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Carnofalogocentrismo e a Política Sexual da Carne

Ana Paula Assumpção

PPGF/ UFRJ

Ana Paula Assumpção – Mestranda do Programa de PósGraduação em


Filosofia da UFRJ

Email: atisundari108@gmail.com

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RESUMO

A dissertação pretende desenvolver, a partir do conceito derridiano do


Carnofalogocentrismo uma interface com o pensamento feminista animalista
da autora Carol Adams. Além disso pretendo investigar algumas autoras e
autores ecofeministas da atualidade, visando avançar no desenvolvimento
de uma teoria animalista alinhada às necessidades contemporâneas de um
alargamento do escopo moral vigente, para que este passe a abranger de
maneira mais eficaz a comunidade dos animais não humanos sob uma
perspectiva não apenas baseada nos direitos, senão que também, analisar
comparar e denunciar os variados tipos de opressão a que estão submetidos
os sujeitos humanos mais vulneráveis ou politicamente minoritários
sobretudo as mulheres, a partir de uma perspectiva interseccional.1

Palavras Chave: Carnofalogocentrismo, Ecofeminismo, interseccionalidade,


animalidade, opressões.

SUMÁRIO

1
Com esta palavra pretende - se dar conta dos estudos feitos de maneira conjunta
ou interdisciplinar, através da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e
sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação.
2
INTRODUÇÃO...........................6

CAPÍTULO 1

1 - A Lógica da Dominação

1.1 – Filosofias Patriarcais

1.2 – Cartesianismo e Animalismo

1.3 – Subjetividades Animais

CAPÍTULO 2

2 - A CULTURA DA CARNE............................19

2.1 - Carnismo............................23

2.2 - Especismo..........................32

2.3 - A Carne como Símbolo do Patriarcado .....................38

CAPÍTULO 3

3 - REFERENTES AUSENTES

3.1 - O Retalhamento Simbólico e o Abate Moral

3.2 - Violência Não-Consentida ou o Estupro das Fêmeas

3.3 - Carnismo e Violência Sexual

3.4 - Corpos Fragmentados

3
“Não se trataria somente de relembrar a estrutura
falogocêntrica do conceito de sujeito, ao menos em seu
esquema dominante. Gostaria, um dia, de demonstrar que
este esquema implica a virilidade carnívora. Eu diria carno-
falogocentrismo, se este não fosse aqui uma espécie de
tautologia ou, antes, uma espécie de hetero-tautologia como
síntese a priori, você poderia traduzir por “idealismo
especulativo”, “devirsujeito da substância”, “saber absoluto”
passandopela“sextafeirsantaespeculativa”: basta levar a
sério a interiorização idealizante do falo e a necessidade de
sua passagem pela boca, quer se trate das palavras ou das
coisas, de frases, do pão ou do vinho cotidiano, da língua,
dos lábios ou do seio do outro”. (Derrida, 1988, p.178).

4
Introdução

O presente trabalho, que foi redirecionado após meu exame de qualificação,


uma vez que pretendia abranger autoras e autores em demasia acabando
por prejudicar a investigação e o debate, pretende fazer uma interface do
pensamento derridiano, especificamente do termo Carnofalogocentrismo,
com as ideias da pensadora Carol Adams sobre o mesmo tema. Tal
iniciativa tomou forma a partir da leitura de uma entrevista concedida pela
referida autora a Mathew Calarco no livro Meat Culture onde a dupla discute
a Política Sexual da Carne e sua intersecção, associações e também as
discordâncias com o pensamento do filósofo Jacques Derrida.

À luz da inovação caracteristica das idéias iconoclastas do filósofo franco-


magrebino, sobretudo no que tange a Filosofia Animalista, tão pouco
desenvolvida nos meios acadêmicos, nos círculos de estudos da Filosofia
Prática, bem como nos movimentos extra acadêmicos, será apresentada
uma tentaviva de estudo detalhado dos principais pontos concernentes à
questão animal e sua contribuição ao desenvolvimento de uma ética onde o
ser único e personificado de cada vivente não humano seja considerado em
si, como único e inimitável para além das teorias de direito e justiça, sem
contudo deixar de contemplá-las. A busca por uma ética da alteridade é
traço típico do pensamento derridiano e sua análise sobre a subjetividade
ocidental dominante são instrumentos valiosos no avanço e desenvolvimento
da teoria e prática dos estudos animalistas.

Carol Adams, em seu icônico A Política Sexual da Carne trata da relação


entre o carnivorismo e dominação masculina em uma perspectiva feminista.
Ambos, na mesma época, desenvolvem uma crítica radical ao modelo de
sujeito macho-ocidental-branco-carnívoro que perpassa nossa cultura e que
naturaliza a submissão e a opressão de todos que não se enquadram em tal
padrão. Daí surge a possibilidade e a riqueza de entrecruzar o pensamento
de ambos autores na busca por desconstruções de padrões materiais e
simbólicos impregnados em nossa subjetividade

5
O termo Carnofalogocentrismo aparece pela primeira vez na obra “É preciso
comer bem” (1988) e permeia grande parte da produção filosófica do autor,
sobretudo nas décadas de 1980 e 1990. Durante muito tempo não se
reconheceu a centralidade da questão animalista nas obras de Derrida, no
entanto alguns autores contemporâneos vêm dedicando esforços para
resituar o lugar do animal na filosofia do referido autor. (apontar autores que
analisam aquestão).

A questão animal se torna cada vez mais presente nos escritos, entrevistas
e aulas do filósofo franco-magrebino, o que considero ser portanto um ponto
chave e ainda pouco explorado onde um estudo aprofundado e minucioso
do referido conceito será de relevância para o avanço nas pesquisas que ora
estão em andamento na área de Filosofia Prática, especificamente no que
tange aos Estudos Críticos Animais ( ECA) e ao Ecofeminismo Animalista,
uma vez que tais perspectivas desconstrutivistas da subjetividade vigente,
oferecem uma maneira diferente de refletir acerca de novos conceitos para a
composição de um pensamento ético e político da animalidade mais aberto à
multi e à transdisciplinariedade, unindo-se à sociologia, à história, à
psicologia, etologia e tantas outras vertentes do pensamento humano
capazes de ampliar a discussão e a reflexão sobre a questão animalista a
partir de uma perspectiva crítica e historicamente situada.

“Enquanto a tradição anglo-americana procura conceder aos animais o


direito de igualarem-se no acesso à comunidade ética e política, penso que o
poder da desconstrução reside no seu chamado para explorar novas formas de
conceber as relações entre humanos e não humanos. Isto é, a abordagem da
identidade, para tentar expandir a comunidade moral, deve partir
do questionamento dos privilégios do homem, e, portanto, da lógica sacrificial
subjacente às nossas instituições e práticas dominantes; a desconstrução
mostra desta forma o caráter político de categorias supostamente auto-
fundadas como o humano e o animal”.
(Gonzalez, Anahi, 2013)

Existem dois grandes eixos na chamada teoria animalista, uma analítica,


preocupada basicamente com um método lógico de análise do pensamento
6
ou com uma tentativa de se descrever alguns dos conceitos fundantes do
nosso esquema conceitual e a partir daí comprovar cientificamente,
juridicamente ou eticamente que os animais são detentores de direitos e
consideração moral e outra denominada Filosofia Continental caracterizada
pela conexão entre as diversas ciências humanas, sociais, filosóficas,
artísticas, da linguagem, etc e que critica a Filosofia Analítica na sua
concepção excessivamente cientificista e formalista.

Diversos autores da chamada Filosofia Analítica tradicional, como por


exemplo, Tom Regan e Peter Singer desenvolveram éticas voltadas aos
direitos dos animais ou preocupadas em comprovar sua senciência
(sensibilidade e consciência) as quais foram importantes no sentido de
tomarmos consciência dos diversos usos e abusos que cometemos em
relação a eles, no entanto no atual estágio de desenvolvimento da teoria e
prática animalista em sua busca por interseccionar-se com outras vertentes
do conhecimento, faz-se necessário o avanço de estratégias pós-dualistas,
pós-identitárias, de subversão e resistência, capazes de contínua
(re)construção do caráter subjetivo e simbólico que sustentam e reproduzem
o atual sistema de exploração e opressão ao qual todos estamos
submetidos.

O objetivo central do presente trabalho é o de aprofundar os estudos sobre o


significado do termo Carnofalogocentrismo na atualidade e promover sua
aproximação e conexões com o pensamento feminista crítico de Carol
Adams levando também em conta a contribuição de autoras feministas e
ecofeministas, tais como Karen Warren, Annie Potts, Melaine Joy, Lori
Gruen, Angélica Velasco Sesma, Alicia Puleo, entre outres. Através de tais
estudos e perspectivas pretendo contribuir para a investigação,
compreensão e denúncia da forma pela qual o referido termo atua através
da celebração do carnismo, do sexismo e do racionalismo/logocentrismo,
historicamente atribuídos ao padrão humano tipicamente masculino
(homem); e de que maneira estão conectados e permeiam as variadas
relações de dominação que se perpetuam em nossa sociedade.

7
A partir desta conexão do pensamento derridiano com as idéias de Carol
Adams e de autores e autoras ecofeministas visitados, espero avançar no
desenvolvimento de uma teoria animalista alinhada às necessidades
contemporâneas de um alargamento do escopo moral vigente, para que este
passe a abranger de maneira mais eficaz a comunidade dos animais não
humanos, sob uma perspectiva não apenas baseada nos direitos, senão
que levando em conta a diferença fundamental e constituinte de cada
vivente. Busca-se no presente trabalho contribuir para o florescimento de
uma ética baseada no cuidado e no respeito à alteridade radical e ao mesmo
tempo que tenha espaço para a análise, comparação e denuncia dos
variados tipos de opressão a que estão submetidos os sujeitos humanos
mais vulneráveis ou politicamente minoritários, sobretudo as mulheres, a
partir de uma perspectiva interseccional.

Podemos iniciar afirmando que enquanto Carol Adams se dispõe a codificar


a Política Sexual da carne, seus funcionamentos e representações, Derrida
cria esse neologismo, o Carnofalogocentrismo, para pensar as conexões
entre subjetividade, sexismo e o consumo de carne. Aparentemente a
questão animalista não é a principal preocupação nas obras do autor, apesar
dos seus protestos em sentido contrário, como o é na obra de Carol Adams.

Ou nas palavras de Calarco (2008): “...a relação mais óbvia entre seu
trabalho (Adams) e o de Derrida diz respeito ao modo como ser carnívoro é
compreendido por vocês dois como essencial à condição de sujeito...o
carnivorismo que reside no centro das ideias clássicas de subjetividade,
especialmente na da subjetividade masculina. No entanto, você (Adams)
expõe esse ponto extensamente ao passo que Derrida trata dele apenas de
modo esquemático e incompleto. O termo Carnofalogocentrismo de Derrida
é uma tentativa de nominar as práticas sociais, linguísticas e materiais
primárias que estão se tornando e devem permanecer um tema genuíno no
Ocidente. Derrida mostra que para ser reconhecida como sujeito pleno, a
pessoa precisa ser carnívora, do sexo masculino e ter um ego autoritário,
que fala. O que A Política Sexual da Carne teve de tão convincente foi
exatamente essa mesma percepção essencial...o consumo da carne não é

8
um fenômeno simples, natural, e na nossa cultura está irredutivelmente
ligada à masculinidade em vários aspectos materiais, ideológicos e
simbólicos.”.

O conceito de Carnofalogocentrismo torna-se uma ferramenta valiosa e


inovadora quando se trata de questionar o modus operandi das estruturas
sociais e culturais de dominação, submissão e subjugação, uma vez que
reúne em seu interior questões essenciais para se pensar um feminismo
animalista a “partir da relação entre a dominação masculina e o sacrifício
carnívoro.”(Llored, 2011)

O conceito de Carno que irá se unir ao de Falo e ao de Logocentrismo


aparecerá pela primeira vez na obra Eating Well ( É Preciso comer Bem),
onde Derrida critica a naturalização, pela sociedade antro(andro)cêntrica, de
uma subjetividade pautada no masculino, no viril, no comedor de carne, no
bem falante e que é capaz de submeter e sacrificar aqueles que de alguma
forma não compartilham tais atributos ou estão de fora desses padrões:

“Foi para nomear essa cena sacrificial que eu falei anteriormente de um só


fenômeno e uma só lei, uma só prevalência, um carnofalogocentrismo. Se a
desconstrução do logocentrismo necessariamente teve que se livrar do
falocentrismo ao longo dos anos de desconstrução, a substituição inicial dos
conceitos de fala, signo e significado pelos de rastro ou marca destinam-se,
deliberadamente, a ultrapassar a fronteira do antropocentrismo, o limite de
uma linguagem confinada ao discurso e às palavras humanas. A marca, a
grama, o rastro, a différance, concernem diferenciadamente (a) todos os
viventes, (a) todas as relações dos viventes com os não-viventes”. (Derrida,
2006, p.144)

Ou ainda, na excelente colocação de Gabriela González (2016):

“A configuração carnofalocêntrica da metafísica ocidental, ao avaliar o


humano, o racional e o masculino, distribui os viventes numa escala
hierárquica que vai do que é considerado ‘verdadeiramente’ humano ao não
humano. Isso implica a exclusão de animais da comunidade, mas implica
9
também a marginalização de mulheres, indígenas, crianças, doentes, negros,
gays e diversas corporidades dissidentes, que são consideradas "menos
humanas" em relação ao ideal hegemônico do sujeito moderno / colonial
(idealmente homem, branco, heterossexual, racional e burguês). Isso é
caracterizado por estabelecer-se como o lugar-objetivo da universalidade de
quem pode, soberanamente, dispor da vida e da morte daquilo que coloca no
horizonte da animalidade. (p. 201)

Derrida explicita, ao falar sobre sexualidade e gênero, os links entre


logocentrismo e falocentrismo, sendo este, o aspecto viril e masculino dos
sujeitos, mas também das instituições e concepções de subjetividade
promulgadas por ela.

O Falogocentrismo vem para ressaltar a junção desses fenômenos e sugerir


que Carno deveria unir-se a este conceito, apontando para o fato de que o
consumo de carne implica uma dominação masculina e patriarcal que
permeia processos de produção e disseminação ideológicas.

Desde seus estudos no final dos anos 80, o autor fala sobre a necessidade
de uma reformulação dos processos subjetivos que determinam a maneira
como manifestamos nossas relações em sociedade, sendo necessário para
tal fim uma desconstrução crítica do carnofalogocentrismo, utilizando-se
para tal de uma análise interseccional de três registros da construção da
subjetividade:

• Auto presença - a racionalidade (logos) do autodomínio, a razão, o


discurso e o acesso não imediato da vida mental interna, uma crença da
linguagem como sentido, como doadora do fundamento, da identidade e da
homogeneidade.

• Masculinidade – o modo como o ideal viril e masculino é introjetado,


assimilado e naturalizado através e dominantemente na ordem psico-sócio-
cultural vigente.

10
• Carnivorismo - o consumo simbólico e literal de carne, o compromisso
com o antropocentrismo, a ocupação hierárquica dos sujeitos humanos
sobre os animais não humanos.

No decorrer de Eating Well, o autor expõe como o carnivorismo está no


cerne da noção clássica de subjetividade, especialmente da subjetividade
masculina, ou como pontua Calarco:

“com o termo Carnofalogocentrismo, Derrida tenta nominar as práticas


sociais, linguísticas e materiais primárias que estão se tornando e devem
permanecer um tema genuíno no Ocidente. Ele mostra que para ser
reconhecida como sujeito pleno a pessoa precisa ser carnívora, do sexo
masculino e ter um ego autoritário, que fala. Obviamente há outras
exigências para ela ser reconhecida como sujeito pleno, mas ele fala nessas
três exigências em sucessão e em forte relação uma com a outra, pelo fato
de elas serem talvez as três condições primárias do reconhecimento.”
(Calarco, 2012, pag 215).

Derrida obstina-se na desconstrução deste limite absoluto e sem fissuras


estabelecido e auto-outorgado pelo homem em relação ao animal. Tal
desconstrução questiona a legitimidade de uma suposta hegemonia do
homem: em que precisamente ele baseia sua autoridade para subjugar,
submeter, explorar e matar?

A partir da gênese que o filósofo desenvolve em “O Animal que Logo estou


Se(gui)ndo” é possível observar como o termo "animal" opera, na tradição
ocidental, com uma função de corte, pretendendo garantir a distinção entre o
ser humano e o desumano de acordo com um pensamento dualista e
identitário: sendo estabelecido e considerado que o homem possui
racionalidade, linguagem, consciência e respostas enquanto o animal é
considerado automatismo puro sem capacidade de resposta, e por isso está
isento incondicionalmente da esfera ético-política. (Gonzalez, 2016)

11
Esta atitude destrói qualquer chance de diferença, de singularidade de cada
subjetividade animal e está na raiz da biopolítica e da necropolítica2 das
relações de assujeitamento que se estabelece entre humanos e animais.

Na ausência da capacidade de responder, dentre outras coisas sobre o que


seria o próprio do homem, foi estabelecida a fronteira, uma única fronteira
entre o homem e o animal. (Paixão, 2013, p.277).

“Mas apesar, através e para além de todas as suas dissensões, os filósofos sempre,
todos os filósofos, julgaram que esse limite era um e indivisível; e que do outro lado
desse limite havia um imenso grupo, um só conjunto fundamentalmente homogêneo
que se tinha o direito, o direito teórico ou filosófico, de distinguir ou de opor, ou
seja aquele do Animal em geral, do animal no singular genérico. Todo o reino
animal com exceção do homem”. (DERRIDA, 2002, p.28).

a citação acima, expõe a denegação do que lhes é próprio e estranho a nós,


a recusa ao reconhecimento de uma alteridade animalesca, do olhar que vê
e não apenas é visto ou admirado, “ou mais precisamente, de resposta, de
uma resposta a distinguir precisa e rigorosamente da reação: do direito e do
poder de responder." (DERRIDA, 2002).

Essa mudez imposta ao Animot 3que, como é descrito por Peter Singer no

clássico Libertação Animal (1975), remonta a Adão, nos faz ver que desde a

suposta e disseminada gênese da humanidade, o animal é nomeado e


privado de sua capacidade de manifestar- se diante da linguagem própria do
homem. Essa é talvez a violência em sua manifestação Suprema e reforça a
fragilidade daquele que é dessemelhante e que precipitado ao abismo do
silêncio de lá não sairá a não ser para nos servir de diversão, vestimenta,
experimento ou comida.

2
é o conceito proposto pelo pensador camaronês Achille Mbembe. Significa a gestão de territórios de
degradação, desintegração social e morte. No Brasil, estes territórios são as periferias. Processos de
degradação e desintegração social tornam a morte provocada uma situação naturalizada.

.
3

12
“Com o “quase conceito” animot, forjado no pensamento da diferença, rompe-se
com o discurso totalizante ou visão de mundo. A natureza do animot coloca as
coisas mais estranhas frente à racionalidade do discurso do humanismo, fazendo
tremer esta estrutura sangrenta”. (Galvão, João; 2015)

A partir deste lugar, temos o vivente não humano como uma coisa
observável, apreciavél, que aparece como o objeto de um homem que o
coloca no lugar da disponibilidade, submetido ao conhecimento do humano-
poder, exercendo sobre ele o que Derrida chama de "violência soberana”.
No caso da Violência Soberana, esta pode ser qualificada como violência
“pura” ou “divina”, e no âmbito dos negócios humanos, como
“revolucionária”, uma vez que este seria um tipo de violência que, imune ao
Direito, sustenta as normas e, portanto, é capaz de sobreviver aos seus
rigores e ressurgir das suas fissuras, de onde naturaliza muitas práticas
cruéis, abusivas ou mortíferas como sendo mesmo fundamentais ou
necessárias.

A autoridade política no Ocidente está incorporada no homem-macho que é


o porta-voz da racionalidade e a expressa através do sacrifício da carne.

Neste sentido, com o termo Carnofalogocentrismo, Derrida dá conta de uma


série de práticas, discursos e instituições que privilegiam um conjunto de
"seres humanos", colocando-os numa posição de hegemonia em relação a
todos os outros viventes, sendo estes identificados com as características do
animal, do feminino ou da natureza.

Um apelo à animalidade das vítimas é observado em várias formas de


opressão e discriminação. (Paixão, 2013)

“A força viril do macho adulto, pai, marido ou irmão (o cânone da amizade, vai
mostrar em outro lugar, privilégios do regime fraterno) e corresponde ao esquema
que domina o conceito de sujeito”. (Derrida, 2005: S.P.).

Derrida expõe como o carnivorismo está no coração da noção clássica de


subjetividade, especialmente da subjetividade masculina enquanto Carol
Adams faz uma análise feminista do papel do macho que necessita de uma
crítica do carnivorismo. A autora sugere que o carnofalogocentrismo seja a
premissa fundacional da Política Sexual da Carne enquanto constituindo o
13
sujeito carnofalocêntrico. Apesar de possuir diversos outros fatores, a
Política Sexual da Carne contém em comum com o conceito Derridiano a
associação de virilidade e consumo de carne, o funcionamento da estrutura
do referente ausente4 e a sobreposição de mulheres e animais como
referentes ausentes em uma cultura patriarcal.

Isto é fácil observar quando reparamos na quantidade de propagandas,


especialmente aquelas de teor pornográfico que utilizam mulheres para
reportarem-se a produtos a base de “carne” (corpos de animais) e animais
usados como se fossem corpos humanos sedutores, quase invariavelmente
femininos. Isso ocorre evidentemente entre veículos publicitários que visam
a venda de produtos através dos corpos de mulheres, tais como: cerveja,
carro, hambúrguer, clubes de stripper, motel etc., mas também entre aquelas
que pretendem contestar o consumo animal de algum ou todo tipo. Aqui
cabe destacar a densidade na qual o carnismo e sexismo estão embricados
na cultura brasileira, tornando o debate acerca do carnofalogocentrismo
necessariamente uma discussão sobre a política sexual da carne. No
contexto nacional, onde o corpo da mulher é utilizado como plataforma de
venda de produtos e ele mesmo um produto a ser consumido pelo mercado,
torna-se emergencial uma reflexão que ofereça ferramentas conceituais para
que melhor possamos analisar e enfrentar o modo como se aliançam
diferentes formas de opressão. Neste sentido, cabe destacar que, embora o
sexismo recaia sobre todas as mulheres, quando associado a outras formas
de opressão, tais como classe, raça, sexualidade etc. deve-se tentar
compreender como a politica sexual da carne opera sobre esses corpos,
ainda mais intensamente. Entendendo, portanto, que o mercado é dominado
pelo que Adams chama de “macho”, e opera de modo a oferecer produtos
para o consumidor, também “macho”, é preciso lançar um olhar feminista
para analisar em que medida a sexualização dos corpos das mulheres vêm
sendo utilizada como mecanismo de ação até mesmo por organizações e
ativismos animalistas. O consumo simbólico do corpo das mulheres, através
da exposição e sexualização dos seus corpos, dentre tantas outras
4
Conceito cunhado por Carol Adams que pretende evidenciar o ocultamento do indivíduo, tornando-o
metáfora. Os animais,a mulher e demais grupos vulneráveis “são feitos ausentes para a carne existir”.
O termo será melhor desenvolvido no decorrer do trabalho.
14
violências a que somos submetidas, tornam-se plataforma de restrição de
autonomia e liberdade, reduzindo todas nós a condição de fêmeas a serviço
de um macho. Direitos dos animais impregnados de machismo e sexismo
estarão contribuindo para a desconstrução do modelo opressor dentro do
qual existimos?

Como Adams expõe em sua obra, no ocidente existe uma aproximação


muito forte entre o consumo de carne e as noções de masculinidade. A
escolha da comida, bem como dos locais a serem frequentados estão
fomentando o carnivorismo e formando subjetividades. Estas escolhas feitas
sobretudo pelos homens das classes dominantes passam por “steak
houses”, clubes de strip tease, fraternidades e associações de cunho
machista e os altamente incentivados churrascos, onde na maioria dos
casos os homens ocupam o papel de destaque na churrasqueira enquanto
as mulheres preparam os acompanhamentos no interior da casa, nas
cozinhas´, assumindo um papel secundário ou obscuro. Na mentalidade
carnivorista é assumido que a força provém de se comer o cadáver de
animais enquanto que os alimentos de origem vegetal representariam a
passividade, o tipicamente feminino.

Derrida se esforça para identificar a tendência metafísica dominante e seus


não pensados substratos na medida em que para o pensador aquela é
forjada para elaborar e privilegiar um certo pensamento (ideia) de presença
e identidade entendido mais frequentemente como sujeito auto
presente/autoconsciente e controlado que o aproxima das idéias de
Heidegger5. O autor parte de Heidegger para caracterizar a subjetividade
específica que envolve a dimensão do humano masculino e carnívoro,
apesar de este não ser o foco do pensador tampouco de seus seguidores,
trazendo para o debate não só o aspecto falocêntrico da noção metafísica da
subjetividade senão que também a tendência antropocêntrica e carnívora
dessas tradições. O filósofo pretende capturar a estrutura profunda do
“esquema dominante de subjetividade” na metafísica ocidental.
5
Autores como Heidegger, Lévinas, Kant, Descartes, entre outros não terão seus
pensamentos e obras analisados em profundidade no presente trabalho. Serão
referenciados na medida em que fazem parte do contexto e interface com os
autores estudados.
15
Ainda na esteira de Heidegger, Derrida caracteriza a subjetividade específica
que envolve a dimensão do humano masculino e carnívoro, onde o animal é
um vivente incompleto, limitado, um não Dasein. Seu mundo é empobrecido
pela falta da linguagem, pela afirmação do seu ser-para-a-morte e pelo fato
de possuir um mundo ao mesmo tempo não o possuindo, uma vez que é
privado do entendimento de sua própria existência:

“Não existe a categoria de existência original para o animal: ele não é


evidentemente Dasein (o ser não pode aparecer, ser, nem ser
interrogado como tal [als] pelo animal), nem vorhanden nem
zuhanden. Sua simples existência introduz um princípio de desordem
ou de limitação na conceitualidade de Ser e Tempo [Sein und
Zeit]...talvez o animal seja triste, talvez ele pareça triste porque ele
tem um mundo, de fato, no sentido em que Heidegger fala de um
mundo como mundo do espírito, e porque existe uma abertura deste
mundo para ele, mas uma abertura sem abertura, um ter (o mundo)
sem tê-lo”. (Derrida,1988, p. 175).

Diante dessa proposta, como aprimorá-la e expandi-la para que possa


efetivamente contribuir para o desenvolvimento de uma filosofia crítica
animalista? Qual a implicação crítica e transformativa de descobrir o Carno
como esquema da metafísica dominante no ocidente? Como relacioná-la às
outras análises críticas no ocidente que diferem do seu foco e estratégia?

Para Carol Adams e Matthew Calarco atualmente é mais importante a crítica


ao antropocentrismo enquanto trabalho filosófico do que estudar se o
conceito de Carno captura apuradamente o esquema metafísico dominante.

As questões da opressão das mulheres, dos indígenas, da população Lgbti


queer +, dos negros e dos animais, por exemplo, nem sempre são
apresentadas de forma conectada e parece ser essencial que as teorias
16
animalistas e ativistas discutam estas diferenças mais apuradamente, de
forma interseccional.

A teoria analítica animalista tem servido para chamar a atenção para a


singularidade da vida dos animais (GRUEN,) e para as inúmeras formas de
violência que os causamos, no entanto pouca atenção é dada às conexões
onde reside a suposta força transformadora do formalmente estabelecido.

Derrida pode ser lido em seu trabalho sobre a questão animal como um
ampliador da lógica humanista tradicional, não apenas no que diz respeito às
relações inter-humanas, senão que expandindo-a à crítica dos dogmas antro
e andropocêntricos fazendo-nos refletir sobre vidas e mortes, usos e
sofrimentos das vidas não-humanas ou aquelas assim consideradas.

Todas essas questões esquecidas na filosofia e metafísica tradicional sobre


as noções de animal e animalidade ficam evidentes nas formas em que a
individualidade animal é reduzida ao referente ausente nos discursos
filosóficos.

A crítica derridiana às teorias baseadas unicamente no Direito e na Justiça,


baseiam-se em que estas não consideram o singularmente “Outro” ou seja,
o “Outro” como uma categoria singular, não um amontoado homogêneo que
visa a agrupar todos aqueles que não são considerados “Eu”.

Relacionar a ética derridiana com a perspectiva feminista, ecofeminista e da


ética do cuidado, onde situa-se o pensamento de Carol Adams, consiste em
sugerir que estas se unam ao pensamento do filósofo quando buscam
evidenciar as diferenças fundamentais entre os viventes e a valorização
destas diferenças, que deverão servir de marcadores para trocas,
observações, admiração e respeito às diversidades e não de justificativa
para opressões de qualquer espécie. Assim que devem buscar
problematizar justamente o modo como o direito e a noção de justiça
baseada em procedimentos se desenvolveu na contramão do cuidado, da
compaixão, da empatia e de todos os demais atributos considerados da
ordem do privado. Aqui, as teorias ecofeministas e do cuidado, resgatam a

17
fissura misógina que constituiu o público e o privado, cada qual como
expressão das diferenças e assimetrias de gênero relativas a cada esfera.

A esfera privada privilegia o cuidado, a sensibilidade, o que é dito do escopo


das emoções, do “naturalmente” feminino, enquanto a esfera pública está
ligada à política, à razão e à cultura, lugares dominantemente ocupados
pelos homens, assim uma “estrutura conceitual opressora”, como define
Warren (2002), de viés machista justifica a subordinação das mulheres pelos
homens. Na esteira da lógica da dominação, a natureza e os viventes não
humanos ocupam um lugar de inferioridade tal qual aquele destinado às
mulheres.

Ao trazer para o debate não só o aspecto falocêntrico da noção metafísica


da subjetividade senão que também a tendência antropocêntrica e carnívora
dessas tradições, ambos os filósofos capturam a estrutura profunda do
“esquema dominante de subjetividade” na metafísica ocidental. No entanto
ao posicionar-se na configuração Neo-Heidggeriana da busca por esquemas
dominantes e dos limites definitivos da metafísica, Derrida faz com que sua
análise permaneça no fundo, intra-filosófica e intra-teorérica, sem criar
alianças mais profundas entre as práticas críticas que vêm tomando forma e
que ampliam o debate sobre as conexões entre os variados tipos de
submissão e sujeição.

As questões feministas, por exemplo, não estão relacionadas (ou estão


muito superficialmente) em sua obra e parece ser essencial que as teorias
animalistas, feministas e ativistas de um modo geral debatam sobre tais
semelhanças e singularidades mais apuradamente, de forma interseccional.

A força transformadora sobre o formalmente estabelecido deve vir através


da reflexão sobre as conexões entre as diferentes formas de assujeitamento
a que estão expostos os grupos vulneráveis e em formas de desconstruir o
pensamento machista, predatório e ecocida sob o qual sobrevivemos.

Reside aí, na capacidade de atuar diretamente na realidade, a força


transformadora e desconstrutora do pensamento dos filósofos em questão e
que pode ser ainda ampliada com a contribuição de algumas das mais

18
proeminentes pensadoras ecofeministas da atualidade trazendo para o
escopo da pesquisa, posições teóricas e políticas que possuem em comum,
uma tentativa de repensar as formas de vida/ convivência que visem superar
as dicotomias hierárquicas impostas pelo sistema vigente da subjetividade
ocidental e que está na raiz das estruturas de dominação, submissão e
exclusão que caracterizam nossa história.

Enquanto Derrida concedia sua famosa entrevista, “Il faut bien manger” (É
preciso Comer Bem), a primeira edição da obra “A Política Sexual da Carne”,
da escritora-ativista-feminista-vegana Carol Adams, era publicada. Nesse
livro icônico e influenciador de gerações de feministas, é possível notar que
a autora trata do paradigma carnofalogocêntrico sem, no entanto, ter tido
contato com o referido termo. Adams teve a mesma percepção essencial
que Derrida ao constatar que virilidade e consumo de carne estavam
inextricavelmente conectados, e que essa conexão não era um fato natural,
mas histórica e culturalmente construído com o propósito de reforçar a
política patriarcal que dita “o que” ou “quem” devemos comer.

“A masculinidade é construída em nossa cultura pelo acesso ao consumo de


carne e pelo controle de outros corpos”. (Adams, 2012. Pg 26)

Derrida expõe como o carnivorismo está no coração da noção clássica de


subjetividade, especialmente da subjetividade masculina, enquanto Carol
Adams faz uma análise feminista do papel do macho, que necessita de uma
crítica do carnivorismo. A autora sugere intuitivamente que o
carnofalogocentrismo seja a premissa fundacional da Política Sexual da
Carne enquanto constituindo o sujeito carnofalocêntrico. Apesar de possuir
diversos outros fatores a serem levados em consideração, a Política Sexual
da Carne contém em comum com o conceito derridiano a associação de
virilidade e consumo de carne, o funcionamento da estrutura do referente
ausente (termo criado por Adams e que será minuciosamente tratado no
presente trabalho) e a sobreposição de mulheres e animais em uma cultura
patriarcal.

Aqui ainda é observado um outro ponto de contato entre as teses de Carol


Adams e as ideias do filósofo, que reside no conceito de “face do outro,”
19
presente na obra The Animal that Therefore I’m (O Animal que Logo Sou).
Tal conceito caracterizaria-se pelo encontro com a vulnerabilidade essencial
do outro, com o concreto singular, insubstituível Outro, ao tomarmos
consciência da evidência oculta do próprio eu egoístico, da irrefletida
existência que isto enseja. Derrida pode ser lido em seu trabalho sobre a
questão animal como um ampliador e crítico da lógica humanista tradicional,
não apenas no que diz respeito às relações inter-humanas, senão que
expandindo-a à crítica dos dogmas antro e andropocêntricos, fazendo-nos
refletir sobre a precarização das vidas e mortes a partir da imposição dos
usos e sofrimentos injustificáveis. Todas essas questões esquecidas na
filosofia e metafísica tradicional sobre as noções de animal e animalidade
ficam evidentes nas formas em que a individualidade animal é reduzida ao
referente ausente nos discursos filosóficos.

Desconstruir a dicotomia homem-animal é, então, um desafio inevitável para


o pensamento contemporâneo,” uma vez que esse binômio consolida uma
política (e ontologia) racista, falocêntrica, cisheterossexual, colonial e
especista que perpetua o trabalho de matar os outros não codificados como
"humanos.” (González, 2016

20
Capítulo 1 – A Lógica da Dominação

1.1 - Introdução

1.2 - Em busca do “outro” nas filosofias patriarcais

Própria do ser humano, a linguagem já era especista antes de ser sexista.


Tem como função principal refletir a vontade e os pontos de vista do
humano, ou seja, é a linguagem do opressor. Quando utiliza-se da fala para
por exemplo protestar diante de um tratamento injusto e desigual,a mulher
costuma utilizar frases como: “eu quero ser tratado como um ser humano,.
exijo respeito. Não sou um animal”. Como o discurso sexista, o discurso
especista abriga exploração e abuso, já que a opressão não requer a
consciência ou cooperação de suas vítimas (COATS, 1989).

“Em decorrência das comparações entre mulheres e animais não-humanos


geralmente conterem cunho sexista, muitas mulheres desejam se
distanciarem da figura animal. Contudo, a forma de quebrar o paradigma é
justamente o contrário: quanto mais tratamos animais não humanos de
forma respeitosa e caridosa, mais nos distanciamos das metáforas
especistas e sexistas criadas pela linguagem patriarcal, e assim as mesmas
perdem sua força” (Baqueiro, Lauren 2018).

Historicamente os homens dominarama linguagem. Na política, nas


instituições e na construção do pensamento de maneira geral, sempre
exerceram muito mais influência do que as mulheres na formação do
discurso público. Essa influência desproporcional permitiu que os mesmos
formassem o conceito de linguagem específico e ao mesmo tempo com
pretensão universal;

20
ou seja, aceitável e desejável. O patriarcado não teria linguisticamente se
apropriado da humanidade, no sentido de “homem” como sinônimo de “ser
humano”, se isso não representasse superioridade e privilégio para eles. Ou
seja, a figura da humanidade é formada por homens (FRYE, 1975).

Neste sentido, o homem estaria para a humanidade e a mulher para a


animalidade.

Além desta relação íntima construída linguisticamente entre homem e


humanidade, foi sendo construída em boa parte das sociedades ocidentais
um vínculo sacrificial, um tipo de morte não criminal de alguns tipos de vida
que estão relacionadas com a autoridade masculina. Essa autoridade, que é
tida como soberana, detêm o lugar daqueles que são dotados de maior
capacidade de racionalidade, autocontrole e virilidade: a figura do soberano,
o ipse, o proprietário e senhor, aquele que pode "devorar" o outro.. Há neste
sentido o exercício de uma "masculinidade carnívora", como Derrida o
chama, na forma como a ética e a política foram constituídas (especialmente
desde os tempos modernos) em torno da figura do soberano”. (Cranoglini,
2017)

Há, portanto, não somente uma união entre homem e humanidade, mas se
construiu e consolidou uma autorização de submeter o “outro”, aquele que é
linguisticamente figurado como não-humano, a um tipo de submissão
metafísica. Agora não somente a humanidade seria a única dotada de logos,
mas a masculinidade resultante da união necessária entre homem e
humanidade seria carnívora.

Nesta direção, pensar o elogio ao logos na forma como se construiu

histórico-filosificamente a relação entre homem-humanidade torna-se

fundamental. O Logocentrismo caracteriza – se por atribuir valor superior


àquilo que é concebido como sendo da ordem do intelecto, da razão, do
equilíbrio, do controle e das demais características que histórica e

22
culturalmente fazem parte do que convencionou-se atribuir ao homem no
seu sentido de indivíduo do gênero masculino.

Durante muito tempo a ética parece não querer despertar, não somente para
o fato de que existem problemas morais fora da ordem do que é apenas
humano, mas para a base androcêntrica na formulação das éticas
antropocêntricas; ou seja, para o aspecto sexista que estabelece uma
hierarquia de preocupações morais e tratamentos ético-políticos. Por isso,
grande parte das teorias éticas que se debruçam quase que exclusivamente
sobre a questão das relações entre os seres humanos, acaba igualmente
por se concentrar e privilegiar, obviamente, questões relativas aos indivíduos
do gênero masculino e seus semelhantes, embora pretendam-se universais.

A maior parte do nosso sistema ético, mesmo aqueles que levam em conta a

questão do outro, que estão preocupados com a alteridade, como é o caso das

éticas humanistas não dão conta do outro vivente, que habita fora do seu

escopo moral, o vivente não humano. O homem é considerado o único "quem",

subjugando a todos os outros seres à categoria do "o quê", como uma coisa,

como um instrumento a seu inteiro dispor.

A linguagem mais uma vez, parece separar os dominadores dos dominados.

Uma primeira função da linguagem, a qual estamos condicionados, baseia-se

em operar no sentido de favorecer o status quo dos agentes políticos,

econômicos e sociais que pretendem manter a dominação sobre as minorias e

grupos politicamente desfavorecidos através de um discurso hierarquizante que

favorece os interesses dos que ocupam o poder e mantém a estrutura

opressora da qual se utilizam e que é naturalizada e transmitida como costume,

cultura e tradição.

23
Dentro da cultura e subjetividade ocidental, o sujeito racional, macho, branco,

cisgênero, heterossexual e dono da fala, pode dispor das outras vidas,

oprimindo, abusando, torturando e usurpando. As consequências

desses atos dificilmente se voltariam contra aquele que formula e delibera

sobre as regras e princípios da sociedade. Mulheres, população negra,

indígena e animais já experimentaram ou ainda experimentam – guardada as

devidas contextualizações históricas e políticas – o vácuo jurídico que

assaltava a autonomia e liberdade os categorizando como coisas e/ou

propriedade, sem importar-se com as consequências, uma vez que mesmo na

ordem jurídica os animais não são sujeitos de direito, são coisas, propriedades

dos humanos.

Diante de tal problematização, buscaremos avaliar em que medida o

conceito de “carnofalogocentrismo” nos oferece pistas para melhor

compreender a relação necessária que se estabeleceu na centralidade entre o

carno, falo e logos e, com isso, encontrar caminhos para desatar os nós e

construir novas filosofias., sem importar-se com as consequências, uma vez

que mesmo na ordem jurídica os animais não são sujeitos de direito, são

coisas, propriedades dos humanos.

Diante de tal problematização, buscaremos avaliar em que medida o

conceito de “carnofalogocentrismo” nos oferece pistas para melhor

compreender a relação necessária que se estabeleceu na centralidade entre


o carno, falo e logos e, com isso, encontrar caminhos para desatar os nós e

construir novas filosofias.

24
1.3. O conceito de carnofalogocentrismo

“Gostaria, sobretudo, de pôr à luz, segundo esta necessidade, a estrutura sacrificial


dos discursos aos quais estou me referindo. Não sei se “estrutura sacrificial” é a
expressão mais justa. Trata-se, em todo o caso, de reconhecer um lugar aberto, na
estrutura mesmo desses discursos que são também das “culturas”, para uma
matança não criminal: com ingestão, incorporação ou introjeção do cadáver.
Operação real, mas também simbólica quando o cadáver é “animal” (e a quem se
faz crer que nossas culturas são carnívoras porque as proteínas animais seriam
insubstituíveis?), operação simbólica quando o cadáver é “humano”. (Derrida, 1988;
pag.176)

Derrida, ao elaborar o conceito de Carnofalogocentrismo em seu livro-


diálogo “É Preciso Comer Bem”, analisa que, de acordo com a ética e a
moral predominantes na nossa cultura - que passa por Descartes, Kant até
chegar a Heidegger e Lévinas (autores com os quais dialoga com mais
frequência) a subjetividade seria uma espécie de “entrega ao outro na
abertura santa da ética, à origem da santidade mesma”, onde o sujeito tem
compromisso e responsabilidade com o outro antes de ser responsável por
si mesmo.

O mandamento “não matarás”, nesse sentido, se endereça ao outro e o


pressupõe, se destina àquilo que ele mesmo institui, “o outro como homem.”
Esse não matarás jamais foi estendido em nossa organização sociocultural,

que estabeleceu o “não matarás”, ao vivente em geral, ao animal não


humano assim como às mulheres e outros grupos minoritários,
desfavorecidos ética e politicamente. A empatia parece estender-se apenas
àqueles do mesmo grupo, a compaixão é seletiva e está circunscrita a uma
categoria metafísica e moral específicas, no caso a de humanidade, o que
25
na realidade corresponde àqueles aparelhados com um aparato ideal e
modelar, comprometido com uma ideia de bem, que se materializa a partir
de características, desempenhos e performances culturais, étnicas, sexuais
ou de classe, à luz de um ideal masculino.

Assim, de acordo com os preceitos da desconstrução, podemos


argumentarneste primeiro momento, que o carnofalocentrismo torna visíveis
as escalas hierárquicas e dicotômicas que organizam relacionamentos de
dominação e assujeitamento, já que a pluralidade do outro é ordenada a
partir de um pensamento binário e de uma identidade pré-estabelecida e tida
como modelo.

As diferenças são ordenadas em pares dicotômicos e opostos, ou seja, o


Mesmo e o Outro (masculino /mulher, homem / animal, cultura / natureza,
razão / emoção), que ratificam a superioridade de um pólo em detrimento do
outro. Os pares (díspares) são então alinhados da seguinte maneira: no lado
do objeto ou o "o que" estão os corpos feminilizados, racializados,
dissidentes, empobrecidos, o não-humano ou o animal em nós mesmos (o
corpo, emoções e inclinações irracionais), enquanto no lugar do dito
masculino, chamado por Val Plumwood de a "Perspectiva do Mestre" (1993)
ou, em ditos Derridianos, a posição do "quem", estão a cultura, a razão, o
espírito, o universal, as leis e o espaço público.

Entidades colocadas no local do "o quê" obviamente não podem adquirir a


posição de "assunto", enquanto o lugar do "quem" indica a figura masculina

do soberano ou do ipse (Derrida, 2010).

Na maioria das culturas, o sacrifício carnívoro foi apresentado como


essencial, de maneira geral, naturalizaram o assassinato daqueles corpos
dessemelhantes que depois de abatidos transformam-se no “ser-carne” para
o deleite dos únicos protegidos pela transcendência: “o ser-homem.”

Assassinato, na verdade, tornou-se verbete dirigido única e exclusivamente


para qualificar as vidas roubadas de semelhantes. Para os dessemelhantes,
segundo este ordenamento carnofalogocêntrico, não há dignididade
suficiente para a morte ser compreendida enquanto um assassinato. Seria
26
esse um dos tantos exemplos de antropocentrismosinfundado, sobre o qual
fala Derrida. (2005)

Em entrevista conduzida por Jean-Luc Nancy, intitulada "É Preciso Comer


Bem ou o Cálculo do Sujeito" (2005), Derrida se distancia de certas
concepções do antropocentrismo infundado, ainda presente mesmo nas
filosofias mais críticas do humanismo, enfatizando que o sacrifício carnívoro
é a essência para a manutenção do esquema carnofalocêntrico. O termo
carnocentrismo, presente em muitas de suas obras, refere-se à relação entre
"o sujeito" - o lugar do "quem" - e o sacrifício, entendido este como "um lugar
deixado livre na estrutura mesma daqueles discursos, que também são das
"culturas", por um matar [mise à mort] não-criminal "(Derrida, 2005, p.164),
coma ingestão, incorporação ou introjeção do cadáver, operação que pode
ser real ou simbólica.

A noção aponta para a produção do sujeito humano a partir deste ser capaz
de sacrificar animais ao mesmo tempo que faz referência à domesticação de
tudo o que é relacionado à animalidade e também ao feminino. Sendo
assim, para nos constituirmos como sujeitos é necessário subjugar a vida,
dominar nosso corpo e nossas paixões em busca do bem maior, do
autocontrole e da verdade.

Derrida aponta para a necessidade da densconstrução do paradigma


fonocêntrico, que designa o privilégio da fala sobre a escrita em que
assenta, segundo o autor, toda a tradição metafísica que domina o
pensamento ocidental. Essencial a esta tradição é a concepção de
um logos (narrativa, discurso; mas também: razão, racionalidade) presente a
si mesmo e à consciência e independente de qualquer manifestação material
ou “veículo” significante (a esta concepção deu Derrida o nome
de logocentrismo – este termo e fonocentrismo são muitas vezes,
nomeadamente pelo próprio autor, utilizados indiferenciadamente). Assim, a
critica ao atual paradigma excludente e opressor é a crítica daquilo que se
diz fora desse universo racional e autocentrado e perpassa o privilegio de ter
sempre tido a palavra (“logos”), a rígida disciplina da construção do
pensamento, a inflexível da vontade e a necessidade da chancela e

27
validação temporal dada por uma autoridade externa, normalmente um
varão. Esse esquema da metafísica dominante, da presença, faz com que as
verdades do logocentrismo sejam tidas como apodicticas. “O discurso oral
de uma autoridade também tem sido entendido como uma fonte fidedigna de
construção do sentido o que faz com essa mesma tradição ocidental seja
dominada por um fonocentrismo insustentável” (Ceia, Carlos; 2009). Contra
a falácia do logocentrismo e do fonocentrismo, Derrida defende a existência
da escritura (écriture), que não está sujeita à autoridade de quem escreve.

Assim, sugere Derrida, que o discurso machista e patriarcal desvaloriza a


mulher frente ao homem, prioriza a fala frente à escrita e desta forma
naturaliza a "estrutura sacrificial" (pelo qual o animal não humano e também
as mulheres, negros, indígenas, lgtbs... ) estão à mercê do sujeito soberano
que domina não só a fala, mas os corpos dissonantes.

Mesmo naqueles que abalam e perturbam o humanismo tradicional, como é


o caso de Heidegger e Lévinas6, autores com os quais Derrida dialoga com
frequência, subjaz uma recusa em reconhecer o outro fora do escopo do
sujeito humano ou do Dasein7.

Eles não “sacrificam o sacrifício” uma vez que o sujeito para ambos autores
continuam sendo “homens em um mundo onde o sacrifício é possível e onde
não é proibido atentar contra a vida de uma maneira geral, exceto à vida do
homem, do outro próximo, do outro como Dasein”. (Derrida, 2010)

Em vista do panorama supramencionado, a filosofia derridiana oferece


elementos para visualizar outro modo de conexão com o animal vivo, que
não o considera como uma vida disponível para ser explorada, dominada e
abatida.

Ou seja, “a desconstrução tem implicações claras não só para desmantelar


as relações de poder/conhecimento entre humanos e animais, mas também

6
Não será tratado aqui o pensamento destes autores em profundidade, senão que em referência ao
dialógo que Derrida estabeleceu com suas ideias.
7
O Filósofo Martin Heidegger, re-significou a palavra Dasein para a expressão ser-no-mundo. “Ser” e
não “Estar”; no sentido de existência e co-existência, e não de permanência ou passagem
28
para pensar em outras formas de ser-com os vivos, sempre localizadas na
abertura às singularidades humanas e animais”. (Gonzalez, Anahi 2017)

Adams em sua obra que serve de referência para o presente trabalho,


observa que a linguagem tem a dupla finalidade de favorecer tanto a
diferenciação do que é feminino e masculino tanto quanto do que é humano
e animal, como se nós mesmos não fôssemos igualmente animais. Ao
insultarmos outros humanos usando a palavra “animal” ou “besta”
estabelecemos a fronteira com nossa própria animalidade. (Adams,2012)

Da mesma forma aponta para o fato de que “homem” designe o termo


genérico que abarca a humanidade, usado ainda hoje na maioria dos textos,
e cujo significado específico precisamos deduzir do contexto, ao mesmo
tempo em que serve para designar o sujeito humano do sexo masculino.

Assim que coisificando os animais e generificando a humaninade com o


masculino, a sociedade patriarcal apaga a presença feminina e a presença
viva dos animais não humanos.

Dessa forma, a autora critica e pede que não cedamos aos vícios
linguísticos que nos são incutidos desde a infância, através da família e até
mesmo naturalizados no ambiente escolar sem nos darmos conta, como é o
caso das expressões “bode expiatório”, “cobaia”, que são metáforas
derivadas de sacrifícios e experiências em animais respectivamente, bem
como naturalizar a crueldade e canibalização como nas expressões : “ mais
fácil que chutar cachorro morto”, “ melhor um pássaro na mão”, “não querer
dividir o osso.”

A dominação e opressão resta aparente na hipocrisia dos signos da


linguagem patriarcal. Assim como as feministas proclamam que estupro é
violência e não sexo, os que defendem a inclusão dos animais no escopo
moral querem dar nome à violência do consumo da carne. Os dois grupos
contestam as palavras comumente usadas. A redundância do termo “estupro
violento” destaca o papel da linguagem na dissimulação da violência, neste
caso com um adjetivo desviando a atenção da violência inerente ao
significado do substantivo: “O adjetivo confere certa benignidade à palavra

29
“estupro”. Do mesmo modo, o termo “abate humanitário” confere uma certa
benignidade a palavra “abate”. O uso de termos para rotular atividades como o
oposto do que elas são promove um desfocamento que relativiza esses atos
de violência. Da mesma forma que todos os estupros são violentos, todo
abate de um animal para a produção de carne é desumano, independente da
forma como é chamado. (BEARD, 1972, p. 272)

Nossa linguagem está tão fortemente estruturada sobre um modo de operar


que naturalizou a dominação e a opressão sobre os animais não humanos e
outros grupos desfavorecidos que a simples contestação da sua natureza
nos soa estranha e desnecessária. A exploração, a tortura e a matança nas
relações entre a humanidade e o restante dos viventes parece ainda não
constituir um problema ético-político relevante para a maioria das pessoas e
nossa linguagem vai na direção de manter tal situação de conveniência.

É possível suspeitar que Adams tenha usado a comparação de como


consumo de carne é para os animais em relação ao que o racismo dos
brancos é para os negros; o que o antissemitismo é para o povo judeu; o
que a homofobia é para gays e lésbicas, e a misoginia é para as mulheres
de modo um tanto temerário e sem nenhuma experiência pessoal prática em
tais situações, mas não podemos negar que ‘todos são oprimidos por uma
cultura que não quer assimilá-los plenamente em seus termos e com seus
direitos” (ADAMS, 2012). A cultura dominante tende a silenciar aquilo que
foge a sua regra, em uma verdadeira teoria do domínio-silenciamento. Os
grupos silenciados precisam mediar suas crenças com as formas
permissíveis das estruturas dominantes. Com o silenciamento de suas
vozes, as mulheres e aqueles que defendem os animais não-humanos são
frustrados em suas tentativas de desmascarar a violência (SHOWALTER,
1985).

30
Capitulo 2 – O Carnismo

2.1 -

O que nos leva a diferenciar moralmente aqueles que devem viver e aqueles
que devem ser sacrificados? O Carnismo é um sistema de crenças
escamoteado, invisibilizado pela ideologia que opera e transpassa nosso
sistema social e que justifica a matança de certas espécies de animais para
consumo de seu corpo, então transformado em carne. Podemos descrevê-lo
como um paradigma invisível, violento, uma hegemonia da omissão que é
absolutamente inquestionável.

O conceito de carnismo que aqui será utilizado foi o elaborado pela


psicóloga Melanie Joy e disseminado no seu livro Por que Amamos
Cachorros, Comemos Porcos e Vestimos Vacas? Em seu escrito, a
pensadora deixa claro que seu objetivo principal é o de analisar o assim
chamado paradoxo da carne, segundo o qual observa no comportamento
generalizado das pessoas em relação aos animais o seguinte contraditório:
elas demonstram compaixão para com algumas espécies enquanto se
alimentam de outras.

Ao mesmo tempo em que se opõem aos maus-tratos, não conseguem fazer


a conexão que o bife em seu prato é também um animal e que muito
provavelmente sofreu dos mesmos maus tratos aos quais se opõem. A
autora afirma ainda que o desconforto revelado por este conflito é anulado
pelos "Quatro Ns", a percepção que comer carne é "natural, necessária,
normal, e boa (nice).

“Embora seja difícil, senão impossível, questionar uma ideologia que nem
sabemos que existe, isso se torna ainda mais difícil quando a ideologia
trabalha ativamente para se manter oculta. É esse o caso de ideologias
como o carnismo.” (Joy, Melanie; 2014, pag 35)

31
Neste sistema de crenças classificamos ‘apenas alguns animais como
comida’, dessa forma podemos dispor dos seus corpos da maneira que
acharmos conveniente, justificando tratá-los sob qualquer tipo de crueldade
física, psicológica e emocional e que de qualquer forma não aplicamos
àqueles que não consideramos comida. Aos nossos pets oferecemos tanto
afeto e cuidado quanto a humanos queridos. No cerne desta classificação
sobre quem será sacrificado subjaz o aspecto socio-cultural. Por exemplo,
no Ocidente a vaca e o porco, junto com as aves e peixes são os animais
mais assassinados para serem consumidos como comida, enquanto que
o cão e o gato não o são. Já na China, e na Coréia do Sul, bem como na
Suíça e no Canadá, os cães podem ser mortos para consumo. Na Índia, as
vacas são sagradas, no entanto a maioria da população é lacto -
vegetariana8.

Em diferentes contextos e instituições encontramos a naturalização, a


banalização, a manipulação e distorção de informações bem como um
incentivo ao uso dos corpos do animal, descaracterizado e nominado
“carne”. A disseminação da ideia de que precisamos do consumo de
proteína de origem animal é apoiada na maioria dos segmentos sociais e
institucionais. Médicos, nutricionistas e a maioria dos profissionais de saúde
insistem divulgam e reproduzem esse conceito nutricional antiquado, que
muito interessa à manutenção da máquina capitalista e que segue
patrocinando congressos e feiras e manipulando pesquisas em favor dos
seus interesses.

Derrida, na obra O Animal que Logo estou Se(gui)ndo aponta que por cerca
de dois séculos as relações entre os chamados humanos e animais sofreram
uma transformação que acelera a exploração a uma taxa incalculável.

Os complexos desenvolvimentos do conhecimento zoológico, etológico e


genético, juntamente com certas técnicas científicas de intervenção, têm
intensificado a exploração e a dominação dos animais numa escala
demográfica sem precedentes com o passado. A inseminação artificial em
8
Os indivíduos seguidores deste tipo de dieta não se alimentam da carne (corpo) dos animais, no
entanto consomem leite e seus derivados. Do ponto de vista ético e ecológico, ela não difere muito do
carnivorismo uma vez que os impactos, tanto a nível ambiental quanto no que tange ao sofrimento dos
seres que são privados de liberdade e explorados ferozmente até a morte, é praticamente o mesmo.
32
grande escala, a reprodução seletiva, a clonagem, as cruzas genéticas e a
manipulação hormonal são alguns dos métodos na administração biopolítica
de populações de animais na indústria alimentícia. É "produção da vida"
(que é, ao mesmo tempo, "produção da morte") apenas para a
disponibilidade de bem-estar humano, isto é, animais reprodutores em
confinamento que nascem apenas para servir ao homem.” A este respeito,
tendo em conta os dispositivos de poder que foram desenvolvidos em
relação a outros animais, tais como a experimentação dentro da ciência e da
medicina, o uso da vida não-humana para a produção de alimentos para
consumo humano, é possível analisar a grande escala que toda a indústria
global se dedica à administração da vida e da morte dos animais”.
(Gonzalez, Anahi; 2017).

Todos os tipos de violência aos quais são submetidos os corpos dos animais
não humanos, seja ela industrial, mecânica, química, hormonal ou genética
implica modos de gestão e subjugação que aumentam o controle sobre sua
vida e morte, manipulados, imobilizados, subjugados e oprimidos.

Nicole Shukin (2009) no livro “Animal Capital” lança luz sobre a produção,
administração e circulação da vida dos animais na sociedade capitalista,
afirmando que a vida dos animais não humanos na indústria alimentar é
gerida de forma a ser o mais benéfico possível para os seres humanos, ou
seja, para produzir a maior quantidade de carne, leite e ovos, da forma mais
rápida e barata possível. Em grandes fazendas industriais ou laboratórios,
podemos ver a implantação do controle biopolítico contemporâneo a partir
de tecnologias altamente "desenvolvidas".

A capitalização dos corpos animais implica que suas vidas são


determinadas estritamente dentro das coordenadas da dominação: os
cálculos feitos em torno da ingestão de nutrientes, os níveis de iluminação,
etc, são direcionados para produzir "vida" como material a ser consumido,
explorado e abatido. Identificados com os segmentos da população humana
que são vistos como ameaças biopolíticas, a vida de animais não humanos
só é considerada em termos de como eles podem beneficiar ou pôr em
perigo certos grupos de seres humanos. Sua morte é prontamente

33
providenciada ao menor risco para a saúde humana como na crise da "vaca
louca" ou da gripe suína (Wadiwel, 2002) onde inúmeros animais foram
mortos sem nenhum tipo de busca de soluções que pudessem salvar suas
vidas. Em outras palavras, os corpos de animais são considerados puro
objeto de exploração, instrumental e de sacrifício; vidas produzidas como
material disponível à sujeição, opressão e subjugação dentro da ordem
socioeconômica estabelecida.

Os tipos de vida historicamente feminilizadas e/ou animalizadas são os cor-


pos apropriados pela engrenagem capitalista das sociedades homogeneiza
doras e de controle. Os corpos femininos, não humanos, pretos, de crianças
e/ou de baixa renda são os mais vulneráveis. São estes os tipos de vida his
toricamente feminilizadas e/ou animalizadas, são os corpos apropriados pela
engrenagem capitalista das sociedades homogeneizadoras, disciplinar e de

controle. Com efeito, o apoio dessa ordem de poder é inseparável da


exploração dessas vidas que são considerados objetos disponíveis ou
modificáveis, o que significou o aprisionamento de “não-humanos vivendo
em locais de confinamento como fazendas industriais, zoológicos, circos,
laboratórios, entre outros, enquanto as mulheres foram confinadas à esfera
disciplinar do lar”.(Gonzalez, Anahi;2017)

Uma das ecofeministas que mais ganhou destaque ao falar sobre os


impactos do carnismo na sociedade ocidental foi Carol Adams (1990). Em
sua obra ‘A Política Sexual da Carne’, a autora propõe uma abordagem
interdisciplinar para analisar o modo como o consumo de carne implica uma
política sexual e racial: as sociedades dos países ocidentais, particularmente
a partir da segunda metade do século 20, consideraram o consumo de carne
como um indicador da masculinidade dominante, da virilidade e da
superioridade intelectual, enquanto os vegetais aparecem como alimento de
mulheres e sujeitos racializados, e ainda no caso deste último, seu consumo
está associado à falta de "desenvolvimento" intelectual de povos não
ocidentais.

A autora lança luz sobre outra questão importantíssima, esquecida ou não


abordada por muitas linhas de lutas feministas, trata-se do antropocentrismo
34
e mais especificamente do androcentrismo; Adams argumenta que o
patriarcado "é um sistema de gênero que é implícito nas relações homem /
animal” (Adams, 2016, p. 46)

A construção e delimitação do gênero importa em instruções sobre quais


alimentos são relevantes e apropriados para cada gênero. A carne dá a
força necessária para o ser ou vir a ser macho. A virilidade é construída na
cultura ocidental através da construção de subjetividades carnívoras
másculas, nutridas de sangue e entranhas de animais não humanos,
literalmente e do sacrifício metafórico (muitas vezes concreto) dos corpos
das mulheres e dos grupos politicamente desfavorecidos.

É por isso que, como ressaltei anteriormente a respeito da desconstrução, é


possível apontar a presença de uma estrutura sacrificial na constituição da
estrutura dominante da subjetividade, que não é unicamente humano e
racional, mas sobretudo heterossexual, masculino e carnívoro.

Esta conexão histórica entre sexismo e especismo é representada a partir de


um círculo de objetificação, desmembramento e consumo dos corpos e que
liga o abate, à violência animal e sexual em nossa cultura. Adams afirma que
isso acontece por conta do que chama de a estrutura do "referente ausente"
que indica que os corpos de animais e mulheres são tratados como objetos
ou propriedades, em vez de serem consideradas singularidades vivas em
interrelação com o mundo que eles habitam.

O animal submetido e sacrificado desaparece e se transforma na alusão


neutralizada da “carne" ou "a “comida", enquanto as mulheres aparecem
como objetos naturalmente disponíveis, moldáveis e que tem por objetivo
serem adereços ou desfrutados pelos machos consumidores.

Todo esse processo de transformar vidas relevantes e únicas em referentes


ausentes, dissociadas de sentido e significados próprios, vistas como coisas
consumíveis normalmente é sequer notada por nós uma vez que se baseia
na invisibilidade desses corpos através da cultura dominante que os
transforma em objetos de consumo, disponíveis por toda parte.

35
Por trás do Carno está o referente ausente, os animais são feitos ausentes
para a carne existir. A negação da individualidade de cada ser abatido, tem a
função de permitir o abandono moral desse ser.

Neste contexto o sacrifício (termo implícito no carno) contido no assassinato


de animais para consumo de suas partes é parte do projeto de construção
de uma subjetividade carnofalocêntrica.

Mulheres e animais são tratados como referentes ausentes quando em uma


sociedade patriarcal de comedores de carne, os animais são feminilizados e
sexualizados e as mulheres são animalizadas. (considerar anexo com
imagens ilustrativas)

Usualmente as mulheres são visualmente e simbolicamente consumidas e


os animais o são literalmente. Mulheres e animais são referentes ausentes
sobrepostos, uma vez que através da linguagem entre dominado e
dominador, este consome e nega a violência que transforma a vida em
morte e eleva essa experiência em metáfora que é aplicada aos seres
vulneráveis ou de qualquer forma privados de direitos.

Essa estrutura de sobreposição do referente ausente também está na base


das construções culturais onde a objetificação feminina se torna naturalizada
e consumível, como é o caso dos restaurantes que servem pedaços de
animais nomeados como partes do corpo feminino numa tentativa de atingir
o “público alvo”, notadamente homens heterossexuais, brancos e com boas
condições financeiras.

Os animais têm sido sexualizados e feminilizados há muitos séculos, em


escalas industriais há pelo menos 50 anos, solidificando e aperfeiçoando
esta forma brutal de exposição e exploração, que vem se apresentando cada
vez mais abrangente e de forma cada vez mais explícita. Aqui, cabe
destacar o papel da publicidade e propaganda como canais de difusão de
uma percepcao carnista (ADAMS, JOY, POTTS)

Através do processo de objetificação, vê -se uma sobreposição de imagens


culturais de violência sexual contra as mulheres, a fragmentação e
desmembramento da natureza e do corpo feminino na cultura ocidental:
36
“imagens de consumo como essas oferecem à nossa cultura um meio de falar aber
tamente sobre a objetualização das mulheres, e de brincar com o fato sem precisar
reconhecer que é isso que se está fazendo. É um modo pelo qual os homens po
dem congregar publicamente tendo a misoginia como aglutinador, conscientes ou
não disso.” (Adams, Carol; 2012; pag27)

Além de isentar de responsabilidade, esse tipo de comportamento


degradante toma a aparência de uma brincadeira divertida e inofensiva.

Em Derrida podemos encontrar referências similares às desenvolvidas por


Adams quando o pensador aponta para a existência da negação do
sacrifício dos animais, notando que suas mortes nunca são pensadas como
assassinatos, como uma violência desnecessária, mas que são
invisibilizados sob o manto da necessidade humana. É a supremacia do
“Quem” como sujeito sobre o “que” agora ainda mais inexistente já que
transformado em referente ausente.

Carol Adams nos faz ver que o consumo de carne não é apenas um índice
do poder masculino mas também do racismo. É por isso que cunhou o termo
"política racial da carne" (Adams, Carol; 2016, pp. 102-105).

De acordo com a autora nas sociedades ocidentais, a identificação humana


masculina é obtida, em parte, pela escolha dos alimentos, criando e recri
ando uma experiência de virilidade em vários lugares de identificação mas
culina, como certos restaurantes, espaços para reuniões, clubes de strip
pers, caça, etc.
Sobre essa dissociação entre o produto consumido e a violência de suas
vidas e mortes, Matthew Calarco indica “que a "mera" carne que emerge do
matadouro nunca é apenas carne para consumo humano. Com efeito, está
ligado a uma singularidade de vida que poderia ter se "desenvolvido ao
longo de diferentes linhas comuns onde não estava restrito a viver em uma
fazenda industrial e depois ser sacrificado. " (Calarco, 2016, p. 44).

Cabe aqui uma observação pertinente de Anahi González ao aproximar o


pensamento de Adams e Preciado, quando a autora afirma que “o gênero

37
está implícito nas relações humanas /animais, talvez porque o patriarcado
capitalista branco tem como eixo a "Perspectiva do Mestre" do sujeito
masculino (cis-heterossexual) que se destaca como o "dono" de corpos
historicamente feminilizados e /ou animalizados. A este respeito, Paul B.
Preciado indicou que o Renascimento europeu, o Iluminismo e a Revolução
Industrial "descansaram sobre a redução dos corpos não brancos e das
mulheres para o estatuto de animais e de todos eles (escravos, mulheres,
animais) ao status de máquina (re)produtiva “ (Preciado2014). Desta
concepção se fortalece a ideia do animal como elemento fundamental para o
funcionamento do capital reprodutor do sistema de produção e controle
biopolítico (Shukin, 2009)

Portanto, “se o dispositivo de controle patriarcal reduz os sujeitos


construídos como "mulheres" para funções domésticas e reprodutivas, os
animais, por sua vez, são reproduzidos, confinados, industrializados e
comercializados para a satisfação de supostas necessidades "humanas",
que envolvem o controle sobre o sexo e a reprodução dos animais não
humanos fêmeas.” (Gonzalez, Anahi; 2017)

Assim, Carol Adams salienta que estes últimos constituem os animais mais
oprimidos, pois sua capacidade reprodutiva é explorada para a produção de
laticínios e ovos, entre outros produtos onde são submetidas à condições
excruciantes, além de serem assassinadas para o consumo humano depois
que sua produção decai ou cessa.

A "proteína feminizada" (Adams, 2017) implica a exploração dos ciclos


reprodutivos das chamadas "fêmeas", consequentemente, os corpos
animalizados, feminilizados (e também racializados), produzidos em
oposição ao humano branco-masculino, são apenas vidas adequadas e
descartáveis no circuito de produção "capitalista branco patriarcal".

Nesse sentido, a noção de carno-falocentrismo torna visíveis as políticas

sacrificiais, que fazem a vida morrer em um modus operandi tipicamente


masculino, heterossexual, logocêntrico e especista.

38
Essa visibilidade desafia a aparência antropocêntrica e androcêntrica da
biopolítica

dominante e os cortes e rearticulações entre as vidas que "deveriam viver" e


as que, pelo contrário, são jogadas para a morte. Essa lógica mortífera tem
por referência “o esquema de subjetividade dominante” tematizada por
Derrida - a de um homem humano, heterossexual, racional, adulto, branco e
proprietário-, que é o eixo da hierarquização imposta aos viventes em uma
gradação descendente do verdadeiramente humano para o não-
humano.”(Gonzalez, Anahi;2017).

Então, neste sentido, penso que se faz urgente o debate e a crítica ao


especismo e à sua engrenagem excepcionalista que culmina na
naturalização do sacrifício dos corpos chamados “animais” ou identificados
com estes em sua “animalidade”.

A desconstrução desse sujeito/homem/hétero/branco passa pela denúncia


desse humanismo especista e logofalocêntrico que resultou em todo tipo de
violência exercida contra os viventes não-humanos bem como às mulheres e
demais minorias oprimidas, assim, que é essencial à qualquer pretensão de
erigir uma ética de resistência, voltada à logica da empatia e do cuidado
evidenciar “o caráter ficcional e histórico do Homem, operando desta forma
uma desconstrução de seus ideais normativos”. (Velasco, Angélica; 2017).

Para avançar na denúncia e desmantelamento dessa falácia reguladora sobre


o ser-homem, é necessária não apenas a busca pela igualdade de direitos,
que sempre levam em conta os direitos do homem, ou a luta pela ampliação
da comunidade moral de maneira que abranja os animais não humanos,
senão que investir no reconhecimento das diferenças, no reconhecimento de
uma alteridade radical.

1.2. Especismo

39
Desde que descobriu -se capaz de submeter e dominar as demais espécies,
a humanidade vive o delírio antropocêntrico de que é superior e possui o
direito divino de dispor de toda a vida e “recursos” sobre o planeta.

Durante séculos e milênios nada foi ou está sendo capaz de mover o homem
do seu pedestal de dominador e subjugador privilegiado do universo. Parece
que tudo foi criado para agradá-lo ou suprir suas necessidades e prazeres e
nesse sentido a diferença entre o homem e o animal é incansavelmente
reiterada:

“Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele domine os


peixes do mar as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e
todos os répteis que rastejam sobre a terra” (Gênesis 1: 29)

Mesmo estando explicito no mesmo capítulo e versículo que nos tempos do


Jardim do Éden este domínio não implicava o submetimento cruel ou a
morte dos animais para servirem de alimento, o que foi legado à posteridade
diz respeito à uma tradição despótica de opressão e livre utilização das vidas
alheias e/ou destituídas de humanidade. Interessante notar que foi somente
após a “queda do homem”, cuja responsabilidade é de uma mulher e de um
animal que foi claramente permitido matar animais.

A grande maioria dos pensadores, desde a antiguidade, como nos aponta


Sônia T. Felipe em Antropocentrismo,Sencientismo e Biocentrismo,
passando pelos medievais e tendo seu auge na modernidade com aquele
que seria o ícone do pensamento Iluminista, René Descartes (1637),
apregoavam a inferioridade dos animais frente ao homem.

Para melhor compreensão do modo como os animais passaram a ser


percebidos, a luz de um saber cientificista, destaca-se Descartes. O filosofo
foi responsável por disseminar a teoria de que os animais seriam como
autômatos que, apesar de capazes de comportamento complexo, seriam, no
entanto, completamente incapazes de raciocinar e mesmo de ter sensações.
Sua tese contribuiu para que a vida dos não humanos fosse ainda mais
banalizada e instrumentalizada. Seu pensamento frutificou e, nessa época,
foi difundida a prática da vivissecção. Esta prática, que consiste em abrir os

40
corpos dos animais para estudar sua anatomia, com a justificativa de que
com isso estariam também aprendendo sobre a anatomia e fisiologia
humana foi amplamente aceita e utilizada. Cabe ressaltar que tal prática,
amplamente incorporada pelos laboratórios da época, inclusive por
universidades renomadas, era realizada sem a utilização de anestésicos,
pois ainda não haviam sido inventados. É possível supor que, mesmo tais
inibidores de dor existissem na ocasião, pensadores e cientistas
descartariam a necessidade de uso, uma vez que estavam amparados e
convencidos da ideia de que os animais seriam desprovidos da sensação de
dor.

A dountrina cartesiana continuou pelos séculos posteriores, encontrando


seguidores entre filósofos como La Mettrie, Malebranche, Hobbes e mesmo
Rousseau.

“Para Descartes, embora o corpo humano também fosse um autômato, desempenhando


funções inconscientes como a da digestão e da circulação sanguínea, havia uma
diferença fundamental em relação ao animal, já que no seio da máquina humana há
uma mente, uma alma imortal, enquanto os animais seriam seres desprovidos de almas
ou mentes. Segundo ele, uma vez que o engenho humano fosse capaz de construir uma
máquina provida de órgãos e com o aspecto semelhante a um macaco ou “qualquer
outro animal sem razão”, seria bastante difícil distingui-la de um animal, embora
possamos distinguir facilmente um ser humano tanto de máquinas quanto de animais”.
(Horta, Reginaldo,2017)
.

Com a publicação de A Origem das Espécies (1859) Charles Darwin


mostrava ao mundo estupefato que a espécie humana era apenas mais uma
dentre as milhares de espécies de vertebrados diferenciando-se destas
exclusivamente por seu aparato evolutivo mais complexo.

Esta constatação, no entanto, não impediu que a espécie humana,


sobretudo os grupos mais privilegiados, continuassem a escalada de
domínio sobre os animais e o meio ambiente de modo geral. Domínio e
opressão que aumentam a degradação em escala nunca antes vista e
compromete inclusive a sobrevivência da própria humanidade. A
constatação de Darwin é facilmente comprovada pelas estatísticas que,
ainda hoje, operam de modo a avaliar os efeitos nocivos provocados pelas
acões antropogénicas sobre o meio ambiente. Organismos internacionais
41
que se ocupam de mapear e tratar tais impactos reforçam a tese de que o
domínio e a opressão ecocida têm trazido malefícios incalculáveis e alguns
muitos irreparáveis para a espécie humana e não-humana. (FAO, 2007,
2013, 2019)

As obras de Peter Singer se preocupam justamente com a acão humana


sobre o meio ambiente e, em destaque, na convivência com as demais
espécies que compartilham conosco o que o autor chama de pia
atmosférica. Para Singer, pia atmosférica seria um termo adequado para
pensarmos na ideia de que compartilhamos não somente um mesmo
espaço, mas os dejetos e restos daquilo que consumimos e descartamos. A
partir dessa análise e concepção, Singer sugere buscarmos por uma
perspectiva de justiça associada à noção de responsabilidade.

Na obra Libertação Animal (SINGER, 1975:) utiliza- se do princípio básico da


igual consideração de interesses para justificar que pode não existir nenhum
outro motivo além da manutenção do poder, bem como a preservação dos
privilégios do grupo explorador, para justificar o porquê de os animais de
outras espécies não sejam concernidos morais. De acordo com o filósofo
australiano, quando afastamos os viventes não humanos das nossas
preocupações éticas, sem levarmos em conta seus interesses em não
sofrer, em desfrutar a vida de acordo com as necessidades de sua própria
espécie e sobretudo de não serem mortos, estamos praticando o especismo.
Segundo esta visão, os interesses de um indivíduo têm menor importância
pelo fato de este pertencer a uma espécie diferente da nossa. O termo foi
originalmente criado por Richard Ryder, e grafava-se “especiecismo”, ao dar-
se conta da aproximação deste com outros tipos de preconceito e
discriminação tais como o racismo e o sexismo.

As práticas de tortura e destruição estão cada vez mais sofisticadas e geram


cada vez mais sofrimento e dano e, apesar disso, nossa espécie
“privilegiada” com seu complexo aparato cognitivo parece não se dar conta
da destruição (inclusive autodestruição) iminente a qual estamos
submetendo todos os tipos de viventes que compartilham conosco o planeta
Terra, em especial os mais vulneráveis sociais e políticos.

42
Estas bases ideológicas estão tão difundidas e foram tão inculcadas em
nossas subjetividades que raramente nos damos conta de sua arbitrariedade
e falta de justificativa.

Tanto o senso comum quanto a tradição filosófica excluem os animais da


esfera ética, pois julgam-nos sem racionalidade, sem espírito, sem as
qualidades mentais mais sofisticadas como a linguagem simbólica, a lógica e
a autoconsciência, enfim incapazes de produzir cultura, desconhecedores do
próprio “eu”.

Na atualidade, Derrida talvez tenha sido um dos filósofos que mais se


ocuparam do problema do tratamento dispensado aos animais no modo
contemporâneo de produção industrial intensiva.

O pensador aponta para o modo como, nos dos dois últimos séculos, as
formas tradicionais de tratamento do animal foram subvertidas por uma série
de saberes e técnicas cujo objetivo seria prover tanto a carne quanto “outras
finalidades a serviço de um certo estar e suposto bem-estar humano”,
Derrida adverte para esse evento de “proporções sem precedentes” que é o
“assujeitamento do animal”. (Horta,2017)

E é de interesse da indústria da carne, de cosméticos, materiais de limpeza,


dos laboratórios, dos circos, parques, zoológicos e dos tantos outros lugares
onde os confinamos, maltratamos e matamos que continuem a ocultar a

crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o desconhecimento


dessa violência que alguns poderiam comparar aos piores genocídios (DERRIDA,
2002, p. 52).

O vivente não humano, para Derrida, sempre foi tratado pela filosofia sob o
signo do Logocentrismo, sobretudo a partir de Descartes. O próprio conceito
moderno de direito, lembra-nos ele, assenta-se sobre o “momento cartesiano
do cogito, da subjetividade”, razão pela qual a condição do animal como
pura res, como “coisa”, contribuiu para excluí-lo, já de início, da esfera da
juridicidade, circunscrita ao domínio da persona. ( Horta, 2017).

Rememorando Bentham (ANO) que evocava a capacidade de sofrimento


como parâmetro para acolhimento moral, Derrida lastimava que os não

43
humanos tivessem sido jogados pela tradição logo-fonocêntrica no “rol das
coisas” e dizia do animal, que ele

“sofre, manifesta seu sofrimento. É impossível imaginar que um animal não sofra
quando submetido a uma experimentação de laboratório, ou mesmo um
adestramento de circo. Quando vemos passar um número incalculável de bezerros
criados à base de hormônios, entulhados num caminhão e enviados diretamente do
estábulo para o abatedouro, como imaginar que não sofram. Sabemos o que é o
sofrimento animal, sentimos a mesma coisa. Além disso, com o abate industrial, os
animais sofrem em muito maior número do que antigamente”. (DERRIDA, 2004, p.
90).

1.2.1 O encontro entre especismo e sexismo: uma análise ecofeminista

Trazendo a discussão para o contexto ecofeminista, é apropriado recordar


que o submetimento e a desvalorização dos animais estão conectados com
a animalização de outros grupos humanos. Aqueles que não possuem as
qualidades exigidas para estarem inseridos na esfera do grupo dominador
“são colocados do mesmo lado que os animais” (Sesma, Angelica: 2017).

As corelações entre animais e mulheres têm suas raízes na filosofia


humanista e recebeu amparo nas ciências modernas. A ênfase e a primazia
no humano (referindo-se ao gênero masculino heteroconcordante) está
estruturalmente ligada à cultura patriarcal, obsessivamente controladora e
dominadora tanto das mulheres quanto das outras espécies.

Assim, que podemos observar que os sistemas de opressão são


referenciados sobre as mesmas bases epistemológicas e ontológicas que se
sustentam na racionalidade e que fundam a ideologia ocidental dominante
privilegiando o conhecimento ilustrado, diria até acadêmico e formal; que
mantém no poder as mesmas velhas oligarquias, os antigos grupos
homogêneos compostos em sua maioria por homens brancos,
cisheterosexuais. Como membros, representantes e mantenedores das
classes historicamente opressoras, têm todo o interesse na manutenção das
forças de dominação e aniquilação que monopolizam há séculos. Do outro
lado, os enfraquecidos, aqueles que necessitam de guia e “proteção” destes
humanos superiores para que não sucumbam às forças destrutivas de suas
paixões, consideradas de menor relevância ou mesmo indesejáveis.

44
Como observa Angelica Sesmo (2017), referindo -se aos escritos de Simone
de Beauvoir em “O Segundo Sexo” o mesmo tipo de argumentos usados
para legitimar a situação de opressão em que se encontram as mulheres, os
negros e os judeus provêm das circunstâncias criadas pelos próprios
opressores. O processo que subjaz na justificação dessa inferioridade de
sexo, de raça e etnia respectivamente são os mesmos e residem na
afirmação de um “eterno feminino”, de uma “alma negra” ou de um suposto
“caráter judeu”. Estas características dariam plenos poderes ao dominador,
que inclusive estaria fazendo um “bem” ao cuidar, reprimir, submeter,
adaptar e oprimir estes grupos, conformando-os àquilo se que padronizou
chamar de normal, correto, bom e apreciável.

As mulheres historicamente são colocadas do lado da animalidade, o que nos


faz pensar na íntima relação entre sexismo e especismo na medida em que:

“Neste sentido, mulheres e animais não-humanos seriam apresentados


frequentemente pelas suas supostas características naturais determinantes que, ao
mesmo tempo que pretende descrevê-los, tem a intenção de justificar seu lugar
subalterno. Não por acaso as características ditas naturais compõem o discurso
dominante que imputa desejos e necessidades ao grupo dominado,
independentemente de manifestações contrárias que possam contradizer o discurso
dominante. Neste sentido, quando um fato contrário a uma teoria é incapaz de
desfazer o discurso sobre ele, estamos diante de uma ideologia: o sexismo de um
lado, e o especismo de outro”.
(Oliveira, Fabio, 2019; pag 4)

1.3. A Carne como Símbolo do Patriarcado

Na tentativa de estabelecer relações entre o abuso e a aniquilação


exercidos sobre os corpos femininos e o corpo de outras espécies, além de
outros grupos desfavorecidos, há que se pensar na forma como esta
aproximação se dá, na medida em que estes corpos e subjetividades são
submetidos involuntariamente ao sofrimento e à morte simplesmente por
estarem à margem, serem discordantes do padrão normativo imposto ou
45
ainda poderem ser utilizados para o consumo material ou simbólico dos que
exercem o poder. Quem controla suas vidas e mortes? A quem interessa a
disseminação ideológica do preconceito e da falta de empatia que resultam
em sofrimento e/ou morte?

Prosseguindo em nossa análise sobre a existência / denúncia de uma


relação aproximada entre sexismo e especismo, a autora Carol
Adams propõe verificarmos os simbolismos expressos na materialização da
carne, enquanto produto imediato do "referente ausente".

De acordo com Adams, pode-se afirmar que, em uma sociedade patriarcal


de comedores de carne, os animais passam por um processo
de feminilização / sexualização, enquanto as mulheres são desumanizadas
e, portanto, colocadas na condição de animalizadas. Uma vez que através
da linguagem estabelecida entre dominado e dominador, o
segundo para consumir precisa negar a violência que transforma a vida em
morte, faz-se necessário elevar essa experiência de retaliamento e consumo
em metáfora, e escamotear a ideologia carnista para que seja disseminada
socialmente.

46
Essa estrutura de sobreposição do referente ausente (animais feminilizados
e mulheres animalizadas) também está na base das construções culturais
onde a objetificação feminina se torna naturalizada e consumível. O corpo
feminino, bem como o do animal não humano (sobretudo o das fêmeas)
permanece como lugar de abuso, subjugação, opressão e dor em práticas
totalmente invisibilizadas ou mesmo notórias, mas que de tão corriqueiras e
banalizadas tornam-se parte do modo de vida da maioria das pessoas sem
nenhum estranhamento.

Feminilizar o animal e, ao mesmo tempo, animalizar a mulher permite que


as violências destinadas aos dois grupos não somente estejam amparadas
por uma mesma lógica, mas se retroalimentem a partir de um sistema de
forças que se dá pela permissividade da morte daquela/daquele
desprovida/o de valor inerente; ou fim em si mesmo. A mulher estaria para o
homem, assim como o animal estaria para o humano.

As hipóteses levantadas por Adams são perceptíveis através de exemplos


em diferentes culturas ocidentais. Na contemporaneidade, a mídia, através
da propaganda e publicidade, tem investido na solidificação da política
sexual da carne; e mais especialmente na ideia da carne como expressão
maxima da aquisição de força, energia e virilidade. Neste processo,
os animais têm sido sexualizados e feminilizados como nunca antes. Desde
o meado do século 20, com o avanço do processo de industrialização
capitalista, as sociedades acentuaram a forma brutal de exposição e
exploração dos animais como fonte primária do que viria a se tornar o
fenômeno da globalização. Para isso, os meios de comunicação, cujos
interesses estão estreitamente ligados à mesma estrutura dominante e
opressora, buscaram proteger o status patriarcal das instituições e construir
subjetividades passivas e acríticas perante o sofrimento e a injustiça.

Através do processo de objetificação, vê -se uma sobreposição de imagens


culturais de violência sexual contra as mulheres, com a fragmentação e o
desmembramento da natureza e do corpo na cultura ocidental, onde corpos
não humanos são servidos mortos em porções cada vez maiores e os

47
corpos das mulheres são servidos vivos (apesar de a violência também
matá-los em grande quantidade), oprimidos, alienados e tristes.

Trazendo o debate para a arena do pensamento derridiano, podemos


encontrar o conceito de “limites de oposição comumente acreditados” onde a
oposição homem/mulher/humano/animal são intensificadas, unindo duas
partes do lado negado: o feminino e o animal.

O sujeito do Carnofalogocentrismo é portanto, constituído em parte através


do poder de objetificação dos seres vivos vulneráveis fazendo de sujeitos,
objetos e cuja construção passa pelo consumo ou sacrifício forçado, imposto
a outros seres, negando-lhes suas necessidades e vontades.

O lugar da mulher bem como o dos animais é marcado ao longo do tempo


pela inferioridade e pela acepção de sua consumibilidade, proporcionando
enquadramentos básicos de cognição social, potencialmente agregadores
de crenças e de atitudes amplamente partilhadas pelos consumidores.

Retomando um ponto levantado anteriormente, para assegurar que


atualmente a publicidade desempenhe um papel preponderante na
construção das perceções relativamente aos animais às mulheres, bem
como a outros corpos dissidentes que serão usados para consumo e
eventualmente descartados, essencialmente, em “relações utilitárias”
(ADAMS, 2006), o símbolo do patriarcado se encontra e imbrica com o
símbolo do especismo: a carne. As relações de poder e submetimento são
trazidas para o cotidiano através de uma educação especista que reforça a
noção de que a natureza bem como as mulheres e outras minorias existem
para um determinado fim, qual seja o de alimentar o estômago ou a libido do
homem branco cisheteroconcordante.

A “informação” da nossa época cumpre uma função de construção cognitiva


ao organizar representações sociais (atitudes, conhecimento) de um grupo,
no vasto âmbito de práticas sociais e de representações de gênero, incluindo
as difundidas na publicidade. A “carne vermelha” surge, assim
simbolicamente, altamente masculinizada quer nos seus processos de
preparação, quer nas práticas de consumo.

48
Os animais usados como comida, após serem convertidos em “carne”,
passam a ser objeto de aquisição de variados significados simbólicos, tais
como: o status, a etnicidade, nacionalidade, região, classe, idade,
sexualidade, cultura e, talvez, o mais importante - o gênero (SOBAL, 2005,
137). Consequentemente, através do consumo de “carne”, a população
consumidora também passa a ser portadora de significados através das
suas escolhas alimentares (ADAMS, 2010, 229). Logo, seria possível afirmar
que em nossos hábitos alimentares, assim como em outras formas
de organização e praticas cotidianas resultantes de uma cultura especifica,
haveria signos do sistema de controle sexo-gênero vigente: o
patriarcado. Neste sentido, pode-se conceber a ideia de uma masculinização
reforçada através da ingestão da “carne vermelha” e, em oposição, a
feminização através do consumo das carnes brancas, principalmente o peixe
e, ainda mais, de produtos de origem vegetal.9

A própria palavra “vegetal” que em seu sentido original significava “ser


animado, ativo” sofreu uma inversão total e hoje serve para referir-se à
apatia, monotonia e passividade. Dizemos que uma pessoa vegeta, quando
leva uma vida sem propósito, estagnada ou quando após comprometimento
cerebral crítico (coma) não é mais capaz de manifestar-se.

A carne, por outro lado, embora morta, é vista como um alimento que
concede força e melhoria nas capacidades cognitivas de seus
consumidores, sendo associada muitas vezes à aquisição de poder e
domínio intelectual. Os vegetais e sua suposta passividade estão
intimamente ligados àquilo que se espera da mulher da mesma forma que a
força da carne é aparentemente absorvida pelo homem que tem sempre
prioridade para consumí-la. Os vegetais e sua suposta passividade estão
intimamente ligados àquilo que se espera da mulher da mesma forma que a
força da carne é aparentemente absorvida pelo homem que tem sempre
prioridade para consumí-la.

Pierre Bourdieu, (1998), por exemplo, fala na incorporação de esquemas


dominantes e inconscientes de apreensão de estruturas históricas da ordem
9
Esse fato já foi objeto de estudo por parte de diversos autores/as renomados
como fui capaz de constatar ao longo da presente pesquisa.
49
masculina, que também podem ser vistas na alimentação e na divisão
sexual. Em “Distinction - A social critique of the judgement of taste”, Bourdieu
(1984) joga luz sobre o fato de que a “carne” quer na sua preparação, quer
no seu consumo, surge como uma importante ferramenta na construção
simbólica do corpo do homem. Este e diversos outros autores, sobretudo
Carol Adams, nos fazem ver que a “carne” como um alimento
masculinizante, é um marcador do status superior atribuído ao homem que
ratifica o estabelecimento de uma determinada ordem alimentar e de gênero
na sociedade.

Assim que o sexismo, o classismo, o especismo, o racismo e a homofobia,


entre tantas outras opressões e violências estão interligadas e devem ser
consideradas na sua totalidade como parte das dinâmicas de poder do
patriarcado que usa a carne como símbolo de força e dominação.

A linguagem e o discurso que naturalizam a violência e a morte são os


mesmos que atribuem os significados ao real e neste âmbito (social e
natural), os animais não-humanos e demais grupos vulnerabilizados não
são participantes na sua própria construção (STIBBE, 2001) estando assim
sensíveis ao arbítrio daqueles que detêm o poder e que implica, por
condição, que a sua representação não é autônoma e depende de estarem
de alguma maneira sendo instrumentalizados ou a serviço daqueles mesmos
que os aprisionam, escravizam e matam.

O princípio da hegemonia nos discursos dominantes nos mostra de forma


explicita que a opressão de um grupo pode ser efetivada, não apenas
coercivamente, mas ideologicamente através da fabricação do consenso
(STIBBE, 2001, 147).

Estas ideologias, incorporadas e disseminadas através do discurso, têm uma


influência importante nas representações mentais da população
consumidora, podendo influenciar as suas ações; essas ações podem ser
observadas nas respectivas práticas alimentares representadas, bem como
no papel que cada indivíduo deve ocupar a partir do lugar em que é
colocado no cenário social, forjado para que permaneça submisso, servil e
incapaz de ser ouvido.
50
Na nossa sociedade, a forma mais direta e comum de contato e de interação
com os animais não-humanos usados para fins alimentares é no momento
das refeições, após a sua conversão em “carne”. Contudo, o consumo de
“carne” não é percebido como o consumo de animais porque, após a sua
morte, fragmentação e preparação, eles passam a ser designados por
termos gastronômicos e a serem portadores de significados altamente
simbólicos (ADAMS, 2010, 229), o que permite destacar a sua utilidade
desde o ponto de vista do explorador convertendo-se, literalmente, em
"objetos" que existem através e para o sujeito (JOY, 2005, 115).

Assim é que a fêmea bovina nos “dá” seu leite e sua carne, é submetida a
estupros constantes separada de sua cria e abatida após estar exaurida em
suas capacidades reprodutivas. Da mesma forma, a fêmea humana não
pode amamentar sua cria pois precisa estar competitiva no mercado de
trabalho ao mesmo tempo em que se exaure em tarefas domésticas e
cuidados com a prole e assim como a vaca é posta de lado ou
metaforicamente morta para a sociedade quando envelhece, não mais
atende aos padrões de beleza impostos ou de qualquer forma não pode
mais “reproduzir”.

Da mesma forma que a linguagem é usada para reforçar e naturalizar


comportamentos e atitudes violentos, o uso de termos para rotular atividades
como o oposto do que elas são, promove um desfocamento que relativiza
esses atos de violência (Fonseca, Rui; 2017). Assim que todos os estupros
são violentos, todo abate de um animal para a produção de carne é brutal,
independente de ser chamado humanitário.

As tradições consolidaram ao longo do tempo a hierarquia que coloca os


homens como os primeiros a desfrutarem da carne. Como nos aponta
Adams (2012) por todo o mundo, nas mais variadas culturas, a carne é
sempre servida em primeiro lugar e/ou em maior quantidade aos homens.

Cabe a eles também o protagonismo nos churrascos ou nos programas de


culinária onde a carne é o destaque. Normalmente nos churrascos o homem
fica na parte externa, na churrasqueira, exibindo seus dotes gastronômicos
enquanto a mulher permanece invisibilizada no interior da cozinha
51
preparando os “acompanhamentos” quase invariavelmente de origem
vegetal.

São sobretudo os homens que se dedicam à caça, cujos atos envolvem


agressividade para com outros animais; são eles quem na maior parte das
vezes protagonizam a “matança” do animal, a “carne” ainda é atribuida ao
domínio dos homens sobre a natureza; bem como ao provimento de
prestígio masculino, de status, de influência material ( Fonseca,
Pedro;2017); muitos atletas (sobretudo homens) ainda vislumbram o
consumo da “carne vermelha” como alimento (protéico) mais adequado,
como o meio necessário para a aquisição de força, agressividade e até de
sexualidade.10

Mesmo quando o homem discorda do consumo da carne, isto ocorre devido


ao fato que seu menor consumo possa estar ligado a uma menor ocorrência
de doenças, sem que possa afetar sua virilidade.

Os homens que “ousam” tornar-se veganos precisam ratificar sua


masculinidade justificando que uma dieta a base de vegetais é mais ética,
produz menos impacto ambiental e os tornam mais saudáveis sem, contudo,
torná-los efeminados.11

“Todos estes modelos apresentam graus de dominância diferenciados,


estando uns mais ligados com a masculinidade comparativamente a outros.
Por inerência, todos eles implicam processos de socialização, bem como a
adoção de crenças e de comportamentos que associam o consumo de
“carne” enquanto reforço de tipos de modelos de masculinidade”.

(Fonseca, Rui, 2017 pag.6).

Tido como a força de trabalho, o provedor da família, cabia ao homem o


alimento que iria manter seu tônus e sua vitalidade, cabia aos guerreiros e
10
Na Amazônia muitos homens consomem pênis de Botos porque acreditam que melhora a sua

função sexual.

11
“HEGANS” foi o termo usado para unir He (ele) a Ve(gan) na tentativa de dissociar veganismo
e feminilidade. Os Hegans demostram através de sua musculatura bem desenvolvida, atitudes e
comportamentos, que não há perda de masculinidade na dieta vegana.
52
soldados o alimento forte que iria saciar a fome e ao mesmo tempo prover a
agressividade necessária para a execução de tais demandas.

Às mulheres cabe o preparo e a distribuição cotidiana da carne sem, no


entanto servir-se desta, a menos que haja fartura. Para agradar ao marido,
muito mais que a si ou aos filhos ela cozinha e serve o corpo desmembrado
de um animal não humano, sem refletir acerca de seu próprio retalhamento
moral e simbólico.

Como nos faz ver Carol Adams ao referir-se à obra da antropóloga Mary
Douglas, o fato de a carne ser servida como prato principal em uma refeição
é parte da construção de um padrão de “estabilidade” que reforça a ideia de
uma estrutura fixa na ordem do comer e que confere à carne o protagonismo
do ato.

A “carne” é demasiado forte e portanto menos indicada para o consumo de


mulheres e crianças, que por sua constituição são identificadas com a
delicadeza e passividade vegetais. Seguindo este raciocínio podemos
afirmar que este lugar de centralidade atribuído a carne remete à maior
importância conferida àquilo que é designadamente masculino e que
perpassa todas as esferas sociais.

O ato de vir a ser vegano, ou de retirar a carne desse lugar de destaque à


mesa é visto como ameaçador e subversivo ainda mais se for praticado por
representantes do sexo masculino. Assim que “retirar a carne da refeição é
ameaçar a estrutura patriarcal mais ampla”. (Adams, 2012)

Nesse sentido, o vegetarianismo e o veganismo – porque excluem o


consumo de “carnes”, constituem-se como dietas transgressoras dos
tradicionais modelos de masculinidade. (Fonseca)

Apesar de existirem variadas masculinidades e talvez mesmo uma maior


liberdade para exercê-las atualmente, o que teoricamente levaria a uma
maior possibilidade para ampliar seu escopo de escolhas alimentares, o que
se constata é que os modelos de referência continuam atrelados numa
cultura hegemônica onde a carne figura como conferidora de masculinidade
e de reprodução normativa de modelos de virilidade e poder a serem
53
perpetuados e que são disseminados como neutros e “normais” não
necessitando de nenhuma justificação ou questionamento.

Finalizo trazendo mais uma vez as palavras de Adams, segundo as quais a


“carne” é um símbolo e celebração de dominação masculina onde os
homens domesticam, objetificam e fragmentam corpos– o que reforça o
patriarcado e o especismo” (ADAMS, 2010)

Capitulo 2

A CULTURA DA CARNE

2.1 - Carnismo............................

54
2.2 - Especismo..........................

2.3 - A Carne como Símbolo do Patriarcado .....................

CAPÍTULO 3

3 - REFERENTES AUSENTES

3.1 - O Retalhamento Simbólico e o Abate Moral

3.2 - Violência Não-Consentida ou o Estupro das Fêmeas

3.3 - Carnismo e Violência Sexual

3.4 - Corpos Fragmentados

55
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