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Universidade Federal do Ceará

AMOR,
LÍNGUA DE EROS

- ANAIS -

2020, V. ÚNICO
ISBN: 978-65-00-10294-9

Os textos são de inteira responsabilidade de seus


respectivos autores.

Amor, Língua de Eros


Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
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Reunião de artigos nascidos a partir do colóquio Amor, Língua de Eros,


realizado em 2019, em Fortaleza, na Universidade Federal do Ceará,
junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras, e com a contribuição
do Programa de Pós-Graduação em História, ambos da UFC.

Amor, Língua de Eros


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COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO

Bárbara Costa Ribeiro


Edinaura Linhares Ferreira Lima
Fernângela Diniz da Silva
Francisca Yorranna da Silva
Josenildo Ferreira Teófilo da Silva
Licilange Gomes Alves
Priscila Pesce Lopes de Oliveira
Raquel Ferreira Ribeiro
Sara Síntique Cândido da Silva
Stefanie Cavalcanti de Lima Silva

Prof. Doutora Ana Rita Fonteles Duarte


Prof. Doutor Claudicélio Rodrigues da Silva
Prof. Doutor Júlio Cezar Bastoni da Silva
Prof. Doutor Marcelo Almeida Peloggio
Prof. Doutor Orlando Luiz de Araújo

Organização dos anais


Bárbara Costa Ribeiro

Capa e diagramação
Bárbara Costa Ribeiro

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Os textos reunidos nestes anais são artigos resultantes de comunicações


apresentadas no Colóquio Amor, Língua de Eros. O evento aconteceu
em edição única, no mês de junho de 2019, na Universidade Federal do
Ceará, com o apoio do Programa de Pós-Graduação em História e do
Programa de Pós-Graduação em Letras dessa mesma instituição. A ideia
de se realizar um evento, naquele contexto, que refletisse a noção do
amor em diversos âmbitos surgiu a partir de uma disciplina ofertada no
Programa de Pós-Graduação em Letras pelo Professor Dr. Marcelo
Peloggio, no mesmo ano. A partir disso, reunindo professores e alunos
dos Programas em questão e também de outras partes do país e mesmo
de fora dele, o evento aconteceu em quatro dias, e os trabalhos
apresentados nas comunicações se dividiram entre os seguintes
simpósios:

O amor em narrativas
Políticas do amor
O amor e as imagens
Mitos do amor

Na publicação destes anais, os artigos estão agrupados de acordo com


os simpósios nos quais nasceram.

O site do evento pode ainda ser conferido:


https://linguadeeros.wixsite.com/amor.
Lá, constam a programação, a descrição de
cada simpósio, os nomes de todos os palestrantes
e outras informações.
Contatos:
alinguadeeros@gmail.com
costaribeirobarbara@gmail.com

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO..................................................................................................................................11
O AMOR EM NARRATIVAS...........................................................................................................13
ABRAM AS CORTINAS: O AMOR EM CARLOS CÂMARA!...................................14
AMAR: PARTIR – CORPO E ENCONTRO AMOROSO NA OBRA DE
MARGUERITE DURAS.........................................................................................................................22
AMOR É ESSÊNCIA DE FLOR: A RELAÇÃO ENTRE FEMININO E EROTISMO
NO CONTO “ROUPA SUJA”, DE MARCELINO FREIRE.............................................35
AMOR E PODER NA LITERATURA DE CORDEL DE JOSÉ COSTA LEITE......46
AMORES (IM)PERFEITOS DE CRISÓSTOMO E BALTAZAR,
PROTAGONISTAS DE VALTER HUGO MÃE......................................................................57
AMOR PLATÔNICO: UMA IDEIA INESQUECÍVEL........................................................69
ENTRE O AMOR E O ÓDIO EM “O BÚFALO”, DE CLARICE LISPECTOR..81
EROS E PHILIA NO POSICIONAMENTO POP-ROCK PARA CRIANÇAS....90
EROS REGE O DISCURSO OU O DISCURSO REGE EROS? A ISOTOPIA
DO DESEJO SEXUAL EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................101
O AMOR COMO UMA POSSÍVEL VIA PARA A SUPERAÇÃO DO
EGOÍSMO HUMANO: UM DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E
LITERATURA...........................................................................................................................................110
O AMOR VENCE A AMARGURA..........................................................................................119
POLÍTICAS DO AMO R...............................................................................................................127
“AINDA QUE EU FALASSE A LÍNGUA DOS ANJOS”: O AMOR CRISTÃO
NAS REVISTAS LIÇÕES BÍBLICAS..........................................................................................128
ALGO DE INTEIRAMENTE NOVO: A LINGUAGEM DISFUNCIONAL DO
AMOR NA SUPERAÇÃO DA FINITUDE..............................................................................139
AMOR E HOSPITALIDADE: A INCONDICIONALIDADE DO AMOR EM
JACQUES DERRIDA.........................................................................................................................146
CUPIDO E PSIQUÊ NAS SALAS DE AULA – O AMOR NO MAGISTÉRIO É
ROMÂNTICO......................................................................................................................................155

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GILKA MACHADO: O EROTISMO COMO INSTRUMENTO DA


LIBERTAÇÃO FEMININA...............................................................................................................165
O COCÓ NO INSTAGRAM: A CONSTRUÇÃO DA “REPORTAGEM
AFETIVA” DE DEMITRI TÚLIO.....................................................................................................171
SAI O PORTUGUÊS, ENTRA O AFRICANO: O USO DA MEMÓRIA DO
RESSENTIMENTO E DO AMOR NO PROJETO POLÍTICO DA FRELIMO
PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA NAÇÃO..................................................180
VÊNUS ESTÉRIL – CORPOS APRISIONADOS, AMORES FUGIDIOS
(FORTALEZA 1970-1990)........................................................................................................199
O AMOR E AS IMAGENS.........................................................................................................209
ANTES FERIDA NO OLHO DO QUE ENXERGAR: REFLEXÕES SOBRE
SEDUÇÃO, PAIXÃO E AMOR SIMBIÓTICO A PARTIR DE UMA
INSTALAÇÃO ARTÍSTICA.............................................................................................................210
EROS E INDÚSTRIA CULTURAL: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO EROS
FEMININO NO FILME A VIDA SECRETA DE ZOE......................................................219
O AMOR É CEGO: ELOS DE EROS ENTRE O ROMANCE E A
FOTOGRAFIA DE TÉRCIA MONTENEGRO....................................................................229
O AMOR (S)EM TEMPOS DE CRISE: ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE DIA
DOS NAMORADOS NA REVISTA VEJA (1974-1994)...........................................240
MITOS DO AMOR.........................................................................................................................248
A PRESENÇA DE EROS EM MEMÓRIA CORPORAL, DE ROBERTO PONTES
.......................................................................................................................................................................249
CAUSA MORTIS: AMOR – FEDRO SOB O OLHAR DE THOMAS MANN EM
A MORTE EM VENEZA.................................................................................................................259
INFÂNCIA E EROTISMO NA LITERATURA: CORAÇÃO DE MENINO: TUC,
TUC, TUC! O QUE É ESSA COISA CHAMADA AMOR?......................................270
MITO DO AMOR ETERNO: UMA ANÁLISE PELA TEORIA DA
RESIDUALIDADE...................................................................................................................................279
O AMOR DESVIRTUADO: UMA LEITURA DO INCESTO EM LAVOURA
ARCAICA................................................................................................................................................291
TEOGONIA – UMA HISTÓRIA DE AMOR DIVINA......................................................302
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APRESENTAÇÃO

Nosso protagonista é extemporâneo e heterotópico, porque surfa nas ondas


do tempo e dos espaços sem se prender a uma época e a um lugar. É certo que já
houve um tempo em que, de tão solicitado, deram às artes e aos fatos históricos seu
nome. Há tempos ele anda por aí pregando seus sortilégios pela boca de
trovadores, poetas, filósofos, místicos e loucos. Há quem o defina como faca de dois
gumes, mas também há quem o compreenda como princípio de vida e morte. Se
para alguns ele não passa de o mais terrível sentimento, para outros, o que ele
deseja é somente a libertação. Muitos tentaram encarcerá-lo numa definição, mas,
na qualidade de um deus alado e com a aljava repleta de flechas, ele nunca se deixa
aprisionar pelos humanos. Ao contrário, é um capturador nato. Figurinha fácil nos
livros sagrados, nos consultórios médicos, nas literaturas, nos livros de história, seu
nome poderia ser revolução, mas ele ousa chamar-se Amor.
O que pode o Amor em tempo de cólera? Por que seu reinado não
cessa, ainda que quem o discuta e o vivencie atualmente seja acusado de brega? Ao
definir o Amor como “bandido cachorro trem”, Drummond estava descambando
para a breguice? Os feminicidas quase sempre justificam seus atos bárbaros
pendurando-os na conta do Amor; mas os que sofrem no corpo as máculas
perpetradas em nome da paixão e do desejo dizem que “não era amor, era cilada”.
É certo que, por ele se mata e se morre, e que quem ama tudo suporta? Em tempos
de lutas políticas nas quais homens e mulheres (cisgêneros, transgêneros, binários
ou não-binários) precisam afirmar e reafirmar que o Amor, em suas múltiplas e
permanentemente reinventadas formas desejantes, não aceita limites e regras que
não sejam as dele próprio, falar sobre o Amor é uma exigência. Quando o fanatismo
e o fundamentalismo aguçam atos e falas apaixonadas em defesa das próprias
ideologias em detrimento das ideologias dos outros, realizar um simpósio sobre o
Amor, não para louvá-lo, mas para discutir suas facetas e suas narrativas em
diferentes tempos históricos, como no Banquete de Platão, mais do que uma

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necessidade, é um modo de resistir. Estratégico por excelência, o Amor é um ato


político, sobretudo em tempos em que, parodiando Nelson Rodrigues, “todo Amor
será castigado”, menos a forma de amar considerada válida pelos pregadores da
moral e dos bons costumes.
Foi, assim, com um olhar plural que o colóquio Amor, língua de Eros
convocou alunos e professores, pesquisadores das humanidades, a participar do
evento promovido pelos Programas de Pós-Graduação em Letras e de Pós-
Graduação em História, da Universidade Federal do Ceará, que se realizou em junho
de 2019. O intuito do colóquio era o de ser resistência, falando de Amor, esse tirano
que Safo denominou de doce-amargo. Os textos aqui reunidos são resultados
dessas discussões.

CLAUDICÉLIO RODRIGUES
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O AMOR
EM NARRATIVAS
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ABRAM AS CORTINAS: O AMOR EM CARLOS CÂMARA!


Camila Imaculada Silveira Lima
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Em 1918, Carlos Câmara iniciou sua trajetória como dramaturgo, que
perdurou até o ano de seu falecimento em 1939. Suas peças trouxeram as
contradições e ambiguidades de um sujeito inserido em uma sociedade patriarcal,
conservadora e cristã e experienciava as transformações na cidade de Fortaleza.
Eram novos espaços de sociabilidade, que segregavam como, por exemplo, o Theatro
José de Alencar. Surgiram também inovações técnicas, que traziam o bonde elétrico,
automóvel e o cinema e outras práticas foram incorporadas ao cotidiano. Assim,
novas sensibilidades foram sendo construídas e sentidas e o amor entrou em cena
nos poemas, nas músicas, nos romances e nas peças do referido teatrólogo. Tem-se,
portanto, objetivo de analisar como o amor foi idealizado na literatura dramática
produzida pelo dramaturgo cearense, percebendo as representações das mulheres e
suas relações com o casamento. Destaca-se que a apreciação é dos textos escritos e
não dos textos encenados que trazem outros elementos como, por exemplo, a
performance como destaca Patrice Pavis.
Palavras-chave: Amor; literatura dramática; mulher.

PRÓLOGO
Reinhart Koselleck (1992) argumenta que os conceitos estão articulados a um
determinado contexto, portanto, são dinâmicos e se transformam ao longo do
tempo e no espaço. Não é diferente com os sentidos dados ao amor, que muda e
interfere nas relações socioculturais. Por outras palavras, o conceito de amor está
inserido em uma realidade sociocultural que o define, dá sentidos e o transforma.
Dito isso, para esse palco, entra em cena o amor representado na literatura
dramática produzida por Carlos Câmara entre os anos de 1918 a 1939 na cidade de
Fortaleza que ansiava pelo progresso, mas que vivenciava as epidemias, as
intempéries, a pobreza.
O dramaturgo cearense escreveu dez peças, na verdade, burletas,
dramaturgia ligeira e caracterizada pela comicidade. Seus contemporâneos as
descreviam como “crônicas dos costumes cearenses”, já que estavam presentes os
tipos sociais, os espaços de sociabilidade da cidade e do campo nos seus textos
dramáticos: A bailarina (1919); O Casamento de Peraldiana (1919); Zé Fidelis (1920); O

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Calu (1920); Alvorada (1921); Os piratas (1923); Pecados da Mocidade (1926); O


paraíso (1929); Os coriscos (1931) e Alma de artista (1939). No entanto, o mesmo via
no teatro um espaço para moralizar os costumes, assim o elemento do humor era
utilizado como forma de repreender um comportamento considerado inadequado.
Era a educação moral cristã e conservadora pelo teatro e, nesse processo, as
emoções deveriam ser controladas. O amor, portanto, tornava-se alvo de disputa
entre o “impróprio” e o “aceitável”, que condicionava o papel social da mulher e do
homem na sociedade. Em síntese, era o amor romântico que experimentava os
desencontros e desventuras até sua idealização, neste caso, cristã e classista.
Roland Barthes (2004) argumenta como elementos, que não estão
diretamente relacionados com o desenvolvimento da narrativa, são postados no
texto literário dando um efeito de real. Na literatura dramática do dramaturgo
cearense, esses elementos faziam parte da narração, inclusive como personagens.
Por outras palavras, era uma dramaturgia realista que aproximava a criação artística
como uma reprodução da realidade experienciada. Assim, para seus
contemporâneos e posteriormente memorialistas e teatrólogos, as burletas de
Carlos Câmara representavam o “regionalismo” e/ou os “verdadeiros costumes
cearenses”. Deu-se à “ficção” um caráter de “real”. Contudo, sua dramaturgia não
era a reprodução das experiências amorosas na cidade de Fortaleza do início do
século XX, mas uma imagem idealizada dos relacionamentos romantizados entre
um homem e uma mulher em sua dramaturgia, ou seja, o texto escrito. 1

A IDEALIZAÇÃO DO AMOR EM CARLOS CÂMARA


Foi na noite de 25 de janeiro de 1919, em um teatrinho improvisado no bairro
próximo ao centro da cidade de Fortaleza, que o Grêmio Dramático Familiar (GDF)
levou à cena a peça de gênero ligeiro A bailarina. Era a estreia do cearense Carlos
Câmara como dramaturgo. Atividade que exerceu até seu falecimento em 1939.
Todavia, seu início nas práticas teatrais foi ainda jovem, aproximadamente dezesseis

1 Para análise dos espetáculos e a distinção entre o texto encenado e o texto escrito, vide: PAVIS,
Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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anos de idade, no Grêmio Taliense de Amadores (1898) e no Clube de Diversões


Artísticas (1897) de direção de Antônio Papi Junior, mais conhecido pelos seus
romances regionalistas do que pela sua dramaturgia. Circulou por outros grupos
dramáticos de duração transitória até fundar o GDF em 1918 juntamente com figuras
do comércio local. Entre o envolvimento com as companhias dramáticas, Carlos
Câmara estudou em colégios católicos, formou-se bacharel em Direito, exerceu
cargo político, foi redator da A República, órgão oficial da oligarquia acciolina (1896
e 1912), dirigiu a Escola Aprendizes Artífices, publicou o Almanaque do Ceará,
participou da Junta Comercial, haja vista que seu pai João Eduardo Torres Câmara
(1840-1906) foi seu diretor, e teve ligações com agremiações literárias como, por
exemplo, a Academia Cearense de Letras em sua segunda fase no ano de 1922.
Portanto, Carlos Câmara, além de dramaturgo, figurava entre os homens de letras e
da elite do Estado do Ceará. Era católico, conservador e moralista. Formação que
influenciaria sua dramaturgia e sua forma de perceber o amor.
Em 1908, Carlos Câmara casou-se com Diva Pamplona Câmara, que, atuando
no GDF como “grande animadora de seu teatro, emprestava valioso e incansável
concurso para o brilhantismo das encenações, ensaiando as amadoras, ensinando-
as a cantar e a bailar, corrigindo defeitos, copiando toilettes, num serviço estafante
que sempre fazia sorridente e feliz” (CARNEIRO, 1943 apud COSTA, 1985, p. 57-58).
Em uma sociedade patriarcal, Diva Câmara, conforme o cronista, estava exercendo
sua função de esposa que tinha seus dotes como, por exemplo, instrução para as
leituras dos textos dramáticos e noção de música, além disso, era alegre e sorridente
em suas tarefas no GDF. Havia outra diva na vida do dramaturgo, sua irmã, Diva
Torres Câmara, que era pianista e escreveu músicas para suas peças, além de ter
dirigido a orquestra em algumas encenações do GDF. Como descreviam seus
contemporâneos, eram “damas” da “fina flor” da sociedade e “modelos” a serem
seguidos pelas moças que entravam no corpo cênico como, por exemplo, Gracinha
Padilha. Enfim, as mulheres ganhavam os palcos e estavam nos espaços públicos,
mas se encontravam subordinadas aos homens, ao poder patriarcal, haja vista que

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Gracinha Padilha deixou os palcos após o casamento que, nessa sociedade, deveria
ser objetivo de uma moça “bem-criada”. Era nesse cenário que ansiava Carlos
Câmara e, desta forma, idealizou um amor que condicionava certos
comportamentos à mulher.
Na cidade de Fortaleza das primeiras décadas do século XX, mulheres eram
enganadas, sequestradas e defloradas, havia as solteiras e com filhos, as que fugiam
com seus amantes, as não-instruídas, as trabalhadoras e as mulheres pobres que
tinham suas experiências amorosas2, no entanto, nas burletas de Carlos Câmara,
quem subia ao palco era a moça pura, inocente, minimamente instruída e, muitas
vezes, ligada aos costumes campestres. Era a idealização da mulher para o
casamento, que, por sua vez, exigia dela comportamentos “aceitáveis” para uma
sociedade conservadora, patriarcal e cristã. Mesmo com a necessária aprovação do
pai ou da mãe (se esta fosse viúva), a personagem da moça pura escolhia a quem
amar e, portanto, com quem casar-se. Mas, para chegar a esse fim, obstáculos eram
ultrapassados. Tem-se, portanto, a ação dramática, que, na comédia, consiste em
“apresentação de duas vontades opostas, ou quando se consegue equilibrar o
obstáculo à vontade que deve transpô-lo” (PALLOTTINI, 2005, p. 46).
Em A bailarina (1919), Flor, moça ingênua, instruída e do sertão dos
Inhamuns, era apaixonada por Malaquias, que a correspondia, mas sua mãe, D.
Peraldiana, não concordava. O que ficou pior com a chegada de Elisário, moço
citadino que tinha ido convalescer-se da gripe espanhola, conhecida popularmente
por “bailarina”. Ele gostou de Flor, cantou vantagens da capital cearense e agradou
D. Peraldiana, que o escolheu como marido de sua filha. Já Malaquias era um jovem
camponês que se tornou praça (militar) e, desta forma, foi para a cidade. Era
Malaquias, moço trabalhador, ou Elisário, um golpista, que representavam duas
vontades (pensamentos) opostas. Os obstáculos estavam postos e Flor em uma
encruzilhada, já que, como moça cristã, não poderia desobedecer a sua mãe. Mas,
2 No Arquivo Público do Estado do Ceará, encontra-se organizado um fundo documental com
processos crimes de defloramento, infanticídios e brigas entre vizinhos que, de certa forma, trazem
as vivências e as experiências das mulheres pobres da sociedade de Fortaleza da primeira metade do
século XX.
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na superação dos desafios, ela encontrou aliados como Cel. Puxavante. E como
desenrolar da trama, Elisário foi desmascarado. Era um enganador e um desertor.
Acabou sendo preso por Malaquias que, por sua vez, foi aceito por D. Peraldiana.
No fim, Flor superou os contratempos e casou-se com quem amava.
A personagem da jovem pura e instruída, apaixonada, perpassa pelas
burletas do dramaturgo cearense, que permitia sua liberdade de escolha, contudo, o
casamento ocorria apenas após a aprovação dos responsáveis. Foi assim com Biloca,
em Alvorada (1921), e Flora, em O Calu (1920), que encontraram o amor no jovem
bacharel nos entremeios dos costumes campestres e citadinos. Só que o ato de se
casar não era para todas nas burletas de Carlos Câmara. Em Os piratas (1923),
confusões entre os casais marcaram o enredo da burleta que acabou tendo
Catarina, jovem moça instruída, envolvida com Mr. Robertson, um inglês que
trabalhava nas empresas inglesas com sede na capital cearense, e Xandoca, moça
que fugiu dos encantos de um bilontra3, pacata, com uma herança, e Garibaldi, um
jogador de futebol; já Albertina, uma jovem que acompanhava os piratas 4 nas noites
da cidade, ficou só. Era uma personagem que vivia na boemia, não obstante, não
seguia a conduta de uma mulher que servia para o casamento idealizado pelo
dramaturgo.
Definia-se, portanto, comportamentos para mulheres a partir dos sentidos
dados ao amor. Este era sinônimo de casamento entre uma mulher pura, recatada,
minimante instruída e cristã e um jovem bacharel e trabalhador. Fora dessa
premissa, apenas D. Peraldiana, que era uma viúva cômica e desbocada, mas era
ingênua e honesta, e o Cel. Puxavante, que tinha posses e terra. Ambos contraíram
matrimônio em O casamento de Peraldiana (1919), que, em breves palavras, consistia

3 Em O casamento de Peraldiana (1919), Carlos Câmara usa o termo bilontra em referência aos
paqueradores daquele período, que costumavam enganar mulheres com juras de amor. Na cidade
de Fortaleza da primeira metade do século XX, sequestros e fugas de jovens, incluindo as
consideradas de “família” conforme as convenções sociais do período, eram recorrentes, haja vista os
processos crimes. Assim, ao trazer os bilontras a cena, o dramaturgo estava fazendo uma crítica a
esses sujeitos ao mesmo tempo em que procurava chamar atenção aos perigos de cair em suas
lábias e promessas falsas de amor para o público do seu teatro. Lembra-se que ele tinha o teatro
como forma de moralização da sociedade cearense.
4 Para o dramaturgo, os piratas eram jovens boêmios e galanteadores.
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na jornada de D. Peraldiana e Cel. Puxavante, que foram mostrando e enfrentando


as ruas mais largas, os bairros, os automóveis, os bondes elétricos, a jogatina, as
formas de paquera, os trabalhadores e os espaços de sociabilidade em uma
Fortaleza em transformação que, em parte, vivia seu “afrancesamento” particular, e
provinciana no imaginário do dramaturgo e dos seus contemporâneos, mas que foi
rejeitada pelos personagens, que voltaram ao sertão. Contudo, ressalta-se como D.
Peraldiana foi escrita para Eurico Pinto, ator do corpo cênico do GDF, pelo Carlos
Câmara que defendia um teatro educador. Nesta perspectiva, o amor era usado
para definir formas de conduta tanto da mulher como do homem. Era um amor
romântico que estava sujeito aos valores cristãos católicos e de uma sociedade
patriarcal e conservadora. E, deste modo, as mulheres acabavam submissas aos
homens e/ou responsáveis.

EPÍLOGO
Em Zé Fidelis, um matuto ingênuo, sem instrução e velho era apaixonado por
uma moça novamente instruída e pura, que encontrou seu amor no jovem bacharel
em Direito. O matuto era o tipo cômico, a chacota. Ora, como um velho não
suprimia seus desejos? Diferentemente do bacharel em Direito, que fora aceito pelo
pai da moça. Assim, o amor, aparentemente livre, estava relacionado com o
casamento enquanto sacramento religioso, portanto, eram necessárias regras de
conduta moral. Entre as paixões e os desejos da cidade, que traziam as práticas
“indevidas” e a pureza e honestidade do campo, o dramaturgo foi dando sentido ao
amor que, por sua vez, era uma forma de controle do corpo, tanto o feminino como
o masculino. As paixões citadinas, relacionadas com o bacharel em Direito, eram
superadas pelo amor virgem do campo, ou seja, a camponesa instruída. Em
contrapartida, nas distinções de classe, o campo e a cidade se entrelaçavam em suas
características, já que as paixões estavam nas camadas subalternas e não no espaço.
Os “matutos” e as moças não “educadas” não venciam seus obstáculos, já que se
comportavam inadequadamente e não eram dignos do amor, que, para o

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dramaturgo, era um sacramento cristão.

REFERÊNCIAS

ARNAUT, Luiz, MOREIRA, Renata. O barômetro e o lenço de seda: efeitos de real


em Roland Barthes e Michel de Certeau. In. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – ANPUH. São Paulo, julho 2011.

BARTHES, Roland. O efeito de real. In: ____. O rumor da língua. Trad. Mário
Laranjeira. São Paulo: Cultrix, 2004.

CÂMARA, Carlos. Teatro – obra completa. Fortaleza: Academia Cearense de Letras,


1979.

CÂMARA, Carlos. O teatro no Ceará, Gazeta de Notícias, 10/07/1935. In: COSTA,


Marcelo. Teatro na terra da luz. Fortaleza, edições UFC, 1985.

CARNEIRO, Adolfo. Fortaleza de Ontem e Hoje. In. COSTA, Marcelo. Teatro na terra
da luz. Fortaleza, edições UFC, 1985. p. 45-61.

NOBRE, Gleiciane Damasceno. Amor, a mais enérgica força do progresso: a


civilização e a construção das sensibilidades em Fortaleza (1897-1918). Dissertação
apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em História e Culturas do Centro de
Humanidades da Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza: UECE, 2017.

KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. In:
Estudo Históricos, Rio de Janeiro. vol. 5, n. 10, 1992, p. 134·146.

PALLOTTINI, Renata. O que é dramaturgia. São Paulo: Brasiliense, 2005.

PATRIOTA, Rosangela. O teatro e o historiador: interlocuções entre linguagem


artística e pesquisa histórica. In: RAMOS, Alcides Freire; PEIXOTO, Fernando;
PATRIOTA, Rosangela (org.) A História invade a cena. São Paulo: Editora Hucitec,
2008.

PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro Neves (Org.) Comportamentos.


Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002.

____________. Gênero. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002.

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WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992.

_______________. O campo e a cidade na história e na literatura. São Paulo: Editora


Schwartcz, 1990.

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AMAR: PARTIR – CORPO E ENCONTRO AMOROSO NA OBRA DE


MARGUERITE DURAS
Sara Síntique Cândido da Silva
Universidade Federal do Ceará

Martine Suzanne Kunz


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Esta pesquisa investiga o corpo no encontro amoroso na obra de Marguerite


Duras, com foco nos contos “L'homme assis dans le couloir” (1980), “La maladie de la
mort” (1983) e no filme Agatha et les lectures illimitées (1981). Num exercício
comparativo entre a Literatura e o Cinema concebidos por Duras, buscamos as
relações dos corpos na experimentação do amor, considerando que esses
relacionamentos acontecem num processo consciente de “amar: partir”, distanciando-
se de um amor idealizado por um senso comum. Para dar sustentação à nossa
pesquisa interdisciplinar, Foucault (2009 e 2013), Cixous (in Foucault, 2009), Blanchot
(2005), Agamben (1999), Deleuze e Guattari (1996), Tavares (2013), Bataille (2004),
Bachelard (1978), Greiner (2005) são alguns dos autores que constituem nosso aporte
teórico.
Palavras-chave: Marguerite Duras; Corpo; Literatura; Cinema; Amor.

O tema do amor é recorrente na vasta obra da artista Marguerite Duras


(1914-1996), escritora, dramaturga, diretora de teatro, roteirista e cineasta indochino-
francesa. Muitos de seus personagens atravessam várias de suas narrativas, sendo
escritos e reescritos, e jamais são os mesmos. No nosso recorte literário, optamos
pelos contos L'homme assis dans le couloir 5 (1980) e La maladie de la mort6 (1983).
Para contemplarmos a criação cinematográfica de Duras e traçarmos uma
comparação entre a imagem literária e a imagem fílmica, considerando a
significativa relação umbilical que a artista concebe sobre as duas linguagens,
feituras do lugar da paixão, selecionamos Agatha et les lectures illimitées 7 (1981), filme
5 Para a língua portuguesa, o título foi traduzido como O homem sentado no corredor. A edição com
a qual trabalhamos para fornecer as traduções dos excertos em língua francesa, nas notas de rodapé,
é: DURAS, Marguerite. O homem sentado no corredor, A doença da da morte. Trad. Vadim Nikitin.
São Paulo: Cosac Naify, 2007.
6 Para a língua portuguesa, o título foi traduzido como A doença da morte. Utilizamos a mesma
edição da editora Cosac Naify, mencionada na nota anterior, para fornecer as traduções dos excertos
nas notas de rodapé.
7 Verificamos duas traduções para o título do filme: Agatha e as leituras ilimitadas e Agatha ou as
leituras ilimitadas. As traduções das falas nas notas de rodapé são da edição traduzida da peça
Agatha, a saber: DURAS, Marguerite. Agatha. Trad. Sieni Maria Campos. Rio de Janeiro: Record, 1981.
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que surge a partir de seu texto dramático Agatha (1981).


Amar: Partir. Os dois pontos entre as palavras sugerem uma relação de
sinonímia, de semelhança. Não a única possível, pois não há intenção de limitar o
que pode significar a palavra amar. Tal relação surge com essa leitura: em Duras,
observa-se que o ato de amar está ligado ao ir embora. Os amantes se abandonam.
Não importam as condições do encontro, mas a força com que ele se dá. Importa o
algo que ele gera e só por ele é gerado. Sua energia súbita, arrebatadora, as
devastações que ele causa. Ir embora e, antes, deixar-se devastar. Fragmentar-se.
Partir de e a si mesmo, também. Romper com os contratos sociais. O ato de amar
significando o permear por todas essas cisões. O corpo, como o lugar ao qual se
parte, do qual se parte, que se parte. Destarte, não apenas isso, mas também isso:
amar: partir.
L'homme assis dans le couloir: fragmentar-se ao limite. Escrito em 1980, o
conto é uma narrativa sobre um encontro visceral em que os personagens, um
homem e uma mulher, vivenciam o sentimento do amor por meio de uma relação
extrema de prazer e de violência. Eles não são nomeados; suas referências são
“l'homme”/“o homem”, “la femme”/“a mulher”, “il”/“ele”, “elle”/“ela”, o que nos dá a
ver as indicações dos seus gêneros, mas não nos diz nada sobre suas identidades,
suas histórias prévias. Tal encontro nos é mostrado por um narrador (“Je”/”Eu”) que
se porta como um olho onisciente a observar toda a cena, às vezes dando-nos
certezas do que vê, ora por meio de afirmações como “Je vois”/ “Eu vejo”, “Je le
sais”/ Eu sei” ou por descrições de imagens que estão no presente do indicativo; ora
nos deixando certas imprecisões sobre os acontecimentos, por meio de repetidas
afirmações como “Je ne vois rien”/ “Eu não vejo nada” ou por efeitos de hipótese
proporcionados pelo uso do conditionnel passé (futuro do pretérito) como na frase
“Elle n'aurait rien dit, elle n'aurait rien regardé”8 (DURAS, 1980, p. 9). O narrador, esse
olho, nos diz sempre que é ele quem vê ou que não vê o que está ali. A condução
da narrativa convida-nos, dessa forma, a uma relação corporal guiada pelo olhar.

8 Trad. Vadim Nikitin: “Ela não teria dito nada, não teria olhado nada.” (p. 14)
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Um jogo de olhares: o narrador vê/não vê/supõe, nós vemos o que ele vê/não vê/
supõe/não supõe. O homem vê a mulher, a mulher não vê o homem, mas tem
consciência de que ele a olha, o olhar dela e dele focados em determinadas partes
do corpo. Há um tom de roteiro cinematográfico.
Não sabemos há quanto tempo ou por que se iniciou o encontro entre o
homem e a mulher. Temos fragmentos, instantes, cortes, plenos de buracos
narrativos. A primeira imagem (o homem no corredor observando o corpo da
mulher dilacerando-se pelo desejo lá fora) é tão forte que poderíamos conjecturar,
para além da trama, que já ocorrera algum tipo de contato entre esses corpos. Em
seguida, ele se aproxima dela. O ato sexual deles, visceral, é permeado por
demasiada violência física, pelo desejo exacerbado de matar; sobretudo, o dele,
tendendo a matá-la. Como lemos no excerto abaixo:

La forme est défaite, molle, comme casssée, d'une terrifiante inertie. Le


pied appuie encore. Il s'enfonce, atteint la cage d'os, appuie encore.
Elle a crié. Il a entendu un cri. Il a le temps d'entendre que le cri ne s'arrête
plus, d'entendre aussi qu'il faiblit. Et tandis qu'il croit avoir encore le temps
de choisir, le pied hésite, et lourdement se descelle du corps, se sépare du
coeur sous la poussée du cri9 (p. 20).

Nessa cena, o desejo e a violência confundem-se de tal modo que amar


torna-se também a vontade de partir, de fragmentar, de destruir o corpo, essa
causa do amor. Concomitantemente, há o susto de destruí-lo, movimento que faz
cessar o ato. Há uma violência nos corpos. O corpo dela, pleno de uma crueldade
com o organismo, tenta fragmentar-se, autodestruir-se, deformar a massa viva que
não consegue conter o amor, o sofrimento de sentir tamanha intensidade. Também
ela tem o desejo de destruir o corpo desse homem, de devorá-lo, como uma
“esfomeada” (p. 28-29). Ela quer o corpo dele, seus cheiros fétidos, suas dores, seu
prazer, o desconhecido. Ela quer saciar-se dele, mas a fome do corpo é uma fome
que não passa. Às vezes, “ela grita, gira em torno de si, clama por libertação” como
9 Trad. Vadim Nikitin: A forma está desfeita, lassa, como que estilhaçada, em terrível inércia. O pé
pesa ainda mais. Afunda, chega à caixa torácica, pesa ainda mais. Ela gritou. Ele ouviu um grito. Ele
tem tempo de ouvir o grito que não para, de ouvir também que enfraquece. E enquanto ele crê que
ainda tem tempo de escolher, o pé vacila e se desloca pesadamente do corpo, e se separa do
coração sob o impulso do grito. (p. 23).
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se estivesse num estado de loucura, como quisesse se libertar desse desejo


avassalador. Daí o desespero, daí a violência. O corpo da mulher transborda de
desejo, de paixão – não uma paixão que a leva ao amor romântico, à submissão, à
moralidade, mas aos seus opostos. Consoante Bataille:

Por meio de sua atividade, o homem construiu o mundo racional, mas


nele sempre subsiste um fundo de violência. A própria natureza é violenta
e, por mais razoáveis que tenhamos nos tornado, uma violência que não
é nada além da violência natural pode nos dominar novamente – que é a
violência de um ser racional, que tentou obedecer, mas que sucumbe ao
movimento que em só próprio não pode reduzir à razão (BATAILLE, 2004,
p. 61-62).

Essa paixão violenta liga-se, desse modo, a um interdito social ligado à


morte, portanto, é amoral. É uma paixão ligada à selvageria da natureza, ao
animalesco, aos desejos primitivos do corpo. Ela não quer saber do homem, ele não
importa a ela (o sujeito, esse de nome sequer revelado), mas quer o seu corpo de
homem, para adentrar em seus deslimites, para tocar suas cavernas, viver esse amor
ardente das vísceras.
O desejo do homem recai também na dor e no prazer. Nos gritos, sons sem
palavra articulada. Primeiro, um grito que a afasta, depois, ao ceder novamente ao
desejo, ele se entrega até que se faça um grito doce (ou lento, se considerarmos
que a palavra doucement pode ser traduzida também dessa forma) de um lamento
intolerável – como seria esse grito? Esse grito existente, mas inaudível, de um
silêncio perturbador…
O conto prossegue mostrando, por cenas fragmentadas, o sexo e a violência
de uma forma crescente. O desejo se mantém nos interstícios. Às vezes, eles choram
um “choro de criança”, que poderíamos pensar como um choro que não mascara as
emoções, um choro sem julgamentos, descontrolado. Em certo momento, ele diz
que quer matá-la. Ela não refuta isso. Ela não tenta se defender, ela o quer. Ela pede
que ele a mate (p. 32). A desordem toma os corpos ao limite. Inicia-se um
espancamento brutal por todo o corpo dela. Os olhos dela choram, mas ela diz que
é isso, que quer e se entrega ao paroxismo. O corpo dele bate no dela até deixá-lo

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“esvaziado de qualquer expressão”, “mole”, como se fosse uma “coisa morta”.


Depois, ele grita, tem medo. Medo disso que fez, do que causou a esse corpo,
medo de que o corpo morra? O conto finda com o narrador nos dizendo que vê o
homem chorar sobre o corpo da mulher. Do corpo dela, esse olho narrador só vê
imobilidade. Ele, tampouco nós, sabemos se o corpo está desacordado ou se está,
de fato, morto. É com esse grito silencioso da incerteza entre a vida e a morte, nessa
suspensão, que ficamos.
Bataille reflete: “O que significa o erotismo dos corpos senão a violação do
ser dos parceiros? Uma violação limítrofe ao limiar da morte? Limítrofe ao ato de
matar? Toda atividade do erotismo tem por fim atingir o ser no mais íntimo, no
ponto onde ficamos sem forças” (2004, p. 28). Essa violação do corpo do parceiro
no ato do amor, a tentativa de atingir seus pontos de fraqueza é inerente ao
erotismo, segundo o pensador. No conto, essa violação é levada a um extremo, a
uma experiência limite que não teme o limiar da morte. Isso espanta, pois contrapõe
a racionalidade.
A violência cometida nas guerras, a violência de Hiroshima mon amour,
amparada em nome de alguma moralidade civil, justificada nalguma razão social,
acordada, decidida e imposta pelo poder, é uma violência de outra ordem. Sobre
isso, Foucault diz: “Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional que a
guerra geral […] acaba por renunciar à violência e aceita a sua própria supressão nas
leis da paz civil” (apud TAVARES, 2013, p. 74). Ora, a renúncia ou a adesão às ordens
de inciar ou findar uma guerra não são vãs e colocam o massacre de corpos
inocentes em função do organismo de poder do mundo. Essa é a violência
assustadora. A violência da paixão durassiana, pelo contrário, o desorganiza. É,
portanto, uma violência política, visto que contesta a ordem contraditória do
mundo.
O desejo desses corpos é o desejo dos Corpos sem órgãos (DELEUZE e
GUATTARI, 1996, p. s/n), o seu amor amoral, subversivo, esse que se desloca da
racionalidade e da moralidade, que traspassa a interdição da violência, a conduta

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civil adequada. Duras constrói a violência desses corpos devastados pelo amor
como quem busca uma beleza na destruição – não a que serve ao Poder, mas a
que o contradiz, a que está à margem, a da loucura, como declara: “O que é belo a
ponto de fazer chorar é o amor. E mais ainda talvez: a loucura, a única salvaguarda
contra o falso e o verdadeiro, a mentira e a verdade, a estupidez e a inteligência: fim
do julgamento” (DURAS apud AYEZ, 2009). O descontrole, a loucura vivida no
encontro amoroso levam os corpos à fragmentação.
Em La maladie de la mort: a incapacidade de amar. Um encontro entre um
homem e uma mulher de nomes que também não se dão ao conhecimento do
leitor. Ele e Ela. Os corpos, mais uma vez, limitam-se às indicações de gênero. Os
personagens, inominados, se conhecem, não se sabe quando ou onde. Ele propõe a
ela que fique com ele por algumas noites, num quarto em frente ao mar. Ele quer
tentar a experiência do amor. Ela não é uma prostituta, mas aceita as noites pagas.
O narrador, uma voz onisciente que rememora ao homem sua experiência
com essa mulher, dirigindo-se a ele por “vous” (você) durante toda a narrativa.
Durante a narração dessa memória, o narrador, como em L'homme…, oscila entre
certezas e hipóteses. Por vezes, a narrativa denota uma proximidade da lembrança
com o presente, por meio do uso de alguns verbos no presente do indicativo, como
se o encontro estivesse no agora. A ideia de hipótese surge com a presença de
verbos no “conditionnel présent” (futuro do pretérito), denotando no enredo os
buracos, os brancos da memória ou mesmo o caráter de imaginação.
Entre as certezas e as imprecisões da memória, adentramos na história desse
homem que quer a qualquer custo conhecer o amor pelo corpo dessa mulher, uma
estranha. O homem carrega consigo um desespero de nunca ter amado, conhecido
o amor, o que ela entende como sendo uma “doença da morte”, sua incapacidade
de amar, de entregar-se à paixão, de vivê-la (p. 34-35). Ele declara que nunca
amara, nunca desejara, nunca olhara uma mulher. É nesse encontro que ele percebe
isso. Ele deseja esse corpo, ama, como nunca o fizera. Percebe esse desespero até
então desconhecido e quer ir embora do corpo dela, essa massa exposta e murada

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para a qual ele olha tão atentamente. Ele quer partir desse corpo para negar essa
tomada abrupta que ele lhe causa. Ele nega a ela que sente essa paixão, é incapaz
de dizê-la. Em vários instantes, ele chora (p. 44-45).
A ideia do amor amoral, que rompe com as leis, que deseja ao ponto de
matar, está presente nesse conto; ou melhor: perpassa quase toda a sua obra. Esses
sentimentos, que são uníssonos, eles impõem a morte, o mistério da morte. Para
Duras, “a doença da morte” não consiste em atingir essa loucura que sucumbe o
corpo quando ele está pleno de desejo-amor. Nesse estado, ele já está pleno de
infinitos, das intensidades inerentes aos mistérios do amor e da morte. A negação
da entrega à paixão é que faz de um corpo um morto-vivo. O corpo que ama, que
deseja, ele se sobressai à morte, não teme ultrapassar esse limite, restar nele.
O discurso, a voz dele, contradiz o sentimento do corpo, que outrora sentira
o desejo e a curiosidade de aniquilar o corpo dela:

Le corps est sans défense aucune, il est lisse depuis le visage jusqu'aux
pieds. Il appelle l'étranglement, le viol, les mauvais traitements, les insultes,
les cris de haine, le déchaînement des passions entières, mortelles. (….) Elle
appelle le meurtre cependant qu'elle vit. Vous vous demandez comment
la tuer et qui la tuera10 (p. 21-37).

Ele reconhece a fragilidade desse corpo, o assombro do convite à morte.


Perguntar-se como matá-la, como seria chegar ao ponto culminante de fazer isso e,
concomitantemente, quem o fará, visto que ele é incapaz de entregar o corpo a
esse totalmente. O corpo foge do amor, quer a todo instante partir dele para não
vivê-lo. Parece ser abominável estar com o corpo que desestabiliza o seu. Se em
L'homme… o homem e a mulher entregam-se à extremidade do desejo, à destruição
de si, em La maladie… o homem sofre porque, diante do mar negro, não quer
lançar-se ao infinito: “Vous dites que l'amour vous a toujours déplacé, que vous
n'avez jamais compris, que vous avez toujours évité d'aimer, que vous vous êtes

10 Trad. Vadim Nikitin: “O corpo não tem defesa nenhuma, é liso do rosto aos pés. Convida ao
estrangulamento, ao estupro, aos maus tratos, aos insultos, aos gritos de ódio, ao desencadeamento
de paixões totais, mortais. (…) Ela convida ao homicídio enquanto vive. Você se pergunta de que jeito
matá-la e quem a matará” (p. 55-68).
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toujours voulu libre de ne pas aimer.” 11 (p. 49-50). Para ele, não viver o amor é uma
liberdade. Contudo, diante dela, ele se reconhece perdido. Pergunta a ela sobre o
amor. O amor, segundo a mulher, advém de um erro, nunca de um querer, que
poderíamos pensar como um querer coagido, pressionado, visto que depois ela
declara que ele chega de modo súbito. Um acaso do mistério, se virmos que ela
vincula sua origem a imagens ocultas, como o voo de um pássaro da noite que não
se vê, porque se mistura ao escuro do céu; de um sono, instante do corpo em que o
pensamento se desliga e, aparentemente parado, ele rege a si mesmo numa outra
lógica, mais desprendida da racionalidade, permitindo-se ao sonho, espaço místico
do pensamento, da imaginação fluida, fora das rédeas do controle; da figura da
morte, mais uma vez ressaltada, do crime, da amoralidade; e, finalmente, do corpo
dela, do sexo exposto e murado, uma vez que é a noite negra da criação do
mundo. O corpo, a própria proclamação do caos, do universo (p. 52).
Ela vai embora um dia, com a noite. O narrador não nos diz quando. O
tempo do encontro é impreciso. Embora saibamos que existiram algumas noites, o
narrador nos diz apenas que “… un jour elle n'est plus là. Elle est partie dans la nuit.
La trace du corps est encore dans le draps, elle est froide.”12 (op. cit., p. 53). Ela parte,
porém sua presença permanece no espaço, em ausência. O eco do que ela disse
sobre a doença da morte. Ela parte, e a ausência traz o desejo de revê-la. O
narrador não nos dá a certeza, mas a hipótese de que talvez o homem a
procurasse. Conclui que somente assim ele poderia viver o amor, perdendo-o (op.
cit., p. 85). Somente depois da partida do corpo, reconhece o amor, esse algo além
do nome – e o corpo, o corpo tão próximo, era-lhe demasiado.
Por fim, em Agatha et les lectures illimitées: ir embora, restar na memória. Um
homem e uma mulher, um casal de irmãos, reencontrando-se na casa onde
passaram a infância. Um amor incestuoso que não pode ser vivido – pelas leis

11 Trad. Vadim Nikitin: “Você diz que o amor sempre lhe pareceu fora de lugar, que você jamais
compreendeu, que você sempre se esquivou de amar, que você sempre se quis livre para não amar.”
(p. 79).
12 Trad. Vadim Nikitin: “… um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi
na noite. O rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.” (p. 82).
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sociais geralmente exogâmicas – mas que ao ser (re)afirmado, como é no diálogo


deles durante todo o enredo, existe. Uma narrativa que rememora a infância no
vilarejo Agatha, o desejo pelo outro. Eles já partiram, já permaneceram longe um do
outro por algum tempo, e esse seria o último encontro, antes de uma partida
definitiva.
Aparta-se da moral ao se romper com a interdição de amar, desejar um
corpo consanguíneo. Lévi-Strauss (apud BATAILLE, 2004, p. 311) diz que a interdição
do amor incestuoso “constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas
sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza para a cultura”. Ou seja, a lei
do incesto diferencia o ser humano dos outros animais. Quando esses corpos
ultrapassam a barreira cultural do amor fraternal, eles evocam um desejo muito
primitivo de um corpo animalesco, o que nos abre margens a pensar numa busca
durassiana por um corpo que retorna às primeiras cavernas, ao desejo-amor
anterior a qualquer civilização, ao primeiro gesto – àquele das mãos negativas.
Tanto o irmão como a irmã declaram não saber diferenciar os corpos de
cada um em relação aos corpos dos outros. Ele diz, às 00h56m15: “Le corps de ma
soeur est là, dans l'ombre de la chambre. Je ne savais pas la différence qu'il y avait
entre le corps de ma soeur et celui d'une autre femme.”13 (1981, p. 48). Ela
corresponde a esse sentimento, às 01h09m31: “Je ne savais pas la différence qu'il y
avait entre le regard de mon frère sur mon corps nu et le regard d'un autre homme
sur ce corps. Je ne savais rien de cela, de ces choses interdites, ni combien elles étaient
adorables, vous voyez, ni combien elles étaient à ce point contenues dans mon
corps.14 O amor que eles têm um pelo outro é um amor forte, de um desejo pelo
corpo que é o mesmo desejo que poderiam ter por qualquer outro. Os corpos dele
são ainda um só. Ele diz, às 00h46m57: “Mon amour. Agatha… ma soeur Agatha…

13 Trad. Sieni Maria Campos: “O corpo de minha irmã está ali, na penumbra do quarto. Eu não sabia
a diferença que havia entre o corpo de minha irmã e o de outra mulher.” DURAS, M. Agatha. Rio de
Janeiro, Record, 1981, p. 54).
14 Trad. Sieni Maria Campos: “Eu não sabia a diferença que havia entre o olhar de meu irmão sobre
meu corpo nu e o olhar de outro homem sobre esse mesmo corpo. Não sabia nada sobre isso, sobre
meu irmão, sobre essas coisas proibidas, nem o quanto elas eram adoráveis, entende, nem a que
ponto estavam contidas em meu corpo.” (p.58-59).
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mon enfant… mon corps. Agatha.”15 (p. 39).


Eles sempre falaram em partir. Ficamos cientes disso já na primeira frase que
ouvimos no filme. A ruptura física, a obrigação de deixar o outro tratava-se de uma
certeza que em algum momento eles enfrentariam. A força desse amor exige que se
faça uma distância de um corpo em relação ao outro, como Agatha diz, às
00h04m37s:

Je ne voulais pas dire que je vous quittais, non, je voulais vous voir je crois,
rien d'autre, vous voir. Et puis vous quitter ensuite, très vite après, comme
à l'instant même où je vous aurais vu.Tout est si obscur, oui je crois que je
pars em raison de la force si terrible de cet amour que nous avons l'un de
l'autre16 (p. 11-12).

Contudo, a dor inevitável causada pela partida não é uma dor a que se possa
mesurar pela razão, como ouvimos eles falarem (00h02m41s). É ela quem vai
embora de cidade, na primeira partida, ainda jovem, deixando o irmão (mais novo)
em casa. Novamente, é ela quem anuncia essa partida definitiva (00h07m28): “Oui.
Je tenais à vous annoncer ce départ comme je le fais à ce moment, face à vous, à
vous yeux”. Entretanto, a decisão de partida tomada pela mulher não a torna mais
forte diante da dor. A partida provoca controvérsias ao corpo. Ela sabe-se ciente da
necessidade dela de partir, mas não deixa de sentir a dor inevitável, como
verificamos nos diálogos que acontecem às 00h07m42s e às 00h10m39s,
respectivamente. A partida não mudará em nada o percurso da natureza, a vida
seguirá de igual forma mesmo que haja ausência e dor. O céu permanecerá o
mesmo. Tudo igual. Mas como, se a separação é tão insuportável, se o peso de um
corpo permanece no outro?
A consciência de não poderem ficar juntos não diminui em nada o que
sentem; do contrário, o amor permanece resistindo no corpo, como o amor
agambeniano, numa luz inesgotável. Partir, nesse caso, não é sinônimo de abdicar
15 Trad. Sieni Maria Campos: “Meu amor. Agatha… minha irmã Agatha… minha criança… meu corpo,
Agatha.” (p.43).
16 Trad. Sieni Maria Campos: “Não queria dizer que ia deixá-lo, não, acho que queria vê-lo, só isso,
ver você. E depois deixá-lo, logo depois, como que no próprio instante em que o visse. Tudo é tão
confuso…sim, acho que vou embora devido à força desse amor tão terrível que temos um pelo
outro.” (p. 10).
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do amor e de tudo o que ele lhe causa; pelo contrário, é sentir, na inevitável dor da
ausência, a presença, os rastros do outro. Essa dor, como nos contos, aproxima-se
da figura da morte. Ouvimos o corpo dele a dizer às 00h06m21s: “Ainsi votre corps
va être emporté loin de moi, loin des frontières de mon corps, il va être introuvable et
je vais en mourir.”17 (p. 13).
Por que tomar a decisão de partir, então, se o sentimento é tão forte? Por
que não viver esse amor em sua amoralidade, visto que a dor da separação já causa
uma dor tão aguda? Por que, como em L'homme…, esse amor pulsante em cada
órgão os fragmentaria? Por que não experimentar suas intensidades até a
destruição? Agatha nos mostra que o amor ultrapassa a necessidade de se manter
próximo de quem se ama. Os irmãos de Agatha reconhecem o amor criminal, fora
das leis. Eles quebram a regra, vivem o amor e se vão. Por quê? Agatha nos
responde, às 00h16m22s:

Lui – Tu pars pour aimer toujours?


Elle – Je pars pour aimer toujours dans cette douleur adorable de ne
jamais te tenir, de ne jamais pouvoir faire que cet amour nous laisse pour
morts (p. 19)18.

Partir seria, então, a impossibilidade de partir. De prosseguir vivendo o amor,


de não aniquilar o corpo, não como os amantes em L'homme… Longe, o amor
segue atravessando tudo. Permanece. Os corpos sonoros nos apontam isso. As
imagens silenciosas da praia do vilarejo de Agatha nos apontam isso. Infinitude.
Partir seria deixar um corpo que resta: diante do mar; no mar; ele mesmo.

REFERÊNCIAS

Bibliografia

ADLER, L. Marguerite Duras. Paris: Flammarion, 2013.

17 Tad. Siene Maria Campos: “Ele – Assim, seu corpo vai ser levado para longe de mim, para longe
das fronteiras do meu corpo, vai desaparecer, e eu vou morrer por isso.” (p. 12)

18 Trad. “ELE – Tu partes para continuar amando? ELA – Eu parto para continuar amando com essa
dor adorável de nunca te ter, de não poder fazer nunca com que esse amor nos deixe por mortos.”
Amor, Língua de Eros
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AGAMBEN, G. Ideia da prosa. Lisboa: Edições Cotovia, 1999.

AUMONT, J. et al. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus,


1995.

AYER, M. (Org.). Marguerite Duras: escrever imagens. Rio de Janeiro, 2009.

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BATAILLE, G. O erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.

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DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. São Paulo: Editora34. 2004. v. 3.

DURAS, M. Agatha. Paris: Miunuit, 1981.

______. Écrire. Paris: Gallimard, 1993.

______. Hiroshima, mon amour. Paris: Gallimard, 1960.

______. La maladie de la mort. Paris: Minuit, 1982.

______. L'Homme assis dans le couloir. Paris: Minuit, 1980.

_____. O homem sentado no corredor, A doença da morte. Trad. Vadim Nikitin. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.

FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Estética: literatura e pintura, música e cinema.


MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2009. v. 3.

_________________. O corpo utópico; As heterotopias. Trad. Salma Tannus Muchail.


São Paulo: N-1 Edições, 2013.

GREINER, C. O corpo: pistas para estudos interdisciplinares. São Paulo: Annablume,


2005.

TAVARES, GM. Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Caminho, 2013.

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Filmografia

Agatha et les lectures illimitées. Direção: Marguerite Duras. Produção: Berthemont, I.


N. A. e Des femmes filment. França,1981.90 min. cor. 35 mm.

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AMOR É ESSÊNCIA DE FLOR: A RELAÇÃO ENTRE FEMININO E


EROTISMO NO CONTO “ROUPA SUJA”, DE MARCELINO FREIRE
Clara Maria Oliveira Carvalho
Universidade Federal do Ceará

Rodrigo Gabriel da Costa


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Neste trabalho, nos propomos à análise do conto “Roupa suja”, do escritor
Marcelino Freire, presente em seu livro Rasif: Mar que arrebenta (2008). Objetivamos
elucidar a relação entre o feminino e o erotismo presente no conto com base,
principalmente, no trabalho de Castello Branco (2004) e sua leitura, por conseguinte,
de Bataille (1987). Discutiremos ainda a relação da mulher com o misticismo, visto
que este também representa uma manifestação de Eros, trazendo à luz exemplos
encontrados na tradição clássica grega, extraídos dos mitos de Circe e de Medéia,
relatados nas epopeias e nas tragédias. Concluímos expondo como essa relação se
constitui uma ameaça ao sistema patriarcal dominante e que, portanto, sofre
interdição.
Palavras-chave: Erotismo; Feminino; Misticismo.

INTRODUÇÃO

O conto “Roupa suja”, do escritor pernambucano Marcelino Freire, compõe o


livro Rasif – Mar que arrebenta, lançado em 2008. Narrado em primeira pessoa por
uma personagem cujo nome não se sabe, o discurso é destinado a uma
interlocutora denominada Maria numa espécie de monólogo – há apenas a voz da
narradora-personagem. O enredo constitui-se do relato de uma ex-lavadeira que,
após conquistar o patrão, ascendeu socialmente tornando-se sua esposa. Maria é
uma lavadeira e a conversa acontece enquanto esta lava as roupas do marido
daquela.
O conto é estruturado de forma que permita ao leitor perceber os
movimentos caros ao ambiente de lavanderia. O autor utiliza vocábulos
pertencentes ao campo lexical dessa profissão e as metáforas se dão a partir de
imagens próprias do processo de lavagem, a exemplo das passagens 19: “Parecia

19 FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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propaganda de sabão. Tudo à minha volta ficou limpo, límpido, este mundo cão” (p.
57); “Ele, dentro de uma bolha” (p. 57); “Feito nódoa que a gente tira, com sacrifício.
Ali, esfrega. Torce, bate na centrífuga. O nosso destino. Um dia muda de cor” (p.
58). Outro aspecto importante da estrutura formal da narrativa são as rimas internas;
apesar de se tratar de um texto em prosa, é possível perceber toda uma
musicalidade que perpassa a escrita do conto, quebras nas sentenças frasais de
maneira a aproximar a prosódia do texto à fala coloquial. Aliás, este é um aspecto
característico da escritura de Marcelino Freire, identificável nos demais contos que
compõem a obra e em outras de suas produções.
O tom político é bastante presente na narrativa, uma vez que a divisão de
classes sociais é abordada. A personagem-narradora se apaixona pelo patrão, que a
princípio a esnoba; ela entende sua condição, “sujinha e pobrinha” (p. 58), mas não
abdica de ultrapassar os limites impostos socialmente e conseguir conquistá-lo;
Maria é uma lavadeira e se encontra na mesma condição que a personagem-
narradora estava e que agora reconta sua trajetória na intenção de que ela consiga
modificar sua própria realidade.
Interessa-nos aqui analisar como o erotismo é abordado no conto e como
este se relaciona com o elemento feminino, uma vez que é narrado por uma
personagem feminina e destinado a uma personagem feminina. Para tanto,
buscaremos, primeiramente, definir o erotismo à luz do trabalho de Castello Branco
(2004), baseando-se nos estudos de Bataille (1987) e de outras correntes do
pensamento, como a filosofia platônica, em especial com o Banquete e as
contribuições da psicanálise freudiana. Analisamos também a relação das
personagens com as de algumas narrativas clássicas, a fim de exemplificar como
ambos os elementos, feminino e erotismo, correlacionam-se com o misticismo,
também perceptível no conto de Marcelino Freire.

A RELAÇÃO ENTRE EROTISMO E FEMININO


Nossa análise parte da ideia de erotismo compreendido como um

Amor, Língua de Eros


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movimento, uma tentativa de completude, tendo em vista a superação da


fugacidade da vida e o desejo de permanência do indivíduo. Bataille (1987, p. 12)
afirma que “somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa
aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida” e que “temos
a obsessão de uma continuidade primeira que nos une geralmente ao ser”. O
desejo de (re)união não se relaciona apenas à atividade sexual, mas está presente
nas experiências religiosas, místicas e artísticas. Castello Branco (2004, p. 9) evoca o
mito dos andróginos, apresentado por Aristófanes em sua fala no Banquete, de
Platão, para exemplificar essa busca por uma conexão outrora perdida.
No mito, o comediógrafo conta que anteriormente existiam apenas três
sexos: masculino, feminino e andrógino. Estes últimos eram redondos, possuíam
quatro pernas, quatro mãos, duas faces, dois genitais, quatro orelhas e duas
cabeças. Devido à sua força, ousaram subir ao Olimpo e desafiar os deuses. Zeus,
por sua audácia, resolveu castigá-los dividindo-os em duas partes para que se
tornassem fracos e mais numerosos para servirem às divindades. Após essa divisão,
os seres mutilados começaram a buscar eternamente a outra parte que lhe faltava
em busca da mais plena completude e perfeição. Eros nasce como um impulso para
reestabelecimento da união dos seres. Castello Branco (2004) ressalta dois aspectos
fundamentais presentes nesse mito:

Um deles se refere ao extremo poder atribuído a Eros, que é capaz, ainda


que por segundos, “restaurar a antiga perfeição” e de reproduzir seres
“andróginos”, totais e audaciosos, que ousam desafiar os deuses. Outro
aspecto reside na ideia de “incompletude” e de debilidade dos seres
bipartidos que, desprovidos da força de Eros, tornam-se fracos e úteis
àqueles que detêm o poder. (CASTELLO BRANCO, 2004, p. 11).

A autora argumenta que os mecanismos de repressão do desejo organizam-


se em torno dessas duas visões presentes no mito, e por isso a interdição de Eros,
da linguagem erótica, é tão comum em regimes autoritários, pois configura uma
força poderosa que desestabiliza a ordem social imposta.
Outro elemento ameaçador, e, portanto, passível de interdição, é o feminino.
Castello Branco (2004, p. 13) nos diz que o único ser capaz de atingir a completude
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é o sexo feminino, principalmente por meio da gravidez na qual a mulher se


completa ao gerar outra vida dentro de si, sendo, ao mesmo tempo, um e outro.
Além disso, atinge a forma redonda, como os antigos andróginos eram antes de
serem castigados por Zeus. Assim, a autora conclui que a mulher possui “a
capacidade natural de experenciar a totalidade e a fusão com o universo e de viver
temporariamente sob os desígnios de Eros” (CASTELLO BRANCO, 2004, p. 13).
Movidas por esse desejo de completude é que as ações relatadas pela
personagem-narradora do conto “Roupa suja” vão se desenvolver. Na busca por
unir-se ao ser amado – o patrão –, a personagem não mede esforços para
consegui-lo, articulando estratégias diversas, e chega inclusive a desejar a morte da
companheira dele. Em dado momento da narrativa, o patrão surge na lavanderia
acompanhado da namorada. Enciumada, a personagem-narradora manifesta
tamanha ira a um Pai de Santo, pedindo que a “tire do seu caminho” e que a mate
“afogada em água sanitária”. O desejo pela morte (da namorada) para afirmação da
vida (a sua própria) é outra faceta do erotismo, uma vez que “todo impulso de vida
(Eros) acarreta o desaparecimento de algo (um ser, uma situação, um sentimento),
implica um impulso de morte (Tanatos) (CASTELLO BRANCO, 2004, p. 34).
Nos estudos sobre o erotismo, o par vida e morte são indissociáveis. Na
leitura que faz de Bataille, Castello Branco (2004) aponta as explicações biológicas
que o filósofo utiliza para demonstrar a correlação dessas duas forças antagônicas:

Na reprodução assexuada, a célula se divide em dois núcleos no


momento de seu crescimento, ou seja, de um núcleo resultam dois.
Houve, portanto, o desaparecimento, a morte de um ser para que
houvesse o nascimento de outro. Algo semelhante ocorre na reprodução
sexuada: é necessário que o espermatozoide e o óvulo deixem de existir
para que se origine novo ser. A vida é, portanto, produto de
decomposição da própria vida. [...] O que move os indivíduos é, segundo
Bataille, o desejo de permanecer através da fusão com o outro, o desejo
de continuar, superar a morte. Entretanto, essa fusão com o outro é
sempre momentânea e fugidia, e está condenada a desaparecer, a
morrer, para que os indivíduos continuem existindo como seres distintos.
(CASTELLO BRANCO, 2004, p. 35).

Evocamos ainda outro episódio da narrativa no qual essa relação vida-morte

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torna-se evidente. Ao chegar à casa do patrão para devolver-lhe o paletó, a


protagonista finge um desmaio, simula uma pequena morte, para forçar uma
aproximação entre eles, como explicitado no trecho:

Ora, ele que não pense que as coisas eternamente vão ficar assim. Neste
chove-não-molha. Pedi água. Suei, falei que não estava me sentindo bem.
E desmaiei.
Isso o que você ouviu, Maria. Desmaiei. Despenquei feito vento quando
bate numa pétala. Simulei.
Vi quando ele me despejou no sofá. Trouxe lencinho engomado e álcool.
Como um pai preocupado. Meu marido velho, para todo o sempre.
Fui acordando, brotando displicentemente.
— Onde estou?
— Melhorou?
Pedi só para descansar um pouco ali, no conforto. [...] De propósito, cerrei
os olhos. Até que ele veio e me chamou. Bem de perto, outra vez.
(FREIRE, 2008, p. 62-63).

A passagem pela “morte”, por meio da simulação do desmaio, é o que vai


garantir de vez a união entre a personagem e o patrão. Após esse episódio, ela o
agarra e o beija e permanecem “juntos desde aquele dia”.

EROTISMO E MISTICISMO
Outro aspecto presente na narrativa, dentro da temática do erotismo, é a
relação entre o feminino e o misticismo. Na perspectiva de Bataille (1987, p. 13), “a
busca de uma continuidade do ser perseguida sistematicamente para além do
mundo imediato aponta uma abordagem essencialmente religiosa”. O misticismo,
como um desejo de completude com o divino, de forma em que haja uma total
efusão do eu para um preenchimento da divindade, constitui-se como uma das
formas de manifestação de Eros. Um dos exemplos mais imediatos que retratam
bem essa relação é o da mística Teresa d’Ávila, cujas narrações de suas experiências
de êxtase, nas quais a beata recebia o Deus em si, geram ainda hoje uma certa
polêmica entre os religiosos, uma vez que há, inegavelmente, uma aproximação das
sensações descritas pela santa com o gozo erótico-sexual: o orgasmo. Contudo, há
que se resguardar as particularidades de cada experiência, como ressalta o autor:
“Há semelhanças flagrantes, e mesmo equivalências e trocas, entre os sistemas de

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efusão erótica e mística. Mas essas relações não podem aparecer tão claramente
senão a partir do conhecimento experimental das duas espécies de emoção”
(BATAILLE, 1987, p. 147).
No conto em análise, essas duas dimensões do erotismo, tanto no âmbito
corporal quanto no religioso, aparecem. Movida pelo desejo de conquistar o
amado, a personagem-narradora procura um Pai de Santo em busca de respostas
de seu orixá. Ela, que havia encontrado um pelo pubiano enquanto lavava as roupas
de baixo do patrão, utiliza-o como instrumento para realização de rituais de forma a
atrair o homem desejado:

Peguei o pentelho da sua cueca. Feito este, olhe. Não tenha nojo. Pelo
grosso, que eu levei para o Painho.
— Eu quero este homem só para mim.
— Minha filha, minha filha, ele será seu, sim.
Foi o que meu orixá prometeu. E eu acreditei. Eu me agarrei nesta fé. Eu
rodopiei e dancei, no batuque. Meu, só meu. Príncipe. E rei. (FREIRE, 2008,
p. 58).

Após essa primeira experiência, de dançar na roda do terreiro imbuída de


paixão pelo patrão, e agora com a confirmação da entidade de que ele será seu, a
protagonista parte para um nova experimentação erótica, dessa vez física, como
explicita na continuação de seu relato à interlocutora:

E saiba você que não fiquei só nisso. Pirei. Levei para minha casa sua
samba-canção. E sambei. Vestido dentro do corpo dele o meu umbigo.
Eu vesti. E senti entre as minhas coxas as suas coxas. E, Maria, jura que
não conta? Assim: melequei a roupa do cliente. Múltiplos orgasmos,
entende? Paixão que foi me deixando quente e doente. (FREIRE, 2008, p.
59).

Percebemos nessa passagem que apenas a idealização do ser amado já é


suficiente para a satisfação das pulsões da personagem. É interessante ressaltar que
o objeto de desejo, de acordo com as primeiras teorias das pulsões de Freud 20,
pode se constituir tanto por objetos parciais reais presentes, como partes do corpo,
quanto por fantasias, desde que haja a satisfação da pulsão sexual do indivíduo

20 Não pretendemos nos ater aos debates psicanalíticos sobre a definição e a natureza do objeto do
desejo para Freud. Para tanto, recomendamos a leitura do trabalho de Coelho Jr (2001) que
estabelece uma síntese de percurso das formulações e reformulações da teoria freudiana.
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(COELHO JR, 2001, p. 44). Essa passagem da narrativa estabelece um paralelo


interessante com um outro texto, de Caio Fernando Abreu, “Dama da noite”,
presente no livro Os dragões não conhecem o paraíso (2014). A certa altura do
conto, cuja estrutura narrativa se aproxima do conto de Freire, temos a seguinte fala:

Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação.


Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma
pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça,
não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é
sozinho, boy. (ABREU, 2014, p. 69).

Entendemos nesse trecho um outro aspecto do objeto do desejo, que,


dentro das reformulações da teoria freudiana, tanto se apresenta como algo externo
e real, quanto por uma representação psíquica (COELHO JR., 2001, p. 45). Para a
personagem de Abreu, o gozo se realiza apenas na mente, a partir do que se
imagina que pode oferecer essa satisfação, e não com uma saciação real que o
outro pode, de fato, proporcionar. Daí, o que a leva a afirmar que “sexo é sozinho”.
Ora, no conto de Freire, a personagem-narradora têm “múltiplos orgasmos” apenas
com a representação mental que faz do ser amado a partir da peça íntima.
Não somente nesse trecho anteriormente citado, mas nas narrações
subsequentes encontramos outros pequenos rituais que a personagem-narradora
realiza para atrair a atenção do patrão: “esquecer” dinheiro no bolso da roupa,
comprar roupas íntimas com estampas de frutinha tal como a namorada dele, e
mesmo a consulta com o orixá. A angústia de desejá-lo logo faz com que se
indague quantos “pentelhos” a mais terá que resgatar para que ele seja seu. Porém,
pouco a pouco essas estratégias vão surtindo efeito; há uma aproximação entre eles
e o contato deixa de ser tão indiferente quanto costumava ser no início da narrativa.
O uso de métodos, estratégias, filtros e afins, pela mulher, com o propósito
de conquistar o amado, é tema recorrente na literatura. Desde a tradição clássica, o
domínio do feminino sempre esteve ligado ao misticismo, à bruxaria, à utilização de
ervas, do phármaco; e também a presença da mulher em rituais de fertilização,
celebração e perpetuação da vida. Extraímos alguns exemplos da tradição clássica

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grega, dentre tantos, apenas para elucidar essa relação.


Talvez a figura mais emblemática do poder místico feminino seja Medeia 21. A
personagem mítica era filha de Eetes, rei da Cólquida, e de Idiia, filha de Oceano,
por conseguinte neta de Hélio, o Sol. Também da linhagem de Medeia temos Circe,
de quem era sobrinha. Algumas variações do mito a colocam como filha ou
sacerdotisa de Hécate, cujos atributos e características são constantemente
relacionados ao ocultismo. Dos feitos que elevaram Medeia a um patamar de
grande importância nas narrativas clássicas, destaca-se a sua contribuição para o
sucesso da expedição dos Argonautas, liderados por Jasão, por quem se apaixonara.
É graças a ela que o herói consegue reaver o velocino de ouro, uma vez que a
princesa lhe concede um bálsamo que o permitia enfrentar os touros de Hefesto e
derrotar as criaturas nascidas dos dentes do dragão de Cadmo. Após ajudá-lo a
vencer os obstáculos, Medeia parte junto com Jasão na nau Argos, executando o
próprio irmão, despedaçando-o e espalhando as partes de seu corpo para afastar o
pai e rei.
Contudo, o mesmo talento que empregara para o sucesso de Jasão é
utilizado por Medeia para a sua ruína: ao ser abandonada pelo herói, que a trocara
pela filha do rei de Corinto, ela se vale da habilidade no trato das poções para
vingar-se, embebedando um manto com veneno e dando-o de presente de núpcias
para a princesa. Ao vesti-lo, esta tem suas carnes e ossos consumidos; na tentativa
de ajudá-la, o rei também sucumbe. Na tragédia euripidiana, Medeia parte numa
carruagem alada em direção a Atenas, após ter concluído sua vingança.
Um segundo exemplo é a própria Circe, personagem que tem papel
fundamental na Odisseia. Filha de Hélio e da oceânide Persei, era irmã de Eetes e,
portanto, tia de Medeia. De linhagem dotada de poderes místicos, Circe possuía o
mesmo dom na manipulação do phármaco e seria capaz de predizer o futuro. É
Circe quem purifica Jasão e Medeia, no mito dos Argonautas, quando, na volta, a
expedição aporta em sua ilha. Em Homero, aparece no canto X 22, quando Odisseu

21 Utilizamos a versão mais recorrente do mito extraída de Brandão (1991).


22 HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin Classics, 2011.
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chega à Eéia, onde a feiticeira habitava, fugindo dos lestrígones (vv. 112-134). Ao
avistar o palácio da deusa, o herói divide a tripulação restante em dois grupos, um
liderado por ele, e o outro, por Euríloco. Este segundo, ao chegar à mansão de
Circe, percebe que o local é rodeado por feras selvagens as quais ela “enfeitiçara
com drogas malévolas” (v. 213). Ao adentrarem as portas do lugar, os companheiros
de Odisseu são recebidos por Circe, que lhes serve “queijo, cevada e pálido mel
com vinho de Prammo; mas misturou na comida drogas terríveis, para que se
esquecessem da pátria” (vv. 233-236). Ao ingerir o alimento enfeitiçado, a tripulação
é transformada em porcos. Odisseu escapa da armadilha, tendo sido avisado por
Hermes, que lhe dera uma erva para que se tornasse imune aos encantos da deusa.
Resolvido o impasse e tendo seus companheiros de volta, o herói e os demais
companheiros residem na ilha durante um ano, usufruindo da abundância do lugar
e, no caso de Odisseu, compartilhando também o leito de Circe.
Nesses dois exemplos, notamos duas personagens femininas que utilizam de
seus poderes e habilidades com o uso de poções e filtros tanto para conquistar o
ser amado quanto para infringir sobre ele a vingança – no caso de Medeia. As
artimanhas da conquista, ligadas às mulheres, perduram até hoje, facilmente
identificáveis com as “simpatias” difundidas em revistas destinadas principalmente ao
público feminino. No conto em análise, é o “pentelho” encontrado na roupa íntima
do patrão o estopim para que a protagonista-narradora realize os rituais de atração
e conquista do amado, intermediados pela sanção do orixá ao qual recorreu.
Atrelado a essa ideia está um outro ponto que merece ser ressaltado: o perigo que
a relação entre o feminino e o misticismo representa. Medeia e Circe são feiticeiras,
capazes de provocar a ruína dos homens que as desafiarem; a protagonista do
conto de Freire consegue desbancar a namorada do patrão, ocupar seu lugar e
ascender socialmente.

CONCLUSÃO
Para um sistema patriarcal dominante, onde a figura do homem é símbolo

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máximo de autoridade, o feminino se configura como uma ameaça e, portanto,


deve ser interdito, como bem elucida Castello Branco (2004):

Não é por acaso que as sociedades patriarcais estão repletas de regras


que procuram controlar essa estranha magia das bruxas. O poder do
feminino se encontra expresso nos mitos, dos pagãos aos cristãos; a Bíblia
traz exemplos inesgotáveis da necessidade de regular, de “proteger” as
mulheres e de se proteger contra elas, que, silenciosas e passivas,
ameaçam a ordenação e a assepsia da humanidade, sobretudo durante a
menstruação e a gravidez, estados considerados impuros e impróprios,
que as remetem naturalmente à “conexão” erótica. (CASTELLO BRANCO,
2004, p. 14).

Em face desse poder, é perceptível a constante regulamentação do erotismo


feminino, da tentativa de conter essa potência, seja por meio de violência, o que
explicaria os casos cada vez mais recorrentes de agressão às mulheres, seja por
meio da pornografização do feminino, que destitui o corpo da mulher e o reduz a
um mero objeto de prazer masculino, a um órgão sexual, em função do desejo do
homem, ou ainda por meio de discursos moralizantes e mascaradamente
opressores, os quais alegam a manutenção “dos bons costumes”, restringindo a
mulher apenas ao espaço doméstico.
A narrativa apresentada e analisada neste trabalho nos põe diante de uma
personagem-narradora que, uma vez imbuída da paixão de Eros, lança mão dos
artifícios necessários para alcançar seus objetivos: ter o amor do patrão e, por
extensão, ascender socialmente. Assim, transgride a norma social e cumpre seus
propósitos. Em relação à Maria, sua interlocutora, o relato da personagem-
narradora serve de ensinamento: “Escute bem, Maria. Se hoje é você quem lava a
cueca do meu marido, amanhã pode ser a dona da lavanderia” (FREIRE, 2008, p. 63).
Portanto, à interlocutora, com a qual o leitor pode facilmente se identificar, resta o
conselho: uma vez apoderada da linguagem de Eros, o erotismo, é possível
desestabilizar as estruturas impostas em direção à completude com o objeto
desejado.

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REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. Rio de Janeiro:


Companhia das Letras, 2014.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antônio Carlos Viana. Porto Alegre:


L&PM, 1987.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. 1 e 2. Rio de Janeiro:


Vozes, 1991.

CASTELLO BRANCO, Lúcia. O que é erotismo. 2 ed. São Paulo: Editora Brasiliense,
2004.

COELHO JR., Nelson Ernesto. A noção de objeto na psicanálise freudiana. Ágora:


Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 4, n. 2, p. 37-49, jul./dez. 2001.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/agora/v4n2/v4n2a03.pdf>. Acesso em 29
set. 2019.

FREIRE, Marcelino. Rasif: mar que arrebenta. Rio de Janeiro: Record, 2008.

HOMERO. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço. São Paulo: Penguin


Classics, 2011.

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AMOR E PODER NA LITERATURA DE CORDEL DE JOSÉ COSTA


LEITE
Kelly Cristina Medeiros Ferreira
Universidade Federal do Ceará

Martine Suzanne Kunz


Universidade Federal do Ceará

Resumo: o trabalho objetiva investigar comparativamente, sob a perspectiva da


crítica sociocultural, interfaces estabelecidas entre realidade social e representação
artística em dois folhetos, As aventuras de Napoleão e Zulmira e Rufino e Adalgisa –
aventuras, amor e lutas, do poeta de bancada José Costa Leite (1927). Ambos relatam
histórias de grandes e impossíveis amores e focalizam as configurações do amor e do
poder nas difíceis relações desenvolvidas – no âmbito mais reservado das grandes
propriedades rurais – entre pai, filha e pretendente. O embasamento crítico e teórico
ampara-se, maiormente, no pensamento de Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes
(1977), Darcy Ribeiro ([1995] 2006) e Pierre Bourdieu ([1998] 2012).
Palavras-chave: Literatura de cordel; José Costa Leite; Amor; Poder.

AMOR E PODER NOS SERTÕES DA LITERATURA DE CORDEL


A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se
conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida
que somos e a gente insensível e brutal, que também
somos. [...] (RIBEIRO, 2006, p. 120).

Darcy Ribeiro em O povo brasileiro debruça-se sobre a formação de tal


povo fundado sob o signo do escravismo a partir do entrechoque de três matrizes
díspares – portuguesa, indígena e africana. Todavia, essa unidade étnica básica
regida pela primeira matriz mencionada não implica em uniformidade, haja vista a
atuação de três forças: ecologia, economia e imigração. Por essas vias, surgiram
diversos “brasis” – o caboclo da Amazônia, o sertanejo do Nordeste, o crioulo do
litoral, o caipira do Sudeste/Centro-Oeste e o gaúcho do Sul. Todos, ainda que
resguardadas suas especificidades, aproximam-se no que tange ao exacerbado
distanciamento social classista correlativo ao descaso no trato com os inferiores no
plano econômico e ao arranjo doméstico patriarcal regido pelas normas antigas do
direito romano-canônico, legados ibéricos.

Amor, Língua de Eros


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Sob tais balizas, esse artigo volta-se para o “Brasil Sertanejo”, ambiente
remarcadamente patriarcal e classista no qual vicejou e prosperou a literatura de
cordel, que, como qualquer outra produção ficcional, gravita entre a fantasia e a
realidade. Desse modo, o trabalho objetiva examinar comparativamente, sob o viés
da crítica sociocultural, interlocuções entre realidade social e representação artística
em dois folhetos do poeta de bancada paraibano José Costa Leite (1927), que
versam sobre grandes e impossíveis amores – As aventuras de Napoleão e Zulmira,
e Rufino e Adalgisa – aventuras, amor e lutas. Busca-se, por conseguinte, analisar as
configurações do amor e do poder nas difíceis relações estabelecidas no âmbito
mais reservado das grandes propriedades rurais entre pai, filha e pretendente, as
quais remetem à “doçura mais terna” e à “crueldade mais atroz” de que trata Ribeiro
na epígrafe.
O “Brasil sertanejo” principia no agreste, dilata-se pelas caatingas e alcança
os cerrados. Esse espaço sempre em expansão incorporou uma parcela significativa
da população nacional e terminou por conformar “um tipo particular de população
com uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua especialização ao
pastoreio, por sua dispersão espacial”, somem-se ainda as peculiares organização
familiar e estruturação do poder (RIBEIRO, 2006, p. 307). Nesses contornos, a
relação entre o dono das terras e seus subordinados exigia rígida hierarquia. Logo,

[...] O senhor, quando presente, se fazia compadre e padrinho, respeitado


por seus homens, mas também respeitador das qualidades funcionais
destes, ainda que não de sua dignidade pessoal. […].
O criador e seus vaqueiros se relacionavam como um amo e seus
servidores. Enquanto dono e senhor, o proprietário tinha autoridade
indiscutida sobre os bens, e, às vezes, pretendia tê-la também sobre as
vidas e, frequentemente, sobre as mulheres que lhe apetecessem. Assim,
o convívio mais intenso e até a apreciação das qualidades de seus
serviçais não aproximavam socialmente as duas classes, prevalecendo um
distanciamento hierárquico e permitindo arbitrariedades [...] (RIBEIRO,
2006, p. 309).

O domínio discricionário do fazendeiro desconhecia limites e sua vontade


indeclinável valia para o mando do núcleo familiar, agregados, empregados e
escravos. “A essa corrupção senhorial corresponde uma deterioração da dignidade
Amor, Língua de Eros
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pessoal das camadas mais humildes, condicionadas a um tratamento gritantemente


assimétrico, predispostas a assumir atitudes de subserviência” (RIBEIRO, 2006, p.
199). Produtos socioculturais desse sistema desigual, no que tange ao plano
humano, além do fazendeiro, são o cabra, o jagunço e o cangaceiro. Outros
subprodutos da subcultura sertaneja dizem respeito à vestimenta, à culinária, aos
folguedos e à religiosidade. Já no que se refere à manifestação artística, destaca-se a
literatura de cordel.
Para Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (1977), no artigo “Para uma
leitura sociológica da literatura de cordel”, tal literatura atrela-se às experiências
vividas pelos sertanejos que transportam para esse universo sonho e realidade, uma
vez que os poetas testemunham “suas grandezas e misérias, exprimindo suas
perplexidades e esperanças” (MENEZES, 1977, p. 87). Assim, nesse ambiente
assinalado pelo mando senhorial existem poucos caminhos para a ascensão social,
os folhetos de cordel em paralelo com a realidade da época apresentam os
seguintes – a vida religiosa, o serviço das armas e o saber ou a astúcia. Por tais vias,
o herói poderá suplantar as dificuldades sociais, ressalte-se, todavia, que a resolução
do problema situa-se sempre em nível individual e que a estrutura maior permanece
intocada.
Nas histórias de valentes, conforme Menezes, o conflito entre classes
fundamenta essas narrativas, “mas que aparece ao nível manifesto sob a roupagem
de uma luta individual pela conquista da amada, em que o código da honra e da
bravura se superpõe ao código da estrutura social, no jogo dialético entre ficção e
realidade do imaginário popular.” (MENEZES, 1977, p. 72). Desse modo, o herói
normalmente emergirá de uma situação adversa; enfrentará o injusto potentado
local; vencerá tal desafio e finalizará seu trânsito social por meio do casamento com
a filha deste. O embate promove a elevação do status do herói e não mudança do
status quo mobilizada por transformações sociais. Dentre os valentes do sertão, aos
vaqueiros cabe uma distinta posição e sobre alguns desses primeiros valentes a
lutarem pelo amor da filha do fazendeiro discorrerá a próxima seção que os cita

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ainda que de modo breve, objetivando uma melhor contextualização.


Posteriormente, a pesquisa debruçar-se-á sobre as narrativas integrantes do corpus,
já referidas.

HISTÓRIAS ROMÂNTICAS DE VAQUEIROS


Seria o amor uma exceção, a única, mas de primeira
grandeza, à lei da dominação masculina, uma suspensão
da violência simbólica, ou a forma suprema, por que a
mais sutil e a mais invisível, desta violência? (BOURDIEU,
2012, p. 129)

O questionamento de Pierre Bourdieu constante no “Post-Scriptum


sobre a dominação e o amor” importa, pois o trabalho busca observar o papel do
amor em um espaço fortemente patriarcal como o sertanejo. Poderia o amor
finalmente inaugurar relações assimétricas entre homens e mulheres? Constituiria
uma “espécie de trégua milagrosa, em que a dominação parece dominada, ou
melhor, anulada, e a violência viril apaziguada”? O amor, “este mundo fechado e
totalmente autárquico em que se dá toda uma série contínua de milagres” –
“milagre da não-violência”, “o milagre do reconhecimento mútuo”, “o milagre do
desinteresse” baseados respectivamente em relações de reciprocidade, encontro e
encantamento (BOURDIEU, p. 129-131). Vejamos o modo pelo qual as narrativas da
literatura de cordel selecionadas podem responder a tais questionamentos.
Dentre as mais antigas histórias românticas de vaqueiros da literatura de
cordel, figura História sertaneja do valente Zé Garcia – célebre romance escrito em
40 páginas e composto por 208 sextilhas –, do poeta de bancada paraibano João
Melchíades Ferreira da Silva (1869-1933), que traz a história de um dos filhos de um
rico fazendeiro do Seridó, tenente Garcia, que fugiu para o Piauí após ser acusado
levianamente por Francisca Ramel, filha do cangaceiro Militão. Chegou a terras
piauienses com uma carta de recomendação do pai e recebeu a proteção de outro
grande proprietário de terras, capitão Miguel Feitosa, que tinha uma filha chamada
Zulmira. Nessa paragem, o rapaz forasteiro encontrou seu grande amor – Sinforosa,
filha do maior potentado da região, coronel Cincinato e afilhada de Feitosa. Notem-

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se três aspectos extremamente representativos do universo sertanejo – o cangaço, o


culto à honra e a constituição militarizada.
Sobre o primeiro aspecto, o cangaço pode ser compreendido como um
fenômeno social cujos fundamentos podem ser encontrados na estrutura
econômica e política nordestina assinalada pelas grandes propriedades rurais e sua
consequente desigualdade de forças, pois se de um lado há coronelismo,
mandonismo e opressão, do outro há escravidão, pobreza, exclusão e submissão.
Diante de tantas formas de degradar o homem, pode-se chegar a uma resposta
imprevista – a revolta, o cangaço. A respeito do segundo ponto, o crime de
desonrar uma donzela no sertão era reparado mediante casamento, destituição do
sobrenome, da herança ou morte.
A identificação da honra feminina ocorria pela identificação com a virgindade
e a fidelidade carnal ao marido. Por consequência, a honra feminina correspondia à
honra do homem e, havendo conduta considerada irregular, esta deveria ser
reparada ou vingada pelo homem ofendido, correntemente, o pai ou o marido. Para
não sofrer tais consequências, mesmo sendo inocente, Zé Garcia foge. Com relação
ao terceiro aspecto, Henry Koster (1942), em Viagens ao Nordeste do Brasil explica:
“O conjunto da administração no Brasil é militar. Todos os homens de sessenta a
dezesseis anos, devem ser arrolados entre os soldados de Linha, na Milícia ou
pertencer às Ordenanças” (KOSTER, 1942, p. 259). Quem comanda os regimentos da
Milícia são os ricos agricultores que detêm altas patentes, como as de coronel,
major, capitão, tenente. Eis o caso do tenente Garcia, capitão Feitosa e coronel
Cincinato. Quanto mais rico, maior a patente:

– O meu pai governa aqui


Um bando de cangaceiro,
E possui vinte fazendas,
É orgulhoso em dinheiro.
Tem um negro que adivinha,
É um fino feiticeiro.

O senhor casa comigo,


Visto ser rapaz solteiro,
Se tiver muita coragem,

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Cavalo bom e dinheiro


Para fugirmos daqui
E correr um mês inteiro. (SILVA, 2011, p.17)

A arguta fala de Sinforosa, proferida após a declaração de amor de Garcia,


a um só tempo aponta os perigos que pairam sobre o amor do casal e os meios
para transpô-los. A resposta do jovem foi “Eu sou homem a toda hora / Não tenho
medo de nada”. A resposta proclama um dos valores por excelência do sertão – a
coragem, uma das vias de ascensão. Em uma sociedade excludente, à mulher cabe
a honra; ao valente, a coragem; e, ao sabido, a astúcia. O amor entra na
composição da trama e ocupa elevado destaque, no entanto, como o título anuncia,
importa ainda mais ressaltar a destreza e a coragem do protagonista.
Já O touro do umbuzeiro ou o curandeiro misterioso – romance de 48
páginas composto por 1.134 versos distribuídos em 189 sextilhas –, do poeta e editor
paraibano João Martins de Athayde (1877-1878-1880?-1959), mergulha mais fundo
no que se refere à descrição de um grande e impossível amor. Protagonizam a cena
o rico fazendeiro orgulhoso, João Graúna; o velho vaqueiro mandingueiro muito
respeitado por Graúna, Zé Vaqueiro; o filho de Zé Vaqueiro, o jovem e destemido
Daniel; a filha de Graúna, a bela Rosinha. A estima do fazendeiro para com o velho
vaqueiro, no entanto, sucumbe diante do amor de Daniel e Rosinha, pois as
contrastantes condições sociais obstruem a integração das partes. Essa aproximação
afetiva dos jovens é considerada por Graúna uma ofensa e uma vergonha: “E, como
pode ser isso? / Estou bastante humilhado / Nossa filha uma ricaça / Namorando
um engeitado / Não! Aquele João Ninguém / Comigo está enganado.” (ATHAYDE,
1955, p. 20-22). Assim, em segredo, atenta duas vezes contra a vida de Daniel e
todas as suas intenções são frustradas pela intervenção miraculosa de Zé Vaqueiro.
Outro aspecto da sociedade sertaneja pode ser entrevisto nesse enredo – a
presença do curandeiro, curador, mandingueiro ou catimbozeiro. Já A história
sertaneja do valente Zé Garcia faz referência a um negro mandingueiro a serviço de
Cincinato. O subtítulo da narrativa de Athayde proclama a relevância de Zé
Vaqueiro para a urdidura da trama, esse homem com seus poderes mágicos

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assegura o desenvolvimento do romance de Daniel e Rosinha. Entre os seus


poderes consta o da premonição por meio de sonhos, cura de animais e de homens
e domínio sobre feras.
O touro do Umbuzeiro ou O curandeiro misterioso abre maior espaço para a
figura da mulher, notadamente, a filha do fazendeiro. Essa abertura para a voz
feminina tende a constar e a expandir-se em narrativas de poetas mais recentes 23 e
por ela a mulher declara seus sentimentos e pensamentos, seus sofrimentos, enfim,
sua condição de dominada ante o autoritarismo paterno. Todavia, assim como os
moços desafiam a autoridade do senhor, as moças revelam-se insubmissas à
vontade do pai e, desse modo, o jovem casal luta em nome do amor contra o
poder estabelecido e vence. Nessa conjuntura, Daniel e Rosinha casam-se e vão
morar no Rio de Janeiro, pois a jovem, que era estudada, não queria morar na
fazenda. Os sinais dos novos tempos podem ser percebidos nesse desfecho que
pode ser interpretado como uma interferência dos valores da cidade sobre os do
campo. Diferenças quanto ao final dos dois romances examinados dizem respeito ao
fato de que Zé Garcia e Sinforosa seguem morando na fazenda dos Garcia.
Posteriormente, os sogros enviam o dinheiro da herança das filhas. Já Daniel, que,
ao contrário de Zé Garcia, era vaqueiro por profissão e precisão, abandona o ofício,
parte para a capital e recebe cem contos do sogro para entrar “de sócio em uma
sociedade”. Abaixo se transcreve trecho ilustrativo acerca de tal interferência 24.
Graúna sorriu e disse:
Daniel não és doutor
Tua audácia e inteligência

23 O vaqueiro do barulho e A vingança do vaqueiro, ambos de Manoel d’Almeida Filho (1914-1995);


O boiadeiro de sertão e a filha do fazendeiro e Um sertanejo valente na defesa do amor, ambos de
José Costa Leite (1927-); O amor de Maristela e a luta de um boiadeiro, de Enéias Tavares Santos
(1931-); A coragem de um vaqueiro em defesa do amor, de João Firmino Cabral (1940-2013); O
justiceiro do Norte, de Rouxinol do Rinaré (1966-); Rogaciano e Angelita, de Antonio Ferreira da Silva
(?); Laureano e Carminha, de Guriatan (?), entre outros.
24 A esse respeito vale registrar que a edição mais antiga que encontrei do romance de João
Melchíades Ferreira da Silva data de 1938 publicada em Belém do Pará pela Editora Guajarina. In:
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?
bib=CordelFCRB&pasta=LC2979%20%20Estoria%20do%20valente%20sertanejo%20Ze
%20Garcia&pesq=>. Já a edição mais antiga de João Martins de Athayde data de 1949 publicada em
Recife sem indicação de editora. In:
<http://docvirt.com/docreader.net/WebIndex/WIPagina/Cordel/20206>.
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Te deu afinal valor


Terás a minha amizade
E de Rosinha o amor.

[...]

Daniel estava belo


Era um Apolo perfeito
O seu olhar cintilante
Lhe dava um que de respeito
Não era mais um vaqueiro
Era um homem de conceito (ATHAYDE, 1955, p. 46, grifo nosso).

Ao final, Graúna aprova o matrimônio, pois Daniel e Zé Vaqueiro salvam-lhe


a vida. O pouco apreço pela condição de vaqueiro verifica-se no fragmento acima,
conforme os trechos grifados, e evidenciam a interferência mencionada. Em meio a
um ambiente opressor pulsado pela “dominação masculina”, expressão formulada
por Bourdieu, se Zulmira, Sinforosa e Rosinha mostram-se insubordináveis no que
tange à conquista do amor e da liberdade, as heroínas de José Costa Leite
verticalizam ainda mais tal atitude.
As narrativas aqui apreciadas de José Costa Leite diferenciam-se das demais
por mostrar jovens mais desinibidas em relação às observadas anteriormente.
Incluam-se também nessa lista as personagens femininas dos títulos arrolados na
nota de rodapé. Além disso, diferem ainda pela descrição de um amor mais
carnalizado, a opção via de regra é por um amor mais idealizado. Todavia, mantêm-
se os elementos basilares para a consecução de uma história romântica de vaqueiro:
a) grande fazendeiro orgulhoso, o mais das vezes malvado; b) moço vaqueiro
destemido; c) bela filha de fazendeiro proibida de casar.
As aventuras de Napoleão e Zulmira, folheto de 16 páginas contendo 79
sextilhas, e Rufino e Adalgisa – aventuras, amor e lutas, folheto de 16 páginas
contendo 78 estrofes, apresentam, na introdução, informações acerca da origem da
inspiração do autor que pode ser tanto cristã como pagã, e, em seguida, anunciam
o enredo. Seguem as duas primeiras sextilhas:

I) II)
Deus com seu poder sagrado Vinde as musas de Apolo

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Lá no alto me inspira, No leve sopro da brisa,


Traço na pena um romance Para ver se no papel
Que o leitor lendo suspira, A minha pena desliza,
Descrevendo as Aventuras Enquanto traço o romance
De Napoleão e Zulmira. De Rufino e Adalgisa.

Neste livro vamos ver Neste livro que traço


Um cabra de sangue quente, A sensação não é pouca,
Sei que o bom leitor gosta Falarei sobre um rapaz,
De um enredo comovente. Que numa aventura louca,
Quando a moça é bonita Escapou da morte sentindo
E o rapaz é valente. Gosto de sangue na boca.
(LEITE, 2013, p. 01). (LEITE, 2014, p. 01).

A caracterização humana sertaneja típica transparece nos dois versos


finais do trecho I e a respeito do homem aprofundam-se mais no decorrer da
narrativa; a descrição da mulher faz-se de modo incomum ao cantar certas formas
femininas, como em: “Tinha os seios bem pontudos, / De homem ficar ‘vidrado’, /
Exalando um cheiro bom / Do seu corpo perfumado” (LEITE, 2013, p. 06). Tanto
Napoleão “Capaz até de agarrar / Uma onça canguçu” como Rufino “Botava um
sujeito abaixo / De uma braçada só”, homens arrojados, deixam a terra natal,
respectivamente, Pajéu (CE) e Caicó (RN), e partem em busca de emprego. Ambos
acabam encontrando-o em grandes propriedades rurais governadas por arrogantes
donos. Ali, os dois ainda acham o grande amor de suas vidas, a filha do fazendeiro.
As duas moças em questão, Zulmira e Adalgisa, mostram-se bastante desinibidas, e
logo no primeiro encontro. Os seguintes fragmentos ilustram as afirmações acima:
I) II)
Ele estava no curral, Adalgisa vendo o moço
Tomava conta do gado, Sua paixão não foi pouca,
Tirava o leite das vacas Deu um suspiro bem grande
E pesquisava o cercado. Se sentindo quase louca,
Um dia vendo Zulmira E Rufino quando a viu
Ficou todo arrepiado. Ficou com água na boca.

[...] Ele disse: – Minha santa,


Você vai ser minha amada!
No outro dia bem cedo Logo que lhe vi, fiquei
Ele estava novamente Com a mente perturbada!
Tirando o leite e Zulmira Ela respondeu: – Também
De lá olhou sorridente, Fiquei toda arrepiada!
O rapaz sentiu no peito
Um amor louco e ardente. [...]

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Ela acenava dizendo: – Vamos agora, querida,


– É teu o meu coração! Fazer um bonito ensaio!
O rapaz fez um bilhete Beijou a moça na boca,
E colocou no mourão, Quase ela sofre um desmaio.
Depois ela foi pegar Disse a Rufino: - Meu filho,
Com cuidado e atenção. Segure senão eu caio.
(LEITE, 2013, p. 07). (LEITE, 2014, p. 07).

O namoro dos jovens, considerado escandaloso, logo é descoberto e,


pelo código patriarcal, cabe aos pais defender a honra; assim, os respectivos chefes
das famílias optam pelo sangue, pela morte dos atrevidos pretendentes. No entanto,
novamente, algo incomum ocorre, pois as donzelas, em franca atitude de
desobediência, pegam em armas em nome do amor e contra o poder instituído. Por
conseguinte, o amor interdito nasce à primeira vista, segue se transformando, toma
conotações mais sensualizadas e desafia convenções sociais e morais. Este amor
conduz a moça a ir além dos limites impostos e transgredir a ordem patriarcal
dominante.

I) II)

Zulmira disse: – Meu filho, A moça esfregou-se nele


Vamos lutar sem temor. E ele esfregou-se nela,
Depois da luta renhida Ela o beijou na boca,
Quero gozar seu amor. E ele beijou a ela.
Se eu morrer em teus braços Ela mordeu sua língua
Creio que nem sinta a dor. E ele mordeu a dela.

O rapaz dentro da luta [...]


Abraçou sua donzela,
Com uma mão atirava A moça de vez em quando
Com a outra alisava ela, Nos bandidos dava um tiro,
Passou mais de dez minutos Botou logo dois abaixo
Mordendo na língua dela. Morreram sem dar suspiro.
Gritou: – Avança Rufino,
Zulmira o beijava muito Que por aqui eu me viro!
Dizendo: – Tenha cuidado, (LEITE, 2014, p. 11-13).
Esse seu beijinho doce
É gostoso que é danado!
Meu filho, eu estou ficando
De cabelo arrepiado!
(LEITE, 2013, p. 10-11).

É nesse clima de desejo, amor, luta, poder e violência que se chega ao

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fecho feliz, com as bodas dos jovens e a derrota do fazendeiro. As histórias


analisadas fornecem uma mostra de diversos aspectos da realidade sertaneja, além
da multiplicidade de faces da literatura de cordel que não admite fechamentos;
atuam em sua estrutura fragmentada forças contrárias que tornam difícil a
elaboração de conclusões definitivas. Se os textos focalizados podem, por uma
leitura, ratificar o discurso conservador por meio da exposição, por exemplo, do
forte patriarcalismo sobre as vidas das protagonistas, por outro viés, o mesmo
elemento pode igualmente denotar a não aceitação feminina aos limites impostos.
De modo equivalente, se o amor parece subjugar a dominação, por desafiá-la, de
outro ângulo, parece sobrepujado por esta ao falhar em apaziguar a violência viril.

REFERÊNCIAS

ATHAYDE, João Martins de. O touro do umbuzeiro ou o curandeiro misterioso.


Recife: s/l, 1949. In:
http://docvirt.com/docreader.net/WebIndex/WIPagina/Cordel/20206 . Acesso em:
10/03/2019.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 11ª


ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução de Luiz da Câmara


Cascudo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.

LEITE, José Costa. As aventuras de Napoleão e Zulmira. São Paulo: Luzeiro, 2013.

_____. Rufino e Adalgisa – aventuras, amor e lutas. São Paulo: Luzeiro, 2014.

MENEZES, Eduardo Diatahy Bezerra de. “Para uma leitura sociológica da literatura
de cordel”. In: Revista Ciências Sociais. V. VIII. N. 1-2. Fortaleza, 1977.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:


Companhia das Letras, 2006.

SILVA, João Melchíades Ferreira da. História sertaneja do valente Zé Garcia. São
Paulo: Luzeiro, 2011.

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AMORES (IM)PERFEITOS DE CRISÓSTOMO E BALTAZAR,


PROTAGONISTAS DE VALTER HUGO MÃE
Sidnei Alves da Rocha
Universidade Federal de Mato Grosso

Maria Elisa Rodrigues Moreira


Universidade Federal de Mato Grosso

Resumo: Buscamos neste trabalho analisar a representação do amor pela perspectiva das
personagens protagonistas dos romances O filho de mil homens e o remorso de baltazar
serapião, do escritor português Valter Hugo Mãe, narrativas tangenciadas especialmente por
três tipos de amores dos antigos gregos: eros, philia e agape, esquecidos, segundo Krznaric
(2013), pela contemporaneidade que parece ter olhos somente para o amor que envolve a
erotização, a relação carnal, o amor romântico, a sexualidade ou o erotismo, romances nos
quais são levados em conta o enamoramento seguido da relação homem/mulher, cujas
ações partem da dedicação, da doação, da busca por sentimentos virtuosos e desejo de
convivência, mas que se diferem em determinados momentos pelo sentimento de desamor
protagonizado por serapião.
Palavras-chave: Amor; Desamor; Eros; Philia; (In)Compreensão.

INTRODUÇÃO
Valter Hugo Mãe iniciou sua carreira literária com a criação de poemas
consequentemente publicados a partir do ano de 1996, mas, foi com sua criativa e
memorável obra romanesca que ganhou prestígio e elogio de público e crítica,
narrativas que expõem toda a fragilidade, beleza, rudeza, mistura de sentimentos e
alteridade da vida humana, para as quais transporta sua veia poética e sua
proeminente habilidade para criar imagens, além de investir na criação de
personagens profundas e inesquecíveis, sendo um dos autores que mais se
destacam na produção literária portuguesa contemporânea, aflorado pela
publicação da elogiada tetralogia das minúsculas – como costumeiramente se
denomina –, porque escrita totalmente sem letras maiúsculas, inclusive nos nomes
próprios, inícios de parágrafo e no nome do autor, marcada pelo objetivo de
chamar a atenção para a natureza oral de sua produção e pela primazia da
liberdade do pensamento levada às últimas consequências na obra valteriana.
Conforme relatado tantas vezes pelo próprio autor, seu projeto criacional buscou

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produzir obras enviesadas pelas quatro fases da vida humana, rechaçando assim a
simplificação da expressão “tetralogia das minúsculas”: a infância marcada por o
nosso reino (2004); a juventude retratada em o remorso de baltazar serapião (2018
[2006]); a fase adulta perpassa a obra o apocalipse dos trabalhadores (2008), e a
velhice pede passagem em a máquina de fazer espanhóis (2010). Escreveu ainda os
romances O filho de mil homens (2016 [2011]); A desumanização (2013) e Homens
imprudentemente poéticos (2016).
Para Miguel Real, em O romance português contemporâneo – 1950-2010
(2012), a importante característica que perpassa os cinco primeiros romances do
autor, sendo estendida aos dois últimos, é o “novo estilismo desrespeitador das
regras clássicas da língua portuguesa [...]”, não somente pelas minúsculas utilizadas
nas quatro primeiras obras, mas também pela prevalência da oralidade e da
ausência de sinais de pontuação mais expressivos, prevalecendo o ponto final e a
vírgula. Os seus romances mais recentes, A desumanização (2013), passado na
Islândia, e Homens imprudentemente poéticos (2016), contextualizado no Japão de
1800, estão situados no chamado “expresso cosmopolitismo urbano”, formando um
conjunto com outros romances portugueses “escritos para um leitor de mentalidade
global, universal”, na conta dos quais o estudioso atribui “a arte de bem contar
labirinticamente uma história”, a quem se soma David Machado nessa característica
específica (REAL, 2012, s.p.); vale ressaltar, no entanto, que todos os demais
romances do autor são eminentemente universais, embora contextualizados em
Portugal.
Há nas obras de Hugo Mãe uma busca constante pelo amor, não somente
o amor romântico, mas também pelos seis principais amores cultivados pelos
gregos clássicos que Krznaric, em Sobre a arte de viver: lições da história para uma
vida melhor (2013) apresenta ao leitor como o amor eros, definido por Platão em O
banquete (2009) como “desejo de algo indefinido” e também “demanda daquilo que
no momento nos falta” (PLATÃO, 2009, s.p.); o amor philia geralmente traduzido
como “amizade” e considerado pelos gregos bem mais virtuoso “que a desprezível

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sexualidade de eros” (KRZNARIC, 2013, p. 19); o amor agape, ou o amor altruísta,


estendido, sem quaisquer interesses, a todos os seres humanos, indistintamente; o
amor ludus ou “amor brincalhão [...] que diz respeito à afeição brincalhona entre
crianças ou amantes fortuitos” (KRZNARIC, 2013, p. 20); o amor “pragma, ou amor
maduro, que designava a profunda compreensão que se desenvolvia entre casais
com muitos anos de casados” (KRZNARIC, 2013, p. 21) e o amor philautia, ou amor-
próprio, “que à primeira vista parece o oposto de ágape – um rival que o destruiria”
(KRZNARIC, 2013, p. 23), mas que possui, segundo o filósofo, uma vertente negativa,
mostrada no mito de Narciso, e outra positiva, intensificadora de nossa capacidade
de amar, já que, a princípio, amar o outro seria uma extensão do amor que
sentimos por nós mesmos.
A indefinição do que é o amor na contemporaneidade leva Krznaric a
estabelecer como uma tragédia o fato de, “no curso dos últimos mil anos, essas
variedades [terem sido] de tal modo incorporadas numa noção mítica de amor
romântico que passamos a acreditar que todas se reúnem em uma só pessoa, uma
alma gêmea [...]” e para escapar aos limites dessa herança, há que se procurar
“amor fora do domínio dos afetos românticos”, passando a cultivar “suas muitas
formas” (KRZNARIC, 2013, p. 16). Sánchez em Amores y desamores: Procesos de
vinculación y desvinculación sexuales y afectivos (2013) assegura que, ao se falar de
enamoramento, usamos tantos termos e expressões “que es difícil no tener una
sensación de inevitable confusión, aunque tal vez todos sus nombres pongan el
acento en algún aspecto de las múltiples caras del enamoramiento: amor, caer en el
amor, ceguera, locura amorosa, entusiasmo por, fascinación por, pasión por, etc”,
esclarecendo que os “griegos fueron más precisos y distinguían varios tipos de
amor: storge (afecto y cariño, como el que se puede tener a los hijos o, incluso, a un
objeto)”, amor não mencionado por Krznaric, suprido pela abrangência do amor
philia, “philia (sentimiento de amistad y atracción interpersonal no sexual), eros (es lo
que hoy entendemos por enamoramiento, amor romántico, caracterizado por un
claro contenido sexual y afectivo, con el deseo de tener, estar con... el otro)” e

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agape, que é a “disponibilidad para cuidar y ayudar a otras personas, con


independencia de lo que uno pueda recibir a cambio” (SÁNCHEZ, 2013, s.p.). O
autor expõe ainda “que sea deseable que en una relación amorosa puedan llegar a
desarrollarse, a la vez, los cuatro tipos de amor señalado” (SÁNCHEZ, 2013, s.p.). Sua
pesquisa, porém, tem “distinguido el deseo, la atracción y el enamoramiento (como
afectos sexuales) y la amistad, el apego, el sistema de cuidados y el amor (como
afectos sociales)” (SÁNCHEZ, 2013, s.p.).

ENTRE AMORES E DESAMORES EM VALTER HUGO MÃE


Não há ausência de eros nos romances de Valter Hugo Mãe, esse amor
encarnado por todas as suas personagens, pois elas sentem necessidade e buscam
possuir aquilo que lhes falta, no entanto, “quando já não há falta”, argumenta
Comte-Sponville em Amor (2011), “só resta o tédio [...]” (COMTE-SPONVILLE, 2011,
56), e para um casal não cair no tédio com o fim do amor-paixão, a solução é
cultivar outros amores, como philia, como faz Crisóstomo com Isaura, um amor
tentacular que atinge a todos à sua volta, mas que o egoísmo de serapião não foi
capaz de proporcionar, transformando seu eros em ira, em ódio somente. A
inusitada família que se forma em torno de Crisóstomo, personagem que só sabe
amar o próximo, é criada não só pelo amor philia que essa personagem sente, mas
por sua capacidade de espraiar seu agape, seu amor cristão, sendo a única
personagem de Mãe capaz de cultivar essa forma tão rara e abrangente de amor,
sem deixar de lado o eros em sua relação com Isaura, personagens que, após tantos
percalços, “estão prontos para um amor sem limites, ao mesmo tempo platónico e
físico, um amor que se realiza integralmente no espírito e no corpo do outro [...]”
(NOGUEIRA, 2016, p. 247-248), conforme se percebe no excerto seguinte:

Estendido o Crisóstomo sobre a cama, via nele a Isaura uma beleza


indescritível. A imensidão, pensava, a imensidão de um homem, como
hábil alastrando por todas as evidências, todas as manifestações, todos os
instintos dela. Cada ínfimo segundo tornava-se um efeito da existência
dele, cada ínfimo gesto tinha por moldura a existência dele, cada ímpeto
era sempre a direcção do caminho para chegar a ele. Despiu a camisa de

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noite, e o peito caía-lhe pequeno à luz quente. A mão dele desenhava-lhe


os contornos a fazer-lhe uma carícia suave [...] (MÃE, 2016, p. 186).

Mãe vem nos provar que “a salvação está no amor, que pode contrariar a
‘inevitabilidade do egoísmo humano’ (Schopenhauer). Daí que o amor seja um dos
temas essenciais de toda a obra de Valter Hugo Mãe”, que observa, “a pretexto de
O Filho de Mil Homens [...]: ‘Os meus livros estudam muito a raridade da redenção, a
oportunidade rara da alegria’ (Mãe, 2011b: 19). Redenção e alegria que as
personagens de Valter Hugo Mãe procuram concretizar através do amor, que é a
ligação do eu ao outro”, que é a vinculação “a tudo o que existe, e é também uma
força que, segundo Platão, permite alcançar o belo, o verdadeiro e o bem [...]”
(NOGUEIRA, 2016, p. 13).
Já em o remorso de baltazar serapião, ainda na primeira frase, o leitor
encontra a maioria dos vocábulos e semas retomados mais vezes ao longo do
romance, “nomeadamente ‘voz’, ‘mulheres’, ‘diabo’, ‘arder’, ‘perigosa’, ‘burra’,
‘abaixo’” (MÃE, 2018: 19). Nessas palavras, segundo Nogueira, “convergem todas as
noções de género que explicam os comportamentos de baltazar desde o início do
romance”, marcadas pela concepção da “inferioridade intelectual da mulher, [d]o
seu estatuto ínfimo dentro da própria criação divina, [d]a necessidade que ela tem
de educação à base de violência exercida pelo pai e pelo marido, [d]a sua tendência
para o adultério e o mal, [d]os direitos absolutos do homem sobre ela” (NOGUEIRA,
2016, p. 14), ideias tão arraigadas e marcadas como “corretas”, visto que, após a
entrega da moça a serapião, a interferência da família nas constantes violências
sofridas por ela é nula, como a livrar-se de um peso, de algo pecaminoso, de fardo
tão pesado, portadora de tamanho desprezo do onipotente, fazendo crer que
também a mãe de ermesinda tenha passado pela mesma “educação” que ela
recebe. Todas essas questões ficam bastante claras nas seguintes falas de baltazar:

“[...] sorri com a sua burrice […], por corresponder perfeita à estupidez que
se espera numa mulher” (MÃE, 2018, 54); “mas não por deus, que
despreza as mulheres e as manchou de pecado, mas pelo diabo, à
espreita no corpo delas a tentar agarrar-nos a alma a partir da ponta do
badalo, dizia-lhe” (MÃE, 2018, 68-69); “era sabido, marido que vinga

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cornadura matando a mulher nem merece repreensão” (MÃE, 2018, 193-


194); “dizia o meu pai, a voz das mulheres só sabe ignorâncias e erros,
cada coisa de que se lembrem nem vale a pena que a digam. mais
completas estariam, de verdade, se deus as trouxesse ao mundo mudas.
só para entenderem o que fazer na preparação da comida e debaixo de
um homem e nada mais” (MÃE, 2018, 214); “dignamente administrar a
educação da minha ermesinda” (MÃE, 2018, 215).

De certa forma, todas essas questões que se colocam nos fazem crer em
ações culturais, em práticas aceitas pela maioria e estabelecidas pela igreja a partir
dos evangelhos, práticas arraigadas em uma sociedade feudal que permitiam ao
homem exercer certo poder de dominação sobre a mulher, marcada pela tese da
vontade divina que a punha sob o jugo masculino, pois sabiam de antemão o que
se esperava dela por suas manchas advindas do pecado original de Eva, de sua
sujidade, do direito do marido a seu corpo e sua vontade, educando-a como
acreditavam que deveria ser, tendo o direito inclusive de exercer vingança devido a
uma possível, mesmo não provada, traição, entre tantos outros dilemas enfrentados
pelas mulheres ao longo da história. Dessa feita, ermesinda se entrega “sem
restrições a baltazar, que a ama mas ao mesmo tempo a agride fisicamente de
modo brutal. Perante o poder do marido, não lhe resta senão o silêncio e o
sofrimento do corpo e do espírito”, não sendo a única afetada por isso, pois, no
romance, o senhor feudal, sua esposa ou mesmo o rei “privam baltazar e a sua
família de qualquer direito, e impedem-nos de se construírem em liberdade e
transformação; impõem-lhes uma arbitrariedade e um terror que os fecha na
angústia constante da morte” (NOGUEIRA, 2016, p. 206).
Esse romance constitui-se, portanto, em uma narrativa “de amor e de morte
que não se limita a colocar uma questão situada no espaço e no tempo, e resolvida
nas suas implicações ideológicas e culturais”, cujo amor, embora privado e não
sentido amplamente, desfila em suas páginas mas, marcado pelo ciúme e pela
violência, passa como uma tênue linguagem, quase despercebido e sufocado e, da
forma com que é construído, faz com que o leitor encare “o problema da violência
masculina como próprio da Idade Média, de reis e senhores feudais, mas também
compreende a sua atualidade e o seu alcance social”. Assim sendo, “baltazar, que
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trata ermesinda com ternura mas também com brutalidade, converge toda uma
cultura de subalternização e exploração da mulher” [...] (NOGUEIRA, 2016, p. 206),
sendo constatado por Pereira no artigo “O coração das trevas: o medievalismo sujo
de o remorso de baltazar serapião”, de fato, que ermesinda, no romance, aparece
como “[...] objeto passivo da brutalidade de baltazar, o suserano de quem depende.
Na verdade, na narrativa de Valter Hugo Mãe, “todas as promessas acabam
esmagadas sob o peso da dominação” advinda daquilo “‘que o senhor feudal exerce
sobre os homens, os homens sobre as mulheres e o diabo sobre todos’”
(RODRIGUES, 2011, apud PEREIRA, 2016, p. 130), tendo sua existência marcada
“apenas na e pela voz de baltazar [...]” (PEREIRA, 2016, p. 133).
Sobre as diferenças de gênero, Sánchez nos diz que “son en este caso
claramente históricas y sociales. Éstas se hallan presentes en nuestra cultura desde
hace muchos siglos”, não deixando de ser curioso, por exemplo, “que entre los 10
mandamientos, dictados por Dios a Moisés, haya uno explícito que dicta a los
hombres «no desear la mujer del prójimo», mientras que no hay uno equivalente
para la mujer, simplemente porque”, tal qual se espera de ermesinda, “de ella no se
podía ni siquiera esperar que deseara o hiciera algo para conquistar a otros
hombres, distintos a su esposo. Incluso frente al esposo, debía esperar su iniciativa.
El deseo y la tentación consiguiente sólo podían esperarse del varón” (SÁNCHEZ,
2013, s.p.). Ovídio em A arte de amar (2013) apregoa que “[o] pudor impede a
mulher de provocar certas carícias, mas lhe é agradável recebê-las quando o outro
toma a iniciativa” (OVÍDIO, 2013, s.p.), e, de fato, ainda nos dias de hoje, muitos
esperam a iniciativa somente do homem, pois todas essas considerações criam a
expectativa de uma mulher vista ainda “como deseada, pero no como deseante ha
sido la norma en distintas religiones, no sólo en las de origen judío, cristiano y
musulmán” (SÁNCHEZ, 2013, s.p.), e quando baltazar percebeu em ermesinda “[…]
avanços nos enrolados da cama, como subtilezas de sabedoria por coisas porcas
que eu não lhe ensinara” parecendo “malabarista ou artista de espectáculo
profissional, e não a minha esposa de tão pouco tempo, desinformada de ideias

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estranhamente avançadas” (MÃE, 2018, p. 74), abriu caminhos para o ciúme e novas
e mais fortes agressões.
Nogueira faz notar que “[a] sublimação do humano pelo amor enquanto
energia mental e física atinge, no conjunto dos cinco romances de Valter Hugo Mãe,
a sua máxima concretização na ‘gramática amorosa’ (Steiner, 2008: 93) daquela
cena, que faz parte das ‘políticas de sentimento’”, advindas da “literatura (e dos seus
sucedâneos no cinema, no teatro e na arte em geral) (Steiner, 2008: 106). Isaura, que
‘Pensara nunca ser capaz de se mostrar a um homem’, que ‘Pensara que havia
perdido para sempre os atributos mais imprescindíveis das mulheres’”, nesse
momento de sublimação, “ajeitava-se [...] cada vez melhor no corpo que tinha”
(Mãe, 2018, p. 186). Percebe o pesquisador que “[a] sensibilidade e a sensualidade
de Crisóstomo, que nada têm a ver com a violência não reprimida de baltazar [...],
solicitam a sensibilidade e a sensualidade, ‘os instintos’, de Isaura” e Crisóstomo “que
ganhava amor pelas pessoas por grandeza, nem chegaria nunca a entender as
hesitações iniciais de Isaura. Acariciava-lhe o peito, sentia que chegara ao melhor
tempo da sua vida e sorria” (Mãe, 2018, p. 186). É-nos possível compreender “melhor
o alcance de uma cena como esta à luz destas palavras de George Steiner, que nos
lembra que ‘Pueden existir coerciones económicas, sociales, el ciego azote de la
sinrazón, pero en el corazón del adulto exulta la libertad sexual’” (STEINER, 2008,
apud Nogueira, 2016, p. 248).
Ler Mãe é entrar em território sagrado, é navegar em águas turvas e
agitadas, é singrar pelas veredas de uma literatura da mais alta competência envolta
numa criativa e sublime maneira de narrar, mas também é saber que a natureza, o
amor, Deus (seja qual for a forma que se nos apresenta), o fio condutor da vida, a
solidariedade e a alteridade sempre se fazem presentes – sendo vencedores ou não
– trazendo esperança, humanização, afago a personagens e a leitores tão
vulneráveis e desprotegidos que buscam um objetivo comum: chegar ao outro, a
Deus, à natureza das coisas, enfim, alcançar a partilha, a humanização tão desejada
e o amor ao próximo, um amor filial, até, quem sabe, um amor agape aos moldes

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da grande família inventada por Crisóstomo.


Real (2016) acredita que o “Amor” tem sido, com efeito, o “[...] grande tema
romanesco que singulariza os romances de Valter Hugo Mãe, ou seja, a busca do
Amor, definido como harmonia ou equilíbrio interno e externo de carácter carnal,
sentimental e social, ou, se se quiser, a busca da Felicidade como razão maior da
existência” (REAL, 2016, p. 322-323), marcadamente sentimentos nobres, tanto o
“Amor” quanto a “Felicidade”, grafados com inicial maiúscula, pois se constituem na
grande busca da humanidade, mesmo em casos em que existem raríssimos acertos
nessa busca, como nos remorsos pelos quais passa o protagonista baltazar serapião.
E, como sentencia o narrador de O filho de mil homens, “Ser o que se pode é a
felicidade” (MÃE, 2016, p. 86).
Desse modo, se em o remorso de baltazar serapião o intenso amor que
parece demonstrar baltazar serapião à bela ermesinda – e que, por uma série de
razões, leva-o a cometer atrocidades com o ser de sua paixão, marcada pela
violência exacerbada – traz consigo um forte remorso e um desamor exagerado
derivado de um ciúme doentio, que não pode gerar uma vingança contra o senhor
daquele feudo, e que, talvez por isso, seja descarregada com intensidade em sua
amada esposa – forte sentimento amoroso, que não o impede de demonstrar seu
ódio na relação entre marido e mulher e até mesmo entre seus pares de amizade,
que são aldegundes e dagoberto, velhos companheiros de jornada –, em O filho de
mil homens, por sua vez, existe uma celebração do amor, uma busca constante por
este sentimento que é alcançado após muitos sofrimentos e percalços, bem ao estilo
de Valter Hugo Mãe, permitindo que todos se juntem “em casa de Crisóstomo para
a comemoração epifânica do amor” (REAL, 2016, p. 323), fazendo com que, por fim,
e em nome desse amor, haja a reconciliação de todas as personagens, com
Crisóstomo encontrando “o filho (Camilo) e a mulher (Isaura) que desejava”; Camilo
ganhando “o pai e a mãe que ambicionava”; Matilde reconciliando-se “com o filho
‘maricas’” Antonino que, por sua vez “torna-se amigo da ‘esposa’ Isaura, compondo
uma singular família a três com Crisóstomo”; Matilde realizando-se “como mãe com

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a ‘cria’, a filha de Rosinha (que morre à mesa do almoço do dia do casamento com
o velho Gemúndio)” (REAL, 2016, p. 323), oposto ao que ocorre em o remorso de
baltazar serapião, que termina com tantas mortes e destruição, em que se tem a
sensação de que o amor foi vencido, embora aparentemente nunca tenha se
desvencilhado da mistura de sentimentos do narrador, fortalecendo-se, tarde
demais, em meio às inquietações e ao arrependimento de serapião nas últimas
páginas do romance, despertar demasiado tarde para se converter em philia, ou
eros muito jovem para converter-se em amor maduro (pragma), restando tão
somente a sarga dessa família marcada desde o início pela ignorância, pela
discriminação, pela dor e pela anormalidade que a caracterizava. Vale ressaltar que,
“[...] no universo dos romances de Mãe, a instituição familiar pode ser o espaço em
que a solidariedade e o afeto se constroem, como também o lugar onde a violência,
o poder e a opressão se disseminam” (TEOTÔNIO, 2016, p. 356-357). E assim,
conclui Real em sua análise, “[d]esde 2004, atravessando quatro romances, Valter
Hugo Mãe e o seu narrador escreviam procurando o Amor”, mas que só
“[s]etecentas páginas depois, em O Filho de Mil Homens, não só o encontraram
como o realizaram”, assinalando que é justamente aí “que começa uma nova fase
no desenvolvimento da obra do autor” (REAL, 2016, p. 323).

CONCLUSÃO
Baltazar, por fim, parece fazer um exame de consciência ao perceber suas
atitudes em relação à mulher amada, um protagonista dotado de voz e de “poder”,
pelo menos em relação à fêmea, uma personagem que trouxe à tona no decorrer
da narrativa um sentimento contraditório de amor/desamor que faz sofrer o outro
da relação, talvez por se tratar de narrativa que se passa em pleno período feudal,
cujas relações políticas e sociais se fazem com o suserano, e em cuja dureza nas
atitudes da personagem faz vir à tona “o remorso” enfrentado pelo protagonista,
fruto de uma sociedade marcada pela opressão e pela desvalorização da figura
feminina. A seu turno, Crisóstomo apresenta uma aceitação da vida e das atitudes

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da mulher amada e dos que o cercam de maneira bastante diferente, em cujo


coração parece haver lugar apenas para o amor, e suas relações com o próximo se
baseiam no puro e nobre sentimento do amor verdadeiro e da aceitação das
diferenças e até das atitudes por vezes contraditórias das pessoas que o cercam,
romances que, independentemente de qualquer outra coisa, é prioritariamente uma
escrita da alteridade, da busca pelo outro, do encontro de almas e de seres
humanos dotados de inteligência e compreensão de uma realidade que prima pela
ausência da solidão e do ódio, havendo sempre um resquício de humanidade,
compaixão e respeito para chegar a si mesmo e, quem sabe, ascender ao outro, “vir
ao de cima”, como diria Mãe, embora essas buscas nem sempre sejam alcançadas
em suas narrativas.

REFERÊNCIAS

COMTE-SPONVILLE, Andre. O amor. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: WMF


Martins Fontes, 2011.

KRZNARIC, Roman. Sobre a arte de viver: lições da história para uma vida melhor.
Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. São Paulo: Jorge Zahar Ed., 2013.

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. 2. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

______. o remorso de Baltazar Serapião. 2. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2018.

NOGUEIRA, Carlos. A máquina de fazer espanhóis: máquina satírica e máquina


metaliterária. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é exata: Estudos sobre
a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 205-216.

______. Homossexualidade, homoerotismo e género em “O filho de mil homens”. In:


NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é exata: Estudos sobre a obra de Valter
Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 235-254.

______. Introdução. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é exata: Estudos
sobre a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 11-21.

OVÍDIO. A arte de amar. Tradução Dúnia Marinho da Silva. Porto Alegre: L&PM,
2013 [ebook].

PEREIRA, Paulo Alexandre. O coração das trevas: o medievalismo sujo em “o


Amor, Língua de Eros
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remorso de baltazar serapião”. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é


exata: Estudos sobre a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 127-
140.

PLATÃO. O banquete. Tradução Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2009


[ebook].

REAL, Miguel. O Romance Português Contemporâneo 1950-2010. Alfragide:


Caminho, 2012. [e-book]

______. Valter Hugo Mãe: Do neonaturalismo ao lirismo. In: NOGUEIRA, Carlos (Org.).
Nenhuma palavra é exata: Estudos sobre a obra de Valter Hugo Mãe. Porto: Porto
Editora, 2016, p. 319-323.

SÁNCHEZ, Félix López. Amores y desamores: Procesos de vinculación y


desvinculación sexuales y afectivos. Madrid: Biblioteca Nueva, 2013 [ebook].

TEOTÔNIO, Rafaella. Os romances de Valter Hugo Mãe: literatura e alteridade. In:


NOGUEIRA, Carlos (Org.). Nenhuma palavra é exata: Estudos sobre a obra de Valter
Hugo Mãe. Porto: Porto Editora, 2016, p. 350-364.

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AMOR PLATÔNICO: UMA IDEIA INESQUECÍVEL


Jean Pierre Gomes Ferreira
Universidade Estadual do Ceará

Resumo: Todo amor é inesquecível. Nunca esquecemos quem amamos ou o que


amamos. Não conseguimos esquecer, nem devemos esquecer um amor, o amor.
Esquecer é o grande problema do amor e para o amor. Assim é que, n’O Banquete,
Platão nos lembra o amor a partir de Fedro, de que não podemos esquecer o amor,
mesmo que ele tenha sido esquecido e seja esquecido pelas pessoas no seu cotidiano,
sem fazer elegia a ele, sem louvar-lhe como deveriam. Neste artigo, analisamos o
texto platônico a partir da seguinte questão: por que não podemos esquecer o amor?
Nosso objetivo é analisar como o amor se coloca para além do logos daqueles que
discursam em O Banquete e que é um logos masculino e é preciso Sócrates recorrer
a uma mulher, Diotima, por fim, para que ela é diga o que é amor, no caso, uma
Ideia inteligível, indizível e, não por menos, inesquecível para além de qualquer
discurso (logos).
Palavras-chave: Amor; Platão; Banquete; Ideia; Esquecimento.

A questão do esquecimento do amor se coloca desde o primeiro momento


do diálogo O Banquete, de Platão, quando um Companheiro pergunta a Apolodoro
sobre os discursos proferidos a respeito do amor no banquete ao poeta Agatão,
pensando se tratar de algo recente, e se Apolodoro estivera presente, mas este
chama a atenção do Companheiro sobre o fato de que foi no tempo de quando
eram crianças ainda. Apesar de não estar presente no momento dos discursos,
porém, Apolodoro diz estar preparado para responder ao que o Companheiro
requer, isto é, o que deseja saber sobre o que falaram do amor, pois lhe contou
Aristodemo que assistira aos discursos como “amante de Sócrates que era”, e
também porque confirmara o que ele disse com Sócrates. É no sentido de uma
lembrança do que é o amor ou, em outras palavras, de não-esquecimento dele, que
começa o texto platônico, e é deste modo também que começaram os discursos
sobre o amor no banquete a Agatão, no diálogo platônico, quando Erixímaco
lembra a todos os presentes o que Fedro lhe diz frequentemente:

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Fedro, com efeito, frequentemente me diz irritado: – Não é estranho,


Erixímaco, que para outros deuses haja hinos e peãs, feitos pelos poetas,
enquanto que ao Amor todavia, um deus tão venerável e tão grande,
jamais um só dos poetas tanto se engrandeceram fez sequer um
encômio? (PLATÃO, 1983, p. 11).

Diferente dos poetas, bem como dos sofistas, Fedro não esquece o Amor, a
questão do amor, e esta questão retorna frequentemente a si como diz Erixímaco, o
qual, concordando com Fedro em “venerar o deus” e exortando a todos que façam
o mesmo, diz que Fedro deve ser o primeiro a fazer o discurso de louvor ao Amor,
pois ele é “pai da ideia”. O que todos concordam, e cada um começa a fazer seu
discurso sobre o amor, para não esquecê-lo.
Lembrando Hesíodo e também Parmênides, para os quais, segundo Fedro,
o Amor é o mais antigo dos deuses, ele considera que, “sendo o mais antigo é para
nós a causa dos maiores bens”, o Amor é o maior dos bens na mocidade um “bom
amante” e, para o amante, o “bem-amado”. E é como uma lembrança que o Amor
se faz presente no bom amante e no bem-amado, pois estes lembram a quem ama
para não fazer atos vergonhosos ou a vergonha do que é feio e ter apreço ao que é
belo, ou ainda honrado no que diz respeito à cidade. Sobretudo, neste caso, é à
virtude que o Amor lembra na medida que “ninguém há tão ruim que o próprio
Amor não torne inspirado para a virtude, a ponto de ficar ele semelhante ao mais
generoso de natureza” (PLATÃO, 1983, p. 13), no caso, uma virtude como “dom
emanado de si mesmo” e que nem mesmo a morte é vista como algo ruim, pois
“quanto a morrer por outro, só o consentem os que amam, não apenas os homens,
mas também as mulheres” (PLATÃO, 1983, p. 13).
Econômico em seu discurso e citando Homero, Hesíodo, Parmênides e
histórias trágicas daqueles que morreram por Amor, Fedro é aquele que guarda a
lembrança do Amor segundo a tradição e do que é o Amor como uma lei ou
nomos que lembra a todos o que não deve ser feito, que faz a todos se
envergonharem perante alguém, no caso, o ser amado. Neste sentido, se o Amor

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não pode ser esquecido, se é impossível esquecê-lo a partir do que diz Fedro, é
porque se deve, por Amor, evitar fazer algo mal aos outros ou a si mesmo e, não
conseguindo evitar este mal, envergonhar-se por tê-lo feito. O Amor, mais antigo
dos deuses, é assim a norma mais antiga da convivência humana, que não pode ser
esquecida, pois é “para nós a causa dos maiores bens”. Lembrado por Fedro em seu
discurso, o Amor é o que unifica os seres humanos, que exorta homens e mulheres
à virtude e à felicidade, como um em relação à multiplicidade de bens que emanam
de si como causas, dons e virtudes.
Depois dele, há outros discursos esquecidos por Aristodemo, e é lembrado,
em seguida, o de Pausânias, amante de Agatão, que lembra a Fedro que, segundo a
tradição lembrada por este, existem dois Amores referentes a duas deusas distintas
e que apenas um deles deve ser louvado. Há, neste sentido, o Amor de Afrodite
Urânia, a Celestial, mais velha, e o Amor de Afrodite Pandêmia, a Popular, mais
nova, e deve-se louvar apenas o amor que é belo, pois “o amar e o Amor não é
todo ele belo e digno de ser louvado”. Se o amor faz os amantes se envergonharem
de seus atos, segundo Pausânias, deve-se também se envergonhar Amor, no caso,
o de Afrodite Pandêmia Popular, pois ele é vulgar, e ama-se, neste caso, “mais o
corpo que a alma, e ainda dos mais desprovidos de inteligência, tendo em mira
apenas efetuar o ato, sem se preocupar se é decentemente ou não” (PLATÃO, 1893,
p. 15). É um amor jovial relacionado à natureza sexual da fêmea e do macho porque
proveniente da deusa mais jovem e que tanto pode fazer o bem como o mal e, por
isto, não se “isenta de violência”, diferente do Amor de Afrodite Urânia Celestial, a
mais velha. Este, “primeiramente não participa da fêmea mas só do macho”, e se
volta para o que é másculo, segundo Pausânias, no caso, “ao que é de natureza
mais forte e que tem mais inteligência”. É, neste sentido, um amor de machos, e
entre machos, um amor homossexual, mas não por meninos, somente pelos que já
têm “barbas” e “juízo”, em busca de “amar para acompanhar toda a vida e viver em
comum, e não a enganar e, depois de tomar o jovem em sua inocência e ludibriá-lo,

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partir à procura de outro” (PLATÃO, 1983, p. 15). Neste sentido, é um amor do qual
não se deve se envergonhar, mesmo que seus atos sejam extravagantes, pois “é
dado pela lei que ele o faça sem descrédito”, isto é, sem perder o valor, mesmo que
minta, pois tem “o perdão dos deuses se perjurar” segundo também a lei, e deve-se
também aquiescer o amante em adulação ou servidão voluntária, a qual não é
vergonhosa, segundo Pausânias: “É com efeito norma entre nós que, assim como
para os amantes, quando um deles se presta a qualquer servidão ao amado, não é
isto adulação ou ato censurável, do mesmo modo também só outra única servidão
voluntária resta, não sujeita a censura: a que se aceita pela virtude” (PLATÃO, 1983,
p. 18). É por ter em vista a virtude e a sabedoria que não é vergonhoso aquiescer ao
amante e não se pode esquecê-lo, pois “Este é o amor da deusa celeste, ele mesmo
celeste e de muito valor para a cidade e os cidadãos, porque muito esforço ele
obriga a fazer pela virtude tanto ao próprio amante como ao amado; os outros são
todos da outra deusa, da popular” (PLATÃO, 1983, p. 18-19).
Aristófanes seria o próximo a falar depois de Pausânias, mas ele começou a
soluçar e, depois de lhe dar orientações de como parar o soluço, o médico
Erixímaco o substitui em seu discurso, lembrando que Pausânias não arrematou
bem o seu e, falando a partir de sua arte, a medicina, retoma o discurso sobre os
dois amores, todavia, com certa moderação. Para ele, também o amor é duplo, mas
é a partir dos corpos de todos os seres da natureza, em sua duplicidade de amor
sadio e mórbido, que ele discursa retomando o discurso de Pausânias, dando
também ele preferência à deusa Afrodite Urânia, Celestial.
Para Erixímaco, a medicina é a ciência dos fenômenos do amor e o amor é
ele mesmo uma cura, no sentido de uma harmonia dos “elementos mais hostis no
corpo”, no caso, os elementos opostos, em relação aos quais se produz uma
concórdia. Tais harmonia e concórdia, na medicina, Erixímaco as remete ao deus
Asclépio, e existiriam, segundo ele, também na ginástica, na agricultura e na música,
considerando-as como uma combinação e consonância do que é discordante, de

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modo que também é ciência dos fenômenos amorosos. Neste sentido, é a


moderação entre aqueles que discordam, a partir de uma harmonia, combinação e
consonância entre os opostos, que coloca em questão o amor no discurso de
Erixímaco, e entre aqueles mesmos que discursam sobre o amor. E se este é
lembrado deste modo, é “para que mais moderados se tornem os que ainda não
sejam, [e porque] deve-se aquiescer e conservar o seu amor, que é o belo, o
celestial, o Amor da musa Urânia” (PLATÃO, 1983, p. 21). Mas não se pode esquecer
o outro amor, que é para si o de Polímnia, deusa da poesia lírica, “o popular, que
com precaução se deve trazer àqueles a quem se traz, a fim de que se colha o seu
prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite” (PLATÃO, 1983, p. 21).
Deve-se aquiescer ao Amor moderado na alma e no corpo para que ele
seja sadio e para evitar o “Amor casado com a violência que se torna mais forte nas
estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas” (PLATÃO, 1983, p. 21). É preciso
curar o amor desta violência, de sua intemperança, de sua morbidez e, por fim, de
sua impiedade, na medida em que esta advém da falta tanto de um Amor
moderado, “no tocante aos pais, vivos e mortos, quanto aos deuses”. A arte
divinatória é a cura da imoderação entre os homens, que leva também a uma
imoderação deles em relação aos deuses, pois ela produz amizades entre homens e
deuses “graças ao conhecimento de todas as manifestações de amor que, entre os
homens, se orientam para a justiça divina e a piedade” (PLATÃO, 1983, p. 21).
Assim como o engasgo de Aristófanes introduziu o discurso sobre o amor
do médico Erixímaco, o discurso deste sobre a moderação introduz o discurso de
Aristófanes, o comediógrafo. Apesar de ter a intenção de falar diferente de
Pausânias e Erixímaco, Aristófanes retoma a fala de ambos por meio de uma análise
ridícula, como ele chama, sobre a natureza humana e as suas vicissitudes, para
demonstrar o poder do amor tal como Erixímaco pressupõe enquanto cura,
harmonia, combinação e consonância dos elementos hostis, opostos ou contrários
nos corpos, pois o amor é, para si, “com efeito o deus mais amigo do homem,

Amor, Língua de Eros


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protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior
felicidade para o gênero humano” (PLATÃO, 1983, p. 22). E caso soubessem do
poder do amor, seriam erguidos templos em sua honra e se fariam os maiores
sacrifícios.
No que diz respeito à natureza humana, segundo Aristófanes, ela era de
três gêneros, acrescentando o andrógino aos gêneros masculino e feminino,
composto pela harmonia destes dois gêneros. Todos eram unos e duplos ao mesmo
tempo, pois seus corpos eram siameses, com um formato circular, por serem
descendentes do sol, no caso do gênero masculino; da terra, no caso do gênero
feminino; e da lua, no caso do andrógino. Quanto às vicissitudes, tinham força e
vigor terríveis, uma grande presunção, bem como intemperança e impiedade, ao se
voltarem contra os deuses, o que levou Zeus a tomar a decisão de cortar “cada um
em dois”, para enfraquecê-los, e serem úteis tornando-se mais numerosos, e, caso
isto não diminuísse suas vicissitudes, iria dividi-los novamente, fazendo-os andarem
com uma só perna. Todavia, o plano de Zeus não saiu como ele pensava, pois, ao
dividi-los, e serem recompostos por Apolo numa forma individual, cada um ansiava
por encontrar sua metade, e morria na falta dela, depois que a encontrava, e seu
amado perecia.
Divididos por Zeus, num primeiro momento, os gêneros geravam-se na
terra e não um no outro, pois seus sexos ficaram para trás. Tendo compaixão por
eles e percebendo que não seriam úteis para si destruindo-se deste modo, pôs seus
sexos para frente e eles passaram a gerarem-se um no outro, no caso de o macho
encontrar uma fêmea, e, caso fosse um encontro de cada um com o mesmo
gênero, que “pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem
repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida” (PLATÃO, 1983, p. 24). A
partir da compaixão de Zeus, surgiu, desse modo, o amor de um pelo outro a
restaurar a “antiga natureza” dupla do ser humano, cada gênero em busca de seu
par. No caso, os homens e mulheres descendentes dos andróginos buscando-se uns

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aos outros, até mesmo em adultérios, e dos homens e mulheres cada um buscando
seus iguais. Assim como Pausânias discursa em defesa de um amor homossexual –
e, principalmente, o masculino, do qual não se deve sentir vergonha –, Aristófanes
também o faz:

Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão


mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia,
coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma
prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a
ser homens para a política, os que são deste tipo (PLATÃO, 1983, p. 24).

Por fim, a felicidade da raça humana depende da realização do amor ao ser


este deus o que possibilita o encontro do próprio amado e o retorno de cada
gênero à sua primitiva natureza; e se não esquecemos, não podemos esquecer,
nem devemos esquecer o amor, nem de glorificá-lo, é porque ele “é de máxima
utilidade, levando-nos ao que nos é familiar, e que para o futuro nos dá as maiores
esperanças, se formos piedosos para com os deuses, de restabelecer-nos em nossa
primitiva natureza e, depois de nos curar, fazer-nos bem-aventurados e felizes”
(PLATÃO, 1983, p. 26).
Seguindo o princípio de que, por amor, os gêneros humanos devem
retornar à sua primitiva natureza, Agatão profere seu discurso após Aristófanes no
mesmo sentido retornando ao discurso de Fedro de que o Amor é o mais antigo
dos deuses, mas para discordar dele dizendo que é, ao contrário, o mais jovem. Por
ser o mais jovem, é este amor também o mais belo e o mais feliz, fugindo à velhice e
à Necessidade da qual Agatão difere e que consistiria no amor mais antigo de
Hesíodo e Parmênides mencionados por Fedro. Além disso, por ser jovem, é
delicado e úmido, “capaz de se amoldar de todo jeito”, bem como de bela
compleição em guerra com a deformidade e com os vícios, pois ele é virtuoso e
conduz todos à virtude.
Conduz à justiça porque “não comete nem sofre injustiça, nem de um deus
ou contra um deus, nem de um homem ou contra um homem” (PLATÃO, 1983, p.

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28), e nada do que o faz por ele é à força, “pois violência não toca o Amor – nem,
quando age, age, pois todo homem de bom grade serve em tudo ao Amor, e o que
de bom grade reconhece uma parte a outra, dizem ‘as leis, rainhas da cidade’, é
justo” (PLATÃO, 1983, p. 28). Conduz também à temperança por dominar os
prazeres e desejos, bem como à coragem, pois pega Ares e é “mais forte o que
pega do que é pegado” e, por fim, à poesia e à sabedoria, pois é “um poeta o deus,
e sábio, tanto que também a outro ele o faz”. Poeta, ele ensina a criação artística e
toda a criação dos animais é “sabedoria do Amor”, bem como as artes do arqueiro,
da medicina, da adivinhação inventadas por Apolo como discípulo do amor, e das
belas-artes inventadas pelas Musas, da metalurgia por Hefesto, da tecelagem por
Atena e da “‘arte de governar os deuses e os homens’” por Zeus.
O discurso do poeta Agatão encerra assim a multiplicidade de discursos
sobre o Amor lembrando a todos sua beleza, que é a da jovialidade, a partir da qual
se produzem as virtudes, as artes, a sabedoria e o convívio social familiar entre
todos por Amor e não por Necessidade. O que se tem a partir de Sócrates, depois
de Agatão, é a redução dos discursos a um diálogo, em primeiro lugar dele com
Agatão, de quem começa por discordar, bem como de todos os demais, por tão
somente elogiá-lo, defendendo que o elogio fosse assim proveniente da verdade do
Amor e não um acrescentar o máximo à coisa, verdade que, em grego, quer dizer
alethéia, não-esquecimento. Neste sentido, é ao não-esquecimento do amor em sua
verdade que Sócrates lembra, por fim, a todos em seu diálogo com Agatão, em
princípio, mas fundamentalmente com Diotima, que era entendida neste assunto, e,
convencido pelo que ela disse, foi que Sócrates concordou em participar do
simpósio, quando Erixímaco propôs os discursos sobre o amor: “Ninguém contra ti
votará, ó Erixímaco – disse Sócrates. – Pois nem certamente me recusaria eu, que
afirmo em nada mais ser entendido senão nas questões do amor...” (PLATÃO, 1983,
p. 12, grifo nosso).
Para além dos discursos (logos) sobre o amor, é através do diálogo que

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Sócrates fala sobre o amor, de duas línguas e uma delas senão estrangeira, como é
a de Diotima, que fala melhor do que ele e do que os homens presentes sobre o
que é o amor de verdade, ou a verdade do amor. Se existe uma verdade do amor, a
partir dos questionamentos de Sócrates, ela é lembrada por Diotima, uma
estrangeira, à qual ele recorre em lembrança para discursar sobre o Amor tal qual
os outros, ainda que ela dialogue como ele mesmo dialoga com os outros. Do
diálogo com Agatão para o discurso de Diotima, lembrado por Sócrates a si mesmo,
passa-se a um discurso de alguém que não está presente ao banquete, mas é
tornado presente nele por Sócrates, que tenta repetir seu discurso, e é assim um
discurso de alguém ausente e presente ao mesmo tempo, tal como o amor é, para
ele, o desejo de algo ausente e presente àquele que o deseja e quer manter consigo
no futuro, isto é, presente no tempo. Sócrates, em sua ignorância, não sabe a
verdade sobre o amor, que advém, segundo ele, de Diotima, entendida neste
assunto, e, não sabendo sua verdade, não sabe também como dizê-la, motivo pelo
qual recorre a ela, não sabendo, outrossim, falar a língua e a linguagem do amor,
fazer um discurso elogioso sobre ele, motivo pelo qual traz à lembrança ela como
musa para falar por si.
Se Diotima era entendida nas questões do amor é porque, deste modo, ela
sabia questionar o amor, questionar para saber a verdade do Amor, se o Amor dizia
a verdade ou a falsidade – o que ela ensinou também a Sócrates; neste caso, ao
instruí-lo nas questões do amor. Neste sentido, se é feio ou não o amor, tal como ele
e Agatão dialogavam, Diotima lhe disse que “nem era belo segundo minha palavra,
nem bom”, tampouco sábio ou ignorante, refutando o questionamento de Sócrates
com veemência, quando ele ironicamente, em seu costume, a questiona. O Amor,
para Diotima, é o opinar certo, mesmo sem poder dar razão, por ser aquilo que está
entre os dois extremos, portanto, sem poder dar razão a um ou a outro, o que faz
dele também não ser um deus tal qual todos reconhecem, segundo Sócrates, mas
não ele mesmo e nem ela, pois se o amor é carente do que é bom e belo, logo, da

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felicidade a partir disto, o Amor enquanto deus também careceria disso. Portanto,
questiona ela, “Como então seria deus o que justamente é desprovido do que é
belo e bom?” (PLATÃO, 1983, p. 34). Mas, se o amor não é um deus, e, como tal,
não é imortal, isto não quer dizer que ele seja mortal – como Sócrates a questiona,
retomando os extremos –, pois ele é também, neste caso, “algo entre o mortal e o
imortal”, ou seja, é “Um grande gênio, ó Sócrates; e com efeito, tudo que é gênio
está entre um deus e um mortal” (PLATÃO, 1983, p. 34). No caso, um gênio que tem
o poder de estabelecer uma relação entre homens e deuses, pois é a partir do amor
que se pode “interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e aos
homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e dos outros as
ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no meio de ambos ele os
completa, de modo que o todo fica ligado todo ele a si mesmo” (PLATÃO, 1983, p.
34).
É nesta relação entre o que é mortal e o que é imortal que há a verdade
sobre o amor e que ele tem seu objeto, por assim dizer. Tal objeto é o belo imortal
como objeto único de uma ciência única na medida em que é permanente no tempo
“sempre sendo, sem nascer e perecer, sem crescer nem decrescer”, que é imutável e
não deixa de ser o que é, variando no espaço e no tempo ou em relação a algo
qualquer, pois não é “de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem
quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo e ali feio”. Um belo que está
ausente no corpo, que não é a aparência de “nada que o corpo tem consigo”,
tampouco com “algum discurso ou alguma ciência” que se refira aos corpos e com
qualquer existência na natureza, “animal da terra ou do céu, ou qualquer outra
coisa”. Neste sentido, um belo que é “ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo,
sendo sempre uniforme” e que tudo o que é belo gerado no corpo e na alma
participa dele, mas nada o altera, pois é um belo em si, o próprio belo, presente nos
corpos e nas almas, mas ausente delas em maior medida.
É a contemplação deste belo inesquecível em si e propriamente o que se

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coloca, por fim, em questão ao amor por Diotima, a questão única do amor tendo
em vista este único belo, o qual deve se ter em vista sempre, para sempre, e que
torna senão o amor inesquecível, um amor que não se pode esquecer, que não
devemos esquecer, um amor a um belo que é único, mas que não é um amor
violento de um só belo presente num corpo, num costume, escravo, mesquinho, mas
em todos os corpos de modo comum na medida em que se queira apenas
contemplar quem ama e estar ao seu lado. Um amor inesquecível que não se
modifica com o tempo quando contempla o belo em si, que permanece em sua
contemplação na memória ainda que o belo que ama esteja ausente e que esteja
necessariamente ausente, seja um belo ausente em si mesmo, pois não está
presente em nada na natureza, tampouco em qualquer ciência dela, ou ainda, por
qualquer discurso ou em qualquer língua e linguagem, um belo, portanto, indizível,
e que uma Ideia que se tem por amor e nunca se tem ao amar e ao se discursar
sobre ele em uma determinada língua ou linguagem, a não ser na própria língua
dele, a nos conduzir a si mesmo quando amamos, ou, ainda, na língua do amor que
nos conduz a algo que é o belo em si.
Se o amor é amor de algo, a partir de Diotima, podemos dizer que este
algo é o belo em si, um belo inesquecível, invisível e indizível a não ser para a língua
do amor e de quem ama, a língua do belo em si. Amor de algo belo em si que é o
de uma Ideia, que faz do amor inesquecível, invisível e indizível, pois, se não
esquecemos o belo em si, ou não podemos e não devemos esquecê-lo, não
esquecemos, não podemos e não devemos esquecer o amor em si mesmo,
verdadeiro, como uma Ideia inesquecível do belo em si para além dos discursos
(logos) proferidos no banquete pelos homens. Seja porque remetem eles à deusa
Afrodite, seja porque remete Sócrates ao seu diálogo com Diotima e, por fim, é no
diálogo entre homens e mulheres, entre duas línguas estrangeiras, que se pode falar
a língua de Eros ou do Amor.

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REFERÊNCIAS

PLATÃO. O Banquete. In: ____. Diálogos. Tradução de José Cavalcante de Souza.


São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 1-53.

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ENTRE O AMOR E O ÓDIO EM “O BÚFALO”, DE CLARICE


LISPECTOR
Luciana Braga
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Pretende-se analisar o conto “O Búfalo”, presente em Laços de Família


(1960), de Clarice Lispector, identificando a forma como o amor e o ódio são
representados e como ambos se conectam e dialogam entre si através da pulsão do
olhar. Sabe-se que Eros é incapturável e que a escrita clariciana é tão fugidia quanto
o deus, mas é através da linguagem que o erotismo, o amor, o ódio e a literatura se
apresentam e é ela que perseguiremos. Dessa forma, a fim de analisar a linguagem
desse conto, utilizaremos os estudos de Xavier (2007), Bataille (2017), Barthes (2015),
Freud (2017), Platão (1987), Milan (1983) e Branco (1983), entre outros estudos que
possam contribuir para os propósitos do presente trabalho.
Palavras-chave: Olhar; Amor; Ódio; Erotismo.

INTRODUÇÃO
O amor sempre foi um dos temas mais recorrentes nas artes e, antes de
penetrar nas veredas artísticas, ele já residia no âmago das reflexões filosóficas sobre
a origem do mundo e do homem. Ele está no centro dos conflitos da humanidade,
é a problemática e a solução. Na literatura, ele é centro de inúmeras narrativas,
como as consagradas obras românticas universais. Na obra clariciana, o amor é
tema recorrente, seja nos romances, contos ou crônicas, chegando, até mesmo, a
intitular um famoso conto presente em Laços de Família (2009). Todavia, Clarice não
lida com esse sentimento de forma displicente, pois há sempre um conflito
complexo em torno dele. Amor nunca é apenas amor, é ciúme, ódio, vingança,
desejo, amizade e compaixão. A literatura lida com diversas formas de amar e exibe
suas diversas faces sem, no entanto, desvendá-las por completo, pois a linguagem
literária é ambígua, misteriosa e repleta de sentidos.
Em contrapartida, no campo da Teoria Literária, ainda existe certa reserva
em tratá-lo de forma histórica, descritiva e racional. Não se acredita que,
fomentando o interesse pelas discussões sobre o amor, estar-se-á aprendendo a
amar melhor ou a ensinar as pessoas a encontrarem o amor verdadeiro. Esta última
expressão é, inclusive, problemática. Contudo, promovendo uma discussão sobre

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esse aclamado sentimento, é possível enriquecer os conhecimentos adquiridos pelo


homem sobre seu corpo, suas emoções, sua história e sobre as narrativas
construídas ao longo dos anos. Além disso, pode-se penetrar nesse território
“sagrado”. Diz-se sagrado porque, até mesmo, o amor existe sob os desígnios da
tradição cristã e é constantemente vigiado à medida que se aprende desde a
infância a quem amar e como amar. Não se aprende a amar a si mesmo antes de
tudo, mas ao Deus.
O ser humano não ama a si próprio o suficiente para que permita que
conheça o seu corpo, fonte de prazer e sensações múltiplas. Aprende-se antes a
controlar as palavras, as declarações, o amor, o comportamento, a existência. Amar
é visto como algo divino e, portanto, controlado por Deus e vigiado pela igreja, que,
por sua vez, é manipulada pelos governantes. Em resumo, vive-se em uma cadeia
de interesses em que o poder político interfere no sagrado que rege as vidas
humanas. Por tudo isso é complexo demais tentar encontrar uma simples definição.
Sabe-se que existem inúmeras formas de amar ou ainda que cada sentimento
corresponde no homem a uma forma diferente de amor; assim o ódio não seria tão
distinto do amor, mas seria uma de suas faces.

EROS E ÉRIS: AMOR E ÓDIO


Conforme a Mitologia Grega, quando Peleu e Tétis celebraram seu
casamento, negligenciaram convidar Éris, deusa da discórdia. Ela então resolve
enviar de presente uma maçã de ouro com a inscrição “À mais bela”. O presente
provocou discussão em torno das deusas Hera, Atena e Afrodite, que acreditavam
serem as destinatárias do presente. Convocaram, então, Paris para resolver a
contenda. Cada uma ofereceu um suborno: Hera ofereceu realeza; Atena, sucesso
militar; e Afrodite ofereceu a mulher mais linda do mundo, isto é, Helena. Paris
escolheu Afrodite e esta o levou a Troia; do contato entre Paris e Helena, ocorreu o
famoso rapto que deu origem à Guerra de Troia.25

25 Narrativa presente em RUSSON, John. Eros and Éris: Love and Strife in Ancient Greek Thought and
Culture. Disponível em:
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A partir dessa história, percebe-se o quanto Eros e Éris estão interligados. A


instabilidade de Eros se aproxima mais do caos que Éris provoca do que da
amizade. Conforme o professor e pesquisador Claudicélio Rodrigues da Silva, é
preciso seguir no encalço de Eros “como quem não se importa com o que ele
capturará. Não que a empresa seja fácil, porque o desvelar não é atitude de Eros.
Trata-se de um deus que escreve torto por linhas tortas” (SILVA, 2018, p. 10). Em
outras palavras, por mais que se esteja no rastro de Eros, não é possível capturá-lo,
pois ele possui uma natureza fugidia. Os seus domínios são misteriosos e
imprevisíveis, por isso é tão difícil prever os seus passos. Conforme Lucia Castello
Branco, “talvez o fascínio provenha exatamente do paradoxo em que consiste na
tentativa de capturar o incapturável” (BRANCO, 1983, p. 66). Vale salientar que Eros
não atua apenas em canais de sexualidade explícita, pois mesmo quando a
sexualidade é reprimida pela sociedade e pelo próprio indivíduo, é possível sentir o
toque suave do deus.
Portanto, assim como o amor de Paris e Helena resultou em guerra, os
caminhos de Eros e Éris também podem se cruzar. Afinal, o caos, a discórdia ou o
ódio também estão presentes no amor. Pode-se dizer até que um pode resultar no
outro. Para Betty Milan: “O amor é sublime e cruel, estranho que se tenha querido
fazer dele um cordeirinho do bom pastor” (1983, p. 15). Ou seja, não se pode
duvidar da íntima relação entre esses sentimentos opostos. Pode-se dizer até que o
ódio seria o amor degenerado, isto é, quando o prazer se transforma em desprazer,
consequentemente em repulsa, e chega ao ponto de estimular desejos de
aniquilação.
Segundo Freud:

O amor e o ódio, que se apresentam como opostos completos em seu


material, não mantêm, entretanto, uma relação simples entre si. Não
surgiram da cisão de algo originalmente comum, mas possuem origens
diversas, e cada um deles passou por desenvolvimentos diferentes antes
de, sob a influência da relação prazer-desprazer, terem tomado a forma
de opostos. (FREUD, 2017, 59).
<https://www.academia.edu/37779901/Eros_and_Eris_Love_and_Strife_in_Ancient_Greek_Thought_and
_Culture.>. Acesso em: 07 jun. 2019.
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Em outras palavras, Freud leva em consideração a relação que o Eu tem


com seu objeto do desejo, prazerosa ou desprazerosa, pois o ódio “como relação
com o objeto, é mais antigo que o amor” (FREUD, 2017, p. 61). Se há ódio, muito
facilmente haverá violência, e este é um dos domínios essenciais do erotismo. Afinal,
o erotismo reside na violação do outro; é, no dizer de Bataille, “o desequilíbrio em
que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente” (2017, p.55). A atitude
erótica é na sua natureza transgressiva e possui um abismo que pode fascinar,
como uma maçã dourada com uma simples inscrição no meio de uma festa. Éris
aguça a vaidade, o desejo, o amor narcísico, estimula guerras e morte, por outro
lado, Eros, filho de Afrodite, a deusa que caminha no meio do campo de batalha, é
o deus do amor, da entrega, do abismo e da vida. Os caminhos percorridos por
esses deuses não são precisos, assim como os desígnios do amor e do erotismo.

É POSSÍVEL AMAR UM BÚFALO?


A literatura está repleta de narrativas e poemas que trazem a dura relação
entre o amor e o ódio. Pensando nessa íntima conexão entre o prazer e a crueldade
é que o conto “O Búfalo”, presente em Laços de Família (1960), de Clarice Lispector,
será abordado. Trata-se da vertiginosa travessia de uma mulher que vai a um
zoológico com um desejo inusitado de aprender a odiar com os animais.
Entretanto, “os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que
sempre escapa a nossa compreensão” (MACIEL, 2016, P.13), dessa forma, ao invés
de encontrar o ódio atrás das grades onde estavam os animais, a mulher só
consegue enxergar representações delicadas de amor. O motivo de tal busca é
explicado através da frase: “Eu te odeio, disse ela para um homem cujo crime único
era o de não amá-la” (LISPECTOR, 2009, p.127). Dito isso, o leitor percebe que a
motivação da mulher não é o desejo de odiar, mas é a vontade de amar, porque ela
é amor, mas é o pior tipo dele, uma vez que é o amor sem retribuição, pois “se o
coração está no outro, se o amante é o amado, aquele não pulsa, não vive senão
através deste, cuja recusa significa a morte” (MILAN, 1983, p. 23). No entanto, ela
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não encontra o que viera buscar no leão, na girafa, no hipopótamo, no elefante, nos
macaquinhos, no macaco velho ou no camelo. Sendo assim, ela decide ir buscar a
sua própria forma de violência.
O ódio que ela busca é a própria libertação e essa sensação de liberdade
não está presente nas jaulas que ela observa. Então, a mulher, presa a sua condição
humana, incapaz de odiar, resolve ir ao parque e se perder na liberdade da
montanha-russa. Apesar de a protagonista lutar para manter o comportamento
inabalável, o vento e a velocidade do carrinho nos trilhos a invadem e ela não se
entrega. Como uma mulher com medo de se entregar ao amante, ela se mantém
impassível, presa em seu casaco marrom. Em outras palavras, a mulher parece
indecisa entre o sagrado e o profano, de forma que é a montanha-russa que aguça
as sensações eróticas dela, pois não é “apenas através dos canais de sexualidade
explícita que Eros se fará ouvir.” (BRANCO, 1984, p. 69).
É nesse momento simbólico que a protagonista vive o processo de
erotização do corpo, em que, conforme Xavier, ela “vive sua sensualidade
plenamente e que busca usufruir desse prazer, passando ao leitor, através de um
discurso pleno de sensações, a vivência de uma experiência erótica” (XAVIER, 2007,
p. 157). Foi preciso que ela experimentasse esse instante de gozo para ser capaz de
enxergar o que estava por vir. Ela encontra o quati enjaulado e curiosamente quem
se sente presa é ela. Presa no silêncio que a reprime, presa até soltar um gemido
que assusta o quati, mas não comove mais ninguém. A mulher caminha silenciosa e
é quase uma sombra. Frustrada pela insatisfação de não saber ainda como odiar, ela
apressa o passo até encontrar o seu duplo: o búfalo.
“De longe, no seu calmo passeio, o búfalo negro olhou-a um instante”
(LISPECTOR, 2009, p. 133) e ela que passava despercebida pela vida, sentiu-se
notada, vista, sentida. Não é fácil ser encarada assim quando o corpo inteiro está
recebendo ordens para odiar o mundo. O búfalo negro a deixara perplexa e imóvel.
Ela precisa fazer um grande esforço para se manter de pé, apruma a cabeça e o
corpo. O búfalo a nota novamente. Esse confronto mudo com o búfalo é o

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confronto da amante com o amado, da mulher com o homem, de tudo o que ela
queria que tivesse sido e de tudo o que nunca foi.
O olhar do búfalo é quase como o olhar de Narciso na fonte, ela não
consegue desviar o olhar. “O coração batia oco entre o estômago e os intestinos”
(LISPECTOR, 2009, p. 133), e de repente uma coisa branca começa a se espalhar
dentro dela. Não era o ódio tomando conta dela, era o contrário. Éris cede o lugar
para Eros. A coisa branca é a manifestação do deus do amor, é o prazer, o desejo, a
pulsão ganhando força e consistência. A narradora diz que “a morte zumbia nos
seus ouvidos” (LISPECTOR, 2009, p. 133). Essa relação do desejo com a morte
remete ao conceito de Bataille de que o erotismo é “a aprovação da vida até na
morte” (2017, p. 35). Afinal, o erotismo quando atinge o indivíduo é capaz de fazer
seu coração desfalecer.
O conflito da mulher dividida entre o ódio e amor se intensifica quando ela
diz: “Eu te amo (...) com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de
não querê-la. Eu te odeio, (...) implorando amor ao búfalo” (LISPECTOR, 2009, 134).
Dessa forma, o ódio cede lugar ao amor, que se intensifica no contato sublime entre
a mulher e o búfalo no seguinte trecho:

E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão


funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono
profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olhavam. Os olhos do búfalo. A
mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo
calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio
com que o búfalo, tranqüilo de ódio, a olhava. Quase inocentada,
meneando uma cabeça incrédula, a boca entreaberta. Inocente, curiosa,
entrando cada vez mais fundo dentro daqueles olhos que sem pressa a
fitavam, ingênua, num suspiro de sono, sem querer nem poder fugir,
presa ao mútuo assassinato. Presa como se sua mão se tivesse grudado
para sempre ao punhal que ela mesma cravara. Presa, enquanto
escorregava enfeitiçada ao longo das grades. Em tão lenta vertigem que
antes do corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo.
(LISPECTOR, 2009, p. 135).

O olhar selvagem, duro e exploratório do búfalo vai de encontro com o olhar


tonto, melancólico e carente dessa mulher que buscava odiar, mas acaba sendo
hipnotizada por Eros, o deus que a presenteia com o inusitado. Clarice utiliza da

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repetição que conduz ao esvaziamento da palavra “olhar” ampliando o significado e


gerando um sentido ainda mais forte. “Os olhos olharam seus olhos” e a mulher
“entorpeceu”. As palavras são limitadas demais para descreverem o que se passa no
corpo e no espírito dessa personagem que se entorpece com um simples olhar. A
mulher não consegue entender como um animal que deveria estimulá-la a sentir
ódio provoca o amor em seu corpo e em suas entranhas. O búfalo é o próprio
paradoxo, assim como Eros, que é fugidio, e a mulher aos poucos vai se deixando
morrer, experimentando a sensação da continuidade 26 por alguns instantes. A
mulher incrédula e ingênua é incapaz de fugir, enfeitiçada pelos mistérios do deus
que a arrebata e enfeitiça até que seu corpo baqueia e cai, porque o encontro com
o deus não se dá de modo delicado, é quase sempre violento, decisivo e
transgressor, pois “o amor é, em sua própria origem e essência, insaciável” (MAY,
2012, p. 71).
Mas, antes de se entregar ao gozo provocado por esse momento de
voyeurismo, segundo Freud, a mulher consegue ver o céu inteiro e “um búfalo”. É
importante salientar que o título do conto é escrito com artigo definido, pois não se
trata de um simples animal selvagem. O búfalo é a personificação do homem que a
envolveu e frustrou, mas, ao final, essa imagem se desfaz e só resta o animal escrito
com um artigo indefinido que o antecipa e o qualifica como comum. O silêncio a
invade e a ultrapassa. Amor e ódio se fundem.

CONCLUSÃO
Através da análise do conto “O Búfalo”, de Clarice Lispector, presente na obra
Laços de Família (2009), percebemos o embate entre o amor e ódio a partir da
protagonista dividida entre os sentimentos e motivada pela força de Eros e Éris.
Nesse conto, amor e ódio são representados como fontes motivadoras, mas não
excludentes. Ambas permeiam a narrativa e são fortalecidas pelo poder do olhar.
Nesse conto, frente ao enigma do desejo do outro, a personagem principal

26 Referência a Aristófanes em O banquete (1987), de Platão, sobre a continuidade perdida. Ao


mesmo tempo, também é uma referência a Bataille, em O Erotismo (2017), sobre a afirmação de que
somos seres descontínuos.
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se imobiliza e se deixa envolver pela fantasia do búfalo; ela é um corpo que teme se
render ao profano e fica dividida entre ele e o sagrado. O profano é o prazer, o
gozo, “a coisa branca” surgida após o passeio de montanha-russa. O búfalo, no
entanto, é o seu duplo, é a partir dele que o drama de fato se instaura na narrativa
e compõe o clímax angustiante; a plena manifestação erótica arrancada de um
significativo olhar.
Olhar o outro, perder a noção do próprio corpo, permitir-se, sentir-se. Esse
texto instaura-se naquilo que, no dizer de Barthes, é “semelhante a esse instante
insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo
de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no
momento em que goza” (2015, p. 12).

REFERÊNCIAS

BARTHES, R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2015.

BATAILLE, G. O erotismo. Tradução Fernando Scheibe. 1 ed. 2 reimp. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2017.

BRANCO, L. C. O que é erotismo. In: O que é: amor, erotismo, pornografia. (Coleção


Primeiros Passos , 11). São Paulo: Círculo do livro, 1983.

FREUD, S. As pulsões e seus destinos. Tradução: Pedro Heliodoro Tavares. 1ª ed, 2ª


reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

LISPECTOR, C. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco. 2009.

MACIEL, M. E. Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

MAY, S. Amor: uma história. Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2012.

MILAN, B. Amor. In: O que é: amor, erotismo, pornografia. (Coleção Primeiros


Passos, 11). São Paulo: Círculo do livro, 1983.

PLATÃO. O banquete. Trad. José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz
Costa. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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RUSSON, J. Eros and Éris: Love and Strife in Ancient Greek Thought and Culture.
Disponível em:
<https://www.academia.edu/37779901/Eros_and_Eris_Love_and_Strife_in_Ancient_Gr
eek_Thought_and_Culture> Acesso em: 07 jun. 2019.

SILVA, C. R. 15 erros de Eros: ensaios de literatura, vida e outras artes. São Paulo:
Porto de Ideias, 2018.

XAVIER, E. Que corpo é esse? o corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed.


Mulheres, 2007.

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EROS E PHILIA NO POSICIONAMENTO POP-ROCK PARA


CRIANÇAS
José Wesley Vieira Matos
Universidade Federal do Ceará

Maria das Dores Nogueira Mendes


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Este estudo investiga a construção e representação dos relacionamentos


afetivos, com realce para o aspecto amoroso, no posicionamento Pop-rock para
crianças, tendo como corpus as produções do grupo Pato Fu (2010, 2017), do
heterônimo Adriana Partimpim (2004, 2009, 2012) e do grupo Pequeno Cidadão
(2009, 2012, 2016). Para isso, tomamos como referencial os teóricos discutidos no
projeto INVOCANÇÕES, ligado ao grupo Discuta (UFC), tais como Maingueneau
(2001, 2006), Costa (2012), Mendes (2013), Gonzalez (2014), Mendes (2017), entre
outros. Assim, investigamos qual o tratamento dado a esse aspecto através da
análise do ethos discursivo dos distintos enunciadores, da construção cenográfica e do
investimento vocal do locutor; assim, pensamos como essas características
contribuem para o delineamento do posicionamento em que se inscrevem no campo
literomusical. A análise aponta que o amor constitui, para além de uma temática rica
e recorrente no posicionamento, uma bandeira que compõe o núcleo identitário
“revolucionário” do Pop-rock para crianças.
Palavras-chave: Discurso literomusical; Relacionamento amoroso; Posicionamento
pop-rock para crianças; Retextualização.

O PROJETO INVOCANÇÕES
Esta pesquisa se insere na terceira etapa do projeto de pesquisa
Investimento vocal em canções para crianças (INVOCANÇÕES), ligado ao Grupo
Discurso, cotidiano e práticas culturais (DISCUTA/ UFC), cujo objetivo é finalizar e
divulgar as pesquisas em torno dos posicionamentos do campo literomusical
brasileiro para crianças. O projeto visa caracterizar aspectos, principalmente vocais,
que podem ser delineadores dos posicionamentos apresentados por Gonzalez
(2014) [MPB para crianças, Canção de massa para crianças e Gospel para crianças] e
o posicionamento delimitado pelo projeto INVOCANÇÕES em sua primeira fase
[Pop-rock para crianças].
Dessa forma, pretendemos contribuir para a caracterização do
posicionamento destacado em nosso projeto, investigando a construção e

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representação dos relacionamentos afetivos, com ênfase para o aspecto amoroso.


Em conformidade com o corpus geral do projeto, delimitamos a coleta de canções
para essa análise nas produções dos(as) seguintes artistas/bandas: Adriana
Partimpim (2004, 2009, 2012), heterônimo de Adriana Calcanhotto; grupo Pato Fu
(2010, 2017), com o premiado projeto “Música de brinquedo”; e grupo Pequeno
Cidadão (2009, 2012, 2016), composto por artistas diversos, dedicado especialmente
ao público infantil.

O AMOR NOS POSICIONAMENTOS PARA CRIANÇAS


Para além das produções que embasam nosso projeto como um todo, os
norteamentos sobre o campo literomusical brasileiro para adultos e para crianças de
Costa (2012, 2013), os posicionamentos para crianças delineados por Gonzalez
(2014) e as considerações dos investimentos vocais de Mendes (2013), essa pesquisa
dá-se também como uma continuação do trabalho “Relacionamento amoroso em
canções para crianças” (MATOS, 2018, no prelo), aprofundando os resultados
obtidos no posicionamento pop-rock para crianças.
Nesse primeiro trabalho, analisamos as canções a partir de três conceitos
teóricos: investimento ético, investimento cenográfico e investimento vocal;
relacionando, também, com a concepção de criança e a construção da identidade
de cada posicionamento. O investimento do ethos discursivo segue a conceituação
de Maingueneau (2001, 2006), relacionado à imagem de si do enunciador criada na
enunciação. O investimento da cenografia, em conformidade com a definição de
Maingueneau (2001, 2006), relaciona-se à encenação particular de cada texto
construída na enunciação. Já o investimento vocal, conforme Mendes (2013), trata-se
da consideração dos aspectos vocais como elementos discursivos fixados no
fonograma de uma canção.
Manteremos, no presente estudo, os mesmos critérios para análise das
canções em seus dois planos, o da letra e o da voz. Concluímos no trabalho anterior
que esse posicionamento busca “instruir sobre o aspecto do relacionamento

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amoroso a partir da conformação com a negação do par ideal junto com a


afirmação da esperança em outro amor” (MATOS, 2018).

CRISE AMOROSA
No estudo anterior, havíamos elegido a canção “O Sol e a Lua” (2009) do
grupo Pequeno Cidadão como representativa do posicionamento pop-rock para
crianças. Decerto, a canção apresenta uma das características mais marcantes e
distinguidoras das demais produções de outros posicionamentos, a crise amorosa.
Nessa canção, o Sol protagoniza uma idealização amorosa pela Lua, porém, esta “o
despreza e o deixa esperar” e responde o pedido de casamento com “Não sei, não
sei, não sei/ Me dá um tempo”. Assim, um narrador, prototipia da cenografia de
narrativa, marcado também com trechos de voz falada, apresenta a diferença entre
uma idealização e um relacionamento amoroso. O personagem Sol, apesar de estar
apaixonado, possui um ethos projetado27 consciente da liberdade do outro. No fim
da canção, um outro enunciador, com identidade vocal de criança, consola o
personagem Sol falando sobre a esperança em novas perspectivas, “Um dia você vai
encontrar alguém/ Que com certeza vai te amar também”.
A canção não é caso único no corpus, ao contrário, parece ser uma
característica constitutiva da identidade pop-rock para crianças. Uma das marcas
que mais se sobressai é a presença de interrogações e dúvidas expressando o
conflito entre se idealizar o amor e a impossibilidade de concretizá-lo devido à
recusa do outro, como ocorre na canção “Mesmo sem a gente” (PEQUENO
CIDADÃO, 2016), “Tá tudo confuso, te perco ou te ganho?/ Minha cabeça gira em
parafuso [...]”, e na canção regravada, original de Ritchie, “Pelo interfone” (PATO FU,
2010), “Eu já não sei se eu vou, se eu fico [...] Não quero te prender/ Mas não posso
te perder/ Esse é um dilema que nem o cinema sabe resolver!”.
Esse ethos conflituoso consigo e com o outro em relação às atitudes que
deve tomar mediante uma frustração amorosa perpassa outras canções como “Não

27 Tratando-se de ethos projetado, pois não é o personagem Sol que enuncia, mas o narrador que
cria essa imagem desse outro.
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se vá” (PATO FU, 2017), na qual o enunciador suplica por uma nova chance
esperançosa, e “Gatinha manhosa” (ADRIANA PARTIMPIM, 2007), na qual o
enunciador tenta solucionar um impasse comunicativo afetivo, reafirmando que o
posicionamento não oculta um lado, geralmente, negativizado dos relacionamentos,
mas explicita-o constantemente.

A SOLUÇÃO
Como mencionamos, no final da canção “O Sol e a Lua”, investe-se em
elementos conciliatórios para resolução do dilema posto. Percebemos que situação
semelhante ocorre em “Mesmo sem a gente”, na qual o enunciador, que possui uma
identidade vocal infantil, parece reconhecer uma atitude desagradável ou uma
reação indesejada, reforçada pela cenografia confessional e de súplica, um pedido
de desculpas; e pede “Me dê só mais um tempo e poderemos ser amigos
simplesmente” (PEQUENO CIDADÃO, 2016). Conclui o enunciador com reflexões
motivadoras e perspectivas de mudança, “Sim sei que ainda vou crescer/ Há muitas
surpresas pelo caminho/ O sol se põe para depois nascer/ Tenho muito o que viver,
muito o que aprender”, complementando seu ethos conciliador com um aspecto
esperançoso.
Em “Pelo interfone”, o enunciador não está necessariamente diante de uma
negação da idealização, mas encontra-se conturbado pela falta de resposta
concreta. Contudo, o ethos investido ao final é de esperança, “O dia vai chegar/
Uma noite a menos para a gente!” (PATO FU, 2010). Outro caso, que a primeira vista
possa parecer destoar dessa característica, é a solução apresentada em “Gatinha
manhosa”, a de prender no coração. Parece que o enunciador escapa desse ethos
que compreende a liberdade do outro e o infringe; contudo, a cenografia emotiva
de manha e a recontextualização do termo “gatinha”, permitem interpretar essa
espécie de prisão como uma resposta afetiva positiva para o “conflito”, que seria
melhor entendido como um jogo de charme, como sugere o trecho “Briga só para
depois/ ganhar mil carinhos de mim” (ADRIANA PARTIMPIM, 2007), uma paradoxal

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prisão carinhosa; que não, necessariamente, se dá entre um casal, como aponta


Mendes (2017).
Assim, notamos que há uma tendência de investimento em aspectos éticos
conciliatórios esperançosos e em identidades vocais infantis para propor soluções
aos conflitos dos amores não correspondidos ou incertos; o que podemos relacionar
ao caráter pedagógico presente em todos os posicionamentos para crianças, assim,
os investimentos citados buscam criar uma identificação entre o enunciador infantil
aconselhador e o delocutor ideal do discurso, a criança.

REGRAVAÇÕES E RETEXTUALIZAÇÃO
No corpus coletado, é notável a quantidade de regravações de canções
originárias da esfera discursiva para adultos. Os CDs da banda Pato Fu são
compostos somente por regravações; os de Adriana Partimpim mesclam autorais e
regravações; e os do grupo Pequeno Cidadão possuem, predominantemente,
canções autorais. Isso nos leva a pensar como essas canções, não pensadas
originalmente para esse fim, passam a pertencer ao mundo infantil.
Com base no trabalho de Mendes (2017), podemos caracterizar uma prática
recorrente nas regravações de canções do posicionamento em questão, que
explicita a mudança do pertencimento para o contexto infantil: a retextualização.
Para o presente trabalho, consideramos processos de retextualização aqueles em
que a materialidade enunciativa é modificada no plano da letra, no plano vocal, nos
instrumentos, na melodia e/ou no fonograma. Faz-se notar que, um processo de
retextualização implica um processo de recontextualização, esse último entendido
como a mudança de situação/ contexto comunicativo. Dessa forma, encontramos
nas canções selecionadas processos retextualizadores que buscam criar efeitos de
sentido que validem novas interpretações e, em especial, sua mudança de público.
Ainda que Mendes (2017) pouco relacione sua análise com os
posicionamentos, tendo em vista que seu objetivo é a caracterização dos processos
retextualizadores, a autora seleciona e analisa três canções que também compõe

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nosso corpus, são elas “‘Fico assim sem você (ADRIANA PARTIMPIM, 2004), “Gatinha
manhosa” (ADRIANA PARTIMPIM, 2009) e “Primavera” (PATO FU, 2010). Dá-se
destaque aos investimentos instrumental e vocal como possibilitadores de uma
mudança cenográfica, ou seja, um investimento cenográfico distinto do original.
Como em “Primavera”, na qual a cenografia original nos remete diretamente à
declaração de amor entre um casal apaixonado e que, todavia, é alterada na
regravação de Pato Fu tendo maiores possibilidades de ser interpretada como
declaração entre pais e filhos, entre amigos, etc.
No que diz respeito aos processos de retextualização na canção “I Saw You
Saying (That You Say That You Saw)” (PATO FU, 2017), podemos destacar que,
apesar de nenhuma mudança no plano da letra, o investimento cenográfico, aliado
ao investimento ético, cria uma nova ambientação para a canção, a da idealização
amorosa de uma criança por um adulto. O enunciador parece estar apaixonado por
uma mulher estrangeira e decide perguntar sobre o que ela acha dele; ele, então,
recebe uma resposta em inglês e, tendo declarado que “Eu não sei falar inglês/ Ela
não entende uma palavra em português”, busca o intermédio do pai que repete a
mesma resposta em inglês. O fato de não saber inglês e de buscar ajuda na figura
do pai pode reforçar a interpretação de que o ethos do enunciador é de uma
criança. Como o plano da letra não foi alterado, mantém-se o trecho “I feel good
because you put your butt on me” 28, que parece inapropriado ou incompreensível
para a projeção de criança do senso comum; contudo, imaginamos que seja,
justamente, esse o principal efeito de sentido almejado, assim como o enunciador-
criança não compreende a sensualidade explícita (para os adultos), o delocutor-
criança também não a compreenderá durante a audição. Convém destacar também
que esse trecho, assim como a maior parte da canção, não é cantado por crianças,
ou seja, busca-se não relacionar essa possível sensualidade com uma identidade
vocal infantil.
Contudo, polêmica maior gerou a regravação de “Severina Xique-Xique”

28 “Eu me sinto bem porque você colocou sua bunda em mim” (Tradução nossa).
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(PATO FU, 2017). Após o lançamento de “Música de brinquedo 2”, diversos canais
midiáticos noticiaram a ousadia do grupo ao regravar, em um álbum para crianças,
uma canção conhecida popularmente pelo duplo sentido; como na notícia,
veiculada no site G1, intitulada “Pato Fu traz malícia sexual de hit de Genival Lacerda
para álbum infantil” (FERREIRA, 2017).
Ao analisarmos as práticas de retextualização na regravação de “Severina
Xique-Xique”, encontramos, primeiramente, sutis mudanças no plano da letra. Essas
não ocorrem nos trechos de voz cantada, mas alteram um diálogo em voz falada,
advindo da original, que se dava entre a repetição das estrofes e refrão.
O ethos projetado de Severina corresponderia ao da canção original, no seu
sentido mais literal, uma moça pobre que se tornou dona de um pequeno
estabelecimento comercial, boutique; da mesma forma, o ethos projetado de Pedro
Caroço permanece o de um rapaz interesseiro, financeiramente, que pretende
enganar Severina com falsos sentimentos. Contudo, a cenografia, aliada ao
investimento vocal, dá um novo enfoque ao conflito relacionado ao sentimento
amoroso. Na gravação original, a primeira e a segunda estrofe do diálogo são
faladas pelo intérprete com a mesma identidade vocal, o que nos conduz a duas
possíveis interpretações: na primeira, podemos relacionar o diálogo a um ethos
ríspido e insensível do pai de Severina, marcado pelo uso do vocativo “minha filha”,
no sentido de laço familiar; já na segunda interpretação, relacionamos o diálogo ao
autoproclamado “Seu Babá”, o interesseiro pretendente que denuncia Pedro Caroço
mas incorre no mesmo erro, e o vocativo “minha filha” estaria mais ligado ao sentido
de afetividade, ainda que maliciosa.
Já na regravação, encontramos duas identidades vocais distintas, revelando
que, não só no plano da letra, mas principalmente no plano vocal, o grupo Pato Fu
separa os dois possíveis enunciadores e funde as interpretações anteriores. A
primeira estrofe é falada por uma criança (voz feminina e em tom imperativo) e
alerta Severina da motivação interesseira de Pedro Caroço; o trecho que menciona
“seu Babá” é transferido para a outra estrofe e acrescenta-se o termo “bobão” à

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primeira, ofensa infantilizada, referindo-se a Pedro. Enquanto esse primeiro trecho


parece empoderar Severina, aconselhando-a a se livrar de relações por interesse, o
que poderíamos relacionar à figura materna (já que a voz passou a ser feminina), o
seguinte possui sentido contrário, tendo proximidade com o pretendente “Seu
Babá”. Nele, a identidade vocal é de um monstro, o boneco Groco do teatro
Giramundo, manipulado por Ulisses Tavares, e esse investimento vocal reforça o
conteúdo do plano da letra na qual o enunciador do diálogo faz uma proposta por
interesse a Severina, ignorando seus sentimentos, acusando Pedro de ser um
monstro e, consciente do teor maléfico de sua fala, admitindo ser também um
monstro. Assim, o polissêmico termo “monstro” refere-se tanto a uma atribuição
ruim devido a atitudes interesseiras, como trata-se de uma intervocoverbalidade, na
qual a “voz de monstro” recai sobre os termos “monstrinho” e “monstro”, reforçada
também pelas risadas maléficas.
Dessa forma, percebe-se que a regravação complexifica as relações de
ordem materialista e sentimental entre os personagens, dando foco ao jogo de
interesses, causando, assim, um apagamento do duplo sentido que poderia haver
no refrão. Também, convém notar o destaque que ganha, na regravação, o
instrumento inusitado associado ao universo infantil, um frango de borracha,
trazendo aspectos lúdico e cômico. Além disso, o processo de recontextualização
também contribui para que a situação comunicativa ambígua da primeira versão
seja ocultada em detrimento de um sentido literal e mais amplo dos termos,
lembrando a preferência do posicionamento pela universalidade e não pelos
regionalismos, além de ser uma ação linguística esperada por um delocutor criança
que não conhece ainda a ambiguidade linguística, principalmente com conotação
sexual.

PROGRESSISTAS E ROMÂNTICOS
Percebemos que, nas relações afetivas, no posicionamento pop-rock para
crianças, há uma flutuação entre o amor de amigo (philia) e o amor de casal (eros).

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Tanto em termos de transição, como no caso da canção, já mencionada, “Mesmo


sem a gente” (PEQUENO CIDADÃO, 2016); como também em termos de oscilação,
caso da canção “Oi, hello” (PEQUENO CIDADÃO, 2012). Também convém destacar
o recorrente ethos aprazível, nas constantes saudações, e de conciliação, como
explicitado no trecho “Queria mesmo bem no fundo/ do meu coração/ que as
brigas fossem resolvidas/ com aperto de mão”. Além disso, observamos que a
canção possui um investimento plurilinguístico, aliado ao investimento vocal em
identidades infantis, bem diversificado ao mencionar diversas saudações, como em
“Eu digo oi até em japonês/ que é konichiwa” e “Eu digo oi até em francês/
Comment allez vous”.
Fazemos notar também as canções que abordam o amor de uma
perspectiva positiva de felicidade, como “Telefone” (PEQUENO CIDADÃO, 2016),
“Lindo lago do amor” (ADRIANA PARTIMPIM, 2012) e “Fico assim sem você’’ (2004).
Isso nos leva a perceber como o posicionamento, ao abordar a temática amorosa,
não apresenta o sentimento sob uma ótica maniqueísta, pois, ao passo que se canta
as possibilidades da crise amorosa, canta-se também a romantização atrelada à
felicidade; assim, os investimentos apontam para uma compreensão da integração
desses aspectos, e não para um antagonismo das ideias.

REFERÊNCIAS

Bibliografia

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literomusical brasileiro. Curitiba: Editora Appris, 2012.

FERREIRA, M. Pato Fu traz malícia sexual de hit de Genival Lacerda para álbum
infantil. G1, 2017. Disponível em:
<http://g1.globo.com/musica/blog/mauro-ferreira/post/pato-fu-traz-malicia-sexual-
de-hit-de-genival-lacerda-para-album-infantil.html>. Acesso em: 20 abr. 2019.

GONZALEZ, B. N. A. C. Posicionamentos discursivos na música popular brasileira


para crianças. Dissertação (Mestrado em Linguística), Centro de Humanidades,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014. Disponível em:

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<http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/8906>. Acesso em: 20 abr. 2019.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. Tradução Souza-e-Silva, C.


P.; ROCHA, D. São Paulo: Cortez, 2001.

______. Cenas da enunciação. Organizado por Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de
Souza-e-Silva, diversos tradutores. Curitiba: Criar Edições, 2006.

MATOS, J. W. V. Relacionamento amoroso em canções para crianças. In: Anais do V


CIAD – Colóquio Internacional de Análise do Discurso – UFSCar. São Carlos, 2018.
No prelo.

MENDES, A. F. F. O processo de retextualização na canção para crianças: uma


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Ceará, Programa de Pós-graduação em Lingüística, Fortaleza, 2017. Disponível em:
<http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/26748>. Acesso em: 20 abr. 2019.

MENDES, M. D. N. O duro aço da voz: investimento vocal, cenografia e ethos em


canções do Pessoal do Ceará. 2013. 339f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
do Ceará, Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-graduação em
Linguística, Fortaleza, 2013. Disponível em:
<http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/8236>. Acesso em: 20 abr. 2019.

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ADRIANA PARTIMPIM. Gatinha manhosa. Sony BMG / Sony Music Entertainment,


2009.

ADRIANA PARTIMPIM. Lindo lago do amor. Polysom, 2012.

PATO FU. I Saw You Saying (That You Say That You Saw). Rotomusic / Deck Disc,
2017.

PATO FU. Não se vá. Rotomusic / Deck Disc, 2017.

PATO FU. Pelo interfone. Independente, 2010.

PATO FU. Primavera. Independente, 2010.

PATO FU. Severina Xique-Xique. Rotomusic / Deck Disc, 2017.

Amor, Língua de Eros


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100

PEQUENO CIDADÃO. Mesmo sem a gente. MCD, 2016.

PEQUENO CIDADÃO. O Sol e a Lua. MCD, 2009.

PEQUENO CIDADÃO. Oi, hello. Radar Music, 2012.

PEQUENO CIDADÃO. Telefone. MCD, 2016.

Amor, Língua de Eros


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101

EROS REGE O DISCURSO OU O DISCURSO REGE EROS? A


ISOTOPIA DO DESEJO SEXUAL EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO
RAMOS
Gustavo Maciel de Oliveira
Universidade de São Paulo

Resumo: O presente trabalho visa depreender, a partir do arcabouço teórico-


metodológico da semiótica greimasiana, como uma isotopia do desejo sexual aparece
discursivizada no romance Angústia (2014[1936]), de Graciliano Ramos. Tal romance
é todo organizado em função do choque e da repetição dos temas do “amor” e do
“ódio”, o que se depreende da própria organização enunciativa da obra, toda em
forma de “abismos” — myse en abime (REIS; LOPES, 2007) —. Exploraremos, neste
trabalho, o lado “amor” dessa oposição, tomando também como “pano de fundo” de
nossa discussão uma problemática cara à semiótica desde 1990: a relação entre o
que se concebe como da ordem do sensível e o que concerne à estruturação
linguageira do discurso, que seria algo já de ordem inteligível.
Palavras-chave: Discurso; Eros; Intensidade; Romance Angústia.

INTRODUÇÃO
Chama atenção o fato de o romance Angústia, conduzido pelo narrador-
personagem Luís da Silva, ser marcado pela constante aparição de fortes desejos
sexuais que acometem este último. Esses desejos são direcionados principalmente à
figura de Marina, com quem Luís da Silva se relacionou amorosamente na trama e
que, segundo a narração deste, o traiu. Os desdobramentos amorosos — e,
portanto, passionais — da narrativa se passam principalmente pela narração do
episódio da traição, do qual se desdobra a consecução de um assassinato — no fim
do romance —, do personagem Julião Tavares, figura do rival amoroso. O choque
entre amor e ódio, portanto, estrutura a obra.
Neste texto, exploraremos com mais foco o lado amor dessa estruturação,
expresso nos desejos sexuais de Luís da Silva por Marina. Dentre os elementos
ligados ao amor eivado de desejo sexual de Luís da Silva, nos chama atenção o fato
de que o romance apresenta um forte apelo sensorial. A dimensão da
proprioceptividade, o que, em semiótica, se convencionou tratar como corpo,
aparece constantemente discursivizada na obra em análise. O corpo, portanto,

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constantemente alçado à manifestação discursiva, faz surgir essa instância das


“precondições do sentido”, pelo menos nos termos de Greimas e Fontanille (1993),
instância também chamada de tensividade fórica.
Tal escolha de temática para este artigo serve para frisarmos que a
semiótica greimasiana, nos últimos decênios, passou por uma reformulação que a
tornou mais “adequada” ao tratamento de elementos ligados à subjetividade no
discurso. Foi a partir desses novos achados teóricos que, ao fim e ao cabo, se deu
espaço maior para o tratamento de questões como a do desejo e do pathos, temas
que são também um tanto “recalcados” pelo pensamento ocidental em geral.
Entretanto, essa relação entre corpo e sentido 29 ainda desperta muitas
questões na semiótica e traz, obviamente, em seu bojo, até mesmo uma questão
filosófica: afinal, qual o estatuto da “sensação pura”? Se a sensação pura é da ordem
do puro sensível, com o perdão da certa redundância, então a percepção
manifestada no discurso inevitavelmente já está minimamente tornada inteligível.
Quanto a essa relação, que concerne à própria discussão concernente à interação
entre sensível e inteligível na linguagem, citemos Zilberberg:

O sentido é a resposta às perguntas? Ou para as subtaneidades das quais


dá testemunho da sensibilidade? Ou é o contrário: a sensibilidade é ela
mesma o conjunto de respostas possíveis às perguntas que o sentido, em
razão de suas transgressões, de suas próprias incertezas, dirige [ao sujeito
sensível]?30 (ZILBERBERG, 2016, p. 46-47).

O trocadilho, presente no título deste artigo, lida justamente com esse


ponto. Substituímos, ou melhor, tornamos equivalentes aqui o termo sensível e a

29 Fazemos uma alusão indireta aqui ao título do livro Corpo e sentido, de Jacques Fontanille, que
explorou de modo mais detalhado essas questões. Outra obra que dá tratamento central a essa,
digamos, dimensão encarnada do sentido é a tese de livre-docência de Discini (2015), depois
transformada em livro e intitulada Corpo e estilo.

30 Tradução de trecho em espanhol: “El sentido ?es la respuestas a las perguntas?, o ?a las
subitaneidades de las que da testemunio a la sensibilidade? O es a la inversa: la sensibilidade es ella
misma el conjunto des respuestas posibles a las perguntas que el sentido, en razon de suas
transgresiones, de sus proprias incertidumbres le dirige [al sujeto sensible]? (ZILBERBERG, 2016, p. 46-
47)”
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designação “Eros” 31, a remontar ao deus da mitologia grega, donde provém, por
exemplo, a raiz de termos como “erótico” em língua portuguesa. Nesse âmbito, o
discurso já seria da ordem do logos, desse modo, da ordem linguagem, mais
relacionado com o inteligível.
Diante de uma tal “dicotomia”, nos perguntamos: é Eros que rege o
discurso do romance Angústia, ou é o discurso que rege Eros em tal obra? O nosso
pensamento é que o discurso é sempre da ordem do depois, ou que o sensível é da
ordem do antes, melhor dizendo: o “puro” sensível só pode ser captado já tendo
minimamente passado por uma “inteligibilização” de ordem linguageira. Isto quer
dizer que, se Eros rege o discurso de Luís da Silva no romance em estudo, nós só
podemos captar esse reger catalicamente, já “discursivizado”, já estando o discurso,
portanto, a delimitar a “imagem” e as isotopias que se criam do sensível na obra
Angústia. Em suma, ainda que o sensível reja o inteligível, nós só podemos
depreendê-lo a partir de pressuposição. Isto demanda uma posição filosófica? Muito
possivelmente, mas é a partir do que consideramos ser uma limitação, ou seja, a
ausência de depreensão do puro sensível, que corroboramos este posicionamento.
Prossigamos para ver o porquê de a obra Angústia despertar essas questões.

HIPERESTESIA E MISE EN ABYME


Tendo feito essa justificação do título e da temática que nos chama
atenção, mostremos como esses elementos relativos ao sensível, a um desejo sexual,
aparecem discursivizados no romance Angústia. Se formos catando alguns trechos
em que Luís da Silva narra a aparição de mulheres ou de Marina no romance,
veremos o quão afetante são essas aparições, a revelarem um Luís da Silva
extremamente sensibilizado: “as mulheres tinham cheiros excessivos, e eu me sentia
impelido violentamente para elas” (RAMOS, 2014, p. 42, itálico nosso); “Deitei-me
cedo. Não pude dormir: os cabelos de fogo, os olhos e especialmente as pernas da
31 Eros é aproximável, portanto, aqui em nossa reflexão à foria, seja nos trabalhos de Zilberberg, seja
como em Fontanille e Greimas (1993). Para estes últimos, a foria só se manifesta no discurso após
uma esquizia inaugural entre euforia e disforia, por isso, em contrapartida, o discurso é visto aqui
como da ordem do inteligível.
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vizinha [Marina] começaram a bulir comigo” (RAMOS, 2014, p. 46, itálico e colchete
nossos).
O apelo olfativo e o apelo visual aqui estão em função da intensidade do
sentir, ou seja: quanto mais sensibilizado é o sujeito Luís da Silva, quanto mais
estimulado por um desejo sexual, ele sente o mundo mais afetante. Os estados do
mundo, portanto, a percepção das coisas se dão em função de um sujeito
extremamente perturbado emocionalmente. A isotopia amorosa, eivada de desejo
sexual, expressa, assim, o constante conflito interno do sujeito, oscilando em
diferentes rompantes de intensidade que o acometem constantemente. Nessa
configuração, Marina se apresenta como uma figurativização do objeto ausente, do
objeto pelo qual Luís da Silva sente atração. Vejamos outro trecho, em que
novamente aparece Marina, agora descrita:

Lá estavam novamente os quadris expostos. Para que aqueles panos?


gritei interiormente. Não era melhor que se descobrisse tudo? Coxas
descobertas, rabo descoberto.
Foi assim que vi Marina entre as pestanas meio cerradas, como Berta me
aparecia. As nádegas cresciam monstruosamente – e eu mal podia
respirar. Se d. Adélia e Vitória viessem ali, veriam aquela armada: Marina
despida, curvada para a frente, mostrando um traseiro enorme (RAMOS,
2014, p. 71-72).

As formas apresentam até mesmo uma dinamicidade, já que dizer “as


nádegas cresciam monstruosamente” é remeter a um processo, ou seja, o uso do
verbo “crescer” no pretérito imperfeito marca a duração e o movimento ascendente
do crescimento da nádega. Obviamente, isso está na percepção de Luís da Silva. O
excesso passional, aqui, portanto, se erige em uma própria percepção volátil do
mundo regida pelo desejo sexual e pelo fato de o sujeito estar disjunto dos objetos
que lhe são eufóricos.
A esses elementos de ordem hiperestésica relativos ao amor, dirigido
principalmente a Marina, ainda podemos levantar outro dado importante, sobre o
que estamos dizendo: necessário notar que, referente ao modo como a narrativa se
organiza, além de ser revelado um modo “debreado” de conduzir o discurso, modo

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este que “briga” com a “força de atração” do passado (memória) que quer arrastar o
sujeito para a infância (embreagem), demonstra-se também um sujeito que vai
organizando a narrativa como que ao modo de uma mania32.
Esses pontos fazem entender por que determinadas histórias entram
constantemente dentro da estrutura da obra, como a de Chico Cobra, homem que,
após cometer um homicídio, se esconde no mato, se rodeia de cobras, que, pelo
medo que causam, impedem sua captura; ou a do primeiro assassinato que Luís da
Silva presenciou, de um homem chamado Fabrício, compadre e amigo de seu pai;
ou a história constantemente contada por seu Ramalho, em que um pai, tentando
na verdade socorrer sua filha, é visto equivocadamente como alguém que estava a
estuprá-la; ou o capítulo 32, em que aparece a figura de seu Ivo, a dar uma corda a
Luís da Silva, figura que expressa o instrumento e a ideia fixa do assassinato.
Como se pode ver, esses elementos nos remontam aos temas relativos a
morte e desejo, que se relacionam aos temas do amor e do ódio. É pela relação
entre esses pontos que vemos também outras pequenas narrativas se inserirem “de
repente” na narração, como o episódio com Berta (capítulo 8), ou a figura de
Antônia, criada de d. Rosália (capítulo 12, p. 65), ou a figura da datilógrafa (capítulo
36), até mesmo capítulos todos voltados para episódios de conteúdo sexual, como a
possível relação de incesto entre um homem alcunhado de Lobisomem, no capítulo
14. O capítulo 22 do romance é exemplar quanto a esses pontos, uma vez que o
sujeito reserva-o para narrar os momentos em que escuta os barulhos das relações
sexuais dos vizinhos, d. Rosália e seu marido, e ao mesmo tempo mostra uma
vontade de matar este último.
Todas essas narrativas mencionadas, bem como o trecho em que Luís da
Silva faz combinações com o nome de Marina, ainda no início do romance, estão
relacionadas às obsessões33 do narrador, que a todo o tempo “martela” as mesmas
ideias (desejo sexual e desejo de matar), o que possui também uma dimensão de

32 Estaríamos aqui numa instância enunciativa ligada à figura do enunciador do texto, que “escolhe”
distribuir esses elementos no decorrer da obra, escolhas que estão no mesmo âmbito relacionado a
não dividir o romance Angústia em capítulos, por exemplo.
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prolepse no romance, em geral. Desse modo, esses dados elencados revelam, nos
mais variados pontos da narrativa, a menção constante a conteúdos centrais dela, o
que nos põe em face, portanto, a uma narrativa em abismo, ou, para trazer a
expressão francesa utilizada para designar tal fenômeno, uma mise en abyme:

A expressão francesa que designa este procedimento de representação


narrativa anuncia expressivamente aquilo que nele se concretiza: numa
narrativa (ou mais genericamente, numa obra literária), observa-se a
própria narrativa ou um dos seus aspectos significativos, como se no
discurso se projetasse em profundidade uma representação reduzida,
ligeiramente alterada ou figurada da história em curso ou do seu
desfecho. (REIS; LOPES, 2007, p. 233)

A nosso ver, essa narração em abismos está relacionada às ideias fixas


(novamente mencionamos: o desejo sexual, que se expressa no amor por Marina, e
o ódio, por Julião Tavares), e a um movimento de triagem e figurativização
excessivas, que está relacionado também com os “estados de alma” do sujeito. Do
ponto de vista modal, teríamos expresso aqui justamente a dimensão desejante do
sujeito, o /querer-ser/, que conflita “agonicamente”, pois, com a extensidade
cognitiva, com o saber desiludido. Interessante também notar que a própria maneira
em que se dá a condução da narrativa traz em seu bojo e minimaliza uma ideia de
“parafuso”, metáfora utilizada pelo narrador na obra para tratar de suas obsessões.
Neste ponto, é interessante ver o que diz Carvalho (1983), que apresenta uma
percepção semelhante à nossa:

Em consequência, a narrativa circula sempre em torno do mesmo motivo,


como parafuso, metáfora esta textualizada pelo autor e que define os
próprios processos mentais do protagonista. A ação pouco avança. Ao
contrário, se enovela sobre si mesma e multiplica-se em variantes, num
sistema complexo de repetição. O sujeito, que no ato de escritura procura
reconstituir o processo criminoso, relata episódios de morte e destruição
que presenciou no passado, outros que ouviu contar e até aqueles que
sua imaginação exacerbada criou. Assim retorcendo-se, a frase-parafuso

33 Fazer uma menção a um estudo de Freud parece ser importante aqui, já que o psicanalista
austríaco, dentre as neuroses sobre que se debruçou, escreveu também sobre a chamada “neurose
obsessivo-compulsiva” (FREUD, 2013). Esses elementos que se reiteram na análise, junto a outros que
não convém explorar neste artigo, constroem a imagem de um “neurótico” desse teor. Meneses
(1991) afirma de modo claro em seu trabalho que Luís da Silva é um neurótico obsessivo.
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perfura incessantemente memória e tempo, produzindo um discurso


fragmentado e descontínuo, “espécie de realidade fantasmal, colorida
pela disposição mórbida do narrador”, conforme nos fala Antonio
Candido (CARVALHO, 1983, p. 23).

Como se pode ver, a própria forma de conduzir a narração metaforiza os


estados passionais intensos do narrador. Diante disso, e tentando extrair ainda
outras consequências desses dados para a nossa análise em geral, há ainda um
ponto relevante a se pensar aqui, e, para tanto, convocamos uma frase de Roland
Barthes, na primeira seção de seu célebre Fragmentos de um discurso amoroso,
intitulada “Eu me abismo, eu sucumbo”: “Abismar-se. Onda de aniquilamento que
sobrevém ao sujeito amoroso por desespero ou plenitude” (BARTHES, 2003, p. 3,
itálico nosso). Não poderíamos deixar de mencionar esse “aforismo” do semiólogo
francês, já que ele traz em si a “imagem” do abismo relacionada à própria
aniquilação interna do sujeito.
É esse desespero que acomete a Luís da Silva, posto que seus sofrimentos
são também os de um sujeito amoroso. Isto podemos ver até mesmo em um trecho
como o que segue: “O amor para mim sempre fora uma coisa dolorosa, complicada
e incompleta” (RAMOS, 2014, p. 125). A disforia na lida com o amor se transforma na
leitura de toda uma vida do sujeito, ou seja, ele sempre esteve marcado por
desilusões amorosas.
É esta trajetória disfórica que, como já dito, culminaria na traição de Marina,
e que traz em seu bojo o direcionar-se de Luís da Silva ao abismo, ou seja: em
termos metafóricos, o sujeito “vai para o buraco” e, acrescentando, em um ir cada
vez mais, num processo exacerbado e cada vez mais “maníaco”, em suma, um mais
mais34 excessivo, saturante, aniquilante. Afirmar esse “cada vez mais” é, de certo

34 Estes termos fazem parte da gramática tensiva erigida por Zilberberg (2011). Explicando em linhas
gerais, o que nos faz incorrer me uma simplificação demasiada da exposição da teoria, os “mais”,
bem como os “menos”, se configuram como células tensivas que servem para se analisar uma
oscilação de intensidade no discurso. No caso do aumento de intensidade, temos um acréscimo de
mais, e num caso de uma diminuição, tem-se a marcação de que a intensidade sofreu um
decréscimo, o que se marca pelo menos. No discurso do romance de Graciliano Ramos em estudo,
essas células tensivas encontram uma extensa aplicabilidade, uma vez que o romance está
constantemente marcando por aumentos e diminuições de intensidades ligados aos “estados de
alma” e aos desejos sexuais e de morte de Luís da Silva.
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modo, demarcar também que pode estar sugerido que a estreiteza do buraco
“abismal” (obsessão e angústia desesperantes) aumenta progressivamente conforme
o decorrer da narração. O sujeito vai se direcionando, na narrativa, a uma constante
e intensa entrada compulsiva nas sensações de amor e ódio, que são expressos na
duplicidade de seus desejos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Passar pela leitura de uma obra como o romance Angústia é passar por
aquilo que se configura como uma profunda entrada nos meandros do sofrimento
humano. É essa profunda entrada que faz com que tal peça literária seja toda
concebida a partir de fortes oscilações de intensidade, bem como pela repetição
excessiva do rompante dos afetos.
Podemos dizer, por sinal, que foram romances como este de Graciliano
Ramos que fizeram a semiótica greimasiana buscar novos meios teóricos para tratar
de questões como a manifestação das paixões no discurso. Foram obras literárias
deste tipo, ou artísticas, de um modo geral, que fizeram a semiótica, principalmente
a partir do advento de sua vertente tensiva, encabeçada principalmente por Claude
Zilberberg, também se questionar sobre as relações entre o sensível e o inteligível
nos discursos, e buscar caminhos que lidem com essas questões, a fim de aprimorar
seu ferramental teórico, esboçado e erigido desde a década de 1960.

REFERÊNCIAS

BARTHES, R. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. de Márcia Valéria Martinez


de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

CARVALHO, L. H. A Ponta do Novelo: Uma interpretação de Angústia, de Graciliano


Ramos. São Paulo: Ática, 1983.

DISCINI, N. Corpo e estilo. São Paulo: Contexto, 2015.

FONTANILLE, J. Corpo e sentido. Trad. de Fernanda Massi e Adail Sobral. Londrina:


Eduel, 2017.

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FONTANILLE, J; ZILBERBERG, C. Tensão e Significação. Trad. de Ivã Carlos Lopes,


Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Discurso Editorial: Humanitas/FFLCH/USP,
2001.

FREUD, S. Obras completas, volume 9: observações sobre um caso de neurose


obsessiva [“O homem dos ratos”], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci
e outros textos (1909-1910). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2013.

GREIMAS, A.J; FONTANILLE, J. Semiótica das Paixões: dos estados de coisa aos
estados de alma. São Paulo: Ática, 1993.

MENESES, Adélia Bezerra de. A angústia em Angústia de Graciliano Ramos. Percurso


(São Paulo), v. 5/6, 1991, p. 63-76.

OLIVEIRA, G. M. de. O percurso semiótico do desespero no romance Angústia, de


Graciliano Ramos. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Linguística). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019. (no prelo)

RAMOS, G. Angústia: (75 anos). Rio de Janeiro: Record, 2011.

_________. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 2014.

REIS, C; LOPES, A. C. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 2007.

ZILBERBERG, C. Elementos de Semiótica Tensiva. Trad. de Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit
e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.

_____________. La structura tensiva. Trad. de Desiderio Blanco. Lima: Fondo Editorial,


2016.

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O AMOR COMO UMA POSSÍVEL VIA PARA A SUPERAÇÃO DO


EGOÍSMO HUMANO: UM DIÁLOGO ENTRE FILOSOFIA,
SOCIOLOGIA E LITERATURA
Marcelo Freitas Sales
Universidade Estadual do Ceará

Luan Corrêa da Silva


Universidade Estadual do Ceará

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo abordar as questões do amor e do


egoísmo humano, propondo um diálogo entre diferentes linguagens: Filosofia,
literatura e sociologia. Em um primeiro momento faremos uma introdução, com base
nas ideias do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017), buscando compreender como
as relações humanas são vivenciadas na Contemporaneidade. Depois dessa
problematização apresentaremos algumas teses do filósofo alemão Arthur
Schopenhauer (1788-1860) sobre a compaixão como uma solução possível para o
problema levantado e não totalmente solucionado por Bauman. Para auxiliar esse
diálogo traremos também um autor da Modernidade que se destacou no âmbito da
literatura e poesia, Victor Hugo (1802 – 1885), escritor e poeta francês, cujas obras nos
ajudarão com exemplos de como a compaixão está presente no dia a dia.
Palavras-chaves: Compaixão; Egoísmo; Schopenhauer; Bauman.

A MODERNIDADE E O AMOR LÍQUIDO: UMA VISÃO SOCIOLÓGICA


Neste primeiro momento, buscamos compreender um pouco as
relações humanas na modernidade e como o sistema econômico capitalista as
influencia. Bauman nos mostra como esses vínculos sofreram influências do
capitalismo durante o seu desenvolvimento. Segundo ele, o capitalismo, para o seu
melhor desenvolvimento, necessitou fragilizar e separar as relações pessoais para
conseguir se afirmar e se desenvolver, pois precisava derreter os laços que ligavam
as pessoas às suas terras, às suas comunidades e aos ciclos de amizades.
A modernidade líquida abre um novo caminho na forma de se pensar o
tempo e o espaço, para garantir a fluidez e a mobilidade de que o processo da
modernidade necessitara, pois era preciso encurtar o tempo, não mais pensar a
longo prazo, mas sim em curtos momentos de tempos, momentos instantâneos.
Nessa fase da modernidade, o tempo precisou ser derretido ou diminuído, de modo
que agora não temos que esperar. Também ocorreu o rompimento com o sagrado,

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com a profanação daquilo que outrora era sagrado, a cisão com as tradições, com
os costumes, com a lealdade, com o passado, e, sobretudo, com qualquer
obrigação que prendesse os pés e as mãos, qualquer compromisso que impedisse o
livre movimentar-se; tornando, assim, mais fácil o processo de exploração dessas
pessoas. A perda da identidade passa a ser parte do processo do capital.
Romper com o passado foi uma quebra com a tradição, pois, para a criação
de uma nova ordem fluida, era necessário desvincular as pessoas de suas tradições
e do mundo que as deixavam se sentir seguras, presas, ou ligadas ao passado. O
novo sistema econômico não desejava essas situações, pois, quanto mais livre as
pessoas se sentissem, melhor seria, e quanto menos fossem capazes de resolver
suas necessidades sozinhas, mais lucrativo seria. Era conveniente, então, limpar os
resíduos deixados pelo derretimento do sagrado e agora esse passado misturado
com o sagrado não passava de entulho que era preciso descartar.

Para poder construir seriamente uma nova ordem (verdadeiramente


sólida!) era necessário primeiro livrar-se do entulho com que a velha
ordem sobrecarregava os construtores. “Derreter os sólidos” significava,
antes e acima de tudo, eliminar as obrigações “irrelevantes” que impediam
a via do cálculo racional dos efeitos. (BAUMAN, 2001, p. 10).

Podemos considerar o amor como um dos sólidos de antigamente, mas


então como pensá-lo dentro da modernidade líquida? O amor, assim como todos
os outros sólidos, é pesado, e demanda espaço, esforço e tempo. Diante da
situação de constante mudança, não é mais possível, ou não mais oportuno,
carregar esse peso. Precisamos da fluidez, uma vez que também o tempo passa a
ter importância.
Bauman segue fazendo analogias com situações do cotidiano e uma das
realidades que ele compara é a do amor nessa modernidade líquida como uma
bolsa de valores, usando o mesmo vocabulário do sistema capitalista. Se
compreendemos que cada pessoa é um universo, tal como relata Bauman, então
não podemos conhecer o outro por inteiro e, desse modo, amar seria sempre
arriscar-se. Arriscar-se em um mundo desconhecido é análogo a um investimento

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de mercado:

Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma transação


comercial não é a cura para a insônia. Investir no relacionamento é
inseguro e tende a continuar sendo, mesmo que você deseje o contrário:
é uma dor de cabeça, não um remédio. Na medida em que os
relacionamentos são vistos como investimentos, como garantias de
segurança e solução de seus problemas, eles parecem um jogo de cara
ou coroa (BAUMAN, 2004, p. 30-31).

Quando o capitalismo fragilizou as relações interpessoais, fertilizou o


egoísmo, dando-lhe diversos substratos, vendendo fetiches, e provocando o
isolamento. Dentro desse isolamento, criou-se medo da solidão e o medo de estar
consigo mesmo, ao mesmo tempo o receio de se relacionar com outras pessoas. O
capitalismo provocou uma série de doenças, depressões, relações líquidas e um
esquecimento da pessoa, criando, assim, uma geração doente, egoísta e presa
dentro das caixas de sociabilidade.

A DIMENSÃO DO EGOÍSMO EM SCHOPENHAUER


O principal conceito do filósofo alemão Arthur Schopenhauer é o de
vontade. A vontade é um ímpeto metafísico sem finalidade e inteligência, ela não é
uma forma de concepção de Deus, ou divindade, e, além do mais, ela é irracional: “a
vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento, é apenas
um ímpeto cego e irresistível” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 317). A vontade é o que há
de livre, “a vontade em si é absolutamente livre e determinada por inteiro a si
mesma, não havendo lei alguma para ela” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 330).
Schopenhauer compreende a vontade como o movente de toda a vida, e
tudo o que existe é aparência dessa vontade. Onde há vontade, diz Schopenhauer,
há vontade de vida, pois “onde existir vontade existirá vida, mundo”
(SCHOPENHAUER, 2015, p. 318). Essa vontade busca se afirmar enquanto vida de
todas as maneiras, do menor grau, nos minerais e nas plantas, até o grau mais
elevado que é o animal humano.
Para compreendermos os fenômenos e a nossa realidade, precisamos do

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principium individuationis. O principium individuationis, outro conceito trabalhado


por Schopenhauer e em parte tomado dos escolásticos, é o princípio que rege a
experiência espaço-temporal da realidade empírica. Através do principium
individuationis nos é possibilitado conhecer as coisas enquanto fenômenos. Assim,
através do espaço, tempo e causalidade, os fenômenos tornam-se compreensíveis.
Porém, nunca conseguimos compreender a coisa em si (vontade) enquanto tal.
Thomas Mann define o principium individuationis como “formas em que
necessariamente se elabora todo o nosso conhecimento. Chamam-se tempo,
espaço, causalidade. Mas não aprendem o mundo tal como ele pode ser em si e
por si, independentemente de nosso esforço por percebê-lo” (MANN, 1960, p. 17).
Assim, compreendemos o intelecto humano como uma forma de expressão
individual do egoísmo, ele que diferencia os objetos na experiência, os motivos e as
ações dos seres enquanto indivíduos. Ou seja, quanto maior o grau de manifestação
da vontade, maior o grau de sofrimento. Por causa do egoísmo, os indivíduos
tendem ao sofrimento, pois se reconhecem como ameaças, uns aos outros. De
modo que podemos afirmar que essa situação não é boa, pelo contrário, isso eleva
o grau de egoísmo que os seres humanos manifestam no mundo.
Para Schopenhauer, o homem é um ser miserável, e “toda vida é
sofrimento” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 360). A vida humana é uma luta constante
com a certeza da derrota, “a vida da maioria das pessoas é tão somente uma luta
constante por essa existência mesma, com a certeza de ao fim serem derrotados. O
que as faz, por tanto tempo, travar essa luta árdua não é tanto amor à vida, mas sim
temor à morte” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 362). Ainda nessa perspectiva, a vida
humana pode ser resumida em dor e tédio.

COMPAIXÃO: UM DIÁLOGO COM A LITERATURA


Conforme apresentamos no momento anterior, somos movidos pela
vontade e, desse modo, essa vontade é refletida em nossas ações e escolhas. Para
Schopenhauer, podemos classificar o nosso agir de três modos, três motivações que

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guiam nossas ações, estas sempre ligadas à nossa vontade: “os motivos que em
geral podem mover os homens podem ser postos sob três classes superiores e bem
gerais 1) o bem próprio; 2) o sofrimento alheio; 3) o bem alheio” (SCHOPENHAUER,
2001, p. 160-161). Nossas ações estão pautadas nessas três motivações.
O primeiro modo de agir é, segundo o filósofo, o mais comum, pois visa o
nosso próprio bem-estar, mesmo quando ele repercute de maneira positiva em
outras pessoas, pois esse agir bem em alguma medida recai sobre mim e me
beneficia. Essa primeira motivação consiste no egoísmo. De um ponto de vista da
metafísica, as ações egoístas ainda estão cobertas pelo véu de Maya 35, e elas não
permitem que se enxergue o outro numa totalidade; cada um continua preso em
sua individualidade.
O segundo modo de agir, visando o sofrimento alheio, às vezes pode estar
ligado ao primeiro, mas indica ações com o objetivo de prejudicar, humilhar ou até
mesmo destruir outra pessoa, tornando o seu sofrimento mais visível e mais
prazeroso para o agente. Nesses casos, a motivação que está em jogo é a da
maldade. As ações que se baseiam na maldade são ações cruéis e perversas,
expressão da desumanidade característica da humanidade, capaz de avançar para
outras espécies de vida, na crueldade com os animais, por exemplo.
A terceira forma de agir visa o bem-estar alheio; trata-se da compaixão, a
única motivação genuinamente moral. Essa ação visa unicamente o bem alheio, sem
esperar recompensa neste mundo ou no próximo. Isso quer dizer que a compaixão
rompe, mesmo que por um breve momento, o véu das ilusões e das
individualidades e faz reconhecer o outro como si mesmo e sofrer com ele. As ações
de quem age compassivamente visam o alívio do sofrimento alheio, sem importar se
isso provoca bem-estar para si mesmo. A compaixão, segundo Schopenhauer, não
é ilusória ou fantasiosa, no processo do transporte da dor do outro para si mesmo,
mas consiste em um reconhecimento imediato, que visa amenizar o sofrimento
alheio.

35 Maya é a deusa da ilusão na mitologia Hindu.


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O amor puro (αγάπη, caritas), em conformidade com a sua natureza, é


compaixão; e o sofrimento que ele alivia (ao qual pertence todo desejo
insatisfeito) tanto pode ser grande quanto pequeno [...]. Todo amor puro
e verdadeiro é compaixão, e todo amor que não é compaixão [Mitleid] é
amor-próprio [Selbstsucht]. Amor-próprio é ἔρως, compaixão é αγάπη.
(SCHOPENHAUER, 2015, p. 436).

Votando-nos para a literatura e tomando presentes trechos das obras de


Victor Hugo, conseguimos exemplificar o pensamento de Schopenhauer sobre a
compaixão. O romance de Victor Hugo, que se insere muito bem nesse contexto, é
Os Miseráveis. Nele, podemos reconhecer algumas formas de ações morais e
antimorais. Os Miseráveis está dentro de um contexto de grandes mudanças sociais,
inserido no período das migrações do campo para a cidade. Fazendo uma
referência à primeira parte do presente artigo, poderíamos dizer que ele se passa no
período da primeira fase da modernidade líquida, no início do capitalismo e dos
derretimentos dos sólidos. Trata-se do contexto em que as pessoas têm de
abandonar aquilo que lhes é seguro e ir para a cidade se arriscarem num mundo
novo e com novas perspectivas, culminando em uma nova forma de as pessoas se
relacionarem. Essa migração contribui para uma situação em que a miséria se
espalha com bastante intensidade. A obra de Victor Hugo traz à tona esse contexto
de miséria e mostra como essa situação afeta a vida das pessoas nesse momento de
transformações históricas.
Observemos a seguinte cena do livro de Victor Hugo: perto do amanhecer,
Jean Valjean36 rouba os talheres de prata da casa do Bispo; essa atitude terá
consequências para toda a sua vida. Durante o momento da fuga, ele é preso por
uma guarnição que encontra os pertences do Bispo e os leva até a casa do
Monsenhor Myriel. Ao chegar lá, o Bispo surpreende a todos ao afirmar ter dado os

36 Jean Valjean é o personagem principal de Os Miseráveis. Ao roubar um pão, ele é condenado a


cinco anos de prisão nas galés. Durante o comprimento de sua pena, Jean Valjean tenta fugir
algumas vezes, o que eleva sua pena em 19 anos. Já liberto, ele recebe documento amarelo, o que
indica um alto grau de periculosidade. Sendo assim, ele deve apresentar-se, sempre que chega
numa cidade, a uma chefatura de polícia, o que causa inúmeros boatos, de modo que ele não
consegue hospedagem nas hospedarias. Ele é apenas recebido na casa de Dom Myriel, o bispo de
Digne. 

Amor, Língua de Eros


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talheres de prata para Jean Valjean, livrando-o de ser novamente preso. Depois
dessa atitude, o Bispo ainda dá a ele os dois castiçais e o restante da prata que
guardava. Quando o Bispo se aproxima de Jean para entregar os objetos, ele fala as
seguintes palavras:

– Não esqueça jamais de que o senhor me prometeu usar esse dinheiro


para tornar-se um homem de bem. Jean Valjean, que não se lembrava em
absoluto de ter prometido coisa alguma, ficou sem ação. O bispo
acentuara as palavras com ênfase e continuou com solenidade: – Jean
Valjean, meu irmão, o senhor não pertence mais ao mal, mas ao bem.
Resgatei sua alma; liberto-a dos pensamentos sinistros e do espírito da
perdição, e entrego a Deus. (HUGO, 2017, p. 170).

O cenário de miséria é um ambiente propício para que a compaixão


floresça, pois, segundo Schopenhauer, nos colocamos no lugar do outro no
momento de dor. Schopenhauer aceita parte do pensamento de Jean-Jacques
Rousseau, citado em Sobre o fundamento da moral: “não é próprio do coração
humano pôr-se no lugar de pessoas que são mais felizes que nós, mas somente
daquelas que são dignas de pena” (ROUSSEAU apud SCHOPENHAUER, 2001, p.
138). Vemos isso na seguinte passagem de Os Miseráveis, na qual um dos
personagens tem uma atitude compassiva com o outro.

– Nunca devemos ter medo de ladrões ou assassinos. São perigos


externos e os menores que existem. Temamos a nós mesmos. Os
preconceitos é que são os ladrões; os vícios é que são os assassinos. Os
grandes perigos estão dentro de nós. Que importância tem aqueles que
ameaça a nossa vida ou põe em perigo a nossa fortuna? Preocupemo-nos
com o que põe em perigo nossa alma. (HUGO, 2017, p. 69).

Para Schopenhauer, a visão da felicidade alheia não desperta compaixão,


não nos colocamos no lugar daqueles que são felizes, pelo contrário, ela chega a
despertar ligeiramente a inveja: “a visão daquele que é feliz e sente prazer pode até
mesmo excitar muito ligeiramente nossa inveja, já que existe em todo homem a
disposição para ela e já que ela encontrou seu lugar de destaque entre as potências
antimorais” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 139).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Amor, Língua de Eros
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117

Podemos fundamentar a sociedade descrita por Bauman a partir da


concepção egoísta desenvolvida por Schopenhauer, como vimos no segundo
momento deste trabalho. O egoísmo visa um meio da autossatisfação e não
reconhece o outro, de modo que entre o eu e o restante do mundo existe um
grande abismo. Aqui, podemos retomar também as três motivações humanas
classificas por Schopenhauer; no egoísmo, as pessoas visam o bem próprio, mesmo
que, ao buscar esse bem próprio, a pessoa aja de forma bondosa com os outros. Na
segunda forma, a da maldade, estão as ações puramente maldosas, que têm por
objetivo unicamente o sofrimento do outro, provocando a humilhação e a dor
alheias.
Em relação à compaixão – e aqui a apresentamos como uma possível
superação das atitudes anteriores –, ela é, segundo Schopenhauer, “natural e
indestrutível, inata em todo homem, que foi dada como única fonte de ações não
egoístas, às quais atribui-se exclusivamente valor moral” (SCHOPENHAUER, 2001, p.
210). Assim, mesmo estando numa sociedade presa na dimensão egoísta, a
compaixão representa uma via de saída. Para apresentar a compaixão como uma
saída para a miséria humana, é preciso apresentar o seu fundamento metafísico, tal
como faz Schopenhauer na seguinte passagem:

Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser


vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência. Este
conhecimento, para o qual, em sânscrito, a expressão corrente é “tat-
tvam-asi”, que quer dizer, “isto é tu”, é aquilo que irrompe como
compaixão, sobre a qual repousa toda a virtude genuína, quer dizer,
altruísta, e cuja expressão real é toda ação boa (SCHOPENHAUER, 2001, p.
219).

É possível ver essas ações que rompem o véu de Maya e levam as pessoas
a agirem de forma compassiva no dia a dia. Vemos pessoas que, mesmo vivendo
em um mundo líquido, de relações fluidas, ajudam e arriscam suas vidas para ajudar
o próximo, por razões que, como Schopenhauer diria, não são racionais. Assim,
mesmo com a nova forma de se relacionar na modernidade, a compaixão é capaz
de romper o véu de Maya, e consegue, mesmo em pequenas ações, se revelar;

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consegue fazer com que as pessoas se enxerguem não como expressões individuais,
mas como uma unidade, por um curto momento de tempo, tal como Schopenhauer
identifica na sua época.
A compaixão é algo que vai além do nosso entendimento. Arriscamos
nossa vida para salvar um estranho, sentimos suas dores em um momento de
necessidade, não buscamos compreender o porquê dessa atitude e nem nos
questionamos, apenas agimos querendo evitar a dor do outro salvando-lhe a vida.
A compaixão talvez seja a expressão máxima da nossa humanidade, quando
encontramos uma abertura no véu de Maya e conseguimos contemplar a nossa
existência como ela realmente é: um mundo de dores e marcado pelo sofrimento.
Quando reconheço o outro como um eu, um organismo igualmente ao meu,
também reconheço as suas dores e tento evitá-las. Assim, a compaixão é a
expressão máxima da superação do egoísmo e funciona como um remédio, ainda
que paliativo, para o diagnóstico sociológico de Bauman.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

MANN, Thomas. O pensamento Vivo de Schopenhauer: apresentado por Thomas


Mann. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1960.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação: tomo I.


2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o Fundamento da Moral. 2. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

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O AMOR VENCE A AMARGURA


Cássia Alves da Silva
Instituto Federal do Ceará

Mary Nascimento da Silva Leitão


Universidade Estadual do Ceará

INTRODUÇÃO
O poema “Nossas amarguras” faz parte da coletânea de poemas inserida na
obra Memória corporal, de Roberto Pontes. A obra foi publicada em 1982 e aborda
as memórias do corpo movido pelo amor e pelo erotismo. O texto em análise
descreve o sentimento do eu poético após o encontro amoroso. Observa-se um
sujeito repleto de amor e que enxerga o corpo amado como um jardim brotado e
florido depois da loucura e do desejo realizado. Consciente da positividade desse
momento, o eu poético chama o amor mais uma vez ainda, a fim de que esse
sentimento, vivenciado através do encontro dos corpos, seja como um mel a
dissipar toda a amargura outrora sentida.
Ciente da crise, uma crise no amor, na atualidade, parte-se de uma breve
definição desse sentimento nos dias de hoje para, em seguida, entender a crise que
o afeta. Assim, analisa-se o eu e o outro como componentes necessários para a
existência do amor e compreende-se que há entre eles um distanciamento que
provoca a angústia, a depressão, a amargura. As três colaboram para a inviabilidade
do amor, portanto precisa-se compreender cada uma, a fim de saber estancar tais
sentimentos.
O processo de superação da crise do amor e, consequentemente, do seu
impedimento é descrito de forma detalhada no poema. Nele, o eu poético mostra
como o encontro com o outro através do amor dissipa a amargura. Para isso, o eu
se utiliza do elemento erótico como uma forma de cultuar o objeto amado e
encontrar não a si, mas aquele que é desejado de fato. Com base nisso, observa-se
no poema a concretização do amor, a superação da crise e a consciência de que é
preciso ter o amor mais uma vez ainda para não voltar à crise.

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A CRISE DO AMOR
De acordo com Byung-Chul Han, devido à amplitude da liberdade de
escolha, das mais variadas alternativas e ainda da “coerção de otimização”, “nos
últimos tempos tem-se propalado o fim do amor” (HAN, 2017, p. 07). Ocorre ainda
o esfriar da paixão como consequência do ato de racionalizar o amor e da expansão
dos meios tecnológicos de escolha. Contudo, para Han, o que mais profundamente
faz o amor entrar em crise é a “erosão do Outro” (Ibid., p. 07) que sufoca a
existência do amor.
Nasce, assim, um indivíduo cada vez mais narcisista que faz o outro
desaparecer. A existência do outro indivíduo serve apenas para confirmar a
existência do eu. Este busca enxergar-se naquele que é distinto, não busca algo
diferente, busca apenas a si. Para Han, isso anula a experiência erótica, resultante da
prática amorosa, visto que esta “pressupõe assimetria e exterioridade do outro”
(Ibid., p. 08). Para melhor entender a necessidade de reparar bem no diferente para
viver plenamente o erotismo, recorre-se a George Bataille. Para este autor, a prática
sexual, envolvida pelo erotismo, contribui para o crescimento do indivíduo, mas não
o crescimento pessoal e sim o impessoal:

Se o crescimento acontece em proveito de um ser ou de um todo que


nos ultrapassa, não se trata mais de um crescimento, mas de uma doação.
Para aquele que a faz, a doação é a perda do seu ter. Aquele que dá
reencontra-se naquilo que dá, mas primeiramente ele deve dar;
primeiramente, de forma mais ou menos total, é preciso que ele renuncie
àquilo que, para a unidade que o recebe, significa crescimento (BATAILLE,
1987, p. 63).

Como se observa, a concretização do amor, por meio do ato sexual


envolvido pelo elemento erótico, dá-se a partir da doação de si para outro. Ou seja,
busca-se o outro e não a si, quer-se a realização desse ser que é distinto do eu. É o
bem-estar deste que faz com o sujeito se realize enquanto ser que ama e enquanto
colaborador da felicidade alheia. E isso contribui para sua própria felicidade. Como
salienta Bataille (1987), a renúncia do eu é o crescimento do outro.

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121

Quando o indivíduo busca apenas a si e vê o outro como um espelho, ocorre


um quebra de expectativa, pois, nesse caso, o diferente representa negatividade e “a
cultura atual da comparação não admite a negatividade do atopos. Estamos
constantemente comparando tudo com tudo, e com isso nivelamos tudo ao igual,
porque perdemos de vista (…) a experiência da atopia do outro” (HAN, 2017, p. 09).
Assim, ao buscar um análogo e não o encontrar, o indivíduo se frustra, enche-se de
si e, consequentemente, é conduzido à depressão.
Para Han esse é um mal-estar próprio do indivíduo narcísico e:

“O que leva à depressão é uma relação consigo mesmo exageradamente


sobrecarregada e pautada num controle exagerado e doentio. O sujeito
depressivo narcisista está esgotado e fatigado de si mesmo. Não tem
mundo e é abandonado pelo outro” (HAN, 2017, p. 11).

Esse estado depressivo e de esgotamento do eu para consigo gera angústia


e amargura. Esta, de acordo com seu sentido figurado, representa o padecimento
moral, a aflição e a tristeza. Enquanto a angústia é um estado de ansiedade,
inquietude, sofrimento e tormento (HOUAISS, 2001). Esses estados de espírito se
contrapõem ao amor, pois este retira o indivíduo de si mesmo e o direciona para o
outro, enquanto a depressão é o ato de inundar-se de si.
Por isso, o indivíduo necessita vivenciar a experiência amorosa, pois apenas
dessa forma poderá sair do seu inferno narcisista. É nesse contexto que surge e se
amplia a crise do amor na atualidade. Se não há sujeitos que busquem olhar o
diferente e aceitá-lo como tal, o eros se retrai e cede o espaço para o sujeito
encher-se, ao mesmo tempo em que se enfada de si mesmo.

O EU E OUTRO: DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES


De acordo com o Dicionário Houaiss de língua portuguesa, o “eu” diz respeito
à “individualidade da pessoa humana; a forma assumida por uma personalidade
num dado momento [e, por fim], tendência de um indivíduo a não levar em
consideração senão a si mesmo; egocentrismo; egoísmo, narcisismo” (HOUAISS, on-
line, 2001). O primeiro significado remete à ideia de identidade, “como o caráter do

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que permanece idêntico a si próprio; como uma característica de continuidade que


o Ser mantém consigo mesmo” (SILVA & SILVA, 2009, p. 202). Ou seja, é a própria
constituição do indivíduo, tudo aquilo que o caracteriza ao longo de um
determinado curso de tempo.
A segunda definição compreende a ideia de que um mesmo indivíduo pode
assumir diversos eus, como acontece na construção poética, em que o poeta, ao
escrever uma obra, pode criar várias personagens singulares. Na obra Memória
corporal, a multiplicidade do eu lírico revela os encontros e desencontros do eu com
a pessoa amada, mostrando que a identidade do primeiro se constrói a partir da
relação com o segundo. Assim, na poesia, há um diálogo entre os seres díspares e,
por causa disso, o amor pode se realizar.
Por fim, o eu se apresenta como a ideia de levar em consideração somente a
si, como se vê na obra Agonia de Eros. Esse indivíduo é aquele que busca apenas
um espelho que reflita sua imagem. Centrado na ideia de uma constante admiração
de si, não consegue enxergar o outro em sua plenitude. Este outro não é visto, pois
o que o eu enxerga é apenas a si mesmo deformado, tendo em vista a dificuldade
do sujeito de se encontrar no diferente. Esse eu é incapaz de perceber que não
existe sem o colóquio com o outro.
Para entender o outro, recorre-se ao conceito de alteridade. De acordo com
o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, é o “facto ou estado de ser outro;
diferição do sujeito em relação a um outro. Opõe-se a identidade, mundo interior e

subjectividade” (CEIA, on-line). A partir dessa definição, chega-se à ideia de que todo
indivíduo dialoga com o outro e por isso depende dele. Assim o conceito de alteridade

corresponde à prática de enxergar o outro no processo nas relações interpessoais, é a ideia


de possibilitar o diálogo em que as duas partes não precisam estar de acordo, mas devem

respeitar as diferenças. Assim, pode ocorrer um diálogo com base nas relações de
contraste, mas que visam a um crescimento de todos os envolvidos.

A CONCRETIZAÇÃO DO AMOR: SUPERAÇÃO DA CRISE


O eu e o outro, embora distintos, são duas instâncias que se interdependem.
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Ainda que Han (2017) considere o afastamento dos dois polos na atualidade, neste
trabalho, mediante a análise do poema, busca-se mostrar o contrário. Isso é possível
primeiro pela poesia. Para Octavio Paz:

A poesia faz-nos tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo


uma paisagem devastada pela insônia. O testemunho poético revela-nos
outro mundo dentro deste mundo, o mundo outro que é este mundo. Os
sentidos, sem perder os poderes, convertem-se em servidores da
imaginação e fazem-nos ouvir o inaudito e ver o que é imperceptível
(PAZ, 1995, p. 09).

Vê-se que a poesia por si só já apresenta uma afirmação da existência e da


importância do outro, pois o poeta não somente olha para o mundo, mas também
repara. A partir disso, ele constrói imagens que são fruto da sua relação com os
diversos outros que dialogam e mostram a multiplicidade das construções poéticas
que podem surgir a partir dessas relações. Assim, a poesia é um ato de amor do
poeta para com humanidade.
Para Octavio Paz, a criação poética é análoga à realização erótica. De acordo
com esse autor “a relação entre erotismo e poesia é tal que pode dizer-se, sem
afectação, que o primeiro é uma poética corporal e o segundo é uma erótica verbal”
(PAZ, 1995, p. 09). A escrita poética é comparada à prática do erotismo: assim como
o poeta olha para o mundo para construir e dar ao leitor as imagens que se formam
em sua mente, o indivíduo, por meio do erotismo, olha para o outro e pode assim
realizar a cerimônia amorosa em que o corpo do outro assume um papel
importante repleto de linguagem ritmada e de metáforas.
No poema de Roberto Pontes, é essa união entre poesia e erotismo que
permite que o amor se materialize mesmo em tempos de profundo egocentrismo. A
adversidade é superada. A composição poética é estruturada de modo que se
contemple e aprecie a presença do sujeito amado. Já no título, o pronome
possessivo “nossas” indica que se falará de mais de um indivíduo e que a experiência
da amargura é vivida não apenas pelo eu. Verifica-se a capacidade de enxergar não
apenas a dor de si, mas também a daquele que lhe é distinto.
No decorrer do poema, as referências à segunda pessoa são constantes,
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como se pode observar a partir da repetição dos pronomes “teu” e “nossas” e ainda
pelo uso do modo imperativo em “vem, amor” (PONTES, 1992, p. 59). Assim, todo o
texto direciona o eu poético para o outro, mostrando a capacidade eu lírico de se
relacionar com o diferente por intermédio da poesia. É por meio dela que o poeta
mostra a necessidade da existência e do diálogo com o outro para a superação da
crise e para a realização do amor.
A concretização dessa superação e a realização do amor acontecem por via
do erotismo. Para Paz, “sem erotismo – sem forma visível que entra pelos sentidos –
não há amor, mas o amor atravessa o corpo desejado e busca a alma no corpo e,
na alma, o corpo. A pessoa inteira” (PAZ, 1995, p. 25). Pelos sentidos, o eu toca o
outro e encontra seu corpo e sua alma. Por isso, o eu poético mostra-se pleno logo
após o ato amoroso.
No poema “Nossas amarguras”, é pelo erotismo que se pode ver o amor em
sua plenitude. O leitor compreende o encontro entre os dois amantes a partir do
que eles sentem após o coito, pois o poema relata os sentimentos do eu poético
logo após esse envolvimento carnal:

Quando o teu corpo


jazeu desanimado
úmido de amor
deitado lassamente
(…)
Sobre o teu dorso nu
mil borboletas
como se um jardim
abrisse as suas asas
para enaltecer
toda a loucura
que houve
em nossas bocas
em nosso braços (PONTES, 1995, p. 59).

O corpo mostra-se cansado, mas isso é positivo como se observa a partir das
imagens criadas pelo poeta. É um corpo úmido de amor, manifestando a percepção
de que o encontro é recente, além de intenso, o que causou a umidade própria da
transpiração provocada pelo esforço dos amantes. Sobre o dorso do ser amado há

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mil borboletas, as quais podem simbolizar, quando sozinhas, um emblema da


mulher, mas, em dupla, representam a felicidade conjugal (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1994). Como mil é um número par, pode-se inferir que a referência
às borboletas é uma metáfora da suprema felicidade conjugal.
É possível também fazer uma analogia entre alma e borboleta. Assim como
os insetos lepidópteros, o ser humano segue da vida para a morte . A borboleta é
primeiro uma pequena lagarta; transforma-se em uma grande lagarta; converte-se
em crisálida e, por fim, rompe o casulo quando surge algo bem diferente do
princípio. O indivíduo segue um percurso semelhante: nasce, cresce, se reproduz e
morre. No poema, esse itinerário é perseguido pelo eu poético que se entrega para
a vida, enquanto a relação amorosa se realiza, e para a morte, quando o encontro
termina. No entanto, dessa morte, representada pelo corpo desanimado e deitado
lassamente, surgem novas vidas simbolizadas pelas borboletas cujas asas se abrem
e evocam um jardim ou a multiplicidade de cores de um jardim. As borboletas
configuram renascimento.
A imagem das borboletas aparece também para louvar toda a loucura
vivenciada pelos amantes e confirma que esse encontro amoroso pode trazer a
morte do eu e o nascimento do outro, assim como o nascimento de um novo eu.
Este, diferente do primeiro, não buscará somente a si, mas sobretudo o distinto, o
diferente. É este novo eu que faz o convite:

Vem, amor,
Mais uma vez ainda.
Me abre o teu sabor
de uvas matutinas (PONTES, 1992, p. 59).

Esse convite para viver outra vez a experiência erótica e amorosa confirma a
consciência do eu poético sobre a importância de enxergar o outro, afinal só assim
é possível vencer a melancolia. Depois que ocorre o entrelaçamento dos corpos, o
eu relembra com prazer a comunhão dos enamorados, descreve o êxtase em que
se encontra e conclui que o amor é como mel que apazígua a amargura dos
envolvidos na prática voluptuosa.

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CONCLUSÃO
Por meio do poema “Nossas amarguras”, compreende-se que o poeta não é
controlado pelas atitudes vigentes que propagam o fim do amor, o arrefecimento
da paixão, a racionalização do sentimento e a ampliação da tecnologia de escolha.
Ele é um sujeito que reconhece a importância do outro como partícipe do processo
de construção e amadurecimento do eu. Assim, ele parte do narcisismo para o
altruísmo e, em vez de colaborar para a erosão daquele que é dessemelhante e de
sufocar a afeição, ele soluciona a crise do amor da atualidade. Ao experienciar o
outro em sua alteridade, o eu liberta ambas as partes do inferno originado pelo
narcisismo.

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre:


L&PM, 1987.

CEIA, Carlos. E-dicionário de literatura. Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/>


Acesso em 01 de maio, de 2019.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Diccionario de los símbolos. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1994.

HAN, Byung-Chul. Agonia de Eros. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2017.

HOUAISS. Dicionário eletrônico de língua portuguesa 3.0. 2001.

PAZ, Octavio. A chama dupla: amor e erotismo. Tradução de José Bento. Lisboa:
Assírio e Alvim, 1995.

PONTES, Roberto. Memória corporal. Rio de Janeiro: Edições Arantes; Fortaleza:


Secretaria de Educação e Cultura do Município de Fortaleza, 1982.

SILVA, Kalina V. & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São
Paulo: Contexto, 2009.

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POLÍTICAS DO
AMO R

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“AINDA QUE EU FALASSE A LÍNGUA DOS ANJOS”: O AMOR


CRISTÃO NAS REVISTAS LIÇÕES BÍBLICAS
Viviane Teixeira Lima Nunes
Universidade Federal do Ceará

Francisco Régis Lopes Ramos


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Um dos temas mais mobilizados nas revistas Lições Bíblicas, periódico
trimestral ligado ao movimento religioso Assembleia de Deus, é o amor cristão.
Utilizada como guia didático nas Escolas Dominicais, espaço de formação cristã, as
revistas trazem textos de ensinamento aos cristãos assembleianos, buscando orientar
a vida em geral, desde a leitura da Bíblia até a forma como membros das
Assembleias de Deus devem agir e sentir. Longe de ser concebido como um
sentimento abstrato, a ideia de amor defendida nas revistas é a de uma emoção que
deve se expressar em práticas. É um amor tido como dever e que é possível de ser
ensinado e aprendido. Nesse sentido, busca-se, neste trabalho, analisar os usos do
amor cristão nas revistas Lições Bíblicas entre os anos de 1975 e 1999, período em que
esteve vigente a primeira resolução de usos e costumes das Assembleias de Deus,
documento que expressava o posicionamento da igreja com relação ao que um
cristão deveria se abster de fazer em nome da santidade.
Palavras-chave: História; emoções; religiosidade; amor.

Ao tratar das aproximações entre história política e o estudo das emoções,


Christophe Prochasson afirma que “as emoções não resultam de um
encaminhamento puramente individual, mas se inscrevem em uma perspectiva
social e cultural” (PROCHASSON, 2005, p. 312). No texto, Prochasson defende o
estudo histórico das emoções como não sendo uma espécie de “psicologia histórica
qualquer”, mas reflexões legítimas e possíveis aos historiadores na medida em que
existem fontes que possibilitam perceber como as emoções foram registradas,
abrindo caminhos para a compreensão de suas expressões, práticas e usos por
sujeitos e grupos ao longo do tempo.
Semelhantemente, Barbara Rosenwein, em História das Emoções (2011),
defende o estudo da historicidade das emoções, compreendendo estas como

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instrumentos de sociabilidade, socialmente construídas e capazes de sustentar


sistemas culturais.
É considerando tais reflexões para um estudo histórico das emoções que
procuro, neste trabalho, compreender não só qual o sentido de amor cristão nas
revistas Lições Bíblicas entre os anos de 1975 a 1999, mas também como esse amor é
contado, explicado, usado e disputado na construção de discursos que buscam
orientar e definir ações, políticas, formas de ser e agir no mundo.

COMO SE ENSINA A AMAR?


“Esta obra foi escrita para ensiná-lo a amar como Cristo amou” (CPAD, 1996,
1º trimestre, p. 65).
Essas palavras fazem parte da composição de um anúncio publicitário que
toma toda uma página do primeiro número de 1996 da revista Lições Bíblicas. Trata-
se do anúncio de um livro publicado pela Casa Publicadora das Assembleias de
Deus – CPAD, mesma editora responsável pela publicação da revista. A obra em
questão, de autoria de Walter Brunelli, é intitulada “Conhecidos pelo Amor” e
estampa na capa da edição de lançamento a frase “o amor é a única maneira de
nos sentirmos realmente discípulos de Cristo”.
A concepção de amor que nos é apresentada neste anúncio da obra de
Brunelli não é a de um sentimento pessoal, íntimo. É, na verdade, a de um amor que
pode e deve ser conhecido, aprendido, vivido, ensinado. O que é vendido nesse
anúncio é, assim, muito mais que o livro. É também uma ideia de amor tido como
necessário para um determinado grupo, além de uma esperança: a de que o
leitor/consumidor é capaz de aprender a amar e, mais que isso, a amar
corretamente.
O intuito de ensinar a amar não soa estranho no lugar em que a publicidade
aqui discutida se encontra. O periódico Lições Bíblicas é justamente um espaço de
uma narrativa didática, de ensinamento, que traz em seus textos orientações para
uma vida cristã, buscando definir não só como o cristão deve agir no mundo, mas

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quem ele deve ser. Por isso há números do periódico com lições específicas sobre o
amor, tendo por objetivo o mesmo que o livro de Brunelli: ensiná-lo.
No geral, a revista Lições Bíblicas é publicada trimestralmente pela Casa
Publicadora das Assembleias de Deus, editora ligada à Convenção Geral das
Assembleias de Deus do Brasil – CGADB, que reúne líderes de igrejas daquele que é
considerado o maior movimento pentecostal37 brasileiro.
Seguindo as normas e definições da CGADB, a revista é, assim, uma espécie
de manual didático voltado para aqueles que já são membros e congregados das
assembleias de Deus, dividido em treze “lições” semanais datadas e utilizado nas
Escolas Dominicais, reuniões em formato de aulas realizadas semanalmente nas
igrejas Assembleias de Deus como espaço de formação cristã assembleiana. Nesses
espaços, busca-se discutir, a partir de leituras da Bíblia, o que é ser cristão em todos
os aspectos, desde comportamento, postura, vestimenta, até os posicionamentos
diante de questões políticas e sociais e, mais que isso, a maneira como um cristão
deve sentir e se emocionar.
Dessa forma, tal periódico pode ser compreendido como um importante
lugar de poder, na medida em que é um meio de se disputar, pela palavra impressa,
imaginários, leituras de mundo e compreensões da relação com o sagrado e o
profano. A palavra impressa como um espaço de poder. Poder esse que, como
entendido por Michel Foucault (2012), não se limita a ser uma força repressiva, mas
é uma rede de relações capaz de produzir discursos, técnicas, verdades. Aqui, o
poder produz subjetividades, constrói sujeitos, molda condutas. Nessa dinâmica em
que a subjetividade é alvo de disputas, as emoções também são mobilizadas.
Assim, se o que se busca na revista Lições Bíblicas é a elaboração de
discursos que se convertam em ensinamentos e verdades sobre o que é ser cristão e
como deve ser seu agir no mundo, o amor é elemento essencial na medida em que
é definido no periódico como sendo não um “mero sentimento”, mas sim a

37 Entende-se como pentecostais os movimentos religiosos evangélicos que, crendo no chamado


“Batismo pelo Espírito Santo”, indicam como uma evidência deste a glossolalia, tida como a
capacidade de falar em línguas desconhecidas.
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“comprovação e o aferidor da espiritualidade” (CPAD, 1997, 4º trimestre, p. 37). É,


portanto, uma concepção de amor como dever. Nesse sentido, trata-se aqui de
uma experiência religiosa em que o amor é expressão, comprovação, e condição
necessária para o reconhecimento de uma espiritualidade. Não é, entretanto,
qualquer maneira de amar que basta. É preciso, portanto, definir o amor de que se
fala, delimitá-lo, ensiná-lo. E aprendê-lo.
Por outro lado, não se aprende a amar, assim como não se constroem
subjetividades, por mera imposição. É necessário que aqueles que são alvo desse
ensinamento queiram aprender, que acreditem na legitimidade do texto em si, das
definições de amor ali existentes e nos usos dessa emoção na revista. É necessário
que esses leitores das revistas Lições Bíblicas, a partir da crença na autoridade
daquilo que lhes é escrito e ensinado, não apenas aceitem ter suas condutas
governadas para alcançar a salvação, mas aceitem códigos, normas e
procedimentos para um governo de si mesmo, para construir-se como sujeitos por
meio de “técnicas de si” (FOUCAULT, 1997).38
Ora, se o reconhecimento da espiritualidade depende desse amor e ele pode
ser aprendido e ensinado, pode ser também praticado. Como praticar e reconhecer,
portando, esse amor?

TEMPOS E PRÁTICAS DO AMOR


Saudando a chegada do ano de 1997, Frei Fernando de Brito assim conclui
uma de suas Cartas do Sítio:

São o anti-presépio. São as pessoas que precisam de tudo. São os amados


por Deus. E, porque são amados por Deus, Ele quer que deixem de ser o
anti-presépio para se tornarem gente [...]. Com a falência dos governos em
resolver os problemas sociais, podemos nós, em 1997, fazer algo por estes

38 Entendo “práticas de si” como definido por Michel Foucault: “procedimentos [...] pressupostos ou
prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função de
determinados fins [...]”. Ora, o objetivo de ensinar a amar só pode ser atingido quando o sujeito
busca conduzir a si e suas ações a partir do que lhe é indicado nessas revistas, refletindo sobre seus
sentimentos e sobre o que se é. Claro que, nesse processo em que se busca ensinar a ser, sentir e
fazer, pode haver escapatórias, desvios, adaptações, não aceitação e não adequação aos códigos
tidos como referência.
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nossos irmãos de predileção? […] Desejo a vocês e a mim que entremos


mais profundamente no desejo de Deus para trabalhar por seu Reino de
Amor e Justiça.” (Brito, 2010, p. 138 ).

No mesmo ano, era publicado um número da revista Lições Bíblicas com a


temática “I e II Coríntios: os problemas da igreja e suas soluções”. Em uma das lições
presentes no periódico, intitulada “A excelência do amor de Deus”, também se faz
presente a preocupação em tratar do amor nas relações sociais, no lidar com o
próximo:

O nosso amor a Deus manifesta-se através de nosso amor aos nossos


semelhantes […]. Ser indiferente e tratar com desprezo as necessidades do
semelhante é também colocar-se à margem de qualquer relação de amor
com o Pai […]. Esse amor não deve ser apenas um sentimento abstrato, mas
há de se comprovar através de obras e de fatos. (CPAD, 1997, 4º trimestre,
p. 40).

Em ambos os textos, o amor cristão é defendido como mais que um discurso


de fé: deve ser uma prática. No texto de Frei Fernando de Brito, a crença no amor
de Deus para com aqueles que ele reconhece como o “anti-presépio” é mobilizado
ao se lançar uma proposta de ação em forma de pergunta. Dessa maneira, é
mobilizando o amor de Deus a esse povo que Frei Fernando faz o convite a uma
ação coletiva que se relaciona com um “Reino de amor e justiça”, reino este que
necessita de trabalho humano para ser construído. Semelhantemente, o trecho
retirado da revista Lições Bíblicas traz uma compreensão de amor como um
sentimento que deve ser comprovado em obras.
Por outro lado, embora as duas narrativas utilizem da noção de amor cristão
como prática, os dois textos partem de posições diferentes no que diz respeito à
leitura da Bíblia e no entendimento do que é ser cristão. O primeiro foi escrito por
um dominicano que vivenciou os cárceres da ditadura militar, de onde escrevia
cartas em que não apenas denunciava as condições dos presos políticos, mas dava
forma ao que sentia. Nessa escrita, não só a dor ganhava formato, mas também
uma compreensão de amor cristão sempre presente em suas narrativas, uma noção
de amor orientada pelas ideias da Teologia da Libertação. Ao falar de amor, Frei
Fernando fala também de males sociais, da pobreza, da opressão e do sofrimento. É
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refletindo sobre essas questões que ele compõe uma narrativa que se apropria do
amor como forma de crítica e ação social, de modo que o trabalho de construção
do “reino de amor e justiça” seja realizado em terra.
Entretanto, a Teologia da Libertação não só não é vista com bons olhos pela
liderança das Assembleias de Deus no período aqui estudado como é considerada
um “engano”, ganhando destaque, por exemplo, numa lição que tem como tema
“O Cristão e a Justiça Social”, presente em um número do ano de 1996 da revista
Lições Bíblicas:

Os adeptos desse ensino caviloso, afirmam que quando o homem tem habitação
garantida, emprego condigno, alimentação farta, educação e saúde assegurados,
ele melhora si mesmo e o seu ambiente, chega-se a Deus e pratica o real
cristianismo. ” (CPAD, 1996, 4º trimestre, p. 89).

Na formulação desse discurso, o amor também é utilizado como ancoragem,


sendo afirmado que “muito antes de aparecer a expressão moderna justiça social, a
Bíblia já preceituava: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’ (CPAD, 1996, 4º
trimestre p. 88). Dessa maneira, coloca-se o amor cristão como anterior em tempo e
ação à ideia de justiça social. Em outras palavras: procura-se declarar que essa
problemática já era uma questão entre os que conheciam o texto Bíblico a partir da
noção de amor cristão nele presente.
Por outro lado, o entendimento do que é justiça social baseado na ideia de
amor como defendido nas revistas são de ações muito baseadas na caridade para
com os que lhe são próximos, mesmo para com os inimigos. Dessa forma, defende-
se que quem assim ama é altruísta, solidário, atendendo as necessidades dos
necessitados, inclusive através de instituições assistenciais. Não há, entretanto, uma
discussão sobre as razões políticas e económicas dessas necessidades. No que diz
respeito a esperança de uma sociedade mais justa, afirma-se que esta “só virá
através do Evangelho que Jesus mandou pregar”. Ou seja: Embora seja defendido
que o amor precisa se expressar na ação para com os necessitados, a possível
solução para os problemas sociais é reservada a uma mudança espiritual.
Semelhantemente, as causas dessas necessidades são atribuídas ao pecado. É

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possível questionar, assim, se o “reino de justiça e amor” que Frei Fernando de Brito
acredita ser possível de ser construído em terra é o mesmo para os cristãos
assembleianos.
A atribuição dos problemas sociais ao pecado não quer dizer, entretanto,
que se omita nos textos das revistas qualquer colocação sobre questões
relacionadas a política de Estado, governos e políticas públicas, por exemplo. Por
outro lado, é ressaltada a crença de que as autoridades humanas, embora falhas,
são instituídas por Deus, e portanto, devem ser respeitadas. Nesse sentido, atos que
vão de encontro às autoridades, desde mobilizações coletivas contra governos até
ações como greves sindicais são declaradas como impróprias para o cristão. Esse
respeito e obediência que defende-se como um dever do cristão são também
justificados pelo amor. Em lição que trata da relação entre o cristão e os governos,
há, por exemplo, a frase “obedecendo por amor” (CPAD, 1996, 4ª trimestre, p. 73),
seguida da afirmação de que “todo poder emana de Deus” (CPAD, 1996, 4ª
trimestre, p. 73). Obedecer à autoridade civil seria, assim, uma forma de demonstrar
amor à autoridade de Deus, que a teria instituído.
Tais ideias de obediência à autoridade governamental fundamentada no
amor eram também ressaltadas em números publicados na década de 1970,
período em que Frei Fernando de Brito, assim como outros religiosos que se
opunham à ditadura, usava do amor cristão para justificar seu posicionamento e sua
resistência à tortura. Ora, nessa década, o grupo dirigente das Assembleias de Deus
no Brasil mantinha uma acentuada preocupação com questões morais, de
sexualidade e relacionadas aos usos do corpo. Tais preocupações encontravam, por
vezes, coro nos discursos e ações da ditadura através da censura, por exemplo.
Há de se considerar que no ano 1975 foi definida a primeira resolução de
usos e costumes das Assembleias de Deus, defendendo a abstenção daquilo que,
para aquele grupo, representava uma modernidade ameaçadora. 39 Em nome da
39 Na resolução defendia-se, por exemplo, a abstenção do uso de televisões e de bebidas alcóolicas,
Além disso, era afirmado que as mulheres não deveriam usar maquiagem, vestir roupas consideradas
“masculinas”, alterar as sobrancelhas ou cortar o cabelo. Os homens não deveriam manter os cabelos
cortados e não usar roupas consideradas “femininas”.
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santidade, assim os líderes da igreja expressaram muito de suas preocupações do


momento. Ora, a década de 1970 é considerada um marco no que diz respeito aos
movimentos feministas no Brasil, que nesse momento levavam como uma de suas
pautas a liberdade sexual feminina e traziam na bagagem outras propostas de como
relacionar-se com o corpo, os prazeres e possibilidades de ser e sentir. Segundo
Denise Bernuzzi de Sant’Anna (2014), os ideais de beleza também se transformavam,
abrindo espaço para os jeans (lembrando que, para os líderes Assembleianos, as
calças ainda eram consideradas vestes masculinas), padrões de beleza focados no
amor ao próprio corpo e reivindicações de liberdade e rebeldia juvenis. Assim,
quando opunham o amor cristão ao que chamavam de “mundo de hoje", era
principalmente a essas questões que os comentadores das revistas Lições Bíblicas se
referiam.
Já na década de 1990, quando a igreja começava a se abrir para os meios de
comunicação de massa e adotava um discurso mais alinhado à recomendação de
cuidados que à exigência de abstenção 40, a oposição entre o amor e “o mundo de
hoje” é constantemente ressaltada. Enquanto em alguns textos o amor divino,
originário do amor de Deus, é representado como o amor perfeito, superior a todos
os outros (o que, por sua vez, abre espaço para o reconhecimento de outros
“amores”, embora tidos como imperfeitos em comparação com o divino), em outras
ele é discutido como sendo o único amor possível, sendo banalizado pelas ideias de
liberdade sexual e por movimentos que questionassem uma norma padrão de
família ou de relacionamento amoroso.

PODE O AMOR SER PLURAL?


Na segunda metade da década de 1970, os autores dos textos das revistas
Lições Bíblicas preocupavam-se com a maneira como o amor, especialmente o amor
romântico (chamado nas revistas de “amor humano”, ou, por vezes, de “amor

40 Essa abertura se expressa, por exemplo, na nova resolução de usos e costumes, definida em 1999
como uma atualização da anterior. Nesta, boa parte das recomendações de abstenção são alteradas
para exortações de cuidado, cautela.
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familiar”) era representado em outros espaços.


Associando esse amor com o casamento, lamentava-se, em revista de 1976,
que ele tenha sido “corrompido como foi pelo mundo moderno, o amor
transformando-se em lascívia e sexualismo o mais degradante ” (CPAD, 1976, 2º
trimestre, p. 54). Em outra revista do mesmo ano, essa mesma preocupação
aparece. Aqui, por outro lado, é feita uma diferenciação entre três tipos de amor:
eros, phileo e agapao, afirmando-se que o primeiro, chamado de “carnal”, não
aparece nos textos bíblicos (afirmação essa acompanhada da expressão “graças a
Deus!”), mas “é descrito hoje pela imprensa secular, pela filosofia da avareza, pela
literatura corrompida, pelo intelectualismo seco e pela poesia mundana”. (CPAD,
1976, 4º trimestre, p. 24)
Ora, desde a década anterior o país já começa a lidar com a chegada dos
contraceptivos, o que influenciava um distanciamento entre sexo e procriação.
Segundo Joana Maria Pedro (2012), desde os anos 1950 eram divulgadas pesquisas
sobre o comportamento sexual que passavam a servir de referência para que as
pessoas pensassem a própria sexualidade. Para a autora, a imprensa foi o principal
meio de divulgação dessas pesquisas no Brasil. Seria ingênuo pensar que essas
transformações não tiveram consequências na forma como se permite perceber e
narrar o amor, o que, nota-se, tornou-se uma preocupação para os líderes do
grupo religioso aqui estudado, levando-o a procurar disputar esse sentimento.
As formas de se abordar a problemática dos amores - assim, no plural, como
as outras maneiras de se viver, escrever e contar o amor - não são unânimes nas
revistas Lições Bíblicas. Enquanto na primeira revista citada neste tópico aparece a
ideia de um amor romântico e sexual legítimo, porém sendo corrompido pelo
“mundo moderno”, na segunda revista esse tipo de amor, associado ao termo eros,
é colocado como a parte dos amores bíblicos como sendo egoísta, focado no
prazer de si, embora às vezes pudesse significar um amor mais profundo.
Compreende-se: o comentador da primeira revista defende que todos os amores
existentes na terra são originários de Deus. Portanto, usos do amor que não fossem

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de acordo com a doutrina desse grupo e com o que se acredita ser a vontade divina
foram apresentados como sendo maneiras de corromper um amor que também é
sagrado. No caso da segunda revista, esse amor é chamado de “carnal” e
deslegitimado como sendo um amor mundano, humano, imperfeito.
A maneira como o amor é defendido e disputado por esse grupo em um
periódico de ensinamento, ou a forma pela qual se procura ensinar a amar, pode
muito dizer sobre suas ações e aquilo que se defende em nome do amor. Partindo
disso, pode-se aqui questionar até que ponto podem ser reconhecidos por esse
grupo religioso outras definições e usos do amor. Teria efeito mobilizar a ideia de
amor cristão para buscar legitimar relações e práticas que não correspondem ao
que tal grupo compreende ser o amor? Pode, para esse grupo, o amor ter e ser
plural?

REFERÊNCIAS
Fontes:

BRITO, Fernando de (Frei). Cartas da Prisão e do Sítio. Fortaleza: Instituto Frei Tito de
Alencar. Expressão Gráfica, 2010.

LIÇÕES BÍBLICAS. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus –


CPAD, 1º e 4º trimestres de 1996.

LIÇÕES BÍBLICAS. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus –


CPAD, 4º trimestre de 1997

________________. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus – CPAD,


2º e 4º trimestre de 1976.

Bibliografia:

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2. O uso dos prazeres. São Paulo: Paz e
Terra, 2014

__________. Microfísica do poder. 30. reimp. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

__________. Resumo dos Cursos do Collége de France (1970-1982). Rio de Janeiro:


Zahar, 1997.

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PAULA, Wesley Américo Bergamin Granado de. “Assembleia de Deus Avante Vai!?”:
transformações e tensões na construção da identidade da igreja evangélica
Assembleia de Deus no Brasil (1911-1980). Dissertação (Mestrado em História Social) -
Universidade Estadual de Londrina. Programa de Pós-graduação em História Social.
Londrina, 2013

PEDRO, Joana Maria. O Feminismo de “segunda onda”: corpo, prazer e trabalho. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das mulheres no Brasil.
Editora Contexto, 2012.

PROCHASSON, Christophe. Emoções e Política: primeiras aproximações. Varia


Historia, Belo Horizonte, vol. 21, nº 34, julho de 2005.

ROSENWEIN, Barbara H. História das Emoções: problemas e métodos. São Paulo:


Letra e Voz. 2011.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da Beleza no Brasil. São Paulo: Contexto,
2014.

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ALGO DE INTEIRAMENTE NOVO: A LINGUAGEM DISFUNCIONAL DO


AMOR NA SUPERAÇÃO DA FINITUDE
Susana Vieira
Instituto de Estudos de Literatura e Tradição — Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Paula Cristina Costa


Instituto de Estudos de Literatura e Tradição — Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

Resumo: Problematizaremos, em “A ave rara” e “O furto”, de Maria Velho da Costa, o


amor como eixo que movimenta a existência e supera a finitude resistindo à tentativa
de controlar a dor e a morte. Insistem os textos na disfuncionalidade, porquanto
sabem que no passo de um amor inumano se pode ser ou iniciar a existir. A
linguagem de MVC, sendo “lugar e meio de transformação e não [...] meio
transparente a um ‘pensamento’”, formula a estética do amor como um fenómeno de
contravenção, que faz explodir e traça “os lineamentos de uma nova ordem”. Se,
experimentado no excesso, o amor distorce a realidade, o que se contempla da
realidade permite perdoar o amor em excesso.
Palavras-chave: Amor; Morte; Dor; Disfuncional; Libertação.

O AMOR — UM ENSAIO DA INTENÇÃO ALTERADA


Formulando uma hipótese de leitura acerca da conceção inumana do amor
nos textos “A ave rara” (volume Dores) e “O furto” (volume O lugar comum), ambos
de Maria Velho da Costa (doravante MVC), esboça-se, na presente análise, uma
aproximação à problemática do devir-animal e da circulação de afetos entre
heterogéneos, de Deleuze & Guattari. Em concreto, foi a partir do fragmento “é um
grito de alarme ou uma mensagem de fuga” (DELEUZE & GUATTARI, 2007, p. 147)
que surgiu a ideia de problematizar o amor como eixo que movimenta a existência
e supera a finitude resistindo à tentativa de controlar a dor e a morte.
Já Kosik concordava que na disparidade entre a consciência do indivíduo e
o modo como age, enquanto corpo substantivo no centro de uma sociedade, nasce
o que não se previra antes — uma distorção do comum. Do texto de MVC nasce a
disfunção de um amor inumano, sublinhado pela dor (ou consolo) da alteridade,
pela necessidade da morte e pela evidência de que apenas dessa forma aporética se
pudesse ser ou iniciar a existir. O seu texto — como um corpo em excesso a partir
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do qual o amor, por si só, se torna razão da sua existência — reage contra a ideia
de emenda do desvio (ou defeito), elemento que, embora marginal, é constitutivo da
pluridimensionalidade do indivíduo; em seu devir ontológico, o indivíduo não chega
a uma “razão” definitiva e convergente. Logo, o propósito de uma superação, não
obstante um risco, torna-se algo mais do que ficção.
Reforçando o argumento de Kosik de que essa possibilidade se equilibra
quando o indivíduo não pondera a sua existência como consequência irrevogável
entre duas extremidades absolutas, um princípio e um fim, o “furto” acontece
porque provoca a distopia e torna o seu início único, e a singularidade da “ave”
motiva a morte como uma necessidade a evitar, porém, a dissolução. De qualquer
um dos modos, projetando a própria existência como fundamento de um mundo
significativo, consegue o indivíduo superar a inconstância da sua finitude, como uma
argila em processo e denegação da forma. Uma ausência concertando-se na
corporificação de uma presença desassossegada.
Em ambos os momentos vive-se o amor no limite — um amor que não é
belo nem misterioso; que não é uma realidade transparente nem reflexiva. É antes
uma distorção, sem existência numa superestrutura dominante e dominada pela
forma de contornos percetíveis e inequívocos. Disfuncional, o amor entendido assim
problematiza o sistema e impõe-se como uma linha de fuga, ao explorar a
invulgaridade. Quando na divergência os corpos se movimentam numa tensão de
copulação, mesmo que apenas pressentida, o que expressam desmancha o limite
clássico da linguagem referencial que, na impercetibilidade dos corpos impuros que
se foram adicionando ou negando em partes, faz sobressair essa “matéria intensa”
não corporal. Nesse impulso, a linguagem obriga-se a perspetivar os próprios limites
de reconhecimento, de modo a libertar-se e a permitir a ruína das formas (sem-
forma) demoradas e pausadas. Quanto mais se distinguem, mais se pressupõem,
convergindo na matéria de um corpo desterritorializado, sublinhado por
intensidades e ameaçando o lugar comum.
Justamente pelas dissemelhanças logra-se uma linguagem concordante, o

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que equivale a uma correspondência entre indivíduos: a mulher e a ave, o corpo


presente em fuga e o corpo ausente por-vir. Sendo o indivíduo nomeado por um
devir ontológico, sofre no percurso vários atravessamentos, considerados a abjeção
que desvia a sua seriação espaciotemporal. MVC formula um corpo-margem que,
na sua interação inumana, qualquer que seja o atravessamento que o faça deslizar
da superfície, revela a necessária linha de fuga. No sentido de uma involução, e pela
desidentificação, nasce o novo corpo de uma correspondência de afetos que
perturbam a sociedade: “As participações, as bodas contra natura, são a verdadeira
Natureza que atravessa os reinos” (DELEUZE & GUATTARI, 2007, p. 309). Deleuze &
Guattari classificam esta posição de anormal, que, mais que violar a noção e a
presença da norma, se decide como um fenómeno volúvel e infixo, entre uma linha
de fuga e uma desterritorialização, “inspirando uniões ilícitas”. Quase uma sensação.
Este interdito é uma figura sem-forma que sempre se destaca no texto, como
provocação ao sistema opressor da individuação. Quase uma vibração.

ENTRE O FURTO E A AVE RARA, A INVOLUÇÃO DO AMOR


No texto “O furto” (exploração e reflexão sobre o que se destaca em sua
despossessão), recuperando a posição crítica de Levinas sobre o outro, oculta-se
uma “ordem comum” entre o indivíduo existente (a mulher-mãe) e o ainda-por-vir,
como um sopro fantasmático que se pressente, fundamentado por Walter
Benjamim. Essa ordem, ainda suspeitada, consiste em o existente legar a sua posse
do mundo ao ainda-por-vir, mas já a acontecer. Entendido assim, vendo “seu corpo
segregar algo de inteiramente novo” (COSTA, 1966, p. 55), pode o amor
assemelhar-se a uma pacífica renúncia da subjetividade. Nesse ato de desapego em
existir para e no outro, infere-se toda a violência que o cerca pelos contornos
interiores e, consequentemente, um gesto disfuncional de perceção. Em que
medida?
Em todo o momento que precede a chegada do ainda-por-vir, antevê-se
que o parto fará o corte entre os dois, causará a desunião. Momento de rutura que

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sublinha a linha “entre” algo em que ambos se encontram desde sempre. A mulher-
mãe vai abrindo a consciência para aceitar o outro e entender a própria alteridade
— pois será também um outro —, até a dissolução, in-corporada na rendição à
desigualdade constitutiva da desidentificação, condição de todo o indivíduo. Torna-
se percetível a relação de desumanidade que protege cada um em seu casulo, i. e.,
a aceitação do outro não se satisfaz como amor, mas como dolorosa necessidade.
Nesse sentido, ao não determinar um destino que pressupõe uma ligação a um
início, liberta-se. Se não há pressuposição, o outro constitui-se igualmente como
uma possibilidade de si, confirmando que “a fecundidade não é causa nem
dominação” (LEVINAS, 1988, p. 256). Sob este aspeto, o indivíduo “produz-se como
múltiplo e cindido em mesmo e em outro” (LEVINAS, 1988, p. 247), transcendendo-
se e ao limite da sua natureza, e alcançando finalmente a verdade da existência e a
própria liberdade. Assim, mais que uma cessação, está no outro — corpo em
condição impercetível, ainda — a sua fuga: “os olhos [...] volvidos adentro de seu
corpo, [...] cegos [...] mas devolvendo-lhe o que fora visto [...] Olhos para ver ainda o
jamais visto, o suspeitado mundo do lado de dentro da pele de imensos líquidos”
(COSTA, 1966, p. 74).
Tal como a ave exerce o seu domínio sobre a mulher, pela insubordinação,
o filho tem o mesmo efeito sobre a mãe, no confronto com o próprio eu que é um
estranho a si-mesmo, não sendo possível nesse reconhecimento o regresso. Quem
espera observa o próprio corpo num movimento de involução, enrolando-se para
dentro de si e tocando-se num estado de pura perceção da sua natureza: “perder
ela sua dor viva para tornar-se presa [...] de uma dor outra [...] como se fora parcela
do início do que existe [...] nada do que era seu lhe ficara senão aquele peso do
testemunho e da reflexão” (COSTA, 1966, p. 74).
Por seu lado, n’“A ave rara”, a ordem, determinada pela semelhança, será
um passo natural a justificar a emergência de um devir-animal. Na sua causa está
precisamente a superestrutura que impede a correspondência entre heterogéneos,
logo o processo de individuação. No mesmo sentido, obstaculiza a “circulação de

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afetos” — linha de fuga desejada.


O devir-animal resulta em deslumbramento e aflição, pela impossibilidade
do desejo, projetando a imagem de declínio que provoca o indivíduo na linha
estriada da fuga. A mulher e a ave são um único e mesmo corpo pressupondo a
raridade do acontecimento simbiótico. Antes de “ver o pássaro e ser vista dele”
(COSTA, 1994, p. 30), “dormia dentro do corpo” (COSTA, 1994, p. 29) “uma tristeza
destruída [...] a de já não poder cumprir tarefas que alegrem. [...] O ser dela tinha
ficado destituído dessa qualidade que vibra, a curiosidade” (COSTA, 1994, p. 27).
A involução dissolve os corpos até se tornarem uma matéria da ordem do
impalpável, apreendida apenas na “circulação dos afetos”. Na tentativa de se libertar
encontra-se prisioneira dessa circulação: “o próprio amor é uma máquina de guerra
dotada de poderes estranhos e quase aterradores” (DELEUZE & GUATTARI, 2007, p.
354). Como solução segura, resgata a ideia de se situar na linha envolvente, entre o
centro e o espaço de fora esvaziado: “Ficou a ver o pássaro”; “A beleza tremenda e
delicada do animal esperava-a”; “Olhava-a com curiosidade fria, despudorada
agora, mas aguardando pudor [...] Desistia de alguém” (COSTA, 1994, p. 31).
Libertando-se dos pontos de sustentação maioritária, liberta-se justamente do plano
canónico de representação do mundo formado, onde “«Não existo»” (COSTA, p.
1994, 31), e torna-se uma linha “mutante” numa superestrutura de dominação. Tão
depressa assistimos a uma inversão de planos: a infraestrutura abala essa
superestrutura, lançando-se, em processo disfuncional, numa atitude que vai
dominando o já dominante —

Os elementos, que provêm [...] de ideologias antagónicas ou que, devido


ao seu valor gnoseológico intrínseco se identificam com elas e são [...]
irredutíveis à ideologia dominante ou às normas que ela impõe, não
podem manifestar-se abertamente, mas unicamente por uma distorção
significativa das normas em vigor (Vernier, 1977, pp. 130-131).

Assim, ela

quis fazê-lo voar [...] lançou-o ao ar, uma [...] e outra vez [...] a uma
velocidade de vertigem [...] O pássaro levantava-se lançado, caía,
arquejava. E começou a defender-se [...] bicava-a e coxeava já. Caiu-lhe

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arfando no peito, as asas inermes [...] Ensimesmado na dor. Toda a sua


beleza estava por terra. [...] olhava e estremecia se ela se aproximava, e
chorou. Pensando [...] que só se chora assim, sem termo, quando se tem a
quem (COSTA, 1994, pp. 31-32).

A “circulação dos afetos” é interrompida quando a mulher põe as mãos,


segmento de si, na morte do animal: “Uma torção e a cabeça ficou decepada. O
corpo estremeceu [...]. Muito pouco sangue. [...] as duas peças do pequeno cadáver
nas mãos. A cabeça, o corpo” (COSTA, 1994, p. 33). Não se realizando a fuga, o
tensionamento percebe como provável a linha se desviar na direção da morte. Esta,
operando uma metamorfose, estabilizaria as superfícies do corpo e recuperaria os
seus limites, vicissitude impossível pelas inclinações e aspirações conscientes do
indivíduo: “Decapitada, a ave era ainda de uma beleza [...] exultante [...] abriu as
mãos que só retinham duas fracções do caos da sua vida [...] [e] disse alto [...] que o
rancor de Deus pelas suas criaturas é de morte” (COSTA, 1994, p. 34).

ALGO DE INTEIRAMENTE NOVO — A LIBERTAÇÃO


Ambos os textos são uma indagação sobre o indivíduo. No processo de
individuação, decorrente de o sujeito se libertar da sua condição de semelhança ou
subordinação, percebe-se uma intensidade que, na perturbação de se deixar afetar,
evolui a partir de outras intensidades para resultar no corpo informe e não finito.
Apenas dessa forma relacional e imprevista se define o corpo-indivíduo. Porém, e tal
como Deleuze & Guattari assinalam, não será demais lembrar que se trata de uma
involução, em que os indivíduos, resistindo à dissolução total do seu evento
acontecimental, tornam possível uma linha de fuga que os salve, porquanto o amor
faz o indivíduo perceber que apenas pervertendo o comum se completa.
A linguagem de MVC, sendo “lugar e meio de transformação e não [...]
meio transparente” (Vernier, 1977, 103), formula a estética do amor como um
fenómeno de contravenção, que infringe a regra, permitindo a sua experimentação
no excesso e distorcendo a realidade. Porém, o que se contempla da realidade
permite perdoar o amor em excesso e, como um sistema que pacifica o lugar onde

Amor, Língua de Eros


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145

a distorção pode ser devida, fundamenta esse mesmo desvio. O amor pode ser
vivido como uma intenção alterada, suportando para o efeito signos manipulados
— a dor ou a morte, nomeadamente. A morte corrige e justifica o recalcamento; o
corte que provoca a dor desloca a razão.
Ambos distinguem pelas extremidades corpos (quando “Roubados os
limites de sua carne” (COSTA, 1994, p. 74)). E ambos revelam o in-comum desses
corpos

Tanto queria ser com seu corpo, não aceitar essa dor que se desconhece
[...] que abandona o lugar que habita para [...] ser [...] o protesto dos
condenados à não identidade, à explosão e à dissolução no múltiplo, esse
travo insípido da morte que é ser apenas [...] a única chaga do mundo
(COSTA, 1994, pp. 63-64).

Será o amor, vivido na sua inclinação disfuncional, a regenerar o radical


existente, no caminho da libertação do indivíduo e dessa forma, inteiramente nova, a
superar a sua finitude.

REFERÊNCIAS

COSTA, Maria Velho da. O lugar comum. Lisboa: Morais Editora, 1966.

COSTA, Maria Velho da; COELHO, Teresa Dias. Dores. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1994.

DELEUZE, Giles; GUATTARI, Félix. Mil planaltos: capitalismo e esquizofrenia 2. Lisboa:


Assírio & Alvim, 2007.

KOSIK, Karel. Dialéctica do concreto. Lisboa: Dinalivro, 1977.

LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.

VERNIER, France. A escrita e os textos — Ensaio sobre o fenómeno literário. Lisboa:


Editorial Estampa, 1977.

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AMOR E HOSPITALIDADE: A INCONDICIONALIDADE DO AMOR EM


JACQUES DERRIDA
Jean Pierre Gomes Ferreira
Universidade Estadual do Ceará

Resumo: Em Da hospitalidade, Jacques Derrida analisa a questão do estrangeiro a


partir da hospitalidade que lhe é concedida no país no qual ele chegue. Num primeiro
momento, ele questiona como a hospitalidade é condicionada a diversos fatores aos
quais o estrangeiro deve se submeter para ser hospedado; em primeiro lugar, o da
língua, e como as diversas condições colocadas a ele constituem uma hostilidade em
relação a ele, ao que esta hospitalidade é descrita como hostipitalidade. Num
segundo momento, considera que existe uma hospitalidade incondicional que é uma
condição de possibilidade para além desta hospitalidade condicional e a partir da
qual esta se fundamenta em sua lei. Neste artigo, pretende-se demonstrar como em
relação à questão da hospitalidade há a de um amor sob certas condições e um
amor incondicional que questiona as condições impostas a ele tal como uma
hospitalidade incondicional passa do limite colocado pela hospitalidade condicional
em relação à questão do estrangeiro. Um amor relacionado à différance que
questiona as condições impostas para amar o outro, para amar e os limites do amor
como amor ao mesmo, ao que é semelhante, porque familiar, irmão, conterrâneo,
concidadão, amigo, da mesma raça, etnia, nação, país, língua.
Palavras-chave: Estrangeiro; Hospitalidade; Amor; Identidade; Différance.

A relação entre amor e hospitalidade é colocada de certo modo por Derrida


no livro Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade
(2003), quando faz os seguintes questionamentos:

A hospitalidade consiste em interrogar quem chega? Ela começa pela


questão endereçada a quem vem (o que parece bastante humano,
amável, supondo-se que falta ligar hospitalidade ao amor - enigma que
vamos deixar, por enquanto, um pouco de lado): como te chamas? diga-
me teu nome, como devo chamar-te, eu que te chamo, que quero
chamar-te pelo nome? como vou chamar-te? É assim também que se
dirige, ternamente às crianças ou aos amados. (DERRIDA, 2003, p. 25.
Grifos nossos.)

É como um enigma que aparece a ligação da hospitalidade ao amor, amor


posto como segundo à hospitalidade neste caso, um suplemento dela, não
necessário, por assim dizer, para a questão da hospitalidade, e para a questão do
estrangeiro a qual Derrida a remete, pois a hospitalidade seria, neste caso, uma

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questão moral, de direito, de língua, de política e de Estado democrático ou


ditatorial fascista que não necessariamente pressupõe o amor ou o desejo de
hospedar alguém. Todavia, este é um perigoso suplemento na medida em que
coloca em questão a hospitalidade, a sua possibilidade e que pode torná-la
impossível caso ela não seja com-paixão, entendida aqui como uma junção e
injunção de amor e desejo em relação ao que é estrangeiro, um desejo de hospedá-
lo por amor anterior ou antecipadamente a qualquer moral, direito, língua, política
de Estado. Donde uma questão de princípio em relação à hospitalidade, anterior à
questão do estrangeiro que Derrida menciona é aqui colocada: é possível
hospedarmos um estrangeiro sem amá-lo ou desejá-lo, sem com-paixão? Não seria
o desejo e o amor, a com-paixão, a condição de possibilidade da hospitalidade?
Deixada de lado por enquanto, a relação entre amor e hospitalidade é um
enigma que atravessa o texto Da hospitalidade de Derrida e que é antevisto aqui a
partir da relação entre a questão da hospitalidade e a questão do estrangeiro e da
relação entre a hospitalidade condicional e a incondicional, bem como na conversão
da hospitalidade condicional em hostilidade, ou ainda, na perversão daquela por
esta na medida em que a hostilidade não é necessariamente oposta à hospitalidade,
mas, paradoxalmente, princípio dela quando há uma violência ao estrangeiro para
lhe ser concedida, a começar pela renúncia dele à sua língua devendo falar a língua
do outro, submeter-se ao monolinguismo do outro. Tal hostilidade pressuposta na
hospitalidade condicional é analisada por Derrida em diversos aspectos, da
antiguidade à contemporaneidade, de Édipo às trocas de e-mail e às quais
podemos acrescentar as trocas de mensagens em redes sociais, demonstrando
como um nada de hospitalidade, isto é, uma hostilidade, está presente ao mesmo
tempo em que ausente na questão da hospitalidade. Assim é que, partindo da
questão do estrangeiro, de quem é o estrangeiro, para pensar a questão da
hospitalidade, Derrida diz que “antes de designar um conceito, um tema, a questão
do estrangeiro é uma questão de estrangeiro, uma questão vinda do estrangeiro, e
uma questão ao estrangeiro, dirigida ao estrangeiro”. (2003, p. 5) Questão vinda de

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fora, do estrangeiro, e de dentro, remetida ao estrangeiro, portanto que é do


estrangeiro, “como se o estrangeiro fosse, primeiramente, aquele que coloca a
questão ou aquele a quem se endereça a primeira questão. Como se o estrangeiro
fosse o ser-em-questão, a própria questão do ser-em-questão, o ser-questão ou o
ser-em-questão da questão”. (DERRIDA, 2003, p. 5. Grifos do autor).
Ser-estrangeiro, eis a questão da hospitalidade, em princípio, a condição de
possibilidade da hospitalidade, bem como da hostilidade originária que alguém
deve passar para requerer hospitalidade, pois, para ser estrangeiro é necessário uma
separação em relação à sua terra, casa, família, seus costumes, língua, país, direito e
Estado, ou seja, a tudo que ama. É preciso deixar o que e quem ama tornando-se
estrangeiro para poder requerer a hospitalidade, é preciso deixar o amor, portanto,
de lado, se se quer pensar a hospitalidade neste caso como faz Derrida. Neste
sentido, é pensando uma hostilidade originária em relação ao país de origem do
estrangeiro que primeiramente se pensa a hospitalidade, quando em sua própria
terra, casa, família, costumes, língua, país, direito e Estado não é concedida
hospitalidade e é necessário a se exilar, convidado a sair, paradoxalmente, por não
amar o seu próprio país sob o lema Ame-o ou deixe-o, como se o estrangeiro não
amasse o seu país e, por isso, fosse obrigado a sair mesmo que não quisesse sair,
nunca tenha querido sair, mas foi obrigado a sair, pois alguém diz que ele não o
ama e, deste modo, obrigado a admitir com sua saída que não ama seu país e
todos que fazem parte dele.
É nesta hostilidade originária que há o princípio da hospitalidade sobre a
qual Derrida não se refere propriamente, mas se pode pensar a partir dele quando
diz que é “Como se o Estrangeiro devesse começar contestando a autoridade do
chefe, do pai, do chefe de família, do ‘dono do lugar’ do poder de hospitalidade”.
(DERRIDA, 2003, p. 7) Neste caso, o do lugar a que chega, mas também do qual sai,
e de modo que o estrangeiro é, primeiramente, o filho e a filha na casa dos pais que
põe em questão a “autoridade paterna e razoável do logos”, bem como todos
aqueles que substituem o pai neste direito de autoridade: o professor, pastor,

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militar, político, filósofos. Ao colocar em questão a lei do lugar em que vive, o


estrangeiro pode vir a ser um criminoso sem direito à hospitalidade num ostracismo
social no qual em nenhum lugar pode ser acolhido, como foi o caso de Édipo
exilado de Tebas, este Estrangeiro arquetípico cuja hostilidade foi além de qualquer
hospitalidade, mas também o caso do filósofo Sócrates, condenado à morte que
recusa o exílio e aceita a pena de morte, pois nenhuma hospitalidade a ele era
possível em Atenas e, se não era possível ali, onde ele nasceu, dizia que não seria
possível em lugar algum que fosse como criminoso. E, neste sentido, Sócrates é
aquele que coloca em princípio a questão originária da hostilidade em sua própria
cidade-Estado como criminoso e não tem o direito de ser tratado nem mesmo
como Estrangeiro, pois:

Qual é a sutileza da retórica socrática, da postulação de Sócrates o


Ateniense? Ela consiste em queixar-se de não ser sequer tratado como
estrangeiro: se eu fosse estrangeiro, vós aceitaríeis com mais tolerância
que eu não fale como vós, que eu tenha meu idioma, minha maneira tão
pouco técnica, tão pouco jurídica de falar, uma maneira que é ao mesmo
tempo a mais popular e a mais filosófica. (DERRIDA, 2003, p. 19)

O que Sócrates almeja e Derrida pressupõe a partir de si é que se passe de


uma hospitalidade condicional em relação ao estrangeiro relativa ao direito e ao
dever legal ou moral para uma hospitalidade incondicional por uma lei da
hospitalidade que vá além do Estado moral de direito no sentido de uma
hospitalidade absoluta, pois:

A lei da hospitalidade, a lei formal que governa o conceito geral de


hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, perversível ou
pervertedora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a
lei da hospitalidade como direito ou dever, com o ‘pacto da
hospitalidade’. Em outros termos, a hospitalidade absoluta exige que eu
abra a minha casa e não apenas ofereça ao estrangeiro (provido de um
nome de família, de um estatuto social de estrangeiro, etc.), mas ao outro
absoluto, desconhecido, anônimo, que eu lhe ceda lugar que eu o deixe
vir, que o deixe chegar, e ter um lugar no lugar que ofereço a ele, sem
exigir dele nem reciprocidade (a entrada num pacto), nem mesmo seu
nome. A lei da hospitalidade absoluta manda romper com a hospitalidade
de direito, com a lei ou a justiça como direito. (DERRIDA, 2003, p. 25).

É um passo além da hospitalidade condicional, além de uma hospitalidade

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política ou política de hospitalidade que tem como princípio a hostilidade


denominada paradoxalmente por Derrida como hostipitalidade o que se coloca em
questão. Um passo além que vai contra a lei da hospitalidade e que,
paradoxalmente, é uma defesa radical dela, uma defesa da hospitalidade levada ao
limite para além da hostilidade como limite necessário, divisa, condição de
possibilidade da hospitalidade condicional. Isto porque não é mais a hostilidade o
princípio da hospitalidade neste caso, mas, podemos dizer, uma amorosidade, o
amor pelo outro de modo absoluto, estrangeiro ou não, um amor que desafia todo
e qualquer dever ou direito que impede alguém de amar e dar hospitalidade ao
outro em sua casa sem nem mesmo saber seu nome. Um amor incondicional para
além do amor condicionado pela lei moral e política que devemos amar o
semelhante, o análogo, o idêntico, ou aquele que tem uma identidade, também
como estrangeiro, e não o diferente, ainda que seja o diferente o que sempre se
deseje em amor e que somente se assemelha, se torna semelhante e possui uma
identidade pelas políticas que regem o amor e o tornam semelhante, isto é, fazem
negar a diferença, o amor ao diferente, o amor da différance em proveito do amor
ao semelhante, idêntico e que tem uma identidade política.
Este amor incondicional da différance é o amor às diferenças ou ao diferente
sem submetê-lo a uma identidade considerado aqui como princípio da
hospitalidade incondicional ou hospitalidade absoluta a qual Derrida apela do
seguinte modo:

Digamos sim ao que chega, antes de toda determinação, antes de toda


antecipação, antes de toda identificação, quer se trate ou não de um
estrangeiro, de um imigrado, de um convidado ou de um visitante
inesperado, quer o que chega seja ou não cidadão de um outro país, um
ser humano, animal ou divino, um vivo ou um morto, masculino ou
feminino. (DERRIDA, 2003, p. 69)

O amor condicional, em contrapartida, estaria relacionado a uma


hospitalidade condicional seria um amor compensatório por uma perda, a do exílio
do estrangeiro em relação à sua terra e do amor a ela, amor e terra que devem
continuar a ser exilados de si para que a hospitalidade numa nova terra e um novo
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amor seja possível. Pois o exílio não é apenas a questão de um momento na vida
daquele que se exila, é algo que deve permanecer em sua vida, por juramento à sua
nova terra e seu novo amor, e não se pode nunca mais voltar à terra de origem e
tão pouco amá-la ou amar o que amava nela, sob pena da hospitalidade dada a ele
ser questionada, e novamente uma hostilidade se fazer presente. Ou seja, é preciso
se submeter ao direito e dever de quem hospeda e quem o ama agora caso queira
continuar morando em sua casa, ser seu ou sua na-morada. É preciso reprimir o
amor passado caso queira viver um novo amor, pois qualquer manifestação do
amor antigo, ou qualquer tentativa de se resgatar o amor antigo por outra terra,
levará à hostilidade e, por ventura, nada de hospitalidade.
Se o amor e a hospitalidade são condicionais, neste caso, é porque implica
uma relação de troca a partir da qual uma identidade se torna possível. Existe um
limite para a diferença que é a oposição, pois se os opostos se atraem segundo o
dito, eles não por menos se repelem quando se tornam idênticos, isto é, quando se
produz uma identidade entre eles, quando se busca desfazer a oposição como
limite da diferença entre eles, quando os opostos moram na mesma casa e um força
o outro a ser idêntico a si, sobretudo, quando um força o outro a abandonar a si
mesmo no que diz respeito a toda sua vida passada, exilar-se de seu mais profundo
íntimo. E, deste modo, um se obriga a falar a língua do outro para que um e outro
permaneçam juntos em hospitalidade, morando na mesma terra, na mesma casa,
casados.
Falar a língua do outro, o monolinguismo do outro, é a primeira condição da
hospitalidade e do amor condicional, mas também é aquilo que coloca em questão
a própria hospitalidade e o amor na medida em que se pressupõe que:

A questão da hospitalidade começa aqui: devemos pedir ao estrangeiro


que nos compreenda, que fale nossa língua, em todos os sentidos do
termo, em todas as extensões possíveis, antes e a fim de poder acolhê-lo
entre nós? Se ele já falasse a nossa língua, com tudo o que isso implica, se
nós já compartilhássemos tudo o que se compartilha com uma língua, o
estrangeiro continua sendo estrangeiro e dir-se-ia, a propósito dele, em
asilo e hospitalidade? (DERRIDA, 2003, p. 15).

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É pela língua do outro que começa a hospitalidade e também o amor, um


amor ao diferente. Porém, num amor condicional se quer submeter o diferente à
identidade na-morada por meio de uma vida em comum, numa com-vivência com
o outro, o diferente, devendo um falar a língua do outro ou uma mesma língua,
uma única língua, como num longo beijo de amor quando a boca se converte na
porta de nosso ser mais íntimo, a entrada de nosso corpo-casa-ser cujos vãos são
infinitos e há sempre condições para entrar em cada um deles. Pode-se entrar em
nós por outros lugares além da boca, mas o beijo é este amálgama de um ser-e-
estar-com-o-outro de um modo decisivo num primeiro momento, a porta de
entrada para um relacionamento no qual o pretendente ao amor pode perder o
que ama sem nunca ter lhe sido possível amar se não souber beijar direito. Se é
preciso falar bem a língua do outro para ser aceito num país, é preciso também
tocar a língua do outro com a sua para ser aceito em amor e o desajeitar do
estrangeiro à língua do outro no primeiro momento é também o desajeitar do
pretendente ao amor no primeiro beijo, posterior ao desajeitar dele também
tentando falar a língua do outro, ser compreendido por ele quando começa por
dizer seu nome.
Há, em relação a isto, um monolinguismo do outro no amor assim como um
monolinguismo do outro na hospitalidade condicional expresso na seguinte
proposição: “Não se fala nunca senão uma única língua.” (DERRIDA, 2016, p. 31.
Grifos do autor.) Neste caso, não há beijo que não seja único e nem amor que não
seja único em princípio e ser único é a condição de todo beijo e de todo amor para
que alguém seja nosso na-morada, que haja um casal, bem como para que haja
hospitalidade, o estrangeiro falando uma única língua, a do outro. Deve haver uma
unicidade e uma identidade das línguas faladas e que se beijam em tradução de
algo intraduzível senão por elas no momento em que se encontram. Mas há um
problema que é o paradoxo e a antinomia na com-vivência, no ser-e-estar-com-o-
outro em sua língua, expresso por esta outra proposição em relação ao
monolinguismo do outro ou a a uma língua única, o de que “Não se fala nunca uma

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única língua.” (DERRIDA, 2016, p. 31. Grifos do autor.) Pois como esquecer no beijo
sua língua? Sua própria língua? Como ser compreendido plenamente pelo outro em
sua língua, falar a língua do outro plenamente?
Se há uma unicidade no amor e na língua quando duas pessoas se amam, se
falam e se beijam num monolinguismo do outro, este é pressuposto a partir da
unicidade do ser com sua própria língua, com sua identidade e, mais ainda, sua
ipseidade que:

não se reduz a uma capacidade abstracta para dizer ‘eu’, que terá sempre
precedido. [E que] Significa talvez, mais originário do que o ‘eu’, numa
cadeia em que o ‘pse’ de ipse não se deixa mais dissociar do poder, da
maestria ou da soberania do hospes (refiro-me aqui à cadeia semântica
que trabalha no corpo a hospitalidade tanto quanto a hostilidade - hostis,
hospes, hosti-pet, posis, despotes, potere, potis sum, possum, pote est,
potest, pot sedere, possidere, compos, etc.) (DERRIDA, 2016, pp. 39-40.
Grifos do autor.)

A questão da identidade em relação a este ipse que é o eu em si mesmo é,


aqui, a questão do amor, de como podemos amar o outro, na língua do outro, no
monolinguismo no outro, ter com-paixão, desejo e amor, pelo outro se há,
primeiramente, este amor por si mesmo, um monolinguismo do outro em si mesmo
e, a partir dele, toda uma política do amor em relação ao outro enquanto diferente
que deve ser semelhante ao que somos, que deve se submeter a nós para que o
amemos ou termos que nos submetermos a ele para que nos ame, uma
semelhança neste caso que não quer dizer, no caso, ser do mesmo gênero sexual.
Em contrapartida, amando em determinadas condições, pois “Não se fala nunca
senão uma única língua.” em vez de amar incondicionalmente ciente de que “Não se
fala nunca uma única língua.” Donde, a questão do amor em sua condicionalidade
passa, por fim, pelo senão como condição de possibilidade: e se não for amor?
Somente, a partir da estrutura imanente de uma promessa ou do desejo,
numa espera sem horizonte de espera como diz Derrida é que podemos dizer que
há um amor incondicional ou da différance que vem antes de uma língua, de falar
uma língua e de um beijo de língua, quando não se sabe o que vai acontecer, o que
se espera no fim de uma frase de amor, de alguém, quem espera quem ou o que se
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espera. Em contrapartida, é quando se tende a deixar de falar e beijar várias línguas


para falar e beijar apenas uma única que surge o amor condicionado tendente à
loucura da língua fora de si mesma, de uma língua enlouquecida pela promessa que
se torna uma ameaça e ameaça o enlouquecimento, o emudecimento da língua, o
silêncio. Pois o que se coloca em questão neste caso é o amor possessivo da língua
do outro a partir da sua língua, “todo este léxico do ter, do hábito, da posse de uma
língua que seria a sua, a tua, por exemplo. Como se o pronome e o adjectivo
possessivos fossem aqui, quanto à língua, proscritos pela língua.” (DERRIDA, 2016, p.
49) E há sempre o risco de uma promessa de amor incondicional se tornar uma
loucura de amor na medida em que o monolinguismo do outro deixa de ser
solipsista e uma abertura ao outro e diferente para ser si mesmo ao dizer eu mesmo,
meu mesmo, fazendo seu o outro absoluto, em sua língua, ao beijá-lo como seu na-
morada.

REFERÊNCIAS

DERRIDA, J.; DUFOURMANTELLE, A. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida


a falar Da hospitalidade. Tradução de Antonio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.

DERRIDA, J., O monolinguismo do outro ou a prótese de origem. Tradução de


Fernanda Bernardo. Belo Horizonte: Chão da Feira, 2016.

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CUPIDO E PSIQUÊ NAS SALAS DE AULA – O AMOR NO


MAGISTÉRIO É ROMÂNTICO
Renato Simões Moreira
Universidade Federal Fluminense

Margareth Martins de Araújo

Maria Teresa Esteban

Resumo: O mítico amor que acompanha a profissão docente traz em seu bojo
inefáveis deleites e agruras e aflições bem reais. Espera-se dos docentes uma devoção
que beira a abnegação sacerdotal ou a dedicação familiar; seja devido à imagem
legada pelos jesuítas ou ao retrato das “tias” bem-comportadas, o amor pedagógico
está acima de todas as demandas do cotidiano, superando questões salariais, a busca
por melhores condições de trabalho ou a valorização da carreira. Contudo, em troca
da robusta solidez do fardo que impõe, este amor oferece recompensas tão etéreas
que se desvanecem no ar, sem deixar vestígios. Este texto tenciona debruçar-se de
forma crítica sobre a construção social do amor pedagógico e seus efeitos
precarizantes para a atuação docente.
Palavras-chave: autoimagem docente; desvalorização da docência; imagens sociais
do professor; precarização do trabalho docente.

INTRODUÇÃO
Somente um amor incompleto pode ser romântico.
(Woody Allen)

Diz o velho mito que, enciumada das atenções recebidas pela princesa
Psiquê, enquanto seus templos esvaziavam, Vênus incumbiu seu filho Cupido de
feri-la com suas setas mágicas, para que se visse perdida de amores pelo mais
repulsivo dos homens – uma vingança que não carece de ironia, haja vista que a
própria deusa era casada com o coxo e disforme Vulcano. Mas, volta-se o feitiço
contra o feiticeiro: Cupido se esgueira silenciosamente pelo quarto de Psiquê, com
uma flecha ajustada em seu arco; contudo, capturado num instante fugaz pela
beleza hipnótica de seu alvo, acaba ferindo a própria perna, quando a beldade,
ainda em seu sono, esbarra-lhe a mira. O deus vê-se preso por seus artifícios,

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enamorado pela mortal que deveria enfeitiçar.


Os mitos estabelecem pontes entre o sensível e o inefável; nas palavras de
Fernando Pessoa, “o mito é o nada que é tudo” (1998, p. 21), e experiências
arquetípicas ganham peso, textura e consistência, graças às narrativas míticas. O
amor, é claro, não escaparia a este recurso epistemológico, sendo retratado
classicamente como um menino alado, às vezes, com seus olhos vendados – pois o
amor é cego –, trazendo às mãos um arco e uma aljava cheia de flechas encantadas
às costas, prontas para induzir paixão ou desprezo nos corações que feriam.
Embora Cupido, chamado Eros pelos gregos, encarne o amor sensual, é
interessante observar a flexibilidade deste mito, que se presta a muitas e diversas
interpretações, inclusive de viés pedagógico.
A provocação aqui proposta é problematizar o amor, alardeado no
imaginário popular como indispensável à atuação docente. Não seria uma
construção social que, enquanto confere uma suposta dignidade inefável aos
educadores, também joga sobre seus ombros um fardo demasiadamente pesado?
Não seria esta imagem do amor docente seta enfeitiçada, quimera criada e
alimentada pelo senso comum, uma inculcação ideológica mais afeita à alienação
do educador quanto às condições em que se vê obrigado a atuar que condição sine
qua non para o exercício de seu ofício?
Contudo, para se buscar indícios que nos conduzam a uma possibilidade de
resposta para essas questões, faz-se mister compreender, brevemente, aspectos da
jornada histórica da profissão docente no Brasil e seu itinerário, que vai do
sacerdócio à proletarização ao longo do tempo.

DO JESUÍTA À TIA
O senso comum pedagógico brasileiro é afeito à ideia de que a educação é
uma atividade ideológica e apaixonada – ora vocação jesuítica, a ser exercida com a
devoção e a ataraxia de um monge, ora paixão militante de quem quer doutrinar a
juventude, como muito se vem acusando os professores de fazer, notadamente das

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humanidades. São comuns declarações que impõem ao magistério uma essência


vocacional baseada no amor por sua atividade, acima de qualquer coisa – Cid
Gomes, o então governador do Ceará, em 2011, afirmara, diante de docentes em
greve que reclamavam reajuste salarial, que “quem quer dar aula faz isso por gosto,
e não pelo salário”.41 Frequentemente, é digno de nota, ao se fazer referência à
docência, surge aqui e ali a palavra “vocação”; pudera: de 1549 até sua expulsão, em
1759, os jesuítas foram, por excelência, os mestres à disposição num Brasil incipiente,
no qual as elites procuravam emular os conceitos de cultura e erudição da
metrópole europeia. Em 1847, a Ordem de Jesus retornaria ao Brasil, e sua
pedagogia é defendida até hoje pela educação tradicional (GADOTTI, 2011, p. 72).
Quanto da imagem do missionário, do tutor religioso, vocacionado e monástico não
se infiltrou em nosso imaginário, ao longo de séculos?
“O tipo de educador imperial era o mestre religioso imbuído de sólida cultura
humanística: um educador culto, ao mesmo tempo que abnegado e piedoso, e
fortemente vinculado à tradição peninsular”: eis o retrato do missionário dado por
Larroyo, produto do diligente trabalho de “mosteiros, conventos e colégios erigidos
por todos os lugares da Península Ibérica” (1982, p. 389). Ainda na metade do século
XVIII, discutia-se na Europa seriamente a profissionalização do professor, e embora
houvesse daí por diante uma estatização e secularização da classe, por assim dizer,

não houve mudanças significativas nas normas e nos valores originais da


profissão docente. Gerados dentro das congregações religiosas, o modelo
e o perfil de professor construíram-se e mantiveram-se muito próximos
aos de um sacerdócio. (LENGERT, 2011, p. 12).

Não é necessário um grande exercício de imaginação para reconhecer, no


missionário ibérico, atributos que seriam transmitidos à imagem docente e
mantidos, mesmo no século XXI. A profissionalização do magistério passou – e
passa – por percalços incomuns às demais ocupações. Ainda que se abstraia da
declaração de Cid Gomes, por exemplo, o fator econômico, é corriqueira a
afirmação de que o magistério é uma atividade predominantemente “amorosa”.
41 Disponível em: <https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/ce/professor-deve-trabalhar-por-amor-
nao-por-dinheiro-diz-cid/n1597184673225.html>. Acesso em 2 de abril de 2019.
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Lado a lado com a visão clerical, do professor “jesuíta”, temos a “tia”, apodo
carinhoso dado à professora de primeiras letras e introdutora da criança no mundo
da cultura escolar, cujo título “afetivo” escamoteia as dificuldades que cercam o
ofício. Nas palavras de Paulo Freire,

Identificar professora com tia, o que foi e vem sendo ainda enfatizado,
sobretudo na rede privada em todo o país, é quase como proclamar que
professoras, como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se,
não devem fazer greve. Quem já viu dez mil “tias” fazendo greve,
sacrificando seus sobrinhos, prejudicando-os no seu aprendizado? E essa
ideologia que toma o protesto necessário da professora como
manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de
tias, se constitui como ponto central em que se apoia grande parte das
famílias com filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias
de crianças de escolas públicas. (FREIRE, 1997, p. 9-10).

Insurgindo-se contra condições precárias de trabalho e remuneração, não


bastasse ser a classe docente traidora de sua “sagrada” missão pedagógica, torna-se
também “tia desnaturada”, espécie mercenária que coloca suas mesquinhas
necessidades prosaicas acima do bem-estar pedagógico de seus “sobrinhos” – a
greve, o protesto, insidiosamente deixam de ser militância contra a precarização da
profissão e tornam-se ataque aos discentes.
Não é apenas no senso comum pedagógico – ou senso comum, só –, que se
encontram declarações acerca do indispensável amor docente. Paulo Freire, patrono
da educação brasileira, afirmava-nos que “ensinar exige querer bem aos educandos”
(2011, p. 138). Contudo, a sua afetividade jamais se converte em amarra do fazer
docente, amor piegas, cínico, feito de concessões convenientes aos gestores dos
sistemas de ensino – estes, sim, na maioria das vezes, mais preocupados com
questões imediatas de ordem econômica ou político-partidária. Perceba-se que
“esta abertura ao querer bem não significa, na verdade, que, porque professor, me
obrigo a querer bem a todos os alunos de maneira igual. Significa, de fato, que a
afetividade não me assusta, que não tenho medo de expressá-la” (FREIRE, 2011, p.
138). O querer bem, o afeto, apresentam-se como possibilidades, não como
imposições.
Entretanto o amor, para Rubem Alves, é condição indiscutível para o
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magistério; ele chega a diferenciar, por quesitos afetivos, o professor do educador:


aquele seria gerenciado pelos interesses do sistema, enquanto este “tem amor e
paixão pelo faz” (apud GADOTTI, 2009, p. 55). Aliás, fora do senso comum e dos
cartões de felicitações ao dia do mestre, Rubem Alves é o autor que mais
fidedignamente dá corpo ao amor pedagógico – ora com metáforas sutis, ora com
símiles picantes que envolvem o amor erótico, o coito, a atração animal. Diz o autor,
em Ao professor, com meu carinho, que

Toda experiência de aprendizagem se inicia com uma experiência afetiva.


É a fome que põe em funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto.
O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não confundir afeto com
beijinhos e carinhos. Afeto, do latim affecare, quer dizer “ir atrás”. O afeto
é o movimento da alma na busca do objeto de sua fome. É o eros
platônico, a fome que faz a alma voar em busca do fruto sonhado.
(ALVES, 2011, p. 34).

Não é a única aproximação, de sua parte, entre ensino e amor físico – na


mesma obra, sugere que “seria interessante que houvesse avaliação dos professores
para saber quais são os excitantes e quais são os brochantes”, pois estes poderiam
causar “impotência de inteligência” (ALVES, 2011, p. 19). Enquanto na obra de Freire,
o afeto abre-se como possibilidade, com Rubem Alves não basta ensinar com amor:
faz-se necessário viver num constante estado de “ereção intelectual”, espécie de
priapismo propedêutico. Um verdadeiro erotismo educacional, repleto de metáforas
sobre excitação, penetração e fecundação. A inteligência é falo. Em A pedagogia dos
caracóis, afirma que

[...] o professor, antes de ser um ensinador de saberes, é um provocador


de amor. É preciso que os alunos estejam eroticamente excitados pelo
objeto para que desejem possuí-lo pela penetração da inteligência. Se
assim não for, se os alunos não forem excitados eroticamente pelo objeto,
tudo que lhes for ensinado será rapidamente esquecido. O professor,
assim, seguindo a sugestão de Roland Barthes, é um mestre do Kama
sutra – ele ensina as várias maneiras de conhecer, no sentido bíblico, o
objeto. (ALVES, 2010, p. 61).

Bem querer, afeto, “tesão” pedagógico. Amores platônicos ou picantes,


ternos ou intensos – amores para todos os gostos. Contudo, resta-nos a pergunta: o
amor bastará?
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MORRENDO DE AMOR
Há que se considerar que, enquanto categoria, os professores mais têm a
perder que ganhar, quando o “amor” entra nos cálculos do exercício profissional.
Tânia Zagury, pesquisadora carioca com experiência em educação, antes da
publicação de seu livro, O professor refém (2006), escreve à revista Nova Escola que
o mito de que o afeto e o carinho são imprescindíveis à educação aprisiona o
educador – “Esse mito acaba dando a entender que um professor que não faz
brincadeiras, mesmo dominando os conteúdos, não é competente. Se ele é frio nas
relações pessoais, é rotulado de inapto 42”. As exigências afetivas da profissão, além
de porem em xeque a própria competência, escamoteiam outros fatores de
precarização do trabalho docente, a começar pela remuneração. Dentre as
profissões de nível superior, ela é a mais mal remunerada – até junho de 2018,
professores de escolas públicas ganhavam, em média, 74,8% do que ganham
profissionais assalariados de outras áreas, ou seja, “cerca de 25% a menos, de
acordo com o relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional
de Educação (PNE)43”.
Os problemas não terminam por aí: as condições precárias de trabalho da
maioria dos docentes e as relações tensas em sala de aula fazem com que muitos
deles sejam afetados pela síndrome de Burnout – uma doença ocupacional
caracterizada por extremo esgotamento físico e emocional:

Uma pesquisa realizada pela psicóloga Nádia Maria Beserra Leite, da


Universidade de Brasília (UNB), com mais de oito mil professores da
educação básica da rede pública na região Centro-Oeste do Brasil revelou
que 15,7% dos entrevistados apresentam a síndrome de Burnout, que
reflete intenso sofrimento causado por estresse laboral crônico. “A
enfermidade acomete principalmente profissionais idealistas e com altas
expectativas em relação aos resultados do seu trabalho. Na
impossibilidade de alcançá-los, acabam decepcionados consigo mesmos e

42 Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/914/tania-zaguryo-professor-precisa-ser-


ouvido>. Acesso em 2 de abril de 2019
43 Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-06/professores-ganham-
25-menos-que-profissionais-de-outras-areas>. Acesso em 2 de abril de 2019.
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com a carreira”, explicou. (PORTAL DO PROFESSOR, 2019).44

Vítimas de um alto idealismo e expectativas irreais, os profissionais de


educação experimentam a deterioração de sua saúde física e mental, até que seu
ofício se torna uma fonte constante de sofrimento e frustração. Contudo, o extremo
desgaste pessoal e a baixa remuneração talvez fossem suportáveis se a profissão
gozasse de algum prestígio; haja vista o idealismo e as virtudes sublimes que se
esperam por parte do professor, seria de se esperar que o povo visse tal profissional
com profundo respeito e admiração. Mas não é esse o quadro: de acordo com
pesquisa realizada pela Varkey Foundation, em 35 países, em 2018, o Brasil ficou em
último lugar no ranking de status do professor45. A pesquisa demonstra que apenas 9% dos
brasileiros acham que os professores são respeitados por seus alunos, e 88% consideram a
docência uma profissão de baixo status. Novamente, Zaguri faz apontamentos que nos
sugerem indícios para tamanho desprestígio:

Ela [a sociedade] está cada vez mais consumista e imediatista, voltada


para a busca do prazer e para a criação de desejos e necessidades. A
mídia dá um valor absurdo à fama, ao poder e ao dinheiro. O saber e as
conquistas intelectuais são minimizados. Esforço e dedicação não são
méritos levados em consideração. O discurso teórico defende que a
Educação é imprescindível, mas o que se vê na prática é um
endeusamento do que é fácil e do que dá prazer imediato. E aprender,
muitas vezes, é difícil e sofrido. Com o saber desvalorizado, a escola e o
papel do professor também ficam desprestigiados. (NOVA ESCOLA,
2019).46

O professor, de quem se espera um trabalho “por gosto”, amorosamente dedicado


a seu fazer pedagógico, é um profissional mal remunerado, estressado, deprimido e
desprestigiado. E as tentativas da categoria docente de obter melhores condições de
trabalho ou salários mais dignos, como vimos, não são recebidas pela opinião
pública como atitudes moralmente dignas de profissionais guiados por um
idealismo transcendente que, aparentemente, supera questões mundanas como
44 Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=38>.
Acesso em 2 de abril de 2019.
45 Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/11/08/brasil-cai-para-ultimo-lugar-
no-ranking-de-status-do-professor.ghtml>. Acesso em 2 de abril de 2019.
46 Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/914/tania-zaguryo-professor-precisa-ser-
ouvido>. Acesso em 2 de abril de 2019.
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remuneração, saúde e bem-estar.


Num quadro destes, como “manter acesa a chama” do amor docente?

CONCLUSÃO – MENOS EROS, MAIS ALLEN


A epígrafe deste texto é retirada do filme Vicky, Cristina, Barcelona, de
Woody Allen. Uma película que exalta as virtudes do amor – sublime, arrebatador,
empolgante –, mas também faz sua desconstrução – caprichoso, inconveniente,
volúvel –, porque é um sentimento verossímil, e não sua idealização. Fosse-me
possível dar nova redação à frase, diria que apenas o amor não consumado pode
ser romântico. Porque só o amor que não se realiza pode ser idealizado.
Essencialmente, é isso que caracteriza o Romantismo, movimento literário do século
XIX – a idealização da realidade. A natureza idealizada por nossos poetas indianistas
era exuberante refúgio exótico para o índio, herói também idealizado – nobre e
impoluto –, para suprir nossa carência por cavaleiros de capa e espada que nos
representassem os valores pátrios. O amor romântico, pérola das idealizações, era
único, irresistível, arrebatador – salvava ou levava à perdição, matava ou vivificava.
Ele era intenso e devastador, mas nunca prosaico; simplesmente, porque não se
prestava às exigências mesquinhas impostas pela vida cotidiana. Assim é, também, o
amor pedagógico, que se sustenta no imaginário popular e em vasta literatura (nem
sempre) de autoajuda. Diferente do bem querer colocado por Paulo Freire –
sentimento espontâneo e, principalmente, possível –, é um afeto artificialmente
cultivado e mantido, não sem enorme esforço e grande sacrifício por parte dos
docentes, pois veem mascaradas suas necessidades profissionais por um pretenso
sentimento transcendente de dever.
O mito de Cupido e Psiquê tem, eventualmente, um final feliz: após uma
série de peripécias, Vênus aceita sua nora, que recebe do próprio Júpiter uma taça
com o néctar da imortalidade, tornando-se então, ela mesma, uma deusa. Viveram,
daí por diante, um amor feliz e eterno – eterno e feliz, claro, porque mítico.
Encantados como Cupido, este final feliz só seria possível aos docentes se o amor

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pedagógico não tivesse o peso e a consistência dos sonhos. Talvez, a solução para
os professores seja dar a seus amores o peso da realidade, para vivê-los plenamente
(eternos... enquanto duram!), rir seu riso e derramar seu pranto, como diria o poeta,
no mundo real – porque amores míticos podem ser tudo, menos consumados. E
conduzem os amantes àquela frustração amorosa, tão letal e comum ao Mal de
Século – os ultrarromânticos. Em prol da sanidade mental de nossos docentes,
menos Eros e mais Allen.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. A pedagogia dos caracóis. Campinas: Verus, 2011.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho
d’água, 1997.

GADOTTI, Moacir. Pensamento pedagógico brasileiro. São Paulo: Ática, 2010.

GENTILE, Paola. Tania Zagury: “O professor precisa ser ouvido”. Nova Escola.
Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/914/tania-zaguryo-professor-
precisa-ser-ouvido>. Acesso em 2 abr. 2019.

LARROYO, Francisco. História geral da pedagogia. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

LENGERT, Rainer. Profissionalização docente: entre vocação e formação. Canoas: La


Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura, v. 16, nº. 2, jul./dez. 2011. Disponível
em: <https://revistas.unilasalle.edu.br/index.php/Educacao/article/view/195/209>.
Acesso em 2 abr. 2019.

MOISÉS. Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix,
2004.

SOUZA, Daiane. Burnout: síndrome afeta mais de 15% dos docentes. Portal do
Professor. Disponível em:
<http://portaldoprofessor.mec.gov.br/conteudoJornal.html?idConteudo=38>.
Acesso em 2 abr. 2019.

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TOKARNIA, Mariana. Professores ganham 25% menos que profissionais de outras


áreas. Agência Brasil. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-06/professores-ganham-
25-menos-que-profissionais-de-outras-areas>. Acesso em 2 abr. 2019.

VITORINO, Fabrício. Brasil cai para último lugar no ranking de status do professor. G1.
Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/11/08/brasil-cai-para-
ultimo-lugar-no-ranking-de-status-do-professor.ghtml>. Acesso em 2 abr. 2019.

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GILKA MACHADO: O EROTISMO COMO INSTRUMENTO DA


LIBERTAÇÃO FEMININA
Jéssica Thais Loiola Soares
Universidade Federal do Ceará

Elizabeth Dias Martins


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Este trabalho objetiva fazer uma análise residual da poesia de Gilka
Machado, demonstrando que seus poemas apresentam remanescências do
imaginário erótico cristão, difundido largamente na Idade Média e marcado pelo
conflito angustiante entre a proibição e a transgressão, sobretudo no que se referia à
figura feminina. Para realizar tal estudo comparativo, tomaremos como base a Teoria
da Residualidade (PONTES, 1999) e o poema “Eu sinto que nasci para o pecado”, da
poetisa em questão. Assim, demonstraremos de que forma a obra de Gilka Machado
revela resíduos do imaginário erótico cristão-medieval. Além disso, evidenciaremos
que, apesar do conflito, a poesia gilkiana se revela subversiva, insubmissa e libertária,
na medida em que representa a mulher como sujeito do prazer.
Palavras-chave: Erotismo; Gilka Machado; Libertação; Residualidade.

Na Idade Média Central, a Igreja Católica medieval ditava as normas que os


cristãos deveriam seguir na sua rotina sexual. A virgindade era exaltada e a mulher
não podia sentir prazer, mesmo casada, de maneira que a única finalidade do
sacrificante ato sexual era a procriação. O corpo feminino era execrado, temido e,
ao mesmo tempo, desejado. A Igreja do medievo instituiu os pecados capitais,
dentre eles, a luxúria, condenando todos os delitos da carne, rejeitando
terminantemente o prazer e tornando o corpo um objeto pecaminoso. No que
tange às mulheres, as proibições e regras se intensificavam, pois a tentação
diabólica foi encarnada no corpo feminino, seguindo a tradição bíblica do Gênesis,
segundo a qual o pecado entrara no mundo através de uma mulher, Eva.
Esse imaginário difundido pela Igreja medieval em torno do sexo, do corpo,
da mulher e do erotismo perpetuou-se residualmente ao longo dos séculos e dos
lugares, sendo o prazer feminino por muito tempo encarado como algo proibido.
No Brasil, até o início do século XX quase nada se sabia de mulheres que, na

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literatura, revelassem o desejo erótico feminino e defendessem seu direito de senti-


lo e concretizá-lo, como sujeito do prazer. Até que, nos anos 1900, Gilka Machado
assombrou os leitores do Rio de Janeiro com poemas de teor erótico. Entretanto,
em meio a uma sociedade ainda conservadora, era de se esperar que a autora em
muitos momentos refreasse seus impulsos literários repletos de imagens eróticas.
Assim, de maneira geral, percebemos durante toda a obra gilkiana um constante
conflito entre o proibido e a transgressão, uma vez que seus poemas estão sempre
divididos entre o prazer de transgredir o interdito e a dor por fazê-lo. Dessa forma,
observamos que a poesia de Gilka Machado está eivada pelo imaginário erótico
medieval, que difundia o dualismo entre o pecado e a virtude, a carne e a alma, o
Bem e o Mal.
Nesse contexto, objetivamos identificar na poesia gilkiana aspectos do
imaginário erótico medieval, evidenciando-os e analisando-os, principalmente no
que se refere ao conflito em torno do corpo, do sexo e da figura feminina. Para
tanto, tomaremos como base a Teoria da Residualidade (PONTES, 1999), segundo a
qual toda manifestação cultural mantém residualmente traços de um imaginário
anterior no tempo e no espaço. É o caso da poesia de Gilka Machado, dividida
medievalmente entre a proibição e a transgressão, marcando seus versos pela
consciência das proibições, a dúvida por desobedecer-lhes, a culpa por tê-lo feito e,
em alguns momentos, a completa entrega ao pecado.
Esse conflito é inerente ao ato erótico, tendo em vista que carregamos
heranças de uma sociedade marcada por regras de conduta sexual, como foi a
medieval. Sobre o assunto, Georges Bataille nos esclarece:

os interditos não são impostos de fora. Isso nos aparece na angústia, no


momento em que transgredimos o interdito [...]. [...] Mas experimentamos,
no momento da transgressão, a angústia sem a qual o interdito não
existiria: é a experiência do pecado. A experiência conduz à transgressão
acabada, à transgressão bem-sucedida, que, conservando o interdito,
conserva-o para dele gozar. [...] É a sensibilidade religiosa que liga sempre
estreitamente o desejo e o pavor, o prazer intenso e a angústia. (2014, p.
62).

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Tal conflito já pode ser encontrado na carta do apóstolo Paulo aos cristãos
de Roma:

Eu realmente tenho prazer na lei de Deus segundo o homem que sou no


íntimo, mas vejo em meu corpo outra lei guerreando contra a lei da
minha mente e me levando cativo à lei do pecado que está no meu
corpo. [...] Assim, com a minha mente, eu mesmo sou escravo da lei de
Deus, mas, com a minha carne, escravo da lei do pecado. (Romanos 7:14-
25).

Essa transgressão sempre pautada na consciência das proibições, na dúvida


por desobedecê-las, na culpa por tê-lo feito, na sanção e, em alguns momentos de
sua obra, na completa entrega ao pecado, é marca da poesia de Gilka Machado.
Assim, a obra da autora entra em consonância com as palavras de José Paulo Paes
sobre o erotismo, no seu prefácio à antologia Poesia erótica em tradução: “o
interdito sempre andou de mãos dadas com o seu oposto, a transgressão, a qual,
numa incoerência apenas aparente, serve exatamente para lembrá-lo e reforçá-lo:
só se pode transgredir o que se reconheça proibido.” (2006, p. 17)
Gilka Machado publicou seis livros durante sua vida, ficando sempre posta à
margem dos estudos literários, tendo em vista sofrer preconceito de gênero, classe
e raça, e, além disso, colidir contra os valores morais de uma sociedade
conservadora quanto ao elemento feminino. Acreditamos que seja esse o motivo de
sua obra ainda ser relativamente desconhecida e haver poucos trabalhos dedicados
à análise de textos tão singulares.
Para exemplificar, observemos a tensão presente nos versos a seguir, da
autora carioca, em que é nítido o conflito entre o prazer e a culpa, entre o interdito
e a transgressão:

Eu sinto que nasci para o pecado, se é pecado,


na Terra, amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.

Filha de um louco amor desventurado,


trago nas veias lírico fervor,
e, se meus dias a abstinência hei dado,
amei como ninguém pode supor.

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Fiz do silêncio meu constante brado,


e ao que quero costumo sempre opor
o que devo, no rumo que hei traçado.

Será maior meu gozo ou minha dor,


ante a alegria de não ter pecado
e a mágoa da renúncia deste amor?!… (MACHADO, 2017, p. 263-264)

Nesse poema identificamos claramente a oposição entre o querer e o


dever: eis a síntese do conflito gilkiano entre a submissão ao interdito e a sua
transgressão. A dúvida assola a poeta, dividida entre “a alegria de não ter pecado” e
“a mágoa da renúncia deste amor”. Todavia, o primeiro verso do poema já deixa
claro que a mulher representada no texto ‘nasceu para o pecado’, ‘se for pecado
amar o Amor’. Então, diante desse conflito, o que seria maior, o prazer ou a culpa:
“Será maior meu gozo ou minha dor”? Esse dualismo erótico é um resíduo cristão-
medieval claramente presente na obra de Gilka Machado, podendo ser encontrado
em muitos outros poemas de sua autoria.
Ademais, a figura feminina sempre foi alvo de misoginia ao longo da
história e, em consequência disso, as mulheres escritoras foram silenciadas, mesmo
nos maiores compêndios de literatura do país. Faz-se necessário, portanto, revelar
essas vozes e possibilitar-lhes o grito insubmisso 47 presente em seus textos.
Conforme Angélica Soares, no livro A paixão emancipatória – Vozes femininas da
liberação do erotismo na poesia brasileira (1999):

No exercício erótico de sobreposição da transgressão à proibição, a


mulher vem investindo fortemente, na busca de constituição de sua
identidade. [...] Assim, a ruptura com o modelo dominante (da
superioridade do masculino), ao se dar no espaço da experiência erótica
(no direito ao prazer e não na obrigação de procriar), dá-se também no
espaço social (na ação da mulher, enquanto construtora da sociedade).
(SOARES, 1999, p. 102).

Logo, divulgar a voz de Gilka Machado significa deixar voar a palavra


erótica de libertação da mulher, através da linguagem. Foi por meio da palavra que
47 Usamos o termo cunhado por Roberto Pontes no livro Poesia insubmissa afrobrasilusa. Segundo o
teórico, literatura insubmissa é aquela que grita, que “tem por finalidade não apenas a captação e a
interpretação da realidade, mas também a intervenção sobre ela através do agir poético e político”
(PONTES, 1999, p. 25-26). É de poesia insubmissa que trata, portanto, a obra de Gilka Machado.
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muitas mulheres escritoras lutaram pela liberdade de seu gênero, mas não foram
ouvidas. Na sociedade ainda misógina em que vivemos, em que as mulheres são
insistentemente encaradas como objetos sexuais para usufruto do prazer masculino,
o estudo de uma poesia que apresenta a mulher como sujeito do desejo mostra-se
por si só um grito de resistência.
Assim, a partir das observações feitas e do poema analisado a título de
exemplificação, verificamos que a poesia gilkiana apresenta resíduos do imaginário
erótico cristão-medieval, envolto pelo conflito entre o prazer e a culpa, entre o
pecado e a transgressão, entre os interditos sociais e a ruptura das regras. Esses
elementos remanescentes do medievo não se encontram na poesia do século XX,
de que a obra de Gilka Machado é exemplar magnânimo, tais quais apareciam na
Idade Média, pois, afinal, estamos tratando de um novo contexto temporal e
espacial. Contudo, é nítida a presença do medievo adaptada à nova realidade que o
recebe, processo esse denominado cristalização pela Teoria da Residualidade.
Portanto, constatamos que nossa pesquisa traz uma discussão de gênero
deveras importante – e, portanto, política –, pois, na sociedade ainda misógina de
hoje, não se pode deixar de falar de uma mulher que desafiou os padrões da época
para defender a sua liberdade de sentir prazer e dizer que o sente, qual sujeito,
embora mantivesse o desejo de forma conflituosa dentro de si, o que se considera
neste trabalho como um elemento residualmente medieval, por ter sido a Idade
Média o período que mais difundiu a culpa e a noção de pecado próprias do
cristianismo. De toda forma, Gilka Machado, por meio de sua poesia erótica, pregou
a libertação feminina, sendo essa, assim, uma discussão bastante atual. Logo, faz-se
necessário revelar essa voz e possibilitar-lhe o grito insubmisso presente em seus
textos.

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. 1. ed. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2014.

Amor, Língua de Eros


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LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média.


Tradução de Marcos Flamínio Peres. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

MACHADO, Gilka. Poesia completa. Org. Jamyle Rkain. São Paulo: V. de Moura
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(Org.). Poesia erótica em tradução. Seleção, tradução, introdução e notas de José
Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 14-28.

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. São
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Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. São Paulo: Associação Torre de
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Amor, Língua de Eros


Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
171

O COCÓ NO INSTAGRAM: A CONSTRUÇÃO DA “REPORTAGEM


AFETIVA” DE DEMITRI TÚLIO
Thaís Jorge de Freitas
Universidade Federal do Ceará

Edgard Patrício
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Demitri Túlio iniciou em perfil pessoal na rede social Instagram “ínfimas
reportagens afetivas sobre o Cocó”, segundo publicação de 2014. Iniciando em
linguagem epistolar, unindo fotos e vídeos de pássaros, outros bichos, da mata e de
ocupantes da floresta, o jornalista embrenha-se em uma parte da cidade que, muitas
vezes, pode parecer invisível aos habitantes. Este artigo busca investigar como se
constrói a narrativa de Demitri e como reportagem afetiva dele se aproxima e se
distancia da reportagem tradicional e da multimídia. A pesquisa aponta como se
constrói esse afeto (BECKETT E DEUZE, 2016; MEDINA, 2008; PAPACHARISSI E
OLIVEIRA, 2012) na produção do jornalista e assegura o Instagram como plataforma
de narrativa diversa.
Palavras-chave: Jornalismo; reportagem; afeto.

INTRODUÇÃO
Em julho de 2013, cerca de 50 manifestantes decidiram acampar na área
urbana do Parque do Cocó, em Fortaleza. O clima era de tensão. O quarto maior
parque urbano da América Latina poderia perder árvores nativas por conta das
obras de viadutos no cruzamento das avenidas Engenheiro Santana Júnior e
Antônio Sales, na área nobre da cidade. À época, o movimento #OcupeCocó, como
ficou conhecido, gerou polêmica. De um lado, vozes que bradavam o afeto pelo
Parque e resistiam à perda de mais áreas verdes na cidade, que vai se tornando
edificada. Do outro, o poder público alegava a necessidade da construção de mais
vias para desafogar o trânsito da região, motivo de queixa de parte da população.
No meio dos argumentos de quem era contra ou a favor da derrubada de
93 árvores, a imprensa. Com olhos e ouvidos atentos, um repórter específico já se
debruçava sobre a situação do Cocó desde 2007. Demitri Túlio, repórter especial do

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Jornal O Povo, entrou na cobertura do #OcupeCocó pelo mais antigo jornal do


estado do Ceará em circulação.
Em 1º de janeiro de 2014, Demitri escolheu trilhar um rumo paralelo: além do fazer

jornalístico no O Povo, periódico que completa 91 anos em 2019, iniciou, em seu perfil pessoal na
rede social Instagram, “ínfimas reportagens afetivas sobre o Cocó”, segundo publicação dele no dia

1º de janeiro de 2014. O aplicativo Instagram foi criado em 2010 pelo brasileiro Mike Krieger e por
Kevin Systrom. Empresas de jornalismo têm explorado as potencialidades do aplicativo para

dinamizar a difusão de conteúdo e interagir com os leitores. No aplicativo Instagram, usufruem das
potencialidades do feed (linha do tempo) e das stories (recurso do aplicativo para postagens com

tempo de permanência de 24 horas).  Atualmente, já é possível encontrar produções inteiramente


voltadas à plataforma, como a Dqker Nation, revista semanal eletrônica exclusiva para stories.

Sempre sinalizando a data da postagem, o nome da série de reportagem


afetiva, unindo fotos e vídeos de pássaros, outros bichos, da mata e de ocupantes
da floresta, o jornalista embrenha-se não só em uma parte da cidade que, muitas
vezes, pode parecer invisível aos habitantes, mas também em uma narrativa textual
– com o auxílio das marcações de @ (contas) e # (hashtags), ferramentas do
Instagram – e imagética, com fotos e vídeos predominantemente autorais. Passa a
testemunhar e a narrar as transformações no Parque do Cocó, observa rotinas de
bichos, plantas e de gente que frequenta o local. Informa e, ao mesmo tempo,
fiscaliza, denuncia. É narrador-jornalista-testemunha e, em algumas publicações, é
personagem. Rompe com o texto em terceira pessoa, mais comuns nos manuais de
jornalismo, para fazer relatos em primeira pessoa, do que vê, do que toca, do que
ouve, do que experimenta enquanto está no tema – praticamente o mesmo desde
2014 a 2019: a vida do Cocó. Da experiência dele e da apuração que vem de livros
de biologia, de pesquisadores da Universidade, da colaboração de quem também
ocupa diariamente o Cocó –, parecem resultar provas (fotos e vídeos) de que
aqueles bichos e plantas existem e resistem no Cocó, de que a ação humana
interfere no espaço com distribuição de lixo, por exemplo, de onde parte o discurso
com viés militante, a um primeiro olhar.
Até 26 de junho de 2019, Demitri Túlio somava 1.754 publicações, com 5.137
seguidores e seguia 2.584 contas no Instagram. No espaço dedicado à biografia
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173

dele na rede social, consta “Jornalista – Reportagem Afetiva – Projeto Liberdade –


dasantigas@gmail.com Fortaleza-Ceará-Brasil”. Assim, não se identifica como
jornalista do O Povo, deixa apenas uma pista de sua ligação institucional com o e-
mail que coloca, uma vez que ‘Das Antigas’ é o nome da coluna que ele assina no
jornal semanalmente aos domingos, desde o ano 2000.
Assim, houve uma catalogação das séries de reportagens afetivas do objeto
de estudo, para uma aproximação inicial para as delimitações das análises. Na conta
@demitritulio, no Instagram, são identificadas as seguintes séries:

 ‘Cocó’, de 2014 (364 postagens);


 ‘Florestas do Ceará’, de 2015 (353 postagens);
 ‘Purificar o Cocó’, de 2016 (244 postagens);
 ‘Demarcar o Cocó’, de 2017, que se interrompe no dia 5 de junho de
2017, com a demarcação do Parque (71 postagens);
 ‘Parques e Florestas’, junho de 2017 até novembro de 2017 (96
postagens);
 ‘Salvemos as Dunas do Cocó/Sabiaguaba’, de janeiro de 2018 até
maio de 2018 (24 postagens);
 Parque do Cocó, trilhas da Sebastião de Abreu, de 2 de julho a 29 de
julho (6 postagens);
 ‘Lixo Zero no Cocó’, a partir de 1º de agosto até 4 de junho de 2019;
 Arie do Cocó, a partir a data 23 de junho.

O repórter também desenvolve, simultaneamente o ‘Projeto Liberdade’, em


que abre espaço entre as publicações para narrar sobre a devolução de espécies
raras encontradas de forma ilegal na cidade. Uma questão norteou para que tivesse
início a pesquisa: no âmbito das transformações do jornalismo, quais marcas de
afeto caracterizam a narrativa de Demitri Tulio no Instagram? Outras inquiestações
são: como o Instagram viabiliza a construção dessa narrativa com elementos

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afetivos sem uma interação face a face com o seguidor? Qual a importância do
testemunho do @demitritulio na contrução desse afeto?

AFETO NO JORNALISMO
Para investigarmos a reportagem afetiva de Demitri Tulio, é necessário
desbravar em outras áreas, para além da Comunicação Social, o próprio conceito de
afeto. Na semântica do pathos grego e na da “passio” romana, indicava-se uma
proximidade à subjetividade e oposição à razão. Platão, Aristóteles, Santo
Agostinho, Pascal, Espinoza, Kant, Deleuze, Damasio são alguns dos que refletem
sobre a questão do afeto em planos como mítico, religioso, ético, político, filosófico,
poético. Neste trabalho, porém, atenho-me àqueles que constroem bases para que
o debate se estenda ao campo da comunicação.

O contexto da Segunda Guerra Mundial e as incertezas do século XX


diante de tantas transformações com o rádio, a televisão e as novas tecnologias
reforçam também novas formas de narrar no jornalismo. “As experiências cotidianas
da dor ou da alegria, dos comportamentos humanos, os espantos da crueldade –
eis alguns temas que desafiam a sensibilidade, a sutileza e o sentimento incômodo
das mentes abertas às incertezas” (MEDINA, 2008). Cremilda Medina (2008), Maria
de Fátima Oliveira e Zizi Papacharissi (2012), Beckett e Deuze (2016) e Peres (2017)
são algumas das referências sobre afeto e testemunho no campo da comunicação.
Ao propor séries de “reportagens afetivas” no Instagram, Demitri Túlio endossa o
que Charlie Beckette e Mark Deuze defendem no ensaio “On the role of emotion in
the future of journalism” (2016). Para os autores, várias mudanças na mídia
contribuíram para o envolvimento cada vez mais pessoal e emocional com o mundo
ao redor. Em primeiro lugar, os meios de comunicação serem agora
predominantemente móveis e profundamente personalizados. No caso, eles se
referem aos smartphones, e, segundo eles, nosso relacionamento com as notícias
está mudando por conta da tecnologia móvel. Além disso, citam as mídias sociais e
o movimento de compartilhamento de conteúdos que nos afetam.

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Segundo os autores, existem três fatores atualmente dirigindo jornalistas para


usarem a emoção como uma ferramenta. O primeiro é econômico. Envolver com
emoção o público funcionaria, segundo ele, como uma tentativa de chamar a
atenção. Em segundo lugar, é a tecnologia. De acordo com os autores, o uso de
conteúdos emocionais ajuda a prolongar o seu envolvimento. Por último,
transparência, com a negociação e validação para um ecossistema de notícias
afetivas.

Enquanto o jornalismo e a sociedade mudam, a emoção está se tornando


uma dinâmica muito mais importante na forma como as notícias são
produzidas e consumidas. Enfatizando a emoção como a chave, redefine
a ideia clássica de objetividade jornalística – na verdade, ela está
remodelando a ideia de notícias em si. Isso é importante porque o
jornalismo tem um papel cada vez mais importante em nossas vidas à
medida que informações, dados e mídias sociais se tornam mais
onipresentes e mais influentes. Estamos nos afogando em um mar de
histórias sobre o nosso mundo. Há uma enxurrada diária de notícias
online combinadas com a mídia tradicional que é maior do que nunca,
apesar da crise do modelo de negócios para algumas partes da indústria.
Os consumidores de notícias têm mais acesso, mais facilmente, a mais
jornalismo do que nunca (BECKETT E DEUZE, 2016, p. 2, tradução da
autora).48

Em “Affective News and Networked Publics: The Rhythms of News Storytelling


on #Egypt”, Maria de Fátima Oliveira e Zizi Papacharissi (2012) analisam como a
afetividade nos feeds de notícia do Twitter impactam na produção de notícias. O
estudo traça os ritmos da narração de notícias através da hashtag #egypt. Usando
análise de conteúdo com auxílio computacional e análise do discurso, examinam os
valores-notícia e a forma das notícias exibidas sobre #egypt de 25 de janeiro a 25 de
fevereiro de 2011, pré e pós renúncia de Hosni Mubarak. Os resultados apontam
para um hibridismo de antigos e novos valores, com ênfase na instantaneidade,

48 As journalism and society change, emotion is becoming a much more important dynamic in how
news is produced and consumed. Emphasizing emotion as the key redefines the classic idea of
journalistic objectivity - indeed, it is reshaping the idea of news itself. That matters because journalism
has an increasingly significant role in our lives as information, data, and social media become more
ubiquitous and more influential. We are drowning in a sea of stories about our world. There is a daily
flood of news online combined with the traditional media that is bigger than ever before, despite the
business model crisis for some parts of the industry. News consumers have more access, more easily
to more journalism than ever before.

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solidariedade e ambiência. O fluxo resultante combina notícias, opinião e emoção.


Elas, então, oferecem uma teoria de “notícias afetivas” para explicar o caráter
distintivo do conteúdo produzido por públicos em rede em tempos de crise política.
Neste caso, o acesso à mídia convencional foi bloqueado. Segundo as autoras,
primeiro, os feeds de notícias gerados coletivamente por cidadãos, blogueiros,
ativistas, jornalistas e meios de comunicação, quando a mídia convencional é restrita,
expõem as incompatibilidades temporais entre twittar ao vivo notícias e as
reportagens tradicionais. Os tweets atingem o “drama da instantaneidade”, que é
atraente e envolvente para os leitores, mas não necessariamente compatível com a
verificação processos dos paradigmas ocidentais do jornalismo. Jornalistas são, no
entanto, atraídos para o “drama da instantaneidade” porque isso se alinha com
valores de notícias dominantes como relevância, proximidade e, em particular,
drama e ação. Ao invés disso, resultam em narrativas paralelas, possuindo níveis
variáveis de coerência e continuidade, ainda interligados através da presença de
afeto.

Dessa maneira, as notícias afetivas e ambientais podem não ser


percebidas como substitutos jornalísticos, mas como alternativas às
tradições jornalísticas existentes. Afeto, é claro, nem sempre esteve
ausente dos noticiários tradicionais, e ainda está presente de forma
variável nos paradigmas mais partidários do jornalismo. A evolução da
neutralidade como valor dominante nos paradigmas noticiosos ocidentais
tem afetado marginalmente as notícias, principalmente como resultado de
preocupações comerciais. Feeds de notícias gerados organicamente
podem ser liberados de preocupações comerciais e, portanto, mais
inclusivos de expressões afetivas. Hashtags, por exemplo, se entendidas
como quadros para nomear eventos cobertos, são tentativas de
reivindicar poder ao caracterizar cognitivamente um evento e ao mesmo
tempo convidar a linguagem afetiva. A presente análise é indicativa de
novos valores que foram proeminentes durante os eventos das revoltas de
25 de janeiro. Mais trabalhos poderiam considerar reportagens
tradicionais e indicações diretas de autores de tweets para obter uma
compreensão abrangente dos valores – notícias no Twitter (PAPACHARISSI
E OLIVEIRA, 2012, p. 278, tradução da autora).49

49 In this manner, affective and ambient news streams might not be perceived as journalistic
substitutes, but rather, as alternatives to existing journalistic traditions. Affect, of course, was not
always absent from traditional news reporting, and it still is variably present in more partisan
paradigms of journalism. The evolution of neutrality as a dominant value in western news paradigms
has marginalized affect in news, primarily as a result of commercial concerns. Organically generated
news feeds may be freed from commercial concerns and thus more inclusive of affective expressions.
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Enquanto Cremilda Medida, em Ciência e jornalismo: da herança positivista


ao diálogo dos afetos (2008), conceitua o “jornalismo de afeto” e defende a poética
dos sentidos. Assim, a nova racionalidade jornalística saberia mesclar a técnica
(profissional e linguística) e a emoção. Ela valoriza o autoral dentro do jornalismo e o
testemunho pela sensibilidade.
O jornalista, o comunicador como agente cultural, ocupa um lugar
privilegiado na sociedade – não pode se contentar em exercer a função
administrativa dos sentidos já estabelecidos em qualquer instância de
poder. Para renovar e criar uma narrativa rigorosa, sutil e solidária, é preciso
contato e o movimento: o corpo por inteiro abre a sensibilidade para a
intuição criadora que, por sua vez, mobiliza a razão complexa para uma
intervenção transformadora. (MEDINA, 2008, p. 109).

O DIÁLOGO DE QUEM AFETA E É AFETADO PELO COCÓ


Mais que reportar em imagens, como propôs na primeira publicação de 1º
de junho de 2014, Demitri Túlio utiliza as narrativas no Instagram para dar vazão à
escrita que une, à reportagem, opinião, e traços de crônica e diário de bordo. Para
um primeiro momento, focamos apenas na reportagem iniciada no dia 1º de janeiro
de 2018: ‘Salvemos as Dunas do Cocó/Sabiaguaba’. Após a decisão de construção
de um empreendimento na área de dunas dessa região de Fortaleza, inclusive com
autorização da Prefeitura da cidade, o repórter vai ao local para relatar a riqueza da
biodiversidade. 
Nesta análise, atestamos uma nova postura do jornalista e do consumidor
da informação, os seguidores de Demitri Túlio. Nasce, dessa relação um diálogo de
quem afeta e é afetado pelo Cocó, principalmente pelo domínio do consumidor da
informação da ‘nova’ tecnologia. Segundo Peter Pál Perbalt (2008), a nossa
capacidade de afetar-se dá nesta relação. “É sempre uma questão de

Hashtags, for instance, if understood as frames for naming covered events, are both attempts to
claim power by cognitively characterizing an event and are simultaneously inviting of affective
language. The present analysis is indicative of news values that were prominent during the events of
the January 25th uprisings. Further work could consider traditional reporting and direct indications
from authors of tweets to attain a comprehensive understanding of news values on Twitter.
(PAPACHARISSI E OLIVEIRA, 2012, p. 278)

Amor, Língua de Eros


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experimentação [...] só o descobriremos ao longo da existência. Ao sabor dos


encontros” (PELBART, 2008, p. 32). Assim, o seguidor de @demitritulio passa a
influenciar até mesmo as rotinas produtivas do jornalismo.
Em 2018, do dia 1º de janeiro ao dia 24 de março, foram 15 postagens, entre
texto, vídeo e fotos. Em 3 de janeiro, ele escreve:

Salvemos as Dunas do Parque do Cocó e da Sabiaguaba! No miolo do

mangue é natural a queda de árvores. Espécies de 15, 20 metros.


Germinadas na “lama”, quando crescem, não sustentam o peso e o vento

derruba. Mas a mata reaproveita. Ninho nos ocos, morada de insetos,


comida de pássaros e sedimento... (TÚLIO, 3/1/2018)

São usadas as hashtags #manguedococó #dunas #florestadococó #árvores


#parquedococó #parquedasabiaguaba. E é nesta postagem em que aflora o
movimento dos seguidores para se posicionarem diante da postagem.
“@demitritulio o mágico das matas. Lindo vídeo. Salvemos as dunas, os mangues, as
matas. Salvemo-nos uns aos outros”, escreve a seguidora @galeara.
As postagens dos seguidores vão além do consumo da informação. Eles
reagem criticamente, perpassam o viés político e, em alguns casos, orientam até
mesmo o trabalho do repórter. Na postagem do dia 14 de janeiro, em que descreve
o desabrochar de um ipê branco, o seguidor @goyanna corrige o repórter:
“Monsenhor Bruno e Idelfonso Albano não são (ruas) paralelas?”, questiona. Ao que
o jornalista Demitri responde: “Perdão! Monsenhor Bruno com Afonso Celso”, e
modifica o texto postado sobre o ipê. Na mesma postagem, mais uma denúncia de
uma seguidora sobre a cidade de Fortaleza: “Vou passar para ver. Adoro ipês.
Precisando me alegrar com Fortaleza. Hoje cedo fui à praia, náuseas. Imundície. Pré-
carnaval na praia de Iracema. Tanto lixo, tanta sujeira”, escreve a seguidora
@gabrielaabela, endossando o discurso de descuido ambiental do poder público à
cidade, como já reporta Demitri ao publicar para salvar as dunas e a floresta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Neste primeiro estudo sobre a narrativa de Demitri Túlio no Instagram,


conclui-se que, como possibilidade do “jornalismo de comunicação”, o narrador-
repórter integra o “eu” aos relatos e aventura-se nas mesclas dos gêneros e dos
formatos jornalísticos. E, mais que isso, ele abre caminho para o processo com
domínio do consumidor da informação da “nova” tecnologia, influenciando durante
a produção do jornalismo.
Contudo, outras possibilidades de investigação afloram. Principalmente se
considerarmos, para além da narrativa, o tempo. De acordo com Motta (2013):

As narrativas criam o ontem, fazem o hoje acontecer e justificam a espera


do amanhã. A coerência narrativa criam o tempo, o nosso tempo. No seu
clássico A Montanha Mágica, Thomas Mann observou com argúcia que a
narrativa e a música dão um conteúdo ao tempo, e Paul Ricoeur (1994)
reforçou: as narrativas tornam humano o tempo. (MOTTA, 2013, p. 18)

Por ora, comprova-se apenas que a reconfiguração da narrativa jornalística


no Instagram é um novo campo de investigação e pode render possibilidades
diversas de se estudar o repórter para muito além da redação dos jornais
tradicionais.

REFERÊNCIAS

BECKETT, C.; DEUZE, M. On the role of emotion in the future of journalism. Social
Media + Society July-September 2016: 1–6.

MEDINA, Cremilda. Ciência e jornalismo: Da herança positivista ao diálogo dos


afetos. São Paulo: Summus, 2008.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Análise Crítica da Narrativa. Luiz Gonzaga Motta. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2013.

PAPACHARISSI, Z.; OLIVEIRA, M. Affective News and Networked Publics: The


Rhythms of News Storytelling on #Egypt. Journal of Communication. 62(2), 266-282,
2012

PEBART, Peter Pál. Poderíamos partir de Espinosa. In: SAADI, Fátima; GARCIA, Silvana
(Org.). Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú
Cultural, 2008.p. 32-37.

Amor, Língua de Eros


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SAI O PORTUGUÊS, ENTRA O AFRICANO: O USO DA MEMÓRIA


DO RESSENTIMENTO E DO AMOR NO PROJETO POLÍTICO DA
FRELIMO PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA NAÇÃO
Viviane de Souza Lima
Universidade Federal do Ceará

Frank Ribard
Universidade Federal do Ceará

Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre o papel, o lugar, do ressentimento e


do amor na construção de Moçambique independente. A partir da criação de uma
narrativa histórica, o grande Elizabeth Jelin chama de “grande relato”, a Frelimo
mobilizou politicamente a memória dos ressentimentos contra os portugueses e do
amor à nova nação como matriz da ideologia criada para tentar consolidar sua
legitimidade no poder e implementar uma revolução modernizadora da sociedade
moçambicana sob as inspirações do socialismo marxistalenista. Na narrativa criada
pela Frelimo para formatar a nova nação era importante destacar o orgulho africano
e confrontar e invisibilizar a herança portuguesa.
Palavras-chave: independência; moçambicanidade; amor; ressentimento; África.

Poema do futuro cidadão

Vim de qualquer parte


de uma Nação que ainda não existe.

Vim e estou aqui!


Não nasci apenas eu
nem tu nem outro...
mas Irmão.

Mas
tenho amor para dar às mãos-cheias.

Amor do que sou


e nada mais.

E
tenho no coração

gritos que não são meus somente


porque venho de um país que ainda não existe.

Ah! Tenho meu Amor a todos para dar


do que sou.

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Eu!

Homem qualquer
cidadão de uma nação que ainda não existe.

(José Craveirinha)

No Poema do Futuro Cidadão do escritor moçambicano José Craveirinha 50, a


voz poética enaltece a importância da coletividade para a conquista e a
consolidação da nova nação que está por vir. O mundo livre ainda não nasceu. O
futuro cidadão, que surgirá com Moçambique independente, anuncia a sua
chegada. O amor será o ingrediente para que o povo moçambicano construa a
liberdade. O poema de José Craveirinha é a plenitude da utopia de uma terra livre
dos colonizadores, caracterizada pela junção de todos os moçambicanos que
deverão tomar em suas mãos a construção de seus próprios destinos.
O texto de José Craveirinha nos fornece um fio condutor para pensar como o
apelo aos sentimentos foi usado pelo partido que assumiu o poder em
Moçambique, a Frente de Liberação de Moçambique (Frelimo), para um projeto
político de construção da nova nação independente. Neste artigo, me detenho a
refletir sobre dois deles, o ressentimento e o amor, este último ao qual se refere José
Craveirinha. Na verdade, a memória do ressentimento, ou ressentimentos no plural
(ANSART, 2004, p 19), e o sentimento de amor foram intensamente mobilizados
pelos novos governantes para criar um capital simbólico indefinido de argumentos
úteis no interior do campo político com o objetivo de buscar a legitimidade de seu
poder. (Idem, op.cit, p. 27)
Moçambique se tornou independente após mais de quatro séculos de
domínio português. No dia 25 de junho de 1975, nascia oficialmente a República

50 Na luta contra o colonialismo português em África, a literatura foi uma importante arma de
combate. Assumindo uma voz coletiva, a literatura exerce um papel político de projeção de um
projeto de construção de uma unidade nacional que se opõe à desestruturação e à fragmentação
social fomentadas pelos meios de produção do colonialismo. José Craveirinha foi uma dessas
principais vozes em Moçambique. Iniciou a sua carreira como jornalista no jornal "O Brado Africano",
importante veículo de imprensa de Moçambique. Em seus textos literários, Craveirinha denunciava o
descontentamento de todos os africanos submetidos ao regime colonial segregador e violento. O
escritor, nascido em 1922 e falecido em 2003, foi o primeiro africano a vencer o Prêmio Camões.
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Popular de Moçambique, último país africano a se tornar independente. Durante os


anos de colonialismo, assim como ocorreu nos outros territórios dominados por
Portugal, o povo de Moçambique foi submetido a violências de todo o tipo, físicas e
simbólicas.
As agressões praticadas contra os naturais da terra criaram um caldo de
ressentimentos que foi fomentador de um estado de revolta dos africanos que
culminou na guerra de libertação nacional, que começou em Angola em 1961. Em
Moçambique, teve início oficialmente no dia 25 de setembro de 1964 com o
confronto armado entre a Frelimo e as Forças Armadas de Portugal e durou 10 anos.
O conflito deixou milhares de mortos e feridos nas colônias portuguesas. Em
Moçambique, estima-se que foram 10 mil, sem contar os feridos.
Segundo Marc Ferro, o acúmulo de injustiças e violências caladas e
recalcadas são combustíveis de uma reação que tem duplo movimento: a explosão
que leva o subjugado a agir contra o opressor; e o movimento que o mesmo
subjugado faz para reconstruir sua autoestima e de reativar coletivamente seus
valores e de sua comunidade, irmanados em um sentimento de solidariedade e de
amor à nova nação que se anuncia.

Na origem do ressentimento, tanto do indivíduo como no grupo social,


encontramos sempre uma ferida, uma violência sofrida, uma afronta, um
trauma. Aquele que se sente vítima não pode reagir, por impotência.
Rumina sua vingança, que não pode executar e o atormenta sem trégua,
até explodir. Mas essa expectativa pode igualmente ser acompanhada de
uma desqualificação dos valores do opressor e de uma revalorização dos
seus próprios e dos de sua comunidade, que até então não os defendera
conscientemente. Isso dá nova força aos oprimidos e produz uma revolta,
uma revolução ou ainda uma regeneração – é quando uma nova relação
se estabelece no contexto do que inspirou esses levantes ou essa
renovação. (FERRO, 2009, p. 14).

A partir de Marc Ferro, podemos inferir que a memória do ressentimento é o


motor para o colonizado vencer seu algoz, o colonizador e, ao mesmo, tempo ter
restituído o direito a comandar o seu próprio destino. Após a independência, à
frente do processo de reestruturação do país, a Frelimo mobilizou politicamente a
memória dos ressentimentos e a usou como matriz da ideologia criada para tentar
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consolidar sua legitimidade no poder, conquistando o apoio da população. (FERRO,


2019)
Pierre Ansart (2004, p. 24) afirma que sentimentos criadores do
ressentimento, inveja, ciúme, rancor, maldade, o desejo de vingança, a experiência
da humilhação e a experiência do medo, podem ser estruturantes para os
nacionalismos. O ressentimento pode ser usado como base de uma ideologia
política que, ao mesmo tempo em que define os alvos do ódio e do desprezo, pode
fornecer aos membros do coletivo um reforço da autoestima e da segurança
interior. “Dinâmica encontrada nas múltiplas formas de nacionalismo”.
Na narrativa oficial criada pela Frelimo, o sentimento de ressentimento e de
amor foram operacionalizados conjuntamente na intenção de construir uma
identidade nacional entre os moçambicanos. O partido se propôs a implantar uma
revolução modernizadora da sociedade moçambicana sob as inspirações do
socialismo marxistalenista.51 Entre outros aspectos, a revolução proposta pelo Estado
tinha por objetivo dar maior condição cidadã a todos os moçambicanos, priorizando
os “indígenas”.
Outra dimensão importante da revolução foi difundir um discurso assente na
ideia de civilização, apoiado nas ideias do cientificismo. A ideia principal e pregada
pelo novo governo era que os moçambicanos abandonassem práticas consideradas
obscuras, tais como religiões tradicionais, cura de enfermidades por curandeiros, ou
a contração de matrimônio pelo dote (lobolo). O objetivo da revolução
moçambicana era conferir aos moçambicanos, e especialmente aos indígenas, a
possibilidade de verem a sua condição cidadã alargada.

Com efeito, a equalização da condição dos indivíduos sugeria a

51 Para operacionalizar a sua revolução modernizadora, o Estado moçambicano pôs em andamento


várias políticas públicas, implementando reformas na economia, estatizando inclusive o controle de
várias empesas privadas. Também adotou ações de nacionalizações de terras, hospitais, escolas,
bancos e etc. (YOUNG, 1988) A modernização de sociedades pós-coloniais foi o projeto da maioria
dos partidos que assumiram o comando dos países africanos independentes. Esses esforços, porém,
ao invés de assumirem um caráter efetivamente revolucionário, que tivesse consequências na
alteração da natureza das instituições produzidas no período colonial, caracterizaram-se apenas por
dar nova roupagem às velhas instituições.
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eliminação de elementos particularistas de identificação social como a


raça, o sexo, a etnia a região de origem, as línguas indígenas, etc., para
em seu lugar, os indivíduos passarem a se assumir e serem encarados na
sua condição de igualdade em todos os aspectos da vida social.
(MINDOSO, 2017, p. 171).

A uniformidade da cidadania interessava à Frelimo também como estratégia


para dirimir antigas rivalidades entre comunidades que podiam ser reacendidas
após a independência. Para sonhar com a nova nação, os nacionalistas defendiam a
construção de uma nova mentalidade que superasse as diferenças étnicas e
culturais. A elaboração de uma síntese cultural ou de um lema unificador, a
moçambicanidade.
Segundo MACAGNO (2009), os usos e costumes do povo de Moçambique,
quase sempre estigmatizados, constituíram o dispositivo que mobilizou e justificou a
empresa assimilacionista portuguesa. Desta forma, o recurso ao sentimento de
irmandade, de amor entre os moçambicanos, presente na narrativa oficial da
Frelimo, foi criado em contraposição ao que era considerado como herança
portuguesa.

Sai o português, entra o africano - O projeto nacional de unidade adotado


pela Frelimo tentava se sustentar na experiência partilhada da luta contra a opressão
colonial. A aposta era que a memória da luta armada contra o colonizador –
pensada de uma forma maniqueísta e homogênea pela Frelimo como uma memória
de vítimas (moçambicanos) contra algozes (portugueses) - criasse um substrato
simbólico capaz de unir a população em torno da construção de um projeto de
nação, irmanados por um sentimento de amor, para citar novamente o escritor José
Craveirinha da epígrafe deste artigo. Como afirma Fernando Catroga:

A memória é instância construtora e solidificadora de identidades, a sua


expressão coletiva também atua como instrumento e objeto de poder(es),
quer mediante a seleção do que se recorda, quer do que, consciente ou
inconscientemente, se silencia. (CATROGA, 2001, p. 55).

A memória do que se recorda, dos ressentimentos contra o colonizador, e do

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amor exaltado como elo entre o povo moçambicano foram intensamente


instrumentalizados pela Frelimo para dar legitimidade ao novo governo e a seu
projeto político. O partido atuava como “empreendedor da memória”, termo criado
por Elisabeth Jelin (2002, p. 49), ao analisar as ditaduras do Cone Sul, para
denominar aqueles que pretendem o reconhecimento social e a legitimidade política
de uma (a sua) versão sobre o passado. Os “empreendedores da memória” tentam
criar uma narrativa oficial, que Jelin chama de “grande relato”, operação simbólica
central nos processos de formação do Estado (Idem, op.cit, p. 40).
Segundo Michel Pollak (1989, p. 9), as memórias oficiais servem para definir e
reforçar sentimentos de pertencimento para manter a coesão social e a defender
fronteiras sociais entre coletividades. Ao mesmo tempo, proporcionam os pontos de
referência para "enquadrar" as memórias de grupos e das instituições que compõem
uma sociedade.
A criação de uma narrativa oficial pela Frelimo tinha como objetivo usar o
passado (sua versão sobre ele) para dar suporte a seu governo no presente.
Segundo afirma Jacy Alves, a memória é ativada visando, de alguma forma, o
controle do passado (e, portanto, do presente). “Reformar o passado em função do
presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a
materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos
arquivos, símbolos, rituais, datas, comemorações...). Noção de que a memória torna
poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla(m)”. (SEIXAS, 2009, p. 42)
Na narrativa criada pela Frelimo para formatar a nova nação era importante
destacar o orgulho africano e confrontar e invisibilizar a herança portuguesa. A
criação de símbolos pátrios, monumentos, panteões dos heróis nacionais e a
instituições de festas e comemorações fazem parte desse movimento de criar
ferramentas de identificação para o povo, de firmar a identidade nacional e de
reativação da memória oficial. (JELIN, 2002, p. 52)
Em Moçambique, os que caíram em combate ou morreram ao longo da luta
contra o colonizador foram homenageados como heróis da guerra de libertação

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nacional. A Praça dos Heróis, inaugurada em 1977, foi construída para ser um
monumento de reverência à memória dos mortos. No local, durante um comício
popular, o então presidente Samora Machel anunciou a nacionalização de todos os
prédios de rendimento, edifícios que haviam sido construídos pelos portugueses
com a finalidade de arrendamento. Na Praça dos Heróis, estão enterrados os restos
mortais de Samora Machel52 e de Eduardo Chivambo Mondlane53, primeiro
presidente da Frelimo, ambos tidos como heróis nacionais de Moçambique.
Reinhart Koselleck (2011, p. 67), no livro Modernidad, culto a la muerte y
memoria nacional, diz que os monumentos erguidos em homenagens aos mortos
em situação de guerra e conflitos servem mais do que para manter viva a memória
deles. Segundo ele, em primeiro lugar, há um reconhecimento no sentido concreto,
na medida em que os mortos são lembrados como heróis, vítimas, mártires,
vencedores (eventualmente, como vencidos), defensores da honra, da fidelidade
e/ou protetores da pátria, da humanidade, da justiça, da liberdade. “Em segundo
lugar, a los observadores supervivientes se les hace uma propuesta de identidad
ante la que deben o tienen que adoptar uma conducta”.
Eduardo Mondlane, nas referências feitas ainda hoje pela Frelimo e por
muitos moçambicanos, é lembrado como o “arquiteto da unidade nacional”. Na
data de sua morte, 3 de fevereiro, foi instituído o Dia dos Heróis Moçambicanos, em
homenagem a todos os mortos durante a luta de libertação. Mondlane virou o
símbolo da construção de Moçambique livre e “assim termina por ser interiorizado
em cada moçambicano e para além das vulnerabilidades destes”. (MENESES, 2015,
p. 17).

52 Samora Machel morreu em um acidente de avião no dia 19 de outubro de 1986 quando


regressava de uma reunião internacional em Lusaka. A aeronave cedida pela União Soviética
despencou sobre os montes Libombos, território sul-africano. Até hoje existem especulações de que
a queda foi provocada por atores sul-africanos.
53 Eduardo Mondlane morreu no dia 3 de fevereiro de 1969, em Dar-es-Salam, Tanzânia, vítima de
uma bomba escondida em um livro. A historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel (2016, p. 40),
no livro Os Cinco Pilares da PIDE, lançado em janeiro de 2019, afirma que Mondlane foi assassinado
pela Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), polícia política de Portugal, criada em outubro
de 1945.
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O discurso sobre ele construiu-se sobre a coragem e valentia, evocando


um futuro promissor para os moçambicanos, ensinando para estes a
história comum do povo africano antes da chegada dos colonizadores e a
necessária união entre as diferentes etnias para que a submissão humana
e a exploração da África chegassem a um fim. Ou seja, Mondlane é um
herói fundador da e para a nação moçambicana: comandou grupos que
até então eram rivais para que Moçambique nascesse como país. (Idem,
op.cit., p. 18).

A memória de Eduardo Mondlane é evocada pela Frelimo com um objetivo


disciplinador e pedagógico. Sua vida e morte serviram(em) de exemplo aos
moçambicanos para se manterem unidos e se sacrificarem em prol da nação.
Nesse processo de (re)construção da memória, a Frelimo também começou
a alterar nomes de lugares escolhidos por portugueses para nomes africanos, alguns
de chefes locais. Uma das mudanças foi o próprio nome da capital de Moçambique
que mudou de Lourenço Marques, nome de um e comerciante português do século
XVI, para Maputo. A baía e a fortificação construída pelos portugueses também
tiveram os nomes modificados.
Também passaram por mudanças os monumentos construídos pelos
portugueses nas décadas de 1930 e 1940 em Lourenço Marques, como parte de
uma série de intervenções estéticas no espaço público que visavam
“monumentalizar” e “portugalizar” a cidade, respondendo ao estatuto recém-
adquirido de capital da Colônia. Segundo Gerbert Verheij (2012, p. 11), tais práticas
de Portugal postulavam o monumento como “alegoria da Nação” e
desempenhavam, assim, um importante papel político na reformulação autoritária
do espaço público da cidade como espaço “imperial”.
As estátuas de soldados negros com fuzis russos substituíram os soldados do
Exército Português por toda a cidade. As ruas de Maputo, com nomes de
portugueses e datas importantes na história de Portugal, foram rebatizadas com
nomes de línguas africanas e passaram a homenagear nomes importantes da luta
contra o colonialismo, como Patríce Lumumba 54, e até de figuras comunistas como
54 Patrice Émery Lumumba (1925 – 1961), foi fundador do Movimento Nacional Congolês (MNC) e
principal liderança na luta contra a dominação colonial belga no Congo Belga, ocorrida em junho de
1960. Foi eleito primeiro-ministro do país em 1960, mas foi deposto após um golpe de Estado. Foi
assassinado em janeiro de 1961.
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188

Karl Max, Vladimir Lenine e Ho Chi Min.


A proposta identitária da Frelimo se baseava na construção do “Homem
Novo”. O projeto era levar à prática as teorias da guerra revolucionária de subverter
a ordem colonial e de eliminar a influência ocidental em território africano, mediante
a aplicação de influências ideológicas próximas do marxismo-leninismo.
Para a Frelimo, o principal obstáculo a vencer era a persistência das
estruturas tradicionais que, dentro do seu projeto político-ideológico, eram
interpretadas como o prolongamento político da “sociedade colonial”. “A Frelimo
estava consciente do problema, mas enfrentava-o com a convicção determinista na
dinâmica revolucionária e com uma visão iluminista do poder transformador da
ciência e do progresso” (CABAÇO, 2007, p. 413).

A concepção defendida pela Frelimo era de uma unidade que englobasse


todos os moçambicanos, sem discriminação, consubstanciada na unidade
ideológica do movimento, na unidade entre os guerrilheiros e o povo, na
unidade entre elites e massas, trabalho intelectual e trabalho manual,
cidade e campo (...) Esta unidade forjar-se-ia na participação na libertação
nacional e no comportamento quotidiano, conquistar-se-ia pela
comunhão dos sofrimentos vividos, pela convergência nos propósitos da
luta, pelo estabelecimento de “relações de tipo novo” que deveriam
ultrapassar tanto a experiência colonial como a tradicional. (Idem, 2004, p.
240).

O discurso da Frelimo sustentava que as diferenças étnicas e culturais 55 foram


fomentadas pelos portugueses para acentuar o domínio sobre os colonizados. Desta
forma, a construção da unidade em Moçambique implicava numa “luta pertinaz e,
se necessário, autoritária contra as ‘formas de divisionismo’ e, em primeiro lugar,
contra o ‘tribalismo’, o ‘regionalismo’ e o ‘racismo’, vistos como males criados e
fomentados pela sociedade colonial”. (Idem, 2007, p. 404).
Para divulgar suas ideias sobre o “Homem Novo”, a Frelimo montou um forte

55 A imposição da língua portuguesa e da religião católica foi usada por Portugal como uma
ferramenta ideológica e de transmissão de valores culturais em suas colônias. Moçambique é um país
linguisticamente e religiosamente heterogênio. A constituição de 1975, a primeira pós-colonial, não se
refere à questão das línguas, ficando subtendido que o português era a língua oficial. Apenas a
constituição de 2004, embora mantenha o português como língua oficial, explicita que “o Estado
valoriza as línguas nacionais como patrimônio cultural e educacional e promove seu desenvolvimento
e utilização crescente como línguas veiculares da nossa identidade cultural”.
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esquema de comunicação antes e depois da independência. Produziu cartazes,


cartilhas escolares, coleções e um vasto material de propaganda. Foram também
publicados diversos discursos do presidente da Frente, Samora Machel. Em um
deles, intitulado Educar o Homem para Vencer a Guerra, feito em setembro de 1970,
Machel diz a célebre frase que marca simbolicamente o ideal do “Homem Novo”
moçambicano: “Que morra a tribo para que nasça a nação”.

Criar uma atitude de solidariedade entre os homens capaz de fazer


desenvolver o trabalho colectivo pressupõe a eliminação do
individualismo. Desenvolver uma moral sã e revolucionária que promova a
libertação da mulher, a criação de gerações com um sentido colectivo de
responsabilidade, exige a destruição das ideias e gostos corruptos
herdados. Para implantar as bases de uma economia próspera e avançada
é necessário que a ciência vença a superstição. Unir todos os
moçambicanos, para além das tradições e línguas diversas, requer que na
nossa consciência morra a tribo para que nasça a nação (Grifo nosso).

No discurso, o líder da Frelimo propaga uma ideologia política que tem um


movimento de dualidade, como define Pierre Ansart (2004): designa claramente os
alvos do ódio e do desprezo, que é o colonizador português corrompido e que
corrompe; e fornece aos membros do coletivo reforço da autoestima e da
segurança interior, ideia em que se enquadram os moçambicanos que são
conclamados a se unirem pelo amor à nação.

REFERÊNCIAS

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação. Tese


apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2007.

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Universidade Eduardo Mondlane, 2002.

FERRO, Marc. O ressentimento na História. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Agir,

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2009.

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MACHEL, Samora. Educar o Homem para vencer a Guerra. FRELIMO - Colecção


Estudos e Orientações. Fundo: DMA - Documentos Mário Pinto de Andrade.
Disponível: http://www.fmsoares.pt/aeb_online/visualizador.php?
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MENESES, Maria Paula. Xiconhoca, o inimigo: Narrativas de violência sobre a


construção da nação em Moçambique. In: Revista Crítica de Ciências Sociais
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“UMA AMIZADE EMBEBEDADA” – O ESTRANHO AMOR DA ESCRITA


COMO PRÁTICA POLÍTICA NAS NOVELAS DE GUIMARÃES ROSA
Danilo Almeida Patrício
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: A partir da participação de Guimarães Rosa em um Congresso de Escritores


Latino-americanos, em Gênova (1965), refletimos, em sintonia de leitura com seu
conjunto novelístico “Corpo de Baile” (1956), sobre uma outra perspectiva de inscrição
política através da escrita artística, na imbricação dois dos lugares como alternativa e
crítica a uma forma convencional de pensar a condição política do escritor. Partindo
desse lugar do Congresso, mal-estar e confronto, procuramos entrecruzar com a
forma ficcional momentos do percurso do escritor que se ligam à construção do corpo
de linguagem artística, exemplo da infância de Guimarães Rosa e do escritor viajante
pelos sertões de Minas Gerais.
Palavras-chave: corpo; amor; política; amizade; história.

Mas você [a Lorenz] já


observou que os

[escritores] que mais


falam de política são

sempre aqueles que tem


menos livros publicados?

Quando os têm, não são


livros onde expressem

ideias semelhantes às
expostas aqui. Noto a

falta de coerência entre


suas obras e suas

opiniões56.

Em 1965, durante o II Congresso de Escritores Latino-americanos, em


Gênova, o escritor João Guimarães Rosa deixa o auditório ao ver alguns dos colegas
se alongarem nos discursos sobre política, evocada como militância engajada a ser
empreendida diante do contexto de Guerra Fria e a implementação de regimes
autoritários/ditatoriais que se espalhavam na América Latina. A atitude fora

56 LORENZ, 1973, p. 319.


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responsável na ocasião pela rotulação de Guimarães Rosa como um escritor não


político, pecha que irritara o artista, tal como se lê em seu comentário, citado acima
a partir de entrevista concedida durante o evento, após o episódio, concedida ao
crítico alemão Güten Lorenz.
Os meandros da intriga mais nos dirão quando entrecruzados com a forma
ficcional e os percursos do escritor que se ligam à construção do corpo de
linguagem artística, o que aqui observamos através da tessitura e exposição do
conjunto de novelas intitulado “Corpo de Baile” (1956). Em vez de um modo mais
explícito de se fazer política, até panfletário, como se externava no Congresso de
escritores, Rosa, recusando esse caminho, apresenta-se como defensor de um
projeto onde não se separariam poética e política, conforme expõe a Lorenz sobre
o que seria seu “credo”: “Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma
mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é
apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas
totalmente distintas”. (LORENZ, op. cit., p. 330).
Em diversos momentos da entrevista, Guimarães Rosa repulsa e combate um
modo racional para o trabalho e exposição da linguagem, o que a tornaria
superficial e limitada a interesses pontuais, de baixo alcance. “Deus me deu um
mundo de amor, mas é diferente...” (ROSA, 2001c, p. 256) Externado por uma de
suas personagens na novela “Buriti”, Lalinha, é nesse “diferente mundo do amor”
que podemos encontrar a peculiar força política no projeto rosiano. Mundo que, ao
longo das (7) novelas de Corpo de Baile, constitui-se como corpo ficcional através
do qual podemos ler a história através dos sentidos diversos externados na forma
poética: “estudava em seu corpo, adivinhado, as nascentes do amor”. Na mesma
novela, lemos que “o amor não precisava ser dito” (ROSA, op. cit., p. 190), o que nos
ajuda a perceber uma proposta política na linguagem realizando-se mais pela ação
narrativa (amor na escrita!) do que pela pretensão de definir ou classificar algo
pontualmente. Dessa forma delineia-se um percurso que, nessa perspectiva,
configura-se no encontro entre o escritor Guimarães Rosa e os ‘seus’ outros, a partir

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de sensibilidades afetivas que despertam curiosidade, fascínio, incômodos...


Compõe-se, assim, um desejo de se conhecer mais (pelo amor à escrita!),
produzindo-se na narração um deslocamento que se faz como motivação para
nascer no literário uma nova “região” de linguagem. (RICOEUR, 2007, p. 141)
A complexidade que marca a narração das novelas rosianas passa, assim,
pelos dois movimentos – escutar e escrever – que realizam Corpo de Baile como
livro. Movimentos que não podemos ignorar no processo de reconfigurar o sertão.
Eles se desdobram em ações que envolvem sensibilidades afetivas – na pesquisa da
obra e na escrita, desaguando na leitura – que trabalham com o inesperado, o
desconhecido e o impreciso. São essas ações que, como movimentos na linguagem,
pela leitura, conferem a Corpo de Baile um lugar de sertão que diz na intensidade
de afetos, como corpo que os narra de outra forma, “outra philia” (RICOEUR, op.
cit.), como “amizade embebedada, um meigo vício”, conforme se diz sobre a
ambiência dos personagens na novela “Buriti”57. Mais do que recorrência textual, o
corpo, a descrição de suas ações, é presença constante nas novelas, produzindo-as,
e assim conferindo vida intensa às narrativas. Presença vigorosa no literário, o corpo
narrado constitui, assim, a força impactante do afetivo, na descrição corpórea
vivenciada através de ações ditas com a sexualidade, as violências, as relações entre
os personagens que compõem formas de amizade, de um estranho amor
“embebedado”, presente entre ações e reações diversas que se movimentam no
interior do literário.
Essa força – política – atuante no corpo artístico aproxima-se do que nos diz
Michel de Certeau (2011) sobre o sentido do erótico da linguagem, no seu desejo de
“atração pelo não possuído”, mobilizando afetividades entre o escritor e seus outros.
Afetividades que por sua vez se movimentam entre os repertórios de escrita
explícita, na letra, e os caminhos da voz. Assim, a política compreendida no corpo
da linguagem realiza-se, no projeto Corpo de Baile, a partir da proximidade de Rosa
com um substrato (seus outros, próximos) situado nas tramas que se apresentam

57 ROSA, 2001c, p. 295.


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em condição de “desvio” dos poderes do sertão. São singularidades narradas – em


Eros! – arranhando unidades históricas (CERTEAU, 2011), em suas pretensas
expectativas generalistas. Em Corpo de Baile, a construção dessa região de
proximidade é tecida a partir de momentos como a viagem feita pelo escritor em
maio de 1952, quando Rosa percorre parte do sertão mineiro, o que se configura
em importante lugar de pesquisa e elaboração da obra.
“Quando eu escrevi o livro, eu vinha de lá, dominado pela vida e paisagem
sertanejas” (ROSA, 2003a, p. 90), diz o escritor em comentário a posteriori sobre a
obra literária, feito em 1963, em carta enviada a Edoardo Bizzarri, tradutor de Corpo
de Baile para o italiano58. Na correspondência, Guimarães Rosa refere-se mais
diretamente à viagem que realizou em maio de 1952, acompanhando e convivendo
com vaqueiros que conduziam uma grande boiada, percorrendo parte do interior
de Minas Gerais59. A menção à viagem relacionada à realização do livro Corpo de
Baile vislumbra a produção, com a obra literária, de uma escrita que faz ressurgir um
outro sertão. Assim como o artista viajante, a infância apresenta-se como outro
importante momento na escultura dessa outra região de linguagem que vai
reconfigurar o sertão brasileiro com a realização sócioestética de Corpo de Baile,
conjunto que se deflagra como livro a partir das semelhanças e diferenças entre
Rosa e o menino Miguilim, personagem a partir do qual a narração vai tocar

58 Carta enviada do Rio de Janeiro, em 25 de novembro, para São Paulo, onde residia Bizzarri. A
maioria das correspondências foram publicadas na edição que aqui utilizamos: ROSA, João
Guimarães. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. – 3. Ed.
– Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2003.
59 Rosa percorre cerca de 240 km, a cavalo, em percurso que sai de Três Marias, na Região do Rio
São Francisco, na fazenda Sirga, indo até Araçaí, na fazenda São Francisco. A participação de Rosa foi
articulada pelo primo Chico Moreira, dono das duas fazendas. O convívio e principalmente as
anotações de viagem são as principais motivações para participação de Rosa na viagem. Durante
todo o percurso, Rosa está de posse de suas cadernetas, penduradas ao pescoço enquanto cavalga.
Assim, produz uma gama de anotações, relacionadas a assuntos e temas diversos, a partir das
conversas dos vaqueiros, da paisagem observada, das sensações do escritor e do que é manifestado
em grupo a cada momento da viagem. As anotações serão constantemente revisitadas pelo escritor,
com os repertórios trabalhados principalmente na composição das novelas de Corpo de Baile. A
partir dos manuscritos, Rosa elabora também datiloscritos, em um constante processo de acréscimos
e reescritas, atuando em uma coleção reunindo escrituras que, posta em movimento nas tramas, sua
elaboração, passa a se relacionar diretamente com o corpo literário. Esse trabalho de linguagem,
com a “massa de documentação” e a matéria artística, nos mostra o artista como pesquisador
criativo, a partir da importância da viagem, desencadeadora e produtora de sentidos.
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múltiplos lugares que ultrapassam essa relação entre esse personagem infantil e o
escritor.
Tocar a infância de Rosa, sobreposta aos lugares do conjunto novelístico,
neles embaralhada, permite que se perceba – e se imagine – a presença de um
corpus de escrita que estava ao lado de Guimarães Rosa em seus primeiros anos de
vida, como lugar do qual ele não necessariamente participava plenamente,
utilizando no trabalho de escrita que, também entre lacunas, vivências e memórias,
vai gerar uma estranha posse, inscrita como presença do que Rosa quer como seu,
naquilo que com ele irá compor o corpo de escrita, com os outros que o artista
escolhe para “seus” próximos. Nesse erótico que é busca de vozes, emerge no
literário um indagar permanente que se realiza como uma dimensão de sertão
tecido com a inserção no corpo narrativo de lugares de inquietude, aquilo que se
considera abjeto, o estranho que fora expelido de um ideal asséptico de sertão. Essa
experiência outra de sertão concretiza-se no livro com o retorno, como atenta Paulo
Rónai, de “personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social
ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas,
capangas, vaqueiros”. (ROSA, 2001c, p. 18) Como observa o crítico, “eles é que
formam o Corpo de Baile num teatro em que não há separação entre palco e
plateia”. (ROSA, op. cit. idem)
Nessa perspectiva estética, a novela Buriti torna-se ápice da construção de
Corpo de Baile como jogo de sedução erótica, que se concretiza corporalmente
com o pronunciar de vozes, externado no permanente desejo entre os personagens.
É o que se lê no corpo erótico falado entre o fazendeiro Liodoro e a citadina
Lalinha, na brincadeira corporal dos personagens, que se inscreve como ação da
escrita.

– “E o corpo, o senhor gosta? A cintura?” – ela requestou. Sim, a cintura, o


busto, os seios, as mãos, os pés... Devagar, a manso, falavam de tudo
nela, os olhos, as palavras dele quentemente a percorriam. Parecia um
brinquedo. Ah, sim – ela se dizia: - tinha de ser como num brinquedo
para que pudessem, sem pejo, continuar naquilo (Idem, op. cit., p. 276).

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Na trama da novela, a família proprietária busca “consertar” sua imagem, em


nome de um ordenamento para o futuro no sertão. Pelo vocábulo, narra-se um
ideal de glórias passadas, a partir das gerações anteriores, das terras que
conseguiram “obter”. O filho do fazendeiro desfaz o casamento na cidade, com o
enredo colocando a elegante nora na “casa de palácio” do sertão, onde passará a
viver um romance com aquele que se situa no limiar de ainda ser ou não seu sogro.
Conforme o trecho citado acima, emerge no texto, de lugares distintos, “em
atração” e busca, uma corporeidade erótica espalhada nas vozes (e silêncios) que
envolvem os dois personagens e seus estados de sedução que conferem corpo ao
literário. Um corpo de “amizade embebedada”, conforme lemos, lido no encontro
entre os dois personagens. Uma embriaguez onde se lê o erótico como atração do
familiar na proximidade – linguagem e corpo – entre sogro e nora, o que se dá
como apego corporal que vai atingir como transgressão a convenção de civilidade.
Uma suposta ordem no entendimento de sertão sofrerá, frente essas vozes em
busca, inquietas na letra, uma ranhura que surge como outros lugares de
conhecimento que se inscrevem também como realização política inscrita no corpo
artístico. “Que a imagem do outro, eliminada do saber objetivo, retorne, sob outras
formas, para as margens deste saber é o que manifesta a erotização da voz”.
(CERTEAU, 2011, p. 247). É o que lemos, em Corpo de Baile, como lugar amoroso no
corpo da escrita, nela inscrita como prática política atuante em comunicação com
experiências dos outros e com leituras que a colocam em movimento.

REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

COSTA, Ana Luíza Martins. Via e viagens: a elaboração de Corpo de Baile e Grande
Sertão: Veredas. In: COSTA, Ana Luíza Marins; GALVÃO, Walnice. São Paulo,
Instituto Moreira Sales, 2006, p.187-235.

LORENZ, Günter W. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do


futuro [1965]. São Paulo: EPU, 1973, p. 315-355.

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RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, São Paulo:


Editora da Unicamp, 2007, p. 134-142; 210-214.

ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 11. ed., Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.

___________________. Noites do Sertão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c.

___________________. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor


italiano Edoardo Bizzarri. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

__________________ . A boiada [Ilustrações Paulo Mendes da Rocha]. Rio de Janeiro:


Nova Fronteira, 2011.

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Rosa. Campinas, SP: Unicamp; Edusp, 2011.

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n. 25 Araraquara, 2007, p. 39-64.

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VÊNUS ESTÉRIL – CORPOS APRISIONADOS, AMORES FUGIDIOS


(FORTALEZA 1970-1990)
Cynthia Corvello
Universidade Federal do Ceará

Mário Martins Viana Júnior


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Venustério é o neologismo criado para denominar as celas para visita íntima
das mulheres aprisionadas no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura
Costa, criada em meados de 1990, duas décadas após a inauguração da
penitenciária feminina cearense ocorrida em 1974. O hiato temporal para a
institucionalização do encontro íntimo é o mote para o trocadilho "Vênus estéril", que,
utilizado como título, tem a intenção de ser uma palavra-chave da reflexão proposta,
que objetiva, a partir de dialogo interdisciplinar com as fontes – prontuários prisionais
e entrevistas –, refletir sobre as relações de poder que buscavam normatizar os
corpos de mulheres criminalizadas reforçando espaços sociais adequados ao gênero
feminino.
Palavras-chave: Gênero; sexualidades; mulher; prisão.

INTRODUÇÃO
O primeiro presídio feminino cearense, inaugurado sob a gestão do coronel
e governador César Cals de Oliveira Filho em agosto de 1974, assentou sua estrutura
disciplinar em prédio que abrigara anteriormente uma instituição religiosa. 60 O
espaço – cuja vocação monasterial se perpetuava nos símbolos religiosos
espalhados em pátios; nos muros baixos outrora criados para isolar mulheres do
mundo exterior e não para impedi-las de ter acesso às ruas; nas referências em
relatórios sociais utilizando a frequência a encontros religiosos como sintoma de
recuperação e cura moral; nos cursos voltados para o espaço doméstico como
corte-costura, culinária e bordado; na ausência de creche para os bebês das internas
e de espaço institucional para visita íntima – sinalizava uma relação de tensão que

60 O Estado alugou a ala sul do conglomerado de prédios que pertenciam à Congregação Bom
Pastor d'Angers, onde funcionava também Instituto Bom Pastor. Localizada na Avenida Filomeno
Gomes, nº 110, bairro Jacarecanga, região centro-oeste da capital, a instituição acolheu mulheres em
situação social vulnerável, funcionando também como "[...]escola para a educação de jovens que
necessitavam de um internato para corrigir comportamentos não condizentes com a sociedade da
época." (VASCONCELOS, 2014, p.47). Para saber mais sobre a Congregação Bom Pastor d'Angers e
sua atuação como instituição total junto a mulheres criminalizadas ver ANDRADE, 2011 e ARTUR, 2017
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buscava sedimentar lugares sociais do gênero feminino – docilidade, recato e


submissão – e, por intermédio de mecanismos de força, controlar e normatizar os
desejos e paixões destes sujeitos.
Entendendo o sexo como espaço e ferramenta de poder, é possível
compreender a inexistência de um lugar, tanto para a maternidade quanto para
relações sexuais, haja vista as mulheres, quando criminalizadas, serem percebidas e
categorizadas em função de questões que vão além do ato criminal. Transgressoras
da ordem social e familiar, imorais e inadequadas para o convívio harmonioso que
se espera em uma sociedade disciplinar, elas se encontram sujeitas a

uma dupla punição: a privação de liberdade, comum a todos os


condenados, e a sujeição a níveis de controle e observação muito mais
rígidos, que visam reforçar nelas a passividade, a docilidade, a
subordinação e a dependência, o que explicaria porque a direção de uma
prisão de mulheres se sente investida de uma missão moral (LEMGRUBER,
1999 APUD GUIMARÃES, 2015, p. 36).

Isto posto, pretendemos, nesta reflexão que faz parte da pesquisa de


mestrado que ora desenvolvemos, compreender como se deram as relações de
gênero entre mulheres possuidoras de corpos sexuados e gêneros plurais e as
instituições disciplinares, de modo que seja possível pensar em uma das muitas
histórias possíveis sobre indivíduos transpassados por relações de poder em um
determinado contexto histórico e social.

NEM MARIAS, NEM MADALENAS

Ela tinha neném na maternidade. Já cheguei vezes de ir para a


maternidade de madrugada para autorizar tudinho. Mas dava, a gente
dava um jeito. Aí separava. Entendeu? (RIBEIRO, 2019, p. 03, grifo nosso).

Durante os primeiros anos de funcionamento de Instituto Penal Feminino


Desembargadora Auri Moura Costa, a partir de agora IPFDAMC, o exercício da
maternidade não se fazia possível. De acordo com Humberto Ribeiro, diretor da
unidade prisional feminina de 1974 a 1990, as mulheres gestantes que parissem
enquanto presas entregavam seus filhos e filhas a familiares, amigos ou outra

Amor, Língua de Eros


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instituição de custódia de menores após a alta do parto. De fato, ele desconhecia o


destino dado aos bebês. Ser mãe, papel naturalizado na sociedade patriarcal 61 como
o sentido maior da existência do sujeito feminino, se apresentava, portanto, como
um problema a ser ignorado ou procrastinado pela administração penitenciária, a
julgar a ausência de estrutura física como berçário ou creche, mas também em
decorrência do incipiente processo da construção de um saber assistencial laico 62
sobre estes indivíduos. Contudo, esse deslocamento de olhar sobre a maternidade
não ficou restrito ao universo intramuros. É possível inferir que houve mudanças em
meados da década de 1960 nos discursos produzidos por instituições como Estado,
Igreja e mídia acerca do controle de natalidade. Se até os anos 1950-1960 a atenção
destas instituições voltava-se ao cuidado da criança e ao estímulo à maternidade,
observa-se, já na década de 1960, uma preocupação crescente com a “explosão
demográfica” que ocorria em países da América Latina. Diligência que se materializa
em órgãos como o BEMFAM – Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil, fundado
em 1965, com forte atuação na região do Nordeste, principalmente em estratos
sociais empobrecidos (MENEZES, 2012, p. 38). Ainda é necessário citar que, nos anos
1970, a venda de anticoncepcionais em farmácia ocorria apenas com receita médica,
dificultando, portanto, o acesso a esse recurso, todavia. o mesmo não ocorria a
mulheres empobrecidas atendidas pelo BEMFAM. Segundo Menezes (2012),

os serviços de planejamento familiar prestados por aquela entidade


[BEMFAM] – distribuição de pílulas e inserção de DIUs – direcionavam-se
principalmente para as mulheres pobres. Isso ocorria porque, de acordo
com os dirigentes daquela instituição, as mulheres ricas e de classe média
já dispunham dos meios e das informações necessárias para realizar o
controle de sua fertilidade (MENEZES, 2012, p. 163).

61 "O patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou ainda, mais
simplesmente, o poder é dos homens. Ele é, assim, quase sinônimo de 'dominação masculina’ ou
de opressão das mulheres" (DELPHY, 2009, p.173).
62 Observamos que nos primeiros anos de funcionamento do IPFDAMC, o relatório social poderia
ser elaborado por outro elemento do corpo administrativo do presídio, não ficando exclusivamente a
cargo da assistente social, o que nos permite supor que o saber para lidar com mulheres no sistema
prisional estava em construção. Mesmo havendo no estado do Ceará o encarceramento de mulheres
criminalizadas anterior à inauguração do presídio feminino, eram prisões mistas ou espaços
correcionais religiosos, portanto, o IPFDAMC foi a primeira penitenciária feminina, onde corpo
administrativo – laico –, voltava-se exclusivamente para a mulher.
Amor, Língua de Eros
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O esforço de normatizar a reprodução dentro do espaço prisional fez parte


de tessituras disciplinares que forcejavam a construção de um novo sujeito social
dócil, eficiente e produtivo (FOUCAULT, 2015, p. 31-32), adequado ao desejável para
a sociedade disciplinar do período, estando, portanto, o ideal feminino “mãe”
ausente desta nova configuração, devendo ser anulado através do controle da
atividade sexual. Táticas diversas atuaram nesse sentido, algumas visíveis, outras
entrelaçadas na rotina prisional. Dessemelhantes dos homens aprisionados em
penitenciárias masculinas que recebiam, sem a necessidade de grande burocracia,
as mulheres (esposas ou não) em suas celas nos dias de visita, as detentas do
IPFDAMC não possuíam tal benefício: para impossibilitar que utilizassem os cárceres
para momentos de intimidade com seu parceiro ou parceira à revelia da
administração prisional, as mulheres deveriam ficar do lado de fora das celas
durante o período da visitação, que permaneciam trancadas até o término da visita
(ACIOLY, 200?). Nesse sentido, “a interpretação da opção ou não pela visita íntima
passa, num primeiro momento, pela desigualdade de gênero [...]” (LIMA, 2006, p.
57), desigualdade essa na permissão institucional para ter relação sexual, sendo
permitido aos homens aprisionados o que era negado às mulheres na mesma
situação.
Estes indivíduos, cujos corpos, submetidos a uma tensa relação com
mecanismos disciplinares que pretendiam, além do aprisionamento da carne e dos
desejos, inseri-los em uma lógica harmoniosa e econômica, desenvolveram táticas
para sobreviver à experiência do cárcere. Nossas fontes indicam alguns desvios que
possibilitaram encontros furtivos, tanto nos corredores da unidade prisional, que em
dias de visita social se faziam de nichos por intermédio de colchões e lençóis a
garantir certa privacidade (GALEAZZO, 2018, p. 05), quanto na unidade prisional
masculina, por meio dos encontros de amores inventados na solidão das grades e
solidariedade das colegas que se faziam ponte para estes relacionamentos, como
bem nos explicou Elena Galeazzo (2018, p.16), religiosa da Pastoral Carcerária que
proporcionou assistência espiritual no IPFDAMC de 1979 a 2014, em entrevista
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concedida para a nossa pesquisa:

[...] todo mundo tinha um marido ali [no presídio masculino], um


companheiro. Não era, bastava uma que tivesse um marido e: – dá o
nome do teu amigo porque tenho um amigo [...] vou dizer que é a
companheira dele. [...] E lá mais de uma ficaram grávida. Era preocupada
porque com esta visita íntima todo mundo ficava grávida, a maioria ficava
grávida. Muitas eram do marido, do companheiro, outras não.
(GALEAZZO, 2018, p. 16, grifo nosso).

Sexo que se fez através de pontes epistolares e sexo em oásis de algodão.


Os corpos desejosos e desejáveis certamente não eram assexuados. Nas fronteiras
definidas pelas disciplinas, havia tensão e sensualidade que escapavam das fôrmas
que buscavam harmonizar as diferenças. A homossexualidade, que na elaboração
da memória dos entrevistados surge contrafeita num esforço de ignorá-la, não se
oculta por completo quando observamos os documentos administrativos e
judiciários dos prontuários prisionais, que, transmutados em fontes, aparecem,
mesmo que sob a forma de estranhamento. Podemos inferir que das 16 mulheres
que inauguraram o IPFDAMC, uma seria lésbica, indiciada por assassinar a
companheira63 e um/uma seria o que atualmente chamamos de homem trans
heterossexual,64 mas que chega até nós como “[...] uma mulher que parecia homem
com tendências lésbicas”. O arranjo para descrever e definir um outro que não se
enquadra no normativo e passa a ser uma não-mulher possibilita-nos ter acesso a
indícios de outras formas de se viver, não apenas o gênero, mas a relação com o
corpo.
As relações homossexuais dentro do universo carcerário feminino revestem-
se de diversos significados imbricados com a vivência de cada indivíduo. Num

63 "[...] a acusada e vítima, desde que se viram pela primeira vez, não se separaram mais, viviam
juntas; que, neste relacionamento, a acusada e vítima praticavam atos de natureza sexual, uma com a
outra[...]" (VERA...1974, p. 07).
64 AAIPF – SAP. Prontuário nº 08. Carta de Guia. Vara Única das Execuções Penais. Fortaleza, 28 abr.
1975, f.1-2. Optamos por sinalizar sua possível orientação sexual – heterossexual – por entendermos
que o sujeito se percebia como homem a julgar sua performatividade de gênero masculino
sinalizada, não apenas pela descrição "mulher que parecia homem", mas também pelo crime que
este indivíduo respondia – o Art. 214: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a
praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal (BRASIL,
1940).
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primeiro momento, concordando com Lemgruber (1999), podemos afirmar que

A relação homossexual, sem dúvida preenche uma série de necessidades,


principalmente de auto-afirmação e de estabelecimento de relações
afetivas significativas, devendo se lembrar que grande parte dessas
mulheres não mantém qualquer laço afetivo com pessoas fora dos muros.
[...] um grande número encara a relação homossexual como substituto
capaz de aliviar a tensão resultante da impossibilidade de manter relações
heterossexuais (LEMGRUBER, 1999, p. 124-125).

Contudo, ainda é possível depreender que, em alguns casos, estes


relacionamentos servem como suporte simbólico, promovendo proteção frente a
conflitos que possam surgir com outras internas; ou material, oportunizando
melhores condições de sobrevivência em um espaço onde alguns víveres são artigos
de luxo. Entretanto, para além das razões pautadas nas ausências – de apoio
familiar, de acesso a relações heterossexuais, de bens materiais e de ambiência
segura –, entendemos que a mulher, quando oculta da sociedade extramuros,
permite-se experiências outras que se fazem na descoberta de sabores e texturas
similares e, ao mesmo tempo, velhas conhecidas; e, na descoberta de um novo
corpo através de corpo tão semelhante, o prazer flerta com a querência e se faz
aconchego e lar.
Por fim, mesmo que a instituição possua barreiras que impeçam as internas
de acessarem o universo extramuros, o espaço prisional, cuja função é manter
separado o indivíduo que não se adequa ao meio social, nos oferece uma lente de
aumento sobre esta sociedade, possibilitando que alguns comportamentos sociais
tornem-se mais aparentes, e, por que não dizer, desmascarados. A estrutura
patriarcal que alimenta e legitima a subordinação da mulher pelo homem em alguns
casos se faz presente em relacionamentos homoafetivos, onde o sujeito que assume
a identidade masculina oprime, agride e submete o sujeito feminino. A violência,
travestida de amor, aprisiona duplamente – ao corpo vigiado, controlado e agredido
pela instituição prisional, soma-se o olhar ciumento e cerceador que se apropria da
amante/namorada.

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CONCLUSÃO
Buscamos compreender as relações de poder que perpassavam o cotidiano
de mulheres criminalizadas a partir da perspectiva de gênero, onde dispositivos
disciplinares atuavam sobre seus corpos com a intenção de esquadrinhar,
regularizar, normatizar suas funções biológicas, como a maternidade e seus desejos.
As táticas desta instituição total65, que procuravam mortificar o eu de mulheres
criminalizadas utilizando-se de rotina rigorosa com o objetivo de reforçar o papel de
docilidade e submissão adequado ao feminino, esbarraram em indivíduos distantes
do ideal feminino de recato, docilidade, subserviência e sujeição ao homem (pai,
irmão ou marido). As mulheres aprisionadas no IPFDAMC, que, em sua maioria,
possuíam autonomia financeira (mesmo que precária ou delituosa), circulavam pelas
ruas desde meninas em busca do sustento da família. Quando adultas,
experimentavam uma certa liberdade no meio social onde viviam – iam a festas,
bebiam, fumavam, riam e falavam alto, não se mantinham “castas” e, em muitos
casos, não se prendiam ao jugo do matrimônio. Segundo Soihet (1997, p. 362), “a
organização familiar dos populares assumia uma multiplicidade de formas, sendo
inúmeras as famílias chefiadas por mulheres sós. Isso se devia não apenas às
dificuldades econômicas, mas igualmente às normas e valores diversos, próprios da
cultura popular”. Portanto, entendemos que ajustamentos ocorreram de modo que,
não desafiando diretamente os agentes de vigilância, elas conseguiram encontrar
caminhos, apesar do esforço de mortificação que objetivava provocar um
rompimento sobre as crenças que possuíam sobre si e sobre os outros, mudando
com isso suas percepções de mundo e construindo novos padrões de conduta
(GOFFMAN, 1996, p. 24). Por fim, podemos inferir que parte de seus valores culturais
não ficaram presos do lado de fora das grades do IPFDAMC e, possivelmente,
influenciaram o modo como algumas mulheres conduziram suas vidas relacionais e
65 A grosso modo, podemos definir instituição total como um lugar fisicamente separado da
sociedade em geral, onde todas as funções rotineiras do indivíduo custodiado ficam circunscrita a um
espaço único: lazer, trabalho, necessidades básicas; e que são geridas por um corpo administrativo
com o objetivo de sujeitar este indivíduo e fazer dele um novo sujeito. Em síntese "São estufas para
mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer do eu". (GOFFMAN,
1996, p. 22).
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sexuais no cárcere, onde alguns corpos, mesmo que aprisionados, viveram amores
fugidios.

REFERÊNCIAS

Fontes

Prontuário prisional

Secretaria da Administração Penitenciária Estado do Ceará – Arquivo Administrativo


do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa (AAIPF-SAP). Nº 08
– Gaveta S – Lote 1 A9G2. Acesso: 15 jun. 2018.

Entrevista Temática

GALEAZZO, Elena [Irmã Lorenza] – Entrevista [6 abr. 2018] - Fortaleza, Ceará.


Acervo pessoal.

RIBEIRO, Humberto Heitor – Entrevista [19 FEV. 2019] - Fortaleza, Ceará. Acervo
pessoal.

Periódico

Vera confirma: matou dopada. O Povo – Fortaleza, 21 jan. 1974. Caderno 1, p.7.

Publicações Oficiais

BRASIL. Decreto-Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro.


Presidência da República, Rio de Janeiro, DF, 7 dez.1940. Disponível em:
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Bibliografia

ACIOLY, Josefa Feitosa. Manifestação da Sexualidade na Prisão Feminina: Um estudo


realizado com presidiárias do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Mora
Costa-CE. [200?] Monografia (Especialista em Gestão em Segurança Penitenciária) –
Centro de Estudos Sociais Aplicados – Universidade Estadual do Ceará, Ceará [200?].

ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da Ciência, do Estado e de
Deus: O surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em:

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ARTUR, Angela Teixeira. Práticas do encarceramento feminino: presas, presídios e


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LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos: análise sociológica de uma prisão de


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MENEZES, Valderiza Almeida. “Fiquei Homem”: Maternidade, conhecimento e


contracepção entre mulheres pobres de Fortaleza (1960-1980) (Dissertação)
Mestrado – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-graduação em
História, Fortaleza, 2012. Disponível em: <http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/
6135>. Acesso em 17 mar 2019.

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heterotopia, educação corretiva, autobiografia e memória. (Tese) Doutorado em
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Pós-Graduação em Educação, Fortaleza, 2014. Disponível em:
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O AMOR E AS

IMAGENS

Amor, Língua de Eros


Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – 2019
ANTES FERIDA NO OLHO DO QUE ENXERGAR: REFLEXÕES SOBRE
SEDUÇÃO, PAIXÃO E AMOR SIMBIÓTICO A PARTIR DE UMA
INSTALAÇÃO ARTÍSTICA
Renata Froan
Instituto Federal do Ceará

Resumo: Entendendo que uma pesquisa é um processo híbrido, no qual prática e teoria se
alimentam, fomentam-se, no presente artigo busco delinear uma pesquisa em arte a partir das
reflexões produzidas pela elaboração de uma instalação artística, intitulada “Antes ferida no olho
do que enxergar”. A partir da criação da instalação, que fala do lugar do sujeito outrora
seduzido, mas em processo de ressignificação desse encontro com o outro, surgem questões
acerca das estruturas que sustentam o lugar de desconhecimento de si que os sujeitos enlaçados
pela sedução se veem colocados frente à posição daquele que seduz. É a respeito de tais
questões, que envolvem a noção de paixão, amor romântico, simbiótico, sobre as quais busco
me debruçar nesse artigo.
Palavras-chave: Arte; Artes Visuais; Psicanálise; Sedução.

INTRODUÇÃO
É partindo deste texto que a presente pesquisa se desenovela:

Eu não sabia de metade disso na época. Eu fui aprendendo com os dias em que
trocamos, juntos. Eu fui aprendendo com o estranho a estranhar. Fui aprendendo com
as ausências, as hesitações, os nomes interditos e com o hiato que gritava entre os
tempos. Aprendi, sobretudo, com o medo, este furo no olhar. E foi pela brecha no furo
do teu olho que pude ver além de ti e encontrei um velho espelho que tanto me
assusta olhar. Eu aprendi com o que vi de mim saltar de ti. Eu não sabia de metade
disso naquela época. Talvez, se eu soubesse que esse encontro seria um encontro
comigo, eu tivesse hesitado também. Porque eu não concordo com aquela canção e
penso que Narciso acha feio o que é espelho e antes ferida no olho do que enxergar. 66

Ao construí-lo, parti do intuitivo. Do desejo. Desejo de atribuir sentido a afetos que me


atravessavam e atravessam. A priori não houve qualquer conceito em jogo. Não houve outra
intenção a não ser traduzir inquietações. Inquietações estas que nesse primeiro momento
sequer havia elaborado. O deslocamento causado pela tradução dos afetos em texto se deu
com o tempo. Entre o tempo da escrita e o tempo de elaboração do que fora escrito permito
que as marcas desse processo me desassosseguem. É permitindo esse desassossego que
começo um trabalho de pensamento e criação.

66 Texto de minha autoria que compõe a instalação artística aqui tratada, “Antes ferida no olho do que enxergar”
É que em minha experiência, o trabalho com o pensamento – aquilo que em princípio
se desenvolve numa prática acadêmica, sob a forma de estudo, escrita, ensino – diz
respeito fundamentalmente às marcas, sua violência, nosso desassossego.
[…].
O pensamento, desta perspectiva, não é fruto da vontade de um sujeito já dado que
quer conhecer um objeto já dado, descobrir sua verdade, ou adquirir o saber onde jaz
esta verdade; o pensamento é fruto da violência de uma diferença posta em circuito, e
é através do que ele cria que nascem, tanto verdades quanto sujeitos e objetos.
(ROLNIK, 1993, p. 4-5).

A partir desse tempo de maturação das inquietações é que, enfim, começo a enxergar
no texto a possibilidade de construção de uma narrativa, por meio de uma composição visual.
Um relato autoficcional. Mas como dar a ver a narrativa apresentada nesse relato? Como
construir uma composição visual a partir dele? Desassossego-me outra vez. Penso, reflito e me
transformo nesse processo, me transformo enquanto crio. E na medida em que crio, inquieto-
me novamente. Do que falo? E o que é evocado quando falo? Preciso esmiuçar conceitos.
Devorar teorias. E ao passo em que as devoro, consigo construir. Assim dou início ao que aqui
defino, com base em Sandra Rey, um processo de pesquisa em arte.

[...] pesquisa em artes visuais não pressupõe a aplicação de um método estabelecido a


priori e requer uma postura diferenciada, porque o pesquisador, neste caso, constrói o
seu objeto de estudo ao mesmo tempo em que desenvolve a pesquisa. Esse fato faz a
diferença da pesquisa em arte: o objeto de estudo não se constitui como um dado
preliminar no corpo teórico; o artista-pesquisador precisa produzir seu objeto de
estudo com a investigação em andamento e daí extrair as questões que investigará
pelo viés da teoria. (REY, 2002, p. 6).

Sendo assim, esse trabalho se dá num fluxo entre criação prática, que se dá na
composição da obra, bem como processo teórico. Há momentos em que preciso da criação
prática para chegar na teoria. Em outros, engolir e regurgitar a teoria me faz compor. É um
processo indissociável. Um processo híbrido (REY, 2002).
Aqui, neste artigo, delineio as reflexões que fundamentaram e, simultaneamente,
desdobraram-se ao longo do processo que culminou na criação da instalação artística a qual
intitulo: “Antes ferida no olho do que enxergar”.

O OLHAR DE NARCISO: A SIMBIOSE


O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os dias ia
contemplar sua própria beleza no lago. Era tão fascinado por si mesmo que certo dia
caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que
chamar de narciso.
Mas não era assim que Oscar Wide acabava a história.
Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e
viram o lago transformado, de um lago de água doce, num cântaro de lágrimas
salgadas.
– Por que você chora? – perguntaram as Oréiades.
– Choro por Narciso – disse o lago.
– Ah, não nos espanta que você chore por Narciso – continuaram elas. – Afinal de
contas, apesar de todas nós sempre corrermos atrás dele pelo bosque, você era o
único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza.
– Mas Narciso era belo? – perguntou o lago.
– Quem mais do que você poderia saber disso? – responderam, surpresas, as Oréiades.
– Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
– Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era belo.
“Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre as minhas margens
eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha própria beleza refletida. ” (COELHO, 2017,
p. 11-12).

Os desdobramentos de um encontro com o outro a partir do lugar daquela que


outrora encontrava-se na posição de quem fora seduzida. É dessa perspectiva, é por esse olhar
e sobre esse olhar que busco criar a instalação artística. Falo do lugar de uma mulher que,
desvencilhando-se do jogo da sedução, encontra-se em processo de ressignificação desse
encontro com o outro. No entanto, para falar desse lugar preciso entender que lugar é este.
Preciso entender a sedução e a teia na qual ela se encontra e desenovela. Para tal, beberei da
Psicanálise, buscando alimentar as minhas reflexões a partir do texto Masculino/Feminino: o
olhar da sedução, da psicanalista Maria Rita Kehl.
Na obra, a autora vai tratar a sedução, que ela chama de “jogo”, pela mesma
perspectiva que busco falar na instalação: pela experiência da pessoa seduzida, já que é ela
“(...) quem nos deixa registro sobre sua experiência. É o seduzido que se expressa – na poesia,
na literatura, nos consultórios de psicanálise. É o seduzido que tenta compreender a
transformação que se deu nele ao mesmo tempo que tenta entender o poder do olhar do
sedutor.” (KEHL, 1995, p. 411).
Olhar de Narciso ao encontrar seu reflexo no lago. Este é o olhar perdido da
pessoa seduzida. Pensa que vê, mas nada enxerga a não ser projeção. Olhar que se perde ao
encontrar o olhar daquele que seduz. Deslumbre. O que é isso que vejo no olhar desse outro
que me faz me perder de mim? O que é isso que esse outro tem que tanto quero? No encontro
com o desejo, a fronteira que separa eu e outro parece se diluir. Como Narciso, apaixonado
por sua própria beleza, afoga-se.
Não por menos que Sigmund Freud se utilizou do mito de Narciso, do qual
cunhou o conceito narcisismo, como analogia para ilustrar o início de nossa constituição
enquanto sujeitos. Um início em que o que é eu (a imagem desse eu) e o que é outro, o
mundo externo, não parece muito claro, muito nítido. Eu (dentro) e outro (fora) na verdade são
vistos como que um, uma redoma de completude, como pontua Kehl:

Algum dia esse foi o olhar do bebê que se flagrou pela primeira vez diante de um
espelho. Reconheceu a própria imagem; entendeu e desentendeu que “aquele” outro,
externo a ele e ao mesmo tempo ele mesmo, pudesse ser tão perfeito, simétrico e
ordenado, tão bem delimitado em relação ao mundo externo.
[…].
Diante da própria imagem o bebê tentou realizar a síntese entre o corpo perfeito que
vê e o corpo desorganizado que experimenta. Síntese que demorou a realizar e
realizou de forma precária, inconstante, voltando a ocupar a criança e o adulto pelo
resto da vida a cada vez que um “espelho” de fora lhe informa: “eu te vejo assim” – e
então toca outra vez a integrar o revelado (de fora) com o vivido (de dentro), toca a
tentar outra vez alcançar a imagem idealizada pelo desejo alheio (KEHL, 1995, p. 412).

É a partir desse contato com essa imagem do espelho e de suas tentativas de ser
essa imagem (imagem perfeita), que o sujeito, segundo a teoria psicanalítica, se constituirá.
(KEHL, 1995). Imagem do espelho, que, na verdade, diz respeito a como o outro nos vê e como
apreendemos o olhar desse outro. Afinal, no início de nossas vidas, é esse outro que irá nos
inserir na linguagem, na cultura. É o outro que nos dá um nome e nos chama, é o outro que
nos veste, banha, alimenta, tenta adivinhar o que nos desconforta e nos faz chorar. O outro
sabe algo de nós antes mesmo de sabermos sobre nós. Nos constituímos a partir desse
encontro e dessa troca com o outro. Em termos freudianos, esse olhar que é o espelho do
bebê, é o olhar materno (ou de quem exerce essa função). Olhar que é recoberto de afeto por
um sujeito que ainda não se sabe sujeito. Olhar que diz: “(...) você é esta / você é esta para o
meu desejo / eu te vejo e te quero assim.” (KEHL, 1995, p.413). Portanto,

Assim se inaugura nossa vida afetiva e se implanta dentro de cada um de nós uma das
modalidades do olhar seduzido: o olhar de Narciso perplexo e maravilhado com a
própria imagem de perfeição, imagem do desejo materno.” (KEHL, 1995, p. 414).

A CEGUEIRA DE ÉDIPO: O FURO NO OLHAR


A fissura nessa construção simbiótica do narcisismo se dá na medida em que terceiros
atravessam essa relação bebê e mãe. No início de nossa constituição enquanto sujeitos, as
primeiras pessoas com as quais estabelecemos relações, laços afetivos, são nossos os pais (ou
aqueles que exercem essa função). Portanto, a teoria freudiana, utiliza-se do termo pai, para
representar uma outra figura que se colocará entre a relação criança e mãe. Com essa
presença, rompe-se a suposta completude narcísica. Processo que é fundamental para que a
criança possa se perceber e entender para além da prisão do espelho. Porque o espelho, o
olhar da mãe, é alienante. Esse olhar diz tudo e sabe de tudo da criança. E para nos
constituirmos enquanto sujeitos é necessário que nós, por nós mesmos, possamos construir
um saber sobre quem somos. Nos libertamos da prisão da simbiose a partir da construção de
um conhecimento.
Todavia, essa cisão não acontece sem que a criança relute. Há um processo de
resistência. Afinal, quando a criança se defronta com a carência da mãe e entende que essa
mãe também deseja o pai, dá-se conta que nem ela, nem mãe são uma só. Não há
completude. E este pai, que também se torna objeto de amor da criança, também se mostrará
incompleto, não sendo possível simbiose com ele, posto que o pai também deseja a mãe. E
assim, a imagem perfeita, do espelho, mãe e bebê, um só, quebra-se. Entendemo-nos então
enquanto imperfeitos, faltosos. E nossos objetos de amor, nossos pais, também. Para esse
momento, Freud fará uma analogia com outro mito grego, cunhando daí o conceito de
complexo de Édipo. Esta é “(...) a nossa primeira e mais dolorosa desilusão amorosa” (KEHL,
1995, p. 414).
É a partir dessa ferida narcísica – que Freud chamará de castração –, que a até então
criança poderá se constituir para além daquela imagem ideal, perfeita, do espelho, do olhar
materno. Agora, entendendo-se incompleta. No entanto, nesse percurso de construção de si,
que se dá a partir da relação com o outro, a velha promessa narcísica de completude, de
perfeição, retorna quando encontramos um outro objeto de desejo. E, mais uma vez, numa
busca de uma falsa promessa de preenchimento do impreenchível, mergulha-se nas águas
turvas da simbiose. E como Édipo, furam-se os olhos. Não se quer ver. Antes cegar, antes não
se deparar com o próprio buraco, a própria falta e fingir que o outro supostamente tem aquilo
que pode tapá-lo. Pela negação do que se sabe, porque saber é desamparo e o desamparo
assusta, escolhe-se deixar de ser quem se é para ser projeção: eu e outro, um só.
Esse é o lugar que o sedutor ocupa e promete ao seduzido: “(...) uma promessa de
volta à infância feliz, promete refazer o narcisismo ferido do outro (...) ao lado dele não existe
castração)” (KEHL, 1995, p. 420). Promete porque mente para si e sobre si. O sedutor foge da
sua própria falta e a pessoa seduzida embarca junto, porque foge de sua incompletude
também.

ATRAVESSANDO O ESPELHO: (RE)CONHECER A FALTA


A sedução não é paixão. A sedução não é amor. Mas ambos podem se apresentar a
partir desse jogo, ou se sustentar a partir da lógica desse jogo. A partir da lógica da simbiose.
Uma relação na qual eu e outro somos um. O outro é meu. Eu sou do outro. Eu não preciso
dizer nada, ele sabe tudo. Encantamento. Voltamos a ser Narcisos e nos depararmos com o
espelho. Mas o que vemos desse espelho de fato, somos nós?
Simbiose é a promessa que o olhar do sedutor nos oferece. Contudo, assim como no
início de nossas vidas, essa promessa de retorno ao espelho também acaba. Desilusão. Em um
determinado momento a sedução não se sustenta, porque o outro não me completa e o
seduzido sabe disso, mas encantado pelo sedutor, mente para si também. Mente que não
sabe do que sabe.
Todavia, segundo Kehl, o seduzido

[...] sai dessa experiência com mais chances do que o sedutor. Sai ainda mais
desiludido do que entrou: mais consciente de sua vulnerabilidade. Se não se encantar
muito tempo pelas vantagens secundárias do ressentimento, o seduzido e
abandonado terá boas chances de curar seus males numa relação de amor: o amor
que lhe dirá não a partir de idealizações prévias, mas a partir da intimidade, da
convivência, da troca, aquilo que a sedução lhe fez perder – a noção de quem, de fato,
ele é. (1995, p. 422).

É desse lugar de possibilidade de resgate do conhecimento sobre si e de pensar uma


outra maneira de se relacionar, de construir amor, que me interessa na posição da pessoa
seduzida para a elaboração da instalação. O desafio é como dar visualidade as questões
levantadas até aqui a partir desse um relato autoficcional.
Conforme apontei anteriormente, numa pesquisa em arte processo artístico e teórico se
relacionam, constroem-se num fluxo no qual um embasa o outro, por isso, nesta pesquisa
também procuro, a partir das questões aqui discutidas, como dar a ver, por meio da obra, tal
diálogo.
Durante todo o percurso de elaboração da instalação artística, surgiram questões
acerca das estruturas que fundamentam a lógica da sedução, a noção de amor simbiótico e,
consequentemente, o lugar de desconhecimento de si que os sujeitos enlaçados pela sedução
se veem colocados frente à posição daquele que seduz. Beber do texto da Maria Rita Kehl foi
fundamental para que fosse possível pensar numa articulação entre conceito e imagem. Sendo
assim, durante a construção da instalação, busquei construir na obra dois lugares: um lugar da
sedução e um lugar do resgate sobre si, de ressignificação da mulher outrora seduzida.

O lugar da sedução se dá a partir da implicação do meu corpo físico por meio de uma
fotografia performática. Na fotografia, vendo-me ao mesmo tempo em que a sobreposição
das imagens também sugere um enforcamento. Busco deste modo remeter a entrega passiva
de si que o seduzido se coloca. Um lugar entre Narciso e Édipo, entre a cegueira do
deslumbre da sedução e a cegueira do medo de enxergar a si. O corpo que se venda, se cega
e entrega-se ao outro.
Já no lugar do resgate de si, trabalho o corpo da palavra, do texto. Trabalho-o
enquanto borda a esse lugar da sedução, uma vez que este é o espaço da retomada da
consciência do seduzido. O texto é a retomada de sentido e atribuir sentido é construção de
subjetividade. É a partir do texto, da palavra enquanto borda, moldura desse lugar de
apagamento, que busco dar visualidade às reflexões acerca da possibilidade de saída da lógica
da simbiose para uma nova atribuição de sentido. É na palavra que me proponho, por meio da
instalação, a lançar uma seta para outras construções de amor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um processo nunca termina necessariamente quando acaba. Sendo assim, concluo este
artigo com a mesma sensação. Acredito que aqui, de fato, foi possível se construir uma
pesquisa em arte, articulando prática e teoria num processo indissociável, num processo
híbrido. Este trabalho não teria o mesmo resultado sem os contatos teóricos que necessitei
beber ao longo desse processo de construção. No entanto, acredito que essa pesquisa ainda
renda desdobramentos teóricos, por mais que a elaboração da obra esteja concluída.
Senti falta de me aprofundar sobre a sedução a partir de uma questão de gênero, pois
ela está sim, implicada neste trabalho. Porém, ao longo da escrita do artigo, não consegui,
nesse primeiro momento, abarcar esse recorte. É um ponto que acredito ser importante para
um desdobramento dessa pesquisa. Além disso, acredito que as reflexões sobre a possibilidade
de construção de uma outra forma de amor mereçam mais espaço nessa escrita.

REFERÊNCIAS

COELHO, Paulo. O Alquimista. 1. ed. São Paulo: Paralela, 2017. Disponível em:
<https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/45603.pdf> Acesso: 10 de junho de 2019.

KEHL, Maria Rita. Masculino/Feminino: o olhar da sedução. In: NOVAES, Adauto et al. O Olhar.
São Paulo: Editora, 1995. p. 411 – 410.

REY, Sandra. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes. In: BRITES, Blanca;
TESSLER, Elida (Org.) O meio como ponto zero: metodologia da pesquisa em artes plásticas.
Porto Alegre: E. Universidade/UFRGS, 2002. p. 123-140.

ROLNIK, Suely. Amor: o impossível... e uma nova suavidade. O amor anda impossível? In:
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolíticas. Cartografias do Desejo. Petrópoles: Vozes, 1996. P.
284-290.

_____________. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho


acadêmico. Cadernos de Subjetividade: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, São Paulo, v. 1, n. 2, p.
241-51, fev./set. 1993.
EROS E INDÚSTRIA CULTURAL: A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO EROS
FEMININO NO FILME A VIDA SECRETA DE ZOE
Suelen Maria de Moura Barros
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Por meio deste trabalho, pretende-se refletir sobre como a indústria cultural contribui
para a construção da imagem do Eros feminino, a partir do objeto cultural, particularmente, o
filme A vida secreta de Zoe. É notório que as representações imagéticas têm papel determinante
em manter um padrão social ou reconfigurá-lo, dependendo dos interesses estabelecidos pelo
sistema dominante. Nesse contexto, os objetos culturais, sobretudo, a linguagem imagética, têm
papel primordial na legitimação de padrões comportamentais e tendo em vista que a luta pela
emancipação feminina ganha força nas sociedades patriarcais, a repressão do Eros feminino
ainda é tabu a ser enfrentado na maioria sociedades.
Palavras-chave: Imagem; Representação; Eros feminino; Indústria cultural.

INTRODUÇÃO
O amor, em suas vertentes, tem como destaque o Eros feminino 67, visto que representa
símbolo de sedução, seja na grandiosa narrativa de Homero, Ilíada e Odisseia, na qual a mulher
tem certa relevância nos termos a que é submetida (não podemos esquecer de como a beleza
de Helena, em Ilíada, serviu de pano de fundo para o desenvolvimento dos conflitos na
narrativa culminando na célebre guerra entre gregos e troianos), ou de como O Canto das
Sereias, em Odisseia, representa de forma significativa o poder alienante da sedução feminina
(nesse episódio da epopeia, canto XII, Ulisses solicita a seus homens, ao chegar a Ilha das
Sereias, que tampem seus ouvidos com cera e se amarrem aos lastros do navio para não se
deixarem seduzi pelo canto das Sereias, representação da sedução).
Seja nos dias atuais, não apenas em narrativas fictícias, mas também no nosso
cotidiano, por meio da publicidade desenfreada, na qual o corpo feminino ainda é prerrogativa
para manutenção da alienação, a qual propõe a indústria cultural, uma das principais forma de
controle do sistema capitalista, basta ver as propagandas de cervejas ou de automóveis, para
perceber como o corpo feminino é utilizado como objeto de sedução, como atrativo para o

67 Compreende-se o termo Eros feminino nesse artigo se referindo à sexualidade feminina, já que o tema central é
a repressão sexual feminina legitimada pela indústria cinematográfica. Levando em conta que o termo Eros
relaciona-se ao princípio do prazer, da satisfação, optamos pelo termo Eros feminino, por compreender que a
satisfação feminina, seja ela sexual, seja de realização pessoal ou profissional, também é lesada, ainda que não seja
com tanta rigorosidade, como em relação à sexualidade feminina. Dessa forma, o termo Eros feminino ganha
amplitude, trazendo uma simbologia de como a figura feminina é tratada na civilização patriarcal.
público, sobretudo, masculino. O cinema, por sua vez, não podia ficar de fora das demandas
do sistema de consumo e do controle comportamental, tendo em conta ser o um dos principais
objeto de massificação da cultura. Adorno e Horkheimer (1985) na sua obra Dialética do
Esclarecimento, dizem o seguinte sobre como a técnica contribui para alienação das massas,
tendo como base a representatividade no cinema:

O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência
do expectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que
acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo
da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição
com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a
ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se
descobre no filme. Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica
pôs-se ao inteiro serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-
se distinguir do filme sonoro. (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 104).

Portanto, o cinema constrói, não apenas em termos visuais, materiais, mas também no
campo cognitivo, nas representações mentais, ideais de vida aos quais se deseja, ou não viver.
Ao passo, que um objeto cultural, como o filme, promove a criação de um estereótipo que
induz o telespectador a querer ser aquele personagem, ou ter aquela vida exibida nos filmes,
esse objeto cultural pode levar o telespectador a negar a própria realidade e viver de forma
mecânica. Independentemente do que se espera do telespectador, a indústria cultural cumpre
com seu propósito, e o cinema, sendo uma mercadoria, segue a demanda de que o mercado
consumidor exige, dessa forma, após longo processo de luta pela emancipação da mulher
(ainda não consolidada), em grande parte das sociedades ocidentais, configura-se, atualmente,
uma transição, na qual a mulher, à medida que conquista espaço nas esferas sociais que até
então lhes eram negados (compreenda-se algumas pautas conquistadas a duras penas pelos
movimentos feministas, como direito à educação, ao trabalho remunerado pautado em leis
trabalhistas, à igualdade salarial e aos direitos políticos), ainda prevalece forte repressão sobre o
Eros feminino, algo representativo no filme A vida secreta de Zoe, objeto cultural que iremos
nos pautar para fazer uma análise de como é construído o Eros feminino, levando em
consideração que o cinema sustenta a tese de que a mulher é símbolo da sexualidade frágil,
levando-a a um desequilíbrio emocional e psicológico, ou seja, o Eros feminino deve ser
repreendido68, deve ser tratado sob os cuidados médicos, em nome do equilíbrio da família

68 Vale ressaltar que essa repressão contra o Eros feminino é feita à medida que há necessidade do controle do
corpo feminino nos moldes de uma civilização patriarcal, a qual percebe o comportamento sexual feminino como
tradicional liberal, moldada, é claro, no novo padrão familiar que concede alguns direitos à
mulher na sociedade, menos o de lidar com seu próprio corpo.
Zoe, protagonista do filme, é uma mulher bem-sucedida no mercado de trabalho, tem
um casamento estável e uma família que corrobora com o padrão exigido pela nova conjuntura
neoliberal. No entanto, Zoe apresenta sério problema ao enfrentar sua própria sexualidade a
ponto de procurar ajuda psiquiátrica. Vale ressaltar que o problema de Zoe é uma situação
passiva de ocorrer tanto com homens como com mulheres, porém a personagem amarga um
peso maior devido a maneira repressora de como a sociedade lida com o Eros feminino.
Basicamente, o filme problematiza o render-se da personagem a seus impulsos sexuais, e
romantiza o seu arrependimento, o seu retorno acolhedor ao seio familiar. Nessas
circunstâncias fazemos o seguinte questionamento: até que ponto deve ser tratado como uma
questão médica, psiquiátrica, levando em consideração a marcada repressão sexual que as
mulheres sofrem?

A INDÚSTRIA CULTURAL CINEMATOGRÁFICA E A CONSTRUÇÃO DO EROS FEMININO


O cinema é uma linguagem multimodal muito prestigiada desde seu surgimento,
ganhando espaço privilegiado, em todas as classes sociais, em maior ou menor escala. Santaella
(2008, p.06) afirma que com o surgimento da Revolução Industrial, por meio do
desenvolvimento do sistema econômico capitalista e pela emergência de uma cultura urbana e
de uma sociedade de consumo, a nossa cultura passou a dar espaço aos meios de
comunicação em detrimento das belas letras e belas artes. Surge então, “os sistemas industriais
de comunicação, sistemas de geração de produtos simbólicos, fortemente dominados pela
proliferação de imagens.” (SANTAELLA, 2008, p. 6).
Nesse contexto, particularmente no século XX, as pessoas encontram-se imergidas nos
produtos culturais, os quais promovem novos estilos de vida e de comportamento, produtos os
quais parecem bastante convidativos às pessoas, pois logo sentem a necessidade de consumir
tais produtos, lançando mão das maquinarias necessárias para promoção desse consumo.
Diante desses novos estilos de vida e de padrões comportamentais, a imagem surge como

ameaça à ordem civilizatória de um sistema patriarcal. Marcuse faz reflexões pertinentes sobre esse assunto em
sua obra, Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1975.
proposta de concretização de sonhos, através da representação, através dos filmes,
propagandas, novelas, séries etc. Se no século XX, ocorreu o domínio e a apropriação das
máquinas com suas vantagens reprodutivas e representativas, no século XXI presenciamos as
realizações de ideais no ambiente virtual. Por meio das redes sociais as pessoas, em muitos
casos, criam ideais de si, ou da vida que gostaria de ter, a internet converge, no dia a dia das
pessoas, uma tessitura que até então não poderia ser tocada (e ainda não é, embora promova
particularmente a sensação de ser), o encontro do real com ideal.
A indústria cultural cinematográfica proporciona a construção de personagens com um
poder de persuasão tão considerável sobre as pessoas, levando-nos aos seguintes
questionamentos: Até que certo ponto o cinema, a mídia, é uma representação da realidade? 69
Ou seria o oposto, as pessoas agem e procuram viver conforme o que ver reproduzido nas
telas?
Adorno e Horkheimer (1985, p.105) dizem o seguinte sobre esse poder hipnótico,
pode-se dizer assim, sobre a indústria cinematográfica:

Quem está tão absorvido pelo universo do filme – pelos gestos, imagens e palavras –,
que não precisa lhe acrescentar aquilo que fez dele um universo, não precisa
necessariamente estar inteiramente dominado no momento da exibição pelos efeitos
particulares dessa maquinaria. Os outros filmes e produtos culturais que deve
obrigatoriamente conhecer tornaram-no tão familiarizado com os desempenhos
exigidos da atenção, que estes têm lugar automaticamente. A violência da sociedade
industrial instalou-se nos homens de uma vez por todas. Os produtos da indústria
cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão consumi-los
alertamente. Cada qual é um modelo da gigante maquinaria econômica que, desde o
início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descanso, que tanto se
assemelha ao trabalho. (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 105).

Os referidos autores, filósofos da Escola de Frankfurt 70, reconhecem o poder

69 Não pretendemos por meio desse questionamento realizar digressões de cunho filosófico acerca da função da
arte na vida do indivíduo, por exemplo, se a arte nega a realidade, ou se a arte reflete a realidade, mas apenas
levar a reflexão sobre como a mídia, com seus produtos de entretenimento, pode influenciar, de certo modo, o
comportamento das pessoas na sua vida cotidiana.
70 Como seu próprio nome denomina, a Escola de Frankfurt teve sua origem em Frankfurt, na Alemanha, por um
decreto do Ministério da Educação, em acordo justamente com o Instituto de Pesquisas Sociais, em três de
fevereiro de 1923. Teve como principal incentivador Félix J. Weil, filho de um negociante argentino de cerais,
doutorado em ciências políticas que procurou organizar a “Primeira Semana de Trabalho marxista” e que podia ser
uma escola de corrente sociológica, mas que optou por ser uma corrente de ordem filosófica, também
preocupada com diversos assuntos, dentre eles: econômicos e políticos, segundo consta na introdução de Paul-
Laurent Assoun: “Assim individuada, a Escola constitui o objeto de apreciações de ordem filosófica, sociológica e
política” (Assoun, 1991, p. 05) e “A ambiguidade reina nos dois primeiros anos em que Grünberg assume a direção
do Instituto. Assim, bem podemos dizer que estamos perante um projeto sociológico, mesmo econômico. Mas, a
subida de Marx Horkheimer à cabeça do Instituto em 1931, a ambiguidade dissipa-se pelo simples fato de se
manipulador da indústria cultural, para esses teóricos frankfurtianos, a comunicação de massa
desempenha papel determinante na estrutura das relações sociais modernas. A técnica
cinematográfica muda radicalmente a relação das massas com a arte. Dessa forma, as pessoas
são subordinadas à técnica cinematográfica e essa, por sua vez, compromete a subjetividade
dos indivíduos, condicionando sua maneira de ser e de pensar. Nessa perspectiva, a pessoa que
tem sua subjetividade controlada passa a seguir padrões determinados pela cultura de massa e
um dos principais alvos desse controle é a mulher.
A figura feminina há muito tempo é vista como ser representativo da sexualidade, da
sedução e a mídia lançaria mão dessa ideologia em nome da sustentação do sistema liberal.
Marcuse (1972) na sua obra Eros e Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de
Freud, na parte em que trata da origem da civilização repressiva, expõe essa dominação do
homem sobre a mulher a partir do pensamento do psicanalista Otto Rank 71, a saber, “o
desenvolvimento da dominação paterna para um sistema estatal cada vez mais poderoso,
administrado pelo homem, é, uma continuação da repressão primordial, que tem como seu
propósito a exclusão cada vez mais vasta da mulher” (MARCUSE, 1972, p. 75). Marcuse explicita
o poder do homem sobre a mulher como forma de remissão do pecado contra o pai, levando
em consideração o princípio de prazer nos estudos de Freud.
O que se pode dizer é que o Eros feminino, é tido como uma ameaça a supremacia
masculina na civilização, particularmente a ocidental. Se a mulher representa o que é natural, e
o instinto do prazer é algo natural e está intimamente relacionado a mulher, ser que pare, que
gesta um ser humano, o alimenta durante todo processo gestacional, que após a gestação
amamenta, ela representa o que é natural, e a civilização regida pelo homem, símbolo da razão
e da civilização, devem se opor ao que é natural e se impor a tudo que ameaça essa civilização,
ou pressupõe ameaça a sociedade, sobretudo, quando essa sociedade passa a ter como
objetivo, o capital, o consumo como válvula impulsionadora das relações entre as pessoas 72.

explicitada e reivindicada como exigência metodológica sob a designação de ‘filosofia social’”. (Assoun, 1991, p. 09).
In: A escola de Frankfurt e seus principais teóricos. Artigo publicado em PIDCC, Aracajú, ano III, ed. 5/2014, p. 244-
249.
71 Otto Rank, The Trauma of Birth, 1929, p. 93. (apud. MARCUSE, 1972, p. 75).
72 Pode-se dizer que civilização, sobretudo a civilização do homem capitalista, compreende a natureza, ou o que
se refere a ela, como sendo uma ameaça à civilização, entenda civilização não como normas de convívio de
membros de uma sociedade (compreensão básica do que é sociedade), mas uma concepção de sociedade a partir
do sistema capitalista, que entende civilização como forma de poder, de domínio sobre a natureza, de poder
através da sedução, do controle do homem sobre tudo que é natural, inclusive o próprio homem, sempre
Dessa forma, tudo vira objeto de consumo e o Eros feminino é construído nessa perspectiva de
objeto, de coisa que hora deve ser reprimida, ora deve servir de pretexto para promoção do
consumo, e a indústria cinematográfica se presta a essa contradição no tocante à construção e
representatividade do Eros feminino na sociedade liberal. Nesse jogo de consumo as
personagens das grandes e pequenas produções cinematográficas são criadas, editadas e
reeditadas conforme a demanda do mercado consumidor.

A IMAGEM COMO REPRESENTAÇÃO E A PERSONAGEM ZOE


Consoante Santaella e Nöth (1997, p. 15), o mundo se divide em dois domínios, o
primeiro é o domínio das imagens como representações visuais, nesse caso, imagens são
consideradas objetos materiais que representam nosso ambiente visual, por exemplo, as
imagens cinematográficas, televisivas, pinturas etc. O segundo domínio é o imaterial das
imagens na nossa mente, as quais aparecem como esquemas, visões, modelos como
representações mentais. Ambos os domínios não existem separados por estar ligados na sua
gênese. Os referidos autores afirmam que os dois domínios da imagem são conceitos de signo
e de representação.
Santaella e Nöth (1997, p. 15) explicam que o conceito de representação é conceito-
chave da semiótica desde a escolástica medieval e que atualmente se encontra no centro da
teoria da ciência cognitiva. Em meio, aos conceitos de representação para vários teóricos,
desde Platão e Aristóteles a teóricos pós-modernos como Goodman, Foucault, Derrida,
Wittgenstein, teoria marxista etc., concordamos que a imagem representa algo e que é por
meio dela que as pessoas interagem, seja por meio de textos verbais, seja por meio de textos
não verbais, ou multimodais, e que a forma como essas imagens são interpretadas é que se
determinam as relações entre as pessoas na sociedade. Nessa perspectiva, podemos perceber
como o cinema tem grande poder de interferir na relação das pessoas, na sua vida cotidiana, e
de como as personagens de um filme podem influenciar a visão da realidade que as pessoas
têm sobre si e sobre o outro, sobretudo, num sistema em que a educação, o desenvolvimento
da criticidade é desvalorizado e alienação é determinante.
Destarte, Santaella e Nöth (1997, p. 187) fazem uma interpretação psicanalítica dos três

objetivando o lucro, o comércio. Ver COMPARATO, Fábio Konder. Capitalismo: civilização e poder. In: Revista
Estudos Avançados. v. 25. n. 72. São Paulo. Maio/2011, p. 251-276
paradigmas da imagem, a saber, pré-fotográfico, fotográfico e pós-fotográfico, associando-os
aos três registros psicanalíticos da dimensão psíquica humana: o imaginário, o real e o
simbólico, estruturas fundamentais que articulam a releitura da obra de Freud por Lacan.
Santaella e Nöth (1997) esclarecem que “o paradigma da imagem pré-fotográfica está para o
imaginário, assim como o fotográfico e o pós-fotográfico está para o simbólico.” (SANTAELLA E
NÖTH, 1997, p. 187-188). Segundo os referidos autores o imaginário diz respeito ao ego do
sujeito, constituído no que Lacan (1971, apud. SANTAELA E NÖTH, 1997, p. 190) denominou
“estágio do espelho”, fase onde a identidade do sujeito surge num “jogo paradoxal”, oscilando
entre o eu e o outro. O real seria o impossível de ser simbolizado “é aquilo que diante do qual
o imaginário tergiversa e no qual o simbólico tropeça” e o simbólico é “lugar do código
fundamental da linguagem, é da ordem da lei, estrutura regrada, onde fala a cultura, a voz do
grande Outro.” (SANTAELLA E NÖTH, 1997, p. 191-192).
Relacionando os paradigmas da imagem e os registros psicanalíticos da dimensão
psíquica humana com a personagem feminina do filme, Zoe, no filme A vida secreta de Zoe, e a
representação que ela pode trazer para o público feminino é bastante considerável, levando
em conta que as mulheres tendem a reprimir sua sexualidade em nome da instituição, símbolo
da civilização, a família. Zoe, vive uma relação extraconjugal, que logo passa a se complicar
quando ela opta por ter outro parceiro, além de seu marido, ela passa a ter amantes, sente-se
culpada por viver tais relações, sabendo que mantém um casamento estável, família
aparentemente bem estruturada (esposa, marido e filhos e boa condição financeira) como
manda o figurino do sistema neoliberal, como reproduz bem a produção hollyoodiana,
considerando inclusive a sua condição de mulher independente financeiramente, visto ser uma
empresária bem-sucedida, ou seja, nova mulher do mercado de consumo, após as primeiras
lutas feministas. No entanto, não tem a sexualidade bem resolvida, e como o sentimento de
culpa toma conta da consciência, ela (Zoe) resolve buscar tratamento com uma psicóloga que
mais engendra o sentimento de culpa na sua paciente, uma vez que a induz a buscar o retorno
ao equilíbrio do lar, do que mesmo fazê-la compreender o que se passa consigo. A
personagem por fim, no clímax do drama no filme, tenta suicídio, após seu marido descobrir
suas relações extraconjugais e opta pela separação. Diante dessas circunstâncias, a personagem
é internada numa clínica psiquiátrica e seu marido decide reatar o casamento e passa a
acompanhá-la em sua reabilitação e retorno ao seio familiar.
Como diz Santaella (2004, p. 06) no seu artigo O corpo como sintoma da cultura, ela
tece algumas considerações sobre o célebre texto de Freud, Mal-estar da civilização, a autora
afirma: “O mal-estar redunda, portanto, em frustração, culpa e ressentimento contra a
civilização, consistindo em obter uma satisfação da renúncia pulsional mesma. A condição
humana leva o sujeito a obter o gozo pela renúncia do próprio gozo”.
É perceptível que a imagem da personagem feminina, não apenas nesse filme, mas em
outros objetos culturais, como música, obras literárias, pintura, no tocante a sua sexualidade é,
na maior parte dos casos, representada de maneira leviana à medida que, quando convém aos
interesses do mercado, a mulher é vista como símbolo da sensualidade e da sedução. Essa
simbologia exposta na mídia permite que as mulheres se reconheçam ou se construam a partir
dessas perspectivas, ou seja, o mundo da simbologia (fotográfico e pós-fotográfico) interfere
diretamente na realidade feminina, na verdade, essa simbologia, impede que a realidade seja
vista e percebida, uma vez que a subjetividade é agredida pelo universo simbólico e, de uma
forma geral, assistimos de forma passiva a supremacia do simbólico caracterizado pela indústria
cinematográfica.
O Eros feminino é construído na civilização de forma extremante repressora e
subjugada. Sobre a imagem da mulher e o princípio de prazer Marcuse (1972) diz o seguinte:

Na horda primordial, a imagem da mulher desejada, a espôsa-amante do pai, era a


imagem de Eros e Thanatos em união imediata, natural. Ela era a finalidade dos
instintos sexuais e era a mãe em que o filho desfrutara outrora paz integral, que é a
ausência de toda a necessidade e desejo – o Nirvana pré-natal [...] Mãe e espôsa foram
separadas, e a identidade fatal de Eros e Thanatos foi, portanto, dissolvida. Quanto à
mãe, o amor sensual torna-se inibido em sua finalidade e transforma-se em afeição
(ternura). A sexualidade e a afeição divorciam-se; só mais tarde se reencontrarão no
amor à espôsa, que tanto é sensual como terno, simultaneamente inibido e dirigido
para uma finalidade. (MARCUSE, 1972, p. 81).

Nessas condições, nas quais a mulher é posta na sociedade como objeto de desejo,
que está fadada a ser repreendida quanto ao próprio Eros, em nome da ordem da civilização
patriarcal, parece bastante oportuno considerar a mulher que quebra as regras estabelecidas
por essa sociedade opressora, e que reivindica a sua subjetividade, a sua condição de ser ativo
e transformador, considerá-la pessoa estúpida, prejudicada em seu estado cognitivo, insana,
incapaz de lidar com suas emoções e anseios, principalmente no que diz repeito ao Eros. A
mulher, enquanto propulsora da civilização patriarcal acaba por rechaçar seus ímpetos,
anulando a sua condição de ser humano, servindo apenas de engrenagem a um sistema
fadado à aniquilação da vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, podemos considerar que a indústria cultural, por meio da mídia,
dos filmes, das propagandas etc., à medida que promove a socialização das pessoas também
influencia na construção da sua identidade, a partir de imagens estereotipadas, que podem ser
reconfiguradas a partir da necessidade de modificação numa conjuntura histórica, não à toa em
virtude dos movimentos feministas as mulheres passaram a ter certa autonomia na sociedade
ocidental. No entanto, quando o assunto é a sua sexualidade, o seu posicionamento no quadro
político ou de poder, permanece em situação de submissão e a mídia legitima tal situação. A
construção do Eros feminino ainda é tratada de forma leviana no contexto vigente, uma vez
que a mulher é vista e assimilada na sociedade como ser incapaz de lidar com a própria
sexualidade. Porém, a mulher, diferente do homem, é capaz de reprimir o próprio Eros,
sublima-o de certa forma, para manter o padrão de civilização determinado pelo homem. A ele
é dada a condição natural de prazer efetivo, por ser homem, é natural que usufrua da
sexualidade porque esse deve ser o desempenho do macho da sociedade, indivíduo que
usufrui do poder e da satisfação, enquanto que a mulher deve se conter diante do que é
natural a ela, que é a sexualidade, a sedução. A repressão sexual é a condição para que a
mulher exerça sua função na sociedade, a função de mãe e de esposa.
Há, portanto, uma contradição na construção do Eros feminino, pois ao passo em que
a mulher tem sua sexualidade reprimida, ela é exposta na mídia como objeto de sedução,
como símbolo da sexualidade. Ou seja, a mulher, segundo preceitos patriarcais, não pode se
render aos próprios desejos, à própria sexualidade, todavia, é convertida em atrativo com
propósito de alienação na sociedade capitalista.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. HORKEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1985.
SILVA, Telma Gurgel. Feminismo e luta de classe: história, movimento e desafios teórico-
políticos do feminismo na contemporaneidade. In. SEMINÁRIO INTERNACIONAL FAZENDO
GÊNERO 9: DIÁSPORAS, DIVERSIDADE, DESLOCAMENTOS. Santa Catarina: UFSC. Agosto/2010.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. 6


ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

SANTAELLA, L. & NÖTH, W. Imagem, cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Editora Iluminuras,
1997.

SANTAELLA, L. O corpo como sintoma da cultura. Disponível em:


<http://revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/17/17 >.

______________. Novos desafios da comunicação. Lumina. Facom/UFJF – v.4, n 1, p.1-10, jan/jun


2001. Disponível em: <www.facom.ufjf.br>.

______________. Por que a comunicação e as artes estão convergindo. São Paulo: Paulus, 2008.

Filmografia

WOODRUFF, Bille. A vida secreta de Zoe (Addicted). EUA, 2014.


229

O AMOR É CEGO: ELOS DE EROS ENTRE O ROMANCE E A


FOTOGRAFIA DE TÉRCIA MONTENEGRO
Lúcio Flávio Gondim da Silva
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Em seu Fragmento do discurso amoroso, Roland Barthes (2003) nos diz que
o amor é um modo de olhar, é ver-se nos olhos do outro. No entanto, o imaginário
popular no diz que o amor seria, na verdade, cego, pois não consegue enxergar seu
objeto ou sua fonte, como diz Freud (2013). Se a amante de Eros, o deus sempre
menino do Desejo, é Psiquê, no romance de estreia da escritora Tércia Montenegro,
Laila, a protagonista deficiente visual, é a amada de Pierre. Turismo para cegos,
publicado em 2015 pela Companhia das Letras, atualiza de modo inverso o par
mitológico grego: agora a mulher, quem não detém a visão, é a agente das paixões.
Pensando a fotografia como ficção, é possível compreender a imagem “Laila e Pierre”
da também fotógrafa Tércia como uma manifestação literária? Em temos de pós-
conceitos, talvez o objeto literário se torne cada vez mais nosso afeto cego, atirando-
nos flechas por todos os lados a partir de uma face que não se pode mais ver
nitidamente. De todo modo, seguimos apaixonados por este cupido e agora pela
natureza de poliamor que ele nos apresenta junto às artes visuais, às artes plásticas e
a outras linguagens.
Palavras-chave: Amor; Tércia Montenegro; Erotismo; Romance; Fotografia.

UMA FORMA DE VER: O AMOR


Laila, espécie de cupido maléfico da narrativa de Tércia Montenegro, é
feixe de luz em torno do qual circulam Pierre, seu aluno de artes plásticas; o cão que
será homônimo ao homem; e a narradora do romance, uma voyeur que adentra de
modo obtuso e obcecado na dinâmica afetiva do trio. Tal como o desejo, a imagem
arde (DIDI-HUBERMAN, 2012) e permeia as relações amorosas na obra, em especial
a imagem proveniente da fotografia. Sem saber, Laila é fotografada obsessivamente
por Pierre nas viagens que ambos fazem para re-despertar nela a pulsão de vida
(FREUD, 2013). Também numa viagem, para a Bienal de Veneza em 2015, Tércia
Montenegro “descobre” seus personagens numa escultura de pedra – elemento e
palavra que se relacionam diretamente com o componente masculino do par de
Turismo.
A Laila petrificada é abraçada pelo homem também esculpido que lhe

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cobre o rosto de modo cuidadoso e apaixonado, tal como Pierre à protagonista. A


escritora, que também é fotógrafa, faz na ocasião um registro visual de tal cena de
amor. Dois anos depois, a foto participa da Semana das Artes Visuais organizado
pelo Curso de Licenciatura em Artes Visuais do IFCE e obtêm o prêmio de primeiro
lugar. Inspirado por minha pesquisa recém-concluída sobre a obra de contos de
Tércia Montenegro e atraído pelas reflexões sobre as fronteiras cada vez mais
opacas entre as linguagens artísticas em nosso tempo, propõe-se uma discussão
sobre as narrativas escrita e visual propostas a nós, leitores, pela artista literária e
fotográfica em questão.
Sabemos que “toda imagem aproxima ou acopla realidades opostas,
indiferentes ou afastadas entre si” (PAZ, 2012, p.104). Sendo assim, de que modo as
palavras, assim como o componente imagético, podem fabricar novas modalidades
de leitura em temas clássicos e atualmente urgentes como o amor? Se como nos diz
Susan Sontag, a fotografia pode “acrescentar uma vasta quantidade de materiais
que nunca chegamos a ver” (2004, p. 172-173), o que as fotos ficcionais sugeridas
verbalmente no romance de Tércia Montenegro e a real, que foi capturada, exposta
e premiada por ela, têm a nos dizer sobre as relações entre o amor e a cegueira?
Elas assumem a forma do deus Eros e dessa deusa que ousamos cultivar: a
literatura, como não amar?

LAILA E PIERRE: O ROMANCE


Laila é uma professora de artes visuais que descobre ter uma doença
degenerativa que a levará a cegueira. Nesse instante, um de seus alunos se propõe
a ajudá-la e os dois acabam se envolvendo afetivamente. Considerando-se feio, isto
é, indigno de ser olhado ou mesmo invisível, o estudante-amante Pierre passa a ter
como missão dar novamente cor à vida da protagonista. Motivados por uma
suposta escultura do avô do homem, que viajara o mundo e na peça de madeira,
esculpira simbolicamente seus percursos, os dois partem em viagens. No entanto, o
casal esbarra numa fronteira irrevogável: a crueldade de Laila.

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Em artigo intitulado “Cegueira e crueldade na narrativa de Tércia


Montenegro”, Milena Magalhães fala de como a condição da protagonista e sua
decorrente leitura tirânica da situação em que se encontra mostram as
perversidades não só dela. Sobre tal jogo de revelações, diz a pesquisadora: “a
máscara cruel da personagem funciona como um espelho que mostra as
deformações dos outros em relação à pessoa que perde a visão [...] na mudança de
posição imposta pela sociedade, afinal ficar cego é perder não apenas a visão, mas,
junto com ela, a própria vida que existia anteriormente.” (MAGALHÃES, 2018, p.51).
Na história de amor, que centraliza a narrativa, as perversidades da potência
autocentrada dos desejos dão potência aos afetos.
O romance é narrado pela funcionária do pet shop que os atende e se
interessa voyeurmente pelo casal. Ao decorrer da narrativa, vamos sabendo que ela
passa a formar uma das pontas desse triângulo amoroso cujas extremidades ferem e
gozam a todos. Nesse ínterim de prazer e violência, o amor se afigura como
elemento central da narrativa à medida que move as máscaras dos personagens.
Sem heróis (porém com uma multiplicidade antiestereotipada de vilões, a trama
averígua como a natureza humana se mostra quando dela são vistos faces antes
nunca imaginadas.
Dentre as linguagens artísticas que sempre tendem a rodear a produção de
Tércia Montenegro, a fotografia é uma das que nos dá alguns dos episódios mais
intrigantes de Turismo para cegos. Pierre é também um fotógrafo porém de
imagens não consentidas ou, pelo menos, não sabidas por parte de Laila. Este
álbum clandestino irrompe por si só reclamações a respeito da própria visão de
amor que os personagens dizem ter. O amor que cuida e tudo suporta teria o
direito de também mentir? A imagem mostra ou falseia um referente a quem o vê?
O trecho abaixo é um exemplar de um desses momentos em que o
verdadeiro e o falso se mesclam diante do abismo do sentimento, tragando o ser
amado e o amante a um movimento flagrante que é próprio do mecanismo do
Desejo. O casal chega a pet shop no episódio que inicia o romance e escolhem um

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cachorro para ser guia da cega. Seus gestos já nos fornecem pistas sobre a visão de
amor que possuem e que executam:

A moça, entretanto, estava distraída, tateando as grades de uma pequena


jaula onde eu pusera uns pastores-alemães nascidos há trintas dias. Ela se
chamava “Laila”, conforme Pierre disse, num timbre meio jocoso. “Parece
nome de bicho” – completou, com uma risada. Depois, deve ter achado o
comentário grosseiro, porque tentou corrigir: “Como uma cachorrinha
peluda, daquelas de filme”. Eu suspirei, para indicar impaciência. Laila
tinha erguido um dos filhotes pela abertura superior da jaula e agora o
amassava contra o peito. (MONTENEGRO, 2015, p. 14).

A tentativa de brincadeira de Pierre na cena parece passar indiferente às


demais personagens, porém ao longo do romance saberemos que, na verdade,
cada ato sofrerá consequências. Pierre será o nome do cão-guia, assim denominado
pela própria Laila, expert em vinganças. O amor, desde então, mostra alguns de
seus componentes: a frieza e a raiva. Opostos ou complementares? Eis mais uma
máxima social que Tércia parece subverter. Nem pelas diferenças nem pelas
semelhanças se firma o sentimento amoroso, porém da presença e da negação de
ambos.
Freud associa o desejo ao ato de ver, contribuindo para que enxerguemos a
cegueira possível do amor ao dizer: “a pulsão de olhar é autoerótica no início da sua
atividade, ou seja, ainda que tendo um objeto, ela o encontra no próprio corpo. Só
mais tarde ela é conduzida (pela via da comparação) a trocar esse objeto por um
que seja análogo no corpo alheio.” (FREUD, 2013, p. 41). No trecho do romance lido
acima, vemos que Laila leva o animal ao seu peito, na proximidade do coração à
medida que despreza o suposto amado. A todo momento, somos lembrados de
que a personagem apenas se ama e troca tudo o que ganha da alteridade pela
amargura que sente a partir de sua cegueira.
Em outra cena, os dois vivenciam seu afeto de modo iminentemente sexual.
A narradora nos conta o episódio a partir de uma lembrança que Pierre tem dele.
Ali, outra vez o interdito se impõe como condição ao amor, como que autorizado e/
ou perdoado pela cegueira que lhe é imagem:

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Ora, no quarto de Laila tinham posto também uma santa, uma Senhora
Desatadora de Nós, tão longa no manto vermelho e azul, seus dois
anjinhos descosendo fios interminavelmente. Pierre a viu de soslaio ao
entrar; teve vontade de virá-la contra a parede, mas Laila não lhe deu
chance. Estava à espera há vários minutos, cochichou e, pensava que ele
não viria. Pôs-se a despi-lo com pressa, e Pierre se afobava, tentando
fazer o mesmo com ela. [...] Então puxou num único gesto o vestido,
jogando-o pelo avesso como uma pele morta. Pierre precisou que ela
acenasse várias vezes, para finalmente se aproximar. Laila estava deitada,
cheia de sombras pelas pernas, que se abriam como duas pálpebras.
(MONTENEGRO, 2015, p. 55).

A santa é voyeur no episódio lido. A virgem Maria é impedida por Laila de


escapar da visão do encontro dos corpos; das peles que se transmutam em desejo
e, por fim, na associação livre dos membros inferiores do corpo aos olhos. Penetra-
se, portanto, num dos segredos da narrativa: a performance. Artistas, as
personagens se metamorfoseiam ou tentam se metamorfosear seja no outro a
quem o desejo se destina, seja numa outra possibilidade de ser menos limitada, seja
na crueldade.
Porém, não é apenas Laila quem performa. Tércia Montenegro igualmente
se mostra múltipla em si mesma, num percurso de outridade que também é chave
para este trabalho. A escritora constrói sua personagem que, por sua vez, constrói
laços fragmentários e imagens do mesmo modo quebradas. Tércia, porém, é
também fotógrafa e, por meio da imagem, captura o amor do seu casal
protagonista esculpidos de pedra e transformados em matéria fotográfica. Tem-se,
assim, a extensão do olhar que vê numa escultura o amor que também parece
líquido, como o tempo e as identidades.

LAILA E PIERRE: A FOTOGRAFIA


A pesquisa pelo registro fotográfico de Tércia Montenegro se inicia
inspirada na reflexão sobre o visível – e o invisível – realizada por Georges Didi-
Huberman ao dizer que “ver só se pensa e se experimenta em última instância numa
experiência do tocar. [...] Como se o ato de ver acabasse sempre pela
experimentação tátil de um obstáculo erigido diante de nós” (DIDI-HUBERMAN,

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2010, p. 31, grifo do autor). Se pensamos tal definição como apropriada também ao
amor, vemos que tal obstáculo, trincheira sempre presente entre os amantes, é
exatamente a pulsão do afeto. Se só é possível ver o outro, dado à distância que
temos dele, tocar passa a ser uma experiência sempre almejada.
Talvez por esse desejo irrealizável de tocar o que se ama que Tércia
Montenegro sofre um espanto ao ver a seguinte escultura, em Veneza, capturando-
a e trazendo, tal como faz com o texto, o espanto para seus leitores imagéticos ou
verbais:

Imagem 1: Laila e Pierre

Fonte: Blog Livros e Bichos – Blog de Tércia Montenegro. Disponível em>


https://literatercia.wordpress.com/2017/09/13/laila-e-pierre/ Acesso em: 01 set 2019.

Na imagem, dois corpos se abraçam. Um deles, de possível biótipo


feminino, parece chorar e tem o rosto escondido. O outro, masculino, debruça-se
sobre o primeiro, consolando-o ao pôr a mão em sua cabeça. Tércia Montenegro,
vê, captura e nomeia a imagem: Laila e Pierre. A partir de então, os personagens do
romance passam a ser tocáveis primeiramente em pedra e, posteriormente, em

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fotografia. Quem tem mais força a partir de então, a narrativa escrita ou a visual? A
imagem realmente fala mais que mil palavras ou dela só se tem tal impacto por
causa do verbo outrora encarnado em nós por Tércia? Seria tal foto uma extensão
da literatura pelo olhar da escritora-capturadora?
Sem pretender responder a essas questões completamente, associamos
nosso pensamento ao de Nelson Brissac Peixoto ao nos falar da potência
cartográfica do olhar que parte do visível sempre em busca do que não tem lugar,
tal como Tércia Montenegro parece querer suscitar em nós, ao multiplicar as
imagens do amor que é cego, nó górdio de seu livro. Parece ser, enfim,

Um esforço para dar conta do aspecto sensível das coisas, de tudo aquilo
que não é dizível. Perseguir aquilo que escapa à expressão, a infinita
variedade das coisas mais humildes e contingentes. Um aproximar-se das
coisas com discrição e cautela, respeitando o que as coisas comunicam
sem o recurso das palavras. Desenvolver o poder de evocar imagem in
absentia. Imagens de tudo aquilo que não é, mas poderia ter sido.
(PEIXOTO, 2004, p.12)

O amor de Pierre e Laila, tal como a imagem, parece sempre “aquilo que não
é, mas poderia ter sido” (PEIXOTO, 2004, p.12) ou, na infinita variedade descrita pela
escritora no romance, “A primeira atitude de Laila seria largá-lo se não tivesse mais
um alívio para o seu forçado jogo de adivinhas em que tocava o mundo para
conhecê-lo.” (MONTENEGRO, 2015, p. 116). Configurado, portanto, como um jogo –
de signos? – por meio do qual se tenta experienciar o mundo, o outro e a si mesmo,
a experiência amorosa esbarra costumeiramente nos limites ou regras aplicados
pelo Eu. Porém, Laila e Pierre tentam, à revelia de suas esmagadoras deficiências
pessoais e como casal, uma transmutação de códigos, saindo das páginas de papel
ao papel fotográfico.
O amor cego consegue dar a ver vestígios que vão além do papel restrito ao
texto literário. Tal como ele, as fotografias que o personagem Pierre faz da amada
parecem transpor as páginas do romance e ganhar vida também num jogo de
traições em que outra vez imagem e palavra competem pelo conhecimento do
mundo ou pelo domínio do amor em linguagem. Sabe-se, porém, que em face do

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amor todos padecem. Somente Laila e sua corporeidade aparente – “Seu corpo
ereto é interpretado como sua diferença dentro da diferença que lhe constitui. Essa
postura lhe devolve, em parte, a visão.” (MAGALHÃES, 2018, p.52) – somente Laila
parece resistir ao Desejo. No entanto, sabemos que ela é quase sempre uma
imagem falsa.
Contrapondo-se a ela – ou não? - Tércia Montenegro se revela em palavras
e em imagens, como durante o processo de escrita de Turismo para cegos em que
encontra na praia um cão labrador, mesma ração do personagem-cão Pierre, como
vemos abaixo na Imagem 2. Assim também se dá no próprio lançamento do seu
livro em que performa a protagonista, entrando com um cão-guia e óculos escuros
no ambiente de lançamento, como visto na Imagem 3:

Imagem 2: Tércia e Pierre

Fonte: Arquivo pessoal de Tércia Montenegro, disponibilizado ao autor do artigo.

Imagem 3: Tércia é Laila

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Fonte: Blog Livros e Bichos – Blog de Tércia Montenegro. Disponível em>

https://literatercia.wordpress.com/2017/09/13/laila-e-pierre/ Acesso em: 01 set 2019.

Em ambos registros, Tércia Montenegro entra na imagem e assume o lugar


de personagem que construiu – no caso da Imagem 2 – ou tinha construído, na
Imagem 3. De uma forma ou de outra, vemos um corpo em mediação com
instâncias diversas em torno da palavra tornado visualidade. Tais performances
abrem espaço para uma série de questões a sua obra: o que há de Tércia
Montenegro em Laila? Quando a fotografia e a literatura se tornam distintas
enquanto linguagens? O elo entre tamanhas discrepâncias e manifestações visuais
pode ser o outrora cego Amor?
Giorgio Agambem, em Ideia da prosa dedica uma de suas entradas quase
enciclopédicas, formadoras de seu livro a pensar exatamente a “Ideia do amor”.
Com um trecho da definição, podemos vislumbrar o caráter fronteiriço de tal
sentimento, talvez pensando as produções de Tércia Montenegro como pontos de
luz em espectro penumbrantes, já que, ao amar, parecemos ou precisamos querer
“Viver na intimidade de um ser estranho, não para nos aproximarmos dele, para o
dar a conhecer, mas para o manter estranho, distante e mesmo inaparente [...]”.
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(AGAMBEN, 1999, p. 51). O amor, assim, quer a coisa cega, tal como Pierre, pois
sempre dele quer espiar o máximo como Laila espia o mundo, que dela já se
perdeu.

O AMOR (NÃO) É CEGO: CONCLUSÃO


Eros e Psique encerram este trabalho lembrando-nos de como o ato de ver
parece estar, desde os primórdios, amalgamado ao ato de amar. Ao procurar o
rosto do amado, Psique o perde. Somente na cegueira, o amor pode ser amado. Na
literatura, o interesse pela nomeação parece recorrentemente nos perseguir, por
vezes impedindo o deleite, o desejo, a multiplicidade da palavra... No amor também
não é igual? Laila e Pierre, personagens de Tércia Montenegro, tentam uma
alternativa às normativas do afeto porém esbarram em espécies de leis universais
que encontram em suas personalidades terreno fértil.
O amor segue sendo tumultuoso e perturbador, quase sempre cruel.
Também ele parece não ser contido em formatos, escapando a rótulos e a
pretensões outras. Pierre, no fundo, não quer ajudar uma cega, mas saber-se
minimamente amado – mesmo que também num modo humilhante – por Laila. Esta
apenas parece se dar conta do amor que recebeu ao perde-lo após tantas
crueldades. A narradora assume seu lugar no romance – o gênero e a relação – mas
também não se contém pela palavra e performa a antagonista.
Tércia Montenegro, assim, parece criar algumas teorias amorosas. Uma dela
está na própria multiplicidade que ganha formas de fotografia, de escritura, de
performance. A imagem que captura suscita um rosto que se perde. O texto verbal
que constrói não se basta e pede performances. O amor segue carecendo de mais,
segue perdendo e encontrando sentidos, segue cego. Seria viver o amor um
turismo pelo invisível ou a estaticidade diante do que se vê? Quem vir a resposta,
perde.

REFERÊNCIAS

Amor, Língua de Eros


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AGAMBEN, Giorgio. Ideia da Prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições


Cotovia, 1999.

BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Marcia Valeria


Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Tradução de Paulo


Neves. São Paulo: Ed. 34, 1998.

_____. Quando as imagens tocam o real. Tradução de Patrícia Carmello e Vera Casa
Nova. Pós: Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 204 - 219, nov. 2012.
FREUD, Sigmund. As pulsões e seus destinos. Tradução de Pedro Heliodoro Tavares.
Belo Horizonte: Autêntica, [1915] 2013.

MAGALHÃES, Milena. Cegueira e crueldade na narrativa de Tércia Montenegro. In:


Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 41-60, maio/ago. 2018.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/elbc/n54/2316-4018-elbc-54-41.pdf Acesso
em 01 set 2019.
MONTENEGRO, Tércia. Turismo para cegos. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora Senac São Paulo,
2004.

SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo:


Companhia das Letras, 2004.

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O AMOR (S)EM TEMPOS DE CRISE: ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DE


DIA DOS NAMORADOS NA REVISTA VEJA (1974-1994)
Beneângelo Soares Chagas
Universidade Federal do Ceará

Jailson Pereira da Silva


Universidade Federal do Ceará

Resumo: Constituídas socialmente, as publicidades são permeadas de traços de


tempos e contextos específicos. Construções históricas, o amor, o amar e as suas
representações mudam no decorrer dos anos. Em uma tentativa de interpretação
dessas elaborações cotidianamente recorrentes e historicamente mutáveis, este
esforço de pesquisa analisa alguns anúncios publicitários para o Dia dos Namorados
veiculados na revista Veja entre 1974 e 1994, um período de crise econômica no
Brasil. Reflete-se sobre a construção de um discurso imagético em torno do amor nos
anúncios que antecedem o dia 12 de junho. Nessas publicidades onde predominam
uma única ideia de “casal” e uma noção de “amor” específica, que valores e anseios
de uma época são ressignificados sob a forma de presentes?
Palavras-chave: Crise; Publicidade; Amor; Dia dos Namorados; Presentes.

A sexagésima oitava página da revista Veja73 de 9 de junho de 1993 é uma


das dez que naquela edição 1 291 trataram sobre o amor. Em papel colorido onde
predomina o vermelho, as imagens de frascos de perfumes de tamanhos e tons
diversos dividem espaço com uma fotografia emoldurada, um colar de pérolas e um
cartão onde se lê “Amor”. Com letras cursivas, uma sentença se destaca nesse
anúncio dos cosméticos L’acqua di Fiori: “Existem sentimentos que não se expressam
em uma simples palavra...”. A três dias do Dia dos Namorados, comemorado em 12
de junho, essa publicidade sugere a compra de um presente como uma prova
sentimental, sendo uma entre as várias onde o leitor poderia encontrar caminhos
para presentear a pessoa amada na data convencionalmente considerada a mais
romântica do ano. Isso porque ali também havia outros itens de perfumaria e até
cartões de créditos, todos apresentados sob os invólucros de sentidos da paixão.

73 Idealizada por Victor Civita, Roberto Civita e Mino Carta, Veja é uma publicação semanal da
Editora Abril. Revista brasileira de maior tiragem, Veja (até 1975 Veja e Leia) está no mercado editorial
nacional desde setembro de 1968.
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Mas, nessas mesmas ocasiões comemorativas, nem sempre foram esses os


potenciais presentes que ali eram anunciados.
“Namorados, noivos, maridos, etc., que vivem dizendo que a mulher não
nasceu para o tanque, têm agora um bom pretexto para pôr a teoria em prática: no
dia 12, junte à sua declaração de amor uma lavadora automática Westinghouse”,
pois “nenhuma vida em comum é toda sorrisos quando há um montão de roupa
para lavar” (VEJA E LEIA, n. 301, 12 de junho de 1974, p.43). Esse anúncio, em preto e
branco, é o único nas cento e trinta e seis páginas daquela edição da revista a fazer
referência ao Dia dos Namorados. Sob a forma de presente endereçável à mulher (a
namorada, a noiva, a esposa), a lavadora é um símbolo em cujo cerne se reforça um
papel social: a de dona de casa, responsável, entre outras atribuições, pelos
cuidados com o lar. Entretanto, a posse do eletrodoméstico representaria também o
usufruto de um bem de uma sociedade de consumo na qual as mulheres estavam
adentrando cada vez mais (BUITONI, 2009, p.104). Não obstante, subjaz na
publicidade em questão uma hierarquia, onde o homem presenteia e a mulher
recebe. Como sugere o antropólogo Everardo Rocha (2006, p.52-53), “o sentido
básico da imagem da mulher nos anúncios é obtido pelo contraste em face do
mundo masculino, que classifica uma devida posição hierárquica para a identidade
feminina”. Nessa classificação, hoje cada vez mais contestada, “próxima da coisa,
diferente da menina e subalterna ao homem, a identidade da mulher vai encontrar
um espaço entre contrastes que, ao mesmo tempo, se revestem de valores”
(ROCHA, E., 2006, p.53, grifos do autor). Que valores são esses? Como eles são
ressignificados nas publicidades de Dia dos Namorados? A entender que há um elo
entre consumo e individualidade, uma vez serem os produtos potenciais atos de
escolha que conjugam aspectos das identidades, no conjunto de anúncios aqui
analisados observou-se certa recorrência do corpo feminino (ou de partes dele)
como principal posse do indivíduo mulher. É o caso de uma publicidade do jeans
Wrangler veiculada em duas páginas inteiras da revista Veja de 8 de junho de 1988,
onde as nádegas de uma mulher ocupam mais de dois terços da peça. Em letras

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brancas que contrastam com o índigo da calça que recobre a fração do corpo
feminino apresentado, lê-se: “Embalagem para presente”. E logo abaixo, em
caracteres menores: “Wrangler é um ótimo presente para o Dia dos Namorados,
porque é um presente que você pode desembrulhar milhares de vezes” (VEJA, n.
1031, 8 de junho de 1988, p. 38-39). Além do destaque conferido a somente uma
parte do corpo da mulher, é digno de nota também o sentido de domínio que se
dará sobre esse corpo mediante o ato de presentear. Em um anúncio da Pakalolo,
de alguns anos depois, esse sentido é igualmente evidente: “Dê para sua namorada
uma roupa super fácil de tirar” (VEJA, n. 1185, 5 de junho de 1991, p.24-25).
Entre perfumes, cartões de crédito, lavadoras e roupas as mais variadas,
que outros objetos eram anunciados nessas publicidades de Dia dos Namorados?
Entre 1974 e 1994, joias, pelúcias, relógios, canetas, mas também eletrônicos dos
mais diversos tipos e utilidades são representados como provas de paixão que
efetivam, atualizam ou reforçam o sentimento amoroso. Como as formas de
representar o amor e o amar, esses objetos também mudam conforme os tempos,
assim como as formas de anunciá-los. Contudo, nos trinta e cinco números de Veja
analisados, dos quais se selecionou cento e oito publicidades, algumas outras
construções imagéticas em torno do amor romântico foram observadas. O critério
de seleção utilizado envolve a observação da recorrência de referências ao amor
erótico e a seus correlatos imediatos (paixão, desejo, carinho, etc.), e a alusão direta
à data comemorativa do Dia dos Namorados nas peças publicitárias.
“Um outro jeitinho de dizer eu te amo” (VEJA, n. 509, 7 de junho de 1978,
p.47). Sobre uma sólida estrutura, lado a lado, a sugestão e a solução, o texto
publicitário e o produto anunciado: duas canetas douradas tocam-se, sugerem um
beijo, decerto apaixonado. Uma década depois, eram “ele & ela. A dupla romântica”
(VEJA, n.1030, 1 de junho de 1988, p.70). Configurações típicas e de peculiar força
expressiva em publicidade, onde animais podem falar, humanos podem voar e seres
inanimados ganham vida (ROCHA, E., 2010, p.30), tais canetas, ali tão juntas, e
dotadas de ações e sensações humanas, são um entre os vários pares românticos

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que esbanjam paixão e felicidade, desejo e reciprocidade nas publicidades da Veja.


Como em ilhas de amor, inúmeros casais parecem ilesos às ondas de problemas
revolvidas por um mar em crise: o Brasil de meados dos anos 1970 aos idos da
década de 1990, quando o endividamento crescente, a inflação galopante, o
desemprego ascendente, a carestia e a recessão eram temas cotidianamente
recorrentes, inclusive nas páginas do principal periódico da Editora Abril, que nesse
período tratou da crise brasileira em cento e dezoito edições, sendo noventa e sete
delas apenas na década de 1980. Todavia, nas publicidades, “onde o cotidiano se
forma em pequenos quadros de felicidade absoluta e impossível, onde não habitam
a dor, a miséria, a angústia, a questão” (ROCHA, E., 2010, p. 29-30), a crise, quando
tinha vez e voz, não era páreo para o consumo de objetos e serviços. Mas, afinal,
que crise era essa que marcava a situação econômica nacional?
Conforme o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva (2003), a
compreensão do desequilíbrio econômico que se abateu sobre o país na primeira
metade dos anos 1970 deve perpassar o entendimento de alguns condicionantes
externos, como a “crise e a recessão da economia mundial” (SILVA, 2003, p. 252).
Para ele, “a longa depressão, óbvia a partir da Guerra do Yom Kipur 74, de outubro
de 1973, que trouxe consigo o bloqueio petrolífero, torna absolutamente frágil a
situação econômica da América Latina” (SILVA, 2003, p.253). A Crise do Petróleo 75
sangrou fortemente a economia brasileira, uma vez que “muito rapidamente o país
tornou-se exportador de capitais, obrigando-se a um esforço crescente de
aumentar as exportações para financiar as importações de petróleo e, ao mesmo
tempo, fazer face às obrigações decorrentes do endividamento externo” (SILVA,
2003, p.253). No início dos anos 1980, a crise econômica e social no Brasil se
acentuou: uma dívida externa de cerca de US$95 bilhões levou os dirigentes
brasileiros a assinarem, no início da década, uma “carta de intenções” com o Fundo
74 Segundo Eric Hobsbawm (1995, p.241), a Guerra do Yom Kipur foi um conflito militar ocorrido em
1973 entre Israel, apoiado pelos Estados Unidos, e as forças de Egito e Síria, auxiliadas pela União
Soviética.
75 Crise ocasionada pelo bloqueio petrolífero por parte dos produtores da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo (OPEP), que elevou os preços internacionais do petróleo, insumo básico da
economia mundial.
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Monetário Internacional (FMI). No acordo, em troca de recursos financeiros do


órgão, o Estado brasileiro se comprometeu a cumprir algumas metas, dentre as
quais “a redução do crédito, do déficit público, dos subsídios, a desvalorização da
moeda e restrições aos aumentos de salários” (RODRIGUES, 1994, p. 42). As
tentativas de controlar a inflação e de estancar a sangria da dívida pública e do
pagamento de seus serviços, no entanto, não surtiram os efeitos esperados pelo
governo. Já em 1984, a taxa inflacionária atingiu 223,8% (ROSTOLDO, 2014, p. 48).
Em 1985, ao tomar posse, José Sarney herdou o que era a maior dívida externa do
mundo, então calculada em US$115 bilhões (RODRIGUES, 1994, p.45). Quatro anos
mais tarde, ao se encerrar a década, o montante do pagamento de juros alcançou a
cifra de US$123 bilhões, superando o valor líquido do endividamento, ali calculado
em US$112 bilhões (RODRIGUES, 1994, p. 45). Com isso, no Brasil, a década de 1990
teve início com um país às voltas com a dívida pública e com uma inflação
ascendente.
Nesse cenário de carestias, em 1991, a publicidade dos aparelhos de som
Toshiba é bastante sugestiva acerca das necessidades de economizar no presente,
mas não no amor: “Os duros também amam. Dia 12, dê um Toshiba Mouse. O
presente que pega leve no bolso dos namorados”. E, abaixo da imagem do
aparelho, que ocupa mais da metade do corpo do anúncio, as seguintes palavras:
“Se a sua grana anda curta, e se o seu namoro vai longe – tipo a praia, a serra ou o
campo – dê um Toshiba Mouse. Micro no preço, espantoso no som” (VEJA, n. 1185,
5 de junho de 1991, p. 2-3). Ao longo desses anos em que as altas taxas
inflacionárias elevaram os preços dos produtos ao passo que reduziram o poder de
compra dos salários, até mesmo algumas joias, esses objetos de maior valor,
passaram a ser anunciadas de maneiras distintas: “H. Stern tem um presentão, pelo
preço de um presentinho” (VEJA, n.1133, 6 de junho de 1990, p.115). Nesse mesmo
sentido, apontava um anúncio de página inteira, “A Água de Cheiro caprichou nos
preços. Para que o Dia dos Namorados tenha noite também” (VEJA, n. 1291, 9 de
junho de 1993, p.37). Por sua vez, em 1987, uma marca de jeans sugeria: “Ponha

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uma Wrangler na poupança do seu amor. No Dia dos Namorados, Wrangler. Um


presente que vai agradar muito a poupancinha dela (dele)” (VEJA, n.979, 10 de junho
de 1987, p.76-77). Nesse último anúncio, há um traço que pode facilmente escapar a
quem não viveu o período: os sentidos da expressão “poupança”. Se, por um lado, a
palavra se refere à aplicação financeira, naqueles idos tão mais possíveis aos sujeitos
de médio e alto poder aquisitivo, por outro ela se refere a um jargão popular que
indica nádegas. Essas elaborações de duplo sentido são bastante comuns em
publicidades. Segundo o antropólogo Édison Gastaldo, a fim de comunicar e gerar
identificação com maior eficácia e poder persuasivo, “o discurso publicitário
frequentemente utiliza provérbios, imagens célebres, clichês e palavras de ordem
repetitiva” (GASTALDO, 2013, p.22). Entretanto, de que outros recursos se valeram
os publicitários para a elaboração desses anúncios de Dia dos Namorados?
Como dissemos acima, em publicidade é possível que animais e objetos
ganhem características humanas e dramatizem situações cotidianas. Assim, com
esse jogo de sentidos, quatro páginas da Veja de 7 de junho de 1989 apresentam
frascos de cosméticos da Água de Cheiro simulando diálogos de “conquista” e de
“reconciliação”. Em outra revista, o cartão Bamerindus deixa de ser somente um
entre os vários cartões de crédito anunciados e passa a ser o “Namoradinho do
Brasil” (VEJA, n. 1133, 6 de junho de 1990, p. 2-3).
Todavia, é interessante frisar ainda que, independente dos recursos
empregados na construção imagética da publicidade, o produto ou serviço
anunciado quase sempre significará a transformação, a passagem para um estágio
sempre melhor (ROCHA, E., 2010). Essa ideia pode ser melhor entendida com esse
anúncio de 1980: “No Dia dos Namorados, dê Sharp de presente...e espere pelos
beijos” (VEJA, n.613, 4 de junho de 1980, p.71). Ao lado desse texto, figuram dez
corações, sendo cinco deles ocupados por aparelhos de som e de televisão, um
pelo logotipo da marca, e os outros quatro por cenas de felicidade e harmonia, com
quatro casais de diferentes idades a se beijar. Ou seja, na ideia central do anúncio,
assim como ocorre na maioria deles, o produto é o intermediário, é a condição

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precípua para alguma realização positiva. Isso porque, como aponta Rocha (2010,
p.30), “cada anúncio, à sua maneira, é a denúncia de uma carência da vida real”,
cuja solução sempre é indicada através de mercadorias. Em todos esses anúncios
aqui analisados, no entanto, eles ganham um verniz a mais: além de solução
cotidiana, ele é símbolo de um sentimento.
Mas, se nessas peças publicitárias de Dia dos Namorados imperavam os
sentidos do amor romântico, quais eram os principais conceitos norteadores da
publicidade do período como um todo? De acordo com a socióloga Maria Eduarda
da Mota Rocha (2010), no Brasil das décadas finais do século XX a tônica dos
anúncios passou de ideias nacionalistas a apelos polares como economia e status,
bem como perpassou o culto à tecnologia e as preocupações ambientais. A partir
das publicidades aqui estudadas, é possível apontar um predomínio dos cosméticos,
das roupas e dos produtos tecnológicos nos anúncios de Dia dos Namorados. Em
relação a esses últimos, ganha destaque a variedade e a recorrência de aparelhos
voltados para os cuidados corporais das mulheres, em especial os depiladores
elétricos. Há o Beauty Lady, da Philips, que “deixa as mulheres lisinhas e os homens
arrepiados” (VEJA, n. 1185, 5 de junho de 1991, p.93) e o Walita, pois “se ela tiver que
chorar, que seja por amor” (VEJA, n.457, 8 de junho de 1977, p.93). Esses anúncios
estão atravessados pela legitimação social de uma determinada conduta corporal (a
depilação), que é parte de um conjunto de cuidados que mulheres e homens têm
com os seus corpos. Perpassados de valores historicamente construídos e
socialmente corroborados, essas maneiras de se conceber o lidar com os corpos –
moldando-os, reprimindo-os, legitimando-os, promovendo-os – têm nas
publicidades um interessante ponto de recorrência.
Produções no tempo, os anúncios publicitários são, por sua condição
histórica, uma rica possibilidade para a análise de modas, objetos, técnicas e tantos
outros traços de uma época, como as próprias noções de amor e os símbolos deste.
Todavia, mediadora de pessoas, sentidos e sensações, a publicidade também traça
sentimentos, seja invadindo paixões ou mobilizando corpos, seja criando desejos e

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presentes, ausências e presenças, onde o amor, ao que parece, nunca entra em


crise.

REFERÊNCIAS

BUITONI, Duicília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher


pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.

GASTALDO, Édison. Publicidade e sociedade: uma perspectiva antropológica. Porto


Alegre: Sulina, 2013. (Coleção Cena Publicitária).

HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Editora
Companhia das Letras, 1995.

ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade.


São Paulo: Brasiliense, 2010.

________________. Representações do consumo: estudos sobre a narrativa publicitária.


Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Mauad, 2006.

ROCHA, Maria Eduarda da Mota. A nova retórica do capital: a publicidade brasileira


em tempos neoliberais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil: quando a multidão voltou às ruas. São
Paulo: Ática, 1994.

ROSTOLDO, Jadir Peçanha. Brasil: 1979-1989: uma década perdida? Jundiaí, Paco
Editorial: 2014.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de


abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de
Almeida Neves (orgs.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais
em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (O Brasil
Republicano; v. 4).

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MITOS
DO AMOR

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A PRESENÇA DE EROS EM MEMÓRIA CORPORAL, DE ROBERTO


PONTES
Fernanda Maria Diniz da Silva
Universidade Federal do Ceará

Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar a presença de Eros nos poemas que
compõem Memória Corporal, livro de Roberto Pontes publicado em 1982, cujos
versos são marcados por profundo sensualismo. A obra nos traz uma reflexão
amadurecida sobre a vivência amorosa. Desde “Cinco Prelúdios” até “Epitáfio”,
respectivamente, o primeiro e o último poemas desse livro, verifica-se que são
memorados todos os momentos marcantes do ciclo do amor: conhecimento, paixão,
fortalecimento do amor e fenecimento da relação. Assim, Memória Corporal
apresenta um canto de união que busca a realização integral do ser humano que
encontra no outro um sentido de vida e de felicidade a partir do erotismo. Para o
desenvolvimento deste artigo fizemos uso das contribuições de estudiosos como
Octavio Paz (1994) e Georges Bataille (2004).
Palavras-chave: Eros. Memória Corporal. Roberto Pontes. Poema.

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é analisar a presença de Eros nos poemas que
compõem Memória Corporal, livro de Roberto Pontes publicado em 1982. Roberto
Pontes, um dos fundadores do Grupo SIN de Literatura, é autor de grande
importância na literatura brasileira. Sua obra poética é composta pelos livros:
Contracanto (1968), Lições de Espaço (1971), Temporal (1976), Memória Corporal
(1982), Verbo Encarnado (1996, 2014), Breve Guitarra Galega (2002), Hierba
Buena/Erva Boa (2007), 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (2010; 2014), Lições de
Tempo/ Lecciones de Tiempo (2012) e Os Movimentos de Cronos/Los Movimientos de
Cronos (2012).
Memória Corporal apresenta poemas eivados de erotismo, porém, sem cair
na linguagem hiperbólica dos enamorados muito menos na pornografia, conforme
ressalta José Hélder de Souza: “Formas sutis de cantos de exaltação ao amor, tudo
só insinuado, nada vil ou chulo. É isto o que faz Roberto Pontes em sua poesia
verdadeiramente erótica” (1983, p. 7).
A obra é composta por quarenta e cinco poemas cujo protagonista é o
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próprio Eros. Observa-se que os versos de Memória Corporal são, pois, de cunho
erótico, uma vez que neles está presente a necessidade do ser humano de buscar a
sua completude por meio do amor.

EROS EM MEMÓRIA CORPORAL


Memória Corporal, cujo protagonista é Eros, é um livro marcado por extrema
sensualidade. Lúcia Helena no prefácio à obra em comento assinala: “não seria
excessivo afirmar que a personagem central deste texto ‘desejante’ é Eros, captado
em todos os seus poros e latências”.
Sendo Eros o personagem principal do livro, faz-se necessário discorrer
sobre quem é Eros e sobre quem há algumas versões.76
Assim como em grande parte das histórias da mitologia, também há diversas
versões para o nascimento de Eros. Uma delas remete à criação do mundo, quando
a Noite, que circundava o Caos, foi fecundada pelo Vento, pondo um ovo de prata
do qual saiu Eros, a representação do amor universal. Como não gostava da
escuridão, Eros pediu a Fanes, a Luz, que iluminasse o Céu e a Terra. E tendo-os
desnudado, os uniu num abraço, fazendo surgir tudo o que ainda não nascera.
Já Platão, em O Banquete, apresenta-nos outra versão sobre a história do
deus. Ele descreve o nascimento de Eros, esclarecendo alguns detalhes até mesmo
no tocante ao aspecto erótico.
De acordo com a obra do filósofo grego, quando Afrodite nasceu, os deuses
prepararam um banquete em homenagem ao nascimento da bela deusa, e entre
eles estava Poros (o Expediente), filho de Métis. Depois de se banquetearem,
chegou Pênia (a Pobreza) para mendigar, pois sabia da ocorrência de um grande
banquete. Aconteceu que Poros, embriagado de néctar, uma vez que ainda não

76 Como fonte de pesquisa sobre os deuses da mitologia, foi utilizado o Dicionário de Mitos Literários
(2005), que apresenta as seguintes versões sobre a história de Eros: O Eros das cosmogonias (A
teogonia de Hesíodo: Eros, força geratriz; O demiurgo do orfismo; Um poder universal: Eros e a
natureza); O deus do amor (Eros e Afrodite; A poesia erótica grega: preciosismo e crueldade, O
banquete, de Platão: duplicidade de Eros; Eros iniciático); Eros na literatura ocidental: lugares-comuns
e renovações (O deus do amor em Guillaume de Lorris, Renascença: do Amor cego ao amor divino,
Duas peças alegóricas de Marivaux).
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havia vinho, entrou nos jardins de Zeus e, pesado como estava, adormeceu. Pênia,
então, premeditando ter um filho com Poros, dormiu com o deus e concebeu Eros.
Por isso, Eros tornou-se seguidor e ministro de Afrodite, porque foi gerado durante
as suas festas natalícias. Além disso era, por natureza, amante da beleza, porque
Afrodite também era muito bonita.
Eros, então, é filho de Pênia e Poros, por isso é sempre pobre e não é,
como normalmente se pensa, delicado e belo. É tão pobre quanto sua mãe e, assim
como seu pai, Eros está sempre à procura de seres dotados de belos corpos e
almas. Tal busca é voraz e repleta de artimanhas. Eros lança mão de muitos
expedientes para atingir seu alvo. Além disso, ele é um encantador forte e
envolvente.
É este último Eros desejante e complexo que constitui o cerne dos poemas
que compõem a obra literária em análise.
Vale ressaltar que em Memória Corporal o poeta não explora a pornografia,
mas sim o erotismo, conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes
ao sexo. O termo “erótico” provém do grego ‘erotikós’, que se referia ao amor
sensual e à poesia de amor. Deriva de “eros” (em grego:"ἔρως" transliteração para o
latim "érōs"), o amor apaixonado, com desejo e atração sensual. A palavra moderna
grega “erotas” significa “o amor (romântico)”.
Durval Aires Filho (1984) encara Memória Corporal como um conjunto de
poemas cujo núcleo é o enfoque de Eros em seus diversos momentos, sem que esta
aventura de amor se enverede pelos fáceis caminhos do romantismo piegas e/ou da
pornografia.
O vocábulo erotismo surgiu no século XIX, referindo-se às paixões, aos
amores intensos e à procura constante da sensualidade. A palavra erotismo se
relaciona a Eros, que representa a união dos seres que se amam. Tal ideia é
abordada por Freud ao definir o impulso erótico como a vontade de ser dois corpos
em um.
Georges Bataille, no ensaio O Erotismo, parte da ideia de que o erotismo se

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organiza em torno de dois movimentos opostos: a busca de continuidade dos seres


e a impossibilidade do indivíduo de superar a morte. Para o autor francês, o homem
vive a busca pela permanência no tempo, por que sente certa “nostalgia da
continuidade perdida”. Semelhante a este comportamento é o do próprio Eros que
vive à procura da completude. Esta procura incessante pela completude do ser nos
remete ao “mito do andrógino” presente em O Banquete, de Platão.
De acordo com a explicação mitológica, houve um tempo em que não
havia homens e mulheres, mas seres superiores aos humanos, os andróginos,
dotados de quatro braços, quatro pernas, uma cabeça com duas faces
correspondendo a dois sexos opostos, e providos de força e agilidade sobre-
humanas. Os andróginos tornaram-se orgulhosos e, inconsequentemente,
empreenderam uma escalada até o céu. Zeus não gostou da ousadia e, zangado,
dividiu cada andrógino em dois. Desde então, a humanidade ficou dividida em duas
partes que se procuram para voltar ao original. No livro O que é Erotismo, Lúcia
Castello Branco reforça essa concepção:

Há dois aspectos fundamentais, implícitos no discurso de Aristofánes, que


derivam dessa noção do erotismo como impulso em direção à
completude. Um deles se refere ao extremo poder atribuído a Eros, que é
capaz, ainda que por segundos, de ‘restaurar a antiga perfeição’ e de
reproduzir seres andróginos, totais e audaciosos, que ousam desafiar os
deuses. O outro aspecto reside na idéia de incompletude e de debilidade
dos seres bipartidos que, desprovidos da força de Eros, tornam-se fracos
e úteis àqueles que detêm o poder. Em torno desses dois pólos, a força
de Eros e a fragilidade dos seres abandonados por Eros, articulam-se os
mecanismos de repressão sexual, que vêm sendo tão sofisticadamente
manipulados pelos agentes protetores da ordem social, sobretudo nos
regimes autoritários. Não é de se estranhar que, nas sociedades de
governo totalitário, a questão do erotismo se coloque como fundamental.
Sabemos, desde Platão, do poder desse deus incapturável. Para formar
cidadãos frágeis e inseguros, é preciso reparti-los, mutilá-los, transformá-
los em metades de metades, sem nenhuma possibilidade de
recomposição. (BRANCO, 1984. p. 10-11).

Vale ressaltar que Memória Corporal foi publicado durante o período da


ditadura militar de 1964, no Brasil. Este momento político, que vai de 1964 a 1985,
caracterizou-se pela falta de democracia, a supressão de direitos constitucionais,
censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.
Amor, Língua de Eros
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Desse modo, podemos exemplificar as palavras de Lúcia Castello Branco com os


poemas de Roberto Pontes, publicados em 1982, mas que foram produzidos a partir
da década de 60. Num período de repressão como foi o da ditadura militar, tudo o
que se quer é liberdade. Nos textos de Roberto, a busca e o alcance da liberdade se
concretizam a partir da experiência amorosa.
Eros não se manifesta obrigatoriamente por meio da sexualidade explícita.
Mesmo em contextos repressores, o deus do amor se faz presente de forma sutil,
buscando a sublimação dos sentimentos.
Ao classificar os poemas de Memória Corporal como eróticos e não como
pornográficos, partimos da ideia de que a pornografia reforça a mutilação e a
solidão dos seres. Na pornografia, o prazer é exclusivamente sexual, não há
referência ao apego afetivo. Trata-se de relações superficiais que abordam
indivíduos incompletos e, muitas vezes, explorados. O erotismo, por sua vez, busca
a perfeição dos seres. No âmbito erótico, não se aborda a culpa ou o pecado, pois
os indivíduos seguem em busca da perfeição. Observemos no poema “O Cavaleiro
e a Montada” a presença desses aspectos característicos do erotismo:

Mora em teu corpo


o corcel da glória
que só cavalga
às madrugadas frias,
mas rápido e luzente
espuma e transpira
sobre nosso amor.
E somos
o cavaleiro e a montada
que se confundem num abraço.

Mora em teu corpo


o corcel que me liberta
e só distende
nas madrugadas e auroras
músculos e trotes
para nosso baile.
E somos
sobre todas as cantatas
o próprio amor que percorremos
juntos.
(PONTES, 1982, p. 27).

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No poema acima há uma união integral dos amantes. É o que se percebe


nos versos finais da primeira estrofe em que o amado diz: “E somos / o cavaleiro e a
montada / que se confundem num abraço". Nesta passagem está uma das funções
do erótico que é a de fundir dois corpos em um.
No mesmo poema, fazem-se presentes a sexualidade, o erotismo e
também o amor, três conceitos explorados por Octavio Paz, em A dupla chama:
amor e erotismo (1994).
A sexualidade relaciona-se ao sexo em si, a fonte primeira da vida, uma vez
que os seres vivos necessitam do processo de reprodução para a perpetuação da
espécie.
Segundo o autor mexicano, a “sexualidade abarca o reino animal e certas
espécies do reino vegetal. O gênero humano divide com os animais e com certas
plantas a necessidade de se reproduzir pelo método do acoplamento, e não pelo
mais simples meio da autodivisão”. (PAZ, 1994. p.15). Já o erotismo e o amor são
derivações do instinto sexual que transformam a sexualidade. O erotismo, uma
prática exclusiva dos seres humanos, trabalha com o desejo e com a imaginação. O
amor, por sua vez, é o território mais amplo do erotismo. Trata-se de uma
inclinação passional por uma só pessoa, proporcionando o encontro de duas
pessoas que se atraem mutuamente e alcançam a total sublimação do sentimento.
No poema “O cavaleiro e a Montada” estão presentes os três conceitos
explorados por Octavio Paz. A sexualidade surge no próprio título por meio da
metáfora do ato sexual. Já o erotismo permeia todo o poema através da busca do
outro com o objetivo de alcançar a completude do ser. O amor, por conseguinte,
aparece com a exaltação do sentimento que se dá pela união completa do casal.
Os versos finais do poema reforçam a noção de fusão dos seres e nos
lembram Platão, para quem o erotismo é definido como um impulso vital que
ascende até a contemplação suprema dos corpos.
O erotismo é a metáfora da transfiguração da sexualidade. A imaginação é
a mola condutora do ato erótico, pois através dela o sexo é transformado em
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cerimônia, em celebração, e a linguagem, em metáfora. Por isso, podemos afirmar


estarem a poesia e o erotismo inter-relacionados. Sobre essa relação, Octavio Paz
afirma:

A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação,
que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal.
Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem – som
que emite sentido, traça material que denota ideias corpóreas – é capaz
de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação, por sua vez, o
erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação.
(PAZ, 2001, p. 49).

Em Memória Corporal, a relação poesia-erotismo é visível no tocante à


união do ser e à tentativa de vitória sobre a efemeridade do tempo. No poema
“Epitáfio”, a memória por meio da arte poética guardará os prazeres do amor um
dia vivido. Eis, abaixo, este que é o último poema do livro em análise.

Aqui jaz o amor um dia dito


só de beijos e flores viveria.
E não morreu por falta de sustento,
ardor e sonho, pois estes vivem sempre
ao jugo seco da crua existência.
Deixou de haver o sopro simples,
o desejo de ser o conivente,
o comparsa do outro na paixão
que a vida faz ruir devagarinho.
Quem esta morte de bom grado aceita
quer deixar escrito na memória,
na verdade indestrutível de um poema,
o seu perdão, o seu adeus,
o seu soturno desamparo ausente.
(PONTES, 1982, p. 73).

Com “Epitáfio”, o eu lírico alcança finalmente a vitória sobre a efemeridade


do tempo, pois o poema apresenta o fim de um enlace amoroso (“Aqui jaz o
amor...”). No entanto, o sentimento provocado pelo perdão e pela despedida
permanecerá guardado na “verdade indestrutível de um poema”.
Nos poemas da obra em estudo, fica clara a consciência do poeta no
tocante à força do tempo e do sentimento amoroso. Em conjunto, os poemas que
compõem o livro resgatam, através da memória, um momento de amor que
cumpriu um ciclo de existência.
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A expressão artística dos poemas pontianos se concretiza, assim como o


erotismo, em função de um impulso em busca da totalidade do ser e da vitória
sobre a morte e sobre o poder do tempo. Nesta perspectiva, Eros consegue vencer
tanto Tanatos quanto Cronos.
Vale ressaltar ainda que Memória Corporal é marcada por um ciclo
amoroso que apresenta basicamente quatro fases associadas à presença de Eros na
obra: 1. O nascimento do amor (surgimento de Eros); 2. O desenvolvimento da
relação (crescimento de Eros); 3. O fim do enlace amoroso (sofrimento de Eros); 4.
O registro do amor (o resgate de Eros através da memória poética).
A primeira etapa do ciclo é representada pelos poemas “Cinco Prelúdios”
que não trazem títulos, sendo apenas numerados. Neles, o poeta apresenta os
personagens da obra: a natureza, o amante e o objeto amado. A junção desses três
personagens faz nascer Eros com toda a sua força e latência, introduzindo assim o
ciclo amoroso. Ao término dos “Cinco Prelúdios”, Eros já está presente nos
enamorados que, a partir de então, serão guiados por este que é o mais velho dos
deuses.
A segunda fase do ciclo amoroso refere-se ao aprofundamento do enlace
sensual. Desse modo, o erotismo é apresentado com ênfase em todas as suas
peculiaridades.
A terceira parte do ciclo consiste no fim do relacionamento amoroso. Ao
mesmo tempo em que Eros fenece, existe a tentativa de resgatá-lo por meio da
memória. Isso fica claro em “Epitáfio”, cujo próprio título designa inscrição tumular.
Sendo os poemas de Memória Corporal representantes de um ciclo
amoroso, podemos concluir que a partir da memória poética e do registro
indestrutível da arte, a experiência amorosa vivida pelo eu lírico é eternizada
resgatando-se Eros para superar a mortalidade dos seres e das emoções.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No tocante a Memória Corporal, vimos não se tratar de mais um livro de

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poemas sobre o amor. O autor conseguiu, por meio de seu poder artístico, recriar o
universo recorrente do amor, imprimindo nova cor e feição a este sentimento, sem
incorrer na pornografia nem no romantismo hiperbólico e piegas comum em muitos
textos do gênero.
Publicado no início dos anos 80 do século XX, Memória Corporal nos traz
uma reflexão amadurecida sobre a vivência amorosa. Desde “Cinco Prelúdios” até
“Epitáfio”, respectivamente, o primeiro e o último poemas dessa obra, verificamos
que são memorados todos os momentos marcantes do ciclo do amor:
conhecimento, paixão, fortalecimento do amor e fenecimento da relação. Contudo,
o amor em si não morre, pois sua lembrança permanece viva por meio da memória
do poema. Assim, vencendo Tanatos, Eros fica registrado não só na memória
daquele que amou, mas também na “verdade indestrutível de um poema”.
Nos versos da obra em estudo, os amantes estão livres de quaisquer formas
de repressão e medo. Eles apenas buscam a felicidade da maneira mais livre
possível. A nudez não surge, nesse contexto, como fator pornográfico, antes
comparece como manifestação de liberdade.
Assim, Memória Corporal apresenta um canto de união que busca a
realização integral do ser humano que encontra no outro um sentido de vida e de
felicidade.

REFERÊNCIAS

AIRES FILHO, Durval. O erotismo poético em Memória Corporal. DIÁRIO DO


NORDESTE-DN CULTURA. Fortaleza, 24 de janeiro de 1984.

ARISTOTÉLES; HORÁCIO; LONGINO. A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna.


São Paulo: Cultrix, 1990.

BATAILLE, Georges. O Erotismo (Ensaio). São Paulo: Editora Arx, 2004.

BRANCO, Lúcia Castello. O que é Erotismo. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1984.

BRUNEL, Pierre. (Org.). Dicionário de Mitos Literários. 4. ed. Rio de Janeiro: José

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258

Olympio, 2005.

PAZ, Octávio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. 4ª ed.
São Paulo: Siciliano, 1994.

PLATÃO. O Banquete. In: Diálogos. Coleção Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril


Cultural, 1974.

PONTES, Roberto. Memória Corporal. Rio de Janeiro: Ed. Antares. Fortaleza:


Secretaria de Educação e Cultura do Município de Fortaleza, 1982.

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CAUSA MORTIS: AMOR – FEDRO SOB O OLHAR DE THOMAS


MANN EM A MORTE EM VENEZA
Manuela Maria Campos Sales
Universidade Federal do Ceará

Resumo: A obra A Morte em Veneza apresenta a história de Aschenbach, um famoso


escritor de meia idade que viaja a Veneza à procura de descanso, mas tem seu
sossego roubado e alma atribulada devido à presença de Tadzio, um rapaz tão belo
quanto a descrição no diálogo platônico. Ao contemplá-lo, Aschenbach o deseja. E
que é o desejo se não o amor? A crise pela qual o escritor passa é o mote da obra. O
texto platônico é retomado quando Aschenbach supõe manter um diálogo com o
próprio Fedro. Mann escreve por meio de uma linguagem simbólica, mítica; “razão
versus desmedida” é o conflito na alma do artista.
Palavras-chave: Fedro; Amor; Thomas Mann; Morte; Belo.

A MORTE EM VENEZA
Esta obra, A Morte em Veneza, classificada como Novelle, foi escrita em 1911 e
publicada em 1912 e apresenta a história de Gustav von Aschenbach, um famoso
escritor de cinquenta anos que viaja para Veneza à procura de descanso, mas ao
chegar lá, tem seu sossego roubado e a alma atribulada devido a um único fato: a
presença de um rapaz que está hospedado juntamente com a família no mesmo
hotel em que se encontra o escritor. A inquietação em sua alma se dá quando
Aschenbach ao olhar para o rapaz, contempla uma beleza jamais vista em outrem e
que acreditava existir apenas no diálogo platônico. A conturbação em sua alma é
tamanha que acaba deixando todo o seu corpo inteiramente vulnerável com relação
ao seu comportamento e ações, pondo em risco sua própria vida e integridade
profissional.
Antes da dedicação completa sobre esta Novelle, algumas considerações
devem ser levantadas com relação à obra de Thomas Mann, por exemplo: deve-se
admitir que é uma leitura difícil de ser realizada, pois seu estilo é altamente
rebuscado; a prolixidade em sua obra é corrente (às vezes ele usa uma página
inteira para um só período, ideia ou mesmo uma frase); a tradução é desafiadora e
árdua, principalmente porque ele faz muito uso da ironia romântica; seu texto é
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imbuído de filosofia e percebe-se muitos traços autobiográficos em seus romances e


novelas.
De acordo com Goethe, uma das características principais para uma obra ser
classificada como Novelle é a história começar com um fato inusitado, porém
possível de acontecer, é estranho, mas possível, e isso pode ser observado em A
Morte em Veneza, começando pela análise do título: quando se pensa em “Veneza”,
lembra-se das gôndolas, de passeios agradáveis, de casais românticos iniciando
uma vida conjugal, ou seja, há toda uma atmosfera romântica que circunda esse
nome, esse lugar, porém, o título já traz uma quebra dessa possível expectativa
agradável, pois traz uma outra palavra que é contrária a essa expectativa: “Morte”.
Então, a partir do título, já se sabe que alguém morrerá em algum momento da
trama, e isso é o que torna essa obra diferente de suas demais obras em que ele
deixa um final não concluído. Implicitamente, há no próprio título um paralelismo de
ideias: vida x morte, amor x dor, e esses paralelismos seguem por todo o romance,
muitas vezes de forma simbólica, o que permite que essa obra seja encaixada no
período simbolista da literatura alemã.
A novela se passa no século XX (o ano exato não é definido), é narrada em
3ª pessoa, e por ser uma Novelle alemã, ela pode ser dividida em atos, por ter uma
estrutura dramática. A obra, então, é dividida em 5 capítulos (5 atos) em que há
uma apresentação/exposição, uma ascensão, um ápice e um declínio com um final
trágico e realista.

TRAÇOS AUTOBIOGRÁFICOS DE THOMAS MANN EM A MORTE EM VENEZA


O nome do protagonista é “Gustav Aschenbach”, mas o leitor já o conhece
como “Gustav von Aschenbach”, da forma como aparecia nos registros oficiais
desde que fizera cinquenta anos. O nome “Aschenbach” literalmente significa “rio de
cinzas”. Aschenbach é um escritor muito conhecido e é descrito como alguém
prudente, correto, ponderado, detalhista, metódico, o que leva os estudiosos a
perceberem que essa é uma descrição muito próxima do próprio Thomas Mann.

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A história se inicia descrevendo um dos corriqueiros passeios vespertinos de


Gustav von Aschenbach pelas ruas de Munique. Essa é uma informação que pode
ser tomada como um traço autobiográfico, visto que Mann vivia em Munique e que
também tinha esses traços conservadores, pois costumava fazer esses passeios
diários, segundo testemunha seu filho Golo no “Arquivo Thomas Mann” que se
encontra em Zurique, “...como por exemplo, o seu passeio diário, pois fazia sempre
o mesmo” (1965, p.12 e 13). Assim como a mesma arrumação no seu gabinete de
estudo nas quatro residências de exílio e a aparência na sua forma de se vestir que
era de uma elegância quase britânica, não um “scholar” ou “Gelehrter”, mas um
“gentleman”.
Outro traço que se pode identificar na novela e ao mesmo tempo confundir
autor com personagem, é a passagem logo no início da obra, que mostra
Aschenbach junto ao Cemitério, à espera do bonde, quando se depara com a
estranha figura de um homem com aspecto de viajante, de “aparência invulgar”
(ruivo, olhos incolores, usava chapéu de palha, capa cinza, portando um mochila e
bengala com ponta de ferro) que se encontrava no pórtico do cemitério; após
examinar e ser intimidado pelo estranho homem, o escritor tem uma estranha visão
na qual ele descreve um clima semelhante ao do Brasil (lugar de onde provinha sua
mãe):

Ele via, via realmente uma paisagem, pantanosa região tropical, sob um
céu brumoso, pesado, paisagem úmida, exuberante, monstruosa, espécie
de selva primordial, entrecortada por cursos d’água a formarem ilhas,
lodaçais, nesgas barrentas; via como, em meio a luxuriantes fetos se
elevavam aqui e acolá cabeludos troncos de palmeiras, brotando de solos
cobertos de uma vegetação farta, túmida, esdruxulamente florida; via
árvores excêntricas, disformes, a estenderem suas raízes através do ar em
direção ao chão ou as águas estagnadas, nas quais se espelhava o verdor
sombrio; via por entre flores aquáticas, brancas como leite e enormes
como bacias, aves exóticas, de ombros altos e bicos enormes, a
quedarem-se nos bancos de areia, mirando a seu redor, imóveis; via a
confusão das hastes nodosas de um bambual, os olhos de um tigre
agachado, e sentia como o seu coração palpitava de pavor e misterioso
desejo. Então desvaneceu-se a visão. (2015, p. 13-14).

A região acima descrita é semelhante à que a própria Júlia Mann, mãe de

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Thomas Mann, apresenta em seu texto “Éramos cinco” encontrado nos arquivos de
Viktor Mann. Ela diz, sem indicar o país, que nascera na floresta virgem (“Urwalde”
sic), entre macacos e papagaios (“unter Affen und Papageien” sic), sob o sol intenso
ou sob as chuvaradas tropicais.
Uma outra questão a ser levantada diz respeito à súbita vontade de
Aschenbach em viajar, justamente logo após a aparição desse estranho homem no
pórtico. O próprio texto diz: “É, contudo, possível que sua imaginação tenha sido
influenciada pelo aspecto peregrino do estranho”. Há a possibilidade de Thomas
Mann ter expressado uma inquietação que nem ele mesmo sabia possuir, mas que
se manifestava mais claramente na vida de sua mãe. Júlia possuía uma misteriosa
inquietação no que diz respeito à moradia; após a independência dos filhos, ela
tornara-se uma espécie de nômade, mudando-se de “pensão em pensão”, talvez
sentindo o vazio de ser mãe, visto que não tinha mais os filhos consigo. De repente,
essa inquietação também fazia parte da genética de Mann e ele mesmo sentia esses
conflitos de alma entre a lógica e o romantismo, um perpétuo conflito entre duas
raças, como Linhares comenta, “...pois se do pai herdou o equilíbrio e a lógica, dela
lhe adveio o romantismo apaixonado e sensual, algo de estranho e doentio. A sua
complexidade, a sua originalidade vem desse perpétuo conflito, desse duelo
incessante entre as duas raças que nele se digladiam” (1953, p.277). Uma hipótese
foi levantada por Rosenfeld com relação ao comportamento de Mann e que leva ao
complexo de Édipo, pois em sua obra geralmente aparecem essas mulheres
“exóticas e tentadoras”.
Ainda abordando esse aspecto da biografia de Mann dentro de suas obras, o
segundo capítulo de A Morte em Veneza apresenta a biografia do famoso escritor
Gustav Aschenbach que muito se aproxima de seu criador, como se pode ver no
trecho seguinte, “nascera em L. (...) filho de um alto magistrado. (...) Uma dose de
sangue mais ágil e mais quente fora injetado na geração anterior da família pela
mãe do escritor. (...) Dela derivavam os sinais de uma raça estranha na aparência de
Aschenbach” (2015, p.17). Acaso com essa informação, quis Mann apresentar sua

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própria ascendência? A novela diz que Aschenbach nascera em “L.”, e Mann nasceu
em “Lübeck” (ambos se iniciam com “L”). O poeta decadentista descendia de uma
família da alta burguesia e ele sempre tentava deixar essa informação em evidência;
não era uma burguesia capitalista, mas uma burguesia da Idade Média, imbuída de
tradições e cuidados com a atividade cotidiana. Por fim, ele mesmo se referia à mãe
como “exótica”, pois ele sabia que ela era brasileira e possuía ascendência indígena.
As informações acima, se analisadas, muitas semelhanças podem ser constatadas
com a biografia do protagonista da novela.
Thomas Mann era consciente de sua etnia, como já foi mencionado, e sabia
que de alguma forma isso o influenciava, talvez não biologicamente, mas
psicologicamente, e, claro, influenciaria nele enquanto artista. Tanto Thomas quanto
Heinrich, seu irmão, também escritor, sentiam-se marcados por esses traços
psicológicos. Ambos retratam em obras distintas a presença de uma mulher
“exótica” ao modo de sua mãe. Na obra em questão mais uma vez constata-se algo
semelhante entre Mann e Aschenbach, “A combinação de uma prosaica consciência
profissional e de enigmáticos impulsos fogosos dava origem a um artista e,
precisamente, àquele artista inconfundível” (2015, p.17). Rosenfeld, em seu ensaio
intitulado Thomas Mann, escreve,

Muito cedo Thomas Mann se convenceu da sua missão de escritor e


artista. Tendo a clara intuição da sua situação anormal de artista dentro da
sociedade burguesa, teve a sua sensibilidade para esse fato enormemente
aguçada pela anormalidade da sua ascendência entre as famílias
tradicionais da sua cidade natal. (1994, p. 150).

A MORTE
A obra em análise carrega no próprio título uma das principais engrenagens
da obra: a morte. Num primeiro momento, quando da leitura do título, o leitor sabe,
e não equivocadamente, que algum personagem morrerá. De fato, essa sentença
não é escondida de ninguém. O que não se sabe a priori é que a morte na novela
não surgirá meramente como o último estágio na vida de alguém, mas que a morte
figurará quase como uma entidade autônoma, uma divindade, um ser mítico que se

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fará presente em Veneza. A prova disso são todas as formas como a Morte se
apresenta para Aschenbach, ainda que sutilmente, pois se utiliza de símbolos e sem
perceber é conduzido por ela.
A primeira vez em que a Morte figura na novela é na misteriosa aparição, aos
arredores do cemitério, de um estranho homem no pórtico “logo acima dos dois
animais apocalípticos que vigiavam a escadaria” (2015, p.12) encarando Aschenbach.
Como já foi dito anteriormente, o homem tinha um semblante estranhíssimo e “os
lábios pareciam excessivamente curtos e recuavam dos dentes a tal ponto que estes
ficavam visíveis até as gengivas, brancos, compridos e como que arreganhados”
(2015, p.13). Seus trajes o denunciavam viajante e talvez isso tenha provocado em
Aschenbach, o súbito desejo de viajar. É nesse momento que a sentença do escritor
é selada. Parece ter sido convencido por um gênio a viajar e, consequentemente, a
ir ao encontro do seu fim, da sua morte, como se explicita no trecho que segue, “É,
contudo, possível que sua imaginação tenha sido influenciada pelo aspecto
peregrino do estranho ou que tenha entrado em jogo qualquer outra interferência
física ou psíquica” e “Era o desejo de viajar, nada mais, mas que o acossava com a
força de um acesso, intensificando-se às raias de uma paixão e mesmo de uma
alucinação” (2015, p. 13).
Um segundo momento em que fica evidente a personificação da Morte
conduzindo o protagonista a Veneza é a figura do gondoleiro e sua gôndola. O
próprio narrador se ocupa de fazer a associação das gôndolas à caixões:

esses barcos tão caracteristicamente negros como são, entre todos os


objetos do mundo, apenas os caixões – eles provocam em nós a
associação a aventuras clandestinas e perversas nas águas noturnas, e
ainda mais à própria morte, a féretros, a sombrios enterros, ao silêncio da
última viagem. (2015, p. 29-30).

A descrição que Aschenbach faz ao fitar o rosto e o comportamento do


gondoleiro é de terror, “Era um homem de fisionomia desagradável, quase brutal” e
“Ouvia-se mais uma coisa: um murmúrio, palavras sussurradas, um monólogo
apenas audível do gondoleiro, que falava de si para si, entre os dentes, proferindo

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sons entrecortados ao ritmo do movimento dos braços” (2015, p.30). Esse ser
também usava chapéu de palha, tal qual o viajante do início da novela. De certa
maneira ele associa o gondoleiro ao caronte (personagem da mitologia grega
responsável por conduzir as almas em seu barco até o Hades). Mais uma vez tem-se
a Morte personificada conduzindo aquela alma que se encontrava em conflito, à sua
última morada. Tanto o viajante de “aparência invulgar” quanto o gondoleiro,
aparecem e desaparecem misteriosamente diante de Aschenbach; ambos
simbolizam a Morte e o levam em direção à Morte, sim!, pois a partir do momento
em que a vontade desenfreada de viajar penetrou o coração de Aschenbach, ele
assinou sua sentença de morte. Ao ser conduzido pelo gondoleiro até Veneza, ia ao
encontro de sua própria ruína. São os “mensageiros da morte” sempre apontando
para o fim do personagem. Isso pode ser chamado de Leitmotiv (serve como tema
por toda a obra). Até a cidade de Veneza é um “mensageiro da morte”, é um
símbolo do reino da morte. Veneza é uma cidade bela, mas é podre, cheira mal; é
bonita por cima, na sua superficialidade, mas no fundo é podre e prenuncia a morte.
Cada uma dessas particularidades, quer seja um gesto, uma emoção ou uma
atmosfera, quando cuidadosamente analisadas, exalam informações de suma
importância que contribuem na compreensão do estilo literário do autor. Deve-se
ter a consciência de que cada detalhe escrito não foi escrito em vão, mas fazia parte
de uma nova filosofia que inspirava o autor, e que transformava a novela, antes
transparente e concisa, condensada num símbolo, já que nela figurava um quadro
de extremo realismo psicológico. Esse tipo de transformação, do real para o
simbólico, é traço característico da novela: viajante e gondoleiro são concretos,
porém, assumem uma essência ambígua, transcendental, mitológico-simbólica.

DO BELO E DO AMOR
Uma outra questão a ser analisada é a busca do escritor pela beleza perfeita.
Logo após a chegada no hotel luxuoso, Aschenbach se depara com Tadzio, um
menino polonês de quatorze anos que está acompanhado de sua família. Ao

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contemplá-lo, o escritor de meia idade “petrifica” diante de tamanha beleza. A


beleza de Tadzio é descrita como sendo a própria personificação do Belo. A partir
de então, o escritor passa a perseguir Tadzio, talvez não pelo fato da paixão em si,
de um amante por um amado, mas o persegue como quem persegue a beleza. A
imagem que é projetada do menino é tão bela que dá a impressão de que ele não
é real, que fora esculpido:

...um garoto de cabeleira comprida, a aparentar uns catorze anos. Com


alguma surpresa Aschenbach constatou a perfeita beleza desse rapazinho.
O rosto pálido fino, fechado, os cabelos ondulados cor de mel que o
emolduravam- a boca meiga, o nariz reto, a expressão de suave e divina
dignidade – tudo isso lembrava esculturas gregas (...) o observador
julgava jamais ter visto, nem na natureza nem nas artes plásticas, alguma
obra igualmente perfeita. (2015, p. 34).

O renomado escritor de meia idade encontrava-se em crise com relação à


sua criação literária. Como todo poeta, buscava encontrar o Belo para que sua arte
ficasse completa, e ele como artista se tornasse pleno. A busca pelo Belo não é fato
isolado ou algo que somente o personagem de Mann buscava. O próprio Mann
buscava essa plenitude. Essa busca vinha sendo formulada, contestada e
reformulada desde o período clássico. Platão, em seus mais diversos diálogos, foi
pioneiro quanto a abordagem desse tema. Um dos diálogos mais conhecidos que
trata do Belo e do Amor é encontrado no Fedro:

pois em suma o que é verdadeiro deve-se ousar dizer, sobretudo quando


verdade se está falando: pois a essência que sem cor, sem figura, sem
tato, no entanto realmente é; a que só pelo piloto da alma, o intelecto
pode ser contemplada; a que é patrimônio da verídica ciência, este é o
lugar [247d] que ela ocupa. (2016, p. 85).

Aschenbach enxergou em Tadzio o que não via em si próprio: a beleza. No


quarto capítulo, Thomas Mann se debruça sobre o texto platônico de Fedro e seu
diálogo com Sócrates em que eles discutem o amor e o belo. Como todo artista,
Aschenbach não era diferente: buscava encontrar na vida a personificação do Belo.
Aschenbach enxergava o divino em Tadzio, “a perfeição una e pura que vive no
espírito e cuja imagem, cujo símbolo lá se erguia, gracioso e leve, no intuito de ser

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adorado” (p. 53). A contemplação da beleza causava-lhe um frenesi, uma


inquietação, um desejo de sair do racional e cometer uma desmedida. Comparou,
inebriado, o menino ao ser mitológico representante da mais sublime beleza:
Narciso. O sorriso de Tadzio era o sorriso de Narciso, menino tolo e inocente que,
debruçado sobre o espelho da água admirava, sem saber, a própria beleza e
enquanto contemplava a imagem, por ela era contemplado, ao sorrir, o sorriso era-
lhe retribuído, mas em vão tentava tocá-la. Diante de Tadzio, Aschenbach percebe
que tentar descrever sua beleza seria tentar reduzi-lo a uma forma e, pesaroso,
infere que “as palavras conseguem apenas encomiar a beleza sensual, porém são
incapazes de reproduzi-la” (p. 60). Ao proferir a frase: “Eu te amo!”, na última frase
do capítulo quatro, o escritor apresenta-se como o artista diante da arte, diante do
belo, e demonstra, na verdade, amar a beleza que o rapaz possui, pois, a
contemplação do Belo eleva o espírito: “Assim, a beleza é o caminho que conduz o
homem sensível ao espírito.” (p. 54-55)
Nesse ponto o texto torna-se muito mais filosófico, não somente pela
aproximação platônica entre o escritor e o garoto, mas pelo próprio conteúdo com
relação ao belo.
A crise pela qual o escritor passa é o mote da obra. Sua crise literária o
impede de criar novas obras. Aschenbach é um personagem apolíneo em tudo, pois
é racional, meticuloso, sua escrita é limpa, sempre tem em mente que sua criação
deve ser perfeita, mas ele como artista entra em conflito com outro personagem
que circula dentro dele: o dionisíaco. Ambos os personagens são míticos e remetem
a divindades da Mitologia Grega: Apolo, que está relacionado à razão, e Dioniso,
que está ligado à loucura, ao caos, à euforia. Ao pensar em Tadzio ele perde um
pouco da razão e é esse agón (luta, embate), entre o ser apolíneo e o dionisíaco
dentro do artista, que predomina e o leva à crise. A “razão versus desmedida” é o
conflito dentro da alma do artista e que um deles a qualquer momento pode se
sobressair. Esse conjunto (artista, apolíneo e dionisíaco) na obra de Mann é
característico da filosofia de Nietzsche.

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A última reflexão filosófica que Aschenbach faz, ocorre logo após sua inútil
tentativa em rejuvenescer e após uma perseguição vã pelas ruas da cidade enferma
(um surto de cólera assolava Veneza). Perseguia a família polonesa, atraído pelo seu
amado. Perde-os de vista e em vão continua a procurá-los; quando já exausto,
diante da ventania morna que subia e ali se instalava, compra umas frutas de um
verdureiro e ali mesmo na rua, numa cisterna, lava o alimento e come. É dessa
forma que ele adoece de cólera. Sentado na rua, em um momento de delírio, supõe
manter um diálogo com Fedro sobre o belo:

Porque a beleza, lembra-te disso, ó Fedro, unicamente a beleza, é divina


e ao mesmo tempo visível. Por isso também é a senda dos sentidos, a
estrada, meu pequeno Fedro, que conduz o artista ao espírito. (...) Pois é
preciso que saibas que nós, os poetas, não podemos trilhar a vereda da
beleza, sem que Eros se coloque ao nosso lado e se arrogue o direito de
nos guiar. (...) porquanto o que nos eleva é a paixão, e a nossa aspiração
será sempre o amor. Nisso se resumem a nossa delícia e a nossa
vergonha. (...) Também elas nos conduzem ao abismo, sempre ao
abismo!” (2015, p. 80-81).

Passados alguns dias, em um momento em que ele estava na praia a


observar Tadzio, uma visão lhe surge: ele vê Tadzio apontando para o horizonte,
como se o conduzisse a outro plano, outro espaço, e é com essa imagem que ele
adentra o outro mundo, ao mundo dos mortos. Minutos depois percebem seu
“desmaio” e no mesmo dia o mundo recebe a notícia de sua morte. Ele estava
pleno: como artista, contemplara a mais bela arte e com isso estava completo, de
nada sentia falta, estava pronto para morrer.
No comentário de Mário Fleischer no livro “Textos e estudos de literatura
alemã”, ele afirma que a fatalidade de Gustav von Aschenbach poderia ser expressa
nos versos de Platen, “Quem a beleza viu com os próprios olhos, já está consagrado
à morte...” (p. 18).

CONSIDERAÇÕES GERAIS
Em A Morte em Veneza, Thomas Mann decide um final para seu personagem
principal e o destino de Aschenbach é traçado desde muito cedo e isso é

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evidenciado no título da novela. Ele vai conduzindo o personagem por meio de uma
linguagem simbólica, mítica e envolvente, mas é necessário que o leitor tenha um
conhecimento prévio sobre alguns assuntos por ele abordados na obra. Não
permite que um leitor vulgar, sem um conhecimento mínimo filosófico, compreenda
algumas nuances das reflexões que o protagonista faz. De um modo geral, a novela
será entendida, obviamente, mas provavelmente o leitor que não está acostumado à
linguagem de Mann encontrará dificuldade na leitura desde o vocabulário
rebuscadíssimo até suas reflexões platônicas e nietzschianas. A arte e a morte se
opõem, se atraem e se chocam!

REFERÊNCIAS

BÖSCH, Bruno. História da Literatura Alemã. São Paulo: Herder, 1967.

CARPEAUX, Otto Maria. A História concisa da Literatura alemã. 1.ed. São Paulo: Faro
Editorial, 2013.

CHACON, Vamireh. Thomas Mann e o Brasil. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

LINHARES, Temistocles. Introdução ao mundo do romance, Livro J. Rio de Janeiro:


Olympio, 1953.

MANN, Thomas. A Morte em Veneza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

MANN, Thomas; e outros autores. Textos e Estudos de Literatura Alemã. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1968.

PLATÃO. Fedro. edição bilíngue. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2016.

ROSENFELD, Anatol. Ensaios. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

THEODOR, Erwin. Introdução à literatura alemã. Rio de Janeiro: Coleção Buriti, 1968.

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INFÂNCIA E EROTISMO NA LITERATURA: CORAÇÃO DE MENINO:


TUC, TUC, TUC! O QUE É ESSA COISA CHAMADA AMOR?
Fernanda Coutinho
Universidade Federal do Ceará

Resumo: O amor insere-se nos “universais temáticos” (CHARDIN apud Pageaux,


1994, p.78 e Souiller, 1997, p.14), inscrevendo-se, assim, no rol de assuntos que
definem as experiências humanas consideradas universais. Como tal, circula em meio
a uma infinidade de obras artísticas, particularmente as literárias. Na verdade, a
Literatura ocidental vai capturar Eros, o deus menino, o enfant terrible da raça
humana, nos domínios da Mitologia Grega, e, de lá para cá, ele percorre desenvolto
os espaços da ficção, quer a narrativa, quer a poética ou a teatral. Sentimento
associado, o mais das vezes, à idade adulta, ou no mínimo à adolescência – sua
fruição é concebida como uma porta de saída da idade infantil e um adeus à
ingenuidade, que lhe é habitualmente atribuída. Contudo, a Literatura também
registra em suas páginas situações em que a criança se descobre alvo das afiadas
setas do deus do amor e da paixão. Este trabalho visa a examinar as emoções ligadas
ao estupor e ao aturdimento experimentadas por personagens crianças, quando se
deparam com a força aliciadora do primeiro amor e/ou das primeiras ondas do
desejo erótico. Quem é essa pessoa que sou eu agora, por que não me reconheço
mais? indagam-se a si próprios esses seres marcados pela “dor que desatina sem
doer” – como dizia Camões, um grande amoroso. Se às crianças é atribuída a sede
de perguntas, quando sob o domínio da paixão, a saída da meninice não as
desinveste desse costume, com o agravante de que as perguntas aparecem agora
envoltas pelas capas do interdito. Esses personagens, que continuam a habitar o
reino das interrogações, cumulam-se de porquês, em meio a tempestuosos
pensamentos. As obras a serem aqui analisadas flagram a criança, no dilaceramento
interior provocado pela afecção amorosa, tanto em séculos, quanto em modalidades
literárias distintos: no XIX, por meio do romance de Machado de Assis, quando
Bentinho ainda não era Dom Casmurro, porém, desde essa época, presa da sedução
da Capitu menina; no XX, na figura do eu lírico, que transcreve as recordações de
infância de Carlos Drummond de Andrade, em Boitempo e, no mesmo século XX, no
conto “Frida”, de autoria da escritora colombiana Yolanda Reyes, em que Santiago, o
menino enamorado da personagem-título da narrativa, constata: “Isto de enamorar-
se é muito duro”, no que parece replicar as palavras de Lord Byron, outro que fez do
sentimento em causa a expressão de sua vida, como na constatação enfática: “Dá
muito trabalho, esse amor!” Como tal, busca-se entrelaçar duas pautas frequentes da
Literatura e verificar de que forma é possível verificar como a arte literária flagra a
percepção de diferentes sociedades sobre o enamorar-se menino. E o que dizer sobre
os relatos, na clave do confessionalismo, sobre a descoberta do desejo? Esse percurso
distinto, dos pontos de vista temporal e espacial, parece-nos interessante, inclusive,
para apontar leituras contemporâneas do par infância x amor, em nossos tempos em

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que a erotização das crianças é encenada – cortinas abertas – entre atores, que, não
necessariamente, vivem as surpresas aflitivas pela primeira vez. A partir dessas três
experiências artísticas, busca-se compreender a leitura que a Literatura empreende do
amor infantil, com apoio, entre outros, em autores como (ABRAMOVICH, 1985),
(ROUGEMENT,1988), (GAY, 1999) e (HOYSTAD, 2015).
Palavras-chave: Amor; Infância; Literatura; Interdição; Erotismo.

Quando se fala em amor, o nome de Lord Byron (1788-1824) é uma associação


imediata, tal o vínculo que o poeta inglês estabeleceu com esse sentimento, quer
em sua vida pessoal, quer nas palavras arrebatadas que nos legou em sua lírica.
Assim é que se tem notícia de que, não muito tempo antes de morrer, profere ele
uma frase-desabafo, que denota a inevitabilidade do sentimento em sua vida,
dando conta, ao mesmo tempo, de uma espécie de servidão, por parte de quem o
experimenta: “Dá muito trabalho esse amor...”.77
No século seguinte, um outro poeta, desta feita, brasileiro, o mineiro Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) parece repercutir o sentido de incompreensão
diante dessa quase fatalidade da vida humana, que é a convivência com a energia
amorosa. Em “As sem-razões do amor”, poema de Corpo, o escritor realiza uma
ampla meditação sobre o que quer que seja isso que acomete os seres humanos e
conclui, sentencioso: “Amor foge a dicionários/E a regulamentos vários”. (ANDRADE,
2015, p. 26)
É em diapasão semelhante que o poeta Chico Buarque apresenta sua versão
sobre a espiral desejante em que se precipitam os habitantes das terras por onde
voa o pequeno deus alado: “Sonhei que o fogo gelou/Sonhei que a neve fervia/E
por sonhar o impossível/Ah! Sonhei que tu me querias.” 78
Em meio a exclamações, reticências e interjeições, esses três exemplos não
significam mais que um exíguo registro de quanto a temática invadiu a esfera das
artes, particularmente a Literatura, no caso em questão. Não por acaso, portanto, o
amor, ao lado da infância, da morte, do sonho e da guerra figura na categoria dos

77 A frase teve como testemunha Thomas Moore, escritor irlandês (1799-1852), biógrafo de Byron e
responsável pela publicação de sua escrita íntima, cartas e diários.
78 Outros sonhos é uma composição do artista, lançada no álbum Carioca, datado de 2006.
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“universais temáticos”, a qual se deve ao teórico francês Philippe Chardin. Trata-se,


assim, de uma experiência fundante na existência humana, tanto quanto as outras
listadas por Chardin. (CHARDIN, apud SOUILLER; TROUBETZKOY, 1997, p. 14).
Nos três textos poéticos citados, é possível vislumbrarmos a presença de
amantes adultos em cena, o que gera uma pergunta, a título de contraposição:
esperará o inquieto deus que cheguemos a essa idade para nos fazer presa de seus
sortilégios? Essa indagação é uma forma de introduzir o assunto mesmo deste breve
ensaio, que diz respeito à descoberta do amor, ainda na infância. Uma resposta à
indagação há pouco enunciada, e que se revela como um eloquente não, foi dada
pelas artes plásticas, especificamente a pintura, ao criar como que um topos plástico,
o do Cupido desarmado, que se notabilizou principalmente através dos pincéis
galantes de Jean Antoine Watteau (1684-1721). 79 Nesta tela, Vênus subtrai a seta do
deus do amor, agindo como uma mãe que fizesse uma reprimenda a um filho
travesso. O que chama mais a atenção do observador, contudo, é o ar de quase
desespero que se apossa da face de Cupido, que parece pressentir a perda de sua
própria essência, privado que está da capacidade de atingir todas as pessoas,
crianças ou adultos.
Quanto à Literatura, podemos dizer que faz eco ao não, proferido pela arte-
irmã, o que resulta em experiências quer de ficção poética, quer de ficção narrativa,
que tomam o amor na idade infantil como eixo de sua composição.
Nesse sentido, é inevitável a referência à novela Primeiro amor, publicada em
1860, pelo grande escritor russo, Ivan Turguêniev (1818-1893), na qual, na realidade,
o personagem principal, Vladímir Petróvitch, é um adolescente. Todavia, a novela
vale como uma espécie de sinete de identificação do tema, a partir do aparato
paratextual representado pelo título, marcadamente enfático. Isso para não
recuarmos ao texto pastoril de Longo, protagonizado por Dáfnis e Cloé, surgido nos
séculos II ou III a.C.

79 François Boucher (1703-1770), Émile Munier (1840-1895) e Guillaume Seignac (1870-1924) são mais
alguns dos pintores que desenharam em suas telas a expressão ansiosa de Cupido ao se ver
destituído de sua seta mortífera.
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Na literatura brasileira, um casal paradigmático no que toca à paixão infantil


é o formado por Bentinho e Capitu, figuras ficcionais criadas por Machado de Assis.
Já em 1899, os leitores da Livraria Garnier eram apresentados, inicialmente, a Dom
Casmurro, alcunha do advogado Bento Santiago, e depois, por meio da narração
retrospectiva a Bentinho, nome pelo qual a personagem atendia na meninice. Sua
história e a da vizinha da família, Capitu, bordavam as páginas do romance,
deixando, a partir da narração desse conturbado idílio, nascido ainda na infância,
uma pergunta na mente dos que acompanhavam a saga à Otelo: teria Capitu traído
Bentinho?
Porém, mais do que insistir na renitência da questão, que se transformou
como que em uma obsessão, na mente dos leitores, interessa-nos apontar o fato de
Machado de Assis aplicar novamente, com relação a Bentinho, embora sem
explicitá-la, a máxima do poeta romântico William Wordsworth (1770-1850), “O
menino é pai do homem”, 80
por ele, já anteriormente utilizada, em 1881, face ao
personagem título, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Assim é que, na
composição de Bento Santiago, um cismático por excelência, o narrador faz com
que o pensamento acerca da questão se a Capitu da rua de Matacavalos já estaria
na da praia da Glória cause perturbação ao exercício do protagonista no rememorar
seus dias idos e vividos.
Um episódio, em particular, vem aguçar o travo da desconfiança. Trata-se
daquele em que o fio do pensamento do presente de Bentinho liga-se à memória
da recordação da chegada abrupta de Dona Fortunata, mãe de Capitu, no
momento exato em que os jovens amantes vivem a emoção do primeiro beijo.
Nessa ocasião, fica bem evidente a expressão de cândida naturalidade de Capitolina,
em oposição ao forte embaraço do apaixonado, o que é assinalado pelo narrador,
por intermédio de uma retórica da polarização entre as emoções.

80 No original, o poema intitula-se “My Heart Leaps Up”. A presente tradução é de Paulo Vizioli. “Eu
sinto o coração bater mais forte./Quando o arco-íris posso ver./Assim foi quando a vida
começou,/Assim é agora quando adulto sou/E assim será quando eu envelhecer.../Senão, melhor a
morte!/O menino é pai do homem;/E eu hei de atar meus dias, cada qual,/Com elos da piedade
natural.” (WORDSWORTH, 1988, p. 49).
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Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço.


Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a comoveu.
– Levanta, Capitu!
Não quis, não levantou a cabeça e ficamos assim a olhar um para o outro,
até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus e...” (ASSIS, 1986, p.
844).
(...)
Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à
porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma
contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro (...) (ASSIS, 1986,
p. 845).

Quanto a Bentinho, especificamente, a adjetivação identificadora de uma


gradação ascendente, tal como visto em “calado, enfiado, cosido à parede”, pode
ser associada ao que Gaston Bachelard denominou de “dinamismos do retiro”,
expressão com que o filósofo define as imagens dos “movimentos do encolher-se
que estão gravados nos músculos”. (BACHELARD, 1996, p. 104). Para grifar a
importância do evento, como matriz de atitudes futuras da menina, o narrador
elabora uma síntese reiterativa desse episódio capital de sua entrada no reino de
Eros: “Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrários, ela encobrindo com a
palavra o que eu publicava pelo silêncio. (ASSIS, 1986, p. 845) Aqui cabe anotar que,
no acervo das manifestações do sentimento amoroso, o beijo tem um significado
especial desde a Idade Média, de acordo com (HOYSTAD, 2015), que sobre aquele
período afirma:

A troca ritual de corações é também uma expressão de empatia. Na


época da cavalaria, esta troca – realmente uma expressão de uma fusão
de corações – podia ser mediada ritualmente ou simbolicamente por um
beijo. O beijo selava a fusão dos corações, tornando o cavalheiro
particularmente suscetível às emoções de sua dama, que ele sentia e
respondia como se fossem as suas. (HOYSTAD, 2015, e-book).

Sendo Dom Casmurro um romance recapitulativo, esse episódio não marcará


o beijo unicamente como um emblema da paixão, mas serve, ainda, para compor o
perfil de Capitu, como mulher dissimulada, cuja trajetória, para Bentinho, remontaria
aos verdes anos, aspecto que denota a percepção da infância como etapa
definidora da existência humana, tal como enunciara Wordsworth. O poeta

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romântico o faz numa clave solar, ao passo que Machado de Assis se apropria da
enunciação como prova do determinismo que a estética realista se comprazia em
atestar. A grande questão do livro, expressa no fato de ser a dissimulação o eixo
construtor da personalidade de Capitu, e a insegurança a de Bentinho, é um dos
aspectos que mais densificam a narrativa, tornando-a um romance da dúvida. Como
tal, é possível pensar que toda a construção dos protagonistas se vale do perfil
infantil de ambos à maneira do indício 81, palavra que define a marca textual
proposta por Roland Barthes: um elemento de significado premonitório no
andamento da intriga romanesca.
Como um deus trêfego que é, Cupido encontra formas variadas de levar ao
acometimento amoroso. Versáteis também são os modos de dizer as paixões
infantis. Em Boitempo II 82, com destaque para a seção “O menino e os grandes”, o
eu-lírico recorre à clave do confessionalismo para relatar a descoberta do desejo, na
paisagem itabirana, transcrita nas recordações de infância de Carlos Drummond de
Andrade.
Para fugir à mediania do mundo terreno, incompatível com a ordem de
grandeza do tema, a voz poemática se transporta para dimensões estelares, como
visto em “Órion”:

A primeira namorada, tão alta


que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.

Luiza na janela do sobradão. (ANDRADE, 1987, p. 28).

Além de ratificar o uso do lexema estrela, como metáfora do esplendor, o

81 Em outra leitura deste trecho de Dom Casmurro, tivemos ocasião de observar que o capítulo do
beijo “obedece a uma rígida convenção sintagmática, pois é precedido pela célebre reflexão em
torno dos ‘“olhos de ressaca”’. (COUTINHO, 2011, p. 77).
82 A publicação da obra teve início em 1968, com Boitempo & A falta que ama, seguidos de Menino
antigo: Boitempo II (1972) e Esquecer para lembrar: Boitempo III, (1979). Na reedição da editora
Companhia das Letras, a obra se apresenta compactada em dois volumes: Boitempo, Menino antigo,
e Boitempo, Esquecer para lembrar, 2017.
 

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poeta deixa entrever igualmente a noção de infinito, também associada ao mundo


estelar. Diante da primeira namorada, envolta em aura mítica, ele nada mais era que
um grãozinho de areia a vagar no cosmo. A dicção negativa do poema, realçada
pelo recurso estilístico da repetição em três tempos, representa a tradução verbal da
inacessibilidade, sendo reiterada pelo vazio tonitruante do sintagma “quilômetros de
silêncio”. Em mais um exercício da repetição como ferramenta composicional, no
caso, a ideia de negação-inatingibilidade, o poeta faz o último verso de “Órion”,
distar do anterior, salientando o aspecto semiótico do texto. O verso final, que
apresenta o objeto de enlevo nomeado, cria um paralelismo com o título do texto,
pois ambas, Luiza e Órion, relativamente ao menino, aludem provocativamente ao
âmbito do muito desejar.
Como contraponto a Luiza, vê-se em “Amor, sinal estranho”, a exacerbação
do sentir deste amante imberbe, que se depara com o encantamento sem uma
causa de enleio particular, e sim dirigido à própria ideia do amar, configurada na
plêiade de nomes femininos, aí elencada.

Amo demais, sem saber que estou amando,


as moças a caminho da reza.
No entardecer,
elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
o sinal silencioso de alguma coisa
que não sei definir – mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
ou Dulce ou Nazaré ou Cármen.
Todas me ferem – doce,
passam sem reparar. O lusco-fusco
já decompõe os vultos, eu mesmo
sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer
assim como os rapazes estudam para médico ou advogado. (ANDRADE,
1987, p. 29-30).

A expansão lírica gerada pelo olhar voltado para o outrora assinala a afecção
amorosa como algo indefinível, sensação que, do ponto de vista do poema, é

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encapsulada no verso em forma de indagação: “Que fazer deste sentimento/que


nem posso chamar de sentimento?” O não saber, aliás, transita ao longo dessa peça
verbal e plástica, de estrofe única, circulando por entre os passos sobranceiros de
Hermínia, Marieta, Dulce, Nazaré e Cármen, que “passam sem reparar”, os olhares
cobiçosos, dos “olhos baixos mas atentos” do menino. Esta é a significação que ele
lhes dá. Ele próprio é alvo de um saber de “ignorâncias feito” 83, pois em lance
paradoxal, afirma: “Amo demais, sem saber que estou amando,/ as moças a
caminho da reza.” A tônica do desconhecer a própria condição existencial pela
entrada em cena de Eros, o deus menino, o enfant terrible da raça humana, parece
ser desconstruída pela afirmação que fecha “Amor, sinal estranho”: “Estou me
preparando para sofrer/assim como os rapazes estudam para médico ou
advogado.” Mas, na verdade, trata-se de uma certeza, que somente intensifica o
amor como uma vivência assemelhada à das “dramatis personae” e a coloca como
algo inexorável e sempiterno.
Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade são dois dos escritores
da Literatura Brasileira, por meio dos quais é possível descortinar o amor,
sentimento associado, o mais das vezes, à idade adulta, ou no mínimo à
adolescência, sendo sua fruição, aliás, concebida como uma porta de saída da idade
infantil e um adeus à ingenuidade, que lhe é habitualmente atribuída. 84 Com
respaldo em expressões literárias distintas, o romance e o poema, respectivamente,
examinam ambos os escritores as emoções ligadas ao estupor e ao aturdimento
experimentados por personagens crianças, quando se deparam com a força
aliciadora do primeiro amor e/ou das primeiras ondas do desejo erótico. No passar
das páginas dos livros, os leitores parecem ouvir o eco da pergunta: Quem é essa

83 A expressão aponta para um jogo intertextual de Drummond com o Camões do Canto IV, de Os
Lusíadas, onde se vê “saber de experiências feito”. Transcrita em “O outro nome do verde”, de Os
Caminhos de João Brandão, faz companhia ao seguinte comentário de Drummond sobre Machado:
“Não resta dúvida, técnico em olho de mulher, o criador de Capitu.” (ANDRADE, 2016, p. 54)
84 Na Literatura Colombiana, é digno de destaque o conto “Frida”, de autoria de Yolanda Reyes
(1959), que relata o drama de Santiago, que após conhecer seu amor infantil, e com ela experimentar
o primeiro beijo, conclui categórico: “Para mí la vida se divide en dos: antes y después de Frida. No sé
cómo pude vivir estos once años de mi vida sin ella. No sé cómo hacer para vivir de ahora en
adelante.” No final da narrativa, o pequeno Byron assevera: “Esto de enamorarse es muy duro...".
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pessoa que sou eu agora, por que não me reconheço mais? fórmula auto-
indagativa desses seres marcados pela “dor que desatina sem doer” – como dizia
Camões, um grande amoroso. Esses personagens, habitantes do reino das
interrogações, cumulam-se de porquês, em meio a tempestuosos e pungentes
pensamentos. Tudo isso é explicitado por Machado de Assis e Drummond, nos
personagens aqui escolhidos, os quais cumulados de dúvidas, findam por mostrar o
sentido de humanidade, que é depreensível da Literatura, e que educa nossa
sensibilidade para a meditação sobre as grandes questões do indivíduo, que muitas
se abrigam num coração de criança.

REFERÊNCIAS

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ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo II. Rio de Janeiro: Record, 1987.

ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São


Paulo: Martins Fontes, 1996.

BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 4. ed. Trad. Maria Zélia
Barbosa Pinto. Petrópolis: Vozes, 1976.

COUTINHO, Fernanda. Representações da infância na obra machadiana: o menino é


pai do homem? Machado de Assis em Linha, v. 8, p. 67-81, 2011.

HOYSTAD, Ole Martin. Uma história do coração. Trad. Noeli Correia de Melo
Sobrinho. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.

REYES, Yolanda. Frida. In: https://www.cuatrogatos.org/docs/ficcion/ficcion_128.pdf.


Acesso em: 12/8/2019.

SOUILLER, Didier; TROUBETZKOY, Wladimir. Littérature comparée. Paris: PUF, 1997.

WORDSWORTH, W. Poesia selecionada. Trad. Paulo Vizioli. São Paulo: Mandacaru,


1988.

Amor, Língua de Eros


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MITO DO AMOR ETERNO: UMA ANÁLISE PELA TEORIA DA


RESIDUALIDADE
Rubenita Alves Moreira
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Neste artigo analisaremos o mito do amor eterno de Adônis e Afrodite e de


Eros e Psiquê tomando por base os conceitos operativos da Teoria da Residualidade,
de Roberto Pontes. Os mitos ora citados, oriundos da mitologia grega, se eternizaram
e se expandiram, através das hibridações culturais e das mentalidades de cada época,
e apresentam resíduos de outras civilizações e culturas. Em nossa análise,
procuraremos mostrar que o mito de Adônis e Afrodite apresenta resíduos da cultura
canaanita, enquanto o mito de Eros e Psiquê apresenta resíduos da cultura hindu.
Mostraremos também modificações do mito de Eros e Psiquê em sua hibridação da
Mitologia grega à romana.
Palavras–chave: Mitos; Amor eterno; Residualidade; Hibridação cultural; Mentalidade.

Adônis e Afrodite. Eros e Psiquê. Mitos do amor eterno. Neste artigo


pretendemos analisar os mitos do amor eterno ora especificados partindo da
mitologia grega e buscando resíduos oriundos de outras civilizações e culturas,
sejam anteriores ou posteriores aos mitos citados. Essas representações do mito do
amor eterno da mitologia grega se eternizaram e se expandiram, através das
hibridações culturais e das mentalidades de longa e média duração. Mas elas
também apresentam resíduos de culturas mais antigas, cujas narrações se
encontravam cristalizadas na mentalidade, no imaginário coletivo e individual da
sociedade de então.
Resíduos, hibridações culturais, mentalidades e cristalização são conceitos
utilizados pelos pesquisadores e estudiosos da teoria da Residualidade, investigada
e sistematizada por Roberto Pontes.
Iniciaremos discorrendo sobre o mito de amor eterno de Adônis e Afrodite,
a começar pela origem de Adônis. Esse mito foi narrado por Ovídio em sua obra
Metamorfoses, livro 10, fábulas 9ª e 10ª, assim descritas: Fábula 9ª − Myrrha in
arborem sui nominis / Mirra em árvore de seu nome (298-502); Fábula 10ª − Ex
connubio Myrrhae & Cinyrae incesto Adonis / Adônis, da união incestuosa de Mirra

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e Ciniras (503-559). O texto de Ovídio aqui trabalhado consta na dissertação de


Aristóteles Angheben Predebon para obtenção do título de mestre em Letras (2006).
Predebon afirma que sua dissertação “consiste na transcrição e estudo do
manuscrito inédito e autógrafo de Cândido Lusitano, pseudônimo de Francisco José
Freire, intitulado As Transformações de Publio Ovidio Nasam, que é tradução das
Metamorfoses de Ovídio, datada de 1771”. A edição latina que Predebon utilizou
para a tradução é de 1727.
Cíniras, rei de Chipre, teve uma filha belíssima chamada Mirra. Cencreis,
mãe de Mirra, vivia dizendo que sua filha era mais bela que Afrodite. Isso levou
Afrodite a punir Mirra, fazendo-a desejar o próprio pai. Essa paixão incestuosa levou
Mirra a rejeitar todos os seus pretendentes.
Mirra se atormentava pelo fato de amar seu pai:

dignus amari /ille, sed ut pater, est. ergo, si filia magni / non
essem Cinyrae, Cinyrae concumbere possem:/nunc, quia iam meus est,
non est meus, ipsaque damno /est mihi proximitas: aliena potentior essem.
Digno de ser amado, /mas como pai, ele é. Assim, se eu não fosse filha
/do grande Ciniras, com Ciniras poderia deitar-me: /agora, porque já é
meu, não é meu, e me é danosa /a própria proximidade: afastada, eu
seria mais forte. (OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 143).

Mirra confessou sua paixão a uma criada. Esta contou ao pai de Mirra que
uma jovem prostituta desejava se deitar com ele. Durante a noite, Mirra se disfarçou
de prostituta e dormiu com o pai. “accipit obsceno genitor sua viscera lecto /
virgineosque metus levat hortaturque timentem. Aceita o genitor suas entranhas em
leito obsceno /e os virgíneos medos alivia e estimula a temerosa (OVÍDIO in
PREDEBON, 2006, p.146).
Como consequência, Mirra ficou grávida. Quando Cíniras descobriu a
gravidez da filha, num acesso de raiva, perseguiu-a para fora de casa com uma
espada.

cum tandem Cinyras, avidus cognoscere amantem /post tot concubitus,


inlato lumine vidit
et scelus et natam verbisque dolore retentis /pendenti nitidum vagina
deripit ensem;
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quando enfim Ciniras, ávido por conhecer a amante, depois de tantos


coitos, contraposta a luz, vê e crime e filha e, contidas as palavras pela
dor, /de pendente bainha saca a brilhante espada; (OVÍDIO in PREDEBON,
2006, p. 146).

Mirra fugiu dele, pedindo misericórdia aos deuses, enquanto corria. Os


deuses ouviram sua súplica e a transformaram em uma árvore de mirra, evitando
assim que seu pai a matasse (Em outra versão do mito, a própria Afrodite
transformou Mirra em árvore, por se sentir culpada pelo seu sofrimento).

quae quamquam amisit veteres cum corpore sensus, /flet tamen, et tepidae
manant ex arbore guttae. Embora com o corpo perdera os antigos
sentidos, /no entanto chora, e da árvore manam tépidas gotas.
[…] At male conceptus sub robore creverat infans /quaerebatque viam, qua
se genetrice relicta exsereret; media gravidus tumet arbore venter. tendit
onus matrem;
[...] Mas, concebido de um mal, sob o madeiro crescera /o infante e
buscava caminho por onde, abandonada a genetriz, /se desvencilhasse;
incha o grávido ventre /no meio da árvore.
(OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 147).

Mirra deu à luz um menino chamado Adônis. Na narrativa de Elias N. Azar


(2016), quando Afrodite viu o menino, ela ficou tão impressionada com a beleza
dele, que decidiu escondê-lo do resto das deusas e confiou-o a Perséfone, deusa do
Submundo. Adônis cresceu e se transformou em um formoso jovem,
extraordinariamente bonito, e Afrodite acabou se apaixonando por ele.
Na Metamorfoses de Ovídio:

Labitur occulte fallitque volatilis aetas, /et nihil est annis velocius: ille
sorore /natus avoque suo, qui conditus arbore nuper, /nuper erat genitus,
modo formosissimus infans, iam iuvenis, iam vir, iam se formosior ipso
est, /iam placet et Veneri matrisque ulciscitur ignes.
Desliza oculto e voa o tempo fugidio, /e nada é mais veloz que os anos:
ele, da irmã
filho e de seu avô, escondido na árvore há pouco, /há pouco gerado,
ainda há pouco a mais formosa criança, /já o jovem, já o homem, já mais
formoso que ele mesmo, já apraz a Vênus e da mãe os fogos vinga.
(OVÍDIO in PREDEBON, 2006, p. 148).

Seguindo a narrativa de Azar (2016), Perséfone começou a cuidar do


menino e, quando ele ficou mais velho e se tornou cada vez mais atraente, ela se
apaixonou por ele. Um conflito então surgiu entre Afrodite e Perséfone, pois

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Perséfone se recusou a devolver Adônis a Afrodite. Zeus, o rei dos deuses, interveio
e determinou que Adônis passasse quatro meses do ano com Perséfone no
Submundo, depois quatro meses com Afrodite, e os quatro meses restantes como
quisesse. Como Adônis estava muito impressionado com Afrodite, ele dedicou seus
outros quatro meses a ela.
Adônis era conhecido por suas habilidades de caça e, em uma das viagens
feitas com essa finalidade, Adônis foi atacado por um javali – em algumas narrativas
do mito esse javali era o deus Ares, um dos amantes de Afrodite que estava com
ciúmes do amor da deusa por Adônis. Adônis começou a sangrar nas mãos de
Afrodite, que derramou seu néctar mágico em suas feridas. Embora Adônis tenha
morrido, o sangue se misturou ao néctar e fluiu para o solo. Do solo brotou uma flor
cujo perfume era o mesmo que o néctar de Afrodite e cuja cor era a cor do sangue
de Adônis – a flor da anêmona.
Em sua morte, Adônis voltou ao Tártaro, o Submundo, e Perséfone teve o
prazer de revê-lo. Quando Afrodite percebeu que Adônis estava no Submundo,
correu para recuperá-lo. Mais uma vez, ela e Perséfone discutiram sobre quem
deveria ficar com Adônis, e Zeus interveio. Desta vez, ele decidiu que Adônis deveria
passar seis meses com Afrodite e seis meses com Perséfone, como deveria ter sido
desde o início.
No mito de Adônis e Afrodite existem traços remanescentes de épocas
anteriores, como a da civilização cananeia. Nessa civilização, a história de Adônis e
sua amante, a deusa Afrodite, era popular com os nomes de Adon e Astarte. Era
uma história que já estava cristalizada e já fazia parte do imaginário individual e
coletivo dos canaanitas. Era uma história muito conhecida pelos povos da
Mesopotâmia e do Egito, e isso, esse hibridismo, se explica pelas relações comerciais
existentes entre os povos de Canaã, Egito e Mesopotâmia.
Segundo Cordeiro (2013), desde a pré-história, a área que hoje
corresponde a Israel, Líbano, Síria e Jordânia foi ocupada por um mesmo povo: os
cananeus. Nesse território em boa parte desértico, que mais tarde seria prometido

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por Deus aos israelitas, eles construíram uma civilização relativamente sofisticada.
Dominavam a metalurgia. Eram bons ceramistas. Mantinham relações comerciais
com o Egito e a Mesopotâmia. E foram os primeiros daquela região a adotar um
alfabeto.
O deus Adon foi considerado um dos deuses canaanitas mais importantes:
ele era o deus da beleza, da fertilidade e da renovação permanente. O mito, além
de Adon, envolve sua eterna amante Astarte, na civilização cananeia, a deusa do
amor e da beleza.
Segundo Azar (2016), O mito de Adônis é de origem siríaca, e simboliza a
natureza que brilha na primavera e morre no outono. A deusa Astarte tinha se
apaixonado por Adon, mas um rival ciumento, escondendo seu rancor no corpo de
um javali, o havia matado. No solstício de verão, Adon ressuscitava e se juntava a
sua amada.
Azar (2016) comenta que a popularidade da história de Adônis e sua
amante Afrodite levou a um renascimento (atualização do resíduo na Teoria da
Residualidade) de seus rituais em muitas outras cidades fenícias (hibridação cultural).
Também se espalhou pelos antigos mundos grego e romano, mas com pequenas
diferenças na adaptação, dependendo das características de cada civilização (pela
hibridação cultural, verificam-se a desterritorialização e reterritorialização do mito).
Azar (2016) segue dizendo que a essência (resíduo) da lenda, no entanto,
permanece intacta em todas as adaptações (história já cristalizada): um deus da
beleza e da juventude e seu relacionamento com a deusa do amor, juntamente com
a morte do jovem deus e o retorno à vida, sendo uma metáfora do renascimento
anual da natureza.
Astarte para os cananeus, Afrodite para os gregos e Vênus para os
romanos. Adon e Astarte. Adônis e Afrodite. Adônis e Vênus. Esse mito de amor
desde os seus primórdios quase não sofreu variação em seu enredo. É uma história
de há muito cristalizada. Mas percebemos que as histórias sofrem variações na linha
do tempo das mentalidades de média e longa duração e, analisando-as pela

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hibridação cultural, os personagens do mito tiveram seus nomes atualizados num


processo de desterritorialização e reterritorialização.
Observemos que esse processo também ocorre no mito de amor eterno de
Eros e Psiquê que, com base principalmente no livro Mitologia (1973), além de
leituras de artigos sobre o tema publicados em vários sites de Internet, ora
passamos a narrar:
Psiquê foi uma princesa mortal cuja beleza extraordinária despertou a ira de
Afrodite, quando esta percebeu que os homens começaram a desviar o culto dela, a
deusa, para a jovem, uma mortal. Afrodite observou que, enquanto seu templo
ficava abandonado, quase em ruínas, de todas as partes chegavam peregrinos para
admirar a estonteante beleza daquela mortal: a princesa Psiquê.
Enciumada, Afrodite ordenou a seu filho, Eros, que ele usasse suas flechas e
fizesse Psiquê se apaixonar pelo homem mais horrendo, mais desprezível do
mundo, mas Eros, ao ver a estonteante beleza de Psiquê, apaixonou-se
perdidamente.
Apaixonado, Eros convenceu a mãe que ela estava livre de sua rival, mas,
ao mesmo tempo, torna Psiquê inatingível aos amores terrenos. Os homens a
admiravam, porém não se apaixonavam por ela – e ela também não amava
ninguém –, ao contrário de suas duas irmãs mais velhas que, apesar de menos
belas, já estavam casadas.
Seu pai, o rei de Mileto, inconformado, foi consultar o oráculo de Apolo.
Manipulado por Eros, que o havia procurado antes do rei, Apolo, através do
oráculo, ordenou aos pais da princesa que a vestissem em trajes nupciais e a
deixassem no alto de uma solitária montanha, onde seria desposada por um terrível
monstro, uma medonha serpente alada.
Embora desesperados, o rei e a rainha nada puderam fazer, a não ser
cumprir o que lhes foi determinado. Vestiram a jovem para as bodas e a levaram
para a montanha.
Psiquê se viu abandonada por seus pesarosos parentes e amigos, mas

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aguardou corajosamente que se cumprisse seu triste destino. Exausta, adormeceu e


sentiu-se conduzida pela brisa de Zéfiro a um lindo vale coberto de flores. Quando
acordou, caminhou por um jardim até chegar a magnífico castelo. Tomando
coragem, entrou no deslumbrante palácio onde todos os seus desejos foram
atendidos por ajudantes invisíveis.
À noite Psiquê foi conduzida a um quarto escuro onde pensava que
encontraria seu terrível esposo. Eros se aproximou de Psiquê, protegido pela
escuridão. Psiquê tremeu de medo, mas logo uma voz acalmou-a, e sentiu os
carinhos de alguém, apesar de não poder ver-lhe o rosto. Quando Psiquê acordou,
já havia amanhecido e seu misterioso amante havia desaparecido. Isso se repetiu
por várias noites. Mesmo sem ver sua face, Psiquê dedicou imenso amor a esse
amante misterioso.
Psiquê havia prometido a Eros que não iria procurar seus familiares, mas,
sentindo-se triste por não poder ver nem consolar suas irmãs, que a julgavam infeliz
na companhia de um monstro, implorou ao amante que a deixasse vê-las.
Finalmente ele atendeu ao pedido, mas impôs a condição de que não importasse o
que falassem as irmãs, ela nunca deveria tentar conhecer sua identidade, caso isso
ocorresse, ela nunca mais o veria.
No dia seguinte, Zéfiro levou as irmãs de Psiquê ao palácio. De início, foram
só as alegrias do reencontro. Quando, porém, suas irmãs entraram no castelo e
viram tanta abundância de beleza e maravilhas, foram tomadas de inveja. Psiquê
contou-lhes que estava grávida e que sua criança seria de origem divina,
esquecendo-se das recomendações de Eros para não revelar a gravidez a ninguém,
pois o filho se tornaria um mortal. Suas irmãs ficaram ainda mais enciumadas.
Movidas pelo despeito, elas convenceram Psiquê a descobrir a identidade do
esposo, pois ele poderia ser um horrível monstro, conforme descrito pelo oráculo de
Apolo.
Assustada com o que havia dito suas irmãs e movida pela dúvida e pelo
medo, Psiquê levou uma lâmpada para o quarto decidida a conhecer a identidade

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do marido. Esquecendo os avisos do seu esposo, enquanto Eros descansava à noite


a seu lado, Psiquê aproximou a lâmpada para ver-lhe o rosto. Para sua surpresa, ela
viu um jovem de extrema beleza. Admirada não percebeu a inclinação da lâmpada
e, sem querer, deixou uma gota de óleo quente cair sobre o ombro de Eros.
Eros acordou assustado. Seu rosto se cobriu de extrema tristeza e, sem
dizer palavra, voou pela janela do quarto. Psiquê tentou alcançá-lo, inutilmente.
Ouviu apenas a voz do amado, ao longe, dizendo em forma de censura: “O amor
não pode viver sem confiança”. No mesmo instante o castelo, as belezas e os jardins
desapareceram.
Eros retornou para junto da mãe. Afrodite descobriu-se enganada pelo filho
e, com ciúmes de Psiquê, passou a desejar apenas uma coisa: encontrar a rival e
castigá-la.
Já Psiquê, inconsolável, passou a perambular pelos bosques tentando
encontrar Eros novamente. As irmãs fingiram pesar, mas elas também pensavam em
conquistar Eros. Porém, o deus vento Zéfiro, assistindo àquele fingimento, as lançou
em um despenhadeiro.
Psiquê andou de templos em templos, pedindo ajuda aos deuses, para
reaver o amor perdido, mas todos eles, temendo a fúria de Afrodite, recusaram-se a
ajudá-la. Psiquê, resolvida a reconquistar o amor de Eros, foi ao templo de Afrodite.
Porém a deusa impôs que ela cumprisse muitas tarefas antes de se encontrar com
Eros.
Primeiro ela deveria separar os milhares de grãos de trigo, cevada, feijões e
lentilhas que estavam misturados, um serviço que iria demorar uma vida inteira para
terminar. Psiquê ficou assustada diante de tanto trabalho, porém as formigas a
ajudaram e ela rapidamente finalizou a tarefa.
Na tarefa seguinte, Afrodite pediu lã dourada dos ferozes carneiros. Psiquê
foi até as margens de um rio onde carneiros de lã dourada pastavam. Ela estava
disposta a cruzar o rio, quando um junco a ajudou e disse-lhe para esperar que os
carneiros dormissem, assim não seria atacada por eles. Psiquê esperou, depois

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atravessou o rio e retirou a lã dourada.


Na terceira tarefa, Afrodite pediu água que jorrava de uma fonte da
montanha. Porém ali havia um dragão que guardava a fonte, mas ela foi ajudada
por uma águia, que voou baixo próximo a fonte e encheu a jarra. Vendo que Psiquê
conseguia completar as tarefas, Afrodite impôs que ela descesse ao mundo inferior
e pedisse um pouco da beleza de Perséfone e guardasse em uma caixa.
Psiquê não sabia como entrar no mundo de Hades estando viva e pensou
em atirar-se de uma torre. Mas a torre murmurou instruções, ensinou-lhe como
driblar os diversos perigos da jornada, como passar pelo cão Cérbero e deu-lhe
uma moeda para pagar o óbolo a Caronte pela travessia do rio da morte,
advertindo-a: "– Quando Perséfone lhe der a caixa com sua beleza, não olhe dentro
da caixa, pois a beleza dos deuses não cabe aos olhos mortais".
Seguindo as instruções, Psiquê conseguiu o precioso tesouro. Porém,
tomada por curiosidade e por vaidade, ao pensar que tanto sofrimento a tivesse
tornado feia, abriu a caixa e olhou seu conteúdo. Ao invés de beleza havia apenas
um sono terrível que dela se apossou. Eros voou ao socorro de Psiquê e conseguiu
colocar o sono novamente na caixa, salvando-a. Lembrando-lhe que a extrema
curiosidade pode ser fatal, Eros conseguiu que Afrodite concordasse com o seu
casamento com Psiquê. Em pouco tempo, Eros e Psiquê tiveram um filho, Voluptas,
que se tornou o deus do prazer.
Esse mito foi narrado pelo autor romano Apuleio (125 – 180) em
Metamorfose ou O Asno de Ouro: livros IV (capítulo V), V e VI, na história de Psique
e Cupido (APULEYO, 2003, p. 55-85).
Pelos argumentos dos livros, fazemos um resumo do mito romano.
Argumento do capítulo V, livro IV: “No qual a velha mãe dos ladrões,
comovida de piedade das lágrimas da donzela que estava na cova presa, contou-
lhe uma fábula para ocupá-la para que não chorasse”. Essa velha senhora assim
começa a sua história:

– Havia em uma cidade um rei e uma rainha, e tinham três filhas muito

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formosas: das quais, duas das com mais idade, como eram formosas e
bem-dispostas, podiam ser elogiadas por louvores de homens; mas a
mais nova, era tanta sua formosura, que não bastam palavras humanas
para poder exprimir, nem suficientemente elogiar sua beleza. (APULEYO,
2003, p. 55).

Argumento do livro V:

Este quinto livro contém os palácios de Psique e os amores que com ela
teve o deus Cupido, e de como suas irmãs lhe vieram visitar; e da inveja
que tiveram dela, por cuja causa, acreditando Psique o que lhe diziam,
feriu seu marido Cupido com uma chaga, pela qual caiu de um cume de
sua felicidade e foi posta em tribulação. À qual, Vênus, como a inimiga,
persegue muito cruelmente, e finalmente, depois de haver passado muitas
penas, foi casada com seu marido Cupido, e as bodas celebradas no céu.
(APULEYO, 2003, p. 58).

Argumento do livro VI:

Depois de, com muita fadiga, haver procurado o Cupido e depois do que
lhe avisou Ceres, e do mau acolhimento que achou em Juno, Psique, de
sua própria vontade ofereceu-se à Vênus; logo escreve a ascensão de
Vênus ao céu, e como pediu ajuda aos deuses; e com quanta soberba
tratava a Psique, mandando-lhe que separasse de uma grande pilha
[formada] de todas as sementes cada linhagem de grãos por sua parte, e
que lhe trouxesse o Velocino de Ouro; e do licor do lago infernal lhe
trouxesse um jarro cheio; do mesmo modo lhe trouxesse uma caixa cheia
de formosura de Prosérpina; todas as quais feitas com ajuda dos deuses;
Psique casou com seu Cupido no conselho dos deuses. E suas bodas
foram celebradas no céu, do qual matrimônio nasceu o Deleite.
(APULEYO, 2003, p. 71).

A história de Eros e Psiquê já estava cristalizada no imaginário coletivo e


individual desde muitos anos antes dos deuses greco-romanos. Segundo Chaves
(2015):

Uma curiosidade é o paralelo quase exato com o Deus Kama, que havia
surgido no Panteão Hindu pelo menos quinze mil anos antes dos deuses
gregos (alguns Autores vão mesmo mais longe: os deuses hindus
existiriam no imaginário daquela antiquíssima civilização uns cinquenta mil
anos antes mesmo do surgimento da civilização Creto-Micênica!
Diferentemente de Cupido, apresentado como um anjinho usualmente
com os olhos vendados – “o amor é cego…” – Kama (ou Kamadeva) é um
gigante terrível com flechas explosivas que trazem na ponta inscrições
como “Trago Dor, Agonia e Desespero”, “Abra-se!”; “Acabou a sua Paz...”
(CHAVES, 2015).

Não obstante Chaves (2015) retratar Kama muito diferente de Cupido, em


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pesquisas de outros estudiosos, como o apresentado em fenixdefogo.com (2012),


Kama é o Cupido hindu e Rati é a deusa dos prazeres eróticos:

Com um arco florido e cinco flechas, ele voa entre as árvores das florestas
e acerta o coração de suas vítimas, deixando-as apaixonadas. Embora
lembre o tão popular Cupido, o deus romano do amor (Eros, para os
gregos), a descrição é de Kama, a divindade indiana do desejo.
Eternamente jovem, Kama é considerado o mais bonito entre os 330
milhões de deuses do panteão hindu. No Ocidente o termo sânscrito
chegou com o clássico KAMA SUTRA. A obra escrita entre os séculos III e
V, é uma espécie de manual técnico para o aumento do prazer sexual.
Por isso Kama também é muitas vezes visto como o deus do desejo
erótico.

A análise desses mitos – Adônis e Afrodite, Eros e Psiquê – vem a


corroborar com o que Pontes (2017) explica sobre resíduos em sua teoria: “é o que
remanesce de um tempo em outro, seja do passado para o presente, seja por
antecipação do futuro, de modo que a cultura consiste numa contínua transfusão de
resíduos indispensáveis ao recorte próprio da identidade nacional”.
Foi o que aqui demonstramos ao analisar os citados mitos. Demonstramos
sua evolução em um tempo de longa duração das mentalidades, no processo da
hibridação de culturas, observando ocorrências de desterritorialização e
reterritorialização quando da atualização desses mitos.
A hibridação cultural pode ser analisada por vários aspectos. Néstor García
Canclini (2006), o criador da expressão “culturas híbridas”, a investiga no campo da
modernidade e da pós-modernidade. Pontes, em sua teoria, o faz em obras
literárias. No entanto, seja no campo social, seja no campo literário, seja nas artes
plásticas, seja no aspecto linguístico-comunicativo, olhando-se para o passado ou
mirando o futuro, sempre será possível observar algum resíduo de alguma cultura
atualizando-se numa nova obra, numa nova realidade.

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2003.

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e estudo das 'Metamorfoses' de Ovídio traduzidas por Francisco José Freire. São
Paulo: USP, 2006.

Kama, O cupido hindu, e Rati, a deusa dos prazeres eróticos. Disponível em:
https://fenixdefogo.wordpress.com/2012/12/25/kama-o-cupido-hindu-e-rati-a-
deusa-dos-prazeres-eroticos/. Pesquisa realizada em 25 de setembro de 2019.

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O AMOR DESVIRTUADO: UMA LEITURA DO INCESTO EM LAVOURA


ARCAICA
Francisca Yorranna da Silva
Universidade Federal do Ceará

Resumo: Lavoura arcaica (1975) é uma narrativa nada convencional e o incesto, tema
em torno do qual o enredo se constrói é um dos assuntos mais polêmicos e
constituinte de nossos “totens e tabus”. Assim, de autores antigos aos
contemporâneos, a temática desperta opiniões divergentes e, por vezes,
contraditórias. No romance de Raduan Nassar, o incesto desencadeia tragédias e nos
faz questionar a legitimidade do amor, uma vez que, no imaginário ocidental, esse
sentimento é tido como o mais belo e o mais nobre, de modo que, este trabalho
propõe uma leitura do incesto à luz da psicanálise freudiana a fim de esboçar uma
resposta para os questionamentos suscitados por um caso de amor desvirtuado.
Palavras-chave: Lavoura arcaica; Amor; Incesto; Virtude.

“O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade,
não se ensoberbece”.
(I Co.13.4)

“AO CONTRÁRIO DO QUE SE SUPÕE, O AMOR NEM SEMPRE APROXIMA, O AMOR


TAMBÉM DESUNE”85
“Que culpa temos nós dessa planta da infância de sua sedução, de seu viço
e constância?”, versos de Jorge de Lima que aparecem na epígrafe de Lavoura
arcaica (1975), é a primeira frase da narrativa se a considerarmos, efetivamente,
como parte do romance de Raduan Nassar. Nesses versos que abrem a história de
André e de sua família, encontramos a síntese de todo o conteúdo narrado,
sobretudo, quando acrescidos das indagações do narrador no decorrer do romance
ao questionar a si e ao leitor sobre “Que culpa temos nós dessa planta da infância
de sua sedução, de seu viço e constância? Que culpa temos nós se fomos
duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos?” (NASSAR, 1989,
p.129).
Ao iniciar a narrativa com os versos do poeta alagoano, André, narrador e

85 Esse e os demais títulos das seções foram extraídos do romance Lavoura arcaica (1975), de Raduan
Nassar.
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protagonista da história, situa o leitor em um tempo anterior ao qual está narrando:


a infância, e para lá desloca a culpa de suas transgressões; isto é, André indica que o
germe de suas falhas morais foram semeadas quando ele, ainda menino, fora
envolvido pelos afetos excessivos da mãe, que impediam, inclusive, de ser atingido
pelas leis severas do pai. Destarte, quando da transição da fase infantil à puberdade,
o jovem sente-se pressionado pelo autoritarismo paterno que, agregando-se às
paixões do corpo, torna a convivência no lar insuportável. André passa, então, a
refugiar-se na “casa velha” da fazenda e, posteriormente, num “quarto de pensão”
para escapar dos “olhos apreensivos da família”. Todavia, é encontrado por Pedro,
seu irmão mais velho, que convence o “filho pródigo” a retornar ao lar. Para tanto, o
filho primogênito de Iohána tem de pagar um alto preço, o de escutar a “confissão”
de André que, através da memória, relembra o seu passado feliz de criança e as
dores trazidas pela adolescência, sobretudo, após descobrir-se apaixonado pela
irmã mais nova, Ana.
O diálogo, quase monólogo, no qual André confessa que era Ana a sua
“fome”, a sua “enfermidade”, a sua “loucura”, o seu “respiro”, a sua “lâmina”, o seu
“arrepio”, o seu “sopro”, “o assédio impertinente dos seus testículos” (NASSAR, 1989);
é longo e estende-se por diversos capítulos nos quais descobrimos que, apesar de
interdito, André satisfaz seu desejo e se relaciona sexualmente com a irmã. O
problema é que, embora saciado, o desejo logo o torna “carente” outra vez, nos
fazendo lembrar que o indivíduo tomado por uma paixão erótica passa a viver
como o próprio deus do amor, Eros, que:

Na qualidade de filho de Poros e Penia, coube-lhe uma sorte semelhante


a deles. Em primeiro lugar, está sempre na penúria e está longe de ser,
como a maioria o imagina, delicado e belo: pelo contrário, é rude e
enrugado, anda descalço e não tem lar; deita-se constantemente sobre a
terra nua, pois não dispõe de um leito, descansando junto às soleiras das
portas e às margens das estradas ao ar livre; coadunando-se com a
natureza de sua mãe, permanece convivendo sempre com as privações.
Entretanto, assemelhando-se a seu pai, é um planejador que visa a tudo
que é belo e bom e, de fato, ele é corajoso, impetuoso e intenso, um
admirável caçador, o tempo todo urdindo estratagemas; desejoso e
amante da sabedoria, passa a vida em busca do entendimento; [por outro
lado,] é mestre da prestidigitação, com as poções e o discurso artificioso
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(O Banquete, 203c-e).

Ora, se o amor nasce e vive da carência e do excesso, após um momento


de plenitude amorosa, segue-se a escassez “concretizada” na recusa de Ana em
prolongar a união incestuosa. Com a cisão dos amantes, André revolta-se e
abandona o lar para buscar fora dele o que ali não encontrara, o amor. Contudo, ao
ser achado pelo irmão, o jovem decide retornar para casa, acontecimento que será
celebrado no dia posterior à volta. Entremeado pelos afagos da mãe e das irmãs
(com exceção de Ana), por uma discussão com o pai e pela possibilidade de um
novo incesto, desta vez com o irmão mais novo, Lula; o tempo decorrido entre a
chegada de André e o desfecho de sua festa revela que nem sempre o retorno do
filho que “estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi reencontrado
(Lc.15.31)” traz alegria, mas pode também desencadear tragédias.

“O AMOR NA FAMÍLIA PODE NÃO TER A GRANDEZA QUE SE IMAGINA”


Em seus Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes (1981, p.12)
nos diz que “O gesto do abraço amoroso parece realizar por um momento, para o
sujeito, o sonho de união total com o ser amado.”, esse momento de integração é
comparado à união de uma mãe com o filho em seus braços: “Nesse incesto
reconduzido, tudo é então suspenso: o tempo, a lei, a proibição: nada cansa, nada
se quer: todos os desejos são abolidos, porque parecem definitivamente
transbordantes.” (BARTHES, 1981, p.12).
Seria então por isso que André se volta para a infância ao tentar explicar os
motivos pelos quais comete o incesto? Não podemos afirmar com certeza, porém,
acreditamos que a união com a irmã seria uma tentativa de resgate dessa união
primitiva com a mãe e com um tempo feliz no qual ele estava integrado à família e
ao deus cultuado por ele, de modo que, André considerava-se duplamente bem-
aventurado, pois, imaginava gozar de uma exclusividade tanto com relação aos
afetos maternais quanto à religião:

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[...] mesmo assim eu passei pensando na minha fita de congregado


mariano que eu, menino pio, deixava ao lado da cama antes de me deitar
e pensando também em como Deus me acordava às cinco todos os dias
pr'eu comungar na primeira missa e em como eu ficava acordado na
cama vendo de um jeito triste meus irmãos nas outras camas, eles que
dormindo não gozavam da minha bem-aventurança [...] (NASSAR, 1989,
p. 24-25).

Esse tempo de integração com o deus que ele podia pegar com as mãos e
pôr no pescoço (NASSAR, 1989) coincide com o tempo em que é cercado pelos
carinhos da mãe, o que o leva a construir uma concepção de religião na qual o
homem e o deus - ou a deusa, aqui representada pela mãe e, posteriormente, pela
natureza, - são unos. É ainda relacionado a essa união total e à noção de
exclusividade que surge o desejo inconsciente do filho pela mãe. Neste sentido,
André Luís Rodrigues (2006, p.72-73) afirma que “Nessas recordações de uma
infância tão feliz quanto irremediavelmente perdida, podemos observar o exultante
sentimento, egoísta e tão típico da criança, de exclusividade (real ou imaginada) na
recepção dos carinhos maternos.”.
Em Lavoura arcaica, a percepção de André, ainda menino, é de que a mãe
o ama de um modo exclusivo, não por amar somente a ele, mas porque acredita
que o afeto a ele dirigido é diferente do que fora direcionado aos irmãos,
retomando a noção de “bem-aventurança” que ele afirma desfrutar para com o
deus de sua infância. Desta forma, não é por acaso que, após descrever o modo
como ele se relacionava com esse deus, ele passe descrever a troca de carinhos com
a mãe, uma vez que, a cena não é uma interrupção, mas a extensão do ritual
religioso de todas as manhãs:

[...] e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes


‘acorda, coração’ e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que
eu, que fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era
então um jogo sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol, e eu
ria e ela cheia de amor me asseverava num cicio ‘não acorda teus irmãos,
coração’, e ela depois erguia minha cabeça contra a almofada quente do
seu ventre e, curvando o corpo grosso, beijava muitas vezes meus cabelos
(NASSAR, 1989, p.25).

As memórias de André relembram um rito matinal que se repetia com

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frequência e que constitui uma linda cena de afeto, um exemplo do amor maternal;
todavia, a inocência desse amor parece ser ameaçada pela ambiguidade com a qual
o jovem descreve o momento. Nessa perspectiva, o ambiente composto é bastante
significativo, pois nele sobressai a penumbra rompida apenas por alguns fechos de
luz que se esgueiram através das frinchas; o horário em que se passa a cena é o da
aurora, momento de transição entre o fim da madrugada e o amanhecer, indicando
a imprecisão das relações que se constroem no quarto.
A mãe e André teriam transposto a linha tênue que separa o amor maternal
do amor carnal? Não sabemos ao certo, porém, expressões como “jogo sutil”,
“debaixo do lençol”, “cicio” e o pedido “não acorda teus irmãos, coração”, são
alguns índices de que os carinhos trocados seriam dúbios e, por isso, deveriam ser
mantidos em segredo; por outro lado, esses gestos de afeto poderiam ser realmente
puros e o apelo feito pela mãe simples preocupação em zelar o sono dos filhos, não
passando de produto da imaginação qualquer sentimento que ultrapassasse o amor
maternal.
Dessa forma, o amor do filho para com a mãe, e desta para com seu filho, é
apresentado diante dos leitores como um sentimento que está para além da philia,
pois, em vários momentos temos a sugestão de que entre André e sua mãe se
desenvolve um jogo erótico responsável por alimentar o desejo incestuoso que
atravessa a infância e a adolescência da personagem. No entanto, com a transição
de uma fase da vida para outra, há também uma ruptura no modo vivendis do
indivíduo que outrora livre, unido ao deus e à família; passa a viver sob o peso das
leis de um deus que não mais reconhece como seu. É através desse não
reconhecimento com o divino, dessa ausência de alteridade, que André descreve as
mudanças nas relações familiares que o afetam quando o jovem entra na
puberdade:

[...] e assim que eu me levantava Deus estava do meu lado em cima do


criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que eu
punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja
feito balão, era boa a luz doméstica da nossa infância, o pão caseiro sobre

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a mesa, o café com leite e a manteigueira, essa claridade luminosa da


nossa casa e que parecia sempre mais clara quando a gente vinha de
volta lá da vila, essa claridade que mais tarde passou a me perturbar, me
pondo estranho e mudo, me prostrando desde a puberdade na cama
como um convalescente [...] (NASSAR, 1989, p.).

Se para a humanidade, a Idade de Ouro está localizada em um passado


arcaico, no qual, os homens conviviam harmonicamente com os deuses; para André,
essa Idade de Ouro é simbolizada pela infância, espécie de paraíso perdido, para
onde ele sempre está tentando retornar. Eis aí a responsabilidade materna na
destruição da família: a Mãe é responsável por cercá-lo de amor durante a infância
tornando sua existência feliz; com a chegada da adolescência, André passa a ser
cobrado pelo Pai e é colocado diante de obrigações que se nega a cumprir, a
infância feliz dá lugar a uma vida adulta opressora. Ainda assim, poderíamos nos
perguntar: que culpa tem uma mãe de tornar a infância do filho uma experiência
feliz?

A resposta ou pelo menos parte dela poderia estar no fato de que, sendo
provisória e precária a felicidade proporcionada pela mãe na infância, a
sua recordação acaba, por contraste, tornando ainda mais insuportáveis a
infelicidade e o sofrimento da idade adulta. É como se o nunca ter estado
no paraíso da infância fosse melhor (ou menos dolorido) que ter sido
expulso dele. Se não tivéssemos conhecido a felicidade, seria a infelicidade
tão difícil de suportar? Se não a conhecêssemos, nós a buscaríamos tão
sofregamente? É nessa procura que André se desencaminha. É também
por meio dela que a família se perde. (RODRIGUES, 2006, p.73).

André, afetado pelo excesso de amor, acusa a Mãe que estaria “destecendo
desde cedo a renda trabalhada a vida inteira em torno do amor e da união da
família” (NASSAR, 2016, p.41). Tal como Penélope destecia a renda que bordava
enquanto esperava o retorno de Ulisses, a Mãe de André destecia com seu afeto o
discurso paterno construído em torno da autoridade. Mas André não somente a
acusa como também se coloca ao lado dela: “eu e a senhora começamos a demolir
a casa” (NASSAR, 2016, p.70). Desta forma, também não é por acaso que ele esteja
sentado à mesa após a Mãe, ambos haviam começado a destruir o templo sólido
que o Pai levara anos para edificar: “o pai, no seu gesto austero, quis fazer da casa
um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa
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de perdição” (NASSAR, 2016, p. 138).

“O AMOR REQUER VIRGÍLIA”


Cercada por ambiguidades, a relação entre mãe e filho parece ser crucial
para entendermos a paixão que André sente pela irmã, visto que, ele associa à mãe
os irmãos que, como ele, pertenceriam a uma linhagem da família que se
desenvolve em dissonância aos demais membros:

Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora


dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha
primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a
mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um
desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda
trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde
começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância
mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto;
podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram
caprichos do tempo) definia as duas linhas da família. (NASSAR, 1989, p.
154-155).

Unidos por um vínculo de semelhança física ou de personalidades, a mãe,


André, Ana e Lula estariam predestinados à perdição graças à “carga de afeto” que
eles portavam. Assim, não satisfeito com a relação fraternal, André busca uma
integração total com seus irmãos, integração que permitiria, inclusive, a união dos
corpos, pois, seria através da união incestuosa que o mancebo voltaria à unidade
perdida com o fim da infância e tomaria seu lugar na mesa da família, comungando
do pão e das obrigações domésticas com o pai e os irmãos:

[...] foi um milagre, querida irmã, descobrirmos que somos tão conformes
em nossos corpos, e que vamos com nossa união continuar a infância
comum, sem mágoa para nossos brinquedos, sem corte em nossas
memórias, sem trauma para a nossa história; foi um milagre descobrirmos
acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites da nossa própria
casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser
encontrada no seio da família; foi um milagre, querida irmã, e eu não vou
permitir que este arranjo do destino se desencante, pois eu quero ser
feliz, eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo
irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta terra, e
ama também o trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um milagre,
querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode
reverter: as coisas vão mudar daqui pra frente, vou madrugar com nossos

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irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear, acompanhar a


brotação e o crescimento, participar das apreensões da nossa lavoura,
vou pedir a chuva e o sol quando escassear a água ou a luz sobre as
plantações, contemplar os cachos que amadurecem, estando presente
com justiça na hora da colheita, trazendo para casa os frutos, provando
com tudo isso que eu também posso ser útil (NASSAR, 1989, p.118-119).

Todavia, conforme declaramos anteriormente, Ana recusa-se a prolongar a


relação incestuosa com o irmão porque, ao contrário de André, a moça ainda estava
ligada à religião e aos mandamentos do pai, de modo que, logo após o ato sexual,
busca refúgio e purificação na capela da família. Quando André a encontra, ele
lança-se numa prece desesperada, pois, novamente “necessitado” de amor, ele
teme uma nova cisão:

[...] entenda, Ana, que a mãe não gerou só os filhos quando povoou a
casa, fomos embebidos no mais fino caldo dos nossos pomares,
enrolados em mel transparente de abelhas verdadeiras, e, entre tantos
aromas esfregados em nossas peles, fomos entorpecidos pelo mazar
suave das laranjeiras[...] temos os dedos, os nós dos joelhos, as mãos e os
pés, e os nós dos cotovelos enroscados na malha deste visgo, entenda
que, além de nossas unhas e de nossas penas, teríamos com a separação
nossos corpos mutilados; me ajude, portanto, querida irmã, me ajude para
que eu possa te ajudar, é a mesma ajuda a que eu posso levar a você e
aquela que você pode trazer a mim, entenda que quando falo de mim é o
mesmo que estar falando só de você, entenda ainda que nossos dois
corpos são habitados desde sempre por uma mesma alma [...] (NASSAR,
1989, p. 129).

A fala de André retoma mais uma vez a ideia de que desde sempre ele e a
irmã pertenceriam um ao outro, pois, nascidos do mesmo útero, o laço fraternal
seria mais uma artimanha do destino para assegurar o reencontro de suas almas e a
recuperação da unidade de seus corpos, cindidos não mais no ventre materno, mas
num tempo mítico do qual Aristófanes nos reporta em seu discurso no Banquete86. A
cisão que sofrem os homens vem como castigo por ameaçarem os deuses e uma
determinada ordem do mundo. Semelhantemente, em Lavoura arcaica, Ana e
André sofrerão uma cisão mais profunda do que a simples distância imposta pela
recusa de um e a fuga do outro. Os jovens serão separados pela morte quando o
pai, representando a figura do deus, resolve punir os filhos pela violação dos

86Cf. O discurso de Aristófanes pode ser lido no Banquete, v.189d-193e.


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preceitos morais e religiosos da família:

[...] a testa nobre de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho, brilhou
um instante à luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se cobriu de um
branco súbito e tenebroso, e a partir daí todas as rédeas cederam,
desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o alfanje estava ao
alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu
pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais torpe nos meus
olhos!), não teria a mesma gravidade se uma ovelha se inflamasse, ou se
outro membro qualquer do rebanho caísse exasperado, mas era o próprio
patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina
(pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava —
essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada como eu
pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea,
resinosa, reinava drasticamente as nossas dores (pobre família nossa,
prisioneira de fantasmas tão consistentes!) (NASSAR, 1989, p. 190-191).

André e Ana estão inseridos no “tempo da lei” e não mais “tempo da


graça”, invertendo a cronologia cristã, de modo que, a violação ao interdito do
incesto acarretará punição, pois, conforme nos diz Freud: “[...] a violação de
determinados tabus envolve um perigo social, que tem de ser conjurado ou expiado
por todos os membros da sociedade, a fim de não prejudicar a todos.” (FREUD,
2013, p.28), uma vez que, “Deixando impune a violação, os outros se dariam conta
de querer agir da mesma forma que o transgressor” (FREUD, 2013, p.28-29).
Assim, é sob o viés psicanalítico freudiano que tomamos não apenas o
incesto, mas também suas consequências; apesar de não ser a única possibilidade
de leitura nem uma leitura completamente correta, por assim dizer, ao optarmos
por um viés tão controverso de compreendermos a temática em Lavoura arcaica,
tentamos demonstrar que a narrativa contemporânea de Raduan Nassar volta-se
para um tempo mítico que não pode ser recuperado em sua totalidade, posto que,
embora “arcaica” em seu título, o romance pertence ao tempo de seu escritor e de
seus leitores, de maneira que cada leitura atualiza os mitos que constituem a
sociedade ocidental e provoca as discussões dos elementos que a compõem.
Nesse sentido, falar de incesto nos dias de hoje, evocar um complexo de
édipo tantas vezes negado, porém, tantas vezes trazido à tona, é falar de um
assunto árduo que constitui um tabu do qual as religiões que nos formaram e que
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são a base da moral de Iohána só nos apresentam o interdito, isto é, a proibição,


sem se permitir, quiçá, a reflexão do por que proibir; cabe à literatura, talvez, nos
levar a refletir sobre esse e outros interditos, pois: “Para isso nos servem as artes [...]
evocam incessantemente diante de nós essas desordens, esses dilaceramentos e
essas degradações que toda a nossa atividade tem por fim evitar.” (BATAILLE, 2015,
65-66).

“O TEU AMOR PRA MIM É O PRINCÍPIO DO MUNDO”


Reflexões como as que nos propusemos quase nunca são simples. Em
Lavoura arcaica temos um narrador-personagem problemático que nos conta sua
“história passional”, como ele mesmo a intitula. Nesse sentido, a paixão aqui pode
ser entendida tanto no senso comum como sinônimo de amor, quanto no sentido
original da palavra que significa “afecção”, “doença”, “sofrimento”. Assim, a paixão
de André é ela própria sua via crucis, a expiação de suas culpas ou o caminho que
leva a ausência delas, pois, temos que lembrar que a narrativa começa nos
questionando sobre que culpa temos em um tempo em que elas simplesmente não
existem.
Dessa forma, seguindo a lógica do narrador nassariano, o amor que André
sente por Ana é tão legítimo quanto qualquer outro, uma vez que, não é guiado
pela ética universal, mas por uma moral própria. Para André, o amor pela irmã é o
“princípio do mundo”, ou seja, é a partir desse sentimento que ele constrói as
medidas – ou as desmedidas – de seu universo. Segundo ele: “não há então como
ver na singularidade do nosso amor manifestação de egoísmo, conspurcação dos
costumes ou ameaça à espécie” (NASSAR, 1989, p.132).
Assim, se ao intitularmos o trabalho aqui apresentado de “o amor
desvirtuado: uma leitura do incesto em Lavoura arcaica”, tínhamos a expectativa de
finalizá-lo com alguma certeza sobre um assunto tão polêmico, no momento em
que escrevemos essas considerações ditas finais, nos parece melhor deixar um
questionamento: seria o incesto em Lavoura arcaica um caso de amor desvirtuado?

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REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Abismar-se. In: ______. Fragmentos de um discurso amoroso.


Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. p.9-15.

BATAILLE, Georges. A literatura e o Mal. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos
homens primitivos e dos neuróticos. 1ªed. São Paulo: Penguin Classics Companhia
das Letras, 2013.

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

PLATÃO. O banquete. In: ______. Diálogos: O banquete; Mênon (ou da virtude);


Timeu; Crítias. Tradução, textos complementares e notas Edson Bini. Bauru, SP:
Edipro, 2010. p.33-107.

RODRIGUES, André Luis. Ritos da paixão em Lavoura Arcaica. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006.

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TEOGONIA – UMA HISTÓRIA DE AMOR DIVINA


Jean Pierre Gomes Ferreira
Universidade Estadual do Ceará (UECE)

Resumo: A Teogonia de Hesíodo sobre a origem dos deuses gregos é também uma
história de amor divina, ou ainda, de uma multiplicidade de amores e diversa,
compondo uma diversidade de amores em si mesma, mas que é dividida,
particularmente, em três amores cósmicos segundo as fases cósmicas descritas nela:
o de Céu e Terra, Cronos e Réia e Zeus e diversas deusas e humanas. Neste artigo,
pretende-se demonstrar de modo teogônico há nestas histórias a ascensão de um
amor paterno, masculino, grego, em contraposição a um amor materno, feminino,
não-grego, que é silenciado e silencioso, expresso a partir das Musas e numa
différance, mas que é submetido por um monolinguismo do outro.
Palavras-chave: Teogonia; Eros; Amor; Desejo; Monolinguismo.

Se a Teogonia de Hesíodo é sobre a origem dos deuses, em particular os


deuses gregos, ela é, em princípio, uma história de amor divina de uma diversidade
de amores, de uma multiplicidade de amores, tanto quanto a quantidade de Musas
nomeadas pelo poeta. Em princípio, nove, mas que sendo esta quantidade a
quantidade de números possíveis de serem contados trata-se, portanto, de uma
quantidade infinita inominável e inefável quanto o Kháos em princípio, como o
princípio de tudo, inclusive das Musas. Musas que cantam dês o começo numa
multiplicidade infinita de vozes quem foram os primeiros deuses e que o poeta
começa a cantar em uma única voz, a sua, a partir do Kháos, isto é, a partir do
momento em que abre a boca como um pássaro abre seu bico, segundo a
etimologia da palavra Kháos em grego que quer dizer isto: abrir a boca como um
pássaro abre o seu bico e começa a cantar.
Da multiplicidade de histórias de amor cantadas pelas Musas, por uma raiz
quadrada, separam-se ou dividem-se três que Hesíodo canta em sua única história
de amor divina teogônica dando-lhes destaque: a história de amor de Terra e Céu,
de Réia e Cronos e a de Zeus e Métis, Témis, Eurínome, Deméter, Memória, Leto e
Hera, além de uma multiplicidade de histórias de amor dele com mulheres mortais.

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Cada uma destas três histórias de amor representa uma fase cosmogônica de um
universo poético cantado pelo poeta a partir de Kháos, mas também de Eros
cantado depois dele. Neste sentido, se ao abrir a boca o poeta invoca uma
separação, Kháos, ao começar a cantar, em sua língua, é a partir de Eros que o
poeta deseja cantar seu amor aos deuses, em princípio às Musas, isto é, estabelecer
uma ligação com elas por desejo e amor, falando a língua de Eros.
É a história de amor dos poetas pelas Musas que Hesíodo canta, das quais,
porém, três histórias se destacam e, por fim, apenas uma única história de amor
divina, em sua Teogonia, em relação a Zeus, no qual todo o canto do poeta se
inverte e, quiçá, se perverte ao fazerem as Musas cantarem a Zeus e ao poeta,
silenciando-as em sua multiplicidade de vozes que não podem ser ouvidas por si
mesmas a não ser por Zeus, pelo poeta, por Hesíodo, e silenciando a multiplicidade
de histórias de amor por uma única história de amor, o amor a Zeus. Como estas
histórias de amor são silenciadas em única história de amor, eis o que devemos
ouvir, em silêncio, ouvindo o poeta em seu canto, desde tempos imemoriais, tempos
míticos.

A HISTÓRIA DE AMOR DE TERRA E CÉU


A história de amor de Terra e Céu é a primeira da Teogonia como se pode
perceber na História do Céu e de Cronos a partir da qual a relação de Terra e Céu é
uma relação familiar trágica como são as histórias de amor míticas em geral, pois:

Quantos da Terra e do Céu nasceram,


filhos os mais temíveis, detestava-os o pai
dês o começo: tão logo cada um deles nascia
a todos ocultava, à luz não os permitindo,
na cova da Terra. Alegrava-se na maligna obra
o Céu. (…) (HESÍODO, 1992, p. 113-115, vv. 154-159).

Se há uma procriação da Terra e Céu a partir de um coito, de uma ligação


erótica, por Éros e não por Kháos, ela é detestada, indesejada, limitada pelo desejo
desde o começo. Céu, o par hierogâmico da Terra, expressão do ser masculino
como ela é do ser feminino, ao desejar o coito com a Terra não deseja filhos e se
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alegra com sua maligna obra que é a de impedir que a Terra os tenha, à luz não os
permitindo, obrigando-a ao aborto ao fazer de seu ventre uma cova. Além de limite
à Terra ao cercá-la ao redor, há a imposição de um limite do Céu em relação à ela e
aos seus filhos com ela que não podem vir à luz, pois Céu quer senão ser aos
Deuses venturosos sede irresvalável sempre no lugar da Terra impondo-lhe limites.
Se este limite que é o próprio Céu foi parido pela Terra igual a si mesma
para cercá-la ao redor, isto não quer dizer que ela desejasse a obra maligna dele em
fazê-la ocultar seus filhos em si como cova, não deixando que ela os tenha em
presença, somente em ausência a si, fora de si em seu amplo seio e, sim, dentro de
si no fundo do chão de amplas vias, o nevoento Tártaro. Para cercá-la ao redor,
pode-se dizer que Terra pariu Céu para protegê-la, bem como a seus filhos, mas
não que ele a oprimisse impedindo que seus filhos viessem à luz e produzindo-lhe
com isto uma dor terrível, obrigando-a a urdir dolosa e maligna arte, pois

(…) Por dentro gemia a Terra prodigiosa


atulhada, e urdiu dolosa e maligna arte.
Rápida criou o gênero do grisalho aço,
forjou grande podão e indicou aos filhos.
Disse com ousadia, ofendida no coração:
‘Filhos meus e do pai estólito, se quiserdes
ter-me fé, puniremos o maligno ultraje de vosso
pai, pois ele tramou antes obras indignas’.
Assim falou e a todos reteve o terror, ninguém
vozeou. (…) (HESÍODO, 1992, p. 115, vv. 159-167).

Dentre os filhos da Terra, Cronos é o único a atender o reclame da mãe e a


retribuir o amor materno com seu amor filial. Ocultado em tocaia, ele esperou o pai
para cumprir o ardil que a mãe lhe inculcou de com uma foice dentada castrar seu
pai e, com isto, realizar o desejo de vingança dela porque “ele tramou antes obras
indignas”, que é representado pelo surgimento das montanhas Erínias e pela criação
dos “grandes Gigantes/ rútilos nas armas” a partir do sangue respingado na Terra do
pênis ceifado do pai. Mas também um desejo de amor, de recomeço pelo amor, com
as Ninfas e, principalmente com Afrodite que nasceu da ejaculação do pênis do pai

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no mar ao encontrar as terras de Citera e Chipre, sendo ela coroada como Citeréia e
Cípria, apelidada de “Amor-do-pênis porque saiu do pênis à luz”.
Foi por meio de Kháos que Afrodite foi criada, no caso, por meio da
separação do pênis de Céu, a castração do seu desejo, e do próprio desejo, que ela
representa criada por um amor sem desejo, o amor de Terra por seus filhos e de seu
filho por ela, um amor maternal e filial. Se Eros a acompanha ao nascer, está atrás
dela, em segundo lugar, pois ela representa um amor sem erotismo, sem machismo,
sem masculinidade, no caso, o das “conversas das moças, os sorrisos, os enganos/
doce gozo, o amor e a meiguice. (HESÍODO, 1992, p. 117, vv. 205-6)” O nascimento
de Afrodite encerra a primeira história de amor, de Terra e Céu, e uma clivagem
entre o Amor e Eros respectivamente relacionados àqueles deuses, bem como os
dois modos de nascimento dos deuses, por cissura e separação através de Kháos e
por fissura e ligação através de Éros.

A HISTÓRIA DE RÉIA E CRONOS


Cronos representa na mitologia o tempo, no caso, um tempo que se repete,
um tempo cíclico. Em seu diálogo com Terra quando ela reclama dos filhos
fidelidade, isto se torna presente quando ele promete cumprir o ardil da maligna
arte da mãe ao dizer “pois ele tramou antes obras indignas”. Ao dizer antes antes de
repetir as palavras da mãe é o tempo que retorna deste modo, assim como o depois
em relação a Kháos ao se referir ao surgimento da Terra e que dá prosseguimento
ao tempo. Antes marca um retorno do tempo e no tempo, neste caso, de tudo que
aconteceu antes, tudo igualmente bom e ruim, tudo em relação a Kháos e Eros, ao
desejo e amor.
Ao castrar Céu, Cronos realiza o desejo da Terra, mas o que deveria ser o
fim de uma história trágica de amor é o que principia outra tragédia na medida em
que a ação de Cronos se torna traumática por assim dizer, já que, filho de Céu, ele
tem o mesmo desejo do pai em relação a ser aos Deuses venturosos sede
irresvalável sempre, como se pode perceber quando prende seus irmãos Trovão,

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Relâmpago e Arges e hecatônquiros Briareu, Cotos e Giges, principalmente, quando


submete incestuosamente sua irmã Réia ao seu desejo e quando, por fim, ao parir
seus filhos:

(...) engolia-os o grande Cronos tão logo cada um


do ventre sagrado da mãe descia aos joelhos,
tramando-o para que outro dos magníficos Uranidas
não tivesse entre os imortais a honra de rei.
Pois soube da Terra e do Céu constelado
que lhe era destino por um filho ser submetido
apesar de poderoso, por desígnios do grande Zeus.
E não mantinha vigilância de cegos, mas à espreita
engolia os filhos. (…) (HESÍODO, 1992, p. 131, vv. 459-67).

Assim como o pai, Cronos teme os filhos e faz de seu corpo a prisão para
eles como sua mãe Terra era a prisão para os seus. Repete-se nele o desejo de Céu
e o destino de seus filhos, bem como repete-se a dor de Réia enquanto mãe por
eles serem devorados por Cronos tal como sofria a Terra por seus filhos presos a si
pelo Céu. Por fim, repete-se o ardil da Terra para que isto não acontecesse mais,
principalmente, quando está prestes a nascer Zeus, pois:

(...) Réia agarrou-a longa aflição.


Mas quando a Zeus pai dos Deuses e dos homens
ela devia parir, suplicou-lhe então aos pais queridos,
aos seus, à Terra e ao Céu constelado,
comporem um ardil para que oculta parisse
o filho, e fosse punido pelas Erínias do pai
e filhos engolidos o grande Cronos de curvo pensar. (HESÍODO, 1992, p.
131, vv. 467-73)

O ardil aconselhado pela Terra à Réia foi de ocultar seu filho deixando-o
consigo e entregar a Cronos uma pedra no lugar. Cuidado por Terra e Céu, Zeus
nasce, cresce, adquire o poder dos avós e com a arte maligna principalmente da
Terra, engana Cronos fazendo-o vomitar seus irmão e livra das prisões seus tios
paternos Trovão, Relâmpago e Arges, os dois primeiros dando-lhe seus poderes.
Todavia, o desejo de Cronos ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre é
bem maior do que o de Céu e é travada deste modo uma batalha épica dos Titãs
ao lado de Cronos e dos Cronidas, seus filhos ao lado de Zeus, juntamente com

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Trovão, Relâmpago e Arges e os hecatônquiros libertados por ele, Briareu, Cotos e


Giges, sob conselho da Terra, e que foram decisivos na batalha da Titanomaquia.
Diferente do que acontece entre Céu e Cronos, na oposição em particular
deste àquele, o que se tem na Titanomaquia é uma batalhar cósmica na qual o
desejo de violência por parte Cronos e o desejo de vingança por parte de Zeus é
elevado a todo o cosmo divino na medida em que:

(...) Terrível mugia o mar infinito,


retumbava forte a terra, o vasto céu gemia
sacudido, no solo estremecia o alto Olimpo
sob golpes dos imortais, o abalo pesado atingia
o Tártaro nevoento, e o surdo estrondo de pés
de indizíveis assaltos e ataques brutais. (HESÍODO, 1992, p. 143, vv. 678-
83).

Mas também:

quando Terra e Céu amplo lá em cima


tocavam-se, tão grande clangor erguia-se
dela desabada e dele desabando-se por cima,
tal o clangor dos Deuses batendo-se em luta.
Os ventos revolviam o tremor de terra, a poeira,
o trovão, o relâmpago e o raio flamante,
dardos de Zeus grande, e elevavam alarido e voz
ao meio das frentes, estrondo imenso erguia-se
de discórdia atroz. Mostrava-se o poder dos braços. (HESÍODO, 1992, p.
145, vv. 702-10. Grifos meus).

O poder dos braços é o poder de Eros solta-membros que na Titanomaquia


demonstra seu poder de domar no peito o espírito e a prudente vontade no qual o
desejo de união dos corpos vai do sexo à violência e a partir desta Eros trespassa
Kháos, isto é, trespassa a Cissura com Fissura, trespassa a boca do poeta, sua voz
que, falando a língua de Eros, não canta mais a origem dos deuses, mas as violentas
batalhas entre todos os deuses a partir da luta de pai e filho e todo o cosmo se
desordena. A Descrição do Tártaro após a Titanomaquia demonstra o resultado de
toda este desejo violento, a morte, e A luta contra Tifeu, que “Terra prodigiosa pariu
com ótimas armas (...)/ amada por Tártaro graças à áurea Afrodite” (HESÍODO, 1992,
p. 151, vv. 821-22), é a luta de Zeus contra toda a violência que leva à morte. A

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batalha de Zeus contra Tifeu marca o fim do reinado de Cronos e o início do


reinado de Zeus e suas histórias de amor divino com mulheres divinas e humanas.

AS HISTÓRIAS DE AMOR DE ZEUS COM MULHERES DIVINAS E HUMANAS


O reinado de Zeus marca a terceira e última fase cosmogônica, a d’Os
Deuses Olímpios, que tem como princípio Kháos e não mais Eros predominante nas
duas outras histórias de amor de modo trágico dominando o peito dos deuses em
sua prudente vontade, no caso, Céu e Cronos em desejo de ser aos Deuses
venturosos sede irresvalável sempre. Apesar das diversas histórias de amor do Pai
dos Deuses e dos homens com diversas mulheres divinas e mortais, é a partir da
língua de Kháos, da separação, que se estabelece seu poder na medida que, ao
tomar o poder e ser considerado pelos olímpios como rei dos mortais, ele “bem
dividiu entre eles as honras”, a começar pelas núpcias como alianças políticas que
estabeleceu com mulheres divinas de várias partes do cosmo “Para assegurar que
seu poder não será superado e que o domínio que ele exerce sobre seu pai
[Cronos] não será por sua vez dominado”. (TORRANO, 1992, p. 62) Núpcias
estabelecidas de modo alternado e dominando o desejo do solta-membros Eros
que se domina o peito e a prudente vontade de Zeus é também limitado pelo
poder dele.
Se existe uma harmonia no cosmo a partir do domínio de Zeus é devido às
suas histórias de amor que, diferente das de seu pai Cronos e avô Céu, não são, em
princípio, incestuosas na medida em que seu desejo é limitado pela perspectiva
política de suas núpcias tendo em vista a divisão das honras a todos os deuses, bem
como de um lugar delimitado para eles no cosmos que é uma limitação do poder
dos deuses em relação a si. Esta perspectiva política aparece primeiramente no
casamento de Zeus com Métis (Sapiência e Astúcia), uma oceanina que “representa
a presciência oracular e prática que abarca a totalidade dos recursos do espírito”
(TORRANO, 1992, p. 63) e que, segundo Hesíodo, é a “mais sábia que os Deuses e
os homens mortais.” (1992, p. 155, vv. 887) Através de Métis (Sapiência e Astúcia),

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Zeus assegura o domínio sobre o imprevisível, o instável e o cambiante na medida


em que ela lhe indica o bem e o mal, todavia, para assegurar ainda mais seu poder,
estabelece aliança com a uranida Thémis (Lei Ancestral ou Prescrição) “que fixa os
direitos e deveres de cada um sob a autoridade do chefe do genos, quer na vida
cotidiana no interior da casa, quer nas circunstâncias excepcionais: aliança,
casamento, combate.” (BENVENISTE apud TORRANO, 1992, p. 64) Com Eurínome
(Grande Partilha), oceanina irmã de Métis, Zeus estabelece por conseguinte a
partilha das honras a todos os deuses que lutaram consigo na batalha contra
Cronos, e é esta Grande Partilha senão a divisão dos espólios de Guerra
representada pelas filhas de Zeus com Eurínome, as Graças, que representam as
honrarias consentidas aos combatentes vitoriosos. Somente nas suas quartas
núpcias, Zeus estabelece uma aliança incestuosa com sua irmã Deméter que
explicita as “forças ctônicas fecundas e produtoras de alimento”, e deste modo
estabelece um poder sobre a força e produção da Terra. Em seguida, com
Mnemosyne (Memória), Zeus consolida seu poder com o “domínio da luminosidade
desveladora, a indeclinável permanência no âmbito da Aparição” e “vigência da mais
vigorosa verdade (a mais vigorosa negação do Esquecimento em que se dá o Não-
ser)”. (TORRANO, 1992, p. 70) Um poder que se torna resplandecente a todos com
suas núpcias com Leto, filha de Febe, a Luminosa, com a qual tem “Apolo e Ártemis,
os mais invejáveis (ou desejáveis) dentre todos os que descendem do Céu”
(TORRANO, 1992, p. 66) Por fim, com suas núpcias em incesto com a irmã Hera,
Zeus origina com ela Hébe (Juventude) e Ares (Guerra) para manter seu poder como
pai dos Deuses e dos homens.
Se Zeus estabeleceu alianças políticas com mulheres divinas, foram muitas
as vezes em que ele traiu estas alianças também ao se relacionar com mulheres
humanas das quais originaram diversos semideuses ou heróis como Aquiles na
epopeia homérica e Hércules. Porém, o que se coloca em questão a partir de todas
as histórias de amor Zeus, em particular com as mulheres divinas, é que o seu poder
advém não por menos destas mulheres divinas, do poder que elas têm que ele

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submete a si desde o princípio quando engole literalmente Métis depois de enganá-


la com seu ardil e palavras sedutoras para adquirir o poder dela como a mais sábia
que os Deuses e os homens mortais, mas também porque pariria Atena “igual ao pai
no furor e na prudente vontade,/ e depois um filho rei dos Deuses e homens / ela
devia parir dotado de soberbo coração.” (HESÍODO, 1992, p. 155, vv. 894-98. Grifos
nossos.)
Se todo o canto hesiódico inspirado nas Musas tem em vista Zeus é porque
submetendo a mãe delas, Mnemosyne (Memória) ao seu poder, submete também
aquelas e faz com que elas cantem para si sua própria glória como Pai dos deuses e
dos homens. As histórias de amor da Teogonia se tornam todas histórias de amor
divinas que tem como telos o poder de Zeus ao mesmo tempo como pai, deus e
homem sobre as mães, deusas e mulheres, todas estas histórias reunidas numa única
história de amor divina, a Teogonia, na qual o canto de todas as Musas, mães,
mulheres são silenciadas pela voz do poeta que se é inspirado por elas a cantar,
canta e conta a história do seu ponto de vista masculino tendo em vista um poder
patriarcal.

CONCLUSÃO
Assim podemos interpretar a Teogonia de Hesíodo sobre a origem dos
deuses gregos como uma história de amor divina a partir de uma multiplicidade de
amores e compondo uma diversidade de amores em si mesma, mas que é dividida,
particularmente, em três amores cósmicos segundo as fases cósmicas descritas nela.
Três histórias de amor divinos, além de muitas outras, numa história de amor
teogônico a partir da qual podemos conhecer o amor de modo único, múltiplo e
diverso, bem como diferente em sua língua a partir do qual coloca-se em questão a
língua de Eros, esta que vem depois do Kháos, a partir da qual o amor é falado.
A Teogonia de Hesíodo é uma história de amor única, mas também
múltipla, diversa, diferente e em différance, narrada senão numa única língua, mas
que não é uma única língua, como diz Derrida em O monolinguismo do outro. Isto

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porque nesta história de amor divina o amor se divide e se difere em dois


constantemente na língua, ao mesmo tempo como um amor familiar (maternal-
paternal-filial-fraterno), de uma única língua que não é nunca de uma única língua,
pois há o amor desejante, no qual um fere o outro, o da língua de Eros que fala
depois do Kháos, do abrir a boca do poeta, homem, grego, cuja voz é numinosa
senão devido às Musas, mulheres, não-gregas. Não-gregas porque divinas,
inumanas, mas também porque enquanto representação feminina são não-cidadãs
como as mulheres “gregas” que não têm o direito de falar a não ser pela boca dos
homens que falam delas e por elas desde tempos míticos, e contam as histórias de
amor divinas, trágicas para as mulheres, silenciadas desde o princípio pela boca dos
deuses-homens-filhos que falam por elas. Neste sentido, a partir da Teogonia de
Hesíodo e das três histórias de amor cósmicas de Céu e Terra, Cronos e Réia e de
Zeus em suas alianças divinas e traições com deusas e humanas, demonstra-se
como de modo teogônico há a ascensão de um amor paterno, masculino, grego, de
uma única língua em contraposição a um amor materno, feminino, não-grego,
silenciado e silencioso, a partir das Musas que não se expressam numa única língua
na boca de poetas como Hesíodo e estão sempre submetidas ao monolinguismo do
outro.

REFERÊNCIAS

DERRIDA, J. O monoliguismo do outro. Tradução de Fernanda Bernardo. Belo


Horizonte: Chão da feira, 2016.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução e introdução de Jaa Torrano.


São Paulo: Iluminuras, 1992.

TORRANO, J.A.A. O mundo como função de musas. In: HESÍODO. Teogonia: a


origem dos deuses. Tradução e introdução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras,
1992.

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