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Salmo

CHARLES HADDON SPURGEON


Sa mo

“CHARLES H addon S purgeon nasceu em 1834 e faleceu em


1892. Seu primeiro pastorado, aos 17 anos de idade, foi numa
igreja em Cambridgeshire. Mudou-se para New Park Street Chapei,
Londres, em 1854, e em 5 anos tornou-se o ministro mais famoso
da cidade. A pedra fundamental de um novo edifício chamado
Metropolitan Tabernacle foi lançada em 1859, e aí Spurgeon pregou
constantemente para uma congregação de cerca de 6.000 pessoas.
Também alcançou uma audiência maior de aproximadamente um
milhão de pessoas a quem se dirigia semanalmente através de seus
sermões impressos”. (Extraído de Sermões Sobre a Salvação,
Publicações Evangélicas Selecionadas, p. 7.)

f D /Ç Õ E S
PARAKLETOS
r
Do original em inglês Psalm 119 - The Golden Alphabet
Os direitos desta edição são reservados

Ia edição - 2001
3000 exemplares

Editoração e capa
Eline Alves Martins

EDIÇÕES
PARAKLEEOS
Rua Clélia, 1254 • Cj. 5B •V ila Romana • 05042-000 ■São Paulo, SP • Brasil
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IM PO SIÇ Ã O 1

(w. 1-8)
Bem-aventurados os impolutos em seus caminhos, que andam na lei
do Senhor. Bem-aventurados os que guardam seus testemunhos, e que
o buscam de todo seu coração. Eles também não praticam iniqüidade,
mas andam em seus caminhos. Tu nos ordenaste que guardássemos
teus preceitos com diligência. Quem dera que meus caminhos fossem
bem direcionados para que eu observe teus estatutos. Então não fica­
ria envergonhado, quando tiver respeito para com todos teus manda­
mentos. Louvar-te-ei com retidão de coração quando tiver aprendido
teus justos juízos. Observarei teus estatutos; oh, não me desampares
totalmente!
Estes oito primeiros versículos são associados à contemplação
da bem-aventurança que procede da observância dos estatutos do
Senhor. O tema é tratado de uma forma devocional, e não num
estilo didático. Sincera comunhão com Deus se desfruta através
tio amor àquela Palavra que é a maneira de Deus comunicar-se
com a alma através de seu Espírito Santo. Oração e louvor, bem
como toda sorte de atos e sentimentos devocionais, perpassam
esses versículos como os raios da luz solar refletidos através da
folhagem de uma árvore frondosa. Você se sente não só instruído,
mas também influenciado com santa emoção e levado a expressar
u mesmo.
Os que amam a Santa Palavra de Deus são bem-aventurados,
porque são preservados de contaminação (v. 1), porque se tornam
santos na prática (w. 2, 3) e guiados a ir a Deus sincera e intensa­
mente (v. 2). E evidente que se deve desejar um viver santo, por­
que é isso que Deus ordena (v. 4); por isso a alma pia ora por esse
vivei- santo (v. 5) e sente que seu conforto e coragem devem de­
pender de sua obtenção (v. 6). No prospecto da oração respondi-
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' S a lm o 1Q

da, sim, enquanto a oração está sendo respondida, o coração se


enche de gratidão (v. 7) e se fixa em solene disposição de não
perder a bênção, se o Senhor lhe der a graça que o capacita (v. 8).
As mudanças começam nas palavras ‘caminho’ — “retos em
seus caminhos”, “andam em seus caminhos”, “Quem dera meus
caminhos fossem direcionados”; ‘guardar’ - “guardar seus teste­
munhos”, “guardar diligentemente teus preceitos”, “levados a guar­
dar”, “guardarei”; e ‘andar’ - “andar na lei”, “andar em seus ca­
minhos”. Contudo, não existe tautologia; nem é reiterado o mes­
mo pensamento, ainda que ao leitor displicente possa parecer assim.
A mudança de afirmações sobre outros e sobre o Senhor, para
mais tratamento pessoal com Deus, começa no quarto versículo, e
se torna mais evidente à medida que avançamos, até nos últimos
versículos a comunhão tornar-se mais intensa, comovendo a alma.
“Louvar-te-ei. Guardarei teus estatutos. Oh, não te esqueças de
mim totalmente.” Que todo leitor possa sentir incandescente de­
voção pessoal enquanto estuda esta primeira seção do Salmo!
[v. 1]
Bem-aventurados os impolutos em seus caminhos, que andam na lei
do Senhor.
Bem-aventurados. O salmista se sente tão arrebatado pela lei
do Senhor, que considera como estando conformado a ela seu
mais elevado ideal de bem-aventurança. Ele está olhando admira­
do para as belezas da lei perfeita; e, como se nesse versículo en­
contrasse a suma e resultado de todas suas emoções, ele exclama:
“Bem-aventurado é o homem cuja vida é a transcrição prática da
vontade de Deus.” A religião genuína não é apática nem árida; ela
tem suas exclamações e êxtases. Não só julgamos ser a guarda da
lei de Deus uma atitude sábia e correta, mas nos sentimos arden­
temente extasiados ante sua santidade, e clamamos em extasiante
adoração: “Bem-aventurados são os imaculados!” Significando
com isso que ardentemente desejamos tornar-nos assim. Nosso
desejo por felicidade não é maior que o de sermos perfeitamente
santos. E possível que o escritor tenha laborado sob o senso de sua
própria falha, e portanto invejado a bem-aventurança daqueles cuja
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vida havia sido mais perfeita e santa que a dele; aliás, a própria
contemplação da lei perfeita do Senhor na qual ele agora tem in­
gresso fosse suficiente para levá-lo a deplorar suas imperfeições
pessoais e a suspirar pela bem-aventurança de um viver sem mácula.
A religião genuína é sempre prática, pois ela não nos permite
deleitar-nos numa regra perfeita sem excitar em nós profundo anelo
de conformar a essa regra nossa conduta diária. Uma bênção per­
tence aos que ouvem, lêem e entendem a Palavra do Senhor; não
obstante, uma bênção ainda maior advém da real obediência a ela
e concretiza em nosso andar e conversação o que aprendemos em
nosso exame das Escrituras. A mais genuína bem-aventurança
consiste na pureza de nosso caminho e de nossa caminhada.
Este primeiro versículo constitui não só um prefácio a todo o
Salmo, mas pode também ser considerado como o texto sobre o
qual o resto é um discurso. E semelhante à bênção do primeiro
Salmo, o qual é o próprio cabeçalho de todo o livro: há certa se­
melhança entre este Salmo 119 e o Saltério, e este é só um ponto
dele, que começa com uma bênção. Neste também vemos algumas
prefigurações do Filho de Davi, que começou seu grande sermão
como Davi começou seu grande Salmo. E bom abrir nossa boca
com bênçãos. Quando não podemos concedê-las, podemos apon­
tar o caminho de sua obtenção; e ainda quando nem mesmo as
possuamos, pode ser proveitoso contemplá-las, para que nossos
desejos sejam excitados e nossas almas movidas a buscá-las. Se­
nhor, se não sou ainda tão abençoado ao ponto de não ser ainda
contado entre os imaculados em teu caminho, contudo meditarei
intensamente na felicidade que desfrutam, e a porei diante de meus
olhos como uma ambição a ser concretizada em minha vida.
Do modo como Davi começa seu Salmo, os jovens deveriam
começar suas vidas; os recém-convertidos deveriam iniciar sua
profissão de fé; todos os cristãos deveriam começar cada dia. As­
sentem em seus corações como primeiro postulado e sólida regra
da ciência prática que santidade é sinônimo de felicidade-, que nossa
sabedoria consiste em primeiramente buscar o reino de Deus e
sua justiça. O bom começo já é meio triunfo. Começar com uma
idéia veraz de bem-aventurança é importante além de toda medi-
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, S a lm o 115*

da. O homem começou sendo bem-aventurado em sua inocência;


e se nossa raça caída visa a ser bem-aventurada outra vez, então
ela deve encontrar a bem-aventurança onde ela a perdeu no prin­
cípio, ou seja, conformando-se com os mandamentos do Senhor.
Os impolutos em seu caminho. Estão no caminho; o caminho
reto; o caminho do Senhor; e guardam o caminho, andando com
santa prudência e lavando seus pés diariamente, para que não sejam
maculados pelo contato com o mundo. Desfrutam de grande bem-
aventurança em suas próprias almas; aliás, já sentem uma preliba-
ção do céu, onde a bem-aventurança é absolutamente impossível
de ser maculada; e onde poderão prosseguir plena e perfeitamente
sem mancha; na verdade, devem viver já seus dias celestiais na
terraóO mal externo pouco nos feriria se fôssemos inteiramente
isentos do mal do pecado, cuja obtenção, mesmo para o melhor
dentre nós, ainda se encontra na região do desejo, o qual ainda
não se concretizou plenamente, ainda que tenhamos uma visão
bem nítida do que consideramos ser bem-aventurança propria­
mente dita, e portanto nos precipitamos avidamente em sua direção.
Bem-aventurado é aquele cuja vida é, no sentido evangélico,
impoluta, sem mácula, porque jamais lhe seria possível alcançar
esse ponto se infindas bênçãos ainda não lhe houvessem sido der­
ramadas. Somos por natureza impuros e extraviados do caminho;
e por isso temos que ser lavados no sangue expiador para que a
impureza seja removida, e temos que ser convertidos pelo poder
do Espírito Santo, do contrário não nos ingressaremos na vereda
da paz, nem seremos íntegros em seu percurso. Mas isso não é
tudo, pois faz-se mister que o poder contínuo da graça mantenha
o cristão na vereda direita e o preserve da poluição. E preciso que
todas as bênçãos do pacto sejam, em certa medida, derramadas
sobre aqueles que, dia a dia, são capacitados a aperfeiçoar sua
santidade no temor do Senhor. Sua vereda é a evidência de serem
eles os bem-aventurados do Senhor.
Davi fala de um elevado grau de bem-aventurança; pois há
aqueles que já se encontram no caminho e que são genuínos ser­
vos de Deus; todavia se acham ainda maculados de diversas for­
mas e ainda atraem sobre si muitas máculas. Outros andam envol-
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F X P Q S IÇ Ã O 1

tos em luz mais plena e mantêm comunhão mais íntima com Deus,
e são aptos a manter-se imunes das impurezas do mundo, os quais
desfrutam de mais paz e alegria do que seus irmãos menos vigilan­
tes. Sem dúvida, quanto mais profunda é nossa santificação, mais
intensa é nossa bem-aventurança. Cristo é o nosso caminho, e não
só estamos vivos em Cristo como também devemos viver nele. O
lamentável é que nós salpicamos sua santa vereda com nosso ego­
ísmo, nossa vanglória, nossa obstinação e nossa carnalidade, per­
dendo com isso, em grande medida, a bem-aventurança que se
acha nele como nosso caminho. O cristão que erra continua salvo,
porém deixa de experimentar a alegria de sua salvação; continua
redimido, porém não enriquecido; muitíssimo disposto, porém não
muitíssimo abençoado.
Quão facilmente pode sobrevir-nos impureza, mesmo em nos­
sas coisas santas, sim, até mesmo no caminhol E até mesmo pos­
sível achegarmo-nos para o culto público ou privativo maculados
em nossa consciência, quando ainda nos achamos de joelhos. Não
havia assoalho no tabernáculo, mas apenas areia; daí os sacerdo­
tes, para o serviço junto ao altar, careciam constantemente de la­
var seus pés; e, pela bondosa provisão de seu Deus, o lavatório
lhes estava sempre à disposição para que se purificassem. Quanto
a nós, nosso Senhor ainda se dispõe a lavar nossos pés, para que
estejamos totalmente limpos. E assim nosso texto preanuncia a
bem-aventurança dos apóstolos no cenáculo, quando Jesus lhes
assegura: “Vós já estais limpos.”
Que gloriosa bem-aventurança aguarda os que seguem o Cor­
deiro para onde quer que ele vá, e são preservados do mal que
impregna o mundo de luxúria! Estes atrairão a inveja de toda a
humanidade “naquele dia”. Ainda que agora sejam menospreza­
dos como fanáticos e puritanos, os mais prósperos dos pecadores
então desejarão que possam trocar de lugar com eles. O minha
alma, busca tua bem-aventurança em seguir os passos de teu Se­
nhor, o qual foi santo, inculpável, imaculado; pois se até aqui des­
frutaste de paz, haverás de desfrutá-la para todo o sempre.
Que andam na lei do Senhor. Neles se acha presente a santi­
dade habitual. Seu andar, sua vida cotidiana, é de obediência ao
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■ S a lm o 11S

Senhor. Vivem segundo uma norma, que é segundo o mandamen­


to do Senhor Deus. Quer comam, quer bebam, quer façam qual­
quer outra coisa, tudo fazem no nome de seu grande Mestre e
Modelo. Para eles, religião não é outra coisa senão viver no cami­
nho, é seu andar diário; ela molda tanto suas ações comuns quan­
to suas devoções especiais. Isso lhes assegura a bem-aventurança.
Aquele que anda na lei de Deus, anda na companhia de Deus, é
portanto abençoado; desfruta do sorriso de Deus; da força de Deus;
da intimidade com Deus: como não seria ele abençoado?
Vida santa é um andar, um progredir constante, um avançar
sereno, um perseverar contínuo. Enoque andava com Deus. Os
homens bons se tornam cada vez melhores, e por isso vão sempre
em frente. Os homens bons não conhecem a indolência, e por isso
não caem prostrados nem delongam na jornada, mas continuam
sempre caminhando rumo a seu almejado porto. Não se apres­
sam, nem se azucrinam, nem se perturbam; apenas se mantêm no
curso de seu caminho, caminhando firmemente rumo ao céu. Não
se deixam dominar por perplexidade acerca de como devem con-
duzir-sc, porque possuem uma regra perfeita, a qual orienta seu
ditoso caminhar. A lei do Senhor não lhes é enfadonha; seus man­
damentos não lhes são penosos; suas restrições, em seu apreço,
não os fazem servis. Não a visualizam como uma lei impossível,
teoricamente admirável, praticamente absurda; senão que andam
por meio dela e nela. Não a consultam de vez em quando como
um tipo de retificador de suas andanças, mas a usam como uma
bússola de seu velejar diário, um mapa da estrada que devem per­
correr em sua vida de peregrinação [rumo a Canaã], Tampouco
sentem saudade depois de se haverem ingressado na vereda da
obediência, nem a deixam ao contemplarem as dificuldades, mes­
mo ante as multiformes tentações que lhes oferecem a chance de
regressarem; seu andar contínuo na lei do Senhor é seu melhor
testemunho da bem-aventurança de tal condição de vida. Sim, são
bem-aventurados mesmo agora. O próprio salmista é uma teste­
munha desse fato: ele o pôs à prova, o experimentou e o escreveu
como um fato que arrostou toda negação. Aqui jaz no frontispício
da opus magnum de Davi, no cume mais elevado do maior de seus
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jÁçposiçÂo!

salmos - “Bem-aventurados são aqueles que andam na lei do Se­


nhor.” Áspero pode ser o caminho; inflexível, a regra; severa, a
disciplina - disso temos plena consciência. Todavia, um acúmulo
de milhares de bem-aventuranças ainda se encontra no viver pie­
doso, pelo quê bendizemos ao Senhor.
Temos neste bendito versículo pessoas que desfrutam de cinco
coisas benditas: um caminho bendito, uma pureza bendita, uma
lei bendita, dada por um Senhor bendito, e um abençoado cami­
nhar nela. A estas podemos acrescentar o bendito testemunho do
Espírito Santo, dado nesta mesma passagem, para que tais pes­
soas sejam, em seus feitos, os benditos do Senhor.
Devemos almejar a bem-aventurança que é posta diante de nós,
mas não devemos imaginar que podemos obtê-la sem solícito es­
forço. Davi tinha sobeja razão em falar sobre ela; seu discurso
neste Salmo é longo e solene, e nos sugere que não se aprende
num só dia o método da perfeita obediência; é mister que haja
preceito sobre preceito, norma sobre norma; e depois de esforços
bastante prolongados, pondo-nos diante do versículo 176 deste
Salmo, é possível que ainda clamemos: “Desgarrei-me como uma
ovelha perdida; busca teu servo, pois não me esqueço de teus man­
damentos.”
Entretanto, nosso plano deve ser guardar a palavra do Senhor
no recôndito de nossa mente; pois este discurso sobre a bem-aven­
turança tem por seu clímax o testemunho do Senhor, e unicamen­
te pela comunhão diária com ele, mediante sua Palavra, é que po­
demos nutrir a esperança de aprender seu caminho, ser purifica­
dos de toda mácula e esforçar-nos por andar em seus estatutos.
Tomando como ponto de partida esta exposição sobre a bem-aven­
turança, visualizamos o caminho para ela, e sabemos onde sua lei
pode ser encontrada. Oremos para que, prosseguindo em nossa
meditação, desenvolvamos o hábito de andar em obediência, e por
fim sintamos a bem-aventurança da qual lemos aqui.
[V . 21
Bem-aventurados os que guardam seus testemunhos, e que os buscam
de lodo o coração.
• 1I •
S a lm o 115?

O quê! Uma segunda bênção? Sim, são duplamente abençoa­


dos aqueles cuja vida é nutrida por um zelo íntimo pela glória de
Deus. No primeiro versículo, tivemos um caminho impoluto, e fi­
cou estabelecido que a pureza nesse caminho não é uma obra me­
ramente superficial, mas é assistida pela verdade no íntimo e pela
vida procedente da graça divina. Aqui, o que era implícito se torna
explícito. Atribui-se bem-aventurança aos que entesouram os tes­
temunhos do Senhor; no quê está implícito que eles examinam as
Escrituras, que adquirem compreensão delas, que as amam e en­
tão passam a praticá-las. Primeiro temos que adquirir uma coisa
antes de podermos guardá-la. A fim de guardá-la bem, é preciso
que nos apoderemos firmemente dela. Não podemos guardar no
coração aquilo que não abraçamos sinceramente pelas afeições. A
palavra de Deus é sua testemunha ou que comunica o testemunho
e importantes verdades que dizem respeito a ele e a nossa relação
com ele. Isso devemos desejar conhecer; conhecendo-o, devemos
crer nele; crendo-o, devemos amá-lo; e amando-o, devemos retê-
lo com firmeza contra todos os que se opuserem. Há uma obser­
vância doutrinal da palavra quando nos dispomos a morrer em
sua defesa, e uma observância prática dela quando realmente vive­
mos sob seu poder. A verdade revelada é preciosa como diaman­
tes, e deve ser guardada ou entesourada na memória e no coração
como jóias num escrínio, ou como a lei era guardada na arca; isso,
contudo, não basta; pois ela se destina ao uso prático, e por isso
deve ser guardada ou seguida, como os homens se mantêm no
caminho ou seguem uma linha de negócios. Se guardarmos os
testemunhos de Deus, eles por sua vez nos guardarão; nos mante­
rão retos na opinião, confortáveis no espírito, santos na conversa­
ção e esperançosos na expectativa. Se foram sempre de real valor,
e nenhuma pessoa sensata põe isso em dúvida, então são dignos
de ser guardados; seu efeito designado não é uma conquista tem­
porária, mas vem por uma perseverante posse deles: “em os guar­
dar há grande recompensa.”
Somos obrigados a guardar a Palavra de Deus com todo cui­
dado, porque ela são seus testemunhos. Ele no-los deu, mas ainda
são dele. E preciso que os guardemos como um vigilante guarda a
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[ X P 0 5 IÇ Ã 0 1

casa de seu patrão; como um mordomo administra os bens de seu


senhor; como um pastor guarda o rebanho de seu proprietário.
Somos obrigados a prestar contas, porquanto o evangelho nos foi
confiado, e ai de nós se formos encontrados infiéis. Não podemos
combater o bom combate, nem concluir nossa carreira, a menos
que guardemos a fé! Com este alvo em vista, o Senhor nos guarda­
rá; somente aqueles que são guardados pelo poder de Deus, para
a salvação, é que serão capazes de guardar seus testemunhos. Por­
tanto, que bem-aventurança se evidencia e se testifica mediante
meticulosa convicção na Palavra de Deus e uma contínua obe­
diência a ela! Deus os tem abençoado, os está abençoando e os
abençoará para sempre. A bem-aventurança que Davi visualizou
em outros, ele a concretizou em si, pois ele diz no versículo 168:
“Tenho guardado teus preceitos e teus testemunhos”; e nos versí­
culos 54 a 56, ele associa seus cantos jubilosos e suas felizes me­
mórias a esta mesma observância da lei, e confessa: “E isto eu fiz,
porque guardei teus mandamentos.” As doutrinas que ensinamos
a outros, antes devemos experimentar em nós mesmos.
E que os buscam de todo o coração. Os que guardam os tes­
temunhos do Senhor se asseguram de que vão em busca deles
mesmos. Se sua Palavra é preciosa, podemos estar certos de que
ele mesmo é ainda mais precioso. O tratamento pessoal com um
Deus pessoal é a aspiração de todos quantos se asseguram de que
a Palavra do Senhor tenha seu pleno efeito sobre eles. Uma vez
tenhamos experimentado realmente o poder do evangelho, é mis­
ter que busquemos o Deus do evangelho. Nosso sincero clamor
será este: “Oh, que eu saiba onde posso encontrá-lo!” Veja o de­
senvolvimento que essas frases indicam: primeiro, no caminho;
então, no transpô-lo; em seguida, descobrindo e guardando o te­
souro da verdade; e, acima de tudo, ir após o Senhor da maneira
como ele preceitua. Note também que, à medida que uma alma
avança na graça, mais divinas e espirituais são suas aspirações: o
andar externo não satisfaz à alma agraciada, nem mesmo os teste­
munhos entesourados; no devido tempo, ela se entrega a Deus
pessoalmente, e quando, em certa medida, o encontra, ainda o
deseja muito mais, e continua a buscá-lo.
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. 5aim o 115?

Buscar a Deus significa o ardente desejo de ter comunhão com


ele de maneira mais íntima, segui-lo mais plenamente, manter a
mais perfeita união com sua mente e vontade, promover sua glória
e compreender plenamente tudo o que ele é para os corações san­
tos. O homem abençoado já possui a Deus, e por esse motivo ele o
busca. Isso pode parecer contraditório; mas é apenas um paradoxo.
Deus não é buscado genuinamente pelas frias ponderações do
cérebro; é preciso que o busquemos com o coração. O amor se
manifesta amando; Deus manifesta seu coração no coração de seu
povo. E vão esforçarmo-nos em compreendê-lo através da razão;
é preciso compreendê-lo através da afeição. O coração, porém,
não deve ser dividido entre muitos objetos, se porventura o Se­
nhor é buscado por nós. Deus é um só, e não o conheceremos até
que nosso coração seja um com o dele. Um coração quebrantado
não necessita de ser dominado pela angústia, porque nenhum co­
ração é tão íntegro em sua busca por Deus como o coração que­
brantado, do qual cada fragmento suspira e clama pelo rosto do
grande Pai. E o coração dividido que a doutrina do texto censura,
e, por estranho que pareça, na fraseologia bíblica um coração pode
estar dividido sem estar quebrantado, e pode estar quebrantado,
porém não dividido; e no entanto pode ser quebrantado e estar
curado, e nunca pode estar curado antes de ser quebrantado. Quan­
do nosso coração inteiro busca o Deus santo em Cristo Jesus, en­
tão ele se chega para aquele de quem está escrito: “Tantos quantos
o tocavam, ficavam perfeitamente curados.”
O que o salmista admira neste versículo ele reivindica no déci­
mo, onde diz: “De todo meu coração te busquei.” Fica tudo bem
quando a admiração de uma virtude leva à obtenção da mesma.
Os que não crêem na bem-aventurança de buscar o Senhor pro­
vavelmente não terão seus corações estimulados para a deseja­
rem; mas aquele que acena para outro bem-aventurado por cau­
sa da graça que nele vê, está no caminho de granjear para si a
mesma graça.
Se os que buscam o Senhor são bem-aventurados, o que di­
zer daqueles que realmente habitam com ele e sabem que ele lhes
pertence?
• 14 •
j^ X P O S IÇ Ã O 1

“ Quão bondoso és para com os Que caem!


Quão benigno, para com os Que te buscam!
Mas, o oue dizer daoueles Que te acham?
Ah! isto nenhuma língua nem pena pode expressar:
O amor de Jesus - o oue é,
Ninguém, senão seus amados, pode saber."

[v. 31
Também não praticam iniqüidade, mas andam em seus caminhos.
Também não praticam iniqüidade. Aliás, bem-aventurados
devem ser todos aqueles de quem se pode isso afirmar sem reserva
e sem explicação: Teremos atingido a região da perfeita bem-aven­
turança quando cessarmos totalmente de pecar. Os que seguem a
Palavra de Deus não amam a iniqüidade; a regra é perfeita, e se ela
for constantemente seguida não haverá erro. A vida, para o obser­
vador do lado de fora, consiste em atos; e aquele que, em suas
atividades, nunca se desvia da eqüidade, quer em relação a Deus,
quer em relação aos homens, realmente tomou o caminho da per­
feição, e estejamos certos de que seu coração é íntegro nele. Então
notamos que um coração íntegro se desvia do mal, porquanto o
salmista diz: “Que o buscam de todo o coração. Também não pra­
ticam iniqüidade.” Receamos que ninguém tenha como alegar ser
absolutamente destituído de pecado; todavia nutrimos confiança
de que existam muitos que podem alegar que intencional, voluntá­
ria, consciente e continuamente fogem de fazer o que é perverso,
ímpio ou injusto. A graça conserva a vida íntegra, mesmo quando
o cristão se põe a deplorar as transgressões do coração. Conside­
rados como seres humanos, julgados por seus semelhantes de acor­
do com as normas que os homens impõem aos homens, o genuíno
povo de Deus não pratica iniqüidade: são honestos, íntegros e cas­
tos e, no que tange à justiça e moralidade, são inculpáveis. Portan­
to são bem-aventurados.
Andam em seus caminhos. Inclinam-se não só para os gran­
des princípios da lei, mas também para os mínimos detalhes de
preceitos específicos. Uma vez que fogem de perpetrar qualquer
pecado de comissão, assim também esforçam-se por se ver livres
de todo pecado de omissão. Não lhes basta ser inculpáveis, tam-
• 15 •
Salm o 11S

bém desejam ser ativamente justos. É possível que um ermitão fuja


para a solidão a fim de não praticar a iniqüidade; um santo, toda­
via, vive em sociedade a fim de servir a seu Deus andando em seus
caminhos. Precisamos ser justos tanto positiva quanto negativa­
mente: jamais teremos a posse do segundo, a menos que tomemos
posse do primeiro; pois os homens terão que percorrer um cami­
nho ou outro, pois se não seguirem a vereda da lei de Deus, logo/
estarão praticando a iniqüidade. A mais segura maneira de abster-
se do mal é vivendo totalmente ocupados na prática do hem. Este
versículo descreve os cristãos como existem entre nós: embora se­
jam falhos e frágeis, todavia odeiam o mal e não se permitirão
viver nele; amam as veredas da verdade, da justiça e da genuína
piedade, e habitualmente andarão nelas. Não alegam ser absoluta­
mente perfeitos, exceto em seus anseios, nos quais são de fato
puros; pois anseiam ser guardados de todo pecado e de ser guia­
dos a toda a santidade. Gostariam de andar sempre segundo o
anseio de seus corações renovados; de seguir o Senhor Jesus em
cada pensamento, palavra e ação; sim, gostariam que todo seu ser
fosse a encarnação da santidade^C/55'
[v. 4] , í \
Tu ordenaste teus mandamentos, para que diligentemente os obser­
vássemos. • •
De tal sorte que, quando tivermos feito tudo, nos sintamos
servos inúteis, tendo feito somente aquilo que nos competia fazer,
não indo além dd mandamento de nosso Senhor. Os preceitos de
Deus requerem criteriosa obediência, não sua observância por aci­
dente. Há quem presta a Deus um serviço displicente, uma sorte
de obediência à revelia; o Senhor, porém, não ordenou tal serviço,
tampouco o aceita. Sua lei demanda o amor de todo nosso cora-
çao, de toda nossa mente, de toda nossa alma e de toda nossa
força; e uma religião displicente não contém nada disso. Somos
também chamados a uma zelosa obediência. Devemos guardar os
preceitos sobejamente: os vasos de obediência devem estar cheios
até à borda; e o mandamento concretizado, à plenitude de seu
significado. Como um profissional diligente se ergue para fazer
• 16 •
^ P O S IÇ Ã O 1

tanto negócio quanto possa, assim devemos ser solícitos em servir


ao Senhor o máximo que pudermos. Tampouco devemos poupar
sacrifícios em agir assim, pois uma obediência diligente também
será laboriosa e saturada de renúncia. Os que são profissionais
diligentes levantam mais cedo e assentam mais tarde, e negam a si
o merecido conforto e repouso. Não se mostram logo cansados;
ou, se o sentem, perseveram mesmo com a fronte dolorida e os
olhos pesados. É assim que devemos servir ao Senhor. Tal Mestre
merece servos diligentes; tal serviço ele demanda e nada menos
que isso o satisfaz. Quão raramente os homens o atendem! Por
isso muitos, por sua negligência, perdem a duplicada bênção ex­
pressa neste Salmo.
Alguns são diligentes em superstição e indispostos a cultuar; é
nosso dever ser diligentes em observar os preceitos de Deus. Não
viajaremos com rapidez se não estivermos habituados com a rodo­
via. Os homens se fazem diligentes numa empresa que está gerando
prejuízo; quanto mais negócio fazem, mais perda têm: se isso é um
grande mal no comércio, pior ainda o é no tocante a nossa religião.
Deus não nos ordenou ser diligentes em fazer preceitos, mas
em guardá-los. Há quem põe jugo em seu próprio pescoço e faz
algemas e normas para outros; mas uma diretriz sábia se satisfaz
com as normas da Santa Escritura, em relação a todos os homens
e em todos os aspectos. Caso não ajamos assim, podemos tornar-
nos eminentes em nossa própria religião, mas não teremos obser­
vado o mandamento de Deus, nem seremos por ele aceitos.
O salmista começou com a terceira pessoa: “Bem-aventurados
são os retos.” Ele está agora aproximando-se do pessoal, atingin­
do a primeira pessoa do plural: “Tu [nos] ordenaste teus manda­
mentos.” Logo o ouviremos clamando pessoalmente para si mes­
mo: “Quem dera meus caminhos fossem dirigidos para observar
teus mandamentos.” Quando o coração se avoluma em amor pela
santidade, mais interesse pessoal temos nela. A Palavra de Deus é
um livro repassado de afeto; e quando começamos a entoar os
louvores divinos, ele logo nos domina interiormente e passamos a
orar para sermos conformados a seus ensinamentos. Não gostaria
o leitor de parar aqui, e de entregar-se à extasiante meditação de
. 17 •
Salm o llp

seu próprio coração na autoridade divina das Escrituras, a fim de


devotar-se pessoalmente a cuidadosa, meditativa, constante, pon­
tual e alegre observância dos preceitos do Senhor?
[v. 5]
Quem dem meus caminhos fossem dirigidos para observar teus man­
damentos!
Os mandamentos divinos devem inspirar o tema de nossas ora­
ções. Nós mesmos não podemos guardar os estatutos de Deus
exatamente como ele quer que sejam guardados, e contudo aspi­
ramos fazê-lo; o que fazer, senão orar? Precisamos pedir ao Se­
nhor que realize em nós suas obras, do contrário jamais cumprire­
mos seus mandamentos. Este versículo expressa um lamento de
dor do salmista por sentir que não guardava os preceitos de Deus
diligentemente; é um clamor do fraco que pede socorro a alguém
que podia ajudá-lo; é uma súplica de alguém em profunda perple­
xidade, que perdeu seu caminho e se dispõe a caminhar nele nova­
mente; e é a petição da fé de alguém que ama a Deus e confia nele
para receber a graça.
Nossos caminhos são, por natureza, opostos ao caminho de
Deus, e é preciso que nos deixemos orientar pelo Senhor naquela
direção que originalmente seu caminho nos conduzia, do contrá­
rio seremos conduzidos à destruição. Deus pode dirigir a mente e
a vontade sem violar nossa livre agência, e fará isso em resposta a
nossas orações. Aliás, ele já começou a operar naqueles que since­
ramente oram em harmonia com o padrão encontrado neste versí­
culo. O desejo por santidade atual emana do coração crente: oh,
que bom que ela já estivesse presente em mim! Mas também signi­
fica uma perseverante santidade para o futuro; pois o salmista an­
seia pela graça de guardar doravante e para sempre os estatutos
do Senhor.
O texto realmente expressa uma oração em forma de suspiro,
ainda que não assuma exatamente essa forma. Desejos e anelos
fazem parte da essência da súplica, e pouco importa que forma
eles tomem. A oração aceitável é repassada de expressão como
esta: “Oh, nosso Pai!”
• 18 •
n X P O S IÇ Ã O 1

Alguém dificilmente teria esperado uma oração por direciona­


mento; antes, teríamos esperado uma petição por capacitação.
Podemos sozinhos tomar uma direção certa? Se não podemos re­
mar, podemos obedecer. O salmista, inclusive, confessa que mes­
mo na menor parte de seu dever ele se sentia incapaz sem a graça.
Ele ansiava que o Senhor influenciasse tanto sua vontade quanto o
vigor de suas mãos. Carecemos de uma vara que nos oriente no
caminho e de um cajado que nos sirva de apoio.
O anseio do texto é inspirado pela admiração da bem-aventu­
rança provinda da santidade, pela contemplação da beleza de ca­
ráter do homem justo e pelo reverente temor ao mandamento de
Deus. E uma aplicação pessoal, extraída da própria experiência do
escritor, das verdades que ele esteve considerando. “Oh, que meus
caminhos sejam orientados em guardar teus estatutos.” Que bom
seria se todos os que ouvissem esta palavra copiassem este exemplo
e revertessem em oração tudo o que ouvissem, "leríamos mais guar­
dadores dos estatutos se tivéssemos mais quem suspirasse e cla­
masse por aquela graça que nos impede de vaguearmos sem rumo.
[v. 6]
Então não serei envergonhado, quando tiver respeito por todos teus
mandamentos.
Então não serei envergonhado. Ele tinha conhecimento da
vergonha [ou perturbação do espírito], e aqui se regozija ante a
visão de ver-se livre dela. O pecado traz vergonha, e quando o
pecado se vai, dissipa-se o motivo para envergonhar-se. Que grande
livramento é este! Pois, para certas pessoas, seria preferível a mor­
te do que a vergonha! Quando tiver respeito por todos teus man­
damentos. Ao respeitarmos a Deus, aprendemos a respeitar-nos e
a ser respeitados. Sempre que errarmos, estamos nos preparando
para o rubor da face e o abatimento do coração. Se ao cometer
iniqüidade ninguém sentir vergonha de mim, eu mesmo me senti­
rei envergonhado. Nossos primeiros pais nunca haviam conheci­
do a vergonha, até que se tornaram amigos da antiga serpente; e
cia nunca mais os deixou, até que seu gracioso Deus lhes cobriu a
nudez com peles de animais sacrificados. A desobediência os tor-
• 19 •
S a lm o 11<?

nou nus e confusos. Nós também teremos sempre motivo para


sentir-nos confusos, até que cada pecado seja vencido e cada de­
ver, cumprido. Quando tivermos devotado um respeito contínuo e
universal pela vontade do Senhor, então seremos capazes de visua­
lizar nosso próprio rosto no espelho da lei, e não nos envergonhare­
mos diante dos homens e dos demônios, por mais profunda ira e
malícia possam eles revelar, tentando culpar-nos de alguma coisa.
Muitos sofrem de excessiva timidez, e neste versículo temos a
sugestão da cura. Um senso permanente do dever nos fará ousa­
dos; teremos medo de ter medo. Nenhum acanhamento na pre­
sença do homem nos estorvará quando o temor de Deus tomar
posse plena de nossas mentes. Quando estivermos na estrada do
rei em plena e radiante aurora, e estivermos engajados na ativida­
de do Soberano, então não precisaremos pedir nenhuma permis­
são ao homem. Seria uma desonra a um rei envergonhar-se de sua
criadagem e de seu serviço; nenhuma vergonha desse tipo jamais
deveria enrubescer a face de um cristão, nem lhe faltará a devida
reverência pelo Senhor seu Deus. Não existe numa vida santa
motivo algum para envergonhar-se: alguém pode envergonhar-se
de seu orgulho, de sua opulência, de seus próprios filhos; porém
jamais se envergonhará de haver em tudo respeitado a vontade do
Senhor seu Deus.
É digno de nota que Davi não promete a si nenhuma imunida­
de de sentir vergonha até que tenha cuidadosamente prestado ho­
menagem a todos os preceitos. Pondere na palavra ‘todos’ e não
deixe que um mandamento fique sem ser respeitado por você. A
obediência parcial ainda nos deixa sujeitos a prestar conta dos
mandamentos que negligenciamos. Uma pessoa pode possuir mil
virtudes, e ainda uma única falha pode cobri-la de vergonha.
A um pobre pecador que se vê mergulhado em desespero pode
parecer totalmente improvável que seja um dia libertado da vergo­
nha. Enrubesce-se e se sente confuso, como se nunca mais haverá
de novamente erguer seu rosto. Deveria ler estas palavras: “Então
não terei de que me envergonhar.” Davi não está sonhando nem
idealizando um caso impossível. Ele assegura-lhe, querido amigo,
que o Espírito Santo pode renovar em você a imagem de Deus, de
• 20 •
f X P O S IÇ A O 1

sorte que poderá levantar o rosto sem medo. Oh, santificação que
nos põe novamente no caminho de Deus! A qual nos dá a ousadia
de fitar a Deus e a seu povo, e nos faz dar adeus ao rubor e ao
espírito conturbado.
O Dr. Watts expressa a idéia em sua admirável estrofe, que nos
leva a cantar com ele:
Então meu coração se alegrará;
E meu rosto não mais mostrará rubor,
Quando obedecer teus estatutos
E honrar teu santo Nome.

fv. 7]
Render-te-ei graças com integridade de coração, quando tiver apren­
dido teus retos juízos.
Render-te-ei graças. Da oração ao louvor nunca é uma jorna­
da longa demais nem difícil. Esteja certo de que aquele que ora
por santidade um dia há de louvar agradecido pela felicidade. A
vergonha uma vez desvanecida, o silêncio é quebrado, e a pessoa
outrora muda passará a cantar: “Louvar-te-ei.” Ela não pode fa­
zer outra coisa senão comprometer-se a louvar enquanto busca a
santificação. Isso revela que ela sabe muito bem em que cabeça
porá a coroa: “Louvar-T£-ei.” Poderia sentir-se uma pessoa lou­
vável, mas prefere considerar a Deus como o único digno de seu
louvor. Pelo prisma da dor e da vergonha provenientes do pecado,
ela mede suas obrigações para com o Senhor, o qual lhe ensina a
arte de viver, levando-a primeiramente a escapar, purificando-se
de sua miséria.
Com integridade de coração. Seu coração será íntegro, se o
Senhor instruí-lo para em seguida poder louvar seu Mestre. Existe
algo chamado louvor falso e fingido, o qual o Senhor abomina;
porém não existe música comparável àquela que brota de uma alma
purificada e que permanece em sua integridade. E na escola em
que se ensina a integridade que se requer louvor sincero que brota
da retidão do coração. O coração íntegro certamente bendirá o
Senhor; pois a adoração agradecida é parte de sua integridade -
• 21 •
' S a lm o 1Q

ninguém poderá ser justo enquanto não for impoluto para com
Deus; e isso envolve o dever de render-lhe louvores.
Quando tiver aprendido teus retos juízos. Precisamos apren­
der a louvar; aprender que podemos louvar; e louvar quando tiver­
mos aprendido. Quando estivermos abertos ao aprendizado, en­
tão o Senhor poderá ensinar-nos, especialmente diante de um tema
como teus juízos, pois eles são um abismo profundo. Enquanto
passam diante de nossos olhos, e começamos a aprendê-los, pas­
samos a louvar a Deus; pois o original não é: “Quando tivermos
aprendido”, e, sim: “durante minha aula”. Enquanto sou ainda
estudante, serei um corista: meu íntegro coração louvará tua reti­
dão; minha mente purificada admirará teus juízos. A providência
divina é um livro cheio de instruções, e para aqueles cujo coração
é íntegro ele é um hinário, no qual entoam os cânticos de Jeová. A
Palavra de Deus é repassada de registros de suas justas providên­
cias, e quando a lemos nos sentimos compelidos a irromper-nos
em expressões de santo deleite e de ardente louvor. Quando lemos
os juízos de Deus e participamos efusivamente deles, somos du­
plamente movidos a cantar - cânticos sem qualquer formalidade,
sem hipocrisia, sem indiferença; pois o coração se revela íntegro
na apresentação de seu louvor.
[v. 8]
Guardarei teus estatutos. Não me desampares completamente.
Guardarei teus estatutos. Uma calma resolução. Quando lou­
vamos calmamente, em sólida resolução, estará tudo bem com nossa
alma. O zelo que se esmera em cantar, porém não deixa nenhum
resíduo prático de um viver santo, é bem pouco digno: “Louvar-
te-ei” está em íntima parceria com “Guadarei”. Essa firme resolu­
ção é de nenhuma forma jactanciosa, no dizer de Pedro: “Ainda
que eu morra contigo, contudo não te negarei”; porque vem se­
guido de uma humilde oração por auxílio divino: “Oh, não me
desampares completamente!” Sentindo sua própria incapacidade,
ele treme de medo de ficar sozinho, e tal medo é agravado pelo
horror ante a possibilidade de cair em pecado. O ‘guardarei’ soa
justamente agora que o humilde clamor é ouvido juntamente com
• 22 •
J ^ X P O S IC Ã O 1

ele. Eis um ditoso amálgama: resolução e dependência. Encontra­


mo-nos com aqueles que oram aparentando humildade, mas não
vemos neles nenhuma força de caráter, nenhuma decisão e, con-
seqüentemente, o recurso da meditação não se acha incorporado
em sua vida; em contrapartida, nos deparamos com abundância
de resolução acompanhada de total ausência de dependência de
Deus, e isso faz um caráter tão paupérrimo como a primeira atitu­
de. Que o Senhor nos conceda possuirmos uma tal combinação
de excelências, para que sejamos “perfeitos e íntegros, em nada
deficientes”.
Esta é uma oração que indubitavelmente será ouvida; pois ousa­
damente se põe a rogar a Deus que olhe para uma pessoa que se
dispõe a obedecer a sua vontade, e por isso deve ser-lhe muitíssimo
agradável estar presente com tal pessoa e socorrê-la em seus esfor­
ços. Como poderia ele esquecer alguém que não esquece sua lei?
A reverência peculiar que matiza esta oração com cores som­
breadas é o medo do total abandono. E natural que a alma clame
contra tal calamidade. Viver isolados para podermos descobrir o
quanto somos frágeis é uma prova suficientemente terrível; ser
totalmente abandonado equivale a ruína e morte. Ocultar Deus o
rosto num laivo de ira, por um instante apenas, produz em nós
profunda humilhação - absoluta desolação nos mergulharia final-
mente no mais profundo inferno. O Senhor, porém, jamais esque­
cerá seus servos completamente, e bendito seja seu Nome, porque
ele nunca quer fazer isso! Se aspirarmos guardar seus estatutos,
ele nos guardará; sim, sua graça nos levará a cumprir sua lei.
Há uma descida abrupta do monte de bênção, que começa no
primeiro versículo, ao quase pranto deste oitavo versículo; todavia
isso é espiritual e experimentalmente um decidido e gracioso cres­
cimento; pois da simples admiração da benevolência de Deus che­
gamos ao ardente anelo por ele, anelando pela comunhão com ele
e vendo-nos dominados por intenso horror de não desfrutá-la. O
suspiro do versículo 5 é agora suplantado por uma oração verbal
que procede das profundezas de um coração cônscio de sua indig­
nidade e sensível a sua inteira dependência do amor divino. Os
dois verbos no futuro —“louvar-te-ei” e “guardarei teus estatutos”
• 23 •
S a lm o Uy

—precisam ser temperados com uma humilde petição, do contrá­


rio poder-se-ia imaginar que a dependência da pessoa bondosa
estava até certo ponto fixa em sua própria determinação. Ele apre­
senta suas resoluções como sacrifício, mas clama ao céu pelo fogo.
O querer está nele, mas não pode concretizar aquilo que tanto
gostaria, a menos que o Senhor o habite e o habilite.
Este último versículo da primeira oitava tem um elo de ligação
com o primeiro da próxima [oitava, v. 9], nesta forma: Senhor,
não te esqueças de mim, pois de que maneira purificarei meu ca­
minho se não caminhas comigo, e tua lei cessa de exercer poder
sobre mim?

• 24 •
(vv. 9-16)
De que maneira poderá o jovem guardar puro seu caminho? Obser­
vando-o segundo tua palavra. De todo o coração te busquei; não me
deixes fugir de teus mandamentos. Guardei no coração tuas palavras,
para não pecar contra ti. Bendito és tu, ó Senhor; ensina-me teus esta­
tutos. Com meus lábios tenho narrado todos os juízos de tua boca.
Mais me regozijo com o caminho de teus testemunhos do que com
todas as riquezas. Meditarei em teus preceitos e a tuas veredas terei
respeito. Deleitar-me-ei em teus estatutos; e não me esquecerei de tua
palavra.
Estes versículos começam nos primórdios da vida. Embora es­
critos por um ancião, foram escritos visando a todos os jovens.
Somente aquele que começa com Deus no verdor da juventude é
que será capaz de escrever assim com base na experiência e na
maturação da idade. Logo que Davi termina de introduzir seu tema
com uma oitava de versículos, ele passa a focalizar os jovens na
presente estrofe de oitava. Como teria ele ponderado sobre a ju­
ventude piedosa! No hebraico, cada versículo, nesta seção, come­
ça com B. Se pensamentos sobre o Bendito Caminho forma seu A,
então os pensamentos sobre a Bendita Juventude saturarão a pró­
xima letra. Que glória estar primeiramente com Deus! Oferecer-
lhe o orvalho da aurora da existência é fazer da vida a suprema
felicidade.
[v. 9]
De que maneira poderá o jovem guardar puro seu caminho? Obser­
vando-o segundo tua palavra.
De que maneira poderá o jovem guardar puro seu cami­
nho? Como poderá ele tornar-se e manter-se santo na prática?
• 25 •
S a lm o 1Q

Ele não passa de um jovem, cheio de quentes paixões e carente de


conhecimento e experiência; como poderá conquistar o certo e
conservar o certo? Nunca houve uma pergunta mais importante
para qualquer pessoa; nunca haverá um tempo mais oportuno para
fazê-la do que no início da vida. Não é uma tarefa de forma algu­
ma fácil para um jovem ver-se no espelho da realidade. Deseja
escolher um caminho limpo, sendo ele mesmo limpo, ver seu ca­
minho isento de qualquer imundície que porventura surja no futu­
ro e encerrar mostrando um curso límpido desde o primeiro passo
até o último. Mas, ai de mim!, dirá ele, meu caminho já é impuro
pelo pecado atual que já cometi, e eu mesmo possuo em minha
própria natureza a tendência para aquilo que contamina. Mas essa
é uma questão muito difícil: primeiro, de começar certo; em se­
guida, de ser sempre capaz de saber escolher o certo e de prosse­
guir agindo certo até que a perfeição seja por fim alcançada —se
isso é difícil para qualquer pessoa, como um jovem poderá conse­
gui-lo? O caminho, ou a vida, de uma pessoa tem que ser purifica­
da dos pecados de sua juventude atrás de si, e mantida pura dos
pecados que surgirão diante de si: eis a obra; eis a dificuldade.
Nenhuma ambição mais nobre que esta poderá um jovem de­
parar diante de si, nenhuma para a qual é ele chamado a assegurar
uma vocação; porém nenhuma em que encontrará maiores difi­
culdades. Entretanto, que ele jamais se esquive do glorioso empre­
endimento de viver uma vida pura e graciosa; ao contrário, que ele
descubra no caminho todos os obstáculos que precisam ser venci­
dos. Tampouco pense ele que já conhece a estrada para uma vitó­
ria fácil, nem sonhe que pode guardar-se por sua própria sabedo­
ria. Fará bem seguindo o exemplo do salmista, tornando-se um
solícito inquiridor, perguntando como poderá purificar seu cami­
nho. Que se torne um discípulo prático do santo Deus, o único
que pode ensiná-lo como vencer o mundo, a carne e o diabo, esta
tríade de conspurcadores por meio da qual a vida promissora de
muitos se torna conspurcada. Ele é jovem e inexperiente na estra­
da, por isso não se acanhe de freqüentemente inquirir sobre o ca­
minho de alguém que está pronto e habilitado para instruí-lo no
mesmo.
• 26 •
p X P O S IÇ Â O 2

Nosso caminho é um tema que nos preocupa profundamente,


e é muitíssimo preferível inquirir sobre ele do que especular acerca
de temas misteriosos que antes fascina do que ilumina a mente.
Dentre todas as perguntas que um jovem faz, e são muitas, que
esta seja a primeira e principal: “De que maneira poderei guardar
puro meu caminho?” Esta é uma pergunta sugerida pelo senso
comum e acossada pelas ocorrências diárias; mas não deve ser
respondida pela razão desamparada; nem, quando respondida, as
diretrizes podem ser confirmadas pelo poder humano impotente.
Nossa tarefa é formular a pergunta; a Deus cabe fornecer-nos a
resposta e capacitar-nos para torná-la concreta.
Observando-o segundo tua palavra. Querido jovem, que a
Bíblia seja seu mapa, e que você exerça grande vigilância para que
seu caminho se amolde a suas diretrizes. Você deve cuidar para
que sua vida diária seja pautada pelo estudo de sua Bíblia, e deve
estudá-la para que aprenda a precaver-se em sua vida diária. Com
o máximo cuidado, uma pessoa ainda poderá extraviar-se, caso
seu mapa a conduza equivocadamente; porém, com um bom mapa,
ela ainda poderá perder sua estrada, caso esteja desatenta. O ca­
minho estreito jamais poderá ser achado por acaso, tampouco uma
pessoa descuidosa jamais viverá uma vida santa. Podemos pecar
sem refletir; o que temos a fazer é apenas negligenciar a grande
salvação e arruinar nossa alma. Obedecer, porém, ao Senhor e
andar retamente carece de todo nosso coração, alma e mente. Que
os displicentes recordem isso.
Não obstante, a palavra é absolutamente necessária; pois, caso
contrário, a prudência se transformará em mórbida ansiedade e a
escrupulosidade poderá transformar-se em superstição. Um capi­
tão poderá vigiar de seu tombadilho a noite inteira; mas se nada
conhecer da região costeira e não tiver a bordo nenhum piloto
apto, com toda sua prudência poderá apressar-se para o naufrá­
gio. Não basta querer ser certo; pois a ignorância pode levar-nos a
pensar que estamos fazendo o serviço de Deus, quando, na verda­
de, o estamos provocando; e o fato de nossa ignorância não rever­
terá o caráter de nossa ação, por mais que ela mitigue seu poder
criminoso. Se uma pessoa demarcar cuidadosamente o que crê
• 27 •
' S a im o \\f>

ser uma dose de medicamento útil, ela morrerá se vier a perceber


que lançou mão de um frasco errado e que serviu-se de um vene­
no mortífero; o fato de fazer isso ignorantemente não alterará o
resultado. Ainda assim, um jovem poderá cercar-se de dez mil males
ao valer-se cuidadosamente de um critério imponderado e recusar
o recebimento da instrução da Palavra de Deus. Ignorância inten­
cional por si só equivale a pecado intencional, e o mal advindo daí
é injustificado. Que cada pessoa, seja jovem ou idosa, que anseia
ser santa, então mantenha em seu coração uma santa vigilância, e
mantenha sua santa Bíblia aberta bem diante de seus olhos. Aí ela
encontrará assinalada cada curva da estrada, cada lamaçal, cada
atoleiro indicado, com a via de chegada desimpedida; e aí, tam­
bém, achará luz para suas trevas, conforto para sua exaustão e
companhia para sua solidão, de modo que, com seu auxílio, alcan­
çará a bênção do primeiro versículo do Salmo, a qual inspirou a
solicitação do salmista e despertou seus anseios.
Note a posição que a primeira seção de oitos versículos man­
tém para com seu primeiro versículo: “Bem-aventurados os irre­
preensíveis em seu caminho”, e a segunda seção corre paralela a
ele, com a pergunta: “De que maneira poderá o jovem guardar
puro seu caminho?” A bem-aventurança que é posta diante de
nossos olhos numa promessa condicional deve ser buscada de for­
ma prática na forma designada. Diz o Senhor: “Por isso eu serei
buscado pela casa de Israel para agir por eles.”
Quanto mais depressa nos valemos de uma promessa de Deus,
melhor; especialmente quando no raiar do dia nos nutrimos de
ânimo, pois disse a Sabedoria: “Aqueles que no alvorecer me bus­
cam, encontrar-me-ão.” E lamentável que por um ano, ou mesmo
um dia ou uma hora, percamos a bem-aventurança que pertence à
santidade.
[v. 10]
De todo meu coração te busquei; não me deixes fugir de teus manda­
mentos, .
De todo meu coração te busquei. Seu coração saíra em busca
de Deus como tal; não só desejava obedecer a suas leis, mas tam­
• 28 •
p X P Q 5 IÇ Â O 2

bém comungar com sua pessoa. Essa é uma busca real, justa e
persistente, e pode muito bem ser continuada de todo o coração.
O modo mais seguro de purificar o caminho de nossa vida é bus­
cando a Deus como tal e diligenciando-nos em permanecer em
comunhão com ele.
E agradável ver como o coração do escritor se volve distinta e
diretamente para Deus. Ele estivera considerando uma importan­
te verdade no versículo anterior; aqui, porém, ele mais poderosa­
mente sente a presença de seu Deus, e lhe fala e ora a ele como
alguém que se encontra bem perto. Um coração sincero não pode
viver por muito tempo sem comunhão com Deus.
Sua petição se fundamenta no propósito de sua vida; ele está
buscando o Senhor e roga a que o Senhor não permita que ele'
desista de sua busca. E através da obediência que vamos após Deus;
daí a oração: “Não me deixes fugir de teus mandamentos.” Pois se
desistirmos dos caminhos designados por Deus, certamente não
acharemos o Deus que os designou. Quanto mais a totalidade do
coração humano é posta na santidade, mais ele teme cair em peca­
do. Ele não se sente suficientemente temeroso de cometer trans­
gressão deliberadamente quando não passa de um viandante dis­
plicente. Ele não pode tolerar um aspecto displicente nem um pen­
samento disperso que vagueia para longe dos limites do preceito.
Devemos ser como os que sinceramente buscam a Deus, os quais
não têm tempo nem vontade de perambular, e juntamente com
nossa sinceridade devemos cultivar um zeloso temor para não va­
guearmos longe da vereda da santidade.
Duas coisas podem ser bem parecidas e ao mesmo tempo total­
mente distintas: os santos são ‘peregrinos" - “Sou peregrino na ter­
ra” (v. 19) -, mas não são andarilhos; estão de passagem pelo país
dos inimigos, mas sua rota segue em frente; estão buscando seu
Senhor enquanto atravessam essa terra estrangeira. Seu caminho
não é visto pelos homens; porém ainda não perderam sua rota.
O homem de Deus se exercita, mas não confia em si mesmo;
seu coração está em seu caminhar com Deus; mas ele sabe que
mesmo toda sua força não basta para mantê-lo no rumo certo, a
menos que seu Rei seja seu guardador; e Aquele que fez os man­
• 29 •
5 a lm o 11?

damentos o fará perseverante em obedecê-los; daí a oração: “Não


me deixes fugir.” Não obstante, tal senso de carência jamais se
converteu em apologia da indolência; pois enquanto orava para
ser guardado na rota certa, ele se precavia para percorrê-la, bus­
cando o Senhor com todas as veras de seu coração.
Note como a segunda oitava deste Salmo se harmoniza com a
primeira: onde o versículo 2 declara que o homem, para ser bem-
aventurado, deve buscar o Senhor de todo seu coração; o presente
versículo reivindica a bênção declarando o caráter: “De todo meu
coração te busquei.”
[v. 11]
Guardo no coração tuas palavras para não pecar contra ti.
Quando uma pessoa piedosa suplica pelo favor divino, ela deve
criteriosamente usar todos os meios para sua obtenção; e, con-
seqüentemente, como o salmista suplicara que fosse preservado
de vaguear sem rumo, ele aqui nos mostra a santa precaução que
tomara para evitar de cair em pecado. “Guardei no coração tuas
palavras.” Seu coração seria guardado pela palavra, visto haver
guardado a palavra em seu coração. Tudo quanto escrevera sobre
a palavra, e tudo quanto lhe fora revelado pela voz divina - tudo,
sem exceção, ele armazenara em suas afeições, como um tesouro
a ser preservado num escrínio, ou como uma semente selecionada
para ser depositada no solo fértil - que solo mais fértil há do que
um coração renovado, totalmente dedicado a buscar o Senhor? A
palavra era do próprio Deus, e por isso era preciosa ao servo de
Deus. Ele não usa a palavra sobre seu coração como um talismã,
mas a ocultou em seu coração como uma norma. Ele a deposita
onde habita o amor e a vida, e ali ela encheu as recamaras com
doçura e luz. Devemos imitar a Davi, imitando tanto sua atitude
subjetiva quanto seu caráter objetivo. Primeiro, devemos ponde­
rar que o que cremos é genuinamente a palavra de Deus; isso fei­
to, devemos ocultá-la ou entesourá-la, cada um de per si; e é pre­
ciso que notemos bem que isso deve ser feito não como uma proe­
za da memória, mas como um jubiloso ato das afeições.
Para não pecar contra ti. Eis aqui o objetivo almejado. Como
• 30 •
H x po s iç ã o 2

disse alguém corretamente: Aqui está a coisa mais preciosa - tua


palavra; oculta no melhor lugar - em meu coração; com o melhor
dos propósitos - para não pecar contra ti. Isso foi feito pelo sal­
mista com cuidado pessoal, como alguém que oculta cuidadosa­
mente seu dinheiro quando receia a presença de ladrões; neste
caso, o temível ladrão era o pecado. “Pecar contra Deus” é o con­
ceito cristão de mal moral; as demais pessoas só se preocupam
quando ofendem seus semelhantes. A palavra de Deus é o melhor
preventivo para a ofensa contra Deus, pois ela expressa sua mente
e vontade e se propõe a levar nosso espírito a conformar-se com o
divino Espírito. Nenhuma cura para o pecado na vida se compara
à palavra na sede da vida, que é o coração.
Obtém-se uma agradável variedade de significado pondo a
ênfase nas palavras ‘tua’ e ‘ti’. Ele fala a Deus, ama a palavra por­
que ela é a palavra de Deus e odeia o pecado porque ele é pecado
contra o próprio Deus. Se porventura aborrece alguém, sua con­
clusão é que com isso ele ofendeu a Deus. Se não provocamos o
desprazer de Deus é porque entesouramos sua própria palavra.
É também digno de nota o modo pessoal como alguém temen­
te a Deus faz isso: “De todo meu coração te busquei.” Seja o que
for que outros escolham fazer, ele já fez sua escolha e já colocou a
Palavra nos recessos mais íntimos de sua alma como seu mais de­
sejável deleite; e se porventura outros preferem transgredir, seu
alvo é seguir após a santidade: “Para eu não pecar contra ti.” Isso
não era o que se propusera fazer, mas o que já havia feito. Muitos
são ostensivos em prometer; o salmista, porém, fora autêntico em
concretizar; por isso esperava ver um resultado seguro. Quando a
Palavra está escondida no coração, a vida estará resguardada do
pecado.
O paralelismo entre a segunda oitava e a primeira ainda conti­
nua. O versículo 3 fala de não praticar iniqüidade, enquanto que
este versículo trata do método de não pecar. Quando formamos
uma idéia de alguém abençoadamente santo (v. 3), ela nos leva a
lazer um ardente esforço para atingirmos a mesma sacra inocên­
cia c divina felicidade; e isso só pode ocorrer através de um cora­
ção piedoso alicerçado nas Escrituras.
• 31 •
S a lm o 115?

[v. 12]
Bendito és tu, ó Senhor; ensina-me teus estatutos.
Bendito és tu, ó Senhor. Estas palavras de adoração são oriun­
das de intensa admiração pelo caráter divino, o qual o escritor
humildemente almeja imitar. Ele bendiz a Deus por tudo o que lhe
revelara e operara nele; ele o louvo com a calidez de reverente
amor e com a profundidade de santa admiração. Estas são tam­
bém palavras de percepção que emanam da consciência da pro­
funda e infinita felicidade de Jeová em seu interior. O Senhor é e
deve ser bendito, pois ele é a perfeição da santidade; e essa prova­
velmente seja a razão por que isso é usado como uma súplica neste
lugar. E como se Davi dissesse: Vejo que de conformidade contigo
meu caminho para a felicidade foi encontrado, pois tu és supre­
mamente bendito; e se em minha estatura assimilei tua própria
santidade, também serei participante de tua bem-aventurança.
Mal chegou a palavra em seu coração quando um ardente de­
sejo veio à tona para assimilá-la e guardá-la. Quando o alimento é
deglutido, 0 próximo passo é digeri-lo; e quando a palavra é rece­
bida no âmago da alma, a primeira oração é: Senhor, ensina-me
seu significado. “Ensina-me teus estatutos.”; pois somente assim
posso aprender o caminho da bem-aventurança. Tu és tão bem-
aventurado, que estou certo de que te deleitarás em abençoar ou­
tros; e imploro-te que me dês esta dádiva a fim de que eu seja
instruído em teus mandamentos. As pessoas felizes geralmente
sentem o maior prazer em fazer outros felizes; e com toda certeza
o Deus feliz se disporá em comunicar santidade que é a fonte da
felicidade. A fé inspirou esta oração e a alicerçou, não em algo
visto no homem orando, mas exclusivamente na perfeição do Deus
a quem se faz a súplica. Senhor, tu és bendito, por isso abençoa-
me com tua doutrina.
Precisamos ser discípulos ou aprendizes - ensina-me. Que
honra ter Deus pessoalmente como professor! Quão ousado é Davi
em suplicar ao Deus bendito que o ensine! Todavia foi o Senhor
mesmo quem pôs tal desejo em seu coração quando a sacra pala­
vra foi depositada ali, e portanto podemos estar certos de que ele
• 32 •
f^xposiçÃo 2
não se mostrou exageradamente ousado em expressá-la. Quem
não se dispõe a entrar na escola de tal Professor com o fim de
aprender dele a arte do santo viver? A este Instrutor devemos sub­
meter-nos, caso queiramos guardar de maneira prática os estatu­
tos da retidão. O Rei que ordenou os estatutos sabe perfeitamente
seu significado, e visto serem eles o produto de sua própria natu­
reza, ele pode inspirar-nos melhor com o espírito dos mesmos. A
petição se impõe a todos quantos desejam purificar seu caminho,
visto ser ela muito prática e solícita por instrução, não com base
na erudição secreta, mas com base na lei na forma de estatuto. Se
porventura conhecemos os estatutos do Senhor, então possuímos
uma educação que é muitíssimo essencial.
Que cada um de nós saiba dizer: Ensina-me teus estatutos. Eis
aqui uma doce oração para ser feita a cada dia. Ela está a um
passo do versículo 10: “Não me deixes fugir”, como este está a um
passo do versículo 8: “Não me desampares jamais.” Sua resposta
se acha nos versículos 98-100: “Teus mandamentos me fazem mais
sábio que meus inimigos; porque, aqueles, eu os tenho sempre
comigo. Compreendo mais que todos meus mestres, porque me­
dito em teus testemunhos. Sou mais prudente que os idosos, por­
que guardo teus preceitos.” Não, porém, até que fosse repetido
ainda pela terceira vez no “Ensina-me” dos versículos 33 e 66,
para o quê solicitei a atenção de meus leitores. Mesmo depois des­
ta terceira súplica, a oração ocorre novamente em diversas pala­
vras nos versículos 124 e 139, e o mesmo anseio se aproxima do
final do Salmo, no versículo 171: “Profiram louvor meus lábios,
pois me ensinas teus decretos.”
[v. 13]
Com os lábios tenho narrado todos os juízos de tua boca.
O aluno do versículo 12 é aqui o próprio professor. O que
aprendemos em secreto devemos proclamar dos telhados. O sal­
mista havia feito isso. A medida que conhecia, ele falava. Deus
revelara com sua própria boca, por assim dizer, muitos de seus
juízos através de revelação clara e pública; esses juízos é nosso
dever repetir, transformando, por assim dizer, em ecos infinitos e
• 33 •
S a lm o ))p

exatos de sua própria e infalível voz. Há juízos divinos que são um


profundo abismo, os quais ele não revela e nos quais seremos sábi­
os em não intrometer-nos. O que o Senhor ocultou nos será pre­
sunçoso tentar descobrir; mas, em contrapartida, o que o Senhor
revelou nos será vergonhoso manter velado. Ao cristão é um gran­
de conforto, em tempo de tribulação, volver seus olhos para a vida
pregressa e poder exclamar haver cumprido seu dever à luz da
Palavra de Deus. De haver sido, como Noé, um pregador da justi­
ça; desfrutar de grande alegria quando vierem os dilúvios e o mundo
ímpio estiver sendo destruído. Os lábios que tiverem sido usados
na proclamação dos estatutos de Deus estão certos de ser aceitos
quando implorarem que Deus cumpra suas promessas. Se tiver­
mos tal respeito por aquilo que procede da boca de Deus, aquilo
que temos publicado longe e amplamente, podemos descansar ple­
namente certos de que Deus também respeitará as orações que
forem pronunciadas por nossa boca.
Um método eficaz para um jovem purificar seu caminho é de­
dicando-se ele continuamente à pregação do evangelho. Ele não
pode deixar de notar aqueles cuja alma se ocupa totalmente em
proclamar os juízos do Senhor. Ao ensinarmos, aprendemos; ao
treinarmos a língua para a santa proclamação, dominamos todo o
corpo; ao nos familiarizarmos com o divino procedimento, nos
deleitamos na justiça; e assim, de uma tríplice forma, nosso cami­
nho é purificado enquanto proclamamos o caminho do Senhor.
Que alegria para alguém que é capaz de retroceder sua visão
para o fiel testemunho em prol da divina verdade! Quando os can­
sativos e sacros serviços dominicais cheguem ao fim, quão doce é
sentir que proclamamos, não nossas próprias palavras, mas as
doutrinas da divina revelação! Quando chegar o dia de nossa par­
tida, que imensa consolação poder dizer: “Guardei a fé.” Segura­
mente Cristo rogou por aqueles cujas vidas são gastas em implo­
rar a ele.
[v. 14]
Mais me regozijo com o caminho de teus testemunhos do que com
todas as riquezas.
• 34 •
XPQ 5 1 Ç A O 2

Deleitar-se na Palavra de Deus é uma prova infalível de que ela


de fato tomou posse do coração, e assim está purificando a vida.
O salmista não só afirma que se regozija, mas que se regozijara.
Durante anos sua alegria e bênção tinham sido dedicar sua alma
ao ensino da Palavra. Seu júbilo não só procedia da Palavra de
Deus, mas também das características práticas dela. O caminho
lhe era tão precioso quanto a Verdade e a Vida. Com Davi não era
uma simples questão de pegar e escolher, mas que escolheu pri­
meiro o mais prático. “Do que com todas as riquezas.” Ele com­
parou seu intenso prazer na vontade de Deus com grandes e vari­
adas situações que uma pessoa possui, e seu coração se regozija
nessas coisas. Davi tinha experiência com as riquezas oriundas da
soberania cuja posse veio de conquistas; ele valorizava a riqueza
que procede do labor ou que vem de herança: ele conhecia “todas
as riquezas”. O gracioso rei se alegrava em ver o ouro e a prata
lançados em seu tesouro para empregar grandes quantias na cons­
trução do Templo de Jeová no Monte Sião. Alegrava-se em todas
as sortes de riquezas consagradas e destinadas aos mais nobres
usos; e todavia o caminho da Palavra de Deus lhe injetara muito
mais prazer do que mesmo tais riquezas. Observe que sua alegria
era pessoal, distinta, compensadora e sobeja Não admira que no
versículo anterior tenha ele se gloriado em haver falado muito da­
quilo em que tanto se regozijava: uma pessoa pode falar com boca
cheia daquilo em que se deleita.
[v. 15]
Meditarei em teus preceitos e a tuas veredas terei respeito.
Meditarei em teus preceitos. Aquele que se deleita interior­
mente em algo não afasta do mesmo sua mente. Como o avarento
amiúde volta a falar de seu tesouro, assim o crente devoto, por
meio de freqüente meditação, se volve para a principesca riqueza
que descobriu no Livro do Senhor. Para algumas pessoas, medita­
ção é uma tarefa; para a pessoa de caminho purificado, ela é uma
alegria. Aquele que tem meditado voltará a meditar; aquele que
diz: “regozijei-me” é o mesmo que acrescenta: “meditarei”. Ne­
nhum exercício espiritual é mais gratificante à alma do que o da
• 35 •
S a lm o 115?

meditação devota; por que, pois, muitos de nós somos tão excessi­
vamente relapsos quanto a ela? E digno de observação que a parté
preceptiva da Palavra de Deus era um especial tema de meditação
para Davi; e isso é muito natural, porquanto estava ainda em sua
mente a pergunta concernente ao jovem que purifica seu caminho.
Piedade prática é piedade vital.
E a tuas veredas terei respeito. Ou seja, pensarei muito sobre
elas à medida que sei o que teus caminhos significam; e ainda:
Pensarei muito nelas à medida que vai crescendo a reverência que
nutro por teus caminhos. Avaliarei o que teus caminhos significam
para mim, para que me encha de reverência, de gratidão e de amor;
e então observarei quais são os caminhos nos quais queres que te
siga; desses terei cuidadosa vigilância, para que eu me torne obe­
diente e prove ser um genuíno servo de um Senhor tão amável.
Note como os versículos se tornam mais íntimos à medida que
avançam: do resultado do versículo 13 avançamos para a alegria
do versículo 14; e então chegamos à secreta meditação do espírito
feliz. As graças mais ricas são aquelas que habitam no recôndito
mais profundo da alma.
fv. 16]
Terei prazer em teus decretos; não me esquecerei de tua palavra.
Terei prazer em teus decretos. Neste versículo, o deleite segue
a meditação, da qual advém o florir e o amadurecer. Quando não
contamos com nenhum outro lenitivo, mas nos achamos totalmente
sozinhos, é uma profunda alegria para o coração meditar consigo
mesmo e suavemente sussurrar: “Deleitar-me-ei em mim mesmo.
Mesmo que o tempo do gorjeio dos pássaros ainda não tenha che­
gado, e a voz da rola não se ouviu em nossa terra, todavia me
deleitarei em mim mesmo.” Essa é a melhor e a mais nobre de
todas as alegrias; de fato, é a boa parte que jamais nos será tirada;
mas nenhum deleite nosso em algo que esteja abaixo de Deus se
destina a ser a satisfação eterna da alma. O livro de estatutos se
destina a ser a alegria de toda pessoa leal. Quando o cristão se
delonga sobre as sacras páginas, sua alma arde em seu íntimo quan­
do ele se volta para uma e então para outra das grandes e régias
• 36 •
E x p o s ,ç ã o 2

palavras do grande Rei - palavras copiosas e sólidas, imutáveis e


divinas.
Não me esquecerei de tua palavra. Os homens não esquecem
facilmente o que entesouraram (v. 14), aquilo em que muito pen­
sam (v. 15) e aquilo de que muito falam com freqüência (v. 13).
Todavia, visto que nossa memória sempre nos trai, é bom que a
amarremos com um nó bem forte, usando este cordão: “Não me
esquecerei.”
Note bem como duas ‘vontades’ (w. 13 e 14) seguem duas
‘posses’. Não podemos nos dar ao luxo de prometer para o futuro
se fracassamos totalmente no passado; mas enquanto a graça nos
capacitar para a realização de algo, podemos confiadamente espe­
rar que ela nos capacite a fazer muito mais.
Uma ação reiterada se torna um hábito, e quando os hábitos
são bem formados, podemos sem alarde conservá-los bem, e ain­
da implantá-los em outros exercícios mais importantes. Não obs­
tante, é bom nunca permitirmos que nosso querer resolva exceder
nosso ter.
É curioso observar como estes dezesseis versículos estão mol­
dados no versículo 8: as mudanças são expressas nas mesmas pa­
lavras, mas o significado é completamente diferente; não há sus­
peita de haver uma repetição fútil. O mesmo pensamento nunca
pára neste Salmo. E simplório quem assim pensa. Algo na posição
de cada versículo afeta seu significado, de modo que mesmo onde
suas palavras são quase idênticas com as de outro, o sentido é
deíiciosamente variado. Se não vemos uma variedade infinita de
tênues sombras de pensamento neste Salmo, podemos concluir
que somos daltônicos; se não ouvimos muitas doces harmonias,
podemos julgar nossos ouvidos como sendo insensíveis, porém
não podemos acusar o Espírito de Deus de monotonia.

• 37 •
(w. 17-24)
Sê generoso para com teu servo, para que eu viva e observe tua pala­
vra. Desvenda meus olhos, para que eu contemple as maravilhas de
tua lei. Sou peregrino na terra; não escondas de mim teus mandamen­
tos. Consumida está minha alma por desejar, incessantemente, teus
juízos. Repreendeste os soberbos, os malditos, que se desviam de teus
mandamentos. Remove de mim o opróbrio e o desprezo, pois tenho
guardado teus testemunhos. Assentaram-se príncipes e falaram contra
mim, mas teu servo ponderou em teus decretos. Com efeito, teus teste­
munhos são meu deleite e meus conselheiros.
Nesta seção, as provações do caminho parecem ter-se mani­
festado à mente do salmista, e ele ora, portanto, pelo socorro que
atenda sua causa. Como nos últimos versículos ele orou como jo­
vem recentemente ingressado no mundo, assim aqui ele suplica
como servo e peregrino que paulatinamente vai descobrindo ser
um estranho num país inimigo. Seu apelo é dirigido a Deus so­
mente, e sua oração é especialmente direta e pessoal. Ele fala com
o Senhor como uma pessoa fala com seu amigo.
[v. 17]
Sê generoso para com teu servo, para que eu viva e observe tua palavra.
Sê generoso para com teu servo. Ele tem prazer em reconhe­
cer seu dever para com Deus, e é cônscio de que a alegria de seu
coração se deve ao fato de estar ele a serviço de seu Deus. Nessa
condição ele faz uma súplica, pois um servo desfruta de alguma
influência da parte de seu senhor; mas, neste caso, o vocabulário
da súplica desfaz a idéia de reivindicação legal, visto que ele busca
compreensão, e não galardão. Seja minha recompensa segundo
tua benevolência, e não segundo meu mérito. Retribui-me segun­
• 38 •
P X P Q 5 IÇ A Q 5

do a grandeza de tua liberalidade, e não segundo a deficiência de


meu serviço. Os servos contratados pelo nosso Pai têm abundân­
cia e disponibilidade de pão, e ele não deixará sequer um de seus
domésticos perecer de fome. Se o Senhor simplesmente nos tratar
como trata o menor de seus servos, temos motivo para contenta­
mento; pois todos seus verdadeiros servos são filhos, príncipes de
sangue, herdeiros da vida eterna. Davi sabia que suas grandes ne­
cessidades requeriam abundante provisão, e que seu ínfimo méri­
to jamais granjearia tal suprimento. Daí haver ele de esconder-se
na graça divina e buscar as grandes coisas de que necessitava na
infinita benevolência do Senhor. Ele suplica pela liberalidade da
graça, segundo a forma de outra oração que fez: “O Senhor, ou
me dês grande misericórdia, ou nenhuma; pois pouca misericór­
dia não me ajudará a voltar.”
Para que eu viva. Ele não poderia viver a não ser com profu­
são de misericórdia. Requer-se uma graça muiío rica para que um
santo se mantenha vivo. Mesmo a vida é um dom da divina libera­
lidade para um demérito tão grande como o nosso. Somente o
Senhor pode guardar-nos com vida; e é sua poderosa graça que
nos preserva a vida a cujo direito perdemos em decorrência de
nosso pecado. E natural querer viver; é um direito orar pela vida;
mas é justo atribuir a longevidade ao favor de Deus. A vida espi­
ritual, sem a qual esta vida natural é mera existência, deve também
ser buscada na liberalidade do Senhor; porquanto ela é a mais
nobre obra da graça divina, e nela a liberalidade divina é gloriosa­
mente exibida. Os servos do Senhor não podem servi-lo movidos
por sua própria força, pois nem mesmo podem viver se sua graça
não encher ricamente a vida deles.
E observe tua palavra. Esta deve ser a norma, o objetivo e a
alegria de nossa vida. E possível que não queiramos viver em pe­
cado; mas é preciso que oremos por uma vida que tenha a Palavra
de Deus em íntima consideração. A existência é algo pobre se não
desfrutar o bem-estar. A vida só é digna quando observamos a
Palavra de Deus; aliás, não há vida nenhuma, no mais elevado sen-
lido, senão aquela que se associa à santidade —vida que não res­
peita a lei de Deus não passa de mero vocábulo.
• 39 •
S a lm o 115?

A oração deste versículo mostra que é somente através da divi­


na liberalidade ou graça que podemos viver como fiéis servos de
Deus e manifestar obediência a seus mandamentos. Se prestamos
serviço a Deus, isso se deve ao fato de ele nos conceder sua graça.
Trabalhamos para ele porque ele trabalha em nós. Podemos for­
mar uma corrente dos versículos iniciais das três primeiras oitavas
deste Salmo: o versículo 1 bendiz a pessoa santa; o versículo 9
indaga como podemos obter essa santidade; e o versículo 17 liga
essa santidade com sua fonte secreta, e nos mostra como buscar a
bênção. Quanto mais uma pessoa preza a santidade, e quanto mais
solicitamente se esforça em buscá-la, mais vai a Deus com o fim
de obtê-la; pois essa pessoa percebe claramente que sua força pes­
soal é insuficiente, e que não pode nem mesmo viver sem a liberal
assistência do Senhor seu Deus.
[v. 18]
Desvenda meus olhos, para que eu contemple as maravilhas de tua lei.
Desvenda meus olhos. Esta é uma parte da divina liberalidade
pela qual ele tem indagado. Nenhuma liberalidade é maior do que
aquela que beneficia nossa pessoa, nossa alma, nossa mente e traz
benefício a um órgão tão importante como os olhos. E muitíssimo
preferível ter os olhos abertos do que ver-se no seio dos mais no­
bres prospectos e contudo permanecer cego para as belezas que
nos cercam. Para que eu contemple as maravilhas de tua lei.
Certas pessoas não conseguem perceber nenhuma maravilha no
evangelho. Davi, porém, estava convencido de que havia coisas
gloriosas na lei - ele não possuía sequer a metade da Bíblia, mas a
valorizava mais que muitas pessoas que possuem-na toda. Ele sentia
que Deus pusera grandes belezas e abundância em sua Palavra, e
então solicita poder para percebê-la, apreciá-la e dela tirar provei­
to. Necessitamos não tanto que Deus nos conceda mais benefíci­
os, e, sim, que nos dê capacidade de ver o que ele já nos deu.
A oração subentende a consciência da existência de trevas, de
imprecisão da visão espiritual, de impotência de remover o defeito
e da plena certeza de que Deus pode removê-las. Ela mostra tam­
bém que o escritor sabia da existência de vastos tesouros na Pala­
• 40 •
[jÇ P O S IÇ Ã O 5

vra que ele possuía, os quais não eram plenamente vistos; de ma­
ravilhas que não havia ainda contemplado, de mistérios nos quais
escassamente cria. As Escrituras são ricas em maravilhas; a Bíblia
é um país encantado; ela não só relata milagres, mas ela mesma é
um universo de prodígios. Não obstante, o que vale tudo isso se
nossos olhos estão fechados? Deus mesmo deve trazer iluminação
a cada coração. As Escrituras precisam ser abertas, mas não meia
abertura como agora ocorre com nossos olhos. O véu não está no
livro, mas em nosso coração. Que perfeitos preceitos, que precio­
sas promessas, que inestimáveis privilégios são negligenciados por
nós, só porque perambulamos como por entre cegos que, por sua
vez, perambulam por entre as belezas da natureza, as quais são
para nós uma bela paisagem oculta na escuridão!
A oração de Davi, neste versículo, é uma boa scqücncia ao
versículo 10, que lhe corresponde na posição em sua oitava. Ali ele
disse: “Oh, não me deixes vaguear [fugir]”; e quem é mais apto a
vaguear que um cego? E ali também ele declarou: “De todo meu
coração tenho te buscado”; daí o desejo de ver o objeto de sua
busca. Singulares são os entrelaçamentos dos galhos da vetusta
árvore deste Salmo, os quais revelam entre si infindas maravilhas,
se porventura tivermos os olhos abertos para divisá-las.
[v. 191
Sou peregrino na terra; não escondas de mim teus mandamentos.
Sou peregrino na terra. Isso traz implícito um pleito judicial.
Por ordem divina, os homens se vêem obrigados a viver como es­
trangeiros ou peregrinos; e o que Deus ordena em outros, ele exem­
plificará nele próprio. O salmista era um estrangeiro por amor a
Deus. Ele não era estrangeiro em relação a Deus, mas estrangeiro
em relação ao mundo, um homem banido enquanto estivesse fora
do céu. Portanto suplica: não escondas de mim teus mandamen­
tos. Se estes [mandamentos] me forem suprimidos, o que será de
mim? ]a que nada do que me cerca é meu, o que será de mim se
perder tua Palavra? Já que dos que me cercam ninguém sabe nem
procura saber o caminho que leva a ti, o que será de mim se não
puder ver teus mandamentos, somente por meio dos quais posso
• 41 •
S alm o 11,9

guiar meus passos em direção à terra onde habitas? Davi insinua


que os mandamentos de Deus eram o lenitivo em seu exílio; trazi­
am-lhe recordações do lar e lhe indicavam o longo caminho, e
portanto suplica que nunca fossem escondidos dele, já que ele,
por si só, era incapaz de entendê-los ou de obedecê-los. Se a luz
espiritual for subtraída, o mandamento se oculta, e isso um cora­
ção agraciado condena profundamente. O que adiantaria os olhos
abertos, se o mais deleitoso objeto de sua contemplação for afas­
tado de seu alcance? Enquanto peregrinamos aqui, podemos su­
portar com paciência todos os males provindos desta terra estra­
nha, se a Palavra de Deus for aplicada a nossos corações pelo Es­
pírito de Deus; mas, se as coisas celestiais que produzem nossa
paz forem ocultas de nossos olhos, ficaremos em maus lençóis -
aliás, nos veremos em alto mar, sem bússola; num deserto, sem
guia; num país inimigo, sem amigo.
Esta oração é um suplemento a “abre meus olhos”, como al­
guém que ora para ver e outro condena ver, ou seja, o mandamen­
to ser oculto, e ficar assim fora da vista. Faremos bem em visuali­
zar ambos os lados da bênção que estamos buscando para vê-los
de todos os ângulos. As orações são apropriadas para os caracte­
res mencionados: como um servo, ele roga que seus olhos sejam
abertos para que jamais deixe de contemplar seu Senhor como
bom servo; como um peregrino, ele roga que não seja um estranho
na estrada pela qual caminha rumo ao lar. Em cada caso, sua in­
teira dependência é exclusivamente de Deus.
Note que o terceiro versículo da segunda oitava (11) tem a
mesma palavra-chave, como a tem o terceiro versículo da terceira
oitava: “Escondi tuas palavras”; “Não escondas de mim teus man­
damentos.” Isso convida à meditação nos sentidos distintos de
esconder em e esconder de.
[v. 20]
Consumida está minha alma por desejar, incessantemente, teus juízos.
A genuína piedade está em grande medida nos desejos. Como
não somos o que seremos, assim também não somos o que deverí­
amos ser. São intensos os desejos que as pessoas agraciadas nutrem
• 42 •
f 7X P Q 5 IÇ Ã Q 5

pela santidade; ou causam um desgaste cardíaco, ou um estresse


mental, até que estejam prontas a saborear o céu. Um elevado valor
dado aos mandamentos do Senhor conduz a um forte desejo de
conhecê-los e cumpri-los, e isso tanto pesa na alma que ela se dispõe
a despedaçar-se sob o peso de seus próprios anseios. Que grande
bênção quando todos nossos desejos têm por alvo as coisas de Deus!
Os juízos divinos são suas decisões sobre questões que estão
cm controvérsias. Cada preceito é um juízo pronunciado do mais
elevado tribunal sobre uma questão de ação, uma infalível e imutá­
vel decisão sobre uma questão moral ou espiritual. A Palavra de
Deus é um código de justiça à luz do qual não há apelação.
“ Há um ]uiz Que põe termo à discórdia,
Onde a perspicácia e a razão fracassam;
Nosso Guia através das tortuosas veredas da vida,
Nosso Escudo Quando as dúvidas nos assaltam."

Davi nutria tal reverência pela Palavra, tal anseio de conhecê-


la e de conformar-se a ela, que seus anelos geravam nele o que­
brantamento que ele aqui põe diante de Deus. Solicitude é a alma
da oração, e quando a alma geme até quebrantar-se, não desiste
até que a bênção lhe seja concedida. A mais íntima comunhão en­
tre a alma e seu Deus é concretizada pelo processo descrito no
texto. Deus revela sua vontade, e nosso coração suspira por ver-se
conformado a ela. Deus julga, e nosso coração se alegra com o
veredicto. Esta é a mais real e completa comunhão do coração.
Note bem que nosso desejo segundo a mente de Deus deve ser
constante; devemos sentir santos anelos “em todo tempo”. Dese­
jos que podem ser despidos e vestidos como fazemos com nossas
roupas, podendo ser melhores, porém meros desejos, e dificilmen­
te poderão ser chamados por esse nome —não passam de emoções
temporárias oriundas de excitamento e se destinam a morrer quan­
do o coração que os gerou se arrefece. Aquele que sempre anela
em conhecer e fazer o que é certo é realmente um ser humano
certo. Seu juízo é sadio, pois ama todos os juízos divinos e os
segue com perseverança. Seus tempos serão bons, visto que anela
ser bom e fazer o bem em todo tempo.
' S alm o 115>

Observe como este quarto versículo da terceira oitava se har­


moniza com o quarto versículo da quarta oitava. “Consumida está
minha alma”; “Minha alma, de tristeza, verte lágrimas”. Segura­
mente há alguma secreta arte poética em tudo isso, e nos é acon­
selhável a prudência quando estudamos o que o salmista solicita­
mente compunha.
[v. 2 1 ]
Repreendeste os soberbos, os malditos, que se desviam de teus manda­
mentos.
Repreendeste os soberbos, os malditos. Aqui está um dos juí­
zos divinos: indubitavelmente, ele trata aqui de uma terrível por­
ção dos homens de aparência altiva. Deus puniu Faraó com terrí­
veis pragas; e no Mar Vermelho, “os fundamentos do mundo fo­
ram descobertos por tua repreensão, ó Senhor”. Na pessoa dos
arrogantes egípcios, ele instruía a todos os soberbos de que certa-
mente os humilharia. Os soberbos são pessoas malditas: ninguém
os abençoa, e logo se convertem num fardo para si próprios. A
soberba por si só é uma praga e um tormento. Ainda que nenhuma
maldição proviesse da lei de Deus, a própria lei da natureza ensina
que os soberbos são pessoas infelizes. Isso levou Davi a abominar
a soberba; ele temia a repreensão divina e a maldição da lei. Os
pecadores soberbos de seu tempo eram seus inimigos, e sentiu-se
venturoso de Deus não se pôr em controvérsia contra ele.
Que se desviam de teus mandamentos. Somente os corações
humildes são obedientes, pois somente eles se deixarão adminis­
trar e governar. Os soberbos aparentam altivez, tanta altivez que
seus pés são mantidos longe do caminho do Senhor. A soberba é a
raiz de todo pecado; se os homens não fossem arrogantes, não
seriam desobedientes.
Deus repreende a soberba mesmo quando as multidões lhe
prestem homenagem, pois a vê como franca rebelião contra sua
própria majestade e vê nela a semente de futuras rebeliões. Ela é a
essência do pecado. Os homens falam de uma soberba honesta;
porém se fossem sinceros veriam que ela, à luz de todos os peca­
dos, longe está de ser honesta, e longe está de assentar-se bem
• 44 •
f^ X P O S IÇ Ã O 5

numa criatura, especialmente uma criatura apostatada. Todavia,


bem poucos soberbos conhecem sua própria e verdadeira condi­
ção sob a maldição divina, que se erguem para censurar os santos
e expressar desdém por eles, como se pode ver no próximo versí­
culo. Eles pessoalmente são desprezíveis, e todavia são altivos em
relação a seus superiores. Fazemos bem em amar os juízos divi­
nos, quando os vemos tão decisivamente direcionados contra a
altiva arrogância daqueles que prazerosamente dominam sobre os
justos; e fazemos bem em consolar-nos ante as repreensões dos
ímpios, visto que seu poder de ferir-nos é destruído pelo próprio
Senhor. “O Senhor te repreenda”, é resposta satisfatória a todas
as acusações dos homens e dos demônios.
No quinto versículo da oitava anterior, o salmista escreveu:
“Com os lábios tenho narrado todos os juízos de tua boca”, e aqui
ele prossegue no mesmo diapasão, apresentando um exemplo par­
ticular dos juízos do Senhor contra os rebeldes arrogantes. As duas
próximas porções do quinto versículo tratam da mentira e da vai­
dade, e a soberba é uma das formas mais comuns desses males.
[v. 22]
Tira de sobre mim o opróbrio e o desprezo, pois tenho guardado teus
testemunhos.
Tira de sobre mim o opróbrio e o desprezo. Aqui temos coi­
sas por demais dolorosas para se conservarem na mente. A Davi
foi possível suportá-las por amor à justiça, mas foram-lhe um pe­
sado jugo e levou muito tempo para livrar-se delas. Ser caluniado
e em seguida ser desprezado em conseqüência das vis acusações é
uma aflição muitíssimo dolorosa. Ninguém gosta de ser difamado,
muito menos desprezado. Aquele que diz: “Não dou a menor im­
portância a minha reputação” não é uma pessoa sábia; pois, no
conceito de Salomão, “um bom nome é melhor que o ungüento
precioso”. A melhor forma de tratar a calúnia é orar a respeito:
Deus ou a removerá ou removerá o espinho dela. Geralmente fra­
cassam nossas tentativas pessoais de nos justificarmos. Somos
como o garoto que queria remover a mancha de seu copo, que,
com seu grande empenho, acabou fazendo dez vezes pior. Ao so-
• 45 •
S alm o Wf)

frermos uma difamação, é melhor orarmos sobre o problema do


que recorrermos à lei para resolvê-lo, ou mesmo exigir desculpas
por parte do inventor. Quando você for acusado, leve seu proble­
ma perante o supremo tribunal e deixo-o aos pés do Juiz de toda a
terra. Deus repreenderá seu soberbo acusador; fique tranqüilo e
deixe seu Advogado defender sua causa.
Pois tenho guardado teus testemunhos. A inocência pode com
razão pedir esclarecimento sobre a causa da repreensão. Se por­
ventura houver razão nas acusações alegadas contra nós, o que
podemos exigir de Deus? Se, não obstante, formos injustamente
acusados, nosso apelo tem um locus standi no tribunal e não pode
ser rejeitado. Se pelo medo do opróbrio ignorarmos o testemunho
divino, mereceremos a sentença de covardia; nossa segurança está
em manter-nos à sombra da verdade e da justiça. Deus guardará
os que guardam seus testemunhos. Uma sã consciência é a melhor
segurança para o bom nome; o opróbrio não habitará com aqueles
que habitam com Cristo, nem o desprezo permanecerá sobre aque­
les que permanecem fiéis nos caminhos do Senhor.
Este versículo faz paralelo com o sentido e a posição do versí­
culo 6, e forma o slogan de ‘testemunhos’, por meio do qual se
harmoniza com o versículo 14.
[v. 23]
Assentaram-se príncipes e falaram contra mim, mas teu servo ponde­
rou em teus decretos.
Assentaram-se príncipes e falaram contra mim. Davi estava
numa partida de alto nível, e os grandes da terra eram seus adver­
sários. Os príncipes viam nele uma grandeza de causar inveja, e
por isso abusavam dele. Em seus tronos, podiam encontrar algo
superior a considerar e de que falar, mas converteram o trono de
juízo em trono de escárnio. A maioria dos homens cobiça a boa
palavra dos príncipes, e ser difamado por um grande homem é
motivo de grande desânimo; o salmista, porém, suportou sua pro­
vação com santa tranqüilidade. Muitos daqueles que exerciam se­
nhorio eram seus inimigos, e seu hobby era falar mal dele; conver­
teram seus tronos em escândalo, suas reuniões em calúnia, seus
• 46 •
p X P O á lÇ Â Q 5

parlamentos em falsidade; todavia, Davi sobreviveu a todas as suas


tentativas contra ele.
Mas teu servo ponderou em teus decretos. Isso na verdade
foi um ato de bravura. Ele era servo de Deus, e por isso atentava
para os negócios de seu Senhor; era servo de Deus, e por isso
estava certo de que o Senhor o defenderia. Ele não deu atenção a
seus principescos caluniadores; nem ainda permitiu que seus pen­
samentos fossem perturbados com a informação que recebia das
tramas que teciam em suas reuniões. Quem eram esses virulentos
para desviar a atenção que este servo punha em seu Senhor, ou
para privar o eleito do Senhor de dedicar um momento de comu­
nhão? A turba de príncipes não era digna da atenção de cinco
minutos, se tais cinco minutos tivessem que ser subtraídos da san­
ta meditação. E em extremo glorioso ver os dois tronos: os prínci­
pes assentados para lançar opróbrio contra Davi; e Davi assenta­
do com seu Deus e sua Bíblia, como resposta aos caluniadores,
não respondendo-lhes absolutamente nada. Os que sc nutrem da
Palavra crescem fortes e pacíficos, e são pela graça de Deus defen­
didos da difamação das línguas perversas.
Note que no final da oitava anterior ele dissera: “Meditarei”; e
aqui ele mostra como redimira sua promessa, mesmo sob grande
risco de esquecê-la. E algo digno de nota quando a decisão de
nossas horas felizes é devidamente tomada em nossos momentos
de aflição.
[v. 241
Com efeito, teus testemunhos são meu maior prazer e meus conselheiros.
Eles não constituíam simplesmente temas para meditação, mas
‘também’ fontes de deleite e meios de orientação. Enquanto seus
inimigos tomavam conselho entre si, o santo homem tomava con­
selho com os testemunhos de Deus. Os caçadores não podiam
espantar a ave de seu ninho com toda sua algazarra. O deleite
deles era caluniar; o deleite dele era meditar. As palavras do Se­
nhor nos servem para muitos propósitos: em nossas tristezas, elas
são nosso deleite; em nossas dificuldades, são nosso guia; deriva­
mos delas alegria e nelas descobrimos sabedoria. Se desejarmos
• 47 •
S alm o llp

encontrar conforto nas Escrituras, que então nos submetamos a


seu conselho; e quando seguirmos seu conselho, não façamos isso
com relutância, mas com deleite. Eis o modo seguro de tratar com
aqueles que fazem planos para arruinar-nos; que demos mais aten­
ção aos verdadeiros testemunhos do Senhor do que aos falsos tes­
temunhos de nossos desafetos. A melhor resposta à acusação de
príncipes é a Palavra do Rei que justifica.
No versículo 16, diz Davi: “Terei prazer em teus decretos”; e
aqui ele diz: “Eles são meu maior prazer.” E assim as resoluções
formadas na força de Deus produzem fruto; e os desejos espiritu­
ais sazonados, em reais obtenções. Que esse seja o caso em rela­
ção a todos os leitores destas linhas!

• 48 •
Y X PQ 5 IÇ Â Q 4

(w. 25-32)
Minha alma está apegada ao pó; vivifica-me segundo tua palavra. Eu
te expus meus caminhos, e tu me valeste; ensina-me teus estatutos.
Faz-me compreender o caminho de teus preceitos, e falarei de tuas
maravilhas. Minha alma, de tristeza, verte lágrimas; fortalece-me se­
gundo tua palavra. Afasta de mim o caminho da mentira e concede-
me graciosamente tua lei. Escolhi o caminho da verdade e teus juízos
os tenho diante dos olhos. A teus testemunhos me apego; não permitas,
ó Senhor, seja eu envergonhado. Percorrerei o caminho de teus imui-
damentos, quando me alegrares o coração.
Aqui, a meu ver, temos o salmista a deplorar aílitivamente a
servidão às coisas terrenas às quais ele descobrira estar sua mente
cativa. Sua alma se apega ao pó, se desintegra pelo peso e grita
pela dilatação de sua prisão espiritual. Nestes versículos veremos
a influência da palavra divina num coração que lamenta suas de­
cadentes tendências e se vê saturado de pranto em decorrência de
suas trevosas circunstâncias. A Palavra do Senhor evidentemente
desperta a oração (vv. 25-29), confirma a opção (v. 30) e inspira
a resolução renovada (v. 32); ela é em toda tribulação, quer do
corpo quer da mente, a mais infalível fonte de socorro.
Esta porção tem D por sua letra alfabética; ela celebra a De­
pressão, no espírito de Devoção, Determinação e Dependência.
[v. 25]
Minha alma está apegada ao pó; vivifica-me segundo tua palavra.
Minha alma está apegada ao pó. Ele, em parte, tenciona di­
zer que estava dominado pela tristeza; pois os pranteadores no
oriente lançavam pó sobre suas cabeças e sentavam-se sobre cin­
zas, e o salmista sentia como se essas insígnias de dor lhe estives­
• 49 •
Saim o U$>

sem grudadas, e sua própria alma se destinasse a viver inseparável


delas, em virtude de sua impotência pairar acima de sua tristeza.
Não sentia ele pronto até mesmo para morrer? Não sentia ele sua
vida absorvida e assenhoreada pela argila da sepultura, já meio
agredida pelo pó da morte? E possível que a linguagem não seja
bem afinada, se imaginarmos que ele também sentia e lamentava
sua inclinação mundana e entorpecimento espiritual. Havia uma
tendência em sua alma para o apego a este mundo, pela qual de­
plorava grandemente. Seja qual for a causa de seu lamento, o mal
não era superficial, mas uma luta de espírito mais secreta; sua alma
apegava-se ao pó; e não era uma questão de cair casual e aciden­
talmente no pó, mas uma tendência contínua e poderosa, ou um
forte apego às coisas terrenas. Que grande misericórdia, porém,
esse bom homem podia sentir e deplorar tudo quanto havia de mal
nesse apego! A semente da serpente pode encontrar seu alimento
no pó, mas a semente da mulher jamais suportaria ser assim de­
gradada. Muitos são os amantes deste mundo, e nunca lamentam
por isso; somente o espírito nascido do alto, e que paira nas altu­
ras, é que reluta para que sua mente não se apegue a este mundo e
não se deixe engodar por suas tristezas ou por seus prazeres.
Vivifica-me segundo tua palavra. Vida abundante é a cura
para todas as nossas doenças. Somente o Senhor pode concedê-
la. Ele pode concedê-la, e concedê-la imediatamente, e fazê-lo se­
gundo sua palavra, sem afastar-se do curso usual de sua graça,
como vemos indicado nas Escrituras. E bom saber pelo que orar —
Davi busca vivificação —ele poderia ter orado por conforto ou
ascensão. Ele, porém, sabia que essas coisas viriam da vida enri­
quecida, e por isso buscou aquela bênção que é a raiz do descan­
so. Quando uma pessoa se vê com espírito oprimido, fraca e arro­
jada ao chão, a principal coisa a fazer é aumentar sua energia e
imbuir-se de mais vida; então seu espírito revive e seu corpo se
põe ereto. Na vivificação da vida o homem, em sua totalidade, é
renovado. Sacudir o pó é por si só uma coisa insignificante; mas,
quando ela segue a vivificação, é uma bênção do maior valor; as­
sim como as nobres atitudes, que fluem de uma boa saúde, tam­
bém se dá entre as mais seletas de nossas mercês. A frase, “segun­
• 50 •
fjÇ P O S IÇ Ã O A

do tua palavra”, significa segundo teu método revelado de vivificar


teus santos. A Palavra de Deus nos mostra que aquele que primei­
ro nos criou também nos guardará vivos; e nos informa que o
Espírito de Deus, através de suas ordenanças, derrama nova vida
em nossas almas. Roguemos ao Senhor que aja em nós através de
seu método regular de conceder sua graça. E provável que Davi
recordasse da Palavra do Senhor como está em Deuteronômio
32.39, onde a Jeová compete tanto matar quanto fazer viver, e ele
roga ao Senhor que exerça aquele poder vivificante em favor de
seu servo já quase a expirar. Com certeza o homem de Deus não
contasse com tantas e ricas promessas sobre as quais descansar
como hoje temos; mas uma única palavra lhe era suficiente, e ele
solicitamente opta por argumentar “segundo tua palavra”. E algo
comprovado ver um crente no pó e, contudo, reivindicar a pro­
messa, pessoa essa que clama já na entrada da sepultura: “viviíica-
me”, esperando que assim se fará.
Note como este primeiro versículo da quarta oitava corres­
ponde ao primeiro da terceira oitava (v. 17): “Para que cu viva”;
“Vivifica-me”. Enquanto se vê numa situação ditosa, ele ora para
ser tratado com liberalidade; e quando se vê numa condição de
desamparo, ele ora por vivificação. A vida, em ambos os casos, é o
objeto de busca - para que possa ter vida, e vida com abundância.
Isso realmente equivale a sabedoria. Os tolos anseiam por alimen-
lo, e contudo perdem a vida; os sábios, porém, sabem que a vida é
mais que o alimento. Nutrir ansiedade por riquezas, e negligenciar
a alma, é o pecado corriqueiro dos incrédulos; e buscar as verda­
deiras riquezas visando ao aumento de vida é a prudente trajetória
dos cristãos verdadeiros. Vida, eterna vida, é o tesouro genuíno.
Nosso Senhor veio não só para que tivéssemos vida, mas também
para que a tivéssemos com muita abundância. Senhor, derramaste
lua abundante vida em nós, para que fôssemos vivificados e para
alcançarmos a plenitude de nossa humanidade e sermos cheios de
ioda a plenitude de Deus.
[v. 26]
Eu te declarei meus caminhos, e tu me ouviste; ensina-me teus estatutos.
• 51 •
S alm o 119

Eu te declarei meus caminhos. A confissão pública é algo muito


saudável para a alma. Nada traz mais tranqüilidade e mais vida a
uma pessoa do que o reconhecimento franco do mal que causou
tristeza e letargia. Tal declaração [ou exposição] prova que o ho­
mem conheceu sua própria condição, e não é mais cego pela so­
berba. Nossas confissões não pretendem fazer Deus conhecer nos­
sos pecados, mas fazer-nos conhecê-los. E tu me ouviste. Sua
confissão fora aceita; não foi perda de tempo; através dela, Deus
aproximou-se dele. Não devemos jamais exercer um dever sem
antes sermos aceitos para tal função. O perdão acompanha uma
confissão penitente, e Davi sentia que o obtivera. Exproprio de
Deus perdoar nosso caminho pecaminoso quando sinceramente
confessamos o erro.
Ensina-me teus estatutos. Uma vez sentindo profundamente
seu erro, e uma vez havendo obtido o pleno perdão, Davi se empe­
nha a evitar cometer nova ofensa, e por isso èle roga que a obedi­
ência lhe seja ensinada. Ele não se dispunhâ a pecar motivado pela
ignorância; deseja conhecer a mente de Deus através da instrução
ministrada pelo melhor dos mestres. 'Ele se fatigava em busca da
santidade. As pessoas justificadas estão sempre ansiosas por mais
santificação. Quando Dêufe perdoa nossos pecados, todos nos sen­
timos temerosos de pèçar novamente. A mercê que perdoa a trans­
gressão nos faz ansioso^ pela graça que previne a transgressão.
Podemos ousadamente pedir mais, depois de Deus já nos haver
dado muito; aquelç que já lavou a mancha de outrora não recusará
aquilo que nos prfeservará da contaminação presente e futura. Esse
clamor por instrução é freqüente no Salmo; no versículo 12, ele
procedeu de uma visão de Deus; aqui, ele procedeu de uma visão
de si mesmo. Cada experiência deve levar-nos a pleitear assim junto
a Deus.
[v. 27]
Faz-me compreender o caminho cie teus preceitos, e falarei de tuas
maravilhas.
Faz-me compreender o caminho de teus preceitos. Dá-me
uma profunda percepção do significado prático de tua palavra;
• 52 •
E x p o s iç ã o Ar

que eu tenha uma idéia clara do caráter e teor de tua lei. A obedi­
ência cega tem uma beleza muito pequena; Deus quer que o siga­
mos com nossos olhos abertos. Obedecer à letra da palavra é tudo
quanto se pode esperar do ignorante; se desejamos guardar os
preceitos em seu espírito, devemos chegar-nos para compreendê-
los, e isso não se recebe em parte alguma senão das mãos do Se­
nhor. Nosso entendimento precisa de iluminação e diretriz; aquele
que fez nosso entendimento também tem de fazer-nos entender. A
última frase foi: “ensina-me teus estatutos”; e as palavras: “faze-
me compreender” são uma ampliação e exposição instrutivas des­
ta frase: precisamos ser tão instruídos, que cheguemos a entender
o que aprendemos. E preciso notar que o salmista não está ansio­
so para entender as profecias, e, sim, os preceitos, e não está preo­
cupado com as sutilezas da lei, mas com as normas comuns e diá­
rias dela, as quais são descritas como “o caminho de teus preceitos”.
E falarei de tuas maravilhas. [Ou: E assim falarei de tuas
maravilhosas obras.] Continua falando do que não entendemos.
Temos de ser instruídos por Deus até que entendamos, e então
podemos esperar comunicar nosso conhecimento a outros com a
esperança de favorecê-los. Falar sem inteligência é mero e fútil
tagarelar; as palavras dos instruídos, porém, são como pérolas que
adornam os ouvidos daqueles que ouvem. Quando nosso coração
é aberto ao entendimento, nossos lábios devem abrir-se para com­
partir conhecimento; e nós mesmos podemos esperar ser instruí­
dos quando sentirmos em nosso coração a disposição para ensi­
nar o caminho do Senhor àqueles entre os quais moramos.
Tuas maravilhas. [Ou: luas obras maravilhosas.] Observe que
o entendimento mais claro não nos faz cessar de maravilhar-nos
ante os caminhos e obras de Deus. O fato é que, quanto mais
conhecemos os feitos de Deus, mais os admiramos e mais prontos
estamos a falar deles. Metade da admiração do mundo nasce da
ignorância; mas a santa admiração é filha do entendimento. Quando
uma pessoa entende o caminho dos preceitos divinos, jamais fala
de suas próprias obras; e quando a língua tem algum assunto so­
bre o qual falar, tal pessoa começa exaltando as obras do Senhor
absolutamente perfeito.
• 53 •
S aim o \ \ f

Há quem lê neste lugar ‘meditar’ ou ‘refletir’, em vez de ‘falar’;


é singular que as palavras sejam parentes tão próximos, e no en­
tanto é um fato que não o eram, pois ninguém, a não ser um in­
sensato, falará sem pensar. Se lermos a passagem neste sentido,
devemos tomá-la no sentido de que, em proporção ao que Davi
entendia a palavra de Deus, ele meditava nela cada vez mais. Ge­
ralmente é assim; o displicente não cuida de conhecer o cerne das
Escrituras, enquanto que os que as conhecem mais detidamente
são as pessoas que se esforçam em familiarizar-se mais profunda­
mente com elas, e portanto se dedicam a refletir sobre elas.
Observe o terceiro versículo da oitava anterior (19), e veja como
o sentido é afim a este. Naquele lugar ele se descreveu como um
estranho [ou peregrino] na terra, e aqui ele ora para conhecer seu
caminho; lá, também, ele orou para que a palavra não lhe fosse
oculta, e aqui ele promete que não a ocultará dos outros.
[v. 28]
Minha alma, de tristeza, verte lágrimas; fortalece-me segundo tua palavra.
Minha alma, de tristeza, verte lágrimas. Ele se derretia em
lágrimas. A sólida robustez de sua constituição se convertia em
líquido, como se fosse derreter-se na ígnea fornalha de suas afli­
ções. A opressão sobre a alma é algo mortífero, e quando aumenta
em intensidade ameaça converter a vida numa morte duradoura,
quando uma pessoa parece transformar-se numa perene gota de
tristeza. As lágrimas são o destilar do coração; quando uma pes­
soa chora, ela definha sua alma. Alguns de nós sabemos o que
significa uma opressão intensa, pois somos cada vez mais agarra­
dos por seu poder, e amiúde nos sentimos derramados como água
e à mercê de ser como água entornada no chão, sem jamais poder
ser ajuntada de novo. Há uma boa questão neste estado de depres­
são, pois é melhor derreter-se de tristeza do que ser endurecido
pela impenitência.
Fortalece-me segundo tua palavra. Ele se deparara com uma
antiga promessa de que os santos serão fortalecidos, e então aqui
a reivindica. Sua esperança, em seu estado de depressão, não pro­
cede dele mesmo, mas de seu Deus; se ele pode ser fortalecido
• 54 •
f 7X P O S IÇ Ã O A

com o poder do alto, então lançará de si a opressão que sente e se


alegrará novamente. Observe como ele reivindica a promessa da
Palavra, e nada mais solicita senão que seja tratado segundo a mercê
do Senhor como se acha registrada. Não cantara Ana: “Ele dá
força a seu rei, e exalta o poder de seu ungido”? Deus nos fortale­
ce ao infundir graça através de sua Palavra: a Palavra que cria
certamente pode sustentar. A graça pode capacitar-nos para su­
portarmos a constante impaciência por causa de uma tristeza re­
nitente; ela pode reparar a dilapidação causada pelo perene lacri­
mejar e conceder ao cristão as vestes do louvor para o espírito
oprimido. Recorramos sempre à oração em nossos momentos de
desapontamento, pois tais momentos são o caminho mais certo e
mais curto para o abismo. Nessa oração, por nada mais roguemos
além da Palavra de Deus; pois não há nenhum pleito que se asse­
melhe a uma promessa divina; nenhum argumento que se asseme­
lhe a uma palavra que procede do Deus do pacto.
Note como Davi registra a intimidade de sua alma. No versí­
culo 20, diz ele: “Consumida está minha alma”; no versículo 25:
“Minha alma está apegada ao pó”; e aqui: “Minha alma verte lá­
grimas [se derrete].” Além do mais, no versículo 81, ele clama:
“Desfalece-me a alma”; no versículo 109: “Minha alma está conti­
nuamente em minhas mãos” [“Estou de contínuo em perigo de
vida”]; no versículo 167: “Viva minha alma para louvar-te.” Há
pessoas que nem mesmo sabem que têm uma alma, e aqui Davi é
todo alma. Que tremenda diferença há entre espiritualmente vivo
e espiritualmente morto!
[v. 29]
Afasta de mim o caminho da mentira e concede-me graciosamente
tua lei.
Afasta de mim o caminho da mentira. Este é o caminho do
pecado, do erro, da idolatria, da estupidez, da autojustiça, do for­
malismo, da hipocrisia. Davi não só seria guardado desse cami­
nho, mas também se manteria longe dele; ele não podia tolerar
que tal caminho estivesse a seu alcance, e tudo faria para bani-lo
de sua vista. Ele deseja ser justo e uma coluna bem estabelecida;
• 55 •
S alm o 115?

mas temia que uma medida de falsidade lhe aderisse, a menos que
o Senhor a afastasse, e por isso clamava ansiosamente por sua
remoção. Os falsos motivos podem às vezes apossar-se de nós, e é
possível que venhamos a cair em noções equivocadas de nossa
própria condição espiritual diante de Deus, que conceitos errône­
os sejam nutridos por um natural preconceito de nossa parte, e
assim sejamos confirmados no embuste e permaneçamos em erro,
a menos que a graça venha resgatar-nos. Nenhum coração veraz
pode descansar num falso conceito de si mesmo; ele não encontra
nenhum ancoradouro, mas é arremessado de um lado para outro
até que tenha acesso à verdade, e a verdade, acesso a ele. O filho
legítimo do céu contempla e clama contra uma impostura, dese­
jando tê-la longe como alguém que deseja ver-se distante de uma
serpente venenosa ou de um leão que ruge.
E concede-me graciosamente tua lei. Encontra-se num esta
do de graça aquele que mira a própria lei como um dom da graça.
Davi deseja ter a lei acessível a seu entendimento, esculpida em
seu coração e concretizada em sua vida; pois ele busca o Senhor e
luta por ela como uma graciosa concessão. Não há dúvida de que
ele via isso como o único modo de livrar-se do poder da falsidade;
se a lei não estiver em nossos corações, a mentira tomará posse
deles. Davi parecia haver se lembrado dos tempos em que, segun­
do o costume oriental, ele praticava a fraude para sua própria pre­
servação e descobriu que fora fraco e errara nesse ponto; portan­
to, ele sentiu seu espírito encurvado e suplicou para ser vivificado
e impedido de transgredir novamente. Os homens santos não po­
dem rever seus pecados sem lágrimas, nem pranteá-los sem im­
plorar que sejam salvos de futuras ofensas.
Há uma evidente oposição entre a falsidade e o gracioso poder
da lei de Deus. A única maneira de expulsar a mentira é aceitando
a verdade. A graça também tem uma nítida afinidade com a verda­
de; no mesmo instante em que ouvimos o som da palavra ‘gracio­
samente’, também ouvimos os passos da verdade: “Eu tenho pre­
ferido o caminho da verdade.” A graça e a verdade estão sempre
juntas; e a convicção quanto às doutrinas da graça é imenso pre­
servativo contra o erro fatal.
• 56 •
[ Ã ç p o s iç ã o 4-

No quinto versículo da oitava precedente (21), Davi vocifera


contra a soberba; e aqui ele clama contra a mentira - ambas equi­
valem a mesma coisa. Porventura a soberba não é a maior de todas
as mentiras?
[v. 30]
Tenho escolhido o caminho da verdade e teus juízos tenho posto diante
de mim.
Tenho escolhido o caminho da verdade. Já que ele abominava
o caminho da falsidade [ou mentira], então escolheu o caminho
da verdade. Uma pessoa tem que escolher uma ou outra: não lhe é
possível optar pela neutralidade, neste caso. Os homens não sur­
gem no caminho certo por acaso; eles têm que escolhê-lo e conti­
nuar a escolhê-lo, ou logo se afastarão dele. Aqueles a quem Deus
elegeu, no devido tempo escolhem seu caminho. Há um caminho
doutrinal da verdade que devemos escolher, rejeitando todo e qual­
quer dogma de invenção humana; há um cerimonial da verdade
que devemos seguir, detestando todas as formas que igrejas após­
tatas têm inventado; e então há um caminho prático da verdade, o
caminho da santidade, ao qual devemos aderir, seja qual for nossa
tentação de abandoná-lo. Que nossa escolha seja feita, e feita irre-
vogavelmente. Que respondamos a todos os sedutores: “Já esco­
lhi, e o que escolhi, está escolhido.” Por tua graça, ó Senhor, con­
duz-me com um coração espontâneo a escolher fazer tua vontade;
e assim nossa eterna eleição produzirá o fim que designaste.
E teus juízos tenho posto diante de mim. O que ele escolheu
também guardou na mente, pondo-o diante dos olhos de sua mente.
Os homens não se tornam santos através de um desejo displicen­
te; tem de haver esforço, consideração, deliberação e solícita in­
quirição, ou se perderá o caminho da verdade. Os mandamentos
de Deus devem pôr diante de nós a sinalização rumo ao alvo, o
modelo pelo qual lutar, a estrada na qual caminhar. Se pusermos
os juízos divinos como um cenário diante de nós, logo nos vere­
mos caminhando em sua direção.
Aqui uma vez mais nas seis estrofes da terceira e quarta oitavas
vibram uma nota similar. “Eu tenho guardado teus testemunhos”
• 57 •
Salm o 119

(v. 22) e “e teus juízos tenho posto diante de mim.” Aqui temos
uma feliz confissão, e não surpreende que a mesma seja reiterada.
[v. 31]
A teus testemunhos me apego; não permitas, ó Senhor, seja eu enver­
gonhado.
A teus testemunhos me apego - ou: Tenho aderido; pois a
palavra é a mesma do versículo 25. Ainda que aderisse ao pó da
tristeza e da morte, contudo guardava firmemente a palavra divi­
na. Esse era seu conforto, e sua fé se lhe apegava, seu amor e
obediência se lhe agarravam, seu coração e sua mente nele persis­
tiam em meditação. Sua escolha fora tão sincera e deliberadamen-
te consistente, que se lhe apegara para a vida, e não tinha como ser
removido dela ante o opróbrio daqueles que desprezavam o cami­
nho do Senhor. O que poderia haver ganho renunciando o sacro
testemunho? Ou, melhor, o que teria perdido se desistisse da ade­
são à palavra divina? E prazeroso retroceder à perseverança pre-
gressa e esperar que a graça continue igualmente inabalável no
futuro. Aquele que nos capacitou a buscar seu amparo, segura­
mente nos amparará.
Em nossos dias, quando tantos fazem alarde de seus “pensa­
mentos avançados”, pode soar estranho falar de aderir aos testemu­
nhos de Deus; mas, seja ou não estranho, imitemos o homem de
Deus. Perseverar na verdade quando ela se acha deformada é um
bom teste para o crente. A fé dos eleitos de Deus usa a constância
como sua coroa. Outros podem vaguear ao léu em busca das novi­
dades da opinião humana; mas o filho legítimo de Deus se gloria em
confessar a seu Pai celestial: “Tenho aderido a teus testemunhos.”
Não permitas, ó Senhor, seja eu envergonhado, isso ocorre­
ria, se as promessas de Deus não se cumprissem, e se o coração do
servo de Deus desfalecesse. Tal coisa não precisamos temer, já
que o Senhor é fiel a sua Palavra. Mas é possível também que ocorra
através da ação do cristão de uma maneira inconsistente, como
Davi mesmo certa vez procedera, quando tomou a via da mentira
e insinuou ser louco. Se não formos verdadeiros em nossa vida
cristã, corremos o risco de ser desamparados para amontoarmos
• 58 •
H XPQ 5 IÇ Ã O T

o fruto de nossa insensatez, cujo amargo nome é ‘vergonha’. Da­


qui se faz evidente que o cristão nunca deve deixar-se envergo­
nhar, mas, sim, deve agir como um bravo homem que não tem de
que envergonhar-se, senão crer em seu Deus, e que de forma al­
guma carece assumir um maneirismo covarde na presença dos ini­
migos do Senhor. Se rogarmos ao Senhor que não nos deixe en­
vergonhar, seguramente não precisaremos envergonhar-nos na pre­
sença do adversário.
A oração deste versículo se encontra no versículo paralelo da
próxima seção (v. 39): “Afasta de mim o opróbrio, que temo.”
Indubitavelmente é uma petição que estava continuamente no co­
ração do salmista. Um coração valente se sente mais ferido pela
vergonha do que por qualquer espada que porventura a mão de
um soldado venha a brandir.
[v. 32]
Percorrerei o caminho de teus mandamentos, quando me alegrares o
coração.
Percorrerei o caminho de teus mandamentos. Com energia,
prontidão e zelo, ele faria a vontade de Deus, mas carecia de mais
vida e liberdade provindas da mão divina. Quando me alegrares o
coração. Sim, o coração exerce o predomínio; os pés correm ágeis
quando o coração é livre e cheio de energia. Que as afeições se
expandam e se fixem avidamente nas coisas divinas, e então nos­
sas ações serão plenas de força, vivacidade e deleite. Primeiro Deus
tem que operar em nós, e então o querer e o fazer estarão em nós,
segundo o beneplácito divino. Temos que transformar o coração,
unificar o coração, encorajar o coração, fortalecer o coração e
alargar o coração, e então o curso da vida será gracioso, sincero,
feliz e solícito; de modo que, desde nosso mais humilde até o mais
elevado estado de graça, atribuiremos tudo ao gracioso favor de
nosso Deus. Temos que apressar-nos; pois a graça não é uma for­
ça esmagadora que compele a mente indisposta a agir contra sua
vontade; nossa marcha é o salto espontâneo para frente de uma
mente que foi posta em liberdade pela mão de Deus e se deleita em
exibir sua liberdade, marchando com determinação.
• 59 •
Salm o 115»

Que mudança extraordinária do versículo 25 para este, do apego


ao pó para a marcha no caminho! E a excelência de uma santa
tristeza que opera em nós aquela vivificação que tanto buscamos,
e então exibimos a sinceridade de nossa tristeza e a realidade de
nossa renovação, demonstrando zelo no caminho do Senhor.
Pela terceira vez uma oitava termina com “eu quero”. Esses
“eu quero” do salmista são dignos de ser, cada um deles, temas de
estudo e de discurso.
Note como o coração tem sido expresso até aqui: “todo o co­
ração” (v. 2); “retidão do coração” (v. 7); “escondi em meu cora­
ção” (v. 11); “quando alegrares meu coração”. Há muitas outras
alusões, e todas visam a mostrar o que a religião de Davi fazia no
coração. Uma das grandes carências de nossa época é que a cabe­
ça é levada mais em conta do que o coração, e que os homens se
dispõem muito mais a aprender do que a amar, ainda que de for­
ma alguma revelem solicitude em ambas as direções.

• 60 •
(vv. 33-40)
Ensina-me, ó Senhor, o caminho de teus estatutos, e o seguirei até o
fim. Dá-me entendimento, e guardarei tua lei; de todo meu coração a
observarei. Faz-me caminhar pela vereda de teus mandamentos, pois
nela me deleito. Inclina-me o coração a teus testemunhos e não à
cobiça. Desvia meus olhos de contemplar a vaidade, e vivifica-me em
teu caminho. Confirma tua palavra para teu servo que se devota a teu
temor. Afasta de mim o opróbrio, que temo, porque teus juízos são
bons. Eis que tenho suspirado por teus preceitos; vivifica-me cm tua
justiça.
Um senso de dependência e uma consciência dc extrema ne­
cessidade permeiam toda esta seção, sendo a mesma toda elabora­
da de oração e apelo. Nos oito versículos anteriores, o salmista
tremeu ante o senso do pecado, palpitando com um senso infantil
de debilidade e leviandade, o que leva o homem de Deus a clamar
por socorro, somente pelo qual sua alma poderia ser preservada
de recair em pecado. Esse clamor por socorro é aqui expresso em
termos de súplica por doutrinação, edificação, inclinação, estabi­
lização e vivificação. A seção é um favo de orações. Pronunciemos
petições semelhantes enquanto lemos, assegurando-nos de que as
orações assim ministradas a nós pelo Senhor serão iguaimente
respondidas por ele.
[v. 33]
Ensina-me, ó Senhor, o caminho de teus estatutos, e o guardarei até o
fim.
Ensina-me, ó Senhor, o caminho de teus estatutos. Palavras
singelas, confiantes, benditas, pronunciadas pelos lábios de um
ancião, crente experiente, sendo ele um rei e um inspirado homem
• 61 •
S alm o 115?

de Deus. Ai daqueles que nunca se deixam instruir! Aqueles que


caducam em sua própria sabedoria, mas que sua estultícia é evi­
dente a todos os de são juízo. O salmista deseja ter o Senhor como
seu professor; pois sente que seu coração não aprenderia se não
tivesse um instrutor eficiente. O senso de profunda lentidão em
aprender nos leva a buscar um grande professor. Que grande con­
descendência da parte de nosso infinito Jeová que se propõe ensi­
nar os que o buscam! A lição almejada é totalmente prática; a pes­
soa santa não aprende só os estatutos, mas também o caminho
para eles, o uso diário deles, seu teor, espírito, diretriz, hábito,
tendência. Ela sabe que a vereda da santidade é cercada pela lei
divina, junto à qual os mandamentos do Senhor se posicionam
como placas de sinalização, indicações de quilometragem, orien­
tando e demarcando nosso avanço. O próprio desejo de conhecer
essa vereda é por si só a certeza de que a aprenderemos; pois aquele
que nos predispôs a aprender certamente também satisfará tal
desejo.
E o guardarei até o fim. Os que são instruídos por Deus ja­
mais esquecem suas lições. Quando a graça divina põe uma pes­
soa no caminho certo, ela será certa para ele. A mera tendência e
vontade humanas não possuem uma influência tão duradoura;
existe um fim para toda perfeição carnal, mas a graça celestial nunca
finda, mas avança para alcançar seu próprio objetivo que é o aper­
feiçoamento da santidade no temor do Senhor. A perseverança em
tal propósito é certamente vaticinada em relação àqueles cujo prin­
cípio está em Deus, e com Deus, e por meio de Deus. Mas os que
começam sem a instrução do Senhor logo esquecem o que apren­
deram e começam a afastar-se do caminho que antes confessavam
estar trilhando. Ninguém pode gloriar-se de permanecer firme em
seu caminho por sua própria força, visto que dependemos conti­
nuamente da instrução do Senhor: se confiarmos em nossa pró­
pria firmeza, cairemos como sucedeu a Pedro. Se Deus nos guar­
dar, sem dúvida nos manteremos em seu caminho —e é um grande
conforto saber que é o propósito de Deus guardar os pés de seus
santos! Não obstante, é nosso dever vigiar como se nossa conser­
vação no caminho dependesse totalmente de nós mesmos; pois,
• 62 •
j^ X P O S IÇ Ã O 5

segundo este versículo, nossa perseverança repousa não em qual


quer força ou compulsão, mas na instrução do Senhor; e indubi­
tavelmente, quem quer que seja o professor, a instrução requer
aprendizado daquele que é instruído; ninguém pode instruir a quem
rejeita a instrução. Bebamos, pois, avidamente da instrução divi­
na, para que solidifiquemos nossa integridade, e no último instan­
te de nossa vida prossigamos ainda na vereda da retidão! Se rece­
bermos a semente viva e incorruptível da palavra de Deus, viva­
mos por ela; à parte dela não temos vida eterna, mas apenas o
mero nome de que vivemos.
O ‘fim’ de que fala Davi é o término da vida terrena ou a pleni­
tude da obediência. Ele confiava na graça que o fazia fiel ao máxi­
mo, sem nunca fugir uma vírgula ou dizer à obediência: “Até aqui
virás comigo, mas não mais.” O fim de nossa observância da lei só
terminará quando o fôlego cessar. Ninguém pensará cm marcar
uma data e dizer: “Basta, agora posso relaxar minha vigilância c
viver segundo os costumes dos homens.” Como Cristo nos ama
até o fim, assim também o sirvamos até o fim. O fim da instrução
divina é para que o sirvamos até o fim.
As porções da oitava revelam ainda uma relação. Gimel come­
ça com oração pela vida, para que ele pudesse guardar a palavra
(v. 17); Daleth clama por mais vida, segundo a mesma palavra (v.
25); e agora He abre com uma oração por instrução, para que o
homem de Deus possa guardar o caminho dos estatutos de Deus.
Uma atenção aguçada voltada para estes versículos discernirá uma
afinidade mais estreita entre eles.
[v. 341
Dá-me entendimento, e guardarei tua lei; de todo meu coração a ob­
servarei.
Dá-me entendimento, e guardarei tua lei. Há aqui a mesma
oração ampliada, ou, melhor, um suplemento que a intensifica.
Ele não só necessita de instrução, mas também de poder para apren­
der; quer não apenas entender, mas também a obtenção de enten­
dimento. A quanta miséria o pecado nos arrastou; pois ainda nos
falta a faculdade para a compreensão das coisas espirituais, e sere-
• 63 •
S alm o 1Q

mos completamente incapazes de conhecê-las até que sejamos


dotados de discernimento espiritual! Deus, em cada ato, nos dará
compreensão? Esse é um milagre da graça! Entretanto, jamais será
operado em nós até que tenhamos consciência de nossa necessi­
dade; e nem mesmo descobriremos que somos carentes, até que
Deus nos dê uma medida de compreensão para percebê-lo. Vive­
mos num estado de complicada ruína, da qual nada, senão a mul­
tiforme graça, pode livrar-nos. Aqueles que sentem sua estultícia
são, mediante o exemplo do salmista, encorajados a orar por en­
tendimento; que cada um, pois, pela fé clame: “Dá-me entendi­
mento.” Outros o tiveram; por que ele não me atinge? Ele foi um
dom para eles; o Senhor não mo concederá graciosamente tam­
bém a mim?
Não devemos buscar esta bênção simplesmente para nos tor­
narmos famosos em sabedoria, mas para que sejamos abundantes
em amor pela lei de Deus. Aquele que tiver entendimento apren­
derá, recordará, entesourará e obedecerá à lei do Senhor. O evan­
gelho nos dá a graça para guardarmos a lei; o dom gratuito nos
guia ao serviço santo; não há outro caminho para se alcançar a
santidade senão pela aceitação do dom divino. Se Deus no-lo der,
guardemo-lo; porém jamais guardemos a lei a fim de obter a gra­
ça. O resultado seguro da regeneração, ou a obtenção do enten­
dimento, é uma pia reverência pela lei e uma firme resolução de
guardá-la no coração. O Espírito de Deus nos faz conhecer o Se­
nhor e entender o máximo de seu amor, sabedoria, santidade e
majestade; e o resultado é que passamos a honrar a lei e a entregar
nosso coração à obediência da fé.
Mathew Henry sabiamente observa que “um entendimento ilu­
minado consiste nisto: aquilo pelo que somos devemo-lo a Cristo;
pois ‘o Filho de Deus veio e nos deu entendimento’” (ljo 5.20).
Qualquer escritor pode oferecer-nos algo para compreender, mas
somente o Senhor Jesus pode dar-nos entendimento propriamente.
De todo o coração a observarei. O entendimento opera sobre
as emoções; ele convence o coração da beleza da lei, de modo que
a alma a ame com suas faculdades; e então ele revela a majestade
do Legislador, e toda a natureza se curva diante de sua suprema
• 64 •
j^XPO SIÇÂO 5

vontade. Um juízo iluminado cura as divisões do coração c sub­


mete os afetos unidos a uma estrita e vigilante observância da nor­
ma de vida. Só obedece a Deus quem pode dizer: “Meu Senhor,
eu te sirvo, e o faço de todo meu coração”; e ninguém pode real­
mente dizer isso enquanto não houver recebido como concessão
gratuita a iluminação interior do Espírito Santo. Observar a lei de
Deus de todo o coração, em todo tempo, é uma grande graça, e
poucos há que a encontram; contudo ela só poderá ser possuída
se consentirmos em ser instruídos pelo Senhor.
Olhe de trás para diante e observe o paralelo deste versículo
nos versículos 2 e 10, onde todo o coração é expresso em referên­
cia a buscar, e então observe no paralelo similar do versículo 58 a
súplica por misericórdia; e isso ocorre em todos os segundos ver­
sículos em suas oitavas. A freqüente repetição da frase todo o co­
ração mostra a importância do amor indiviso; o coração nunca é
íntegro ou santo enquanto não for íntegro e totalmente unido no
temor do Senhor. O coração nunca é um só indiviso para com
Deus enquanto não for uno em si mesmo; e nunca c uno em si
mesmo enquanto não for um todo indiviso para com Deus.
[v. 351
Faz-me caminhar pela vereda de teus mandamentos, porque nela me
deleito.
“Pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo.”
Tu me fizeste amar o caminho; agora faz-me andar nele. Ele é uma
vereda plana na qual outros estão tentando andar por tua graça;
vejo-a e admiro-a; capacita-me a caminhar por ela. Esse é o cla­
mor de uma criança que anela caminhar, mas que ainda é frágil
demais; de um peregrino que se sente exausto, mas que ainda in­
siste em sua marcha; de um aleijado que acredita ser capaz de
correr. Deleitar-se na santidade é algo em extremo bendito; e cer­
tamente aquele mesmo que nos deu tal deleite operará em nós a
alegria ainda mais profunda de possui-lo e vivê-lo. Aqui está nossa
única esperança; pois não transitaremos pela vereda estreita en­
quanto não vivermos assim pelo poder de nosso próprio Criador.
O tu que uma vez me criaste, rogo-te que me cries de novo. Tu me
• 65 •
S a lm o 115?

fizeste conhecer; agora me faças prosseguir! Certamente nunca


serei feliz até que o consiga, pois meu único deleite está em andar
em tua presença.
O salmista não pede ao Senhor que faça por ele o que ele mes­
mo deve fazer; ele deseja ‘prosseguir’ ou trilhar a vereda do man­
damento. Ele não pede que seja levado enquanto permanece pas­
sivo; mas que Deus faça com que ele ‘vá’. A graça não nos trata
como toras de madeira ou pedras, que são arrastadas por animais
adestrados ou máquinas, mas como criaturas dotadas de vida, ra­
zão, vontade e forças ativas que se dispõem e são capazes de mo­
ver-se se porventura houver necessidade. Deus opera em nós, mas
é para que possamos querer e agir de acordo com seu beneplácito.
A santidade que buscamos não é uma aquiescência forçada por
mandamento, mas a indulgência de uma sincera emoção que im­
pulsiona para a bondade, de modo que conforme nossa vida com a
vontade do Senhor. O leitor poderá dizer: Nela eu me deleito? E
piedade prática, a própria jóia da alma, o cobiçado galardão da
mente? Se esse é o caso, então a vereda externa da vida, por mais
íngreme que seja, será luminosa e guiará a alma ao deleite mais
inefável. Aquele que se deleita na lei não deve nutrir dúvida de que
será capaz de percorrer suas veredas; pois onde o coração já en­
controu sua alegria, os pés são firmados para avançar.
Note que o versículo correspondente na oitava anterior (v. 35)
foi: “Faz-me entender”; e aqui temos: “Faz-me prosseguir.” Ob­
serve a ordem: primeiro, entendimento; e então, prosseguimento.
Pois um entendimento esclarecido é uma grande assistência para a
ação prática.
[v. 36]
Inclina-me o coração a teus testemunhos, e não à cobiça.
Inclina-me o coração a teus testemunhos. Esta oração não
parece supérflua, já que, evidentemente, 0 coração do salmista es­
tava posto na obediência? Estamos convencidos de jamais haver
sequer uma palavra sobrando [ou supérflua] na Escritura. Depois
de rogar por uma virtude ativa, era indispensável que o homem de
Deus rogasse para que seu coração fosse posto em tudo quanto
• 66 •
P X P Q 5 IÇ Ã O ^

ele fizesse. O que seriam seus avanços se seu coração não avan­
çasse também? E possível que Davi sentisse um desejo flutuante,
uma propensão desordenada de sua alma por lucros materiais;
possivelmente, mesmo instruído em suas mais devotas meditações,
de repente clamasse por mais graça. A única forma de curar uma
inclinação errônea é manter a alma voltada para a direção oposta.
A santidade do coração é a cura para a cobiça. Que bênção poder­
mos pedir ao Senhor até mesmo uma inclinação! Nosso querer é
livre; todavia, mesmo sem violar sua liberdade, a graça pode incli­
nar-nos na direção certa. Isso pode ser feito através da iluminação
do entendimento quanto à excelência da obediência, através do
fortalecimento dos hábitos de nossa virtude, pela experiência da
doçura da piedade e por muitos outros meios. Se algum dever se
nos torna maçante, cabe-nos oferecer-lhe esta oração com especi­
al referência; é preciso que amemos todos os testemunhos do Se­
nhor; e se falharmos em algum deles, então que prestemo-lhe du­
plicada atenção. A tendência do coração é o caminho para o qual a
vida se inclina; daí a força da petição: “Inclina meu coração.” Fe­
lizes seremos quando nos sentirmos habitualmente inclinados a
tudo quanto é bom! Esse não é o modo como um coração carnal
sempre se inclina; todas as suas inclinações estão em franca opo­
sição aos testemunhos divinos.
E não à cobiça. Esta é a inclinação da natureza, e a graça tem
de pôr um basta nela. Este vício é tão injurioso quanto comum; é
tão banal quanto miserável. E idolatria, e portanto destrona a Deus;
é egoísmo, e portanto é cruel a todos em seu poder; é sórdida
ambição, e portanto venderia o próprio Senhor por dinheiro. E
um pecado degradante, aviltante, obstinado, mortal, que destrói
tudo o que o rodeia, tudo o que é amável e cristão. O cobiçoso
pertence à confraria de Judas, que com toda probabilidade se tor­
nará pessoalmente o filho da perdição. O crime da cobiça é co­
mum, porém bem poucos se dispõem a confessá-lo; pois quando
uma pessoa cumula ouro em seu coração, o pó dele embaça seus
olhos, de modo que não consegue divisar seu próprio erro. Nosso
coração provavelmente tenha algum objeto de desejo, e a única
maneira de isentá-lo do lucro profano é pondo em seu lugar os
• 67 •
Saimo WJ
testemunhos do Senhor. Se nos sentirmos inclinados a tomar uma
vereda, seremos atraídos para outra; a virtude negativa com certe­
za é mais facilmente dominada quando a graça positiva predomina.
[v. 37]
Desvia meus olhos de contemplar a vaidade, e vivifica-me em teu ca­
minho.
Desvia meus olhos de contemplar a vaidade. Ele havia orado
por seu coração, e alguém poderia pensar que os olhos pudessem
ser influenciados pelo coração, de modo que não houvesse neces­
sidade de fazê-los objetos de petição especial; nosso autor, porém,
está resolvido a fazer a certeza duplamente infalível. Se os olhos
não vêem, talvez o coração não deseje. De qualquer forma, fecha-
se uma porta para a tentação quando deixamos de olhar para al­
guma quinquilharia bem adornada. O pecado inicialmente pene­
trou a mente humana através dos olhos, e estes continuam ainda
sendo a porta favorita para as inconvenientes seduções de Sata­
nás; daí a necessidade de uma dupla vigilância sobre esse portal. A
oração não visa tanto a que os olhos sejam fechados, mas que
sejam ‘desviados’; pois nos é indispensável que eles estejam aber­
tos, porém direcionados para os objetos certos. E possível que você
esteja neste exato momento fitando alguma tolice; se esse é o caso,
você preciso desviar os olhos; e se estiver contemplando as coisas
celestiais, será sábio rogar que seus olhos sejam guardados da vai­
dade. Por que olhamos para a vaidade? —elas se desvanecem como
o vapor. Por que não contemplamos as coisas eternas? O pecado é
vaidade; o lucro injusto é vaidade; a auto-apreciação exagerada é
vaidade; aliás, tudo o que não procede de Deus pertence ao mes­
mo catálogo. De tudo isso temos que nos desviar. E uma prova do
senso de fraqueza sentido pelo salmista, bem como de sua inteira
dependência de Deus, por isso ele mesmo pede que seus olhos
fossem voltados para Deus; sua intenção não é ser passivo, mas
revelar seu total desamparo quando longe da graça de Deus. Te­
mendo que esquecesse de si próprio e viesse a fitar demoradamen­
te algo que fosse proibido, ele implora que o Senhor imediatamen­
te fizesse seus olhos retrocederem, livrando-o de tão perigosa parla-
• 68 •
P X P 0 5 IÇ Ã 0 5

mentação com a iniqüidade. Se formos protegidos da atenção dada


à vaidade, seremos também preservados de amar a iniqüidade.
E vivifica-me em teu caminho. Dá-me tanta vida, que a mor­
tífera vaidade não tenha poder algum sobre mim. Capacita-me a
transitar tão rapidamente na estrada para o céu, que não tenha
como deter-me demoradamente à vista da vaidade que ali fascina.
A oração indica nossa extrema necessidade - mais vida em nossa
obediência. Revela o poder preservador da vida enriquecida para
guardar-nos dos males que nos cercam, e também nos diz onde
essa vida mais rica deve ser encontrada, a saber, somente no Se­
nhor. A vitalidade é a cura da vaidade. Quando o coração trans­
borda de graça, os olhos são purificados da impureza. Em contra­
partida, se nos enchermos de vida no tocante às coisas de Deus,
teremos como proteger-nos do pecado e da futilidade; do contrá­
rio, nossos olhos prontamente cativarão a mente e, como Sansão,
que pôde matar seus milhares, venceremos a luxúria que entra pelos
umbrais dos olhos.
Este versículo é paralelo aos versículos 21 e 29 nas oitavas
anteriores: ‘opróbrio’, ‘remoção’, ‘desvio’; ou ‘soberba’, ‘mentira’,
‘vaidade’.
[v. 38]
Estabelece tua palavra para teu servo que se devota ao teu temor.
Estabelece tua palavra para teu servo. Faz-me seguro de tua
palavra infalível; que eu tenha certeza quanto a mim, e que eu
tenha certeza quanto a ela. Se possuímos o espírito de serviço, e
contudo nos deixamos afligir com pensamentos cépticos, não po­
demos fazer algo melhor do que orar para que sejamos solidifica­
dos na verdade. Tempos virão quando toda doutrina e promessa
parecerão estar abaladas e nossa mente sem qualquer repouso.
Então teremos que apelar para que Deus estabeleça a fé; pois ele
quer que todos os seus servos sejam bem instruídos e confirmados
em sua palavra. Mas é preciso que tenhamos bem fixo em nossa
mente que somos servos do Senhor, do contrário não teremos
longa e saudável permanência em sua verdade. A santidade prática
c um grande auxílio para a convicção doutrinal; se somos servos
• 69 •
S a lm o HJ?

de Deus, confirmaremos sua palavra em nossa experiência. “Se


alguém fizer a vontade dele, esse saberá se a doutrina procede dele
ou não”; e assim saberemos se estamos plenamente convictos dela.
O ateísmo no coração é uma praga terrível para alguém temente a
Deus; ele traz mais tormento do que é possível descrever; e nada,
senão a visitação da graça, pode estabilizar a alma que se vê vio­
lentamente assaltada. A vaidade ou falsidade é má para os olhos,
mas é ainda pior quando macula o entendimento e lança dúvida
sobre a palavra do Deus vivo.
Que se devota ao teu temor. Ou, seja, faz boa tua palavra
sempre que existir piedoso temor. Fortalece todo o corpo da pes­
soa reverente. Estabelece tua palavra, não só em relação a mim,
mas em relação a todas as pessoas piedosas debaixo do sol. “Esta­
belece tua palavra para teu temor”, ou, seja, para que os homens
possam ser guiados a temer-te; visto que uma fé inabalável na di­
vina promessa é a fonte e fundamento do santo temor. Não pode­
mos buscar o cumprimento das promessas em nossa experiência,
a menos que vivamos sob a influência do temor do Senhor. O
estabelecimento em graça é o resultado de santa vigilância e ener­
gia provinda da oração. Jamais seremos radicados e solidificados
em nossa convicção, a menos que diariamente pratiquemos o que
professamos crer. Plena certeza é o galardão da obediência. Res­
postas à oração são dadas àqueles cujo coração corresponde ao
mandamento do Senhor. Se nos devotamos ao temor de Deus,
seremos livres de todo e qualquer medo. Aquele que não se arre­
ceia da veracidade da Palavra, é porque está cheio do temor do
Autor da Palavra. O cepticismo é ao mesmo tempo pai e filho da
impiedade; mas a fé forte ao mesmo tempo produz piedade e é
dela gerada. Recomendamos todo este versículo a qualquer cris­
tão piedoso cuja tendência pende para o cepticismo; ele constitui­
rá uma admirável oração para ser usada em ocasiões de dúvidas
inusitada mente fortes.
Temos aqui uma oração argumentai iva. Como diz o bom Bispo
Cowper: “Aquele que tem recebido do Senhor a graça de temê-lo
pode ser ousado em buscar nele qualquer bem necessário; porque o
temor de Deus se lhe anexou a promessa de todas as demais bênçãos.”
• 70 •
P X P Q 5 IÇ Ã O f

fv. 39]
Afasta de mim o opróbrio, que temo, porque teus juízos são bons.
Afasta de mim o opróbrio, que temo. Ele temia justamente o
opróbrio, temendo que fosse a causa de o inimigo blasfemar por
alguma inconsistência solerte de sua parte. Devemos temer isso, e
vigiar para que o evitemos. A perseguição na forma de calúnia
pode também ser motivo de oração, pois que isso constitui dolo­
rosa provação, talvez a mais dolorosa das provações para as pes­
soas de mentes sensíveis. Muitos prefeririam queimar-se numa
estaca de martírio do que enfrentar a provação proveniente de cruéis
zombarias. Davi era um homem que se acalmava facilmente, e pro­
vavelmente tivesse muito medo da calúnia, visto despertar ela sua
ira, e não soubesse dizer o que aconteceria se fosse provocado. Se
Deus desvia nossos olhos da falsidade, podemos também esperar
que ele desvie a falsidade para que a mesma não prejudique nosso
bom nome. Seremos protegidos da mentira, sc também nos guar­
darmos dela.
Os juízos dos ímpios são perversos, e por isso podemos apelar
deles para o tribunal de Deus. Não obstante, se agirmos assim
quando estivermos expostos às censuras dos homens, que motivo
temos nós de temer os mais justos juízos do Senhor?
Porque teus juízos são bons. Por isso ele se sente solícito de
alguém vir falar mal dos caminhos de Deus, ao ouvir as más notí­
cias acerca dele. Lastimamos quando somos caluniados; visto que
o vexame é lançado mais sobre nossa religião do que sobre nós
mesmos. Se os homens se sentem felizes por atribuir-nos mal, e
não passa disso, podemos suportá-lo, porquanto somos maus; mas
nossa angústia consiste em que eles lançam estigma sobre a pala­
vra e caráter de Deus, cuja benevolência é impossível de qualquer
comparação. Quando os homens se irritam com o governo que
Deus exerce no mundo, é nosso dever e privilégio defendê-lo e
publicamente declarar diante dele: “Teus juízos são bons.” E deve­
mos fazer o mesmo quando assaltam a Bíblia, o evangelho, a lei,
ou o nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas devemos atentar
bem que não podem fazer qualquer acusação fidedigna contra nós,
do contrário nosso testemunho seria pura perda de tempo.
• 71 •
S alm o 119

Esta oração contra o opróbrio é um paralelo ao versículo 31, e


em geral a muitos outros dos sete versículos nas oitavas, os quais
geralmente implicam oposição externa e uma sacra satisfação in­
terior. Observe as coisas que são boas: “Teus juízos são bons” (v.
39); “Tu és bom e fazes o bem” (v. 68); “Bom é para mim ter sido
afligido” (v. 71); “Ensina-me o bom juízo” (v. 66).
[v. 40]
Eis que tenho suspirado por teus preceitos; vivifica-me em tua justiça.
Eis que tenho suspirado por teus preceitos. Ele pode pelo
menos alegar sinceridade. Acha-se profundamente prostrado pelo
senso de sua fraqueza e pela necessidade da graça; mas deseja em
todas as coisas conformar-se à vontade divina. Onde nossos ane­
los estão, ali estamos nós diante dos olhos de Deus. Se ainda não
atingimos a perfeição, não devemos desistir de suspirar por ela.
Aquele que nos deu o desejo há de nos dar também a obtenção. Os
preceitos são penosos para os ímpios, e portanto, quando nossa
transformação corresponde a nossa aspiração por eles, temos cla­
ra evidência de conversão, e podemos com segurança concluir que
aquele que começou a boa obra também a completará. Qualquer
pessoa pode ansiar pelas promessas; porém ansiar pelos preceitos é
a marca registrada de um coração renovado.
Vivifica-me em tua justiça. O salmista já tinha vida suficiente,
mas anela por mais vida para poder mais perfeitamente conhecer e
observar os preceitos do Senhor. Dá-me mais vida com quê seguir
tua justa lei; ou dá-me mais vida, pois prometeste ouvir as ora­
ções; e é em sintonia com tua justiça que guardo tua palavra. Quão
amiúde Davi implorava por vivificação! Mas nunca tão amiúde
como neste Salmo. Carecemos de vivificação a cada instante do
dia, pois somos dolorosamente disçostos a agir com lentidão e
languidez nos caminhos de Deus. E o Espírito Santo que pode
derramar nova vida em nosso coração; não cessemos de clamar a
ele. A criação da vida é uma obra divina; da mesma forma é o
aumento dela. Não nos esqueçamos jamais de orar por vivificação
em cada e em todas as atividades. Os preceitos podem parecer
uma letra morta, até que sintamos vida em nossa obediência a
• 72 •
H X P O S IÇ Ã O Ó

eles. Nada é pior na religião do que a morte espiritual. O Deus


vivo só pode ser servido através de um culto vivo.
Os últimos versículos das oitavas geralmente apresentam uma
visão progressiva de resolução, esperança e oração. Aqui frutos
passados da graça são motivos de súplica por mais bênção. “Pro­
gresso na vida celestial!” é o clamor deste versículo. Que a graça
me faça prosseguir e diariamente marchar rumo ao céu.
(w. 41-48)
Venham também sobre mim tuas misericórdias, ó Senhor, e tua salva­
ção, segundo tua palavra. E saberei responder a quem me insulta, pois
confio em tua palavra. Não tires jamais de minha boca a palavra da
verdade, pois tenho esperado em teus juízos. Assim, observarei de con­
tínuo tua lei, para todo o sempre. E andarei em liberdade, pois eu
busco teus preceitos. Também falarei de teus testemunhos na presença
dos reis e não serei envergonhado. Deleitar-me-ei em teus manda­
mentos, os quais eu amo. Também para teus mandamentos, que amo,
levantarei minhas mãos e meditarei em teus estatutos.
Nestes versículos um santo temor se faz evidente e proeminen­
te. O homem de Deus treme para que, de maneira alguma ou em
grau algum, o Senhor remova dele seu favor. Os oito versículos
formam uma súplica contínua pela permanência da graça em sua
alma, e é apoiada por argumentos tão santos, que desvendam um
espírito ardente de amor por Deus.
[v. 41]
Venham também sobre mim tuas misericórdias, ó Senhor, e tua salva­
ção, segundo tua palavra.
Venham também sobre mim tuas misericórdias, ó Senhor.
Davi desejava ao mesmo tempo misericórdia e instrução, pois era
a uma só vez culpado e ignorante. Ele era carente de muita miseri­
córdia e de variada misericórdia, daí o pedido estar no plural. Era
carente das misericórdias divinas mais do que das humanas, e por
isso suplica por “tuas misericórdias”. O caminho da graça parecia
estar bloqueado, e por isso ele implora que as misericórdias de­
sentulhassem e iluminassem seu caminho para Deus, e assim pu­
desse aproximar-se dele. Aquele que disse: “Haja luz”, também
• 74 •
jÕ ç P O S IÇ Ã O 6
diz: “Haja misericórdia.” É possível que, sob o senso de indigni­
dade, o escritor temesse que as misericórdias fossem dadas a ou­
tros, e não a ele; por isso clama: “Que elas venham a mim”-, “Aben­
çoa-me, inclusive a mim, ó meu Pai!” As palavras são equivalentes
a nossa bem conhecida estrofe:
"Senhor, tenho ouvido das chuvas de bênçãos
Que espalhas abundante e graciosamente:
Chuvas para quc se refresQue a terra sedenta.
Q ue algumas gotas desçam sobre mim,
Sim, até mesmo sobre mim."

Senhor, quando teus inimigos vierem a mim para me trazer


opróbrio, que tuas misericórdias se revelem e me defendam; as
provações e tribulações são abundantes, e não poucos trabalhos e
sofrimentos me cercam; Senhor, que tuas misericórdias, em gran­
de medida, entrem pelo portão da graça; pois não és tu “o Deus de
minhas misericórdias”?
E tua salvação. Esta é a suma e coroa de todas as misericórdi­
a s -o livramento de todo o mal, tanto agora como no porvir. Aqui
a salvação aparece pela primeira vez no Salmo, e se acha associa­
da à misericórdia: “Pela graça sois salvos.” A salvação é qualifica­
da de “tua salvação”, atribuindo-a, assim, totalmente ao Senhor:
“Aquele que é o nosso Deus é o Deus da salvação.” Que infinita
massa de misericórdias é acumulada na única salvação provinda
de nosso Senhor Jesus! Inclui a misericórdia que nos poupa até
sermos convertidos, e ela mesma nos conduz à conversão. Temos
a misericórdia que nos chama, a que nos regenera, a que nos con­
verte, a que nos justifica, a que nos perdoa. Tampouco podemos
excluir da salvação plenária qualquer uma das muitas misericórdi­
as que conduzem o cristão em segurança à glória. A salvação é um
conjunto de misericórdias, incalculáveis em número, cujo valor é
sem preço, cuja aplicação é incessante, cuja duração é eterna. Ao
Deus de nossas misericórdias seja a glória no porvir eterno.
Segundo tua palavra. O caminho da salvação é descrito na
Palavra; a própria salvação é prometida na Palavra; e sua manifes­
tação interior é operada pela Palavra; de modo que, em todos os
• 75 •
S a lm o 1Q

aspectos, a salvação que está em Cristo Jesus está em harmonia


com a Palavra de Deus. Davi amava as Escrituras, mas anelava, no
âmbito da experiência, conhecer a salvação nelas contida. Ele não
se contentava em ler a Palavra; anelava experimentar seu sentido
interior. Ele valorizava toda a esfera da Escritura em virtude de
descobrir nela o mais valioso tesouro. Não se contentava em ter um
capítulo ou um versículo: ele queria as misericórdias e a salvação.
Note que no primeiro versículo da seção que traz a letra He (v.
33), o salmista orou para que pudesse guardar a Palavra de Deus;
e aqui, na letra Vau, ele suplica ao Senhor que fosse capacitado a
guardar sua Palavra. No primeiro caso, ele anelava aproximar-se
do Deus das misericórdias; e aqui, ele quer que as misericórdias
do Senhor estejam perto dele: no primeiro caso, ele buscava a gra­
ça para perseverar na fé; e, neste, ele busca o alvo de sua fé - a
salvação de sua alma.
[v. 42]
E saberei responder a quem me insulta, pois confio em tua palavra.
E saberei responder a quem me insulta. Esta é uma resposta
incontestável. Quando Deus, ao conceder-nos a salvação, respon­
de nossas orações com paz, nos sentimos imediatamente prepara­
dos para dar resposta às objeções dos infiéis, aos sofismas dos
cépticos e às zombarias dos escarnecedores. E muito mais desejá­
vel que os ultrajes sejam respondidos, e daí podemos esperar que
o Senhor salve seu povo a fim de que uma espada seja posta em
suas mãos com a qual disperse seus inimigos. Quando os que nos
humilham são também humilhados por Deus, podemos rogar-lhe
que nos ajude a silenciá-los com provas incontestáveis de sua mi­
sericórdia e fidelidade.
Pois confio em tua palavra. Sua fé foi vista por ser ele confi­
ante enquanto se achava sob provação, e roga que pudesse repelir
os escarnecedores através de uma experiência feliz. A fé é nosso
argumento quando buscamos as misericórdias e a salvação; fé no
Senhor que nos fala em sua Palavra. “Confio em tua palavra” é
uma declaração mais digna de se fazer do que qualquer outra;
pois aquele que pode realmente fazê-la certamente recebeu o po-
• 76 •
f 7XPQ 5 1 Ç Ã O 6

der de tornar-se filho de Deus e ser assim herdeiro das misericór­


dias infinitas. Deus nutre mais respeito pela confiança de uma pes­
soa do que por tudo mais que se acha nela; pois o Senhor escolheu
a fé para ser a mão aberta a receber suas misericórdias e sua salva­
ção. Se alguém nos reprova por confiarmos em Deus, replique-
mo-lhe com argumentos conclusivos, mostrando que Deus cum­
priu suas promessas, ouviu nossas orações e supriu nossas neces­
sidades. Ainda o mais céptico se vê forçado a curvar-se diante da
lógica dos fatos.
Neste segundo versículo desta oitava, o salmista faz uma con­
fissão de fé, e uma declaração de sua certeza e experiência. Note
que ele faz o mesmo nos versículos correspondentes das seções
que se seguem. Veja o versículo 50: “Tua palavra me vivifica”; ver­
sículo 58: “Imploro tua graça”; versículo 66: “Pois creio em teus
mandamentos”; versículo 74: “Porque cm tua palavra tenho espe­
rado.” Um sábio pregador pode encontrar nestas expressões uma
valiosa série de sermões em torno da experiência humana.
[v. 43]
Não tiresjamais de minha boca a palavra da verdade, pois tenho espe­
rado em teus juízos.
Não tires jamais de minha boca a palavra da verdade. Não
me impeças de rogar-te que não me deixes destituído de livramen­
to; pois como poderia eu continuar a proclamar tua palavra se
achar-me caído? Esse parece-me ser o curso do significado. A
palavra da verdade não pode ser alegria em nossa boca, a menos
que tenhamos experiência dela em nossa vida, e manter silêncio
não pode ser demonstração de sabedoria se não podemos apoiar
nosso testemunho no veredicto de nossa consciência. Esta oração
pode também indicar outros modos pelos quais podemos ser im­
pedidos de falar em nome do Senhor: como, por exemplo, por
cairmos em pecado público; por nosso aspecto deprimido revelar
frustração; por nosso labor sob enfermidade ou aberração mental,
por não encontrarmos nenhuma chance de proclamação ou não
encontrarmos nenhum auditório disposto. Aquele que outrora pre­
gou o evangelho com entusiasmo fica cheio de horror ante a idéia
• 77 •
S a lm o llp

de ser despojado de seu ministério; ele implorará que lhe seja per­
mitido partilhar um pouco seu santo testemunho e considerará
seus domingos silenciosos como dias de banimento e punição.
Pois tenho esperado em teus juízos. Ele esperava que Deus
surgisse e defendesse sua causa, para que pudesse falar com con­
fiança acerca de sua fidelidade. Deus é o Autor de nossas esperan­
ças, e podemos mais oportunamente rogar-lhe que as concretize.
Os juízos de sua providência são o resultado de sua Palavra; o que
ele diz nas Escrituras realmente põe em obra em seu governo provi-
dente; podemos, pois, rogar-lhe que se mostre forte no meio de
suas próprias ameaças e promessas, e que não esperaremos em vão.
Os ministros de Deus são às vezes silenciados diante dos peca­
dos de seu povo, e isso os leva a rogar contra tal juízo; seria mui­
tíssimo preferível que sofressem enfermidade ou pobreza do que
ser apagada a chama do evangelho entre eles, e que, portanto,
fossem deixados a perecer sem remédio. Livre-nos o Senhor de
que seus ministros se transformem em instrumentos na aplicação
de tal penalidade. Demonstremos uma esperançosa alegria em
Deus, para que possamos suplicar em oração diante dele quando
ameaçar fechar nossos lábios.
No final deste versículo há uma declaração do que o salmista
tinha feito em referência à Palavra do Senhor, e nisto três das oita­
vas se assemelham com freqüência. Veja o versículo 35: “Pois nela
me deleito”; versículo 43: “Tenho esperado em teus juízos”; versí­
culo 51: “Não me afasto de tua lei”; versículo 59: “E volto meus
passos para teus testemunhos”; e os versículos 67, 83, 99 etc. Es­
tes versículos fornecem uma admirável série de meditações.
[v. 44]
Assim, observarei de contínuo tua lei, para todo o sempre.
Nada mais eficazmente retém uma pessoa no caminho do Se­
nhor do que a experiência da veracidade de sua Palavra, incorpo­
rada na forma de misericórdias e livramentos. A fidelidade do Se­
nhor não só abre nossas bocas contra seus adversários, mas tam­
bém une nossos corações a seu temor, e faz nossa união com ele
mais e mais sólida. As grandes misericórdias nos levam a sentir
• 78 •
fÕ ç P O S IÇ A O 6
uma inexprimível gratidão, a qual, deixando no tempo de expri­
mir-se, promete encher a eternidade com louvores. Para um cora­
ção inflamado com gratidão, os “para sempre, de eternidade a eter­
nidade”, do texto, não parecerão ser redundância. A hipérbole de
Addison, em seu famoso verso, é apenas um vislumbre de seu só­
lido sentido:
“ Por toda a eternidade a ti
Um jubiloso cântico entoarei;
Mas, oh! a eternidade é breve demais
Para entoar todo teu louvor.”

Somente a graça de Deus nos capacita a guardar seus manda­


mentos sem interrupção e sem fim; o amor eterno deve transmitir-
nos vida eterna, e desta vida eterna nos advém obediência eterna.
Não há outra forma de a verdade permanecer em nós, como Davi
orou para que ela permanecesse nele.
O versículo começa com “Assim”, como fez o versículo 42.
Quando Deus concede sua salvação, somos assim favorecidos para
silenciar nosso pior inimigo e glorificar nosso melhor Amigo. A
misericórdia responde a todas as coisas. Se Deus pelo menos nos
der a salvação, podemos vencer o inferno e comunicar-nos com o
céu, respondendo aos opróbrios e guardando a lei, e isso para todo
o sempre.
Não podemos ignorar outro sentido que aqui se insinua. Davi
orou para que a Palavra da verdade não fosse retirada de sua boca,
e assim pudesse guardar a lei de Deus; ou, seja, mediante o teste­
munho público e a vida pessoal, ele pudesse satisfazer a vontade
divina e confirmar os laços que o uniam para sempre a seu Se­
nhor. Indubitavelmente, a graça que nos capacita a dar testemu­
nho com os lábios é de grande ajuda, para nós e para outros. Sen­
timos que os juramentos do Senhor estão sobre nós, e que não
podemos recuar. Nosso ministério é útil primeiramente a nós mes­
mos, ou ele não seria, em segundo lugar, útil a outros. Devemos
assim pregar e ensinar a Palavra de Deus para que, por ela, se
cumpra nossa vida ativa e cumpramos a lei do amor, constante e
consistentemente. E algo horrível quando a pregação humana só
• 79 •
S a lm o V>
S>

faz aumentar o pecado do homem, visto ela contrariar o que a


Escritura ensina.
[v. 45]
E andarei em liberdade, pois eu busco teus preceitos.
Os santos não vêem escravidão na santidade. O Espírito de
santidade é um espírito livre; ele põe os homens em liberdade e os
capacita para que resistam todo empenho para serem trazidos em
sujeição. O caminho da santidade não é uma pista para escravos,
mas a rodovia do Rei para homens livres que jubilosamente viajam
do Egito da servidão para a Canaã do repouso perene. As mise­
ricórdias de Deus e sua salvação, ao ensinar-nos a amar os precei­
tos da Palavra, nos põem em deleitoso descanso; e quanto mais
buscarmos a perfeição de nossa obediência, mais desfrutaremos a
completa emancipação de toda forma de servidão espiritual. Davi
em certa época de sua vida se viu em grande servidão por haver
seguido uma política tortuosa. Ele enganou Aquis tão persistente­
mente que foi levado a atos de ferocidade a fim de ocultar a frau­
de, o que o teria feito sentir-se infeliz em sua inusitada posição
como aliado dos filisteus e capitão da guarda de seu rei. Ele teria
temido que, através de seu fracasso nas tortuosas veredas da falsi­
dade, a verdade não mais estivesse em sua língua, e portanto orou
para que Deus, de alguma forma, operasse seu livramento e o liber­
tasse de tal escravidão. Por meio de coisas terríveis, com justiça, o
Senhor respondeu a Ziklague: a rede foi rompida, e ele escapou.
O versículo está unido ao que vem antes; pois ele começa com
a palavra: ‘E’, a qual funciona como um gancho para ligá-lo aos
versículos precedentes. Ele faz menção de outro dos benefícios
esperados da chegada das misericórdias de Deus. O homem de
Deus mencionou o silêncio de seus inimigos (v. 42), o poder para
dar testemunho (v. 43) e a perseverança em santidade; agora ele
habita em liberdade, a qual, associada à vida, é a mais desejada de
todos os homens bravos. Diz ele: ‘andarei’, indicando seu pro­
gresso diário pela vida a fora; ‘em liberdade’, como alguém fora da
prisão, desimpedido dos adversários, desvencilhado dos fardos,
desalgemado, com uma ampla visão e pairando sem medo. Tal
• 80 •
fjÇ P O S IÇ Ã O 6
liberdade seria perigosa se uma pessoa visasse a si própria e a seus
próprios prazeres; mas quando o único objeto buscado é a vonta­
de de Deus, não pode haver necessidade de constranger a quem
busca. Não é preciso circunscrever a quem pode dizer: “Eu busco
teus preceitos.” Observe, no versículo precedente, que ele disse
que guardaria a lei; aqui, porém, ele fala de buscá-la. Não tem ele
em mente que obedeceria o que conhece, e se empenharia em co­
nhecer mais? Não é esse o caminho para a mais elevada forma de
liberdade —estar sempre labutando por conhecer a mente de Deus
e conformar-se a ela? Aqueles que guardam a lei estão certos de
buscá-la, e afana-se em guardá-la mais e mais.
[v. 46]
Também falarei de teus testemunhos na presença dos reis, e não serei
envergonhado.
Isso é parte desta liberdade; ele está livre do medo dos homens
mais eminentes, mais soberbos, mais tiranos. Davi foi chamado a
pôr-se diante dos reis quando era um exilado; e depois, quando
ele mesmo veio a ser um monarca, já conhecia a tendência dos
homens de sacrificar sua religião à pompa e à política; mas tomara
a resolução de não fazer nada disso. Ele santificaria os princípios
políticos e faria os estadistas saberem que somente o Senhor é
soberano entre todas as nações. Como rei, ele falaria aos reis acer­
ca do Rei dos reis. Diz ele: ‘Falarei’: a prudência poderia sugerir-
lhe que sua vida e conduta seriam suficientes, e que seria aconse­
lhável não tocar em questões de religião na presença de persona­
gens da realeza que cultuavam outros deuses e reivindicavam o
direito de assim o fazer. Ele já havia oportunamente tomado esta
resolução mediante a declaração: Andarei’; mas não fizera de sua
conduta pessoal uma justificativa para o silêncio pecaminoso, pois
acrescenta: ‘Falarei.’ Davi reivindicava sua liberdade religiosa e to­
mava cuidado em usá-la, pois falava daquilo em que ele cria mes­
mo quando se achava na mais eminente companhia. No que ele
dizia, tomava cuidado em guardar a própria Palavra de Deus, pois
diz: “Falarei de teus testemunhos.” Nenhum tema se assemelha a
este, e não há o que fazer para que o tema fique oculto no livro e
S a lm o 115?

usar seu pensamento e linguagem. Nossa grande dificuldade em


falar sobre tópicos sacros em todas as companhias é a vergonha,
porém o salmista afirma: “Não terei vergonha.” Não há nada de
que envergonhar-se, e não há justificativa para envergonhar-se, e
não obstante muitos ficam mudos como cadáveres de medo que
alguma criatura como nós se sinta ofendida. Quando Deus conce­
de a graça, a covardia logo se desvanece. Aquele que fala como
arauto de Deus, no poder de Deus, não se envergonha quando
começa a falar, nem enquanto está falando, nem depois de falar;
pois seu tema é próprio para reis, indispensável para reis e benéfi­
co para reis. Se os reis objetarem, poderemos sentir vergonha de­
les, porém jamais de nosso Senhor que nos enviou, nem de sua
mensagem, nem de seu propósito em enviá-la.
[v. 47]
Deleitar-me-ei em teus mandamentos, os quais eu amo.
Em companhia da liberdade e da coragem vem o deleite. Quan­
do tivermos cumprido nosso dever, acharemos uma grande re­
compensa nele. Se Davi não houvera falado por seu Senhor diante
dos reis, teria tido medo de meditar na lei que negligenciara; mas
depois de falar por seu Senhor ele sentia a suave serenidade de
coração, quando pondera sobre a Palavra. Obedeça ao manda­
mento, e então você o amará; suporte o jugo, e ele será suave e o
descanso procederá dele. Depois de falar da lei, o salmista não se
cansava de seu tema, mas retirou-se para meditar nele. Depois de
discursar, ele se deleitava; depois de pregar, ele recorria a seu es­
tudo para renovar sua força, nutrindo-se uma vez mais da precio­
sa verdade. Quer deleitasse outros quer não, quando falava, nunca
deixava de deleitar-se enquanto ponderava sobre a Palavra do Se­
nhor. Ele declara que amava os mandamentos do Senhor; e atra­
vés de sua confissão ele revelava a razão de deleitar-se neles —
onde nosso amor está, aí está nosso deleite. Davi não se deleitava
nas cortes dos reis, pois ali encontrava ocasiões de tentação para
envergonhar-se; nas Escrituras, porém, era como estar em casa;
seu coração estava nelas, elas eram seu supremo prazer. Não sur­
preende que falasse de guardar a lei, a qual amava. Disse Jesus:
• 82 •
f 7X P Q S iÇ Â O 6
“Se alguém me ama, guardará minhas palavras.” Não surpreende
que falasse de andar em liberdade e falar ousadamente, pois o ge­
nuíno amor é sempre livre e destemido. O amor é o cumprimento
da lei; onde o amor pela lei de Deus reina no coração, a vida se
enche de bem-aventurança. Senhor, que tuas misericórdias nos
encontrem, para que possamos amar tua Palavra e teu caminho, e
para que encontremos neles todo nosso deleite.
O versículo está no tempo futuro, e daí ele expressa, não só o
que Davi fizera, mas o que ele pretendia fazer; ele queria oportu­
namente deleitar-se nos mandamentos de seu Senhor. Ele sabia
que eles não podem ser alterados, nem deixar de produzir nele
alegria. Ele sabia também que a graça o guardaria na mesma con­
dição de seu coração amar os preceitos do Senhor, de modo que,
ao longo de toda sua vida, desfrutaria de supremo deleite na san­
tidade. Seu coração estava tão fixo no amor para com a vontade
de Deus, que tinha certeza de que a graça sempre o sustentaria
sob sua deleitosa influência.
Todo o Salmo é uma constante expressão de amor pela Pala­
vra; aqui, porém, pela primeira vez, ele é verbalmente expresso.
Ele aqui se acha associado ao deleite; e no versículo 165, à “gran­
de paz”. Todos os versículos em que o amor se expressa em tantas
palavras são dignos de nota. Veja os versículos 47, 97, 113, 119,
127, 140, 159, 163, 167.
[v. 48]
Levantarei minhas mãos para teus mandamentos, que amo, e medita­
rei em teus estatutos.
Levantarei minhas mãos para teus mandamentos, que amo.
Ele estende os braços para a perfeição até onde pode, esperando
um dia poder alcançá-la. Quando suas mãos penderem, ele recu­
perar-se-á do langor pela visão prospectiva de glorificar a Deus
através da obediência; e dará solene sinal de seu cordial assenti­
mento e consentimento quanto a tudo o que seu Deus ordena. A
frase, “levantarei minhas mãos”, é muito significativa, e sem dúvi­
da o terno cantor tinha em mente tudo quanto podia ver nela e
mais uma grande medida. Uma vez mais ele declara seu amor;
• 83 •
S a lm o uy

pois um coração sincero ama para expressar-se; é um gênero de


fogo que espalharia suas chamas. Era natural que ele tivesse a seu
alcance uma lei na qual se deleitava, como se fosse uma criança
que estende sua mão para receber um presente muito desejável.
Quando um objeto tão amável, como a santidade, é posto diante
de nós, somos impulsionados em direção a ele empenhando toda
nossa natureza, e enquanto não for plenamente concretizado, no
mínimo estenderemos nossas mãos em oração para recebê-lo.
Aonde mãos santas e corações santos vão, o homem todo, um dia,
também irá.
E meditarei em teus estatutos. E possível que nunca tenha
meditação bastante. Os súditos zelosos desejam familiarizar-se com
os estatutos de seus soberanos para não ofendê-los em decorrên­
cia da ignorância. Oração com mãos erguidas, e meditação com
olhos direcionados para o alto, numa ditosa união, produzirão os
melhores resultados interiores. A oração do versículo 41 já se cum­
priu na pessoa que luta olhando para cima e estuda visando às
profundezas de seu coração. A totalidade deste versículo está no
tempo futuro, e pode ser vista não só como uma determinação da
mente de Davi, mas como um resultado que ele sabia se seguiria
de enviar-lhe o Senhor suas misericórdias e sua salvação. Quando
a misericórdia desce até nós, nossas mãos se erguem; quando des­
frutamos a consciência de que Deus pensa em nós com um amor
especial, nos asseguramos de pensar também nele.

• 84 •
(w. 49-56)
Lembra-te da palavra proferida a teu servo, na qual me tens feito es­
perar. O que me consola em minha aflição é isto: que tua palavra me
tem vivificado. Os soberbos zombam intensamente de mim; todavia
não me afastei de tua lei. Lembrei-me de teus juízos de outrora e me
sinto consolado, ó Senhor. De mim se apoderou a indignação, por
causa dos perversos que abandonaram tua lei. Teus estatutos têm sido
meus cânticos na casa de minha peregrinação, lenho recordado de
teu nome, ó Senhor, durante a noite, e tenho guardado tua lei. lêm-se
dado assim comigo, porque guardo teus preceitos.
Esta oitava trata do conforto oriundo da Palavra. Começa bus­
cando a principal consolação, ou, seja, o cumprimento da pro­
messa do Senhor, e então mostra como a Palavra nos sustenta na
aflição e nos faz tão inacessíveis ao ridículo, movidos pela ríspida
conduta dos ímpios, mais pelo horror de seu pecado do que por
alguma submissão a suas provocações. Somos, pois, informados
como a Escritura apresenta cânticos para os peregrinos e memóri­
as para os vigias noturnos; e a porção termina com a afirmação
geral de que toda sua felicidade e conforto são oriundos de guar­
darem eles os estatutos do Senhor.
[v. 49]
Lembra-te da palavra que proferiste a teu servo, na qual me tens feito
esperar.
Lembra-te da palavra que proferiste a teu servo. Ele indaga
não de uma nova promessa, mas da antiga palavra cumprida. Ele
está agradecido por haver recebido tão boa palavra, a qual abraça
com todas as veras do coração, e agora suplica ao Senhor que o
trate de acordo com ela. Ele não diz: “Lembra-te de meu serviço a
• 85 •
S alm o Up

ti prestado”, mas de “tua palavra [ou promessa] que proferiste a


mim”. As palavras dos senhores a seus servos nem sempre são tais
que os servos queiram que seus senhores as repitam; pois geral­
mente anotam as faltas e falhas no trabalho feito, naquilo que não
correspondem à palavra de ordem. Mas servimos o melhor dos
senhores, sem medo de uma de suas palavras cair ao chão, visto
que o Senhor tão bondosamente nos lembra de sua palavra de
ordem, quando nos dá a graça para que possamos obedecer e nos
traz à memória igualmente sua promessa, de modo que nosso co­
ração seja consolado. Se a palavra de Deus dirigida a nós como
seus servos é tão preciosa, que diremos de sua palavra dirigida a
nós como seus filhos?
O salmista não teme estar ausente na memória do Senhor, se­
não que faz uso da promessa como uma reivindicação, e esta é a
forma na qual ele fala, segundo a maneira dos homens quando
argumentam uns com os outros. Quando o Senhor lembra os pe­
cados de seus servos, e os põe diante de sua consciência, o peni­
tente clama: Senhor, lembra-te de tua palavra de perdão, e por­
tanto lembra-te de meus pecados e não inquiras nada mais. Há
um universo de significado no verbo ‘lembrar’, quando dirigido a
Deus; é usado na Escritura no mais terno sentido, e se adequa à
depressão e ao deprimido. O salmista clamou: “Senhor, lembra-te
de Davi e de todas as suas aflições”; Jó também orou para que o
Senhor lhe designasse um tempo determinado e se lembrasse dele.
No presente exemplo, a oração é tão pessoal como o “Lembra-te
de mim” do ladrão, pois sua essência está nas palavras: “de teu
servo”. Ser-nos-ia tudo em vão se a promessa fosse lembrada em
relação a todos os outros, e não se concretizasse em relação a nós;
porém não existe tal probabilidade; pois o Senhor nunca olvidou
sequer uma promessa, feita a algum crente nele.
Na qual me tens feito esperar. O argumento consiste em que
Deus, havendo nos dado a graça para esperarmos, jamais nos de­
sapontará nessa espera. Ele não pode fazer-nos esperar sem moti­
vo. Se esperamos em sua palavra, temos a base infalível sobre a
qual edificar - nosso gracioso Senhor jamais zombará de nós, nos
incitando a falsas esperanças. A esperança indeferida faz o cora-
• 86 •
X P Q 5 IÇ Â O /

ção enfermo; daí a petição para imediata lembrança da palavra de


ânimo. Além do mais, ela é a esperança de um servo, e não é pos­
sível que um grande e bom senhor decepcione seu dependente. Se
a palavra de um tal senhor não for guardada, isso só se daria atra­
vés de um descuido; daí o aflitivo clamor: “Lembra-te.” Nosso
grande Senhor não esquecerá seus próprios servos, nem frustrará
a expectativa que ele mesmo suscita; porque somos do Senhor, e
nos esforçaremos por lembrar de sua palavra para obedecê-la; e
estejamos certos de que ele se lembrará de seus próprios servos, e
se lembrará de sua própria promessa, fazendo com que se cumpra.
Este versículo é a oração de amor de alguém que teme ser es­
quecido; de humildade de alguém que é cônscio de sua insignifi­
cância e que teme ser ignorado; de arrependimento de alguém que
treme, esperando que o mal de seu pecado não tolde a promessa;
de ardente desejo de alguém que anela pela bênção; c de santa
confiança de alguém que sente que tudo o que se deseja está com­
preendido na Palavra. Simplesmente deixemos que o Senhor se
lembre de sua promessa; e o ato prometido é tão bom como o
concretizado.
[v. 50]
O que me consola em minha aflição é isto: que tua palavra me tem
vivificado.
Sua intenção é: Tua palavra é meu conforto; ou: meu conforto
está no fato de que tua palavra me traz vivificação. Ou quis dizer
que a esperança que Deus lhe deu era seu conforto, pois Deus o
vivificara através dela. Seja qual for o sentido exato, é evidente que
o salmista sofria aflição —aflição peculiar a sua pessoa, a qual ele
chama “minha aflição”; que ele experimentava conforto nela -,
conforto própria e especialmente seu, porquanto o denominou de
“meu conforto”; e ele sabia qual era o conforto e donde viera, pois
exclama: “Eis meu conforto.” Os profanos seguram sua bolsa de
dinheiro, e dizem: “Eis meu conforto”; o perdulário aponta para a
jovialidade e grita: “Eis meu conforto”; o ébrio ergue sua garrafa e
canta: “Eis meu conforto”; mas a pessoa cuja esperança vem de
Deus sente a vida gerada pelo poder da Palavra do Senhor e testi-
• 87 •
S a lm o 11?

fica: “Eis meu conforto.” Paulo diz: “Eu sei em quem tenho crido.”
O conforto é desejável em todo tempo; mas o conforto na afli­
ção é como uma lâmpada num lugar escuro. Muitos são incapazes
de achar conforto na tribulação; mas esse não é o caso com os
cristãos, pois seu Salvador lhes disse: “Não vos deixarei órfãos.”
Alguns têm conforto, porém não aflição; outros têm aflição, po­
rém não conforto; mas os santos têm conforto em sua aflição.
O termo freqüentemente nos conforta, aumentando a força de
nossa vida interior: “Este é meu conforto; tua palavra me tem vivi­
ficado.” Vivificar o coração é imprimir espírito jovem à pessoa
toda. As vezes o modo mais prático para consolação é através da
santificação e revigoramento. Se não podemos afastar 0 nevoeiro,
podemos subir a um ponto mais alto e ficar acima dele. As prova­
ções que nos fazem vergar enquanto nos sentimos meio mortos se
tornam mera irrisão quando nos achamos no vigor da vida. E as­
sim às vezes nosso espírito é soerguido pela graça que vivifica; e o
mesmo às vezes se repete, pois o Consolador está ainda conosco,
a Consolação de Israel sempre vive e o próprio Deus de Paz é
perenemente nosso Pai. Ao volvermos nossos olhos para nossa vida
pregressa, nos deparamos com motivos de conforto no que tange
a nosso estado - a Palavra de Deus nos vivificou e nos conservou
assim. Estávamos mortos, mas não continuamos mortos. Desse
fato alegremente inferimos que, se o Senhor pretendesse destruir-
nos, ele não nos teria vivificado. Se fôssemos apenas hipócritas
dignos de irrisão, como os soberbos costumam dizer, ele não nos
teria renovado por sua graça. Uma experiência de vivificação pela
Palavra de Deus é uma fonte de efusivo bem.
Veja como a experiência deste versículo se transforma em ora­
ção no versículo 107: “Estou mui aflito; vívifica-me, ó Senhor,
segundo tua palavra.” A experiência nos ensina como orar e for­
nece os argumentos para a oração.
[v. 51]
Os soberbos zombam intensamente de mim; todavia, não me afastei
de tua lei.
Os soberbos zombam intensamente de mim. Os soberbos
• 88 •
f^XPOSIÇÂO 7

nunca amam as pessoas agraciadas; e visto que as temem, disfar­


çam seu temor com pretenso desprezo. Neste caso, seu ódio se
manifesta no ridículo, e tal ridículo é altissonante e duradouro.
Quando queriam divertir-se, divertiam-se às custas de Davi, visto
que ele era servo de Deus. Os homens devem ter olhos estranhos
para serem capazes de ver farsa na fé e comédia na santidade; não
obstante, é algo doloroso que os homens que são de pouca imagi­
nação geralmente conseguem provocar uma profusa gargalhada
ao ridicularizar um santo. Pecadores conceituados conseguem di­
vertir-se de pessoas piedosas. Conseguem provocar ruidosa brin­
cadeira quando caricaturam um membro fiel de “O Clube Santo”:
seus métodos de vida organizada são matéria de gracejos, cha­
mando-o de “o metodista”; e seu pecaminoso ódio põe suas lín­
guas a falarem jocosidade contra o carrancudo e escrupuloso pu­
ritano, chamando-o de hipocrisia. Se Davi era grandemente es­
carnecido, não podemos esperar escapar do escárnio dos ímpios.
Existem ainda na face da terra hostes de pessoas soberbas, e se
encontrarem um cristão em aflição serão bastante maldosas e bas­
tante cruéis para fazerem troças em seu detrimento. Faz parte da
natureza do filho da escrava escarnecer do filho da promessa.
Todavia, não me afastei de tua lei. E assim os escarnecedores
erraram o alvo: deram gargalhada, porém não venceram. O piedo­
so, ainda que se desvie de seu reto caminho, nem assim se extin­
gue sua paz, nem em qualquer sentido se desprende de seus hábi­
tos santos. Muitos ter-se-iam declinado; muitos têm se declinado;
Davi, porém, não se declinou. Prestar demasiada honra aos insen­
satos equivale a conceder-lhes meia vitória. Sua profana hilarida­
de não nos prejudicará se não lhe prestarmos atenção, porquanto
a lua nada sofre dos cães que uivam olhando para ela. A lei de
Deus é nossa suprema via de paz e segurança, e os que mofam de
nós não nos desejam nenhum bem.
A luz do versículo 61, notamos que Davi não se deixaria ven­
cer pelo espólio de seus bens embora sofresse à vista de motejos
tão cruéis. Veja também o versículo 157, onde a multidão de per­
seguidores e inimigos se viu frustrada em suas tentativas de fazê-
lo desistir dos caminhos de Deus.
• 89 •
S a lm o U9

[v. 52]
Lembrei-me de teus juízos de outrora e me sinto consolado, ó Senhor.
Ele havia pedido ao Senhor que se lembrasse; aqui ele se lem­
bra de Deus e de seus juízos. Quando não divisarmos nenhuma
manifestação atual do poder divino, é sábio voltarmos aos regis­
tros de épocas anteriores, visto que são tão valiosos como se as
transações fossem de ontem, já que o Senhor é sempre o mesmo.
Nosso verdadeiro conforto deve ser encontrado no que nosso Deus
opera no interesse da verdade e do direito, e como as histórias dos
tempos de outrora estão saturadas das intervenções divinas, é bom
nos familiarizarmos totalmente com elas. Além do mais, se somos
de idade avançada, temos diante de nós as providências de nossos
primeiros anos, e elas não devem de forma alguma ser esquecidas
nem deixadas fora de nossos pensamentos. O argumento é bom e
sólido: aquele que se tem demonstrado forte em favor de seu povo
crente é o Deus imutável, e portanto podemos esperar o livramen­
to que vem de suas mãos. O sarcasmo dos soberbos não nos afligi­
rá quando guardamos na memória como o Senhor tratou seus
predecessores nos períodos primevos: os destruiu no dilúvio; os
confundiu em Babel; os afogou no Mar Vermelho; os expulsou de
Canaã - em todas as épocas ele desnudou seu braço contra os
arrogantes, e os esmiuçou como se fossem vasos nas mãos do oleiro.
Enquanto em nosso próprio coração humildemente bebermos da
misericórdia divina em quietude, não ficaremos sem conforto em
tempos de tumulto e escárnio; pois em tais momentos recorrere­
mos à justiça divina e nos lembraremos como Deus escarnece dos
escarnecedores: “Ri-se aquele que habita nos céus, o Senhor zomba
deles.”
Ao ver-se profundamente escarnecido, o salmista não sentou-
se em desespero, mas recobrou seu ânimo. Ele sabia que o confor­
to é indispensável ao vigor no serviço e à paciência na persegui­
ção, portanto procurou confortar-se. Ao agir assim, ele recorreu
não tanto ao lado dócil, mas ao lado austero dos tratos do Senhor
- ele permaneceu em seus juízos. Se podemos achar suavidade na
justiça divina, quanto mais a sentiremos no amor e na graça de
Deus! O homem precisa estar em paz com Deus de tal forma que
• 90 .
]r XPQ5IÇÃO 7

o conforto lhe seja assegurado, não só em suas promessas, mas


também em seus juízos! Mesmo as coisas terríveis de Deus são
alvissareiras para o coração dos cristãos. Eles sabem que nada é
mais vantajoso a todas as criaturas de Deus do que serem elas
governadas por uma mão forte que intervém com justiça. A pessoa
justa não teme a espada do soberano, a qual só é terror para os
malfeitores. Quando o piedoso é injustamente tratado, ele encon­
tra conforto no fato de existir um Ser que é o Juiz de toda a terra,
o qual vingará seus próprios eleitos e compensará os males desses
tempos desordenados.
[v. 53]
De mim se apoderou a indignação, por causa dos perversos que aban­
donaram tua lei.
Ele ficou horrorizado com a ação deles, com a soberba que os
levou a agirem assim e com o castigo que certamente recairia so­
bre eles por causa de sua atitude. Ao meditar sobre os antigos
juízos de Deus, ele encheu-se de horror ante a sorte dos ímpios, a
qual poderia ser sua também. Seus zombadores não lhe causaram
angústia, mas foi afligido pela antevisão da ruína deles. As verda­
des que lhes serviam de troça, para ele eram motivo de espanto.
Ele os via totalmente apostatados da lei de Deus, deixando-a como
uma vereda deserta e coberta de vegetação por falta de trânsito, e
tal abandono da lei o encheu das mais dolorosas emoções. Ele
estava atônito com a impiedade deles, estupefato com sua presun­
ção, alarmado com a expectativa de sua súbita ruína, espantado
ante o terror de sua infalível destruição.
Veja os versículos 106 e 158, e note a ternura que se harmoni­
za com tudo isso. Os que nutrem a mais firme convicção do eterno
castigo dos ímpios são os que mais se entristecem com sua des­
truição. Não é evidência de ternura fechar alguém os olhos para a
pavorosa destruição dos ímpios. A compaixão é muitíssimo me­
lhor demonstrada ao tentarmos salvar os pecadores do que a ten­
tativa de tornar agradáveis as coisas que cercam a todos. Ah! se
lodos nós nos sentíssemos mais aflitos ao meditar na sorte que
aguarda os ímpios no inferno! O costume geral é fechar os olhos
• 91 •
S a lm o llj?

para ela, ou tentar ignorá-la; mas o servo fiel de Deus pode dizer:
“Não agi assim porque temo a Deus.”
[v. 54]
Teus estatutos têm sido meus cânticos na casa de minha peregrinação.
Como outros servos de Deus, Davi sabia que ele não tinha
casa neste mundo, mas era um peregrino nele, buscando um país
superior. Não obstante, ele não lastimava este fato, mas cantava a
despeito dele. Ele não nos diz nada acerca de seus lamentos pere­
grinos, mas fala de seus cânticos peregrinos. Mesmo o palácio em
que habitava não passava de “a casa de suas peregrinações”, a
estalagem onde repousava, a estação onde parava por algum tem­
po. Os homens costumam cantar enquanto se acham em suas es­
talagens, e assim faziam estes ímpios hóspedes de passagem. Ele,
porém, cantava os cânticos de Sião, os decretos do grande Rei. Os
mandamentos de Deus lhe eram sobejamente conhecidos como as
baladas de seu país, e eram agradáveis a seu paladar e sonoros a
seus ouvidos. Feliz é o coração que acha sua alegria nos manda­
mentos de Deus e faz da obediência sua recreação! Quando há
música na religião, tudo fica bem. Quando cantamos nos cami­
nhos do Senhor, isso mostra que nosso coração está neles. Nos­
sos Salmos são peregrinos, ou Cânticos dos Degraus; mas são de
tal natureza que podemos cantá-los por toda a eternidade; pois os
decretos do Senhor são o saltério dos mais altos céus.
Os santos acham horror no pecado e harmonia na santidade.
Os ímpios se esquivam da lei; os justos a celebram com cântico.
Nos dias de outrora cantávamos os decretos do Senhor, e neste
fato podemos extrair conforto para a aflição no presente. Visto
que nossos cânticos são tão diferentes daqueles dos soberbos, po­
demos esperar reunir-nos num coral muito diferente, no futuro,
daquele em que ora cantamos, e compor música num lugar muito
distante daquele em que os soberbos habitam.
Note como nos sextos versículos de suas respectivas oitavas
encontramos amiúde disposição para bendizer a Deus, ou regis­
tros de testemunhos. No versículo 46, temos: “Falarei”; e no 62:
“para te dar graças”; enquanto que aqui ele fala de cânticos.
• 92 •
I^ X P O S IÇ A O 7

[v. 55]
Tenho recordado, ó Senhor, de teu nome durante a noite, e tenho guar­
dado tua lei.
Tenho recordado, ó Senhor, de teu nome durante a note.
Enquanto outros dormiam, eu ficava acordado pensando em ti,
em tua pessoa, em tuas ações, em teu pacto, em teu nome —termo
este no qual ele envolve o caráter divino até onde é ele revelado.
Ele vivia tão ansioso pelo Deus vivo que acordava nas horas mor­
tas da noite a meditar sobre ele. Estes eram os “pensamentos no­
turnos” de Davi. Se não eram “memórias luminosas”, eram me­
mórias do Sol da Justiça. E ótimo quando nossa memória nos for­
nece consolação, de modo a podermos dizer com o salmista: sen­
do inicialmente instruído a conhecer-te, só tinha que recordar as
lições de tua graça, e meu coração foi consolado. Este versículo
revela não só que o homem de Deus recordava, mas também que
ele ainda lembra do Senhor seu Deus. Temos que santificar o nome
de Deus, e não podemos fazer isso se ele escapa a nossa memória.
E tenho guardado tua lei. Ele encontrou santificação através
da meditação; através dos pensamentos noturnos ele administrava
as ações diurnas. Como as ações diurnas às vezes criam os sonhos
noturnos, assim os pensamentos noturnos produzem os feitos diur­
nos. Se não guardarmos o nome de Deus em nossa memória, não
guardaremos a lei de Deus em nossa conduta. A negligência men­
tal nos leva à negligência no viver diário.
Quando ouvimos as canções noturnas dos farristas, temos nisso
segura evidência de que não guardam a lei de Deus; mas as silen­
tes meditações das pessoas agraciadas são prova positiva de que o
nome do Senhor lhes é mui querido. Por suas canções podemos
julgar as nações, e o mesmo se dá no tocante aos homens; e no
caso dos justos, seu cantar e seu meditar são ambos indicações de
seu amor a Deus: quer elevem suas vozes, quer se quedem em
silêncio, continuam glorificando o Senhor. Bem-aventuradas são
as pessoas cujos “pensamentos noturnos” são memórias da luz
eterna; serão lembradas pelo Senhor quando a noite da morte che­
gar. Amado leitor, seus pensamentos na escuridão são cheios de
luz, por serem cheios de Deus? Seu Nome é o tema natural de
• 93 •
S a lm o 115»

suas reflexões noturnas? Então ele dará um doce matiz a suas ho­
ras noturnas e meridianas. Ou seria o caso de você dedicar toda
sua mente a preocupações evanescentes e a deleites deste mundo?
Se esse é o caso, não surpreende de você não viver como deveria.
Ninguém é casualmente santo. Se não nutrimos nenhuma memó­
ria de Jeová, é evidente que também não nos lembraremos de seus
mandamentos; se não pensamos nele secretamente, não o obede­
ceremos publicamente.
[v. 56]
Tem-se dado assim comigo porque eu guardei teus preceitos.
Ele estava de posse deste conforto, desta lembrança de Deus,
deste poder para cantar, desta coragem para encarar o inimigo,
desta esperança na promessa, porque tinha ardentemente obser­
vado os mandamentos de Deus e se diligenciava em andar neles.
Não somos galardoados por nossas obras, mas há nelas uma re­
compensa. Para muitos, o conforto só é obtido por um viver zelo­
so. Podemos seguramente dizer de tal consolação: “Eu obtive isto
por guardar teus preceitos.” Como podemos vencer o ridículo se
estamos vivendo de maneira inconsistente? Como podemos con­
fortavelmente lembrar-nos do Nome do Senhor se vivemos displi­
centemente?
É possível que Davi quisesse dizer que ele fora capacitada a
guardar a lei em virtude de haver considerado os preceitos separa­
damente; que havia tomado os mandamentos detalhadamente, e
assim atingira a santidade de vida. Aquele que não é zeloso das
partes da lei não pode guardá-la como um todo. Ou é possível que
ele quisesse dizer que, ao guardar determinados preceitos, adqui­
rira força espiritual para guardar os outros. Pois Deus dá mais
graça aos que têm alguma medida dela, e os que aperfeiçoam seus
talentos descobrirão que eles mesmos são aperfeiçoados. Talvez
seja melhor deixar a passagem aberta justamente como faz nossa
versão; de modo que possamos dizer de mil bênçãos inestimáveis:
“Elas nos alcançaram no caminho da obediência.” Todas as nos­
sas possessões são dons da graça, e no entanto é inquestionavel­
mente verdadeiro que algumas delas nos vêm na forma de galar-
• 94 •
XPQ 5 IÇ A Q 7

dão. Mesmo quando as coisas boas nos vêm nesta forma de galar­
dão, não assumem o caráter de dívida, mas de graça. Deus primei­
ro opera em nós as boas obras, e em seguida nos galardoa em
função delas. Esta é uma condescendência complexa, um fruto da
benevolência.
Neste versículo temos uma conclusão apropriada para esta se­
ção do Salmo, visto que ela contém um forte argumento em prol
da oração que abriu a seção. Se temos sido auxiliados a recordar
os mandamentos de nosso Senhor, podemos estar certos de que
ele se lembrará de nossas necessidades. O terno cantor tinha cer­
teza de haver guardado os preceitos de Deus, e portanto podia
suplicar mais apropriadamente que o Senhor mantivesse suas pro­
messas. Por toda a passagem podemos deparar-nos com apelos,
especialmente nas duas lembranças. “Tenho lembrado de teus juí­
zos” e “Tenho lembrado de teu nome”; “Lembra-te de tua palavra
para com teu servo”.

• 95 •
(w. 57-64)
Tu és minha porção, ó Senhor; eu disse que guardaria tuas palavras.
Imploro de todo o coração teu favor; sê misericordioso para comigo,
segundo tua palavra. Pondero em meus caminhos e volto meus passos
para teus testemunhos. Apresso-me, não me detenho em guardar teus
mandamentos. Os laços dos perversos me enleiam; contudo não me
esqueci de tua lei. Levanto-me à meia-noite para te render graças,
movido por teus retos juízos. Companheiro sou de todos os que te te­
mem e dos que guardam teus preceitos. A terra, Senhor, está cheia de
tua misericórdia; ensina-me teus estatutos.
Nesta seção, o salmista parece tomar sólida posse de Deus
mesmo: apropriando-se dele (v. 57); clamando a ele (v. 58); vol­
tando-se para ele (v. 59); consolando-se nele (w. 61, 62); associ­
ando-se a sua pessoa (v. 63); e suspirando por sua instrução pes­
soal (v. 64). Note como o primeiro versículo desta oitava é vincu­
lado ao último da anterior, do qual ele é de fato uma expansão.
“Tem-se dado assim comigo, porque guardo teus preceitos. Tu és
minha porção, ó Senhor; eu disse que guardaria teus preceitos.”
Embora sejam muitos, estes versículos são apenas um único pão.
[v. 57]
Tu és minha porção, ó Senhor; eu disse que guardaria tuas palavras.
Tu és minha porção, ó Senhor. Uma expressão interrompida.
Os tradutores a têm melhorado com algumas inserções, mas é pro­
vável que o melhor seja deixá-la como está, e então apareceria
como uma exclamação —“Minha porção, ó Senhor!” O poeta se
sente absorto em perplexidade enquanto se dá conta de que o imen­
surável e glorioso Deus é toda sua possessão! E bem provável que
seja assim, porque não há possessão como o próprio Jeová. A for-
• 96 •
j^ x P O S iç Ã o 8
ma da sentença expressa jubiloso reconhecimento e apropriação -
“Minha porção, ó Jeová!” Davi amiúde presenciava a divisão da
presa e ouvia os gritos dos vitoriosos em torno dela; aqui ele se
regozija como alguém que toma posse de parte do despojo; ele
escolhe o Senhor para ser sua parte do tesouro. Como os levitas,
ele tomou Deus para ser sua porção, e deixou outras partes para
aqueles que as cobiçavam. Eis aqui uma grande e duradoura he­
rança, pois ela inclui tudo, e mais que tudo, e que dura mais que
tudo; e no entanto ninguém a escolhe para si enquanto Deus não o
houver abençoado, separado e renovado. Quem é realmente sábio
que hesitaria por um instante quando o Deus infinitamente bem-
aventurado se põe diante dele para ser o objeto de sua escolha?
Davi aproveitou a oportunidade e apoderou-se da inestimável dá­
diva. Nosso autor, aqui, ousa exibir o certificado de propriedade
de sua porção na presença do próprio Senhor, pois ele expressa
sua jubilosa declaração diretamente a Deus, a quem ousadamente
chama minha porção. Tendo amplo campo onde escolher, pois ele
era rei e um homem de grandes recursos, deliberadamente volta as
costas a todos os tesouros do mundo e declara que o Senhor, Jeo­
vá mesmo, é sua porção.
Eu disse que guardaria tuas palavras. Nem sempre podemos
relembrar com conforto daquilo que dissemos, mas neste exemplo
Davi expressou-se sabiamente e muito bem. Ele declarou sua es­
colha; ele preferiu a palavra de Deus às riquezas mundanas. Era
sua firme resolução guardar - ou seja, entesourar e observar - as
palavras de seu Deus; e como havia outrora solenemente expresso
na presença do próprio Senhor, assim aqui ele confessa a penho­
rada obrigação de seu juramento anterior. Disse Jesus: “Se al­
guém me ama, guardará minhas palavras”, e esse é um caso que
ele podia citar como uma ilustração; pois o amor do salmista por
Deus, como sua porção, o levou a guardar as palavras de seu Deus.
Davi tomou a Deus tanto como seu Príncipe quanto como sua
Porção. Ele estava confiante quanto a seu interesse por Deus, e
por isso estava resoluto em sua obediência a ele. A plena convic­
ção é uma poderosa fonte de santidade. As próprias palavras de
Deus devem ser harmazenadas; pois quer se relacionem com a
• 97 •
S a lm o 115>

doutrina, com a promessa, ou com o preceito, são muitíssimo pre­


ciosas. Quando o coração está determinado a guardar essas pala­
vras, e tenha registrado seu propósito no tribunal celestial, está
preparado a enfrentar todas as tentações e provações que porven­
tura lhe recaiam; pois, com Deus por sua herança, ele sempre des­
fruta a boa atmosfera.
[v. 58]
Imploro de todo o coração teu favor; sê misericordioso para comigo,
segundo tua palavra.
Imploro de todo o coração teu favor. Uma posse plenamente
assegurada de Deus não descarta a oração; ao contrário, nos im­
pele para ela. Aquele que sabe ser Deus o seu Deus buscará sua
face, anelando por sua presença. Buscar a presença de Deus é a
idéia comunicada pela leitura marginal, “tua face”, e isso condiz
com o hebraico. A presença de Deus é a mais elevada forma de seu
favor [graça], e por isso é o mais urgente desejo das almas agraci­
adas. A luz de seu semblante nos transmite uma prelibação do céu.
Oh, que sempre desfrutemos dela! O bom homem suplicou o sor­
riso de Deus como alguém que implorava por sua vida, e toda a
força de seu desejo acompanhava a súplica. Apelos tão ardentes
garantem o sucesso; aquilo que vem de nosso coração certamente
irá ao coração de Deus. Todas as graças de Deus estão à disposi­
ção daqueles que as buscam de todo seu coração.
Sê misericordioso para comigo, segundo tua palavra. Ele
implorou por graça, e a forma em que mais necessitava dela é a da
misericórdia; pois ele é mais pecador do que todos os demais. Ele
nada pede além da promessa, apenas roga por aquela misericórdia
revelada pela palavra. E o que mais poderia ele querer ou desejar?
Deus revelou essa infinita misericórdia em sua palavra, de modo
que seria impossível conceber mais que isso. Veja como o salmista
insiste no favor e misericórdia; ele nunca sonha com mérito. Ele
não exige; suplica. Pois sente sua própria indignidade. Note como
ele permanece um suplicante, embora soubesse que em seu Deus
ele possuía todas as coisas. Deus é sua porção, e mesmo assim ele
implora para contemplar sua face. Nunca entrou em sua mente a
• 98 •
f 7XPQ 5 IÇ A O 8

idéia de qualquer outra posição diante de Deus além daquela de


alguém imerecidamente favorecido. Aqui temos seu “sê misericor­
dioso para comigo” emanando com tal intensidade de humilde
apelo como se ainda permanecesse entre o mais tremente dos pe­
nitentes. A confiança da fé nos torna ousados em oração, mas ela
nunca nos ensina a vivermos sem oração, ou a nos justificarmos
em ser algo mais além de humildes suplicantes diante do portão da
misericórdia.
[v. 59]
Pondero em meus caminhos e volto meus passos para teus testemu­
nhos.
Enquanto estudava a Palavra, ele era levado a estudar sua pró­
pria vida, e isso provocava poderosa revolução. Ele chegava-sc à
Palavra e em seguida volvia para si próprio, e isso o fazia erguer-se
e chegar-se a seu Pai. A ponderação é o início da conversão. Pri­
meiro pensamos; e então nos volvemos. Quando a mente se arre­
pende dos maus caminhos, os pés são logo guiados aos bons ca­
minhos. Mas não há arrependimento algum enquanto não houver
reflexão profunda e sincera. Muitas pessoas são contrárias a qual­
quer tipo de reflexão; e no que tange à ponderação sobre seus
caminhos, não podem suportá-la, pois seus caminhos não supor­
tam que sejam examinados. Os caminhos de Davi não eram tudo
aquilo de que ele desejava que fossem, e assim seus pensamentos
eram temperados com o ânimo extraído do pesar; mas ele não
concluiu com lamentações frívolas, mas deu início a uma repara­
ção prática: volveu-se e revolveu-se, buscou os testemunhos do
Senhor e apressou-se em desfrutar uma vez mais o inconfundível
favor de seu Amigo celestial. Ação sem reflexão é estupidez; e re­
flexão sem ação é indolência. Refletir cuidadosamente e então agir
determinadamente é uma feliz combinação. Ele implorara por co­
munhão renovada, e agora prova a genuinidade de seu anelo de­
monstrando obediência renovada. Se nos encontrarmos em trevas
e sentirmos a ausência de Deus, nosso mais sábio método será
não tanto ponderar sobre nossas angústias, mas sobre nossos ca­
minhos: ainda que não possamos reverter o curso da providência,
• 99 •
S a lm o U?

podemos reverter o caminho de nossa jornada, e isso equivale a


imediata reparação. Se podemos endireitar imediatamente os pés
para uma santa jornada, podemos endireitar imediatamente nos­
sos corações para um santo viver. Deus aprimorará seus santos
quando se volverem para ele; sim, ele já os favoreceu com a luz de
seu rosto quando começaram a pensar e a dar meia volta.
[v. 60]
Apresso-me, e não me detenho em guardar teus mandamentos.
Ele preparou tudo rapidamente para reaver a estrada real da
qual se desviara e voltou a percorrê-la com os caminheiros do Rei.
Prontidão no arrependimento e prontidão na obediência são dois
fatores excelentes. Tão amiúde nos apressamos para o pecado.
Tomara que tenhamos mais pressa rumo à obediência! Delonga
em arrepender-se propicia o arrefecimento no pecado. Ser lento
em guardar os mandamentos equivale a transgredi-los. Há muito
mal em retardar o passo quando o mandamento de Deus precisa
ser seguido. Um santo entusiasmo no serviço deve ser bem culti­
vado. Ele é operado em nós pelo Espírito Santo, e os versículos
precedentes descrevem o método dele —passamos a perceber e a
chorar nossos erros, somos levados de volta à vereda certa e então
nos animamos a recuperar o tempo perdido, lançando-nos ao cum­
primento do preceito.
Sejam quais forem as escorregadelas e desvios de um coração
honesto, ainda resta nele bastante da vida genuína para produzir
piedade ardente quando for vivificado pela visitação de Deus. O
salmista suplicou por misericórdia, e quando a recebeu tornou-se
entusiasta e veemente nos caminhos do Senhor. Ele os amara sem­
pre, e por isso, quando foi enriquecido com a graça, demonstrou
grande vivacidade e deleite neles. Ele foi duplamente dinâmico:
positivamente, “apressou-se”; negativamente, recusou a dar qual­
quer motivo que insinuasse procrastinação - ele “não delongou”.
E assim fez rápidos avanços e realizou muito serviço, cumprindo
assim o juramento que está registrado no versículo 57: “Eu disse
que guardaria tuas palavras.” Os mandamentos que ele nutria tan­
ta solicitude em obedecer não eram ordenanças humanas, e, sim,
• 100 •
[~ XPQ5IÇÂO 8

preceitos do Altíssimo. Muitos são zelosos em obedecer a costu­


mes e a agremiações religiosas, e no entanto são relapsos em ser­
vir a Deus. E um clamoroso vexame que os homens sejam servidos
com toda presteza, e que a obra de Deus seja encarada com des­
consideração ou realizada com displicente negligência.
[v. 61 ]
Os laços dos perversos me enleiam; contudo não me esqueci de tua lei.
Os laços dos perversos me enleiam. Outrora zombavam dele;
agora o defraudam. Os ímpios se tornam piores e ficam cada vez
mais ousados, ao ponto de passarem do ridículo ao roubo. Muita
dessa ousada oposição surge de se juntarem em bandos. Muitas
pessoas ousam fazer em grupos o que não ousariam nem mesmo
pensar quando sozinhas. Quando se põem tições juntos, não há
como dizer que tipo de chama poderão produzir. Tudo indica que
juntaram todos os bandos com o intuito de assaltar este filho dc
Deus; são suficientemente covardes para qualquer coisa; embora
não pudessem matá-lo, todavia o roubavam; os cães de Satanás
atormentam os santos, caso não possam devorá-los. Os inimigos
de Davi fizeram seu máximo: primeiro, as serpentes silvam; em
seguida, picam. Já que as palavras não surtiram efeito, os perver­
sos recorreram aos golpes. Quanto os ímpios têm saqueado os
santos em todos os tempos, e quão amiúde têm os justos suporta­
do alegremente o espólio de seus bens!
Contudo não me esqueci de tua lei. Isso foi muito bom. Nem
seu senso de justiça, nem sua mágoa em suas perdas, nem suas
tentativas em defender-se o desviou dos caminhos de Deus. Ele
preferiu não errar para impedir o sofrimento proveniente do erro,
nem fazer o mal como vingança contra o mal. Ele levava a lei em
seu coração, e por isso nenhuma perturbação de seu espírito po­
deria desviá-lo de segui-la. Ele preferia esquecer de si próprio an­
tes que esquecer da lei. Estava pronto a perdoar e esquecer as
injúrias feitas contra si, pois seu coração estava saturado com a
Palavra de Deus. Os bandos de perversos não o espoliaram de seu
mais precioso tesouro, visto que não lhe roubaram sua santidade e
sua felicidade.
S a lm o llj?

Há quem lê esta passagem assim: “Bandos de perversos me


cercam.” Encurralaram-no; suprimiram-lhe todo e qualquer so­
corro; bloquearam toda via de escape; o homem de Deus, porém,
tinha consigo um protetor; uma consciência límpida confiava na
promessa, e com uma brava resolução aferrou-se ao preceito. Ele
não podia ser nem seduzido nem manobrado pelo pecado. O cor­
dão dos ímpios não podia ocultar Deus dele, nem ele de Deus.
Deus era sua porção, e ninguém podia privá-lo dela, nem por for­
ça, nem por fraude. Eis a genuína graça que pode suportar o teste.
Alguns são graciosos apenas entre o círculo de seus amigos; este
homem, porém, era santo mesmo rodeado por seus inimigos.
[v. 62]
Levanto-me à meia-noite para te dar graças, por causa de teus justos
juízos.
Ele não nutria medo algum dos ladrões; erguia-se do leito não
para vigiar sua casa, mas para louvar a Deus. Meia-noite é a hora
dos arrombadores, e havia uma horda deles em torno de Davi,
mas eles não ocupavam seus pensamentos; foram todos apanha­
dos e destruídos pelo Senhor seu Deus. Ele não cogitava de la­
drões, mas de dar graças; não do que eles poderiam roubar, mas
do ele daria a seu Deus. Um coração grato é uma bênção tal que
afasta os temores e dá lugar ao louvor. Ações de graças convertem
noite em dia e consagram todas as horas ao culto divino. Cada
hora é canônica para um santo.
O salmista observava a postura; ele não continua deitado en­
quanto louva. Não existe muita importância na posição do corpo,
mas há algo, e esse algo tem de ser observado sempre que o mes­
mo seja útil à devoção e expresse nossa diligência ou humildade.
Muitos ajoelham sem orar; alguns oram sem ajoelhar; mas o pre­
ferível é associar joelhos e oração. Isso ocorreu aqui; não teria
havido virtude alguma levantar-se do leito sem render graças, e
não haveria pecado algum em dar graças sem levantar-se do leito;
mas levantar-se e dar graças são uma ditosa combinação. Era um
tempo de quietude e solidão, quando seu zelo foi provado. A meia-
noite ninguém 0 estaria observando nem 0 perturbando; era seu
• 102 •
[ ' ' X P Q 5 IÇ Ã O 8
merecido tempo, o qual reservara para dormir, quando estaria isen­
to de sacrificar os deveres públicos e dedicar-se a suas devoções
privativas. Meia-noite encerra um dia e começa outro; era, por­
tanto, necessário entregar-se a momentos solenes de comunhão
com o Senhor. No meio da noite ele apresentava-se a seu Deus.
Ele tinha ações de graças a oferecer pelas misericórdias que Deus
exercera para com ele. Ele tinha em sua mente a verdade contida
no versículo 57: “Tu és minha porção”; e se algo pode levar al­
guém a cantar no meio da noite, aqui está esse algo.
Os feitos justos do grande Juiz alegraram o coração deste san­
to homem. Os juízos divinos são o lado sombrio de Deus, mas não
exercem terror algum nos justos; eles os admiram e adoram o Se­
nhor deles; eles se erguem do leito no meio da noite para bendizer
a Deus, para que ele vingue seu próprio eleito. Há quem odeia a
própria noção de justiça divina, e nisso constituem o polo oposto
deste homem de Deus, que se enchia de jubilosa gratidão ante a
memória das sentenças do Juiz de toda a terra. Não há dúvida de
que na expressão, “teus justos juízos”, Davi se refere também aos
juízos escritos de Deus sob vários pontos da conduta moral; aliás,
todos os preceitos divinos podem ser visualizados por esse pris­
ma; são todos eles as decisões legais do Supremo Arbitro quanto
ao certo e errado. Davi sentia-se fascinado com esses juízos. Como
Paulo, ele pôde dizer: “Deleito-me na lei de Deus em consonância
com o homem interior.” E possível que não achasse tempo sufici­
ente durante o dia para estudar as palavras da divina sabedoria, ou
para bendizer a Deus por elas, e assim renunciava seu merecido
sono para que pudesse expressar sua gratidão por tão santa Lei e
por tão soberano Legislador.
Este versículo é um avanço no sentido do 52, e contém, em
adição, a essência do 55. Nosso autor nunca se repete; embora
suba e desça a mesma escala, sua música tem uma variedade infi­
nita. As permutas e combinações que podem ser formadas com
umas poucas verdades vitais são inumeráveis.
[v. 63]
Companheiro sou de todos os que te temem e dos que guardam teus
preceitos.
• 103 •
S a lm o 11^

Companheiro sou de todos os que te temem. O último versí­


culo diz: “Levanto-me”; e este diz: “Eu sou”. E difícil nutrir certe­
za quanto ao futuro, a menos que estejamos certos agora. O santo
homem gastava suas noites com Deus e seus dias com o povo de
Deus. Os que temem a Deus amam os que o temem, e fazem uma
seleção muito diminuta do número de seus companheiros sobre a
base de serem eles homens tementes a Deus. Davi era um rei, não
obstante era amigo de todos os que temiam ao Senhor, quer fos­
sem obscuros ou famosos, pobres ou ricos. Ele era membro do
colégio de todos os santos.
Ele não selecionou uns poucos santos especialmente eminen­
tes e deixou os crentes comuns fora. Ele sentia-se feliz por perten­
cer à sociedade daqueles que tinham apenas o princípio da sabe­
doria na forma de “o temor do Senhor”. Ele sentia-se prazeroso
em sentar-se com eles nas mais humildes formas da escola da fé.
Ele buscava o temor piedoso do coração, mas também esperava
ver a piedade externa naqueles a quem ele admitia em sua socieda­
de; daí acrescentar: e dos que guardam teus preceitos. Se guar­
dassem os mandamentos do Senhor, o servo do Senhor conserva­
ria sua companhia. Davi tinha consciência de estar do lado piedo­
so; ele sempre pertencera à confraria puritana. Os homens de Be­
lial o odiavam por isso, e sem dúvida o desprezavam por conservar
essa incomensurável companhia de homens e mulheres humildes,
escrupulosos e religiosos; mas o homem de Deus de forma alguma
se envergonhava de seus associados; por isso até mesmo se glori­
ava em confessar sua união com eles - que seus inimigos façam o
que puderem com ela. Ele encontrou prazer e proveito nessa santa
sociedade; ele cresceu mais associando-se aos bons e recebendo
honra por conservar tão honrosa companhia. O que diz o leitor?
Você confia nessa santa sociedade? Sente-se em casa entre essas
pessoas agraciadas? Se a resposta é positiva, então você pode ex­
trair conforto desse fato. As aves da mesma espécie se mantêm
juntas. Uma pessoa é conhecida pela companhia que mantém. Os
que não nutrem o temor de Deus em seu coração dificilmente de­
sejarão a companhia dos santos; isso seria muito desconcertante;
seria maçante demais. Eis nosso conforto quando somos entre -
• 104 •
S ^x p o s iç ã o 5

gues à morte: congregar-nos-emos com aqueles que amaram os


santos na terra; seremos contados em seu número nas regiões ce­
lestiais.
Há um tesouro de paralelismo entre a oitava sete e oito, entre a
sétima de Teth e de Jod (v. 79); mas, como regra, as similaridades
que foram tão claras nos versículos iniciais estão agora se tornan­
do indistintas. A medida que o sentido se aprofunda, a forma arti­
ficial de expressão é menos perceptível.
[v. 64]
A terra, Senhor, está cheia de tua misericórdia; ensina-me teus estatutos.
A terra, Senhor, está cheia de tua misericórdia. Davi tem
vivido em exílio, porém nunca esteve longe da misericórdia, pois
descobrira que o mundo está por toda parte saturado dela. Ele
vagueara pelos desertos e vivera escondido pelas cavernas, e ali
vira e sentira a munificência do Senhor. Aprendera que, longe dos
limites da terra da promessa e da raça de Israel, o amor dc Jeová
ali se estendia, e neste versículo ele expressa a idéia da magnani­
midade de Deus que é tão raramente vista entre os judeus moder­
nos. Que doce nos é saber que não só há misericórdia estendida
por todo o mundo, mas também que há uma imensa profusão dela
permeando toda a terra! Não há que estranhar que o salmista, já
que conhecia o Senhor como sua porção, esperasse obter para si
uma boa medida de misericórdia. Ele desejava conhecer mais de
alguém tão bondoso; e como o Senhor tão graciosamente se tem
revelado na natureza, ele sentiu-se encorajado a orar: “ensina-me
teus estatutos”. Ser ensinado pessoalmente por Deus era-lhe uma
idéia magnífica, bem como ser instruído na própria lei de Deus.
Não lhe era possível imaginar uma misericórdia maior que essa.
Seguramente, aquele que enche o universo com sua graça atende­
rá a um pedido como este, provindo de seu próprio filho. Anele­
mos pelo Jeová Todo-misericordioso, e que nos asseguremos de
que isso se cumpra em nós.
O primeiro versículo desta oitava é aromatizado com plena
certeza e forte resolução, e este último versículo transborda com a
convicção da plenitude divina e com a dependência pessoal do
• 105 •
S a lm o 11<?

salmista. Isso serve de ilustração para o fato de que a plena certeza


não desencoraja a oração nem serve de obstáculo à humildade.
Não seria erro algum se disséssemos que ela cria a humildade e
estimula a súplica. “Tu és minha porção, ó Senhor” é seguido bem
de perto por “ensina-me”; pois o herdeiro de um grande estatuto
deve ser plenamente educado, para que seu comportamento esteja
em plena harmonia com seu bom êxito. Que exemplo de discípu­
los devemos revelar cuja herança é o Senhor dos Exércitos! Aque­
les que têm Deus por sua Porção anseiam tê-lo como seu Mestre.
Além do mais, aqueles que decidiram obedecer são os mais solíci­
tos em deixar-se instruir. “Eu disse que guardaria tuas palavras” é
lindamente seguido de “ensina-me teus estatutos”. Os que dese­
jam guardar uma lei também anseiam conhecer todas as suas cláu­
sulas e provisões para que não ofendam pela inadvertência. Aque­
le que não se preocupa em deixar-se instruir pelo Senhor jamais
nutrirá honesta resolução de ser santo.

. 106 •
(w. 65-72)
Tens tratado bem a teu servo, ó Senhor, segundo tua palavra. Ensina-
me bom juízo e conhecimento, pois tenho crido em teus mandamentos.
Antes de ser afligido, eu andava errante, mas agora guardo tua pala­
vra. Tu és bom e fazes o bem; ensina-me teus estatutos. Os soberbos
têm forjado mentiras contra mim; não obstante, guardarei teus precei­
tos de todo o coração. Tornou-se-lhes o coração insensível, como se
fosse de sebo; mas eu me deleito em tua lei. Foi bom ter eu sido afligi­
do, para que aprendesse teus estatutos. Para mim vale mais a lei que
procede de tua boca do que milhares de ouro ou de prata.
Nesta nona seção, os versículos no hebraico começam todos
com a letra Teth. Estes versículos são os atributos da experiência
testificando da benevolência divina, da graciosidade de suas ativi­
dades em relação a nós e da preciosidade de sua Palavra. Especial­
mente, o salmista proclama o excelente uso da adversidade e da
bondade de Deus ao ser ele afligido. O versículo 65 é o texto-
chave de toda a oitava.
[v. 65]
Tens feito bem a teu servo, ó Senhor, segunda tua palavra.
Este é o sumário de sua vida, e com certeza é o de nossa pró­
pria vida. O salmista dá ao Senhor o veredicto de seu coração. Ele
não pode ficar em silêncio, e tem de expressar sua gratidão na
presença de Jeová, seu Deus. A luz da bondade universal de Deus
na natureza, no versículo 64, é um passo simples e agradável a
uma confissão da invariável bondade do Senhor para com nossa
personalidade. E algo com que Deus por fim terá que tratar com
cada um de nós, seres insignificantes e destituídos de méritos. E
seu trato conosco é muitíssimo bom, maravilhosamente bom. Ele
• 107 •
S a lm o \\p

fez todas as coisas bem; não há exceção nesta regra. Ao providen­


ciar, ao agraciar, ao proporcionar prosperidade e ao enviar adver­
sidade, em tudo isso Jeová nos tem tratado bem. E agir bem de
nossa parte dizer ao Senhor que sentimos que ele tem agido bem
em relação a nós. Pois tal louvor é especialmente oportuno e con­
veniente. Essa bondade do Senhor não é de forma alguma casual.
Ele prometeu agir assim, e o tem cumprido segundo sua palavra.
E muitíssimo precioso ver a palavra do Senhor sendo cumprida
em nossa ditosa experiência. Ela faz com que a Escritura se nos
torne muitíssimo valiosa e nos leva a amar o Senhor da Escritura.
O livro da Providência corresponde ao livro da Promessa. O que
lemos na página da inspiração encontramos nas folhas da história
de nossa vida. Nem imaginávamos que fosse assim; mas nossa
incredulidade é desfeita assim que vemos a misericórdia do Se­
nhor em nosso favor e sua fidelidade para com sua Palavra. Do­
ravante nos vemos forçados a exibir uma fé mais sólida, tanto em
Deus quanto em sua promessa. O mesmo que falou fielmente tam­
bém age fielmente. Ele é o melhor dos senhores; pois é em favor de
servos por demais indignos e incapazes que ele age assim tão gra­
ciosamente. Não é esta, porventura, a causa de nos deleitarmos
mais e mais em seu serviço? Não podemos dizer que temos trata­
do corretamente nosso Senhor; pois quando tivermos feito tudo,
ainda seremos servos inúteis. No caso de nosso Senhor, porém,
ele nos tem dado trabalho leve, proteção sobeja, encorajamento
amoroso e salários liberais. Porventura nos surpreende se ele há
muito tempo nos haja desobrigado, ou, pelo menos, reduziu nos­
sas porções e nos tratou asperamente? Contudo não temos sofri­
do maus tratos; tudo tem sido ordenado com tanta consideração,
como se tivéssemos prestado perfeita obediência. Temos tido pão
suficiente e até de sobra; nossa vida tem sido suprida e seu serviço
nos tem enobrecido e nos feito felizes como reis. Não temos moti­
vo algum para queixa. Entregamo-nos a ações de graças adorati­
vas e nos achamos outra vez ocupados em render graças.
[v. 66]
Ensina-me bom juízo e conhecimento, pois creio em teus mandamentos.
• 108 •
f TXPO S IÇ Ã O J

Ensina-me bom juízo e conhecimento. Uma vez mais ele roga


por instrução, como no versículo 64, e uma vez mais usa a miseri­
córdia divina como argumento. Visto que Deus o tratara bem, ele
se vê animado a orar por juízo a fim de apreciar a bondade do
Senhor. O dom do bom juízo é uma forma de bondade de que o
piedoso mais carece e mais deseja, e é aquela que o Senhor está
mais pronto a conceder. Davi sentia que fracassava com freqüên-
cia no juízo em questão do trato do Senhor com ele —da falta de
conhecimento que o levava a julgar mal a mão disciplinadora do
Pai celestial, e por isso pede que agora que seja melhor instruído,
já que percebe a injustiça que fizera ao Senhor por suas conclu­
sões precipitadas. Eis o que ele quer dizer: Senhor, tu me tratavas
bem quando eu pensava estivesse sendo duro e arbitrário; que te
aprazas dar-me mais bom senso, para que em momento algum
pense eu tão injustamente de meu Senhor. Um vislumbre de nos­
sos erros e um senso de nossa ignorância podem tornai'-nos dó­
ceis. Não somos aptos a julgar, porquanto nosso conhecimento ó
lamentavelmente inexato e imperfeito; se o Senhor nos ministrar
conhecimento, obteremos bom juízo, mas não de outra forma. Só
o Espírito Santo pode encher-nos de luz e dar-nos discernimento
equilibrado. Que anelemos ardentemente por suas instruções, vis­
to ser mais desejável que não mais sejamos meras crianças em
conhecimento e discernimento.
Pois creio em teus mandamentos. Seu coração era reto, e por
isso esperava que sua cabeça também o fosse. Ele tinha fé, e por
isso esperava receber sabedoria. Sua mente estabelecera a convic­
ção de que os preceitos da Palavra do Senhor eram, portanto, jus­
tos, sábios, saudáveis e proveitosos. Ele cria na santidade, e visto
que tal convicção com certeza é obra da graça na alma, ele busca­
va ainda mais operações da graça divina. Aquele que crê nos man­
damentos é a pessoa que pode conhecer e entender as doutrinas e
as promessas. Se olharmos para trás, para nossos equívocos e ig­
norâncias, poderemos ver se ainda amamos sinceramente os pre­
ceitos da vontade divina; teremos boas razões de esperar que seja­
mos discípulos de Cristo e que ele nos ensinará e nos fará pessoas
de bom juízo e de são conhecimento. A pessoa que aprende o dis-
• 109 •
S a lm o 115?

cernimento através da experiência, e dessa maneira se torna al­


guém de são juízo, é um valioso membro da igreja e o instrumento
de muita edificação para outros. Sejamos todos muitíssimo úteis,
apresentando a oração deste versículo: “Ensina-me bom juízo e
conhecimento.”
[v. 67]
Antes cie ser afligido, eu andava errante, mas agora guardo tua palavra.
Antes de ser afligido, eu andava errante. Em parte, quem
sabe, pela ausência de provação. As vezes nossas provações funci­
onam como uma cerca de espinho a proteger-nos na boa pasta­
gem; nossa prosperidade, porém, é uma fenda através da qual nos
extraviamos. Se algum de nós se lembra de alguma vez em que
não tinha provação, provavelmente também recorde que então a
graça era lenta e a tentação muito forte. E provável que algum
cristão clame: “Oh, está acontecendo comigo o mesmo que na­
queles dias antes de ser afligido!” Esse é um lamento muito estul­
to, e procede de um amor carnal por boa vida. A pessoa espiritual
que prega o crescimento em graça bendirá a Deus pelo fato de que
aqueles dias podem vir; e se o tempo for tempestuoso demais, isso
também será muito saudável. E bom quando a mente é aberta e
cândida, como no presente caso. E provável que Davi jamais hou­
vera conhecido e confessado seus próprios extravios, não fora ele
golpeado pela vara divina. Por que razão um pouco de tranqüili-
dade nos causa tanta mazela? Nunca podemos descansar sem en­
torpecer-nos? Nunca estar cheios sem engordar? Nunca subir em
relação a um mundo sem descer em relação ao outro? Que criatu­
ras somos sendo incapazes de suportar um pouco de prazer?! Que
corações vis são os que convertem a abundância da bondade divi­
na em ocasião para pecar?!
Mas agora guardo tua palavra. A graça está no coração que
tira proveito de sua disciplina. Não existe proveito algum em arar
um solo improdutivo. Quando não há vida espiritual, a aflição não
produz benefício espiritual. Mas quando o coração é saudável, a
dificuldade desperta a consciência, o desvio é confessado, a alma
se torna uma vez mais obediente ao mandamento e continua firme
• 110-
jjjÇ P O S IÇ Ã O 5>

nessa vereda. Chorar não converte um rebelde em filho; mas ao


verdadeiro filho um toque de vara é um corretivo infalível. No caso
do salmista, a medicina da aflição operou uma mudança —“mas”;
uma mudança imediata - “agora”; uma mudança final - “guar­
do”; uma mudança em direção a Deus - “tua palavra”. Antes que
lhe sobreviesse tribulação, ele andou errante; mas depois que con­
servou no íntimo a cerca da Palavra, e deparou-se com boa pasta­
gem para a alma, a provação o acorrentou a seu devido lugar; ela o
guardou, e ele, por sua vez, guardou a palavra de Deus. Doces são
as utilidades da adversidade, e esta é uma delas. Ela põe um freio
na transgressão e fornece uma espora para a santidade.
[v. 68]
Tu és bom e fazes o bem; ensina-me teus estatutos.
Tu és bom e fazes o bem. Mesmo na aflição, Deus c bom e faz
o bem. Aqui está uma confissão provinda da experiência. Deus c
inerentemente bom, e em cada atributo de sua natureza ele 6 bom
na plenitude do termo; aliás, ele possui o monopólio da bondade,
pois ninguém há que seja bom senão Deus. Seus atos são segundo
sua natureza - de uma fonte pura só pode fluir águas puras. Deus
não é bondade latente e inativa; ele se manifesta por meio de seus
feitos; ele é ativamente beneficente; ele faz o bem. Todo o bem que
ele nos faz nenhuma língua poderia contar! Quão bom ele é ne­
nhum coração pode conceber! E bom adorar o Senhor, como faz
o poeta aqui, ao descrevê-lo. Os fatos acerca de Deus são o me­
lhor louvor que se pode atribuir a Deus. Toda glória que podemos
tributar a Deus é refletir sua própria glória sobre ele mesmo. Não
podemos expressar a bondade de Deus melhor do que ele mesmo
o faz. Cremos em sua bondade, e assim o honramos por meio de
nossa fé; admiramos sua bondade, e assim o magnificamos por
meio de nosso testemunho.
Ensina-me teus estatutos. A mesma oração de antes, secun­
dada pelo mesmo argumento. Ele ora: “O Senhor é bom e me faz
o bem, para que eu seja igualmente bom e faça o bem através de
sua instrução.” O homem de Deus era um erudito e se deleitava na
instrução. Ele atribuía isso à bondade do Senhor, e esperava que,
• I I I -
S a lm o 11?

pela mesma razão, lhe fosse permitido permanecer na escola e


aprender ainda que pudesse praticar perfeitamente cada lição. Sua
cartilha preferida eram os estatutos [decretos] divinos; ele não
queria nenhuma outra. Conhecia o doloroso resultado de trans­
gredir esses estatutos [ou decretos], e através de uma dolorosa
experiência foi reconduzido ao caminho da justiça; e por isso ro­
gava, como o maior exemplo possível da bondade divina, que pudes­
se adquirir um perfeito conhecimento da lei e uma completa con­
formidade com ela. Aquele que lamenta não haver guardado a pala­
vra, anela por ser instruído nela. E aquele que se regozija no fato de
que pela graça tem sido instruído a guardá-la, não se sente menos
ansioso para que a mesma instrução tenha seguimento para ele.
No versículo 12, que é o quarto versículo de Beth, temos o
mesmo sentido que neste quarto versículo de Teth.
[v. 69]
Os soberbos têm forjado mentiras contra mim; não obstante, eu guar­
darei teus preceitos de todo o coração.
Os soberbos têm forjado mentiras contra mim. Primeiramen­
te, zombaram dele (v. 51); em seguida, o defraudaram (v. 61); e
agora, o difamam. Ao injuriarem seu caráter, recorreram à falsida­
de, pois, se falassem a verdade, nada encontrariam contra ele. For­
jaram mentira como o ferreiro que, na bigorna, dá forma a uma
arma de aço; ou falseavam a verdade como os homens que forjam
uma moeda falsa. O original pode sugerir uma expressão comum:
“Eles improvisaram uma mentira contra mim.” Para a mentira não
se revelavam tão soberbos. A soberba é uma mentira; e quando um
soberbo pronuncia mentiras, “fala do que lhe é próprio”. Os so­
berbos geralmente são os mais amargos oponentes dos justos.
Nutrem inveja de sua boa fama e são ávidos em arruiná-la. A calú­
nia é uma arma vulgar e sempre à mão, se o objetivo for a destrui­
ção de uma reputação agraciada; e quando muitos soberbos en­
tram em conluio para exagerar e divulgar falsidade maliciosa, ge­
ralmente conseguem ferir suas vítimas, e não é por falta de esforço
se não conseguem matá-las de vez. Oh, veneno viperino que corre
dos lábios dos mentirosos! Muitas vidas felizes têm sido amargu-
•112-
f 7X P O S IÇ Ã O 9
radas por ele, e muita reputação intocável tem sido envenenada
como se fosse por uma droga letal. E em extremo doloroso ouvir
pessoas inescrupulosas malhando persistentemente na bigorna do
diabo a fim de forjar uma nova calúnia; o único antídoto contra ela
é a doce promessa: “Nenhuma espada desembainhada contra ti
prosperará, e condenas toda língua que age contra ti em juízo.”
Não obstante, eu guardarei teus preceitos de todo o coração.
Minha ansiedade consiste em atentar para minha própria situação
e aderir aos mandamentos do Senhor. Se a lama lançada contra
nós não cegar nossos olhos, nem macular nossa integridade, pou­
co prejuízo nos causará. Se guardarmos os preceitos, estes mes­
mos preceitos nos guardarão no dia da afronta e da calúnia. Davi
renova sua resolução —“guardarei”; e tem uma nova visão dos
mandamentos, e os vê como sendo realmente do Senhor —“teus
preceitos”; e desperta toda sua natureza para a atividade - “de
todo meu coração”. Quando os difamadores nos forçam a uma
obediência mais resoluta e atenta, eles contribuem para (ornar nosso
bem mais durável. A falsidade proferida contra nós pode ser uma
arma a promover nossa fidelidade à verdade, c a malícia dos ho­
mens pode contribuir para o aumento de nosso amor por Deus.
Se tentarmos responder às mentiras verbalmente, podemos ser
batidos na batalha; uma vida santa, porém, é uma refutação inde­
fensável contra todas as calúnias. A malevolência é desviada se
perseverarmos em santidade a despeito de toda oposição.
[v. 70]
Tornou-se-lhes o coração insensível, como se fosse de sebo; eu, porém,
me deleito em tua lei.
Tornou-se-lhes o coração insensível, como se fosse de sebo.
Eles se deleitam na gordura; eu, porém, me deleito em ti. Seus
corações, pela indulgência sensual, tornaram-se insensíveis, gros­
seiros e torpes; tu, porém, me salvaste de tal destino por tua mão
disciplinadora. Os soberbos engordam-se pelas luxúrias carnais, e
isso os torna ainda mais soberbos. Espojam-se em sua prosperi­
dade, e com isso enchem seus corações ainda mais, tornando-se
insensíveis, efeminados e amantes dos prazeres. Um coração se-
S a lm o \\J

boso é algo horrível; é uma sebosidade que leva uma pessoa a tor­
nar-se estulta, uma degeneração oleosa do coração que conduz à
debilidade e morte. A gordura em tais pessoas equivale a destrui­
ção da vida nelas. Dryden escreveu:
“ O h almas! Nas Quais não se vê nenhum fogo celestial,
Mentes sebosas, sempre rastejantes pela terra."

Nesta conexão, os homens não têm o coração posto em nada


mais senão na luxúria; seu próprio ser não parece outra coisa fa­
zer senão cozinhar lentamente na gordura da panela para o ban­
quete. Vivendo da gordura da terra, sua natureza é subjugada por
aquilo que os tem alimentado; os músculos de sua natureza se
tornam frágeis e sebosos.
Eu, porém, me deleito em tua lei. Quão melhor é alegrar-se
na lei do Senhor do que alegrar-se nas indulgências sensuais! Isso
faz o coração saudável e mantém a mente submissa. Ninguém que
ame a santidade tem o mais leve motivo de invejar a prosperidade
de pessoas mundanas. O deleite na lei enaltece e enobrece, en­
quanto que o prazer carnal obstrui o intelecto e degrada as afei­
ções. Há e sempre haverá um vívido contraste entre o cristão ge­
nuíno e o moralmente depravado, e esse contraste se vê tanto nas
afeições do coração quanto nas ações da vida: o coração deles é
gordo e seboso; e o nosso se deleita na lei do Senhor. Nossos
deleites são o melhor teste de nosso caráter do qualquer outra
coisa: o homem é exatamente o que é seu coração. Davi lubrifica­
va as rodas da vida com seu deleite na lei de Deus, e não com a
gordura da sensualidade. Ele tinha suas delícias e requintes, suas
festas e deleites, e tudo isso ele desfrutava fazendo a vontade do
Senhor seu Deus. Quando a lei se converte em deleite, a obediên­
cia é uma bênção. A santidade no coração leva a alma a alimentar-
se da abundância da terra. Tendo a lei por nosso deleite, produzirá
em nossos corações os efeitos opostos da própria soberba: o en­
torpecimento, a sensualidade e a obstinação serão curados, e nos
tornamos dóceis à instrução, sensíveis e espirituais. Quão criteri­
osos devemos ser, vivendo sob a influência da lei divina, para não
cairmos debaixo da lei do pecado e da morte!
• 114-
J^XPOSIÇÃO 9

[v. 71]
Foi bom ter sido eu afligido, para que aprendesse teus estatutos.
Foi bom ter sido eu afligido. Mesmo quando a aflição prove­
nha de pessoas ruins, ela conduzia a fins benéficos; ainda que fos­
se prejudicial quando provinda de tais pessoas, para Davi ela era
boa. Ele sabia muito bem que ela o beneficiava de muitas manei­
ras. Quaisquer que fossem os pensamentos que lhe sobreviessem
enquanto enfrentava a provação, ele tinha consciência de que era
melhor assim. Não era bom ver os soberbos prosperando, pois
seus corações se tornavam ainda mais sensuais e insensíveis; mas
a aflição tinha um caráter positivo para o salmista. Nosso pior nos
é melhor que o melhor para os pecadores. Para os pecadores, a
alegria se torna nociva; e para os santos, a tristeza é benéfica. In­
findos benefícios nos têm sobrevindo através de nossas dores e
tristezas; e no mais, permanece isto: que assim lemos sido instruí­
dos na lei.
Para que aprendesse teus estatutos. Nosso conhecimento e
nossa observância destes estatutos nos vieram enquanto sentía­
mos os golpes da vara. Oramos ao Senhor para que nos instruísse
(v. 66), e agora percebemos que ele já fez isso. Aliás, na verdade
ele nos tem tratado bem, pois nos tem tratado de forma muito
sábia. Temos sido guardados, através de nossas provações, da ig­
norância e de um coração seboso, e isso, se porventura não exis­
tisse nada mais, seria causa suficiente de constante gratidão. Ser
engordado pela prosperidade não é saudável para a soberba; mas,
em prol da verdade, ser instruído pela adversidade é saudável para
a humildade. Mui pouco se tem a aprender sem aflição. Para ser­
mos bons alunos, temos de ser bons sofredores. Como dizem os
latinos: Experientia docet —a experiência ensina. Não há estrada
régia para se aprenderem estatutos régios; os mandamentos de
Deus são melhor lidos por olhos úmidos de lágrimas.
[v. 72]
Para mim vale mais a lei que procede de tua boca do que milhares de
ouro ou de prata.
A lei que procede de tua boca. Um título docemente expressi­
S a lm o U?

vo para a Palavra de Deus. Ela vem da própria boca de Deus com


frescor e poder para nossas almas. Coisas escritas são como ervas
secas; mas a expressão verbal tem em si jovialidade e bálsamo.
Fazemos bem em buscar a Palavra do Senhor como se ela fosse
uma nova expressão para nossos ouvidos; pois em cada verdade
não se vê a defasagem dos anos, mas é tão eficaz e veraz como se
fosse expresso pela primeira vez. Os preceitos são apreciados quan­
do se descobre que saíram dos lábios de nosso Pai que está no céu.
Os mesmos lábios que nos comunicaram a existência, comunica­
ram a lei pela qual devemos governar essa mesma existência. Don­
de é possível que uma lei proceda tão docemente como aquela que
procedeu da boca do Deus do pacto? Bem que poderíamos avaliar
acima de todo e qualquer preço aquilo que provém de uma tal
fonte!
Para mim vale mais do que milhares de ouro ou de prata. Se
um pobre houvera dito isso, as pretensões do mundo teriam insi­
nuado que as uvas são ácidas e que os homens que não possuem
riquezas são os primeiros a desprezá-las; mas este é o veredicto de
um homem que era dono de riquezas, e que podia julgar, com
base na experiência real, o valor do dinheiro e o valor da verdade.
Ele fala de grandes riquezas; as amontoara aos milhares; ele faz
menção das variedades de suas formas —“ouro e prata”; e então
põe a Palavra de Deus em primeiro lugar, como sendo o melhor
para si mesmo, ainda que outros não cressem que ela fosse melhor
para eles. A riqueza é benéfica em alguns aspectos, mas a obediên­
cia é melhor em todos os aspectos. E bom guardar os tesouros
desta vida; porém muito mais recomendável é guardar a lei do
Senhor. A lei é melhor que o ouro e a prata, pois estes podem ser
roubados de nós, porém não a Palavra; ouro e prata podem criar
asas, porém a Palavra de Deus permanece; ouro e prata são inúteis
no momento da morte; mas é nesse momento que a promessa é
mais preciosa. Os cristãos instruídos reconhecem o valor da Pala­
vra do Senhor, e ardorosamente a expressam, não apenas em seu
testemunho, a seus semelhantes, mas, em suas devoções, a Deus.
E um sinal indelével de um coração que aprendeu os estatutos de
Deus quando temos por eles um valor superior a todas as posses-
• 116.
IM P O S IÇ Ã O 9

sões terrenas; e é igualmente uma marca infalível da graça quando


os preceitos da Escritura são tão preciosos quanto suas promes­
sas. O Senhor nos leva assim a valorizar a lei de sua boca.
Veja como esta porção do Salmo está sazonada com benevo­
lência. Os tratos de Deus são bons (v. 65); seu santo juízo é bom
(v. 66); a aflição é boa (v. 67); Deus é bom (v. 68); e aqui a lei é
não apenas boa, mas melhor que o melhor tesouro. Senhor, faz-
nos bons, através de tua boa Palavra! Amém.
]~XPOS!ÇÃO 10

(w. 73-80)
Tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me entendimento para apren­
der teus mandamentos. Os que te temem alegrar-se-ão quando me vi­
rem; porque tenho esperado em tua palavra. Bem sei, ó Senhor, que teus
juízos são retos, e que em tua fidelidade me afligiste. Rogo-te que tua
misericordiosa benevolência seja para meu conforto, segundo tua pa­
lavra a teu servo. Que tuas ternas misericórdias venham sobre mim,
para que eu viva; pois tua lei é meu deleite. Sejam os soberbos enver­
gonhados; pois sem causa me trataram perversamente; eu, porém,
meditarei em teus preceitos. Voltem-se para mim os que te temem, e
aqueles que têm conhecido teus testemunhos. Que meu coração seja
íntegro em teus testemunhos, para que eu não seja envergonhado.
Chegamos agora à décima porção, a qual em cada instância
começa com Jod; mas certamente não trata de coisas mínimas,
rótulos e outras futilidades. O profeta está profundamente triste,
porém espera ser libertado e tornar-se alvo de bênção. Esforçan­
do-se na vereda da instrução, o salmista primeiro busca ser instruído
(v. 73), se persuade de que será bem recebido (v. 74) e então repe­
te o testemunho que tencionava transmitir (v. 75). Ora por mais
experiência (w. 76, 77), pela frustração dos soberbos (v. 78), pela
reunião dos piedosos a seu redor (v. 79) e, uma vez mais, por si
mesmo, para que pudesse ser plenamente equipado para dar seu
testemunho e fosse sustentado no mesmo propósito (v. 80). Este é
um ansioso, porém esperançoso, clamor de alguém que se sente
profundamente aflito em virtude dos cruéis adversários, e portan­
to faz seu apelo a Deus como seu único Amigo.
[v. 73]
Tuas mãos me fizeram e me formaram; dá-me entendimento para
aprender teus mandamentos.
•11 8 -
f 7X P O S IÇ Ã O 1 0

Tuas mãos me fizeram e me formaram. É proveitoso recor­


dar nossa criação; é agradável ver que a mão divina tem muito a
ver conosco; pois ela nunca se move à parte do pensamento divi­
no. Excita a reverência, a gratidão e a afeição para com Deus quan­
do o visualizamos como nosso Criador, exercendo ele a criteriosa
habilidade e poder de suas mãos em formar-nos e moldar-nos. Ele
tomou um pessoal interesse por nós, fazendo-nos com suas pró­
prias mãos; foi duplamente solícito, pois ele é descrito tanto como
a criar-nos como a moldar-nos. Seja em dar existência, ou em
organizar a existência, o Senhor manifestou amor e sabedoria; e
portanto achamos motivo para louvor, confiança e expectativa em
nosso ser e bem-estar.
Dá-me entendimento para aprender teus mandamentos. Uma
vez que me fizeste, agora ensina-me. Aqui está o vaso que formas­
te: enche-o, ó Senhor! Tu me deste tanto a alma como o corpo:
concede-me agora tua graça para que minha alma saiba o que
queres, e que meu corpo se lhe una plenamente para lazer tua
vontade. A súplica é muito vivaz; é uma ampliação do clamor: “Não
te esqueças da obra de tuas próprias mãos.” Sem discernirmos a
lei do Senhor e nos tornarmos obedientes a ela, somos imperfeitos
e inúteis; mas podemos racionalmente esperar que o grande Olei­
ro complete sua obra e lhe dê o toque final, comunicando-lhe sa­
cro conhecimento e santo caráter. Se Deus nos fizera toscamente
e não nos formara elaboradamente, este argumento perderia mui­
tíssimo sua força; mas seguramente à luz da delicada arte e mara­
vilhosa habilidade como o Senhor demonstrou na formação do
corpo humano, podemos inferir que ele está pronto a exercer igual
empenho para com a alma, até que ela assuma perfeitamente sua
imagem.
Uma pessoa sem mente é um idiota, um mero arremedo de ser
humano; e uma mente sem a graça [divina] é ímpia, a dolorosa
perversão de uma mente. Oramos para que não sejamos deixados
sem juízo ou discernimento espiritual: isso o salmista buscou no
versículo 66, e aqui suplica novamente pelo mesmo: sem ele não
há como realmente conhecer e guardar os mandamentos. Os tolos
podem pecar; mas somente os que são instruídos por Deus podem
S a lm o llj?

ser santos. Às vezes falamos de pessoas dotadas; mas aquele que


tem os melhores dons é a quem Deus tem dotado com um discer­
nimento santificado para assim conhecer e valorizar as veredas do
Senhor. Note bem que a oração de Davi por discernimento não é
uma busca de conhecimento especulativo, para o deleite de sua
própria curiosidade: ele deseja um juízo iluminado, para que pos­
sa aprender os mandamentos de Deus e assim tornar-se obediente
e santo. Não há melhor aprendizado do que este. Uma pessoa pode
permanecer no colégio onde esta ciência é ensinada todos os dias,
e todavia clamar por aquela habilidade que a faça aprender mais.
O mandamento de Deus é excessivamente amplo, e portanto pro­
picia liberdade de ação para que a mente seja ainda mais vigorosa
e instruída; de fato, ninguém possui, por natureza, um entendi­
mento capaz de ultrapassar tão amplo campo; daí a oração: “Dá-
me entendimento”; como costuma-se dizer: posso aprender outra
coisa com a mente que tenho, mas tua lei é tão pura, tão perfeita,
espiritual e sublime, que necessito de uma mente alargada antes de
tornar-me proficiente nela. Ele apela a seu Criador para que faça
isto, como se sentisse que nenhum poder tacanho o poderia fazer
sábio para a santidade. Necessitamos de nova criação, e quem no-la
pode conceder senão o próprio Criador? Aquele que nos fez viver
deve fazer-nos aprender; aquele que nos concede poder tem condi­
ção de dar-nos a graça para discernir. Que cada um de nós sussurre
ao céu a oração deste versículo antes de avançar mais um passo;
pois estaremos perdidos mesmo nessas petições a menos que alce­
mos nossa oração dessa forma e clamemos a Deus por discernimento.
[v. 74]
Os que te temem alegrar-se-ão quando me virem; porque tenho espe­
rado em tua palavra.
Quando uma pessoa temente a Deus obtém graça para si, ela
se torna uma bênção para outrem, especialmente se essa graça a
fez uma pessoa de são entendimento e santo conhecimento. As
pessoas tementes a Deus são encorajadas quando se deparam com
cristãos experientes. Uma pessoa cheia de esperança é enviada de
Deus quando as coisas estão se declinando ou à beira do abismo.
• 120 •
p XPOS1ÇÃO 10

Quando as esperanças de um cristão se concretizam, seus compa­


nheiros são reanimados e solidificados, e passam também a ter
esperança. E agradável aos olhos ver alguém cujo testemunho con­
fessa que o Senhor é fidedigno; é uma das alegrias dos santos
manter diálogo com seus irmãos mais maduros. O temor de Deus
não é uma graça mesquinha, como alguns a chamam; ela é plena­
mente consistente com a alegria; pois se a mera presença de um
amigo alegra os tementes a Deus, quão alegres devem ser aqueles
que se encontram na presença do próprio Senhor! Não só procu­
ramos levar os fardos uns dos outros, mas também procuramos
partilhar as alegrias uns com os outros, e assim as pessoas agra­
ciadas contribuem sobejamente para o aumento da felicidade mú­
tua; os esperançosos levam no âmago de sua alma a felicidade. Os
espíritos desanimados disseminam o contágio da depressão, e por
isso dificilmente alguém se alegra em sua companhia; enquanto
que, aqueles cujas esperanças se fundamentam na Palavra de Deus,
levam em si o resplendor em suas faces e recebem as boas-vindas
de seus amigos. Quando os que confessam a Cristo trazem em
seus lábios palavras frias e indiferentes, todos os corações dos pie­
dosos evitam sua companhia. Que este jamais seja o nosso caráter!
[v. 75]
Bem sei, ó Senhor, que teus juízos são retos, e que em tua fidelidade me
afligiste.
Bem sei, ó Senhor, que teus juízos são retos. Aquele que
aprende mais deve ser mais grato pelo que já sabe e estar disposto
a declará-lo para que Deus seja glorificado. O salmista tinha sido
dolorosamente provado, mas continuou a esperar em Deus em
meio a sua provação, e agora declara sua convicção de que havia
sido disciplinado justa e sabiamente. Ele não só imaginava isso,
mas também tinha convicção de que assim era, de modo que foi
taxativo e falou sem sequer um momento de hesitação. Os santos
estão certos sobre a justa razão de suas tribulações, mesmo quan­
do não consigam ver o propósito delas. Os piedosos se alegraram
ao ouvirem Davi dizer isso: E que em tua fidelidade me afligiste.
Visto que o amor requeria severidade, então o Senhor a exerceu.
S a lm o 11?

Não é por Deus ser infiel que o cristão às vezes se encontra em


momentos dolorosos, mas justamente por razões opostas: é a fi­
delidade de Deus a seu pacto que traz a vara sobre os eleitos. Pode
não ser necessário que outros sejam provados da mesma forma;
mas era necessário ao salmista, e por isso o Senhor não reteve a
bênção. Nosso Pai celestial não é Eli: ele não pode ver seus filhos
pecarem sem repreendê-los; seu amor é imenso demais para que
isso aconteça. A pessoa que faz a confissão deste versículo já está
progredindo na escola da graça, e está assimilando os mandamen­
tos. Este terceiro versículo da seção corresponde ao terceiro do
Teth (v. 67), e forma um degrau para os outros vários versículos
que fazem as terças em suas oitavas.
[v. 76]
Rogo-te que tua misericordiosa benevolência seja para meu conforto,
segundo tua palavra a teu servo.
Havendo confessado a retidão do Senhor, ele agora apela para
sua mercê e, enquanto não solicita que a vara seja afastada, fervo­
rosamente roga para que ela lhe traga conforto. Retidão e fidelida­
de não nos propiciam conforto se também não provarmos a mercê
divina e, bendito seja Deus, esta nos é prometida na Palavra, e
portanto podemos aguardá-la. As palavras “misericordiosa bene­
volência” são uma feliz combinação, e expressam exatamente o de
que necessitamos na aflição: misericórdia que perdoa o pecado e
benevolência que nos sustenta na tristeza. Com estas podemos ser
confortados no dia nublado e frio, e sem elas ficamos, de fato,
expostos à miséria; por isso, pois, oremos ao Senhor, a quem te­
mos desagradado com nossos pecados, e apelemos para a palavra
de sua graça como nossa única razão para esperar seu favor. Ben­
dito seja seu nome, pelo fato de, não obstante nossas faltas, ser­
mos ainda seus servos e servirmos a um Senhor tão compassivo.
Há quem lê assim a última cláusula: segundo teu provérbio a
teu servo; alguma palavra especial do Senhor teria sido lembrada e
apresentada em forma de apelo. E possível lembrarmo-nos de al­
guma “palavra fiel”, e fazer dela a base de nossa petição? A frase:
“segundo tua palavra” é uma muitíssimo favorita; revela o motivo
-122-
fjÇ PO SÍÇ Ã O 10
para a misericórdia e o método da misericórdia. Nossas orações
estarão de acordo com a mente de Deus quando estiverem de acor­
do com a Palavra de Deus.
[v. 77]
Que tuas ternas misericórdias venham sobre mim, para que eu viva;
pois tua lei é meu deleite.
Que tuas ternas misericórdias venham sobre mim, para que
eu viva. Ele se sentia tão deprimido, que se via ante a porta da
morte, caso Deus não o socorresse. Ele carecia não só de miseri­
córdia, mas de misericórdias, e estas deveriam ser de um gênero
mui gracioso e obsequioso; sim, ternas misericórdias, pois ele so­
fria com suas dolorosas feridas. Esses ternos favores são proveni­
entes do Senhor, pois nada menos seria suficiente; e devem todos
‘vir’ ao coração do sofredor, pois ele não era capaz de sair em
busca deles; tudo o que ele podia fazer era vislumbrá-los de longe
e rogar: “Oh, que eles venham!” Se o livramento não viesse logo,
ele sentia como já a expirar; e todavia nos disse em apenas um
versículo que havia muito que esperava na palavra do Senhor. Quão
genuína é essa viva esperança quando a morte parece estar escrita
em todos os lugares! Disse um pagão: “dum spiro spero” —en­
quanto respiro, espero. O cristão, porém, pode dizer: “dum expiro
spero” - mesmo quando expiro ainda espero a bênção. Não obs­
tante, nenhum genuíno filho de Deus pode viver sem a terna mise­
ricórdia do Senhor; ver-se sob o desprazer de Deus lhe é morte.
Observe outra vez a feliz combinação das palavras de nossas ver­
sões. Há, porventura, um som mais doce do que este: “ternas mi­
sericórdias”? Aquele que tem sido gravemente afligido, e todavia
socorrido com ternura, é o único ser humano que conhece o signi­
ficado da escolha de tal linguagem.
Quão realmente vivemos quando somos atingidos pelas ternas
misericórdias de Deus! Então não existimos meramente, mas vive­
mos; somos lépidos, cheios de vida, vivazes e vigorosos. Não sa­
beremos o que é vida enquanto não conhecermos a Deus. Há quem
diz que a visitação de Deus o faz morrer; nós, porém, dizemos que
ela nos faz viver.
- 123-
S a lm o 115»

Pois tua lei é meu deleite. Oh, ditosa fé! Ele não quis dizer
que o crente se regozija na lei mesmo quando seus preceitos trans­
gredidos o fazem sofrer. Deleitarmo-nos na Palavra quando ela
nos repreende é prova de que extraímos proveito dela. Segura­
mente esta é uma súplica que prevalecerá diante de Deus, por mais
amargas sejam nossas tristezas; se ainda nos deleitamos na lei do
Senhor, ele não permitirá que morramos; ele deseja e quer lançar
sobre nós sua ternura e confortar nossos corações.
[v. 78]
Sejam os soberbos envergonhados; pois sem causa me trataram per­
versamente; eu, porém, meditarei em teus preceitos.
Sejam os soberbos envergonhados. Ele rogou que os juízos
de Deus não mais caíssem sobre ele, mas sobre seus cruéis adver­
sários. Deus não permitirá que os que esperam em sua Palavra
sejam envergonhados, pois é para os de espírito arrogante que ele
reserva tal galardão: eles serão surpreendidos pela confusão e tor­
nar-se-ão objetos de desprezo, enquanto os aflitos de Deus ergue­
rão novamente suas cabeças. Vergonha aguarda os soberbos, por­
quanto vergonhosa coisa é ser soberbo. A vergonha não é para os
santos, pois nada há na santidade de que envergonhar-se.
Pois sem causa me trataram perversamente. Sua malícia era
arbitrária; ele não os havia provocado. Empregavam a falsidade
para forjarem acusação contra ele; teriam que desviar suas ações
de sua verdadeira condição antes que pudessem assaltar seu cará­
ter. Evidentemente, o salmista sentia agudamente a malícia de seus
inimigos. Sua consciência de inocente em relação a eles gerou um
ardente senso de injustiça; então apelou para o justo Senhor para
que tomasse seu partido e vestisse seus falsos acusadores com um
manto de opróbrio. Provavelmente os mencionou como “os so­
berbos” em virtude de saber que o Senhor sempre toma vingança
contra os soberbos e vinga a causa daqueles a quem eles oprimem.
As vezes ele menciona os soberbos e às vezes os perversos, mas
sempre tem em mente as mesmas pessoas; as palavras são alterna­
das: certamente quem é soberbo é também perverso, e os perse­
guidores arrogantes são os piores dentre os homens perversos.
• 124 •
[ XPQ5IÇÂO 10

Eu, porém, meditarei em teus preceitos. Ele deixaria os so­


berbos nas mãos de Deus, e se entregaria aos santos estudos e
contemplações. Para obedecermos os divinos preceitos carecemos
de conhecê-los e meditar muito sobre eles; daí sentir esse santo
perseguido que a meditação devia ser seu principal empreendi­
mento. Estudaria a lei de Deus, e não a lei da retaliação. Os sober­
bos não são dignos de tal pensamento. A pior injúria que podem
nos fazer é afastando-nos de nossas devoções; frustremo-los, pois,
conservando nossa mais íntima comunhão com Deus enquanto se
conservam ainda mais maliciosos em suas investidas.
Numa posição similar a esta, nos temos deparado com os so­
berbos em outras oitavas, e ainda nos depararemos com eles no­
vamente. São evidentemente uma grande praga para o salmista;
ele, porém, se ergue acima deles.
[v. 79]
Voltem-se para mim os que te temem, e aqueles que têm conhecido
teus testemunhos.
É provável que a língua do caluniador tenha alienado alguns
dos santos, e provavelmente as faltas reais de Davi se tenham agra­
vado muito mais. Ele roga a Deus que se volte para ele e que então
volva seu povo para ele. Os que são retos para com Deus são tam­
bém solícitos em ser retos para com seus filhos. Davi apegou-se ao
amor e solidariedade de homens graciosos de todos os graus —dos
que eram principiantes na graça e dos que eram maduros na com­
paixão - “os que te temem” e “os que têm conhecido teus teste­
munhos”. Não podemos propiciar a perda do amor ao menor dos
santos; e se porventura já perdemos sua estima, então temos mais
motivo para orar a fim de que lhe seja restaurada. Davi era o líder
daquela porção piedosa da nação, e lhe feria o coração quebranta­
do quando percebia que os que temiam a Deus não se sentiam tão
felizes como se sentiam outrora. Ele não provocou tumulto, e diz
que, se podiam provocar sem ele, ele poderia muito bem provocar
sem eles\ mas ele sentia tão profundamente o valor de sua solida­
riedade, que fez dela um assunto de oração para que o Senhor
volvesse uma vez mais seus corações para ele. Os que são queri­
• 125-
5 a lm o IQ

dos de Deus, e são instruídos em sua Palavra, devem ser mui pre­
ciosos a nossos olhos, e devemos fazer o máximo possível por vi­
ver bem com eles.
Davi faz dupla descrição dos santos: são tementes a Deus e
conhecedores de Deus. Possuem tanto devoção quanto instrução;
possuem tanto espírito de ciência quanto de genuína religião. Sa­
bemos de alguns cristãos que são generosos, porém destituídos de
inteligência; e, em contrapartida, também sabemos de certos reli­
giosos professos que possuem boa cabeça, porém não bom cora­
ção: o salmista era alguém que combinava devoção com inteligên­
cia. Tampouco nos preocupamos com estúpidos devotos, nem com
icebergues intelectuais. Quando o temor e o conhecimento de Deus
andam de mãos dadas, levam os homens a munir-se sobejamente
de toda boa obra. Se tais espíritos escolheram tanto os que amam
a Deus quanto os aprendem dele, esses são meus companheiros
favoritos e espero ser membro de sua confraria. Concede, ó Se­
nhor, que tais pessoas sempre me busquem, porque vão encontrar
em mim um companheiro à altura!
[v. 80]
Que meu coração seja íntegro em teus testemunhos, para que eu não
seja envergonhado.
Isso é ainda mais importante do que ser tido em estima pelos
homens bons. Eis a raiz da questão. Se o coração for sólido na
obediência a Deus, tudo está bem, ou estará bem. Se nosso cora­
ção é reto, nossa força será sólida. Se não formos íntegros diante
de Deus, nosso nome como piedosos não passará de som vazio. A
mera profissão de fé será um fracasso, e nossa imerecida estima se
dissipará como uma bolha quando perfurada; somente a sinceri­
dade e a veracidade suportarão os dias maus. Aquele que é de
coração reto não tem motivo para envergonhar-se, e jamais terá
algum. Os hipócritas devem envergonhar-se, e virá o dia quando
sofrerão vergonha eterna: seus corações serão apodrecidos e seus
nomes, desarraigados. Este versículo 80 é uma variação da oração
do versículo 73; ali o salmista busca um discernimento sólido; aqui
ele vai mais fundo, e suplica por um coração íntegro. Os que têm
• 126 •
j^ X P O S IÇ Â O 1 0

aprendido de sua própria fragilidade, através das dolorosas expe­


riências, são levados a mergulhar abaixo da superfície e a clamar
ao Senhor pela verdade nas partes mais recônditas. Ao concluir­
mos a consideração destes oito versículos, unamo-nos com o es­
critor em oração: “Que meu coração seja íntegro para com teus
estatutos.”

vV>r\ "'7--^

• 127-
(w. 81-88)
Minha alma desfalece por tua salvação; porém espero em tua palavra.
Meus olhos desfalecem por tua palavra, dizendo: Quando tu me conso­
larás? Pois sou semelhante a um odre na fumaça; contudo não me es­
queço de teus estatutos. Quantos são os dias de teu servo? Quando
executarás juízo contra os que me perseguem? Os soberbos me cavaram
um poço, os quais não são conformes a tua lei. lodos os teus manda­
mentos são verazes; injustamente me perseguem; ajuda-me. Quase me
consumiram sobre a terra; mas eu não deixei teus preceitos. Vivifica-me
segundo tua benignidade; assim guardarei o testemunho de tua boca.
Esta porção do gigantesco Salmo visualiza o salmista in extre-
mi [no auge do sofrimento]. Seus inimigos arrastaram-no à mais
vil condição de languidez e depressão; todavia ele é fiel à lei e con­
fiante em seu Deus. Esta oitava é a meia-noite do Salmo, e mui
densas e lúgubres são suas trevas. Entretanto as estrelas brilham, e
o último versículo apresenta a promessa da aurora. A melodia vai
paulatinamente tornando-se alegre; mas, entrementes, ela nos mi­
nistra conforto e nos faz visualizar um servo de Deus tão eminente
e tão difícil de ser usado pelos ímpios. Evidentemente, em nossas
perseguições pessoais, não estranhamos aquilo que nos acontece.
[v. 81]
Minha alma desfalece por tua salvação; mas espero em tua palavra.
Minha alma desfalece por tua salvação. Seu anseio não era
por livramento, mas por aquilo que viesse de Deus: seu único de­
sejo era que lhe viesse “tua salvação”. Mas, por esse divino livra­
mento ele ardia até o último grau - até a última medida de sua
força; sim, e além dela, até o desfalecimento. Tão forte era seu
desejo que ele produziu-lhe prostração de espírito. Ele tornou-se
• 128 •
f 7XPOSIÇÃO 11

exausto de tanto esperar, se desfalece de vigiar, enferma-se com


urgente carência de atendimento. E assim a sinceridade e a solici­
tude de seus desejos foram provadas. Nada mais podia satisfê-lo
senão o livramento operado da mão de Deus; sua natureza mais
profunda suspirava e se espicaçava pela salvação do Deus de toda
graça; e ele, ou a teria, ou se desfaleceria definitivamente.
Mas espero em tua palavra. Portanto, ele sentia que a salva­
ção viria; pois Deus não pode quebrar sua promessa, nem frustrar
a esperança que sua própria palavra incitara: sim, o cumprimento
de sua palavra está às portas quando nossa esperança é firme e
nosso desejo fervoroso. A esperança só pode guardar a alma do
desfalecimento, ao usar o alabastro da promessa. Todavia a espe­
rança não acende o anseio por uma imediata resposta à oração;
ela aumenta sua importunação, pois tanto estimula o ardor quan­
to sustém o coração ante a delonga. Desfalecer-se pela salvação, e
ser poupado do total desfalecimento da esperança é a Ireqüenle
experiência do cristão. “Desfalecemos, porém não somos destruí­
dos.” A esperança se mantém quando o desejo se exaure. Enquan­
to a graça do desejo nos lança abaixo, a graça da esperança nos
soergue uma vez mais.
[v. 82]
Meus olhos desfalecem por tua palavra, dizendo: Quando tu me con­
solarás?
Seus olhos se escancaravam desmesuradamente, fixando-se na
aparição do Senhor, enquanto seu coração, em fadiga, clamava
por conforto imediato. Ler a palavra até que os olhos não possam
mais ver é algo bem minúsculo em comparação com a vigilância
pelo cumprimento da promessa antes que os olhos interiores da
expectativa comecem a diminuir sua opacidade ante a esperança
deferida. Não podemos impor tempo a Deus, pois isso seria limi­
tar o Santíssimo de Israel; todavia podemos insistir em nossa im­
portunação e apresentar fervente inquirição quanto à razão por
que a promessa tarda tanto. Davi não buscava conforto a não ser
aquilo que vem de Deus; sua pergunta é: “Quando tu me confor­
tarás?” Se o socorro não vier do céu, então jamais virá; todo bem
• 129 •
S alm o \ \f

que o ser humano espera vem dessa maneira; ele não tem como
arremessar sua visão em qualquer outra direção. Essa experiência
de esperar e desfalecer é bem conhecida dos santos já bem desen­
volvidos, e ela lhes ensina muitas lições preciosas que jamais apren­
deriam pelo uso de qualquer outro método. Entre os resultados
escolhidos, este é um deles: que o corpo, erguendo-se em solidari­
edade com a alma, ambos, coração e carne, clamam pelo Deus
vivo, e até mesmo os olhos acham um idioma para expressar-se:
“Quando tu me confortarás?” Teria sido um intenso anelo que
não se satisfazia expressando-se com os lábios, mas fala com os
olhos, com aqueles olhos que esmaecem pela intensa vigília. Os
olhos podem falar bem eloqüentemente; usam tanto a mudez quan­
to as lágrimas, e podem às vezes dizer mais que as línguas. Davi
diz em outro lugar: “O Senhor ouviu a voz de meu pranto” (SI
6.8). Nossos olhos são especialmente eloqüentes quando come­
çam a diminuir com o cansaço e desgosto. Um olhar súplice, er­
guido ao céu em silente oração, pode refletir a chama que derrete­
rá os ferrolhos que obstruem a entrada da oração vocal, e assim o
céu será tomado pela comoção provocada pela artilharia das lágri­
mas. Benditos são os olhos que estão acostumados a olhar para
Deus. Os olhos do Senhor verão que tais olhos realmente não des­
falecem. Quão preferível é aguardar o Senhor com olhares ansio­
sos do que tê-los lampejantes com o brilho da vaidade!
[v. 83]
Pois sou semelhante a um odre na fumaça; contudo não me esqueço
de teus estatutos.
Pois sou semelhante a um odre na fumaça. Os odres usados
para guardar-se vinho, quando vazios, eram pendurados na ten­
da; e quando o ambiente era dominado por fumaça, os odres fica­
vam negros e fuliginosos, e ao calor tornavam-se enrugados e pu­
ídos. A face do salmista, em decorrência da aflição, tornara-se es­
cura e melancólica, sulcada e enrugada; aliás, todo seu corpo se
solidarizara tanto com sua mente angustiada que perdera seu vi­
gor natural, tornando-se semelhante a um odre seco e surrado.
Seu caráter tinha sido enfumaçado com calúnias, e sua mente,
• 130 •
j^XPOSiÇAO 11

crestada com perseguição; seu receio é que se tornasse inútil e


incapaz, com tanto sofrimento mental, ao ponto de as pessoas olha­
rem para ele como se vissem um odre velho e puído, sem nenhum
conteúdo e sem corresponder a qualquer propósito. Que metáfora
para um homem usar, sendo ele um poeta, um santo e mestre em
Israel, se não um rei e um homem segundo o coração de Deus!
Não admira se nós, parte do povo comum, somos levados a pen­
sar bem pouco de nós mesmos e a deixar-nos dominar pela aflição
mental. Alguns de nós conhecemos o significado secreto deste sí­
mile, pois nós também nos sentimos denegridos, sombrios e in­
dignos, próprios tão-somente para o lixo. Quão negra e quente
tem sido a fumaça que nos tem envolvido; parece vir não só das
fornalhas egípcias, mas também dos abismos sem fundo; e possui
um poder de grudar-se que a fuligem dela nos adere e nos enegre­
ce com miseráveis pensamentos.
Contudo não me esqueço de teus estatutos. Aqui está a paci­
ência dos santos e a vitória da fé. Aquele homem de Deus podia
estar enegrecido pela falsidade, mas a verdade estava nele e jamais
a renunciaria. Ele era fiel a seu Rei mesmo quando parece deserta­
do e abandonado aos usos mais ignóbeis. As promessas lhe vieram
à mente, e, o que era ainda melhor evidência de sua lealdade, os
estatutos estavam ali também: ele aferrou-se a seus deveres da
mesma forma que a seus confortos. As piores circunstâncias não
podem destruir os verdadeiros cristãos que se apegam a seu Deus.
A graça é um vivo poder que sobrevive àquilo que sufocaria a to­
das as formas de existência. O fogo não pode consumi-la e a fu­
maça não pode enfumaçá-la. Uma pessoa pode ser reduzida a um
odre e a ossos secos, e todo seu conforto pode estar ausente dela,
contudo pode manter sua integridade e glorificar a seu Deus. En­
tretanto, não é de estranhar que em tais casos os olhos que são
atormentados pela fumaça se ergam para o céu e clamem pela mão
libertadora do Senhor, e o coração, veemente e desfalecido, suspi­
re pela divina salvação.
[v. 84]
Quantos são os dias de teu servo? Quando executarás juízo contra os
que me perseguem ?
S a lm o 119

Quantos são os dias de teu servo? Não posso esperar viver


ainda muito em tal condição; ou tu vens imediatamente em meu
socorro, ou então morrerei. Será o caso de toda minha curta vida
ser consumida em aflições tão destrutivas? A brevidade da vida é
um bom argumento contra a longa permanência de uma aflição.
Senhor, uma vez que vou viver por um tão curto tempo, agrada-te
em abreviar também minha aflição.
É provável que o salmista quisesse dizer que seus dias pareci­
am longos demais para vivê-los somente em tais angústias. Como
ele desejava que as mesmas chegassem ao fim, aflito pergunta:
“Quantos são os dias de teu servo?” Uma vida longa agora pare­
cia-lhe antes uma calamidade do que uma bênção. Como um ser­
vo contratado, ele tinha um certo acordo a cumprir, e não se quei­
xaria do que teria que suportar; visto, porém, que o tempo parecia
longo demais em razão de suas tristezas, isso era pesado demais.
Ninguém conhece o número designado de nossos dias, a não ser o
Senhor; e por isso ele apela para que Deus não os prolongasse
além da resistência de seu servo. Não pode estar na mente do Se­
nhor que seu próprio servo sempre seria tratado injustamente;
quando isso teria fim?
Quando executarás juízo contra os que me perseguem? Ele
havia posto seu caso nas mãos do Senhor, e então orava para que
a sentença fosse dada e posta em execução. Nada desejava além da
justiça; que seu caráter fosse inocentado e seus perseguidores, si­
lenciados. Ele sabia que Deus certamente vingaria seu próprio elei­
to, mas tardava o dia do resgate; as horas eram terrivelmente lon­
gas, e esse perseguido clamava dia e noite por livramento.
[v. 85]
Os soberbos me cavaram poços, os quais não são consoantes a tua lei.
Como os homens que caçam animais selvagens costumam fa­
zer foças e armadilhas, assim os inimigos de Davi envidavam es­
forços para apanhá-lo. Com grande empenho e astúcia, procura­
vam arruiná-lo: “cavarampoços”; não apenas um, porém muitos.
Se um não o apanhasse, talvez o outro o tivesse êxito; e assim
cavavam mais e mais. E possível que alguém pense que pessoas
• 132 •
j^XPOSIÇAO 11

tão arrogantes não sujariam seus dedos em cavar; porém engoli­


am seu orgulho na esperança de engolirem sua vítima. Enquanto
deveriam envergonhar-se de tal rebaixamento, não tinham consci­
ência do vexame; ao contrário, se orgulhavam de seu engenho; de
armar uma rede para o santo varão.
Os quais não são consoantes a tua lei. Nem os homens, nem
seus poços, eram consoantes à lei divina: eram cruéis e matreiros
enganadores, e seus poços eram contrários à lei levítica e contrári­
os ao mandamento que nos ordena a amar nosso próximo. Se os
homens guardassem os estatutos do Senhor, ergueriam do poço
aquele que ali caíra, ou tampariam o poço para que ninguém ali
caísse, mas jamais perderiam um momento sequer em causar injú­
ria a outros. Quando, porém, se tornam soberbos, se sentem se­
guros em desprezar a outros; e por essa razão buscam enredá-los
para que possam mais tarde expô-los ao ridículo.
Era bom para Davi que seus inimigos fossem inimigos de Deus,
e que seus ataques contra ele não tivessem a sanção do Senhor.
Era também para seu próprio lucro que não ignorasse seus intui­
tos, pois assim se pôs em guarda e foi levado a espreitar bem seu
caminho para não cair em seus poços. Enquanto guardasse a lei
do Senhor, estava em segurança, ainda quando lhe fosse algo des­
confortável ter sua vereda cheia de perigosas armadilhas e abomi­
nável malícia.
fv. 86]
Todos os teus mandamentos são verazes; injustamente me perseguem;
ajuda-me.
Todos os teus mandamentos são verazes. Ele não encontrava
nenhuma falta na lei de Deus, mesmo quando se via dominado por
dolorosas tribulações provindas de desobedecê-la. O que quer que
o mandamento lhe custasse, era justo. Sentia que o caminho de
Deus podia ser obstruído, porém era reto; podia encontrar nele
inimigos, porém ainda assim ele era seu melhor amigo. Cria que
no fim o mandamento de Deus se lhe converteria em seu próprio
benefício; que ele nada perderia em ser-lhe obediente.
Injustamente me perseguem. A falta está em seus perseguido-
• 133 ■
Salm o 11?

res, e não em Deus ou em si mesmo. Ele não fizera injúria a nin­


guém, nem agiu de outra forma que não fosse de conformidade
com a verdade e a justiça; portanto confiadamente apela para seu
Deus e clama: “Ajuda-me.” Eis aqui uma oração de ouro, tão precio­
sa como breve. As palavras são poucas, porém o significado, com­
pleto. Era indispensável que o perseguido fosse socorrido para
evitar a armadilha, pudesse suportar o opróbrio e pudesse agir
com suficiente prudência diante das investidas de seus inimigos.
Nossa esperança está posta no socorro divino. Seja quem for que
nos fira, não importa que tempo leve para Deus nos socorrer; pois
se realmente o Senhor nos socorre, então ninguém poderá real­
mente nos ferir. Estas palavras têm sido muitas vezes o sussurro
dos santos atribulados, pois se adequam a milhares de condições
de carência, dores, angústias, fraquezas e pecado. “Socorro, Se­
nhor”, será uma oração adequada para jovens e idosos; para as
iutas e sofrimentos; para a vida e para a morte. Nenhum outro
socorro é suficiente; porém o socorro divino é por si só suficiente;
lancemo-nos sobre ele sem temor.
[v. 87]
Quase me consumiram sobre a terra; porém eu não deixei teus preceitos.
Quase me consumiram sobre a terra. Seus inimigos quase
conseguiram destruí-lo, quase ao ponto de completo desfalecimen­
to. Se pudessem o teriam devorado, ou queimado vivo; de sorte
que teriam dado um fim último ao bom homem. Evidentemente,
ele caíra no poder deles por um longo tempo, e tinham assim usa­
do tal poder para que ele fosse quase consumido. Ele fora quase
que lançado fora da terra; porém quase não é totalmente, e assim
ele escapou por um triz. Os leões estão acorrentados; não podem
devastar além do que Deus permite. O salmista percebe o limite
do poder deles; no máximo, só podiam consumi-lo “sobre a ter­
ra”; podiam tocar sua vida terrena e bens materiais. Sobre a terra,
quase que podiam devorá-lo; ele, porém, possuía uma porção eterna
que jamais poderiam nem mesmo mordiscar.
Mas eu não deixei teus preceitos. Nem temores, nem dores,
nem perdas poderiam fazer Davi retroceder do límpido caminho
• 134 •
j^XPOSIÇÃO 11

dos mandamentos de Deus. Nada podería dissuadi-lo de obedecer


ao Senhor. Se aderirmos aos preceitos divinos, seremos socorri­
dos pelas promessas divinas. Se formos cruéis, podemos desviar o
santo oprimido da vereda do direito; o propósito do perverso pode
ter êxito e não seremos ouvidos mais que Davi; pela graça divina,
porém, ele não foi subjugado pelo mal. Se nos dispusermos a morrer
caso venhamos a esquecer-nos do Senhor, dependendo dele para
não morrermos, então viveremos para ver a ruína daqueles que
nos odeiam.
[v. 88]
Vivifica-me segundo tua benignidade; assim guardarei o testemunho
de tua boca.
Vivifica-me segundo tua benignidade. Mui sábia e mui bendi­
ta oração é esta! Se formos vivificados em nossa própria piedade
pessoal estaremos fora do alcance dos assaltantes. Nossa melhor
proteção dos tentadores e perseguidores é o cultivo de mais vida.
A própria benignidade não pode fazer-nos maior serviço do que
levando-nos a ter vida mais abundante. Quando somos vivifica­
dos, somos capacitados a suportar a aflição, a rebater a astúcia e a
vencer o pecado. Olhemos para a benignidade de Deus como a
fonte de vivificação espiritual, e roguemos-lhe que nos vivifique,
não segundo nossos méritos, mas segundo a imensurável energia
de sua graça. Que bendita palavra é esta: ‘benignidade’! Tome-a
por partes, querido leitor, e admire seu duplo conteúdo: força e
amor.
Assim guardarei o testemunho de tua boca. Se formos vivifi­
cados pelo Espírito Santo, guardaremos o testemunho de Deus no
exercício de um caráter santo. Quando o Espírito nos visita e nos
faz fiéis, nos tornamos também fiéis à sã doutrina. Ninguém guar­
da a palavra dos lábios do Senhor, a menos que a palavra de seus
lábios o vivifique. Devemos admirar grandemente a prudência es­
piritual do salmista, o qual não somente ora por isenção da prova,
como também pela vida renovada, para que ele pudesse suportar
enquanto estivesse sob seu peso. Quando a vida íntima é vigorosa,
tudo fica bem. Davi, no versículo final da última oitava, orou por
• 135 •
5alm o U p

um coração íntegro; e aqui ele busca um coração vivificado; isso


nos leva à raiz da questão: a busca daquilo que é a mais necessária
de todas as coisas. Senhor, realiza tua obra em nosso coração para
que ele seja reto a teus olhos.

• 136 •
f " X P Q 5 IÇ À Q 12
(w. 89-96)
Para sempre, ó Senhor, tua palavra está estabelecida no céu. Tua fide­
lidade é por todas as gerações; estabeleceste a terra e ela permanece.
Continuam até hoje, segundo tuas ordenações; porque são todos ser­
vos teus. Se tua lei não fosse meu deleite, então eu já teria perecido em
minha aflição. Jamais me esquecerei de teus preceitos; pois por eles me
tens vivificado. Eu sou teu, salva-me; pois tenho buscado teus precei­
tos. Os ímpios têm esperado por mim, para me destruir; eu, porém,
considerarei teus testemunhos, lenho visto um fim de toda perfeição,
mas teu mandamento é excessivamente amplo.
[v. 89]
Para sempre, ó Senhor, tua palavra está estabelecida no céu.
O tom é ainda mais jubiloso, pois a experiência muniu o mavi­
oso cantor de um consolador conhecimento da Palavra do Senhor,
e isso proporciona um alegre tema. Depois de ser acossado por
um mar de provações, o salmista, aqui, desce à praia e sobe numa
rocha. A Palavra de Jeová não é instável nem incerta; é estabeleci­
da, determinada, fixa, segura, inamovível. Os ensinos humanos
mudam tão amiúde que nunca estão bem estabelecidos; a palavra
do Senhor, porém, é a mesma desde os tempos de outrora, e per­
manecerá eternamente imutável. Algumas pessoas nunca se sentem
tão felizes do que quando se põem a inquietar a tudo e a todos; a
mente de Deus, porém, não é como a delas. O poder e a glória do
céu têm confirmado cada uma das sentenças que os lábios do Se­
nhor têm pronunciado, e assim as têm confirmado para que toda a
eternidade seja sempre a mesma - estabelecida no céu, onde nada
pode alcançá-la. Na seção anterior, a alma de Davi desfalecia; aqui,
porém, o bom homem olha para si e percebe que o Senhor não
desfalece, nem se afadiga, nem há qualquer falha em sua Palavra.
• 13 7 •
S alm o llp

O versículo assume a forma de uma atribuição de louvor; a


fidelidade e a imutabilidade de Deus são temas apropriados para o
canto sacro, e quando estamos cansados de fitar as mudanças no
cenário desta vida, a lembrança da promessa imutável de Deus
enche nossa boca de melodia. Os propósitos, as promessas e os
preceitos de Deus estão todos bem estabelecidos em sua própria
mente, e nenhum deles será perturbado. O pacto bem estabelecido
não será removido, por mais numerosos sejam os pensamentos
humanos; portanto, que o firmemos em nossa mente para que
permaneçamos na fé de nosso Jeová enquanto durar nossa exis­
tência [terrena].
[v. 90]
Tua fidelidade é por todas as gerações; tu estabeleceste a terra, e ela
permanece.
Tua fidelidade é por todas as gerações. Esta é uma glória
adicional: Deus não é afetado pelo avanço das eras; ele não só é
fiel a um ser humano durante sua existência terrena, mas também
a seus filhos e a seus netos depois dele, sim, e a todas as gerações
enquanto guardarem sua aliança e recordarem de seus manda­
mentos para pô-los em prática. As promessas são antigas, porém
não são gastas por séculos de uso, pois a fidelidade divina dura
para sempre. Aquele que socorreu seus servos milhares de anos
atrás ainda se mostra forte em favor de todos aqueles que confi­
am nele.
Estabeleceste a terra, e ela permanece. A natureza é governa­
da por leis fixas; o globo mantém seu curso pelo comando divino e
não exibe nenhum movimento equivocado: as estações observam
sua ordem predestinada; o mar obedece à norma de íluxo e reflu­
xo; e todas as demais coisas marcham em sua ordem designada.
Há uma analogia entre a Palavra de Deus e suas obras, especial­
mente nisto: que ambas são constantes, fixas e imutáveis. A Pala­
vra de Deus que estabeleceu 0 mundo é a mesma que ele incorpo­
rou nas Escrituras; pela Palavra do Senhor os céus foram feitos,
especialmente por aquele que é enfaticamente O VERBO. Quan­
do vemos o mundo conservar seu lugar, e todas suas leis perma-
• 138 •
P XPQ 5 IÇ Â Q 12

necendo as mesmas, temos nisso a certeza de que o Senhor será


fiel a sua aliança e não permitirá que a fé de seu povo seja frustra­
da. Se a terra permanece, a criação espiritual permanecerá; se a
Palavra de Deus é suficiente para estabelecer o mundo, segura­
mente ela é suficiente para o estabelecimento do indivíduo crente.
Virá o tempo quando a terra passará, mas ainda então a Palavra
do Senhor permanecerá; portanto, fiquemos firmes, inamovíveis.
[v. 91 ]
Continuam até hoje, segundo tuas ordenações; porque são todos ser­
vos teus.
Continuam até hoje, segundo tuas ordenações. Uma vez que
o Senhor ordenou que o universo permanecesse, portanto ele per­
manece, e todas as suas leis continuam a operar com precisai.) e
poder. Uma vez que o poder de Deus está sempre presente para
mantê-las, portanto todas as coisas prosseguem. A palavra que
ordenou que todas as coisas viessem à existência as tem sustenta­
do até o presente, e continuará a sustentá-las em existência e bem-
estar. A ordenança de Deus é a razão para a existência contínua da
criação. Que importantes forças são essas ordenanças! Quantas
são todas as ordenanças de Deus, assim são tidas em reverência!
Porque são todos servos teus. Criados no princípio por tua
palavra, eles obedecem a essa palavra, correspondendo assim ao
propósito de sua existência com a operação do desígnio de seu
Criador. Tanto as grandes coisas quanto as pequenas prestam ho­
menagem divina ao Senhor. Nenhum átomo escapa a sua norma,
nem o mundo foge a seu governo. Desejaríamos ser livres do do­
mínio do Senhor e tornar-nos senhores de nós mesmos? Se esse
fosse o caso, seríamos uma tremenda exceção a uma lei que asse­
gura o bem-estar do universo. Ao contrário, enquanto lemos acer­
ca de todas as demais coisas - que prosseguem e servem —, que
continuemos a servir, e a servir mais perfeitamente enquanto nos­
sa vida prossegue. Podemos ser estabelecidos por essa palavra que
é estabelecida; podemos ser estabelecidos por essa voz que estabe­
lece a terra; e por essa ordem, à qual todas as coisas criadas obe­
decem, podemos ser feitos servos do Senhor Deus Onipotente.
• 139 •
S alm o 115?

[v. 92]
Se tua lei não fosse meu deleite, então eu já teria perecido em minha
aflição.
Essa palavra que tem preservado os céus e a terra também pre­
serva o povo de Deus em seus momentos de provação. Essa pala­
vra nos encanta e nos é uma mina de deleite. Nela temos um duplo
e triplo deleite e dela extraímos um múltiplo deleite, e este é um
bom lugar quando todos os deleites nos forem suprimidos. Já es­
taríamos prontos a nos deitarmos e morrermos em nossas triste­
zas se os confortos espirituais provindos da Palavra de Deus não
nos soerguessem; mas, mediante sua influência mantenedora, te­
mos pairado acima de todas as depressões e desesperos que natu­
ralmente aumentam a severa aflição. Alguns de nós podemos pôr
nosso selo nesta afirmação. Nossa aflição, não fosse pela divina
graça, já nos teria eliminado a existência, de sorte que já teríamos
perecido. Em nossos momentos mais escuros, nada nos protege­
ria do desespero, exceto a promessa do Senhor; sim, às vezes nada
resta entre nós e a autodestruição salvo a fé na eterna Palavra de
Deus. Quando gememos com dores, até o âmago, nos sentimos
aturdidos e a razão quase extinta, um doce texto nos sussurra uma
certeza íntima, e nossa pobre e relutante mente recebe a resposta
vinda do coração de Deus. Aquilo que era nosso deleite na prospe­
ridade tem sido nosso deleite na adversidade; aquilo que durante o
dia nos guardou de conjeturar, durante a noite nos tem guardado
de perecer. Este versículo contém uma lamentosa suposição —“a
não ser q u e descreve uma horrível condição —“quase pereci em
minha aflição”; e implica livramento; pois ele não morreu, senão
que viveu para proclamar as honras da Palavra de Deus.
[v. 93]
Jamais me esquecerei de teus preceitos; pois por eles me tens vivificado.
Quando sentimos o poder vivificante de um preceito, jamais
nos esquecemos dele. Podemos lê-lo, aprendê-lo, repeti-lo e ter
receio de que ele escape de nossa mente; mas, se uma vez ele nos
deu vida, ou renovou nossa vida, não há motivo para temermos
que ele escape de nosso reconhecimento. A experiência ensina, e
• 140 •
j^xposiçÃo 12
ensina com eficácia. Quão bendita é a sorte de termos os preceitos
escritos no coração com a pena de ouro da experiência, e gravada
na memória com o divino estilete da graça! O esquecimento é um
grande mal em relação às coisas santas; vemos aqui o homem de
Deus lutando contra ele, e o seguro senso da vitória, porque ele
conhecia a energia geradora de vida da Palavra em sua própria
alma. Aquilo que vivifica o coração certamente vivificará a memória.
Parece singular que ele atribua aos preceitos a vivificação, e
todavia ela está neles e igualmente em todas as palavras do Se­
nhor. Deve-se notar que, quando o Senhor ressuscitava os mor­
tos, dirigia-lhes a palavra de ordem. Disse ele: “Lázaro, vem para
fora”; ou: “Menina, levanta-te”. Não carece que receemos decla­
rar os preceitos evangélicos aos pecadores espiritualmente mor­
tos, visto que, por meio deles, o Espírito lhes comunica vida. Ob­
serve que o salmista não diz que os preceitos o vivificavam, mas
que o Senhor o vivificou por meio deles; assim ele traça a vida a
partir do canal até a fonte, e põe a glória no devido lugar. Todavia,
ao mesmo tempo ele valorizava os instrumentos da bênção, e deci­
diu jamais olvidá-los. Ele já os havia recordado, quando compa­
rou-se a um odre na fumaça, e agora sente que, quer na fumaça ou
no fogo, a memória dos preceitos do Senhor jamais se desvanece­
rá de sua mente.
[v. 94]
Eu sou teu, salva-me; porque tenho buscado teus preceitos.
Eu sou teu, salva-me. Uma oração abrangente com um argu­
mento prevalecente. A consagração é uma boa súplica por preser­
vação. Se somos cônscios de que pertencemos ao Senhor, então
podemos nutrir a confiança de que ele nos salvará. Somos do Se­
nhor por criação, eleição, redenção, rendição e aceitação; e daí
nossa firme esperança e sólida convicção de que ele nos salvará.
Seguramente, uma pessoa salvará a seu próprio filho: Senhor, sal­
va-me. A necessidade de salvação é melhor visualizada pelo povo
do Senhor do que por qualquer outra pessoa, e daí a oração de
cada um deles é: “salva-me”; sabem que somente Deus pode sal­
vá-los, e por isso clamam unicamente a ele; sabem que nenhum
• 141 •
Salm o 115?

mérito será encontrado em si mesmos, e por isso apresentam uma


razão extraída da graça de Deus - “Eu sou teu.”
Porque tenho buscado teus preceitos. E assim provou ele ser
do Senhor. Não havia atingido toda a santidade que almejava, mas
almejara exaustivamente ser obediente, e por isso suplicou que
fosse salvo até o fim. Uma pessoa pode estar buscando as doutri­
nas e as promessas, e não obstante não ter um coração renovado;
buscar os preceitos, porém, é um seguro sinal da graça; ninguém
jamais ouviu de um rebelde ou de um hipócrita que buscasse os
preceitos. O Senhor, evidentemente, operara uma grande obra no
salmista, e por isso ele rogou-lhe que a completasse. Salvar está
associado a buscar - “salva-me, porque eu te tenho buscado”; e
quando o Senhor nos vê buscando-o, ele nos vem ao encontro
salvando-nos. Aquele que busca santidade já está salvo; se temos
buscado o Senhor, podemos estar certos de que o Senhor já nos
buscou, e ele certamente nos salvará.
[v. 95]
Os ímpios têm esperado por mim, para me destruírem; eu, porém, con­
siderarei teus testemunhos.
Eram como bestas selvagens agachadas à beira do caminho,
ou um salteador a saltar sobre um viajante indefeso; o salmista,
porém, avançava em seu caminho sem levá-los em conta, pois ti­
nha algo melhor em mente, a saber: o testemunho que Deus dava
dele [Davi] aos filhos dos homens. Ele não permitia que a malícia
dos ímpios lhe roubasse a santa meditação na divina palavra. Ele
estava calmo demais para poder “considerar”; tão santo que se
deleitava em considerar os “testemunhos” do Senhor; vitorioso
demais acima de todas as tramas dos inimigos para lhes permitir
desviá-lo de suas pias contemplações. Se o inimigo não pode le­
var-nos a abandonar nossos pensamentos do santo estudo, ou
nossos pés do santo caminho, ou nosso coração das santas aspira­
ções, ele ter-se-ia nutrido com um pobre sucesso em seu assalto.
Os ímpios são os inimigos naturais das pessoas santas e dos pen­
samentos santos; se pudessem, não só nos causariam dano, mas
nos destruiriam; e se não podem fazer isso, então esperarão por
• 142 •
}r XP05ÍÇÃ0 12
outras oportunidades, sempre na esperança de que seus maus de­
sígnios sejam concretizados. Até agora esperaram em vão, e terão
que esperar muito mais ainda; pois se somos tão indiferentes, que
nem mesmo lhes cedemos um pensamento, sua esperança de des­
truir-nos deve ser pobre demais.
Note a dupla espera - a paciência dos ímpios que velam muito
e cuidadosamente por uma chance de destruir os santos; e, então,
a paciência dos santos que não desistirão de suas meditações,
mesmo para apaziguar seus inimigos. Veja como a serpente se­
meia a mentira de emboscada como uma víbora que morde as per­
nas dos cavalos; veja, porém, como os escolhidos do Senhor vi­
vem acima de seu veneno, e não mais podem notá-la, como se não
mais existisse.
[v. 96]
Tenho visto um fim de toda perfeição; teu mandamento, porém, é ex­
cessivamente amplo.
Tenho visto um fim de toda perfeição. Ele vira seu limite, pois
ela andara apenas meio caminho; vira sua evaporação sob as pro­
vações da vida, sua detecção sob a mira perscrutadora da verdade,
sua exposição pela confissão do penitente. Não há perfeição abai­
xo da lua. As pessoas perfeitas, no sentido absoluto do termo, só
vivem num mundo perfeito. Algumas não vêem nenhum fim para
sua própria perfeição, mas isso se deve ao fato de que são perfeita­
mente cegas. O cristão experiente tem visto um fim de toda perfei­
ção em si mesmo, em seus irmãos, nas melhores obras do melhor
dos homens. Seria bom se alguém que professa ser perfeito pu­
desse ainda ver o princípio da perfeição; pois tememos que não
possam ter começado bem, ou que não falem tão arrogantemente.
Não é o princípio da perfeição lamentar sua imperfeição? Não
existe tal coisa como perfeição em algo que é obra do homem.
Teu mandamento, porém, é excessivamente amplo. Quando
a excessiva amplitude da lei se faz notória, se desvanece a noção
de perfeição na carne: que a lei toca cada ato, palavra e pensamen­
to, e ela é de natureza tão espiritual que julga os motivos, desejos e
emoções da alma. Revela a perfeição que nos convence tanto das
• 143 •
Salm o 115?

deficiências quanto das transgressões, e não nos permite reparar


as deficiências em nenhuma direção pela atenção especial em ou­
tras. O divino ideal de santidade é tão amplo para esperarmos co­
brir toda sua ampla área, e ainda não é tão ampla quanto deveria
ser. Quem desejaria ter uma lei imperfeita? Não só isso, sua per­
feição é sua glória; porém é a morte de toda vanglória em nossa
própria perfeição. Há uma amplitude no mandamento que jamais
foi levada à plenitude por uma amplitude correspondente de santi­
dade num mero ser humano enquanto vive aqui em baixo; somen­
te em Jesus a vemos plenamente incorporada. A lei é, em todos os
aspectos, um código perfeito; cada mandamento separado desse
código está longe de ser atingido por nós em seu sacro significa­
do, e todos os dez cobrem tudo, e não deixam sequer um espaço
em si para o prazer de nossas paixões. Bem que poderíamos ado­
rar a infinitude da santidade divina, e então medir-nos por seu
padrão, e curvar-nos diante do Senhor em toda nossa vileza, reco­
nhecendo quão longe estamos dela.

• 144 •
P XPQ S1Ç ÂO 15

(w. 97-104)
Oh, quanto amo tua lei! é minha meditação todo o dia. Tu, por meio
de teus mandamentos, me tens feito mais sábio que meus inimigos;
pois eles estão sempre comigo. Tenho mais entendimento que todos
meus mestres, porque teus testemunhos são minha meditação. Enten­
do mais que os antigos, porque guardo teus preceitos. Refreei meus pés
de todo mau caminho, para poder guardar tua palavra. Não me apar­
tei de teus juízos; pois me tens ensinado. Quão doce a meu paladar são
tuas palavras! sim, são mais doces que o mel a minha boca. Através de
teus preceitos obtive entendimento; por isso odeio todo falso caminho.
[v. 971
Oh, quanto amo tua lei! é minha meditação todo o dia.
Oh, quanto amo tua lei! Aqui está uma nota de exclamação.
Seu amor é tão forte que ele tem que expressá-lo, e o expressa
diante de Deus em extasiante devoção. Ao fazer a tentativa, ele
percebe que sua emoção é inexprimível, e portanto clama: “Oh,
quanto amo!” Não só reverenciamos a lei, mas também a amamos,
a obedecemos com amor, e ainda quando ela nos reprove por de­
sobediência, não a amamos menos. A lei é a lei de Deus, e portanto
ela é objeto de nosso amor. Amamo-la por sua santidade, e anela­
mos por ser santos; amamo-la por sua sabedoria, e nos esforça­
mos por ser sábios; amamo-la por sua perfeição, e suspiramos por
ser perfeitos. Os que conhecem o poder do evangelho percebem
na lei uma beleza infinita, quando a vemos cumprida e incorpora­
da em Jesus Cristo.
Ela é minha meditação todo o dia. Esse foi tanto o efeito de
seu amor à lei quanto a causa desse amor. Ele meditava na palavra
de Deus, porque a amava; a amava ainda mais, porque nela medi-
• 145 •
S alm o 115?

tava. Ele não poderia ter dela o suficiente, por isso ardentemente a
amava; todo o dia não lhe era suficiente para dialogar com ela.
Sua oração matinal, sua meditação ao meio-dia, sua oração ves­
pertina, tudo procedia do Santo Escrito; sim, em suas atividades
seculares, ele ainda mantinha sua mente saturada com a lei do
Senhor. Ouvimos acerca de algumas pessoas que, quanto mais as
conhecemos, menos as admiramos; mas o reverso se dá no tocan­
te à Palavra de Deus. A familiaridade com a Palavra de Deus gera
afeição, e a afeição busca ainda maior familiaridade. Quando “tua
lei” e “minha meditação” se juntam a “todo o dia”, o dia se torna
santo, devoto e feliz, e o coração vive com Deus em amor a sua
Palavra e se deleita nela. Davi desviava-se de tudo mais em prol da
Palavra e da vontade do Senhor, pois no versículo precedente ele
nos informa que vira um fim de toda perfeição; mas se volvia para
a lei e aí ficava todos os dias de sua vida na terra, tornando-se cada
vez mais sábio e mais santo.
[v. 98]
Tu, por meio de teus mandamentos, me tens feito mais sábio que meus
inimigos; porque eles estão sempre comigo.
Tu, por meio de teus mandamentos, me tens feito mais sábio
que meus inimigos. Os mandamentos eram seu Livro, porém Deus
era seu Mestre. A letra pode levar-nos a conhecer, porém só o
Espírito divino pode fazer-nos sábios. Sabedoria é conhecimento
posto em uso prático. A sabedoria nos vem através da obediência:
“Se alguém fizer a vontade de Deus, conhecerá a doutrina.” Não
aprendemos só da promessa, da doutrina e da história sacra, mas
também do preceito e do mandamento; de fato, dos mandamentos
deduzimos a mais prática sabedoria e aquilo que nos capacita a
melhor competir com nossos adversários. Uma vida santa é a mais
elevada sabedoria e a mais segura defesa. Nossos inimigos desfru­
tam de renome através de sutileza, de seu primeiro pai, a antiga
serpente, procedente do último basilisco que saiu do ovo; e ser-
nos-ia inútil tentar formar um par com eles na astúcia e no misté­
rio da velhacaria; pois os filhos deste mundo são, em sua geração,
mais sábios que os filhos da luz. Temos de ir a outra escola e apren-
• 146 •
H X P O S IÇ Ã O V )

der de um diferente instrutor, e então, com integridade, malogra­


remos a fraude; com a simples verdade venceremos seu esquema
astuciosamente elaborado; e, com uma candura franca, derrotare­
mos os caluniadores. Uma pessoa totalmente sem rodeios, desvi­
ando-se de toda politicagem, é um terrível quebra-cabeças para os
diplomatas; suspeitam que ela esconde uma sutil duplicidade atra­
vés da qual não podem ver; enquanto ela, indiferente a suas suspei­
tas, mantém-se no mesmo ritmo de seu caminho e se desvencilha de
suas artimanhas. Sim, “a honestidade é a melhor política”. Aquele
que é ensinado por Deus tem uma sabedoria prática tal que a malí­
cia não pode fornecer ao astuto; enquanto é simples como uma
pomba, ele também exibe uma sabedoria maior que a da serpente.
Porque eles estão sempre comigo. Ele sempre foi estudioso e
obediente aos mandamentos; estes eram seus escolhidos e cons­
tantes companheiros. Se desejarmos tornar-nos proficientes, te­
mos de ser infatigáveis. Se guardarmos a lei sábia sempre junto ao
coração, nos tornaremos sábios; e quando nossos adversários nos
assaltarem, estaremos preparados para eles com aquela sabedoria
cuja base é a Palavra de Deus que a tudo sonda. Como um soldado
na batalha nunca deve pôr de lado seu escudo, assim nunca deve­
mos nós ter a Palavra de Deus fora de nossa mente; ela tem de ir
sempre conosco.
[v. 99]
Tenho mais entendimento que todos meus mestres; porque teus teste­
munhos são minha meditação.
Tenho mais entendimento que todos meus mestres. Aquilo
que o Senhor lhe havia ensinado fora útil no campo, e agora ele o
encontra igualmente valioso nas escolas. Nossos mestres nem sem­
pre são confiáveis; aliás, nem sempre podemos seguir implicita­
mente alguns deles, pois Deus nos chamará a prestar contas de
nossos discernimentos. Quando mesmo nosso piloto errar, cabe-
nos seguir bem o mapa da Palavra de Deus, para que sejamos ca­
pazes de salvar a embarcação. Se nossos mestres são em todas as
coisas íntegros e seguros, ser-nos-á uma grande alegria podermos
excedê-los, e eles serão os primeiros a confessar que o ensino do
• 147 •
S alm o \\J

Senhor é melhor que qualquer ensino que porventura possam mi­


nistrar-nos. Os discípulos de Cristo, que se assentam a seus pés,
com freqüência são melhor habilitados nas coisas divinas do que
os doutores em teologia.
Porque teus testemunhos são minha meditação. A meditação
na própria Escritura é o melhor modo de adquirir entendimento.
Podemos ouvir o mais sábio dos mestres e permanecer obtusos;
mas, se meditarmos na sacra Palavra, certamente nos tornaremos
sábios. Há mais sabedoria nos testemunhos do Senhor do que em
todos os ensinos dos homens, se forem todos reunidos numa vasta
biblioteca. O Livro dos livros excede em peso a todo o resto.
Davi não hesita em falar a verdade neste ponto acerca de si
mesmo, ainda quando é para sua própria honra, pois ele é total­
mente inocente da autoconsciência. Ao falar de seu ‘entendimen­
to’, sua intenção é enaltecer a lei e o Senhor, e não a si próprio.
Não há um vislumbre sequer de vanglória nessas expressões ousa­
das, mas somente um desejo infantil de enaltecer a excelência da
Palavra do Senhor. Aquele que conhece as verdades ensinadas na
Bíblia não será culpado de egoísmo, se ele crê estar de posse das
verdades mais importantes do que professam todos os gnósticos.
[v. 100]
Entendo mais que os antigos, porque guardo teus preceitos.
Os homens idosos, e os homens de outrora, eram excedidos
pela juventude mais santa e mais culta. Ele tinha sido instruído a
observar no coração e na vida os preceitos do Senhor, e isso era
mais do que o pecador mais venerável jamais aprendera; mais do
que o filósofo da antigüidade tanto aspirara conhecer. Ele possuía
em si a Palavra, e assim superava seus inimigos; ele meditava nela,
e assim ultrapassava seus amigos; ele a praticava, e assim eclipsa­
va seus anciãos. A instrução derivada da Santa Escritura é útil em
muitas direções, superior a muitos pontos de vista, sem rival por
toda parte e de todas as maneiras. Como nossa alma pode orgu­
lhar-se no Senhor, assim ela pode orgulhar-se em sua Palavra.
“Nada existe que se lhe assemelhe; eu a quero”, disse Davi da
espada de Golias, e podemos dizer o mesmo da Palavra do Se-
• 148 •
fjÇ P O SlÇ Ã O V)
nhor. Se os homens prezam a antigüidade, aqui eles a têm. Os
antigos são tidos em elevada conta; porém, o que todos sabiam
daquilo que percebem nos divinos preceitos? “O antigo é melhor”,
diz um; mas o mais antigo de todos é o melhor de todos, e o que é
isso senão a palavra do Ancião de dias?
[v. 101]
Tenho refreado meus pés de todo mau caminho, para que possa guar­
dar tua palavra.
Não há como entesourar a santa palavra, a menos que nos
desvencilhemos de toda impureza; se guardarmos a boa Palavra,
estaremos livres do mal. Davi tinha zelosamente vigiado seus pés e
posto um freio a sua conduta - tinha refreado seus pés. Nenhuma
forma de mal podia assenhorear-se dele, pois sabia que, se sim­
plesmente se deslizasse para uma estrada, ele teria, praticamente,
abandonado o caminho da justiça; portanto, ele evitava todo gê­
nero de vício. Os atalhos eram planos e floridos, mas ele sabia
muito bem que eram nocivos, e assim desviou dali seus pés e ar­
rastou-se em direção à vereda estreita e espinhosa que conduz a
Deus. E um prazer voltar-se em direção às autoconquistas - “"le­
nho refreado” —, um deleite ainda maior é saber que viver com
nossos semelhantes não procede de um mero desejo, mas do mo­
tivo de guardar a lei do Senhor. A essência deste versículo é evitar
o pecado de que a obediência pode ser perfeita; ou pode ser que o
salmista nos ensine que não há reverência real pelo Livro onde não
há o cuidado de evitar toda e qualquer transgressão de seus pre­
ceitos. Como é possível que nós, servos do Senhor, guardemos
sua Palavra, se não guardamos nossas próprias obras e palavras de
trazer sobre ela a desonra?
[v. 102]
Não me apartei de teus juízos; porque me tens ensinado.
São bem instruídos aqueles a quem Deus instrui. O que apren­
demos do Senhor jamais esquecemos. A instrução de Deus tem
um efeito prático —seguimos seu caminho quando ele nos ensina;
e tem um efeito permanente - não nos apartamos da santidade.
• 149 •
S alm o llp

Leia este versículo em conexão com o precedente, e você verá o


“eu tenho” e “não tenho” do cristão: ele é bom tanto positiva quanto
negativamente. O que ele fez, ou seja, “refreou seus pés”, o pre­
servou de fazer o que, de outra forma, poderia ter feito, ou, seja,
“Não me apartei de teus juízos”. Aquele que é prudente não vai
sequer uma polegada ao lado de quem abandona a estrada reta.
Aquele que nunca toca o copo inebriante jamais ficará embriaga­
do. Aquele que nunca pronuncia uma palavra ociosa jamais será
profano. Se começarmos a afastar-nos um pouco que seja, nunca
poderemos dizer onde acabaremos. O Senhor nos leva a perseve­
rar em santidade através da abstinência da inauguração do peca­
do; mas, seja qual for o método, o Senhor é o operador de nossa
perseverança, e a ele seja toda a glória.
A Palavra de Deus pronuncia juízos contra as ações morais, e
faremos bem em manter esses juízos como nossa regra infalível do
pensamento e da vida.
[v. 103]
Quão doces a meu paladar são tuãs palavras! sim, mais doces que o
mel a minha boca!
Quão doces a meu paladar são tuas palavras! Ele havia não
só ouvido as palavras de Deus, mas as havia deglutido; afetaram
seu paladar, como haviam feito a seus ouvidos; exerceram um efeito
interior a seu paladar como haviam feito a sua audição. As pala­
vras de Deus são muitas e variadas, e todas elas formam o que
chamamos “a folàvra”. Davi amava a cada uma delas, individual­
mente, e a todas elas como um todo, e por isso experimentou nelas
uma indescritível doçura. Ele expressa o fato de sua doçura; mas,
como não expressa o grau dessa doçura, ele clama: “Quão doces!”
Sendo'as palavras de Deus, elas eram divinamente doces para o
servo ae ueus; aquele que pos neias a aoçura, preparou o paiaaar
de seu servo para discerni-la e desfrutá-la. Davi não faz distinção
entre promessas e preceitos, doutrinas e ameaças; estão todos in­
clusos nas palavras de Deus, e todos são preciosos em sua estima.
Oh, que profundo amor o Senhor tem revelado a todos nós, seja
qual for a forma que ele assuma!
• 150 •
r X P O S IÇ Ã O 15

Sim, mais doces que o mel a minha boca! Quando ele não só
a comeu, mas também a expressou verbalmente, instruindo a ou­
trem, ele sentiu um crescente deleite nela. A mais doce de todas as
coisas temporais provém da infinita delícia da Palavra eterna: o
próprio mel, em sua doçura, é excedido pela Palavra do Senhor.
Quando o salmista alimentou-se dela, ele a achou doce; mas quando
deu testemunho dela, então ela se tornou ainda mais doce. Quão
sábio será de nossa parte guardar a Palavra em nosso paladar atra­
vés da meditação; e em nossa língua, através de nossa confissão!
Ela será doce a nosso paladar quando pensarmos nela; ou não
será doce a nossa boca, quando falarmos dela. Provaremos no es­
tudo o que pregarmos no púlpito. Devemos, antes, tornar-nos
homens espiritualmente de paladar, e então teremos um verdadei­
ro desfruto em anunciar a beleza c doçura da verdade divina.
[v. 104]
Através de teus preceitos obtive entendimento; por isso odeio todo ca­
minho falso.
Através de teus preceitos obtive entendimento. A orientação
divina é nossa instrução. A obediência à vontade divina gerará sa­
bedoria mental e ativa. Como o caminho de Deus é sempre me­
lhor, os que o seguem estão certos de ser justificados por seus
resultados. Se o Legislador fosse insensato, sua lei seria o mesmo,
e a obediência a tal lei nos envolveria em milhares de equívocos;
mas como o caso é bem outro, podemos considerar-nos felizes em
possuir uma lei tão sábia, prudente e benéfica como a norma de
nossas vidas. Seremos sábios, se a obedecermos; e é pela obediên­
cia que crescemos em sabedoria.
Por isso odeio todo caminho falso. Porque tinha entendimen­
to, e por causa dos preceitos divinos, ele detestava o pecado e a
falsidade. Todo pecado é falsidade; pecamos porque cremos numa
mentira, e no fim o mal promissor se converte em mentiroso, e
descobrimos que fomos traídos. Os corações verdadeiros não são
indiferentes ante a falsidade, sua indignação se inflama; como amam
a verdade, daí odeiam a mentira. Os santos nutrem um horror
universal por tudo o que é contrário à verdade; não toleram qual-
S alm o U5>

quer falsidade ou insensatez; reagem contra todo erro doutrinal


ou vida perversa. Aquele que é amante de um pecado está inscrito
no exército de todos os pecados; não devemos dar trégua nem
parlamentar sequer com um dos amalequitas, pois o Senhor faz
guerra contra eles de geração em geração, e assim devemos fazer
o mesmo. E bom ser alguém que saiba odiar. O que isso significa?
Alguém que odeia corretamente não odeia gente, mas odeia “todo
caminho falso”. O caminho do livre-arbítrio, da autojustiça, da
busca egoísta, do mundanismo, da soberba, da descrença, da hi­
pocrisia, da luxúria - esses são, todos eles, caminhos falsos, e por
isso não só devem ser evitados, mas também abominados.
Este último versículo da estrofe marca um grande avanço no
caráter, e mostra que o homem de Deus está se tornando mais
forte, mais ousado e mais feliz do que antes. Ele já foi instruído
pelo Senhor, de modo que discerne entre o precioso e o vil, e en­
quanto ama a verdade fervorosamente, odeia íntensamente a falsi­
dade. Que todos nós alcancemos este estado de discriminação e
determinação, de modo a podermos glorificar a Deus gloriosa­
mente!

• 152 •
f 7X P Q 51Ç Ã Q Vr

(w. 105-112)
Tua palavra é lâmpada para meus pés, e luz para meu caminho. Jurei,
e cumprirei, que guardaria teus justos juízos. Estou muitíssimo aflito;
vivifica-me, ó Senhor, segundo tua palavra. Aceita, eu te rogo, as ofe­
rendas voluntárias de minha boca, ó Senhor, e ensina-me teus juízos.
Minha alma está continuamente em minhas mãos; todavia não me
esqueço de teus preceitos. Os ímpios me armaram uma rede; contudo
não me desviei de teus preceitos, léus testemunhos os tenho por heran­
ça, para sempre, pois eles são o júbilo de meu coração. Inclinei meu
coração a guardar teus estatutos, para sempre, até o fim.
[v. 105]
Tua palavra é lâmpada para meus pé, e luz para meu caminho.
Tua palavra é lâmpada para meus pés. Somos andarilhos
pela cidade deste mundo, e amiúde somos chamados a sair de sua
escuridão; que jamais nos aventuremos ali sem a Palavra geradora
de luz, para que não escorreguem nossos pés. Cada um de nós
deve usar a Palavra de Deus pessoal, prática e habitualmente, para
que visualizemos seu caminho e percebamos o que ele contém.
Quando as trevas descem e me cercam, a Palavra do Senhor, como
uma chama, uma tocha, ilumina meu caminho. Não havendo lâm­
padas fixas nas cidades orientais, nos tempos antigos, cada um
levava consigo uma tocha para que não caísse num esgoto aberto,
ou tropeçasse nos montes de esterco que infestavam a estrada.
Este é um quadro genuíno de nossa vereda por este mundo escu­
ro; não conheceríamos o caminho, nem saberíamos andar nele, se
a Escritura, como um luminoso refletor, não o iluminasse. Elm
dos benefícios mais práticos da Santa Escritura é sua diretriz nos
atos do cotidiano: não para estarrecer-nos com sua radiância, mas
para guiar-nos por sua instrução. E verdade que a cabeça necessi-
• 153 •
S a lm o 115?

ta de iluminação; os pés, porém, necessitam ainda mais de dire­


ção, senão cabeça e pés, ambos, poderiam cair numa vala. Feliz a
pessoa que se apropria pessoalmente da Palavra de Deus e a usa
de maneira prática como seu consolador e conselheiro - uma lâm­
pada para seus pés.
E luz para meu caminho. E uma lâmpada durante a noite,
uma luz durante o dia e um deleite em todos os momentos. Davi
guiou seus próprios passos pela instrumentalidade dela, e tam­
bém, através de seus raios, viu as dificuldades de sua jornada. Aquele
que anda nas trevas está certo da possibilidade de um momento
para outro tropeçar. Enquanto que, aquele que anda em plena luz
do dia, ou que leva sua lâmpada no meio da noite, não tropeça,
porém mantém sua retidão. A ignorância é dolorosa em questões
práticas; gera indecisão e perplexidade, e isso traz desconforto. A
Palavra de Deus, comunicando conhecimento celestial, conduz à
decisão, e quando isso é seguido de determinada resolução, como
neste caso, ela traz consigo profundo repouso para o coração.
Este versículo dialoga com Deus em termos adorativos e em
tons familiares. Temos, porventura, algo de teor semelhante com
que falar com nosso Pai celestial?
Note o quanto este versículo se assemelha ao primeiro versícu­
lo da primeira oitava, e o primeiro da segunda e das demais oita­
vas. As alternâncias às vezes são também uníssonas.
lv. 106]
Jurei, e cumprirei, que guardaria teus juízos.
Sob a influência da clara luz do conhecimento, ele tinha firme­
mente moldado sua mente e solenemente declarado sua resolução
aos olhos de Deus. Talvez desconfiando de sua própria mente vo­
lúvel, ele se penhora na sacra forma de permanecer fiel às determi­
nações e decisões de seu Deus. Qualquer que fosse a vereda que se
lhe abrisse, ele jurara seguir somente aquela na qual a lâmpada da
Palavra fosse resplandecente. As Escrituras são os juízos divinos,
ou os veredictos nas grandes questões morais; eles são todos jus­
tos, e daí os homens justos devem viver determinados a guardá-los
sob quaisquer riscos, visto ser sempre certo fazer o que é certo. A
• 154-
p X P O S IÇ A O 14

cxperiência comprova que, quanto menos acordo e juramento os


homens formalmente assumam, melhor será, e o gênio do ensino
de nosso Salvador é contra toda promessa e juramento desneces­
sários; e todavia sob o evangelho devemos sentir-nos como que
obrigados a obedecer à Palavra do Senhor como se fizéssemos um
juramento de assim o fazer. Os vínculos do amor não são menos
sacros do que as restrições da lei. Quando uma pessoa assume um
compromisso, ela deve ser cuidadosa em ‘cumpri-lo’; e quando
uma pessoa não assume um compromisso com base num grande
volume de palavras, de guardar os juízos de Deus, ainda assim ela
é igualmente obrigada a fazê-lo com base nas obrigações que exis­
tem à parte de qualquer promessa de nossa parte —obrigações
fundamentadas na eterna exatidão das coisas e confirmadas pela
bondade do Senhor nosso Deus, a qual obriga a consciência. Não
está cada cristão obrigado para com o Senhor e Redentor de se­
guir seu exemplo e de guardar suas palavras? Sim, os votos do
Senhor estão sobre nós, especialmente pelo fato de termos feito o
compromisso de discipulado, tendo sido batizados no nome três
vezes santo, comido os elementos consagrados do sacramento e
falado no nome do Senhor Jesus. Estamos inscritos, ajuramenta­
dos e obrigados como leais soldados para a guerra. Portanto, ten­
do recebido a Palavra em nosso coração, com a firme resolução de
obedecê-la, temos uma lâmpada nos recessos de nossa alma, da
mesma forma que se encontra no seio do sacro Livro, e nossa
trajetória será luminosa até o fim.
[v. 107]
Estou muitíssimo aflito; vivifica-me, ó Senhor, consoante tua palavra.
Estou muitíssimo aflito. De acordo com o último versículo,
ele havia jurado como um soldado do Senhor; neste próximo ver­
sículo, ele é chamado a enfrentar dificuldades nessa função. Nos­
so serviço prestado ao Senhor não nos exime de provação, ao con­
trário, ela nos é assegurada. O salmista era um homem consagra­
do, e todavia um homem castigado; e seus castigos não eram le­
ves, pois era como se, quanto mais obediente, mais afligido fosse.
Evidentemente, ele sentia a vara a vergastá-lo com a máxima se-
• 155 •
S alm o 115>

veridade, e ele põe diante do Senhor a gravidade de sua aflição


como uma razão pela qual devesse ser sustentado nela por um
enriquecimento de sua vida interior. Ele fala não numa tonalidade
de murmuração, mas de súplica; no meio de sua profunda aflição
ele insiste em prol de uma profunda vivificação.
Vivifica-me, ó Senhor, consoante tua palavra. Há para a tri­
bulação um remédio superior; a alma é soerguida acima das cogi­
tações da presente angústia, e se enche de santo júbilo que expan­
de todo o vigor da vida espiritual, e assim a aflição se converte em
luz. Jeová somente é capaz de vivificar-nos: ele tem vida em si
mesmo, e por isso pode comunicá-la graciosamente; ele pode dar­
nos vida a qualquer momento; sim, neste exato momento; pois é
da natureza da vivificação ser imediata em sua operação. O Se­
nhor prometeu, preparou e providenciou esta bênção de vida re­
novada a todos os seus servos que nela esperam; é uma bênção
proveniente do pacto, e é tão acessível quanto necessária. A aflição
se faz com freqüência o meio da vivificação, mesmo quando a es­
timulação de um fogo promove o calor da chama. Em sua aflição,
alguns preferem a morte; nós, porém, oramos pela vida. Nossos
pressentimentos, em meio à provação, às vezes se tornam lúgu­
bres demais; então devemos rogar ao Senhor que nos trate, não
consoante nossos temores, mas consoante sua própria Palavra. Davi
tinha apenas umas promessas a citar, e algumas delas se acham
registradas em seus próprios salmos, todavia ele declara a Palavra
do Senhor; quanto mais devemos agir assim, uma vez que tantas
pessoas santas nos têm falado pelo Espírito Santo do Senhor atra­
vés desta maravilhosa biblioteca que hoje é nossa Bíblia! Visto que
temos mais promessas, ofereçamos mais orações e manifestemos
mais do poder vivificante da Palavra.
[v. 108]
Aceita, te rogo, ó Senhor, as espontâneas oferendas de minha boca, e
ensina-me teus juízos.
Aceita, te rogo, ó Senhor, as espontâneas oferendas de mi­
nha boca. Louvor vivo, ao Deus vivo, e com isso o vivificado apre­
senta seu sacrifício. Ele oferece oração, louvor, confissão e teste-
• 156 •
r ~ x P O S iç Â o 1 T

munho; estes, apresentados com sua voz na presença de um audi-


lório, eram o tributo de sua boca, a Jeová. Ele treme, receando que
os mesmos fossem mal expressos causando o desprazer divino, e
por isso implora que sejam aceitos. Roga que a homenagem de
sua boca fosse prestada com alacridade e espontaneamente: todas
suas declarações eram oferendas espontâneas. Não pode haver valor
algum nas confissões obtidas pela violência; as receitas de Deus
não se derivam de impostos forçados, mas de doações espontâne­
as. Não pode haver aceitação onde não há espontaneidade; não
existe qualquer obra da livre graça onde não existe nenhum fruto
da vontade livre. A aceitação é um favor a ser obtido do Senhor,
com toda solicitude, pois sem ela nossas oferendas são piores que
inúteis. Que espantosa graça é que o Senhor aceite algo tão indig­
no como o somos nós!
E ensina-me teus juízos. Ao oferecermos ao Senhor nosso
melhor, nos tornamos ainda mais preocupados em fazer o melhor.
Quando descobrimos que o Senhor nos aceitou, então anelamos
por mais instrução, para que sejamos ainda mais aceitáveis. Após
a vivificação, necessitamos de aprender mais: a vida sem luz, ou o
zelo sem conhecimento, seria menos de meia bênção. Esses reite­
rados clamores por instrução revelam a humildade do homem de
Deus, e também traz a lume nossa própria necessidade de seme­
lhante instrução. Nosso juízo deve ser educado até que saibamos,
concordemos e ajamos em consonância com os juízos do Senhor.
Esses juízos nem sempre são assim tão claros que sejam percebi­
dos imediatamente; necessitamos de ser instruídos neles até admi­
tirmos sua sabedoria e adorarmos sua bondade tão logo as perce­
bamos.
fv. 109]
Minha alma está continuamente em minha mão; todavia não me es­
quecerei de tua lei.
Minha alma está continuamente em minha mão. Ele vivia
em meio aos perigos. Tinha de estar sempre lutando pela existên­
cia —escondendo-se em cavernas, ou digladiando-se nas batalhas.
Essa é uma condição de vida muito desconfortável e dolorosa, e o
• 157-
Salm o 115?

ser humano está sempre pronto a inventar algum expediente justi­


ficável pelo qual possa pôr termo a tal condição. Davi, porém, não
procurava achar segurança no pecado, pois diz:
Todavia não me esquecerei de tua lei. Ouvimos que todas as
coisas são lícitas no amor e na guerra; aquele santo homem, po­
rém, não pensava assim: enquanto levava sua vida em sua mão,
também levava a lei de Deus em seu coração. Não há perigo para
o corpo que nos faça pôr em risco nossa alma pelo esquecimento
do que é certo. A tribulação tende a levar as pessoas a esquecerem
seu dever, e teria o mesmo efeito sobre o salmista não houvera
obtido a vivificação (v. 107) e o ensino (v. 108). Ele sentia-se se­
guro em recordar a lei do Senhor; e com certeza não se esquecia
de seu Deus, porquanto este jamais se esquecia do salmista. E
uma prova especial da graça quando nada consegue desviar a ver­
dade de nossos pensamentos, nem a santidade de nossas vidas. Se
nos lembrarmos da lei, ainda quando a morte nos desvende sua
face, podemos nutrir toda certeza de que o Senhor nos tem em
sua memória.
iv. 1 1 0 ]
O s ímpios me armaram uma rede; todavia não me desviei de teus
preceitos.
Os ímpios me armaram uma rede. A vida espiritual é o cená­
rio de perigo constante: o crente vive com sua vida em sua mão,
enquanto tudo parece tramar arrebatá-la dele, através de astúcia,
caso não possa fazê-lo pela violência. Não acharemos nada mais
difícil de se fazer do que viver uma vida de fidelidade. Os espíritos
perversos e os homens ímpios não deixarão sequer uma pedra no
lugar visando a nossa destruição. Quando todos os engenhos fra­
cassam, e ainda os poços ocultos não surtem efeito, os ímpios ain­
da perseverarão em seus traiçoeiros empenhos, tornando-se ainda
mais astutos, armando redes para as vítimas de seu ódio. Os me­
nores gêneros de jogos são geralmente usados por este método:
laço, armadilha, rede ou cilada. Os ímpios são totalmente indife­
rentes quanto à maneira como poderão destruir a pessoa de bom
coração; não pensam dela nada superior a um coelho ou um rato.
• 158 •
JjjçposiçÃo H
A astúcia e a traição são sempre os aliados da malícia, e tudo quanto
tenha a aparência de generosidade ou sentimento de fidalguia é
totalmente desconhecido entre os que são destituídos da graça,
que tratam os santos como se fossem vermes que têm de ser exter­
minados. Quando uma pessoa sabe que é assim assaltada, ela é
também suscetível de tornar-se timorata e de inventar precipita­
damente um meio de livramento, não sem pecar na tentativa; Davi,
porém, calmamente se mantinha em seu caminho e foi capaz de
escrever:
Todavia não me desviarei de teus preceitos. Não caíra numa
armadilha por manter seus olhos abertos e bem perto de Deus.
Não fora enredado nem roubado, visto que seguia a reta estrada
do Rei, que é de santidade, onde Deus garante segurança a todo
transeunte. Não se desviara da retidão, e não fora impedido de
segui-la, porque atribuía ao Senhor sua orientação, e assim a ob­
teve. Se nos desviarmos dos preceitos, não temos parte nas pro­
messas; se fugirmos da presença de Deus, vaguearemos por an­
tros inóspitos, onde os caçadores livremente espalham suas redes.
A luz deste versículo, aprendamos a viver em guarda, pois também
temos inimigos, tão astutos como ímpios. Os caçadores espalham
suas armadilhas por onde geralmente os animais passam, e nossas
piores armadilhas são armadas em nossos próprios caminhos. Ao
conservarmo-nos nos caminhos do Senhor, estaremos também
escapando das redes de nossos adversários, pois os caminhos do
Senhor são seguros e livres de traição.
[v. 111]
Teus testemunhos os tenho por herança, para sempre, porque são o
júbilo de meu coração.
Teus testemunhos os tenho por herança, para sempre. Ele os
escolheu como sua sorte, sua porção, sua condição; e o que é mais:
ele se manteve firme neles e fez deles sua possessão e júbilo. A
escolha de Davi é também a nossa. Se pudermos ter o que deseja­
mos, então que desejemos guardar perfeitamente os mandamen­
tos de Deus. Conhecer a doutrina, desfrutar da promessa, praticar
o mandamento - eis um reino suficientemente amplo para nós.
• 159 •
5alm o 115»

Aqui temos uma herança que não pode fenecer nem ser alienada;
ela dura para sempre e será eternamente nossa, se é que temos
tomado posse dela. As vezes, como Israel em seu primeiro ingres­
so em Canaã, temos que tomar posse de nossa herança pela via de
dura luta, e quando é assim, ela é digna de todo nosso labor e
sofrimento; mas ela terá sempre de ser apossada por uma escolha
decidida do coração e pelas garras da vontade. E preciso que a
eleição divina seja também a nossa eleição. O que Deus dá pela
graça temos de tomar posse pela fé.
Porque são o júbilo de meu coração. O júbilo que lhe veio
através da Palavra do Senhor o levou a fazer uma escolha inalterá­
vel dela. Todas as partes da Escritura despertavam prazer em Davi,
e ainda continuavam, e por isso ele as mantinha e pretendia tê-las
em sua posse para sempre. Aquilo que traz regozijo ao coração
merece ser escolhido e entesourado. Não é o conhecimento inte­
lectual, e, sim, a experiência do coração que traz a genuína alegria.
Neste versículo, que é o sétimo de sua oitava, atingimos a mes­
ma suavidade do sétimo da última oitava (103). E digno de obser­
vação que, em diversas das sétimas contíguas, o deleite é evidente.
Quão deleitoso é quando a experiência se aprimora na alegria,
passando pelo sofrimento, oração, conflito, esperança, decisão, e
o santo contentamento culmina no regozijo! A alegria firma o es­
pírito. Quando uma vez o coração humano se regozija na divina
Palavra, ele grandemente a valoriza, e por isso se mantém para
sempre unido a ela.
[v. 112]
Inclinei meu coração a guardar teus estatutos, para sempre, até o fim.
Ele era ativo e enérgico em dominar seu próprio coração. Não
só podia dizer: “Estou inclinado”, mas: “Tenho inclinado.” Não
estava meio inclinado para a virtude, mas sinceramente inclinado
para ela. Seu coração inteiro se inclinava para a santidade prática
e persistente. Estava resolvido a guardar todos os estatutos do
Senhor, de todo seu coração, ao longo de todo seu tempo, sem
desviar-se e sem deter-se. Ele tomou como seu objetivo máximo,
guardar a lei até o fim, e isso sem desistir. Através da oração, da
• 160 •
\ 'x p o s i ç ã o H-

meditação e da resolução, ele inclinara todo seu ser para os man­


damentos de Deus; ou, como diríamos em outros termos: a graça
de Deus o inclinara para que seu coração se inclinasse numa dire­
ção santificada. Muitos são inclinados a pregar; o salmista, po­
rém, estava inclinado à praxe. Muitos são inclinados a realizar ce­
rimônias; ele, porém, estava inclinado a cumprir os estatutos divi­
nos. Muitos estão inclinados a obedecer ocasionalmenle; Davi,
porém, estava inclinado a obedecer sempre. E, infelizmente, mui­
tos estão inclinados à religião temporária; este santo homem, po­
rém, estava tão inclinado, que se sentia obrigado, por toda a eter­
nidade, a cumprir os estatutos de seu Senhor e Rei. Senhor, envia-
nos essa celestial inclinação do coração; e então demonstraremos
que nos vivificaste e nos instruíste. Para esse fim, cria em nós um
coração puro, e renova diariamente, em nosso íntimo, um espírito
reto; pois somente assim nos inclinaremos na direção certa.
Muitos se têm inclinado quando percebem que ali estão as
melhores coisas; que o Senhor assim governe nossos corações para
que jamais percamos a irrestrita inclinação para o viver santo!
P X P Q 51Ç Â Q Y)

(w. 113-120)
Odeio os pensamentos vãos, porém amo tua lei. Tu és meu refúgio e
meu escudo; espero em tua palavra. Afastai-vos de mim, malfeitores,
pois guardarei os mandamentos de meu Deus. Sustenta-me consoante
tua palavra, para que eu possa viver, e não me deixes frustrado em
minha esperança. Sustenta-me, e serei salvo; e continuamente terei
respeito por teus estatutos. Tu tens pisado aos pés todos os que se des­
viam de teus estatutos, pois a ilusão deles é a falsidade. Tu tiraste da
terra todos os ímpios, como a escória; por isso amo teus testemunhos.
Minha carne estremece de temor por ti; e eu tenho temido teus juízos.
Esta oitava, cuja letra inicial é Samech, ou S., se assemelha a
Sansão em sua morte, quando se apoia nas colunas do edifício e o
faz desabar sobre os filisteus. Assinala como ele se agarra às colu­
nas do poder divino, com o clamor: “Sustenta-me”, e “Dá-me tua
força”, e vê como o edifício desaba, como o juízo divino, sobre os
ímpios! “Tu tiraste da terra todos os ímpios, como a escória.” Esta
seção conduz à guerra no país do inimigo e exibe o crente como
guerreando contra a falsidade e a iniqüidade.
[v. 113]
Odeio os pensamentos vãos, porém amo tua lei.
Neste parágrafo, o salmista trata dos pensamentos, coisas e
pessoas que se opõem aos santos pensamentos e caminhos de
Deus. Ele é evidentemente movido de profunda indignação con­
tra os poderes das trevas e seus aliados; e toda sua alma se agita
e se lhes opõe com determinada oposição. Precisamente como
ele começou com a oitava, no versículo 97: “Oh, como amo tua
lei!”, assim ele começa aqui com a declaração de intenso amor;
mas o prefacia com uma declaração igualmente fervorosa de ódio
• 162 •
H X P O S IÇ Â O D

contra aquele que transgride a lei. O oposto do testemunho fixo


e infalível de Deus é o oscilante e mutável pensamento dos ho­
mens. Davi sentia um completo desprezo e aversão pelas vãs opi­
niões da conceituada sabedoria humana; toda sua reverência e
respeito se centravam na infalível Palavra da veracidade divina.
Em proporção a esse amor pela lei estava seu ódio pelas maqui­
nações humanas. A palavra ‘vãos’ é mui apropriadamente usada
pelos tradutores; pois a palavra original significa “coxear entre
dois pensamentos”, e daí inclui as dúvidas dos cépticos. Os pen­
samentos dos homens são vaidade; porém os pensamentos de
Deus são a pura verdade. Ouvimos muito nos dias atuais de “ho­
mens de pensamento”, “mestres pensadores” e “pensamento
moderno”. O que é isso senão a antiga soberba do coração hu­
mano? O homem fútil deve aprender a ser sábio. O salmista não
se gloria em seus pensamentos; e aquilo que ele chamou ‘pensa­
mento’, em seus dias era algo de que detestava. Quando o ho­
mem pensa que seus pensamentos são melhores, mais elevados,
estes se encontram muito abaixo dos pensamentos da revelação
divina, como abaixo está a terra dos céus. Alguns pensamentos
são especialmente fúteis no sentido de vanglória, soberba, pre­
conceito e autoconfiança; outros, no sentido de atrair desapon­
tamento, tal como a ambição crédula, a esperança infundada e a
confiança proibida no homem. Muitos pensamentos são vãos no
sentido de vacuidade e frivolidade, tais como os sonhos infunda­
dos e os romances inglórios aos quais tantos se entregam. Uma
vez mais, muitos pensamentos são vãos no sentido de ser peca­
minosos, nocivos e tolos. O salmista não é indiferente aos maus
pensamentos como fazem os inconseqüentes; porém mirava es­
tes com um ódio tão real como era o amor com que ele aderia
aos pensamentos puros de Deus.
A última oitava pertence à esfera prática; esta pertence à esfera
da reflexão íntima. Naquela, o homem de Deus atentava para seus
pés; e nesta, para seu coração. As emoções da alma são tão impor­
tantes como os atos da vida, pois eles são a fonte e fluxo donde
procedem nossas ações. Quando amamos a lei, ela se torna uma
lei de amor, e aderimos a ela de todo nosso coração.
• 163 •
S a lm o 11?

[v. 114]
Tu és meu refúgio e meu escudo; espero em tua palavra.
Tu és meu refúgio e meu escudo. Deus era seu refúgio e escu­
do. Ele corria para seu Deus a fim de escapar dos pensamentos
vãos; ali ele se escondia de sua tormentosa intrusão, e em solene
silêncio da alma encontrava em Deus seu santuário. No burburi­
nho do mundo, se não pudesse ficar a sós com Deus como um
lugar de refúgio, o homem de Deus podia ter consigo o Senhor
como seu escudo, e por esse meio ele podia precaver-se das fle­
chas peçonhentas da má insinuação. Este é um versículo experi­
mental, e testifica daquilo que o escritor sabia de seu próprio co­
nhecimento pessoal: não podia fugir de seus próprios pensamen­
tos, nem escapar deles, enquanto não fugisse para seu Deus e ali
encontrasse livramento. Observe que ele não fala da Palavra de
Deus como sendo sua dupla defesa, mas atribui sua proteção a
Deus mesmo: “Tu és meu refúgio e meu escudo.” Quando nos
virmos cercados por assaltos espirituais sutis, tais como aqueles
que surgem dos pensamentos vãos, faremos bem em fugir direta­
mente para a presença real de nosso Senhor, escondendo-nos em
seu poder e amor. O Deus verdadeiro, realmente compreendido, é
a morte da falsidade. Feliz quem pode realmente dizer ao Deus
Triúno: “Tu és meu refúgio e meu escudo!” Ele é quem contempla
Deus dentro daquele glorioso aspecto pactuai que assegura ao que
contempla a mais forte consolação.
Eu espero em tua palavra. Ao máximo que ele pudesse, visto
que a experimentava e a provava. Aquilo que foi verdadeiro no
passado, podia ser objeto de confiança para o futuro. O salmista
procurava proteção contra todo perigo, bem como a preservação
contra toda tentação, no Senhor que fora a torre de sua defesa em
toda ocasião. E fácil exercer esperança onde temos experimentado
o socorro. As vezes, quando lúgubres pensamentos nos afligem, a
única coisa que podemos fazer é esperar; e, felizmente, a Palavra
de Deus sempre põe diante de nós objetos de esperança, razões
para esperança e acenos da esperança, em abundância tal que ela
se torna a própria esfera e suporte da esperança, e assim os pensa­
mentos timoratos e tentadores são vencidos. Em meio aos aborre -
• 164 •
Y X P Q S IÇ Ã O \f>

cimentos e preocupações, nutrir esperança do céu é um golpe íinal


e eficaz contra os mesmos.
[v. 115]
Afastai-vos de mim, malfeitores, porque guardarei os mandamentos
de meu Deus.
Afastai-vos de mim, malfeitores. Os que estão bem cientes de
seus pensamentos não se dispõem a tolerar a má companhia. Se
fugirmos para Deus, procurando escapar dos pensamentos vãos,
muito mais evitaremos os homens levianos. Os reis são por demais
propícios a deixar-se cercar por certa classe de bajuladores, e ao
mesmo tempo se dão o direito de transgredir as leis de Deus. Davi
purgou seu palácio de tais parasitas; ele não os acolheria sob seu
teto. Não admira que atraíssem sobre ele um mau nome; pois seus
feitos lhe eram imputados, uma vez que os atos dos cortesãos ge­
ralmente são dados como atos da própria corte; portanto o rei os
enxotou, com armas e bagagens, dizendo: “Afastai-vos de mim.”
Com isso ele antecipou a sentença do último grande dia, quando o
Filho de Davi disser: “Apartai-vos de mim, obreiros da iniqüida-
de.” Não podemos com isso despachar lodos os malfeitores de
nossos lares, mas é possível que, em ocasião própria, sejamos obri­
gados a agir dessa maneira. O direito e a razão demandam que
não devemos permitir ser importunados por servos incorrigíveis
ou inquilinos sem crédito. Uma casa é de todos o melhor lugar
para abrigar mentirosos, larápios, vagabundos obscenos e caluni­
adores. Onde podemos escolher nossos próprios companheiros,
somos obrigados, sob quaisquer riscos, a manter-nos limpos de
associados duvidosos. Assim que tivermos motivo de crer que seu
caráter é vicioso, ser-nos-á preferível ter seu espaço desocupado
do que sua companhia importuna. Malfeitores são maus conse­
lheiros, e por isso não devemos assentar-nos com eles. Os que
dizem a Deus: “Afasta-te de nós” devem ouvir imediatamente o eco
de suas próprias palavras procedentes dos lábios dos filhos de Deus,
dizendo-lhes: Afastem-se de nós.” Não podemos comer pão com
traidores, a fim de não sermos também acusados de alta traição.
Porque guardarei os mandamentos de meu Deus. Já que ele
• 165 •
S a lm o 1Q

achava difícil guardar os mandamentos do Senhor na companhia


dos ímpios, então deu-lhes ordem de desocupação. Ele guardaria
os mandamentos; e assim não era obrigado a manter a companhia
dos malfeitores. Que glorioso título para o Senhor contém este
versículo: “meu Deus!” A palavra Deus só ocorre neste único lugar
ao longo deste extenso Salmo; e então se acha acompanhada da
palavra pessoal ‘meu’ —“meu Deus.”
M eu Deus! - Quão encantador isso soa!
Que delícia é isso repetir!
N o coração, alegremente, reboa,
Onde Deus fixou seu trono e o faz sentir.

Uma vez sendo Jeová nosso Deus, portanto resolvemos obe­


decê-lo e lançar fora de nossa vista aqueles que nos prejudicam
em seu serviço. E algo maravilhoso para a mente chegar a uma
firme decisão e manter solidamente fixo com santa determinação:
“Guardarei os mandamentos de meu Deus.” A lei de Deus é o
nosso deleite, já que o Deus da lei é 0 nosso Deus.
[v. 116 ]
Sustenta-me consoante tua palavra, para que eu possa viver; e não me
deixes frustrado em minha esperança.
Sustenta-me consoante tua palavra, para que eu possa vi­
ver. Era tão necessário que o Senhor sustentasse seu servo, que
ele nem mesmo podia viver sem sua Palavra. Nossa alma morreria,
e toda a graça da vida espiritual também extinguiria, caso o Se­
nhor lhe negasse sua mão mantenedora. E mui doce conforto que
essa grande necessidade de sustento esteja oferecida na Palavra, e
não temos que pedi-la com base numa mercê não prometida, mas
simplesmente implorar pelo cumprimento da promessa, dizendo:
“Sustenta-me consoante tua palavra.” Aquele que nos deu vida
eterna, nesse dom nos assegurou tudo o que nos é essencial até
aqui; e sustento gracioso é aquele que tange às coisas necessárias;
portanto, estejamos certos de que o teremos. Note que, quando
Davi se viu livre dos malfeitores, nem por isso se sentiu seguro
quando sozinho. Sabia que necessitava de ser preservado em sua
• 166 •
S ^ X P O S IÇ Ã O

própria fraqueza da forma como se viu livre do mau exemplo dos


maus, e assim orou pela graça que nutre e sustenta.
E que eu não seja frustrado em minha esperança. No versí­
culo 114, ele menciona sua esperança como que fundamentada na
Palavra do Senhor, e agora roga pelo cumprimento da promessa,
para que sua esperança fosse justificada aos olhos dos homens.
Uma pessoa se sente logo frustrada em sua esperança se esta não
possui base sólida; mas isso jamais sucederá em nosso caso, visto
que confiamos num Deus fiel. Podemos ser frustrados em nossos
pensamentos, em nossas palavras, em nossos atos, porquanto eles
fluem de nós mesmos; jamais, porém, nos envergonharemos de
nossa esperança, porquanto ela flui do Senhor. Podemos, com ra­
zão, envergonhar-nos de nossa dúvida, porém não precisamos ja­
mais envergonhar-nos de nossa esperança, dal é a fragilidade de
nossa natureza que, a menos que sejamos continuamente susten­
tados pela graça, cairíamos tão abominavelmente, que nos enche­
ríamos de pasmo e vergonha de nós mesmos, e nos dominaria a
frustração de todas aquelas graciosas esperanças que ora são a
coroa e a glória de nossa vida. Esse pode ser o caso até mesmo da
solidão: quando os malfeitores se vão, podemos ainda cair vítimas
de nossos tolos temores. O homem de Deus tinha firmado sólida
resolução, mas não podia confiar em suas próprias resoluções,
por mais solenes fossem elas; daí essas orações. Não é errôneo
tomar resoluções, mas é inútil fazê-las se não as temperarmos bem
com convictos clamores a Deus. Davi pretendia guardar a lei do
Senhor, mas, antes, era preciso que o Senhor da lei o guardasse!
[v. 117]
Sustenta-me, e eu serei salvo; e continuamente terei respeito por teus
estatutos.
Sustenta-me - como uma babá sustenta uma criancinha. E eu
serei salvo, não outro. Pois a menos que tu me sustentes, cairei
como uma criancinha que não tem firmeza em suas pernas. Fo­
mos salvos pela graça passada, mas ainda não estamos a salvo, a
menos que recebamos a graça presente. Realmente necessitamos
desta bênção em toda forma em que ela porventura nos venha,
• 167 •
S a lm o 115*

pois nossos adversários buscam, de todas as formas, lançar-nos


fora do caminho. Estar salvo é uma feliz condição; só há um cami­
nho para ela, ou seja, pelo sustento divino. Graças a Deus que esse
caminho está aberto para o mais frágil dentre nós.
“Sustenta-me” pode ser também uma súplica para a elevação
da mente. “Mais perto quero estar, meu Deus, de ti”, é a mesma
oração. Devemos ser soerguidos acima do ego e do pecado e de
tudo o que avilta; só então é que estaremos com certeza a salvo.
E continuamente terei respeito por teus estatutos. Sendo as­
sim sustentados, então obedecemos; e, ao obedecer, estamos a sal­
vo. Ninguém, externamente, guardará os estatutos do Senhor, a
menos que nutra um profundo e íntimo ‘respeito’ por eles; e isso
jamais se dará, a menos que a mão do Senhor sustente perpetua­
mente o coração em santo amor. Perseverança até o fim, ou obedi­
ência contínua, só vem através do poder divino; nos desviaremos
como a flecha num arco defeituoso, a menos que sejamos guarda­
dos por aquele que, antes, nos deu a graça. Feliz a pessoa que
aplica este versículo ao longo de sua vida; sustentada ao longo de
toda sua vida, num curso de invariável integridade, ela se torna
uma “pessoa salva”, uma pessoa confiante. Tal pessoa salva mani­
festa uma sacra sensibilidade de consciência que é estranha a ou­
tros. Ela sente um terno ‘respeito’ pelos estatutos do Senhor, que
a guardam pura das inconsistências e conformidade com o mundo
que são tão comuns entre os outros. Então se torna uma coluna na
casa do Senhor. Infelizmente conhecemos alguns professos que
não são retos, e por isso se inclinam para o pecado, e ainda caem
nele; ainda quando são restaurados e novamente estabelecidos,
nunca estão salvos nem são confiáveis e tampouco têm aquela doce
pureza de alma que é o encanto daqueles que têm sido guardados
de cair no lamaçal.
[v. 118]
Tu tens pisado aos pés todos os que se desviaram de teus estatutos; pois
a ilusão deles é a falsidade.
Tu tens pisado aos pés todos os que se desviaram de teus
estatutos. Não há proteção para eles; são precipitados abaixo, e
• 168 •
P X P Q 5 IÇ A Q D

então pisados; pois escolheram precipitar-se nos tortuosos cami­


nhos do pecado. Mais cedo ou mais tarde, Deus porá seu pé no
pescoço daqueles que volvem seu calcanhar contra os santos man­
damentos. Foi sempre assim, e sempre será até o fim. Se o sal
perder seu sabor, para nada mais presta senão para ser pisado sob
os pés. Deus consome os ímpios como a escória, os quais só ser­
vem para deitar fora como o cascalho que é pisado.
Pois sua ilusão é a falsidade. Chamam-na plano de previdên­
cia, mas é falsidade absoluta, e será tratada como tal. Os homens
ordinários chamam-na diplomacia inteligente, mas o homem de
Deus a chama pelo próprio nome, e a declara ser falsidade, e nada
menos que isso; pois ele sabe que ela é assim aos olhos de Deus.
As pessoas que se desviam da rota certa inventam atraentes escu­
sas com que enganar a si e a outros, e assim tentam tranqüilizar
sua consciência e manter seu crédito; mas sua máscara de falsida­
de é por demais transparente. Deus calca aos pés as falsidades; só
servem para ser tratadas a pontapés e esmagadas no pó. Horrivel­
mente serão tratados os que gastam toda sua vida maquinando
uma religião de confeitaria, quando a veem toda pisoteada por
Deus como uma impostura que não pode durar!
[v. 119]
Tu tiraste da terra todos os ímpios, como a escória; por isso amo teus
testemunhos.
Tu tiraste da terra todos os ímpios, como a escória. Ele não
regateia com eles, nem os trata com luvas de pelica. Não, eles os
julga como refugo da terra, e os trata da maneira merecida, lan­
çando-os para longe. Ele os expulsa de sua igreja, longe de suas
honras, longe da terra e, por fim, longe dele próprio. “Apartai-vos
de mim”, diz ele, “malditos.” Se mesmo uma pessoa boa se sente
forçada a afastar de si os malfeitores, muito mais o Deus três vezes
Santo expulsará os ímpios. Pareciam metal precioso, se confundi­
am intimamente com ele, estavam postos na mesma pilha; o Se­
nhor, porém, é um purificador, e cada dia ele remove alguns dos
ímpios do meio de seu povo, seja pela vergonha de descobrirem
sua hipocrisia ou consumindo-os da face da terra. São removidos
• 169 •
S a lm o 1lp

como a escória, nunca mais serão lembrados. Como o melhor para


o metal é a perda de sua liga, assim o melhor para a igreja é a
remoção dos ímpios. Esses ímpios são “deste mundo” - “os ímpi­
os da terra” —, e não têm nenhum direito de estar com aqueles que
“não são deste mundo”; o Senhor vê que estão fora de lugar e são
injuriosos, e por isso os tira fora, iodos eles, não deixando nenhum
deles deteriorar seu povo. O processo um dia será aperfeiçoado;
nenhuma escória será poupada, e nem se permitirá que o ouro seja
impuro. Onde estaremos nós quando a grande obra for finalizada?
Seremos entesourados com o ouro, ou pisoteados com a escória?
Por isso eu amo teus testemunhos. Mesmo a severidade do
Senhor desperta o amor de seu povo. Se ele permitisse os homens
pecarem impunemente, então não seria tão plenamente o objeto
de nossa amorável admiração. Ele é glorioso em santidade, por
isso livra seu reino dos rebeldes e seu templo, daqueles que o ma­
culam. Nestes dias maus, quando o castigo divino sobre os peca­
dores se tornou motivo de soberbo cepticismo, podemos conside­
rar como uma marca do verdadeiro filho de Deus o fato de que ele
não ama menos o Senhor, mas uma grande medida a mais, por
causa de seu condigno juízo dos ímpios. Valorizamos grandemen­
te aquelas passagens da Escritura que são mais terríveis em sua
denúncia do pecado e dos pecadores. Amamos aqueles testemu­
nhos que predizem a ruína do mal e a destruição dos inimigos de
Deus. Um Deus mais indulgente seria um Deus menos amante e
menos amado. Os corações santos amam mais um Deus perfeita­
mente justo.
[v. 120]
Minha carne estremece de temor por ti; e eu tenho temido teus juízos.
Minha carne estremece de temor por ti. Ele não exultava no
castigo que era desferido sobre outros, mas estremecia acerca de
si próprio. Tal era sua reverente admiração na presença do Juiz de
toda a terra, sobre cujo juízo ele acabara de ponderar, ou, seja,
que ele nutria extremo temor e tremor. A familiaridade com Deus
arrancara dele uma santa admiração. Até mesmo a parte mais gros­
seira da pessoa de Davi, sua carne, sentia uma tão solene expecta-
• 170 •
jÃçposiçÃo lj?
ção em sua mente, temendo ofender Aquele que é tão bom e tão
imenso, que se dispunha a expulsar de vez os ímpios dentre os
justos. Ah! miserável carne, isso é o de mais sublime que você não
logrou alcançar! Todavia isso é muito melhor que sua soberba quan­
do você se exalta contra teu Criador.
E eu tenho temido teus juízos. As palavras do Deus do juízo
são solenes, e seus feitos de juízo são terríveis; eles nos arrancam
temores e tremores. No pensamento do juiz de todos —seus olhos
penetrantes, seus livros de registro, seu dia de inquérito judicial,
sua terrível sentença e a execução de sua justiça - faremos bem em
clamar por pensamentos, corações, caminhos puros, a fim de que
os juízos sejam mais leves contra nós. Quando vemos o grande
Purificador separando o precioso do vil, é possível que sintamos
um santo temor, receando ser expulsos de sua presença e pisotea­
dos sob a planta de seus pés. Mesmo seus juízos, como os encon­
tramos na Palavra, nos enchem de tremor; e isso se nos afigura
como uma evidência da graça. O que será, porém, quando seus
juízos forem concluídos? Oh! tremor e temor, que serão a eterna
porção daqueles que baterão de encontro com o Jeová dos Exérci­
tos, desafiando sua ira!
O amor, no versículo anterior, é plenamente consistente com o
temor, neste versículo: o temor que atormenta é eliminado, mas
não o temor filial que conduz à reverência e obediência.

• 171 •
(w. 121-128)
Tenho exercido juízo e justiça; não me abandones ao poder de meus
opressores. Sê o fiador de teu servo para o bem; não deixes que os
soberbos me oprimam. Meus olhos desfalecem por tua salvação e pela
palavra de tua justiça. Trata teu servo consoante tua misericórdia, e
ensina-me teus estatutos. Eu sou teu servo; dá-me entendimento, para
eu discernir teus testemunhos, fá é tempo, ó Senhor, de agires; pois eles
têm invalidado tua lei. Por isso amo teus mandamentos mais que o ouro,
sim, mais que o ouro depurado. Por isso estimo todos teus preceitos con­
cernentes a todas as coisas que são retas; e odeio todo caminho falso.
Nesta oitava o salmista, antes de tudo, implora ao Senhor que
interfira em seu favor: solicita o juízo do grande Rei, ainda quan­
do ele mesmo distribuía justiça entre seu povo. Então declara seu
contentamento sincero e irrestrito com todos os mandamentos e
preceitos do Senhor, e roga-lhe que defenda sua própria lei. Es­
creve do ponto de vista de sua experiência oficial. Em nossa posi­
ção pública, tanto quanto em nossa posição privada, a Palavra de
Deus é extremamente preciosa.
[v. 121]
Tenho exercido juízo e justiça; não me abandones ao poder de meus
opressores.
Tenho exercido juízo e justiça. Isso era algo muito importante
para um governante oriental dizer naquele tempo; pois a maioria
desses déspotas se preocupava mais com lucro do que com justiça.
Alguns deles negligenciavam totalmente seu dever, e o juízo não
estava de forma alguma em sua cogitação, preferindo seus deleites
a seus deveres; e a maioria deles vendia seus juízos a quem pagas­
se mais, aceitando subornos ou levando em conta a posição social
• 172 •
IM P O S IÇ Ã O 16

dos homens. Alguns governantes não ministravam nem juízo nem


justiça; outros ministravam juízo sem justiça. Davi, porém, minis­
trava juízo e justiça, e cuidava para que suas sentenças fossem
executadas. Ele podia alegar diante do Senhor que havia distri­
buído justiça e continuava a distribuí-la. Sobre este fato ele basea­
va uma súplica com a qual apresentava a oração:
Não me abandones ao poder de meus opressores. Aquele
que, quanto está em seu poder, vive fazendo o bem pode ter espe­
rança de ser libertado de seus opressores quando tentam de todas
as formas prejudicá-lo. Se eu não oprimir outros, posso orar espe­
rançosamente de que a outros não se permitirá oprimir-me. Uma
vida de conduta íntegra é o que nos faz ousados em apelar para o
Grande Juiz, para que nos livre da injustiça dos homens maus.
Tampouco se deve censurar esse tipo de súplica, como sendo au-
tojustiça; é uma oração muito apropriada e aceitável. Quando nos
pomos diante de Deus e falamos com ele sobre nossas insuficiên­
cias, usamos um tom bem diferente daquele com que encaramos
as censuras de nosso semelhante. Quando acusações injustas es­
tão em foco, e somos limpos de culpa aos olhos de nossos acusa­
dores, então estamos certos em apresentar nossa inocência. A in­
tegridade moral é um grande amparo para nosso conforto espiri­
tual. Se somos íntegros em nossa conduta, podemos estar certos
de que o Senhor não nos abandonará, e certamente não nos dei­
xará à mercê de nossos inimigos.
fv. 122]
Fica por Fiador de teu servo para o bem; não deixes que os soberbos
me oprimam.
Fica por Fiador de teu servo para o bem. Esse foi o clamor de
Jó e de Ezequias, e é o clamor de cada alma que crê no grande
Intercessor e Ancião de Dias. Responde-me. Não deixes teu hu­
milde servo morrer nas mãos de seus e teus inimigos. Toma meus
interesses e os entrelaces com os teus e cuida de mim. Como meu
Senhor, faz prevalecer a causa de teu servo e representa-me ante a
face dos homens arrogantes, até que percebam que augusto aliado
eu tenho no Senhor meu Deus. Nossa suprema salvação vem da
• 173 •
S a lm o 11?

fiança divina. O Filho de Deus, como nosso Fiador, sofreu as con-


seqüências em nosso lugar, e com isso nos tem feito o bem e nos
salvou de nosso arrogante opressor, o arqui-inimigo de nossas almas.
Neste versículo, não temos a menção da lei em qualquer de
seus muitos títulos, e este é o único exemplo, em todo o Salmo, em
que um versículo omite a menção da Palavra do Senhor. Todavia,
essa não é nenhuma exceção ao espírito da regra; pois aqui encon­
tramos menção de nosso Fiador, o qual é o cumprimento da lei.
Onde a lei fracassa, temos Cristo, o Fiador de um pacto superior.
Essa fiança é sempre para o bem, mas quanto de bem nenhuma
língua pode dizer.
Não deixes que os soberbos me oprimam. Tua interposição
corresponderá ao propósito de meu resgate; quando os soberbos
perceberem que tu és meu Advogado, cobrirão suas cabeças. Terí­
amos sido esmagados debaixo de nosso soberbo adversário, o di­
abo, se nosso Senhor Jesus não se interpusesse entre nós e o acu­
sador, e não se tornasse nosso Fiador. E através de sua fiança que
escapamos como um pássaro escapa da rede do caçador. Que bên­
ção podermos deixar nossos problemas nas mãos de nosso Fia­
dor, sabendo que tudo estará bem, já que ele tem uma resposta
para cada acusador, uma repreensão para cada injuriador.
Os homens bons têm pavor da opressão, pois ela faz demente
até mesmo a pessoa mais sábia, e enviam ao céu seus clamores por
livramento; tampouco clamam em vão, pois o Senhor se encarre­
gará da causa de seus servos, e enfrenta suas batalhas contra os
soberbos. A palavra ‘servo’ é sabiamente usada como uma súplica
em favor de si próprio, e a palavra ‘soberbo’ é usada como argu­
mento contra seus inimigos. Parece inevitável que os soberbos se
tornem opressores, e que eles se deleitem em oprimir os verdadei­
ros servos de Deus. Suas opressões logo se desvanecerão, porque
elas são opressões, já que seus obreiros são soberbos e já que seus
objetos são os servos do Senhor. .
[v. 123]
Meus olhos desfalecem por tua salvação e pela palavra de tua justiça.
Meus olhos desfalecem por tua salvação. Ele chorava, espe­
• 174 •
J jà ç P O S IÇ Ã O l é

rava, vigiava pela mão salvífica de Deus, e esses exercícios subme­


tiam os olhos de sua fé quase ao desvanecimento. Ele olhava uni­
camente para Deus; seu olhar era ávido; olhava para o horizonte
longínquo; tanto que seus olhos ardiam. A misericórdia consiste
no fato de que, se nossos olhos ofuscarem, Deus não falhará, nem
seus olhos ofuscarão. Os olhos são órgãos sensíveis; assim tam­
bém nossa fé, esperança e expectativa. O Senhor não nos provará
além do que somos capazes de suportar.
E pela palavra de tua justiça. Palavra esta que silenciaria as
injustas acusações de seus opressores. Seus olhos, bem como seus
ouvidos, aguardavam pela Palavra do Senhor. Ele procurava divi­
sar a Palavra divina manifestando-se como um fiai em seu livra­
mento. Ele “aguardava pelo veredicto” —o veredicto da própria
justiça. Quão felizes somos quando temos a justiça do nosso lado!
Porquanto aquilo que é o terror do pecador é esperança nossa;
aquilo que aterroriza o soberbo é nossa expectativa e deleite. Davi
deixou sua reputação inteiramente nas mãos do Senhor, e ansiava
por ver tudo esclarecido pela palavra do Juiz, em vez de escudar-
se em qualquer defesa de sua parte. Ele sabia que tinha agido cor­
retamente, e portanto, em vez de evitar a suprema corte, rogava
pela sentença que, ele sabia, operaria seu livramento. Ainda vigia­
va com olhares ávidos pelo juízo e pelo livramento, pela palavra de
justiça de Deus, a qual significava salvação para si próprio.
[v. 124]
Trata teu servo segundo tua misericórdia, e ensina-me teus estatutos.
Trata teu servo segundo tua misericórdia. Aqui ele recorda
de si mesmo; ainda que diante dos homens ele se achasse tão lim­
po que podia desafiar a palavra de retidão, todavia, diante do Se­
nhor, como seu servo, ele sentia-se em necessidade de apelar para
a misericórdia. Neste ponto sentimos a maior segurança. Nosso
coração se sente mais seguro em clamar: “O Deus, tem misericór­
dia de mim” do que em apelar para a justiça. E muito agradável
podermos dizer: “Tenho distribuído juízo e justiça”, e então acres­
centar, com toda humildade: “Trata teu servo segundo tua miseri­
córdia.” O título ‘servo’ envolve uma súplica; um senhor deve pu-
-175-
S a lm o II?

rificar o caráter de seu servo, caso seja este falsamente acusado, e


livrá-lo daqueles que porventura o oprimem; e, além do mais, o
Senhor deve demonstrar misericórdia para com o servo, ainda
quando severamente tratado como se fosse um estranho. O Se­
nhor trata seus servos munido de condescendência, ou mantendo
comunhão com eles, não os tratando com repulsa, mas com diálo­
go e brandura; e isso ele faz de uma forma terna e compassiva,
pois em qualquer outra forma de tratamento seríamos esmagados
na cinza e no pó.
E ensina-me teus estatutos. Esta será uma forma de trata­
mento entranhada de misericórdia em nosso favor. Podemos es­
perar que um senhor ensine a seu próprio servo o significado de
suas próprias ordens. Todavia, uma vez que nossa ignorância amiú­
de provenha de nossa própria estupidez pecaminosa, é mui grande
misericórdia da parte de Deus que ele se condescenda em instruir-
nos em seus mandamentos. Para nosso rei tornar-se nosso profes­
sor depende de um ato de infinita graça, pelo qual não há como
sermos excessivamente agradecidos. Entre nossas mercês, esta é a
mais preferida.
[v. 125]
Eu sou teu servo: dá-me discernimento para que eu possa conhecer
teus testemunhos.
Eu sou teu servo. Esta é a terceira vez que ele repete este título
nesta mesma seção. Evidentemente ele apreciava este título e en­
tende ser o mesmo muitíssimo eficaz numa súplica. Quem de nós
se deleita em ser filho de Deus de modo algum se deleita menos
em ser seu servo. Não é verdade que o Filho unigénito de Deus
assumiu a forma de servo e cumpriu essa função de forma plená­
ria? Que honra maior podem os irmãos mais jovens desejar que
sejam eles feitos herdeiros de todas as coisas?
Dá-me discernimento para que eu possa conhecer teus tes­
temunhos. No versículo anterior, ele buscou instrução; aqui, po­
rém, ele avança mais e suspira por discernimento. Usualmente, se
o instrutor ministra a lição, o aluno expande seu discernimento;
em nosso caso, porém, somos muito mais dependentes, e deve­
• 176 •
I^ X P O Ó IÇ Â O lò

mos implorar tanto por discernimento quanto por instrução: isto


o professor comum não pode dar —somos felicíssimos por nosso
Divino Tutor poder munir-nos com ambos. E preciso que confes­
semos nossa estultícia, para que, então, nosso Senhor nos faça
sábios, como também nos dê conhecimento. O melhor discerni­
mento é aquele que nos capacita a prestar perfeita obediência e
exibir fé inteligente, e isso é o que Davi deseja - “discernimento
para que eu possa conhecer teus testemunhos.” Há quem não co­
nhece bem essas coisas; preferem permanecer tranqüilamente nas
trevas antes que possuir a luz que conduz ao arrependimento e
diligência. O servo de Deus anela por discernir inteligentemente
tudo o que o Senhor revela do homem e para o homem. Ele deseja
ser tão instruído, que chegue a apreender e compreender aquilo
que lhe é ensinado. Um bom servo não deve ignorar quem seja seu
senhor, nem os negócios de seu senhor; ele tem de estudar a men­
te, a vontade, o propósito e o objetivo daquele a quem serve, pois
só assim ele executará seu serviço. E como ninguém conhece essas
coisas tão bem quanto o conhece seu próprio senhor, assim com
freqüência vamos a ele em busca de instruções, a fim de que não
com menos zelo, o sirvamos bem e não passemos por crassos idiotas.
É notável que o salmista não ore por entendimento via aquisi­
ção de conhecimento, mas roga ao Senhor primeiro que para que
ele possua o gracioso dom do entendimento, e então que ele obti­
vesse a desejada instrução. Tudo o que conhecemos antes de pos­
suirmos entendimento é porta aberta para prejudicar-nos e infla­
mar-nos a vaidade; porém, se primeiramente o entendimento esti­
ver presente em nosso coração, entãcj o tesouro de conhecimento
enriquecerá a alma e espantará o pècado e a tristeza. Além do
mais, esse dom do entendimento age também na forma de discer­
nimento, e assim a pessoa boa é poupada de entesourar qualquer
elemento falso e danoso; ela sabe quais são e quais não são os
testemunhos do Senhor.
fv. 126]
]á ê tempo de agires, ó Senhor, pois eles têm invalidado tua lei.
Davi era servo, e portanto seu tempo de agir era contínuo.
• 177 •
S a lm o \\f

Mas, sentindo-se oprimido à vista do comportamento de um ho­


mem ímpio, ele sente falta da mão de seu Senhor, e por isso apela
para que ele aja contra a operação do mal. Os homens tentam
invalidar a lei de Deus, negando ser ela a lei de Deus, promulgan­
do mandamentos e doutrinas para fazer-lhe oposição, estabele­
cendo em seu lugar tradição [humana] ou desrespeitando e escar­
necendo sumariamente da autoridade do Legislador. O pecado se
torna a moda e o viver santo é considerado desprezível puritanis-
mo; o vício é intitulado prazer e a vaidade vai adiante. Então os
santos buscam a presença e o poder de seu Deus. Oh! tomara que
o Rei surja em seu trono com o cetro de ferro em sua mão! Oh!
ansiamos por outro pentecostes com todos seus prodígios, exibin­
do a energia de Deus esmagando os que contradizem e fazendo-
os ver que existe Deus em Israel! O extremo do homem, seja de
necessidade ou de pecado, é a oportunidade de Deus. Quando a
terra era sem forma e vazia, o Espírito vinha e se movia sobre a
face das águas; não devia vir ele quando a sociedade está à mercê
de transformar-se em caos? Quando Israel no Egito se viu reduzi­
do ao ponto extremo de humilhação, e tudo fazia crer que o pacto
seria extinto, então Moisés apareceu em cena e operou portento­
sos milagres; assim também, quando a igreja de Deus é tripudia­
da, e sua mensagem ridicularizada, então podemos esperar ver
surgir a mão do Senhor estendida para o avivamento da religião,
para a defesa da verdade e para a glorificação do Nome divino. O
Senhor pode operar, ou através de juízos que derrubem os baluar­
tes do inimigo, ou de avivamento que reconstrua os muros de sua
própria Jerusalém. Quão ardentemente devemos orar ao Senhor
para que levante novos evangelistas, que vivifique os que já exis­
tem, que faça o fogo crepitar em toda sua igreja e que conduza o
mundo a seus pés! A obra de Deus é sempre digna e gloriosa; e
nossa obra, sem sua operação, não passa de nulidade.
[v. 127]
Por isso amo teus mandamentos acima do ouro; sim, acima do ouro
refinado.
Como era o tempo de Deus agir, assim era o tempo de Davi
• 178 •
IM P O S IÇ Ã O 16
amar. Longe de deixar-se influenciar pelo exemplo dos homens
maus, unindo-se a eles e negligenciando as Escrituras, ao contrá­
rio penetrava cada vez mais na vereda de um amor veemente por
essas revelações divinas. Ele amava não só as doutrinas, mas tam­
bém os mandamentos. Ao ver os mandamentos sendo negligenci­
ados pelos ímpios, seu coração se punha em sintonia com o de
Deus e sentia um ardente afeto por seus santos preceitos. A marca
de um cristão genuíno é sua dependência de outros no exercício
de sua religião, porém bebe água de seu próprio poço, a qual ema­
na sempre quando as cisternas da terra estão todas secas. Em meio
a uma depreciação geral da lei, nosso santo poeta nutria profunda
estima por ela, muito acima do valor do ouro e da prata. A riqueza
traz consigo tantas conveniências, as quais levam os homens a
naturalmente cobiçá-la, e o ouro como símbolo dela é ainda mais
cobiçado. Contudo, no juízo do sábio, as leis de Deus são sua
maior riqueza, e trazem consigo mais conforto do que os tesouros
mais desejáveis. O salmista não podia gabar-se de sempre guardar
os mandamentos; mas podia declarar que os amava; em seu cora­
ção, ele era perfeito e de bom grado ansiava por ser perfeito no
viver diário. Ele considerava os santos mandamentos de Deus como
melhores que a melhor coisa terrena - o ouro! Sim, melhor que o
melhor tipo da melhor coisa terrena - o ouro refinado! E esse apreço
foi confirmado e reforçado em expressão por aquelas mesmas opo­
sições do mundo que levam os hipócritas a esquecer o Senhor e
seus caminhos.
O avarento vigia seu tesouro da forma mais ansiosa, ao ouvir
que há ladrões na redondeza arquitetando privá-lo do mesmo.
Quanto mais os homens odeiam as vèrdades eternas, mais nós as
amamos.
[v. 128]
Por isso estimo todos teus preceitos, concernentes a todas as coisas,
como retos; e odeio todo caminho falso.
Por isso estimo todos teus preceitos, concernentes a todas as
coisas, como retos. Uma vez que os ímpios descobriam erros nos
preceitos de Deus, por isso Davi estava totalmente convicto de
-179-
S a lm o llp

que eles eram retos. A censura dos perversos é um certificado de


mérito; podemos com razão suspeitar daquilo que sancionam, mas
podemos ardentemente admirar aquilo que abominam. E franco o
deleite que o homem bom sente na lei de Deus; ele crê em todos os
preceitos de Deus acerca de todas as coisas. Declaramos nossa fé
a todos os quadrantes em proporção à oposição do inimigo. A
crítica negativa contrapomos com uma fé destemida. Quando nossa
confiança em Deus é reputada como algo vil, dispomo-nos a ser
ainda mais vis.
E odeio todo caminho falso. O amor à verdade gera ódio à
falsidade. Aquele que dá de presente um vestido tem aversão da
boca que o desdenha. Este homem piedoso não era indiferente às
coisas do mundo moral e espiritual; mas aquilo que ele não ama­
va, odiava. Ele não era uma torrada na sopa sem sabor; era, sim,
alguém que sabia amar e também sabia odiar, mas que nunca era
um irresoluto. Sabia muito bem o que sentia, e o que sentia ex­
pressava francamente. Não era nenhum irresponsável que de nada
cuidava. Sua aversão era tão franca quanto sua afeição; ele não
tinha uma boa palavra para qualquer prática que não suportasse a
luz da verdade. O fato de que tão imensas multidões, seguindo por
uma ampla estrada, não exerciam influência sobre este santo va­
rão, a não ser torná-lo mais determinado a evitar toda forma de
erro e pecado. Possa o Espírito Santo governar nossos corações
para que nossas afeições estejam na mesma condição determinada
para com os preceitos da Palavra! Possamos nós assumir nosso
lugar ao lado de Deus e da justiça, e jamais portar a espada em
vão! Não sejamos belicosos, mas ousemos repudiar a indiferença
pecaminosa. Odiemos todo e qualquer pecado; pois qualquer um
dentre toda turba será nossa ruína se formos indulgentes. Sobra­
cem as armas, ó soldados da cruz!

• 180 •
P X P Q 5 IÇ Â Q 17

(w. 129-136)
Maravilhosos são teus testemunhos; por isso minha alma os guarda. A
entrada de tuas palavras produz luz, produz entendimento nos símpli-
ces. Abri minha boca, e suspirei; pois tenho saudade de teus manda­
mentos. Olha para mim, e sê compassivo para comigo, como costumas
fazer com os que amam teu nome. Ordena meus passos em tua pala­
vra; e que a iniqüidade não exerça nenhum domínio sobre mim. Livra-
me da opressão do homem; assim guardarei teus preceitos. Faz que teu
rosto resplandeça sobre teu servo, e ensina-me teus estatutos. Rios de
águas correm de meus olhos, porque não guardam tua lei.
[v. 129]
Maravilhosos são teus testemunhos; por isso minha alma os guarda.
Todos os versículos desta seção começam com a décima séti­
ma letra do alfabeto hebraico; cada versículo, porém, com uma
palavra diferente. Esta décima sétima letra é o P. A seção é precio­
sa, prática, proveitosa, poderosa. Oremos por uma bênção em prol
de sua leitura.
Maravilhosos são teus testemunhos. Cheios de maravilhosas
revelações, mandamentos e promessas. Maravilhosos em sua natu­
reza, isentos de todo erro e, portando, em seu âmago esmagadora
auto-evidência de sua veracidade; maravilhosos em seus efeitos, ins­
truindo, enobrecendo, fortalecendo e confortando a alma. Jesus, o
Verbo Eterno, é chamado Maravilhoso, e todas as palavras pronun­
ciadas por Deus são maravilhosas em sua intensidade. Os que as
conhecem ainda mais se extasiam diante delas. E maravilho que
Deus tenha dado testemunho a todos os homens transgressores; e
ainda mais maravilhoso é que seu testemunho seja de um caráter
tão celestial, tão límpido, tão pleno, tão gracioso, tão poderoso.
• 181 •
S a lm o 11^

Por isso minha alma os guarda. Seu maravilhoso caráter es­


tava tão impresso em sua mente que ele os guardava em sua me­
mória; sua maravilhosa excelência atraía tanto seu coração que ele
os guardava em sua vida. Algumas pessoas se extasiam ante as
palavras de Deus e as usam para suas especulações; Davi, porém,
era sempre prático, e por isso mais se extasiava à medida que as
obedecia. Note bem que sua religião era operosa na alma; não era
só com a cabeça e com as mãos que ele guardava os testemunhos;
mas os mantinha firmes com sua alma, seu ego mais confiante e
mais real. O salmista se sentia tão fascinado pela vontade revelada
de Deus que se sentia obrigado a exibir seu poder em sua vida
diária. Sua perplexidade e sua ponderação produziam reverente
obediência.
[v. 130]
A entrada de tuas palavras produz luz, produz entendimento nos sím-
plices.
A entrada de tuas palavras produz luz. Tão pronto logrem
elas admissão à alma, esta é iluminada. Que bendita luz podemos
esperar de sua prolongada permanência! Sua própria entrada inun­
da a mente com instrução, pois elas são plenas e claríssimas; que
radiância se deve esperar de sua constante presença! Por outro
lado, essa ‘entrada’ é indispensável para que também haja ilumi­
nação. O mero ouvir a Palavra com os ouvidos externos é por si só
de pouquíssimo valor; mas quando as palavras de Deus penetram
as recâmaras do coração, então a luz se difunde por todos os can­
tos. Essa é uma obra de Deus; somente ele pode fazer com que sua
Palavra penetre em nós. Enquanto a graça não abrir-lhe a porta, em
vão batemos à porta. A Palavra não acha entrada em nossas mentes
porque as mesmas se acham bloqueadas pelo conceito pessoal, ou
preconceito, ou indiferença. Mas onde se lhe dá a devida atenção, a
iluminação divina seguramente leva a mente a um profundo co­
nhecimento de Deus. O Senhor, ilumina a entrada de minha alma!
Faz com que tuas palavras, quais raios de sol, entrem pelas janelas
de meu entendimento e dispersem as trevas de minha mente!
Produz entendimento nos símplices. Os sinceros e cândidos
• 182 •
X P Q 5 IÇ A O 1/

são os verdadeiros discípulos da Palavra. A esses ela dá não só


conhecimento, mas também entendimento. Esses de coração sin­
gelo são amiúde desprezados, e sua simplicidade tem outro senti­
do infuso nela, por exemplo, o de tornar-se tema de ridículo; mas,
que importa? Aqueles a quem o mundo intitula de tolos se acham
entre os verdadeiramente sábios, se são instruídos por Deus. Que
divino poder repousa na Palavra de Deus, visto que ela não só
outorga luz, mas ainda confere aquele olho mental pelo qual a luz
é recebida - “ela produz entendimento”! Daí o valor das palavras
de Deus aos símplices, que não podem receber a misteriosa Pala­
vra a menos que suas mentes sejam ajudadas para vê-las e prepa­
radas para assenhorear-se delas.
[v. 131]
Abri minha boca, e suspirei; pois tenho saudade de teus mandamentos.
Abri minha boca, e suspirei. Um desejo expandido é um dos
primeiros frutos do entendimento outorgado pelo Senhor. Tão
animado era o desejo do salmista, que ele buscou no mundo ani­
mal um quadro dele. Os homens restringem suas expressões; mas
no mundo animal tudo é natural e, portanto, verídico e vigoroso.
Daí, enchendo-se de intensa saudade, o santo Davi não se enver­
gonhava de descrevê-lo, lançando mão de um símbolo muito ex­
pressivo, natural, todavia singular. Como a corça que, ao ser caça­
da nos valados, e é duramente acossada e fica intensamente ar­
quejante, assim o salmista suspira pela entrada da Palavra de Deus
em sua alma. Nada mais lhe interessa. Tudo o que o mundp pode­
ria propiciar-lhe o deixa ainda mais anelante. Sua alma suspirava
por Deus, pelo Deus vivo, e para que a graça caminhasse com ele
no caminho da santidade.
Pois tenho saudade de teus mandamentos. Ansiava conhecê-
los; ansiava obedecê-los; ansiava ser conformado com seu espíri­
to; ansiava ensiná-los a outros . Ele era servo de Deus, sua indus­
triosa mente ansiava por receber ordens; era um aprendiz na esco­
la da graça, e seu espírito ardente ansiava ser instruído pelo Se­
nhor. Oh, eu quero mais desse ardor faminto, sedento, lamentoso,
suspirante!
• 183 •
S a lm o 115?

[v. 132]
Olha para mim e sê compassivo para comigo, como costumas ser para
com os que amam teu nome.
Olha para mim. Uma pessoa piedosa não pode viver sem ora­
ção. Nos versículos anteriores, ele expressou seu amor à Palavra
de Deus; aqui, porém, ele está uma vez mais de joelhos. Esta ora­
ção é especialmente breve, mas profundamente enérgica e solene:
“Olha para mim.” Enquanto ficava com a boca aberta, respirando
com dificuldade pelos mandamentos, implorava ao Senhor que
olhasse para ele e permitisse que sua condição e seus suspiros inex­
primíveis o defendessem. Ele deseja ser conhecido de Deus e dia­
riamente observado por ele. Deseja também ser favorecido com o
divino sorriso que se acha incluso na palavra ‘olha’. Se um olhar
nosso para Deus possui em si eficácia salvífica, o que não espera­
ríamos nós de um olhar divino para nósll
E sê compassivo para comigo. O olhar de Cristo para Pedro
foi de compaixão, e todos os olhares do Pai celestial são igualmen­
te compassivos. Se nos olhasse com estrita justiça, não suportarí­
amos seu olhar; porém nos olhando com clemência, ele nos poupa
e nos abençoa. Se Deus nos olha e nos vê suspirantes, ele não
deixa de exercer sua compaixão em nosso favor.
Como costumas ser para com os que amam teu nome. Olha
para mim como olhas para os que te amam; tem misericórdia de
mim como costumas ter dos que verdadeiramente te servem. Há
uma prática e costume que Deus observa em relação aos que o
amam, e Davi cria poder experimentá-los. Seu desejo é que o Se­
nhor não o trate nem melhor nem pior do que costumava tratar
seus santos —pior que isso, ele não se salvaria; melhor, seria im­
possível. Com efeito ele ora: “Eu sou teu servo; trata-me como
tratas teus servos. Eu sou teu filho; trata-me como tratas o restan­
te de teus filhos.” Especialmente óbvio à luz do contexto, ele dese­
java uma entrada tal da Palavra, e um discernimento tão nítido
dela, como Deus costumeiramente dá aos seus, segundo sua pro­
messa: “Todos teus filhos serão ensinados pelo Senhor.”
Leitor, você ama o nome do Senhor? Seu caráter é nobilíssimo
• 184 •
H X P O S IÇ Ã O 17

a seus olhos? amantíssimo a seu coração? Eis uma marca infalível


da graça; pois nenhuma alma jamais amou o Senhor exceto como
resultado do amor recebido do próprio Senhor.
fv. 133]
Ordena meus passos em tua palavra; e que a iniqüidade não exerça
nenhum domínio sobre mim.
Ordena meus passos em tua palavra. Esta é uma das costu­
meiras mercês do Senhor em favor de seus eleitos - “ele guarda os
pés de seus santos”. Assim ele costuma fazer àqueles que amam
seu nome. Por sua graça ele nos capacita a pôr nossos pés, passo a
passo, precisamente no lugar que sua Palavra ordena. Esta oração
busca um favor muito seleto, ou, seja: que um ato muito distinto, o
próprio passo, seja disposto e governado pela vontade de Deus.
Isso não interrompe a santidade, nem os desejos dos cristãos se­
rão satisfeitos com algo inferior à bendita consumação.
E que a iniqüidade não exerça nenhum domínio sobre mim.
Este é o lado negativo da bênção. Pedimos para que façamos tudo
o que é certo, e não caiamos sob o poder de algo que seja errôneo.
Deus é nosso soberano, e nossa segurança está em nos submeter­
mos a seu domínio. Os cristãos não têm pecados favoritos ante os
quais estariam dispostos a curvar-se. Eles suspiram pelo livramento
perfeito do domínio do mal, e têm consciência de que não podem
obtê-lo por suas próprias forças, por isso clamam a Deus por sua
posse.
Em conexão com a cláusula anterior, aprendemos que, para
evitar todo e qualquer pecado, temos que observar todo dever.
Somente através de uma obediência real é que podemos ser pre­
servados de ceder ao mal. Omissões conduzem a comissões. So­
mente uma vida bem ordenada pode salvar-nos da desordem e da
iniqüidade.
[v. 134]
Livra-me da opressão do homem; e assim guardarei teus preceitos.
Livra-me da opressão do homem. Davi nutria aversão por
toda a amargura proveniente desse grande mal. Pois ele fora exila-
• 185 •
S a lm o 11S

do de seu país e banido do santuário do Senhor. Por isso implora


que seja poupado dele. Diz-se que a opressão faz de um sábio um
sádico, e sem dúvida ela tem transformado muitos justos em trans­
gressores. A opressão é inerentemente perversiva e conduz os ho­
mens ao caminho da perversidade. Poucos de nós sabemos quanto
de nossa virtude se deve a nossa liberdade; se estivéssemos em
conluio com os tiranos arrogantes estaríamos sob sua sujeição, e
em vez de sermos testemunhas de Deus poderíamos ser neste
momento apóstatas. Aquele que nos ensinou a orar: “Não nos dei­
xes cair em tentação” sancionará esta oração: “Livra-nos da opres­
são do homem”, pois ela contém o mesmo elemento que a primei­
ra. Ser oprimido é ser tentado. Senhor, conserva-nos em retidão.
E assim guardarei teus preceitos. Quando o estresse oriundo
da opressão se assenhoreava dele, ele prosseguia em seu caminho;
e esse caminho não era outro senão o caminho do Senhor. Ainda
que não devamos ceder às ameaças dos homens, todavia muitos
agem precisamente assim; a esposa é, em muitos casos, compelida
pela opressão de seu esposo a agir contra sua consciência; filhos e
empregados, famílias e sociedades, e até mesmo nações inteiras,
todos têm sido forçados a encarar a mesma dificuldade. Pecados
cometidos pela intimidação serão fartamente postos à porta do
opressor; e comumente é do agrado de Deus conduzir à ruína os
poderes e pessoas que compelem seus semelhantes à prática do
mal. O pior de tudo é que algumas pessoas, quando pressionadas
a imitar seus opressores, seguem após a injustiça, de sua livre von­
tade. E assim comprovam que são pecadores por prazer. No caso
dos justos, com eles sucede o que sucedeu aos antigos apóstolos:
“Sendo-lhes permitido ir, foram por sua própria conveniência.”
Quando os santos se vêem livres dos tiranos, deleitosamente ado­
ram seu Senhor e Rei.
fv. 135]
Faz com que teu rosto resplandeça sobre teu servo, e ensina-me teus
estatutos.
Faz com que teu rosto resplandeça sobre teu servo. Os opres­
sores franzem o cenho; tu, porém, sorris. Eles fazem minha vida
• 186 •
] XPOSiÇÂO 1/

trevosa; tu, porém, resplandeces sobre mim, e tudo o que me cerca


se torna luminoso. O salmista outra vez se declara servo de Deus;
e por isso valoriza o sorriso de seu Senhor. Ele não busca favor em
nenhum outro, exceto em seu próprio Senhor e Mestre.
E ensina-me teus estatutos. Ele busca santa instrução como o
principal emblema do amor divino. Este é o favor que ele conside­
ra como sendo o resplendor do rosto de Deus sobre ele. Se o Se­
nhor for prodigamente gracioso, e fizer dele seu favorito, então ele
não pedirá bênção mais elevada que ser instruído nos estatutos
divinos. Veja como o bom homem se aferra à santidade! Em sua
estima, esta é a preferida entre todas as gemas. Como costuma­
mos dizer: entre os homens, uma boa educação equivale a uma
grande fortuna; assim como ser instruído pelo Senhor equivale a
um dom especial da graça. O cristão mais afortunado necessita de
instrução; mesmo quando anda em meio à luz do semblante de
Deus, ele tem ainda de ser instruído nos estatutos divinos, do con­
trário os transgredirá.
[v. 136]
Rios de águas correm de meus olhos, porque eles não guardam tua lei.
Em sua solidariedade em relação a Deus, ele pranteava ao ver
a santa lei desprezada e quebrada. Pranteava movido de compai­
xão para com os homens que estavam assim atraindo sobre si a ira
ardente de Deus. Sua tristeza era tal que não conseguia impedir-
lhe a vazão; suas lágrimas não eram simples gotas de tristeza, eram
rios de águas, torrentes de dor. '
Nesta sacra tristeza, o homem de Deus chegou a assemelhar-
se ao Senhor Jesus, que contemplou a cidade e pranteou sobre ela;
e como o próprio Jeová, que não sente prazer na morte de quem
está espiritualmente morto, mas em que o mesmo se converta e
viva. A experiência deste versículo indica um grande avanço quan­
to a tudo o que já lemos neste cântico divino: o Salmo e o salmista
estão ambos crescendo. Este homem é um crente maduro, que
sente tristeza por causa dos pecados de outros. Os pranteadores
de Sião se encontram entre os principais dos santos. No versículo
120, sua carne tremia na presença de Deus; aqui, porém, ela pare-
• 187 •
S a lm o llp

ce derreter-se e borbotar em dilúvios de lágrimas. “Ensina-me teus


estatutos” é seguido por uma expressão de profunda ternura do
coração. Ninguém é tão afetado pelas coisas celestiais como aque­
les que mergulham no estudo da Palavra, e assim recebem a verda­
de e essência das coisas. Os homens carnais arreceiam da força
bruta e choram as perdas e dissabores; os homens espirituais, po­
rém, sentem um santo temor pelo próprio Senhor, e lamentam
profundamente quando vêem a desonra enlamear seu santo nome.

vV

• i88 ■
X P Q 5 IÇ Â Q 13

(w. 137-144)
Tu és justo, ó Senhor, e retos são teus juízos. Teus testemunhos que
ordenaste são justos e fidelíssimos. Meu zelo me tem consumido, por­
que meus inimigos se esqueceram de tuas palavras. Tua palavra épu­
ríssima; por isso teu servo a ama. Eu sou pequeno e desprezado; toda­
via não me esqueço de teus preceitos. Tua justiça é uma justiça eterna,
e tua lei é a verdade. Aflição e angústia têm se apoderado de mim;
todavia teus mandamentos são meu deleite. A justiça de teus testemu­
nhos é eterna; dá-me entendimento e eu viverei.
Esta passagem trata da justiça perfeita de jeová e de sua pala­
vra, e expressa as lutas de uma alma santa no que respeita a essa
justiça. A letra inicial com que cada versículo começa tem um som
que lembra o leitor hebreu da palavra equivalente a justiça. A nota-
chave desta seção é justiça. Oh! pela graça, deleitemo-nos na justiça!
[v. 137]
Tu és Justo, ó Senhor, e retos são teus juízos.
Tu és justo, ó Senhor. O salmista não tem usado com muita
freqüência o título Jeová nesta vasta composição. Todo o Salmo
revela que ele era um homem profundamente religioso, plenamente
familiarizado com as coisas de Deus; e tais pessoas nunca usam o
santo nome de Deus displicent^mente, nem ainda o usam com tanta
freqüência em comparação aos prudentes e aos ímpios. Neste caso,
a familiaridade gera reverência. Aqui ele usa o sacro nome em ado­
ração. Ele louva a Deus atribuindo-lhe justiça perfeita. Deus é sem­
pre reto, e ele é sempre ativamente reto, ou, sejaJusto. Esta qualida­
de está arraigada em nossa própria idéia de Deus. Não podemos ima­
ginar um Deus que fosse injusto. Louvemo-lo atribuindo-lhe justiça,
ainda quando seus caminhos nos forem dolorosos à carne e sangue.
• 189 •
S a lm o 115»

E retos são teus juízos. Aqui ele enaltece a Palavra de Deus,


ou os juízos registrados, como sendo retos, mesmo porque seu
Autor é justo. Aquilo que promana do Deus justo é por si só tam­
bém justo. Jeová diz e faz somente aquilo que é reto. Isso constitui
uma poderosa coluna para a alma em tempo de angústia. Quando
somos dolorosamente afligidos, e não conseguimos divisar razão
alguma para a dispensação, então podemos retroceder-nos a este
fato certíssimo de que Deus é justo e seus métodos de lidar conos­
co são igualmente justos. Nossa glória é podermos cantar esta
denodada confissão, quando todas as coisas que nos cercam nos
sugerem o contrário. Essa é a mais rica adoração que promana
dos lábios da fé, quando a razão carnal murmura contra a severi­
dade aparentemente injusta.
[v. 138]
Teus testemunhos que ordenaste são justos e fidelíssimos.
Tudo aquilo que Deus tem testificado em sua Palavra é reto e
fidedigno. Seus testemunhos são justos e dignos de nossa confi­
ança no presente; são fiéis e dignos de nossa confiança no futuro.
Em cada porção dos testemunhos inspirados há uma autoridade
divina; são publicados pela ordenação divina e levam em si a im­
pressão do estilo régio que traz em seu bojo a onipotência. Não
apenas os preceitos, mas também as promessas, são todos orde­
nados pelo Senhor, e assim se dá com todos os ensinos da Escri­
tura. Não é uma questão de decisão nossa, se são aceitos ou não;
são emitidos por ordem real e não devem ser questionados. Sua
característica consiste em que são como o Senhor que os tem pro­
clamado, são a essência da justiça e a alma da verdade. A Palavra
de Deus é justa e não pode ser impugnada; é fiel e não pode ser
questionada; é genuína desde o princípio e o será assim até o fim.
Há uma ênfase na doce expressão - fidelíssimos. Que mercê
temos no Deus que trata com aquele que é escrupulosamente fiel,
fidedigno em todos os pontos e detalhes de suas promessas, pon­
tual e firme o tempo todo! De fato podemos arriscar tudo nessa
palavra que é “sempre fiel e sempre infalível”.
Visto que nesses versículos o salmista realça a justiça de Deus
• 190 •
^ X f O S I Ç A O 15

e de suas palavras, cabe-nos considerar o caráter divino e tudo


fazer para imitá-lo. “Se vós sabeis que ele é justo, sabeis também
que todo aquele que pratica a justiça é nascido dele” (ljo 2.29).
[v. 1391
Meu zelo me tem consumido, porque meus inimigos têm olvidado tuas
palavras.
Nos dois últimos versículos Davi falou de seu Deus e de sua
lei; aqui ele fala de si mesmo. Isso sem dúvida foi ocasionado por
nutrir ele tão agudo senso do admirável caráter da Palavra de Deus.
Seu zelo era como um fogo a arder em sua alma. Diante do fato de
o homem esquecer-se de Deus, seu íntimo era como veementes
labaredas de fogo a devorá-lo e a consumi-lo. Davi não podia su­
portar que os homens olvidassem as palavras de Deus. Ele estava
disposto a esquecer a si próprio, sim, a consumir-se, só porque
tais pessoas esqueceram-se de Deus. Os ímpios eram inimigos de
Davi; eram seus inimigos porque o odiavam por sua piedade; eram
seus inimigos porque ele os abominava por sua impiedade. Tais
pessoas tinham ido longe demais em sua iniqüidade; não só viola­
vam e negligenciavam os mandamentos de Deus, mas também
aparentavam que realmente que os ignoravam. Isso deixava Davi
com um fogo na alma; sua indignação o devorava. Como ousam
pisotear as coisas sacras? Como era possível que ignorassem com­
pletamente os mandamentos do próprio Deus? Ele estava atônito
e transbordante de ira santa.
Não é verdade que temos quem professa ser cristão, que co­
nhece a verdade, porém vive como se a esquecera completamente?
[v. 140]
Tua palavra é puríssima; por isso teu servo a ama.
Tua palavra é puríssima. Ela é verdade destilada, santidade
em sua quintessência. Na Palavra de Deus não há mescla de erro
ou pecado. Ela é pura em seu significado; pura em sua linguagem;
pura em seu espírito; pura em sua influência; e tudo isso no mais
elevado grau e superlativo - puríssima.
Por isso teu servo a ama. O que prova que ele mesmo era
• 191 •
S a lm o llp

puro de coração; pois somente os que são puros amam a Palavra


de Deus justamente por ela ser pura. Seu coração estava jungido à
Palavra por causa de sua gloriosa santidade e verdade. Ele a admi­
tia; deleitava-se nela; esforçava-se por praticá-la; e ansiava por
viver sob seu poder purificador.
[v. 141]
Eu sou pequeno e desprezado; todavia não me esqueço de teus preceitos.
Essa falta de memória que condenava em outros (v. 139) não
podia ser lançada sobre ele. Seus inimigos não faziam conta dele;
consideravam-no como um homem destituído de poder ou habili­
dade, e por isso olhavam-no com desdém. Ele parece aceitar a
situação e humildemente ocupa um lugar inferior, porém leva con­
sigo a Palavra de Deus. Quantos têm praticado o mal com o fim de
corresponder ao desprezo de seus inimigos! Para tornar-se proe­
minentes, eles falavam e agiam de uma forma imponderada! A be­
leza da piedade do salmista consistia em ser ele calmo e pondera­
do; e como não se deixava levar por lisonjas, também não era ven­
cido pelo opróbrio. Se era pequeno, ele ainda mais zelosamente
atentaria para os menores deveres; e se era desprezado, então mais
ardorosamente guardaria os mandamentos de Deus, os quais eram
por eles desprezados.
[v. 142]
Tua justiça é uma justiça eterna, e tua lei é a verdade.
Tua justiça é uma justiça eterna. Tendo num versículo anteri­
or atribuído justiça a Deus, ele agora prossegue declarando que
tal justiça é imutável e dura de eras em eras. Eis aqui a alegria e a
glória dos santos: 0 que Deus é ele sempre será, e seu modo de
proceder para com os filhos dos homens é imutável, tendo manti­
do sua promessa e realçado sua justiça entre seu povo; ele agirá
assim no mundo até o fim. Tanto a justiça quanto a injustiça dos
homens têm um limite, mas a justiça de Deus é ilimitada e infindável.
E tua lei é a verdade. Como Deus é amor, assim sua lei é a
verdade, a própria essência da verdade; verdade aplicada à ética,
verdade em ação, verdade no tribunal. Ouvimos grandes disputas
• 192 •
H x p o s i ç ã o 16

sobre “O que é a verdade?” As Santas Escrituras são a única res­


posta a essa pergunta. Note que elas não são apenas fidedignas,
mas são a própria verdade. Não podemos dizer que elas contêm a
verdade, mas que são a própria verdade: “tua lei é a verdade.” Não
há nada falso acerca da lei ou apenas uma parte da Escritura que
seja preceptiva. Aqueles que são obedientes descobrem por esse
meio que estão andando num caminho consistente com os fatos.
Enquanto aqueles que agem em contrário estão percorrendo uma
via ilusória.
Porque a Palavra é verdade, há nela uma justiça eterna. Alterar,
diminuir ou acrescentar algo é mentir contra Deus.
[v. 143]
Aflição e angústia têm se apoderado de mim; todavia teus manda­
mentos são meu deleite.
Aflição e angústia têm se apoderado de mim. E possível que
essa aflição tenha surgido de circunstâncias [pessoais], ou da cru­
eldade de seus inimigos, ou de seus próprios conflitos íntimos. O
certo é que ele se encontrava dominado por profunda angústia,
angústia que o envolvera e o fizera cativo de seu poder. Suas tris­
tezas, como cães ferozes, se assenhoreara dele, e ele sentia suas
presas. Ele sentia uma dupla aflição: aflição por fora; ansiedade
por dentro. Como o apóstolo o expressa: “enfrentei lutas por fora
e temores por dentro.”
Todavia teus mandamentos são meu deleite. E assim se trans­
formara numa peneira: tentava separar a aflição do deleite; a an­
gústia do prazer. O filho de Deus pode entender esse enigma, pois
bem sabe ele que enquanto se vê precipitado num abismo, o qual
percebe em seu próprio interior, ele se sente precipitado nas altu­
ras pelo que percebe na Palavra [de Deus], Deleita-se nos manda­
mentos [divinos], sendo ao mesmo tempo atribulado pela visão de
suas imperfeições. Ele acha luz abundante nos mandamentos, e
pela influência dessa luz descobre e lamenta suas próprias trevas.
Só a pessoa que se familiariza com as lutas da vida espiritual po­
derá entender a expressão que se acha diante de nossos olhos.
Que o leitor possa encontrar uma balança de precisão na qual pese
• 193 •
S a lm o 115?

a si próprio. Mesmo quando se vê envolto em tristezas, ainda as­


sim você se deleita na vontade do Senhor? Você encontra mais
alegria em ser santificado do que em ser castigado pela tristeza?
Então a marca dos filhos de Deus está impressa em você também.
[v. 144]
A justiça de teus testemunhos é eterna; dá-me entendimento, e eu vi­
verei.
A justiça de teus testemunhos é eterna. Antes ele dissera que
os testemunhos de Deus são justos; em seguida, que eles são eter­
nos; agora, que sua justiça é eterna. E assim, ao prosseguir, ele
nos dá um relato mais amplo e mais detalhado da Palavra de Deus.
Quanto mais ele se vê engajado em descrevê-la, mais ainda pros­
segue descrevendo-a. Quanto mais ele tenta expressar acerca do
santo escrito, mais tem o que expressar e mais poderá expressar.
Os testemunhos de Deus dados ao homem não podem ser dene­
gridos; eles são justos do começo ao fim. Ainda que os ímpios se
oponham à justiça divina, especialmente ao plano da salvação, sem­
pre fracassam em estabelecer alguma acusação contra o Altíssimo.
Enquanto a terra durar, enquanto houver uma criatura inteligente
no universo, haverá quem confesse que os planos de Deus em usar
de misericórdia são em todos os aspectos maravilhosas provas de
seu amor pela justiça: embora seja ele o gracioso Jeová, não pode­
rá ser injusto.
Dá-me entendimento, e eu viverei. Aqui está uma oração que
ele faz sem cessar: que Deus lhe desse entendimento. Aqui, ele
evidentemente considera que esse dom é essencial a sua vida. Vi­
ver sem entendimento não é uma vida que mereça ser vivida, mas
é estar morto enquanto se vive. Somente quando conhecemos e
discernimos as coisas de Deus é que podemos dizer que desfruta­
mos da vida. Quanto mais o Senhor nos ensina a admirar a eterna
perfeição de sua Palavra, e quanto mais nos dinamiza a amar tal
perfeição, mais felizes e melhores seremos. Assim, como amamos
a vida e buscamos dias longos para que vejamos o bem, cabe-nos
buscar a imortalidade na Palavra eterna que é viva e permanece
para sempre, e buscar o bem naquela renovação de toda nossa
• 194 •
f ~ X P O S IÇ Ã O lá

natureza que tem como ponto de partida a iluminação do entendi­


mento que segue o curso da regeneração do homem todo. Aqui há
total dependência do Espírito Santo, o Senhor e Doador da vida,
o Guia de todos quantos são vivificados, aquele que nos conduz a
toda a verdade. Oh! que as visitações de sua graça ocorram neste
precioso momento!
Vivemos pela Palavra de Deus, no sentido em que ela nos pre­
serva dos caminhos pecaminosos que nos conduziriam à morte.
Entender e imitar a justiça de Deus é o melhor preservativo contra
todos nossos inimigos letais. Se o Senhor nos der entendimento
para que vivamos assim, deveras viveremos no mais elevado e su­
blime sentido, a despeito dos poderes da morte e do inferno!

• 195 •
XPQ 51Ç Â Q

(w. 145-152)
Clamei com todo meu coração: ouve, ó Senhor, e guardarei teus esta­
tutos. Clamei a ti: salva-me, e guardarei teus testemunhos. Antecipei o
alvorecer do dia, e clamei; esperei em tua palavra. Meus olhos anteci­
pam as vigílias da noite para que eu possa meditar em tua palavra.
Ouve minha voz segundo tua benignidade; vivifica-me, ó Senhor, se­
gundo teu juízo. Aproximam-se os que seguem após o mal; andam
longe de tua lei. Tu estás perto, ó Senhor, e todos teus mandamentos
são verazes. A luz de teus testemunhos tenho conhecido que desde a
antigüidade tu os fundaste para sempre.
Esta seção é dedicada às memórias de oração. O salmista des­
creve o tempo e o método de sua súplica, e roga que Deus o liberte
de suas tribulações. Ele que tem vivido com Deus de maneira tão
íntima, certamente o achará na fornalha. Se realmente clamar­
mos, certamente seremos ouvidos. Respostas adiadas podem le­
var-nos a oportunidades; mas é preciso que não temamos os re­
sultados últimos, uma vez que as promessas de Deus não são in­
certas, mas estão “fundadas para sempre”. A passagem como um
todo nos revela: como ele orava (v, 145); pelo quê orava (v. 146);
quando orava (v. 147); quanto tempo orava (v. 148); o que pedia
(v. 149); o que acontecia (v. 151); como foi salvo (v. 150); qual
foi seu testemunho sobre toda a questão (v. 152). Que o Senhor
abençoe nossas meditações sobre esta instrutiva passagem!
[v. 145]
Clamei com todo meu coração; ouve-me, ó Senhor, e guardarei teus
estatutos.
Clamei com todo meu coração. Sua oração era sincera, quei­
xosa, dolorosa, uma expressão natural, como que provinda de uma
• 196 •
F X P O S IÇ Ã O

criatura que sente profunda dor. Não podemos dizer se todas as


vezes ele usava sua voz quando assim clamava; mas somos infor­
mados de algo que é de maior importância - ele clamava com seu
coração. Clamores do coração são a essência da oração. Ele men­
ciona a integridade de seu coração neste santo empreendimento.
Toda sua alma preiteava perante Deus; todos seus afetos, seus de­
sejos unificados, sim, tudo nele o impelia para o Deus vivo. E bom
quando uma pessoa pode dizer tudo isso em suas orações. E de
temer que muitos jamais clamaram a Deus com todo seu coração
durante toda sua vida. Não pode haver beleza de elocução em tais
orações, nenhum alcance de expressão, nenhuma profundidade
doutrinal, nenhuma exatidão de dicção. Mas se a totalidade do
coração estiver neles, encontrarão seu caminho rumo ao coração
de Deus.
Ouve-me, ó Senhor. Seu desejo diante de Jeová é que seus
clamores não se percam no ar, mas que Deus atente bem para eles.
Os verdadeiros suplicantes não ficam satisfeitos com o exercício
em si; eles têm um fim e objetivo quando oram, e saem em sua
perseguição. Se Deus não ouvisse a oração, oraríamos em vão. O
termo ‘ouve’ é amiúde usado na Escritura para expressar atenção
e consideração. Num sentido, Deus ouve cada som que é produzi­
do na terra, e cada desejo de cada coração. Davi, porém, tinha em
mente muito mais que isso: ele desejava ter diante de si um ouvinte
bondoso e solidário, tal como o médico faz com seu paciente quan­
do lhe conta sua deplorável história. Ele pediu que o Senhor esti­
vesse bem perto e o ouvisse, com ouvidos de amigo, a voz de seu
queixume, com visão de piedade posta nele e o ajudasse. Observe
que sua oração de todo o coração se direciona unicamente para o
Senhor; ele não possui uma segunda esperança nem um segundo
ajudador. “Ouve-me, ó Senhor” é a medida plena de sua petição e
expectativa.
E guardarei teus estatutos. Ele não podería esperar que o
Senhor o ouvisse se primeiro ele não ouvisse o Senhor; nem seria
procedente se orava com todo seu coração a menos que manifes­
tasse que esforçava com toda sua força para ser obediente à von­
tade divina. Seu objetivo em buscar livramento era para que esti-
• 19 7 •
S a lm o 115?

vesse livre para praticar sua religião; livre para cumprir cada orde­
nança da lei; livre para servir o Senhor.
Note bem que uma santa resolução vai bem com uma súplica
que importuna. Davi está determinado a ser santo; todo seu cora­
ção acompanha essa resolução, bem como suas orações. Ele guar­
dará os estatutos de Deus em suas meditações, em suas afeições e
em suas ações. Ele não negligenciará voluntariamente, nem es­
pontaneamente violará qualquer uma das leis divinas.
[v. 146]
Clamei a ti: salva-me, e guardarei teus testemunhos.
Clamei a ti. Novamente menciona que sua oração se direcio­
nava exclusivamente a Deus. A sentença implica que ele orava com
veemência e com muita freqüência; e que se tornara um dos mai­
ores elementos de sua vida o costume de clamar a Deus.
Salva-me. Esta era sua oração; ninguém, senão o Senhor, po­
dia salvá-lo; ao Senhor ele clamou: Salva-me dos perigos que me
cercam; dos inimigos que me perseguem; das tentações que me
sitiam; dos pecados que me acusam.
Não multiplicava palavras, mas simplesmente clamava: “Sal­
va-me.” O ser humano nunca usa excesso de palavras quando se
vê dominado por forte emoção. Davi não multiplica os objetivos;
simplesmente solicitava que fosse salvo. O ser humano raramente
é prolixo quando tem em mente uma necessidade específica.
E guardarei teus testemunhos. Este era seu grande objetivo
ao desejar a salvação: para que fosse capacitado a prosseguir numa
vida íntegra de obediência a Deus, bem como para que fosse capaz
de crer no testemunho de Deus e ele mesmo fosse uma testemu­
nha de Deus. E muito importante quando os homens buscam a
salvação por um fim tão elevado. Ele não pede para ser libertado
com o fim de pecar impunemente; seu clamor é para que fosse
libertado do próprio pecado. Comprometera-se a guardar os esta­
tutos ou leis de Deus; aqui resolve guardar os testemunhos ou
doutrinas de Deus e assim ser íntegro de mente e puro de mãos. A
salvação produz todas essas coisas boas em seu séquito. Davi não
• 198 .
E x p o s iç ã o \$

tinha idéia de uma salvação que lhe permitisse viver em pecado ou


a estabelecer-se no erro. Ele bem sabia que ninguém está salvo
enquanto permanece em desobediência e ignorância.
[v. 147]
Antecipei o alvorecer do dia, e clamei; esperei em tua palavra.
Antecipei o alvorecer do dia, e clamei. Ele se ergueu antes
que saísse o sol e começou suas súplicas antes que o orvalho co­
meçasse a secar-se da relva. Tudo quanto é digno de ser feito, é
digno de ser feito diligentemente. Esta é a terceira vez que ele faz
menção de seu clamor. Ele clamou, e clamou, e tornou a clamar.
Suas súplicas se tornaram tão freqüentes, tão ferventes e tão in­
tensas, que dificilmente se poderia dizer que ele fazia algo mais
além de clamar a seu Deus desde o alvorecer até o anoitecer. Tão
veemente era seu desejo pela salvação, que não conseguia repou­
sar em seu leito; tão ardorosamente ele a buscava, que na primeira
chance possível ele era visto debruçado em seus joelhos.
Esperei em tua palavra. A esperança é um meio poderosíssi­
mo em nosso fortalecimento para a oração. Quem porventura oraria
se não nutrisse esperança de que Deus o ouve? Quem não oraria
quando nutre firme esperança de um bendito resultado de seus
rogos? A esperança do salmista estava posta na Palavra de Deus; e
essa é uma âncora segura, porque Deus é veraz, e em hipótese
alguma ele recuaria de sua promessa, ou alteraria aquilo que foi
emitido por seus lábios. Aquele que é diligente em orar jamais se
verá destituído de esperança. Observe que, como a ave bem de
manhã sai do ninho para comer insetos, assim a oração matutina é
tão logo bafejada com esperança.
[v. 148]
Meus olhos antecipam as vigílias da noite para que possa meditar em
tua palavra.
Meus olhos antecipam as vigílias da noite. Antes que o vigia
anunciasse a hora, ele lançava seu clamor a Deus. Ele não carecia
de ser informado sobre quantas horas haviam passado; porque a
cada hora seu coração voava rumo ao céu. Ele começava o dia
• 199 •
S a lm o 115*

com oração e continuava em oração ao longo dos labores do dia e


das vigílias da noite. Os soldados costumavam permutar a guarda;
Davi, porém, não permuta sua santa ocupação. Especialmente
durante a noite ele conservava seus olhos abertos, e dele fugia o
sono, para que pudesse manter comunhão com seu Deus. Sua
adoração ia de uma vigília a outra, à semelhança do viajante cuja
viagem é de escala a escala.
Para que eu pudesse meditar em tua palavra. Isso veio a ser
comida e bebida para ele. A meditação era o alimento de sua espe­
rança e o consolo em sua tristeza: o tema sobre o qual seus pensa­
mentos se debatiam era a bendita ‘Palavra’ continuamente mencio­
nada por ele e na qual seu coração tão profundamente se regozijava.
Ele preferia estudar a dormitar, e aprendeu a abster-se de seu sono
necessário em troca de uma devoção muito mais necessária. E ins­
trutivo encontrar meditação tão constantemente conectada com
oração fervorosa. Ela é o combustível que sustenta a chama. Quão
raro artigo é esse em nossos dias! Quando é que nos deparamos com
alguém que gasta noites em oração? Nós mesmos temos feito isso?
[v. 149]
Ouve minha voz segundo tua benignidade; vivifica-me, ó Senhor, se­
gundo teu juízo.
Ouve minha voz segundo tua benignidade. Os homens acham
ser muito útil usar suas vozes na oração; é muito difícil manter a
intensidade da devoção, exceto quando nos ouvimos falar; daí Davi
por fim quebra seu silêncio, interrompe a quietude de suas medi­
tações e começa a clamar com sua voz e com seu coração ao Se­
nhor seu Deus. Note bem que ele não pleiteia seus próprios mere­
cimentos, nem por um momento apela para a quitação de um dé­
bito por conta do mérito; ele toma a via da livre graça e a expressa
“segundo tua benignidade”. Quando Deus ouve a oração de acor­
do com sua benignidade, ele passa por alto todas as imperfeições
da oração; ele esquece a pecaminosidade de quem ora e, com amor
compassivo, atende o desejo, ainda quando o suplicante seja in­
digno. A resposta imediata vem de acordo com a benignidade de
Deus —sua resposta freqüente, abundante, sim, resposta que ex-
• 200 •
r XPOSIÇÂO \J
cede muitíssimo a tudo quanto pedimos ou mesmo pensamos. A
benignidade é uma das palavras mais doces de nosso idioma. A
bondade tem em si algo que é preciosíssimo; a benignidade, po­
rém, é duplamente amorável; é a própria nata da bondade.
Vivifica-me, ó Senhor, segundo teu juízo. Esta é uma das ora­
ções mais sábias e ardentes de Davi. Ele primeiro grita: “salva-
me!” Em seguida: “Ouve-me!” E agora: “Vivifica-me!” Esta é às
vezes a melhor maneira de libertarmo-nos da tribulação - com
vistas a dar-nos mais vida, a fim de nos escaparmos da morte; e ao
acrescentar mais força a essa vida, somos capazes de desvenci­
lharmos de seus fardos. Observe bem que ele solicita por vivifica­
ção de acordo com o juízo divino, ou seja, andar num caminho que
seja consistente com a sabedoria e a prudência infinitas. Os méto­
dos divinos de comunicar maior vigor a nossa vida espiritual são
excessivamente sábios; ser-nos-ia provavelmente debalde tentar­
mos entendê-los; e ser-nos-á sábio nutrirmos o desejo de receber
a graça, não segundo nossa noção de como ela nos viria, mas se­
gundo o método celestial e divino de no-la conceder. É prerroga­
tiva sua vivificar ou tirar a vida; e é melhor deixar esse ato sobera­
no a seu próprio e infalível critério. Porventura já não nos deu ele
a graça dessa vida e a bênção de tê-la abundantemente? Nesse
dom “ele nos tem enriquecido com toda sabedoria e prudência”.
[v. 150]
Aproximam-se os que seguem a maldade; eles se afastam de tua lei.
Aproximam-se os que seguem a maldade. Ele quase podia
ouvir atrás de si o som dos passos deles. Não o estão seguindo
para seu bem, mas para seu mal, e portanto o som de sua aproxi­
mação é algo terrível. Não estão perseguindo um bom objetivo,
mas estão perseguindo um bom homem. Como se não bastasse a
maldade que habitava o próprio coração deles, se põem à caça de
algo mais. Ele os via correndo e saltando pelos montes e vales a
fim de fazer-lhe dano; e ele os mencionà diante de Deus e roga ao
Senhor que fixe seus olhos neles e os trate de modo que fiquem
confusos. Já estavam para agarrá-lo, quase já com ele nas mãos, e
por isso ele clama com mais ardor.
• 201 •
S a lm o 11S

Eles se afastam de tua lei. A vida de perversidade não pode


ser uma vida obediente. Antes que esses homens decidissem con­
verter-se em perseguidores de Davi, eles se viram obrigados a des­
vencilhar-se das restrições da lei de Deus. Não podiam odiar um
santo e ao mesmo tempo amar a lei. Os que guardam a lei de Deus
não fazem dano a si próprios e nem tampouco a outrem. O pecado
é o maior de todos os malfeitores. Davi menciona o caráter de
seus adversários em oração diante do Senhor, sentindo algum gê­
nero de conforto no fato de que os que o odiavam, odiavam tam­
bém a Deus e violavam sua santa lei quando o buscavam com o
intuito de fazer-lhe mal. Ao sabermos que nossos inimigos são
igualmente inimigos de Deus, são nossos inimigos porque o são
também dele, então desse fato extraímos conforto para nossos
corações.
[v. 1511
Tu estás perto, ó Senhor, e todos teus mandamentos são verdade.
Tu estás perto, ó Senhor. Por mais perto estivesse o inimigo,
Deus estava ainda mais perto: aqui está um dos confortos que os
perseguidos filhos de Deus mais escolhem. O Senhor está perto
para ouvir nossos clamores e para oferecer-nos imediatamente seu
socorro. Ele está perto para rechaçar nossos inimigos e dar-nos
descanso e paz.
E todos teus mandamentos são verdade. Deus não ordena a
mentira, tampouco mente em seus mandamentos. Virtude é a ver­
dade em ação, e isso é o que Deus ordena. Pecado é a falsidade em
ação, e isso é o que Deus condena. Se todos os mandamentos de
Deus são verdade, então o homem veraz se alegrará em manter-se
perto deles, e nisso achará o Deus veraz perto de si. Esta sentença
será a proteção do homem perseguido contra os corações falsos
que buscam fazer-lhe mal: Deus está perto e Deus é veraz, por
isso seu povo está seguro. Se em algum tempo cairmos em perigo
por guardarmos os mandamentos de Deus, não precisamos supor
que temos agido estultamente; podemos, ao contrário, estar ple­
namente convictos de que estamos no caminho certo; pois os pre­
ceitos de Deus são retos e verazes, e por essa mesma razão os
• 202 •
l^ X P O S IÇ A O 15>

ímpios nos assaltam. Os corações falsos odeiam a verdade, e por


isso odeiam os que praticam a verdade. Sua oposição pode ser
nossa consolação; enquanto a presença de Deus estiver conosco,
ela é nossa glória e deleite.
[v. 152]
Acerca de teus testemunhos, aprendi desde a antigüidade que tu os
fundaste para sempre.
Davi descobriu bem cedo que Deus fundara seus testemunhos
desde a antigüidade, e que eles seriam inabaláveis ao longo de to­
das as eras. É algo muitíssimo bendito ser desde bem cedo ins­
truído por Deus para que conheçamos as doutrinas essenciais do
evangelho desde nossa juventude. Os que conhecem a eterna ver­
dade em seus primeiros dias refletirá acerca desse conhecimento
com prazer nos dias de sua maturidade.
Os que creem que Davi era jovem quando escreveu este Salmo
descobrirão que é bem difícil conciliar este versículo com sua teo­
ria; é muito mais provável que já estivesse encanecido e que esti­
vesse fazendo uma retrospectiva sobre o que aprendera muito an­
tes disso. Ele aprendera desde sua infância que as doutrinas da
Palavra de Deus foram estabelecidas muito antes da fundação do
mundo, e que elas jamais mudaram e jamais poderiam, por qual­
quer possibilidade, ser alteradas. Em seus primórdios, ele se pôs a
edificar sobre a Rocha, tendo consciência de que os testemunhos
divinos foram ‘fundados’, ou seja, lançados como o fundamento,
postos e estabelecidos; e que foram assim estabelecidos com vistas
a durarem por todas as eras futuras, em meio a todas as mudanças
que viessem à existência. Foi por Davi conhecer tudo isso que ele
nutria tal confiança em oração e se fez tão insistente nela. E mui
doce pleitear as imutáveis promessas diante do Deus imutável. Foi
em decorrência desse fato que Davi aprendeu a esperar. Uma pes­
soa não pode nutrir muita expectativa direcionada para um amigo
mutável; porém pode muito bem depositar sua confiança num Deus
que não pode mudar. Foi em decorrência disso que ele se deleitava
em viver perto do Senhor, pois a coisa mais bendita é manter ínti­
mo diálogo com um amigo que jamais varia. Saibam todos os que
• 203 •
5 a lm o

escolhem seguir após os calcanhares da escola moderna em busca


do raiar de nova luz, que faça desaparecer a velha luz, que nós
vivemos felizes com a verdade que é tão antiga como as colinas e
tão fixas como as grandes montanhas. Inventem os “intelectos
cultos” outro deus mais manso e mais atraente que o Deus de
Abraão, porque estamos bem contentes em cultuar a Jeová que é
eternamente o mesmo [Hb 13.8]. As coisas eternamente estabele­
cidas são a alegria dos santos estabelecidos. As ilusões agradam as
crianças; os homens, porém, prezam aquelas coisas que são sóli­
das e substanciais, com um fundamento e alicerce que as façam
suportar a prova das eras.

• 204 •
p XPQ S1ÇÂQ 20
(w. 153-160)
Considera minha aflição e livra-me; pois não me esqueci de tua lei.
Pleiteia minha causa e livra-me; vivifica-me segundo tua palavra. A
salvação está longe dos perversos, porque não buscam teus estatutos.
Imensuráveis, ó Senhor, são tuas ternas misericórdias; vivifica-me se­
gundo teus juízos. Muitos são meus perseguidores e meus inimigos;
todavia não me desvio de teus testemunhos. Vi os transgressores, e
fiquei angustiado, porque eles não guardavam tua palavra. Considera
como amo teus preceitos; vivifica-me, ó Senhor; segundo tua benigni­
dade. Tua palavra é verdadeira desde o princípio; e cada um de teus
justos juízos dura para sempre.
Nesta seção, o salmista parece chegar ainda mais perto de Deus
em oração, declarando seu problema e invocando o divino socor­
ro com muito mais ousadia e expectativa. E uma passagem de uma
causa em juízo, e sua palavra-chave é ‘considera’. Com muita ousa­
dia, ele pleiteia sua íntima união com a causa do Senhor como a
razão pela qual ele precisa de auxílio. O auxílio especial que ele
busca é a vivificação pessoal, pela qual ele clama ao Senhor vezes
e mais vezes.
[v. 153]
Considera minha aflição e livra-me; porque não me esqueço de tua lei.
Considera minha aflição e livra-me. O escritor tem uma boa
causa, ainda que a mesma lhe seja dolorosa, e ele está pronto, aliás
ansioso, a submetê-la ao divino Arbitro. Seus problemas sãojus-
tos, e ele está pronto a pô-los diante da suprema corte. Sua atitude
é a de alguém que se sente seguro diante do trono. Todavia, não se
vê impaciência; ele não solicita uma ação rápida, e, sim, que haja
consideração. De fato ele clama: “Olha para minha tristeza e vê se
• 205 •
S a lm o llp

não há necessidade de que eu seja socorrido. Que minha dolorosa


condição seja julgada pelo uso de um método próprio e justo e em
tempo para que eu seja resgatado.” O salmista almeja duas coisas,
e essas duas coisas combinadas: primeiro, uma plena considera­
ção de sua dor; segundo, livramento; e, então, esse livramento deve
ser seguido de uma consideração de sua aflição. Seria o desejo de
um homem muito agraciado e que está envolto por adversidade; e
que o Senhor olharia para sua necessidade e a amenizaria de tal
modo que a mesma se reverteria na glória divina e em seu próprio
benefício. As palavras “minha aflição” são pitorescas; é como se
fosse a própria herança do escritor; ele a possui como nenhum
outro jamais teria experimentado, e roga ao Senhor que mantenha
essa porção especial diante de seus olhos. Era como o lavrador
que observa todo seu campo a fim de selecionar uma boa parte.
Sua oração é eminentemente prática, pois ele busca o livramento,
ou, seja, poder sair de seus problemas e ser poupado de enfrentar
algum sério dano por isso. Pedir que Deus ‘considere’ é pedir que
ele aja no tempo próprio - os homens consideram e nada fazem,
mas essa jamais foi a atitude de Deus.
Porque não me esqueço de tua lei. Mesmo com toda sua amar­
gura, sua aflição não era suficiente para dissipar de sua mente a
memória da lei de Deus; tampouco podia levá-lo a agir contraria­
mente ao mandamento divino. Ele esqueceu-se da prosperidade,
porém não se esqueceu da obediência. Essa é uma boa causa, quan­
do pode ser honestamente defendida. Se nos conservarmos fiéis
aos preceitos de Deus, podemos estar certos de que Deus perma­
necerá fiel a sua promessa. Se não nos esquecermos de sua lei, o
Senhor não se esquecerá de nós. Ele não abandonará por muito
tempo uma pessoa em sua angústia, cujo único medo é de aban­
donar o caminho da justiça.
[v. 154]
Pleiteia minha causa, e livra-me; vivifica-me segundo tua palavra.
Pleiteia minha causa, e livra-me. Ele já havia orado no último
versículo: “livra-me.” Aqui ele especifica um método no qual esse
livramento se concretizasse, a saber: pela defesa de sua causa. Em
• 206 •
F XPQ51ÇÃO 20
sua providência, o Senhor tem muitos meios de limpar o calunia­
do das acusações lançadas contra ele. Deus pode fazer manifesto
a todos que ele foi caluniado, e com isso pode praticamente defen­
der sua causa. Além do mais, ele pode levantar amigos em defesa
do piedoso que não deixará pedra sobre pedra até que seu caráter
esteja limpo. Ou pode ferir seus inimigos com tal temor de cora­
ção que se esforçarão por confessar sua falsidade, e assim o justo
será poupado, sem sequer arremessar uma única flecha. O Dr.
Alexander o lê assim: “Luta minha luta, e redime-me” —ou seja,
põe-te em meu lugar, carrega meu fardo, luta minha luta, quita
minha dívida e conduz-me à liberdade. Quando nos sentimos emu­
decidos diante de nossos inimigos, aqui está uma oração a nosso
alcance. Que conforto sabermos que, se pecarmos, temos um ad­
vogado; e que, se não pecarmos, o mesmo defensor estará empe­
nhado e bem a nosso lado!
Vivifica-me. Tivemos esta oração na última seção, e a teremos
mais de uma vez nesta. E um desejo que não pode ser sentido e
expresso com demasiada freqüência. Visto ser a alma o centro de
tudo, assim a vivificação é a bênção central. Mais vida significa
mais amor, mais graça, mais fé, mais coragem, mais força; e se
tomarmos posse desses elementos, manteremos nossas cabeças
erguidas diante de nossos adversários. Unicamente Deus pode dar­
nos essa vivificação; mas para o Senhor e Doador da vida a obra é
bastante fácil, e ele se deleita em realizá-la.
Segundo tua palavra. Davi descobrira a bênção da vivificação
entre as coisas prometidas, ou, pelo menos, percebeu que ela estava
em harmonia com o teor geral da Palavra de Deus de que os cren­
tes provados seriam vivificados e soerguidos novamente do pó da
terra; portanto ele apela para a Palavra e deseja que o Senhor aja
nele em consonância com o teor usual dessa palavra. E uma pro­
messa implícita, se não explícita, que o Senhor vivificará a seu
povo. Que poderoso pleito é este: “segundo tua palavra”! Nenhu­
ma arma, em todos nossos arsenais, poderia rivalizar-se com ela.
[v. 155]
A salvação está longe dos perversos, porque eles não buscam teus
estatutos.
• 207 •
Salm o 11j?

A salvação está longe dos perversos. Por sua perseverança no


mal, eles quase foram totalmente excluídos do cenário da esperan­
ça. Falam em ser salvos, porém não podem conhecer nada da sal­
vação, ou não permaneceriam na perversidade. Cada passo que
dão na vereda do mal, mais se afastam do reino da graça. Vão de
um a outro grau de dureza, até que seus corações se convertem
em pedras. Quando caem em tribulação, isso se lhes torna uma
condição irremediável. Todavia falam grandeza, como se não ca­
recessem de qualquer salvação, ou pudessem salvar a si próprios,
sempre que sua fantasia os volvia para esse caminho. Têm andado
tanto tempo longe da salvação que nem sequer sabem o que ela
significa.
Porque não buscam teus estatutos. Não envidam esforço al­
gum no caminho da obediência; o reverso é que é verdadeiro. Bus­
cam agradar a si próprios; buscam o mal; por isso nunca se depa­
ram com o caminho da paz e da justiça. Quando os homens que­
brantam os estatutos do Senhor, seu curso mais sábio é rumo ao
perdão, via arrependimento; rumo à salvação, via fé. Então a sal­
vação se põe perto deles, tão perto que não podem deixar de vê-la.
Mas quando os perversos persistem em ir após o malefício, a sal­
vação se põe mais e mais longe deles. A salvação e os estatutos de
Deus seguem sempre juntos: os que são salvos pelo Rei da graça,
passam a amar os estatutos do Rei da glória. A razão primordial
por que os homens não são salvos é que fogem da Palavra de Deus.
[v. 156]
Imensuráveis, ó Senhor, são tuas temas misericórdias; vivifica-me se­
gundo teus juízos.
Este versículo é muitíssimo semelhante ao 149, e no entanto
ele não é uma vã repetição. Há uma tal diferença na idéia princi­
pal, que um versículo destaca a distinção do outro. No primeiro
caso, ele menciona sua oração, porém deixa à sabedoria e ao juízo
de Deus o método de sua concretização. Enquanto aqui ele não
apresenta nenhuma oração propriamente dita, mas simplesmente
as misericórdias do Senhor, e roga que seja vivificado pelos juízos,
em vez de entregar-se à letargia espiritual. Podemos tomar como
• 208 •
X P Q 5 IÇ Â O 20

axiomático o fato de que um autor inspirado nunca seja tão sucin­


to em seus pensamentos que se veja obrigado a repeti-los. E se
porventura concluirmos que temos neste Salmo uma repetição da
mesma idéia, somos ludibriados por nossa negligência de um es­
tudo mais criterioso. Cada versículo é uma pérola distinta. Cada
folha de grama neste campo tem sua própria gota do orvalho
celestial.
Imensuráveis, ó Senhor, são tuas ternas misericórdias. Aqui
o salmista apela para a imensurabilidade da misericórdia de Deus,
a imensidão de seu terno amor; aliás, ele fala de misericórdias -
muitas misericórdias, ternas misericórdias, grandes misericórdi­
as. E diante do glorioso Jeová ele faz disto um apelo em prol de
sua oração principal, a oração por vivificação. A vivificação pro­
vém da imensurável e terna misericórdia; e são muitas misericór­
dias numa só. Aquele que é tão incomensuravelmente bom permi­
tirá que seu servo morra? Não injetará nele seu terno fôlego de
nova vida?
Vivifica-me segundo teus juízos. Uma medida de alento vem
com os juízos divinos; eles são alarmantes e excitantes; por isso o
crente recebe vivificação por meio deles. A primeira cláusula deste
versículo pode ser assim traduzida: “Muitas” ou “Multiformes, ó
Jeová, são tuas compaixões.” Ele se lembra disso em conexão com
“muitos perseguidores”, de quem fala no versículo seguinte. Me­
diante todas essas muitas miseriçórdias ele espera a graça do avi-
vamento, e assim ele tem muitas bordas para seu arco. Nunca se­
remos carentes de argumentos se os extrairmos de Deus mesmo e
se insistirmos com ele que nos conceda misericórdias e juízos como
as razões de nossa vivificação.
[v. 157]
Muitos são meus perseguidores e meus inimigos; todavia não me des­
vio de teus testemunhos.
Muitos são meus perseguidores e meus inimigos. Os que
realmente me assaltam, ou que secretamente nutrem aversão por
mim, são em grande número. Ele confronta isso com as muitas e
ternas misericórdias de Deus. Soa estranho que um homem tão
• 209 •
Salm o 115?

profundamente piedoso como Davi tivesse tantos inimigos; po­


rém tal coisa era inevitável. O discípulo não pode ser amado onde
seu Mestre é odiado. A semente da serpente se opõe à semente da
mulher - faz parte de sua natureza.
Todavia não me desvio de teus testemunhos. Ele não se des­
viava da verdade de Deus, mas prosseguia na reta vereda por mais
numerosos fossem seus adversários e por mais que tentassem pôr
pedras em seu caminho. Algumas pessoas têm sido desviadas por
um só inimigo; aqui, porém, está um santo que se mantinha em
seu caminho entre os dentes de muitos perseguidores. Há muito
nos testemunhos de Deus que compensa nosso avanço contra to­
das as hostes que porventura tramem contra nós. Enquanto não
puderem conduzir-nos nem atrair-nos ao declínio espiritual, nos­
sos inimigos não nos farão grande dano; aliás, com sua malícia
nada conseguem concretizar. Se não cedermos, não poderemos
ser derrotados. Se não conseguem levar-nos a pecar, terão perdi­
do sua força. A fidelidade à verdade promove vitória sobre nossos
inimigos.
[v. 1581
Vi os transgressores, e fiquei aflito, porque não guardaram tua palavra.
Vi os transgressores. Vi os traidores; entendi seu caráter, seu
objetivo, seu caminho e seu fim. Não pude impedir-me de vê-los,
porque se impeliram em meu caminho. Visto que fui obrigado a
vê-los, fixei neles meus olhos para aprender deles o que eu pudesse.
E fiquei aflito. Fiquei magoado em ver esses pecadores. Ao
vê-los, fiquei doente e desgostoso; não pude suportá-los. Não tive
neles nenhum prazer; foram para mim uma dolorosa visão, por
mais fino seja seu vestuário ou mais chistoso seu palavrório. Mes­
mo quando uma visão deles fosse muito jubilosa, ela fez meu cora­
ção pesado; não consegui tolerar nem a eles próprios nem a seus
feitos.
Porque não guardaram tua palavra. Minha tristeza foi ocasi­
onada mais pelo pecado deles contra Deus do que por sua inimi­
zade contra mim. O que não pude suportar, ó Senhor, não foi o
modo como trataram minhas palavras, mas o fato de negligencia-
• 210 •
[ xposiçÂo 20
rem tua Palavra. Tua Palavra me é tão preciosa, que quem não a
guarda provoca minha indignação. Não posso conservar a com­
panhia daqueles que não conservam a Palavra de Deus. O fato de
não me amarem não tem a menor importância; desprezar, porém,
a doutrina do Senhor me é uma abominação.
[v. 159]
Considera como amo teus preceitos; vivifica-me, ó Senhor, segundo
tua benignidade.
Considera, ou atenta, como amo teus preceitos. É a segunda
vez que ele roga por consideração. Como ele disse antes: “Consi­
dera minha aflição”, assim ele agora diz: “Considera minha afei­
ção.” Ele amava os preceitos de Deus - amava-os inexprimivel­
mente —, amava-os ao ponto de sentir-se trucidado ante a visão
daqueles que não os amavam. Eis um teste infalível: muitos há que
sentem profunda paixão pelas promessas, porém não conseguem
suportar os preceitos. O salmista, ao contrário, amava tudo quan­
to era bom e excelente; ele amava tudo quanto Deus ordenara. Os
preceitos são todos eles sábios e santos, por isso o homem de Deus
os amava de forma extremada: amava conhecê-los, pensava neles,
proclamava-os e, principalmente, praticava-os. Ele pediu que o
Senhor se lembrasse desse fato e o considerasse, não com base em
seus méritos pessoais, mas para que servisse como resposta às
acusações caluniosas que naquela época lhe constituíam como que
um espinho em sua ferida.
Vivifica-me, ó Senhor, segundo tua benignidade. Aqui ele
retrocede a sua oração anterior: “Vivifica-me” (v. 154), “vivifica-
me” (v. 156), “vivifica-me”, aqui. Ele ora novamente pela terceira
vez, usando as mesmas palavras. Não há mal algum em usar repe­
tições; o que é proibido é o uso de vãs repetições, como fazem os
pagãos.
Davi se sentia como alguém meio atordoado com os assaltos
de seus inimigos, quase a desfalecer sob sua incessante malícia.
Daí clamar: “Vivifica-me.” O que lhe faltava era avivamento, res­
tauração, renovação; portanto ele implorava por mais vida. O tu
que me vivificaste quando eu estava morto, vivifica-me novamente
•211-
S a lm o IIP

agora para que eu não volte para o mundo dos mortos! Vivifica-
me para que eu possa sobreviver aos golpes de meus inimigos, à
debilidade de minha fé e ao desfalecimento procedente de minha
tristeza. Desta vez ele não diz: “Vivifica-me segundo teus juízos”,
mas: “Vivifica-me, ó Senhor, segundo tua benignidade.” No amor
e mercê de Deus ele deposita sua máxima e final confiança. Eis a
grande arma que ele saca para debilitar o conflito; é seu último
argumento. Se não fosse bem sucedido, ele desfaleceria. Ele esti­
vera por muito tempo batendo ante o portão da misericórdia; e
com esta súplica ele desfere seu mais pesado golpe. Ao cair em
grande pecado, esta fora sua súplica: “Tem misericórdia de mim, ó
Deus, segundo tua benignidade”; e agora que está em grande tri­
bulação, ele dá asas ao mesmo raciocínio eficaz. Visto Deus ser
amor, ele nos dará vida; visto ser bondade, ele acenderá novamen­
te a chama celestial dentro de nós.
[v. 160]
Tua palavra é verdadeira desde o princípio; e cada um de seus justos
juízos dura para sempre.
O dolente cantor termina esta seção da mesma forma que a
última: realçando a infalibilidade da verdade de Deus. E aconse­
lhável que o leitor note bem a semelhança entre os versículos 144,
152 e este.
Tua palavra é verdadeira. Seja o que for que os transgresso­
res digam, Deus é verdadeiro e verdadeira sua Palavra. Os ímpios
são falsos, porém a Palavra de Deus é veraz. Eles nos acusam de
sermos falsos, porém nosso consolo está no fato de que a Palavra
de Deus nos purificará.
Desde o princípio. A Palavra de Deus tem sido verdadeira desde
o primeiro momento em que ela foi verbalizada; verdadeira ao longo
de toda a história; verdadeira para nós desde o instante em que
cremos nela. Aliás, ela nos é verdadeira antes que fôssemos verda­
deiros para ela. Alguns lêem: “Tua palavra é verdadeira desde a
cabeça”: verdadeira como um todo, verdadeira de alto a baixo. A
experiência ensinara a Davi esta lição; e a experiência nos está
ensinando a mesma coisa. As Escrituras são tão verdadeiras em
• 212 •
XPOS1ÇAO 20

Gênesis como em Apocalipse; e os cinco livros de Moisés são tão


inspirados como os quatro Evangelhos.
E cada um de teus justos juízos dura para sempre. Aqui o
que decidiste permanece irreversível em cada caso. Contra as de­
cisões do Senhor não se pode demandar nenhum escrito de erro,
nem jamais haverá rescisão de nenhum dos atos de sua soberania.
Não existe um único equívoco, seja na Palavra de Deus, seja nas
atividades providenciais de Deus. Nem no Livro da Revelação nem
da Providência haverá qualquer necessidade de apor uma única
linha de errata. Não existe no Senhor nenhum arrependimento
nem retratação; nenhuma emenda nem reversão. Todos os juízos
de Deus, seus decretos, seus mandamentos e seus propósitos são
justos; e visto que são justos, duram para sempre; cada um deles
sobreviverá às próprias estrelas. “Enquanto existirem céus e terra,
de forma alguma desaparecerá da Lei a menor letra ou o menor
traço, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18). A justiça de Deus dura
para sempre. Eis aqui um glorioso pensamento. Todavia existe um
muito mais doce, o qual outrora era o cântico dos sacerdotes no
templo, e que o mesmo seja também o nosso: “Sua misericórdia
dura para sempre.”

t"

• 213 •
^ XPQ5IÇÃQ 21
(w. 161-168)
Príncipes me perseguiram sem causa; meu coração, porém, nutre te­
mor por tua palavra. Regozijo-me em tua palavra, como alguém que
acha um grande despojo. Odeio e aborreço a mentira; amo, porém,
tua lei. Sete vezes ao dia eu te louvo por causa de teus justos juízos.
Grande paz desfrutam aqueles que amam tua lei; e nada os ofenderá.
Tenho esperado, ó Senhor, em tua salvação, e tenho cumprido teus
mandamentos. Minha alma tem guardado teus testemunhos; e os amo
extremamente. Tenho guardado teus preceitos e teus testemunhos, por­
que todos meus caminhos estão diante de ti.
Estamos caminhando para o final. O pulso do Salmo bate com
mais rapidez do que o costumeiro; as sentenças são mais curtas; o
sentido, mais vívido; os acordes, mais cheios e profundos. O vete­
rano de mil batalhas, o recipiente de dez mil misericórdias, enu­
mera suas experiências e uma vez mais declara sua lealdade ao
Senhor e sua lei. Oh! que ao chegarmos ao final da vida terrena
sejamos capazes de falar como Davi falou ao encerrar sua vida ao
som de salmos! Não vangloriosamente, porém ousadamente, ele
se põe entre os servos obedientes do Senhor. Oh! que bom que a
consciência continue luminosa quando o sol da vida se põe!
[v. 161]
Príncipes me têm perseguido sem causa; meu coração, porém, nutre
temor por tua palavra.
Príncipes me têm perseguido sem causa. Essas pessoas deve­
riam ter melhor conhecimento; deveriam sentir-se solidárias para
com alguém de sua própria estirpe. Um homem espera um julga­
mento justo por parte de seus iguais. E ignóbil alguém sentir-se
prejudicado; pior ainda é que pessoas nobres ajam assim. Se a
• 214 •
fjçposiçà o 21

honra for banida do coração de todos os demais, ela deve perma­


necer na vida dos reis; e, por certo, a honra proíbe a perseguição
ao inocente. Os príncipes são designados para a proteção dos vir­
tuosos e a vingança em prol dos oprimidos; e a ignomínia triunfa
quando se convertem nos próprios assaltantes dos justos. Quão
doloroso era que este homem se sentisse acossado pelos juízes da
terra, pois sua eminente posição adicionava opressão e veneno a
sua inimizade. Era indispensável que o sofredor pudesse veraz-
mente asseverar que tal perseguição era “sem causa”. Ele não ha­
via transgredido as leis deles, não os havia injuriado, não desejara
vê-los injuriados, não havia sido advogado de rebeldes ou anar­
quistas, nem havia pública nem secretamente feito oposição ao
poder deles e, portanto, enquanto isso tornava sua opressão ainda
mais inescusável, removia uma parte de sua picada e ajudava o
bravo servo de Deus a suportar suas opressões.
Meu coração, porém, nutre temor por tua palavra. Ele pode­
ria ter-se deixado vencer pela admiração dos príncipes, não ocor­
resse que um temor maior afastasse o menor, e não fora vencido
pela admiração que nutria pela Palavra de Deus. Quão poucas são
as coroas e os cetros no julgamento daquele homem que percebe
uma realeza mais majestosa nos mandamentos de seu Deus! Pro­
vavelmente nãd nos sentiremos desencorajados pela perseguição,
nem levados por ela a pecar, se a Palavra de Deus exercer em nos­
sas mentes o supremo poder.
[v. 162]
Regozijo-me em tua palavra como alguém que acha um grande despojo.
Sua estupefação não destruía sua alegria; seu temor de Deus
não era do tipo que o amor perfeito lança fora, mas de um tipo
que é nutrido pelo amor. Ele tremia da Palavra do Senhor e toda­
via se regozijava nela. Ele compara sua alegria com a de alguém
que esteve por muito tempo no campo de batalha e que por fim
conquista a vitória e divide o despojo. Comumente isso faz parte
da porção dos príncipes; e ainda que Davi se visse separado de
initras monarquias em virtude de ser perseguido por elas, toda­
via ele lograra suas próprias vitórias, as quais eles não entendi-
• 215-
S a lm o 1ip

am, e tesouros dos quais não podiam partilhar. Ele podia dizer:
"Sem causa sou odiado e caçado por príncipes:
Todavia pus tua Palavra em meu coração.
Essa Palavra eu temo: essa Palavra eu retenho,
Ela me é mais preciosa Que montões de ouro apossados."

“O despojo de Davi” equivalia muito mais que os ganhos de


todos os homens poderosos. Sua presa de guerra, apossada por
sua enérgica polêmica em prol da verdade de Deus era maior que
todos os troféus que ele poderia ter ganho na guerra. A graça se­
para maior despojo do que o provindo da espada ou do arco.
Nos dias maus temos que lutar arduamente em defesa da ver­
dade divina: cada doutrina nos custa uma batalha. Mas quando
ganhamos uma plena compreensão da verdade eterna através de
lutas pessoais, ela se nos torna duplamente preciosa. Se tivermos
inusitadamente que batalhar pela Palavra de Deus, que tenhamos
por nosso despojo a inapreciável Palavra de Deus!
Talvez a passagem signifique que o salmista se alegrava como
alguém que toma posse de um tesouro escondido pelo qual não
havia lutado, em cujo caso encontramos a analogia no homem de
Deus que, enquanto lê a Bíblia, faz grandes e abençoadas desco­
bertas da graça de Deus a ele oferecida - descobertas que o sur­
preendem, pois ele parecia não encontrar para elas qualquer pre­
ço. Se nos aproximarmos da verdade como descobridores ou como
guerreiros a lutar por ela, o tesouro celestial ser-nos-ia igualmente
precioso. Com que imensa alegria o lavrador volta para casa com
o ouro que achou! E como os vitoriosos que gritam quando repar­
tem o despojo! Quão feliz deve ser aquele que descobre sua por­
ção nas promessas da Santa Escritura e se vê no desfruto daquela
porção que lhe pertence, sabendo pelo testemunho do Espírito
Santo que ela é totalmente sua!
[v. 163]
Eu odeio e aborreço a mentira; amo, porém, tua lei.
Eu odeio e aborreço a mentira. Uma dupla expressão para
uma inexprimível aversão. Falsidade na doutrina, na vida ou na
• 216 •
{^ x p o s iç ã o 21

linguagem, falsidade em qualquer forma ou aspecto, se tornara


totalmente detestável ao salmista. Essa era uma notável afirmação
para um oriental fazer; pois, geralmente, mentir constitui o deleite
dos orientais, pois o único erro que vêem nesse ato é quando per­
cebem que sua habilidade falhou, de modo que a mentira é desco­
berta. Davi mesmo fizera muito progresso ao chegar a esse ponto,
pois ele também, em seus dias, havia praticado a astúcia. Entre­
tanto, ele não só se referia à falsidade na conversação, mas eviden­
temente sua intenção é a perversidade na fé e na doutrina. Ele
atribui à mentira toda e qualquer oposição ao Deus da verdade, e
então volve toda sua alma contra ela com a mais intensa forma de
indignação. Os homens piedosos devem detestar a falsa doutrina
mesma, porque abominam qualquer outra mentira.
Amo, porém, tua lei. Não meramente se dedicava a ela, mas
sentia profundo prazer nela. Obediência mal-humorada equivale
essencialmente a rebelião. Somente um amor cordial assegurará
lealdade sincera à lei. Davi amava a lei de Deus, porque ela é ini­
miga da falsidade e a guardiã da verdade. Seu amor era tão arden­
te como seu ódio. Ele amava intensamente a Palavra de Deus, a
qual é inerentemente a pura verdade. Os homens verdadeiros amam
a verdade e odeiam a mentira. E é bom que saibamos que os cami­
nhos de nosso ódio e de nosso amor correm paralelos. E podemos
prestar serviço essencial a outros, declarando quais os objetos de
nossa admiração e de nossa aversão. Ambos, o amor e o ódio, são
contagiosos, e quando são santificados, quanto maior a extensão
de sua influência, melhor.
[v. 164]
Sete vezes ao dia eu te louvo por causa de teus justos juízos.
Ele labutava com integridade para louvar seu Deus íntegro, e
portanto cumpria o número perfeito de cânticos: o número sete.
Ele atingia um Sábado em seu louvor; e antes de repousar em seu
leito, ele achava doce descanso na alegre adoração a Jeová. Sete
também poderia ter a notável intenção àe frequência. Freqüente-
mente ele alçava seu coração em ação de graças a Deus por sua
divina doutrina na Palavra e por suas divinas ações na Providên-
• 217 •
S a lm o \\9

cia. Ele exaltava com sua voz a justiça do Juiz de toda a terra.
Enquanto ele meditava nos caminhos de Deus, um cântico brota­
va de seus lábios. A vista dos príncipes opressores, e ao ouvir da
proliferação da falsidade a circundá-lo, ele sentia ainda mais forte
vontade de adorar e magnificar a Deus, o qual em todas as coisas
é verdade e justiça. Quando alguém nos calunia, ou de alguma
forma nos rouba o justo prêmio do louvor, isso deve constituir-
nos motivo para não cairmos na mesma conduta em relação a Deus,
o qual é muitíssimo mais digno de honra. Se louvarmos a Deus
quando formos perseguidos, nossa música lhe será muitíssimo mais
doce por causa de nossa constância em meio ao sofrimento. Se
nos mantivermos isentos de toda mentira, nosso canto será ainda
mais aceitável, visto que o mesmo emana de lábios honestos. Se
nunca bajularmos os homens, estaremos em melhor condição de
honrar ao Senhor. Porventura louvamos a Deus sete vezes ao dia?
Aliás, a pergunta precisa ser alterada: louvamo-lo pelo menos uma
vez em sete dias? O fraude deprimente, que priva o eternamente
Bendito da música desta esfera inferior!
A preeminente santidade das leis e dos atos de Jeová deveria
produzir em nós louvor contínuo. Felizes os santos que se deixam
governar por um justo Soberano que jamais erra! Cada amante da
justiça dirá em seu coração:
"Justas são tuas leis; eu diariamente te apresento
o sétuplo tributo de meu louvor.”

[v. 165]
Grande paz desfrutam aqueles que amam tua lei; e nada os ofenderá.
Grande paz desfrutam aqueles que amam tua lei. Que extra­
ordinário versículo é este! Ele não trata daqueles que guardam
perfeitamente a lei - pois onde acharíamos tais pessoas? -, mas
daqueles que a amam, cujos corações e mãos são feitos para ajus­
tar-se a seus preceitos e mandamentos. Tais pessoas estão sempre
se esforçando, de todo seu coração, para andar em obediência à
lei; e ainda que seja com freqüência perseguidas, todavia desfru­
tam de paz, sim, de grande paz; pois aprenderam o segredo do
sangue que traz reconciliação, já experimentaram o poder do Es-
• 218 •
f 7XP05IÇÂ0 21

pírito Consolador e já se puseram perante o Pai como pessoas


aceitáveis. O Senhor lhes concedeu sentir sua paz, a qual vai mui­
to além de toda compreensão. Enfrentam muitos problemas e pro­
vavelmente serão perseguidos pelos soberbos; porém sua condi­
ção costumeira é a de profunda calma - uma paz profunda demais
para que “essas doces afeições” sejam desfeitas.
E nada os ofenderá; ou, “nada realmente os prejudicará”. “To­
das as coisas cooperam juntamente para o bem daqueles que amam
a Deus, daqueles que são chamados segundo seu decreto.” Faz-se
necessário que venham as ofensas; mas esses amantes da lei são
pacificadores, e por isso não ofendem nem são ofendidos. Essa
paz que se acha fundamentada na conformidade com a vontade de
Deus é viva e perene, digna de ser escrita com entusiasmo, como
aqui faz o salmista.
[v. 166]
Senhor, tenho esperado em tua salvação, e tenho cumprido teus man­
damentos.
Aqui temos a salvação pela graça e os frutos provenientes dela.
Toda a esperança de Davi estava posta em Deus, e buscava a sal­
vação tão-somente nele; e então se esforçava mais energicamente
ainda por cumprir os mandamentos de sua lei. Os que depositam
a mínima confiança nas boas obras humanas são com muita fre-
qüência os que mais as exibem. Esta mesma doutrina divina que
nos livra da confiança em nossos próprios feitos nos leva a uma
rica produção de boas obras para a glória de Deus. Em vez de
angústia, há duas coisas a serem feitas: primeiro, esperar em Deus;
segundo, fazer aquilo que é correto. A primeira sem a segunda
seria mera presunção; a segunda sem a primeira seria mero for­
malismo. E bom que olhemos para trás para vermos se podemos
alegar que agimos da forma ordenada pelo Senhor. Se porventura
agimos corretamente para com Deus, então estamos certos de que
agiremos com indulgência para conosco.
[v. 167]
Minha alma tem guardado teus testemunhos; e eu os amo excessiva­
mente.
• 219 -
S a lm o \\J

Minha alma tem guardado teus testemunhos. Minha vida


externa tem guardado teus preceitos; e minha vida íntima, minha
alma, tem guardado teus testemunhos. Deus tem testificado de
muitas verdades sacras, e estas mantemos firmes com todo nosso
coração e alma, pois as valorizamos como a própria vida. O ho­
mem agraciado entesoura a verdade de Deus em seu coração como
um tesouro excessivamente querido e precioso - ele o guarda. Sua
alma secreta, seu Eu mais íntimo, vem a ser o guardião desses
ensinamentos divinos que são sua única autoridade nas questões
da alma. Para ele, torna-se um grande regozijo em sua velhice po­
der dizer: “Minha alma tem guardado teus testemunhos.”
E eu os amo excessivamente. Essa foi a razão por que os guar­
dava; e, tendo-os guardado, esse foi o resultado de os haver guar­
dado. Ele não entesourou a verdade revelada meramente à guisa
de dever, mas em virtude da profunda e inexprimível afeição por
ela. Ele sentia que, assim que morresse, poderia vir a renunciar
parte da revelação de Deus. Quanto mais nossas mentes entesou­
rem a verdade celestial, mais profundamente a amaremos; quanto
mais percebemos as excessivas riquezas da Bíblia, mais nosso amor
excederá em medida e excederá em expressão.
[v. 168]
Tenho guardado teus preceitos e teus testemunhos; porque todos meus
caminhos estão diante de ti.
Tenho guardado teus preceitos e teus testemunhos. Ele ente­
sourou ambas as partes da Palavra de Deus: a prática e a doutrinal, e
as preservava e as seguia. E algo bendito ver as duas formas da Pala­
vra divina igualmente conhecidas, igualmente valorizadas, igualmen­
te confessadas. Conhecemos aqueles que se esforçam por ser cuida­
dosos no tocante aos preceitos, mas que parecem concluir que as
doutrinas do evangelho são meras questões de opinião, e que podem
adaptá-las para si mesmos. Esta não vem a ser uma condição perfeita
das coisas. Temos conhecimento de outros que são por demais rígi­
dos quanto a doutrinas, e dolorosamente relaxados em referência aos
preceitos. Isso também está longe de ser correto. Quando ambos são
‘guardados’ com igual solicitude, então temos o homem perfeito.
• 220 •
f 7x P O S iç Ã o 21

Porque todos meus caminhos estão diante de ti. Provavel­


mente, sua intenção era dizer que esse era o motivo de sua diligên­
cia em viver com retidão na cabeça e no coração, porque sabia que
Deus o via e temia errar impulsionado pelo senso da divina pre­
sença. Ou, ainda, ele está assim apelando a Deus a que testificasse
acerca da veracidade do que ele dizia. Em ambos os casos, não é
uma pequena consolação sentir que nosso Pai celestial sabe tudo
sobre nós, e que se os príncipes falam contra nós, e as pessoas
mundanas enchem suas bocas com mentiras cruéis, todavia ele
pode defender-nos, porquanto não há nada secreto para ele e nada
que possa ocultar-se dele.
Ficamos chocados com o contraste entre este versículo, que é
o último de sua oitava, e o versículo 176, que é semelhantemente
colocado na próxima oitava. Este é um protesto de inocência: “Te­
nho guardado teus preceitos”, e a confissão de pecado: “Tenho me
desviado como uma ovelha perdida.” Ambos eram sinceros; am­
bos, acurados. A experiência torna um paradoxo muito claro; e
este é um deles. Diante de Deus podemos ser purificados de uma
falta pública, e no entanto, ao mesmo tempo, estar de luto milha­
res de corações oscilantes que necessitam de sua mão restauradora.

• 221 •
(w. 169-176)
Que meu clamor, ó Senhor, chegue diante de ti; dá-me entendimento
segundo tua palavra. Que minha súplica chegue diante de ti; livra-me
segundo tua palavra. Meus lábios proclamarão louvores, quando me
tiveres ensinado teus estatutos. Minha língua falará de tua palavra;
porque todos teus mandamentos são justiça. Que tua mão me socorra;
porque tenho escolhido teus preceitos. Tenho suspirado, ó Senhor, por
tua salvação; e tua lei é meu deleite. Que minha alma viva, e ela te
louvará; e que teus juízos me ajudem. Tenho me desviado como uma
ovelha perdida; busca teu servo, porque não me esqueço de teus man­
damentos.
O salmista está agora na última seção do Salmo, e suas peti­
ções ganham ainda mais vigor e mais fervor; é como se tivesse
rompido o círculo íntimo da comunhão divina e se precipitado aos
pés do grande Deus cujo auxílio se põe a implorar. Essa proximi­
dade gera a mais abjeta visão de si próprio e o leva a concluir o
Salmo, prostrando-se no pó, na mais profunda humilhação pesso­
al, rogando que fosse buscado, à semelhança de uma ovelha perdida.
[v. 169]
Que meu clamor, ó Senhor, chegue diante de ti; dá-me compreensão
segundo tua palavra.
Que meu clamor, ó Senhor, chegue diante de ti. Ele está tre­
mendamente temeroso de não ser ouvido. Está cônscio de que sua
oração em nada é melhor que o ‘clamor’ de um pobre filho, ou o
gemido de um animal ferido. Ele teme não fazer-se ouvir pelo Al­
tíssimo; porém com muita ousadia ora para que possa chegar-se
diante de Deus, para que seja por ele ouvido, estar sob sua obser­
vação e contemplado por sua aceitação. Aliás, ele avança mais e
• 222 •
HXPQ51ÇAQ 22

implora: “Que meu clamor, ó Senhor, chegue diante de ti.” Ele


deseja que a atenção do Senhor, para sua oração, seja muito ínti­
ma e considerada. Ele usa uma figura de linguagem e personifica
sua oração. Podemos descrever sua oração como Ester, aventu­
rando-se a entrar na presença real, introduzindo-se numa audiên­
cia e rogando por mercê aos olhos do bendito e único Potentado.
E algo muitíssimo agradável para um suplicante saber que há ga­
rantia de sua oração ser ouvida, quando tiver pisado o mar de
vidro diante do trono e tiver ainda chegado ao escabelo do glorio­
so trono em torno do qual o céu e terra adoram. E a Jeová que esta
oração é pronunciada com tremente ardor - nossos tradutores,
cheios de santa reverência, grafam a palavra toda maiuscula: O
SENHOR. Não clamamos a nenhum outro, porque não confia­
mos em nenhum outro.
Dá compreensão segundo tua palavra. Esta é a oração acerca
, da qual o salmista está tão extremamente ansioso. Com todas suas
conquistas ele poderia obter compreensão, e com todas suas per­
das ele está resolvido a não perder este inapreciável privilégio. Ele
deseja luz e entendimento espirituais, como estão prometidos na
Palavra de Deus, como procedem da Palavra de Deus e como pro­
duzem obediência à Palavra de Deus. Ele suplica como se não pos­
suísse entendimento algum e solicita que algo dele lhe fosse dado.
“Dá-me compreensão.” Aliás, ele tinha aquela compreensão ou
entendimento segundo o critério humano; porém, o que ele bus­
cava era uma compreensão proveniente da Palavra de Deus, que é
algo completamente distinto. Compreender as coisas espirituais é
dom de Deus. Ter um discernimento iluminado pela luz celestial e
conformado com a verdade divina é um privilégio que somente a
graça pode conferir. Muito daquilo que leva uma pessoa a ser con­
siderada sábia de acordo com o critério deste mundo não passa de
estultícia, à luz da Palavra do Senhor. Estejamos, pois, entre os
filhos ditosos, os quais serão todos ensinados pelo Senhor!
[v. 170]
Que minha súplica chegue diante de ti; livra-me segundo tua palavra.
Que minha súplica chegue diante de ti. É o mesmo pedido
• 223 •
S a lm o \\9

com uma leve mudança de termos. Ele humildemente denomina


seu clamor de súplica, uma espécie de petição do indigente; e
novamente suplica que seja ouvido e atendido. Poderia haver obs­
táculos entre ele e Aquele a quem dirigia sua oração, e então roga
que fossem removidos: “Que minha súplica chegue.” Outros cren­
tes são ouvidos pelo Grande Senhor, pessoalmente - que minha
oração chegue diante de ti; que eu também seja ouvido por meu
Deus.
Livra-me segundo tua palavra. Desvencilha-me de meus ad­
versários; poupa-me de meus caluniadores; preserva-me dos que
me tentam; redime-me de todas minhas aflições, mesmo porque
tua palavra me tem levado a esperar que o faças por mim. E por
isso que no versículo anterior ele busca compreensão ou discerni­
mento. Seus inimigos, com sua estultícia, prevaleciam - se é que
prevaleciam. Se ele, porém, exercesse uma sólida diretriz, eles se­
riam frustrados, e ele escaparia deles. O Senhor, em resposta à
oração, amiúde livra seus filhos, fazendo-os sábios como serpen­
tes e símplices como pombas.
[v. 171]
Meus lábios proclamarão louvores, quando me tiveres ensinados teus
estatutos.
Ele nem sempre é visto suplicando por si mesmo; ele se põe
acima de todo egoísmo; rende graças pelos benefícios já recebi­
dos. Promete louvar a Deus quando tiver recebido instrução práti­
ca na vida de piedade. Este é um grande motivo de louvor, porque
não há bênção mais preciosa. O melhor louvor possível é aquele
que procede dos cristãos que honram a Deus, não só com seus
lábios, mas também em suas vidas. Aprendemos a música celestial
na escola do santo viver. Aquele cuja vida honra ao Senhor com
certeza é uma pessoa que sabe louvar. Davi não se calaria em sua
gratidão, mas a expressaria com termos apropriados: seus lábios
proclamariam o que sua vida havia praticado. Discípulos eminen­
tes costumam falar bem do mestre que os instruíra. E este santo
homem, ao ser instruído nos estatutos do Senhor, promete render
toda a glória Aquele a quem ela pertence.
. 224 •
j^xposiçÃo ZZ

[v. 172]
Minha língua falará de tua palavra; porque todos teus mandamentos
são justiça.
Minha língua falará de tua palavra. Assim que começou a can­
tar, ele também começou a proclamar. As ternas misericórdias de
Deus são tais que podem ser ou proclamadas ou cantadas. Quando
a língua fala a Palavra de Deus, ela encontra um tema muitíssimo
frutífero. Tal linguagem será como uma árvore de vida, cujas folhas
são para a cura dos povos. Os homens se reunirão para ouvir tal
proclamação, e a entesourarão em seus corações. O que há de
pior em nós é o fato de que, em grande maioria, estamos satura­
dos de nossas próprias palavras, e falamos muito pouco a Palavra
de Deus. Oh! se pudéssemos chegar à mesma resolução deste pie­
doso salmista, e dizer doravante: “Minha língua proclamará tua
palavra!” Então romperíamos nosso pecaminoso silêncio; não mais
agiríamos covardemente e não mais seríamos timoratos; mas serí­
amos genuínas testemunhas de Jesus. Não é só as obras de Deus
que temos de contar; temos também que falar sua Palavra. Pode­
mos enaltecer sua verdade; sua sabedoria; sua riqueza; sua graça;
seu poder. E então podemos falar de tudo o que ele tem revelado,
de tudo o que tem prometido, de tudo o que tem ordenado e de
tudo que tem efetuado. O tema nos confere uma amplitude infini­
ta de recursos; podemos falar dele para sempre; a história está
sendo sempre repetida, sem, porém, jamais chegar ao fim.
Porque todos teus mandamentos são justiça. A impressão
que Davi nos passa é que ele era principalmente afeiçoado da par­
te preceptiva da Palavra de Deus; e concernente ao preceito, seu
principal deleite estava em sua pureza e excelência. Quando um
cristão pode falar assim de seu coração, este realmente se trans­
forma em templo do Espírito Santo. Ele disse anteriormente (v.
138): “Teus testemunhos são justos”; aqui, porém, ele declara que
eles são a própria justiça. A lei de Deus é não só o padrão do certo,
mas é a essência da justiça. Isso o salmista afirma de cada um e de
todos os preceitos sem exceção. Seu sentimento era o de Paulo: “A
lei é santa, e o mandamento, santo, justo e bom.” Quando um
cristão possui uma opinião tão elevada dos mandamentos de Deus,
• 225 •
S a lm o 115*

não surpreende que seus lábios estejam sempre prontos a enalte­


cer o eternamente glorioso.
[v. 173]
Que tua mão me socorra; porque tenho escolhido teus preceitos.
Que tua mão me socorra. Dá-me socorro prático. Não me
confies a meus amigos, nem a teus amigos, mas põe-me em tua
própria mão para a realização de tua obra. Tua mão confere habi­
lidade e poder; prontidão e tenacidade: exibe todas essas qualida­
des em meu benefício. Pretendo fazer o máximo que puder; porém
necessito de teu auxílio; e isso requer tanta urgência, que se eu não
o tiver, sucumbirei. Não retenhas teu socorro. Grande como é tua
mão, que ela sempre me guie luminosamente. A oração nos lem­
bra Pedro caminhando sobre o mar e então começa a submergir-
se. E a seguir ele grita: “Senhor, salva-me/’ E a mão de seu Mestre
se estende para seu salvamento.
Porque tenho escolhido teus preceitos. Um ótimo argumen­
to. Uma pessoa pode pedir convenientemente o socorro da mão
de Deus quando tiver dedicado suas próprias mãos inteiramente à
obediência da fé. Ele fez sua escolha; sua mente foi edificada. Em
preferência a todas as normas e caminhos terrenos; em preferên­
cia ainda a sua própria vontade, ele decidira ser obediente aos
mandamentos divinos. Deus não ajudará tal pessoa na obra santa
e no serviço sacro? Seguramente que sim. Se a graça nos deu
coração para querer, ela também nos dará mãos com as quais pos­
samos realizar. Sempre, sob a coerção da vocação divina, que nos
vemos engajados em algum empreendimento elevado e sublime, e
sentimos que nossa força é por demais pequena, podemos invocar
a destra de Deus com palavras semelhantes a estas.
[v. 174]
Tenho suspirado, ó Senhor, por tua salvação; e tua lei é meu deleite.
Tenho suspirado, ó Senhor, por tua salvação. Ele fala como
o velho Jacó em seu leito mortuário. Aliás, todos os santos, quer
em oração quer na morte, é como se fossem apenas um: em pala­
vra, em ação e em mente. Ele conhecia a salvação de Deus, porém
• 226 •
H x p o s iç ã o 2 2
suspirava por ela, ou, seja: ele havia experimentado certa medida
dela, e agora era levado a desejar algo ainda mais elevado e mais
completo. A fome santa dos santos aumenta até que seja saciada.
Há uma salvação ainda por vir, quando estivermos libertados do
corpo desta morte, isentos de toda chaga e tribulação desta vida
mortal, elevados acima das tentações e assaltos de Satanás e con­
duzidos para bem perto de nosso Deus, para sermos como ele e
estarmos com ele para todo o sempre.
“Tenho suspirado, ó Senhor, por tua salvação; e tua lei é meu
deleite.” A primeira cláusula nos diz pelo quê o santo suspira, e
isso nos informa qual é sua presente satisfação. A lei de Deus,
contida nos Dez Mandamentos, comunica alegria ao coração do
crente. A lei de Deus, ou seja, toda a Bíblia, é uma fonte donde
emana consolação e fruição a todos quantos a recebem. Ainda que
não tenhamos alcançado a plenitude de nossa salvação, todavia
achamos na Palavra de Deus o suficiente da presente salvação,
que mesmo agora já nos deleitamos nela.
[v. 175]
Que minha alma viva, e então ela te louvará; e que teus juízos me
ajudem.
Que minha alma viva. Enche-a da plenitude de vida, preser­
va-a de vaguear pelas veredas da morte; dá-lhe a alegria de ser
habitada pelo Espírito Santo; que ela viva a plenitude de vida, até à
possibilidade máxima de ser recriada.
E então ela te louvará. Ela te louvará para a vida, para a nova
vida, para a vida eterna, porque tu és o Senhor e Doador da vida.
Quanto mais viver, mais ela te louvará; e quando viver em perfei­
ção, ela te louvará em perfeição. A vida espiritual consiste em ora­
ção e louvor.
E que teus juízos me ajudem. Enquanto leio o registro do que
tens feito, em temor e amor, que eu seja vivificado e desfrute de
progresso. Enquanto vejo tua mão realmente em ação sobre mim,
e sobre outros, punindo o pecado e sorrindo para a justiça, que eu
seja ajudado a viver bem e louvar-te bem. Que todos teus feitos na
Providência me instruam e me ajudem na luta para vencer o peca-
• 227 •
S alm o U p

do e para a santidade prática. Essa é a segunda vez, nesta porção,


que ele suplica por auxílio. Ele era sempre carente dele, assim como
nós também o somos.
[v. 1 7 5 ]
Eu me desviei como uma ovelha perdida; busca teu servo; porque não
me esqueço de teus mandamentos.
Este é o final, a conclusão de toda a matéria: Eu me desviei
como uma ovelha perdida - freqüente, espontânea, temerária e
mesmo inutilmente, porém pela interposição de tua graça. Em vez
de avançar, antes de eu ser afligido e antes que me ensinasses ple­
namente teus estatutos, eu me desviei. “Eu me desviei” da prática
dos estatutos, das doutrinas instrutivas e das experiências celesti­
ais que puseste diante de mim. Perdi minha estrada e perdi a mim
próprio. Ainda agora minha tendência é perambular e, de fato,
tenho perambulado. Portanto, Senhor, restaura-me.
“ Não sou tua ovelha extraviada?
Busca-me, ó Bom Pastor;
Encontra-a e, com teu esforço, guarda
A querida [ovelha] comprada com teu sangue:
Se te afastares, ela novamente se perderá;
Por isso oculta-me, ó Salvador, em teu coração.”

Busca teu servo. Ele era não como um cão que, de um modo
ou de outro, pode encontrar seu caminho de volta; mas era como
uma ovelha perdida, que quanto mais avança mais se extravia do
redil. Ele, porém, ainda era uma ovelha, e ovelha do Senhor, sua
propriedade e preciosa a seus olhos, e por isso esperava ser busca­
do a fim de ser restaurado. Por mais distante pudesse ter vaguea­
do, ele era ainda não só uma ovelha, mas também um ‘servo’ de
Deus, e portanto desejava estar novamente na casa de seu Dono e
uma vez mais ser honrado com os serviços de seu Senhor. Houve­
ra ele sido apenas uma ovelha perdida, não teria orado para ser
buscado; sendo, porém, também um ‘servo’, estava apto a orar.
Ele clama: “busca teu servo”, e espera não só ser buscado, mas
também perdoado, aceito e recebido novamente no serviço graci­
osamente prestado a seu Dono.
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T XPQ5IÇÂO 22
Preste atenção nesta confissão. Diversas vezes no Salmo Davi
defende sua própria inocência contra os acusadores obscenos; mas
quando chega à presença do Senhor seu Deus, ele se prontifica a
confessar suas próprias transgressões. Ele aqui resume não só seu
passado, mas ainda sua vida presente, sob a imagem de uma ove­
lha que abandonara suas pastagens, afastara-se do rebanho, virara
as costas para o pastor e se embrenhara pelos desertos, onde se
tornara como que algo perdido. A ovelha bale, e Davi ora: “Busca
teu servo.”
Seu argumento é convincente: porque não me esqueci de teus
mandamentos. Eu conheço o certo, aprovo e admiro o certo. Ain­
da mais: amo o certo e anelo pelo certo. Não posso viver satisfeito
por continuar em pecado; preciso ser restaurado nas veredas da
justiça. Tenho saudade de meu Deus; anelo pelas veredas da paz;
não me esqueço nem posso esquecer-me de teus mandamentos;
jamais deixo de saber que sempre sou mais feliz e mais seguro
quando escrupulosamente obedeço a tua lei e acho minha alegria
em agir assim.
Se a graça de Deus nos capacita a manter em nossos corações
a amável memória de seus mandamentos, ela seguramente ainda
nos restaurará à santidade prática. Uma pessoa não pode estar
irremediavelmente perdida, se seu coração ainda permanece em
Deus. Se ela extraviar-se em muitos aspectos, ainda assim, se nu­
trir realmente em sua alma os mais íntimos desejos por Deus, ela
será encontrada outra vez e plenamente restaurada. Todavia, que
o leitor lembre-se do primeiro versículo do Salmo enquanto lê o
último: a maior bem-aventurança está não em ser restaurado de
nossa peregrinação, mas em sermos sustentados na vereda da vida
irrepreensíveis até o fim. Cabe-nos guardar nossa coroa ao longo
da jornada, jamais deixando a estrada do Rei pelos atalhos das
campinas virentes, nem por outra vereda florida de pecado. Possa
o Senhor sustentar-nos até o fim. Todavia, ainda então não estare­
mos aptos a brasonar-nos com o fariseu, mas continuemos oran­
do com o publicano: “O Deus, sê propício a mim pecador”; e com
o salmista: “Busca teu servo.”
Que a última oração de Davi neste Salmo seja a nossa, ao en-
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Salm o 11J

cerrarmos este livro e elevarmos nosso coração ao Eminente Pas­


tor das ovelhas. Amém.

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NOSSAS OBRAS
C om entários de João Calvino
* Romanos
* 1 Corindos
♦ 2 Corindos
* Gálatas
* Efésios
♦ As Pastorais (Timóteo, Tito e Filemom)
♦ Hebreus
* Salmos - vol. 1
♦ Salmos - vol. 2
♦ Daniel —vol. 1
Outros Autores
» Salmo 1 1 9 -0 Alfabeto de Ouro de Spurgeon
♦ Servos e Versos e Vice-versa de Percília e Alvaro Almeida
Campos
♦ Inovações do Romanismo de Carlos Hastings Collette
♦ TULIP —Os Cinco Pontos do Calvinismo à Luz das
Escrituras (2a edição) de Duane Edward Spencer
♦ Socorro! Sou Equipante de Acampamento de Norman
Wright - A.E.A.
♦ O Acampamento Cristão nos Dias de hoje de Lloyd Mattson
-A.E.A.
♦ O Caminho de Deus para a Santidade deHoratius Bonar
♦ O Livro da Vida de Valter Graciano Martins
Obras em Preparação
♦ Romanos (2a edição) de Jo ã o C alvin o
♦ EU CREIO no Pai, no Filho e no Espírito Santo de
Herm isten M a ia Pereira da Costa
♦ Salmos - vol. 3 de Jo ã o C alvino
» Daniel - vol. 2 de Jo ã o C alvino

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