães (2007), embora não existisse o conceito de sexualidade como conhecemos hoje, sobre
este aspecto dual que evolve sexo e poder, a compreensão era a de que “[...] havia, de um lado, o “reino dos prazeres” (denominado “reino
das afrodisias”) e de outro o “reino dos Eros”, ou o “reino dos amores”. Os dois eram distintos entre si. As Afrodisias relacionavam-se aos prazeres
sensuais, ou físicos (o beber, o comer, o dormir, etc.). Já os Eros eram múltiplos e com características distintas, relacionavam-se aos desejos que tinham a
função de regular as condutas das pessoas. Eles eram regidos pela ética, pelo controle sobre si mesmo, pela continência.” (GUIMARÃES, 2007, p. 23)

196
em torno de si, aceitações, inclusões e/ou configurações de novas convenções igualmente públicas
no bojo social (não recebe reconhecimento, direitos, respeito). Há séculos o corpo em chave de
prostituição continua semantizando aquilo que é sujo, indigno, ocultável, logo, desprezível. A
prática não é ilícita, nem mesmo criminosa do ponto de vista da letra da Lei, no entanto, continua
imersa em ambiência paralela à realidade coletivamente regrada. Está imersa na reprovação (mesmo
daqueles que dela se servem), situações de violência e criminalidade (a prostituta ou prostituto não
sendo amparados em casos de agressão, experienciam a força bruta como uma linguagem fluente
na reação às interações/estímulos a que estão sujeitos).
A esse respeito, revisitemos, numa camada mais superficial, os sentidos que transitam sobre
o termo prostituição:
1. Ato ou efeito de prostituir(-se); 2. Comércio habitual ou profissional do amor sexual;
3. O conjunto das prostitutas; 4. A vida das prostitutas; 5. Por extensão, vida desregrada;
6. Profanação, aviltamento. (HOLANDA, 1986, p.1405 – grifos nossos)

A ação de prostituir-se igualmente orbita dentro de um campo de sentido claramente


negativado:
Prostituir [do latim prostituere - expor, pôr à venda]. 1.Iniciar na vida de prostituta, entregar
à devassidão, desmoralizar, corromper; 2. Expor publicamente: - as dançarinas
prostituem o corpo aos alvos dos fregueses do cabaré; 3. Entregar-se à vida de pública
devassidão, tornar-se prostituta; 4. Desonrar-se, aviltar-se, praticando ações
vergonhosas ou indecorosas, rebaixar-se (HOLANDA, 1986, p.1405 – grifos nossos).

Valendo-se de retrospecto, projeções e repercussões históricas, constatamos que em cada cultura


os contornos do plano de expressão quanto à sexualidade variam bastante: partindo ora da
interdição completa, ora da compreensão do sexo como o mecanismo de controle já aqui aludido.
Por exemplo, na Grécia Antiga, segundo Guimarães (2007, p.23):
[...] a sexualidade estava relacionada com a pederastia (relação entre homens maduros e
jovens). Essas relações ocupavam lugar de destaque naquela sociedade e tinham a função
de transformar o jovem em cidadão da Pólis. Chamadas de homofilia por alguns
estudiosos, essas relações evoluíam para a amizade (philia) entre os mais velhos e os
jovens adultos e não tinham o sentido de homossexualidade como a entendemos hoje. A
relação entre homens adultos e jovens meninos era de mestre-aprendiz. Segundo
Marcondes (2000), o que é marcante em relação à mulher é o fato de ela ser apresentada
como incompleta ou imperfeita em relação ao sexo masculino.

O entendimento quanto a prática do sexo em si, bem como da expressão deste (a


sexualidade) tanto na Grécia, quanto em outras sociedades antigas, diferiam significativamente das
normas e valores sexuais predominantes na sociedade ocidental moderna. E, nesse eixo, o conjunto
de significações em torno da prostituição sofre semelhante transformação. É essencial destacar que
o conceito de sexualidade no pensamento vigente na antiguidade não pode ser enquadrado nos

197
mesmos termos que utilizamos hoje, uma vez que as noções de identidade e orientação sexual que
temos atualmente são produtos culturais e históricos, logo, resultantes de pontos de virada na
estrutura e valores positivados ou negativados no curso do jogo social.
Por exemplo, pelo menos no contexto da Grécia Antiga: 1) condições como a
bissexualidade e homossexualidade, eram frequentemente concebidas de forma mais fluida do que
hoje. Os relacionamentos homossexuais, eram considerados aceitáveis em diversos contextos
sociais. O amor e a afeição entre homens mais velhos e jovens, chamado de "erastes" e "erômenos"
respectivamente, eram uma prática aceita na estrutura de cidades-Estado, como Esparta e Atenas.
Assim, a chamada Pederastia era uma forma de relacionamento educacional e erótico entre um
homem mais velho (erastes) e um adolescente (erômenos). 2) O casamento heterossexual era
considerado a norma para a reprodução e a continuação da família. Como as uniões matrimoniais
eram frequentemente arranjadas, o casamento tinha mais a ver com propriedade e status social do
que com amor romântico. Nessa compreensão, procriação e perpetuação do nome e da linhagem
familiar eram objetivos centrais do matrimônio. E, por fim, 3) A prostituição era vista como uma
atividade socialmente aceitável, não havendo impeditivos legais à prática. As prostitutas, geralmente
mulheres estrangeiras, eram frequentemente associadas aos templos dedicados a divindades
específicas. Logo, essas mulheres não possuíam vínculos ou laços com os homens que as
procuravam. Seu sexo era um mecanismo à serviço do controle das tensões e atendimento aos
desejos e fantasias irrealizáveis no seio do matrimônio. Assim, embora fosse prática tolerada, às
mulheres casadas era vetado o acesso e conhecimento a esses meandros, sendo assim, “separadas’
desse universo para manter a virtude e a fidelidade.
Ainda valendo-se do mesmo retrospecto, projeções e repercussões históricas, constatamos
que em torno da prostituição orbita sempre semelhante atmosfera: a do estereótipo de
marginalização e do natural preconceito. Desta forma, podemos afirmar que enquanto campo
negativado, se associa à profissão origem étnica desprestigiada (minorias, mestiçagem, estrangeiras,
etc), pobreza, ausência de acesso à formação cultural e/ou saberes culturalmente valorizados, ou
ainda, deficiências e deformidades físicas. Historicamente a (sub)representação do sujeito em
sintaxe de prostituição está relacionada majoritariamente à figura feminina. Já na origem do termo
prostituta (formada pelos termos latinos ‘Pro’ que significa ficar à frente e ‘Stituere’ que significa
colocar ou instalar), obtém-se o apelo semântico a algo que é exposto, que se mostra, que se dispõe
à sanha da libido e da fantasia e, neste caso, é o corpo feminino. Daí a recorrência a termos

198
depreciativos dentro de um vasto elenco postos no feminino: meretriz, messalina, puta, vagabunda,
quenga, rapariga, perdida, rameira, quiba, mulher da vida, piranha, vaca, dentre muitos outros.
Biblicamente, ainda em recorrência ao mundo antigo, a prostituição é encarada como um
pecado condenável, uma vez que fere os princípios do matrimônio judaico, pondo em risco a
manutenção de certos estatutos elegíveis à figura do homem de bem. Por outro lado, nesse mesmo
contexto das sociedades antigas, fazendo jus à dimensão contraditória já discutida aqui, as mulheres
que ofertavam sexo em troca de presentes eram vistas como sacerdotisas na Grécia, sendo
nomeadas de hetairae2 e fornecendo o pagamento de impostos para o estado. Podemos assim dizer
que, como as repercussões do ato de se prostituir, também a representação daquele/aquela que se
prostitui passa por diferentes modulações no âmbito do regramento e aceitação social. Contudo,
essa modulação não significa a construção de um lugar ativo e reconhecível propriamente dito no
ordenamento do jogo social.

Mas e quanto ao masculino, que elementos nos falam da prostituição?

Enquanto para a mulher em situação de prostituição é vasto o elenco de termos


denominadores como já dissemos, para a situação masculina o elenco tende a ser mais restrito. Isso
decorre do fato de que, o corpo masculino, embora igualmente envolto desde sempre nas disputas
pelo poder, impulsionada pela economia do libidinal, não padece sob o peso da histórica
inferiorização que o modelo patriarcal de organização social impõe à mulher, lhe apontando lugares
estáticos no ordenamento de matrizes comportamentais.
Profissional do sexo, garoto de programa, prostituto, puto, michê, escortboy, loverboy. São
algumas das designações encontradas. Algumas dessas, diga-se de passagem, ainda sem forte
assento no eixo da cultura popular, ao contrário do que ocorre com as nomenclaturas femininas,
já fortemente enraizadas tanto no uso linguístico, quanto no imaginário do povo, no meio da rua e
dos pregões e disputas do espaço urbano periférico.
Em um contexto de baixa incidência de produção teórica que se debruce sobre prostituição
masculina, seus aspectos materiais e desdobramentos intersubjetivos, se torna imperativo
mencionar a dissertação de Néstor Perlongher, O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo, com
a qual obteve o título de mestre em Antropologia Social em Programa de Pós-Graduação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1986, publicada em livro pela Editora

2 A terminologia grega significa “aquela que faz companhia” e caracteriza mulheres que estudavam e forneciam para
seus clientes sabedoria e sexo.

199
Brasiliense em19873 e reeditado pela Editora Fundação Perseu Abramo, em 2008, com novo
prefácio de Richard Miskolci e Larissa Pelúcio.
O texto de Perlongher se tornou referência central na abordagem da prostituição masculina
no espaço urbano, fornecendo uma consistente análise sociológica e antropológica desta dinâmica
na cidade de São Paulo durante a década de 1980. O texto, ao investigar a vida dos "michês"
(homens que se prostituem) na capital paulista, termina por explorar as dinâmicas sociais,
econômicas e culturais que cercam essa atividade ali, num contexto ainda em expansão, pelo menos
no que concerne à um horizonte alcançável e possível de imersão. Ele examina os espaços urbanos
onde a prostituição masculina ocorre, as interações entre os michês e seus clientes, e os elementos
de poder e desejo que influenciam essas relações. Há, na perspectiva lançada pelo autor, um olhar
sensível para construção social da masculinidade e da sexualidade naquele contexto específico, bem
como para a evidente (e já esperada) marginalização e estigmatização enfrentadas pelos michês
dentro do jogo social. Esse olhar dá conta também de questões relacionadas à saúde, aos riscos de
violência e à vulnerabilidade dos homens envolvidos nessa atividade.
O autor em questão, tomando o temo michê4 como objeto de sua discussão, já de início
esclarece compreendê-lo a partir de duas acepções ou sentidos:
Um alude ao ato mesmo de se prostituir, sejam quais forem os sujeitos desse contrato.
Assim, fazer michê é a expressão utilizada por quem se prostitui para se referir ao ato
próprio da prostituição. Em alguns contextos – especialmente entre prostitutas e travestis
– o termo pode ser aplicado também ao cliente.
Numa segunda acepção, o termo michê é usado para denominar uma espécie sui generis de
cultores da prostituição: varões geralmente jovens que se prostituem sem abdicar dos
protótipos gestuais e discursivos da masculinidade em sua apresentação perante o cliente.
(PERLONGHER, 1987, p.17)

Haveria assim, “gradações” do michê enquanto indivíduo em sintaxe de prostituição, ou


seja: o michê-gay, o qual “assume discursivamente sua posição de sujeito homossexual, apresenta, inclusive, na
maioria das vezes, traços efeminados e é seletivo quanto à escolha dos clientes” (SILVA, 2015, p.8); o travesti,
que “cobra do macho por sua representação artificial da feminilidade” (PERLONGHER, 1981, p. 68) e o
michê-macho, o qual, segundo Silva (2015, p8):
“[...] assume uma identidade de heterossexual, desvelada em suas roupas,
comportamentos e protótipos gestuais masculinos. Não é seletivo quanto aos clientes,
podendo se prostituir com homens considerados héteros, gays, travestis ou até mesmo
mulheres, de idade e posição social variadas. Segundo Perlongher (1987), trata-se, aqui,
de um curioso comércio, no qual os “normais” aparecem se prostituindo para os
“desviantes”, casos frequentes na chamada modernidade tardia, quando as velhas
identidades têm sido substituídas por identidades cambiantes.

3 Edição com cópia (xerox) integral disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/3516?show=full


4 Para o autor, a origem etimológica do termo é obscura. Reunindo fragmentos especulativos dentro das argot français
(gírias francesas): desde micchette (“seio”), miches (“nádegas”), michê (“doença venérea”), até michet (“o que paga o amor”).

200
Mais uma vez, diferendo do que ocorre com a mulher em chave de prostituição, o homem
prostituto, embora inserido num contexto de marginalização ou, no mínimo, de contravenção das
normas e costumes sociais, não tem seus elementos assinaladores de identidade questionados,
dissolvidos, negados ou anulados. Ainda que faça sexo com outro homem e que, nesta situação, no
reservado aceite submeter ou ser submetido a certas práticas, tidas como impróprias ao gênero à
luz da regra social, findado o ato, sua masculinidade está “preservada. Sai dali, supostamente
“homem” para quaisquer outras situações públicas, convencionadas e estruturadas dentro do
regramento, inclusive, o matrimônio heterossexual e manutenção deste e de tudo que orbita a seu
redor. Tal condição é impossível à mulher prostituta: para onde vai, leva consigo o estigma e a
inferiorização decorrentes daquilo que pratica como trabalho. Seu corpo, sua existência concreta e
simbólica estão, portanto, atados ao julgo histórico lançado sobre a prostituição enquanto mácula
irreversível.
Isso se justificaria, na alegativa de que, ao homem é possível um envolvimento meramente
mecânico na fisiologia do sexo. Da mulher, o ato, o envolvimento dos corpos em si exige uma
gestualidade que, ainda que podendo ser simulada, a torna vulnerável, exposta tanto a violação
física, quanto ao apego sentimental, o que põe em risco o “contrato”, já que as partes (sobretudo,
o homem), pode vir ter implicações colaterais para fora do ato, no seu cotidiano prático a partir
dessa ruptura, dessa fragilização “indesejável”. Haveria, assim, na ação do michê, sobretudo técnica.
Uma performance meramente física, já de pronto anunciada e vendida sem teatralidade e simulação
e cujo fim é a obtenção de um objetivo (o êxtase sexual).
O garoto de programa apresenta-se como um técnico especializado em prestar serviços,
munido da crença de que dispõe de atrativos viris desejados e também de que é um expert
naquilo que faz. Para alcançar essa condição, produz em si mesmo uma transformação:
negar que sua prática é sexual, pois só admite ser sexo quando há envolvimento afetivo
e que, por gostar somente de mulheres, o sexo que pratica com homens encontra-se fora
do âmbito de seu desejo. Por isso, considera o que faz apenas um serviço solicitado pelo
cliente. Tais crenças são manobras para elevar os valores cobrados pelos serviços.
Revestido da condição de técnico, dispõe-se a executar, com esmerada perfeição, as
regras estabelecidas no contrato, muitas delas nem sempre explicitadas, mas que julga ser
de ciência do cliente. Além disso, parte do pressuposto de que esse tem a obrigação de
saber dos possíveis desdobramentos do encontro como roubo, maltrato, aviltamento e
morte. Não que isso seja uma regra nas ações dos garotos de programa, embora a mídia,
constantemente, vincule a prostituição ao crime (ARRUDA, 2001). Fica então uma
questão: são garotos de programas ou assaltantes que se valem da condição de garotos
de programa para praticar roubos, assaltos, extorsões. (FARIAS, 2013, p. 351)

É nesse sentido que a prostituição é dissociada do amor romântico, pois não presume um
processo, mas apenas um produto. O indivíduo prostituído se afirma cada vez mais como um

201
dispositivo de evasão das tensões e frustrações, tanto individuais quanto coletivas, ao passo em que
sacia vontades e fantasias de seus clientes, distanciando-os assim, de um quadro eruptivo de
violência em diversas instâncias da vida comum. O corpo é plástico. O sexo pago é um acordo na
busca de um êxtase, imediato promessa de fuga momentânea do ciclo de convenções as quais o
sujeito precisa estar vinculado na dinâmica do jogo social contemporâneo. O amor romântico,
antes do sexo, infere afeto, enaltecimento da pessoa amada e exclusividade 5, sendo esta última
característica a mais difícil de existir dentro de uma relação pecuniária. Sensibilidade, alteridade,
subjetividade, são, portanto, instâncias impossíveis de serem contempladas numa relação
estabelecida à quatro paredes enquanto o medidor de tempo, à la taxímetro, roda indicando par e
passo, o aumento do valor monetário que ao fim, se apresentará. Quem pagará esta conta?

O Táxi Boy como signo da relação monetizada entre corpos

É sobre o paradigma acima exposto, que propomos breve leitura literomusical da canção
‘Garoto de Aluguel’, também nomeada como ‘Taxi Boy’, quinta faixa do álbum ‘A Peleja do Diabo com
o Dono do Céu’ (1979 – CBS Discos, com produção de Carlos Alberto Sion), tendo como compositor
e intérprete José Ramalho Neto, mais conhecido como Zé Ramalho, nascido em Brejo do Cruz,
Paraíba, por nela encontrarmos indícios de um discurso venal, pecuniário e negocial, estabelecendo
um rompimento da usual relação entre o eu-lírico masculino e a interlocutora dos versos
enunciados, que historicamente caracterizam na canção centrado nos polos homem-mulher.
O título do álbum sugere tensão: o embate entre o Diabo (ativador semântico de
negatividade, mal) e Deus (campo da positividade, força criadora, benevolente), o que se aproxima
de uma das características do discurso erótico, na qual sempre encontramos figuras antagônicas,
ambíguas que ora se complementam, ora se reprimem e se rejeitam. O termo ‘peleja’ contribui para
esta tensão quase barroca, pois reforça esse combate, ao mesmo tempo que designa o gênero
poético elaborado na forma de cantoria nordestina, à moda de repente, no qual dois ou mais poetas
disputam quem produz oral e instantaneamente o melhor verso sobre tema dado.
Outro recurso que contribui sensivelmente para a atmosfera de tensão que envolve o disco
é a sua capa, como se vê a seguir. A imagem gráfica destaca em close três personagens: uma mulher
com a língua lateralizada, posta para fora, sorrindo insinuante e com o rosto posicionado no

5 O romantismo se caracteriza como uma troca altruísta, em que a pessoa apaixonada não pensa em si mesmo, mas
sempre no outro, enquanto na prostituição ocorre uma relação egoísta, em que os indivíduos estão preocupados apenas
em satisfazer suas próprias vontades.

202
ombro/ pescoço do primeiro homem (o próprio cantor), articulação esta que pode ser lida como
índice de desejo, já que esta área do corpo se insere nas chamadas áreas erógenas6 e sua manipulação
se traduz como artificio do apelo erótico-libidinal. Este homem, que ocupa o centro da cena, tem
o olhar rebaixado e a boca semiaberta, sugerindo mais êxtase que melancolia. Tem os cabelos
despenteados e levantados na parte de trás pela mão esquerda da mulher, intimamente encostada
a seu corpo. Veste um terno branco, porém não se vê seus braços, presumivelmente abaixados. E,
por último, um segundo homem, mais velho, barba e bigode. Cartola e vestimenta preta com
detalhes em vermelho. Tem um sorriso maligno e mãos em posição de garra, como unhas enormes,
como prestes a esganar o primeiro. Entre eles, uma viola com discos de metal, típica das utilizadas
no ofício da cantoria. Este segundo homem é Zé do Caixão, conhecido personagem criado pelo
ator, cineasta e roteirista José Mojica Marins, como representação da contradição, já que a
personagem vive da morte (agente funerário), ao tempo em que busca pela perfeição: a mulher
ideal, sem defeito ou mácula que lhe dê um filho redentor7. Sobrepostos às figuras humanas há, em
vermelho, desenhos de uma cruz e um tridente, símbolos que reforçam a tensão e o dualismo:
representam Deus e o Diabo respectivamente.

6 Áreas do corpo humano que são particularmente sensíveis à estimulação sexual e podem desencadear respostas de
prazer e excitação. A sensibilidade dessas áreas varia de pessoa para pessoa, podendo mudar de intensidade ao longo
do tempo ou com a intimidade com um parceiro. Algumas das áreas erógenas mais comuns incluem: lábios, pescoço,
nuca orelhas, mamilos, genitais, parte interna das coxas, região lombar e nádegas, pés e outras.
7 Esse argumento se comprova no fato de que em diferentes filmes a personagem trabalha com a morte, mas está na

incessante busca pela mulher que considera perfeita para com esta, dar vida a um filho, na consumação de uma espécie
de profecia, dentro da qual, acredita possível alcançar a imortalidade.

203
Ficha técnica da capa:
Concepção de capa: Zé ramalho
Cenários e fotos: Ivan Cardoso
Diagramação e Montagem: Oscar Ramos e Luciano Figueiredo
Logotipo: Pedro Osmar
Participação especial: Zé do Caixão, Xuxa Lopes, Hélio Oiticica, Mônica
Schmidt e Satã
Coordenação: Carlos Alberto Sion

O álbum é composto por 10 (dez) faixas. A atmosfera ou ambiência do mesmo é inspirada


no filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969)8 e na literatura de cordel de temática
mística ou fantástica. Neste trabalho nos interessa especificamente a quinta faixa intitulada a partir
de dois substantivos comuns: Garoto (palavra do gênero masculino, que se refere a ideia de
jovialidade ou imaturidade) e Aluguel (também de gênero masculino, que significa a aquisição de
um produto mediante um pagamento previamente determinado). A partir dessa indicação
morfológica, se compreende que o produto em escambo, venda, enfim, comércio, é o próprio
garoto. Outro título dado a canção é Taxi Boy, em que Taxi se caracteriza como um transporte

8 Filme brasileiro de drama e aventura, produzido sobre a direção e roteiro de Glauber Rocha. O filme é uma mistura
única de elementos do cinema novo brasileiro, com suas críticas sociais e estéticas ousadas, e influências do western
spaghetti, que eram populares na época. Glauber utilizou um estilo visual inovador e surrealista, com ângulos de câmera
incomuns e trilha sonora marcante, criando um filme carregado de simbolismo e metáforas.

204
público, mas, destinado a um único passageiro ou pequeno grupo, por isso, com valor mais elevado
que o ônibus, fluindo por rota definida pelo cliente; enquanto Boy é o vocábulo de origem inglesa
para garoto, podendo ainda ser associado ao profissional que trabalha com entregas em domicílio
(moto-boy, por exemplo).
Em ambas as nomenclaturas se infere um horizonte de sentido quanto a troca, relação
comercial, pecuniária, mas não se esclarece de imediato o tipo de serviço/produto ofertado. Não
há explícita no título a natureza sexual que adianta se apresenta. E, esse caráter propositadamente
dúbio é o que potencializa o tenso e o dramático da situação que há de vir. Essa tensão
possivelmente seria sanada e o horizonte de possibilidades próprios do líteromusical aniquilado,
caso o título da canção fosse, por exemplo, ‘Garoto de Programa’. Comprova-se aqui a máxima de
que, em termos de arte, não há possibilidade de recepção passiva: toda leitura é um ato de
coparticipação na tecitura de novos e contínuos sentidos. Acreditamos que já a escolha do título
da canção em tela opera dois importantes rompimentos com os padrões sociais até então
estabelecidos quanto à dimensão da prostituição. O primeiro se trata da inversão de papeis, pois,
um homem é colocado como mercadoria e não uma mulher (lugar de desprestígio e mácula já
fortemente arraigado no imaginário popular) e no segundo, rompimento o compositor atribui ao
garoto um valor não somente material, mas psicológico, pois um aluguel presume acordo frontal
mediante pagamento e tempo estabelecidos, logo, ao cliente impõe-se respeitar limites entre tempo
e valor previamente determinados. A coisa alugada, ocupa espaço e voz na letra “da lei” que rege
o pacto. Impõe condições. Essa perspectiva é confirmada na primeira estrofe:
Baby!
Dê-me seu dinheiro que eu quero viver
Dê-me seu relógio que eu quero saber
Quanto tempo falta para lhe esquecer
Quanto vale um homem para amar você

Morfologicamente, observamos o uso da expressão “Dê-me” que é definida como um


verbo no imperativo afirmativo, trazendo a ideia de ordem, ao mesmo tempo em que se usa o
verbo “quero” na primeira pessoa do singular, afirmando uma vontade do eu lírico. Há uma quebra
de expectativa nessa cena enunciativa, pois não é o cliente que está exigindo algo, mas o próprio
garoto “alugado”, que ao se submeter ao comprador, também o submete as suas exigências,
colocando os dois personagens em escala de horizontalidade dentro do instante de contravenção.
Ainda constatamos o uso dos termos dinheiro e relógio, que estão associados a pagamento e tempo,
estabelecendo um acordo comercial. Não há ilusões, simulações ou utopias. A relação é objetiva e

205
pecuniária. Os corpos se entregam muito mais a mecânica fisiológica do sexo, cujo objetivo é o
gozo fortuito, do que a uma relação propriamente dita.
Nessa mesma estrofe, quanto a objetividade e centralidade deste encontro, o eu lírico
confirma a sobreposição do valor venal sobre qualquer outro: inexiste qualquer traço de “amor
romântico”, pois a satisfação dos desejos fisiológicos de um (a/o contratante) é o que retroalimenta
o dispositivo de sobrevivência do outro (o contratado). É curioso notar que, embora, seja utilizado
o verbo “amar” no último verso desta estrofe, percebemos que o efeito de sentido resulta
justamente em seu contrário: no desamor, já que não existe uma relação de amor de fato mediante
pagamento e não há pagamento que seja suficiente para adquirir tal condição (a de ser amado). É
sobre essa linha de raciocínio que se determina dois acordos: o esquecimento do cliente por parte
do garoto e a invalidação do sentimento amoroso do contratante. Ambos estão imersos num modus
vivendi expropriado de esperanças: suas carências (financeiras e afetivas, respectivamente)
retroalimentam uma relação maquínica. Não há ilusões, simulações ou utopias.
E, aparentemente há consciência quanto ao insustentável desse modus. Se por um lado o
eu que enuncia, se coloca como mercadoria, reconhece a troca sexual como profissão, ao tempo
em que a caracteriza como uma contaminação, um ramo inferior se comparado a outras profissões,
ao utilizar os adjetivos ‘suja’ e ‘vulgar’. Por outro lado, se enxerga como autoridade nessa suja
ambiência. É autoridade sobre o seu corpo e sobre o desejo do cliente objetificado nesse corpo,
quando exige mais uma vez o pagamento para realizar o ato sexual. Esse ato não é nomeado como
sexo, cúpula e muito menos como “fazer amor’, mas sim como a ação de deitar que advém da
palavra latina dejectare (de – para fora e jectare - lançar, atirar), sugerindo assim, uma ação que colocará
fim a algo, que neste caso, se trata do desejo que será saciado, vertido, “ejaculado”, mas também, o
próprio ato que deverá ser esquecido, descartado e encarado como algo cotidiano, banal, rotineiro
e sem importância, vejamos:
Minha profissão é suja e vulgar
Quero um pagamento para me deitar
E junto com você estrangular meu riso
Dê-me seu amor que dele não preciso

A estrofe também acrescenta um jogo de sentido entre os termos ‘estrangular’ e ‘riso’, em


que o primeiro é definido como o ato de matar pelo pescoço ou retirar para fora, enquanto o
segundo se apresenta como manifestação de alegria ou grunhir e guinchar. O estrangulamento pode
ser entendido como um fetiche sexual e o riso pode ser índice de ocorrência da satisfação e do
prazer, mas ambos podem ser opositores numa relação sintática, considerando que o primeiro tem

206
alusão de morte e o segundo de extravasamento, logo, pode remeter semanticamente a forma como
o garoto se sente ao se vender (fendado, partido, fragmentado), pois sabe que necessitando do
dinheiro, ao mesmo tempo ele é contaminado e agente contaminador.
Não é suficiente para o eu lírico apenas reconhecer as negativas que perpassam sua
profissão e consequentemente seu emocional, ele ainda afirma para seu “contratante” sua
importância não somente material, mas também simbólica, posto que, em nenhum momento da
canção o garoto se oferece, na verdade o mesmo é procurado, retomando assim a máxima da área
econômica: oferta x demanda como regulação das relações de precificação mercadológica e, por este
motivo, em face da alta demanda pelo enlace de corpos, é o sujeito mercadorizado que faz
exigências à seu “consumidor”, podendo inclusive, aumentar seu valor, já que este último se mostra
mais necessitado e desesperado para saciar seu desejo. É uma economia do libidinal.
Não é possível afirmar se a canção versa sobre uma relação heterossexual ou homossexual,
pois a única referência utilizada para nomear seu/sua cliente é a terminologia inglesa ‘Baby’, que
pode ser direcionada tanto a homens como a mulheres. De toda forma, a recorrência é sempre a
uma ambiência ou atmosfera de devassidão, cíclica entre êxtase e decadência. Vide-se, por exemplo,
na terceira estrofe a recorrência a uma figura supostamente feminina (ao menos no plano da
morfologia) dada pelo substantivo ‘dama’, mas que, em seguida, ao ser caracterizada como ‘louca’,
adquire ressonâncias semânticas no campo da expressividade gay (forma de tratamento entre gays
para designar aquela que se comporta em público de modo extravagante ou excessivo). Ou...esse
adjetivo pode também sugerir que a personagem feminina se encontra em desiquilíbrio psicológico,
por recorrentemente procurar um homem para saciar seus desejos fisiológicos e carnais ou pelo
fato de acreditar que tal prática será capaz de preencher seu vazio sentimental e/ou reestabelecer
uma relação afetiva estável. Crença essa que é contrariada através da configuração inviável entre
tempo e “amor”, num mundo de relações superficiais e precarizadas, focadas na competitividade
pela sobrevivência. De toda sorte, é sempre no finito, no perecível e no superficial que mira essa
enunciação, sem complacência:
Baby!
Nossa relação acaba-se assim
Como um caramelo que chega-se ao fim
Na boca vermelha de uma dama louca
Pague meu dinheiro e vista sua roupa

O exposto anterior se confirma na criação da terceira estrofe através da relação sintática


entre os substantivos ‘caramelo’ e ‘fim’, já que o primeiro se trata de um doce feito de açúcar que

207
se dissolve facilmente e o segundo infere que algo está interrompido ou finalizado. É a coda, o corte
final. Essa concepção se comprova no último verso, quando o prostituto ordena que a cliente se
vista e em seguida vá embora. O discurso não se encerra com um agradecimento ou outro gesto
cortez em face do pagamento e nem com a confirmação de um desejo saciado. O enunciador
apenas reafirma que o ato já é findado e não presume para ele nenhum indicativo de enlace
amoroso, quanto menos afetivo, nem sequer a consumação de uma boa performance sexual, dado
que, sua situação é temporária e marginal e seu produto não requer público específico ao qual se
destine marketing ou propaganda.
Deixe a porta aberta quando for saindo
Você vai chorando e eu fico sorrindo
Conte pras amigas que tudo foi mal (tudo foi mal!)
Nada me preocupa de um marginal

Há desprendimento quanto a qualquer eventual repercussão negativa do malogrado


encontro. Não há preservação da alteridade. Time is money! E o tempo acabou: saciada(o) ou não,
satisfeita(o) ou não, a hora é de ruptura. O corpo é chave de uma experiência superficial na qual o
sexo é fisiológico, não índice de afetividade, troca, parceria ou qualquer outro ativador de um
horizonte afetivo. O corpo é o começo e o fim. Nada mais que isso. Sem transcendências.

Conclusão

Em Garoto de Aluguel, Zé Ramalho aposta na quebra de expectativas: primeiro por não


termos uma mulher como símbolo de prostituição, segundo, por ser dada voz não ao cliente, mas
ao próprio prostituto e, em último plano, um eu-lírico que se coloca como voz consciente de seu
lugar marginalizado e rejeitado ao mesmo passo em que subjuga seu cliente, tendo consciência de
sua fragilidade em face de uma experiência de solidão e vazio existencial.
Esse poder simbólico do eu-lírico enquanto protagonista de um mundo decadente em seus
afetos se faz sobre duas vertentes distintas: a rejeição masculina sobre a mulher e a insurreição
masculina sobre si mesmo. A primeira vertente é constatada no fato do sujeito sempre apresentar
suas ordenanças e se utilizar de ironias e dualidades, como ocorre na seguinte oração: “Dê-me seu
amor que dele não preciso”, onde é descartada essa perspectiva amorosa e solicitado algo que, para
o mesmo, não é necessário. Portanto, o que essa mulher (ou esse homem) poderia oferecer de
sublime (seu potencial afeto) é rejeitado, uma vez que ela/ele também rejeita o taxi-boy como
amante platônico ao ofertar-lhe um pagamento para suprir suas vontades fica evidente que ele é

208
apenas isso: um serviçal. Ambos sabem de sua irrevogável imersão num limbo onde afetos valem
menos que cifras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FARIAS, Francisco Ramos de. Atividades secretas em noites sombrias: memórias do universo dos garotos
de programa. R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.10, n.1, p. 344-368, Jan./Jul. 2013.

GUIMARÃES, Roberto Mendes. Prostituição: patologia, trabalho, prazer? O discurso de mulheres


prostitutas. 2007. 297f. Dissertação (Mestrado em Ciências, área de concentração: Psicologia) Programa de
Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (FFCLRP – USP) - Departamento de Psicologia
E Educação. Ribeirão Preto – SP, 2007.

HAWKES, G. A Sociology of Sex and Sexuality. Buckingham: Open University Press, 1999.

NARDI, H. C. Sexo e poder nas tramas pós(?)identitárias: reflexões sobre a prostituição masculina. In:
LOPES, L. P. M.; BASTOS, L. B. (orgs.) Para além da identidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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SILVA, Ananias Agostinho da. Entre dizeres e fazeres: construção identitária de garotos de programas
(michês) “Tudo com remédio, senão o pau não sobe”. In Memento. Revista de Linguagem, Cultura e
Discurso Mestrado em Letras - UNINCOR - N. 2 (julho-dezembro de 2015), 2015.

209
A Concha Vazia do Amor1
Profa. Dra. Simone Ravizzini

O tema do amor é caro para mim. Dele frutificou minha tese de doutorado sob o título A
Concha vazia do amor. Título surrupiado da poesia de Drummond, das letras de um dos seres que
sabem fazer algo com o amor. Afinal, já nos dizia Lacan, a poesia é o que de mais sério se pode
fazer com o amor. (sem 20)
Quando assim pincei este tema, não imaginava a empreitada que teria que enfrentar.
Embora parecendo um tema suave, inebriante, o amor não se apreende e nem se circunscreve com
facilidade.
Uma pergunta insistente plainou sobre todas as linhas: Como falar de amor sem recorrer a
uma certa embriaguez imaginária? Como falar de amor, para além do encantamento que ele nos
causa? Entretanto, Falar do amor, “não se faz outra coisa no discurso analítico.” (Lacan, 1972-1973,
p. 112)
Devemos dizer que é pela porta entreaberta pelo amor que se inaugura a psicanálise. Isso
porque é precisamente de um desencontro amoroso que a psicanálise pôde advir. Quem não se
lembra de Ana O. e de seu amor por Breuer? É a partir deste desencontro, que Freud se banha nas
linhas traçadas pelo amor, sem se confundir.
O amor perpassa sagazmente os enlaces. Ainda assim, estamos sempre insatisfeitos com
seus resultados. Do amor, o que então poderíamos dizer...mais ainda?
Tomemos para começar nosso percurso por aqui a frase emblemática de Lacan: Amar é dar
o que não se tem (1956-57) que nos convoca a refletir sobre o que seria o amor. Em princípio, causa-
nos estranheza pensar que o amor, sentimento tão enaltecido em nossa vida cotidiana, seria
oferecer ao outro algo que não se possui. Quando pensamos sobre o amor, no decorrer de nosso
dia a dia, tendemos a achar que ele virá para sanar uma inquietude que se apresenta aos seres
falantes, relativa à falta que lhes constitui.
De fato, quando se ama, tem-se a impressão de que esta falta deixará de existir, que o outro
será capaz de nos trazer a completude que tanto almejamos e que a insatisfação quanto a nossa

1Trabalho para apresentação no 2º Congresso Nacional sobre amores literários da Universidade Federal da Paraíba.
Agradecimentos: Professor Hermano de França, Matheus Pereira – monitor, Milton Douglas

210
existência de seres da fala será ludibriada. Lembremo-nos de Freud em (1930), situando o amor
como aquele que nos entorpece, funcionando por vezes como um veículo intoxicante diante de
nossas mazelas. Assim, quando nos deparamos com essa afirmação lacaniana de que o amor dá o
que não se tem, somos instigados a retomar o olhar sobre a função do amor na relação do sujeito
com o Outro, Outro da linguagem, visto que ela inclui também a falta.
Mesmo que o amor possibilite instituir um vínculo entre os seres falantes, sob esta
perspectiva lacaniana, ele não terá o poder de eliminar a incompletude inerente a cada um de nós,
já que amar é oferecer algo que não se tem. Tal incompletude é originária da própria relação do ser
falante com o significante, de modo que o homem não pode visar ser inteiro mediante esta relação.
É o preço a pagar desde o momento em que, no ser humano, ocorre um desvio de suas
necessidades, posto que fala. Qualquer que seja a demanda, ela retornará sempre alienada a uma
configuração significante e fadada a restar incompleta no que diz respeito ao objeto.
Miller (2008), em uma entrevista Amor e Psicanálise, declara que somente podemos amar
quando algo nos falta. De outro modo, o enlace amoroso não se estabelece. O próprio Freud
delineia em seu percurso esta questão perante a falta pois para que haja investimento no mundo é
preciso, diante do mal-estar que nos acomete, realizar uma ação especial (FREUD, 1930/1974 :85)
que busca satisfação para além de nós mesmos. Se conseguíssemos, através de nossas alucinações
infantis, elaborar esta inadequação que nos perturba na relação com o mundo, correríamos o risco
de permanecer ensimesmados sem nem mesmo construirmos o que denominamos eu. Seria a
imagem da boca que se beija a si mesma!
De tal forma, desde os primórdios da construção do eu vemos uma tentativa de
harmonização através do objeto. No autoerotismo, momento anterior à constituição do eu, já existe
a presença de objetos, apenas ainda não há diferenciação entre eu e outro. A criança bem pequena
não consegue discriminar o que pertence a ela ou ao mundo. Ela está dissolvida no mundo.
Em bonita passagem do texto freudiano intitulado O Mal-estar na Cultura detectamos ser
preciso “retirar do eu, o mundo” (FREUD, 1930/1974 :84), constituindo assim um delineamento
para o primeiro. Deriva disto a ilusória sensação de ser possível reaver este momento mítico no
qual o eu ainda não se discrimina do mundo, um “sentimento oceânico ilimitado e sem fronteiras”.
(FREUD, 1930/1974 :82) Sensação ideal fadada ao fracasso quando a relação amorosa procura
almejar que eu e outro sejam um só ser.
Com o narcisismo se inicia a escolha objetal. O primeiro objeto é o próprio eu, pois investir
libidinalmente no eu é, concomitantemente, constituí-lo. Neste advento, torna-se possível a

211
erotização do próprio corpo, antes fragmentado, propiciando a passagem que se estabelece do
corpo ao eu, com a suposição de uma unidade. Jacques-Alain Miller (2005) ressalta que Freud foi
o primeiro a dar este estatuto ao narcisismo, como um lugar próprio e primordial de investimento.
O interesse pelo mundo, seus objetos, aparecem como derivações disso, “como pseudópodes de
uma ameba”. (MILLER, 2005:132)
Portanto, no texto sobre o narcisismo, Freud (1914b) nos assegura que amamos de acordo
com o que gostaríamos de ser ou de ter, como aquele que nos cuidou ou nos protegeu. De todo
modo, buscamos algo a partir da imagem que estabelecemos de nós mesmos. “O que possui a
excelência que falta ao eu para torná-lo ideal é amado”. (FREUD, 1914b/1974:118) Assim, “a
estrutura do amor é fundamentalmente narcísica” (LACAN, 1964/1985: 176). Procura-se no
mundo algo perdido, um ponto não representável na assunção do eu. Algo que se institui para além
da relação narcísica.
Freud insiste nisso: de que toda maneira de encontrar o objeto é continuação de uma
tendência na qual se trata de um objeto a ser reencontrado. Objeto que foi inicialmente o ponto de
ligação das primeiras satisfações da criança. Quanto a este aspecto, Lacan nos diz: uma nostalgia
liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo esforço de busca. Ela marca a
redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que, precisamente, este não é o mesmo
objeto, não poderia sê-lo.
A primazia dessa dialética coloca no centro da relação sujeito-objeto uma tensão
fundamental que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que
será encontrado. É através da busca de uma satisfação passada e ultrapassada que o novo objeto é
procurado, sendo, entretanto, encontrado e apreendido noutra parte que não no ponto onde se
procura. Trata-se sempre de uma defasagem neste encontro.
Existe aí uma distância fundamental, um elemento essencialmente conflitual incluído em
toda busca do objeto. (LACAN, 1956- 57/1995: 13) Assim, a ideia de um objeto harmônico que
amalgame por sua natureza a relação sujeito-objeto é perfeitamente contradita pela experiência em
nossas vidas. No cotidiano, costumamos ouvir os ruídos de tal desavença através das queixas
trazidas por amigos, bem como pelas demandas que chegam aos nossos consultórios. Nem mesmo
os sites de relacionamento escapam a tal desencontro! Isso faz vociferar uma desarmonia estrutural,
dando lugar ao próprio empreendimento analítico, na medida que este sustenta o vazio que não se
transpõe jamais.

212
Isso porque há entre o sujeito e o objeto uma hiância, um encontro que não funciona bem,
deixando fora de sua circunscrição um resto que não casa. De um lado temos o sujeito, um aparelho
lacunar, que se constitui dividido em sua relação com o Outro, cujo vazio possibilitará a instauração
da função do objeto, mas sempre como perdido. De outro, temos o objeto como presença de um
cavo, um vazio nunca preenchível plenamente. Diante do espelho, através da relação especular,
não apenas fabricamos a imagem que temos de nós mesmos, como também experenciamos a
apreensão de uma falta possível, de que alguma coisa mais além pode existir. Assim, podemos
constituir alguma coisa que nos falta. (LACAN, 1956-57/1995: 179)
Portanto, é a partir de uma falta que o apelo ao Outro comparece. É também, a partir dela,
que podemos nomear o que está faltando ao Outro, bem como a nós mesmos. Sendo assim, inicia-
se a partida do jogo amoroso, quando supomos, ilusoriamente, a possibilidade de fechamento de
nossa divisão através do amor. Quanto a esta posição, Miller esclarece que o amor só pode advir
“quando confessamos nossa falta e reconhecemos a necessidade do outro: que ele nos falta”.
(MILLER, 2008:10) Quando nos sentimos completos, se isso é possível para o ser falante, não
produziremos esta jogatina.
Com a formulação do objeto a, Lacan (1962-63) vai depurar ainda melhor essa questão com
a falta. Ele demarca que na relação com o significante, sempre existirá para o ser falante, um resto
de corpo não assimilável. “... é que sempre há no corpo, em virtude desse engajamento na dialética
significante, algo de separado, algo de sacrificado, algo de inerte, que é a libra de carne. (LACAN,
1962-63/2005:242) A figura da libra de carne é tomada por Lacan do Mercador de Veneza, peça
shakespeareana (1596). Esta é uma obra bastante incandescente do célebre dramaturgo inglês,
especialmente por se tratar da questão do valor de troca negociado nas relações humanas.
Neste caso, o pagamento em jogo no pacto consiste no pedaço de carne a ser retirado
próximo ao coração. Não é à toa que é daí que se pretende retirar a libra de carne apropriada por
Lacan. (1962-63) Com esta apropriação, ele faz alusão ao encontro com o lado implacável do ser
falante com o Outro, que tal como Antônio na peça do Mercador de Veneza, precisará também
saldar, com carne, sua dívida.
Este aspecto arredio subsiste por si na função que Lacan delega ao objeto a, como aquele
que resta na operação de inserção do sujeito no campo da linguagem. “O que é o resto? É aquilo
que sobrevive à provação da divisão do campo do Outro pela presença do sujeito”. (LACAN,
1962-63/2005: 243) Esta função de resto, que é remanescente à prova do corte significante, ampara
a escolha do objeto de amor em seu aspecto parcial. De tal forma, no ano seguinte, Lacan (1964)

213
vai intitular um de seus capítulos como: Em ti mais que tu, precisamente para demonstrar que o que
é amado no objeto reside para além dele mesmo, sem substância.
Assim, no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, acentua-se um lugar especial
no amor para o objeto a através da seguinte afirmação: “Eu te amo, mas porque, inexplicavelmente,
amo em ti algo mais do que tu - objeto a minúsculo, eu te mutilo”. (LACAN, 1964/ 1985:254) O
a resiste como objeto indeglutível na divisão inaugural do sujeito, bem como aquilo que é
impossível de se absorver no advento de nossa imagem narcísica. “É o resto atravessado na
garganta do significante” (LACAN, 1964/1985:255) que procuramos de alguma forma encontrar
no mundo persistentemente.
Quanto a esta perspectiva de inadequação entre os seres de fala, Lacan a alinhava de forma
retumbante quando atrela o amor ao não haver da relação sexual. Se com o conceito de castração
Freud a demarca, Lacan a acirra com tal afirmação, sublinhando o impossível de se transpor.
A construção de tal articulação começa a se delinear desde o seminário: De um discurso que
não fosse semblante (1969-1970), quando Lacan elabora a não existência deste tipo de relação entre os
falantes. Entretanto, a ligação entre o amor e o não haver da relação sexual apenas se estabelece
com clareza no seminário: Mais, ainda (1972-73). Neste último, ele afirma que o gozo é marcado de
um lado por um vazio e de outro pelo gozo fálico. O gozo fálico é o gozo possível de se representar
pelo significante. Quanto ao outro, resta em aberto. Ele não está nem lá nem cá, escapulindo para
um mais além do traço significante. Também ali neste seminário, Lacan demarca que o amor
comporta uma insistência em reunir tais gozos, embora eles não possam se fundir por serem
distintos.
Com esta elaboração, Lacan (1971-72) introduz então uma nova lógica. No que diz respeito
ao sexual, no ser humano, trata-se sempre de uma elaborada construção. Mais fácil seria se ela
acontecesse apenas pela presença ou ausência do órgão biológico, fenomenologicamente falando.
Todavia, nós seres de fala, não somos tão simples assim! Lacan insiste em demarcar que a diferença
sexual se constitui com a linguagem. “Diferença como foi tatuada entre meninos e meninas por
seus pais”. (LACAN, 1971-72/2012: 19) São atributos da linguagem. Deste modo, se há escolha
do objeto é porque não há relação sexual, porque homem e mulher não podem se reconhecer
puramente como tais. Como conseguinte, serão necessários outros signos para que essa escolha
aconteça, a partir de letras que cifram o corpo.
Neste ponto precisamos delinear o que Lacan determina como impossível de realizar na
relação entre os seres falantes. Certamente, quando ele diz que “não há relação sexual”, ele não

214
quer com isso atestar que o ato sexual não acontece. Seria irreal sustentar tal afirmação. Também
não pretende dizer que o amor não possa existir. Muito ao contrário, ele nos pontua que “essa
ausência não impede tal ligação, mas lhe dá suas condições”. (LACAN, 1971- 72/2012:19) O que
ele assim acirra é a existência de um mal-entendido estrutural na relação entre os seres de fala. Algo
impossível de se sobrepujar, mas que ao invés de levar à degradação das relações, precisa ser
incorporado como inerente a ela. Um vazio intransponível que atormenta o neurótico a cada vez
que se lança na via de um ideal de perfeição da relação entre os sexos que é inexistente.
Portanto, a diferença que se estabelece e permanece entre os sujeitos em sua posição quanto
ao gozo faz com que algo não funcione bem entre eles. Essa queixa insiste em se manifestar. E não
há qualquer sinal de que seu ruído se extinguirá em nossa sociedade. Podemos, por conseguinte,
situar a dificuldade que se apresenta para o amor a partir do tipo de enlace que se pretende para
ele. Ela reside precisamente na tentativa proposta em amarrar um gozo a outro de forma
semelhante. Esse é um problema que comparece para o amor: ter que lidar com o gozo que não se
compartilha, com o gozo singular de cada um dos seres da fala.
O amor se configura então como uma resposta nascida do âmago da impossibilidade: do
impossível de se escrever trazido pela ausência da relação sexual. Lacan o institui como um signo
no lugar desta falha inextirpável. “Está aí a mola do amor”. (LACAN, 1972-73/1985: 122) Mola
que funciona na medida em que o amor pode se apresentar como uma “costura” que tenta alinhavar
o não haver da relação sexual. o amor demanda mais e mais amor. Ele não se cansa de demandá-
lo, reforçaria Lacan. Portanto, o amor pode ser caracterizado como sentimento, que apesar de tudo,
faz laço entre o que permanecerá distinto. Ele faz parecer que a relação é possível. Um laço
substituto por não existir o enlace genuíno da relação sexual, por não ser possível a
complementaridade. Por isso, ele é liame que se mantém aos tropeços. Apenas “através deste para-
esser, devemos articular o que vem em suplência à relação sexual enquanto inexistente. (...) O que
vem em suplência é precisamente o amor.” (LACAN, 1972-73/1985: 62)
Ao amor cabe escrever o que não se extingue e não se inscreve, não importando o quanto
dure. Para finalizar, concluo com as letras da música de Vinicius de Moraes:

De tudo, ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

215
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive)


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

216
Eu então o que serei? Transcendência e sacralização
como suportes temáticas na canção ‘O amor é um ato
revolucionário’, de Chico César
Gabriela Régia de Oliveira Lima

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, campus Tauá. Membro do Núcleo de Estudos
em Cultura e Arte (NECA/IFCE-Tauá). Membro do Núcleo de Estudos Teórico-Críticos em Escrita Literária e
Interações Linguísticas – NETCELIL/IFCE campus Tauá. gabriela.regia.oliveira06@aluno.ifce.edu.br

Auricélio Ferreira de Souza


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE, campus Tauá. Coordenador do Núcleo de
Estudos em Cultura e Arte (NECA/IFCE-Tauá). Vice-líder do Núcleo de Estudos Teórico-Críticos em Escrita
Literária e Interações Linguísticas – NETCELIL/IFCE campus Tauá.
auricelioferreirasouza@gmail.com

RESUMO: A poética do compositor paraibano Chico César, além das recorrentes marcas enunciativas de
afirmação das categorias como pertença e resistência negra, é também marcada pela tônica neobarroca que,
pela força da manipulação de figuras de linguagem várias, confere ao sentimento afetivo-confessional a
dimensão do evanescente, daquilo que transcende o encontro físico material dos corpos dos amantes,
elastecendo as fronteiras desse encontro para o quase espiritual, cósmico, transcendental. Através de um
olhar/ouvido mais atento, tal característica pode ser percebida ao longo de vários álbuns desse compositor
com maior ou menor grau de intensidade. Nesse breve texto o convite se faz para ouvir/ler/experienciar a
canção O amor é um ato revolucionário, do álbum homônimo, de 2019, nele percebendo o jogo linguístico que se
estabelece por meio da voz de um eu-lírico que ao repetir recorrentemente a sentença “o amor é um ato
revolucionário” e na sequência expõe situações de triunfo desse sentimento sobre as limitações humanas,
termina por tecer um enunciado marcado pela sobreposição do que é essente sobre o que é aparente, isto é:
da transcendência sobre a materialidade ou finitude. O entendimento, portanto, é o de que o amor é espiritual,
cósmico, transcendental, logo, sacralizador de um encontro que é mais que cronologia e presença: é
completude e redenção. “O corpo e a alma, um no outro, todo e tudo/ Quem ama fala ao mundo mesmo
mudo/ Seu pulso é pulsação do Universo em dança/ Nas inquietações da guerra insana, a paz alcança/ Quem
traz a lança do amor e seu escudo.” O método para a leitura proposta parte da investigação do campo
semiosemântico do universo literomusical. Para tanto, nos valeremos de aporte semiótico em um análise
discursivo-estrutural do texto em tela (Peirce, Tatit e outros).
Palavras-chave: Amor; Transcendência; Sacralização; Literomusical; Chico César.

Introdução

A análise das manifestações artísticas emergentes entorno do conceito de neobarroco surgiu


dentro do campo das teorias da cultura de massa, intensificadas por volta dos anos 1980 e 1990. No
que tange ao viés literário, contudo, vê-se a ascensão do conceito como ponto focal nas discussões
sobre literaturas latino-americanas, especialmente já nos anos 1960 e 1970. Nesse sentido, a teoria
do neobarroco ganhará notoriedade para os estudos literários e para a análise da cultura latino-

217
americana pelas contribuições do pós-estruturalista Severo Sarduy, dos ensaios de José Lezama Lima,
Alejo Carpentier e Haroldo de Campos.
As contribuições dos teóricos da literatura foram fundamentais para que o conceito do
neobarroco alcançasse o Brasil e os países circunvizinhos. No entanto, as propostas levantadas por
eles não se debruçaram somente à expressão literária. A exemplo disso, Severo Sarduy é um expoente
no que diz respeito à projeção do conceito e das características do neobarroco em fenômenos atuais,
cujo sentidos vão além da concepção de estilo e atuam também como revolução.
A arte do século XX passa a ser discutida e vinculada ao conceito de barroco a partir das
primeiras noções sobre o barroco com, especialmente, Jacob Burckhardt (1818-1897) e Heinrich
Wölfflin. Com Jacob, temos a superação do sentido de gosto, isto é, de adjetivo pejorativo da arte
barroca e, assim, aponta o termo como substantivo que configura um momento artístico e o insere
nas fases da cronologia da arte. Já com Wölfflin (1864-1965), no livro Renascença e Barroco (1989,
edição brasileira), a perspectiva indicada é de rompimento da definição de barroco a partir das ideias
de pérola irregular e silogismo escolástico, além de ter sido o primeiro a aplicar o conceito na literatura
e na música ao estabelecer comparação entre a obra clássica de Ariosto (Orlando Furioso, 1516) e a
literatura de Tasso (Jerusalém libertada, 1584).
Partindo da ideia de que recepções recentes do barroco divulgam os elementos que
conduzem à subversão artística, atuando como experimentalistas e vanguardas da poética do século
XX, contribuindo à construção de uma identidade social, é possível afirmar que o neobarroco surge
como fruto desse movimento de revolução e liberdade. Nesse sentido, vê-se em manifestações
poéticas emergentes traços desse barroco cujo centro provém da perda de um princípio que ordenava
o sentido do mundo e o organismo vivo da sociedade.
Entendendo que o conflito interno do artista se apoia no texto barroco através das
construções estilizadas com o uso de antíteses, hipérboles, paradoxos, metáforas, existe a dificuldade
em se limitar ao racional e o poeta se vale do exagero e da distorção da realidade para também cultuar
o contraste que o direciona, além de apresentar o conflito do artista mediante às antinomias do
universo externo, ao passo em que convida o enunciatário para esse campo paradoxo.
Para o filósofo Omar Calabrese, o gosto ou estilo do nosso tempo recebe o nome de
neobarroco, não como retomada, mas como analogia:

Muitos importantes fenômenos de cultura do nosso tempo são marcas de uma “forma”
interna específica que pode trazer à mente o barroco. Só a evocação do termo pode fazer
nascer mais do que uma objecção imediata. Quanto ao prefixo “neo”. Assim como o “pós”
de “pós-moderno” fazia pensar num “depois”, ou num “contra” a modernidade, também
“neo” poderá levar a crer na ideia de repetição, regresso, reciclagem de um período
específico do passado, que seria então precisamente o barroco. (CALABRESE, 1999, p.27).

218
Em consonância com a ideia do autor, não buscamos entender o fenômeno enquanto
repetição histórica e, sim, como estrutura que se encontra em um tempo discursivo outro e com
destinadores diversos. Desse modo, o que nos interessa também são as alternâncias da agudeza que
gerem dois tipos de imagens: icástico (nitidez) e fantástico (imaginação). Por atuarem em oposição,
o excesso de um retroalimenta o outro.
Adiante, Severo Sarduy (1979) defende o neobarroco como desperdício que resulta no prazer.
Para tanto, argumenta que a linguagem neobarroca é superabundante e o seu foco não é veicular a
mensagem, mas o desperdício como modulação da agudeza, tanto de expressão, quanto de conteúdo,
a fim de atingir o reconhecimento inteligível. Diante disso, o autor fornece características que
envolvem o neobarroco: extrema artificialização (substituição de signos, proliferação, condensação) e
intertextualidade (paródia e citação). Através da engenhosidade do poeta e da dissimulação do
concreto é que ocorre a descoberta do sensível.
Partindo da premissa de Lezama Lima (1988, p.80) que considera o “barroco como arte da
“contraconquista”, é possível afirmar que a estética percorre dois momentos, em que o primeiro será
do colonizador e o segundo do colonizado. No primeiro (agudeza seiscentista) prevalece a conquista
por meio da imposição da cultura e da língua e, consequentemente, gera um barroco assentado na
lógica, nitidez e imperatividade de valores do colonizador. O segundo, por sua vez, apresenta a
“contraconquista” com a antropofagia e transformação das imposições europeias. Assim, tem-se a
passagem de uma agudeza com narrativa fechada para uma agudeza com narrativa aberta e marcada
pela intensidade. Há, portanto, a ideia de que o barroco é o ponto de início da contracolonização da
arte nas Américas. 66
Um dos conceitos norteadores para esse estudo é o de obra aberta, em que o enunciatário tem
consciência de que “cada frase, cada figura se abre para uma multiformidade de significados que ele
deverá descobrir” (ECO, 1986, p.43). Nessa direção, os resultados da interpretação são ditados pela
seleção e combinação do texto semiótico, isto é, da estrutura sintática, fonológica e semântica do
enunciado.
O movimento duplo que ocorre a partir dessa abertura indica novas condições de enunciador
e enunciatário, uma vez que passam a transitar em estados ativo e passivo. Assim, o enunciador
competente contorna novas formas sobre o objeto poético, dando-lhe mais fluidez. O enunciatário,

66Para Lezama Lima, o barroco é uma manifestação própria dos latino-americanos, isto é, não se configura apenas como
uma dimensão histórica da literatura. Dessa forma, portanto, pode ser compreendida como um fenômeno de
ressonâncias retrospectivas, mas também prospectivas.

219
por sua vez, é convidado a participar mais do esmaecimento através de uma nitidez que reestabelece
os contornos. Essa ocorrência se dá por meio de dois vetores essenciais: saber poético e fazer poético. No
saber poético, o autor dirige a abertura do objeto, já no fazer poético a competência é posta ao enunciatário
capaz de receber as propostas dentro do objeto enunciado.
A respeito disso, trazemos à tona a instância da enunciação ego-hic et nunc = eu, aqui e agora,
ou, (pessoa- tempo – espaço). As categorias da enunciação esclarecem que, por meio da colocação
dos elementos dêiticos é possível chegar a uma referência de sentido. Dessa maneira, ao tomar como
objeto de análise a canção “O amor é um ato revolucionário”, do álbum de mesmo nome (Chita
Produções, 2019), consideramos também verificar a performance da sua poesia e como ela se atualiza
no saber e na crença do objeto estético. Em outras palavras, o objetivo é investigar como a poética
musical em questão revela uma recombinação do objeto aberto, dinâmico e fluido e oferta ao
enunciatário o leque de possibilidades de sentido, no caso: espiritual, cósmico, transcendental.
Tendo como base a exploração dos entraves linguísticos, faremos um breve retorno à agudeza
dos preceptistas seiscentistas, de modo a esclarecer essa permanência da intensidade da linguagem
por meio do neobarroco, de modo a verificar a anacronia do jogo tensivo e a persuasão que opera
no enunciatário, distinguindo os dois tempos discursivos (barroco e neobarroco) e os diferentes
destinadores. A seguir, verificaremos essas propriedades em Gregório de Matos.

Agudeza seiscentista: o caso Gregório de Matos

A agudeza seiscentista, segundo Hansen (2006) leva em conta os destinadores retóricos, que
estabelecem uma convenção poética como reconhecimento socialmente partilhado por poetas e
público contemporâneos à época. Desse modo, a poesia seiscentista era recebida pelo público da
época a partir da regência de um simulacro discursivo.
Dito isso, lembra-se que, dentro das discussões literárias brasileiras, há ainda uma lacuna
sobre como foi estabelecido o cânone. Ao fazer o resgate de Gregório e do barroco, Haroldo de
Campos nos mostra o ocultamento dos objetos agudos como origem da nossa literatura, além de
levantar a tese de que desde a colonização século XVII) existe um neobarroco como expressão do
barroco americano do colonizado. Assim, a diferenciação entre os portugueses do Brasil e dos
espanhóis ocorria por meio da fantasia e da manipulação dos significantes.
Ao seguir a ideia de simulacro discursivo, propõe-se também alcançar a clareza sobre
verossimilhança, cuja técnica é usada para indicar a dissimulação (competência do enunciador) para
atingir o efeito de fingimento. Nesse sentido, tem-se o exemplo de dois enunciadores: enunciador
discreto e enunciador néscio. Enquanto o discreto se move pela prudência e pelo engenho, os néscios

220
são reconhecidos como desprovidos de discernimento e marcados pela rusticidade. No poema “À
cidade da Bahia” é possível visualizar o sujeito da enunciação que é capaz de englobar o enunciador
(discreto) e enunciatário pressupostos, em que se estabelece um fazer persuasivo e um fazer
interpretativo na cena discursiva. Por exemplo, no poema “A Jesus Cristo Nosso Senhor”, temos um
ator discursivo que instaura as instâncias “eu-aqui-agora” e, ao simular um “eu” está implicando um
“tu”:
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta piedade me despido;
Antes, quanto mais tenho delinquido.
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa que vos há ofendido
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.

A debreagem enunciativa, de acordo com Fiorin (1995, p.28) instala os simulacros do ego-hic-
nunc enunciativos e, com suas apreciações dos fatos, constrói um efeito de subjetividade. Assim, o
poeta constrói um discurso competente e capaz de convencer o leitor a crer na verdade do seu texto
dos enunciados, isto é, a verossimilhança. A poesia religiosa e lírica de Gregório ajuda a compreender
os dilemas da era barroca.
Nesse sentido, o poema em questão se vale do jogo de contrários a partir de uma visão
religiosa, em que as antinomias (espírito e matéria) estão sendo confrontadas pela culpa e pelo perdão
(irar x abrandar, ofender x lisonjear, perdoar x pecar). Ao optar pela dissimulação do sentir e pelo
labirinto de palavras, o autor marca uma tensividade antitética entre o carnal e o espiritual que cede
aos mecanismos de poder representados pelo sentimento de culpa e perdão. Os verbos trabalhados
em primeira pessoa são uma amostra de um poema cuja temática é sustentada pelo pathos, em que a
aproximação causa o efeito de crença no enunciatário. Há, portanto, a tensão entre a demonstração
das paixões, o que sente e o que exterioriza. Assim, em consonância com o ensaísta mexicano
Octavio Paz, há uma briga mortal entre esta vida e a outra, este mundo e o além, o corpo e a alma -

221
um antagonismo que penetra os domínios da linguagem e, em meio às suas inversões e retorções,
nos faz ver a palavra como um autêntico “corpo vivo”67
A característica central da primeira propriedade da agudeza é a de pressupor um jogo
enunciativo entre um enunciador que é capaz de despertar o maravilhamento e de condensar os
elementos combinados; e um enunciatário cuja função é se deleitar diante do primeiro impacto e
após a compreensão dos artifícios da agudeza.
Em “O amor é um ator revolucionário”, canção de Chico César, temos a mostra de um
destinador e tempo discursivo diferentes (século XXI), cuja marcas da agudeza se mostram presentes
sob o conceito de neobarroco.
O amor é um ato revolucionário
Quem vive amando, dando amor e sendo amado
Colhendo o que lhe é oferecido
E a si mesmo se coloca ofertado
Se está nu, veste o manto sagrado
Que ao que ama o infinito faz vestido
De Deus e os deuses, sim, é o mais querido
Mesmo no escuro, seu sentir é iluminado

Nesses primeiros versos, o cantor parte da ideia de amor como prática revolucionário e, em
sequência, aponta como essa revolução ocorre. Ao transcender a concepção de amor somente como
encontro físico e carnal, o cantor assinala um ato contínuo (modus operandi) que gera um efeito de ação
e reação (dando amor e sendo amado). Adiante, ao usar os sinônimos oferecido e ofertado instaura outra
dimensão de amor como doação e sacrifício. As posições relacionais dos actantes revelam, portanto,
um sujeito em conjunção seu objeto (S U O). Através dos termos que remetem aos campos
semânticos do físico e do espiritual, vê-se desenhar o amor como manifestação transcendental e
enquanto fonte de suprimento para as necessidades humanas:

67
PAES, Octavio. Conjunciones y disyunciones. Joaquim Moritz, México, 1969, p.34.

222
manto
nu sagrado

veste infinito

Deus
vestido
deuses
escuro
iluminado

O uso do recurso da antítese traz para a letra da canção o aceno de agudeza no plano de
conteúdo da canção, além de conduzir os efeitos de sentido manifestados. Conforme aponta Grácian
(1987, p.58), esse tipo de agudeza com ênfase no conceito projeta correspondências semânticas
inesperadas entre conteúdos. Adiante, o texto traz a reafirmação do amor como ato revolucionário.

O amor é um ato revolucionário


Por estados e religiões temido
Quem pelo amor é pertencido
A si governa e só a ele é confessado
Que ama, ao andar, cria sua estrada
Em seu vôo vê as planícies prazerosas
E no cume das montanhas alterosas
Toca em gozo a rosas viva imaculada

No trecho são trabalhadas palavras com recursos de aliteração (eco), de sentidos que se
contrapõem e que, além de remeter à noção de mecanismo de poder pela manipulação no jogo da
enunciação, constrói “sujeito-corpo-objeto” em euforia, evidenciando o movimento pendular entre
atração (toque e gozo) e repulsa (rosa imaculada). Quando efetivadas, resultam no poder como fonte
de autonomia daquele que ama:

tocar não-tocar

gozo imaculada

A concepção do amor como doutrina e exercício enraizado na vida cotidiana:


Não será jamais pelo mal tocado
Seu eu profundo não é nunca profanado
Só mesmo o tolo nega do amor o apostolado

223
E a seus apóstolos diz que vivem em pecado

O trecho remete à esfera do Sagrado e, portanto, o amor como ideia universal de


manifestação sublime, em que se contrapõe o prazer do corpo, com efeito pragmático e funcional; e
o prazer estético, cujo objetivo é a gratuidade. Assim, há espaço para que o amor seja afirmado como
sagrado e possa se tornar sagrado, a partir de ações paralelas:

O amor é um ato revolucionário


A besta humana torna em anjo apascentado
Em amoroso afia o espírito mais irado
O corpo e alma, um no outro, todo e tudo
Quem ama fala ao mundo mesmo mudo
Seu pulso é a pulsação do Universo em dança
Nas inquietações da guerra insana, a paz alcança
Quem traz a lança do amor e seu escudo
Não será jamais pelo mal tocado
(...)

A sacralização, então, se coloca como característica do espírito neobarroco a partir do


momento que gera o efeito de completude e redenção (corpo x alma; fala x mudo; pulso x pulsação;
guerra x paz). Dois universos são contemplados, em que o sujeito se apassiva diante do objeto
estético, é atraído por ele e gera algo maior, um continuum:

Estado inicial Estado final


besta humana anjo apascentado
espírito irado AMOR amoroso
mudo falar
guerra paz

Englobante e
englobado
alma pulso

corpo pulsação

Em toda a canção, constrói-se um destinador que tem consciência que sabe e busca fazer
com que seus destinatários também saibam. Desse modo, há uma condução pelo universo afirmativo

224
do Amor como revolução e como objeto de valor. Através do jogo linguístico e da metamorfose da
forma, é possível visualizar na poética musical de Chico César os traços do neobarroco, do
barroquismo, da euforização barroca ou outro termo que possa ser atribuído ao fenômeno da
agudeza própria do estilo que rompe com a linha tradicional. O estabelecimento dá-se por meio da
dobra, das combinações e condensações de palavras, da acentuação de morfemas. O objeto atravessa
o destinatário que, em estado de choque e desamparo pelo o que lhe parece sensível, busca atingir o
inteligível. Assim, o conflito entre o Ser e o Parecer resultam em um duplo prazer que chega à
dimensão do transcendental, cósmico e espiritual.

REFERÊNCIAS

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. Tradução de Carmen de Carvalho e Artur Morão. Lisboa: Edições
70, 1999.

CAMPOS, Haroldo. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos. 2.ed. São
Paulo: Iluminuras, 2011b.

FIORIN, José Luiz. A pessoa desdobrada. Alfa: Revista de Linguística, São Paulo, v.39, 2001.

HANSEN, João Adolfo. Agudezas seiscentistas, Floema Especial, Vitória da Conquista, ano 2, n. 2 A, p.
85\109, out.2006a.

LIMA, José Lezama. A expressão americana. Tradução de Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.

MATOS, Gregório de. Obra poética completa. Códice James Amado. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.2v.

SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. Organização de Haroldo de Campos. Tradução de Lígia Chiappini
Moraes Leite e Lúcia Teixeira Wisnik. São Paulo: Perspectiva, 1979.

UMBERTO, Eco. Obra aberta. Tradução de Giovanni Cutolo. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1974.

225
Verm’emplumado: o amor como corda
[dis]sonante na lírica de Augusto dos Anjos

Júlio César de Araújo Cadó

Resumo: Neste estudo, procuramos realizar uma leitura analítico-interpretativa das configurações
da temática lírico-amorosa na obra do poeta paraibano Augusto dos Anjos. Lembrado por versos
contendo rejeitos, excrementos e fluidos orgânicos, o amor não corresponde a um tema,
aparentemente, comum na composição dos poemas do autor e, de modo semelhante, não representa
uma categoria valorizada pela crítica do autor. Com base na orientação teórico-metodológica descrita
Candido (1996), segundo a qual os elementos formais e conteudísticos encontram-se integrados,
formando um todo materializado no texto poético; procedimento baseado no contato efetivo com
os poemas, desenvolvemos este trabalho qualitativo, utilizando fontes provenientes de diferentes
áreas do conhecimento, como Psicanálise, História e Filosofia, além de leituras da crítica especializada
na obra do autor paraibano. Tendo em vista o manto prismático que recobre as narrativas sobre o
amor, acolhemos em nossa reflexão o pensamento de autores que possam elucidar um itinerário do
deus alado na tradição poética e suas possíveis ressonâncias nos versos de Augusto dos Anjos.
Inserido em um momento de tensionamento de valores, a modernidade (FRIEDRICH, 1978),
entendemos que, na lírica de Augusto, o amor se apresenta como um aspecto para o qual convergem
valores relacionados a movimentos de rupturas e continuidades, entre tradição e inovação.
Palavras-chave: Poesia brasileira. Augusto dos Anjos. Dissonância. Amor.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Analisando a constituição da lírica na modernidade, Hugo Friedrich (1978) reconhece como


tônica da arte desse período a tensão estabelecida entre o espanto frente às construções artísticas e a
atração provocada por esses mesmos elementos: “Esta junção de incompreensibilidade e de
fascinação pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que
à serenidade. A tensão dissonante é um objetivo das artes modernas em geral” (1978, p. 15).
Nessa perspectiva, ao efetuarmos um recorte da lírica brasileira, a produção de Augusto dos
Anjos (1984-1914) explora procedimentos e perspectivas que só viriam a ser decantados por autores
que lhe foram posteriores. Ao iniciarmos a leitura de Eu, único livro do paraibano, somos
apresentados a uma capa cinzenta com o rubro pronome título da obra em uma tipografia diferente
da usada para marcar o nome de seu autor. Em seguida, um rosto afilado e cortado por um bigode
confronta-nos em uma imagem desbotada. Tendo por origem a convergência entre os senhores de
engenho da família materna e os bacharéis urbanos por parte de pai, Augusto dos Anjos nasceu no
Engenho Pau D’Arco, no então estado da Paraíba do Norte, em 1884.

226
As datas lhe configuram como espectador dos movimentos ocorridos na transição entre os
séculos XIX e XX, como a mudança na força motriz dos engenhos e a decadência familiar, ou, em
maior escala, o fim da Monarquia e a abolição da escravatura. Em um contexto cultural que acabara
de eleger Olavo Bilac como príncipe dos poetas brasileiros, Augusto apreendeu características dos
movimentos parnasiano e simbolista sem, contudo, tomá-los como limites para seus versos. Além
desse aspecto, a manipulação de um vocabulário atípico o fez ser lido pela crítica do período como
“bizarro”, “estranho”.
A observação do contexto literário no qual o paraibano escreveu seus poemas atesta as
idiossincrasias do poeta, como aponta Ferreira Gullar no ensaio “Augusto dos Anjos ou Vida e Morte
Nordestina” (2008):

Vemos, assim, que, na época em que Augusto forjava os instrumentos de sua expressão
poética, o parnasianismo e o simbolismo eram as duas tendências atuantes na poesia
brasileira. Tanto uma como a outra influíram na sua formação, conforme está evidente em
seus poemas, mas a nenhuma delas se filiou, como é fácil de compreender se se considera
a diferença radical entre sua visão de mundo e a dos parnasianos e simbolistas. Essa visão
de mundo — que não se esgota nas idéias filosóficas de que parte — elabora uma linguagem
poética que assimila e supera aquelas influências (p. 1019, grifos nossos).

Inserido em um contexto no qual se valorizavam os procedimentos estéticos atrelados à


linguagem academicista dos cultores da forma, a produção de Augusto dos Anjos provocou um
estranhamento lexical nos leitores da época, sendo esquecido pela crítica especializada até meados da
década de 1930. Sobre esse aspecto, Denise Carneiro Nazareth recorda-nos que

Para termos ideia da atração que a poesia parnasiana causava, a revista Fon-Fon, em 1913,
promoveu um concurso, para eleger o “príncipe dos poetas brasileiros”, tendo obtido
Olavo Bilac o primeiro lugar com 39 votos, seguido por Alberto de Oliveira com 34 votos.
Augusto dos Anjos recebeu 1 voto (NAZARETH, 2019, p. 118).

Apesar do distanciamento estabelecido entre sua poética e as premissas da belle époque


aclimatadas ao território brasileiro, a preocupação formal parece constituir um elemento basilar para
a compreensão dos poemas de Augusto. Evidência dessa perspectiva é a hegemonia da forma fixa
soneto em sua produção. Desse modo,

A lírica de Augusto dos Anjos, como arte parcial, apresenta em si o velho conceito da forma
como ordem, equilíbrio, harmonia e integração das partes em uma unidade, mas ao mesmo
tempo, como uma obra da modernidade, tem necessidade de desmentir esses conceitos,
caso contrário, a mediação como arte fracassaria (NAZARETH, 2019, p. 121).

227
Segundo Ferreira Gullar (2008), podemos segmentar a obra de Augusto dos Anjos em três
fases. A primeira e quantitativamente menor compreende o período em que o poeta estava à procura
de uma maneira para dar forma a seus textos. Em seguida, a segunda fase teria sido marcada pelo
amadurecimento da forma poética, dos mecanismos e dos procedimentos poéticos. Por fim, na
terceira e última fase, os textos de Augusto permitiram a vazão, com maior fluxo, de questões
filosóficas e científicas da época.
Lembrado por versos contendo rejeitos, excrementos e fluidos orgânicos, Augusto poucas
vezes tomou o amor como temática para a composição de seus poemas. Ao contrário do momento
imediatamente após a publicação de Eu (1912), a poesia de Augusto dos Anjos tem despertado o
interesse da crítica especializada, tornando-se objeto de estudos acadêmicos. Entretanto, verificamos
que o amor e as diversas lentes pelas quais esse sentimento foi visto historicamente não constituem
recorte temático recorrente nas leituras realizadas.
Apesar desse hiato, encontramos trabalhos que abordam questões paralelas e que, de certo
modo, aproximam-se do aspecto que procuramos analisar. Entre eles, está o erótico, como os textos
A representação da sexualidade sob a perpsectiva da ironia — melancolia em Augusto dos Anjos, de Rosilda
Bezerra Alves, e Mãe e meretriz: empatia e denúncia da dominação masculina na poesia de Augusto dos Anjos,
de Thiago Leite de Barros. Mediante a leitura desses trabalhos, intentamos contribuir para as
investigações acerca da obra de Augusto, demonstrando uma outra perspectiva que, por ora, pode
encontrar-se relegada ao segundo plano frente a outras temáticas de análise.
Sob a lente da filosofia platônica (PLATÃO, 1996), a alma é comparada a um coche puxado
por dois cavalos. Um deles, belo e virtuoso; o outro, feio e orientado pelos vícios. Guiados por essas
imagens, pretendemos analisar a presença do amor em Augusto dos Anjos. Nos detemos à leitura
atenta de um dos poema publicados em Eu, “Idealismo”, por entendermos que, nesse texto, a tensão
representativa da formalização da temática amorosa é realçada no conjunto da lírica do poeta
paraibano.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA: OS VÁRIOS AMORES


Situamos esta pesquisa como um trabalho qualitativo de natureza bibliográfica, uma vez que
buscaremos estabelecer uma análise-interpretativa da obra de Augusto dos Anjos a partir de um
levantamento bibliográfico. Utilizaremos como fontes de pesquisa materiais provenientes de
diferentes áreas do conhecimento, como Psicanálise, História e Filosofia, além de leituras da crítica
especializada na obra do autor paraibano.

228
Nossa orientação metodológica norteia-se pela perspectiva descrita por Antonio Candido em
Estudo analítico do poema (1996), segundo a qual os elementos formais e conteudísticos encontram-se
integrados, formando um todo materializado no texto poético; procedimento baseado por meio do
contato efetivo com os poemas.
Nas narrativas atávicas na tradição ocidental, observamos as variações pelas quais Eros passa:
de princípio da união, ainda nos primeiros momentos da ordenação do cosmos, à figura de auxiliar
de Afrodite, que, com suas flechas, atravessa os corações dos homens e dos deuses. Tendo em vista
o manto prismático que recobre o mito, acolhemos em nossa reflexão o pensamento de autores que
possam elucidar um itinerário do deus alado na tradição poética e suas possíveis ressonâncias nos
versos de Augusto dos Anjos.
Ainda na antiguidade clássica, os textos platônicos apresentaram questões basilares para a
compreensão dos valores que envolvem o sentimento amoroso na cultura ocidental. Em Banquete
(1996), cada um dos convivas, a seu turno, elabora um elogio ao amor. Eros como um deus jovem,
como um deus velho e como um movimento ascendente são algumas considerações apontadas pelas
personagens do diálogo. Dentre os discursos, está o mito do andrógino original. Segundo essa
narrativa, a princípio, cada ser humano era um duplo, seja ele formado por duas partes masculinas,
duas partes femininas ou uma parte masculina e outra feminina. Por desígnio dos deuses, esses seres
teriam sido seccionados e, a partir de então, percorrem o mundo à procura do que lhes completa.
Por sua vez, ao tomar a palavra, Sócrates postula uma visão do amor como um percurso vertical:

[...] de um para dois, de dois para todos os belos corpos, dos belos corpos para as belas
ocupações, destas aos belos conhecimentos, até que, de ciência em ciência, se eleve por fim
o espírito a ciência das ciências que nada mais é do que o conhecimento da Beleza Absoluta
(PLATÃO, 1996, p. 116).

Sob esse entendimento, em Fedro (1996), o amor seria restaurador de asas, possibilitando ao
que ama vislumbrar o plano das ideias e superar a dor da existência. Nessa perspectiva, Eros, “garça
acima dos açudes” (ANJOS, 1912, p. 87), é o responsável pelo voo dos amantes. Utilizando versos
recitados pelos aedos, Sócrates diz que: “Os mortais o chamam de Eros, o deus alado. Os imortais, de ‘Pteros’,
por fornecer asas.” (PLATÃO, 1996, p.156, destaque do autor).
Percebemos que o mito grego, com o passar do tempo, tornou-se o fundo a partir do qual
ecoam diferentes narrativas e concepções do amor, como a abordagem psicanalítica descrita por
Gikovate (2006). Por amor, ele concebe a busca pela completude no Outro, ou seja, uma vez que o
indivíduo sente-se como fração, ele procura em outra pessoa a parte que lhe falta. O autor considera
esta necessidade como um retorno ao “paraíso”, ao estado em que nos encontrávamos antes do

229
nascimento, à ligação estabelecida com a mãe. Para ele, o Outro desponta como principal objetivo
no Ocidente, enquanto a tradição oriental coloca a religação com a totalidade como forma de se
completar: “[...] todos nos sentimos incompletos; uns buscam a completude tentando se unir a outras
pessoas ou coisas que os cercam, enquanto outros tratam de encontrar a unidade procurando se
fundir com o todo do qual um dia viemos” (GIKOVATE, 2006, p. 21). Por seu turno, Octavio Paz
(1994) enxerga a criação poética como uma forma pela qual nosso imaginário é decantado e, nesse
escopo, está o amor. Dessa forma, para o autor mexicano:

Uma das funções da literatura é a representação das nossas paixões; a preponderância do


tema amoroso em nossas obras literárias mostra que o amor tem sido o tema central dos
homens e mulheres do Ocidente. Outro tema é o do poder, desde a ambição política à sede
de bens materiais ou de honrarias. [...] Cada poeta ou romancista têm uma visão própria do
amor; alguns até têm várias, e encarnadas em personagens diferentes. [...] a história das
metamorfoses do amor (PAZ, 1994, p. 93-94).

No caso de Augusto dos Anjos, em qualquer uma de suas fases, seja em textos da coletânea
Eu ou poemas dispersos, o amor e as outras dimensões correlacionadas a esse sentimento, como o
erotismo e a sexualidade, emergem a partir de diferentes perspectivas.
Uma outra abordagem da temática do amor nos foi apresentada pelo historiador suiço Denis
de Rougemont. Em seu livro O amor e o ocidente (1988), o amor desenvolve uma incursão pelas origens
da concepção de amor hegemônica na literatura e no modo de pensar ocidental: o amor-mortal.
Nesse sentido, a imagem do amor disseminada pela tradição está intimamente atrelada à ideia de
finitude, tornando-se necessária a constante inquietação que coloca esse sentimento em situações de
perigo.
Com isso, entendemos o amor como uma categoria cujos valores relacionam-se a
movimentos de rupturas e continuidades, entre tradição e inovação. Nesse sentido, realçamos a
convergência desses aspectos na produção de Augusto dos Anjos, autor incontornável para o
desenvolvimento da poesia moderna no Brasil.

3 CORDA FORA DA “LYRA”: LEITURA DE “IDEALISMO”


Entre os textos publicados em Eu (1912), “Idealismo”, escrito em 1906, estrutura-se como
exposição e defesa de uma perspectiva quanto a esse sentimento. Para orientar nossa leitura,
registramos, na sequência, o poema a ser analisado:

230
Idealismo

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!


O amor na Humanidade é uma mentira.
E'. E é por isto que na minha lyra
De amores futeis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amal-o?!


Quando, se o amor que a Humanidade inspira
E' o amor do sybarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapálo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,


O mundo fique immaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro—

E haja só amizade verdadeira


Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulchro para o teu sepulchro?!
(ANJOS, 1912, p. 43)

Ao invés da visão hegemônica na sociedade, que olhava a realização sexual como expressão
do amor, o eu lírico enxerga o fim como maneira de experienciá-lo de forma efetiva. Para Octavio
Paz (1994), “Não há povo nem civilização que não possua canções, lendas ou contos nos quais a
anedota ou o argumento — o mito, no sentido original da palavra — não seja o encontro de duas
pessoas [...].” (p. 34); no caso de Augusto, o sentimento é localizado entre os ossos de sepulturas.
Em seu ensaio Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina (2008), o escritor Ferreira Gullar
segmenta a produção poética de Augusto em três fases. Enquanto na primeira, o poeta encontrava-
se próximo às estéticas predominantes no período, em busca de sua voz; a segunda e a terceira
corresponderam ao momento mais maduro, durante o qual foi escrita a maioria dos textos publicados
em Eu. A partir dessas características, consideramos o poema analisado exemplar do penúltimo
momento da obra do autor, cujo enfoque deu-se para questões científicas e filosóficas, além do
trabalho ostensivo da forma poética soneto.
O termo “idealismo”, título do poema, abrange diferentes significados que, por sua vez,
abrem possíveis entradas para a leitura. Uma das acepções corresponde a uma série de correntes
filosóficas cuja premissa é a compreensão do mundo para além da materialidade. Nesse sentido,
“idealismo” remete à negação da realidade empírica como manifestação da verdade, uma vez que
esta localiza-se em um ponto fora do mundo material.
Logo no primeiro verso, após escutar o discurso de um interlocutor, a voz lírica posiciona-
se textualmente (“[...] e eu ouço tudo e calo!”) como se estivesse tomando a palavra em uma arguição,
iniciando a defesa de seu ponto de vista. Para ele, a maneira como o amor tem sido compreendido
não condiz com sua verdadeira natureza, é uma mentira; por essa razão, sua “lyra” não enxergou

231
nesse sentimento “fútil” tema digno de ser versado extensamente. Neste caso, o instrumento musical
não é reduzido ao objeto, uma vez que evoca o gênero lírico, caracterizado pelo vínculo entre a
expressão de um estado de espírito e o trabalho rítmico da palavra (STALLONI, 2014).
Desse modo, o primeiro quarteto se configura como canal para a enunciação de um sujeito
consciente de uma expectativa quanto ao lirismo e de sua própria produção poética (elemento
metalinguístico). Por outro lado, seu interlocutor representa a tradição lírica em suas múltiplas
dimensões: leitores acostumados com o gênero, textos representativos, possíveis autores e discursos
cotidianos sobre a temática amorosa. O eu lírico manifesta linguisticamente seu posicionamento pela
repetição do verbo “ser” após enunciar que “O amor na Humanidade é uma mentira!”.
A estrofe seguinte estrutura-se como uma pergunta retórica: como o eu lírico pode ser
compelido pela sociedade a buscar o amor se esse sentimento é visto de forma reduzida e deturpada?
Para isso, são enumeradas personagens que concretizam a descrição do “satyro peralta” (ANJOS,
1912, p. 8), ou seja, pessoas cujas ações orientam-se pelo instinto sexual desenfreado. Em notas à
edição comentada de Eu e outras poesias (2005), Sérgio Alcides define “sybaritas” como os moradores
da cidade grega de Síbaris conhecidos pelas práticas voluptuosas, já “hetaira” é o termo empregado
na Grécia Antiga para designar as prostitutas. Por sua vez, Messalina e Sardanapálo foram,
respectivamente, uma imperatriz romana e um monarca assírio lembrados pela vida luxuriosa.
No poema, a pontuação salta aos olhos do leitor devido à recorrência, pois fervilham pontos
de exclamação e interrogação, mecanismos que induzem à construção da cena comunicativa. De
imediato, no primeiro verso deste quarteto, observamos a finalização de dois períodos por ponto de
exclamação, sendo um deles acompanhado pelo sinal interrogativo; no primeiro, a marca linguística
causa o efeito de contemplação, contraponto ao desalento do período seguinte. Também nesta
estrofe, é interessante percebermos as rimas, pois é estabelecida entre os versos 3 e 4 uma rima
preciosa, construção muito valorizada pelos poetas parnasianos.
Enquanto as quadras apresentam as perspectivas do eu lírico, de forma direta, e de seu
interlocutor, como discurso indireto inserido em um questionamento, os tercetos funcionam como
espaço para desenvolvimento da argumentação. No primeiro, é colocada a premissa, “mister”, para
entender o amor: a imaterialidade. Nesse sentido, tudo que passa pelo corpo inviabiliza a realização
plena do sentimento amoroso. Para assegurar a compreensão de seu ponto de vista, o eu lírico faz
uso da metáfora da alavanca, enfatizada pelo uso de travessões como marcadores do aposto. Em
vistas a compreender o procedimento utilizado para edificar esta metáfora, consideramos necessário
recuperar o discurso sobre o amor nos diálogos de Platão. Em Banquete (1996), ao tomar a palavra,
Sócrates postula uma visão do amor como um percurso vertical:

232
[...] de um para dois, de dois para todos os belos corpos, dos belos corpos para as belas
ocupações, destas aos belos conhecimentos, até que, de ciência em ciência, se eleve por fim
o espírito a ciência das ciências que nada mais é do que o conhecimento da Beleza Absoluta
(PLATÃO, 1996, p. 116).

Sob esse entendimento, em Fedro (1996), o amor seria restaurador de asas, possibilitando ao
que ama vislumbrar o plano das ideias e superar a dor da existência. Nessa perspectiva, Eros, “garça
acima dos açudes” (ANJOS, 1912, p. 87), é o responsável pelo voo dos amantes. Utilizando versos
recitados pelos aedos, Sócrates diz que: “Os mortais o chamam de Eros, o deus alado. Os imortais, de ‘Pteros’,
por fornecer asas.” (PLATÃO, 1996, p.156, destaque do autor). Se, como constata Gullar (2008),
Augusto dos Anjos antecipa os poetas modernos ao prezar pela concretude em seus textos, podemos
interpretar que ele aprisiona o daimon platônico na estrutura de uma máquina simples. Por definição,
uma alavanca é constituída por um braço (um corpo sobre o qual forças são aplicadas) e um fulcro
(um ponto de apoio), que juntos possibilitam mover objetos de lugar.
Ao apartar o elemento de embasamento de sua imagem, a voz lírica sintetiza a ideia de que o
amor, entendido como elevação, só é possível de ser experienciado mediante a retirada de sua
dimensão empírica e carnal. Ainda nesse diálogo, Platão nos apresenta uma imagem figurativa para
a alma, comparada a um coche puxado por dois cavalos. Um deles, belo e virtuoso; o outro, feio e
orientado pelos vícios. Essa mesma distinção axiológica é aplicável aos amores no poema de Augusto,
já que a voz lírica condena a visão daqueles que enxergam o amor como o cavalo dos vícios, ou seja,
como tentativa de mitigar seus desejos.
Em continuidade ao terceto anterior, a voz lírica mantém sua argumentação na última estrofe,
explicitando o modo como acredita ser possível a realização efetiva do amor. Não é entre viventes
que esse sentimento, — em sua face verdadeira e sagrada —, pode ser encontrado e compreendido,
mas no “agregado de sangue e cal” (ANJOS, 1912, p. 18). No decorrer do poema, a essência do
posicionamento do eu lírico é a imaterialidade, porém, ela passa a ter correspondência explícita com
a morte na última estrofe. O acréscimo do conteúdo mórbido é acompanhado pelos termos utilizados
nos versos, como “caveira” e “sepulchro”, palavras repetidas sequencialmente que possuem
segmentos oclusivos e vibrantes combinados.
Ao impedir a passagem da corrente de ar, a oclusiva /k/ marca enfaticamente o ritmo de
leitura do poema e remete àquilo que não possui mais a liquidez do orgânico. Já a vibrante /r/ evoca
o atrito entre os ossos dentro de uma sepultura, reflexo da fricção entre os articuladores. Além disso,
“sepulchro” apresenta vogais altas posteriores arredondadas em associação com os segmentos
consonantais descritos anteriormente. Segundo Nilce Sant’Anna Martins (1989), a vogal /u/ “[...]

233
tem a possibilidade de imitar sons profundos, cheios, graves, ruídos surdos e sugere idéias de
fechamento, redondeza, escuridão, tristeza, medo, morte.” (p. 32); na palavra em questão, as
possibilidades são confirmadas, já que o “sepulchro” remete à asfixia dos túmulos, locais fechados
onde qualquer ruído torna-se inaudito para o mundo da superfície. No verso final, também é
interessante percebermos que, mesmo mortos, os resquícios dos possíveis amantes repousam em
sepulturas separadas; logo, o corpo é, de fato, completamente dissociado da união amorosa.
Apesar do título, o amor não é tomado como caso singular, tampouco “palavra-símbolo com
maiúscula” (GULLAR, 2008, p. 1019), como “Humanidade”. No soneto, o sentimento torna-se uma
experiência que, para ser verdadeira, não pode ser condicionada pelos desejos do corpo humano,
resultado da “generalidade decrescente” (ANJOS, 1912, p. 44) da evolução.
Dentro da obra de Augusto dos Anjos, é importante perceber que o poeta cultivou, também,
textos que remetem à tradição do discurso amoroso criticada em “Idealismo”. Com o intuito de
colocar em evidência tal contraste, comentamos, de forma sintética, o poema “A esmola de Dulce”.
A visão de amor passível de crítica no soneto anterior ganha materialidade em outros textos de
Augusto, como é o caso do poema “A esmola de Dulce”, que não fora publicado na coletânea de Eu
(1912):

A esmola de Dulce
Ao Alfredo A.

E todo o dia eu vou como um perdido


De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem-amada,
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,


E eu balbucio trêmula balada:
— Senhora, dai-me u’a esmola — e estertorada
A minha voz soluça num gemido.

Mostre-me a voz e eu gemo o último harpejo,


Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!


Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.
(ANJOS, 2014, p. 222)

De teor narrativo, acompanhamos no soneto o sentimento de inquietude vivenciado pelo eu


lírico. A perspectiva de amor presente no poema recupera a donnoi provençal (PAZ, 1994). Nessa
conjunção entre agonia e dor, o sujeito poético só encontra refúgio nas manifestações de afeto de

234
sua “bem-amada”. É peculiar a forma como o sentimento é construído no texto, pois utiliza-se o
substantivo “esmola” para referenciá-lo. Essa escolha lexical indica tanto o valor da concepção de
amor no texto quanto a hierarquização dos papéis desempenhados pelo sujeito amante e o sujeito
amado, cuja etimologia do nome aponta para o que é aprazível, agradável (do latim dulcis, “doce”).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise e o comentário dos dois poemas evidenciam ambivalências quanto ao ponto de


vista a partir do qual são construídas as imagens da temática do amor na obra do paraibano. Em “A
esmola de Dulce”, encontramos a perpetuação de uma leitura do amor que remonta às cantigas de
amor medievais; em contraponto, “Idealismo” abala visões hegemônicas do amor ao negar elementos
que caracterizaram a abordagem desse tema no decorrer da história. Desse modo, enxergamos a
tensão e a dissonância modernas também na perspectiva do sentimento amoroso presente na
produção de Augusto dos Anjos.
Em “Idealismo”, central em nossa leitura, o ideal aludido no título não envolve um conceito
(um “Amor”), mas uma maneira de senti-lo que não passa pelo encontro físico dos amantes. Para
Gullar (2008), Augusto do Anjos insere a morte em sua poética como parte indissociável do
cotidiano. Em “Idealismo”, portanto, Tânatos mostra-se parada obrigatória no itinerário de Eros,
constituindo a única forma de compreender o deus alado inteiramente, despido das tentações do
prazer imediato. Dessa forma, o poeta insere no inventário do banquete dos vermes não só o músculo
cardíaco, como também as imagens culturalmente associadas a ele.

REFERÊNCIAS
ANJOS, Augusto dos. Eu. Rio de Janeiro: [s. n.], 1912.
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.
BARROS, Thiago Leite de. Mãe e meretriz: empatia e denúncia da dominação masculina na poesia
de augusto dos anjos. 2017. 94 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Mestrado em Estudos da
Linguagem, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2017.
BEZERRA, Rosilda Alves. A representação da sexualidade sob a perspectiva da ironia:
melancolia em Augusto dos Anjos. Disponível em:
http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/ECLAE_II/a%20representa%C3%A7%C3
%A3o%20da/principal.htm. Acesso em: 07 set. 2021.

235
CANDIDO, Antonio. Estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações, 1996.
GIKOVATE, Flávio. Ensaios sobre o amor e a solidão. São Paulo: MG Editores Associados,
1998.
GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou Vida e Morte Nordestina. In: GULLAR. Poesia
completa, teatro e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008. p. 1013-1063.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século
XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa. São
Paulo: T. A. Queiroz; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.
NAZARETH, Denise Carneiro. Augusto dos Anjos: um olhar sobre a primeira recepção de sua obra.
Navegações, Porto Alegre, v. 12, n. 1, p. 112-121, 2019.
PAZ, Octavio. A dupla chama. São Paulo: Siciliano, 1994.
NOVAES, Adauto (org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PLATÃO. Diálogos: Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. 4. ed. Tradução Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Difel,
2014.

236
O que se transmite de uma mãe à filha, seria o
enigma?
Stefanny Thaianny da Costa Duarte68
Daniel Silva Guedes69

Resumo
O conto de Conceição Evaristo intitulado como Olhos D'Água aborda a forma como a personagem
que narra a história indaga acerca dos olhos de sua mãe, como uma busca constante por sua origem,
sua mãe, mas permanecendo constantemente entre as lembranças e o enigma. O objetivo desse
trabalho é abarcar algumas discussões acerca da maternidade e os seus desdobramentos entre mãe
e filha, do que resta e ressoa sobre a maternidade para uma mulher. Como referencial teórico
utilizaremos Kehl (1996) ao discutir sobre feminilidade e a maternidade, além da identidade; Lacan
(1998) ao abordar a dimensão do tesouro de significantes para contribuir com a discussão de origem
e ancestralidade apresentado pelo trabalho; e ainda Freud (2018) com o enigma da feminilidade.
Esse trabalho chega a algumas considerações de que há uma herança transmitida além da busca pela
origem de sua ancestralidade, entretanto, permanece em aberto para que outras questões dele
possam surgir.

Palavras-chave: Maternidade. Enigma. Literatura. Psicanálise.

Introdução
O conto “Olhos d’água” integra uma coletânea de histórias que mostra a vida cotidiana de
pessoas negras nas periferias do Brasil. O conto foi publicado em 2014, e foi escrito por Conceição
Evaristo, uma renomada escritora brasileira. A autora cria narrativas que abordam situações
permeadas pela violência, mas também evidenciam a resistência de sujeitos marginalizados em
várias esferas. Além disso, Conceição Evaristo manifesta um olhar sensível na exploração da
ancestralidade e identidade de seus personagens.
A história central de “Olhos d’água” gira em torno de alguém que, ao esforçar-se para
recordar a cor dos olhos de sua mãe, mergulha em sua própria trajetória, deixando de ser

68
Autora. Graduanda em licenciatura em Letras português pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).
E-mail: stefannycd42@gmail.com
69
Co-autor e orientador. Psicanalista. Graduado em Letras com habilitação em Libras pela Universidade Federal Rural
do Semi-Árido (UFERSA); Especialista em Libras (UniBF); Mestrando emLetras na linha de pesquisa Texto Literário,
Crítica e Cultura pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); Professor substituto da Universidade
Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA). E-mail: daniel.guedes@ufersa.edu.br

237
apenas agente/filha para torna-se também agente/mãe, guardiã e conhecedora de suas próprias
raízes. No decorrer do conto a personagem principal se recorda constantemente sobre o que fazia
com a mãe, as tarefas conhecidas por ela e coisas as quais a mãe gostava, exceto da cor dos olhos
dela.
Ademais, é importante trazer à tona a questão da maternidade e da feminilidade presente
em sua obra. Nota-se que Evaristo busca apresentar suas personagens de umamaneira complexa,
na qual são retratadas como figuras fortes e sensíveis que enfrentam as opressões cotidianas. A
autora Evaristo retrata a maternidade como um vínculo profundo, na qual é construída por meio
do cuidado e do amor.
O conto traz a perspectiva da personagem sobre como foi sua vida com a mãe, as
dificuldades enfrentadas como a fome, e também o vínculo criado entre elas. Há, na narrativa e no
enredo a presença de recortes onde a personagem se recorda de pedaços da infância de sua mãe, de
como ela decifrava o silêncio de sua mãe e também de suas brincadeiras com as irmãs junto da mãe.
Há um retrato da vivência de pessoas negras, principalmente aqui no Brasil, o conto também retrata
o lugar de onde oriunda a ancestralidade das pessoas negras: do continente africano. Em diversos
momentos é possível localizar referências, um desses exemplos os quais pode-se citar aqui é sobre
um recorte final do conto, quando ela encontra sua resposta "A cor dos olhos de minha era cor de
olhos d'água. Águas de mamãe Oxum!".
Para além da ancestralidade, recorta-se aqui também a feminilidade e a maternidade, os quais
têm sido temas frequentemente discutidos ao longo da história da psicanálise e da literatura, devido
às suas complexidades. Nesse sentido, essas questões têm sido frequentemente exploradas,
especialmente considerando as transformações culturais no papel da mulher na sociedade
contemporânea.
O objetivo deste trabalho é abarcar algumas discussões sobre maternidade e os seus
desdobramentos do que se transmite de mãe para filha, e para enriquecer a análise trazemos as
contribuições dos psicanalistas Maria Rita Kehl (1996) e Freud (2019), tentando de algum modo
criar um paralelo e uma outra possível perspectiva acerca deste conto, para além da ancestralidade
histórica.

Literatura e psicanálise: um entre nos estudos culturais

A literatura e a psicanálise vem sendo abordadas desde a época em que Freud fazia
investigações em torno dos textos literários, e através dele tecia suas elaborações e

238
construções teóricas, ainda segundo Mandil (2005): "Basta relembrar aqui a importância do
movimento surrealista para a introdução da Psicanálise na cultura francesa ou a veiculaçãodas
idéias de Freud na cultura brasileira, através do nosso Modernismo.". Houve uma estreita relação
entre ambos os campos de saber há um longo período histórico, marcado por diversos intercâmbios
de conhecimentos e saberes.
Ainda, Mandil (2005) aponta que os estudos culturais dentro do que se discute sobre teoria
literária tem sido um espaço profícuo para a psicanálise ter seu espaço na universidade, bem como
no campo de pesquisa que trabalha e se debruça em torno da crítica literária, ultrapassando, em
alguma medida, o que se constrói quanto estruturalismo.
Para além do aspecto de se utilizar e se servir de uma psicanálise aplicada à literatura, ao
tomar o conto como ilustração dos conceitos psicanalíticos, toma-se também um pressuposto dos
estudos culturais acerca deste trabalho. Bem como se compreende, a psicanálise tem uma relação
com o social, com o que acontece na cultura, assim como os estudos culturais como trabalhava Hall
(2004) ao contribuir discutindo sobre os estudos culturais serem um campo de interstício entre
diversas epistemologias.
Foucault (1999) aponta que há uma familiaridade entre ambas, elas caminham juntas desde
o berço, por surgirem no momento localizado na descontinuidade de uma episteme, ou ainda, de
um lugar comum no ocidente que deu origem à modernidade. A partir disso, ambas conversarão
nesse trabalho partindo de uma perspectiva do que se extraí da cultura, da relação e da constituição
da família no berço da miséria brasileira, apontadas assim por Conceição Evaristo no conto aqui
analisado, bem como há também traços de algumas construções freudianas acerca do conteúdo
extraído.

O enigma da figura feminina


O avanço das transformações culturais da mulher dentro de uma sociedade veioganhando
força e espaço. Pois, desde o momento em que o feminismo ganhou espaço dentro da sociedade, a
mulher passou a desempenhar um papel além das atividades domésticas e a procriação a que eram
submetidas. É importante ressaltar que as mulheres passaram a ultrapassar os limites tradicionais a
que estavam incluídas e começaram a se destacar em vários âmbitos sociais como na política, na
educação, no campo profissional e dentre outros.
O questionamento em torno do enigma da mulher persiste desde os primórdios dos
estudos de Freud sobre a natureza feminina e sua feminilidade. Mesmo nos dias de hoje, essa

239
interrogação e questionamento continuam presentes. É possível perceber que Freud (2019) em seu
texto Sobre a sexualidade feminina, publicado originalmente em 1931, elenca alguns pontos de
obscuridade sobre a relação das mulheres com suas mães, por exemplo.

Tudo, no campo dessa primeira ligação com a mãe, pareceu-me tão difícil de entender
analiticamente, tão esmaecido pelo tempo, tão obscuro e quase impossível de ser
revivificado, como se tivesse sido submetido a um recalcamento inexorável. Mas talvez
essa impressão tenha surgido do fato de que as mulheres em análise comigo podiam se
aferrar à mesma ligação com o pai, à qual tinham se refugiado ao sair da fase anterior em
questão.
Parece, realmente, que as analistas mulheres, como Jeanne Lampl-de Groot e Helene
Deutsch, puderam perceber esses fatos de maneira mais fácil e clara, porque as pessoas
em tratamento com elas tiveram o auxílio da transferência sobre um substituto adequado
da mãe. (Freud, 2019a, p. 287)

Podemos perceber que existem várias indagações para Freud (2019a) e ainda, é diante dessas
questões que ele também aponta para o êxito de outras psicanalistas, ele atribui o sucesso delas ao
fato de serem também mulheres. Para Freud (2019a) a transferência é um tipo de amor e portanto
é também uma repetição dos primeiros objetos amorosos, ainda no texto sobre a sexualidade
feminina, Freud (2019a) coloca que há uma forte ligação entre a filha e a mãe.
Assim, tendo como base essa ideia, logo ele conclui que a relação entre essas psicanalistas e
as mulheres em análise obtiveram êxito por serem elas perfeitas testemunhas para as mães, e ainda,
enquanto há esse forte laço com as mães é difícil que elas virem seu endereçamento amoroso por
um homem, que no caso, se houvesse, seria ele a ocupar na transferência, ao longo do tratamento
analítico, esse lugar.
É possível perceber que há uma tentativa de compreender também o lugar da feminilidade,
da mãe e da mulher. Partindo da teoria de Freud (2019b), defende-se que a mulher se completaria
na maternidade e especialmente ao ter um filho do sexo masculino, surge a ideia de que a mulher
nutria uma inveja em relação ao pênis. Nesse contexto, surge a discussão sobre a teorização do
Complexo de Édipo, em que Freud (2019b) notava a diferença entre o Complexo de Édipo
feminino e masculino.

Quando investigamos as primeiras formações psíquicas da vida sexual na criança,


tomamos geralmente como objeto a criança de sexo masculino, o menininho. Achávamos
que no caso da menininha tinha de ser semelhante, mesmo que diferente de alguma
maneira. O que não ficou claramente determinado foi o ponto do processo de
desenvolvimento em que se encontraria essa distinção. (Freud, 2019b, p. 261).

Assim, Freud (2019b) conclui que os processos de identificação do homem e da mulher não
são determinados por natureza, mas sim, por um processo de sexuação que está atrelado ao

240
Complexo de Édipo. Nesse ponto, a teoria da Castração ganha destaque em sua pesquisa, uma vez
que está inteiramente ligada à relação entre mãe e filha. A descoberta da castração representa um
marco crucial na evolução do gênero feminino. Essa revelaçãopossibilita que a menina, ao perceber
que sua mãe também é castrada e incapaz de lhe proporcionar um pênis, se distancie da mãe e
procure na figura paterna o objeto de amor.
No entanto, essa perspectiva de Freud (2019b) tem sido objeto de revisão ao longo do
tempo. Atualmente, a sociedade contemporânea reconhece a multiplicidade da influência dos
fatores culturais e sociais na construção da identidade da mulher. Portanto, apesar das contribuições
significativas de Freud, é preciso considerar os avanços posteriores que expandiram a compreensão
das vivências das mulheres.
Maria Rita Kehl (1996) argumenta que Freud negligenciou a influência do contexto cultural
e social na construção da feminilidade e se baseou principalmente em observações clínicas com as
pacientes femininas. Além do mais, Kehl (1996) acredita que a identidade de gênero e a experiência
feminina são mais complexos do que a teoria freudiana sugere. Apesar de ser um autor importante
na psicanálise, existem outros aportes teóricos os quais pode-se utilizar também em uma proposição
dialética.
Kehl (1996) ao discutir sobre a teoria da castração, enfatiza em sua fala, a existência do
medo entrelaçado na menina de ser eliminada pela mãe para poder ser amada e acolhida de alguma
forma pelo pai. Medo este de perder a sua feminilidade, ou seja, o falo imaginário que incorpora a
sua identidade.

Se por um lado é difícil ameaçar alguém com a perda de um falo imaginário, por outro
este imaginário incorpora ao próprio ser da mulher – seu falo é a feminilidade mesma, e
podemos dizer que na rivalidade edípica ela não tem nada a perder a não ser...a
feminilidade. Nada a perder a não ser tudo o que faz dela uma mulher... a passagem para
a feminilidade constitui, na mulher um superego mais complacente, em relação à lei
paterna e bem mais exigente em relação às demandas do narcisismo materno. (Kehl, 1996,
p. 44 - 45)

Em uma sociedade, na qual as mulheres buscam por igualdade e lugar de fala (Ribeiro,
2017), a teoria freudiana é marcada com passagens machistas, na qual ele defende a superioridade
do homem em relação à mulher ao definir que a mulher desperta uma inveja ao seu órgão genitor
e que a maternidade torna a mulher completa. Portanto, essa questão de que objeto de amor está
inteiramente ligada à figura paterna se torna equivocada, pois como Kehl defende, as relações
familiares e essa dinâmica de desejo são influenciadas por inúmeros fatores e que não podem ser
reduzidas a um padrão universal.

241
Ainda, é Freud (2019c) em seu texto A feminilidade, publicado originalmente em 1933, onde
ele escreve que os avanços promovidos no campo da sexualidade feminina se deu graças às colegas
mulheres, as quais discordavam constantemente de seus raciocínios e construções teóricas bem
como as de outros homens e escreve "não tínhamos conseguido superar determinados preconceitos
profundamente arraigados contra a feminilidade, o que agora nos penalizaria pelo caráter parcial de
nossa pesquisa" (Freud, 2019c, p. 319), eis um dos pontos para concordar com Freud e endossar
ainda mais a presença e construções de Kehl (1996) na pesquisa.
Há de todo modo que justificar, ainda, o convite da psicanálise pelo texto literário e não o
contrário, eis o movimento e o caminho trilhado para a construção da análise a se seguir, é possível
ler e acompanhar alguns desses pontos até aqui elencados pela teoria através do conto da Conceição
Evaristo, deste modo, apontam-se alguns recortes na seção seguinte a partir de enxertos do conto.

Conceição Evaristo e a relação entre mãe e filha: "Qual a cor dos olhos de minha mãe?"
No conto “Olhos d’água”, são exploradas as memórias de uma mulher adulta em relação a
sua mãe. A narrativa retrata a profunda admiração que a personagem principal tem pela mulher que
te criou. Ao longo do conto, é evidenciado a gratidão pela sua genitora, que enfrentou os desafios
da vida sem a presença paterna, oferecendo uma infância cheia de amor para suas filhas.
A pergunta a qual atravessa todo o conto "explodiu de sua boca", para usar algumas das
palavras que a personagem utiliza é "de que cor eram os olhos da minha mãe?" (Evaristo, 2014, p.
16). Em um contexto de mudança para sua nova casa ela se sente atordoada e atravessada por essa
pergunta e permaneceu com ela por dias, meses. Ainda, como é esperado dos contos de Conceição
Evaristo há um ponto que se encontra também com a realidade material de um contexto brasileiro
para pessoas negras, por isso o nome escrevivência.
Ainda, no conto, a personagem principal se depara às voltas com a ideia de estar sempre, e
constantemente, em encontro com as dificuldades de sua mãe para criá-las, aprendeu a decifrá-la:
"Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como tambémsabia reconhecer, em seus
gestos, prenúncias de possíveis alegrias." (Evaristo, 2014, p. 16). Assim, diante disso, a personagem
se culpa por não lembrar a cor dos olhos de sua mãe,

242
pode-se compreender que há um misto de nostalgia pelas lembranças mas remorso por não lembrar
de algo afetivo de sua mãe.
Um pouco mais adiante nos deparamos com um trecho do conto onde ela relata a sua
experiência de infância e de como a atrela à sua mãe, podendo-se constatar uma fusão entre a mãe
e a personagem a qual toma a narrativa de sua história,:

"Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria
infância. Lembro-me que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro
algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento."
(Evaristo, 2014, p. 16)

Pela temporalidade a qual a narrativa dessa personagem se dedica, um tempo passado, há


uma confusão proporcionada pela lembrança, ou ainda, pela tentativa de lembrança, e para além
disso, é possível perceber que diante da precaridade das necessidades básicas dos sujeitos: o
alimentar-se, a mãe dela pôde ter sido interpretada de um modo terno o anseio delas por comida.
Freud (2019c) em seu texto A feminilidade explicita o seguinte:
Para a menina, a mãe - e as figuras da babá e da pessoa que cuida decrianças que se fundem
com ela - também vai ser seu primeiro objeto; de fato, os primeiros investimentos de objeto
ocorrem com o apoio na satisfação das grandes e simples necessidades da vida. (Freud,
2019c, p.321)

É diante desse contexto o qual podemos, de algum modo, vislumbrar como se inscreveram
as necessidades básicas para essa personagem através de sua mãe, o desesperado desejo de alimento
era algo que partia da perspectiva da personagem através do que sua mãe fazia, assim, pode-se
interpretar que havia também por parte da mãe da personagem o desejo de que houvesse alimento,
havia um modo de tentativa de suprir as necessidades da vida.
Corroborando com essa perspectiva do que podemos entender, a personagem mais adiante
ainda aponta "Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair
nossa fome. E a nossa fome se distraía" (Evaristo, 2014, p. 17). Ou seja, ela pôde compreender das
atitudes de sua mãe a dureza e crueza da realidade que a cercava.
Ainda, mais adiante, ela constrói "saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida
para mim e para minha família." (Evaristo, 2014, p. 17). Mesmo a partir do que Freud (2019, p. 321)
aponta sobre as necessidades básicas, o que aparentemente se inscreveu do afeto de sua mãe em
torno da realidade a qual estavam inseridas foi o desejo de encontraralgo melhor para a sua
família, para a sua filha, que em outro momento do conto surge, para a necessidade não só de distrair
a fome, mas de saciá-la.

243
Durante toda a narrativa do conto existe um questionamento em relação a “qual era a cor
dos olhos de minha mãe?”. Nesse contexto, a cor dos olhos pode carregar um significado afetivo,
na qual remete às memórias e a conexão emocional entre mãe e filha. Logo, partindo de uma
perspectiva da teoria de Maria Rita Kehl (1996), o trecho a seguir pode ser interpretado como uma
expressão simbólica das relações emocionais entre mãe e filha, destacando a importância dos
detalhes afetivos na construção da subjetividade.
Partindo de um ponto de vista psicanalítico, o seguinte trecho pode ser interpretado como
uma expressão simbólica das relações emocionais entre a narradora e sua mãe. Percebe-se que os
sentimentos intensos que a narradora associa à sua mãe, onde as lágrimas simbolizam os
sentimentos ocultos e expressam emoções, sugerindo que sua mãe pode estar carregando uma
grande carga emocional dentro de si.

(...) pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me
perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e
prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era a cor de olhos d'água.
Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla
a vida apenas pela superfície. (Evaristo, 2014, p. 18)

Assim, no seguinte trecho “Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz” percebe-
se que a dualidade de emoções está relacionada à teoria de Kehl (1996), na qual aborda que a
maternidade quando não é vivida como completude, pode ser um espaço de ambivalência, onde
sentimentos contraditórios coexistem. Essa ambivalência é evidenciada pela imagem das lágrimas e
do sorriso, representando uma complexidade emocional que pode ser própria da experiência
materna.
Ainda, essas contradições apontada por Kehl (1996), encontra bases também no que Freud
(2019c, p.318) teoriza sobre a mulher, e consequentemente também sobre o que seria uma mãe:
"Corresponde à singularidade da psicanálise não querer descrever o que a mulher é
- isso seria para ela uma tarefa quase impossível de resolver - mas, sim, pesquisar como ela setorna
mulher.".
Assim, é diante desse enigma, dessa pergunta sem resposta para a psicanálise, o qual seria
uma tarefa impossível denominar o que uma mulher é, e também diante de tudo o que já foi colocado
até o presente momento, que pode-se constatar as observações sobre quais possibilidades a
personagem pôde encontrar para ser uma mãe, sobre um ponto enigmático de que cor eram os
olhos da mãe dela, de como ela saiu de casa, de como ela pôde experienciar

244
por si a maternidade e a busca de condições ainda melhores para sua família, que ela se
interrompe.

Considerações finais
Pudemos observar ao longo desta pesquisa que foi possível alcançar o seu objetivo: o de abarcar
algumas discussões acerca da maternidade e os seus desdobramentos entre mãe e filha, do que resta e
ressoa sobre a maternidade para uma mulher. Entretanto, considerando se tratar de um objetivo amplo
e com vários esboços de possibilidades, não foi alcançado em suacompletude, ainda haviam outras
perspectivas teóricas a abarcar, entretanto para a proposição de um pequeno recorte e diálogo com Freud
e Maria Rita Kehl, foi satisfatório, mesmo sem esgotar toda a teoria sobre esse ponto.
Ao longo da pesquisa pôde-se deparar também com um ponto essencial na obra de Conceição
Evaristo: a raça e a ancestralidade quanto negra. Entretanto, constatou-se que os restos, ou ainda, as
marcas feitas pela mãe que permaneceram na filha como lembrança desua infância é um indicador de
um enigma para ela, um enigma sobre as emoções, sobre a afetividade, no senso comum bastante
atrelado à feminilidade.
Seriam as emoções de ser mulher? Há um enigma o qual a sua mãe também havia construído, o
qual a sua mãe também havia, de algum modo, deixado quanto herança paraela. O que seria o olhar
da sua mãe sobre as coisas do mundo? O que seria de algum modo o prisma de uma mulher onde se
inscreve também uma mãe?
Assim, ao perceber-se esse ponto, indica-se um percurso para que outras pesquisas possam
surgir, para além das questões já postas até aqui, com o intuito de avançar e desdobrar discussões
engrenando-as em pontos que as aproximam: de qual perspectiva teórica podemos pensar a
ancestralidade e, ainda, é possível relacioná-la com raça na psicanálise? Como pensar a relação entre
maternidade e ancestralidade?

REFERÊNCIAS
EVARISTO, C. Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas, 2014.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail. São Paulo: MartinsFontes,
1999.

HALL, S. et al. Culture, media, language. London: Routledge; Birmingham: Centre for
Contemporary Cultural Studies, 2004.

245
KEHL, Maria Rita. A Mínima Diferença: masculino e feminino na cultura. Rio de Janeiro:Imago,
1996.
MANDIL, R.. Literatura e psicanálise: modos de aproximação. Aletria revista de estudos deliteratura:
Literatura e psicanálise. V. 12, p. 42-48. Dez. 2005. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/17997/14787. Acesso em: 5 de julho de
2023.
. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos [1925]. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996,
v. XIX: O ego e o id e outros trabalhos [1923-1925], p. 273-286.

FREUD, S., Sobre a sexualidade feminina (1931). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Amor,
sexualidade, feminilidade. Autêntica Editora, 2019a, p. 287.
FREUD, S., Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925). In: Obras
Incompletas de Sigmund Freud, Amor, sexualidade, feminilidade. Autêntica Editora, 2019b, p. 319.
FREUD, S., A feminilidade (1933). In: Obras Incompletas de Sigmund Freud, Amor, sexualidade,
feminilidade”. Autêntica Editora, 2019c, p. 319.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte: Letramento, 2017.

246
“Contornar as rasuras do amor”: as mulheres de Silvina
Ocampo e Tamara Kamenszain
Priscila Silva de Sá Santos
Universidade Federal do Paraná - UFPR
priscila.sdesasantos@gmail.com

Cleber da Silva Luz


Universidade Federal do Paraná - UFPR
clebersiluz@gmail.com

RESUMO: Este trabalho pretende lançar um olhar às relações que se estabelecem entre o amor, o feminino e a
escrita de mulheres em Silvina Ocampo e Tamara Kamenszain. Para tanto, consideramos um conto e um poema,
de diferentes obras das escritoras, em que são possíveis encontrar diálogos e dissonâncias no que concerne às
temáticas focalizadas. As autoras representam dois nomes importantes na cena literária latino-americana, sobretudo
a argentina, especialmente por se ocuparem, pela escrita, da construção ficcional de uma estética e de uma poética
do amor, de formas nem um pouco simplistas, o que torna a complexidade das relações muito mais ricas. A leitura
realizada considera esses temas a partir de diálogos possíveis entre literatura e psicanálise, principalmente. Para
tanto, como norte, tomamos os trabalhos de autoras da teoria literária feminista e da psicanálise, como Zolin
(2009), Hollanda (1994), Kehl (2007) e Cixous (2020), entre outras e outros, focalizando a construção das
subjetividades femininas e do amor; este último também observado a partir das políticas do afeto abordadas por
Leone (2014).
Palavras chave: amor; feminino; Silvina Ocampo; Tamara Kamenszain.

dice que no sabe del miedo de la muerte del amor


dice que tiene miedo de la muerte del amor
dice que el amor es muerte es miedo
dice que la muerte es miedo es amor
dice que no sabe

Alejandra Pizarnik

O amor e o feminino estão num universo entrelaçado na literatura, desde os primeiros registros
da mitologia clássica. A escrita dos caminhos do amor e os impasses, e mesmo tragédias envolvidos nesses
caminhos, são contados e recontados nas histórias dos deuses, semideuses e humanos. Figuras como
Ariadne, Medeia e Penélope nos trazem notícias de que o amor não é algo ligado à leveza e à felicidade
de forma simples. Muito pelo contrário.
Esse destino trágico dá lugar, progressivamente, nas idades moderna e contemporânea, aos ideais
do amor romântico e burguês. A ideia de que o amor poderia ser vivido plenamente dentro de uma
relação romântica, que duraria a vida toda, reduz e idealiza a amplitude de afetos vivenciados por homens
e mulheres no decorrer da história da humanidade. As mulheres, especialmente, se viam presas a
relacionamentos em que não havia opção de saída. O casamento era um dos destinos da mulher adulta e

247
o amor deveria fazer parte dele. Madame Bovary é o retrato perfeito de uma mulher que buscava
encontrar aquilo que seria o amor romântico num casamento, sem que ele estivesse ali:
[...] para fazer com que ela acreditasse que possuía finalmente aquela paixão maravilhosa que até
então tinha se mantido como um grande pássaro de plumagem rosada planando no esplendor
dos céus poéticos - e ela não podia imaginar agora que essa calma em que vivia fosse a felicidade
com que havia sonhado” (FLAUBERT, 2011, p. 120).

Os séculos XIX e XX foram atravessados por situações como a da personagem, aprisionada em


suas ilusões e decepções, mas também por revoluções sociais e culturais em que grupos buscavam se
libertar de opressões e representar a si mesmos a partir de sua própria experiência. A mudança de
percepção sobre a própria subjetividade e sobre as relações de poder existentes na vida privada acabou
promovendo mudanças em situações injustas que existiam motivadas por concepções ultrapassadas e
sistemas de poder seculares. As muitas facetas do tema do amor, assim como da subjetividade e da
sexualidade feminina, são campos que passaram - e ainda passam - por transformações radicais
(HOLLANDA, 1994; OLIVEIRA, 2012).
Quando Sigmund Freud pôs em cena o desejo feminino e desvelou os descompassos do amor
no início do séc. XX, a psicanálise se tornou uma das primeiras teorias contemporâneas a dar voz às
nuances do discurso feminino. O chamado amor romântico estava de algum modo estruturado na
sociedade ocidental de forma a dar um lugar à mulher: de musa, companheira fiel, mãe. Em geral, papéis
coadjuvantes e silenciosos. Tudo que não combinasse com esses papéis era considerado desviante,
principalmente se a sexualidade estivesse envolvida (KEHL, 2007). Freud, com todas as limitações que
possamos encontrar em seu discurso a partir do olhar do feminismo contemporâneo, deu um lugar
diferente às mulheres quando recusou as terapêuticas da época e se interessou por ouvi-las. E o que elas
tinham a dizer pôs em cena a subjetividade e a sexualidade feminina, assim como os desencontros do
amor. Assim, há a leitura de que

O quadro composto por elementos tão heterogêneos quanto concatenados com o ideal do amor
romântico, a hipocrisia sexual e a sujeição feminina não apenas emoldurava externamente o
contexto de emergência da psicanálise freudiana, como também seria dissolvido por ela, no
mesmo gesto de mostrar suas fissuras. (IANNINI; TAVARES, 2020, p. 21).

Freud escreveu muitos textos sobre as questões da feminilidade e encontrou alguns impasses que
ficaram famosos, como a afirmação de não ter conseguido responder a questão sobre o que quer uma
mulher. Este é um dos pontos que o psicanalista francês Jacques Lacan retoma em sua releitura da obra
freudiana. As relações entre o feminino, o amor, o desejo, o gozo e a escrita foram intensamente
exploradas por ele, que, ao falar de amor, afirma, por exemplo, que “O amor, se aí está uma paixão que
pode ser ignorância do desejo, não menos lhe deita toda a sua poja. Quando se olha lá mais de perto, vê-

248
se as devastações”. (LACAN, 2008, p. 12), pois “[...]o amor é impotente, ainda que seja recíproco, porque
ele ignora que é apenas o desejo de ser Um”. (p. 13). Frases que apontam o quanto a busca pelo amor
pode ser equivocada, se não estiver enlaçada ao desejo e à singularidade de cada sujeito, e o quanto a
ilusão de que dois fazem Um - o ideal do amor romântico - pode ser devastadora. Dois não fazem Um,
e o amor será mais digno quanto mais cada envolvido tiver preservada a sua singularidade.
Coincidentemente, uma das frases famosas de Silvina Ocampo, uma das escritoras estudadas neste
trabalho, era: “o amor é recíproco, o que não é recíproco é a imaginação” (LA MÁQUINA DE
ESCRIBIR, 2008, s.p.).
A partir dessas reflexões iniciais, apresentamos, na sequência, uma análise interpretativa do conto
“A continuação”, de Silvina Ocampo, e do poema “6. [eu sempre quis recuperar pelo tango]”, de Tamara
Kamenszain, a fim de observar as relações que se estabelecem entre o amor, o feminino e a escrita de
mulheres em ambos os textos.

“O amor é recíproco, o que não é recíproco é a imaginação”

Silvina Ocampo foi uma autora argentina que escreveu muito sobre os temas que tocam o campo
do feminino e do amor. Inserida na tradição do gênero fantástico e dos relatos breves, ela se serviu do
insólito, do absurdo e do grotesco para tratar assuntos que envolviam as questões de poder existentes
nas relações de gênero e classe, o lugar das mulheres na cultura latino-americana, a loucura, a pobreza, a
crueldade, o amor e o ódio e sua coexistência nos relacionamentos mais íntimos.
Filha de uma família da aristocracia argentina, nasceu em 1903 e faleceu em 1993. Em seus 90
anos de vida escreveu textos que transitam entre os gêneros fantástico, nonsense e insólito e que
compõem um conjunto extenso de contos, poesias, romances e também literatura infantil. Silvina
também foi artista plástica e tradutora, antes de se dedicar à escrita. Sua obra atravessa o séc. XX e é
considerada hoje uma das mais originais da literatura latino-americana, depois de ter ficado ofuscada por
muito tempo (ENRIQUEZ, 2018).
Silvina se tornou mais conhecida do público argentino a partir dos anos 90 e foi publicada no
Brasil apenas em 201970. Foi uma escritora cuja vida e relações íntimas foram mais noticiadas do que a
obra em si. Aspectos biográficos e extraliterários ainda incitam a maioria das publicações sobre Ocampo,

70Antes disso, havia no Brasil apenas o volume Antologia da literatura fantástica, do qual era uma das organizadoras, junto com
Bioy Casares e Jorge Luis Borges. Neste volume, publicado pela Cosac & Naify, em 2013, constava apenas um conto seu, “A
expiação”.

249
como, por exemplo: irmã de Victoria Ocampo, casada com Adolfo Bioy Casares, amiga íntima de Jorge
Luis Borges. Existem várias hipóteses para o apagamento de sua obra: a personalidade introspectiva, a
condição financeira, o casamento. A pesquisa de Mariana Enriquez com pessoas próximas à escritora
mostrou relatos que afirmaram que ela não era vítima da situação, mas que tinha, pelo contrário, uma
postura ativa na manutenção desse lugar opaco e misterioso (ENRIQUEZ, 2022).
Silvina nunca se intitulou uma feminista, mas sua escrita sobre o feminino é bastante incisiva.
Sustentou lugares questionadores para as personagens, que, à primeira vista, parecem ingênuas e até
passivas, sendo “apenas” costureiras, babás, passadeiras, mas que, na intimidade, surgem como mulheres
passionais, ambivalentes, além de místicas e muitas vezes assassinas. O tema do amor em Silvina Ocampo
é sempre acompanhado pela transgressão, pelo ódio e pela inveja.
Seus contos acontecem no ambiente doméstico, nas cenas cotidianas das reuniões de família, mas
é através das ações aparentemente tresloucadas e insólitas das personagens que a autora abala as estruturas
da suposta normalidade e assim produz um efeito de estranhamento e crítica. Há um efeito de ruptura
nos textos, que a autora maneja a partir da tradição do conto: “O conto é construído para revelar
artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que
nos permite ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta” (PIGLIA, 2004, p. 60).
Nessa direção, propomos uma leitura do conto “A Continuação”, escrito em 1959 e publicado
no Brasil na coletânea A Fúria (2019), a fim de refletirmos acerca das relações possíveis entre o amor, a
escrita e o feminino no plano da narrativa, pois o conto se estrutura a partir dos temas da escrita e da
criação, e de seus efeitos subjetivos na vida da personagem-narradora.
Há no conto uma questão de gênero, que marca a fluidez entre masculino e feminino, que a autora
promove ao mesclar diferentes realidades dentro do texto. Isso acontece sem que se utilize elementos de
ruptura, tampouco de tensão entre realidades. Há apenas o uso da linguagem e da ambivalência para
apontar ora o vazio, ora a subversão interna pela qual passa a narradora, e também o uso da técnica de
contar uma história dentro da outra, nomeada de mise en abyme por André Gide. Essa técnica, que é
traduzida por narrativa em abismo, aparece em vários contos de autores da tradição fantástica e foi
nomeada por Todorov como “narrativas encaixadas e encaixantes”. Uma narrativa que surge e alimenta
a anterior, de forma a produzir o efeito de uma série de reflexos (TODOROV, 1969, p. 132). Neste
conto, ela produz a continuidade entre narradora-escritora feminina e o seu personagem masculino e é
construída inicialmente pela descrição de um apaixonamento da criadora pela criatura, até que se
transforma em uma identificação, que acaba por mesclar as realidades.

250
O conto relata o curso de um casamento, mas se inicia com a narradora despedindo-se dele.
Narrado em primeira pessoa e endereçado ao marido, num modelo quase epistolar, o texto desvela os
conflitos e desencontros do casamento, descrevendo situações de desconsideração e desgosto, além de
enunciar o conhecimento de uma traição por parte do marido. O texto deixa claro o esvaziamento, o
rancor e as marcas que a narradora possui em relação ao marido ao mesmo tempo em que há um tom
apaixonado, intenso e ciumento quando se refere a ele, construindo, assim, uma tensão ambivalente.
Nas estantes do quarto, você vai encontrar o livro de medicina, o lenço de seda e o dinheiro que
me emprestou. Não fale de mim com minha mãe. Não fale de mim com Hernán, não esqueça
que ele tem doze anos e que minha atitude o deixou muito impressionado. (...) Vou embora deste
país para sempre. Você deve ter achado meu comportamento estranho, absurdo até, talvez
continuará te parecendo absurdo depois desta explicação. Não importa, nada me importa agora.
A fidelidade deixou em mim um hábito singelo, cujas últimas manifestações aparecem ao menos
no meu desejo de te explicar nestas páginas muitas circunstâncias difíceis de serem esclarecidas
(OCAMPO, 2019, p. 11).

A narradora relata cenas em que é desconsiderada pelo marido, mas afirma o sentimento passional
por ele. Mesmo quando o odeia, ele ainda é o centro de sua narrativa. Ele é descrito como alguém que a
ama “normalmente”, enquanto questiona a relevância do trabalho dela e se relaciona com outra pessoa.
Esse trabalho, ela informa ao leitor, é a escrita.
Meu trabalho não te inspirava nenhum respeito: você dizia que era preciso trabalhar pelo bem
da humanidade e que todas as minhas obras eram patranhas ou modos abjetos de “ganhar
dinheiro”. [...] Eu te perdoava porque sabia que era uma afetuosa maneira de me enfurecer. Às
vezes eu pensava que você tinha razão. Muitas vezes penso que os outros têm razão, ainda que
não tenham (OCAMPO, 2019, p. 14).

A mesma escrita desconsiderada pelo marido acaba funcionando como um novo “terceiro
elemento” na relação dos dois, mas esse inserido por ela mesma.

Meu modo de pensar te distanciava de mim, da mesma forma que a sua distração, no que se
refere à literatura, me distanciava de você. [...] As coisas da vida que mais me interessavam eram
os problemas que eu não conseguia desentranhar e que eram absurdos para você: como eu tinha
que escrever, qual o estilo, que temas devia buscar. [...] Comecei a escrever com entusiasmo,
tanto entusiasmo que no fim de semana, quando podíamos passar os dias como bem
entendêssemos, ao ar livre, em vez de nadar ou de remar com vocês, eu me escondia atrás das
folhas, no silêncio em que submergiam os problemas literários nos quais minha vida estava
mergulhada. Vocês dois, Elena e você, me olhavam com reticência, pensando que não era a
loucura que me espreitava, e sim que eu espreitava a loucura (OCAMPO, 2019, p. 13).

A narradora invoca a loucura, elemento que aparece em muitos textos de Silvina Ocampo e que
costuma servir à perturbar a ordem social instituída. Silvina dá à loucura um lugar diferente da
marginalização que era típica da época. Neste conto, o termo é utilizado de forma pontual, mas, em
seguida, a narradora passa a relatar o momento em que começa a escrever o conto em que cria o

251
personagem Leonardo Moran, com quem estabelece uma conexão apaixonada, que determinará o destino
da relação com o marido.

Vivia dentro do meu personagem, como uma criança dentro de sua mãe. Eu me alimentava dele.
[...] Quando eu caminhava pelas ruas, pensava em me encontrar em qualquer esquina com
Leonardo, não com você. Os cabelos dele, os olhos, o jeito de andar me encantavam. Ao te
beijar, imaginei os lábios dele e esqueci dos seus. (OCAMPO, 2019, p. 15).

O elemento metanarrativo é um recurso interessante e, em alguma medida, bastante


contemporâneo, operando como um recurso que desestabiliza o caráter fluído e imaterial muitas vezes
atribuído à literatura. Isso ocorre pelo fato de que, ao entrelaçar plano narrativo ao mundo extraliterário,
a partir da construção de uma personagem de um conto que também cria um personagem ao escrever
também um conto. O literário no literário, no mundo. Esse conto que a personagem escreve trata da
separação de um casal. Nele, Leonardo fala sobre a mesma vontade de se libertar da relação que a sua
autora vem tratando, mas ele vai mais longe que ela: tem a intenção de se matar. Para isso, precisa se
despojar de tudo o que lhe dá sentido à vida, e assim dar fim à relação com a parceira, Úrsula. É
importante considerar, nesse contexto, que o conto escrito por uma autora mulher, cuja personagem
principal é narradora, ou seja, tem o direito à voz e à narrativa de sua história, e que escreve sobre criando
um personagem homem, é uma forma de representação de uma subjetividade feminina autônoma e
subversa, não submetida à ordem masculina, uma vez que, como escritora e narradora, ainda que no
plano ficcional, é possível que a autonomia feminina se inscreva, marcando, portanto, a possibilidade de
constituição da subjetivação do feminino pela escrita.
No que concerne à ideação suicida, essa se mistura, ao longo do texto, com a intenção da
narradora, que passa a tentar fazer o mesmo: se despojar de tudo o que dá sentido à sua vida. Mas duas
coisas a seguram: a relação visceral que desenvolve com o personagem através da escrita e a relação de
ódio e amor que desenvolve com Elena, a amante do marido. Aos poucos, a outra mulher passa a ocupar
um lugar em sua vida, enquanto o personagem dá voz ao seu processo de transformação. O marido foi
superado por um novo e surpreendente triângulo amoroso, e com isso Silvina Ocampo descentra o lugar
inicial da paixão e da vida da narradora: do marido para a uma nova forma de continuar sua trajetória.
O conto termina com a narradora saindo de casa, sentindo “desprezo e tranquilidade”. Sentada
em um banco de praça, ela lê a carta de despedida que Leonardo escreveu à Úrsula:

Vi um mundo claro, novo, um mundo onde não tinha que perder nada, a não ser o desejo do
suicídio, que já tinha me abandonado. Você não vai me ver mais. Você era tudo, o que mais amei
no mundo Úrsula, e não sei que outras pessoas, que outras coisas poderei amar agora que o
mundo passou a ser para mim o que nunca foi nem pensei que seria: algo infinitamente precioso
(OCAMPO, 2019, p. 20).

252
Vida e escrita se misturam e ela escreve através da voz de Leonardo ao marido. Não é mais
possível saber quem dá voz a quem, construindo um todo polifônico. E aqui a autora subverte a divisão
de gêneros, pois não faz diferença se quem diz é um homem ou uma mulher, personagem ou autora. A
ficção construída no campo literário tem o mesmo tecido dos sonhos, que carregam em si uma verdade
desconhecida para o sujeito que sonha. Verdade essa que, pelo que tem ainda de irrepresentável, se
aproxima do que é o feminino na escrita. Escrita que contém algo, e que é descrita por Lucia Castello
Branco como “nitidamente inquietante, estranhamente incômoda” (BRANCO, 2004, p. 130). O estranho
e o incômodo são elementos do feminino, mas também do inconsciente, com os quais Silvina Ocampo
opera em toda a extensão de sua obra.
A criação literária é colocada no lugar do que há de verdadeiro no sujeito que escreve. O
apaixonamento pela ficção que criou traz à narradora algo da verdade de si mesma, e abre a possibilidade
de uma continuação. A morte da relação não precisa ser a morte dela como sujeito: há vida após a
elaboração pela escrita. Um estilo que lembra os escritos de Clarice Lispector, autora com a qual Silvina
guarda algumas semelhanças (DEORSOLA, 2019). A libertação da narradora pela escrita, é o que
acontece aqui, como em alguns contos de Clarice:
Depois de copiar alguns parágrafos, rasguei as folhas. Não sei, ao rasgá-las, rasguei um feitiço.
Que você não se chame Úrsula, que eu não me chame Leonardo Moran, até hoje me parece
inacreditável, porque “aquele que vê há de ser semelhante à coisa vista, antes de começar a
contemplá-la” (OCAMPO, 2019, p. 20).

A narrativa em mise em abyme do texto explora e resolve a condição da narradora-personagem.


Podemos afirmar que a escrita faz girar a posição da narradora, e que o processo é engendrado pela ficção
que ela cria, ou seja, a descentra da relação com o marido. O descentramento da mulher dos papéis sociais
e lugares reservados à ela é um dos grandes temas do feminismo (ADELMAN, 2016). Silvina Ocampo
não discute isso diretamente, mas usa a metáfora da morte versus uma nova vida possível como mote.
O que o final do conto deixa ver, no entanto, é que há uma resposta possível para a feminilidade.
Uma resposta literária, poderia ser dito, neste caso, mas uma resposta que traz com ela uma consequência:
a narradora, depois de sua experiência epifânica com o texto, por fim se despede da relação conflitiva que
tinha com o marido: “Se não morri, não me procure, e se morri, tampouco: nunca gostei que você olhasse
meu rosto enquanto eu dormia” (OCAMPO, 2019, p. 21).
A fala de uma mulher que que se descobre outra não mais se permite aprisionar, mesmo que com
hesitações: “Ao abandonar meu conto, alguns meses atrás, não voltei ao mundo que tinha deixado, e sim

253
a outro, que era a continuação do meu enredo (um enredo cheio de hesitações, que sigo corrigindo dentro
de minha vida)” (OCAMPO, 2019, p. 21).
Silvina trabalha com subversões que vêm de dentro, muitas vezes silenciosas, mas decididas no
que diz respeito ao lugar da mulher como alteridade. Alteridade que aparece de muitas formas. Aqui,
como a possibilidade de se transformar, sem precisar morrer para isso. O amor que, a princípio, estaria
relacionado ao sentido dado pelo marido, personagem masculino. Se pensarmos que a relação amorosa
do casal, mesmo que já falida, se revela no campo singular, de que já tratou Platão, quando afirma haver
uma cumplicidade entre Logos e Eros, como afirma Pessanha (2009, p. 83), “amor e fala, amor e discurso,
amor e palavra estão intrínseca e definitivamente interligados”.
De modo a dialogar com essa perspectiva subjetiva do amor e da escrita nas mãos da personagem-
narradora-escritora em Silvina Ocampo, observemos, a seguir, como esses mesmos tópicos comparecem
também na poesia de Tamara Kamenszain.

“Garotas é uma palavra doce/ que não devemos deixar de lado ”

Tamara Kamenszain nasceu e viveu em Buenos Aires, entre 1947 e 2022, quando faleceu.
Estudou, durante um tempo, Filosofia, mas não chegou a concluir o curso. Em texto publicado
anteriormente a sua morte, Guilherme Gontijo Flores (2013) comenta ser a poeta uma das escritoras mais
interessantes das ainda em atividade no que se refere à poesia argentina. Além de poeta, tem uma
quantidade significativa de publicações em outros gêneros, como o romance e o ensaio.
Entre a sua vasta obra, no Brasil temos editadas as obras Livros pequenos (2021) e O gueto/ eco da
minha mãe (2012), pelas editoras Papeis Selvagens e 7Letras, respectivamente. Com sua obra, Kamenszain
recebeu diversos prêmios literários, como, por exemplo, em 2004, a Medalha de honra Pablo Neruda do
Governo do Chile.
Garotas em tempos suspensos é o último livro publicado em vida e chega ao Brasil em 2022 por
iniciativa do Círculo de Poemas, uma parceria das editoras Luna Parque e Fósforo. De modo mais amplo
e geral, o livro reivindica poeticamente um olhar atento às subjetividades femininas - no plural, sobretudo
se pensarmos nas escolhas atentas da tradutora que, considerando a posição muito marcada da poeta,
marca os artigos “e”, em respeito às pessoas que não se identificam com o binarismo masculino x
feminino - especialmente no que concerne ao espaço marginal ao qual a autoria de mulheres foi
submetido.
Paloma Vidal (2022), em prefácio à edição brasileira, comenta o fato de que sempre interessou à
Tamara Kamenszain o tempo presente. O livro foi escrito durante os primeiros meses de isolamento

254
devido à pandemia da Covid-19, momento em que os poemas surgem como possibilidade de, pela escrita,
ser possível pensar na “relação entre escrever e compartilhar [que] se dava para ela explícita e
intensamente, com o desejo de abrir no presente uma brecha que iluminasse a experiência” (VIDAL,
2022, p. 60).
Nesse contexto de partilha, é possível perceber a presença da dimensão dos afetos na poesia de
Tamara, sobretudo pela poeta considerar os leitores do presente, experiências do passado e do presente,
pretendendo que se observe aquilo que foi impossibilitado e como o impacto desses “nãos” reverberam,
especialmente no que diz respeito ao espaço para a escrita de autoria feminina circular, na
contemporaneidade. Marca disso está no poema “1.”, da seção “Poetisas”, que abre o livro, em que o eu
lírico feminino enuncia: “Poesia é uma palavra doce/ que deixamos de lado porque nos dava vergonha/
[...] Melhor poetas que poetisas/ ficamos combinadas então/ para garantirmos um lugarzinho que seja/
nos cobiçados submundos do cânone” (KAMENSZAIN, 2022, p. 13).
Nesses versos, é possível perceber uma visão partilhada socialmente sobre um processo
historicamente relevante da história da escrita de mulheres poetas, pois, de alguma forma, a marca do
feminino presente na palavra poetisa precisou ser apagada, silenciada, para que seus textos fossem
considerados dignos de publicação e leitores. A visão inferiorizante do termo, posteriormente, foi revista
quando pensada a atividade de escrita e, ainda hoje, muitas poetas preferem o uso do termo “poeta”,
como comenta Orides Fontes, poeta brasileira silenciada por seus contemporâneos - escritores e crítica -
, em entrevista ao comunicador Jô Soares: a poesia não tem sexo71. De alguma forma, a posição de
Tamara, ainda que metaforicamente, pretende uma reflexão sobre a importância de se recuperar essa
marca do feminino como legitimação das autorias e das subjetividades femininas, uma vez que, também
afirma o eu lírico do referido poema: “[...] nós mulheres não escrevemos/ para convencer ninguém”
(KAMENSZAIN, 2022, p. 13); ou então, quando no poema “12”, na seção 3 intitulada “Garotas”, o eu
lírico feminino defende: “Garotas é uma palavra doce/ que não devemos deixar de lado/ mesmo que
nossa idade a desminta” (KAMENSZAIN, 2022, p. 37).
Ainda no campo das escolhas afetivas (LEONE, 2014), percebe-se de modo geral que os temas
do amor e da escrita estão aliados ao feminino em Garotas em tempos suspensos, uma vez que Kamenszain
materializa tanto uma experiência de um sujeito mulher que escreve isolada num período de reclusão e
silenciamento imposto por um vírus e que suscita memórias de um silenciamento e de uma reclusão e
um silenciamento social mais amplo e histórico, quando refletindo-se acerca da história da escrita de

71
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AN6-FP71xl8. Acesso em: 29 jun. 2023.

255
mulheres, quanto uma experiência partilhada ao citar histórias de outras mulheres, como, por exemplo,
Delmira Agustini, Cecilia Pávon, Alfonsina Storni, Celeste Diéguez, o que permite que observemos uma
espécie de escrita de si, emergindo de uma “tensão existente a cultura do eu e a vontade relacional da sociedade
contemporânea, entre o ser e a rede”, e materializando em poéticas do afeto, quando há citações e a
presença dos nomes próprios (LEONE, 2014, p. 50).
De todo modo, quando, a partir dessa cosmografia que a obra elabora, observamos mais
detidamente alguns elementos, é notória a relação entre o amor que mulheres sentem e a escrita de autoria
feminina, de maneira muito singular na escrita de Tamara Kamenszain, assim como observamos em
Silvina Ocampo, uma vez que temos um eu que fala a partir de um lugar do feminino e que escreve suas
escolhas, de maneira autônoma, refletindo sobre o amor de forma subjetiva. Leiamos o poema:

Eu sempre quis recuperar pelo tango


a lírica rouca do amor
mas também o romance que es dançarines desenham
sem largar o ritmo implacável
de suas histórias próprias.
E no entanto e no entanto
exagerar no pessoal não dá para mim
e no político menos ainda.
“Hoje entrarás no meu passado”
diz o tango como se lembrasse
que se o divórcio chegou pelo correio
nenhum poema poderá emendá-lo.
Então me pergunto a essa altura de minha idade
sé é possível contornar as rasuras do amor
ou se é possível – como poeta como poetisa
ou como o que for que eu fui sou ou como com sorte serei
por mais tempo –
continuar escrevendo.
Porque se tudo começa como poesia
irremediavelmente vai terminar como romance
devo estar ficando fora de moda
quando acredito que minha irrelevante vida
é um romanção, uma dessas sagas
que lemos só
para poder chegar até o fim.
E no entanto e no entanto concluo agora
que o que começa como poesia
deveria poder terminar também como poesia
porque se não há mais nada para contar
depois de ter contado tudo
quando ele deixar uma mensagem de voz
eu vou poder me dar ao luxo
de não responder (KAMENSZAIN, 2022, p. 22-23).

256
O poema em análise apresenta, de início, uma estrofe única. Ainda que longa, é interessante
pensar que a escolha da poeta pela não divisão dos versos contribui com a leitura do poema num fluxo
que não permite muitas pausas. Em alguma medida, esse fluxo impõe um ritmo de leitura, que também
encena e transforma, no plano textual, as imagens do poema em uma única “narrativa”. A subjetividade
no poema se acentua na primeira palavra que abre o primeiro verso: eu. O pronome pessoal de primeira
pessoa no singular permite que se construa uma escrita do eu, em que o sujeito poético feminino que fala
no poema possa narrar sua própria experiência.
Historicamente, as mulheres ficaram fora do cânone literário porque, para os membros dessa
instituição, as mulheres não tinham habilidades outras além de falar de coisas relacionadas às suas
experiências amorosas. Em outro momento da história literária, ao se relacionar a escrita da poesia lírica
ao registro de experiências subjetivas, pensou-se que, sem grandes arranjos estéticos, a poesia poderia ser
praticada por mulheres; aos homens, então, caberia a escrita das grandes narrativas, nas quais havia as
elaborações de um enredo, com personagens complexos e mecanismos de linguagem mais esteticamente
desenvolvidos. Posteriormente, como afirma Zolin (2009, p. 328), uma análise atenta permite observar
“uma reação impulsionada pela descoberta de que o valor estético da literatura canônica não reside apenas
no próprio texto”, mas sim em critérios determinados pelas relações de poder e pelo sexo.
Essa história que envolve a escrita de mulheres num contexto patriarcal parece ser o plano de
fundo da escrita do poema que, em alguma medida, coloca em tensão uma certa tradição dentro de um
espaço de ruptura. Após se anunciar na primeira pessoa, o eu lírico afirma que sempre quis recuperar
pelo tango, em referência à musicalidade, ao ritmo, ao movimento, a lírica rouca do amor. Essa lírica
rouca pode remeter às significações atribuídas à escrita de poesia e ao amor de mulheres, rouca pelo
desgaste, pela distância, e por ter se desfeito, apagada e silenciada ao longo do tempo. Em oposição a tal
imagem, o eu lírico também diz querer o romance, em referência à prosa, à narrativa escrita por homens,
que seria vista como superior à poesia, ao texto lírico. É como se pudéssemos ouvir a fala de Helene
Cixous ecoando na de Tamara: “uma escrita que inscreva a feminilidade” (CIXOUS, 2022, p.48), “já que
é justamente a escrita a própria possibilidade de mudança, o espaço do qual pode se lançar um pensamento
subversivo, o movimento precursor de uma transformação das estruturas sociais e culturais”. (p. 49).
O que se observa, nesses versos, é também a superação de uma visão hegemônica desse romance,
pois o que se espera, nesse momento, é que “dançarines” (KAMENSZAIN, 2022, p. 22) possam
desenhar um novo ritmo, a partir de suas próprias histórias; ou seja, há uma nova atribuição subjetiva ao
gênero literário, por um lado, e às identidades de gênero, para além do masculino e do feminino

257
heteronormatizados. Ainda assim, o eu lírico feminino afirma que exagerar no pessoal e no político não
dá para ela. A referência clara ao jargão do feminismo parece dialogar, em alguma medida, com a
consciência da autora sobre a dimensão estética e formal do texto que, mesmo que motivado e inspirado
pela subjetividade e pela época daquele que escreve, está condicionado ao trabalho com as dimensões de
forma e conteúdo literários.
Na sequência, o eu lírico empresta a voz de um sujeito outro, reforçando esse entrelaçamento de
vozes, dialogando com a construção dialógica de Ocampo, como vimos anteriormente, ao apresentar,
com o recurso das aspas, o verso “‘Hoje entrarás no meu passado’”(KAMENSZAIN, 2022, p. 22). Ainda
que no poema a voz que é recuperada memorialísticamente remeta à possibilidade de o tango fazer
lembrar o divórcio do eu lírico feminino, podemos observar que essa também representa uma espécie de
construção de certo momento de fuga da realidade, sendo desestabilizada pela imagem do correio que
chega, com se a trouxesse novamente ao mundo do real, anunciando aquilo que chega pelo correio: o
divórcio.
O leitor, nesse momento, pode pensar em algumas possibilidades: o divórcio marca a ruptura
entre o sujeito poético femino e um possível amante? entre a poesia - lírica rouca - e a prosa - romance?
entre uma visão da tradição e a ruptura?
De todo modo, é interessante pensar que o elemento amor, quando representado aqui, a partir
tanto do desejo de recuperação de um objeto de desejo ausente, quanto na imagem de rompimento pelo
divórcio, revela-se fortemente impulsionador do processo de escrita, pois, com afirma, na sequência, o
eu lírico: “nenhum poema poderá emendá-lo” (KAMENSZAIN, 2022, p. 22). Remetendo às funções da
literatura, de algum modo, já que, de maneira objetiva, é sabido que: a literatura não serve para nada. Por
isso, o eu lírico reflete sobre a indagação: seria possível “contornar as rasuras do amor”? Ao mesmo
tempo que reflete sobre a possibilidade de a escrita permitir um contorno àquilo que é produzido pelo
amor, pergunta-se também sobre a possibilidade de continuar escrevendo. Ao contrário da personagem
de Silvina Ocampo, que sacrifica o amor, mesmo que momentaneamente, por um novo caminho aberto
pela escrita, o eu lírico de Tamara se pergunta pela possibilidade de ficar com os dois.
A partir daí, o poema, intencionalmente, assume um discurso que opera pela narratividade,
metaforizando um processo de elaboração de imagens prosaicas em versos, desafiando a diferença entre
prosa e poesia, como se colocasse por terra a diferença assinalada ao longo do tempo pelo cânone literário
e pela crítica excludente; pois, para o eu lírico feminino, haveria - ou deveria haver - a possibilidade de
que, aquilo que começa como poesia, termine como romance.

258
Antiteticamente, e atestando a subversão das fronteiras entre os gêneros literários, o eu lírico
também reflete que aquilo “que começa como poesia/ deveria também poder terminar como poesia/
porque se não há mais nada para contar/ depois de ter contudo de tudo” (KAMENSZAIN, 2022, p. 22-
23) restará a liberdade de expressão àqueles que escrevem e que materializam a experiências, o
estranhamento e suas subjetividades diante da experiência vivida, passada, e da esperada como
prospecção de um futuro que se constrói no mundo do presente.
Ao final do poema, fica marcada a subjetivação feminina que acontece pela escrita, ainda que o
eu lírico feminino tenha se indagado acerca de poder ainda ou não continuar a escrever, seja como poeta,
seja como poetisa, seguindo a discussão realizada em torno dos versos do poema “1.”, apresentado
anteriormente. Nesse momento, antes de encerrar, o feminino marca o seu lugar não-todo: fora da lógica
fálica, mas relacionado a ela. É possível acabar também em poesia: “quando ele deixar uma mensagem
de voz/ eu vou poder me dar ao luxo/ de não responder” (KAMENSZAIN, 2022, p. 23). Nesses versos,
o eu lírico é ironicamente conduzido à comparação do direito à escrita como marca da liberdade também
para realizar outras escolhas, sejam elas de ordem complexa ou simples, por isso coloca em cena um
elemento cotidiano como receber um “áudio” em contraponto ao direito à escolha de não responder
como sendo um “luxo”.

“É possível contornar as rasuras do amor”?


A partir da leitura da obra das duas escritoras aqui analisadas, Silvina Ocampo e Tamara
Kamenszain, levantamos algumas possibilidades de reflexão sobre a presença do feminino, da escrita e
do amor, em prosa e em verso, sendo observados como entrelaçados na obra de ambas as escritoras. De
alguma forma, há uma configuração muito particular em cada uma das escritas; ainda assim, é possível
perceber que há um diálogo entre as escritas dessas duas argentinas que, cada uma a seu modo, permite
que pensemos nas formas de subjetivação feminina pela escrita.
Enquanto em Silvina Ocampo o feminino subverte as categorias de gênero, ao colocar uma
personagem-narradora que é escritora e que cria uma figura masculina para, ao final, ultrapassar tanto a
loucura como a ideação suicida - que não deixa de colocar como formas de saída psíquica - para atingir
uma libertação; em Tamara Kamenszain, a metalinguagem também comparece como elemento
possibilitador da subjetividade a ser constituída pela escrita, ao questionar os gêneros, mas, nesse caso,
especialmente o literário, e ao apresentar ao final o sujeito feminino que nada pode contra o divórcio,
mas que por fim tem o direito de escolher não mais responder à mensagem da figura masculina.

259
O que se observa, portanto, são duas formas de construção das subjetividades femininas via
escrita e que, seja a partir de uma postura feminista, como a de Tamara, ou de uma mulher que não se
assume como pertencente a esse grupo, como Silvina, é possível perceber que a literatura produzida por
ambas produz a ruptura com o que é estabelecido socialmente pelas relações de poder, sendo possível a
essas subjetividades, contornar, dar forma, às rasuras causadas pelo amor. Sem que nem ele – o amor -
nem elas – as mulheres - precisem sucumbir no encontro.

Referências

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contemporânea. São Paulo: Editora Edgard Blücher Ltda, 2016.

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BRANDÃO, Ruth (Orgs.). A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2004.

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Bazar do tempo, 2022.

DEORSOLA, Lívia. Silvina e Clarice. Blog da Companhia, 2019. Disponível em:


https://www.blogdacompanhia.com.br/conteudos/visualizar/Silvina-e-Clarice8. Acesso em: 15 jul.
2023

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Horizonte: Relicário, 2022.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Penguin Classics
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FLORES, Guilherme Gontijo. Tamara Kamenszain. Escamandro. 05/04/2013. Disponível em:


https://escamandro.wordpress.com/2013/04/05/tamara-kamenszain/. Acesso em: 27 jul. 2023.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Feminismo em tempos pós-modernos. In: HOLLANDA, Heloisa
Buarque de (Org.) Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.

IANNINI, Gilson; TAVARES, Pedro Heliodoro. Sobre amor, sexualidade, feminilidade. In: FREUD,
Sigmund. Amor, sexualidade, feminilidade. Trad. de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte:
Autêntica, 2020.

KAMENSZAIN, Tamara. Garotas em tempos suspensos. Trad. Paloma Vidal. São Paulo: Círculo de
poemas, 2022.

260
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade.
Rio de Janeiro: Imago, 2007

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LA MÁQUINA DE ESCRIBIR. Silvina Ocampo: de “Ejercitos de la Obscuridad”. 2008. Disponível em:


http://lamaqdeescribir.blogspot.com/2008/02/silvina-ocampo-de-ejrcitos-de-la.html. Acesso em: 29
jun. 2023.

LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia contemporânea. Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.

OCAMPO, Silvina. A Fúria e outros contos. Trad. de Lívia Deorsola. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.

OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente. Rio de Janeiro: Rocco,
2012.

PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

PESSANHA, José Américo Motta. Platão: as várias faces do amor. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os
sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 83-114.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Moysés Baumstein. São Paulo: Perspectiva, 1969.

VIDAL, Paloma. E no entanto e no entanto: o livro das chicas de Tamara. In: KAMENSZAIN, Tamara.
Garotas em tempos suspensos. Trad. Paloma Vidal. São Paulo: Círculo de poemas, 2022, p. 59-76.

ZOLIN, Lucia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Osana.
Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3.ed. Maringá: Eduem, 2009, p.
327-352.

261
Viagens a Lesbos, excursões do desejo: homoafetividade feminina nos
portos literários de Lygia Fagundes Telles

Guilherme Ewerton Alves de Assis72


Hermano de França Rodrigues73

Resumo: A sexualidade humana, longe de ser delimitada por ditames biológicos e fisiológicos, é traçada, à luz da
psicanálise, pela pulsão sexual, que é montada, através de experiências satisfatórias (ou não), fixações e fantasias.
Portanto, escapando dos ditames heteronormativos, toda sexualidade, incluindo a homossexualidade, se entendida
pela psicanálise, não pode ser considerada perversa, desviante ou anormal, mas são possibilidades do desejo, rotas
possíveis da libido e movimentações, talvez, já empreendidas inconscientemente durante a infância. Nesse
corolário, o presente trabalho se debruçará sob conto Uma branca sombra pálida, presente do livro A noite escura e
mais eu (1995), de Lygia Fagundes Telles, no intento de investigar a homoafetividade feminina e seus ecos no seio
familiar. Para tanto, ancorar-se-á nos escritos psicanalíticos freudianos a respeito da homossexualidade e da
feminilidade.

Palavras-chave: Homoafetividade. Literatura brasileira. Psicanálise.

Abstract: Human sexuality, far from being delimited by biological and physiological dictates, is traced, in the light
of psychoanalysis, by the sexual drive, which is assembled through satisfactory experiences (or not), fixations and
fantasies. Therefore, escaping from heteronormative dictates, all sexuality, including homosexuality, if understood
by psychoanalysis, cannot be considered perverse, deviant or abnormal, but are possibilities of desire, possible
routes of libido and movements, perhaps, already covered during childhood. In this corollary, the present work
will focus on the short story Uma Branca Sombra Palida, present in the book A noite negra e mais eu (1995), by
Lygia Fagundes Telles, in an attempt to investigate female homoaffectivity and its echoes within the family. To
do so, it will be anchored in Freudian psychoanalytic writings about homosexuality and femininity.

Keywords: Homoaffectivity. Brazilian literature. Psychoanalysis.

1 Introdução
Diferente das teses sustentadas na época, por médicos e religiosos, Sigmund Freud, o pai da
psicanálise constata que o mapa da sexualidade existe desde a primeira infância e, durante a vida, o que
ocorrem são reedições e tentativas, sempre falhas, de reencontros com objetos tomados pela criança.
Embora já descrita incipientemente por alguns contemporâneos, como Adolf Patze, Henry Maudsley e

72
Graduando em Licenciatura Plena em Letras - Português pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduando em
Licenciatura Plena em Filosofia pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Técnico Profissionalizante em
Psicologia Clínica e Comportamental pelo Centro Educacional de Educação à Distância (CEPED). Tem Aperfeiçoamento
em Psicanálise (180h) pela Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED). Atua como Bolsista e Pesquisador
no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC/CNQp).
73
Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Associado I, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB). Especialista
em Psicanálise: Teoria e Prática, pelo Espaço Psicanalítico – EPSI.

262
Michel Foucault, é apenas com Freud que a sexualidade assume o estatuto central na vida do sujeito, uma
vez que toda sexualidade, apesar de “adulta”, é sempre infantil, assim como toda sexualidade, embora
escape dos padrões monogâmicos e heteronormativos colocados pela cultura, é considerada possível – a
depender de circuitos pulsionais, configuração de identificações e experiências de satisfação vivenciadas,
conscientes ou por meio de fantasias inconscientes pelo sujeito (GAY, 1989). Portanto, percursos, por
exemplo, homossexuais, diferente de serem considerados produtos de pecado ou de degenerescência
mental, são colocados, pela psicanálise, como trata apenas uma das múltiplas possibilidades de
manifestação da sexualidade.
Colocada, historicamente, no lugar da perversão e do abjeto, a homossexualidade, no microscópio
da ciência psicanalítica, é uma das maneiras possíveis da sexualidade. Nesse corolário, o presente trabalho
se debruçará sobre conto Uma branca sombra pálida, presente do livro A noite escura e mais eu (1995), de Lygia
Fagundes Telles, no intento de investigar a homoafetividade feminina e seus ecos no seio familiar. Para
tanto, ancorar-se-á nos escritos psicanalíticos freudianos a respeito da homossexualidade e da
feminilidade, tais quais: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905); Sobre a psicogênese de um caso de
homossexualidade feminina (1920); Sobre alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e na homossexualidade
(1922); e Carta a uma mãe preocupada com a homossexualidade de seu filho (1935).

2 Homoafetividade e suas vicissitudes na Psicanálise


Depois de delimitar o campo de estudos onde percorreria a imberbe ciência que estava forjando,
através da publicação de obras sobre o inconsciente, como A interpretação dos sonhos (1900) e O chiste e sua
relação com o inconsciente (1905), Freud publica Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), fruto de um
vasto apanhado desde antes da virada do século, cujo resultado foi um dos importantes sustentáculos da
psicanálise: a sexualidade. Dividido em três partes, no segundo ensaio e o terceiro ensaio, Freud investiga
a sexualidade infantil e os percursos da sexualidade na adolescência, respectivamente. Por outro lado,
Freud dedica o primeiro ensaio a fazer uma breve revisão de literatura sobre as teorias sexuais, apresentando
as propostas de conhecidos especialistas, assim como criticando-os em alguns pontos. Doravante,
diferente do que faziam os outros estudiosos, Freud apresenta, em um posicionamento clínico e
imparcial, sem dar louros ou deplorar, um vasto arcabouço de tendências eróticas, consideradas como
“perversas”, quais sejam: fetichismo, exibicionismo, sadismo, necrofilia, masoquismo e homossexualismo
(entendida, pela psiquiatria da época, como uma patologia). O movimento do freudismo, para fundar a
doutrina da sexualidade, é aproximar, no primeiro ensaio e no segundo ensaio sobre a sexualidade, a
perversão da infância e a infância da perversão. Ao fazer esse movimento e colocar a, até então, “pura

263
criança” em um lugar de uma perversão-polimorfa74, Freud passa a ser repudiado pela moral vitoriana de
Viena. Entrementes, o mestre vienense percebe que a infância é sustentada por comportamentos e
atitudes sexuais consideras perversas, como masoquistas, fetichistas, exibicionistas, sadistas, entre outras.
Portanto, toda sexualidade é, de certo modo, perversa e infantil. Como se pode vislumbrar n’Os três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, as crianças e os considerados perversos foram dois grupos que ensinaram a
sexualidade a Freud. Colocados, insistentemente, em lados opostos, o criador da ciência psicanalítica
descobriu que não existe uma auréola que recobre a criança, nem, ao menos, um dardo diabólico atravessa
os perversos. Essa ideia freudiana, evidentemente, garantiu a má-fama da Psicanálise, mas, ao mesmo
tempo, permitiu o seu sucesso terapêutico:

[...] sua ideologia foi profundamente subversiva para a época. Não menos subversiva
era sua posição neutra e sem censuras a respeito das perversões, pois estava convencido
de que a fixação sexual em objetos iniciais que não foram superados, quer isso
significasse fetichismo ou homossexualidade, não era crime nem pecado ou doença, e
tampouco uma forma de loucura ou sintoma de decadência. Isso soava muito moderno,
muito respeitável, em suma, muito pouco burguês. (GAY, 1989, p. 149).

Embora já antevista nos alfarrábios literários, como nos perturbadores romances de Marques de
Sade e Sacher-Masoch, assim como discutida pela psiquiatria, a partir dos estudos de Krafft-Ebing e
Havelock Ellis, a novidade da descoberta de Freud já no primeiro ensaio, é a origem infantil das
perversões. Na contracorrente dos preconceitos populares e criticando as teorias psiquiátricas de sua
época, que insistiam que tais posições sexuais eram produtos de degenerescência ou uma tara, Freud
intenta encontrar a verdadeira origem da sexualidade (e das suas consideradas perversões) na criança.
Freud, antes de iniciar, expõe o lugar onde se localiza a sua pesquisa: não concorda com a sexologia,
psiquiatria e cientificismo de sua época; volta-se, contudo, à cultura grega e sua mitologia, uma vez que
há uma valorização da pulsão – enquanto a cultura judaico-cristã valoriza o objeto sexual. Freud começa
diferenciando pulsões de instintos. A sexualidade humana não é instintual, biológica e apenas genital, mas
é uma sexualidade pulsional, construída, paulatinamente, por meio de experiências pulsionais, de encontros,
desencontros e fixações. Trata-se, nesse sentido, de uma sexualidade construída a partir de circuitos da
pulsão. Enquanto, no instinto, há padrões preexistentes e determinados, que unem o objetivo sexual ao
seu objeto; nas pulsões, a ligação ocorre a partir de experiências e fixações que se passaram durante a
história do sujeito. Entendo a sexualidade humana como pulsional, não há, então, uma predeterminação

74

264
biológica e um objeto específico para o qual a pulsão sexual se direcionará – o objeto é variável, múltiplo
e não natural. Portanto, não existindo objetos naturais e únicos para a pulsão, toda sexualidade é perversa.
Nesse primeiro texto sobre a sexualidade, Freud se propõe a repensar os limites postos pela
ciência e pelo discurso popular a respeito da normalidade e da perversão. De início, o pai da psicanálise
introduz uma diferenciação dentro do campo das perversões, dividindo-as em dois grupos: os desvios
sexuais em relação ao objeto sexual, que dizem respeito ao objeto que emite uma atração sexual e outro, que
são os desvios em relação ao objetivo sexual, que caracterizam o ato que conduz a pulsão. O objetivo sexual,
segundo Freud, é a união dos genitais, que conduz o sujeito à redução da tensão sexual e, posto isso, o
desvio perverso seriam as atividades sexuais que escapam ou que não visão à união sexual, tais como
preliminares. Embora a Psicanálise, nesse primeiro momento, concorde com a sexologia corrente, Freud
logo aponta que, qualquer pessoa, apesar de ser considerada sadia, há traços perversos no “objetivo sexual
normal”. Por outro lado, em contraposição a essa afirmativa, nenhuma disposição sexual ou identidade
pode ser considerada anormal, abjeta ou pecaminosa – predicados, historicamente, dirigidos às
homossexualidades.
No âmago da teoria freudiana de sexualidade, encontra-se a concepção de uma bissexualidade
psíquica – portanto, uma predisposição bissexual de todos os sujeitos. Freud afirma que, se a
homossexualidade resulta de uma das possibilidades pulsionais, pode-se investigar quais os motivos
conduzem um sujeito a fazer determinadas escolhas de objeto, seja ele homossexual ou heterossexual.
Para solucionar a questão, recorrendo mais aos gregos, por meio do mito do Andrógino, de Aristófanes,
o pai da ciência psicanalítica introduz a bissexualidade enquanto um componente da sexualidade humana.
Contudo, longe de ser uma questão de hermafroditismo biológico, trata-se de uma bissexualidade
psíquica, de uma disposição inata que delimita o mapa pulsional e permite múltiplos direcionamentos
pulsionais e identidades sexuais. Ou, como diz o narrador de “Pedra que chora”, conto do livro
Conspiração de nuvens (2007), de Lygia Fagundes Telles: “O mar que não é nem verde nem azul, nem
masculino como figura nossa língua nem feminino como está na língua francesa, nem macho nem fêmea,
mas algo assim andrógino” (TELLES, 2007, p. 81).

3 Novas roupagens de Ártemis, velhos desejos de Calisto: homoafetividade feminina nos


bosques literários de Lygia Fagundes Telles

265
Embebida, inconsciente e arquetipicamente pela multiplicidade pulsional da sexualidade, os
escritos de Lygia Fagundes Telles, célebre voz da Literatura brasileira, são cruciais para a compreensão
da homoafetividade e homossexualidade nos alfarrábios literários. Acompanhando narrativas de suas
contemporâneas, como os contos d’A via crucis do corpo (1974), de Clarice Lispector, os alfarrábios lygianos
são profícuos em dispor de desejos homoafetivos, amiúde, femininos. Por meio de tais textos, pode-se
observar e, quiçá, compreender as diferentes configurações pulsionais da(s) sexualidade(s) humana(s),
que, como já preceituara o pai da ciência psicanalítica, longe de ser estritamente biológica, depende,
substancialmente, dos relacionamentos, dinâmicas e circuitos pulsionais entre, por exemplo, familiares,
suas vivências, experiências e fantasias inconscientes.
Em meados dos anos 40, durante o curso de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, a
paulistana Lygia Fagundes começa a se encaminhar pela ficcionalidade literária, escrevendo e publicando
os seus primeiros escritos, como o livro Porão e sobrado (1938) e Praia viva (1944). Nessa época, a jovem
Lygia frequentava Jaraguá, uma mistura de livraria, salão de chá e galeria de arte, visitada por muitos
artistas e escritores, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Em contexto de Estado Novo e
Getulismo, prevalecia a censura à imprensa e a muitos movimentos artísticos. Contudo, a escritora de As
meninas (1973) já era bastante subversiva e resistia, juntamente com os intelectuais de Jacarandá, às
perseguições do governo de Vargas. Doravante, sepultando esses escritos primevos, os quais a escritora
os nomeia de “juvenilidades”, Lygia considera o início de sua carreira literária a partir do seu célebre
romance Ciranda de Pedra (1954), reputado, por Candido (1989), como a sua maturidade literária.
Com sua estreia oficial em 1944, com Praia Viva, Lygia é, comumente, albergada na chamada
Geração de 45, também conhecida como a Terceira Fase do Modernismo. Após o ardor ufanista da
Semana de 22 e o apego ao regionalismo dos anos 30, a Geração de 45, impregnando-se do neoclássico,
embebeda-se do Existencialismo sartreano, cujas ideias acabaram de chegar ao Brasil, assim como, ainda
prevalecentes, recorre ao experimentalismo das vanguardas, tais como o Expressionismo e o Surrealismo
(LUCAS, 1999). Além, também, de recorrer a aparatos literários, como o estilo indireto livre e o fluxo de
consciência, essa Geração Pós-moderna, afastando-se um pouco da brutalidade do sertão, prefere
representar, caleidoscopicamente, registros da vivência interior e subjetiva dos personagens. Não à toa,
em 1944, no mesmo ano em que Lygia publica Praia Viva, seu primeiro livro de contos, Clarice Lispector
publica Perto do coração selvagem, seu primeiro romance.
Assim, vislumbrando esse retrato do interior dos personagens, as narrativas de Lygia exploram,
amiúde: manifestações do inconsciente; fantasias e memórias infantis; estados oníricos; intimidações da
velhice e da morte; loucura; estruturas edípicas; linguagem, aos moldes da associação livre,

266
vertiginosamente fragmentada, entre outros retratos incônscios. Não à toa, alinhando-se a escritores da
Geração de 45, como Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende e Aníbal Machado, Bosi (2017 [1982], p.
414) vislumbra Lygia Fagundes Telles na categoria de “escritores de invulgar penetração psicológica”.
Nesse sentido, a dama da Literatura Brasileira apresenta um forte pendor à estética memorialista, intimista
e autoanalista, em que os personagens, esquivando-se, não se dispõe a lidar com o contraste eu/mundo
e, com efeito, preferem subjetivar as tensões e os conflitos. Tal apego à interioridade dos personagens
torna a ficção de Lygia um terreno fértil para ser colocada no divã e esgarçada por ciências capazes de
investigar o inconsciente e suas vicissitudes, como a Psicanálise.
Para além disso, nos escritos da escritora paulista, as vozes das homossexualidades são ululantes.
Não à toa, em seu paradigmático romance Ciranda de Pedra (1954), há um homoafetivo entre duas amigas,
Virgínia e Letícia, cujo motivo, conforme a percepção dos outros personagens, seria um amor não
correspondido de Conrado, irmão de Letícia, para com Virgínia. Por outro lado, Letícia, no romance, é
vislumbrada, pelo próprio círculo de amizade, como “menos feminina”, em decorrência de não se vestir
liturgicamente “como uma mulher”, assim como por ter, como profissão, o tênis – um esporte
considerado, na trama, masculino. Portanto, Letícia, considerada “um Leviatã perfeito” (TELLES, 2009,
p. 67), os amigos orientam Virgínia a afasta-se, uma vez que poderia ser “maculada” pelo vínculo, seja
amoroso seja fraternal, entre as amigas. Em um contexto que relegava os homossexuais ao espaço
pecaminoso abjeto, Lygia, desde a metade do século passado, em seu romance primevo, demarca uma
temática cara a sua literatura e primordial para a sociedade. Outrossim, em As meninas (1973), outro
romance emblemático publicado durante à Ditadura Militar, há mais um enlace homoafetivo feminino
entre duas personagens. Além das vozes de Ana Clara e Lorena, no romance, pode-se acompanhar a
trajetória de Lia, também conhecida como “Lião”, cuja juventude foi marcada por um amor escondido
(e proibido) por sua amiga Carla. As missivas enviadas a Carla, no início das correspondências, Lia, a fim
de evitar ser suspeitas e repressões de seus pais, assinava com um pseudônimo masculino. Contudo,
paulatinamente, Lia começa a assinar com o seu próprio nome, assim como as cartas, em seu corpus,
passaram a ser mais ousadas em suas declarações. Todavia, debalde ser escondido, o romance é
interrompido quando os pais de Lia descobrem a sexualidade da filha, assim como do possível
relacionamento que escapa dos preceitos litúrgicos da heteronormatividade. Cumpre salientar que, além
do lesbianismo, através de Lia pode-se vislumbrar uma possível pansexualidade: “Penso em Carla, por
que penso em Carla? Aperto-a mais. Ela ri, sente cócegas. A gente se ama, sim, a gente se ama, isto é
amor. Não sei explicar mas também amo Pedro. E o Bugre e Ana Turva, amo todos. Sou capaz de todos,
Miguel principalmente (TELLES, 2009, p. 116).

267
Além dos romances, no conto “Uma branca sombra pálida”, do livro A noite escura e mais eu (1995),
cujo enredo é sustentado pelo conflito entre uma mãe e Oriana, uma suposta parceira amorosa de sua
filha Gina, cujo (des)caminho, repleto por repulsas às relações homoafetivas e ciúmes, resulta
tragicamente, ao final, no suicídio de Gina. Após a morte de seu pai, Gina vive com poucos amigos e,
como companhia, apenas a sua mãe. Contudo, após conhecer Oriana, componente desestruturante do
cosmo mãe-filha, a vida de Gina ganha contornos, pelo menos sob a perspectiva materna, de mistérios e
segredos. Desde o início da narrativa, o leitor sabe, através dos relatos da mãe, que Gina, sua filha,
suicidara-se, uma vez que o conto se inicia em um cemitério.
De início, vislumbra-se a mãe de Gina, colocando flores brancas no túmulo de sua filha;
rivalmente, do lado oposto das flores vermelhas, viçosas e abertas que foram colocadas por Oriana: “Hoje
fui ao túmulo de Gina e de longe vi as rosas vermelhas espetadas na jarra do lado esquerdo, Oriana veio
ontem.” (TELLES, 2021 [1995], p. 442). Sintomático da narrativa, a oposição entre o angelical branco
materno e o desordeiro e luxurioso vermelho demarca os lugares, situados no terreno do ciúme e da
rivalidade, da mãe e da amante. Além disso, desde os primeiros momentos, a concepção de que a
homossexualidade é purulenta e abjeta, sobressai na fala da mãe: “A desordeira é Oriana com seus
dedinhos curtos, parece que estou vendo as unhas roídas [...] você gosta de fazer sujeita, Você é suja!.”
(TELLES, 2021 [1995], p. 442). O texto, além de conter o que ocorrera após sua morte, infiltram-se, a
partir do ponto de vista e discurso da mãe, com momentos da vida de Gina e seu relacionamento com
Oriana:

[...] se fechava com Oriana e falavam e ouviam música e riam, como vocês riam! Quando
abriam a porta, estavam coradas, olhos úmidos. [...] eu suspeitava da espécie desses altos
estudos. [...]. A porta trancada e o toca-discos no auge, parece que a coisa só engrenava
com fundo musical. Jazz. Eu podia colar o ouvido na parede e só ouvia a cantoria da
negrada se retorcendo de aflição e gozo. A cama intacta, a coberta lisa. Os altos estudos
eram feitos ali no chão em meio de almofadas com pilhas de cadernos, livros (TELLES,
2021 [1995], p. 446).

Contaminando o leitor, a mãe, nas entrelinhas, transparece que, os “altos estudos” seriam outra
coisa, que não estudos, mas de teores sexuais, momentos amorosos entre as duas jovens amigas. Portanto,
a leitura é atravessada pela percepção da mãe que, como um voyeur, espia pelas fechaduras e escuta
através da porta supostos momentos de amor entre Gina e Oriana – contudo, para o leitor, não se sabe
o que exatamente se passava dentro do quarto. A partir de então, estabelece-se a existência do
relacionamento homoafetivo feminino entre as personagens Gina e Oriana. No conto, quando ainda sua
filha era viva, a mãe de Gina, demonstra toda sua homofobia, enojamento e não aceitação em ter uma

268
filha homossexual, cujo discurso, inclusive, oferta duas opções: ou a parceira amorosa ou a mãe; todavia,
Gina, ao final, optará pelo suicídio, a fatídica terceira opção:

[...] comecei a falar com tamanha fúria que não consegui segurar as palavras que vieram
com a força de um vômito, Gina querida, como é que você tem coragem? De continuar
negando o que todo mundo já sabe, quando vai parar com isso? Ela levantou a cabeça
e ficou me olhando, Mas o que todo mundo já sabe, mamãe? Do que você está falando?
Cheguei perto dela, acho que me apoiei na mesa para não cair. Mas ainda me pergunta?!
Falo dessa relação nojenta de vocês duas e que não é novidade para mais ninguém, por que
estás se fazendo de tonta? [...] (TELLES, 2021 [1995], p. 447).

O próprio Freud, em um caso semelhante, após receber uma carta lastimosa e preocupada de
uma mãe ante a uma possível homossexualidade do filho, declara, em resposta: “A homossexualidade
certamente não é uma vantagem, tampouco é algo que se envergonhar, não é nenhum vício, nenhuma
degradação, não pode ser classificada como doença; nós a consideramos uma função sexual [...]”
(FREUD, 2019 [1935], 349). Além disso, o pai da psicanálise, a fim de acalmar a mãe de seu futuro cliente,
complementa que grandes artistas e literatos, como Platão, Michelangelo e Leonardo da Vinci tinham
práticas homossexuais. Outrossim, frente ao pedido da mãe de que a análise “curaria a
homossexualidade”, Freud responde que o intento de sua ciência não era esse, mas, caso esse seu filho
fosse “infeliz, neurótico, acossado por conflitos, tem sua vida social inibida, a análise pode aportar-lhe
harmonia, paz de espírito, eficiência total, quer ele siga sendo um homossexual ou tenha mudado.”
(FREUD, 2019 [1935], p. 250). Freud, ainda, acrescenta que é uma grande injustiça e crueldade os
movimentos de perseguição de sujeitos homossexuais, como se fossem criminosos – o que não o são.
Assim, a psicanálise, desde o seu gérmen, prega uma visão, diferente da mãe de Gina no conto, não
patologizante da homossexualidade. Na contracorrente de sua época, que entendia a homossexualidade
como uma perversão ou uma degenerescência da mente, o mestre vienense sustenta a tese de que a
sexualidade, seja ela homossexual ou heterossexual, é constituída por um conjunto de elementos, ora
constitutivos ora circunstanciais, formada tendo por base particularidades das experiências satisfatórias,
vivenciadas durante toda a vida do indivíduo, assim como é forjada por meio de identificações psíquicas.
Depois desse episódio de cólera da mãe, a narrativa é interrompida para o momento de velório
de Gina, através do qual pode-se vislumbrar o luto de Oriana. Aos moldes do olhar de Bentinho para
Capitu diante do cadáver de Escobar, aqui, a mãe de Oriana também investiga o olhar de Oriana, a amante
de sua filha: “Estava mais descabelada do que de costume, o olho estalado, sem lágrimas, mas senti que
lá por dentro estava aos gritos [...] (TELLES, 2021 [1995], p. 448). Outrossim, pode-se vislumbrar, depois
de ter perdido o seu amor, o luto de Oriana ante o caixão de Gina: “A respiração de Oriana foi se

269
acelerando cada vez mais, devia ter a idade de Gina e no desespero respirava feito uma velha asmática
[...]. Quando não aguentou mais, saiu resfolegante feito um cavalo e foi ao banheiro [...]” (TELLES, 2021
[1995], p. 449). Nesse momento, a mãe de Gina declara, arrependida: “E sei que também como elas se
amavam, andei lendo sobre esse tipo de amor (TELLES, 2021 [1195], p. 449). Nesse episódio do velório,
embora já colocado dissimuladamente durante o texto, testemunha-se que, de fato, Gina se matou por
overdose, tomando um tubo de remédios, deixando-o vazio. Em Sobre a psicogênese de um caso de
homossexualidade numa mulher (1920), Freud investiga um caso semelhante, inclusive, com desejos suicidas
– o qual cerca muitas pessoas homossexuais, diante da rejeição social e repulsa familiar: trata-se de uma
jovem que, por apresentar desejos por mulheres, foi obrigada por seu pai, severo e tradicional, a fazer
análise e “se curar” da homossexualidade75. Contudo, apesar dos interditos colocados pelo patriarca, a
jovem começou a se relacionar com uma “dama da sociedade”. Na descrição do relacionamento
homossexual entre sua paciente e essa outra mulher, Freud escreve:

[...] ela vive com uma amiga casada, com a qual tem relações íntimas, ao mesmo tempo
cultivando frouxos laços amorosos com certo número de homens. A garota não discute
essa má reputação, mas não deixa que ela interfira em sua adoração, embora não lhe
falte senso de decoro e de propriedade. Não há proibição ou vigilância que a impeça de
usufruir cada uma das raras ocasiões de estar junto à amada, de manter-se a par de todos
os seus hábitos, de esperá-la durante horas em frente à sua casa ou em paradas do bonde,
de enviar-lhe buquês de flores etc.

Continuando o relato do caso, Freud consigna que, por muito tempo, a jovem conseguiu esconder
de seus pais os encontros amorosos que tinha com outra “dama da sociedade” e, para tanto, mentia,
dizendo que iria para alguns locais, quando, realmente, iria encontrar-se com sua amada. Todavia, certa
vez, seu pai encontrara ao lado dessa dama e, assim como a mãe de Gina fizera, teve um momento de
cólera e raiva com sua filha. Com efeito, a jovem paciente de Freud tentou, tal como Gina no conto de
Lygia, embora sem êxito, suicidar-se na linha do trem – atitude que fez com que seus pais, que outrora a
rejeitavam, permitissem, a contragosto, seus desejos. No caso investigado, em síntese, Freud compreende
que a escolha amorosa homossexual de sua paciente era resultado de um deslocamento de um amor
edípico por sua própria mãe: “A análise permitiu ver, inequivocamente, que a senhora amada era um
substituto para — a mãe. É verdade que ela mesma não era mãe, mas também não era o primeiro amor
da garota.” (FREUD, 2011 [1920], p. 77). Não por acaso também, ainda em sua infância, a jovem

75
Contudo, Freud entende que a homossexualidade não pode e nem deve ser curada, uma vez que não é uma doença,
nem perversão, nem, em si mesma, origem de sofrimentos. Embora o desejo dos pais de sua paciente fossem “sanar a
homossexualidade” de sua filha, Freud escreve que não se pode modificar um caso de homossexualidade, nem de
heterossexualidade, posto que se trata de uma escolha objetal.

270
demostrou amor por sua professora, como uma continuação da figura materna e por outras jovens mães;
movimentação libidinal que faz o pai da ciência psicanalítica concluir: “a continuação direta e não
modificada de uma fixação infantil na mãe.” (FREUD, 2011 [1920], p. 87). Para além disso, Freud observa
que houve, no laço mãe e filha, rivalidade e ciúmes, uma vez que, durante a análise, pôde-se perceber que
a jovem não recebera tanta atenção e cuidado, por ser filha e menina, de sua mãe, pois esta a observava
como uma competidora inconveniente do amor do seu marido:

A garota sob nossa observação tinha poucos motivos para abrigar ternura pela mãe.
Essa filha, que desabrochara tão rapidamente, era uma concorrente importuna para
aquela mulher ainda jovem. A mãe a preteria em favor dos filhos, limitava ao máximo
sua independência e cuidava zelosamente em mantê-la afastada do pai (FREUD, 2011
[1920], p. 78)

Ainda nas tramas do ciúme e da competição entre os laços, em Sobre alguns mecanismos neuróticos no
ciúme, na paranoia e na homossexualidade (1922), Freud, depois de traçar duas possíveis configurações do
ciúme (uma normal e outra patológica), elenca um terceiro mecanismo do ciúme e o vincula com a
homossexualidade. O mestre vienense que, por exemplo, no fundo de um ciúme, mesmo sendo em uma
envergadura heterossexual, há um desejo homossexual ainda que reprimido pelo rival, que, ao mesmo
tempo é odiado e amado:

“[...] os antigos rivais se tornaram os primeiros objetos amorosos homossexuais. Esse


novo mecanismo da escolha homossexual de objeto, a origem na rivalidade superada e
na tendência reprimida à agressão, mistura-se, em alguns casos, às condições típicas que
já conhecemos. Não é raro ouvirmos de um homossexual que a mudança ocorreu
depois que a mãe elogiou e destacou como modelo um outro menino. Assim foi
estimulada a tendência à escolha narcísica de objeto, e, após uma breve fase de ciúme intenso,
o rival se tornou objeto de amor (FREUD, 2011 [1922], p. 137).

Por exemplo, em Dom casmurro (1899), de Machado de Assis, pode-se observar um possível desejo
homossexual de Betinho por Escobar, a partir das observações do célebre protagonista machadiano sobre
seu amigo. Embora casado, os seus ciúmes de Capitu chegavam ao campo da homossexualidade, uma
vez que ao mesmo tempo em que havia um ódio a Escobar, existia uma admiração homoafetiva por parte
de Bentinho: “Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés,
como a fala, como tudo.” (ASSIS, 2019, p. 143). Compreendendo que, na inveja, busca-se, debalde,
destruir o outro, a fim de que se possa ocupar esse lugar preenchido. Para tanto, amiúde, atravessa o
desejo de, para assumir o trono que o outro ocupa, destruição. Portanto, é necessário destruir o outro.
Pode-se ler o célebre romance machadiano como um ódio de Bentinho em relação a Capitu, não por

271
supostamente traí-lo, mas uma inveja por Capitu supostamente ocupar um lugar que ele tanto, pelo
menos inconscientemente, ambiciona: ser amante de Escobar.
De modo semelhante, no conto lygiano, ciúmes, rivalidades e homossexualidades se encontram
e, com contornos turvos, perdem-se no triângulo mãe de Gina, Gina e Oriana. Desde o início, a mãe de
Gina, embora demonstre toda repulsa à homossexualidade, rivaliza, ciumentamente, com Oriana,
disputando o lugar, inclusive, o lugar que coloca as flores no túmulo e comparando-as: “Não ficou
combinado nada, é evidente, mas a jarra do lado esquerdo ficou sendo a dela [Oriana], a jarra da direita é
das minhas rosas brancas. Que já murcharam, as brancas duram menos.” (TELLES, 2021 [1995], p. 442).
O caráter destrutivo (e desejante) da inveja aparece quando, ao olhar para as rosas vermelhas de Oriana,
declara, ambivalentemente: “Choveu, elas ficaram encharcadas. Depois veio o sol e as vermelhonas se
fartaram de calor, obscenas de tão abertas. Ao anoitecer vão parecer viçosas, mas amanhã certamente já
estarão escuras [...]” (TELLES, 2021 [1995], p. 443).
Pendulando entre o amor e o ódio, a rivalidade com Oriana é sustentada durante a trama. Se, em
todo confronto de ciúmes, há, por parte do ciumento, um amor infiltrado no ódio pelo rival, pode-se
vislumbrar, acima, que a mãe de Gina percebia as obscenas, ardorosas e viçosas flores de Oriana.
Semelhante a Bentinho que reparara na beleza de Escobar, a mãe de Gina nutre, por Oriana, também um
amor inconsciente (homoafetivo) – ambivalência de sentimentos aportada, arquetipicamente, por
exemplo, no trato amistoso entre Medeia e sua rival Creusa. Inclusive, após o esporro da mãe ao saber
da sexualidade de sua filha: “A escolha é sua, Gina. Ou ela ou eu, você vai saber escolher, não vai? Ou
fica com ela ou fica comigo.” (TELLES, 2021 [1995], p. 443). Aos moldes de uma amante ciumenta ante
a traição de seu objeto amoroso, a mãe declara a filha que deveria escolher quem amaria, ela ou Oriana.
Em outros termos, pode-se consignar que a mãe, empreende diligentemente, esforços para manter um
vínculo edípico e, portanto, homossexual, com sua própria filha. A mãe, no fundo, sustentava a
homossexualidade de sua filha, através de seu próprio, ainda que inconsciente, desejo homossexual. Em
Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina (1920), Freud legitima o papel da mãe na constituição
da homossexualidade da filha, reconhecendo que, para a constituição sexual da menina, a relação com a
mãe é basilar, porquanto o desejo feminino permanece, até certo ponto, ancorado na imagem materna.

Conclusão

272
Amparado a textos freudianos a respeito da sexualidade e da feminilidade, o trabalho investigou
a homoafetividade feminina no conto Uma branca sombra pálida, no intento de se debruçar sob as
configurações da homossexualidade. Para a psicanálise, diferente do que apregoa a cultura
heteronormativa, a sexualidade humana é orquestrada por históricos e circuitos pulsionais, e não por
instintos. Não atendo-se às questões fisiológicas e anatômicas, a psicanálise consigna que a sexualidade,
independente de sua configuração, seja homo, heterossexual – ou outras –, é marca por traços psíquicos,
vestígios do inconsciente e experiências de satisfação vivenciadas pelo indivíduo ao longo de sua vida,
englobando, inclusive, traços da infância: “[...] numa Psicanálise, descobre-se que a vida adulta é sempre
menos adulta do que parece: ela é pilotada por restos e rastos da infância.” (CALLIGARIS, 2010, p. 1 –
2). No conto, pode-se antever um relacionamento homossexual entre Gina e Oriana, cujo desejo,
escondido e proibido pela mãe, acaba descaminhando em um fim trágico, resultando no suicídio de
Oriana.

Referências
ASSIS, Machado. Dom casmurro. São Paulo: Princips, 2019.

CALLIGARIS, Contardo. Para que serve a Psicanálise? Folha de São Paulo, São Paulo, 26 de agosto
de 2010. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2608201022.htm. Acesso em: 22
jun. 2022.

FREUD, Sigmund (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, Sigmund. Obras
completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma
histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901 – 1905). São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund (1920). Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina. In: FREUD,
Sigmund. Obras completas, volume 15: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920
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