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AMOR,
LÍNGUA DE EROS
- ANAIS -
2020, V. ÚNICO
ISBN: 978-65-00-10294-9
Capa e diagramação
Bárbara Costa Ribeiro
O amor em narrativas
Políticas do amor
O amor e as imagens
Mitos do amor
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................11
O AMOR EM NARRATIVAS...........................................................................................................13
ABRAM AS CORTINAS: O AMOR EM CARLOS CÂMARA!...................................14
AMAR: PARTIR – CORPO E ENCONTRO AMOROSO NA OBRA DE
MARGUERITE DURAS.........................................................................................................................22
AMOR É ESSÊNCIA DE FLOR: A RELAÇÃO ENTRE FEMININO E EROTISMO
NO CONTO “ROUPA SUJA”, DE MARCELINO FREIRE.............................................35
AMOR E PODER NA LITERATURA DE CORDEL DE JOSÉ COSTA LEITE......46
AMORES (IM)PERFEITOS DE CRISÓSTOMO E BALTAZAR,
PROTAGONISTAS DE VALTER HUGO MÃE......................................................................57
AMOR PLATÔNICO: UMA IDEIA INESQUECÍVEL........................................................69
ENTRE O AMOR E O ÓDIO EM “O BÚFALO”, DE CLARICE LISPECTOR..81
EROS E PHILIA NO POSICIONAMENTO POP-ROCK PARA CRIANÇAS....90
EROS REGE O DISCURSO OU O DISCURSO REGE EROS? A ISOTOPIA
DO DESEJO SEXUAL EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................101
O AMOR COMO UMA POSSÍVEL VIA PARA A SUPERAÇÃO DO
EGOÍSMO HUMANO: UM DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E
LITERATURA...........................................................................................................................................110
O AMOR VENCE A AMARGURA..........................................................................................119
POLÍTICAS DO AMO R...............................................................................................................127
“AINDA QUE EU FALASSE A LÍNGUA DOS ANJOS”: O AMOR CRISTÃO
NAS REVISTAS LIÇÕES BÍBLICAS..........................................................................................128
ALGO DE INTEIRAMENTE NOVO: A LINGUAGEM DISFUNCIONAL DO
AMOR NA SUPERAÇÃO DA FINITUDE..............................................................................139
AMOR E HOSPITALIDADE: A INCONDICIONALIDADE DO AMOR EM
JACQUES DERRIDA.........................................................................................................................146
CUPIDO E PSIQUÊ NAS SALAS DE AULA – O AMOR NO MAGISTÉRIO É
ROMÂNTICO......................................................................................................................................155
APRESENTAÇÃO
CLAUDICÉLIO RODRIGUES
Universidade Federal do Ceará
O AMOR
EM NARRATIVAS
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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Resumo: Em 1918, Carlos Câmara iniciou sua trajetória como dramaturgo, que
perdurou até o ano de seu falecimento em 1939. Suas peças trouxeram as
contradições e ambiguidades de um sujeito inserido em uma sociedade patriarcal,
conservadora e cristã e experienciava as transformações na cidade de Fortaleza.
Eram novos espaços de sociabilidade, que segregavam como, por exemplo, o Theatro
José de Alencar. Surgiram também inovações técnicas, que traziam o bonde elétrico,
automóvel e o cinema e outras práticas foram incorporadas ao cotidiano. Assim,
novas sensibilidades foram sendo construídas e sentidas e o amor entrou em cena
nos poemas, nas músicas, nos romances e nas peças do referido teatrólogo. Tem-se,
portanto, objetivo de analisar como o amor foi idealizado na literatura dramática
produzida pelo dramaturgo cearense, percebendo as representações das mulheres e
suas relações com o casamento. Destaca-se que a apreciação é dos textos escritos e
não dos textos encenados que trazem outros elementos como, por exemplo, a
performance como destaca Patrice Pavis.
Palavras-chave: Amor; literatura dramática; mulher.
PRÓLOGO
Reinhart Koselleck (1992) argumenta que os conceitos estão articulados a um
determinado contexto, portanto, são dinâmicos e se transformam ao longo do
tempo e no espaço. Não é diferente com os sentidos dados ao amor, que muda e
interfere nas relações socioculturais. Por outras palavras, o conceito de amor está
inserido em uma realidade sociocultural que o define, dá sentidos e o transforma.
Dito isso, para esse palco, entra em cena o amor representado na literatura
dramática produzida por Carlos Câmara entre os anos de 1918 a 1939 na cidade de
Fortaleza que ansiava pelo progresso, mas que vivenciava as epidemias, as
intempéries, a pobreza.
O dramaturgo cearense escreveu dez peças, na verdade, burletas,
dramaturgia ligeira e caracterizada pela comicidade. Seus contemporâneos as
descreviam como “crônicas dos costumes cearenses”, já que estavam presentes os
tipos sociais, os espaços de sociabilidade da cidade e do campo nos seus textos
dramáticos: A bailarina (1919); O Casamento de Peraldiana (1919); Zé Fidelis (1920); O
1 Para análise dos espetáculos e a distinção entre o texto encenado e o texto escrito, vide: PAVIS,
Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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Gracinha Padilha deixou os palcos após o casamento que, nessa sociedade, deveria
ser objetivo de uma moça “bem-criada”. Era nesse cenário que ansiava Carlos
Câmara e, desta forma, idealizou um amor que condicionava certos
comportamentos à mulher.
Na cidade de Fortaleza das primeiras décadas do século XX, mulheres eram
enganadas, sequestradas e defloradas, havia as solteiras e com filhos, as que fugiam
com seus amantes, as não-instruídas, as trabalhadoras e as mulheres pobres que
tinham suas experiências amorosas2, no entanto, nas burletas de Carlos Câmara,
quem subia ao palco era a moça pura, inocente, minimamente instruída e, muitas
vezes, ligada aos costumes campestres. Era a idealização da mulher para o
casamento, que, por sua vez, exigia dela comportamentos “aceitáveis” para uma
sociedade conservadora, patriarcal e cristã. Mesmo com a necessária aprovação do
pai ou da mãe (se esta fosse viúva), a personagem da moça pura escolhia a quem
amar e, portanto, com quem casar-se. Mas, para chegar a esse fim, obstáculos eram
ultrapassados. Tem-se, portanto, a ação dramática, que, na comédia, consiste em
“apresentação de duas vontades opostas, ou quando se consegue equilibrar o
obstáculo à vontade que deve transpô-lo” (PALLOTTINI, 2005, p. 46).
Em A bailarina (1919), Flor, moça ingênua, instruída e do sertão dos
Inhamuns, era apaixonada por Malaquias, que a correspondia, mas sua mãe, D.
Peraldiana, não concordava. O que ficou pior com a chegada de Elisário, moço
citadino que tinha ido convalescer-se da gripe espanhola, conhecida popularmente
por “bailarina”. Ele gostou de Flor, cantou vantagens da capital cearense e agradou
D. Peraldiana, que o escolheu como marido de sua filha. Já Malaquias era um jovem
camponês que se tornou praça (militar) e, desta forma, foi para a cidade. Era
Malaquias, moço trabalhador, ou Elisário, um golpista, que representavam duas
vontades (pensamentos) opostas. Os obstáculos estavam postos e Flor em uma
encruzilhada, já que, como moça cristã, não poderia desobedecer a sua mãe. Mas,
2 No Arquivo Público do Estado do Ceará, encontra-se organizado um fundo documental com
processos crimes de defloramento, infanticídios e brigas entre vizinhos que, de certa forma, trazem
as vivências e as experiências das mulheres pobres da sociedade de Fortaleza da primeira metade do
século XX.
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na superação dos desafios, ela encontrou aliados como Cel. Puxavante. E como
desenrolar da trama, Elisário foi desmascarado. Era um enganador e um desertor.
Acabou sendo preso por Malaquias que, por sua vez, foi aceito por D. Peraldiana.
No fim, Flor superou os contratempos e casou-se com quem amava.
A personagem da jovem pura e instruída, apaixonada, perpassa pelas
burletas do dramaturgo cearense, que permitia sua liberdade de escolha, contudo, o
casamento ocorria apenas após a aprovação dos responsáveis. Foi assim com Biloca,
em Alvorada (1921), e Flora, em O Calu (1920), que encontraram o amor no jovem
bacharel nos entremeios dos costumes campestres e citadinos. Só que o ato de se
casar não era para todas nas burletas de Carlos Câmara. Em Os piratas (1923),
confusões entre os casais marcaram o enredo da burleta que acabou tendo
Catarina, jovem moça instruída, envolvida com Mr. Robertson, um inglês que
trabalhava nas empresas inglesas com sede na capital cearense, e Xandoca, moça
que fugiu dos encantos de um bilontra3, pacata, com uma herança, e Garibaldi, um
jogador de futebol; já Albertina, uma jovem que acompanhava os piratas 4 nas noites
da cidade, ficou só. Era uma personagem que vivia na boemia, não obstante, não
seguia a conduta de uma mulher que servia para o casamento idealizado pelo
dramaturgo.
Definia-se, portanto, comportamentos para mulheres a partir dos sentidos
dados ao amor. Este era sinônimo de casamento entre uma mulher pura, recatada,
minimante instruída e cristã e um jovem bacharel e trabalhador. Fora dessa
premissa, apenas D. Peraldiana, que era uma viúva cômica e desbocada, mas era
ingênua e honesta, e o Cel. Puxavante, que tinha posses e terra. Ambos contraíram
matrimônio em O casamento de Peraldiana (1919), que, em breves palavras, consistia
3 Em O casamento de Peraldiana (1919), Carlos Câmara usa o termo bilontra em referência aos
paqueradores daquele período, que costumavam enganar mulheres com juras de amor. Na cidade
de Fortaleza da primeira metade do século XX, sequestros e fugas de jovens, incluindo as
consideradas de “família” conforme as convenções sociais do período, eram recorrentes, haja vista os
processos crimes. Assim, ao trazer os bilontras a cena, o dramaturgo estava fazendo uma crítica a
esses sujeitos ao mesmo tempo em que procurava chamar atenção aos perigos de cair em suas
lábias e promessas falsas de amor para o público do seu teatro. Lembra-se que ele tinha o teatro
como forma de moralização da sociedade cearense.
4 Para o dramaturgo, os piratas eram jovens boêmios e galanteadores.
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EPÍLOGO
Em Zé Fidelis, um matuto ingênuo, sem instrução e velho era apaixonado por
uma moça novamente instruída e pura, que encontrou seu amor no jovem bacharel
em Direito. O matuto era o tipo cômico, a chacota. Ora, como um velho não
suprimia seus desejos? Diferentemente do bacharel em Direito, que fora aceito pelo
pai da moça. Assim, o amor, aparentemente livre, estava relacionado com o
casamento enquanto sacramento religioso, portanto, eram necessárias regras de
conduta moral. Entre as paixões e os desejos da cidade, que traziam as práticas
“indevidas” e a pureza e honestidade do campo, o dramaturgo foi dando sentido ao
amor que, por sua vez, era uma forma de controle do corpo, tanto o feminino como
o masculino. As paixões citadinas, relacionadas com o bacharel em Direito, eram
superadas pelo amor virgem do campo, ou seja, a camponesa instruída. Em
contrapartida, nas distinções de classe, o campo e a cidade se entrelaçavam em suas
características, já que as paixões estavam nas camadas subalternas e não no espaço.
Os “matutos” e as moças não “educadas” não venciam seus obstáculos, já que se
comportavam inadequadamente e não eram dignos do amor, que, para o
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O efeito de real. In: ____. O rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeira. São Paulo: Cultrix, 2004.
CARNEIRO, Adolfo. Fortaleza de Ontem e Hoje. In. COSTA, Marcelo. Teatro na terra
da luz. Fortaleza, edições UFC, 1985. p. 45-61.
KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. In:
Estudo Históricos, Rio de Janeiro. vol. 5, n. 10, 1992, p. 134·146.
8 Trad. Vadim Nikitin: “Ela não teria dito nada, não teria olhado nada.” (p. 14)
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Um jogo de olhares: o narrador vê/não vê/supõe, nós vemos o que ele vê/não vê/
supõe/não supõe. O homem vê a mulher, a mulher não vê o homem, mas tem
consciência de que ele a olha, o olhar dela e dele focados em determinadas partes
do corpo. Há um tom de roteiro cinematográfico.
Não sabemos há quanto tempo ou por que se iniciou o encontro entre o
homem e a mulher. Temos fragmentos, instantes, cortes, plenos de buracos
narrativos. A primeira imagem (o homem no corredor observando o corpo da
mulher dilacerando-se pelo desejo lá fora) é tão forte que poderíamos conjecturar,
para além da trama, que já ocorrera algum tipo de contato entre esses corpos. Em
seguida, ele se aproxima dela. O ato sexual deles, visceral, é permeado por
demasiada violência física, pelo desejo exacerbado de matar; sobretudo, o dele,
tendendo a matá-la. Como lemos no excerto abaixo:
civil adequada. Duras constrói a violência desses corpos devastados pelo amor
como quem busca uma beleza na destruição – não a que serve ao Poder, mas a
que o contradiz, a que está à margem, a da loucura, como declara: “O que é belo a
ponto de fazer chorar é o amor. E mais ainda talvez: a loucura, a única salvaguarda
contra o falso e o verdadeiro, a mentira e a verdade, a estupidez e a inteligência: fim
do julgamento” (DURAS apud AYEZ, 2009). O descontrole, a loucura vivida no
encontro amoroso levam os corpos à fragmentação.
Em La maladie de la mort: a incapacidade de amar. Um encontro entre um
homem e uma mulher de nomes que também não se dão ao conhecimento do
leitor. Ele e Ela. Os corpos, mais uma vez, limitam-se às indicações de gênero. Os
personagens, inominados, se conhecem, não se sabe quando ou onde. Ele propõe a
ela que fique com ele por algumas noites, num quarto em frente ao mar. Ele quer
tentar a experiência do amor. Ela não é uma prostituta, mas aceita as noites pagas.
O narrador, uma voz onisciente que rememora ao homem sua experiência
com essa mulher, dirigindo-se a ele por “vous” (você) durante toda a narrativa.
Durante a narração dessa memória, o narrador, como em L'homme…, oscila entre
certezas e hipóteses. Por vezes, a narrativa denota uma proximidade da lembrança
com o presente, por meio do uso de alguns verbos no presente do indicativo, como
se o encontro estivesse no agora. A ideia de hipótese surge com a presença de
verbos no “conditionnel présent” (futuro do pretérito), denotando no enredo os
buracos, os brancos da memória ou mesmo o caráter de imaginação.
Entre as certezas e as imprecisões da memória, adentramos na história desse
homem que quer a qualquer custo conhecer o amor pelo corpo dessa mulher, uma
estranha. O homem carrega consigo um desespero de nunca ter amado, conhecido
o amor, o que ela entende como sendo uma “doença da morte”, sua incapacidade
de amar, de entregar-se à paixão, de vivê-la (p. 34-35). Ele declara que nunca
amara, nunca desejara, nunca olhara uma mulher. É nesse encontro que ele percebe
isso. Ele deseja esse corpo, ama, como nunca o fizera. Percebe esse desespero até
então desconhecido e quer ir embora do corpo dela, essa massa exposta e murada
para a qual ele olha tão atentamente. Ele quer partir desse corpo para negar essa
tomada abrupta que ele lhe causa. Ele nega a ela que sente essa paixão, é incapaz
de dizê-la. Em vários instantes, ele chora (p. 44-45).
A ideia do amor amoral, que rompe com as leis, que deseja ao ponto de
matar, está presente nesse conto; ou melhor: perpassa quase toda a sua obra. Esses
sentimentos, que são uníssonos, eles impõem a morte, o mistério da morte. Para
Duras, “a doença da morte” não consiste em atingir essa loucura que sucumbe o
corpo quando ele está pleno de desejo-amor. Nesse estado, ele já está pleno de
infinitos, das intensidades inerentes aos mistérios do amor e da morte. A negação
da entrega à paixão é que faz de um corpo um morto-vivo. O corpo que ama, que
deseja, ele se sobressai à morte, não teme ultrapassar esse limite, restar nele.
O discurso, a voz dele, contradiz o sentimento do corpo, que outrora sentira
o desejo e a curiosidade de aniquilar o corpo dela:
Le corps est sans défense aucune, il est lisse depuis le visage jusqu'aux
pieds. Il appelle l'étranglement, le viol, les mauvais traitements, les insultes,
les cris de haine, le déchaînement des passions entières, mortelles. (….) Elle
appelle le meurtre cependant qu'elle vit. Vous vous demandez comment
la tuer et qui la tuera10 (p. 21-37).
10 Trad. Vadim Nikitin: “O corpo não tem defesa nenhuma, é liso do rosto aos pés. Convida ao
estrangulamento, ao estupro, aos maus tratos, aos insultos, aos gritos de ódio, ao desencadeamento
de paixões totais, mortais. (…) Ela convida ao homicídio enquanto vive. Você se pergunta de que jeito
matá-la e quem a matará” (p. 55-68).
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toujours voulu libre de ne pas aimer.” 11 (p. 49-50). Para ele, não viver o amor é uma
liberdade. Contudo, diante dela, ele se reconhece perdido. Pergunta a ela sobre o
amor. O amor, segundo a mulher, advém de um erro, nunca de um querer, que
poderíamos pensar como um querer coagido, pressionado, visto que depois ela
declara que ele chega de modo súbito. Um acaso do mistério, se virmos que ela
vincula sua origem a imagens ocultas, como o voo de um pássaro da noite que não
se vê, porque se mistura ao escuro do céu; de um sono, instante do corpo em que o
pensamento se desliga e, aparentemente parado, ele rege a si mesmo numa outra
lógica, mais desprendida da racionalidade, permitindo-se ao sonho, espaço místico
do pensamento, da imaginação fluida, fora das rédeas do controle; da figura da
morte, mais uma vez ressaltada, do crime, da amoralidade; e, finalmente, do corpo
dela, do sexo exposto e murado, uma vez que é a noite negra da criação do
mundo. O corpo, a própria proclamação do caos, do universo (p. 52).
Ela vai embora um dia, com a noite. O narrador não nos diz quando. O
tempo do encontro é impreciso. Embora saibamos que existiram algumas noites, o
narrador nos diz apenas que “… un jour elle n'est plus là. Elle est partie dans la nuit.
La trace du corps est encore dans le draps, elle est froide.”12 (op. cit., p. 53). Ela parte,
porém sua presença permanece no espaço, em ausência. O eco do que ela disse
sobre a doença da morte. Ela parte, e a ausência traz o desejo de revê-la. O
narrador não nos dá a certeza, mas a hipótese de que talvez o homem a
procurasse. Conclui que somente assim ele poderia viver o amor, perdendo-o (op.
cit., p. 85). Somente depois da partida do corpo, reconhece o amor, esse algo além
do nome – e o corpo, o corpo tão próximo, era-lhe demasiado.
Por fim, em Agatha et les lectures illimitées: ir embora, restar na memória. Um
homem e uma mulher, um casal de irmãos, reencontrando-se na casa onde
passaram a infância. Um amor incestuoso que não pode ser vivido – pelas leis
11 Trad. Vadim Nikitin: “Você diz que o amor sempre lhe pareceu fora de lugar, que você jamais
compreendeu, que você sempre se esquivou de amar, que você sempre se quis livre para não amar.”
(p. 79).
12 Trad. Vadim Nikitin: “… um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi
na noite. O rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.” (p. 82).
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13 Trad. Sieni Maria Campos: “O corpo de minha irmã está ali, na penumbra do quarto. Eu não sabia
a diferença que havia entre o corpo de minha irmã e o de outra mulher.” DURAS, M. Agatha. Rio de
Janeiro, Record, 1981, p. 54).
14 Trad. Sieni Maria Campos: “Eu não sabia a diferença que havia entre o olhar de meu irmão sobre
meu corpo nu e o olhar de outro homem sobre esse mesmo corpo. Não sabia nada sobre isso, sobre
meu irmão, sobre essas coisas proibidas, nem o quanto elas eram adoráveis, entende, nem a que
ponto estavam contidas em meu corpo.” (p.58-59).
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Je ne voulais pas dire que je vous quittais, non, je voulais vous voir je crois,
rien d'autre, vous voir. Et puis vous quitter ensuite, très vite après, comme
à l'instant même où je vous aurais vu.Tout est si obscur, oui je crois que je
pars em raison de la force si terrible de cet amour que nous avons l'un de
l'autre16 (p. 11-12).
Contudo, a dor inevitável causada pela partida não é uma dor a que se possa
mesurar pela razão, como ouvimos eles falarem (00h02m41s). É ela quem vai
embora de cidade, na primeira partida, ainda jovem, deixando o irmão (mais novo)
em casa. Novamente, é ela quem anuncia essa partida definitiva (00h07m28): “Oui.
Je tenais à vous annoncer ce départ comme je le fais à ce moment, face à vous, à
vous yeux”. Entretanto, a decisão de partida tomada pela mulher não a torna mais
forte diante da dor. A partida provoca controvérsias ao corpo. Ela sabe-se ciente da
necessidade dela de partir, mas não deixa de sentir a dor inevitável, como
verificamos nos diálogos que acontecem às 00h07m42s e às 00h10m39s,
respectivamente. A partida não mudará em nada o percurso da natureza, a vida
seguirá de igual forma mesmo que haja ausência e dor. O céu permanecerá o
mesmo. Tudo igual. Mas como, se a separação é tão insuportável, se o peso de um
corpo permanece no outro?
A consciência de não poderem ficar juntos não diminui em nada o que
sentem; do contrário, o amor permanece resistindo no corpo, como o amor
agambeniano, numa luz inesgotável. Partir, nesse caso, não é sinônimo de abdicar
15 Trad. Sieni Maria Campos: “Meu amor. Agatha… minha irmã Agatha… minha criança… meu corpo,
Agatha.” (p.43).
16 Trad. Sieni Maria Campos: “Não queria dizer que ia deixá-lo, não, acho que queria vê-lo, só isso,
ver você. E depois deixá-lo, logo depois, como que no próprio instante em que o visse. Tudo é tão
confuso…sim, acho que vou embora devido à força desse amor tão terrível que temos um pelo
outro.” (p. 10).
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do amor e de tudo o que ele lhe causa; pelo contrário, é sentir, na inevitável dor da
ausência, a presença, os rastros do outro. Essa dor, como nos contos, aproxima-se
da figura da morte. Ouvimos o corpo dele a dizer às 00h06m21s: “Ainsi votre corps
va être emporté loin de moi, loin des frontières de mon corps, il va être introuvable et
je vais en mourir.”17 (p. 13).
Por que tomar a decisão de partir, então, se o sentimento é tão forte? Por
que não viver esse amor em sua amoralidade, visto que a dor da separação já causa
uma dor tão aguda? Por que, como em L'homme…, esse amor pulsante em cada
órgão os fragmentaria? Por que não experimentar suas intensidades até a
destruição? Agatha nos mostra que o amor ultrapassa a necessidade de se manter
próximo de quem se ama. Os irmãos de Agatha reconhecem o amor criminal, fora
das leis. Eles quebram a regra, vivem o amor e se vão. Por quê? Agatha nos
responde, às 00h16m22s:
REFERÊNCIAS
Bibliografia
17 Tad. Siene Maria Campos: “Ele – Assim, seu corpo vai ser levado para longe de mim, para longe
das fronteiras do meu corpo, vai desaparecer, e eu vou morrer por isso.” (p. 12)
18 Trad. “ELE – Tu partes para continuar amando? ELA – Eu parto para continuar amando com essa
dor adorável de nunca te ter, de não poder fazer nunca com que esse amor nos deixe por mortos.”
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BLANCHOT, M. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BORDELEAU, F. La passion selon Duras. In: Nuit Blanche, n. 18. Laval: Érudit, 1985.
_____. O homem sentado no corredor, A doença da morte. Trad. Vadim Nikitin. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.
Filmografia
Resumo: Neste trabalho, nos propomos à análise do conto “Roupa suja”, do escritor
Marcelino Freire, presente em seu livro Rasif: Mar que arrebenta (2008). Objetivamos
elucidar a relação entre o feminino e o erotismo presente no conto com base,
principalmente, no trabalho de Castello Branco (2004) e sua leitura, por conseguinte,
de Bataille (1987). Discutiremos ainda a relação da mulher com o misticismo, visto
que este também representa uma manifestação de Eros, trazendo à luz exemplos
encontrados na tradição clássica grega, extraídos dos mitos de Circe e de Medéia,
relatados nas epopeias e nas tragédias. Concluímos expondo como essa relação se
constitui uma ameaça ao sistema patriarcal dominante e que, portanto, sofre
interdição.
Palavras-chave: Erotismo; Feminino; Misticismo.
INTRODUÇÃO
19 FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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propaganda de sabão. Tudo à minha volta ficou limpo, límpido, este mundo cão” (p.
57); “Ele, dentro de uma bolha” (p. 57); “Feito nódoa que a gente tira, com sacrifício.
Ali, esfrega. Torce, bate na centrífuga. O nosso destino. Um dia muda de cor” (p.
58). Outro aspecto importante da estrutura formal da narrativa são as rimas internas;
apesar de se tratar de um texto em prosa, é possível perceber toda uma
musicalidade que perpassa a escrita do conto, quebras nas sentenças frasais de
maneira a aproximar a prosódia do texto à fala coloquial. Aliás, este é um aspecto
característico da escritura de Marcelino Freire, identificável nos demais contos que
compõem a obra e em outras de suas produções.
O tom político é bastante presente na narrativa, uma vez que a divisão de
classes sociais é abordada. A personagem-narradora se apaixona pelo patrão, que a
princípio a esnoba; ela entende sua condição, “sujinha e pobrinha” (p. 58), mas não
abdica de ultrapassar os limites impostos socialmente e conseguir conquistá-lo;
Maria é uma lavadeira e se encontra na mesma condição que a personagem-
narradora estava e que agora reconta sua trajetória na intenção de que ela consiga
modificar sua própria realidade.
Interessa-nos aqui analisar como o erotismo é abordado no conto e como
este se relaciona com o elemento feminino, uma vez que é narrado por uma
personagem feminina e destinado a uma personagem feminina. Para tanto,
buscaremos, primeiramente, definir o erotismo à luz do trabalho de Castello Branco
(2004), baseando-se nos estudos de Bataille (1987) e de outras correntes do
pensamento, como a filosofia platônica, em especial com o Banquete e as
contribuições da psicanálise freudiana. Analisamos também a relação das
personagens com as de algumas narrativas clássicas, a fim de exemplificar como
ambos os elementos, feminino e erotismo, correlacionam-se com o misticismo,
também perceptível no conto de Marcelino Freire.
Ora, ele que não pense que as coisas eternamente vão ficar assim. Neste
chove-não-molha. Pedi água. Suei, falei que não estava me sentindo bem.
E desmaiei.
Isso o que você ouviu, Maria. Desmaiei. Despenquei feito vento quando
bate numa pétala. Simulei.
Vi quando ele me despejou no sofá. Trouxe lencinho engomado e álcool.
Como um pai preocupado. Meu marido velho, para todo o sempre.
Fui acordando, brotando displicentemente.
— Onde estou?
— Melhorou?
Pedi só para descansar um pouco ali, no conforto. [...] De propósito, cerrei
os olhos. Até que ele veio e me chamou. Bem de perto, outra vez.
(FREIRE, 2008, p. 62-63).
EROTISMO E MISTICISMO
Outro aspecto presente na narrativa, dentro da temática do erotismo, é a
relação entre o feminino e o misticismo. Na perspectiva de Bataille (1987, p. 13), “a
busca de uma continuidade do ser perseguida sistematicamente para além do
mundo imediato aponta uma abordagem essencialmente religiosa”. O misticismo,
como um desejo de completude com o divino, de forma em que haja uma total
efusão do eu para um preenchimento da divindade, constitui-se como uma das
formas de manifestação de Eros. Um dos exemplos mais imediatos que retratam
bem essa relação é o da mística Teresa d’Ávila, cujas narrações de suas experiências
de êxtase, nas quais a beata recebia o Deus em si, geram ainda hoje uma certa
polêmica entre os religiosos, uma vez que há, inegavelmente, uma aproximação das
sensações descritas pela santa com o gozo erótico-sexual: o orgasmo. Contudo, há
que se resguardar as particularidades de cada experiência, como ressalta o autor:
“Há semelhanças flagrantes, e mesmo equivalências e trocas, entre os sistemas de
efusão erótica e mística. Mas essas relações não podem aparecer tão claramente
senão a partir do conhecimento experimental das duas espécies de emoção”
(BATAILLE, 1987, p. 147).
No conto em análise, essas duas dimensões do erotismo, tanto no âmbito
corporal quanto no religioso, aparecem. Movida pelo desejo de conquistar o
amado, a personagem-narradora procura um Pai de Santo em busca de respostas
de seu orixá. Ela, que havia encontrado um pelo pubiano enquanto lavava as roupas
de baixo do patrão, utiliza-o como instrumento para realização de rituais de forma a
atrair o homem desejado:
Peguei o pentelho da sua cueca. Feito este, olhe. Não tenha nojo. Pelo
grosso, que eu levei para o Painho.
— Eu quero este homem só para mim.
— Minha filha, minha filha, ele será seu, sim.
Foi o que meu orixá prometeu. E eu acreditei. Eu me agarrei nesta fé. Eu
rodopiei e dancei, no batuque. Meu, só meu. Príncipe. E rei. (FREIRE, 2008,
p. 58).
E saiba você que não fiquei só nisso. Pirei. Levei para minha casa sua
samba-canção. E sambei. Vestido dentro do corpo dele o meu umbigo.
Eu vesti. E senti entre as minhas coxas as suas coxas. E, Maria, jura que
não conta? Assim: melequei a roupa do cliente. Múltiplos orgasmos,
entende? Paixão que foi me deixando quente e doente. (FREIRE, 2008, p.
59).
20 Não pretendemos nos ater aos debates psicanalíticos sobre a definição e a natureza do objeto do
desejo para Freud. Para tanto, recomendamos a leitura do trabalho de Coelho Jr (2001) que
estabelece uma síntese de percurso das formulações e reformulações da teoria freudiana.
Amor, Língua de Eros
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chega à Eéia, onde a feiticeira habitava, fugindo dos lestrígones (vv. 112-134). Ao
avistar o palácio da deusa, o herói divide a tripulação restante em dois grupos, um
liderado por ele, e o outro, por Euríloco. Este segundo, ao chegar à mansão de
Circe, percebe que o local é rodeado por feras selvagens as quais ela “enfeitiçara
com drogas malévolas” (v. 213). Ao adentrarem as portas do lugar, os companheiros
de Odisseu são recebidos por Circe, que lhes serve “queijo, cevada e pálido mel
com vinho de Prammo; mas misturou na comida drogas terríveis, para que se
esquecessem da pátria” (vv. 233-236). Ao ingerir o alimento enfeitiçado, a tripulação
é transformada em porcos. Odisseu escapa da armadilha, tendo sido avisado por
Hermes, que lhe dera uma erva para que se tornasse imune aos encantos da deusa.
Resolvido o impasse e tendo seus companheiros de volta, o herói e os demais
companheiros residem na ilha durante um ano, usufruindo da abundância do lugar
e, no caso de Odisseu, compartilhando também o leito de Circe.
Nesses dois exemplos, notamos duas personagens femininas que utilizam de
seus poderes e habilidades com o uso de poções e filtros tanto para conquistar o
ser amado quanto para infringir sobre ele a vingança – no caso de Medeia. As
artimanhas da conquista, ligadas às mulheres, perduram até hoje, facilmente
identificáveis com as “simpatias” difundidas em revistas destinadas principalmente ao
público feminino. No conto em análise, é o “pentelho” encontrado na roupa íntima
do patrão o estopim para que a protagonista-narradora realize os rituais de atração
e conquista do amado, intermediados pela sanção do orixá ao qual recorreu.
Atrelado a essa ideia está um outro ponto que merece ser ressaltado: o perigo que
a relação entre o feminino e o misticismo representa. Medeia e Circe são feiticeiras,
capazes de provocar a ruína dos homens que as desafiarem; a protagonista do
conto de Freire consegue desbancar a namorada do patrão, ocupar seu lugar e
ascender socialmente.
CONCLUSÃO
Para um sistema patriarcal dominante, onde a figura do homem é símbolo
REFERÊNCIAS
CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é erotismo. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
2004.
FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Sob tais balizas, esse artigo volta-se para o “Brasil Sertanejo”, ambiente
remarcadamente patriarcal e classista no qual vicejou e prosperou a literatura de
cordel, que, como qualquer outra produção ficcional, gravita entre a fantasia e a
realidade. Desse modo, o trabalho objetiva examinar comparativamente, sob o viés
da crítica sociocultural, interlocuções entre realidade social e representação artística
em dois folhetos do poeta de bancada paraibano José Costa Leite (1927), que
versam sobre grandes e impossíveis amores – As aventuras de Napoleão e Zulmira,
e Rufino e Adalgisa – aventuras, amor e lutas. Busca-se, por conseguinte, analisar as
configurações do amor e do poder nas difíceis relações estabelecidas no âmbito
mais reservado das grandes propriedades rurais entre pai, filha e pretendente, as
quais remetem à “doçura mais terna” e à “crueldade mais atroz” de que trata Ribeiro
na epígrafe.
O “Brasil sertanejo” principia no agreste, dilata-se pelas caatingas e alcança
os cerrados. Esse espaço sempre em expansão incorporou uma parcela significativa
da população nacional e terminou por conformar “um tipo particular de população
com uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao
pastoreio, por sua dispersão espacial”, somem-se ainda as peculiares organização
familiar e estruturação do poder (RIBEIRO, 2006, p. 307). Nesses contornos, a
relação entre o dono das terras e seus subordinados exigia rígida hierarquia. Logo,
[...]
I) II)
Deus com seu poder sagrado Vinde as musas de Apolo
I) II)
REFERÊNCIAS
LEITE, José Costa. As aventuras de Napoleão e Zulmira. São Paulo: Luzeiro, 2013.
_____. Rufino e Adalgisa – aventuras, amor e lutas. São Paulo: Luzeiro, 2014.
MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de. “Para uma leitura sociológica da literatura
de cordel”. In: Revista Ciências Sociais. V. VIII. N. 1-2. Fortaleza, 1977.
SILVA, João Melchíades Ferreira da. História sertaneja do valente Zé Garcia. São
Paulo: Luzeiro, 2011.
Resumo: Buscamos neste trabalho analisar a representação do amor pela perspectiva das
personagens protagonistas dos romances O filho de mil homens e o remorso de baltazar
serapião, do escritor português Valter Hugo Mãe, narrativas tangenciadas especialmente por
três tipos de amores dos antigos gregos: eros, philia e agape, esquecidos, segundo Krznaric
(2013), pela contemporaneidade que parece ter olhos somente para o amor que envolve a
erotização, a relação carnal, o amor romântico, a sexualidade ou o erotismo, romances nos
quais são levados em conta o enamoramento seguido da relação homem/mulher, cujas
ações partem da dedicação, da doação, da busca por sentimentos virtuosos e desejo de
convivência, mas que se diferem em determinados momentos pelo sentimento de desamor
protagonizado por serapião.
Palavras-chave: Amor; Desamor; Eros; Philia; (In)Compreensão.
INTRODUÇÃO
Valter Hugo Mãe iniciou sua carreira literária com a criação de poemas
consequentemente publicados a partir do ano de 1996, mas, foi com sua criativa e
memorável obra romanesca que ganhou prestígio e elogio de público e crítica,
narrativas que expõem toda a fragilidade, beleza, rudeza, mistura de sentimentos e
alteridade da vida humana, para as quais transporta sua veia poética e sua
proeminente habilidade para criar imagens, além de investir na criação de
personagens profundas e inesquecíveis, sendo um dos autores que mais se
destacam na produção literária portuguesa contemporânea, aflorado pela
publicação da elogiada tetralogia das minúsculas – como costumeiramente se
denomina –, porque escrita totalmente sem letras maiúsculas, inclusive nos nomes
próprios, inícios de parágrafo e no nome do autor, marcada pelo objetivo de
chamar a atenção para a natureza oral de sua produção e pela primazia da
liberdade do pensamento levada às últimas consequências na obra valteriana.
Conforme relatado tantas vezes pelo próprio autor, seu projeto criacional buscou
produzir obras enviesadas pelas quatro fases da vida humana, rechaçando assim a
simplificação da expressão “tetralogia das minúsculas”: a infância marcada por o
nosso reino (2004); a juventude retratada em o remorso de baltazar serapião (2018
[2006]); a fase adulta perpassa a obra o apocalipse dos trabalhadores (2008), e a
velhice pede passagem em a máquina de fazer espanhóis (2010). Escreveu ainda os
romances O filho de mil homens (2016 [2011]); A desumanização (2013) e Homens
imprudentemente poéticos (2016).
Para Miguel Real, em O romance português contemporâneo – 1950-2010
(2012), a importante característica que perpassa os cinco primeiros romances do
autor, sendo estendida aos dois últimos, é o “novo estilismo desrespeitador das
regras clássicas da língua portuguesa [...]”, não somente pelas minúsculas utilizadas
nas quatro primeiras obras, mas também pela prevalência da oralidade e da
ausência de sinais de pontuação mais expressivos, prevalecendo o ponto final e a
vírgula. Os seus romances mais recentes, A desumanização (2013), passado na
Islândia, e Homens imprudentemente poéticos (2016), contextualizado no Japão de
1800, estão situados no chamado “expresso cosmopolitismo urbano”, formando um
conjunto com outros romances portugueses “escritos para um leitor de mentalidade
global, universal”, na conta dos quais o estudioso atribui “a arte de bem contar
labirinticamente uma história”, a quem se soma David Machado nessa característica
específica (REAL, 2012, s.p.); vale ressaltar, no entanto, que todos os demais
romances do autor são eminentemente universais, embora contextualizados em
Portugal.
Há nas obras de Hugo Mãe uma busca constante pelo amor, não somente
o amor romântico, mas também pelos seis principais amores cultivados pelos
gregos clássicos que Krznaric, em Sobre a arte de viver: lições da história para uma
vida melhor (2013) apresenta ao leitor como o amor eros, definido por Platão em O
banquete (2009) como “desejo de algo indefinido” e também “demanda daquilo que
no momento nos falta” (PLATÃO, 2009, s.p.); o amor philia geralmente traduzido
como “amizade” e considerado pelos gregos bem mais virtuoso “que a desprezível
Mãe vem nos provar que “a salvação está no amor, que pode contrariar a
‘inevitabilidade do egoísmo humano’ (Schopenhauer). Daí que o amor seja um dos
temas essenciais de toda a obra de Valter Hugo Mãe”, que observa, “a pretexto de
O Filho de Mil Homens [...]: ‘Os meus livros estudam muito a raridade da redenção, a
oportunidade rara da alegria’ (Mãe, 2011b: 19). Redenção e alegria que as
personagens de Valter Hugo Mãe procuram concretizar através do amor, que é a
ligação do eu ao outro”, que é a vinculação “a tudo o que existe, e é também uma
força que, segundo Platão, permite alcançar o belo, o verdadeiro e o bem [...]”
(NOGUEIRA, 2016, p. 13).
Já em o remorso de baltazar serapião, ainda na primeira frase, o leitor
encontra a maioria dos vocábulos e semas retomados mais vezes ao longo do
romance, “nomeadamente ‘voz’, ‘mulheres’, ‘diabo’, ‘arder’, ‘perigosa’, ‘burra’,
‘abaixo’” (MÃE, 2018: 19). Nessas palavras, segundo Nogueira, “convergem todas as
noções de género que explicam os comportamentos de baltazar desde o início do
romance”, marcadas pela concepção da “inferioridade intelectual da mulher, [d]o
seu estatuto ínfimo dentro da própria criação divina, [d]a necessidade que ela tem
de educação à base de violência exercida pelo pai e pelo marido, [d]a sua tendência
para o adultério e o mal, [d]os direitos absolutos do homem sobre ela” (NOGUEIRA,
2016, p. 14), ideias tão arraigadas e marcadas como “corretas”, visto que, após a
entrega da moça a serapião, a interferência da família nas constantes violências
sofridas por ela é nula, como a livrar-se de um peso, de algo pecaminoso, de fardo
tão pesado, portadora de tamanho desprezo do onipotente, fazendo crer que
também a mãe de ermesinda tenha passado pela mesma “educação” que ela
recebe. Todas essas questões ficam bastante claras nas seguintes falas de baltazar:
“[...] sorri com a sua burrice […], por corresponder perfeita à estupidez que
se espera numa mulher” (MÃE, 2018, 54); “mas não por deus, que
despreza as mulheres e as manchou de pecado, mas pelo diabo, à
espreita no corpo delas a tentar agarrar-nos a alma a partir da ponta do
badalo, dizia-lhe” (MÃE, 2018, 68-69); “era sabido, marido que vinga
De certa forma, todas essas questões que se colocam nos fazem crer em
ações culturais, em práticas aceitas pela maioria e estabelecidas pela igreja a partir
dos evangelhos, práticas arraigadas em uma sociedade feudal que permitiam ao
homem exercer certo poder de dominação sobre a mulher, marcada pela tese da
vontade divina que a punha sob o jugo masculino, pois sabiam de antemão o que
se esperava dela por suas manchas advindas do pecado original de Eva, de sua
sujidade, do direito do marido a seu corpo e sua vontade, educando-a como
acreditavam que deveria ser, tendo o direito inclusive de exercer vingança devido a
uma possível, mesmo não provada, traição, entre tantos outros dilemas enfrentados
pelas mulheres ao longo da história. Dessa feita, ermesinda se entrega “sem
restrições a baltazar, que a ama mas ao mesmo tempo a agride fisicamente de
modo brutal. Perante o poder do marido, não lhe resta senão o silêncio e o
sofrimento do corpo e do espírito”, não sendo a única afetada por isso, pois, no
romance, o senhor feudal, sua esposa ou mesmo o rei “privam baltazar e a sua
família de qualquer direito, e impedem-nos de se construírem em liberdade e
transformação; impõem-lhes uma arbitrariedade e um terror que os fecha na
angústia constante da morte” (NOGUEIRA, 2016, p. 206).
Esse romance constitui-se, portanto, em uma narrativa “de amor e de morte
que não se limita a colocar uma questão situada no espaço e no tempo, e resolvida
nas suas implicações ideológicas e culturais”, cujo amor, embora privado e não
sentido amplamente, desfila em suas páginas mas, marcado pelo ciúme e pela
violência, passa como uma tênue linguagem, quase despercebido e sufocado e, da
forma com que é construído, faz com que o leitor encare “o problema da violência
masculina como próprio da Idade Média, de reis e senhores feudais, mas também
compreende a sua atualidade e o seu alcance social”. Assim sendo, “baltazar, que
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trata ermesinda com ternura mas também com brutalidade, converge toda uma
cultura de subalternização e exploração da mulher” [...] (NOGUEIRA, 2016, p. 206),
sendo constatado por Pereira no artigo “O coração das trevas: o medievalismo sujo
de o remorso de baltazar serapião”, de fato, que ermesinda, no romance, aparece
como “[...] objeto passivo da brutalidade de baltazar, o suserano de quem depende.
Na verdade, na narrativa de Valter Hugo Mãe, “todas as promessas acabam
esmagadas sob o peso da dominação” advinda daquilo “‘que o senhor feudal exerce
sobre os homens, os homens sobre as mulheres e o diabo sobre todos’”
(RODRIGUES, 2011, apud PEREIRA, 2016, p. 130), tendo sua existência marcada
“apenas na e pela voz de baltazar [...]” (PEREIRA, 2016, p. 133).
Sobre as diferenças de gênero, Sánchez nos diz que “son en este caso
claramente históricas y sociales. Éstas se hallan presentes en nuestra cultura desde
hace muchos siglos”, não deixando de ser curioso, por exemplo, “que entre los 10
mandamientos, dictados por Dios a Moisés, haya uno explícito que dicta a los
hombres «no desear la mujer del prójimo», mientras que no hay uno equivalente
para la mujer, simplemente porque”, tal qual se espera de ermesinda, “de ella no se
podía ni siquiera esperar que deseara o hiciera algo para conquistar a otros
hombres, distintos a su esposo. Incluso frente al esposo, debía esperar su iniciativa.
El deseo y la tentación consiguiente sólo podían esperarse del varón” (SÁNCHEZ,
2013, s.p.). Ovídio em A arte de amar (2013) apregoa que “[o] pudor impede a
mulher de provocar certas carícias, mas lhe é agradável recebê-las quando o outro
toma a iniciativa” (OVÍDIO, 2013, s.p.), e, de fato, ainda nos dias de hoje, muitos
esperam a iniciativa somente do homem, pois todas essas considerações criam a
expectativa de uma mulher vista ainda “como deseada, pero no como deseante ha
sido la norma en distintas religiones, no sólo en las de origen judío, cristiano y
musulmán” (SÁNCHEZ, 2013, s.p.), e quando baltazar percebeu em ermesinda “[…]
avanços nos enrolados da cama, como subtilezas de sabedoria por coisas porcas
que eu não lhe ensinara” parecendo “malabarista ou artista de espectáculo
profissional, e não a minha esposa de tão pouco tempo, desinformada de ideias
estranhamente avançadas” (MÃE, 2018, p. 74), abriu caminhos para o ciúme e novas
e mais fortes agressões.
Nogueira faz notar que “[a] sublimação do humano pelo amor enquanto
energia mental e física atinge, no conjunto dos cinco romances de Valter Hugo Mãe,
a sua máxima concretização na ‘gramática amorosa’ (Steiner, 2008: 93) daquela
cena, que faz parte das ‘políticas de sentimento’”, advindas da “literatura (e dos seus
sucedâneos no cinema, no teatro e na arte em geral) (Steiner, 2008: 106). Isaura, que
‘Pensara nunca ser capaz de se mostrar a um homem’, que ‘Pensara que havia
perdido para sempre os atributos mais imprescindíveis das mulheres’”, nesse
momento de sublimação, “ajeitava-se [...] cada vez melhor no corpo que tinha”
(Mãe, 2018, p. 186). Percebe o pesquisador que “[a] sensibilidade e a sensualidade
de Crisóstomo, que nada têm a ver com a violência não reprimida de baltazar [...],
solicitam a sensibilidade e a sensualidade, ‘os instintos’, de Isaura” e Crisóstomo “que
ganhava amor pelas pessoas por grandeza, nem chegaria nunca a entender as
hesitações iniciais de Isaura. Acariciava-lhe o peito, sentia que chegara ao melhor
tempo da sua vida e sorria” (Mãe, 2018, p. 186). É-nos possível compreender “melhor
o alcance de uma cena como esta à luz destas palavras de George Steiner, que nos
lembra que ‘Pueden existir coerciones económicas, sociales, el ciego azote de la
sinrazón, pero en el corazón del adulto exulta la libertad sexual’” (STEINER, 2008,
apud Nogueira, 2016, p. 248).
Ler Mãe é entrar em território sagrado, é navegar em águas turvas e
agitadas, é singrar pelas veredas de uma literatura da mais alta competência envolta
numa criativa e sublime maneira de narrar, mas também é saber que a natureza, o
amor, Deus (seja qual for a forma que se nos apresenta), o fio condutor da vida, a
solidariedade e a alteridade sempre se fazem presentes – sendo vencedores ou não
– trazendo esperança, humanização, afago a personagens e a leitores tão
vulneráveis e desprotegidos que buscam um objetivo comum: chegar ao outro, a
Deus, à natureza das coisas, enfim, alcançar a partilha, a humanização tão desejada
e o amor ao próximo, um amor filial, até, quem sabe, um amor agape aos moldes
a ‘cria’, a filha de Rosinha (que morre à mesa do almoço do dia do casamento com
o velho Gemúndio)” (REAL, 2016, p. 323), oposto ao que ocorre em o remorso de
baltazar serapião, que termina com tantas mortes e destruição, em que se tem a
sensação de que o amor foi vencido, embora aparentemente nunca tenha se
desvencilhado da mistura de sentimentos do narrador, fortalecendo-se, tarde
demais, em meio às inquietações e ao arrependimento de serapião nas últimas
páginas do romance, despertar demasiado tarde para se converter em philia, ou
eros muito jovem para converter-se em amor maduro (pragma), restando tão
somente a sarga dessa família marcada desde o início pela ignorância, pela
discriminação, pela dor e pela anormalidade que a caracterizava. Vale ressaltar que,
“[...] no universo dos romances de Mãe, a instituição familiar pode ser o espaço em
que a solidariedade e o afeto se constroem, como também o lugar onde a violência,
o poder e a opressão se disseminam” (TEOTÔNIO, 2016, p. 356-357). E assim,
conclui Real em sua análise, “[d]esde 2004, atravessando quatro romances, Valter
Hugo Mãe e o seu narrador escreviam procurando o Amor”, mas que só
“[s]etecentas páginas depois, em O Filho de Mil Homens, não só o encontraram
como o realizaram”, assinalando que é justamente aí “que começa uma nova fase
no desenvolvimento da obra do autor” (REAL, 2016, p. 323).
CONCLUSÃO
Baltazar, por fim, parece fazer um exame de consciência ao perceber suas
atitudes em relação à mulher amada, um protagonista dotado de voz e de “poder”,
pelo menos em relação à fêmea, uma personagem que trouxe à tona no decorrer
da narrativa um sentimento contraditório de amor/desamor que faz sofrer o outro
da relação, talvez por se tratar de narrativa que se passa em pleno período feudal,
cujas relações políticas e sociais se fazem com o suserano, e em cuja dureza nas
atitudes da personagem faz vir à tona “o remorso” enfrentado pelo protagonista,
fruto de uma sociedade marcada pela opressão e pela desvalorização da figura
feminina. A seu turno, Crisóstomo apresenta uma aceitação da vida e das atitudes
REFERÊNCIAS
KRZNARIC, Roman. Sobre a arte de viver: lições da história para uma vida melhor.
Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. São Paulo: Jorge Zahar Ed., 2013.
MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. 2. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
______. o remorso de Baltazar Serapião. 2. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2018.
______. Introdução. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é exata: Estudos
sobre a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 11-21.
OVÍDIO. A arte de amar. Tradução Dúnia Marinho da Silva. Porto Alegre: L&PM,
2013 [ebook].
______. Valter Hugo Mãe: Do neonaturalismo ao lirismo. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.).
Nenhuma palavra é exata: Estudos sobre a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto
Editora, 2016, p. 319-323.
Diferente dos poetas, bem como dos sofistas, Fedro não esquece o Amor, a
questão do amor, e esta questão retorna frequentemente a si como diz Erixímaco, o
qual, concordando com Fedro em “venerar o deus” e exortando a todos que façam
o mesmo, diz que Fedro deve ser o primeiro a fazer o discurso de louvor ao Amor,
pois ele é “pai da ideia”. O que todos concordam, e cada um começa a fazer seu
discurso sobre o amor, para não esquecê-lo.
Lembrando Hesíodo e também Parmênides, para os quais, segundo Fedro,
o Amor é o mais antigo dos deuses, ele considera que, “sendo o mais antigo é para
nós a causa dos maiores bens”, o Amor é o maior dos bens na mocidade um “bom
amante” e, para o amante, o “bem-amado”. E é como uma lembrança que o Amor
se faz presente no bom amante e no bem-amado, pois estes lembram a quem ama
para não fazer atos vergonhosos ou a vergonha do que é feio e ter apreço ao que é
belo, ou ainda honrado no que diz respeito à cidade. Sobretudo, neste caso, é à
virtude que o Amor lembra na medida que “ninguém há tão ruim que o próprio
Amor não torne inspirado para a virtude, a ponto de ficar ele semelhante ao mais
generoso de natureza” (PLATÃO, 1983, p. 13), no caso, uma virtude como “dom
emanado de si mesmo” e que nem mesmo a morte é vista como algo ruim, pois
“quanto a morrer por outro, só o consentem os que amam, não apenas os homens,
mas também as mulheres” (PLATÃO, 1983, p. 13).
Econômico em seu discurso e citando Homero, Hesíodo, Parmênides e
histórias trágicas daqueles que morreram por Amor, Fedro é aquele que guarda a
lembrança do Amor segundo a tradição e do que é o Amor como uma lei ou
nomos que lembra a todos o que não deve ser feito, que faz a todos se
envergonharem perante alguém, no caso, o ser amado. Neste sentido, se o Amor
não pode ser esquecido, se é impossível esquecê-lo a partir do que diz Fedro, é
porque se deve, por Amor, evitar fazer algo mal aos outros ou a si mesmo e, não
conseguindo evitar este mal, envergonhar-se por tê-lo feito. O Amor, mais antigo
dos deuses, é assim a norma mais antiga da convivência humana, que não pode ser
esquecida, pois é “para nós a causa dos maiores bens”. Lembrado por Fedro em seu
discurso, o Amor é o que unifica os seres humanos, que exorta homens e mulheres
à virtude e à felicidade, como um em relação à multiplicidade de bens que emanam
de si como causas, dons e virtudes.
Depois dele, há outros discursos esquecidos por Aristodemo, e é lembrado,
em seguida, o de Pausânias, amante de Agatão, que lembra a Fedro que, segundo a
tradição lembrada por este, existem dois Amores referentes a duas deusas distintas
e que apenas um deles deve ser louvado. Há, neste sentido, o Amor de Afrodite
Urânia, a Celestial, mais velha, e o Amor de Afrodite Pandêmia, a Popular, mais
nova, e deve-se louvar apenas o amor que é belo, pois “o amar e o Amor não é
todo ele belo e digno de ser louvado”. Se o amor faz os amantes se envergonharem
de seus atos, segundo Pausânias, deve-se também se envergonhar Amor, no caso,
o de Afrodite Pandêmia Popular, pois ele é vulgar, e ama-se, neste caso, “mais o
corpo que a alma, e ainda dos mais desprovidos de inteligência, tendo em mira
apenas efetuar o ato, sem se preocupar se é decentemente ou não” (PLATÃO, 1893,
p. 15). É um amor jovial relacionado à natureza sexual da fêmea e do macho porque
proveniente da deusa mais jovem e que tanto pode fazer o bem como o mal e, por
isto, não se “isenta de violência”, diferente do Amor de Afrodite Urânia Celestial, a
mais velha. Este, “primeiramente não participa da fêmea mas só do macho”, e se
volta para o que é másculo, segundo Pausânias, no caso, “ao que é de natureza
mais forte e que tem mais inteligência”. É, neste sentido, um amor de machos, e
entre machos, um amor homossexual, mas não por meninos, somente pelos que já
têm “barbas” e “juízo”, em busca de “amar para acompanhar toda a vida e viver em
comum, e não a enganar e, depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo,
partir à procura de outro” (PLATÃO, 1983, p. 15). Neste sentido, é um amor do qual
não se deve se envergonhar, mesmo que seus atos sejam extravagantes, pois “é
dado pela lei que ele o faça sem descrédito”, isto é, sem perder o valor, mesmo que
minta, pois tem “o perdão dos deuses se perjurar” segundo também a lei, e deve-se
também aquiescer o amante em adulação ou servidão voluntária, a qual não é
vergonhosa, segundo Pausânias: “É com efeito norma entre nós que, assim como
para os amantes, quando um deles se presta a qualquer servidão ao amado, não é
isto adulação ou ato censurável, do mesmo modo também só outra única servidão
voluntária resta, não sujeita a censura: a que se aceita pela virtude” (PLATÃO, 1983,
p. 18). É por ter em vista a virtude e a sabedoria que não é vergonhoso aquiescer ao
amante e não se pode esquecê-lo, pois “Este é o amor da deusa celeste, ele mesmo
celeste e de muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito esforço ele
obriga a fazer pela virtude tanto ao próprio amante como ao amado; os outros são
todos da outra deusa, da popular” (PLATÃO, 1983, p. 18-19).
Aristófanes seria o próximo a falar depois de Pausânias, mas ele começou a
soluçar e, depois de lhe dar orientações de como parar o soluço, o médico
Erixímaco o substitui em seu discurso, lembrando que Pausânias não arrematou
bem o seu e, falando a partir de sua arte, a medicina, retoma o discurso sobre os
dois amores, todavia, com certa moderação. Para ele, também o amor é duplo, mas
é a partir dos corpos de todos os seres da natureza, em sua duplicidade de amor
sadio e mórbido, que ele discursa retomando o discurso de Pausânias, dando
também ele preferência à deusa Afrodite Urânia, Celestial.
Para Erixímaco, a medicina é a ciência dos fenômenos do amor e o amor é
ele mesmo uma cura, no sentido de uma harmonia dos “elementos mais hostis no
corpo”, no caso, os elementos opostos, em relação aos quais se produz uma
concórdia. Tais harmonia e concórdia, na medicina, Erixímaco as remete ao deus
Asclépio, e existiriam, segundo ele, também na ginástica, na agricultura e na música,
considerando-as como uma combinação e consonância do que é discordante, de
protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior
felicidade para o gênero humano” (PLATÃO, 1983, p. 22). E caso soubessem do
poder do amor, seriam erguidos templos em sua honra e se fariam os maiores
sacrifícios.
No que diz respeito à natureza humana, segundo Aristófanes, ela era de
três gêneros, acrescentando o andrógino aos gêneros masculino e feminino,
composto pela harmonia destes dois gêneros. Todos eram unos e duplos ao mesmo
tempo, pois seus corpos eram siameses, com um formato circular, por serem
descendentes do sol, no caso do gênero masculino; da terra, no caso do gênero
feminino; e da lua, no caso do andrógino. Quanto às vicissitudes, tinham força e
vigor terríveis, uma grande presunção, bem como intemperança e impiedade, ao se
voltarem contra os deuses, o que levou Zeus a tomar a decisão de cortar “cada um
em dois”, para enfraquecê-los, e serem úteis tornando-se mais numerosos, e, caso
isto não diminuísse suas vicissitudes, iria dividi-los novamente, fazendo-os andarem
com uma só perna. Todavia, o plano de Zeus não saiu como ele pensava, pois, ao
dividi-los, e serem recompostos por Apolo numa forma individual, cada um ansiava
por encontrar sua metade, e morria na falta dela, depois que a encontrava, e seu
amado perecia.
Divididos por Zeus, num primeiro momento, os gêneros geravam-se na
terra e não um no outro, pois seus sexos ficaram para trás. Tendo compaixão por
eles e percebendo que não seriam úteis para si destruindo-se deste modo, pôs seus
sexos para frente e eles passaram a gerarem-se um no outro, no caso de o macho
encontrar uma fêmea, e, caso fosse um encontro de cada um com o mesmo
gênero, que “pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem
repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida” (PLATÃO, 1983, p. 24). A
partir da compaixão de Zeus, surgiu, desse modo, o amor de um pelo outro a
restaurar a “antiga natureza” dupla do ser humano, cada gênero em busca de seu
par. No caso, os homens e mulheres descendentes dos andróginos buscando-se uns
aos outros, até mesmo em adultérios, e dos homens e mulheres cada um buscando
seus iguais. Assim como Pausânias discursa em defesa de um amor homossexual –
e, principalmente, o masculino, do qual não se deve sentir vergonha –, Aristófanes
também o faz:
28), e nada do que o faz por ele é à força, “pois violência não toca o Amor – nem,
quando age, age, pois todo homem de bom grade serve em tudo ao Amor, e o que
de bom grade reconhece uma parte a outra, dizem ‘as leis, rainhas da cidade’, é
justo” (PLATÃO, 1983, p. 28). Conduz também à temperança por dominar os
prazeres e desejos, bem como à coragem, pois pega Ares e é “mais forte o que
pega do que é pegado” e, por fim, à poesia e à sabedoria, pois é “um poeta o deus,
e sábio, tanto que também a outro ele o faz”. Poeta, ele ensina a criação artística e
toda a criação dos animais é “sabedoria do Amor”, bem como as artes do arqueiro,
da medicina, da adivinhação inventadas por Apolo como discípulo do amor, e das
belas-artes inventadas pelas Musas, da metalurgia por Hefesto, da tecelagem por
Atena e da “‘arte de governar os deuses e os homens’” por Zeus.
O discurso do poeta Agatão encerra assim a multiplicidade de discursos
sobre o Amor lembrando a todos sua beleza, que é a da jovialidade, a partir da qual
se produzem as virtudes, as artes, a sabedoria e o convívio social familiar entre
todos por Amor e não por Necessidade. O que se tem a partir de Sócrates, depois
de Agatão, é a redução dos discursos a um diálogo, em primeiro lugar dele com
Agatão, de quem começa por discordar, bem como de todos os demais, por tão
somente elogiá-lo, defendendo que o elogio fosse assim proveniente da verdade do
Amor e não um acrescentar o máximo à coisa, verdade que, em grego, quer dizer
alethéia, não-esquecimento. Neste sentido, é ao não-esquecimento do amor em sua
verdade que Sócrates lembra, por fim, a todos em seu diálogo com Agatão, em
princípio, mas fundamentalmente com Diotima, que era entendida neste assunto, e,
convencido pelo que ela disse, foi que Sócrates concordou em participar do
simpósio, quando Erixímaco propôs os discursos sobre o amor: “Ninguém contra ti
votará, ó Erixímaco – disse Sócrates. – Pois nem certamente me recusaria eu, que
afirmo em nada mais ser entendido senão nas questões do amor...” (PLATÃO, 1983,
p. 12, grifo nosso).
Para além dos discursos (logos) sobre o amor, é através do diálogo que
Sócrates fala sobre o amor, de duas línguas e uma delas senão estrangeira, como é
a de Diotima, que fala melhor do que ele e do que os homens presentes sobre o
que é o amor de verdade, ou a verdade do amor. Se existe uma verdade do amor, a
partir dos questionamentos de Sócrates, ela é lembrada por Diotima, uma
estrangeira, à qual ele recorre em lembrança para discursar sobre o Amor tal qual
os outros, ainda que ela dialogue como ele mesmo dialoga com os outros. Do
diálogo com Agatão para o discurso de Diotima, lembrado por Sócrates a si mesmo,
passa-se a um discurso de alguém que não está presente ao banquete, mas é
tornado presente nele por Sócrates, que tenta repetir seu discurso, e é assim um
discurso de alguém ausente e presente ao mesmo tempo, tal como o amor é, para
ele, o desejo de algo ausente e presente àquele que o deseja e quer manter consigo
no futuro, isto é, presente no tempo. Sócrates, em sua ignorância, não sabe a
verdade sobre o amor, que advém, segundo ele, de Diotima, entendida neste
assunto, e, não sabendo sua verdade, não sabe também como dizê-la, motivo pelo
qual recorre a ela, não sabendo, outrossim, falar a língua e a linguagem do amor,
fazer um discurso elogioso sobre ele, motivo pelo qual traz à lembrança ela como
musa para falar por si.
Se Diotima era entendida nas questões do amor é porque, deste modo, ela
sabia questionar o amor, questionar para saber a verdade do Amor, se o Amor dizia
a verdade ou a falsidade – o que ela ensinou também a Sócrates; neste caso, ao
instruí-lo nas questões do amor. Neste sentido, se é feio ou não o amor, tal como ele
e Agatão dialogavam, Diotima lhe disse que “nem era belo segundo minha palavra,
nem bom”, tampouco sábio ou ignorante, refutando o questionamento de Sócrates
com veemência, quando ele ironicamente, em seu costume, a questiona. O Amor,
para Diotima, é o opinar certo, mesmo sem poder dar razão, por ser aquilo que está
entre os dois extremos, portanto, sem poder dar razão a um ou a outro, o que faz
dele também não ser um deus tal qual todos reconhecem, segundo Sócrates, mas
não ele mesmo e nem ela, pois se o amor é carente do que é bom e belo, logo, da
felicidade a partir disto, o Amor enquanto deus também careceria disso. Portanto,
questiona ela, “Como então seria deus o que justamente é desprovido do que é
belo e bom?” (PLATÃO, 1983, p. 34). Mas, se o amor não é um deus, e, como tal,
não é imortal, isto não quer dizer que ele seja mortal – como Sócrates a questiona,
retomando os extremos –, pois ele é também, neste caso, “algo entre o mortal e o
imortal”, ou seja, é “Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo que é gênio
está entre um deus e um mortal” (PLATÃO, 1983, p. 34). No caso, um gênio que tem
o poder de estabelecer uma relação entre homens e deuses, pois é a partir do amor
que se pode “interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos
homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as
ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os
completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo” (PLATÃO, 1983, p.
34).
É nesta relação entre o que é mortal e o que é imortal que há a verdade
sobre o amor e que ele tem seu objeto, por assim dizer. Tal objeto é o belo imortal
como objeto único de uma ciência única na medida em que é permanente no tempo
“sempre sendo, sem nascer e perecer, sem crescer nem decrescer”, que é imutável e
não deixa de ser o que é, variando no espaço e no tempo ou em relação a algo
qualquer, pois não é “de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem
quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo e ali feio”. Um belo que está
ausente no corpo, que não é a aparência de “nada que o corpo tem consigo”,
tampouco com “algum discurso ou alguma ciência” que se refira aos corpos e com
qualquer existência na natureza, “animal da terra ou do céu, ou qualquer outra
coisa”. Neste sentido, um belo que é “ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo,
sendo sempre uniforme” e que tudo o que é belo gerado no corpo e na alma
participa dele, mas nada o altera, pois é um belo em si, o próprio belo, presente nos
corpos e nas almas, mas ausente delas em maior medida.
É a contemplação deste belo inesquecível em si e propriamente o que se
coloca, por fim, em questão ao amor por Diotima, a questão única do amor tendo
em vista este único belo, o qual deve se ter em vista sempre, para sempre, e que
torna senão o amor inesquecível, um amor que não se pode esquecer, que não
devemos esquecer, um amor a um belo que é único, mas que não é um amor
violento de um só belo presente num corpo, num costume, escravo, mesquinho, mas
em todos os corpos de modo comum na medida em que se queira apenas
contemplar quem ama e estar ao seu lado. Um amor inesquecível que não se
modifica com o tempo quando contempla o belo em si, que permanece em sua
contemplação na memória ainda que o belo que ama esteja ausente e que esteja
necessariamente ausente, seja um belo ausente em si mesmo, pois não está
presente em nada na natureza, tampouco em qualquer ciência dela, ou ainda, por
qualquer discurso ou em qualquer língua e linguagem, um belo, portanto, indizível,
e que uma Ideia que se tem por amor e nunca se tem ao amar e ao se discursar
sobre ele em uma determinada língua ou linguagem, a não ser na própria língua
dele, a nos conduzir a si mesmo quando amamos, ou, ainda, na língua do amor que
nos conduz a algo que é o belo em si.
Se o amor é amor de algo, a partir de Diotima, podemos dizer que este
algo é o belo em si, um belo inesquecível, invisível e indizível a não ser para a língua
do amor e de quem ama, a língua do belo em si. Amor de algo belo em si que é o
de uma Ideia, que faz do amor inesquecível, invisível e indizível, pois, se não
esquecemos o belo em si, ou não podemos e não devemos esquecê-lo, não
esquecemos, não podemos e não devemos esquecer o amor em si mesmo,
verdadeiro, como uma Ideia inesquecível do belo em si para além dos discursos
(logos) proferidos no banquete pelos homens. Seja porque remetem eles à deusa
Afrodite, seja porque remete Sócrates ao seu diálogo com Diotima e, por fim, é no
diálogo entre homens e mulheres, entre duas línguas estrangeiras, que se pode falar
a língua de Eros ou do Amor.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
O amor sempre foi um dos temas mais recorrentes nas artes e, antes de
penetrar nas veredas artísticas, ele já residia no âmago das reflexões filosóficas sobre
a origem do mundo e do homem. Ele está no centro dos conflitos da humanidade,
é a problemática e a solução. Na literatura, ele é centro de inúmeras narrativas,
como as consagradas obras românticas universais. Na obra clariciana, o amor é
tema recorrente, seja nos romances, contos ou crônicas, chegando, até mesmo, a
intitular um famoso conto presente em Laços de Família (2009). Todavia, Clarice não
lida com esse sentimento de forma displicente, pois há sempre um conflito
complexo em torno dele. Amor nunca é apenas amor, é ciúme, ódio, vingança,
desejo, amizade e compaixão. A literatura lida com diversas formas de amar e exibe
suas diversas faces sem, no entanto, desvendá-las por completo, pois a linguagem
literária é ambígua, misteriosa e repleta de sentidos.
Em contrapartida, no campo da Teoria Literária, ainda existe certa reserva
em tratá-lo de forma histórica, descritiva e racional. Não se acredita que,
fomentando o interesse pelas discussões sobre o amor, estar-se-á aprendendo a
amar melhor ou a ensinar as pessoas a encontrarem o amor verdadeiro. Esta última
expressão é, inclusive, problemática. Contudo, promovendo uma discussão sobre
25 Narrativa presente em RUSSON, John. Eros and Éris: Love and Strife in Ancient Greek Thought and
Culture. Disponível em:
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
83
não encontra o que viera buscar no leão, na girafa, no hipopótamo, no elefante, nos
macaquinhos, no macaco velho ou no camelo. Sendo assim, ela decide ir buscar a
sua própria forma de violência.
O ódio que ela busca é a própria libertação e essa sensação de liberdade
não está presente nas jaulas que ela observa. Então, a mulher, presa a sua condição
humana, incapaz de odiar, resolve ir ao parque e se perder na liberdade da
montanha-russa. Apesar de a protagonista lutar para manter o comportamento
inabalável, o vento e a velocidade do carrinho nos trilhos a invadem e ela não se
entrega. Como uma mulher com medo de se entregar ao amante, ela se mantém
impassível, presa em seu casaco marrom. Em outras palavras, a mulher parece
indecisa entre o sagrado e o profano, de forma que é a montanha-russa que aguça
as sensações eróticas dela, pois não é “apenas através dos canais de sexualidade
explícita que Eros se fará ouvir.” (BRANCO, 1984, p. 69).
É nesse momento simbólico que a protagonista vive o processo de
erotização do corpo, em que, conforme Xavier, ela “vive sua sensualidade
plenamente e que busca usufruir desse prazer, passando ao leitor, através de um
discurso pleno de sensações, a vivência de uma experiência erótica” (XAVIER, 2007,
p. 157). Foi preciso que ela experimentasse esse instante de gozo para ser capaz de
enxergar o que estava por vir. Ela encontra o quati enjaulado e curiosamente quem
se sente presa é ela. Presa no silêncio que a reprime, presa até soltar um gemido
que assusta o quati, mas não comove mais ninguém. A mulher caminha silenciosa e
é quase uma sombra. Frustrada pela insatisfação de não saber ainda como odiar, ela
apressa o passo até encontrar o seu duplo: o búfalo.
“De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante”
(LISPECTOR, 2009, p. 133) e ela que passava despercebida pela vida, sentiu-se
notada, vista, sentida. Não é fácil ser encarada assim quando o corpo inteiro está
recebendo ordens para odiar o mundo. O búfalo negro a deixara perplexa e imóvel.
Ela precisa fazer um grande esforço para se manter de pé, apruma a cabeça e o
corpo. O búfalo a nota novamente. Esse confronto mudo com o búfalo é o
confronto da amante com o amado, da mulher com o homem, de tudo o que ela
queria que tivesse sido e de tudo o que nunca foi.
O olhar do búfalo é quase como o olhar de Narciso na fonte, ela não
consegue desviar o olhar. “O coração batia oco entre o estômago e os intestinos”
(LISPECTOR, 2009, p. 133), e de repente uma coisa branca começa a se espalhar
dentro dela. Não era o ódio tomando conta dela, era o contrário. Éris cede o lugar
para Eros. A coisa branca é a manifestação do deus do amor, é o prazer, o desejo, a
pulsão ganhando força e consistência. A narradora diz que “a morte zumbia nos
seus ouvidos” (LISPECTOR, 2009, p. 133). Essa relação do desejo com a morte
remete ao conceito de Bataille de que o erotismo é “a aprovação da vida até na
morte” (2017, p. 35). Afinal, o erotismo quando atinge o indivíduo é capaz de fazer
seu coração desfalecer.
O conflito da mulher dividida entre o ódio e amor se intensifica quando ela
diz: “Eu te amo (...) com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de
não querê-la. Eu te odeio, (...) implorando amor ao búfalo” (LISPECTOR, 2009, 134).
Dessa forma, o ódio cede lugar ao amor, que se intensifica no contato sublime entre
a mulher e o búfalo no seguinte trecho:
CONCLUSÃO
Através da análise do conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector, presente na obra
Laços de Família (2009), percebemos o embate entre o amor e ódio a partir da
protagonista dividida entre os sentimentos e motivada pela força de Eros e Éris.
Nesse conto, amor e ódio são representados como fontes motivadoras, mas não
excludentes. Ambas permeiam a narrativa e são fortalecidas pelo poder do olhar.
Nesse conto, frente ao enigma do desejo do outro, a personagem principal
se imobiliza e se deixa envolver pela fantasia do búfalo; ela é um corpo que teme se
render ao profano e fica dividida entre ele e o sagrado. O profano é o prazer, o
gozo, “a coisa branca” surgida após o passeio de montanha-russa. O búfalo, no
entanto, é o seu duplo, é a partir dele que o drama de fato se instaura na narrativa
e compõe o clímax angustiante; a plena manifestação erótica arrancada de um
significativo olhar.
Olhar o outro, perder a noção do próprio corpo, permitir-se, sentir-se. Esse
texto instaura-se naquilo que, no dizer de Barthes, é “semelhante a esse instante
insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo
de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no
momento em que goza” (2015, p. 12).
REFERÊNCIAS
MAY, S. Amor: uma história. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2012.
PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
RUSSON, J. Eros and Éris: Love and Strife in Ancient Greek Thought and Culture.
Disponível em:
<https://www.academia.edu/37779901/Eros_and_Eris_Love_and_Strife_in_Ancient_Gr
eek_Thought_and_Culture> Acesso em: 07 jun. 2019.
SILVA, C. R. 15 erros de Eros: ensaios de literatura, vida e outras artes. São Paulo:
Porto de Ideias, 2018.
O PROJETO INVOCANÇÕES
Esta pesquisa se insere na terceira etapa do projeto de pesquisa
Investimento vocal em canções para crianças (INVOCANÇÕES), ligado ao Grupo
Discurso, cotidiano e práticas culturais (DISCUTA/ UFC), cujo objetivo é finalizar e
divulgar as pesquisas em torno dos posicionamentos do campo literomusical
brasileiro para crianças. O projeto visa caracterizar aspectos, principalmente vocais,
que podem ser delineadores dos posicionamentos apresentados por Gonzalez
(2014) [MPB para crianças, Canção de massa para crianças e Gospel para crianças] e
o posicionamento delimitado pelo projeto INVOCANÇÕES em sua primeira fase
[Pop-rock para crianças].
Dessa forma, pretendemos contribuir para a caracterização do
posicionamento destacado em nosso projeto, investigando a construção e
CRISE AMOROSA
No estudo anterior, havíamos elegido a canção “O Sol e a Lua” (2009) do
grupo Pequeno Cidadão como representativa do posicionamento pop-rock para
crianças. Decerto, a canção apresenta uma das características mais marcantes e
distinguidoras das demais produções de outros posicionamentos, a crise amorosa.
Nessa canção, o Sol protagoniza uma idealização amorosa pela Lua, porém, esta “o
despreza e o deixa esperar” e responde o pedido de casamento com “Não sei, não
sei, não sei/ Me dá um tempo”. Assim, um narrador, prototipia da cenografia de
narrativa, marcado também com trechos de voz falada, apresenta a diferença entre
uma idealização e um relacionamento amoroso. O personagem Sol, apesar de estar
apaixonado, possui um ethos projetado27 consciente da liberdade do outro. No fim
da canção, um outro enunciador, com identidade vocal de criança, consola o
personagem Sol falando sobre a esperança em novas perspectivas, “Um dia você vai
encontrar alguém/ Que com certeza vai te amar também”.
A canção não é caso único no corpus, ao contrário, parece ser uma
característica constitutiva da identidade pop-rock para crianças. Uma das marcas
que mais se sobressai é a presença de interrogações e dúvidas expressando o
conflito entre se idealizar o amor e a impossibilidade de concretizá-lo devido à
recusa do outro, como ocorre na canção “Mesmo sem a gente” (PEQUENO
CIDADÃO, 2016), “Tá tudo confuso, te perco ou te ganho?/ Minha cabeça gira em
parafuso [...]”, e na canção regravada, original de Ritchie, “Pelo interfone” (PATO FU,
2010), “Eu já não sei se eu vou, se eu fico [...] Não quero te prender/ Mas não posso
te perder/ Esse é um dilema que nem o cinema sabe resolver!”.
Esse ethos conflituoso consigo e com o outro em relação às atitudes que
deve tomar mediante uma frustração amorosa perpassa outras canções como “Não
27 Tratando-se de ethos projetado, pois não é o personagem Sol que enuncia, mas o narrador que
cria essa imagem desse outro.
Amor, Língua de Eros
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se vá” (PATO FU, 2017), na qual o enunciador suplica por uma nova chance
esperançosa, e “Gatinha manhosa” (ADRIANA PARTIMPIM, 2007), na qual o
enunciador tenta solucionar um impasse comunicativo afetivo, reafirmando que o
posicionamento não oculta um lado, geralmente, negativizado dos relacionamentos,
mas explicita-o constantemente.
A SOLUÇÃO
Como mencionamos, no final da canção “O Sol e a Lua”, investe-se em
elementos conciliatórios para resolução do dilema posto. Percebemos que situação
semelhante ocorre em “Mesmo sem a gente”, na qual o enunciador, que possui uma
identidade vocal infantil, parece reconhecer uma atitude desagradável ou uma
reação indesejada, reforçada pela cenografia confessional e de súplica, um pedido
de desculpas; e pede “Me dê só mais um tempo e poderemos ser amigos
simplesmente” (PEQUENO CIDADÃO, 2016). Conclui o enunciador com reflexões
motivadoras e perspectivas de mudança, “Sim sei que ainda vou crescer/ Há muitas
surpresas pelo caminho/ O sol se põe para depois nascer/ Tenho muito o que viver,
muito o que aprender”, complementando seu ethos conciliador com um aspecto
esperançoso.
Em “Pelo interfone”, o enunciador não está necessariamente diante de uma
negação da idealização, mas encontra-se conturbado pela falta de resposta
concreta. Contudo, o ethos investido ao final é de esperança, “O dia vai chegar/
Uma noite a menos para a gente!” (PATO FU, 2010). Outro caso, que a primeira vista
possa parecer destoar dessa característica, é a solução apresentada em “Gatinha
manhosa”, a de prender no coração. Parece que o enunciador escapa desse ethos
que compreende a liberdade do outro e o infringe; contudo, a cenografia emotiva
de manha e a recontextualização do termo “gatinha”, permitem interpretar essa
espécie de prisão como uma resposta afetiva positiva para o “conflito”, que seria
melhor entendido como um jogo de charme, como sugere o trecho “Briga só para
depois/ ganhar mil carinhos de mim” (ADRIANA PARTIMPIM, 2007), uma paradoxal
REGRAVAÇÕES E RETEXTUALIZAÇÃO
No corpus coletado, é notável a quantidade de regravações de canções
originárias da esfera discursiva para adultos. Os CDs da banda Pato Fu são
compostos somente por regravações; os de Adriana Partimpim mesclam autorais e
regravações; e os do grupo Pequeno Cidadão possuem, predominantemente,
canções autorais. Isso nos leva a pensar como essas canções, não pensadas
originalmente para esse fim, passam a pertencer ao mundo infantil.
Com base no trabalho de Mendes (2017), podemos caracterizar uma prática
recorrente nas regravações de canções do posicionamento em questão, que
explicita a mudança do pertencimento para o contexto infantil: a retextualização.
Para o presente trabalho, consideramos processos de retextualização aqueles em
que a materialidade enunciativa é modificada no plano da letra, no plano vocal, nos
instrumentos, na melodia e/ou no fonograma. Faz-se notar que, um processo de
retextualização implica um processo de recontextualização, esse último entendido
como a mudança de situação/ contexto comunicativo. Dessa forma, encontramos
nas canções selecionadas processos retextualizadores que buscam criar efeitos de
sentido que validem novas interpretações e, em especial, sua mudança de público.
Ainda que Mendes (2017) pouco relacione sua análise com os
posicionamentos, tendo em vista que seu objetivo é a caracterização dos processos
retextualizadores, a autora seleciona e analisa três canções que também compõe
nosso corpus, são elas “‘Fico assim sem você (ADRIANA PARTIMPIM, 2004), “Gatinha
manhosa” (ADRIANA PARTIMPIM, 2009) e “Primavera” (PATO FU, 2010). Dá-se
destaque aos investimentos instrumental e vocal como possibilitadores de uma
mudança cenográfica, ou seja, um investimento cenográfico distinto do original.
Como em “Primavera”, na qual a cenografia original nos remete diretamente à
declaração de amor entre um casal apaixonado e que, todavia, é alterada na
regravação de Pato Fu tendo maiores possibilidades de ser interpretada como
declaração entre pais e filhos, entre amigos, etc.
No que diz respeito aos processos de retextualização na canção “I Saw You
Saying (That You Say That You Saw)” (PATO FU, 2017), podemos destacar que,
apesar de nenhuma mudança no plano da letra, o investimento cenográfico, aliado
ao investimento ético, cria uma nova ambientação para a canção, a da idealização
amorosa de uma criança por um adulto. O enunciador parece estar apaixonado por
uma mulher estrangeira e decide perguntar sobre o que ela acha dele; ele, então,
recebe uma resposta em inglês e, tendo declarado que “Eu não sei falar inglês/ Ela
não entende uma palavra em português”, busca o intermédio do pai que repete a
mesma resposta em inglês. O fato de não saber inglês e de buscar ajuda na figura
do pai pode reforçar a interpretação de que o ethos do enunciador é de uma
criança. Como o plano da letra não foi alterado, mantém-se o trecho “I feel good
because you put your butt on me” 28, que parece inapropriado ou incompreensível
para a projeção de criança do senso comum; contudo, imaginamos que seja,
justamente, esse o principal efeito de sentido almejado, assim como o enunciador-
criança não compreende a sensualidade explícita (para os adultos), o delocutor-
criança também não a compreenderá durante a audição. Convém destacar também
que esse trecho, assim como a maior parte da canção, não é cantado por crianças,
ou seja, busca-se não relacionar essa possível sensualidade com uma identidade
vocal infantil.
Contudo, polêmica maior gerou a regravação de “Severina Xique-Xique”
28 “Eu me sinto bem porque você colocou sua bunda em mim” (Tradução nossa).
Amor, Língua de Eros
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(PATO FU, 2017). Após o lançamento de “Música de brinquedo 2”, diversos canais
midiáticos noticiaram a ousadia do grupo ao regravar, em um álbum para crianças,
uma canção conhecida popularmente pelo duplo sentido; como na notícia,
veiculada no site G1, intitulada “Pato Fu traz malícia sexual de hit de Genival Lacerda
para álbum infantil” (FERREIRA, 2017).
Ao analisarmos as práticas de retextualização na regravação de “Severina
Xique-Xique”, encontramos, primeiramente, sutis mudanças no plano da letra. Essas
não ocorrem nos trechos de voz cantada, mas alteram um diálogo em voz falada,
advindo da original, que se dava entre a repetição das estrofes e refrão.
O ethos projetado de Severina corresponderia ao da canção original, no seu
sentido mais literal, uma moça pobre que se tornou dona de um pequeno
estabelecimento comercial, boutique; da mesma forma, o ethos projetado de Pedro
Caroço permanece o de um rapaz interesseiro, financeiramente, que pretende
enganar Severina com falsos sentimentos. Contudo, a cenografia, aliada ao
investimento vocal, dá um novo enfoque ao conflito relacionado ao sentimento
amoroso. Na gravação original, a primeira e a segunda estrofe do diálogo são
faladas pelo intérprete com a mesma identidade vocal, o que nos conduz a duas
possíveis interpretações: na primeira, podemos relacionar o diálogo a um ethos
ríspido e insensível do pai de Severina, marcado pelo uso do vocativo “minha filha”,
no sentido de laço familiar; já na segunda interpretação, relacionamos o diálogo ao
autoproclamado “Seu Babá”, o interesseiro pretendente que denuncia Pedro Caroço
mas incorre no mesmo erro, e o vocativo “minha filha” estaria mais ligado ao sentido
de afetividade, ainda que maliciosa.
Já na regravação, encontramos duas identidades vocais distintas, revelando
que, não só no plano da letra, mas principalmente no plano vocal, o grupo Pato Fu
separa os dois possíveis enunciadores e funde as interpretações anteriores. A
primeira estrofe é falada por uma criança (voz feminina e em tom imperativo) e
alerta Severina da motivação interesseira de Pedro Caroço; o trecho que menciona
“seu Babá” é transferido para a outra estrofe e acrescenta-se o termo “bobão” à
PROGRESSISTAS E ROMÂNTICOS
Percebemos que, nas relações afetivas, no posicionamento pop-rock para
crianças, há uma flutuação entre o amor de amigo (philia) e o amor de casal (eros).
REFERÊNCIAS
Bibliografia
FERREIRA, M. Pato Fu traz malícia sexual de hit de Genival Lacerda para álbum
infantil. G1, 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/pato-fu-traz-malicia-sexual-
de-hit-de-genival-lacerda-para-album-infantil.html>. Acesso em: 20 abr. 2019.
______. Cenas da enunciação. Organizado por Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de
Souza-e-Silva, diversos tradutores. Curitiba: Criar Edições, 2006.
Referências discográficas
PATO FU. I Saw You Saying (That You Say That You Saw). Rotomusic / Deck Disc,
2017.
INTRODUÇÃO
Chama atenção o fato de o romance Angústia, conduzido pelo narrador-
personagem Luís da Silva, ser marcado pela constante aparição de fortes desejos
sexuais que acometem este último. Esses desejos são direcionados principalmente à
figura de Marina, com quem Luís da Silva se relacionou amorosamente na trama e
que, segundo a narração deste, o traiu. Os desdobramentos amorosos — e,
portanto, passionais — da narrativa se passam principalmente pela narração do
episódio da traição, do qual se desdobra a consecução de um assassinato — no fim
do romance —, do personagem Julião Tavares, figura do rival amoroso. O choque
entre amor e ódio, portanto, estrutura a obra.
Neste texto, exploraremos com mais foco o lado amor dessa estruturação,
expresso nos desejos sexuais de Luís da Silva por Marina. Dentre os elementos
ligados ao amor eivado de desejo sexual de Luís da Silva, nos chama atenção o fato
de que o romance apresenta um forte apelo sensorial. A dimensão da
proprioceptividade, o que, em semiótica, se convencionou tratar como corpo,
aparece constantemente discursivizada na obra em análise. O corpo, portanto,
29 Fazemos uma alusão indireta aqui ao título do livro Corpo e sentido, de Jacques Fontanille, que
explorou de modo mais detalhado essas questões. Outra obra que dá tratamento central a essa,
digamos, dimensão encarnada do sentido é a tese de livre-docência de Discini (2015), depois
transformada em livro e intitulada Corpo e estilo.
30 Tradução de trecho em espanhol: “El sentido ?es la respuestas a las perguntas?, o ?a las
subitaneidades de las que da testemunio a la sensibilidade? O es a la inversa: la sensibilidade es ella
misma el conjunto des respuestas posibles a las perguntas que el sentido, en razon de suas
transgresiones, de sus proprias incertidumbres le dirige [al sujeto sensible]? (ZILBERBERG, 2016, p. 46-
47)”
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designação “Eros” 31, a remontar ao deus da mitologia grega, donde provém, por
exemplo, a raiz de termos como “erótico” em língua portuguesa. Nesse âmbito, o
discurso já seria da ordem do logos, desse modo, da ordem linguagem, mais
relacionado com o inteligível.
Diante de uma tal “dicotomia”, nos perguntamos: é Eros que rege o
discurso do romance Angústia, ou é o discurso que rege Eros em tal obra? O nosso
pensamento é que o discurso é sempre da ordem do depois, ou que o sensível é da
ordem do antes, melhor dizendo: o “puro” sensível só pode ser captado já tendo
minimamente passado por uma “inteligibilização” de ordem linguageira. Isto quer
dizer que, se Eros rege o discurso de Luís da Silva no romance em estudo, nós só
podemos captar esse reger catalicamente, já “discursivizado”, já estando o discurso,
portanto, a delimitar a “imagem” e as isotopias que se criam do sensível na obra
Angústia. Em suma, ainda que o sensível reja o inteligível, nós só podemos
depreendê-lo a partir de pressuposição. Isto demanda uma posição filosófica? Muito
possivelmente, mas é a partir do que consideramos ser uma limitação, ou seja, a
ausência de depreensão do puro sensível, que corroboramos este posicionamento.
Prossigamos para ver o porquê de a obra Angústia despertar essas questões.
vizinha [Marina] começaram a bulir comigo” (RAMOS, 2014, p. 46, itálico e colchete
nossos).
O apelo olfativo e o apelo visual aqui estão em função da intensidade do
sentir, ou seja: quanto mais sensibilizado é o sujeito Luís da Silva, quanto mais
estimulado por um desejo sexual, ele sente o mundo mais afetante. Os estados do
mundo, portanto, a percepção das coisas se dão em função de um sujeito
extremamente perturbado emocionalmente. A isotopia amorosa, eivada de desejo
sexual, expressa, assim, o constante conflito interno do sujeito, oscilando em
diferentes rompantes de intensidade que o acometem constantemente. Nessa
configuração, Marina se apresenta como uma figurativização do objeto ausente, do
objeto pelo qual Luís da Silva sente atração. Vejamos outro trecho, em que
novamente aparece Marina, agora descrita:
este que “briga” com a “força de atração” do passado (memória) que quer arrastar o
sujeito para a infância (embreagem), demonstra-se também um sujeito que vai
organizando a narrativa como que ao modo de uma mania32.
Esses pontos fazem entender por que determinadas histórias entram
constantemente dentro da estrutura da obra, como a de Chico Cobra, homem que,
após cometer um homicídio, se esconde no mato, se rodeia de cobras, que, pelo
medo que causam, impedem sua captura; ou a do primeiro assassinato que Luís da
Silva presenciou, de um homem chamado Fabrício, compadre e amigo de seu pai;
ou a história constantemente contada por seu Ramalho, em que um pai, tentando
na verdade socorrer sua filha, é visto equivocadamente como alguém que estava a
estuprá-la; ou o capítulo 32, em que aparece a figura de seu Ivo, a dar uma corda a
Luís da Silva, figura que expressa o instrumento e a ideia fixa do assassinato.
Como se pode ver, esses elementos nos remontam aos temas relativos a
morte e desejo, que se relacionam aos temas do amor e do ódio. É pela relação
entre esses pontos que vemos também outras pequenas narrativas se inserirem “de
repente” na narração, como o episódio com Berta (capítulo 8), ou a figura de
Antônia, criada de d. Rosália (capítulo 12, p. 65), ou a figura da datilógrafa (capítulo
36), até mesmo capítulos todos voltados para episódios de conteúdo sexual, como a
possível relação de incesto entre um homem alcunhado de Lobisomem, no capítulo
14. O capítulo 22 do romance é exemplar quanto a esses pontos, uma vez que o
sujeito reserva-o para narrar os momentos em que escuta os barulhos das relações
sexuais dos vizinhos, d. Rosália e seu marido, e ao mesmo tempo mostra uma
vontade de matar este último.
Todas essas narrativas mencionadas, bem como o trecho em que Luís da
Silva faz combinações com o nome de Marina, ainda no início do romance, estão
relacionadas às obsessões33 do narrador, que a todo o tempo “martela” as mesmas
ideias (desejo sexual e desejo de matar), o que possui também uma dimensão de
32 Estaríamos aqui numa instância enunciativa ligada à figura do enunciador do texto, que “escolhe”
distribuir esses elementos no decorrer da obra, escolhas que estão no mesmo âmbito relacionado a
não dividir o romance Angústia em capítulos, por exemplo.
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prolepse no romance, em geral. Desse modo, esses dados elencados revelam, nos
mais variados pontos da narrativa, a menção constante a conteúdos centrais dela, o
que nos põe em face, portanto, a uma narrativa em abismo, ou, para trazer a
expressão francesa utilizada para designar tal fenômeno, uma mise en abyme:
33 Fazer uma menção a um estudo de Freud parece ser importante aqui, já que o psicanalista
austríaco, dentre as neuroses sobre que se debruçou, escreveu também sobre a chamada “neurose
obsessivo-compulsiva” (FREUD, 2013). Esses elementos que se reiteram na análise, junto a outros que
não convém explorar neste artigo, constroem a imagem de um “neurótico” desse teor. Meneses
(1991) afirma de modo claro em seu trabalho que Luís da Silva é um neurótico obsessivo.
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34 Estes termos fazem parte da gramática tensiva erigida por Zilberberg (2011). Explicando em linhas
gerais, o que nos faz incorrer me uma simplificação demasiada da exposição da teoria, os “mais”,
bem como os “menos”, se configuram como células tensivas que servem para se analisar uma
oscilação de intensidade no discurso. No caso do aumento de intensidade, temos um acréscimo de
mais, e num caso de uma diminuição, tem-se a marcação de que a intensidade sofreu um
decréscimo, o que se marca pelo menos. No discurso do romance de Graciliano Ramos em estudo,
essas células tensivas encontram uma extensa aplicabilidade, uma vez que o romance está
constantemente marcando por aumentos e diminuições de intensidades ligados aos “estados de
alma” e aos desejos sexuais e de morte de Luís da Silva.
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modo, demarcar também que pode estar sugerido que a estreiteza do buraco
“abismal” (obsessão e angústia desesperantes) aumenta progressivamente conforme
o decorrer da narração. O sujeito vai se direcionando, na narrativa, a uma constante
e intensa entrada compulsiva nas sensações de amor e ódio, que são expressos na
duplicidade de seus desejos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Passar pela leitura de uma obra como o romance Angústia é passar por
aquilo que se configura como uma profunda entrada nos meandros do sofrimento
humano. É essa profunda entrada que faz com que tal peça literária seja toda
concebida a partir de fortes oscilações de intensidade, bem como pela repetição
excessiva do rompante dos afetos.
Podemos dizer, por sinal, que foram romances como este de Graciliano
Ramos que fizeram a semiótica greimasiana buscar novos meios teóricos para tratar
de questões como a manifestação das paixões no discurso. Foram obras literárias
deste tipo, ou artísticas, de um modo geral, que fizeram a semiótica, principalmente
a partir do advento de sua vertente tensiva, encabeçada principalmente por Claude
Zilberberg, também se questionar sobre as relações entre o sensível e o inteligível
nos discursos, e buscar caminhos que lidem com essas questões, a fim de aprimorar
seu ferramental teórico, esboçado e erigido desde a década de 1960.
REFERÊNCIAS
GREIMAS, A.J; FONTANILLE, J. Semiótica das Paixões: dos estados de coisa aos
estados de alma. São Paulo: Ática, 1993.
ZILBERBERG, C. Elementos de Semiótica Tensiva. Trad. de Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit
e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
com a profanação daquilo que outrora era sagrado, a cisão com as tradições, com
os costumes, com a lealdade, com o passado, e, sobretudo, com qualquer
obrigação que prendesse os pés e as mãos, qualquer compromisso que impedisse o
livre movimentar-se; tornando, assim, mais fácil o processo de exploração dessas
pessoas. A perda da identidade passa a ser parte do processo do capital.
Romper com o passado foi uma quebra com a tradição, pois, para a criação
de uma nova ordem fluida, era necessário desvincular as pessoas de suas tradições
e do mundo que as deixavam se sentir seguras, presas, ou ligadas ao passado. O
novo sistema econômico não desejava essas situações, pois, quanto mais livre as
pessoas se sentissem, melhor seria, e quanto menos fossem capazes de resolver
suas necessidades sozinhas, mais lucrativo seria. Era conveniente, então, limpar os
resíduos deixados pelo derretimento do sagrado e agora esse passado misturado
com o sagrado não passava de entulho que era preciso descartar.
de mercado:
guiam nossas ações, estas sempre ligadas à nossa vontade: “os motivos que em
geral podem mover os homens podem ser postos sob três classes superiores e bem
gerais 1) o bem próprio; 2) o sofrimento alheio; 3) o bem alheio” (SCHOPENHAUER,
2001, p. 160-161). Nossas ações estão pautadas nessas três motivações.
O primeiro modo de agir é, segundo o filósofo, o mais comum, pois visa o
nosso próprio bem-estar, mesmo quando ele repercute de maneira positiva em
outras pessoas, pois esse agir bem em alguma medida recai sobre mim e me
beneficia. Essa primeira motivação consiste no egoísmo. De um ponto de vista da
metafísica, as ações egoístas ainda estão cobertas pelo véu de Maya 35, e elas não
permitem que se enxergue o outro numa totalidade; cada um continua preso em
sua individualidade.
O segundo modo de agir, visando o sofrimento alheio, às vezes pode estar
ligado ao primeiro, mas indica ações com o objetivo de prejudicar, humilhar ou até
mesmo destruir outra pessoa, tornando o seu sofrimento mais visível e mais
prazeroso para o agente. Nesses casos, a motivação que está em jogo é a da
maldade. As ações que se baseiam na maldade são ações cruéis e perversas,
expressão da desumanidade característica da humanidade, capaz de avançar para
outras espécies de vida, na crueldade com os animais, por exemplo.
A terceira forma de agir visa o bem-estar alheio; trata-se da compaixão, a
única motivação genuinamente moral. Essa ação visa unicamente o bem alheio, sem
esperar recompensa neste mundo ou no próximo. Isso quer dizer que a compaixão
rompe, mesmo que por um breve momento, o véu das ilusões e das
individualidades e faz reconhecer o outro como si mesmo e sofrer com ele. As ações
de quem age compassivamente visam o alívio do sofrimento alheio, sem importar se
isso provoca bem-estar para si mesmo. A compaixão, segundo Schopenhauer, não
é ilusória ou fantasiosa, no processo do transporte da dor do outro para si mesmo,
mas consiste em um reconhecimento imediato, que visa amenizar o sofrimento
alheio.
talheres de prata para Jean Valjean, livrando-o de ser novamente preso. Depois
dessa atitude, o Bispo ainda dá a ele os dois castiçais e o restante da prata que
guardava. Quando o Bispo se aproxima de Jean para entregar os objetos, ele fala as
seguintes palavras:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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É possível ver essas ações que rompem o véu de Maya e levam as pessoas
a agirem de forma compassiva no dia a dia. Vemos pessoas que, mesmo vivendo
em um mundo líquido, de relações fluidas, ajudam e arriscam suas vidas para ajudar
o próximo, por razões que, como Schopenhauer diria, não são racionais. Assim,
mesmo com a nova forma de se relacionar na modernidade, a compaixão é capaz
de romper o véu de Maya, e consegue, mesmo em pequenas ações, se revelar;
consegue fazer com que as pessoas se enxerguem não como expressões individuais,
mas como uma unidade, por um curto momento de tempo, tal como Schopenhauer
identifica na sua época.
A compaixão é algo que vai além do nosso entendimento. Arriscamos
nossa vida para salvar um estranho, sentimos suas dores em um momento de
necessidade, não buscamos compreender o porquê dessa atitude e nem nos
questionamos, apenas agimos querendo evitar a dor do outro salvando-lhe a vida.
A compaixão talvez seja a expressão máxima da nossa humanidade, quando
encontramos uma abertura no véu de Maya e conseguimos contemplar a nossa
existência como ela realmente é: um mundo de dores e marcado pelo sofrimento.
Quando reconheço o outro como um eu, um organismo igualmente ao meu,
também reconheço as suas dores e tento evitá-las. Assim, a compaixão é a
expressão máxima da superação do egoísmo e funciona como um remédio, ainda
que paliativo, para o diagnóstico sociológico de Bauman.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.
INTRODUÇÃO
O poema “Nossas amarguras” faz parte da coletânea de poemas inserida na
obra Memória corporal, de Roberto Pontes. A obra foi publicada em 1982 e aborda
as memórias do corpo movido pelo amor e pelo erotismo. O texto em análise
descreve o sentimento do eu poético após o encontro amoroso. Observa-se um
sujeito repleto de amor e que enxerga o corpo amado como um jardim brotado e
florido depois da loucura e do desejo realizado. Consciente da positividade desse
momento, o eu poético chama o amor mais uma vez ainda, a fim de que esse
sentimento, vivenciado através do encontro dos corpos, seja como um mel a
dissipar toda a amargura outrora sentida.
Ciente da crise, uma crise no amor, na atualidade, parte-se de uma breve
definição desse sentimento nos dias de hoje para, em seguida, entender a crise que
o afeta. Assim, analisa-se o eu e o outro como componentes necessários para a
existência do amor e compreende-se que há entre eles um distanciamento que
provoca a angústia, a depressão, a amargura. As três colaboram para a inviabilidade
do amor, portanto precisa-se compreender cada uma, a fim de saber estancar tais
sentimentos.
O processo de superação da crise do amor e, consequentemente, do seu
impedimento é descrito de forma detalhada no poema. Nele, o eu poético mostra
como o encontro com o outro através do amor dissipa a amargura. Para isso, o eu
se utiliza do elemento erótico como uma forma de cultuar o objeto amado e
encontrar não a si, mas aquele que é desejado de fato. Com base nisso, observa-se
no poema a concretização do amor, a superação da crise e a consciência de que é
preciso ter o amor mais uma vez ainda para não voltar à crise.
A CRISE DO AMOR
De acordo com Byung-Chul Han, devido à amplitude da liberdade de
escolha, das mais variadas alternativas e ainda da “coerção de otimização”, “nos
últimos tempos tem-se propalado o fim do amor” (HAN, 2017, p. 07). Ocorre ainda
o esfriar da paixão como consequência do ato de racionalizar o amor e da expansão
dos meios tecnológicos de escolha. Contudo, para Han, o que mais profundamente
faz o amor entrar em crise é a “erosão do Outro” (Ibid., p. 07) que sufoca a
existência do amor.
Nasce, assim, um indivíduo cada vez mais narcisista que faz o outro
desaparecer. A existência do outro indivíduo serve apenas para confirmar a
existência do eu. Este busca enxergar-se naquele que é distinto, não busca algo
diferente, busca apenas a si. Para Han, isso anula a experiência erótica, resultante da
prática amorosa, visto que esta “pressupõe assimetria e exterioridade do outro”
(Ibid., p. 08). Para melhor entender a necessidade de reparar bem no diferente para
viver plenamente o erotismo, recorre-se a George Bataille. Para este autor, a prática
sexual, envolvida pelo erotismo, contribui para o crescimento do indivíduo, mas não
o crescimento pessoal e sim o impessoal:
subjectividade” (CEIA, on-line). A partir dessa definição, chega-se à ideia de que todo
indivíduo dialoga com o outro e por isso depende dele. Assim o conceito de alteridade
respeitar as diferenças. Assim, pode ocorrer um diálogo com base nas relações de
contraste, mas que visam a um crescimento de todos os envolvidos.
Ainda que Han (2017) considere o afastamento dos dois polos na atualidade, neste
trabalho, mediante a análise do poema, busca-se mostrar o contrário. Isso é possível
primeiro pela poesia. Para Octavio Paz:
como se pode observar a partir da repetição dos pronomes “teu” e “nossas” e ainda
pelo uso do modo imperativo em “vem, amor” (PONTES, 1992, p. 59). Assim, todo o
texto direciona o eu poético para o outro, mostrando a capacidade eu lírico de se
relacionar com o diferente por intermédio da poesia. É por meio dela que o poeta
mostra a necessidade da existência e do diálogo com o outro para a superação da
crise e para a realização do amor.
A concretização dessa superação e a realização do amor acontecem por via
do erotismo. Para Paz, “sem erotismo – sem forma visível que entra pelos sentidos –
não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e,
na alma, o corpo. A pessoa inteira” (PAZ, 1995, p. 25). Pelos sentidos, o eu toca o
outro e encontra seu corpo e sua alma. Por isso, o eu poético mostra-se pleno logo
após o ato amoroso.
No poema “Nossas amarguras”, é pelo erotismo que se pode ver o amor em
sua plenitude. O leitor compreende o encontro entre os dois amantes a partir do
que eles sentem após o coito, pois o poema relata os sentimentos do eu poético
logo após esse envolvimento carnal:
O corpo mostra-se cansado, mas isso é positivo como se observa a partir das
imagens criadas pelo poeta. É um corpo úmido de amor, manifestando a percepção
de que o encontro é recente, além de intenso, o que causou a umidade própria da
transpiração provocada pelo esforço dos amantes. Sobre o dorso do ser amado há
Vem, amor,
Mais uma vez ainda.
Me abre o teu sabor
de uvas matutinas (PONTES, 1992, p. 59).
Esse convite para viver outra vez a experiência erótica e amorosa confirma a
consciência do eu poético sobre a importância de enxergar o outro, afinal só assim
é possível vencer a melancolia. Depois que ocorre o entrelaçamento dos corpos, o
eu relembra com prazer a comunhão dos enamorados, descreve o êxtase em que
se encontra e conclui que o amor é como mel que apazígua a amargura dos
envolvidos na prática voluptuosa.
CONCLUSÃO
Por meio do poema “Nossas amarguras”, compreende-se que o poeta não é
controlado pelas atitudes vigentes que propagam o fim do amor, o arrefecimento
da paixão, a racionalização do sentimento e a ampliação da tecnologia de escolha.
Ele é um sujeito que reconhece a importância do outro como partícipe do processo
de construção e amadurecimento do eu. Assim, ele parte do narcisismo para o
altruísmo e, em vez de colaborar para a erosão daquele que é dessemelhante e de
sufocar a afeição, ele soluciona a crise do amor da atualidade. Ao experienciar o
outro em sua alteridade, o eu liberta ambas as partes do inferno originado pelo
narcisismo.
REFERÊNCIAS
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1994.
HAN, Byung-Chul. Agonia de Eros. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2017.
PAZ, Octavio. A chama dupla: amor e erotismo. Tradução de José Bento. Lisboa:
Assírio e Alvim, 1995.
SILVA, Kalina V. & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Contexto, 2009.
POLÍTICAS DO
AMO R
Resumo: Um dos temas mais mobilizados nas revistas Lições Bíblicas, periódico
trimestral ligado ao movimento religioso Assembleia de Deus, é o amor cristão.
Utilizada como guia didático nas Escolas Dominicais, espaço de formação cristã, as
revistas trazem textos de ensinamento aos cristãos assembleianos, buscando orientar
a vida em geral, desde a leitura da Bíblia até a forma como membros das
Assembleias de Deus devem agir e sentir. Longe de ser concebido como um
sentimento abstrato, a ideia de amor defendida nas revistas é a de uma emoção que
deve se expressar em práticas. É um amor tido como dever e que é possível de ser
ensinado e aprendido. Nesse sentido, busca-se, neste trabalho, analisar os usos do
amor cristão nas revistas Lições Bíblicas entre os anos de 1975 e 1999, período em que
esteve vigente a primeira resolução de usos e costumes das Assembleias de Deus,
documento que expressava o posicionamento da igreja com relação ao que um
cristão deveria se abster de fazer em nome da santidade.
Palavras-chave: História; emoções; religiosidade; amor.
quem ele deve ser. Por isso há números do periódico com lições específicas sobre o
amor, tendo por objetivo o mesmo que o livro de Brunelli: ensiná-lo.
No geral, a revista Lições Bíblicas é publicada trimestralmente pela Casa
Publicadora das Assembleias de Deus, editora ligada à Convenção Geral das
Assembleias de Deus do Brasil – CGADB, que reúne líderes de igrejas daquele que é
considerado o maior movimento pentecostal37 brasileiro.
Seguindo as normas e definições da CGADB, a revista é, assim, uma espécie
de manual didático voltado para aqueles que já são membros e congregados das
assembleias de Deus, dividido em treze “lições” semanais datadas e utilizado nas
Escolas Dominicais, reuniões em formato de aulas realizadas semanalmente nas
igrejas Assembleias de Deus como espaço de formação cristã assembleiana. Nesses
espaços, busca-se discutir, a partir de leituras da Bíblia, o que é ser cristão em todos
os aspectos, desde comportamento, postura, vestimenta, até os posicionamentos
diante de questões políticas e sociais e, mais que isso, a maneira como um cristão
deve sentir e se emocionar.
Dessa forma, tal periódico pode ser compreendido como um importante
lugar de poder, na medida em que é um meio de se disputar, pela palavra impressa,
imaginários, leituras de mundo e compreensões da relação com o sagrado e o
profano. A palavra impressa como um espaço de poder. Poder esse que, como
entendido por Michel Foucault (2012), não se limita a ser uma força repressiva, mas
é uma rede de relações capaz de produzir discursos, técnicas, verdades. Aqui, o
poder produz subjetividades, constrói sujeitos, molda condutas. Nessa dinâmica em
que a subjetividade é alvo de disputas, as emoções também são mobilizadas.
Assim, se o que se busca na revista Lições Bíblicas é a elaboração de
discursos que se convertam em ensinamentos e verdades sobre o que é ser cristão e
como deve ser seu agir no mundo, o amor é elemento essencial na medida em que
é definido no periódico como sendo não um “mero sentimento”, mas sim a
38 Entendo “práticas de si” como definido por Michel Foucault: “procedimentos [...] pressupostos ou
prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins [...]”. Ora, o objetivo de ensinar a amar só pode ser atingido quando o sujeito
busca conduzir a si e suas ações a partir do que lhe é indicado nessas revistas, refletindo sobre seus
sentimentos e sobre o que se é. Claro que, nesse processo em que se busca ensinar a ser, sentir e
fazer, pode haver escapatórias, desvios, adaptações, não aceitação e não adequação aos códigos
tidos como referência.
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refletindo sobre essas questões que ele compõe uma narrativa que se apropria do
amor como forma de crítica e ação social, de modo que o trabalho de construção
do “reino de amor e justiça” seja realizado em terra.
Entretanto, a Teologia da Libertação não só não é vista com bons olhos pela
liderança das Assembleias de Deus no período aqui estudado como é considerada
um “engano”, ganhando destaque, por exemplo, numa lição que tem como tema
“O Cristão e a Justiça Social”, presente em um número do ano de 1996 da revista
Lições Bíblicas:
Os adeptos desse ensino caviloso, afirmam que quando o homem tem habitação
garantida, emprego condigno, alimentação farta, educação e saúde assegurados,
ele melhora si mesmo e o seu ambiente, chega-se a Deus e pratica o real
cristianismo. ” (CPAD, 1996, 4º trimestre, p. 89).
possível questionar, assim, se o “reino de justiça e amor” que Frei Fernando de Brito
acredita ser possível de ser construído em terra é o mesmo para os cristãos
assembleianos.
A atribuição dos problemas sociais ao pecado não quer dizer, entretanto,
que se omita nos textos das revistas qualquer colocação sobre questões
relacionadas a política de Estado, governos e políticas públicas, por exemplo. Por
outro lado, é ressaltada a crença de que as autoridades humanas, embora falhas,
são instituídas por Deus, e portanto, devem ser respeitadas. Nesse sentido, atos que
vão de encontro às autoridades, desde mobilizações coletivas contra governos até
ações como greves sindicais são declaradas como impróprias para o cristão. Esse
respeito e obediência que defende-se como um dever do cristão são também
justificados pelo amor. Em lição que trata da relação entre o cristão e os governos,
há, por exemplo, a frase “obedecendo por amor” (CPAD, 1996, 4ª trimestre, p. 73),
seguida da afirmação de que “todo poder emana de Deus” (CPAD, 1996, 4ª
trimestre, p. 73). Obedecer à autoridade civil seria, assim, uma forma de demonstrar
amor à autoridade de Deus, que a teria instituído.
Tais ideias de obediência à autoridade governamental fundamentada no
amor eram também ressaltadas em números publicados na década de 1970,
período em que Frei Fernando de Brito, assim como outros religiosos que se
opunham à ditadura, usava do amor cristão para justificar seu posicionamento e sua
resistência à tortura. Ora, nessa década, o grupo dirigente das Assembleias de Deus
no Brasil mantinha uma acentuada preocupação com questões morais, de
sexualidade e relacionadas aos usos do corpo. Tais preocupações encontravam, por
vezes, coro nos discursos e ações da ditadura através da censura, por exemplo.
Há de se considerar que no ano 1975 foi definida a primeira resolução de
usos e costumes das Assembleias de Deus, defendendo a abstenção daquilo que,
para aquele grupo, representava uma modernidade ameaçadora. 39 Em nome da
39 Na resolução defendia-se, por exemplo, a abstenção do uso de televisões e de bebidas alcóolicas,
Além disso, era afirmado que as mulheres não deveriam usar maquiagem, vestir roupas consideradas
“masculinas”, alterar as sobrancelhas ou cortar o cabelo. Os homens não deveriam manter os cabelos
cortados e não usar roupas consideradas “femininas”.
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40 Essa abertura se expressa, por exemplo, na nova resolução de usos e costumes, definida em 1999
como uma atualização da anterior. Nesta, boa parte das recomendações de abstenção são alteradas
para exortações de cuidado, cautela.
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de acordo com a doutrina desse grupo e com o que se acredita ser a vontade divina
foram apresentados como sendo maneiras de corromper um amor que também é
sagrado. No caso da segunda revista, esse amor é chamado de “carnal” e
deslegitimado como sendo um amor mundano, humano, imperfeito.
A maneira como o amor é defendido e disputado por esse grupo em um
periódico de ensinamento, ou a forma pela qual se procura ensinar a amar, pode
muito dizer sobre suas ações e aquilo que se defende em nome do amor. Partindo
disso, pode-se aqui questionar até que ponto podem ser reconhecidos por esse
grupo religioso outras definições e usos do amor. Teria efeito mobilizar a ideia de
amor cristão para buscar legitimar relações e práticas que não correspondem ao
que tal grupo compreende ser o amor? Pode, para esse grupo, o amor ter e ser
plural?
REFERÊNCIAS
Fontes:
BRITO, Fernando de (Frei). Cartas da Prisão e do Sítio. Fortaleza: Instituto Frei Tito de
Alencar. Expressão Gráfica, 2010.
Bibliografia:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. São Paulo: Paz e
Terra, 2014
PAULA, Wesley Américo Bergamin Granado de. “Assembleia de Deus Avante Vai!?”:
transformações e tensões na construção da identidade da igreja evangélica
Assembleia de Deus no Brasil (1911-1980). Dissertação (Mestrado em História Social) -
Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-graduação em História Social.
Londrina, 2013
PEDRO, Joana Maria. O Feminismo de “segunda onda”: corpo, prazer e trabalho. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das mulheres no Brasil.
Editora Contexto, 2012.
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da Beleza no Brasil. São Paulo: Contexto,
2014.
do qual o amor, por si só, se torna razão da sua existência — reage contra a ideia
de emenda do desvio (ou defeito), elemento que, embora marginal, é constitutivo da
pluridimensionalidade do indivíduo; em seu devir ontológico, o indivíduo não chega
a uma “razão” definitiva e convergente. Logo, o propósito de uma superação, não
obstante um risco, torna-se algo mais do que ficção.
Reforçando o argumento de Kosik de que essa possibilidade se equilibra
quando o indivíduo não pondera a sua existência como consequência irrevogável
entre duas extremidades absolutas, um princípio e um fim, o “furto” acontece
porque provoca a distopia e torna o seu início único, e a singularidade da “ave”
motiva a morte como uma necessidade a evitar, porém, a dissolução. De qualquer
um dos modos, projetando a própria existência como fundamento de um mundo
significativo, consegue o indivíduo superar a inconstância da sua finitude, como uma
argila em processo e denegação da forma. Uma ausência concertando-se na
corporificação de uma presença desassossegada.
Em ambos os momentos vive-se o amor no limite — um amor que não é
belo nem misterioso; que não é uma realidade transparente nem reflexiva. É antes
uma distorção, sem existência numa superestrutura dominante e dominada pela
forma de contornos percetíveis e inequívocos. Disfuncional, o amor entendido assim
problematiza o sistema e impõe-se como uma linha de fuga, ao explorar a
invulgaridade. Quando na divergência os corpos se movimentam numa tensão de
copulação, mesmo que apenas pressentida, o que expressam desmancha o limite
clássico da linguagem referencial que, na impercetibilidade dos corpos impuros que
se foram adicionando ou negando em partes, faz sobressair essa “matéria intensa”
não corporal. Nesse impulso, a linguagem obriga-se a perspetivar os próprios limites
de reconhecimento, de modo a libertar-se e a permitir a ruína das formas (sem-
forma) demoradas e pausadas. Quanto mais se distinguem, mais se pressupõem,
convergindo na matéria de um corpo desterritorializado, sublinhado por
intensidades e ameaçando o lugar comum.
Justamente pelas dissemelhanças logra-se uma linguagem concordante, o
sublinha a linha “entre” algo em que ambos se encontram desde sempre. A mulher-
mãe vai abrindo a consciência para aceitar o outro e entender a própria alteridade
— pois será também um outro —, até a dissolução, in-corporada na rendição à
desigualdade constitutiva da desidentificação, condição de todo o indivíduo. Torna-
se percetível a relação de desumanidade que protege cada um em seu casulo, i. e.,
a aceitação do outro não se satisfaz como amor, mas como dolorosa necessidade.
Nesse sentido, ao não determinar um destino que pressupõe uma ligação a um
início, liberta-se. Se não há pressuposição, o outro constitui-se igualmente como
uma possibilidade de si, confirmando que “a fecundidade não é causa nem
dominação” (LEVINAS, 1988, p. 256). Sob este aspeto, o indivíduo “produz-se como
múltiplo e cindido em mesmo e em outro” (LEVINAS, 1988, p. 247), transcendendo-
se e ao limite da sua natureza, e alcançando finalmente a verdade da existência e a
própria liberdade. Assim, mais que uma cessação, está no outro — corpo em
condição impercetível, ainda — a sua fuga: “os olhos [...] volvidos adentro de seu
corpo, [...] cegos [...] mas devolvendo-lhe o que fora visto [...] Olhos para ver ainda o
jamais visto, o suspeitado mundo do lado de dentro da pele de imensos líquidos”
(COSTA, 1966, p. 74).
Tal como a ave exerce o seu domínio sobre a mulher, pela insubordinação,
o filho tem o mesmo efeito sobre a mãe, no confronto com o próprio eu que é um
estranho a si-mesmo, não sendo possível nesse reconhecimento o regresso. Quem
espera observa o próprio corpo num movimento de involução, enrolando-se para
dentro de si e tocando-se num estado de pura perceção da sua natureza: “perder
ela sua dor viva para tornar-se presa [...] de uma dor outra [...] como se fora parcela
do início do que existe [...] nada do que era seu lhe ficara senão aquele peso do
testemunho e da reflexão” (COSTA, 1966, p. 74).
Por seu lado, n’“A ave rara”, a ordem, determinada pela semelhança, será
um passo natural a justificar a emergência de um devir-animal. Na sua causa está
precisamente a superestrutura que impede a correspondência entre heterogéneos,
logo o processo de individuação. No mesmo sentido, obstaculiza a “circulação de
Assim, ela
quis fazê-lo voar [...] lançou-o ao ar, uma [...] e outra vez [...] a uma
velocidade de vertigem [...] O pássaro levantava-se lançado, caía,
arquejava. E começou a defender-se [...] bicava-a e coxeava já. Caiu-lhe
a distorção pode ser devida, fundamenta esse mesmo desvio. O amor pode ser
vivido como uma intenção alterada, suportando para o efeito signos manipulados
— a dor ou a morte, nomeadamente. A morte corrige e justifica o recalcamento; o
corte que provoca a dor desloca a razão.
Ambos distinguem pelas extremidades corpos (quando “Roubados os
limites de sua carne” (COSTA, 1994, p. 74)). E ambos revelam o in-comum desses
corpos
Tanto queria ser com seu corpo, não aceitar essa dor que se desconhece
[...] que abandona o lugar que habita para [...] ser [...] o protesto dos
condenados à não identidade, à explosão e à dissolução no múltiplo, esse
travo insípido da morte que é ser apenas [...] a única chaga do mundo
(COSTA, 1994, pp. 63-64).
REFERÊNCIAS
COSTA, Maria Velho da. O lugar comum. Lisboa: Morais Editora, 1966.
COSTA, Maria Velho da; COELHO, Teresa Dias. Dores. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1994.
amor seja possível. Pois o exílio não é apenas a questão de um momento na vida
daquele que se exila, é algo que deve permanecer em sua vida, por juramento à sua
nova terra e seu novo amor, e não se pode nunca mais voltar à terra de origem e
tão pouco amá-la ou amar o que amava nela, sob pena da hospitalidade dada a ele
ser questionada, e novamente uma hostilidade se fazer presente. Ou seja, é preciso
se submeter ao direito e dever de quem hospeda e quem o ama agora caso queira
continuar morando em sua casa, ser seu ou sua na-morada. É preciso reprimir o
amor passado caso queira viver um novo amor, pois qualquer manifestação do
amor antigo, ou qualquer tentativa de se resgatar o amor antigo por outra terra,
levará à hostilidade e, por ventura, nada de hospitalidade.
Se o amor e a hospitalidade são condicionais, neste caso, é porque implica
uma relação de troca a partir da qual uma identidade se torna possível. Existe um
limite para a diferença que é a oposição, pois se os opostos se atraem segundo o
dito, eles não por menos se repelem quando se tornam idênticos, isto é, quando se
produz uma identidade entre eles, quando se busca desfazer a oposição como
limite da diferença entre eles, quando os opostos moram na mesma casa e um força
o outro a ser idêntico a si, sobretudo, quando um força o outro a abandonar a si
mesmo no que diz respeito a toda sua vida passada, exilar-se de seu mais profundo
íntimo. E, deste modo, um se obriga a falar a língua do outro para que um e outro
permaneçam juntos em hospitalidade, morando na mesma terra, na mesma casa,
casados.
Falar a língua do outro, o monolinguismo do outro, é a primeira condição da
hospitalidade e do amor condicional, mas também é aquilo que coloca em questão
a própria hospitalidade e o amor na medida em que se pressupõe que:
única língua.” (DERRIDA, 2016, p. 31. Grifos do autor.) Pois como esquecer no beijo
sua língua? Sua própria língua? Como ser compreendido plenamente pelo outro em
sua língua, falar a língua do outro plenamente?
Se há uma unicidade no amor e na língua quando duas pessoas se amam, se
falam e se beijam num monolinguismo do outro, este é pressuposto a partir da
unicidade do ser com sua própria língua, com sua identidade e, mais ainda, sua
ipseidade que:
não se reduz a uma capacidade abstracta para dizer ‘eu’, que terá sempre
precedido. [E que] Significa talvez, mais originário do que o ‘eu’, numa
cadeia em que o ‘pse’ de ipse não se deixa mais dissociar do poder, da
maestria ou da soberania do hospes (refiro-me aqui à cadeia semântica
que trabalha no corpo a hospitalidade tanto quanto a hostilidade - hostis,
hospes, hosti-pet, posis, despotes, potere, potis sum, possum, pote est,
potest, pot sedere, possidere, compos, etc.) (DERRIDA, 2016, pp. 39-40.
Grifos do autor.)
REFERÊNCIAS
Resumo: O mítico amor que acompanha a profissão docente traz em seu bojo
inefáveis deleites e agruras e aflições bem reais. Espera-se dos docentes uma devoção
que beira a abnegação sacerdotal ou a dedicação familiar; seja devido à imagem
legada pelos jesuítas ou ao retrato das “tias” bem-comportadas, o amor pedagógico
está acima de todas as demandas do cotidiano, superando questões salariais, a busca
por melhores condições de trabalho ou a valorização da carreira. Contudo, em troca
da robusta solidez do fardo que impõe, este amor oferece recompensas tão etéreas
que se desvanecem no ar, sem deixar vestígios. Este texto tenciona debruçar-se de
forma crítica sobre a construção social do amor pedagógico e seus efeitos
precarizantes para a atuação docente.
Palavras-chave: autoimagem docente; desvalorização da docência; imagens sociais
do professor; precarização do trabalho docente.
INTRODUÇÃO
Somente um amor incompleto pode ser romântico.
(Woody Allen)
Diz o velho mito que, enciumada das atenções recebidas pela princesa
Psiquê, enquanto seus templos esvaziavam, Vênus incumbiu seu filho Cupido de
feri-la com suas setas mágicas, para que se visse perdida de amores pelo mais
repulsivo dos homens – uma vingança que não carece de ironia, haja vista que a
própria deusa era casada com o coxo e disforme Vulcano. Mas, volta-se o feitiço
contra o feiticeiro: Cupido se esgueira silenciosamente pelo quarto de Psiquê, com
uma flecha ajustada em seu arco; contudo, capturado num instante fugaz pela
beleza hipnótica de seu alvo, acaba ferindo a própria perna, quando a beldade,
ainda em seu sono, esbarra-lhe a mira. O deus vê-se preso por seus artifícios,
DO JESUÍTA À TIA
O senso comum pedagógico brasileiro é afeito à ideia de que a educação é
uma atividade ideológica e apaixonada – ora vocação jesuítica, a ser exercida com a
devoção e a ataraxia de um monge, ora paixão militante de quem quer doutrinar a
juventude, como muito se vem acusando os professores de fazer, notadamente das
Lado a lado com a visão clerical, do professor “jesuíta”, temos a “tia”, apodo
carinhoso dado à professora de primeiras letras e introdutora da criança no mundo
da cultura escolar, cujo título “afetivo” escamoteia as dificuldades que cercam o
ofício. Nas palavras de Paulo Freire,
Identificar professora com tia, o que foi e vem sendo ainda enfatizado,
sobretudo na rede privada em todo o país, é quase como proclamar que
professoras, como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se,
não devem fazer greve. Quem já viu dez mil “tias” fazendo greve,
sacrificando seus sobrinhos, prejudicando-os no seu aprendizado? E essa
ideologia que toma o protesto necessário da professora como
manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de
tias, se constitui como ponto central em que se apoia grande parte das
famílias com filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias
de crianças de escolas públicas. (FREIRE, 1997, p. 9-10).
MORRENDO DE AMOR
Há que se considerar que, enquanto categoria, os professores mais têm a
perder que ganhar, quando o “amor” entra nos cálculos do exercício profissional.
Tânia Zagury, pesquisadora carioca com experiência em educação, antes da
publicação de seu livro, O professor refém (2006), escreve à revista Nova Escola que
o mito de que o afeto e o carinho são imprescindíveis à educação aprisiona o
educador – “Esse mito acaba dando a entender que um professor que não faz
brincadeiras, mesmo dominando os conteúdos, não é competente. Se ele é frio nas
relações pessoais, é rotulado de inapto 42”. As exigências afetivas da profissão, além
de porem em xeque a própria competência, escamoteiam outros fatores de
precarização do trabalho docente, a começar pela remuneração. Dentre as
profissões de nível superior, ela é a mais mal remunerada – até junho de 2018,
professores de escolas públicas ganhavam, em média, 74,8% do que ganham
profissionais assalariados de outras áreas, ou seja, “cerca de 25% a menos, de
acordo com o relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional
de Educação (PNE)43”.
Os problemas não terminam por aí: as condições precárias de trabalho da
maioria dos docentes e as relações tensas em sala de aula fazem com que muitos
deles sejam afetados pela síndrome de Burnout – uma doença ocupacional
caracterizada por extremo esgotamento físico e emocional:
pedagógico não tivesse o peso e a consistência dos sonhos. Talvez, a solução para
os professores seja dar a seus amores o peso da realidade, para vivê-los plenamente
(eternos... enquanto duram!), rir seu riso e derramar seu pranto, como diria o poeta,
no mundo real – porque amores míticos podem ser tudo, menos consumados. E
conduzem os amantes àquela frustração amorosa, tão letal e comum ao Mal de
Século – os ultrarromânticos. Em prol da sanidade mental de nossos docentes,
menos Eros e mais Allen.
REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’água, 1997.
GENTILE, Paola. Tania Zagury: “O professor precisa ser ouvido”. Nova Escola.
Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/914/tania-zaguryo-professor-
precisa-ser-ouvido>. Acesso em 2 abr. 2019.
LARROYO, Francisco. História geral da pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
MOISÉS. Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix,
2004.
SOUZA, Daiane. Burnout: síndrome afeta mais de 15% dos docentes. Portal do
Professor. Disponível em:
<http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=38>.
Acesso em 2 abr. 2019.
VITORINO, Fabrício. Brasil cai para último lugar no ranking de status do professor. G1.
Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/11/08/brasil-cai-para-
ultimo-lugar-no-ranking-de-status-do-professor.ghtml>. Acesso em 2 abr. 2019.
Resumo: Este trabalho objetiva fazer uma análise residual da poesia de Gilka
Machado, demonstrando que seus poemas apresentam remanescências do
imaginário erótico cristão, difundido largamente na Idade Média e marcado pelo
conflito angustiante entre a proibição e a transgressão, sobretudo no que se referia à
figura feminina. Para realizar tal estudo comparativo, tomaremos como base a Teoria
da Residualidade (PONTES, 1999) e o poema “Eu sinto que nasci para o pecado”, da
poetisa em questão. Assim, demonstraremos de que forma a obra de Gilka Machado
revela resíduos do imaginário erótico cristão-medieval. Além disso, evidenciaremos
que, apesar do conflito, a poesia gilkiana se revela subversiva, insubmissa e libertária,
na medida em que representa a mulher como sujeito do prazer.
Palavras-chave: Erotismo; Gilka Machado; Libertação; Residualidade.
Tal conflito já pode ser encontrado na carta do apóstolo Paulo aos cristãos
de Roma:
muitas mulheres escritoras lutaram pela liberdade de seu gênero, mas não foram
ouvidas. Na sociedade ainda misógina em que vivemos, em que as mulheres são
insistentemente encaradas como objetos sexuais para usufruto do prazer masculino,
o estudo de uma poesia que apresenta a mulher como sujeito do desejo mostra-se
por si só um grito de resistência.
Assim, a partir das observações feitas e do poema analisado a título de
exemplificação, verificamos que a poesia gilkiana apresenta resíduos do imaginário
erótico cristão-medieval, envolto pelo conflito entre o prazer e a culpa, entre o
pecado e a transgressão, entre os interditos sociais e a ruptura das regras. Esses
elementos remanescentes do medievo não se encontram na poesia do século XX,
de que a obra de Gilka Machado é exemplar magnânimo, tais quais apareciam na
Idade Média, pois, afinal, estamos tratando de um novo contexto temporal e
espacial. Contudo, é nítida a presença do medievo adaptada à nova realidade que o
recebe, processo esse denominado cristalização pela Teoria da Residualidade.
Portanto, constatamos que nossa pesquisa traz uma discussão de gênero
deveras importante – e, portanto, política –, pois, na sociedade ainda misógina de
hoje, não se pode deixar de falar de uma mulher que desafiou os padrões da época
para defender a sua liberdade de sentir prazer e dizer que o sente, qual sujeito,
embora mantivesse o desejo de forma conflituosa dentro de si, o que se considera
neste trabalho como um elemento residualmente medieval, por ter sido a Idade
Média o período que mais difundiu a culpa e a noção de pecado próprias do
cristianismo. De toda forma, Gilka Machado, por meio de sua poesia erótica, pregou
a libertação feminina, sendo essa, assim, uma discussão bastante atual. Logo, faz-se
necessário revelar essa voz e possibilitar-lhe o grito insubmisso presente em seus
textos.
REFERÊNCIAS
MACHADO, Gilka. Poesia completa. Org. Jamyle Rkain. São Paulo: V. de Moura
Mendonça – Livros, 2017 (Selo Demônio Negro).
PAES, José Paulo. Erotismo e poesia: dos gregos aos surrealistas. In: .
(Org.). Poesia erótica em tradução. Seleção, tradução, introdução e notas de José
Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 14-28.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. São
Paulo: Siciliano, 1994.
Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. São Paulo: Associação Torre de
Vigia de Bíblias e Tratados, 2015.
Edgard Patrício
Universidade Federal do Ceará
Resumo: Demitri Túlio iniciou em perfil pessoal na rede social Instagram “ínfimas
reportagens afetivas sobre o Cocó”, segundo publicação de 2014. Iniciando em
linguagem epistolar, unindo fotos e vídeos de pássaros, outros bichos, da mata e de
ocupantes da floresta, o jornalista embrenha-se em uma parte da cidade que, muitas
vezes, pode parecer invisível aos habitantes. Este artigo busca investigar como se
constrói a narrativa de Demitri e como reportagem afetiva dele se aproxima e se
distancia da reportagem tradicional e da multimídia. A pesquisa aponta como se
constrói esse afeto (BECKETT E DEUZE, 2016; MEDINA, 2008; PAPACHARISSI E
OLIVEIRA, 2012) na produção do jornalista e assegura o Instagram como plataforma
de narrativa diversa.
Palavras-chave: Jornalismo; reportagem; afeto.
INTRODUÇÃO
Em julho de 2013, cerca de 50 manifestantes decidiram acampar na área
urbana do Parque do Cocó, em Fortaleza. O clima era de tensão. O quarto maior
parque urbano da América Latina poderia perder árvores nativas por conta das
obras de viadutos no cruzamento das avenidas Engenheiro Santana Júnior e
Antônio Sales, na área nobre da cidade. À época, o movimento #OcupeCocó, como
ficou conhecido, gerou polêmica. De um lado, vozes que bradavam o afeto pelo
Parque e resistiam à perda de mais áreas verdes na cidade, que vai se tornando
edificada. Do outro, o poder público alegava a necessidade da construção de mais
vias para desafogar o trânsito da região, motivo de queixa de parte da população.
No meio dos argumentos de quem era contra ou a favor da derrubada de
93 árvores, a imprensa. Com olhos e ouvidos atentos, um repórter específico já se
debruçava sobre a situação do Cocó desde 2007. Demitri Túlio, repórter especial do
jornalístico no O Povo, periódico que completa 91 anos em 2019, iniciou, em seu perfil pessoal na
rede social Instagram, “ínfimas reportagens afetivas sobre o Cocó”, segundo publicação dele no dia
1º de janeiro de 2014. O aplicativo Instagram foi criado em 2010 pelo brasileiro Mike Krieger e por
Kevin Systrom. Empresas de jornalismo têm explorado as potencialidades do aplicativo para
dinamizar a difusão de conteúdo e interagir com os leitores. No aplicativo Instagram, usufruem das
potencialidades do feed (linha do tempo) e das stories (recurso do aplicativo para postagens com
afetivos sem uma interação face a face com o seguidor? Qual a importância do
testemunho do @demitritulio na contrução desse afeto?
AFETO NO JORNALISMO
Para investigarmos a reportagem afetiva de Demitri Tulio, é necessário
desbravar em outras áreas, para além da Comunicação Social, o próprio conceito de
afeto. Na semântica do pathos grego e na da “passio” romana, indicava-se uma
proximidade à subjetividade e oposição à razão. Platão, Aristóteles, Santo
Agostinho, Pascal, Espinoza, Kant, Deleuze, Damasio são alguns dos que refletem
sobre a questão do afeto em planos como mítico, religioso, ético, político, filosófico,
poético. Neste trabalho, porém, atenho-me àqueles que constroem bases para que
o debate se estenda ao campo da comunicação.
48 As journalism and society change, emotion is becoming a much more important dynamic in how
news is produced and consumed. Emphasizing emotion as the key redefines the classic idea of
journalistic objectivity - indeed, it is reshaping the idea of news itself. That matters because journalism
has an increasingly significant role in our lives as information, data, and social media become more
ubiquitous and more influential. We are drowning in a sea of stories about our world. There is a daily
flood of news online combined with the traditional media that is bigger than ever before, despite the
business model crisis for some parts of the industry. News consumers have more access, more easily
to more journalism than ever before.
49 In this manner, affective and ambient news streams might not be perceived as journalistic
substitutes, but rather, as alternatives to existing journalistic traditions. Affect, of course, was not
always absent from traditional news reporting, and it still is variably present in more partisan
paradigms of journalism. The evolution of neutrality as a dominant value in western news paradigms
has marginalized affect in news, primarily as a result of commercial concerns. Organically generated
news feeds may be freed from commercial concerns and thus more inclusive of affective expressions.
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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Hashtags, for instance, if understood as frames for naming covered events, are both attempts to
claim power by cognitively characterizing an event and are simultaneously inviting of affective
language. The present analysis is indicative of news values that were prominent during the events of
the January 25th uprisings. Further work could consider traditional reporting and direct indications
from authors of tweets to attain a comprehensive understanding of news values on Twitter.
(PAPACHARISSI E OLIVEIRA, 2012, p. 278)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
179
REFERÊNCIAS
BECKETT, C.; DEUZE, M. On the role of emotion in the future of journalism. Social
Media + Society July-September 2016: 1–6.
MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Luiz Gonzaga Motta. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2013.
PEBART, Peter Pál. Poderíamos partir de Espinosa. In: SAADI, Fátima; GARCIA, Silvana
(Org.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú
Cultural, 2008.p. 32-37.
Frank Ribard
Universidade Federal do Ceará
Mas
tenho amor para dar às mãos-cheias.
E
tenho no coração
Eu!
Homem qualquer
cidadão de uma nação que ainda não existe.
(José Craveirinha)
50 Na luta contra o colonialismo português em África, a literatura foi uma importante arma de
combate. Assumindo uma voz coletiva, a literatura exerce um papel político de projeção de um
projeto de construção de uma unidade nacional que se opõe à desestruturação e à fragmentação
social fomentadas pelos meios de produção do colonialismo. José Craveirinha foi uma dessas
principais vozes em Moçambique. Iniciou a sua carreira como jornalista no jornal "O Brado Africano",
importante veículo de imprensa de Moçambique. Em seus textos literários, Craveirinha denunciava o
descontentamento de todos os africanos submetidos ao regime colonial segregador e violento. O
escritor, nascido em 1922 e falecido em 2003, foi o primeiro africano a vencer o Prêmio Camões.
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
182
nacional. A Praça dos Heróis, inaugurada em 1977, foi construída para ser um
monumento de reverência à memória dos mortos. No local, durante um comício
popular, o então presidente Samora Machel anunciou a nacionalização de todos os
prédios de rendimento, edifícios que haviam sido construídos pelos portugueses
com a finalidade de arrendamento. Na Praça dos Heróis, estão enterrados os restos
mortais de Samora Machel52 e de Eduardo Chivambo Mondlane53, primeiro
presidente da Frelimo, ambos tidos como heróis nacionais de Moçambique.
Reinhart Koselleck (2011, p. 67), no livro Modernidad, culto a la muerte y
memoria nacional, diz que os monumentos erguidos em homenagens aos mortos
em situação de guerra e conflitos servem mais do que para manter viva a memória
deles. Segundo ele, em primeiro lugar, há um reconhecimento no sentido concreto,
na medida em que os mortos são lembrados como heróis, vítimas, mártires,
vencedores (eventualmente, como vencidos), defensores da honra, da fidelidade
e/ou protetores da pátria, da humanidade, da justiça, da liberdade. “Em segundo
lugar, a los observadores supervivientes se les hace uma propuesta de identidad
ante la que deben o tienen que adoptar uma conducta”.
Eduardo Mondlane, nas referências feitas ainda hoje pela Frelimo e por
muitos moçambicanos, é lembrado como o “arquiteto da unidade nacional”. Na
data de sua morte, 3 de fevereiro, foi instituído o Dia dos Heróis Moçambicanos, em
homenagem a todos os mortos durante a luta de libertação. Mondlane virou o
símbolo da construção de Moçambique livre e “assim termina por ser interiorizado
em cada moçambicano e para além das vulnerabilidades destes”. (MENESES, 2015,
p. 17).
55 A imposição da língua portuguesa e da religião católica foi usada por Portugal como uma
ferramenta ideológica e de transmissão de valores culturais em suas colônias. Moçambique é um país
linguisticamente e religiosamente heterogênio. A constituição de 1975, a primeira pós-colonial, não se
refere à questão das línguas, ficando subtendido que o português era a língua oficial. Apenas a
constituição de 2004, embora mantenha o português como língua oficial, explicita que “o Estado
valoriza as línguas nacionais como patrimônio cultural e educacional e promove seu desenvolvimento
e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade cultural”.
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
189
REFERÊNCIAS
CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução: Maria Leticia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2011.
FERRO, Marc. O ressentimento na História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Agir,
2009.
MACAGNO, Lorenzo. Fragmentos de uma imaginação nacional. Rev. bras. Ci. Soc.
vol.24 no.70 São Paulo June 2009. Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-69092009000200002. Acesso: 29/04/2019.
PIMENTEL, Irene Flunser. A história da PIDE. Lisboa: Círculo de Leitores, Temas &
Debates, 2007. Reimpresso em fevereiro de 2016.
ideias semelhantes às
expostas aqui. Noto a
opiniões56.
58 Carta enviada do Rio de Janeiro, em 25 de novembro, para São Paulo, onde residia Bizzarri. A
maioria das correspondências foram publicadas na edição que aqui utilizamos: ROSA, João
Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. – 3. Ed.
– Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003.
59 Rosa percorre cerca de 240 km, a cavalo, em percurso que sai de Três Marias, na Região do Rio
São Francisco, na fazenda Sirga, indo até Araçaí, na fazenda São Francisco. A participação de Rosa foi
articulada pelo primo Chico Moreira, dono das duas fazendas. O convívio e principalmente as
anotações de viagem são as principais motivações para participação de Rosa na viagem. Durante
todo o percurso, Rosa está de posse de suas cadernetas, penduradas ao pescoço enquanto cavalga.
Assim, produz uma gama de anotações, relacionadas a assuntos e temas diversos, a partir das
conversas dos vaqueiros, da paisagem observada, das sensações do escritor e do que é manifestado
em grupo a cada momento da viagem. As anotações serão constantemente revisitadas pelo escritor,
com os repertórios trabalhados principalmente na composição das novelas de Corpo de Baile. A
partir dos manuscritos, Rosa elabora também datiloscritos, em um constante processo de acréscimos
e reescritas, atuando em uma coleção reunindo escrituras que, posta em movimento nas tramas, sua
elaboração, passa a se relacionar diretamente com o corpo literário. Esse trabalho de linguagem,
com a “massa de documentação” e a matéria artística, nos mostra o artista como pesquisador
criativo, a partir da importância da viagem, desencadeadora e produtora de sentidos.
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múltiplos lugares que ultrapassam essa relação entre esse personagem infantil e o
escritor.
Tocar a infância de Rosa, sobreposta aos lugares do conjunto novelístico,
neles embaralhada, permite que se perceba – e se imagine – a presença de um
corpus de escrita que estava ao lado de Guimarães Rosa em seus primeiros anos de
vida, como lugar do qual ele não necessariamente participava plenamente,
utilizando no trabalho de escrita que, também entre lacunas, vivências e memórias,
vai gerar uma estranha posse, inscrita como presença do que Rosa quer como seu,
naquilo que com ele irá compor o corpo de escrita, com os outros que o artista
escolhe para “seus” próximos. Nesse erótico que é busca de vozes, emerge no
literário um indagar permanente que se realiza como uma dimensão de sertão
tecido com a inserção no corpo narrativo de lugares de inquietude, aquilo que se
considera abjeto, o estranho que fora expelido de um ideal asséptico de sertão. Essa
experiência outra de sertão concretiza-se no livro com o retorno, como atenta Paulo
Rónai, de “personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social
ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas,
capangas, vaqueiros”. (ROSA, 2001c, p. 18) Como observa o crítico, “eles é que
formam o Corpo de Baile num teatro em que não há separação entre palco e
plateia”. (ROSA, op. cit. idem)
Nessa perspectiva estética, a novela Buriti torna-se ápice da construção de
Corpo de Baile como jogo de sedução erótica, que se concretiza corporalmente
com o pronunciar de vozes, externado no permanente desejo entre os personagens.
É o que se lê no corpo erótico falado entre o fazendeiro Liodoro e a citadina
Lalinha, na brincadeira corporal dos personagens, que se inscreve como ação da
escrita.
REFERÊNCIAS
COSTA, Ana Luíza Martins. Via e viagens: a elaboração de Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas. In: COSTA, Ana Luíza Marins; GALVÃO, Walnice. São Paulo,
Instituto Moreira Sales, 2006, p.187-235.
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
SOARES, Claudia Campos. Considerações sobre Corpo de Baile. In: Revista Itinerário,
n. 25 Araraquara, 2007, p. 39-64.
Resumo: Venustério é o neologismo criado para denominar as celas para visita íntima
das mulheres aprisionadas no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura
Costa, criada em meados de 1990, duas décadas após a inauguração da
penitenciária feminina cearense ocorrida em 1974. O hiato temporal para a
institucionalização do encontro íntimo é o mote para o trocadilho "Vênus estéril", que,
utilizado como título, tem a intenção de ser uma palavra-chave da reflexão proposta,
que objetiva, a partir de dialogo interdisciplinar com as fontes – prontuários prisionais
e entrevistas –, refletir sobre as relações de poder que buscavam normatizar os
corpos de mulheres criminalizadas reforçando espaços sociais adequados ao gênero
feminino.
Palavras-chave: Gênero; sexualidades; mulher; prisão.
INTRODUÇÃO
O primeiro presídio feminino cearense, inaugurado sob a gestão do coronel
e governador César Cals de Oliveira Filho em agosto de 1974, assentou sua estrutura
disciplinar em prédio que abrigara anteriormente uma instituição religiosa. 60 O
espaço – cuja vocação monasterial se perpetuava nos símbolos religiosos
espalhados em pátios; nos muros baixos outrora criados para isolar mulheres do
mundo exterior e não para impedi-las de ter acesso às ruas; nas referências em
relatórios sociais utilizando a frequência a encontros religiosos como sintoma de
recuperação e cura moral; nos cursos voltados para o espaço doméstico como
corte-costura, culinária e bordado; na ausência de creche para os bebês das internas
e de espaço institucional para visita íntima – sinalizava uma relação de tensão que
60 O Estado alugou a ala sul do conglomerado de prédios que pertenciam à Congregação Bom
Pastor d'Angers, onde funcionava também Instituto Bom Pastor. Localizada na Avenida Filomeno
Gomes, nº 110, bairro Jacarecanga, região centro-oeste da capital, a instituição acolheu mulheres em
situação social vulnerável, funcionando também como "[...]escola para a educação de jovens que
necessitavam de um internato para corrigir comportamentos não condizentes com a sociedade da
época." (VASCONCELOS, 2014, p.47). Para saber mais sobre a Congregação Bom Pastor d'Angers e
sua atuação como instituição total junto a mulheres criminalizadas ver ANDRADE, 2011 e ARTUR, 2017
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61 "O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais
simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de 'dominação masculina’ ou
de opressão das mulheres" (DELPHY, 2009, p.173).
62 Observamos que nos primeiros anos de funcionamento do IPFDAMC, o relatório social poderia
ser elaborado por outro elemento do corpo administrativo do presídio, não ficando exclusivamente a
cargo da assistente social, o que nos permite supor que o saber para lidar com mulheres no sistema
prisional estava em construção. Mesmo havendo no estado do Ceará o encarceramento de mulheres
criminalizadas anterior à inauguração do presídio feminino, eram prisões mistas ou espaços
correcionais religiosos, portanto, o IPFDAMC foi a primeira penitenciária feminina, onde corpo
administrativo – laico –, voltava-se exclusivamente para a mulher.
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63 "[...] a acusada e vítima, desde que se viram pela primeira vez, não se separaram mais, viviam
juntas; que, neste relacionamento, a acusada e vítima praticavam atos de natureza sexual, uma com a
outra[...]" (VERA...1974, p. 07).
64 AAIPF – SAP. Prontuário nº 08. Carta de Guia. Vara Única das Execuções Penais. Fortaleza, 28 abr.
1975, f.1-2. Optamos por sinalizar sua possível orientação sexual – heterossexual – por entendermos
que o sujeito se percebia como homem a julgar sua performatividade de gênero masculino
sinalizada, não apenas pela descrição "mulher que parecia homem", mas também pelo crime que
este indivíduo respondia – o Art. 214: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (BRASIL,
1940).
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CONCLUSÃO
Buscamos compreender as relações de poder que perpassavam o cotidiano
de mulheres criminalizadas a partir da perspectiva de gênero, onde dispositivos
disciplinares atuavam sobre seus corpos com a intenção de esquadrinhar,
regularizar, normatizar suas funções biológicas, como a maternidade e seus desejos.
As táticas desta instituição total65, que procuravam mortificar o eu de mulheres
criminalizadas utilizando-se de rotina rigorosa com o objetivo de reforçar o papel de
docilidade e submissão adequado ao feminino, esbarraram em indivíduos distantes
do ideal feminino de recato, docilidade, subserviência e sujeição ao homem (pai,
irmão ou marido). As mulheres aprisionadas no IPFDAMC, que, em sua maioria,
possuíam autonomia financeira (mesmo que precária ou delituosa), circulavam pelas
ruas desde meninas em busca do sustento da família. Quando adultas,
experimentavam uma certa liberdade no meio social onde viviam – iam a festas,
bebiam, fumavam, riam e falavam alto, não se mantinham “castas” e, em muitos
casos, não se prendiam ao jugo do matrimônio. Segundo Soihet (1997, p. 362), “a
organização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo
inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às
dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da
cultura popular”. Portanto, entendemos que ajustamentos ocorreram de modo que,
não desafiando diretamente os agentes de vigilância, elas conseguiram encontrar
caminhos, apesar do esforço de mortificação que objetivava provocar um
rompimento sobre as crenças que possuíam sobre si e sobre os outros, mudando
com isso suas percepções de mundo e construindo novos padrões de conduta
(GOFFMAN, 1996, p. 24). Por fim, podemos inferir que parte de seus valores culturais
não ficaram presos do lado de fora das grades do IPFDAMC e, possivelmente,
influenciaram o modo como algumas mulheres conduziram suas vidas relacionais e
65 A grosso modo, podemos definir instituição total como um lugar fisicamente separado da
sociedade em geral, onde todas as funções rotineiras do indivíduo custodiado ficam circunscrita a um
espaço único: lazer, trabalho, necessidades básicas; e que são geridas por um corpo administrativo
com o objetivo de sujeitar este indivíduo e fazer dele um novo sujeito. Em síntese "São estufas para
mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer do eu". (GOFFMAN,
1996, p. 22).
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sexuais no cárcere, onde alguns corpos, mesmo que aprisionados, viveram amores
fugidios.
REFERÊNCIAS
Fontes
Prontuário prisional
Entrevista Temática
RIBEIRO, Humberto Heitor – Entrevista [19 FEV. 2019] - Fortaleza, Ceará. Acervo
pessoal.
Periódico
Vera confirma: matou dopada. O Povo – Fortaleza, 21 jan. 1974. Caderno 1, p.7.
Publicações Oficiais
Bibliografia
ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado e de
Deus: O surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em:
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-11062012-145419/. Php>.
Acesso em: 23 mar. 2018.
OLIVEIRA, Camila Belinaso de. A mulher em situação de cárcere: uma análise à luz
da criminologia feminista ao papel da mulher condicionado pelo patriarcado. Porto
Alegre: Editora Fi, 2017. <https://www.editorafi.org/219camila>Acesso em 13 mar.
2018.
SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary
(org.) História das mulheres no Brasil. Carla Bassanezi (coord. de textos). 2. ed. São
Paulo: Contexto, 1997 [362-400].
O AMOR E AS
IMAGENS
Resumo: Entendendo que uma pesquisa é um processo híbrido, no qual prática e teoria se
alimentam, fomentam-se, no presente artigo busco delinear uma pesquisa em arte a partir das
reflexões produzidas pela elaboração de uma instalação artística, intitulada “Antes ferida no olho
do que enxergar”. A partir da criação da instalação, que fala do lugar do sujeito outrora
seduzido, mas em processo de ressignificação desse encontro com o outro, surgem questões
acerca das estruturas que sustentam o lugar de desconhecimento de si que os sujeitos enlaçados
pela sedução se veem colocados frente à posição daquele que seduz. É a respeito de tais
questões, que envolvem a noção de paixão, amor romântico, simbiótico, sobre as quais busco
me debruçar nesse artigo.
Palavras-chave: Arte; Artes Visuais; Psicanálise; Sedução.
INTRODUÇÃO
É partindo deste texto que a presente pesquisa se desenovela:
Eu não sabia de metade disso na época. Eu fui aprendendo com os dias em que
trocamos, juntos. Eu fui aprendendo com o estranho a estranhar. Fui aprendendo com
as ausências, as hesitações, os nomes interditos e com o hiato que gritava entre os
tempos. Aprendi, sobretudo, com o medo, este furo no olhar. E foi pela brecha no furo
do teu olho que pude ver além de ti e encontrei um velho espelho que tanto me
assusta olhar. Eu aprendi com o que vi de mim saltar de ti. Eu não sabia de metade
disso naquela época. Talvez, se eu soubesse que esse encontro seria um encontro
comigo, eu tivesse hesitado também. Porque eu não concordo com aquela canção e
penso que Narciso acha feio o que é espelho e antes ferida no olho do que enxergar. 66
66 Texto de minha autoria que compõe a instalação artística aqui tratada, “Antes ferida no olho do que enxergar”
É que em minha experiência, o trabalho com o pensamento – aquilo que em princípio
se desenvolve numa prática acadêmica, sob a forma de estudo, escrita, ensino – diz
respeito fundamentalmente às marcas, sua violência, nosso desassossego.
[…].
O pensamento, desta perspectiva, não é fruto da vontade de um sujeito já dado que
quer conhecer um objeto já dado, descobrir sua verdade, ou adquirir o saber onde jaz
esta verdade; o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito, e
é através do que ele cria que nascem, tanto verdades quanto sujeitos e objetos.
(ROLNIK, 1993, p. 4-5).
A partir desse tempo de maturação das inquietações é que, enfim, começo a enxergar
no texto a possibilidade de construção de uma narrativa, por meio de uma composição visual.
Um relato autoficcional. Mas como dar a ver a narrativa apresentada nesse relato? Como
construir uma composição visual a partir dele? Desassossego-me outra vez. Penso, reflito e me
transformo nesse processo, me transformo enquanto crio. E na medida em que crio, inquieto-
me novamente. Do que falo? E o que é evocado quando falo? Preciso esmiuçar conceitos.
Devorar teorias. E ao passo em que as devoro, consigo construir. Assim dou início ao que aqui
defino, com base em Sandra Rey, um processo de pesquisa em arte.
Sendo assim, esse trabalho se dá num fluxo entre criação prática, que se dá na
composição da obra, bem como processo teórico. Há momentos em que preciso da criação
prática para chegar na teoria. Em outros, engolir e regurgitar a teoria me faz compor. É um
processo indissociável. Um processo híbrido (REY, 2002).
Aqui, neste artigo, delineio as reflexões que fundamentaram e, simultaneamente,
desdobraram-se ao longo do processo que culminou na criação da instalação artística a qual
intitulo: “Antes ferida no olho do que enxergar”.
Algum dia esse foi o olhar do bebê que se flagrou pela primeira vez diante de um
espelho. Reconheceu a própria imagem; entendeu e desentendeu que “aquele” outro,
externo a ele e ao mesmo tempo ele mesmo, pudesse ser tão perfeito, simétrico e
ordenado, tão bem delimitado em relação ao mundo externo.
[…].
Diante da própria imagem o bebê tentou realizar a síntese entre o corpo perfeito que
vê e o corpo desorganizado que experimenta. Síntese que demorou a realizar e
realizou de forma precária, inconstante, voltando a ocupar a criança e o adulto pelo
resto da vida a cada vez que um “espelho” de fora lhe informa: “eu te vejo assim” – e
então toca outra vez a integrar o revelado (de fora) com o vivido (de dentro), toca a
tentar outra vez alcançar a imagem idealizada pelo desejo alheio (KEHL, 1995, p. 412).
É a partir desse contato com essa imagem do espelho e de suas tentativas de ser
essa imagem (imagem perfeita), que o sujeito, segundo a teoria psicanalítica, se constituirá.
(KEHL, 1995). Imagem do espelho, que, na verdade, diz respeito a como o outro nos vê e como
apreendemos o olhar desse outro. Afinal, no início de nossas vidas, é esse outro que irá nos
inserir na linguagem, na cultura. É o outro que nos dá um nome e nos chama, é o outro que
nos veste, banha, alimenta, tenta adivinhar o que nos desconforta e nos faz chorar. O outro
sabe algo de nós antes mesmo de sabermos sobre nós. Nos constituímos a partir desse
encontro e dessa troca com o outro. Em termos freudianos, esse olhar que é o espelho do
bebê, é o olhar materno (ou de quem exerce essa função). Olhar que é recoberto de afeto por
um sujeito que ainda não se sabe sujeito. Olhar que diz: “(...) você é esta / você é esta para o
meu desejo / eu te vejo e te quero assim.” (KEHL, 1995, p.413). Portanto,
Assim se inaugura nossa vida afetiva e se implanta dentro de cada um de nós uma das
modalidades do olhar seduzido: o olhar de Narciso perplexo e maravilhado com a
própria imagem de perfeição, imagem do desejo materno.” (KEHL, 1995, p. 414).
[...] sai dessa experiência com mais chances do que o sedutor. Sai ainda mais
desiludido do que entrou: mais consciente de sua vulnerabilidade. Se não se encantar
muito tempo pelas vantagens secundárias do ressentimento, o seduzido e
abandonado terá boas chances de curar seus males numa relação de amor: o amor
que lhe dirá não a partir de idealizações prévias, mas a partir da intimidade, da
convivência, da troca, aquilo que a sedução lhe fez perder – a noção de quem, de fato,
ele é. (1995, p. 422).
O lugar da sedução se dá a partir da implicação do meu corpo físico por meio de uma
fotografia performática. Na fotografia, vendo-me ao mesmo tempo em que a sobreposição
das imagens também sugere um enforcamento. Busco deste modo remeter a entrega passiva
de si que o seduzido se coloca. Um lugar entre Narciso e Édipo, entre a cegueira do
deslumbre da sedução e a cegueira do medo de enxergar a si. O corpo que se venda, se cega
e entrega-se ao outro.
Já no lugar do resgate de si, trabalho o corpo da palavra, do texto. Trabalho-o
enquanto borda a esse lugar da sedução, uma vez que este é o espaço da retomada da
consciência do seduzido. O texto é a retomada de sentido e atribuir sentido é construção de
subjetividade. É a partir do texto, da palavra enquanto borda, moldura desse lugar de
apagamento, que busco dar visualidade às reflexões acerca da possibilidade de saída da lógica
da simbiose para uma nova atribuição de sentido. É na palavra que me proponho, por meio da
instalação, a lançar uma seta para outras construções de amor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um processo nunca termina necessariamente quando acaba. Sendo assim, concluo este
artigo com a mesma sensação. Acredito que aqui, de fato, foi possível se construir uma
pesquisa em arte, articulando prática e teoria num processo indissociável, num processo
híbrido. Este trabalho não teria o mesmo resultado sem os contatos teóricos que necessitei
beber ao longo desse processo de construção. No entanto, acredito que essa pesquisa ainda
renda desdobramentos teóricos, por mais que a elaboração da obra esteja concluída.
Senti falta de me aprofundar sobre a sedução a partir de uma questão de gênero, pois
ela está sim, implicada neste trabalho. Porém, ao longo da escrita do artigo, não consegui,
nesse primeiro momento, abarcar esse recorte. É um ponto que acredito ser importante para
um desdobramento dessa pesquisa. Além disso, acredito que as reflexões sobre a possibilidade
de construção de uma outra forma de amor mereçam mais espaço nessa escrita.
REFERÊNCIAS
COELHO, Paulo. O Alquimista. 1. ed. São Paulo: Paralela, 2017. Disponível em:
<https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/45603.pdf> Acesso: 10 de junho de 2019.
KEHL, Maria Rita. Masculino/Feminino: o olhar da sedução. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar.
São Paulo: Editora, 1995. p. 411 – 410.
REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes. In: BRITES, Blanca;
TESSLER, Elida (Org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas.
Porto Alegre: E. Universidade/UFRGS, 2002. p. 123-140.
ROLNIK, Suely. Amor: o impossível... e uma nova suavidade. O amor anda impossível? In:
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas. Cartografias do Desejo. Petrópoles: Vozes, 1996. P.
284-290.
Resumo: Por meio deste trabalho, pretende-se refletir sobre como a indústria cultural contribui
para a construção da imagem do Eros feminino, a partir do objeto cultural, particularmente, o
filme A vida secreta de Zoe. É notório que as representações imagéticas têm papel determinante
em manter um padrão social ou reconfigurá-lo, dependendo dos interesses estabelecidos pelo
sistema dominante. Nesse contexto, os objetos culturais, sobretudo, a linguagem imagética, têm
papel primordial na legitimação de padrões comportamentais e tendo em vista que a luta pela
emancipação feminina ganha força nas sociedades patriarcais, a repressão do Eros feminino
ainda é tabu a ser enfrentado na maioria sociedades.
Palavras-chave: Imagem; Representação; Eros feminino; Indústria cultural.
INTRODUÇÃO
O amor, em suas vertentes, tem como destaque o Eros feminino 67, visto que representa
símbolo de sedução, seja na grandiosa narrativa de Homero, Ilíada e Odisseia, na qual a mulher
tem certa relevância nos termos a que é submetida (não podemos esquecer de como a beleza
de Helena, em Ilíada, serviu de pano de fundo para o desenvolvimento dos conflitos na
narrativa culminando na célebre guerra entre gregos e troianos), ou de como O Canto das
Sereias, em Odisseia, representa de forma significativa o poder alienante da sedução feminina
(nesse episódio da epopeia, canto XII, Ulisses solicita a seus homens, ao chegar a Ilha das
Sereias, que tampem seus ouvidos com cera e se amarrem aos lastros do navio para não se
deixarem seduzi pelo canto das Sereias, representação da sedução).
Seja nos dias atuais, não apenas em narrativas fictícias, mas também no nosso
cotidiano, por meio da publicidade desenfreada, na qual o corpo feminino ainda é prerrogativa
para manutenção da alienação, a qual propõe a indústria cultural, uma das principais forma de
controle do sistema capitalista, basta ver as propagandas de cervejas ou de automóveis, para
perceber como o corpo feminino é utilizado como objeto de sedução, como atrativo para o
67 Compreende-se o termo Eros feminino nesse artigo se referindo à sexualidade feminina, já que o tema central é
a repressão sexual feminina legitimada pela indústria cinematográfica. Levando em conta que o termo Eros
relaciona-se ao princípio do prazer, da satisfação, optamos pelo termo Eros feminino, por compreender que a
satisfação feminina, seja ela sexual, seja de realização pessoal ou profissional, também é lesada, ainda que não seja
com tanta rigorosidade, como em relação à sexualidade feminina. Dessa forma, o termo Eros feminino ganha
amplitude, trazendo uma simbologia de como a figura feminina é tratada na civilização patriarcal.
público, sobretudo, masculino. O cinema, por sua vez, não podia ficar de fora das demandas
do sistema de consumo e do controle comportamental, tendo em conta ser o um dos principais
objeto de massificação da cultura. Adorno e Horkheimer (1985) na sua obra Dialética do
Esclarecimento, dizem o seguinte sobre como a técnica contribui para alienação das massas,
tendo como base a representatividade no cinema:
O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência
do expectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que
acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo
da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição
com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a
ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se
descobre no filme. Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica
pôs-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-
se distinguir do filme sonoro. (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 104).
Portanto, o cinema constrói, não apenas em termos visuais, materiais, mas também no
campo cognitivo, nas representações mentais, ideais de vida aos quais se deseja, ou não viver.
Ao passo, que um objeto cultural, como o filme, promove a criação de um estereótipo que
induz o telespectador a querer ser aquele personagem, ou ter aquela vida exibida nos filmes,
esse objeto cultural pode levar o telespectador a negar a própria realidade e viver de forma
mecânica. Independentemente do que se espera do telespectador, a indústria cultural cumpre
com seu propósito, e o cinema, sendo uma mercadoria, segue a demanda de que o mercado
consumidor exige, dessa forma, após longo processo de luta pela emancipação da mulher
(ainda não consolidada), em grande parte das sociedades ocidentais, configura-se, atualmente,
uma transição, na qual a mulher, à medida que conquista espaço nas esferas sociais que até
então lhes eram negados (compreenda-se algumas pautas conquistadas a duras penas pelos
movimentos feministas, como direito à educação, ao trabalho remunerado pautado em leis
trabalhistas, à igualdade salarial e aos direitos políticos), ainda prevalece forte repressão sobre o
Eros feminino, algo representativo no filme A vida secreta de Zoe, objeto cultural que iremos
nos pautar para fazer uma análise de como é construído o Eros feminino, levando em
consideração que o cinema sustenta a tese de que a mulher é símbolo da sexualidade frágil,
levando-a a um desequilíbrio emocional e psicológico, ou seja, o Eros feminino deve ser
repreendido68, deve ser tratado sob os cuidados médicos, em nome do equilíbrio da família
68 Vale ressaltar que essa repressão contra o Eros feminino é feita à medida que há necessidade do controle do
corpo feminino nos moldes de uma civilização patriarcal, a qual percebe o comportamento sexual feminino como
tradicional liberal, moldada, é claro, no novo padrão familiar que concede alguns direitos à
mulher na sociedade, menos o de lidar com seu próprio corpo.
Zoe, protagonista do filme, é uma mulher bem-sucedida no mercado de trabalho, tem
um casamento estável e uma família que corrobora com o padrão exigido pela nova conjuntura
neoliberal. No entanto, Zoe apresenta sério problema ao enfrentar sua própria sexualidade a
ponto de procurar ajuda psiquiátrica. Vale ressaltar que o problema de Zoe é uma situação
passiva de ocorrer tanto com homens como com mulheres, porém a personagem amarga um
peso maior devido a maneira repressora de como a sociedade lida com o Eros feminino.
Basicamente, o filme problematiza o render-se da personagem a seus impulsos sexuais, e
romantiza o seu arrependimento, o seu retorno acolhedor ao seio familiar. Nessas
circunstâncias fazemos o seguinte questionamento: até que ponto deve ser tratado como uma
questão médica, psiquiátrica, levando em consideração a marcada repressão sexual que as
mulheres sofrem?
ameaça à ordem civilizatória de um sistema patriarcal. Marcuse faz reflexões pertinentes sobre esse assunto em
sua obra, Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1975.
proposta de concretização de sonhos, através da representação, através dos filmes,
propagandas, novelas, séries etc. Se no século XX, ocorreu o domínio e a apropriação das
máquinas com suas vantagens reprodutivas e representativas, no século XXI presenciamos as
realizações de ideais no ambiente virtual. Por meio das redes sociais as pessoas, em muitos
casos, criam ideais de si, ou da vida que gostaria de ter, a internet converge, no dia a dia das
pessoas, uma tessitura que até então não poderia ser tocada (e ainda não é, embora promova
particularmente a sensação de ser), o encontro do real com ideal.
A indústria cultural cinematográfica proporciona a construção de personagens com um
poder de persuasão tão considerável sobre as pessoas, levando-nos aos seguintes
questionamentos: Até que certo ponto o cinema, a mídia, é uma representação da realidade? 69
Ou seria o oposto, as pessoas agem e procuram viver conforme o que ver reproduzido nas
telas?
Adorno e Horkheimer (1985, p.105) dizem o seguinte sobre esse poder hipnótico,
pode-se dizer assim, sobre a indústria cinematográfica:
Quem está tão absorvido pelo universo do filme – pelos gestos, imagens e palavras –,
que não precisa lhe acrescentar aquilo que fez dele um universo, não precisa
necessariamente estar inteiramente dominado no momento da exibição pelos efeitos
particulares dessa maquinaria. Os outros filmes e produtos culturais que deve
obrigatoriamente conhecer tornaram-no tão familiarizado com os desempenhos
exigidos da atenção, que estes têm lugar automaticamente. A violência da sociedade
industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria
cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los
alertamente. Cada qual é um modelo da gigante maquinaria econômica que, desde o
início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se
assemelha ao trabalho. (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 105).
69 Não pretendemos por meio desse questionamento realizar digressões de cunho filosófico acerca da função da
arte na vida do indivíduo, por exemplo, se a arte nega a realidade, ou se a arte reflete a realidade, mas apenas
levar a reflexão sobre como a mídia, com seus produtos de entretenimento, pode influenciar, de certo modo, o
comportamento das pessoas na sua vida cotidiana.
70 Como seu próprio nome denomina, a Escola de Frankfurt teve sua origem em Frankfurt, na Alemanha, por um
decreto do Ministério da Educação, em acordo justamente com o Instituto de Pesquisas Sociais, em três de
fevereiro de 1923. Teve como principal incentivador Félix J. Weil, filho de um negociante argentino de cerais,
doutorado em ciências políticas que procurou organizar a “Primeira Semana de Trabalho marxista” e que podia ser
uma escola de corrente sociológica, mas que optou por ser uma corrente de ordem filosófica, também
preocupada com diversos assuntos, dentre eles: econômicos e políticos, segundo consta na introdução de Paul-
Laurent Assoun: “Assim individuada, a Escola constitui o objeto de apreciações de ordem filosófica, sociológica e
política” (Assoun, 1991, p. 05) e “A ambiguidade reina nos dois primeiros anos em que Grünberg assume a direção
do Instituto. Assim, bem podemos dizer que estamos perante um projeto sociológico, mesmo econômico. Mas, a
subida de Marx Horkheimer à cabeça do Instituto em 1931, a ambiguidade dissipa-se pelo simples fato de se
manipulador da indústria cultural, para esses teóricos frankfurtianos, a comunicação de massa
desempenha papel determinante na estrutura das relações sociais modernas. A técnica
cinematográfica muda radicalmente a relação das massas com a arte. Dessa forma, as pessoas
são subordinadas à técnica cinematográfica e essa, por sua vez, compromete a subjetividade
dos indivíduos, condicionando sua maneira de ser e de pensar. Nessa perspectiva, a pessoa que
tem sua subjetividade controlada passa a seguir padrões determinados pela cultura de massa e
um dos principais alvos desse controle é a mulher.
A figura feminina há muito tempo é vista como ser representativo da sexualidade, da
sedução e a mídia lançaria mão dessa ideologia em nome da sustentação do sistema liberal.
Marcuse (1972) na sua obra Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud, na parte em que trata da origem da civilização repressiva, expõe essa dominação do
homem sobre a mulher a partir do pensamento do psicanalista Otto Rank 71, a saber, “o
desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso,
administrado pelo homem, é, uma continuação da repressão primordial, que tem como seu
propósito a exclusão cada vez mais vasta da mulher” (MARCUSE, 1972, p. 75). Marcuse explicita
o poder do homem sobre a mulher como forma de remissão do pecado contra o pai, levando
em consideração o princípio de prazer nos estudos de Freud.
O que se pode dizer é que o Eros feminino, é tido como uma ameaça a supremacia
masculina na civilização, particularmente a ocidental. Se a mulher representa o que é natural, e
o instinto do prazer é algo natural e está intimamente relacionado a mulher, ser que pare, que
gesta um ser humano, o alimenta durante todo processo gestacional, que após a gestação
amamenta, ela representa o que é natural, e a civilização regida pelo homem, símbolo da razão
e da civilização, devem se opor ao que é natural e se impor a tudo que ameaça essa civilização,
ou pressupõe ameaça a sociedade, sobretudo, quando essa sociedade passa a ter como
objetivo, o capital, o consumo como válvula impulsionadora das relações entre as pessoas 72.
explicitada e reivindicada como exigência metodológica sob a designação de ‘filosofia social’”. (Assoun, 1991, p. 09).
In: A escola de Frankfurt e seus principais teóricos. Artigo publicado em PIDCC, Aracajú, ano III, ed. 5/2014, p. 244-
249.
71 Otto Rank, The Trauma of Birth, 1929, p. 93. (apud. MARCUSE, 1972, p. 75).
72 Pode-se dizer que civilização, sobretudo a civilização do homem capitalista, compreende a natureza, ou o que
se refere a ela, como sendo uma ameaça à civilização, entenda civilização não como normas de convívio de
membros de uma sociedade (compreensão básica do que é sociedade), mas uma concepção de sociedade a partir
do sistema capitalista, que entende civilização como forma de poder, de domínio sobre a natureza, de poder
através da sedução, do controle do homem sobre tudo que é natural, inclusive o próprio homem, sempre
Dessa forma, tudo vira objeto de consumo e o Eros feminino é construído nessa perspectiva de
objeto, de coisa que hora deve ser reprimida, ora deve servir de pretexto para promoção do
consumo, e a indústria cinematográfica se presta a essa contradição no tocante à construção e
representatividade do Eros feminino na sociedade liberal. Nesse jogo de consumo as
personagens das grandes e pequenas produções cinematográficas são criadas, editadas e
reeditadas conforme a demanda do mercado consumidor.
objetivando o lucro, o comércio. Ver COMPARATO, Fábio Konder. Capitalismo: civilização e poder. In: Revista
Estudos Avançados. v. 25. n. 72. São Paulo. Maio/2011, p. 251-276
paradigmas da imagem, a saber, pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico, associando-os
aos três registros psicanalíticos da dimensão psíquica humana: o imaginário, o real e o
simbólico, estruturas fundamentais que articulam a releitura da obra de Freud por Lacan.
Santaella e Nöth (1997) esclarecem que “o paradigma da imagem pré-fotográfica está para o
imaginário, assim como o fotográfico e o pós-fotográfico está para o simbólico.” (SANTAELLA E
NÖTH, 1997, p. 187-188). Segundo os referidos autores o imaginário diz respeito ao ego do
sujeito, constituído no que Lacan (1971, apud. SANTAELA E NÖTH, 1997, p. 190) denominou
“estágio do espelho”, fase onde a identidade do sujeito surge num “jogo paradoxal”, oscilando
entre o eu e o outro. O real seria o impossível de ser simbolizado “é aquilo que diante do qual
o imaginário tergiversa e no qual o simbólico tropeça” e o simbólico é “lugar do código
fundamental da linguagem, é da ordem da lei, estrutura regrada, onde fala a cultura, a voz do
grande Outro.” (SANTAELLA E NÖTH, 1997, p. 191-192).
Relacionando os paradigmas da imagem e os registros psicanalíticos da dimensão
psíquica humana com a personagem feminina do filme, Zoe, no filme A vida secreta de Zoe, e a
representação que ela pode trazer para o público feminino é bastante considerável, levando
em conta que as mulheres tendem a reprimir sua sexualidade em nome da instituição, símbolo
da civilização, a família. Zoe, vive uma relação extraconjugal, que logo passa a se complicar
quando ela opta por ter outro parceiro, além de seu marido, ela passa a ter amantes, sente-se
culpada por viver tais relações, sabendo que mantém um casamento estável, família
aparentemente bem estruturada (esposa, marido e filhos e boa condição financeira) como
manda o figurino do sistema neoliberal, como reproduz bem a produção hollyoodiana,
considerando inclusive a sua condição de mulher independente financeiramente, visto ser uma
empresária bem-sucedida, ou seja, nova mulher do mercado de consumo, após as primeiras
lutas feministas. No entanto, não tem a sexualidade bem resolvida, e como o sentimento de
culpa toma conta da consciência, ela (Zoe) resolve buscar tratamento com uma psicóloga que
mais engendra o sentimento de culpa na sua paciente, uma vez que a induz a buscar o retorno
ao equilíbrio do lar, do que mesmo fazê-la compreender o que se passa consigo. A
personagem por fim, no clímax do drama no filme, tenta suicídio, após seu marido descobrir
suas relações extraconjugais e opta pela separação. Diante dessas circunstâncias, a personagem
é internada numa clínica psiquiátrica e seu marido decide reatar o casamento e passa a
acompanhá-la em sua reabilitação e retorno ao seio familiar.
Como diz Santaella (2004, p. 06) no seu artigo O corpo como sintoma da cultura, ela
tece algumas considerações sobre o célebre texto de Freud, Mal-estar da civilização, a autora
afirma: “O mal-estar redunda, portanto, em frustração, culpa e ressentimento contra a
civilização, consistindo em obter uma satisfação da renúncia pulsional mesma. A condição
humana leva o sujeito a obter o gozo pela renúncia do próprio gozo”.
É perceptível que a imagem da personagem feminina, não apenas nesse filme, mas em
outros objetos culturais, como música, obras literárias, pintura, no tocante a sua sexualidade é,
na maior parte dos casos, representada de maneira leviana à medida que, quando convém aos
interesses do mercado, a mulher é vista como símbolo da sensualidade e da sedução. Essa
simbologia exposta na mídia permite que as mulheres se reconheçam ou se construam a partir
dessas perspectivas, ou seja, o mundo da simbologia (fotográfico e pós-fotográfico) interfere
diretamente na realidade feminina, na verdade, essa simbologia, impede que a realidade seja
vista e percebida, uma vez que a subjetividade é agredida pelo universo simbólico e, de uma
forma geral, assistimos de forma passiva a supremacia do simbólico caracterizado pela indústria
cinematográfica.
O Eros feminino é construído na civilização de forma extremante repressora e
subjugada. Sobre a imagem da mulher e o princípio de prazer Marcuse (1972) diz o seguinte:
Nessas condições, nas quais a mulher é posta na sociedade como objeto de desejo,
que está fadada a ser repreendida quanto ao próprio Eros, em nome da ordem da civilização
patriarcal, parece bastante oportuno considerar a mulher que quebra as regras estabelecidas
por essa sociedade opressora, e que reivindica a sua subjetividade, a sua condição de ser ativo
e transformador, considerá-la pessoa estúpida, prejudicada em seu estado cognitivo, insana,
incapaz de lidar com suas emoções e anseios, principalmente no que diz repeito ao Eros. A
mulher, enquanto propulsora da civilização patriarcal acaba por rechaçar seus ímpetos,
anulando a sua condição de ser humano, servindo apenas de engrenagem a um sistema
fadado à aniquilação da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, podemos considerar que a indústria cultural, por meio da mídia,
dos filmes, das propagandas etc., à medida que promove a socialização das pessoas também
influencia na construção da sua identidade, a partir de imagens estereotipadas, que podem ser
reconfiguradas a partir da necessidade de modificação numa conjuntura histórica, não à toa em
virtude dos movimentos feministas as mulheres passaram a ter certa autonomia na sociedade
ocidental. No entanto, quando o assunto é a sua sexualidade, o seu posicionamento no quadro
político ou de poder, permanece em situação de submissão e a mídia legitima tal situação. A
construção do Eros feminino ainda é tratada de forma leviana no contexto vigente, uma vez
que a mulher é vista e assimilada na sociedade como ser incapaz de lidar com a própria
sexualidade. Porém, a mulher, diferente do homem, é capaz de reprimir o próprio Eros,
sublima-o de certa forma, para manter o padrão de civilização determinado pelo homem. A ele
é dada a condição natural de prazer efetivo, por ser homem, é natural que usufrua da
sexualidade porque esse deve ser o desempenho do macho da sociedade, indivíduo que
usufrui do poder e da satisfação, enquanto que a mulher deve se conter diante do que é
natural a ela, que é a sexualidade, a sedução. A repressão sexual é a condição para que a
mulher exerça sua função na sociedade, a função de mãe e de esposa.
Há, portanto, uma contradição na construção do Eros feminino, pois ao passo em que
a mulher tem sua sexualidade reprimida, ela é exposta na mídia como objeto de sedução,
como símbolo da sexualidade. Ou seja, a mulher, segundo preceitos patriarcais, não pode se
render aos próprios desejos, à própria sexualidade, todavia, é convertida em atrativo com
propósito de alienação na sociedade capitalista.
REFERÊNCIAS
SANTAELLA, L. & NÖTH, W. Imagem, cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Editora Iluminuras,
1997.
______________. Por que a comunicação e as artes estão convergindo. São Paulo: Paulus, 2008.
Filmografia
Resumo: Em seu Fragmento do discurso amoroso, Roland Barthes (2003) nos diz que
o amor é um modo de olhar, é ver-se nos olhos do outro. No entanto, o imaginário
popular no diz que o amor seria, na verdade, cego, pois não consegue enxergar seu
objeto ou sua fonte, como diz Freud (2013). Se a amante de Eros, o deus sempre
menino do Desejo, é Psiquê, no romance de estreia da escritora Tércia Montenegro,
Laila, a protagonista deficiente visual, é a amada de Pierre. Turismo para cegos,
publicado em 2015 pela Companhia das Letras, atualiza de modo inverso o par
mitológico grego: agora a mulher, quem não detém a visão, é a agente das paixões.
Pensando a fotografia como ficção, é possível compreender a imagem “Laila e Pierre”
da também fotógrafa Tércia como uma manifestação literária? Em temos de pós-
conceitos, talvez o objeto literário se torne cada vez mais nosso afeto cego, atirando-
nos flechas por todos os lados a partir de uma face que não se pode mais ver
nitidamente. De todo modo, seguimos apaixonados por este cupido e agora pela
natureza de poliamor que ele nos apresenta junto às artes visuais, às artes plásticas e
a outras linguagens.
Palavras-chave: Amor; Tércia Montenegro; Erotismo; Romance; Fotografia.
cachorro para ser guia da cega. Seus gestos já nos fornecem pistas sobre a visão de
amor que possuem e que executam:
Ora, no quarto de Laila tinham posto também uma santa, uma Senhora
Desatadora de Nós, tão longa no manto vermelho e azul, seus dois
anjinhos descosendo fios interminavelmente. Pierre a viu de soslaio ao
entrar; teve vontade de virá-la contra a parede, mas Laila não lhe deu
chance. Estava à espera há vários minutos, cochichou e, pensava que ele
não viria. Pôs-se a despi-lo com pressa, e Pierre se afobava, tentando
fazer o mesmo com ela. [...] Então puxou num único gesto o vestido,
jogando-o pelo avesso como uma pele morta. Pierre precisou que ela
acenasse várias vezes, para finalmente se aproximar. Laila estava deitada,
cheia de sombras pelas pernas, que se abriam como duas pálpebras.
(MONTENEGRO, 2015, p. 55).
2010, p. 31, grifo do autor). Se pensamos tal definição como apropriada também ao
amor, vemos que tal obstáculo, trincheira sempre presente entre os amantes, é
exatamente a pulsão do afeto. Se só é possível ver o outro, dado à distância que
temos dele, tocar passa a ser uma experiência sempre almejada.
Talvez por esse desejo irrealizável de tocar o que se ama que Tércia
Montenegro sofre um espanto ao ver a seguinte escultura, em Veneza, capturando-
a e trazendo, tal como faz com o texto, o espanto para seus leitores imagéticos ou
verbais:
fotografia. Quem tem mais força a partir de então, a narrativa escrita ou a visual? A
imagem realmente fala mais que mil palavras ou dela só se tem tal impacto por
causa do verbo outrora encarnado em nós por Tércia? Seria tal foto uma extensão
da literatura pelo olhar da escritora-capturadora?
Sem pretender responder a essas questões completamente, associamos
nosso pensamento ao de Nelson Brissac Peixoto ao nos falar da potência
cartográfica do olhar que parte do visível sempre em busca do que não tem lugar,
tal como Tércia Montenegro parece querer suscitar em nós, ao multiplicar as
imagens do amor que é cego, nó górdio de seu livro. Parece ser, enfim,
Um esforço para dar conta do aspecto sensível das coisas, de tudo aquilo
que não é dizível. Perseguir aquilo que escapa à expressão, a infinita
variedade das coisas mais humildes e contingentes. Um aproximar-se das
coisas com discrição e cautela, respeitando o que as coisas comunicam
sem o recurso das palavras. Desenvolver o poder de evocar imagem in
absentia. Imagens de tudo aquilo que não é, mas poderia ter sido.
(PEIXOTO, 2004, p.12)
O amor de Pierre e Laila, tal como a imagem, parece sempre “aquilo que não
é, mas poderia ter sido” (PEIXOTO, 2004, p.12) ou, na infinita variedade descrita pela
escritora no romance, “A primeira atitude de Laila seria largá-lo se não tivesse mais
um alívio para o seu forçado jogo de adivinhas em que tocava o mundo para
conhecê-lo.” (MONTENEGRO, 2015, p. 116). Configurado, portanto, como um jogo –
de signos? – por meio do qual se tenta experienciar o mundo, o outro e a si mesmo,
a experiência amorosa esbarra costumeiramente nos limites ou regras aplicados
pelo Eu. Porém, Laila e Pierre tentam, à revelia de suas esmagadoras deficiências
pessoais e como casal, uma transmutação de códigos, saindo das páginas de papel
ao papel fotográfico.
O amor cego consegue dar a ver vestígios que vão além do papel restrito ao
texto literário. Tal como ele, as fotografias que o personagem Pierre faz da amada
parecem transpor as páginas do romance e ganhar vida também num jogo de
traições em que outra vez imagem e palavra competem pelo conhecimento do
mundo ou pelo domínio do amor em linguagem. Sabe-se, porém, que em face do
amor todos padecem. Somente Laila e sua corporeidade aparente – “Seu corpo
ereto é interpretado como sua diferença dentro da diferença que lhe constitui. Essa
postura lhe devolve, em parte, a visão.” (MAGALHÃES, 2018, p.52) – somente Laila
parece resistir ao Desejo. No entanto, sabemos que ela é quase sempre uma
imagem falsa.
Contrapondo-se a ela – ou não? - Tércia Montenegro se revela em palavras
e em imagens, como durante o processo de escrita de Turismo para cegos em que
encontra na praia um cão labrador, mesma ração do personagem-cão Pierre, como
vemos abaixo na Imagem 2. Assim também se dá no próprio lançamento do seu
livro em que performa a protagonista, entrando com um cão-guia e óculos escuros
no ambiente de lançamento, como visto na Imagem 3:
(AGAMBEN, 1999, p. 51). O amor, assim, quer a coisa cega, tal como Pierre, pois
sempre dele quer espiar o máximo como Laila espia o mundo, que dela já se
perdeu.
REFERÊNCIAS
_____. Quando as imagens tocam o real. Tradução de Patrícia Carmello e Vera Casa
Nova. Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 219, nov. 2012.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Tradução de Pedro Heliodoro Tavares.
Belo Horizonte: Autêntica, [1915] 2013.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2004.
73 Idealizada por Victor Civita, Roberto Civita e Mino Carta, Veja é uma publicação semanal da
Editora Abril. Revista brasileira de maior tiragem, Veja (até 1975 Veja e Leia) está no mercado editorial
nacional desde setembro de 1968.
Amor, Língua de Eros
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brancas que contrastam com o índigo da calça que recobre a fração do corpo
feminino apresentado, lê-se: “Embalagem para presente”. E logo abaixo, em
caracteres menores: “Wrangler é um ótimo presente para o Dia dos Namorados,
porque é um presente que você pode desembrulhar milhares de vezes” (VEJA, n.
1031, 8 de junho de 1988, p. 38-39). Além do destaque conferido a somente uma
parte do corpo da mulher, é digno de nota também o sentido de domínio que se
dará sobre esse corpo mediante o ato de presentear. Em um anúncio da Pakalolo,
de alguns anos depois, esse sentido é igualmente evidente: “Dê para sua namorada
uma roupa super fácil de tirar” (VEJA, n. 1185, 5 de junho de 1991, p.24-25).
Entre perfumes, cartões de crédito, lavadoras e roupas as mais variadas,
que outros objetos eram anunciados nessas publicidades de Dia dos Namorados?
Entre 1974 e 1994, joias, pelúcias, relógios, canetas, mas também eletrônicos dos
mais diversos tipos e utilidades são representados como provas de paixão que
efetivam, atualizam ou reforçam o sentimento amoroso. Como as formas de
representar o amor e o amar, esses objetos também mudam conforme os tempos,
assim como as formas de anunciá-los. Contudo, nos trinta e cinco números de Veja
analisados, dos quais se selecionou cento e oito publicidades, algumas outras
construções imagéticas em torno do amor romântico foram observadas. O critério
de seleção utilizado envolve a observação da recorrência de referências ao amor
erótico e a seus correlatos imediatos (paixão, desejo, carinho, etc.), e a alusão direta
à data comemorativa do Dia dos Namorados nas peças publicitárias.
“Um outro jeitinho de dizer eu te amo” (VEJA, n. 509, 7 de junho de 1978,
p.47). Sobre uma sólida estrutura, lado a lado, a sugestão e a solução, o texto
publicitário e o produto anunciado: duas canetas douradas tocam-se, sugerem um
beijo, decerto apaixonado. Uma década depois, eram “ele & ela. A dupla romântica”
(VEJA, n.1030, 1 de junho de 1988, p.70). Configurações típicas e de peculiar força
expressiva em publicidade, onde animais podem falar, humanos podem voar e seres
inanimados ganham vida (ROCHA, E., 2010, p.30), tais canetas, ali tão juntas, e
dotadas de ações e sensações humanas, são um entre os vários pares românticos
precípua para alguma realização positiva. Isso porque, como aponta Rocha (2010,
p.30), “cada anúncio, à sua maneira, é a denúncia de uma carência da vida real”,
cuja solução sempre é indicada através de mercadorias. Em todos esses anúncios
aqui analisados, no entanto, eles ganham um verniz a mais: além de solução
cotidiana, ele é símbolo de um sentimento.
Mas, se nessas peças publicitárias de Dia dos Namorados imperavam os
sentidos do amor romântico, quais eram os principais conceitos norteadores da
publicidade do período como um todo? De acordo com a socióloga Maria Eduarda
da Mota Rocha (2010), no Brasil das décadas finais do século XX a tônica dos
anúncios passou de ideias nacionalistas a apelos polares como economia e status,
bem como perpassou o culto à tecnologia e as preocupações ambientais. A partir
das publicidades aqui estudadas, é possível apontar um predomínio dos cosméticos,
das roupas e dos produtos tecnológicos nos anúncios de Dia dos Namorados. Em
relação a esses últimos, ganha destaque a variedade e a recorrência de aparelhos
voltados para os cuidados corporais das mulheres, em especial os depiladores
elétricos. Há o Beauty Lady, da Philips, que “deixa as mulheres lisinhas e os homens
arrepiados” (VEJA, n. 1185, 5 de junho de 1991, p.93) e o Walita, pois “se ela tiver que
chorar, que seja por amor” (VEJA, n.457, 8 de junho de 1977, p.93). Esses anúncios
estão atravessados pela legitimação social de uma determinada conduta corporal (a
depilação), que é parte de um conjunto de cuidados que mulheres e homens têm
com os seus corpos. Perpassados de valores historicamente construídos e
socialmente corroborados, essas maneiras de se conceber o lidar com os corpos –
moldando-os, reprimindo-os, legitimando-os, promovendo-os – têm nas
publicidades um interessante ponto de recorrência.
Produções no tempo, os anúncios publicitários são, por sua condição
histórica, uma rica possibilidade para a análise de modas, objetos, técnicas e tantos
outros traços de uma época, como as próprias noções de amor e os símbolos deste.
Todavia, mediadora de pessoas, sentidos e sensações, a publicidade também traça
sentimentos, seja invadindo paixões ou mobilizando corpos, seja criando desejos e
REFERÊNCIAS
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 1995.
RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil: quando a multidão voltou às ruas. São
Paulo: Ática, 1994.
ROSTOLDO, Jadir Peçanha. Brasil: 1979-1989: uma década perdida? Jundiaí, Paco
Editorial: 2014.
MITOS
DO AMOR
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a presença de Eros nos poemas que
compõem Memória Corporal, livro de Roberto Pontes publicado em 1982, cujos
versos são marcados por profundo sensualismo. A obra nos traz uma reflexão
amadurecida sobre a vivência amorosa. Desde “Cinco Prelúdios” até “Epitáfio”,
respectivamente, o primeiro e o último poemas desse livro, verifica-se que são
memorados todos os momentos marcantes do ciclo do amor: conhecimento, paixão,
fortalecimento do amor e fenecimento da relação. Assim, Memória Corporal
apresenta um canto de união que busca a realização integral do ser humano que
encontra no outro um sentido de vida e de felicidade a partir do erotismo. Para o
desenvolvimento deste artigo fizemos uso das contribuições de estudiosos como
Octavio Paz (1994) e Georges Bataille (2004).
Palavras-chave: Eros. Memória Corporal. Roberto Pontes. Poema.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar a presença de Eros nos poemas que
compõem Memória Corporal, livro de Roberto Pontes publicado em 1982. Roberto
Pontes, um dos fundadores do Grupo SIN de Literatura, é autor de grande
importância na literatura brasileira. Sua obra poética é composta pelos livros:
Contracanto (1968), Lições de Espaço (1971), Temporal (1976), Memória Corporal
(1982), Verbo Encarnado (1996, 2014), Breve Guitarra Galega (2002), Hierba
Buena/Erva Boa (2007), 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (2010; 2014), Lições de
Tempo/ Lecciones de Tiempo (2012) e Os Movimentos de Cronos/Los Movimientos de
Cronos (2012).
Memória Corporal apresenta poemas eivados de erotismo, porém, sem cair
na linguagem hiperbólica dos enamorados muito menos na pornografia, conforme
ressalta José Hélder de Souza: “Formas sutis de cantos de exaltação ao amor, tudo
só insinuado, nada vil ou chulo. É isto o que faz Roberto Pontes em sua poesia
verdadeiramente erótica” (1983, p. 7).
A obra é composta por quarenta e cinco poemas cujo protagonista é o
Amor, Língua de Eros
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próprio Eros. Observa-se que os versos de Memória Corporal são, pois, de cunho
erótico, uma vez que neles está presente a necessidade do ser humano de buscar a
sua completude por meio do amor.
76 Como fonte de pesquisa sobre os deuses da mitologia, foi utilizado o Dicionário de Mitos Literários
(2005), que apresenta as seguintes versões sobre a história de Eros: O Eros das cosmogonias (A
teogonia de Hesíodo: Eros, força geratriz; O demiurgo do orfismo; Um poder universal: Eros e a
natureza); O deus do amor (Eros e Afrodite; A poesia erótica grega: preciosismo e crueldade, O
banquete, de Platão: duplicidade de Eros; Eros iniciático); Eros na literatura ocidental: lugares-comuns
e renovações (O deus do amor em Guillaume de Lorris, Renascença: do Amor cego ao amor divino,
Duas peças alegóricas de Marivaux).
Amor, Língua de Eros
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havia vinho, entrou nos jardins de Zeus e, pesado como estava, adormeceu. Pênia,
então, premeditando ter um filho com Poros, dormiu com o deus e concebeu Eros.
Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante
as suas festas natalícias. Além disso era, por natureza, amante da beleza, porque
Afrodite também era muito bonita.
Eros, então, é filho de Pênia e Poros, por isso é sempre pobre e não é,
como normalmente se pensa, delicado e belo. É tão pobre quanto sua mãe e, assim
como seu pai, Eros está sempre à procura de seres dotados de belos corpos e
almas. Tal busca é voraz e repleta de artimanhas. Eros lança mão de muitos
expedientes para atingir seu alvo. Além disso, ele é um encantador forte e
envolvente.
É este último Eros desejante e complexo que constitui o cerne dos poemas
que compõem a obra literária em análise.
Vale ressaltar que em Memória Corporal o poeta não explora a pornografia,
mas sim o erotismo, conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes
ao sexo. O termo “erótico” provém do grego ‘erotikós’, que se referia ao amor
sensual e à poesia de amor. Deriva de “eros” (em grego:"ἔρως" transliteração para o
latim "érōs"), o amor apaixonado, com desejo e atração sensual. A palavra moderna
grega “erotas” significa “o amor (romântico)”.
Durval Aires Filho (1984) encara Memória Corporal como um conjunto de
poemas cujo núcleo é o enfoque de Eros em seus diversos momentos, sem que esta
aventura de amor se enverede pelos fáceis caminhos do romantismo piegas e/ou da
pornografia.
O vocábulo erotismo surgiu no século XIX, referindo-se às paixões, aos
amores intensos e à procura constante da sensualidade. A palavra erotismo se
relaciona a Eros, que representa a união dos seres que se amam. Tal ideia é
abordada por Freud ao definir o impulso erótico como a vontade de ser dois corpos
em um.
Georges Bataille, no ensaio O Erotismo, parte da ideia de que o erotismo se
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação,
que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal.
Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem – som
que emite sentido, traça material que denota ideias corpóreas – é capaz
de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação, por sua vez, o
erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação.
(PAZ, 2001, p. 49).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No tocante a Memória Corporal, vimos não se tratar de mais um livro de
poemas sobre o amor. O autor conseguiu, por meio de seu poder artístico, recriar o
universo recorrente do amor, imprimindo nova cor e feição a este sentimento, sem
incorrer na pornografia nem no romantismo hiperbólico e piegas comum em muitos
textos do gênero.
Publicado no início dos anos 80 do século XX, Memória Corporal nos traz
uma reflexão amadurecida sobre a vivência amorosa. Desde “Cinco Prelúdios” até
“Epitáfio”, respectivamente, o primeiro e o último poemas dessa obra, verificamos
que são memorados todos os momentos marcantes do ciclo do amor:
conhecimento, paixão, fortalecimento do amor e fenecimento da relação. Contudo,
o amor em si não morre, pois sua lembrança permanece viva por meio da memória
do poema. Assim, vencendo Tanatos, Eros fica registrado não só na memória
daquele que amou, mas também na “verdade indestrutível de um poema”.
Nos versos da obra em estudo, os amantes estão livres de quaisquer formas
de repressão e medo. Eles apenas buscam a felicidade da maneira mais livre
possível. A nudez não surge, nesse contexto, como fator pornográfico, antes
comparece como manifestação de liberdade.
Assim, Memória Corporal apresenta um canto de união que busca a
realização integral do ser humano que encontra no outro um sentido de vida e de
felicidade.
REFERÊNCIAS
BRANCO, Lúcia Castello. O que é Erotismo. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1984.
BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionário de Mitos Literários. 4. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005.
PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. 4ª ed.
São Paulo: Siciliano, 1994.
A MORTE EM VENEZA
Esta obra, A Morte em Veneza, classificada como Novelle, foi escrita em 1911 e
publicada em 1912 e apresenta a história de Gustav von Aschenbach, um famoso
escritor de cinquenta anos que viaja para Veneza à procura de descanso, mas ao
chegar lá, tem seu sossego roubado e a alma atribulada devido a um único fato: a
presença de um rapaz que está hospedado juntamente com a família no mesmo
hotel em que se encontra o escritor. A inquietação em sua alma se dá quando
Aschenbach ao olhar para o rapaz, contempla uma beleza jamais vista em outrem e
que acreditava existir apenas no diálogo platônico. A conturbação em sua alma é
tamanha que acaba deixando todo o seu corpo inteiramente vulnerável com relação
ao seu comportamento e ações, pondo em risco sua própria vida e integridade
profissional.
Antes da dedicação completa sobre esta Novelle, algumas considerações
devem ser levantadas com relação à obra de Thomas Mann, por exemplo: deve-se
admitir que é uma leitura difícil de ser realizada, pois seu estilo é altamente
rebuscado; a prolixidade em sua obra é corrente (às vezes ele usa uma página
inteira para um só período, ideia ou mesmo uma frase); a tradução é desafiadora e
árdua, principalmente porque ele faz muito uso da ironia romântica; seu texto é
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Ele via, via realmente uma paisagem, pantanosa região tropical, sob um
céu brumoso, pesado, paisagem úmida, exuberante, monstruosa, espécie
de selva primordial, entrecortada por cursos d’água a formarem ilhas,
lodaçais, nesgas barrentas; via como, em meio a luxuriantes fetos se
elevavam aqui e acolá cabeludos troncos de palmeiras, brotando de solos
cobertos de uma vegetação farta, túmida, esdruxulamente florida; via
árvores excêntricas, disformes, a estenderem suas raízes através do ar em
direção ao chão ou as águas estagnadas, nas quais se espelhava o verdor
sombrio; via por entre flores aquáticas, brancas como leite e enormes
como bacias, aves exóticas, de ombros altos e bicos enormes, a
quedarem-se nos bancos de areia, mirando a seu redor, imóveis; via a
confusão das hastes nodosas de um bambual, os olhos de um tigre
agachado, e sentia como o seu coração palpitava de pavor e misterioso
desejo. Então desvaneceu-se a visão. (2015, p. 13-14).
Thomas Mann, apresenta em seu texto “Éramos cinco” encontrado nos arquivos de
Viktor Mann. Ela diz, sem indicar o país, que nascera na floresta virgem (“Urwalde”
sic), entre macacos e papagaios (“unter Affen und Papageien” sic), sob o sol intenso
ou sob as chuvaradas tropicais.
Uma outra questão a ser levantada diz respeito à súbita vontade de
Aschenbach em viajar, justamente logo após a aparição desse estranho homem no
pórtico. O próprio texto diz: “É, contudo, possível que sua imaginação tenha sido
influenciada pelo aspecto peregrino do estranho”. Há a possibilidade de Thomas
Mann ter expressado uma inquietação que nem ele mesmo sabia possuir, mas que
se manifestava mais claramente na vida de sua mãe. Júlia possuía uma misteriosa
inquietação no que diz respeito à moradia; após a independência dos filhos, ela
tornara-se uma espécie de nômade, mudando-se de “pensão em pensão”, talvez
sentindo o vazio de ser mãe, visto que não tinha mais os filhos consigo. De repente,
essa inquietação também fazia parte da genética de Mann e ele mesmo sentia esses
conflitos de alma entre a lógica e o romantismo, um perpétuo conflito entre duas
raças, como Linhares comenta, “...pois se do pai herdou o equilíbrio e a lógica, dela
lhe adveio o romantismo apaixonado e sensual, algo de estranho e doentio. A sua
complexidade, a sua originalidade vem desse perpétuo conflito, desse duelo
incessante entre as duas raças que nele se digladiam” (1953, p.277). Uma hipótese
foi levantada por Rosenfeld com relação ao comportamento de Mann e que leva ao
complexo de Édipo, pois em sua obra geralmente aparecem essas mulheres
“exóticas e tentadoras”.
Ainda abordando esse aspecto da biografia de Mann dentro de suas obras, o
segundo capítulo de A Morte em Veneza apresenta a biografia do famoso escritor
Gustav Aschenbach que muito se aproxima de seu criador, como se pode ver no
trecho seguinte, “nascera em L. (...) filho de um alto magistrado. (...) Uma dose de
sangue mais ágil e mais quente fora injetado na geração anterior da família pela
mãe do escritor. (...) Dela derivavam os sinais de uma raça estranha na aparência de
Aschenbach” (2015, p.17). Acaso com essa informação, quis Mann apresentar sua
própria ascendência? A novela diz que Aschenbach nascera em “L.”, e Mann nasceu
em “Lübeck” (ambos se iniciam com “L”). O poeta decadentista descendia de uma
família da alta burguesia e ele sempre tentava deixar essa informação em evidência;
não era uma burguesia capitalista, mas uma burguesia da Idade Média, imbuída de
tradições e cuidados com a atividade cotidiana. Por fim, ele mesmo se referia à mãe
como “exótica”, pois ele sabia que ela era brasileira e possuía ascendência indígena.
As informações acima, se analisadas, muitas semelhanças podem ser constatadas
com a biografia do protagonista da novela.
Thomas Mann era consciente de sua etnia, como já foi mencionado, e sabia
que de alguma forma isso o influenciava, talvez não biologicamente, mas
psicologicamente, e, claro, influenciaria nele enquanto artista. Tanto Thomas quanto
Heinrich, seu irmão, também escritor, sentiam-se marcados por esses traços
psicológicos. Ambos retratam em obras distintas a presença de uma mulher
“exótica” ao modo de sua mãe. Na obra em questão mais uma vez constata-se algo
semelhante entre Mann e Aschenbach, “A combinação de uma prosaica consciência
profissional e de enigmáticos impulsos fogosos dava origem a um artista e,
precisamente, àquele artista inconfundível” (2015, p.17). Rosenfeld, em seu ensaio
intitulado Thomas Mann, escreve,
A MORTE
A obra em análise carrega no próprio título uma das principais engrenagens
da obra: a morte. Num primeiro momento, quando da leitura do título, o leitor sabe,
e não equivocadamente, que algum personagem morrerá. De fato, essa sentença
não é escondida de ninguém. O que não se sabe a priori é que a morte na novela
não surgirá meramente como o último estágio na vida de alguém, mas que a morte
figurará quase como uma entidade autônoma, uma divindade, um ser mítico que se
fará presente em Veneza. A prova disso são todas as formas como a Morte se
apresenta para Aschenbach, ainda que sutilmente, pois se utiliza de símbolos e sem
perceber é conduzido por ela.
A primeira vez em que a Morte figura na novela é na misteriosa aparição, aos
arredores do cemitério, de um estranho homem no pórtico “logo acima dos dois
animais apocalípticos que vigiavam a escadaria” (2015, p.12) encarando Aschenbach.
Como já foi dito anteriormente, o homem tinha um semblante estranhíssimo e “os
lábios pareciam excessivamente curtos e recuavam dos dentes a tal ponto que estes
ficavam visíveis até as gengivas, brancos, compridos e como que arreganhados”
(2015, p.13). Seus trajes o denunciavam viajante e talvez isso tenha provocado em
Aschenbach, o súbito desejo de viajar. É nesse momento que a sentença do escritor
é selada. Parece ter sido convencido por um gênio a viajar e, consequentemente, a
ir ao encontro do seu fim, da sua morte, como se explicita no trecho que segue, “É,
contudo, possível que sua imaginação tenha sido influenciada pelo aspecto
peregrino do estranho ou que tenha entrado em jogo qualquer outra interferência
física ou psíquica” e “Era o desejo de viajar, nada mais, mas que o acossava com a
força de um acesso, intensificando-se às raias de uma paixão e mesmo de uma
alucinação” (2015, p. 13).
Um segundo momento em que fica evidente a personificação da Morte
conduzindo o protagonista a Veneza é a figura do gondoleiro e sua gôndola. O
próprio narrador se ocupa de fazer a associação das gôndolas à caixões:
sons entrecortados ao ritmo do movimento dos braços” (2015, p.30). Esse ser
também usava chapéu de palha, tal qual o viajante do início da novela. De certa
maneira ele associa o gondoleiro ao caronte (personagem da mitologia grega
responsável por conduzir as almas em seu barco até o Hades). Mais uma vez tem-se
a Morte personificada conduzindo aquela alma que se encontrava em conflito, à sua
última morada. Tanto o viajante de “aparência invulgar” quanto o gondoleiro,
aparecem e desaparecem misteriosamente diante de Aschenbach; ambos
simbolizam a Morte e o levam em direção à Morte, sim!, pois a partir do momento
em que a vontade desenfreada de viajar penetrou o coração de Aschenbach, ele
assinou sua sentença de morte. Ao ser conduzido pelo gondoleiro até Veneza, ia ao
encontro de sua própria ruína. São os “mensageiros da morte” sempre apontando
para o fim do personagem. Isso pode ser chamado de Leitmotiv (serve como tema
por toda a obra). Até a cidade de Veneza é um “mensageiro da morte”, é um
símbolo do reino da morte. Veneza é uma cidade bela, mas é podre, cheira mal; é
bonita por cima, na sua superficialidade, mas no fundo é podre e prenuncia a morte.
Cada uma dessas particularidades, quer seja um gesto, uma emoção ou uma
atmosfera, quando cuidadosamente analisadas, exalam informações de suma
importância que contribuem na compreensão do estilo literário do autor. Deve-se
ter a consciência de que cada detalhe escrito não foi escrito em vão, mas fazia parte
de uma nova filosofia que inspirava o autor, e que transformava a novela, antes
transparente e concisa, condensada num símbolo, já que nela figurava um quadro
de extremo realismo psicológico. Esse tipo de transformação, do real para o
simbólico, é traço característico da novela: viajante e gondoleiro são concretos,
porém, assumem uma essência ambígua, transcendental, mitológico-simbólica.
DO BELO E DO AMOR
Uma outra questão a ser analisada é a busca do escritor pela beleza perfeita.
Logo após a chegada no hotel luxuoso, Aschenbach se depara com Tadzio, um
menino polonês de quatorze anos que está acompanhado de sua família. Ao
A última reflexão filosófica que Aschenbach faz, ocorre logo após sua inútil
tentativa em rejuvenescer e após uma perseguição vã pelas ruas da cidade enferma
(um surto de cólera assolava Veneza). Perseguia a família polonesa, atraído pelo seu
amado. Perde-os de vista e em vão continua a procurá-los; quando já exausto,
diante da ventania morna que subia e ali se instalava, compra umas frutas de um
verdureiro e ali mesmo na rua, numa cisterna, lava o alimento e come. É dessa
forma que ele adoece de cólera. Sentado na rua, em um momento de delírio, supõe
manter um diálogo com Fedro sobre o belo:
CONSIDERAÇÕES GERAIS
Em A Morte em Veneza, Thomas Mann decide um final para seu personagem
principal e o destino de Aschenbach é traçado desde muito cedo e isso é
evidenciado no título da novela. Ele vai conduzindo o personagem por meio de uma
linguagem simbólica, mítica e envolvente, mas é necessário que o leitor tenha um
conhecimento prévio sobre alguns assuntos por ele abordados na obra. Não
permite que um leitor vulgar, sem um conhecimento mínimo filosófico, compreenda
algumas nuances das reflexões que o protagonista faz. De um modo geral, a novela
será entendida, obviamente, mas provavelmente o leitor que não está acostumado à
linguagem de Mann encontrará dificuldade na leitura desde o vocabulário
rebuscadíssimo até suas reflexões platônicas e nietzschianas. A arte e a morte se
opõem, se atraem e se chocam!
REFERÊNCIAS
CARPEAUX, Otto Maria. A História concisa da Literatura alemã. 1.ed. São Paulo: Faro
Editorial, 2013.
CHACON, Vamireh. Thomas Mann e o Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
MANN, Thomas. A Morte em Veneza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MANN, Thomas; e outros autores. Textos e Estudos de Literatura Alemã. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1968.
PLATÃO. Fedro. edição bilíngue. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2016.
ROSENFELD, Anatol. Ensaios. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
THEODOR, Erwin. Introdução à literatura alemã. Rio de Janeiro: Coleção Buriti, 1968.
que a erotização das crianças é encenada – cortinas abertas – entre atores, que, não
necessariamente, vivem as surpresas aflitivas pela primeira vez. A partir dessas três
experiências artísticas, busca-se compreender a leitura que a Literatura empreende do
amor infantil, com apoio, entre outros, em autores como (ABRAMOVICH, 1985),
(ROUGEMENT,1988), (GAY, 1999) e (HOYSTAD, 2015).
Palavras-chave: Amor; Infância; Literatura; Interdição; Erotismo.
77 A frase teve como testemunha Thomas Moore, escritor irlandês (1799-1852), biógrafo de Byron e
responsável pela publicação de sua escrita íntima, cartas e diários.
78 Outros sonhos é uma composição do artista, lançada no álbum Carioca, datado de 2006.
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79 François Boucher (1703-1770), Émile Munier (1840-1895) e Guillaume Seignac (1870-1924) são mais
alguns dos pintores que desenharam em suas telas a expressão ansiosa de Cupido ao se ver
destituído de sua seta mortífera.
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80 No original, o poema intitula-se “My Heart Leaps Up”. A presente tradução é de Paulo Vizioli. “Eu
sinto o coração bater mais forte./Quando o arco-íris posso ver./Assim foi quando a vida
começou,/Assim é agora quando adulto sou/E assim será quando eu envelhecer.../Senão, melhor a
morte!/O menino é pai do homem;/E eu hei de atar meus dias, cada qual,/Com elos da piedade
natural.” (WORDSWORTH, 1988, p. 49).
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romântico o faz numa clave solar, ao passo que Machado de Assis se apropria da
enunciação como prova do determinismo que a estética realista se comprazia em
atestar. A grande questão do livro, expressa no fato de ser a dissimulação o eixo
construtor da personalidade de Capitu, e a insegurança a de Bentinho, é um dos
aspectos que mais densificam a narrativa, tornando-a um romance da dúvida. Como
tal, é possível pensar que toda a construção dos protagonistas se vale do perfil
infantil de ambos à maneira do indício 81, palavra que define a marca textual
proposta por Roland Barthes: um elemento de significado premonitório no
andamento da intriga romanesca.
Como um deus trêfego que é, Cupido encontra formas variadas de levar ao
acometimento amoroso. Versáteis também são os modos de dizer as paixões
infantis. Em Boitempo II 82, com destaque para a seção “O menino e os grandes”, o
eu-lírico recorre à clave do confessionalismo para relatar a descoberta do desejo, na
paisagem itabirana, transcrita nas recordações de infância de Carlos Drummond de
Andrade.
Para fugir à mediania do mundo terreno, incompatível com a ordem de
grandeza do tema, a voz poemática se transporta para dimensões estelares, como
visto em “Órion”:
81 Em outra leitura deste trecho de Dom Casmurro, tivemos ocasião de observar que o capítulo do
beijo “obedece a uma rígida convenção sintagmática, pois é precedido pela célebre reflexão em
torno dos ‘“olhos de ressaca”’. (COUTINHO, 2011, p. 77).
82 A publicação da obra teve início em 1968, com Boitempo & A falta que ama, seguidos de Menino
antigo: Boitempo II (1972) e Esquecer para lembrar: Boitempo III, (1979). Na reedição da editora
Companhia das Letras, a obra se apresenta compactada em dois volumes: Boitempo, Menino antigo,
e Boitempo, Esquecer para lembrar, 2017.
A expansão lírica gerada pelo olhar voltado para o outrora assinala a afecção
amorosa como algo indefinível, sensação que, do ponto de vista do poema, é
83 A expressão aponta para um jogo intertextual de Drummond com o Camões do Canto IV, de Os
Lusíadas, onde se vê “saber de experiências feito”. Transcrita em “O outro nome do verde”, de Os
Caminhos de João Brandão, faz companhia ao seguinte comentário de Drummond sobre Machado:
“Não resta dúvida, técnico em olho de mulher, o criador de Capitu.” (ANDRADE, 2016, p. 54)
84 Na Literatura Colombiana, é digno de destaque o conto “Frida”, de autoria de Yolanda Reyes
(1959), que relata o drama de Santiago, que após conhecer seu amor infantil, e com ela experimentar
o primeiro beijo, conclui categórico: “Para mí la vida se divide en dos: antes y después de Frida. No sé
cómo pude vivir estos once años de mi vida sin ella. No sé cómo hacer para vivir de ahora en
adelante.” No final da narrativa, o pequeno Byron assevera: “Esto de enamorarse es muy duro...".
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pessoa que sou eu agora, por que não me reconheço mais? fórmula auto-
indagativa desses seres marcados pela “dor que desatina sem doer” – como dizia
Camões, um grande amoroso. Esses personagens, habitantes do reino das
interrogações, cumulam-se de porquês, em meio a tempestuosos e pungentes
pensamentos. Tudo isso é explicitado por Machado de Assis e Drummond, nos
personagens aqui escolhidos, os quais cumulados de dúvidas, findam por mostrar o
sentido de humanidade, que é depreensível da Literatura, e que educa nossa
sensibilidade para a meditação sobre as grandes questões do indivíduo, que muitas
se abrigam num coração de criança.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo II. Rio de Janeiro: Record, 1987.
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 4. ed. Trad. Maria Zélia
Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1976.
HOYSTAD, Ole Martin. Uma história do coração. Trad. Noeli Correia de Melo
Sobrinho. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.
dignus amari /ille, sed ut pater, est. ergo, si filia magni / non
essem Cinyrae, Cinyrae concumbere possem:/nunc, quia iam meus est,
non est meus, ipsaque damno /est mihi proximitas: aliena potentior essem.
Digno de ser amado, /mas como pai, ele é. Assim, se eu não fosse filha
/do grande Ciniras, com Ciniras poderia deitar-me: /agora, porque já é
meu, não é meu, e me é danosa /a própria proximidade: afastada, eu
seria mais forte. (OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 143).
Mirra confessou sua paixão a uma criada. Esta contou ao pai de Mirra que
uma jovem prostituta desejava se deitar com ele. Durante a noite, Mirra se disfarçou
de prostituta e dormiu com o pai. “accipit obsceno genitor sua viscera lecto /
virgineosque metus levat hortaturque timentem. Aceita o genitor suas entranhas em
leito obsceno /e os virgíneos medos alivia e estimula a temerosa (OVÍDIO in
PREDEBON, 2006, p.146).
Como consequência, Mirra ficou grávida. Quando Cíniras descobriu a
gravidez da filha, num acesso de raiva, perseguiu-a para fora de casa com uma
espada.
quae quamquam amisit veteres cum corpore sensus, /flet tamen, et tepidae
manant ex arbore guttae. Embora com o corpo perdera os antigos
sentidos, /no entanto chora, e da árvore manam tépidas gotas.
[…] At male conceptus sub robore creverat infans /quaerebatque viam, qua
se genetrice relicta exsereret; media gravidus tumet arbore venter. tendit
onus matrem;
[...] Mas, concebido de um mal, sob o madeiro crescera /o infante e
buscava caminho por onde, abandonada a genetriz, /se desvencilhasse;
incha o grávido ventre /no meio da árvore.
(OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 147).
Labitur occulte fallitque volatilis aetas, /et nihil est annis velocius: ille
sorore /natus avoque suo, qui conditus arbore nuper, /nuper erat genitus,
modo formosissimus infans, iam iuvenis, iam vir, iam se formosior ipso
est, /iam placet et Veneri matrisque ulciscitur ignes.
Desliza oculto e voa o tempo fugidio, /e nada é mais veloz que os anos:
ele, da irmã
filho e de seu avô, escondido na árvore há pouco, /há pouco gerado,
ainda há pouco a mais formosa criança, /já o jovem, já o homem, já mais
formoso que ele mesmo, já apraz a Vênus e da mãe os fogos vinga.
(OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 148).
Perséfone se recusou a devolver Adônis a Afrodite. Zeus, o rei dos deuses, interveio
e determinou que Adônis passasse quatro meses do ano com Perséfone no
Submundo, depois quatro meses com Afrodite, e os quatro meses restantes como
quisesse. Como Adônis estava muito impressionado com Afrodite, ele dedicou seus
outros quatro meses a ela.
Adônis era conhecido por suas habilidades de caça e, em uma das viagens
feitas com essa finalidade, Adônis foi atacado por um javali – em algumas narrativas
do mito esse javali era o deus Ares, um dos amantes de Afrodite que estava com
ciúmes do amor da deusa por Adônis. Adônis começou a sangrar nas mãos de
Afrodite, que derramou seu néctar mágico em suas feridas. Embora Adônis tenha
morrido, o sangue se misturou ao néctar e fluiu para o solo. Do solo brotou uma flor
cujo perfume era o mesmo que o néctar de Afrodite e cuja cor era a cor do sangue
de Adônis – a flor da anêmona.
Em sua morte, Adônis voltou ao Tártaro, o Submundo, e Perséfone teve o
prazer de revê-lo. Quando Afrodite percebeu que Adônis estava no Submundo,
correu para recuperá-lo. Mais uma vez, ela e Perséfone discutiram sobre quem
deveria ficar com Adônis, e Zeus interveio. Desta vez, ele decidiu que Adônis deveria
passar seis meses com Afrodite e seis meses com Perséfone, como deveria ter sido
desde o início.
No mito de Adônis e Afrodite existem traços remanescentes de épocas
anteriores, como a da civilização cananeia. Nessa civilização, a história de Adônis e
sua amante, a deusa Afrodite, era popular com os nomes de Adon e Astarte. Era
uma história que já estava cristalizada e já fazia parte do imaginário individual e
coletivo dos canaanitas. Era uma história muito conhecida pelos povos da
Mesopotâmia e do Egito, e isso, esse hibridismo, se explica pelas relações comerciais
existentes entre os povos de Canaã, Egito e Mesopotâmia.
Segundo Cordeiro (2013), desde a pré-história, a área que hoje
corresponde a Israel, Líbano, Síria e Jordânia foi ocupada por um mesmo povo: os
cananeus. Nesse território em boa parte desértico, que mais tarde seria prometido
por Deus aos israelitas, eles construíram uma civilização relativamente sofisticada.
Dominavam a metalurgia. Eram bons ceramistas. Mantinham relações comerciais
com o Egito e a Mesopotâmia. E foram os primeiros daquela região a adotar um
alfabeto.
O deus Adon foi considerado um dos deuses canaanitas mais importantes:
ele era o deus da beleza, da fertilidade e da renovação permanente. O mito, além
de Adon, envolve sua eterna amante Astarte, na civilização cananeia, a deusa do
amor e da beleza.
Segundo Azar (2016), O mito de Adônis é de origem siríaca, e simboliza a
natureza que brilha na primavera e morre no outono. A deusa Astarte tinha se
apaixonado por Adon, mas um rival ciumento, escondendo seu rancor no corpo de
um javali, o havia matado. No solstício de verão, Adon ressuscitava e se juntava a
sua amada.
Azar (2016) comenta que a popularidade da história de Adônis e sua
amante Afrodite levou a um renascimento (atualização do resíduo na Teoria da
Residualidade) de seus rituais em muitas outras cidades fenícias (hibridação cultural).
Também se espalhou pelos antigos mundos grego e romano, mas com pequenas
diferenças na adaptação, dependendo das características de cada civilização (pela
hibridação cultural, verificam-se a desterritorialização e reterritorialização do mito).
Azar (2016) segue dizendo que a essência (resíduo) da lenda, no entanto,
permanece intacta em todas as adaptações (história já cristalizada): um deus da
beleza e da juventude e seu relacionamento com a deusa do amor, juntamente com
a morte do jovem deus e o retorno à vida, sendo uma metáfora do renascimento
anual da natureza.
Astarte para os cananeus, Afrodite para os gregos e Vênus para os
romanos. Adon e Astarte. Adônis e Afrodite. Adônis e Vênus. Esse mito de amor
desde os seus primórdios quase não sofreu variação em seu enredo. É uma história
de há muito cristalizada. Mas percebemos que as histórias sofrem variações na linha
do tempo das mentalidades de média e longa duração e, analisando-as pela
– Havia em uma cidade um rei e uma rainha, e tinham três filhas muito
formosas: das quais, duas das com mais idade, como eram formosas e
bem-dispostas, podiam ser elogiadas por louvores de homens; mas a
mais nova, era tanta sua formosura, que não bastam palavras humanas
para poder exprimir, nem suficientemente elogiar sua beleza. (APULEYO,
2003, p. 55).
Argumento do livro V:
Este quinto livro contém os palácios de Psique e os amores que com ela
teve o deus Cupido, e de como suas irmãs lhe vieram visitar; e da inveja
que tiveram dela, por cuja causa, acreditando Psique o que lhe diziam,
feriu seu marido Cupido com uma chaga, pela qual caiu de um cume de
sua felicidade e foi posta em tribulação. À qual, Vênus, como a inimiga,
persegue muito cruelmente, e finalmente, depois de haver passado muitas
penas, foi casada com seu marido Cupido, e as bodas celebradas no céu.
(APULEYO, 2003, p. 58).
Depois de, com muita fadiga, haver procurado o Cupido e depois do que
lhe avisou Ceres, e do mau acolhimento que achou em Juno, Psique, de
sua própria vontade ofereceu-se à Vênus; logo escreve a ascensão de
Vênus ao céu, e como pediu ajuda aos deuses; e com quanta soberba
tratava a Psique, mandando-lhe que separasse de uma grande pilha
[formada] de todas as sementes cada linhagem de grãos por sua parte, e
que lhe trouxesse o Velocino de Ouro; e do licor do lago infernal lhe
trouxesse um jarro cheio; do mesmo modo lhe trouxesse uma caixa cheia
de formosura de Prosérpina; todas as quais feitas com ajuda dos deuses;
Psique casou com seu Cupido no conselho dos deuses. E suas bodas
foram celebradas no céu, do qual matrimônio nasceu o Deleite.
(APULEYO, 2003, p. 71).
Uma curiosidade é o paralelo quase exato com o Deus Kama, que havia
surgido no Panteão Hindu pelo menos quinze mil anos antes dos deuses
gregos (alguns Autores vão mesmo mais longe: os deuses hindus
existiriam no imaginário daquela antiquíssima civilização uns cinquenta mil
anos antes mesmo do surgimento da civilização Creto-Micênica!
Diferentemente de Cupido, apresentado como um anjinho usualmente
com os olhos vendados – “o amor é cego…” – Kama (ou Kamadeva) é um
gigante terrível com flechas explosivas que trazem na ponta inscrições
como “Trago Dor, Agonia e Desespero”, “Abra-se!”; “Acabou a sua Paz...”
(CHAVES, 2015).
Com um arco florido e cinco flechas, ele voa entre as árvores das florestas
e acerta o coração de suas vítimas, deixando-as apaixonadas. Embora
lembre o tão popular Cupido, o deus romano do amor (Eros, para os
gregos), a descrição é de Kama, a divindade indiana do desejo.
Eternamente jovem, Kama é considerado o mais bonito entre os 330
milhões de deuses do panteão hindu. No Ocidente o termo sânscrito
chegou com o clássico KAMA SUTRA. A obra escrita entre os séculos III e
V, é uma espécie de manual técnico para o aumento do prazer sexual.
Por isso Kama também é muitas vezes visto como o deus do desejo
erótico.
REFERÊNCIAS
AZAR, Elias N. Adonis. In: Ancient History Encyclopedia, 2016. Disponível em https://
www.ancient.eu/Adonis. Data da pesquisa: 26 de abril de 2019.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas, poderes oblíquos. In: _____. Culturas
Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad.: Ana Regina Lessa e
Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 283-350.
CIVITA, Victor (Org). Mitologia. Vol. I. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
HESÍODO. Teogonia: A origem dos deuses. Estudo e tradução Jaa Torrano. São
Paulo: Editora iluminuras, 1995.
PENGLASE, Charles. Greek Myths and Mesopotamia: Parallels and Influence in the
Homeric Hymns and Hesiod. London and New York: Routledge, 1994.
Kama, O cupido hindu, e Rati, a deusa dos prazeres eróticos. Disponível em:
https://fenixdefogo.wordpress.com/2012/12/25/kama-o-cupido-hindu-e-rati-a-
deusa-dos-prazeres-eroticos/. Pesquisa realizada em 25 de setembro de 2019.
Resumo: Lavoura arcaica (1975) é uma narrativa nada convencional e o incesto, tema
em torno do qual o enredo se constrói é um dos assuntos mais polêmicos e
constituinte de nossos “totens e tabus”. Assim, de autores antigos aos
contemporâneos, a temática desperta opiniões divergentes e, por vezes,
contraditórias. No romance de Raduan Nassar, o incesto desencadeia tragédias e nos
faz questionar a legitimidade do amor, uma vez que, no imaginário ocidental, esse
sentimento é tido como o mais belo e o mais nobre, de modo que, este trabalho
propõe uma leitura do incesto à luz da psicanálise freudiana a fim de esboçar uma
resposta para os questionamentos suscitados por um caso de amor desvirtuado.
Palavras-chave: Lavoura arcaica; Amor; Incesto; Virtude.
“O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade,
não se ensoberbece”.
(I Co.13.4)
85 Esse e os demais títulos das seções foram extraídos do romance Lavoura arcaica (1975), de Raduan
Nassar.
Amor, Língua de Eros
Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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(O Banquete, 203c-e).
Esse tempo de integração com o deus que ele podia pegar com as mãos e
pôr no pescoço (NASSAR, 1989) coincide com o tempo em que é cercado pelos
carinhos da mãe, o que o leva a construir uma concepção de religião na qual o
homem e o deus - ou a deusa, aqui representada pela mãe e, posteriormente, pela
natureza, - são unos. É ainda relacionado a essa união total e à noção de
exclusividade que surge o desejo inconsciente do filho pela mãe. Neste sentido,
André Luís Rodrigues (2006, p.72-73) afirma que “Nessas recordações de uma
infância tão feliz quanto irremediavelmente perdida, podemos observar o exultante
sentimento, egoísta e tão típico da criança, de exclusividade (real ou imaginada) na
recepção dos carinhos maternos.”.
Em Lavoura arcaica, a percepção de André, ainda menino, é de que a mãe
o ama de um modo exclusivo, não por amar somente a ele, mas porque acredita
que o afeto a ele dirigido é diferente do que fora direcionado aos irmãos,
retomando a noção de “bem-aventurança” que ele afirma desfrutar para com o
deus de sua infância. Desta forma, não é por acaso que, após descrever o modo
como ele se relacionava com esse deus, ele passe descrever a troca de carinhos com
a mãe, uma vez que, a cena não é uma interrupção, mas a extensão do ritual
religioso de todas as manhãs:
frequência e que constitui uma linda cena de afeto, um exemplo do amor maternal;
todavia, a inocência desse amor parece ser ameaçada pela ambiguidade com a qual
o jovem descreve o momento. Nessa perspectiva, o ambiente composto é bastante
significativo, pois nele sobressai a penumbra rompida apenas por alguns fechos de
luz que se esgueiram através das frinchas; o horário em que se passa a cena é o da
aurora, momento de transição entre o fim da madrugada e o amanhecer, indicando
a imprecisão das relações que se constroem no quarto.
A mãe e André teriam transposto a linha tênue que separa o amor maternal
do amor carnal? Não sabemos ao certo, porém, expressões como “jogo sutil”,
“debaixo do lençol”, “cicio” e o pedido “não acorda teus irmãos, coração”, são
alguns índices de que os carinhos trocados seriam dúbios e, por isso, deveriam ser
mantidos em segredo; por outro lado, esses gestos de afeto poderiam ser realmente
puros e o apelo feito pela mãe simples preocupação em zelar o sono dos filhos, não
passando de produto da imaginação qualquer sentimento que ultrapassasse o amor
maternal.
Dessa forma, o amor do filho para com a mãe, e desta para com seu filho, é
apresentado diante dos leitores como um sentimento que está para além da philia,
pois, em vários momentos temos a sugestão de que entre André e sua mãe se
desenvolve um jogo erótico responsável por alimentar o desejo incestuoso que
atravessa a infância e a adolescência da personagem. No entanto, com a transição
de uma fase da vida para outra, há também uma ruptura no modo vivendis do
indivíduo que outrora livre, unido ao deus e à família; passa a viver sob o peso das
leis de um deus que não mais reconhece como seu. É através desse não
reconhecimento com o divino, dessa ausência de alteridade, que André descreve as
mudanças nas relações familiares que o afetam quando o jovem entra na
puberdade:
A resposta ou pelo menos parte dela poderia estar no fato de que, sendo
provisória e precária a felicidade proporcionada pela mãe na infância, a
sua recordação acaba, por contraste, tornando ainda mais insuportáveis a
infelicidade e o sofrimento da idade adulta. É como se o nunca ter estado
no paraíso da infância fosse melhor (ou menos dolorido) que ter sido
expulso dele. Se não tivéssemos conhecido a felicidade, seria a infelicidade
tão difícil de suportar? Se não a conhecêssemos, nós a buscaríamos tão
sofregamente? É nessa procura que André se desencaminha. É também
por meio dela que a família se perde. (RODRIGUES, 2006, p.73).
André, afetado pelo excesso de amor, acusa a Mãe que estaria “destecendo
desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da união da
família” (NASSAR, 2016, p.41). Tal como Penélope destecia a renda que bordava
enquanto esperava o retorno de Ulisses, a Mãe de André destecia com seu afeto o
discurso paterno construído em torno da autoridade. Mas André não somente a
acusa como também se coloca ao lado dela: “eu e a senhora começamos a demolir
a casa” (NASSAR, 2016, p.70). Desta forma, também não é por acaso que ele esteja
sentado à mesa após a Mãe, ambos haviam começado a destruir o templo sólido
que o Pai levara anos para edificar: “o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa
um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa
Amor, Língua de Eros
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[...] foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes
em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância
comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas
memórias, sem trauma para a nossa história; foi um milagre descobrirmos
acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria
casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser
encontrada no seio da família; foi um milagre, querida irmã, e eu não vou
permitir que este arranjo do destino se desencante, pois eu quero ser
feliz, eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo
irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta terra, e
ama também o trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um milagre,
querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode
reverter: as coisas vão mudar daqui pra frente, vou madrugar com nossos
[...] entenda, Ana, que a mãe não gerou só os filhos quando povoou a
casa, fomos embebidos no mais fino caldo dos nossos pomares,
enrolados em mel transparente de abelhas verdadeiras, e, entre tantos
aromas esfregados em nossas peles, fomos entorpecidos pelo mazar
suave das laranjeiras[...] temos os dedos, os nós dos joelhos, as mãos e os
pés, e os nós dos cotovelos enroscados na malha deste visgo, entenda
que, além de nossas unhas e de nossas penas, teríamos com a separação
nossos corpos mutilados; me ajude, portanto, querida irmã, me ajude para
que eu possa te ajudar, é a mesma ajuda a que eu posso levar a você e
aquela que você pode trazer a mim, entenda que quando falo de mim é o
mesmo que estar falando só de você, entenda ainda que nossos dois
corpos são habitados desde sempre por uma mesma alma [...] (NASSAR,
1989, p. 129).
A fala de André retoma mais uma vez a ideia de que desde sempre ele e a
irmã pertenceriam um ao outro, pois, nascidos do mesmo útero, o laço fraternal
seria mais uma artimanha do destino para assegurar o reencontro de suas almas e a
recuperação da unidade de seus corpos, cindidos não mais no ventre materno, mas
num tempo mítico do qual Aristófanes nos reporta em seu discurso no Banquete86. A
cisão que sofrem os homens vem como castigo por ameaçarem os deuses e uma
determinada ordem do mundo. Semelhantemente, em Lavoura arcaica, Ana e
André sofrerão uma cisão mais profunda do que a simples distância imposta pela
recusa de um e a fuga do outro. Os jovens serão separados pela morte quando o
pai, representando a figura do deus, resolve punir os filhos pela violação dos
[...] a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou
um instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um
branco súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam,
desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao
alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu
pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus
olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se
outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava —
essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada como eu
pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família nossa,
prisioneira de fantasmas tão consistentes!) (NASSAR, 1989, p. 190-191).
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos
homens primitivos e dos neuróticos. 1ªed. São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2013.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
RODRIGUES, André Luis. Ritos da paixão em Lavoura Arcaica. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006.
Resumo: A Teogonia de Hesíodo sobre a origem dos deuses gregos é também uma
história de amor divina, ou ainda, de uma multiplicidade de amores e diversa,
compondo uma diversidade de amores em si mesma, mas que é dividida,
particularmente, em três amores cósmicos segundo as fases cósmicas descritas nela:
o de Céu e Terra, Cronos e Réia e Zeus e diversas deusas e humanas. Neste artigo,
pretende-se demonstrar de modo teogônico há nestas histórias a ascensão de um
amor paterno, masculino, grego, em contraposição a um amor materno, feminino,
não-grego, que é silenciado e silencioso, expresso a partir das Musas e numa
différance, mas que é submetido por um monolinguismo do outro.
Palavras-chave: Teogonia; Eros; Amor; Desejo; Monolinguismo.
Cada uma destas três histórias de amor representa uma fase cosmogônica de um
universo poético cantado pelo poeta a partir de Kháos, mas também de Eros
cantado depois dele. Neste sentido, se ao abrir a boca o poeta invoca uma
separação, Kháos, ao começar a cantar, em sua língua, é a partir de Eros que o
poeta deseja cantar seu amor aos deuses, em princípio às Musas, isto é, estabelecer
uma ligação com elas por desejo e amor, falando a língua de Eros.
É a história de amor dos poetas pelas Musas que Hesíodo canta, das quais,
porém, três histórias se destacam e, por fim, apenas uma única história de amor
divina, em sua Teogonia, em relação a Zeus, no qual todo o canto do poeta se
inverte e, quiçá, se perverte ao fazerem as Musas cantarem a Zeus e ao poeta,
silenciando-as em sua multiplicidade de vozes que não podem ser ouvidas por si
mesmas a não ser por Zeus, pelo poeta, por Hesíodo, e silenciando a multiplicidade
de histórias de amor por uma única história de amor, o amor a Zeus. Como estas
histórias de amor são silenciadas em única história de amor, eis o que devemos
ouvir, em silêncio, ouvindo o poeta em seu canto, desde tempos imemoriais, tempos
míticos.
alegra com sua maligna obra que é a de impedir que a Terra os tenha, à luz não os
permitindo, obrigando-a ao aborto ao fazer de seu ventre uma cova. Além de limite
à Terra ao cercá-la ao redor, há a imposição de um limite do Céu em relação à ela e
aos seus filhos com ela que não podem vir à luz, pois Céu quer senão ser aos
Deuses venturosos sede irresvalável sempre no lugar da Terra impondo-lhe limites.
Se este limite que é o próprio Céu foi parido pela Terra igual a si mesma
para cercá-la ao redor, isto não quer dizer que ela desejasse a obra maligna dele em
fazê-la ocultar seus filhos em si como cova, não deixando que ela os tenha em
presença, somente em ausência a si, fora de si em seu amplo seio e, sim, dentro de
si no fundo do chão de amplas vias, o nevoento Tártaro. Para cercá-la ao redor,
pode-se dizer que Terra pariu Céu para protegê-la, bem como a seus filhos, mas
não que ele a oprimisse impedindo que seus filhos viessem à luz e produzindo-lhe
com isto uma dor terrível, obrigando-a a urdir dolosa e maligna arte, pois
no mar ao encontrar as terras de Citera e Chipre, sendo ela coroada como Citeréia e
Cípria, apelidada de “Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz”.
Foi por meio de Kháos que Afrodite foi criada, no caso, por meio da
separação do pênis de Céu, a castração do seu desejo, e do próprio desejo, que ela
representa criada por um amor sem desejo, o amor de Terra por seus filhos e de seu
filho por ela, um amor maternal e filial. Se Eros a acompanha ao nascer, está atrás
dela, em segundo lugar, pois ela representa um amor sem erotismo, sem machismo,
sem masculinidade, no caso, o das “conversas das moças, os sorrisos, os enganos/
doce gozo, o amor e a meiguice. (HESÍODO, 1992, p. 117, vv. 205-6)” O nascimento
de Afrodite encerra a primeira história de amor, de Terra e Céu, e uma clivagem
entre o Amor e Eros respectivamente relacionados àqueles deuses, bem como os
dois modos de nascimento dos deuses, por cissura e separação através de Kháos e
por fissura e ligação através de Éros.
Assim como o pai, Cronos teme os filhos e faz de seu corpo a prisão para
eles como sua mãe Terra era a prisão para os seus. Repete-se nele o desejo de Céu
e o destino de seus filhos, bem como repete-se a dor de Réia enquanto mãe por
eles serem devorados por Cronos tal como sofria a Terra por seus filhos presos a si
pelo Céu. Por fim, repete-se o ardil da Terra para que isto não acontecesse mais,
principalmente, quando está prestes a nascer Zeus, pois:
O ardil aconselhado pela Terra à Réia foi de ocultar seu filho deixando-o
consigo e entregar a Cronos uma pedra no lugar. Cuidado por Terra e Céu, Zeus
nasce, cresce, adquire o poder dos avós e com a arte maligna principalmente da
Terra, engana Cronos fazendo-o vomitar seus irmão e livra das prisões seus tios
paternos Trovão, Relâmpago e Arges, os dois primeiros dando-lhe seus poderes.
Todavia, o desejo de Cronos ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre é
bem maior do que o de Céu e é travada deste modo uma batalha épica dos Titãs
ao lado de Cronos e dos Cronidas, seus filhos ao lado de Zeus, juntamente com
Mas também:
CONCLUSÃO
Assim podemos interpretar a Teogonia de Hesíodo sobre a origem dos
deuses gregos como uma história de amor divina a partir de uma multiplicidade de
amores e compondo uma diversidade de amores em si mesma, mas que é dividida,
particularmente, em três amores cósmicos segundo as fases cósmicas descritas nela.
Três histórias de amor divinos, além de muitas outras, numa história de amor
teogônico a partir da qual podemos conhecer o amor de modo único, múltiplo e
diverso, bem como diferente em sua língua a partir do qual coloca-se em questão a
língua de Eros, esta que vem depois do Kháos, a partir da qual o amor é falado.
A Teogonia de Hesíodo é uma história de amor única, mas também
múltipla, diversa, diferente e em différance, narrada senão numa única língua, mas
que não é uma única língua, como diz Derrida em O monolinguismo do outro. Isto
REFERÊNCIAS