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APRESENTAÇÃO

O Retiro é um momento forte de conversão, de discernimento, de (re) encontrar o ritmo da


oração pessoal. É momento de encontro pessoal com a pessoa de Jesus. É tempo de silêncio,
de oração, de graça, de solidão, de abertura ao Espírito. É algo que tem sentido para a vida
de cada dia. Não é um parêntese na vida... É tempo de iluminar o coração, de descobrir nos-
sas atitudes, nossos sentimentos, de dispor-nos a acolher o dom de Deus, e cultivá-lo com um
coração generoso. O Retiro é um tempo para a percepção mais profunda dos apelos de Deus
no momento histórico, no aqui e agora da minha vida.

É importante ter presente que o Retiro é também oportunidade especial para nutrir nossa es-
piritualidade, que, assim como viveu e transmitiu o Santos Fundador, não pode ter melhor
origem e melhor fundamento do que na pessoa de Jesus e na sua existência concreta.

Importa viver no espírito de Jesus, deixar que toda nossa vida se impregne nos valores, atitu-
des, critérios e preferências de Jesus. É importante centralizar nossa vida na pessoa, no pro-
jeto e na prática de Jesus. Trata – se de caminhar seguindo suas pegadas, tencionando fazer
da nossa existência uma oferenda, como Ele fez de sua vida, para pô-la a serviço do Pai e
dos Irmãos¹.

O Retiro é, antes de tudo, um meio de experimentar a presença de Deus.


Desejar o encontro com Deus, por meio da oração, da leitura pessoal, da meditação, da oração
comunitária, da contemplação, guiada pela Palavra de Deus, a partir do que o Espírito Santo
vai sugerindo.

Desejamos a todos um excelente Retiro, que os momentos vivenciado nesse tempo nos forta-
leçam a viver intensamente nossa Consagração e Missão.

Fraternalmente em Cristo e La Salle

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SIGLAS

VC – Vita Consecrata
EMO – Explicação do Método de Oração Mental
PT – Pequenos Tratados
MD – Meditação para todos os Domingos do Ano
MR – Meditações para o Tempo de Retiro
MF – Meditações sobre as principias Festas do Ano
DC – Deveres do Cristão
LG – Lumen Gentium
EG – Evangelii Gaudium
M – Meditações
GS – Gaudium et Spes
PC – Perfectae Caritatis
CL – Cahiers Lasalliens
EP – Exercícios de Piedade
CT – Coleção de Vários Pequenos Tratados
I – Instruções e Orações para a Santa Missa, a Confissão e a Comunhão
R – Regra
RC – Regras Comuns
D – Declaração sobre o Irmão das Escolas Cristãs no Mundo de Hoje
C – Código do Direito Canônico
CG – Capítulo Geral
DA – Documento de Aparecida
PC – Partir de Cristo
CLAR – Confederação Latino-Americana de Religiosos

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A PALAVRA DE DEUS NA VIDA E MISSÃO DO IRMÃO

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A PALAVRA DE DEUS NA VIDA E MISSÃO DO IRMÃO

“Segundo a tradição espiritual, é da meditação da Palavra de Deus e, em particular,


dos mistérios de Jesus Cristo, que nascem a intensidade da contemplação e o ardor da ativi-
dade apostólica, tanto na vida religiosa contemplativa como na ativa. Esta é a razão pela
qual foram sempre os homens e mulheres de oração os que, como autênticos intérpretes e
executores da vontade de Deus, realizaram grandes obras. No contato assíduo com a Palavra
de Deus hauriram a luz necessária para o discernimento pessoal e comunitário indispensável
para vislumbrar os caminhos do Senhor nos sinais dos tempos” (VC 94)

Também nisso o texto Pós-Sinodal sintoniza com o que nossa espiritualidade lassalista e
nossa Regra nos sugerem, como poderemos ver a seguir.

1. DEVEMOS PARTIR DE NOSSA HERANÇA LASSALISTA

Nossa espiritualidade e nossa mística lassalista tem, como coordenadas, a Realidade e a


Palavra de Deus. Trata-se de ler a realidade à luz da Palavra de Deus. Diz-nos a Regra que
devemos encontrar na Sagrada Escritura a fonte primeira de nossa oração e de nossa vida;
como diariamente devem ler e meditar a Palavra de Deus num mundo plural e muitas vezes
secularizado, os Irmãos experimentam a necessidade de um contato diário com a Palavra de
Deus. Ela alimenta sua vida e os ajuda a entender as pessoas, os acontecimentos e o mundo
em relação com o Plano de Deus (R 64).

Neste sentido, Karl Barth afirmava que os dois principais livros de oração do homem de
hoje deveriam ser a Bíblia e o jornal. Mas, na América Latina, ficou usual afirmar que deve-
mos rezar com um ouvido no Evangelho e o outro no povo. Contudo, mesmo parecendo tão
atual, esta forma de proceder já faz parte de nossa rica herança lassalista.

A Escritura é um dinamizador essencial para nossa vida de Irmãos. Razão pela qual a
Regra afirma: Para entrar e viver no espírito de seu Instituto, os Irmãos nutrem-se continua-
mente da Palavra de Deus, a estudam, a meditam e a partilham entre eles. Tem profundíssi-
mo respeito à Sagrada Escritura, especialmente ao Evangelho, “sua primeira e principal
Regra” (R 8)

Vale à pena deter-se no que o Fundador propunha aos Irmãos na Regra de 1718, do qual
resultou o atual Nº 6 da Regra: “Os Irmãos desta Sociedade terão profundíssimo respeito à
Sagrada Escritura; para manifestá-lo, levarão sempre consigo o Novo Testamento, e não
passarão nenhum dia sem ler algo nele, por sentimento de fé, de respeito e de veneração às
divinas palavras que contem, considerando-o como sua primeira e principal Regra” (R.C.
1718, Capítulo II)

Afirmou-se, com razão, que o Fundador “é um enamorado da Bíblia. Preconiza uma


oração fortemente escriturária” (Miguel Campos, Michel Sauvage, Explicação do Método de
Oração de São João Batista de La Salle, p. 377, Madri, 1933). É o que se pode ver em um de
seus ensinamentos: “Os textos da Sagrada Escritura..., sendo palavras de Deus segundo nos
ensina a fé, tem, de per si, uma unção divina; por si próprias nos conduzem a Deus, nos fa-
zem amá-lo e nos ajudam a manter na alma a atenção à presença divina e a conservar em
nós o gosto de Deus” (EMO n. 143).

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Outrossim, o caminho que nos propõe o Fundador para a oração, pode ser resumido
em três pontos, nos quais a Escritura ocupa, nos três, um lugar central. No primeiro, a presen-
ça de Deus se inspira em um texto tirado da Escritura; no segundo, o Fundador nos pede ex-
plicitamente nos centremos em um mistério, virtude ou máxima extraído da Escritura, particu-
larmente do Evangelho; no terceiro, trata-se de fazer de nossa vida um acontecimento da His-
tória da Salvação.

A Palavra de Deus, o mistério de Jesus Cristo contemplado na oração, deve transformar-


se em palavra vivida e atualizada. No coração da Escola Sulpiciana, o Jesus visto só terá au-
tenticidade se chegar a ser o Jesus nas mãos. É a isso que o Fundador chama de “espírito do
mistério” e é a isso que nos convida, permanentemente, com sua vida e em seus escritos. Con-
templar a Palavra e atualizá-la na vida é um dos nossos grandes desafios.

É por essa razão que, no Creio da Oração elaborado no Simpósio, se fazia o seguinte ato
de fé: “CREMOS que a Palavra de Deus ilumina a nossa vida e nos dá a força de que neces-
sitamos para convertermo-nos continuamente e comprometermo-nos na história da salva-
ção”.

2. O EU DE NOSSA ORAÇÃO.

É importante a maneira de acercar-nos e interiorizar a Escritura para orar. Não se trata


de uma leitura exegética ou teológica, embora ela possa ajudar; tampouco se trata de uma
interpretação subjetiva, baseada em sentimentos. A Escritura deve levar-nos, antes de tudo, a
fazer nossa a Vontade de Deus que nela se manifesta. Trata-se, na realidade, de:

 Uma oração que não brota do EU POSSO, porque minha oração não irá depender,
fundamentalmente, da capacidade de controle mental que eu possa ter. As técnicas de
autodomínio podem me ajudar, mas não são, propriamente, oração. Não devo esque-
cer que a oração, embora seja tarefa humana é, fundamentalmente, dom de Deus.

 Também não é uma oração que se reduz ao EU PENSO, porque a oração não é o re-
sultado de minha especulação intelectual, nem da lógica interna dos meus pensamen-
tos, nem da beleza estética dos mesmos.

 Também não é uma oração centrada no EU SINTO, porque os sentimentos podem


ser úteis, mas não constituem a oração. Posso aplicar à oração o que me diz um re-
frão árabe: “Como é diferente participar do banquete pelo banquete do que de fazê-
lo pelo amigo que convida”. E o Fundador nos adverte que é mais importante buscar
ao Deus dos consolos que aos consolos de Deus.

 Minha oração deve nascer do EU QUERO. Não de um querer que seja sinônimo de
“Querer é poder”, mas de um querer afetivo de abandono. No fundo, trata-se de di-
zer ao Senhor: “Eu quero o que Tu queres”. Secura, consolos ou vazio, pouco im-
porta, desde que seja o que tu queiras. A oração que seja centrar-me em Deus e des-
centrar-me de mim mesmo. E, honestamente, caso sinta que não quero o que Deus
quer, pelo que de exigência e de cruz possa ter, rezar é dizer-lhe, ao menos: “Senhor,
eu quereria querer o que Tu queres”.

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Sabemos que a atitude de abandono é o fruto mais precioso de nossa espiritualidade
Lassalista. Como Jeremias poderemos então dizer: “Quando recebia tuas palavras eu as de-
vorava; tua palavra era meu gozo e minha alegria íntima”. (Jr 15,16)

3. A BIBLIA, ESCOLA DE ORAÇÃO

A Bíblia nos ensina a orar. Diz Bonhoeffer: “A criança aprende a falar porque seu pai
fala com ela; aprende a linguagem do pai. Nós aprendemos a falar com Deus porque Ele nos
falou e nos fala. Na linguagem do Pai Celestial aprendem seus filhos a falar com Deus. Repe-
tindo as palavras de Deus, aprendemos a orar”.

Devemos aproximar-nos da Bíblia, não como se fosse um tratado, mas como de uma
história, de uma narrativa. A história viva do amor de Deus pelo homem. Mas, esta história
não a devemos ler como algo do passado, mas como uma história que nos ajuda a entender
onde estamos atualmente e para onde vamos amanhã

Podemos entender isso melhor a partir do seguinte texto de Isaías: “Assim fala o Se-
nhor, aquele que abriu um caminho através do mar e uma estrada por entre as águas impetu-
osas; aquele que colocou em movimento carros de guerra e cavalos, todo um exército de ho-
mens aguerridos; eles ficaram estendidos, não se levantaram, extinguiram-se, consumiram-se
como uma mecha. Esqueçam as coisas passadas, não pensem nas coisas antigas; vejam, eu
estou fazendo algo novo: já está germinando, não percebem? Sim, abrirei um caminho no
deserto e rios na estepe. Glorificar-me-ão... porque farei brotar água no deserto e rios na
estepe, para dar de beber ao meu povo, meu escolhido, o povo que me formei para que apre-
goe meu louvor” (Is 43,16-21)

Isaías conta esta história não para reforçar a alienação, mas para que todos se deem con-
ta de que o mesmo está sucedendo com eles. É o típico da Lectio Divina: narra a história anti-
ga, mas imediatamente mostra que essa história está acontecendo agora.

É assim que devemos nos aproximar da Bíblia. Ler o texto não simplesmente como pon-
to de partida para a reflexão, para tirar dele lições morais, nem como informação sobre fatos
do passado, mas como história que ilumina a realidade atual e ajuda a compreender o que está
acontecendo no presente. A Palavra de Deus nos introduz numa relação e não numa lembran-
ça. Trata-se da relação viva na qual, aqui e agora, sou eu quem reconhece Deus presente em
minha existência, acolhendo-me, apoiando-me, guiando-me, falando-me (Andrés Torres
Queiruga).

É importante, também, unir a oração sálmica com a oração histórica, profética e sapien-
cial... Certamente o livro dos Salmos é o livro de oração por excelência. Mas não devemos
esquecer que toda a Bíblia é livro de oração. Os salmos são o livro do enamoramento de Deus
por seu povo. O que explica que, neles, a oração seja íntima, intensa, profunda e sincera. To-
davia, na oração dos profetas, que vivem com seu Povo, descobrimos outras dimensões da
oração, como a política e a social. Diz o carmelita espanhol Augusto Guerra: “Os profetas
sentem a necessidade de escutar a palavra de Deus, atrevem-se a rebelar-se conta esse mes-
mo Deus, buscam escapatórias que os levam a crer que Deus pode ficar convencido; e termi-
nam aceitando ser por Ele seduzidos, como exigência à qual, sinceramente, ninguém pode
escapar.”

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Devemos encontrar o equilíbrio entre a oração sálmica – mais íntima –, a oração históri-
co-profética – mais concreta e real, mais inserida no mundo –, e a oração sapiencial – mais
reflexiva e humana. E, ao mesmo tempo, precisamos conscientizar-nos de que toda oração
bíblica deve terminar centrando-nos no Senhor Jesus, Palavra última e definitiva que Deus Pai
pronunciou e que o Espírito Santo atualiza, diuturnamente, no mais profundo de nosso ser e
no mundo. “A escuta dos Evangelhos e o mais profundo e rigoroso dos conhecimentos das
palavras evangélicas são insuficientes e enganosos sem a olhada fixa no personagem vivo,
sem a contemplação direta do Senhor. O valor insubstituível dos evangelhos, a garantia de
sua autenticidade residem na impossibilidade de separar as palavras da Palavra” (Jacques
Guillet).

4. LECTIO DIVINA

“Os Irmãos partilham regularmente a Palavra de Deus, luz para sua vida e inspiração
para sua missão” (R 73.1).

“A Palavra de Deus é a fonte primeira de toda a espiritualidade cristã, o alimento da


relação pessoal com o Deus vivo e com sua vontade salvífica e santificadora. Este o motivo
pelo qual a Lectio Divina foi tida na mais alta estima desde o nascimento dos Institutos de
Vida Consagrada... Graças a ela, a Palavra de Deus chega à vida, sobre a qual projeta a luz
da Sabedoria, que é dom do Espirito” (VC 94).

E, a partir de um texto do falecido Ir. Luís Combes, do Distrito da Argentina, um modo


concreto de fazer a Lectio Divina. Busque um texto da Bíblia. Pode ser qualquer um, mas o
melhor é que seja de uma das Leituras do dia. Com o texto em tuas mãos, por vezes basta
apenas uma frase, percorre, sem pressa, esses 05 passos, depois de renovar a consciência na
Presença de Deus.

1. Que diz o texto? Leio-o atentamente. Como se lesse uma carta, uma notícia. Para
São João Batista de La Salle, a Escritura é como uma carta que Deus nos envia.
“Lede vosso livro como leríeis uma carta enviada pelo próprio Jesus Cristo para
manifestar-vos sua santa vontade e, sobretudo se é a Sagrada Escritura, lede-a com
profundíssima veneração” (PT 39). Tomo conhecimento do conteúdo do texto. Pro-
curo entender, de maneira objetiva, o que diz. Trato de captar seu sentido, o contex-
to no qual se encontra, a mensagem. É um momento de leitura e informação.

2. Que me diz Deus neste texto? Coloco-me diante de Deus, que me quer falar. Sim!
A mim! Trata-se de uma carta pessoal. Procuro reavivar a presença viva de Deus.
Pode ser o Deus das maravilhas da criação, o Deus que está comigo, ao meu lado
como companheiro de caminhada, o Pai bondoso que me ama, o amigo Jesus, o
Deus que habita em meu coração, o Deus da Comunidade reunida, o Senhor da Eu-
caristia... O importante é sentir-me “habitado” por Ele. É neste clima que Deus me
fala. Escuto-o de coração aberto. Que me diz Ele? Sei que sempre me ama, me co-
nhece, quer meu bem, minha felicidade. Mas, hoje, que me diz? Leio novamente o
texto. Detenho-me. Sinto-me alcançado pela Palavra. Estou imerso em sua luz. Con-
templo-me no espelho dessa Palavra. Examino meu coração. Comparo minha vida,
minha realidade..., com a Palavra lida. A mensagem é clara. Questiona-me, convida-
me, compromete-me, sacode-me. É um momento de profunda meditação.

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3. Que respondo a Deus? No íntimo vão surgindo, como resposta: dor, pena, arrepen-
dimento, desejo de mudança. Ou bem: paz, gozo, alegria, confiança, gratidão, louvor,
desejo de fazer algo, etc. Tudo isso que pulsa em meu coração o digo a Deus. Com
simplicidade, desordenadamente. Como uma criança que conta a sua mãe o que lhe
aconteceu. Assim, peço a Deus perdão por minhas infidelidades, luz, força, coragem,
ajuda. Louvo-o, agradeço-lhe, prometo-lhe melhorar…Trata-se de um momento de
ORAÇÃO, de diálogo amoroso com Deus.

4. O que acontece quando o Espírito intervém? É o momento em que se saboreia o


texto, captando-o, não de uma maneira intelectual ou reflexiva, mas naturalmente,
por intuição, diretamente sob a ação do Espírito. O texto nos faz passar das palavras
à Palavra, centra-nos na pessoa de Jesus e nos faz experimentar seu amor gratuito. O
texto transforma-se em fonte de gozo, oração autêntica, porque o próprio espírito de
Deus, que o inspirou, ora em nós e Nele nos dirigimos ao Pai com Jesus, Trata-se de
uma verdadeira contemplação.

5. O que digo aos outros? O diálogo com Deus, que pode se transformar em contem-
plação silenciosa, não termina aqui. Sinto que esta Palavra não é apenas para mim.
Que necessito anunciá-la. Divulgar a mensagem. Este dom de Deus, sua Palavra,
devo partilhá-lo com meus Irmãos. A luz que Deus colocou em meu coração é, tam-
bém, para os outros. Então, o que digo aos outros do que Deus hoje me disse? Con-
cretamente, a quem, quando, onde, como... Coloco meu projeto e meus bons desejos
nas mãos do Senhor. Confio no Espírito Santo. Se aceito ser seu instrumento, no
momento oportuno ele falará por minha boca. Como Maria, ao visitar sua parenta,
sou portador da Palavra viva que leva gozo e esperança. Por isso, em clave bem las-
salista, termino minha oração recorrendo a Ela. Trata-se de um momento de proje-
ção.

4. ORAÇÃO COMUNITÁRIA DA PALAVRA DE DEUS

A Regra mostra-nos que o contato diário com a Palavra de Deus não só nos nutre pesso-
almente, mas que deve assumir uma dimensão comunitária. É juntos que descobrimos, a partir
da fé, a Palavra de Deus e que, também, é juntos que oramos com a Palavra de Deus. É o que
nos apresenta a Regra na descrição que faz da Comunidade dos Irmãos:

 É uma Comunidade de fé na qual os Irmãos partilham sua experiência de Deus, vi-


vida nos compromissos diários e na escuta da Palavra de Deus, na oração pessoal e
comunitária, na leitura dos sinais dos tempos e no discernimento da vontade de
Deus (R 46).

 A Comunidade dos Irmãos é comunidade de oração. Os Irmãos rezam juntos, juntos


ouvem e meditam a Palavra de Deus. Juntos reconhecem-se pecadores diante de
Deus e participam da Eucaristia. Juntos buscam e encontram a Deus (R 47).

Também Vita Consecrata nos convida à oração comunitária da Palavra de Deus, parti-
lhando-a não apenas com os integrantes da nossa comunidade, mas, em algumas ocasiões,
aberta também a outras pessoas. Ou seja, é um convite para sermos mestres de oração. “A
meditação comunitária da Bíblia contém um grande valor. Feita de acordo com as possibili-
dades e as circunstâncias da vida da Comunidade, oportuniza a alegria de partilhar a rique-
za descoberta na Palavra de Deus, graças à qual os Irmãos e as Irmãs crescem juntos e se
entreajudam a progredir na vida espiritual. Convém, inclusive, que se proponha esta prática
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também para outros membros do Povo de Deus, sacerdotes e leigos, promovendo, de modo
mais conforme com o próprio carisma, escolas de oração, de espiritualidade e de leitura
orante da Escritura, na qual Deus “fala aos homens como amigos, com eles se entretém para
convidá-los e recebê-los em sua companhia” (VC 94).

Este documento propõe-nos ainda outra forma de oração e reflexão bíblica que poderia
ser denominado de “contemplação de um ícone”. Dos números 14 a 19, com os quais se ini-
cia a primeira parte do documento, nos é apresentado, em clave trinitária, o ícone de Cristo
transfigurado; todavia, ao logo do documento aparecem outros ícones, como o ícone da co-
munidade dos Doze (Mc 3,13-15; At 2,42-47), ao falar de nossa fraternidade (VC 41), ou
quando fala da formação inicial, o ícone dos “sentimentos do Filho” (Fl 2,75), sentimentos
com os quais o jovem deve identificar-se (cf. VC 65 a 69), ou o ícone Jesus lavando os pés
dos apóstolos (Jo 13,1-5), ao falar da missão apostólica que nos deve fazer amar com o cora-
ção de Jesus Cristo (VC 75).

O Ir. Miguel Campos, quando Conselheiro Geral, alcançou-me um texto por ele elabo-
rado sobre “Como explorar os “ícones” fundantes de nossa vida de Irmãos? Ignoro se foi
publicado, porque o oportunizado era apenas um rascunho. O Ir. Miguel Campos se inspira no
livro Como ler o Novo Testamento?, de Etienne Charpentier. Ao falar-nos, em termos foto-
gráficos, de como os discípulos ficaram “impressionados” o autor adverte que foi só depois
de Pentecostes, no contato com as diversas comunidades, que essa imagem, como em uma
imersão “reveladora”, se irá manifestando. Esta imagem pode ser aplicada, também, à con-
templação dos ícones que se irão revelando, de modo diferente, a partir de nossas circunstân-
cias históricas concretas. E o Ir. Miguel nos diz: Assim, os ícones nos podem levam à oração
interior mais profunda, a um movimento continuo que emerge do coração da criação e da
história, do centro de nossa vida e nos põe em movimento rumo a esse centro transcendente,
o mistério de Cristo. Totalmente descentrados de nós mesmos e centrados em Cristo, a partir
desse centro, partimos, apaixonados pelo fogo do amor, para a realidade de nossas vidas.
Esse movimento continuo é um processo contínuo de transformação. Todavia, a plena con-
formação à imagem de Deus só alcançaremos na consumação de todas as coisas em Cristo
(Efésios). Enquanto vivemos, estamos em continuado processo de transfiguração.

E, ao perguntar-se o Ir. Miguel se podemos falar de ícones lassalistas nos diz: Se apli-
camos esse conceito de banho revelador à primeira Comunidade de La Salle e de seus pri-
meiros associados, podemos, também, falar dessa imersão reveladora que foi o itinerário
desse grupo de discípulos que se sentiram convocados a viver autenticamente o Evangelho na
França dos séculos XVII e XVIII. Enfrentando novas situações inéditas, à luz da Escritura,
descobrem as marcas que levam dentro deles, de uma imagem de Jesus que se vai revelando
progressivamente em suas vidas. Não me importo se não plasmamos em nossa Regra algum
ícone lassalista mais explícito, embora pense que o Bom Pastor da Meditação 33 deveria ser o
ícone lassalista por excelência.

E, como o Bom Pastor, nosso olhar se volta para o rosto de cada um de nossos discípu-
los, de nossos Irmãos e Associados, de cada pessoa humana, especialmente as mais vulnerá-
veis. Então poderemos fazer nosso o belo pensamento do teólogo ortodoxo Olivier Clement:
O Cristianismo é a religião dos rostos... Ser cristão é descobrir no próprio coração da au-
sência e da morte um rosto sempre aberto, como uma nesga de luz, o de Cristo e, através de-
le, penetrados pela luz, graças a sua ternura, os rostos de pecadores perdoados que não mais
julgam, mas acolhem. O Evangelho é o anúncio deste gozo.

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PALAVRA DO FUNDADOR

“Fiquei muito contente que tenha feito retiro para procurar retomar mais plenamente o espírito
de seu estado e o espírito de oração. Pedirei a Deus que lho conceda” (C 27,8).

“Muito me alegra que vá, de tempos em tempos, fazer retiros na Missão” (C 28,27).

“Peço-lhe que as preocupações que está tendo não o impeçam de fazer o retiro e de nele
aprender a obedecer devidamente. Faça-o porque eu lho peço” (C 61,6).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Mt 5,1-16 - Tg 1,16-27
Rm. 8,28-30 - Tg. 1,16-27

 Trato de ser uma presença de experiência salvífica para os demais?


 Uma presença de confiança, segura de esperança, de ânimo, de alegria?
 Tenho experimentado essa presença da parte de algum Irmão?

ANOTAÇÕES

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A PRESENÇA AMOROSA DE DEUS NA VIDA E MISSÃO DO IRMÃO

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A PRESENÇA AMOROSA DE DEUS NA VIDA E MISSÃO DO IRMÃO

Se, como nos dizia Olivier Clement, o Cristianismo é uma religião de rostos, creio que
também podemos dizer que nossa espiritualidade é uma espiritualidade que gira em torno de
uma presença, já que se trata de uma espiritualidade unificadora, cujo ponto central não é, em
si, nossa própria perfeição, mas o serviço ao irmão, a solidariedade com os que sofrem, a en-
trega aos jovens e àqueles que necessitam de nós. É por essa razão que o Fundador e os pri-
meiros Irmãos identificam a missão com a Obra de Deus. Não há lugar para dualismos: o
Deus que encontramos no silêncio da oração de cada manhã é o Deus que continuamos vendo
no rosto de nossos Irmãos, de nossos alunos, de todos os que se aproximam de nós e especi-
almente dos pobres. É essa a razão pela qual falamos hoje de uma mística dos olhos abertos.

Como belamente o expressou Monsenhor Casaldáliga:

Ao final do caminho me perguntarão: Viveste? Amaste?


E eu, sem dizer nada, abrirei o coração repleto de nomes.

Bento XVI nos convida a olhar de maneira adequada à humanidade inteira, a quantos
conformam o mundo e suas diversas culturas e civilizações. O olhar que o crente recebe de
Cristo é um olhar de bênção: um olhar sábio e amoroso, capaz de recolher a beleza do mun-
do e de partilhar sua fragilidade. Neste olhar transparece o olhar do próprio Deus sobre os
homens que Ele ama e sobre a criação, obra de suas mãos. (Domingo de Ramos de 2012)
O Papa Francisco, falando do olhar de Jesus a Mateus, nos diz que a fé começa com um
jogo de olhares. Jesus nos vê primeiro: “Depois de olhá-lo, com misericórdia, o Senhor disse
a Mateus: “Segue-me”. E Mateus se levantou e o seguiu. Depois do olhar, a palavra de Jesus.
Após o amor, a missão. Mateus já não é mais o mesmo; mudou interiormente. O encontro
com Jesus, com seu amor misericordioso, o transformou. Ficam para trás a banca de impos-
tos, o dinheiro, sua exclusão. Antes ele esperava, sentado, para arrecadar, para tirar dos
outros; agora, com Jesus, deve levantar-se para dar, entregar, entregar-se aos outros. Jesus
o olhou e Mateus encontrou a alegria no serviço”. Porque “o olhar de Jesus gera uma ativi-
dade missionária, de serviço, de entrega”.
O tema do olhar é recorrente no Papa Francisco. Ao referir-se a São Pedro, em uma ho-
milia em Santa Marta, distinguiu três olhares: “o primeiro olhar, o olhar da eleição, com o
entusiasmo de seguir a Jesus; o segundo, o olhar do arrependimento, no momento do gravís-
simo pecado da negação de Jesus; o terceiro olhar, o da missão: ‘Apascenta a minhas ove-
lhas, apascenta os meus cordeiros...’ “Também nós podemos pensar: Qual é, hoje, o olhar de
Jesus sobre mim? Como me olha Jesus? Com um chamado? Com um perdão? Com uma mis-
são? No caminho que percorre todos estamos sob o olhar de Jesus. Ele nos olha sempre com
amor. Nos pede algo, nos perdoa seja o que seja e nos confia uma missão”.
Também nos fala do olhar de Jesus, cheio de amor misericórdia, a mulher adúltera e, em
Holguín, durante sua visita a Cuba, o Papa nos diz: “Aprendamos a olhar como Ele nos olha,
partilhemos sua ternura e sua misericórdia com os enfermos, os presos, os anciãos e em nos-
sas famílias”. Deixemos que o olhar de Jesus “percorra nossas ruas” e nos devolva “a ale-
gria e a esperança.”

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Nossa esperança histórica e escatológica não é, todavia, uma atitude fatalista ante um
futuro que não vislumbramos claramente. Tampouco a podemos reduzir a uma resignação
passiva ou a um otimismo ingênuo. O fundamento de nossa esperança é o Deus revelado por
Jesus no Evangelho. É o olhar de Jesus que nos revela o amor misericordioso do Pai e nos
abre os olhos às necessidades dos outros. Nossa esperança escatológica nunca deve ser válvu-
la de escape para não nos comprometermos com nossa história.

Nossa espiritualidade lassaliana é uma espiritualidade que nos abre à realidade e a suas
necessidades com os olhos de Deus, com o olhar de Deus. É um jogo de olhares. Também
sabemos que o espírito de fé e zelo exerce um papel unificador que nos faz ver a realidade,
não como profana ou sagrada, mas como sacramental. Tudo nos revela a Deus: “os farrapos
dos meninos” (MD 96,3) fazem Jesus presente; a escola, “obra de Deus” ¸ converte-se no
lugar teológico onde o Irmão, por seu amor concreto e eficaz para com os jovens, torna visível
o rosto de Deus.

Para nossa espiritualidade o mundo, longe de ser um obstáculo a nosso encontro com
Deus, é o caminho normal pelo qual Deus se manifesta, como presença ou ausência, mas
sempre a partir da iniciativa de seu amor gratuito: Tanto amou Deus ao mundo que lhe deu
seu Filho Unigênito (Jo 3,16). E é, ao mesmo tempo, o lugar onde devemos prolongar sua
presença.

Nosso participar na glória e na vida trinitária nos faz continuadores de Jesus enviado do
Pai e testemunhas do amor do Pai revelado em Jesus, com a força do Espírito, para a vida do
mundo. Esta experiência, ao mesmo tempo contemplativa e carregada de ação, faz com que
nos sintamos, em palavras de Teilhard de Chardin, filhos do céu e filhos da terra em profunda
unidade interior, sem que um afogue o outro. E que levemos em nosso coração o fogo de uma
dupla paixão: por Deus e pela humanidade.

A presença dos jovens e as necessidades do mundo estão tão presentes no coração do


Irmão que, mesmo nas ações destinadas a deixá-lo, sozinho, face a face com Deus, não pode
deixar de levá-lo a pensar nos jovens e no mundo. Esta é a doutrina lassaliana: “Porque ten-
des exercícios destinados à vossa santificação pessoal; mas, se viveis animados de zelo ar-
dente pela salvação daqueles de que estais encarregados de instruir, não omitireis tais exer-
cícios, mas os fareis com essa intenção” (MR 205,2).

A Regra nos lembra esta dupla dimensão, a ser vivida numa profunda integração:

 Toda a vida dos Irmãos é transfigurada pela presença do Senhor que chama, consa-
gra, envia e salva (R 21).

 Por seus relacionamentos, testemunham a fraternidade evangélica, sinal da presença


do Senhor (R 53)

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1. PENETRAR-NOS DA PRESENÇA DE DEUS
Uma de nossas maiores riquezas espirituais é o Método de Oração legado pelo Funda-
dor. Não tanto pela estrutura que nos oferece, mas, sobretudo, pelas grandes intuições que
contém e que podem iluminar nosso itinerário espiritual, desde que as façamos nossas. E uma
dessas intuições é o lugar prioritário exercido pela presença de Deus em nossa oração. É o que
nos afirma o Fundador: “Que feliz sou, meu Deus, por ter-vos sempre presente em qualquer
lugar a que eu vá ou em que me encontre. É, de certa forma, uma antecipação da felicidade
do céu o poder estar sempre convosco e o poder pensar sempre em Vós. Meu Deus, concedei-
me, Vos rogo, esta graça” (EMO 7).
Para o Fundador não há oração que não parta de uma Presença. “Por isso, o primeiro a
ser feito na oração é penetrar-se interiormente da presença de Deus” (EMO 3). Penso que
esta é a primeira e mais importante das intuições lassaliana da oração e a que mais enriqueceu
minha própria oração. A Regra no-lo recorda em diversos textos nela contidos. Assim, por
exemplo: “Pelo espírito de oração e atenção à presença de Deus, os Irmãos mantêm-se aten-
tos ao Espírito Santo, que sempre mais os introduz na verdade da fé” (R 8).
Se nos distanciamos das atividades e relações habituais não é para encerrar-nos em nós
mesmos, numa introspecção narcisista, mas para ir ao “fundo”, ao “coração”, para o encon-
tro com Deus, o encontro conosco mesmos, o encontro com nossos Irmãos..., acima das figu-
ras. Isto nos permitirá, com base na fé, ver melhor o que fazemos, purificar as motivações
duvidosas, renovar-nos na entrega mais desinteressada e gratuita, como a de Deus. Nos desa-
fios encontrados em seu ministério e na sua vida pessoal e comunitária, o Irmão reconhece
um convite de Deus para aprofundar sua comunhão com Ele, com os Irmãos e com aqueles
que lhes são confiados. O Instituto transforma-se, assim, numa memória viva da presença de
Deus no mundo da educação. (R 63).
O convite de Paulo Freire para, de vez em quando, tomar distância do quefazer pedagó-
gico, para poder retornar a ele renovados, graças à profundidade de uma reflexão pessoal, não
deveria ser algo normal também em nosso ministério? Toda vocação radica no mistério do
encontro pessoal com Deus, cujos chamados suscitam respostas livres. Pela fé, o Irmão reco-
nhece a sua existência como diálogo com Deus, que lhe permite crescer permanentemente na
fidelidade. Descobre, assim, a presença cotidiana do Deus vivo em sua missão, consagração
e comunidade (R 80).
O objetivo dos nove atos da Primeira Parte é prolongar o diálogo com Deus e aprofun-
dar a relação entre um Deus sempre presente, que toma a iniciativa e se revela como Deus
salvador e misericordioso, e entre um homem que reconhece sua pequenez e suas limitações,
que aceita ser amado e salvo em Cristo. Em outras palavras, é o que afirmava Gabriel Marcel
ao dizer que rezar é aceitar ser amado.
A oração é diálogo: diálogo de amor com Deus no qual Ele tem a iniciativa. O Fundador
convida-nos para uma presença sempre viva, para penetrar-nos de um Deus sempre presente.
De fato, à medida em que o amor cresce a oração se converte em simples atenção amorosa ao
Deus presente. É a presença dos que se amam e se comunicam em nível de interioridade sem
necessidade de palavras e gestos. Pôr-se na presença de Deus não é recordar uma teoria: é
reconhecer a presença de Deus em nossa história.

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Sim, porque “a simples atenção” de que nos fala o Fundador, não é o vazio total perse-
guido por certas formas de contemplação. É sempre “atenção” a Deus. É diálogo com o Deus
de Jesus Cristo que atua na história. Não se trata de evasão ou de isolamento individualista,
porque o Deus Vivo me segue e me alcança em minha história pessoal e me convida a colabo-
rar em sua “obra”, o que significa, em primeiro lugar, ser testemunha e instrumento, Sacra-
mento de seu amor.
Na Explicação do Método de Oração Mental, o Fundador nos inicia numa presença de
Deus individual e solitária. Mas, seria parcializar sua espiritualidade permanecer apenas nisso.
Em sua própria vida e em outros escritos seus, Deus se faz presente nos acontecimentos e nas
pessoas, particularmente nos pobres. Tanto assim que o Fundador não duvida em pedir aos
Irmãos fazer um ato de adoração na presença de Deus neles. “Reconhecer a Jesus Cristo de-
baixo dos pobres farrapos dos meninos que instruis; adorai-O neles” (MF 96,3). Igualmente
nos convida a ver a Deus, Trindade de Pessoas, nos jovens aos quais educamos: “Como vós,
também eles foram consagrados à Santíssima Trindade desde o dia de seu Batismo; levam
seu selo impresso em sua alma e são devedores a este adorável mistério da união da Graça,
que se derramou em seus corações” (MD 46,3).
A exemplo do Fundador devemos considerar a Deus, não tanto como transcendência,
mas como transparência que se revela no mundo, nos acontecimentos, em nossa história, no
irmão, nos pobres... O encontro com Deus na pessoa de Jesus Cristo: “Ninguém vai ao Pai a
não ser por mim” (Jo 14,6), é inseparável do encontro de Jesus na pessoa do irmão: “Tudo o
que fizestes a um desses meus irmãos mais pequenos, é a mim que o fizestes” (Mt 25,40).

2. TRÊS FORMAS DE ESTAR NA PRESENÇA DE DEUS


Esta mesma relação podemos descobri-la nas três formas que o Fundador nos sugere pa-
ra colocar-nos na presença de Deus.
 Deus, presente na criação, nos convida a dar-lhe continuidade. Não se trata apenas
de experimentar a presença de um Deus que tudo preenche (Sl 139), nem a presença de Cristo
no cosmos e na história. Mas, também, de que somos chamados a ser sacramento dessa pre-
sença junto aos jovens, prolongando no tempo e no espaço a obra salvífica da qual somos mi-
nistros e colaboradores. “Deveis considerar os meninos cuja instrução vos foi confiada como
órfãos pobres e desvalidos... Esta é a razão pela qual Deus os coloca, de certa forma, sob a
vossa tutela. Ele olha para eles pesaroso e cuida deles como quem é seu protetor, seu apoio e
seu pai; porém vos incumbe a vós desse cuidado. O Deus bondoso os coloca em vossas
mãos” (MD 37,3).

 Deus, presente em nós e nos irmãos, nos pede crer na dignidade da pessoa huma-
na e a criar fraternidade. Porque a presença “Que graça Deus nos concede ao fazer por si
mesmo e por sua residência em nós, que sejamos o que somos. É por essa razão, diz o pró-
prio São Paulo, ‘que somos da linhagem de Deus’, e São Leão, ‘que fomos feitos participan-
tes da divindade” (EMO 11), e, também, que a presença de Jesus, onde dois ou mais estão
reunidos em seu nome produz, como fruto, uma íntima união de espírito e de coração, e reno-
va nossa capacidade de entrega. “Concedei-me, também, por vossa presença no meio de nós
16
reunidos para orar, a graça de ter íntima união de espírito e de coração com meus Irmãos, e
a de entrar nas mesmas disposições dos Santos Apóstolos no Cenáculo, para que, tendo re-
cebido Vosso Divino
Espírito, segundo a plenitude que me tendes destinado, me deixe dirigir por Ele, para cum-
prir os deveres de minha vocação e me faça participar de vosso zelo na instrução dos que
Vos dignastes confiar à minha solicitude”. (EMO 10)

 Deus, presente na Igreja, nos convida a construí-la; presente na eucaristia, a con-


tinuar sua entrega. Nas Meditações para o Tempo do Retiro o Fundador amplia esta forma
de presença para além dos muros da Igreja. Somos chamados a trabalhar na obra de Deus que
é o crescimento de seu Corpo. “É necessário, ainda, que ‘torneis evidente à Igreja a qualida-
de do amor que lhe professais’, e que lhe deis provas evidentes de vosso zelo, pois só por ela,
- que é o Corpo de Jesus Cristo – trabalhais, e dela fostes constituídos ministros, segundo a
ordem que Deus vos deu de difundir sua palavra’” (MR 201,2)
Na Eucaristia, o Senhor Ressuscitado adquire o máximo de densidade e presença, vida e
entrega. Cristo está presente para dar-nos vida abundante (EMO 23). Vida que, por nossa vez,
à imitação do Bom Pastor, devemos estar dispostos a dar, sem considerações, por nossos dis-
cípulos. “Dizei a eles o que Jesus Cristo dizia das ovelhas das quais é pastor, e que por Ele
haverão se salvar-se: ‘Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância’. Pois o zelo
ardente de salvar as almas dos que tendes que instruir, é o que vos deve ter movido a sacrifi-
car-vos e a consumir toda vossa vida para lhes dar educação cristã, e procurar-lhes a vida
da graça neste mundo, e a vida eterna no outro”. (MR 201,3)

3. CHAMADOS A SER PRESENÇA SALVÍFICA


Como vimos, a Presença de Deus aparece como talvez o mais importante dos elementos
que constituem nossa oração. É fácil compreendê-lo, pois a oração é uma relação que supõe
sempre um Tu, cuja presença, sempre viva e atuante, nos esforçamos por atualizar na oração.
Somos chamados a prolongar a presença de Deus em nossa vida, a ser sacramentos de sua
presença. A Regra, ao falar das condições da pastoral vocacional, nos recorda, como a primei-
ra e mais importante: Que os Irmãos, por sua vida, testemunhem entre os homens a presença
de Deus, a força libertadora de seu Espírito e a ternura de seu amor (R 86).
Podemos pensar em diferentes tipos de presença. Quando, por exemplo, em um ônibus,
estou imerso numa interessante leitura e, ao meu lado, senta uma pessoa que não conheço,
tenho a consciência de estar junto a outro. Mas, se numa das paradas, este passageiro desce e
outro o substitui, minha consciência da presença de outro não se modifica significativamente.
O que me interessa é a leitura que estou fazendo. Outrossim, e isto é real, em certas viagens
rurais, se a pessoa é substituída por uma cesta cheia de galinhas, ou por uma caixa com frutas,
a coisa não muda para mim. Trata-se, neste caso, de presença meramente física, quantitativa,
de uma presença de fraca intensidade.
Quando nossos irmãos tem presença de débil intensidade em nossa consciência, quando
isso se converte no costumeiro em nossa vida cotidiana, teríamos que pensar que estamos in-
capacitados de estar profundamente presentes diante de Deus na oração.
17
Em seu livro “Entre homem e homem”, Martin Buber refere o caso de um estudante que
o procurou para lhe pedir conselho. Buber escutou sua história e lhe deu conselhos profissio-
nalmente competentes; mas, depois o estudante suicidou-se. Buber nos expõe, então, suas
angústias. E se pergunta se estivera realmente presente ali, atento mais ao estudante que ao
meramente profissional: a desgraça teria acontecido?
Estar presente ao outro é uma função de nossa subjetividade. Somos responsáveis pela
qualidade de nossa presença. Como seriam diferentes nossos encontros se tivéssemos estado
realmente presentes? Como seria diferente nossa vida de comunidade se tivéssemos estado
realmente presentes! Uma presença de qualidade é sempre salvífica, como a de Deus. Diz-nos
Rahner: “a salvação não significa tanto um resultado objetivo, mas, muito antes, de algo sub-
jetivo, de uma cura e uma realização existencial da vida”. Para convencer-nos é suficiente
que meditemos na vida de Jesus de Nazaré, revelação do rosto misericordioso e da presença
amorosa do Pai. A qualidade da presença para o outro possui um efeito salvífico: serve para
garantir, assegurar, animar, perdoar, libertar...
Na oração descobrimos uma relação triangular básica, que depende da qualidade da pre-
sença a nós mesmos, a nossos irmãos, a Deus. A pessoa atua como um todo. Qualquer pro-
gresso no modo de estar presente a mim mesmo, melhorará a modo de estar presente a Deus
e ao próximo. A mesma relação acontece nos dois outros ângulos do triângulo. A pessoa au-
tenticamente presente a Deus na oração, será, naturalmente, a pessoa reconciliada que, pela
qualidade de sua presença cura as demais, a pessoa idealmente apostólica. E, na medida em
que a pessoa tem uma presença de qualidade, de forte intensidade com o próximo, nessa
mesma medida se encontrará, ao natural, presente a Deus e se compreenderá melhor a si
mesma.
O teólogo Donald Grey nos diz que “a história da salvação é a história de uma PRE-
SENÇA”. Chamados a continuar o projeto de Deus na história, só o poderemos realizar se
formos presença salvífica para os outros. A oração é indispensável para a realização dessa
tarefa.
Como Irmão posso interrogar-me se me sinto, e se os Irmãos, os Leigos Lassalistas e
todas as pessoas com as quais me relaciono assim o percebem, como “presença salvífica”,
por minha proximidade, por minha capacidade garantir, assegurar, animar, perdoar, miseri-
cordiar (ser misericordioso). Devemos, nós também, tornar realidade o que São Paulo vivia
em relação às comunidades por ele evangelizadas: “Bendito seja Deus, Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, Pai da misericórdia e Deus da consolação. Ele nos dá força em nossas lutas,
para que nós também possamos dar força aos outros em qualquer luta, repartindo com eles o
ânimo que nós mesmos recebemos de Deus” (2Cor 1,3-4).

18
PALAVRA DO FUNDADOR

“Tende, pois, no exercício de vosso emprego, intenções inteiramente puras, como as do pró-
prio Jesus Cristo. Por este meio, atraireis sobre vós e sobre vossos trabalhos suas bênçãos e
graças” (MR 196,3,2).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Mt 9, 9 -1Pd 1, 6-9 - Lc 7, 36-50


Lc 8,11-14 - ICor 13,1-13

 Em minha vida de Irmão que olhares tem sido de bênçãos?


 Como entendo o que o Papa Francisco define como jogo de olhares?
 Qual é, hoje, o olhar de Jesus sobre mim? Como me olha Jesus? Com um chamado?
Com um perdão? Com uma missão?

ANOTAÇÕES

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A COMUNIDADE DOS IRMÃOS CAMINHO DE ESPIRITUALIDADE

20
A COMUNIDADE DOS IRMÃOS CAMINHO DE ESPIRITUALIDADE

No dia 02 de fevereiro de 1994 a Congregação da Vida Consagrada publicou o belo do-


cumento “A Vida Fraterna em Comunidade”. Nele encontramos esta afirmação e este convite:
“Como família unida em nome do Senhor, a comunidade religiosa é, por sua própria nature-
za, o lugar onde se poderá alcançar especialmente a experiência de Deus e comunicá-la aos
demais (DC 15), em primeiro lugar aos próprios irmãos de comunidade” (A Vida Fraterna
em Comunidade 20).

Parece-me que nosso Instituto, já em 1987, em nossa Regra, plasmara a mesma ideia,
retomada na última versão de nossa Regra revisada, com estas palavras, quase paralelas ao
texto vaticano, porém mais explícitas. “Os Irmãos se inspiram na oração de Jesus Cristo:
‘Pai, que sejam um como Tu e Eu somos um, para que o mundo creia que me Tu me enviaste’
A comunidade é uma mediação da consagração dos Irmãos a Deus. Ela é uma comunidade
de fé, na qual os Irmãos partilham sua experiência de Deus, vivida nos compromissos diários
e na escuta da Palavra de Deus, na oração pessoal e comunitária, na leitura dos sinais dos
tempos e no discernimento da vontade de Deus” (R 46).

A Regra de 1987 o expressava, possivelmente, de forma mais contundente, ao afirmar


que a partilha da experiência de Deus é o caráter distintivo de toda comunidade de Irmãos.
Sempre me perguntei se esta afirmação corresponde à realidade que vivemos em nossas co-
munidades. Possivelmente, foi isso que fez com que fosse modificada a formulação anterior
em a nova versão da Regra.

1. A COMUNIDADE COMO PRESSUPOSTO ANTROPOLÓGICO DA ORA-


ÇAO E A MISSÃO

A oração lassaliana deve desembocar num compromisso presente, particular e eficaz.


Não basta contemplar o mistério; é preciso conduzir-se segundo seu espírito. Assim como
aquele que diz amar a Deus e não ama ao irmão é mentiroso, o que pretende contemplar a
Deus na meditação sem comprometer-se com seus Irmãos na vida se engana a si mesmo. O
compromisso apostólico não é acréscimo à oração: é elemento integrante da mesma.

Todavia, o encontro com o irmão em forma de compromisso não é apenas algo posterior
à oração. Na realidade, há uma espécie de movimento dialético entre oração e vida no qual a
comunidade jogo um papel primordial. A Regra nos diz: “A obra do Instituto é Obra de
Deus: oração e apostolado são indissociáveis. Os Irmãos levam à sua oração tudo que cons-
titui o seu ministério. É na comunhão com Jesus Cristo que descobrem a liberdade interior, a
graça e o discernimento espiritual requeridos por sua missão” (R 68). É neste mesmo núme-
ro que a Regra nos mostra a necessidade da oração para alcançar o êxito apostólico. Longe de
ser um obstáculo, é um meio: “Sejam quais forem suas responsabilidades profissionais, os
Irmãos cuidam de consagrar à oração o tempo necessário. Dessa forma, testemunham que o
êxito de seu trabalho está nas mãos de Deus. Esta perspectiva os liberta para levar a bom
termo, mesmo os trabalhos mais difíceis, com entrega, discernimento e paz interior” (R 68).
21
Podemos afirmar que nossas relações com Deus estão condicionais por nossas relações
com os outros. O homem que ora é o mesmo homem que ama, que se comunica, que sofre,
trabalha... Sabemos que a fé não é um mundo à parte, fechado a nossas experiências humanas.
É, antes, uma nova dimensão, que ilumina e dá nova profundidade a nossa história pessoal e à
rede de relações que a constituem. “Nossas relações com os outros influem, de maneira deci-
siva, em nossas relações com Deus. Muitas vezes nossos problemas de oração não constituem
propriamente problemas em si; mas apenas problemas de relações pessoas... Se nossas rela-
ções com os outros são serenas, equilibradas, nossas relações com Deus também o serão. O
que nos ajuda a ir a Deus é a caridade fraterna. A universalidade do amor nos conduz à sin-
ceridade na oração” (V. Codina).

O Fundador capta essa relação ao convidar-nos a relevar as faltas dos Irmãos como con-
dição da autenticidade da nossa relação com Deus. “Ele vos relevou tantas coisas no passado
e tolera muitas outras todos os dias. Vós o ofendestes com muitas culpas, apesar de ser-lhes
devedores de tantas graças; mas, se acudirdes a Ele, Ele vos perdoará tudo, sob a condição
de que perdoeis a vossos Irmãos e não guardeis ressentimento algum por todos os incômodos
que eles vos tenham causado, ou possam causar-vos de ora em diante” (MD 74,2).

Uma pessoa egoísta, fechada em si mesma, incapaz de diálogo ou de aceitar uma crítica,
sem capacidade de entrega ou de criar amizade, encontrará sérias dificuldades para abrir-se a
Jesus Cristo na oração. Contrariamente, uma pessoa que confia nos outros, que acolhe e aceita
ser acolhida, com capacidade de entrega e amizade, possui a plataforma básica para realizar
um encontro vital, pessoal ou comunitário, com o Senhor.

Se a oração é, sobretudo, uma relação pessoal com Deus, nossa capacidade de oração
estará diretamente ligada à nossa capacidade de relação. Poderíamos aplicar aqui o que afirma
Levinas: “A dimensão divina se abre a partir do rosto humano”.

Isto porque somos feitos à imagem do Deus Trindade e na Trindade a categoria funda-
mental é a da relação. A Regra de 2015 o expressa de uma forma mais bonita e rica que a ver-
são anterior: “A vida comunitária dos Irmãos é, antes de tudo, dom de Deus, que eles rece-
bem através de Jesus Cristo, presente no meio deles. Ele é quem lhes dá o Espírito de amor
que habita em cada Irmão e realiza a unidade da comunidade. Eles pedem este dom na ora-
ção. Respondem a essa graça colocando-se, alegremente, a serviço dos demais. Dessa forma,
tornam visível entre si um esboço das relações de conhecimento e amor que constituem a vida
trinitária” (R 48).

Se em nossas relações com os demais buscamos refúgio, segurança, aprovação infantil,


não faremos normalmente o mesmo na oração?

Se em nossas relações com os demais buscamos aproveitar-nos e tirar vantagem, não in-
tentaremos fazer o mesmo na oração?

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Se em nossas relações com os demais predomina a atitude protetora, se as consideramos
como um favor que prestamos aos demais, não veremos da mesma maneira nossa relação com
Deus?

Por outro lado, vivemos imersos numa sociedade cujos critérios de valor são, cada vez
mais, o útil e o prático, e cuja lei fundamental é a eficácia imediata. As pessoas estão continu-
amente se perguntando: para que serve isso e quanto rende? ... encontrarão dificuldades para
orar. Em troca, acolher o outro gratuitamente, não pelo que me pode oferecer, mas pelo que é;
saber escutar, estar junto ao outro, dedicar-lhe nosso tempo, nos capacita ao encontro gratuito
com Deus na oração

Igualmente nossa autossuficiência, o não sentir necessidade dos demais, o estar centra-
dos em nós mesmos, fechar-nos-á as portas da oração, impossíveis de serem abertas sem uma
atitude de pobreza, como no-lo recorda o Fundador ao comentar a parábola do publicano e do
fariseu. “O último, fingindo orar, limita-se apenas a exaltar suas boas qualidades. O primei-
ro, considerando-se miserável pecador, pede humildemente a Deus misericórdia e é justifica-
do em razão da simplicidade e humildade com que rezou; enquanto o outro não obtém outro
resultado que a própria confusão, pois havia ultrajado a Deus em lugar de orar a Ele” (MD
63,1).

Não cabem dúvidas de que nosso encontro com os homens, particularmente com nossos
Irmãos de comunidade, condiciona o nosso encontro com Deus, valendo, também, o contrário.
É o paradoxo que nos apresenta São João em sua primeira carta: a prova de nosso amor a
Deus é o amor ao homem (I Jo 3,16-17) e a garantida do amor ao irmão é nosso amor a Deus
(I Jo 5,2). A oração é, portanto, um instrumento a serviço do amor.

2. COMUNIDADE DE ORAÇÃO DOS IRMÃOS

Em termos projetivos e de futuro o Fundador nos fala do “espírito de comunidade”:


“Neste Instituto se manifestará e se conservará sempre verdadeiro espírito de comunidade”
(R 1718, C. 3,1). Trata-se de um espírito que supõe uma união tão estreita, tão íntima e está-
vel, que seja reflexo e antecipação da que existe na Trindade “não em tudo, porque as três
tem uma só essência; mas, sim, por antecipação, e de tal modo que a união de espírito e co-
ração que Jesus Cristo anseia exista entre os Apóstolos produza o mesmo efeito que a união
essencial existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (MD 39,3).

A Regra atual recolheu esta importante intuição lassaliana no seguinte texto: “Consa-
grados à Santíssima Trindade, os Irmãos vivem Associados para a missão. Sua vida fraterna
em comunidade é dom do Espírito Santo que leva cada um a superar o encolhimento em si
mesmo. Acolhendo tal dom, a comunidade desenvolve uma espiritualidade de comunhão. Os
Irmãos aceitam na fé e na caridade aqueles com os quais Deus os chamou a viver. Os desafi-
os da vida em comunidade são, para eles, um chamado do Espírito Santo para crescer no
amor, na compreensão e no perdão” (R 71).

23
O orar juntos é elemento essencial para criar a espiritualidade de comunhão pedida, tan-
to pela Regra como, também, pela Igreja. A Regra é muito clara a esse respeito: “A comuni-
dade dos Irmãos é comunidade de oração. Os Irmãos rezam juntos, juntos ouvem e meditam
a Palavra de Deus. Juntos reconhecem-se pecadores diante de Deus e participam da Eucaris-
tia. Juntos buscam e encontram a Deus” (R 47).

No Método de Oração que nos deixou nosso Fundador, São João Batista de La Salle,
encontramos como a oração com nossos Irmãos deve ser para nós fonte de alegria: “Quanta
alegria a minha, ó meu Deus, a de fazer oração com meus amados Irmãos, porque, segundo
vossas palavras, temos a graça de vos ter em nosso meio. Estais presente, ó Jesus meu, para
derramar sobre nós vosso Espírito, segundo o dizeis pelo vosso Profeta, como o derramastes
sobre vossos Apóstolos... Concedei-me, também, por vossa presença em nosso meio, reunidos
para orar, a graça de ter íntima união de espírito e de coração com meus Irmãos” (EMO 10)

Há no Evangelho um “ícone” que revela este espírito de partilhar fraternalmente na ora-


ção. É o do paralítico que alguns amigos apresentam a Jesus numa cama e fazem uma abertura
no telhado e o descem por ela. O que lhes interessava, diz São Lucas, era colocá-lo “diante de
Jesus” (Lc 5,18,19) e acrescenta que Jesus, “vendo a fé que tinham” (Lc 5,20), perdoou-lhe
os pecados e imediatamente o curou. Que força tem a intercessão fraterna! Como foi dito,
mais que uma comunidade que recita orações, o importante é conseguir uma oração que crie
comunidade. Partilhar a oração não significa, necessariamente, invocar juntos, estar fisica-
mente presentes. É, acima de tudo, comunhão uns com outros em Deus; fazer com que os ou-
tros participem de minha relação com Deus.

Igualmente o Fundador, por sua vez, nos convida, insistentemente, num dos textos mais
belos de suas meditações, a ter presentes a nossos Irmãos na oração: “Posto que Deus vos
concedeu a graça de chamar-vos a viver em comunidade, não há nada que devais pedir com
maior insistência do que esta união de espírito e de coração com vossos Irmãos; pois, unica-
mente através desta união alcançareis a paz que deve constituir toda a felicidade de vossa
vida. Insisti, pois, ao Deus dos corações, que do vosso e do de vossos Irmãos forme um só
com o de Jesus” (MD 39,3).

Precisamente porque, no Evangelho, as relações humanas devem refletir o rosto de


Deus, nossa fraternidade, alimentada com nossa oração, constitui um dos elementos sacra-
mentais dessa presença do Senhor que se manifesta mediante nossa alegria de viver juntos.
Orar juntos nos abre a Deus e rompe as barreiras de nossa solidão. Tu já não estás só! é o
título de um comentário de Enzo Bianchi à Regra de sua comunidade monástica de Bose. E
acrescenta que não estar sós já significa que, desde o instante de nosso compromisso com a
comunidade, já não podemos pensar sem a comunidade, significa que todos somos solidários
no pecado e na graça, significa que cada um se converte “em Palavra de Deus que se deve
levar em conta junto com toda a Bíblia. Pois, por pouco que conheçamos a fé cristã, sabemos
muito bem que o Irmão que vive ao nosso lado é um logos que sai da boca de Deus”.

A esta altura poderíamos perguntar-nos: Que é melhor: rezar juntos ou orar a sós? É
uma realidade que, em relação com a oração mental, “o primeiro e principal de seus exercí-
24
cios diários” (R 69) é vivida de diferentes maneiras no Instituto. De fato, a Regra deixa em
aberto ambas possibilidades.

Sob certo aspecto “o homem de hoje experimenta certo gosto pela solidão e reivindica
seu direito a ela” (Louf). Por outro, o característico de nossa época é a dimensão social, que
repercute na nossa própria oração: “Outro aspecto dessa nova oração é a necessidade de par-
tilhar esta experiência com os outros. Ou seja, a necessidade de orar juntos, comunicando-
nos as riquezas do Espírito” (Cardeal Pirônio). Sem dúvida, é importante buscar um equilí-
brio, conscientes de que a oração mental é, acima de tudo, algo pessoal, mas, ao mesmo tem-
po, conscientes do apoio que necessitamos da comunidade. Sair de nós mesmos nos ajuda a
não nos endurecermos em nossa maneira de ver e sentir. Neste sentido, a mediação da comu-
nidade é muito importante. Sabemos que Deus nos fala através da comunidade.

Hoje, a Igreja nos convida a uma oração comunitária da Palavra de Deus. “A meditação
comunitária da Bíblia tem grande valor. Feita de acordo com as possibilidades e as circuns-
tâncias da vida da comunidade, leva à alegria de partilhar a riqueza descoberta na Palavra
de Deus, graças à qual os irmãos e as irmãs crescem juntos e se ajudam a progredir na via
espiritual” (VC 94). Como vimos, ao falar da Palavra de Deus, a Regra nos faz o mesmo
convite: “Os Irmãos encontram a principal fonte de sua oração na Palavra de Deus, na Li-
turgia e nos apelos oriundos do seu ministério, da Igreja e do mundo” (R 67).

Parece-me que uma forma privilegiada de nossa oração comunitária deve ser a oração
partilhada. O Espírito que nos santifica, a união da comunidade, o zelo no ministério apostóli-
co se veem reforçados por esta oração. Se cremos que estamos reunidos em nome de Jesus
gozamos da presença do Espírito, creremos, também, que o Espírito se nos pode manifestar
através de nossos Irmãos. A oração partilhada pode nos ajudar a sair de nosso mundo espiritu-
al, frequentemente estreito e centrado nos mesmos conteúdos, para abrir-nos a novos horizon-
tes. Outrossim, essa oração permitir-nos-á descobrir a nossos irmãos tais como são, com suas
riquezas insuspeitadas e suas limitações e dificuldades nem sempre exteriorizadas. Importa,
igualmente, não esquecer que a oração é, acima de tudo, escuta de Deus, que se manifesta
também no silêncio.

Desejaria terminar este ponto aludindo ao momento culminante de nossa oração comu-
nitária: refiro-me à celebração eucarística, tempo forte da jornada de uma comunidade de con-
sagrados. Por que a Eucaristia é, no fundo, um partilhar: partilhar o corpo e o sangue de Jesus,
partilhar a vontade salvífica e a disposição ao sacrifício deste corpo esfacelado e deste sangue
derramado. “Os Irmãos reconhecem que a Eucaristia, comunhão com Jesus Cristo e seu mis-
tério pascal, é a fonte principal de sua santificação, do crescimento de sua unidade e da vita-
lidade do seu ministério” (R 74).

Outrossim, não devemos esquecer que é impossível comungar com o Pão sem comun-
gar com a Palavra, e que é impossível comungar com a Palavra sem comungar com a História
daquelas crianças e jovens que vem a nós à meia noite, como órfãos pobres e desvalidos (MD
37). Pão, Palavra, História constituem o triângulo no qual deve mover-se a Comunidade.

25
2. A ORAÇÃO: DOM DO PAI, DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO

“Antes de tudo, a oração é dom recebido do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Aos Ir-
mãos cabe acolhê-lo, em tudo o que preenche a sua jornada, para que neles brote, como res-
posta, o louvor ou a ação de graças, a súplica ou o pedido de perdão. Não cessam de dizer:
‘Senhor, ensina-nos a orar’” (R 66).

A oração, dom recebido da Trindade, deve ser, como nos diz a Regra, um dom acolhido,
que, por sua vez, deve transformar-se numa variedade de formas de oração, que a Regra assi-
nala: louvor, ação de graças, intercessão, pedido de perdão.

Pensando em nosso ministério e fazendo nosso este convite de nossa Regra, creio que
nossa oração deve ser:

 INVOCAÇÃO AO ESPÍRITO, porque se trata de “mover os corações”, e não de


empresa humana; frequentemente, não vemos claro o que devemos fazer e não sabe-
mos o que pedir, então: “O Espírito vem em auxílio de nossa debilidade: nós não sa-
bemos exatamente o que devemos pedir, mas, o Espírito, em pessoa, intercede por
nós com gemidos indescritíveis, e aquele que examina o coração conhece a intenção
do Espírito, porque ele intercede pelos consagrados como Deus quer” (Rom 8,26-
27).

 INTERCESSÃO, porque há momentos em que não podemos fazer outra coisa:


“Imediatamente Moisés caiu de joelhos e se prostrou diante de Deus dizendo: Se,
verdadeiramente, gozo do teu favor, suplico-te, Senhor, que caminhes conosco, em-
bora sejamos um povo de cabeça dura. Perdoa nossas maldades e pecados e recebe-
nos como herança tua” (Ex 34, 8-9). E como nos sugeria o Irmão John Johnston, po-
demos muito bem aplicar o que o Fundador dizia de nossos alunos a nossos Irmãos:
“Quando encontrem dificuldades no governo de seus discípulos... dirijam-se a Deus
sem vacilações e peçam com muita insistência a Jesus Cristo como o Bom Pastor...
E, tendo em vista que, por vezes, exercem esta função, peçam a Ele as graças reque-
ridas para conseguir a conversão de seus corações. Se quereis ter êxito em vosso
ministério, deveis, pois, aplicar-vos muito à oração, apresentando continuamente ne-
la a Jesus Cristo as necessidades dos discípulos; e expondo-lhes as dificuldades que
aparecem em vosso trabalho” (MR 196,1).

 AÇÃO DE GRAÇAS, porque descobrimos a ação de Deus em nossos Irmãos e, es-


pontaneamente, surge em nós um sentimento de agradecimento: “Dou graças a meu
Deus sempre que me lembro de vós; cada vez que peço por todos vocês faço-o sem-
pre com alegria, pela parte que desempenharam no anúncio da boa notícia, desde o
primeiro dia até hoje; de uma coisa estou seguro: de que aquele que iniciou a sua
boa empresa a irá completando até o dia do Messias, Jesus” (Fl 1,3-6).

 PERDÃO: porque nos sentimos responsáveis e solidários de nossos Irmãos, do mo-


do como o experimentava nosso Fundador: “Quando me revelem suas faltas, consi-
26
derar-me-ei culpado por elas diante de Deus, por minha pobre conduta, e por não
tê-los prevenido, seja pelos conselhos que deveria ter-lhes dado, seja vigiando sobre
eles; e se lhes imponho alguma penitência, impor-me-ei outra maior; e se a falta for
considerável, além da penitência tomarei um tempo particular, como meia hora, e
até uma hora, vários dias seguidos, sobretudo à noite, para pedir perdão a Deus por
ela. Se me considero fazendo as vezes de Deus para com eles, será pela compreen-
são de que tenho obrigação de carregar seus pecados, assim como Nosso Senhor
carregou com os nossos e que é uma carga que Deus me impõe em relação a eles”
(Regras que me impus, nº 17).

 DISCERNIMENTO, por estarmos conscientes de que se trata da obra de Deus e


não de nosso projeto pessoal, nem de simples empresa humana, tal como o expressa-
va mais claramente nossa Regra de 1987 em um texto que, pessoalmente, penso que
não deveríamos ter eliminado: “Cada dia os Irmãos ‘sobem até Deus pela oração’,
como apóstolos responsáveis pela salvação daqueles que lhes estão confiados. Espe-
ram, assim alcançar do Senhor a liberdade de coração e o discernimento de espírito
que requerem seu ministério e as graças de que necessitam para trabalhar utilmente
em favor do Reino” (R 1987, 69)

 ABANDONO E ESPERANÇA, porque nos colocamos nas mãos de Deus em nos-


sas obscuridades e impotências. A citação a seguir a partilhava conosco, em um reti-
ro, o Irmão Michel Sauvage, como texto que, ao longo de sua vida, o pacificava e
animava: “Arrancaram-me a paz e nem me lembro dela; digo-me: Acabaram-se as
forças e minha esperança no Senhor. Recordo minha aflição e minha amargura, o fel
que me envenena; não faço mais que lembrá-lo e me sinto abatido. Mas, há algo que
trago em minha memória e me dá esperança: que a lealdade do Senhor não termina
e não se acaba sua compaixão; antes elas se renovam a cada dia. Que grande é a
tua fidelidade! O Senhor é meu quinhão, digo-me e espero Nele. O Senhor é bom pa-
ra com os que Nele esperam e o buscam; é bom esperar em silêncio a salvação de
Deus” (Lm 3,17-26)

CONCLUSÃO

Quisera terminar com este pensamento de nosso Fundador, que sintetiza muito bem o
essencial de nossa oração comunitária: “Posto que Deus vos concedeu a graça de chamar-vos
a viver em comunidade, nada há que devais pedir-Lhe com maior insistência que esta união
de espírito e de coração com vossos Irmãos; pois unicamente mediante esta união alcança-
reis a paz que deve constituir toda a felicidade de vossa vida. Insisti, pois, junto ao Deus dos
corações, para que do vosso e do de vossos Irmãos forme um só com o de Jesus” (MD 39,3).

27
PALAVRA DO FUNDADOR

“Deus concedeu-vos a graça de chamar-vos a viver em comunidade. Por isso, nada deveríeis
pedir-lhe com mais insistência do que essa união de espírito e de coração com vossos Irmãos,
porque só por esta união encontrareis a paz que deve constituir toda a felicidade de vossa vi-
da. Instai pois, o Deus dos corações, que faça do vosso coração e do de vossos Irmãos, um só
no coração de Jesus” (MD 39,3,2).

PARA MEDITAR E ORAR

Lc 18, 9-14 - I Jo 3, 16-17 -1Jo 5, 1-4


Lc 18,1-14 - Rm 12,1-17

 Qual é minha experiência de oração do coração, em minha comunidade?


 Como melhorá-la, caso necessário?

ANOTAÇÕES

28
A COMUNIDADE: LUGAR DE ACOLHIDA, DE COMUNHÃO, DE PRÁTICA DA
MISERICÓRDIA

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A COMUNIDADE:
LUGAR DE ACOLHIDA, DE COMUNHÃO,
DE PRÁTICA DA MISERICÓRDIA

“O Evangelho é o livro da misericórdia de Deus, para ler e reler, porque tudo o que
Jesus disse e fez é expressão da misericórdia do Pai. Todavia, nem tudo foi escrito; o Evan-
gelho da misericórdia continua sendo um livro aberto, no qual se continuam escrevendo os
sinais dos discípulos de Cristo, gestos concretos de amor, que são o melhor testemunho da
misericórdia. Todos somos chamados a ser escritores vivos do Evangelho, anunciadores da
Boa Notícia a todo o homem e mulher de hoje” (Homilia de 3 de abril de 2016, Domingo da
Misericórdia).
Todos somos chamados a ser escritores vivos do Evangelho... Este chamado do Papa, na
belíssima homilia do Primeiro Domingo de Páscoa, Domingo da Misericórdia, deve atingir
profundamente o coração de todos os consagrados e consagradas se queremos fazer do Evan-
gelho nossa primeira Regra. Creio que este Ano da Misericórdia nos convida, essencialmente,
a voltar ao Evangelho de Jesus nosso mestre, amigo, companheiro, fundamento e razão de ser
de nossa vida religiosa, a quem queremos seguir, convencidos que nosso encontro com Ele foi
o melhor que nos aconteceu na vida. Porque Ele nos revelou que o nome de Deus é Miseri-
córdia.
E, um dos lugares onde o Evangelho continua sendo um livro aberto para nós é, sem
dúvida, nossa comunidade. Uma comunidade acolhedora, fraternal, sororal, aberta, imagem
da misericórdia do Pai manifestada por Jesus.
Quando era Irmão jovem um dos livros que mais me impressionaram foi o intitulado A
Comunidade, lugar de perdão e de festa, escrito por Jean Vanier, fundador da Arca, que nos
apresenta a vida comunitária como uma aventura cotidiana, na qual se alternam momentos de
dificuldade em relação, mal-entendidos, fracassos e as famosas fofocas de que nos fala tanto o
Papa Francisco, com momentos de celebração alegre e unidade profunda. Perdão e festa me
parece serem duas faces da misericórdia.
Possivelmente, o melhor ícone de nossa comunidade seja a Trindade. O Prefácio para a
festa da Trindade afirma: “Adoramos três pessoas distintas de única natureza e iguais em sua
dignidade”. A unidade trinitária acontece na diferença, não na uniformidade. A comunhão
trinitária se constrói pela participação de cada pessoa. Na realidade, a vida consagrada, como
a Igreja, é essencialmente mistério de comunhão, ‘multidão reunida pela unidade do Pai e do
Filho e do Espírito Santo’ (LG 4).
O documento Vita Consecrata afirma: “Com a constante promoção do amor fraterno
na forma de vida comum, a vida consagrada manifesta que a participação na comunhão
trinitária pode transformar as relações humanas” (VC 41).
É esta relação trinitária que nos abre as portas da misericórdia, porque ser fiel ao misté-
rio trinitário é colocar sempre a pessoa como ser único e irrepetível, a quem devemos amar
acima das estruturas. O sábado foi feito para o homem... e, por isso, a melhor expressão e
realização de uma comunidade não são as normas, mas a amizade, a relação repleta de amor e
misericórdia daqueles que quiserem participar mais radicalmente na vida e missão de Jesus
para testemunhar a fraternidade e a filiação à que todos estão chamados e que constituem o
coração do Reino que Jesus veio instaurar e que antecipamos com nossa vida comunitária.
30
Identidade, comunhão e missão se referem à luz da Trindade. Ser-eu-mesmo (único ir-
repetível, inédito, imprevisível) e ser-para-os-demais (abertura, entrega, serviço) não podem
separar-se, assim como o sentido de individuação (nome próprio) e o sentido de pertença (so-
brenome comum), que devem crescer permanentemente numa autêntica vida comunitária. E a
experiência nos diz que, para consegui-lo, necessitamos ser misericordiosos como o Pai é
misericordioso. E unicamente o Espírito de Jesus nos concederá este dom.
Nos últimos anos a vida religiosa esforça-se por recuperar a comunidade como seu valor
central. Esse fato ficou-me bem claro no Congresso da Vida Consagrada: Paixão por Cristo,
Paixão pela Humanidade, em 2004, quando todas as intervenções dos jovens religiosos con-
vidados giraram em torno da comunidade. Acontece que, muitas vezes, vivemos a comunida-
de como fato sociológico e esquecemos que a comunidade é, acima de tudo, um fato teológi-
co, que nos permite, por um lado, fazer nossas as relações de conhecimento e amor existentes
no seio da Trindade e, por outro, ser um grupo liminar que, pela qualidade de suas relações, já
torna presente o Reino de Deus. Só em comunhão com aqueles que tem a mesma vocação,
tanto na estrutura de uma ordem ou congregação concretas, como em outro tipo de relações
interpessoais, podemos apropriar-nos e interiorizar o chamado a viver em relação trinitária
(O’Murchu, O marco teológico da vida religiosa. Ampliando os horizontes tradicionais, Ser-
viço Koinonia).
Creio que continuam muito atuais as palavras de João Paulo II sobre nossa vida comuni-
tária: “Toda a fecundidade da vida religiosa depende da qualidade da vida fraterna em co-
mum. Mais, a renovação atual na Igreja e na vida religiosa se caracteriza por uma busca da
comunhão e de comunidade”. (João Paulo II, na plenária da CIVCSVA, 20 de novembro de
1992, OR 20-XI-1992, nº 3).

1. A COMUNIDADE DE JESUS IRMÃO: “fiel e misericordioso” (Hb 2,17)


Se desejamos ser uma comunidade acolhedora, samaritana e misericordiosa, o primeiro
passo consiste em fixar nossos olhos no Senhor Jesus, como nos diz a Carta aos Hebreus
(12,2). Nossa comunidade é Cristocêntrica, e não egocêntrica. Jesus Cristo é a pedra funda-
mental da comunidade: “Vós sois a casa... cuja pedra angular é Cristo Jesus. Nele toda a
construção se ajusta e se eleva, para ser um tempo santo no Senhor” (Efésios 2,20-21). Com
a contundência de sempre e o valor de seu martírio, Dietrich Bonhoeffer noz diz: “Comuni-
dade cristã significa comunhão em Jesus Cristo e por Jesus Cristo. Nenhuma comunidade
cristã poderá ser nem mais nem menos que isso. E isso é válido para todas as formas de co-
munidade que possam ser formadas pelos crentes, desde a que nasce de um breve encontro
até a que resulta de uma grande convivência diária. Se podemos ser irmãos é unicamente por
Jesus Cristo em Jesus Cristo” (Vida em Comunidade).
Em numerosas passagens o Evangelho nos descreve como era a comunidade de Jesus. E
o que mais chama a atenção é que o elemento central e aglutinador são as relações de Jesus
com os Doze: homens que se caracterizavam por uma grande diversidade, desde Pedro, tão
impulsivo e generoso, a João, tão contemplativo; desde Mateus, o publicano colaboracionista
com o Império, a Simão, um zelote inimigo do mesmo... Jesus aceita cada um como é e nisso
revela seu coração misericordioso. Marcos nos diz que os chamou “para estar com Ele”, ou
seja, para serem seus companheiros e João nos faz ver que a relação que Jesus estabelece com
31
cada um deles e com todos cria uma relação de amizade que supera todas as doutrinas e leis.
“Desde agora os chamarei amigos, porque lhes dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”
(Jo 15,15).
O ser misericordiosos como o Pai nos deve levar a olhar o mundo e as pessoas com o
mesmo olhar de Deus, o Deus compassivo que olha o mundo com profundo amor e com ter-
nura paterno-maternal. São João da Cruz nos diz que o olhar de Deus é amar (CB 32,3).
Sabemos que, em Jesus, o olhar de Deus se fez humano e próximo. O verbo ver é, pos-
sivelmente, um dos mais repetidos no Evangelho: a pescadores que se convertem em discípu-
los, a Levi, na banca de impostos, às multidões das quais se compadece, ao jovem rico, às
crianças que dele se acercam, aos que levam a maca, à viúva de Naim, a Pedro após a nega-
ção, ao bom ladrão a seu lado na cruz.... Jesus de Nazaré vê as pessoas e reconhece em cada
uma delas seu ser mais profundo, vê o melhor de cada uma e, desse modo, a desata por den-
tro e a liberta e lhe oferece a cura, a salvação, a ação de graças e o louvor (Fernando Negro
Marco Sch. P.), É este olhar que devemos fazer nosso, tanto em nossa vida comunitária como
em nossa missão. Olhar que devemos viver numa sã tensão entre a alegria por ver realizado o
desígnio salvífico de Deus em nossa história e a esperança de sua culminância escatológica.
Jesus nos ensina que a misericórdia brota do amor e está a serviço do amor. Seguir a
metodologia evangélica de Jesus é ter, como Ele, uma imensa capacidade admirativa face aos
mais pequenos sinais de vida que vão surgindo em nosso caminho. Ante um ato de virtude,
por mínimo que seja, Jesus entusiasma-se e sente a necessidade quase explosiva de expressar
sua admiração, como nos diz o Jesuíta italiano Giovanni Blandino. Assim, diante da fé humil-
de da cananeia: Ó mulher, grande é tua fé! (Mt 15,28); ante o centurião romano, admirado,
diz aos que o cercam: Em verdade vos digo: Nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé (Lc
7,9); tampouco oculta sua admiração ante a pecadora na casa de Simeão: Por isso te assegu-
ro: seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor
(Lc 7,47), e não lhe passa desapercebida a viúva que dá sua esmola no templo: Eu lhes asse-
guro; esta pobre viúva colocou mais do que todos os que lançaram no cofre (Mc 12,43); e,
em plena agonia, dá esperanças ao ladrão arrependido: Em verdade te digo: hoje estarás co-
migo no paraíso (Lc 23,43). E isso não tanto pelo valor moral de tais atitudes mas, sobretudo,
pelo imenso amor que Ele tem para com cada pessoa, que o faz descobrir o melhor que há
nela. Exatamente o contrário da autorreferencialidade, contra a qual nos alerta o Papa Francis-
co
O amor misericordioso de Jesus por seus discípulos traduz-se num profundo respeito a
sua liberdade. Não busca impor, não força os diferentes ritmos, não impõe, confia sempre e
sabe esperar pacientemente. Jesus é realista e parte do que cada um é, iniciando um paciente
processo de crescimento e de comunhão, e exercendo uma autoridade que se traduz num ser-
viço, sem imposições nem privilégios. (Cf. Guerreiro JM, Jesus como animador da Comuni-
dade dos Doze, Revista VR, 1981, Madri).
O Papa Francisco, como o víamos na 2ª Palestra, sintetiza muito bem esta atitude de Je-
sus ao recorda-nos uma homilia de São Beda sobre a vocação de Mateus, em um texto já mui-
to conhecido pela tradução pessoal que o Papa faz: Jesus viu um publicano, “misericordiou-o” e
escolheu-o. Sabemos que este é seu lema episcopal (Cf. O nome de Deus é misericordia. Mé-
xico: Planeta, 2016, p. 32).

32
Jesus é, para seus discípulos, testemunha da misericórdia do Pai. Por esse motivo, seu
olhar é sempre compassivo e próximo. Nunca passa afastado, mas está atento à realidade de
cada pessoa. Sua atitude foi programática para seus discípulos e continua sendo para nós con-
sagrados, chamados a prosseguir em seus passos. É esse olhar que nos permite descobrir a
passagem de Deus em nossa história e na história de nossos irmãos e irmãs.
É principalmente na comunidade que educamos nosso olhar para que seja como o de Je-
sus, como o recordava o Papa aos religiosos e religiosas em sua visita a Coreia do Sul: “Esteja
o carisma de seu Instituto orientado mais para a contemplação ou para a vida ativa, sempre
estão chamados a serem especialistas em misericórdia divina, precisamente mediante a vida
comunitária. Sei por experiência que a vida em comunidade nem sempre é fácil, mas é um
campo de treinamento providencial para o coração. É pouco realista não esperar conflitos:
surgirão mal-entendidos e será necessário enfrentá-los. Contudo, apesar dessas dificuldades,
é na vida comunitária que estamos chamados a crescer na misericórdia, na paciência e na
caridade perfeita” (16 de agosto de 2014).

2. COMUNIDADE DE ACOLHIDA: a misericórdia um dom que recebemos.


No documento sobre a Identidade e a Missão do Irmão, recentemente publicado, falam-
nos da fraternidade como de um dom que recebemos, que partilhamos e que entregamos. Pa-
rece-me que podemos perfeitamente aplicar à misericórdia o que afirmamos da fraternidade.
A misericórdia não é fruto de nossos esforços, de nossa boa vontade ou de nossa santi-
dade. É, antes de tudo, um dom recebido, do Pai que, de tal modo amou o mundo que lhe deu
seu Filho... para que o mundo seja salvo por Ele (Jo 3,16-17). É um dom do Filho que nos
revela o Pai misericordioso e entrega sua vida por nós. É um dom do Espírito: “O Espírito do
Senhor repousa sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou, para anunciar o Evangelho
aos pobres, aos cativos a redenção e aos cegos a recuperação da vista. Para dar aos oprimi-
dos a liberdade; para anunciar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Tanto Paulo como Pedro nos falam, repetidamente, em suas cartas, do dom pessoal que
Deus nos concedeu e que somos chamados a partilhar com os demais (Gl 2,9; 1Cor 3,19;
1Cor 7,7; 1Cor 12,7-11; 2Tm 1,6; 1Pd 4,10). Se o nome de Deus é misericórdia, os dons que
Ele nos concede estão a serviço da misericórdia, sendo, porém, cada um chamado a vivê-los
de maneira pessoal e única, fazendo visível uma face do poliédrico rosto de Deus.
Sem dúvida, um dos dons mais importantes recebidos em nossa vida religiosa é o da
consagração. Muitas vezes a lemos a partir de nossa iniciativa, mas, o nosso é uma resposta à
iniciativa de Deus e à sua livre escolha. Basta recordar as palavras de Oséias: Por isso a atrai-
rei, conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração (Os 2,16). Em sua grande misericórdia,
e sem nenhum mérito pessoal, é o Senhor que nos chamou para sermos totalmente seus. Ele, a
realidade insondável, nos elegeu com amor gratuito para a desconcertante aventura de ser
plenamente seus. Deus, Trindade de pessoas, se nos apresenta com o Amor que atrai a si todo
o nosso ser e exige todo o nosso ser.
Estamos envoltos numa aventura de amor, numa espécie de namoro, de sedução de
Deus. Ao mesmo tempo, este amor misericordioso o devemos espelhar em nossas relações
comunitárias. Em nossa comunidade devemos atrever-nos mais a “primeirear”, como nos
convida o Papa Francisco com sua linguagem portenha. Não esperar receber para dar, antes,
33
como o experimentamos no amor gratuito de Deus, tomar a iniciativa e dar o primeiro passo,
sem passar recibo. Porém, creio que também é verdade que devemos “primeirear” conosco
mesmos, aceitando que os primeiros a receber a misericórdia divina fomos nós. Como diz
Anselm Grün: “Quem conhece todos os seus abismos e suas zonas sombrias, sabe que só
pode viver em plenitude aquele que é compreensivo consigo mesmo, que é capaz de dizer-se
sim tal como foi criado. Só quando alguém se aceitou a si mesmo pode aceitar ao que busca
conselho sem julgá-lo. Só poderemos ser misericordiosos com os demais se formos miseri-
cordiosos conosco mesmos, se nos tivermos reconciliado com nossa própria obscuridade
(Anselm Grün, Portar-se bem consigo mesmo. Salamanca: Sigueme, 2014.

3. COMUNIDADE DE COMUNHÃO: A misericórdia um dom que partilhamos

Os dons que recebemos devem ser dons partilhados. Estou certo que a todos nos cha-
mou e motivou aquela citação de São Basílio, que o Papa João Paulo II nos presenteou na
Exortação Apostólica Vita Consecrata: Na vida comunitária, a energia do Espírito que há em
um passa ao mesmo tempo a todos. Aqui não apenas se desfruta do próprio dom, mas ele é
multiplicado ao fazer os outros partícipes dele, e ao alegrar-se com o fruto dos dons do ou-
tro, como se fora próprio (VC 42). Ante o individualismo ou a busca de auto realização que a
todos nos ameaça esta certeza nos convida a uma atitude de saída para nossos irmãos ou ir-
mãs e com eles ao mundo e suas necessidades.
Nossa entrega pessoal a Deus a fazemos no seio de uma comunidade. Nosso compro-
misso com Deus é mediatizado pelos Irmãos/ãs com os quais também nos comprometemos.
Em nosso caso resulta comovedor, ver nos Arquivos da Casa Generalícia de Roma, como em
sua Consagração em 1694, o Fundador, e cada um dos doze Irmãos dos começos, que a fa-
zem, nomeiam expressamente, em sua fórmula de Consagração, aos doze companheiros com
os quais estavam empenhando sua vida.
Ocorre que não podemos falar de fidelidade a Deus se não somos capazes de viver a fi-
delidade humana. A consagração não é apenas uma aliança com Deus, é também uma aliança
com os homens, as mulheres de minha comunidade, de minha província, de meu Instituto. As
palavras de Rute tem, para nós, um profundo sentido: “Não insistas comigo para que te deixe
e que não mais te acompanhe. Aonde fores irei, onde ficares, ficarei, aonde tu vivas, viverei.
O teu povo será o meu povo, teu Deus será o meu Deus; aonde morreres, ali morrerei e ali
me enterrarão. Só a morte poderá nos separar” (Rt 2,16-18).
Ao consagrar-nos a Deus, ou, melhor, quando Deus nos consagra, já que Dele é a inicia-
tiva, nos consagramos também com nossos irmãos. Quando dizemos: “Podes contar comi-
go”, o dizemos a Deus, mas também aos nossos Irmãos/ãs. Por isso, diante de toda saída, não
devemos apenas julgar a qualidade e a profundidade como o Irmão/ã viveu ou não seu com-
promisso, mas, também, se a comunidade que o acolheu lhe ofereceu o clima adequado para
vivê-lo com intensidade, já que a isso nos comprometemos ao consagrar-nos a Deus. Por isso,
a comunidade deve examinar, com tristeza, em que pôde defraudar ao Irmão/ã em perigo. O
que supõe uma atitude misericordiosa, que nos fará desconsiderar muitas coisas e nos dará o
cuidado delicado para corrigir fraternalmente e, sobretudo, para que o irmão não se sinta só.
A comunidade na qual a misericórdia é partilhada é um lugar de perdão e de festa, no
qual podemos experimentar que o Reino de Deus já está entre nós. Está em nosso meio quan-
34
do nos damos provas sensíveis de amor, sem pensar que o outro deve adivinhar que eu o amo
e estimo. Quando nos cuidamos fraternalmente, quando nossa oração comunitária nos faz
crescer, quando o sofrimento dos demais não nos passa desapercebido. Uma comunidade na
qual a misericórdia é partilhada é uma comunidade que está atenta “a nossa criança interior”,
favorecendo espaços gratuitos de encontro; simplesmente “estar ai” para conversar, para
olhar-nos com carinho, para compreender que o trabalho não é tudo na vida. Do contrário, não
seria estranho que buscássemos fora o que não fomos capazes de criar dentro.

4. COMUNIDADE DE DIACONIA: a misericórdia um dom que entregamos

O dom que recebemos e partilhamos é, também, o dom que devemos entregar a Deus.
Novamente, é bom voltarmos nossos olhos para Jesus. Suas entranhas misericordiosas tradu-
ziram-se sempre em ações salvíficas. Sabemos que a comunidade não existe para si mesma,
mas que está em função da missão. Seu valor radica em ser mediação dos valores do Evange-
lho. Trata-se de uma comunidade apostólica. Como diz Juan Ramón Moreno, um dos Jesuítas
assassinados em El Salvador: “O elemento unificador da comunidade não é tanto a convivên-
cia, mas o olhar juntos para o mundo, o povo, as gentes, deixando que esse povo de carne e
osso, seja a realidade concreta que configure nossa ação e nosso modo de vida”.

Quando falamos de entrega e entrega total pensamos em Jesus, que nos amou até ao ex-
tremo. Seu atuar sem medida, movido pelo amor e sua misericórdia sem limites, pode até es-
candalizar-nos. Quantas palavras, parábolas e encontros de Jesus provocaram o escândalo dos
bons. Como nos disse Enzo Bianchi: Sim. A misericórdia de Jesus, a que ele praticou e pre-
gou é exagerada e escandaliza. Estamos mais dispostos aos atos de culto, à liturgia do que à
misericórdia (Cf. Os 6,6; Mt 9,13; 12,7). Como escreveu exatamente Albert Camus em “A
Queda”: “Na história da humanidade houve um momento em que se falou de perdão e
misericórdia; mas durou muito pouco, mais ou menos dois ou três anos, e a história termi-
nou mal” (Família Cristã, 08 de dezembro de 2015).
Mas hoje, com frequência, estamos vivendo outra realidade, na qual o que conta é uma
intimidade sem história, a ânsia de êxito e de cultura à imagem e à aparência, que antepõe a
realização pessoal às necessidades do mundo; todos elementos que nos afastam do outro e da
misericórdia. Em chave bíblica poderíamos dizer que estamos passando de Amós, profeta da
justiça, a Oseias¸ profeta da misericórdia e do afeto. Agrade-nos ou não, devemos estar aber-
tos aos sinais dos tempos, que, com todas as suas ambiguidades, nos mostram o terreno no
qual devemos semear a Boa Semente.
A um povo desanimado, ferido e fragilizado, Oseias alenta com a linguagem cálida do
afeto, do perdão e da graça. Deus decide curar a Israel com o carinho e o afeto. Não será isso,
para nós, um apelo para tomar mais a sério as feridas do coração dos homens, para curá-las?
A Boa Nova não é sobretudo consciência de sentir-se amado, valorizado, abençoado, como
forma de contrapor-se à baixa autoestima de tantos irmãos/ãs. E numa sociedade, em que tudo
se vende e se compra, não teremos que converter-nos à gratuidade que nos permite desenvol-
ver a capacidade de contemplar, de agradecer, de maravilhar-nos ante o mistério ou a beleza?
Isso não significa renunciar à justiça. Porque a união a Javé deve cimentar-se na justiça e no
35
direito: “Eu te desposarei para sempre. Justiça e retidão nos unirão, junto com o amor e a
ternura, a mútua fidelidade também. E assim conhecerás quem é Javé” (Os 2,21-22). (Cf.
Manuel Díaz Mateos, SJ, publicado em Páginas (CEP) Lima, abril 96).
Por isso Díaz Mateos afirma: “O compromisso pela libertação e pela opção pelos po-
bres não se motiva unicamente pela urgência ou grandeza do problema. Motiva-se especial-
mente quando descobrimos a gratuidade do amor de Deus que nos move a fazer-nos graça,
dom e entrega como resposta, e quando experimentamos na própria carne a excessiva sensi-
bilidade desse mesmo Deus para curar os males de seu povo. Falando de coração a coração
contagia-nos algo do que aflige o coração do Pai comum, e somos convidados a sonhar com
o que Ele sonha, que será sempre uma porta de esperança para seu povo (Art. cit. p. 12).
Não devemos esquecer, tampouco, que no mistério da Encarnação Jesus manifestou a
bondade de Deus, Salvador nosso, e seu amor pelos homens. Não se ateve ao bem que
poderíamos ter feito, mas que nos teve misericórdia e nos salvou” (Tt 3,4-5). Em Jesus, Deus
nos fala de coração a coração, de rosto a rosto, de olhar a olhar. Sabemos, como nos diz São
Mateus, que Ele “tomou sobre si nossos sofrimentos e carregou nossas enfermidades” (Mt
8,17). O convite que Jesus nos faz de fazer-nos crianças, é um convite para abrir-nos ao
mundo da graça, da ternura, da carícia, do afeto, como o fazem as crianças. Sem dúvida os
homens e as mulheres de hoje necessitam sobretudo de uma palavra ou de um gesto que lhes
chegue ao coração; aí, então, se encontrarão com Deus e se abrirão a seus irmãos e irmãs
necessitados. O desafio será sempre saber unir esta atitude próxima e compassiva com a
palavra profética e o gesto contestatório, que brotam do mesmo amor.

CONCLUSÃO
Tanto a comunidade trinitária como a comunidade de Jesus e a primeira comunidade
dos Atos, são ícones de nossas comunidades. As três nos falam de amor, de relação, de
misericórdia. São três convites para, antes de abrir-nos ao mundo e viver “em saída”, como
nos convida o Papa Francisco, abrir primeiro a porta da misericórdia à nossa comunidade, a
nossos irmãos e irmãs. O Papa, na Audiência Geral de 16 de dezembro, nos dizia: A Porta
indica o próprio Jesus, que disse: “Eu sou a porta. O que entra por mim se salvará; poderá
entrar e sair, e encontrará seu alimento” (Jo 10,9). Atravessar a Porta Santa é a
manifestação de nossa confiança no Senhor Jesus, que veio não para julgar, mas para salvar
(Cf. Jo 12,47)... Atravessar a Porta Santa é sinal da verdadeira conversão de nosso coração.
Convém recordar, quando atravessamos aquela Porta que também devemos estar com a
porta de nosso coração aberta. Abrir a porta de nosso coração é fazer da misericórdia a
categoria mais importante de nossa relação com nossos irmãos e irmãs.
Unicamente a partir dessa experiência de viver juntos a paixão por Jesus e a paixão por
nosso povo, como os discípulos de Emaús, que, após aquele encontro que fez arder seus
corações, voltaram correndo à comunidade apostólica, para discernir as urgentes necessidades
dos pobres, escutar e sentir o sofrimento dos homens, tocar solidariamente e curar os que
estavam caídos à beira do caminho e anunciar a boa notícia de que o nome de Deus é
misericórdia, e que a última palavra a terá o Deus da vida.
“A missão é paixão por Jesus mas, ao mesmo tempo, paixão por seu povo. Quando nos
detemos diante de Jesus crucificado, descobrimos todo o seu amor, que nos dignifica e nos
sustenta, e ali mesmo, se não somos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se
36
amplia e se dirige, cheio de carinho e de ardor, a todo o seu povo. Assim redescobriremos
que Ele nos quer instrumentos para chegar cada vez mais perto de seu povo amado. Ele nos
tira do meio do povo e nos envia ao povo, de tal modo que nossa identidade não é
compreendida sem esta pertença” (EG 268). Certamente nossa identidade comunitária não se
compreende sem esta pertença (Cf. EG 154, Discurso do Papa Francisco ao Capítulo Geral
dos Dominicanos, 04/08/2016).
A nível pessoal e comunitário somos chamados a continuar escrevendo o Evangelho, o
livro vivo da misericórida de Deus, como o salientamos nas palavras do Papa Francisco ao
iniciar esta reflexão. Creio que a melhor expressão delas são as palavras com o mesmo
convite, mas com um toque mariano, que nos ofereceu na homilia aos consagrados e
consagradas em sua recente viagem a Polônia, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude,
e com as quais termino:
Pode-se afirmar que o Evangelho, livro vivo da misericórdia de Deus, que é necessário
ler e reler continuamente, possui, ao final, páginas em branco: é um livro aberto, que somos
chamados a completar dentro do mesmo estilo, isto é, realizando obras de misericórdia. Per-
gunto-vos: Como estão as páginas do livro de cada um de vocês? Escrevem nelas cada dia?
Estão escritas apenas em parte? Estão em branco?
Que a Mãe de Deus nos ajude nessa tarefa. Que ela, que acolheu plenamente a Palavra
de Deus em sua vida (cf. Lc 8,20-21), nos conceda a graça de sermos escritores vivos do
Evangelho; que nossa Mãe de misericórdia nos ensine a curar concretamente as chagas de
Jesus em nossos irmãos e irmãs necessitados, dos próximos e dos afastados, do enfermo e do
emigrante, porque servindo ao que sofre se honra a carne de Jesus Cristo (30 de julho de
2016).
Sem dúvida, entre esses próximos de que nos fala o Papa estão, em primeiro lugar, nos-
sos irmãos de comunidade, cujas chagas, que são as de Jesus, devemos curar, e em cujos ros-
tos, com olhar de Deus, devemos honrar a carne de Cristo.

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PALAVRA DO FUNDADOR

“Já que Deus, em sua misericórdia, vos confiou tal ministério, não adultereis a sua Palavra.
Granjeai-vos, diante dele, a glória de desvendar a verdade àqueles que estais encarregados de
instruir. Nas instruções que lhes dais, centrai nessa tarefa todo o vosso empenho. Considerai-
vos nisso como ministros de Deus e dispensadores de seus mistérios” (MR 193,1,2).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Lc 15,11-32 - Ef 4,1-16
Lc 10, 29-37 - Ef2,20-21

 Como em nossa oração e em nossa vida estão presentes as intuições trinitárias e


cristológicas que herdamos do nosso Fundador?

ANOTAÇÕES

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A ESPIRITUALIDADE QUE ANIMA A VIDA DOS IRMÃOS

39
A ESPIRITUALIDADE QUE ANIMA A VIDA DOS IRMÃOS

Parece-me que uma das modificações mais significativas da Regra foi a alteração do tí-
tulo do Capítulo 5º, de A Vida de Oração para A Vida Espiritual dos Irmãos. Imagino-me que,
quando se revisar novamente a Regra, o título será A Vida dos Irmãos, porque não se trata de
um aspecto, mas de toda a existência. Não se trata de um imperativo moral, com alguns mo-
mentos definidos, mas de uma necessidade existencial, que abarca toda a pessoa e todos os
momentos.
À alteração do nome responde a alteração da mentalidade que hoje vivemos, que nos fez
superar a dicotomia radical entre o espiritual e o material. Tradicionalmente, entendemos o
espiritual como o oposto ao corporal, como uma dimensão para além do mundo... Hoje pen-
samos que o espírito representa a essência mais profunda do ser, como a dimensão máxima do
ser humano, o sentido pleno da vida. Santo Agostinho o expressou ao partilhar sua experiên-
cia pessoal: “Eu Te buscava fora e Tu estavas dentro”. Por essa razão, alguns falam do espiri-
tual como a qualidade humana em sua máxima expressão (Cf. Religião sem religião, de Ma-
riano Corbi), evitando o termo espiritualidade, que pode ser confuso. E o Padre Adolfo Nico-
lás nos diz que, possivelmente, ao homem e à mulher de hoje corresponda melhor “profundi-
dade”. O que nos lembra o convite que nos faz a Regra a “viver em profundidade”, de acordo
com o apelo que nos faz o Fundador, para sermos homens interiores (R 65,1). Outrossim, po-
demos recordar a metáfora do poço, de que nos fala Santa Teresa.
Poderiamos afirmar que, além do profano e do sagrado, tudo é transparente, tudo pode
revelar-nos a Deus, por presença ou por ausência. Creio que este é o sentido mais profundo do
espírito de fé, inseparável do espírito de zelo, que nos legou o Fundador e que a Regra expres-
sa pelas palavras dele: “O espírito deste Instituto é o espírito de fé, que compromete os Ir-
mãos a considerar tudo com os olhos da fé, a fazer tudo em vista de Deus e a atribuir tudo a
Deus” (R 6).
Em 1981, integrei uma equipe de Irmãos Latino Americanos que elaborou uma Leitura do
Carisma Lassalista a partir da América Latina, sob a direção do Irmão Noé Zevallos. Creio que a
síntese feita do espírito de fé me parece muito esclarecedora:
 “Considerar tudo à luz da fé” é contemplar a vida, os acontecimentos, a história como
lugares de manifestação do Senhor (CONTEMPLAÇÃO).
 “Fazer tudo com o olhar posto em Deus” é discernir, à luz da Palara, o que mais
convém agora, neste momento, para a realização do plano de salvação
(DISCERNIMENTO).
 “Atribuir tudo a Deus” é confiar que o Senhor dirige a história pessoal e a história dos
homens com sabedoria e amor (ABANDONO).
Creio que uma visão que nos esclarece melhor de como devemos entender a
espiritualidade é o apelo a uma mística de olhos abertos feito por J. B. Metz: Jesus ensinou uma
mística de olhos abertos, uma mística do dever absoluto de assumir o sofrimento dos demais... A
autoridade de Deus na autoridade daquele que sofre, em primeiro lugar daquele que sofre
inocente e injustamente, naquela autoridade na qual Jesus, na parábola do juízo final colocou a
história inteira da humanidade: Senhor, quando te vimos sofredor?... Em verdade te digo: tudo
o que fizeste a um dos mais pequenos o fizeste por mim (Mt 25)... nesta mística da compaixão

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que se verifica dramaticamente o encontro com a Paixão de Cristo. Aqui acontece o seguimento,
o seguimento do Cristo sofredor, ou, do contrário, isso não acontecerá.
A experiência e a vida humana se transformam, agora, no autêntico lugar do sagrado, e a
experiência religiosa se insere na dimensão da humanidade, a corporeidade, a historicidade e
suas relações vitais. A “Igreja em saída” do Papa Francisco resgata esse lugar sagrado do
encontro com Deus, que é a vida histórica e concreta, o coração da missão da Igreja. Aqui o
Papa sublinha que a vida humana é o lugar sagrado por excelência, o lugar teológico da
presença e da revelação divinas, a terra sagrada na qual se deve tirar os calçados dos pés (Es
3,5), de modo especial a vida humana sofrida, empobrecida, fragilizada, ameaçada (Cf. Luigi
Schiavino, A religião ética do Papa Francisco no contexto da atual mudança cultural,
Congresso de Ética, UNILASALLE, 2015, Costa Rica).

1. A TRINDADE EM NOSSA VIDA DE IRMÃOS

 Em resposta ao chamado pessoal do Espírito Santo, os Irmãos se consagram inteira-


mente à Santíssima Trindade. Com este fim, se associam para procurar sua glória no ministé-
rio da educação cristã. (R 23)

 Os Irmãos inspiram-se na oração de Jesus Cristo: “Pai, que eles sejam um como Tu e
Eu somos um, para que o mundo creia que Tu me enviaste”. (R 24)
Jesus, no Evangelho de São João, nos apresenta, de maneira maravilhosa, a unidade que
devemos viver em nossa espiritualidade entre o Deus Trindade, nossa comunidade e o mundo:
Que todos sejam um. Como Tu, Pai estás em mim e eu em Ti, que eles também sejam um em
nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste. Dei-lhes a glória que me deste, para que
sejam um, como nós somos um. Eu neles e Tu em mim, para que sejam perfeitos na unidade, e
o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim” (Jo 17,21-23).
A Regra nos diz, como lembramos: “Antes de tudo, a oração é um dom recebido do
Pai, do Filho e do Espírito Santo” (R 66). A oração lassaliana possui um ritmo ternário, no
qual subjaz um esquema trinitário. É o que nos lembrava o Ir. Fermín Gaínza na exposição
que fez durante o Simpósio da Oração de 1981. E, mais que o esquema, é o espírito da oração
lassaliana que é trinitário. Tanto na Primeira como na Segunda parte estão presentes o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. E, mesmo que a Segunda parte da oração seja Cristocêntrica, e nos
centremos mais no mistério de Cristo, sabemos que este mistério é o do amor de Deus, que
tem sua fonte no Pai e sua manifestação e continuidade no Espírito.
É por isso que nossas comunidades de Irmãos, no amplo mundo lassalista, deveriam ser
como um ícone da vida trinitária no mundo e na Igreja de hoje, tal como nos propunha o Fun-
dador ao dizer-nos que, em nossas comunidades, deve acontecer a união essencial que existe
entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo (MD 39,3). Este é o sentir da Regra que recolhe esta
última ideia do Fundador:

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 A vida comunitária dos Irmãos é, antes de tudo, dom de Deus, que eles recebem atra-
vés de Jesus Cristo, presente no meio deles. Ele é quem lhes dá o Espírito de amor
que habita em cada Irmão e realiza a unidade na comunidade.

 Eles pedem este dom na oração. Respondem a esta graça colocando-se, alegremente,
a serviço dos demais. Desta forma, tornam visível entre si um esboço das relações de
conhecimento e amor que constituem a vida trinitária (R 48).

Somos chamados, por conseguinte, a viver nossa vida pessoal e comunitária em chave
trinitária, e a oração é parte desta vida: Santíssima Trindade me, nos consagramos a Ti para
procurar tua glória. A glória do Pai, que, em Jesus, se revela como ternura e misericórdia. A
glória do Filho, que se revela no rosto do pobre, do faminto, do encarcerado... (Mt 25) e nos
convida a prosseguir sua missão e construir o Reino. A glória do Espírito Santo, que nos mos-
tra suas sementes nos diferentes e nos abre ao diálogo e ao respeito. Em síntese, o mais impor-
tante, para nós, é empenhar-nos na busca do Deus vivo, de sua Vontade, de seu Reino, reco-
nhecendo seus apelos, discernindo seu querer, comprometendo-nos em sua obra, que se con-
verte em nossa. Conscientes, também, de que a maior glória de Deus é a vida plena de cada
pessoa.
Procurar a glória de Deus, como nos convidam, constantemente, nosso Fundador e os
primeiros Irmãos, não é uma teoria ou um projeto a realizar. Seu fundamento é uma experiên-
cia pessoal. Trata-se de uma atração profunda, quase irresistível, para Deus, de uma experiên-
cia espiritual, de que Deus é o Absoluto e de que todo o nosso ser tem Nele sua referência
última. É a experiência de amar e ser amado; é a certeza de que Deus é tudo.
Mas, não se trata, de modo algum, de uma experiência que nos isola, numa bolha distan-
te das preocupações da vida e dos homens. É uma experiência que nos leva ao serviço e à en-
trega, a partir de Deus, como transparência de sua presença. A alma se sente continuamente
atraída para o torvelinho da vida de Deus. Faça o que faça, aquela augusta presença está
sempre ali, penetrando-a, consolando-a, impelindo-a transfigurando-a por inteiro. Este mo-
vimento de retorno não nos afasta dos demais: pelo contrário, quanto mais está no centro de
si mesma, tanto mais a alma está próxima deles, os abraça, serve e ama com o mesmo amor
de Deus (E. Ancilli, Presença de Deus, Diccionario de Espiritualidad III, Herder, Barcelona,
1984, p. 189, citado por Garcia José A, Ventanas que dan a Dios, Sal Terrae, 2011, p. 98).
Esta dimensão, originária de nossa vocação de Irmãos, não perdeu atualidade. Ao con-
trário, como nos diz Monsenhor Bruno Forte: em um mundo no qual a exigência mais forte
parece ser a busca de sentido, isto é, de um significado profundo da empresa pessoal ou cole-
tiva, que dá aos homens a coragem de existir, a pátria trinitária se oferece, então, como a boa
nova, como a meta de nosso caminhar que ilumina o caminho, a companhia de nosso presente
que dá força ao peregrinar, a memória de nossas origens que nos faz sentir arraigados e fun-
damentados no amor (Trindade como História).
À luz da Trindade somos chamados a ser místicos e humildes servidores do seu Reino.
Deus meu, Trindade que adoro, ajuda-me a esquecer-me inteiramente de mim mesma, para
estabelecer-me em ti, imóvel e aprazível, como se minha alma já estivera na eternidade; que
nada possa perturbar minha paz, nem fazer-me sair de ti, meu imutável; antes, que cada mi-
nuto me leve mais fundo na profundidade do teu Mistério. Pacifica minha alma. Faz dela o teu
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céu, tua morada amada, e lugar de teu repouso. Que eu não te deixe jamais só nela, mas que
esteja inteiramente ali, totalmente desperta em minha fé, em adoração, entregue sem reservas
a tua ação criadora” (Santa Isabel da Trindade). É a ação criadora que devemos continuar
mediante nosso ministério. Trata-se de perdermo-nos em Deus, para reencontrá-lo no coração
das necessidades humanas, nas quais se nos manifesta como ausência e anseio. Esta é nossa
mística de olhos abertos.
É importante que vivamos essa dimensão trinitária. O que torna difícil nossa oração é
que pretendemos que ela seja o resultado de nosso esforço, e nos esquecemos que somos seres
“habitados”. Só Jesus pode oferecer ao Pai a verdadeira oração em nós pelo Espírito. Este
Espírito que nos convida a dizer “Jesus é o Senhor”, e com Jesus, “Abba, Pai”. Como sabe-
mos, pelo Evangelho, que o Pai é inseparável do Reino, por isso a oração trinitária nos com-
promete na construção de um mundo que responda ao projeto amoroso de Deus.
Por isso, com a Igreja, nos sentimos Povo de Deus nosso Pai, Corpo de Cristo nosso Ir-
mão, Morada do Espírito nossa força. Uma Igreja nascida da Trindade e que nos conduz à
Trindade, só pode fundir-nos no amor, já que, como disse Santo Agostinho ao falar da Trin-
dade: Aqui temos três coisas: O Amante, o Amado e o Amor. E, como comenta Monsenhor
Bruno Forte: Mediante o Filho e o Espírito é como a Trindade se oferece como a origem, o
seio, a pátria do amor: amado por Deus, o homem pode tornar-se capaz de amar seu próxi-
mo. Essa ação do Filho e do Espírito, que os Padres chamam as duas mãos do Pai, sintetizam
o essencial da vocação da Igreja, nossa vocação de Irmãos, alimentada cada dia por nossa
oração à Trindade.

2. DIMENSÃO CRISTOLÓGICA DE NOSSA VIDA ESPIRITUAL

Os Irmãos:
 Fazem de sua vida inteira um itinerário de identificação com Jesus Cristo, “primogênito
de uma multidão de Irmãos. Para ser memória de seu amor e continuação de seu
ministério de salvação. (R 23)

 Contemplam a Jesus Cristo, para participar em sua vida e entrar em sua comunhão
íntima com o Pai e seu abandono à vontade d’Ele. Dessa forma, progressivamente,
se conformam sempre mais com Jesus Cristo, que permanece neles e os torna capa-
zes de, como “embaixadores” seus, representá-lo e comunicá-lo aos que encontram
em seu ministério (R 65).

A centralidade do mistério de Cristo é uma constante lassaliana. Para o Fundador, Jesus


Cristo está em nosso meio na comunidade e, por isso, o primeiro dos frutos desta presença é
“que todas as nossas ações se refiram a Cristo e tendam a Ele, como a seu centro, e retirem
dele toda sua virtude, como os sarmentos retiram sua seiva da cepa; de modo que haja um
movimento contínuo de nossas ações para Cristo e de Cristo para nós, tendo em vista que é
Ele quem lhes dá o espírito de vida” (EMO 34).
Atualmente, a teologia retorna à linguagem narrativa. Efetivamente, a fé cristã nasce de
acontecimentos salvíficos. Sabemos que, por influxo do logos grego, o discurso teológico,
nascido como narração, terminou em formulação abstrata, atemporal e sem sujeito. Ante os
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excessos discursivos, que o mundo de hoje questiona, deveríamos recuperar outra vez a narra-
ção. Se Jesus pode fazer teologia narrativa foi porque falava do que havia visto e ouvido na
intimidade do Pai. Essa deve ser, por conseguinte, a linguagem da oração. É por essa razão
que partiremos, não de uma teoria, mas da oração de Jesus e da oração de La Salle.
Poucos meses antes de morrer, numa de suas últimas cartas, o Fundador desvela um
pouco seu véu, sempre recatado, de sua relação com Deus: “Persegue-me a ideia de que, ha-
vendo passado tanto tempo em que tenho feito tão pouca oração, é conveniente que agora lhe
dedique muito tempo, para conhecer a vontade de Deus no que tenho que fazer. Parece-me
que o único que devo pedir a Deus na oração é que Ele me revele o que exige de mim, e me
coloque na disposição em que me quer” (Carta 5,1-2).
Penso que este texto nos revela o que constitui o coração da oração lassalista. Oração
orientada para o compromisso: “Vontade de Deus”, “o que Ele quer que faça”. Oração que une
MÉTODO DE ORAÇÃO e MEDITAÇÕES PARA O TEMPO DO RETIRO; Tabor e Emaús;
filiação divina e fraternidade humana, em união vital. Presença de Deus como primeira parte do
Método e atualizada ao longo do dia.
Oração orientada particularmente à busca da Vontade de Deus, que outra não é senão o
bem de nossos irmãos e irmãs, que tenham vida plena, que se comprometam na realização do
plano salvífico de Deus: a vida do mundo, a plena realização da pessoa. Ao falar de nosso voto
de obediência, nossa Regra o expressa clarissimamente: “A obediência evangélica é comunhão
com o Espírito Santo, que identifica progressivamente a vontade dos Irmãos com a de Jesus
Cristo, que veio não para fazer a sua vontade, mas a vontade d’Aquele que o enviou, para que
nenhum desses pequenos se perca” (R 33). Não é, portanto, exagero afirmar que a melhor
maneira de discernir a Vontade de Deus, e de identificar nossa vontade com a de Jesus, é a
relação pessoal com Ele na oração.
A oração lassalista faz sua a oração de Jesus, que, num primeiro momento, é abertura a
Deus como seu Pai. Jesus o invoca de maneira pessoal, silenciosa e profunda: ABBA!
Simultaneamente, a oração se expressa no descobrimento da vontade salvadora do Pai e se
realiza na entrega da vida pelos outros (Hb 5,7-10; Mt 26,39-42). Essa a razão pela qual o
Fundador nos fala da escada de Jacó (M 198,1), convencido de que é o mesmo Espírito que
consagra os Irmãos e converte o coração dos jovens. Outra vez, aqui, o lassaliano consiste em
não fazer diferenças. Para ele está muito claro, mas, talvez não tanto para nós, que não posso
dizer PAI se não sou fraterno e solidário. Que não posso orar se não tenho capacidade para doar-
me e partilhar. Neste sentido, será sempre verdade que não são nossas ocupações que nos
impedem de orar, mas nossa falta de amor, a Deus ou ao homem.
Temos tempo para o que amamos. Deixamos de rezar quando nossa ação é motivada por
ALGO e não por ALGUÉM. O importante é conseguir a união com Deus, servindo aos demais,
com a certeza de que nosso serviço desinteressado aos outros não pode nascer a não ser do
encontro com o Senhor, porque ninguém pode por-se, com amor e desinteresse, ao serviço do
próximo se antes não se assentou aos pés do Mestre, para que seja seu Espírito que o guie e se
encarregue de sua vida.
A Segunda parte do Método pode ser chamado de “Corpo da Oração”. O Fundador quer
que contemplemos a Jesus Cristo no Evangelho, para que o exemplo de sua vida e seus
ensinamentos nos ajudem a transformar-nos n’Ele. “Minha vida é Cristo”. “Na Meditação,
unem-se à pessoa de Jesus Cristo em seus mistérios, virtudes e ensinamentos. São, dessa forma,
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continuamente chamados a fazerem seu o espírito e o coração de Jesus Cristo e a viverem em
sua presença ao longo do dia” (R 69).
Em decorrência, a Regra nos propõe, com o Fundador, três formas de contemplar a unir-
nos a Jesus Cristo:
 vivendo um mistério de salvação: JESUS-VIDA;
 praticando uma virtude: JESUS-CAMINHO;
 ensinando uma máxima: JESUS-VERDADE.

De certa forma, a pessoa, as atitudes, as palavras, as ações de Jesus Cristo são o tema
único da oração de todo lassaliano. É o que faz ser o Evangelho o nosso primeiro e principal
livro de oração. Fundamentalmente, trata-se de levar a sério a humanidade de Jesus, centran-
do-nos nos acontecimentos de sua vida e prolongando-os na nossa. É isso que o Fundador
entende por “espírito do mistério”: a contemplação de Jesus Cristo, que, por seu espírito,
vive e cresce na relação do educador com seus discípulos, com seus Irmãos ou família, com as
pessoas com as quais se relaciona. A Palavra de Deus e o mistério de Jesus contemplado na
oração devem transformar-se em palavra viva e atualizada. O Jesus diante dos olhos e no co-
ração da escola sulpiciana, só será autêntico se terminar sendo Jesus nas mãos.
Por conseguinte, não se trata de uma contemplação desencarnada. O Cristo contemplado
na oração deve ser prolongado na vida. “Olhai para Jesus Cristo como para o bom Pastor do
Evangelho, que procura a ovelha perdida, a coloca sobre seus ombros e volta com ela para
incorporá-la novamente ao redil. E, como, por vezes, sois chamados a imitar o bom Pastor,
tendes por obrigação proceder de modo análogo; pedi a Ele as graças necessárias para con-
seguir a conversão de seus corações” (MR 196,1). É isto que o Fundador entende por “espíri-
to do mistério”.
A contemplação de Jesus Cristo, que, por seu espírito, vive e cresce na relação do Irmão
e do mestre lassalista com seus discípulos, se alimenta de duas fontes. A palavra da Escritura
e a realidade vivida. Como dizem Sauvage e Campos: “A contemplação, por parte do Irmão,
do mistério de Jesus Cristo, implica não apenas na frequentação assídua do Evangelho, mas,
também, na atenção ao que acontece em sua vida, levando em consideração, tão plenamente
quanto seja possível, as realidades que estão em jogo. A referência ao mistério de Jesus Cris-
to não é evasão por elevação, antes, uma imersão em direção ao centro. É o que mostram,
constantemente, as Meditações lassalianas: remetem o Irmão à sua existência concreta, como
o lugar onde revivem novamente os mistérios de Jesus Cristo” (Explicação do Método de
Oração, Editorial San Pio X, p. 420). Neste sentido podemos constatar que, em nossa Regra,
a pessoa de Jesus está muito presente, tanto ao falar de nossos votos (R 33, 36, 40), de nossa
vida comunitária (R 48, 48,2, 51, 64, 64,1) e de nossa missão (R 2, 6, 15, 17, 17,1, 17,2, 21).
O Irmão John Johnston, na Carta Pastoral de 1994, nos dizia: “Irmãos, nossa vocação
religiosa só tem sentido se Cristo for verdadeiramente o centro de nossa vida. É por essa ra-
zão que necessitamos ser homens de oração. Necessitamos estar em ‘contato’ regular e fre-
quente com o Senhor, dar tempo aos períodos de ‘consciência acrescentada’ de sua presença,
de seu amor por nós, para o chamado que nos dirige para fazer que sua presença seja uma
realidade para o jovem. Devemos expressar-lhe nosso SIM, agradecer-lhe todos os benefí-
cios, pedir perdão por nossas falhas e pedir-lhe a ajuda de que necessitamos”.

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O grande modelo de nossa oração é Jesus, e o argumento mais convincente para orar
não pode ser outro que este, tão simples: Jesus orou. Nossa oração, mais que centrar-se em
teorias ou técnicas, deve centrar-se em sua pessoa. A melhor maneira de renovar nossa oração
é a de aproximar-nos de Jesus orante. Hoje, mais que nunca, a pessoa atrai mais que qualquer
teoria. Os Evangelhos são claros: Jesus orou. Não pretendamos buscar uma teologia com de-
finições precisas e análises datalhadas. Jesus simplesmente rezou. Porque, como disse J. Je-
remias em frase já clássica: “Jesus nasceu num povoado que sabia rezar” e, como homem,
foi herdeiro dessa tradição, e sobretudo porque, apesar do pouco que sabemos da oração de
Jesus: “o primeiro que se observa nos dados recolhidos pelas diversas tradições evangélicas,
é que a oração não era algo acidental ou secundário na vida de Jesus. Pelo contrário, cons-
tata-se que ocupa um lugar essencial e insubstituível. A oração acompanha todas as grandes
decisões e os acontecimentos importantes de sua vida” (J. A. Pagola).
Jesus ora porque necessita orar. Não por uma necessidade legalista ou jurídica, mas por
uma necessidade interior, uma necessidade antropológica profunda. Trata-se de uma experi-
ência vital: somente a conversação com o Pai podia ocupar sua solidão interior. Os Evange-
lhos nos salientam a oração litúrgica de Jesus, mas que o marco preferencial da mesma é a
solidão cf. Mt 14,23; Mc 1,35; Lc 5,16). Jesus, que nos ensina a orar em “espírito e verdade”
(Jo 2,24), supera a sinagoga e o tempo como lugares únicos de oração. Ante a oração demasi-
ado “pública” dos fariseus, Jesus nos ensina: “Tu, quando orares, entra em teu quarto e fecha
a porta” (Mt 6,6).

Podemos afirmar que não há oração cristã sem a presença de Jesus. “Há apenas um
único mediador, o homem Cristo Jesus” (1Tm 2,5). Jesus é o mediador de nossa oração. Isso
porque a oração cristã se dirige ao Pai por Cristo no Espírito Santo. A mediação de Cristo na
oração é ascendente e descendente. Por um lado, louvamos e invocamos o Pai, alvo de toda a
oração cristã, por intermédio de Jesus Cristo. Por outra, o Pai nos fala e dialoga conosco me-
diante Jesus Cristo. Devemos buscar o equilíbrio nesta dupla mediação. Santa Teresa nos diz
que Cristo é livro vivo e São João da Cruz afirmava: “O Pai falou uma Palavra, que é seu
Filho, e a fala sempre em eterno silêncio, e é em silêncio que deve ser ouvida pela alma”. No
silêncio da oração de cada dia (Cf. Augusto Guerra o.c.d., Oração Cristã).

CONCLUSÃO:
DUAS ORAÇÕES LASSALIANAS: LEMBREMO-NOS... e VIVA JESUS…
Na invocação: “Lembremo-nos de que estamos na santa presença de Deus”, assim co-
mo na oração: “Viva Jesus em nossos corações! Para sempre!”, os Irmãos encontram, ao
mesmo tempo, a garantia da presença constante do Deus Trindade e o apelo a se tornarem,
em Jesus Cristo, mediadores de seu amor” (R 64,1).
Termino com um pequeno comentário a estas duas orações lassalianas, que levamos tão
profundamente presentes em nosso coração. São a síntese do que refletimos. Por um lado, a
presença do Deus Trindade em nossas vidas e, por outro, o apelo a sermos, em Jesus Cristo,
mediadores e testemunhas do seu amor.
 O tão frequentemente repetido “Lembremo-nos de que estamos na santa presença de
Deus”, recorda-nos que, partilhar a missão implica em partilhar constantemente a

46
consciência da presença de Deus, em nome de quem se leva a cabo a missão. É um
convite para por a Deus no centro do que ocorre... (Luke Salm).

 O “Viva Jesus em nossos corações” é a primeira invocação que, cada manhã, dizemos
os Irmãos de La Salle ao começar nossa oração. Se cada dia, desde seu início, te sen-
tes habitado por Jesus, já possuis em ti a raiz da vida e o princípio da ilusão... No
mais profundo de teu íntimo ouvirás o Fundador te dizer: “Que Jesus viva sempre em
nossos corações... Por isso, pedi-lhe que permaneça na vossa alma, para nela rezar
ao Pai e para conduzi-la até Ele” (MD 62,3)... Vem, Espírito de Jesus, para possuir
meu coração e animar todas as minhas ações, de modo que possa dizer: “Já não sou
eu quem vive; é Cristo que vive em mim” (Irmão José L. Hermosilla. Lasaliana 19-1-
A-72).
Creio que vale a pena terminar com a citação completa da Meditação 62, que faz o Ir-
mão Hermosilla: “Posto que Jesus Cristo é vosso mediador e só por Ele podeis chegar a
Deus, suplicai-lhe que esteja sempre em vossa alma, para que ore nela a Deus e a leve a Ele;
e para que fazendo dela, durante o tempo, sua morada, como em seu templo estabeleça sua
residência n’Ele por toda a eternidade”

47
PALAVRA DO FUNDADOR
“A primeira coisa, pois, que se deve fazer na meditação, é compenetrar-se interiormente da
presença de Deus; o que se há de fazer sempre por motivo de fé, baseado em passagem da
Sagrada Escritura” (EMO 2,14).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Jo 17, 21-23 – ICol 1,9 -


ITes 5,19-21 - Hb 5,7-10 - Mt 26,39-42
Lc 18,35-43 - Rm 15,1-6

 Que lugar tem os pobres em nossa vida?


 De que maneira estão presente e enriquecem nossa oração e nossa vida?

ANOTAÇÕES

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UMA ESPIRITUALIDADE PARA IRMÃOS DEDICADOS AOS POBRES

49
UMA ESPIRITUALIDADE PARA IRMÃOS DEDICADOS AOS POBRES

É significativo que o Capítulo da Regra dedicado à espiritualidade dos Irmãos inicie


com a recordação histórica da vivência do Fundador e dos primeiros Irmãos, que descobriram
o rosto de Deus no rosto dos meninos pobres e compreenderam que, na vida espiritual, não
podemos fazer diferenças. Que o Deus que cada manhã encontramos no silêncio da oração e
em nosso partilhar comunitário se nos revela nesses rostos. Daí o convite para aprofundar a
comunhão com Deus, com os Irmãos e com aqueles que nos são confiados.
O texto da Regra é lindo e de grande profundidade: Para João Batista de La Salle, a
educação cristã dos pobres é Obra de Deus e deve ser realizada por pessoas guiadas pelo
Espírito Santo. Ele convidou os Irmãos a unificarem sua vida: “Não façais diferença entre os
deveres próprios do seu estado e a questão de sua salvação e perfeição”. Nos desafios encon-
trados em seu ministério e na vida pessoal e comunitária, o Irmão reconhece um convite de
Deus para aprofundar sua comunhão com Ele, com os Irmãos e com aqueles que lhes são
confiados. O Instituto transforma-se, assim, numa memória viva da presença de Deus no
mundo da Educação (R 63). Nossa espiritualidade é uma riquíssima espiritualidade unificada
e unificadora.
Na Meditação para Pentecostes o Fundador o expressa de maneira maravilhosa, como
síntese vital que integra oração e missão, santificação pessoal e salvação, mística e profecia:
O emprego que exerceis obriga-vos a mover os corações. Mas isto somente o podereis com a
cooperação do Espírito Santo. Pedi-lhe queira conceder-vos, hoje, a mesma graça que infun-
diu nos santos Apóstolos e que, depois de vos encher de seu Espírito, a fim de santificar-vos,
também vo-lo comunique para operardes a salvação dos outros (MD 43,3).

1. AMOR A DEUS E AMOR AO PRÓXIMO, MATRIMÔNIO INSEPARÁVEL


A essência do cristianismo pode ser sintetizada, como o Evangelho, numa dupla relação:
com Deus e com os homens (Cf. Mc 12,29-32). Filiação divina e fraternidade humana. Nossa
vocação lassalista não é mais que uma forma concreta de integrar essa dupla relação para po-
der viver a mensagem central do Evangelho. Devemos situar a oração nesse contexto e não
considerá-la como uma realidade isolada. Nossa oração, “ocupação interior e aplicação da
alma a Deus” (EMO 1) é inseparável de nosso compromisso histórico com os meninos e jo-
vens, especialmente os pobres e mais vulneráveis. Tal é o sentido da primeira constituição do
Capítulo 5: “Vida Espiritual dos Irmãos”.
 Para a João Batista de La Salle, a educação cristã dos pobres é Obra de Deus e deve
ser realizada por pessoas guiadas pelo Espírito Santo. Ele convidou os Irmãos a unificarem
sua vida: “Não façam diferença entre os deveres próprios de seu estado e a questão de sua
salvação e perfeição”.

 Nos desafios encontrados em seu ministério e na vida pessoal e comunitária, o Irmão


reconhece um convite de Deus para aprofundar a comunhão com Ele, com os Irmãos e com
aqueles que lhes são confiados. O Instituto transforma-se, assim, numa memória viva da pre-
sença de Deus no mundo da educação (R 63).

50
É revelador ver como as Meditações para o Tempo do Retiro, escritas para ajudar aos
Irmãos e aos Mestres cristãos a aprofundarem, cada ano, seu encontro pessoal com o Senhor,
não apresentam, como o fazem os Exercícios de Santo Inácio, a relação exclusiva do exerci-
tante com Deus, mas o ministério educativo do educador lassaliano. Aliás, o mesmo sucede
com muitas das Meditações para os Domingos e Festas.
A presença dos jovens e as necessidades do mundo estão tão presentes no coração do
Irmão e do Mestre lassalista que, mesmo em aquelas ações destinadas a encontrar-se a sós,
face a face, com Deus, não podem deixar de pensar nos jovens e no mundo. Essa é a doutrina
lassaliana: “É verdade que tendes exercícios específicos para a vossa própria santificação,
mas, se estiverdes realmente animados de zelo ardente pela salvação dos que estais encarre-
gados de instruir, não deixareis de fazê-los bem, nem de dirigi-los a consecução desse fim”
(MR 205,2). Por isso, é muito importante, como o vimos, não separar a Explicação do Método
de Oração dos outros escritos lassalianos, particularmente das Meditações para o Tempo do
Retiro. Deus e a pessoa humana se encontram na oração lassalista.
Porém, ao mesmo tempo, não devemos esquecer que, para o Fundador, o principal exer-
cício de nossa vida diária é a oração interior, a oração do coração; aspecto esse, aliás, mantido
pela Regra com um acréscimo que enriquece o que já a Regra anterior afirmava, citando o
Fundador:
 Os Irmãos devem amar muito a meditação e considerá-la “como o primeiro e princi-
pal de seus exercícios diários”.

 Na meditação unem-se à pessoa de Jesus Cristo em seus mistérios, virtudes e ensina-


mentos. São, dessa forma, continuamente chamados a fazerem seus o espírito e o coração de
Jesus Cristo e a viverem em sua presença ao longo do dia (R 69).

 Em atitude de contemplação, descobrem que estão unidos ao Deus vivo, não apenas
na oração, mas em todo momento (R1).
Jesus é o melhor modelo de oração silenciosa e pessoal. Repetidamente é dito no Evan-
gelho que Jesus se retirava a lugares solitários para orar. O fato mais convincente para nós,
portanto, é que Jesus orou e que a oração fazia parte de sua vida de um modo permanente.
Nossa oração, mais que centrar-se em teorias ou técnicas, deve centrar-se na pessoa de Jesus.
Ao anterior podemos acrescentar uma razão de tipo existencial. Cada um é único diante do
Senhor. Logo, cada um deve ter um modo único de comunicar-se com Deus, com um Deus
que sempre nos trata de uma maneira personalizada, de um Deus que me chamou por meu
nome antes de eu nascer e tem escrito meu nome na palma de suas mãos (Cf. Is 49, 1.16). Por
isso, não basta a oração comunitária, por mais importante e necessária que seja. A oração pes-
soal, o encontro a sós com Deus, também é fundamental e deve fazer parte de nossa vida diá-
ria; a comunidade deve favorecê-lo e deve ser parte importante de nosso projeto pessoal de
vida.
Devido à importância da oração do coração, ou interior, em nossas vidas, podemos re-
cordar como o Método de Oração que nos deixou o Fundador, se inspira no Método Sulpicia-
no, que foi formulado por Olier e se reduz a três elementos básicos: Ter a Cristo, o Senhor,

1 A fonte dessa citação não foi localizada.


51
ante os olhos, no coração e nas mãos. O primeiro ponto conduz ao respeito, à admiração e à
adoração, o segundo a estabelecer um vínculo com Ele e o terceiro a uma ação que se identifi-
ca com a vontade de Jesus Cristo.
 Ter a Jesus ante os olhos, ver como Ele adora a Deus, glorifica seu nome, de acordo
com a primeira invocação do Pai Nosso. É uma atitude de adoração e, ao mesmo
tempo, a forma como toda a pessoa se enche, em silêncio, da atuação interior do Es-
pírito de Jesus Cristo.

 Ter Jesus no coração e, assim, entrar em comunhão, em união... Nessa parte da


oração nos abandonamos a Ele, para participar no que Ele é e naquilo mediante o
qual Ele nos vivifica. Esta participação e comunhão que Deus nos concede, chama-
se, com mais propriedade: comunhão, união, porque, mediante elas, Deus nos mostra
sua riqueza, através da atuação íntima de seu Espírito. A oração chega a ser um mo-
mento privilegiado de aderirmos a Cristo, que é quem derrama sobre nós o poder vi-
vificante e transformador de seu Espírito. A segunda parte da oração se refere à invo-
cação do Senhor: “Venha a nós o Teu Reino”. “O Reino de Deus vem a nós quando,
em oração, atraímos o Espírito de Deus, que é quem, por seu poder, nos submete to-
talmente a Si mesmo”.

 Ter Jesus nas mãos, é a cooperação, que tende à realização da terceira invocação do
Pai Nosso: “Faça-se tua vontade”. “Ter a Cristo Nosso Senhor nas mãos significa
querer que sua Divina Vontade se realize em nós; Jesus Cristo tem que atuar em nós
e por nós”. Aqui suscitamos “boas resoluções e prevemos as ocasiões para colocá-
las em obra”. Olier dá mais importância ao dom divino e à atuação do Espírito Santo
que ao esforço humano, razão pela qual, em vez da palavra resolução, prefere a pala-
vra cooperação, que significa, claramente, dependência e submissão à atuação do
Espírito, para que se realizem em nós seus desígnios. (Cf. M. Sauvage em Diction-
naire de Espiritualité Ascétique et Mistique, col. 925 e ss.).

2. NOSSO CAMINHAR PARA OS POBRES À LUZ DO FUNDADOR


O dar educação cristã aos filhos dos artesãos e dos pobres, nossa primeira finalidade,
não se reduz a uma forma de orientar nossa missão apostólica prioritariamente para eles, antes
deve ser, no seguimento dos passos de nosso Fundador, uma verdadeira escola de espirituali-
dade e de oração. Razão pela qual quero iluminar nosso próprio itinerário com os passos por
ele dados e as vivências experimentadas por São João Batista de La Salle.
O valor espiritual do serviço aos pobres é expresso, em belíssimas palavras, pelo Do-
cumento sobre a Vida Consagrada: Servir aos pobres é um ato de evangelização e, ao mesmo
tempo, sinal de autenticidade evangélica e estímulo à conversão permanente à vida consa-
grada, pois, como diz São Gregório Magno, ‘quando alguém se abaixa para o mais baixo de
seus próximos, então, admiravelmente, se eleva à mais alta caridade, pois que, se com be-
nignidade desce ao inferior, valorosamente retorna ao superior’ (VC 82).

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O primeiro artigo da Regra, recolhendo a tradição de mais de 300 anos de história, ex-
pressa a experiência vivida pelo Fundador e pelos primeiros Irmãos que hoje somos chamados
a continuar: Sensibilizados com o abandono humano e espiritual “dos filhos dos artesãos e
dos pobres”, João Batista de La Salle e seus primeiros Irmãos consagraram-se a Deus por
toda a vida, em resposta ao seu chamado, para dar-lhes educação humana e cristã e, assim,
estender a glória de Deus na terra. (R 1) Consagrar-se aos pobres é consagrar-se a Deus. É
nossa maneira peculiar de procurar sua glória, é nosso caminho espiritual. Podemos vê-lo nas
seguintes dimensões, fazendo uma leitura lassaliana de um artigo do jesuíta panamenho Car-
los Cabarrus.
 Os pobres são nossos mestres. Na prática, o mais importante de nosso seguimento de
Jesus não é a denúncia do que profetiza de fora, a partir de dados estatísticos ou textos bíbli-
cos, mas do que anuncia com sua própria pessoa, reconciliada e pobre, de que é possível um
novo modo de viver. Tendes vós tais sentimentos de caridade e ternura com os meninos po-
bres que deveis educar? Aproveitais o afeto que eles vos tem para levá-los a Deus? (MF
101,3)

 Os pobres são nossos juízes, como o podemos ver em Mateus 25, e como no-lo re-
corda o Fundador nas Meditações para o Tempo do Retiro. Quantas vezes avaliamos obras e
instituições, a partir da perspectiva deles, de seus juízos, ou apenas a partir de resultados? O
mesmo podereis dizer de vossos discípulos. No dia do juízo, serão vossa glória, se os houver-
des instruído bem, e se tiverem aproveitado vossas instruções. Pois estas e os frutos que delas
tiraram, serão manifestados à face de todos. Então sereis glorificados, por terdes instruído
bem aos alunos, e não somente naquele dia, senão também por toda a eternidade, porque a
glória que lhes tiverdes alcançado se derramará sobre vós. (MR 208,1)

 Servir aos pobres de Cristo fortalece a vocação e nosso seguimento de Jesus. Por
tanto, quanto mais os amardes, tanto mais pertencereis a Jesus Cristo (MF 173,1). Por isso
devemos pedir a graça de encontrar nos homens o rosto de Jesus. É um dom de Deus. Quantas
vezes me foi dado contemplar assim o Senhor? A São Vicente de Paulo, por sua vez, agrada-
va-lhe afirmar que, quando se está obrigado a deixar a oração para atender a um pobre em
necessidade, na realidade a oração não se interrompia, porque “se deixava a Deus por
Deus” (VC 82). Não era outro o pensamento de nosso Fundador: Reconhecer a Jesus sob os
farrapos dos meninos que deveis instruir (MF 96,1). A Regra reafirma esta convicção: O es-
pírito de fé lhes ensina a reconhecer o convite de Deus a amá-lo e servi-lo nos outros e em
tudo o que constitui sua vida. Acolhendo o incentivo do Fundador, os Irmãos reconhecem a
Jesus Cristo nos pobres e o adoram neles (R 64).

 Os valores dos pobres costumam ser mais cristãos do que os da sociedade de consu-
mo em que vivemos. Solidariedade, capacidade festiva, sua própria fragilidade, o viver sem
saldos nem seguros os faz desinstalados, generosos, livres. Eram os pobres os que ordinaria-
mente seguiam a Jesus Cristo e são eles, também, os melhor dispostos a conformar-se com
sua doutrina, porque encontram em si menos obstáculos exteriores para praticá-la (MF
166,2). E, na meditação sobre São Francisco de Assis, o Fundador acrescenta: Por vosso em-
prego, estais obrigados a amar os pobres, visto que vossa função é instruí-los. Como São
53
Francisco, considerai-os como a imagem de Jesus Cristo e como os mais dispostos a receber
em abundância o seu Espírito. Portanto, quando mais os amardes, tanto mais pertencereis a
Jesus Cristo. (MF 173,1).

 Crer que os pobres são os criadores do futuro. Ter consciência de que eles são os
verdadeiros agentes de mudança, fonte de dinamismo para todos. Querer, por isso, colaborar
em mudar as estruturas da história. Estou fazendo o que posso, e da melhor maneira, para ali-
viar e desenraizar a injustiça no mundo? Refleti sobre a prática generalizada entre os operá-
rios e os pobres, de deixarem os filhos viver soltos pelo mundo, na vadiagem, antes de poder
empregá-los em alguma profissão. Não cuidam absolutamente em colocá-los em uma escola,
já por sua pobreza, que não lhes permite pagarem os professores, já pela necessidade de
procurarem trabalho fora de casa. Isto forçosamente os obriga a deixá-los ao abandono. As
consequências disso são funestíssimas... Deus teve a bondade de remediar tão graves incon-
venientes, pelo estabelecimento das Escolas Cristãs, nas quais se ensina gratuitamente e só
pela glória de Deus (MR 194,1).

E a Regra o expressa com este compromisso: João Batista de La Salle despojou-se dos
próprios bens para associar-se com os mestres pobres e, com eles, depositou sua confiança
na providência de Deus, tornando possível a Sociedade das Escolas Cristãs. Hoje, os Irmãos,
pessoas de esperança, se comprometem nesse mesmo itinerário, para adquirir um coração de
pobre e converter-se a Deus, sua verdadeira riqueza. Tornam, assim, possíveis a associação
entre eles, a disponibilidade a seus colaboradores e aos apelos da Igreja, a solidariedade e a
proximidade com os pobres a quem desejam servir (R 40).

 É a pobreza pessoal que tornará crível meu trabalho (R2). Coerência real com nossa
opção. Pois a pobreza vos deve ser amável, a vós que estais encarregados de educar aos po-
bres (MF 96,3). Ao falar de nosso voto de pobreza a Regra nos diz: Em seu estilo de vida pes-
soal e comunitário, os Irmãos procuram ser simples, para se tornarem próximos aos pobres.
Trabalhando com eles e partilhando sua condição, aceitam, com alegria, o risco de se verem
privados de seu prestígio pessoal (R 40,1).

 Os pobres são prioridade. Em nossos critérios práticos, tem prioridade as necessida-


des dos pobres, dos menos dotados? (R 40). Quais são nossos critérios de admissão? Todos os
dias deveis instruir os meninos pobres. Amai-os ternamente, como São Cipriano, que nisto
seguiu o exemplo de Jesus Cristo. Deveis preferi-los aos que não são pobres, pois Jesus Cris-
to não nos diz: “O Evangelho é anunciado aos ricos, mas, aos pobres”. Encarregados dos
pobres por Deus, é a eles que deveis ensinar as verdades do Santo Evangelho (MF 166,2).
Neste mesmo espírito do Fundador a Regra nos diz: No espírito das bem-aventuranças, os
Irmãos consideram tudo o que são e o que possuem como dons a partilhar. Em seu trabalho,
conservam espírito de gratuidade. Dedicam atenção especial aos mais pobres, destinatários
privilegiados da Boa-Nova. Buscam sempre os melhores meios para responder às suas neces-
sidades (R 40,1).

2 A fonte exata dessa citação não foi localizada.


54
 Ser solicitados pelos pobres e a perseguição: a grande evolução de nosso atuar. É
bom sinal se os pobres nos acolhem e se sentem bem conosco. Somos pobres Irmãos, ignora-
dos e desconsiderados pelas pessoas do mundo. Somente os pobres nos procuram. Eles nada
tem para nos dar, a não ser seus corações, dispostos a receber nossos ensinamentos (MF
86,2). É bom sinal que os inimigos da justiça nos persigam. Toda gratidão que se deve espe-
rar em paga da educação das crianças, principalmente dos pobres, são injúrias, ultrajes,
calúnias, perseguição e mesmo a morte... Não espereis qualquer outra recompensa no em-
prego que Deus vos confiou, se só trabalhais por Deus. (MF 155,3)

 Um critério importante e indispensável de nossa formação permanente deve ser o do


serviço educativo dos pobres, tal como o afirma a Regra: Seguindo a Jesus Cristo e a exemplo
de seu Fundador, os Irmãos consideram seu crescimento pessoal e comunitário, intelectual e
espiritual, à luz da progressiva conversão ao Deus dos pobres. (R 79)

 Além do trabalho mencionado é preciso, ainda, ser criativos para trabalhar com o
mundo dos necessitados. Evangelicamente sempre é melhor e mais seguro contar com uma
instância que vincule a esse mundo (Cf. Mt 25; Lc 4,17-20; Mt 11,2-7). Para nós, Irmãos, é
uma forma concreta de viver nosso voto de associação para o serviço educativo dos pobres,
quando temos a sorte, melhor, a graça, de trabalhar diretamente com eles. Tendes a felicidade
de trabalhar na instrução dos pobres e ligados a um trabalho que não é estimado nem honra-
do, a não ser pelos que tem o espírito cristão. Agradecei a Deus por vos ter chamado a uma
vocação tão santificante… (MF 113,1).

3. ASSOCIADOS AO DEUS DOS POBRES


A unção que recebemos e a aliança que Deus estabelece conosco, pois d’Ele é a iniciati-
va e o chamado, nos consagram aos Irmãos, não como algo sagrado, separado ou superior,
mas, como nos diz Isaías, trata-se de uma unção para tirar as cargas dos ombros e o jugo do
pescoço (Is 10,27); trata-se, também, de uma aliança que, como a de Jesus, se traduz em filia-
ção, amor e comunhão para a vida do mundo: Assim como tu me enviaste ao mundo, eu tam-
bém os envio ao mundo. Por eles eu me consagro, para que também eles sejam consagrados
na verdade (Jo 17,19). Nossa consagração nos situa, não acima mas ao lado das crianças e
jovens, dos pobres, dos enfermos, dos excluídos, dos não amados, das vítimas da injustiça. Ao
falar a um grupo de novos Bispos, o Papa lhes dizia: A presença pastoral significa caminhar
com o povo de Deus: a frente, apontando o caminho; no meio, para fortalecer na unidade;
atrás, para que ninguém fique para trás, mas, sobretudo, para seguir o odor que tem o povo
de Deus, para encontrar novos caminhos. É este, também, o convite que nos faz nosso último
Capítulo Geral: Estamos vivendo um tempo de graça, um tempo de trânsito, que nos conduz a
olhar para o coração de nossa história carismática e evangélica; um tempo que nos inspira a
voltar-nos para a liberdade, a audácia, a criatividade da primeira experiência e a enfrentar
este momento como um tempo de conversão pessoal e institucional com o mundo dos vulne-
ráveis e dos empobrecidos. (Circ. 469, 1,15).
55
Inicia-se com nossa realidade porque nossa oração, como a de Jesus, necessita estar for-
temente enraizada nela. E porque devemos continuar fazendo presente hoje o amor com que
Deus olha o mundo, e que foi a origem da missão salvífica de Jesus. No Evangelho descobri-
mos que, nos gestos de Jesus, há um esquema que se repete: ver a realidade, sentir compaixão,
agir. Parte-se sempre da realidade que se tem pela frente, para, contemplando-a a partir da fé e
com um amor misericordioso, para melhorá-la, para mudá-la.
Partir da realidade, em nossa oração, nos fará compreender que o ponto central de nossa
espiritualidade não é tanto nossa própria perfeição, mas, antes, o serviço ao homem, a solida-
riedade com os que sofrem, a entrega aos jovens e àqueles que nos necessitam. A mensagem
de Jesus é clara: Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10,10). Daí a
importância de estar abertos à realidade.
Por outra parte, conhecemos o itinerário encarnacional do Fundador e a centralidade
deste mistério em sua espiritualidade. Cremos, como nos recordou o 43º Capítulo Geral, “que
a atitude contemplativa do Fundador, sempre atento às situações concretas de sua própria
história e aberto ao projeto de Deus manifestado em sua Palavra, nos leva a viver uma espi-
ritualidade lassalista unificadora” (Circ. 435, p. 52).
Sabemos, também, que o espírito de fé exerce uma função unificadora que nos faz ver a
realidade, não como profana ou sagrada, mas como sacramental. Tudo nos revela a Deus: “os
farrapos dos meninos” fazem presente a Jesus (cf. MF 96,3); a escola; “obra de Deus”, se
converte em lugar teológico no qual o Irmão, por seu amor concreto e eficaz aos jovens, torna
visível o rosto de Deus (cf. MF 115,3).
Nossa vida de Irmãos conservará sua vitalidade se soubermos olhar a história e orar com
ela. A experiência nos mostra que, quando se perde de vista a realidade, corremos o perigo de
fechar-nos em nossas seguranças, de olhar para dentro, de entrincheirar-nos em nossas pró-
prias estruturas, de converter em importante o que é acessório, ou os meios em fins, de fechar-
nos em nossas obras educativas, alheios ao que sucede no mundo e na Igreja.
Como religiosos de hoje somos convidados a ser místicos e profetas. A experiência mís-
tica nos permite sentir a irrupção de Deus no mais profundo de nosso ser. A experiência pro-
fética, por sua vez, é um chamado que nos vem de fora e que exige a realização de uma ação
transformadora na história de acordo com o projeto de Deus.

CONCLUSÃO
Deus e os pobres, mística e profecia, são chamados a ir ao essencial. Como profetica-
mente o expressou Dietrich Bonhoeffer, na antessala de seu martírio: Nossa Igreja, que du-
rante esses anos lutou apenas pela sua própria subsistência, como se fora uma finalidade
absoluta, agora é incapaz de erigir-se em portadora da Palavra que deve reconciliar e redi-
mir os homens e o mundo. Por este motivo, as palavras antigas vão murchar e emudecer, e
nossa existência de cristãos se limitará, na atualidade, a dois aspectos: orar e fazer justiça
entre os homens. Todo o pensamento, todas as palavras e toda a organização no campo do
cristianismo, renascerão partindo dessa oração e desse atuar cristão... (Resistência e submis-
são. Cartas e apontamentos de cativeiro. Sígueme, 2008, pag. 168).
Uma vida religiosa centrada em Cristo e em seu Evangelho, deve colocar-se a caminho
da adoração do Senhor e do serviço a Ele nos irmãos e irmãs. Adorar e servir: duas atitudes
que não podem ser separadas, mas que devem permanecer sempre unidas (Papa Francisco a
56
UISG). Isto, sem dúvida, nos recorda o não fazer diferenças de nosso Fundador. A Regra, de
mil maneiras, nos convida a uma espiritualidade que nos permita encontrar a fonte e o poço
das águas de Deus que saciará nossa sede e nos dará forças para encontrar o samaritano sofri-
do e os fundamentos essenciais de nossa identidade, intimidade e generatividade. Tal é, fun-
damentalmente, o sentido mais profundo de nosso espírito de fé como nos é apresentado pela
Regra na constituição 6, em sua segunda parte:
 Na fé, os Irmãos julgam todas as realidades terrestres à luz do Evangelho.

 Na fé, os Irmãos encontram a Deus em seus trabalhos, preocupações e alegrias.

 Na fé, os Irmãos aprendem a discernir em todo acontecimento, em toda pessoa, espe-


cialmente nos pobres, um sinal e um chamado do Espírito.

 Na fé, os Irmãos, “cooperadores de Jesus Cristo”, consagram a existência inteira à


edificação do Reino de Deus, pelo serviço educativo.

 Na fé, os Irmãos, assim como seu Fundador, se abandonam à direção de Deus.

57
PALAVRA DO FUNDADOR

“Esmere-se para levar o máximo possível de vida interior, pois somente ela é capaz de santifi-
car-lhe as ações” (C 10,2).

“Procure, pois, observar exato silêncio. Bem sabe que o silêncio e o recolhimento são dois
meios para levar boa vida interior” (C 73,3).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Mt 25 - Sf 2, 1-3
Mt 25,31-46 – Icor 1,26-31

 Como a nível pessoal e comunitário podemos seguir o conselho de Monsenhor


Romero de ver com os olhos abertos e de ter os pés na terra para um coração
cheio de Evangelho e Deus?

ANOTAÇÕES

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MÍSTICOS E PROFETAS VIVENDO UMA ESPIRITUALIDADE UNIFICADA

59
MÍSTICOS E PROFETAS VIVENDO UMA ESPIRITUALIDADE UNIFICADA

“A obra santa de Deus que é também a nossa”


(Carta de 1714).

Foi-me dirigida nestes termos a palavra do Senhor:


Antes que no seio materno fosses formado, eu já te conhecia;
Antes de teu nascimento, eu já te havia consagrado,
E te havia constituído profeta das nações (Jr 1,5).

E agora o Senhor fala:


Ele que me formou desde o meu nascimento para ser seu servo,
Para trazer-lhe de volta Jacó, e reunir-lhe Israel.
Eu sou valioso aos olhos do Senhor,
E meu Deus é minha fortaleza (Is 49,5)

Mas, quando aprouve Àquele que me reservou


Desde o seio de minha mãe,
E me chamou pela sua graça,
Para revelar seu Filho em minha pessoa,
A fim de que eu o tornasse conhecido entre os povos (Gl 1,15-16).

Como São Paulo, que se apropria do chamado profético de Isaías e de Jeremias (Is 49,5-
6; Jr 1,5-7), também nós fomos chamados por Deus, desde o seio materno, e apesar de nossos
limites e debilidades, para ser portadores de sua Palavra e fazer visível a ternura de seu amor
maternal a partir da revelação de seu Filho, nosso Salvador. Este chamado se revela como
pura gratuidade. Não há razões lógicas, nem muito menos morais, que no-lo façam merecer.
Deus, em seus misteriosos desígnios, assim o quis. Ele é nossa fortaleza, e nossa missão é
proclamar e tornar visível seu amor incondicional, como fruto de uma experiência vivida, e
não de uma teoria. Mística e profecia, chamado e envio estão presentes na gênese de nossa
vocação.
Como diz o carmelita Ciro Garcia: Todos os nossos fundadores e fundadoras foram
místicos e profetas, e nós somos chamados a recriar seu carisma místico-profético na Igreja.
Sem místicos e profetas a vida consagrada não tem futuro. Mística e Profecia são duas ver-
tentes essenciais de toda identidade religiosa, da vida cristã e da vida consagrada, estreita-
mente relacionadas. A primeira projeta-se mais diretamente na dimensão da relação com
Deus; a segunda orienta-se mais imediatamente para o cumprimento de sua vontade aqui e
agora. Só uma sábia conjunção de ambas pode forjar uma identidade religiosa autêntica de
Deus e da pessoa humana. Não há autêntica mística senão desemboca num compromisso
ético e profético; nem cabe pensar numa profecia que não se nutra de uma vinculação pro-
funda com o divino.
Na apresentação desse dia refletiremos sobre estas duas dimensões inseparáveis da nos-
sa Vida Religiosa Apostólica. Conscientes de que, como religiosos, somos hoje convidados a
ser místicos e profetas. A presença mística nos possibilita sentir a irrupção de Deus no mais
profundo de nosso ser. A experiência profética, por sua vez, é um chamado que nos vem de
fora e que exige a realização de uma ação transformadora na história, de acordo com o projeto
salvífico de Deus.

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Deus e os pobres, mística e profecia, são um chamado a ir ao essencial. Deus é o absolu-
to de nossas vidas. Nossa vocação encontra n’Ele sua motivação mais profunda. Por Ele sus-
piramos e a Ele buscamos. Seu projeto salvífico dá sentido ao que fazemos e buscar sua glória
é nosso objetivo essencial. Mas, como muito bem sabemos, sua glória é que o homem viva.
Paixão por Deus e paixão pela humanidade, mística e profecia, são inseparáveis. Muitas ve-
zes, nosso principal problema é a dicotomia de nossas vidas.

1. PAIXÃO POR CRISTO: nossa dimensão mística


Fiel é Deus que nos chamou a viver em união com seu Filho Jesus Cristo, nos-
so Senhor (1 Cor 1,2-3.9).
Esse texto de Paulo nos fala de uma das características que definem o ser de Deus. A fi-
delidade: Fiel é Deus. Se, na Bíblia, Deus é definido como amor, também é definido como
fiel. Isto é, sem dúvida, motivo de graça e paz da parte de Deus nosso Pai e de Jesus Cristo, o
Senhor. Hoje vivemos um momento incerto em nossa história humana. Não vemos claro o
horizonte, e os sistemas políticos, sociais e econômicos ameaçam naufragar. A nível de Igreja,
o abandono e a indiferença de muitos, particularmente dos jovens, sem dúvidas nos preocu-
pam. Os escândalos revelados nos últimos anos nos humilham e, a nível de nossas congrega-
ções, nos colocamos sérios questionamentos.
Diante desse panorama, mitigado certamente pelos numerosos sinais de vida presentes
na história humana, na Igreja, na vida religiosa, em nossas congregações, mas nem sempre
devidamente salientados, há uma verdade inamovível que nos deve manter esperançosos:
Deus é fiel. Embora, por vezes, possamos sentir seu silêncio. Com Kierkegaard podemos ex-
pressá-lo também nós: Não permitas esqueçamos que Tu falas também quando calas. Dá-nos
essa confiança, enquanto esperamos tua vinda. Tu calas por amor e falas por amor. Tanto no
silêncio, como na palavra, Tu és sempre o mesmo Pai, o mesmo coração paterno e nos guias
com tua voz e nos elevas com teu silêncio.
O Deus Trindade, cuja glória é nosso fim último, não nos abandona. Deus é imutável na
fidelidade do seu amor e somos chamados a ser sinais vivos de Jesus, nosso Salvador, e de seu
Reino, desse Reino de Deus no qual todos seremos filhos e filhas e irmãos e irmãs. A Igreja só
pretende uma coisa: a vinda do Reino de Deus e a salvação de toda a humanidade (GS 45a).
E nós, como Igreja, fazemos parte desse projeto. Como nos dizem os Bispos da América Lati-
na e Caribe em sua última Conferência continental: O que nos define não são as circunstân-
cias dramáticas da vida, os desafios da sociedade, as tarefas que devemos empreender, mas,
acima de tudo, o amor recebido do Pai graças a Jesus Cristo pela unção do Espírito Santo
(Aparecida n. 14).
Pode ser que, também como Paulo, sintamos a fragilidade de nossos esforços e a incoe-
rência de nosso testemunho. Porém isso, longe de nos desanimar, deve impelir-nos a prosse-
guir, confiando na força do Senhor. Eu, irmãos, não me faço ilusões. Consciente de não tê-la
ainda conquistado, só procuro isso: prescindindo do passado e atirando-me ao que me resta
para a frente, persigo o alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus me chama em Jesus Cris-
to (Fl 3,13-14).
Como a paixão por Cristo nos faz seus embaixadores e ministros, somos chamados, em
primeiro lugar, a identificar-nos com Ele e a prosseguir na sua missão; e no Evangelho encon-
tramos, claramente, que o centro da mensagem e da ação de Jesus foi a construção do Reino,
termo que se repete 122 vezes no Evangelho, das quais 90 pela boca de Jesus. Jesus expressou
o que é o Reino em sua mensagem programática na Sinagoga de Nazaré e na resposta que,
posteriormente, deu aos discípulos de João (Lc 4,18-19; Mt 11,3-5). O Reino é a superação de
todas as alienações humanas, a destruição de todo o mal, físico ou moral, do pecado, do ódio,
da morte, da desunião, das desigualdades e marginações. Trata-se do ano da graça do Senhor,
61
no qual a ternura do Pai se manifesta. Pai e Reino são os dois grandes amores de Jesus e as
finalidades que dirigem e dinamizam toda a sua vida. Pai e Reino devem ser nossos dois gran-
des amores, como o expressamos cada dia no Pai-Nosso.
Todos, sem dúvida, conhecemos a frase de Pascal, que nos diz que Cristo está em agonia
até o fim do mundo. Não é difícil constatá-lo ao olhar para os crucificados do nosso tempo,
que prolongam sua dolorosa paixão. Na cruz, Deus se desfaz das máscaras com as quais pre-
tendemos encobrir seu rosto: Ato puro, Motor imóvel, Divindade imutável, Poder impassível...
Em seu lugar, aloucado e escandalosamente (cf. 1Cor 1,23), Deus pôs a descoberto o verda-
deiro ser divino como amor ao qual dói e, inclusive, decompõe a ingratidão humana: um
Deus que chora, sua e sangra, fazendo sua a dor, o medo e o desespero dos que partilham
com Ele a condição de vítimas na terra (A. Pieris).
Mas, a Paixão e a Morte não são a última palavra. Jesus ressuscitou. Esta realidade cen-
tral de nossa fé torna possível que resgatemos a esperança e a utopia de um mundo melhor, de
uma Igreja mais evangélica, de uma Vida Religiosa aberta ao sopro do Espírito.
A paixão de Jesus é vida, e abundante, para cada pessoa humana. Esta foi sua vontade,
identificada com a do Pai, o desígnio último, sua intenção motivadora: que todos tenham vida
e a tenham em abundância (Jo 10,10), porque é Vontade do Pai que não se perca ninguém (Mt
118,14). Palavras que nos recordam os ecos longínquos do livro da Sabedoria: Tendes com-
paixão de todos, porque vós podeis tudo; e para que se arrependam, fechais os olhos aos pe-
cados dos homens. Porque amais tudo o que existe, e não odiais nada do que fizeste, porquan-
to, se os odiásseis não os teríeis feito de modo algum... A todos perdoas, porque são teus, Se-
nhor, amigo da vida (Sb 11,23s).
Seguir a metodologia evangélica de Jesus é ter, como Ele, uma imensa capacidade admi-
rativa ante os mais pequenos sinais de vida que vamos encontrando em nosso caminho. Jesus,
ante um ato de virtude, embora mínimo, se entusiasma e sente a necessidade, quase explosiva,
de expressar sua admiração, como nos diz o jesuíta italiano Giovanni Blandino. Assim, ante a
fé humilde da cananeia: Ó mulher, grande é tua fé! (Mt 15,28); ante o centurião romano, ad-
mirado, diz aos que o cercam: Em verdade vos digo: Nem mesmo em Israel encontrei tamanha
fé (Lc 7,9); tampouco oculta sua admiração ante a pecadora na casa de Simeão: Por isso vos
digo: seus numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela tem demonstrado muito amor
(Lc 7,47), e não lhe passa desapercebida a viúva que dá sua esmola no tempo: Em verdade vos
digo: esta pobre viúva colocou no cofre mais do que todos (Mc 12,43); e, em plena agonia, dá
esperança ao ladrão arrependido: Em verdade te digo: hoje estarás comigo no paraíso (Lc
23,43). E isso não tanto pelo valor real de tais atitudes, mas, sobretudo, pelo imenso amor que
Ele tem por cada pessoa.

2. PAIXÃO PELA HUMANIDADE: nossa dimensão profética

Mas, o que é ser profeta? Parece-me iluminador contemplar os profetas de Israel para
responder a esta pergunta. O que chama imediatamente a atenção é que, quando Deus chama
para uma missão profética, consagra a pessoa e a envia. É o que observamos na vocação de
Elias, de Amós e, com mais amplitude, na de Isaías e Jeremias. Com efeito, os profetas foram
habitados por uma dupla paixão: a paixão por Deus e a paixão por seu povo. A paixão por
Deus, que os consagra, envia e do qual são os porta-vozes. A paixão pelo povo ao qual se diri-
gem, especialmente o povo pobre e explorado, com o qual se identificam e amam profunda-
mente. Nosso querido novo Beato, Monsenhor Romero, nos dizia: “Deus caminha com nossa
história. Deus não nos abandonou. Deus vai tirando partido até das injustiças dos homens”
(09 de dezembro de 1979).

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 Profetas do Deus revelado por Jesus
A experiência de Deus como Pai é o coração do Evangelho. Jesus se identificou com sua
vontade, e esta vontade não era outra que o Reino de Deus, no qual todos podem alcançar a
felicidade plena. Trata-se, verdadeiramente, de uma Boa-Nova. Desgraçadamente, nem sem-
pre pudemos transmitir este rosto de Deus e, mesmo hoje, há alguns que pensam, com L.
Feuerbach, que, para enriquecer a Deus é necessário empobrecer o homem; que, para que
Deus seja tudo, o homem deve ser nada. Isso, certamente, nada tem que ver com o Deus reve-
lado por Jesus que, como diz Paulo, nos conforta em todas as nossas tribulações, para que,
pela consolação com que nós mesmos somos consolados por Deus possamos consolar os que
estão em qualquer angústia (2Cor 1,4).
 Profetas da fraternidade
Jesus entendeu sua missão como um serviço no qual a prioridade a tinham as pessoas,
às quais acolhia com ternura e respeito. Jesus não apenas falava de Deus, mas o revelava, co-
municando sua própria experiência de Filho: a presença de Deus na história.
Precisamente porque no Evangelho as relações humanas devem refletir o rosto de Deus,
nossa vida comunitária constitui um dos elementos nos quais deve aparecer mais claramente
nossa dimensão profética. Mas, também, pelo fato de que vivemos hoje, no mundo, uma tre-
menda crise a nível de família, que se traduz facilmente em solidão e falta de um grupo de
referência. É por essa razão que cresce, especialmente por parte dos jovens, a necessidade de
sentir-se acolhidos, valorizados, escutados e de modelos autênticos de vida. Mais que sentir-
nos mestres que, de cima, espalhamos verdades, devemos sentir-nos irmãos que acompanha-
mos a nossos contemporâneos em suas próprias buscas e inquietações.

 Profetas da Palavra
O ministério da Palavra é essencial na vocação profética, e sempre há um vínculo entre
o profeta e a Palavra de Deus que deve transmitir: Javé toca a boca de Jeremias e um carvão
aceso purifica os lábios de Isaías. Ezequiel come um rolo que contém a mensagem de Deus. O
profeta é o homem da Palavra, na qual Deus se revela a si mesmo e revela também seu projeto
salvador. O caráter profético da vida religiosa nos exige sermos instrumentos do plano de
Deus, antecipando com nossa vida os valores do Reino. Para isso, devemos estar à escuta da
Palavra, orar com a Palavra e interpelar a nossos contemporâneos com a Palavra. Assim, so-
mos mediadores entre Deus, cuja palavra escutamos e acolhemos, e nossos irmãos e irmãs,
que buscam saciar sua fome de infinito.

 Profetas dos pobres


Como nos diz a teóloga brasileira Maria Clara Lucchetti Bingemer: Cada vez que se
atenta contra a justiça, o Amor sofre. Ante o sofrimento do inocente o Amor, Deus, não pode
senão assumir o sofrimento, estando do lado do mais débil, do oprimido, sofrendo com ele.
Só assim se pode afirmar que o amor é o sentido último da história, mais forte que a morte.
Só assim pode-se afirmar que Deus é amor.

A este Deus que se identifica com o sofrimento do inocente, com a pobreza dos despo-
jados, com a desesperança dos que não encontram sentido para suas vidas, é que temos que
fazer presente com nossas vidas, como o fizeram os profetas e, sobretudo, como o fez Jesus.
Mas, para isso, devemos ver a realidade com os olhos de Deus e, para isso, necessitamos en-
contrar-nos com Ele, pois, como nos diz Thomas Merton: na oração contemplativa, passa-
63
mos, através do centro de nosso próprio ser, ao ser de Deus, no qual nos vemos a nós mes-
mos e a nosso mundo com uma claridade, uma simplicidade e uma veracidade que não nos é
acessível de outra forma.

 Profetas de humanidade
Partimos do fato de que formamos parte da Igreja, que quer apresentar-se a si mesma
como perita em humanidade (Paulo VI). Em consequência, o humanismo que deve caracteri-
zar à Igreja em seus membros e instituições, não é algo que possamos assumir ou deixar, dar-
lhe importância ou não, mas dimensão fundamental e parte integral de nossa identidade profé-
tica, por sermos chamados a ser memória da presença histórica de Jesus, que assumiu a natu-
reza humana com todas as suas consequências, exceto o pecado. O Filho de Deus, por sua
Encarnação, uniu-se, de certo modo com o homem. Trabalhou com mãos de homem, refletiu
com inteligência de homem, atuou com vontade humana e amou com coração humano (GS
22). No Evangelho podemos facilmente descobrir sua humanidade refletida em sua bondade,
sensibilidade, compaixão, misericórdia... Humanidade que o fez aniquilar-se, para melhor
relacionar-se (cf. Fl 2,3-11).

 Profetas do Reino
Isto significa que somos chamados a:
Anunciar: Não só com palavras, mas, sobretudo, com a vida, o amor incondicional de
Deus e seu projeto de salvação universal para a humanidade. A Boa-Nova de que Deus é Pai-
Mãe e de que todos somos irmãos/ãs.
Denunciar: Tudo o que se opõe ao projeto divino. Como os profetas, denunciar a injus-
ta relação com os pobres e a falsa relação com Deus em um culto vazio. Uma denúncia que
não tem como finalidade o castigo mas a conversão.
Discernir: A principal característica do discernimento é que o núcleo é a realidade co-
nhecida, não apenas em suas aparências, mas no mais profundo de si mesma, com os olhos da
fé, com os olhos de Deus, devendo conduzir-nos a um discernimento corporativo do plano de
salvação de Deus.

Interceder: Ao profeta se atribui sempre um grande poder de intercessão. Podemos re-


cordar o exemplo de Elias, mas, possivelmente, o exemplo mais comovedor seja o de Jeremi-
as, quando, apesar de sentir-se perseguido e rechaçado pelo povo, intercede em favor dele: No
entanto, Senhor, permaneceis entre nós, e é o vosso nome que trazemos. Não nos abandoneis!
(Jr 14,9). Nós também somos chamados a ser intercessores diante de Deus, como Moisés, de
nosso povo, da humanidade.

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CONCLUSÃO
Ao terminar essas reflexões, vem-me à mente as palavras de um de nossos profetas atu-
ais: Devemos ver com os olhos bem abertos e os pés bem firmados no chão, mas com o cora-
ção bem repleto do Evangelho e de Deus (Monsenhor Oscar Romero, 27 de agosto de 1978).
Com Isaías podemos perguntar ao Senhor: Sentinela, quanto falta da noite? (Is 21,11). E
com o bispo italiano cuja causa de beatificação já foi introduzida, Tonino Bello, podemos fa-
zer outras perguntas: Quanto tempo ainda teremos que prosseguir lutando? Nesta luta contra
as forças perversas que oprimem o homem, há um fim que se acerque, ou estamos destinados
a jogar intermináveis tempos suplementares, que se somam uns aos outros sem fim? Haverá
um apito final que ponha fim à partida? Faltará muito para que apareçam os horizontes da
terra prometida? Entraremos nós nessa terra? Ou nos caberá apenas mostrá-la, como Moi-
sés?
Que Maria, Rainha dos Profetas, que no Magnificat louva a Deus que fez maravilhas em
sua serva, enaltece os humildes e cumula de bens aos famintos, nos acompanhe nessa maravi-
lhosa aventura e avive o fogo de nossa paixão por Cristo e de nossa paixão pela humanidade.

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PALAVRA DO FUNDADOR

“Não façais nenhuma diferença entre as questões referentes a vosso estado e a questão da vos-
sa salvação e perfeição. Estai certos de que nunca assegurareis melhor vossa salvação nem
adquirireis maior perfeição do que desempenhando bem os deveres de vosso estado, contanto
que o façais por ser essa a vontade de Deus” (CT 16,1,4).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Jr 1,5
Is 49,5
Mt 18,14
Icor 1,2-3.9
Mt 5,38-48 - ITes 5,4-22 ou IITes 2,13-35

 De que maneira integramos a paixão por Deus e a paixão pela humanidade; a


mística e a profecia e em nossa vida?

ANOTAÇÕES

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O DISCERNIMENTO LASSALISTA CAMINHO ESPIRITUAL

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O DISCERNIMENTO LASSALISTA CAMINHO ESPIRITUAL

“Ditoso aquele que já não vive nem atua que pelo Espírito de Deus”
(EMO 2, 62,4).

Os Irmãos discernem comunitariamente os apelos de Deus e respondem a eles na fé e


no zelo. Seu discernimento é realizado também nas instâncias abertas aos que estão compro-
metidos na missão lassalista. Levam em consideração os dons de cada um, assim como os
sinais dos tempos, os apelos do Evangelho e da Igreja, e as orientações do Instituto (R 18,1).

Um dos ensinamentos espirituais mais importantes de nosso Fundador é o de viver mo-


vidos pelo Espírito. O que supõe o discernimento que nos permite purificar nossas motiva-
ções, sempre ambíguas, e buscar a Vontade de Deus acima de nossos próprios interesses, mui-
tas vezes mesquinhos. Podemos considerar a Carta de 1714 como um exercício de discerni-
mento à luz dos ensinamentos de La Salle, que os Irmãos, apesar de suas dúvidas e contradi-
ções, tinham conseguido interiorizar, e que foi o que motivou o retorno do Fundador.
Em 1717, três anos após a Carta, no que podemos considerar o Primeiro Capítulo Geral,
Blain nos transmite este testemunho: “Todos os Irmãos Diretores das casas foram chamados
a Saint Yon no dia assinalado. Era o da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, um 16
de maio, primeiro dia de seu retiro. O Santo havia composto uma oração em francês para
invocar o Espírito Santo e implorar sua ajuda, oração que lhes entregou, para que a usas-
sem. Os Irmãos foram muito assíduos em recitá-la cinco ou seis vezes por dia... e deixaram
ao próprio Espírito Santo que presidiria sua assembleia a indicação de quem escolheria co-
mo Superior (Blain III, Cap. XIV).
Segundo o Irmão Jean-Louis Schneider, a oração que nos transmitiram os Irmãos do sé-
culo XVIII, seguramente era o eco da oração composta pelo Fundador e que podemos fazer
nossa em nosso retiro:
Espírito Santo desce sobre nós para santificar-nos, enche nossos corações de tua santa
graça e acende em nós o fogo do teu divino amor; assim como uniste um grande número de
diferentes nações na mesma fé, confirma-nos também na fé e na união que nos concedeste, e
que não podemos conservar senão graças a Ti (Citação em La Colina, p. 100).
A fé e a união, como critérios da presença do Espírito e como elementos prévios e, ao
mesmo tempo, como fruto do discernimento. Ou seja, que a falta de fé e a ruptura da fraterni-
dade são manifestações de um discernimento mal feito ou incompleto.
Nas Considerações que os Irmãos devem fazer em todo o momento e em particular du-
rante o tempo do retiro, o Fundador nos coloca algumas perguntas, que podem ajudar-nos a
calibrar a qualidade de nosso discernimento: “Nos exercícios de vosso estado e emprego, não
vos deixais levar mais por vosso natural e por vossa inclinação que pela moção do Espírito
de Deus?” (PT 16,1,11). Procurais fazer as obras ordinárias de um modo espiritual, conside-
rando apenas a Deus e seu beneplácito, ou antes as fazeis por inclinação, por mero cumpri-
mento, por respeito humano ou por qualquer outro motivo puramente natural?” (PT 16,2,3).

1. Relatos de discernimento em nosso itinerário fundacional


Inspirar-me-ei, em grande parte, num excelente ensaio do Irmão Miguel Campos, apre-
sentado em 2006, por ocasião da Primeira Assembleia Internacional da MEL, porque me pa-
rece sumamente rico e motivador.
O que mais me chama a atenção, na história de nossas origens, é que os passos que o
Fundador dá não são tanto o fruto de uma reflexão abstrata, mas sim, do desejo de responder à
realidade e às necessidades de uma juventude abandonada, na qual descobre o chamado de
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Deus. De um Deus que o foi levando suavemente, sem que ele se desse conta, como ele pró-
prio o testemunha. Nos começos, o Fundador vive mais um discernimento pessoal e individu-
al, que, progressivamente, dará lugar a um discernimento comunitário e corporativo, que cul-
mina na Carta de 1714.
Por exemplo, ante o pedido recebido de abrir uma escola, responde, em carta de 20 de
junho de 1682: Por muito pouco que me interesse, no que visa à glória de Deus, teria eu que
ser muito insensível para não me deixar mover pelos angustiantes rogos do Senhor Deão, e
pela cortesia com que me honraram ao escrever-me hoje. Seria eu, Senhores, muito injusto se
não lhes enviasse mestres-escolas de nossa comunidade, considerado o empenho e o ardor
que me manifestam pela instrução e educação cristã de seus filhos.
Mas, a mesma atitude a podemos seguir, considerando os passos sucessivos que vai
dando com os primeiros mestres. O fato de, alguns dias após esta carta, ter deixado sua casa
paterna, para viver com os mestres, indica uma forte ruptura, fruto de seu discernimento. Mais
que algumas orientações de seu diretor espiritual, o que o move, agora, é a realidade dos me-
ninos e jovens pobres afastados da salvação e as necessidades dos mestres. Discernimento
iluminado por novos ícones bíblicos, de que nos falam a Memória dos Começos. Um Deus
providente, atento às angústias dos pobres, o Messias pobre e sem poder, que não tem onde
repousar sua cabeça, enviado a anunciar o evangelho aos pobres (Irmão Miguel Campos).
Certamente isso não elimina os meios mediante os quais continua se inspirando para descobrir
a Vontade de Deus para com ele a partir dessa nova experiência, ou seja: a reflexão pessoal,
os retiros, a oração, a consulta a um diretor espiritual. Mas, agora os situa em outro contexto:
o dos pobres.
2. O lugar do discernimento

Creio que, para nós, também é de capital importância o ponto de partida de


nosso discernimento. O Padre Adolfo Nicolás, Preposto Geral dos Jesuítas, em
sua apresentação ao Capítulo Geral de 2014, nos fala do ponto de partida do dis-
cernimento de Jesus e parece-me que podemos muito bem aplicá-lo ao vivido
pelo Fundador.
 A partir do Batismo, a orientação a partir da qual Ele mesmo se posiciona é junto aos
pobres e pecadores. O Fundador posiciona-se a partir de mestres com muito pouca preparação
e meninos e jovens das classes populares. O onde nos situamos tem muito a ver com o discer-
nimento que possamos fazer. E não lhe foi fácil: “Se tivesse sabido que o cuidado de simples
caridade que me impunha pelos mestres-escolas me obrigaria a viver com eles, o teria aban-
donado: pois, como naturalmente estimava inferiores a mim aqueles que, sobretudo nos co-
meços, necessitava empregar nas escolas, a só ideia de que seria preciso viver com eles, me
teria resultado insuportável” (Memória dos Começos).

Discernimento a partir da dura resposta dos primeiros mestres ao seu discurso de aban-
donar-se à Providência: “Encontro-me com a boca fechada, e sem direito de falar de perfei-
ção sobre a pobreza, se eu mesmo não sou pobre, nem sobre o abandono nas mãos da Provi-
dência, se tenho recursos contra a miséria, nem sobre a completa confiança em Deus, se uma
renda suficientemente substanciosa me afasta de toda inquietação” (Memória dos Começos).
 As Tentações: marcam, para Jesus, a direção do Espírito em relação ao estilo da mis-
são e contra possíveis mal-entendidos. Algo semelhante vive o Fundador ao romper com seu
mundo de Cônego e a incerteza de um futuro incerto: “...a mesma voz que me chamou ao Ca-
nonicato, agora me chama para outro lugar. Levo essa resposta no fundo de minha consciên-
cia, e a ouço quando a consulto. Não parece mostrar-me bastante visivelmente agora outro
69
estado que merece a preferência e ao qual me conduz como que pela mão? (Blain I, p. 191-
192).

 A Transfiguração: recoloca Jesus na linha do Pai: “Filho muito amado”. É uma con-
firmação de sua missão. Essa mesma experiência a vive o Fundador ao partilhar-nos como
Deus o conduziu por caminhos imprevisíveis ao início e confirmou sua decisão de seguir em
frente: “Deus, que tudo conduz com sabedoria e suavidade, e não costuma forçar a inclina-
ção das pessoas, querendo comprometer-me inteiramente a cuidar das escolas, o fez de ma-
neira muito imperceptível e em muito tempo, de tal modo que um compromisso me conduzia
ao outro, sem tê-lo previsto no início” (Memória dos Começos).

 Mas o discernimento de Jesus teve seu Getsêmani, onde se lhe manifestou que o crité-
rio último para superar a crise deve ser sempre a Vontade do Pai, vontade salvífica que quer
que todos se salvem, como o expressou muito bem o autor da Carta aos Hebreus: Nos dias de
sua vida mortal, dirigiu preces e súplicas, entre clamores e lágrimas, àquele que o podia sal-
var da morte, e foi atendido pela sua piedade. Embora fosse Filho de Deus, aprendeu a obe-
diência por meio dos sofrimentos que teve. E uma vez chegado ao seu termo, tornou-se autor
da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (Hebreus 5,7-9). Parmênia foi para o
Fundador seu Getsêmani e o lugar em que, graças à Carta dos Irmãos, como Jesus se fez obe-
diente à vontade do Pai, para assegurar a salvação dos filhos dos artesãos e dos pobres, e as-
sim superou a crise

3. Associados para a missão: o discernimento comunitário e corporativo

O Padre Nicolás nos diz que o discernimento comunitário é possível, mas não fácil,
porque supõe duas atitudes internas muito exigentes. A primeira é a liberdade interior, que
supõe uma disponibilidade total e ausência de apegos e ideologias. A segunda, embora mais
exigente, porque o discernimento é mais um estado que um ato, um modo de viver centrado
na Vontade do Pai que um exercício. Supõe estar afinados com a música do Espírito, ser sen-
síveis a suas direções, recordando que Deus fala tão baixo que só no silêncio pode ser escuta-
do.
Em nosso caso trata-se de um discernimento no qual aparece o “nós”: Nós, os abaixo
firmantes, Irmão Nicolau Vuyart... (seguem os onze nomes), depois de haver-nos associado
com o senhor João Batista de La Salle, sacerdote, para manter juntos e por associação as
escolas gratuitas, pelos votos que fizemos no dia de ontem... (Ata de Eleição, de 7 de junho de
1694).
Como nos diz o Irmão Miguel Campos: Esta eleição é o resultado de um longo e com-
plexo processo de discernimento que, de certa maneira, começa com o compromisso de três
associados, os primeiros que emitiram um compromisso formal em 1691, Nicolau Vuyart e
Gabriel Drolin junto com La Salle, que culmina, em 1694, com o compromisso de doze asso-
ciados. De certa forma, pode-se dizer que este pequeno grupo inicial é a semente da primeira
forma de associação. E que a Ata de Eleição revela a primeira e fundante tomada de consci-
ência desses associados, que se identificam uns com os outros, para participar, juntos, em um
processo comum.
A partir de então o discernimento se realiza nas Assembleias periódicas do Corpo da
Sociedade, e os critérios que o dirigem nascem da emergência do perigo de ver desaparecer
sua obra e que, em consequência, haver muitas crianças e jovens privados desse serviço da
educação cristã. A Memória do Hábito, escrita nesse momento, nos fornece muitas luzes para
70
compreender esse momento de nossos começos e é um apelo para vivermos hoje, nós tam-
bém, esse discernimento ante a nova realidade que estamos vivendo com a diminuição do
número de vocações, o envelhecimento dos Irmãos/ãs e a associação com os Leigos na missão
partilhada.
Para isso devemos recordar o que é essencial para nós, como o foi para o Fundador e os
primeiros Irmãos. Sem dúvida, o centro e a origem de onde partem sua história comum e a
nossa é a glória do Deus Trinitário. O Pai, o Filho e o Espírito Santo, aos quais nos consagra-
mos, para procurar sua glória. Se os associados e os pobres são o contexto relacional do dis-
cernimento, o Deus presente na história é sua razão de ser. É Deus quem os chama, os con-
voca e os consagra (Irmão Miguel Campos). É Deus quem nos chama, nos convoca e nos
consagra. Trata-se de um discernimento que nasce de um olhar de fé no Deus de vida, dos
pobres, do Reino, da história, e que nos convida a continuar sua obra. De um discernimento
enraizado na vida e não em uma espiritualidade evasiva e individualista. De um discernimento
sempre iluminado pela Palavra de Deus, como o podemos ver nas Meditações para o Tempo
do Retiro; nas duas primeiras, por exemplo, nas quais o Fundador revela um duplo olhar con-
templativo: o dos meninos pobres e no projeto salvífico de Deus, que quer que todos se sal-
vem. Essas são as duas coordenadas de nosso discernimento lassalista: realidade e Palavra. É
nesse contexto comunitário e corporativo que devemos situar a Carta de 1714.

4. Os Sinais dos Tempos


Como no-lo recorda o Irmão Miguel Campos em seu livro “O Discernimento Espiritu-
al” (2005), Manuel Ruiz Jurado SJ, professor emérito e diretor do Instituto de Espiritualidade
da Pontifícia Universidade Gregoriana, estuda como foi entendido o discernimento na história
da Igreja e afirma que “a amplitude bíblica do tema do discernimento espiritual ficará, no
futuro, muito ligado, excessivamente no meu entender, à sua aplicação ao campo da vida
espiritual, ao âmbito da virtude... Não se desenvolveram, com a mesma amplitude e intensi-
dade, outros aspectos do discernimento, como o dos sinais dos tempos e, no fundo, o funda-
mental: o da pessoa de Cristo; o das doutrinas e profecias. E, ainda menos, o dos fenômenos
sociais, movimentos ou grupos eclesiais, etc.”.
O Concílio Vaticano II, na Constituição Gaudium et Spes, nos abre uma porta para esse
tipo de discernimento quando nos diz, em dois de seus artigos: É dever permanente da Igreja
auscultar a fundo os sinais da época e interpretá-los à luz do Evangelho (GS 4). O Povo de
Deus, movido pela fé, que o impele a crer que quem o conduz é o Espírito do Senhor, que
enche o universo, procura discernir nos acontecimentos, exigências e desejos, dos quais par-
ticipa, juntamente com seus contemporâneos, os sinais verdadeiros da presença ou dos pla-
nos de Deus (GS 11).
O jesuíta argentino Padre Scannone nos diz: Tal discernimento não apenas se pode dar
de forma contra fática, ante a desordem moral e/ou a decadência cultural e, mesmo, o absur-
do social; mas, também em forma positiva, quando, à luz da imaginação da inocência, desco-
brem-se, na ação e paixão históricas, não somente absurdos sociais, mas, também, sementes
de maior humanidade, possibilidades reais de humanização, um “plus” emergente de mais
vida e liberdade, de crescimento na justiça, a solidariedade e o respeito da dignidade huma-
na. Pode-se discernir esse “plus” tanto na vivência afetiva pessoal e social de ditas paixões
humanas fundamentais, como nos bens de ordem e estruturas institucionais correspondentes:
políticas, econômicas, culturais.
E o Cardeal Walter Kasper afirma: “sempre onde surge algo novo, sempre onde se des-
perta a vida e a realidade tende a superar-se extaticamente a si mesma (...), mostra-se algo
da eficácia e da realidade do Espírito de Deus. O Concílio Vaticano II viu essa eficácia uni-
versal do Espírito de Deus não apenas nas religiões da humanidade, mas, também, na cultura
71
e no progresso humanos”. Um sinal da ação de Deus na história está, por conseguinte, na
novidade da vida – sobretudo se emerge ou irrompe inexplicavelmente -, na auto superação
do fático – como se dele surgira algo que o excede e que não encontra sua razão suficiente em
seus antecedentes -, em um “mais” que acontece com uma superabundância inesperada que
não é deduzível do anterior, mesmo dialeticamente. Ocorre, acontece – segundo a terminolo-
gia de Jean-Luc Marion – como fenômeno saturado: saturado de ser, sentido e valor. Isso
ocorre sobretudo se essa vida nova em excesso surge, fecunda e criativa, partindo de realida-
des de morte, entre pobres, excluídos e vítimas (Igreja e discernimento espiritual numa idade
secular e num mundo global, por Juan Carlos Scannone SJ, apresentação no CELAM, março
de 2017).
Parece-me que aqui se situa a originalidade, a riqueza e a colaboração do discernimento
lassalista, que se antecipa à sua época e nos leva a olhar a realidade com os olhos da fé, e a
descobrir no rosto das crianças e jovens, especialmente nos mais vulneráveis, o projeto salví-
fico de Deus e nos torna responsáveis por sua obra, que é também a nossa.
Esse discernimento nos leva a fazer nosso o olhar de Jesus e a viver uma mística de
olhos abertos: “O primeiro olhar de Jesus não se dirige ao pecado, mas ao sofrimento dos
outros. (...) E, assim, o cristianismo originou-se como comunidade de memória e narração
comprometida no seguimento de Jesus, cujo primeiro olhar se dirigia ao sofrimento alheio.
(...) A palavra que melhor pode expressar a sensibilidade para com esse sofrimento alheio é a
compaixão: a disposição de assumir uma mudança de perspectiva, a olhar-nos e avaliar-nos
a nós mesmos com os olhos dos outros, sobretudo com os olhos dos que sofrem e estão amea-
çados. Aí onde prospera essa compaixão começa o que, com uma palavra tão exigente como
perturbadora, se denomina mística. A mística da compaixão é a mística dos olhos abertos.
(...) Nesse espírito de compaixão se manifesta a força que possui o cristianismo para comover
e impregnar o mundo. Um cristianismo que envia os cristãos à primeira linha dos conflitos
políticos, sociais e culturais do mundo atual”. (J. B. Metz, Memoria Passionis, Sal Terrae,
Santander 2007, p. 164-168).
Conclusão
Creio que a melhor conclusão à reflexão que fizemos sobre o discernimento são essas
palavras de nosso Fundador que nos convida a consultar muito, isto é, a discernir, tanto a ní-
vel pessoal como comunitário e apostólico, a Vontade de Deus, e a deixar tudo nas mãos de
Deus: “Considerarei sempre a obra de minha salvação e do estabelecimento e guia da nossa
Comunidade como a obra de Deus: por isso deixarei a Ele o cuidado da mesma, para não
fazer o que me corresponda nela, se não por ordem sua; e o consultarei muito sobre tudo o
que deva fazer, tanto numa coisa como na outra; e lhe direi, com frequência, estas palavras
do profeta Habacuc: Domine, opus tuum.
Devo considerar-me, com frequência, como um instrumento que não serve para nada, a
não ser nas mãos do Operário; por essa razão devo esperar as ordens da Divina Providência
para atuar, mas sem deixá-las passar uma vez conhecidas (Regras Pessoais 3,0,8/3,0,9).

72
PALAVRA DO FUNDADOR

Essa forma de proceder depende do conhecimento e do discernimento dos espíritos. Deveis


pedi-lo a Deus muitas vezes e com insistência, como uma das qualidades mais necessárias
para dirigir aqueles de que estais encarregados (MD 33,1,2).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

Hb 1, 1-4
Its 5, 16-22
Lc 6, 12-16
Lc 6,17-26 - Gal 5,13-26

 Como vivemos o discernimento pessoal, comunitário e provincial?


 Somos conscientes que a falta de fé e de união são manifestações de um discer-
nimento mal feito?

ANOTAÇÕES

73
VOLTAR AO EVANGELHO

74
VOLTAR AO EVANGELHO

Desejaria iniciar essas reflexões finais de nosso retiro com um pensamento de Monse-
nhor Romero, expresso em 27 de agosto de 1978: “Devemos ver com os olhos bem abertos e
os pés bem firmes no chão, mas com o coração bem cheio do Evangelho e de Deus”. Este
texto me faz pensar em outro, paralelo, do Bispo mártir argentino, Monsenhor Angelelli: “É
preciso continuar andando. Não se pode ter medo de meter-se no barro. Com um ouvido no
Evangelho e outro no povo”.
O coração bem cheio do Evangelho e os pés bem firmes no chão. Com um ouvido no
Evangelho e o outro no povo. Palavra e Realidade em termos lassalistas. Creio que essas idei-
as seriam mais que suficientes para animar nossa última reflexão sobre a dimensão de nossa
vida de Irmãos. Trata-se de ter os olhos bem abertos e o coração abrasado, como os discípulos
de Emaús. E ter os olhos bem abertos nos faz tomar consciência de que estamos vivendo um
momento difícil da história humana e um momento delicado na vida da Igreja e de nosso Ins-
tituto. Mas, ao mesmo tempo, um momento de graça, porque experimentamos a presença pró-
xima e incondicional do Deus da história e nos sentimos confortados com o esforço realizado
e o convite que nos faz o Papa Francisco de voltar ao Evangelho.
Já o Fundador, na meditação sobre São Remígio, nos dizia: Quando um homem chama-
do a procurar a salvação das almas se encheu plenamente de Deus e de seu Espírito conse-
gue, em seu emprego, tudo o que quer... Não há nada que lhe resista, nem o próprio Deus,
por assim dizer, como sucedeu a Moisés, que, de certo modo, forçou a Deus a realizar o que
lhe pedia para o povo que havia confiado a seus cuidados (Ex 32,11-14) ... Considerai a que
isso vos obriga. Sem dúvida, vosso compromisso é praticar o santo Evangelho. Lede-o, pois,
muitas vezes, com atenção e amor. Seja ele vosso principal estudo; sobretudo, porém, estu-
dai-o para praticá-lo (MF 171,3).
Com efeito, o nosso é ser significativos evangelicamente e não apenas eficientes profis-
sionalmente. Fomos chamados a viver o Evangelho com radicalidade, sem notas ao pé da pá-
gina que o amenizem, como já insistia São Francisco. Devemos ser uma reserva ecológica de
humanidade, espiritualidade e compaixão. Devemos ser sacramentos da necessidade e possi-
bilidade de viver relações profundas, enraizadas no amor de Cristo. Não devemos pretender
ser um poder ou uma organização de prestígio; não temos fundos para guardar, nem influên-
cias para conservar...; para nós trata-se de amor e só de amor, de uma paixão que, como a de
Jesus, nos deve levar a dar a vida. O nosso é ser o rosto mais humano da Igreja. Monsenhor
Romero dizia também: Somos servidores desta Igreja que não quer trair nem ao Evangelho
nem ao povo. 3
E em seu discurso em Lovaina, poucos dias antes de sua morte, o explicitava desta for-
ma: Na história, a verdadeira perseguição foi dirigida ao povo pobre, que hoje é o Corpo de
Cristo. Eles são o povo crucificado, como Jesus, o povo perseguido como o Servo de Javé.
Eles são os que completam em seu corpo o que falta à paixão de Cristo... É esta fé em Deus
que explica o mais profundo do mistério cristão. Para dar vida aos pobres é preciso dar a
própria vida. A maior prova da fé em um Deus da vida é o testemunho de quem está disposto
a dar sua vida.
Hoje o Papa Francisco nos pede uma vida religiosa bem ancorada em Jesus Cristo e
que, desde Ele, evite as tentações da autorreferencialidade, a nostalgia, a auto complacência, o
derrotismo, a busca da eficiência e da eficácia como valores em si mesmos, o “resultado cons-
tatável e das estatísticas”. Partindo da clave do discipulado evangélico, uma conversão pasto-
ral que se traduza em mansidão, misericórdia, paciência, pobreza, austeridade, ternura e pro-
ximidade, sem temer tocar na carne de Cristo indo às periferias existenciais e geográficas da

3 Estas e demais citações de Monsenhor Romero encontram-se em Monsenhor Oscar A Romero, Seu pensamen-
to, vol. III, Biblioteca virtual universal, 2003, www.biblioteca.org.ar.
75
vida. Uma vida religiosa centrada em Cristo e em seu Evangelho e, para isso, pôr-se a cami-
nho da adoração do Senhor, e do serviço a Ele nos irmãos e irmãs. Como o Fundador nos ad-
vertia: Para poderdes ensinar, estais obrigados a saber. Mas, convencei-vos de que compre-
endereis melhor o Evangelho se o meditardes, do que se o estudardes de cor (MF 170,2).
Adorar e servir é a bela síntese que nos fez o Papa Francisco. Duas atitudes que não se
podem separar, porque devem ir sempre juntas. Devemos viver uma espiritualidade que nos
permita encontrar a fonte e o poço das águas de Deus, que saciará nossa sede e nos dará forças
para encontrar o samaritano sofrido e os fundamentos essenciais de nossa identidade, intimi-
dade e generatividade.
Como consagrados fomos chamados a despertar o mundo, sendo testemunhas de um
modo diferente de ser e de nos comportar. Estou convencido de uma coisa: as grandes mu-
danças da história se realizaram quando a realidade foi visita não do centro, mas da perife-
ria... É necessário conhecer a realidade por experiência, dedicando tempo para ir à periferia,
para conhecer a verdade da realidade e o vivido pela gente... (Diálogo do Papa Francisco
sobre a Vida Religiosa, Antonio Spadaro SJ, La Civiltá Católica, 2014).
Este é o modo mais concreto de imitar a Jesus. Por isso, não podemos contentar-nos
com uma pobreza teórica e distante; o Papa nos convida a uma pobreza que se aprende tocan-
do a carne de Cristo pobre, nos humildes, nos pobres, nos enfermos, nas crianças... Não de-
vemos, tampouco, confundir o carisma, que não é algo quimicamente puro, com as obras
apostólicas. Enquanto o primeiro permanece, as segundas podem mudar de acordo com as
necessidades. Nosso Instituto deve ser criativo e buscar sempre caminhos novos.
Em síntese, o que nos pede o Papa Francisco é uma Vida Religiosa pobre e para os po-
bres, com um modo próximo e uma cultura do encontro, com odor de ovelha, sem medo nem
da bondade nem da ternura, construtora de pontes e não de muros, de portas abertas e não
de fronteiras, muito parecida com um hospital de campanha, uma Vida Religiosa na qual
seus responsáveis sejam mais pastores que gestores. Em uma palavra, uma vida evangélica
como a que nos propunha Monsenhor Romero: Devemos ver com os olhos bem abertos e os
pés bem firmes no chão, mas com o coração bem repleto do Evangelho e de Deus.
Conscientes de que o carisma dos começos, necessariamente se institucionaliza, é im-
portante voltar, periodicamente a nossas fontes fundacionais: o Evangelho e nosso Carisma,
para descobrir melhor as intuições primigênias e encarná-las, com criatividade, em nosso ho-
je, integrando mística e profecia, porque a mística como experiência de Deus na pessoa hu-
mana é essencialmente profética.

1. O coração do Evangelho
Mas, é sobretudo a revelação de Deus feita por Jesus Cristo que nos deve impelir e mo-
tivar. A experiência de Deus como Pai-Mãe é o coração do Evangelho. Jesus se identificou
com sua vontade, e essa vontade não era outra que o Reino de Deus, no qual todos pudessem
alcançar a felicidade plena. Jesus entendeu sua missão como um serviço no qual a prioridade
a tinham as pessoas, às quais acolhia com ternura e respeito. Jesus não apenas falava de Deus,
mas o revelava, comunicando sua própria experiência de Filho: era a presença de Deus na
história. O Pai e o Reino foram os dois grandes amores de Jesus, seus absolutos. Ser filhos/as
e irmãos/ãs é a melhor síntese evangélica.
Nossa missão, independentemente do lugar em que nos encontremos, não é, na realida-
de, nossa missão, mas a missio Dei, da qual somos instrumentos. E essa missão consiste, cer-
tamente, em fazer chegar o Evangelho a todas as partes, como nos diz Mateus, mas, também,
em fazer sentir a cada pessoa que é amada e é digna de respeito e apreço, como no-lo diz São
João: Nisso conhecerão que sois meus discípulos... São Paulo o sintetizou muito bem quando
76
firmava aos tessalonicenses: ... assim, em nossa ternura por vós, desejamos não só comuni-
car-vos o Evangelho de Deus, mas até a nossa própria vida, porquanto nos sois muito queri-
dos (1 Ts 2,8).
Especial atenção, se queremos ser fiéis ao Evangelho, deve ter, para nós, a humanidade
sofredora, à qual devemos acercar-nos com a ternura e compaixão de Deus. A escritora italia-
na Susana Tamaro, ao comentar o novo Dicastério Vaticano sobre a Evangelização, pergunta-
va se não era mais importante que os homens e mulheres da Igreja estivessem próximos à
gente, em atitude humilde, eliminando moralismos e preconceitos, sede de poder e ares de
superioridade, e acrescentava: Faltam pais e mães espirituais, pessoas críveis, que tenham
caminhado, que conheçam a complexidade e as contradições da vida e que, com humildade e
paciência, saibam acompanhar as pessoas ao longo de seu itinerário, sem julgar e sem que-
rer resultados. No pai ou na mãe espiritual, não há nada de novo, antes de extraordinaria-
mente antigo: a sede de uma alma que encontra outra alma em condições de ajudá-la a bus-
car a água (Corriere della Sera, 02 de agosto de 2010).
Somos chamados a ser testemunhas da presença amorosa de Deus e prolongá-la com
nossa vida, não tanto como cruzados que defendem uma ideia, mas como testemunhas que
partilham uma experiência. Creio que Enzo Bianchi tem razão quando nos diz que o verdadei-
ro problema, hoje, é o de uma vida religiosa cada vez menos atrativa e sempre mais anacrôni-
ca para as novas gerações, que não conseguem encontrar nela, com razão ou equivocadamen-
te, o espírito evangélico e a possibilidade de um seguimento concreto, durante toda a vida, do
Senhor Jesus.
A linguagem evangélica torna-se indispensável na leitura de nossos votos; não uma lei-
tura moralista ou funcional, mas uma leitura vivida superabundantemente e expressa em três
eixos fundamentais da tarefa de “humanização” de toda a vida para a qual somos chamados.
Nossa castidade, que nos abre o horizonte da pessoa, de cada pessoa e de todas as pes-
soas, com um amor sem fronteiras e universal, que nos abre à pluriculturalidade, cada vez
mais presente em nossa vida religiosa, que nos convida a amar com o coração de Deus, que
nos ama gratuitamente e que tem uma inclinação especial pelos menos amados.
A castidade nos permite integrar o amor gratuito com o amor eficaz. Por isso, afirmava
Monsenhor Romero: O mundo dos pobres nos ensina como deve ser o amor cristã... que deve
ser: certamente gratuito, mas que deve buscar a eficácia histórica. O amor que brota da cas-
tidade é reflexo do amor trinitário, que, ao mesmo tempo, é gratuito e eficaz. A castidade... é
reflexo do amor infinito que une as três Pessoas Divinas na profundidade misteriosa da vida
trinitária; amor testemunhado pelo Verbo encarnado até a entrega de sua vida; amor “der-
ramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5,5), que dá coragem para uma res-
posta de amor total para com Deus e para com os irmãos (VC 21).
Nossa pobreza, que nos abre o horizonte do mundo. Este mundo que Deus tanto amou
que lhe entregou seu Filho, esse mundo que deve ser a casa de todos e no qual se partilham os
bens, solidariamente e com moderação, como irmãos e irmãs, com especial atenção aos pe-
quenos, aos pobres, aos últimos. Monsenhor Romero dizia: Pobreza é liberdade, pobreza é
necessitar do outro, do irmão, é apoiar-se mutuamente, para socorrer-se mutuamente. Essa é
Maria e essa é a Igreja no continente. Se a Igreja alguma vez traiu seu espírito de pobreza é
porque não foi fiel ao Evangelho, que a queria separada dos poderes da terra, não apoiada
no dinheiro que faz felizes os homens; mas apoiada no poder de Cristo, no poder de Deus;
esta é sua grandeza.
O voto de pobreza é seguir a Cristo, buscando, apaixonadamente, ao Deus do Reino e
ao Reino de Deus, como única riqueza. É deixar tudo para seguir a Jesus, aí onde está: nos
pobres, nos marginados, nos famintos (Mt 25). O voto de pobreza é um sinal do Reino, relaci-
ona-se com o messianismo dos pobres, deseja ardentemente sua libertação. Tal é o sentido do
discurso programático de Jesus em Nazaré (Lc 4,18-20).
77
Nossa obediência, que nos abre o horizonte da liberdade, essa liberdade para a qual
Cristo nos libertou (Gl 5,1) de todo tipo de escravidão e nos permite viver a autoridade a par-
tir do amor, como um serviço, atenta, também, aos que tem menos possibilidades de fazer
ouvir sua voz. Viver nossos votos como os dinamismos que se aproximam mais à paixão do
Pai pela salvação de todos, especialmente dos pobres; à paixão de Jesus, que nos entregou sua
vida, como fazemos memória em cada Eucaristia; à paixão do Espírito de Jesus, que nos une
numa comunhão, certamente eclesial, mas na qual podem participar os que estão afastados e
sem esperança.
O horizonte da pessoa, o horizonte do mundo e o da liberdade os devemos viver a partir
do amor incondicional a Deus e aos irmãos/ãs. Esta é a dupla paixão que dá sentido à nossa
vida. Como afirmado anteriormente: esta foi a paixão de Jesus: o Pai e o Reino.

2. Uma Comunidade Evangélica


A comunidade religiosa é chamada a ser, como disse Metz, um modelo al-
ternativo, uma terapia de choque do Espírito para a Igreja, sempre ameaçada
de adaptação e uma forma institucionalizada de lembranças perigosas para o
mundo. (J. B. Metz, As Ordens Religiosas. Sua missão num futuro próximo co-
mo testemunho vivo do seguimento de Cristo. Herder, Barcelona, 1988).
Uma das consequências da crise que estamos vivendo é a perda de modelos
de referência. Hoje, todos, mas especialmente os jovens, os buscam, os necessi-
tam e raramente os encontram. Nossa comunidade deveria ser um modelo de
referência, mobilizando para uma orientação diferente, com base no amor, res-
peito e proximidade, de vida evangélica.
Aos ídolos do momento presente, quase todos pertencentes ao mundo do esporte, da
moda e do espetáculo, devemos contrapor, com nosso testemunho comunitário, ao Senhor
Jesus, para segui-lo no caminho da entrega gratuita e desinteressada, especialmente em favor
dos mais necessitados.
Trata-se de uma comunidade que torne visível o projeto salvador de Deus. Um projeto
humanizante e humanizador, que supere a primazia do ter, do individualismo, o racionalismo
redutor, o mercantilismo e a inteligência tecnificada. Nossas comunidades deveriam ser um
arsenal de memórias perigosas cercando o Evangelho. Parece-me que, hoje, estas memórias
perigosas, por desestabilizarem antivalores que possamos ter feito nossos, devemos vivê-las
comunitariamente, especialmente em quatro âmbitos:
 A gratuidade: vivida em relações comunitárias de liberdade, acolhida, perdão e festa
e em atitude marcada pela generosidade e pelo dom de nossa vida, sem passar recibo de nada.

 A participação: buscando juntos o que Deus quer que façamos, evitando todo poder
despótico e concedendo participação aos Leigos e a todos os que partilham conosco a nossa
missão. Chamados a viver um modelo de autoridade evangélica, como a de Jesus, centrada na
amizade, e privilegiando as relações fraternas baseadas na igualdade, no respeito, no diálogo e
no serviço.

 A solidariedade: com todo sofrimento humano, com toda pobreza, fazendo nossa a
compaixão que Jesus sempre manifestou pelos mais débeis e pequenos. Nossa pergunta, dian-

78
te de cada pessoa, deveria ser a mesma de Jesus ao cego Bartimeu: Que queres que faça por
ti? (Lc 18,410.

 A esperança: como forma de viver e atuar na vida cotidiana, na qual sempre se encon-
tra encanto e razão de ser, e como forma de afrontar o futuro e situar-nos diante dele, abrindo-
nos a relações de amor e fraternidade, convencidos que o futuro final é Deus tudo em todos
(1Cor 15,28).

Nossos Irmãos anciãos podem oferecer uma grande contribuição à dimensão evangélica
de nossas comunidades. Seu testemunho é, hoje, mais necessário do que nunca, num mundo
que tende a relativizar valores essenciais, como a fidelidade e que, como diz o Papa Francis-
co, vive a cultura do descarte. Não se trata unicamente do término de uma etapa, mas, sim, da
oportunidade para acabar de nascer e ser testemunhas de um desgastar-se, que São Paulo ex-
pressava com essas palavras: Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem ex-
terior se esteja consumindo, nosso interior se vai renovando dia após dia (2Cor 4,16). Assim
realiza-se o sonho de Tagore: que só reste de mim, Senhor, aquele pouquinho que permita
chamar-te meu Todo. Tal é, também, o ensinamento que Jesus nos dá no Evangelho, especi-
almente no de São João, em sua relação com o Pai.

CONCLUSÃO

Voltar ao Evangelho é o grande desafio que enfrentamos hoje, como vida consagrada.
Tal era, também, para Monsenhor Romero, o desafio para a Igreja. E o que podemos perfei-
tamente aplicar, parece-me, à nossa vida de Irmãos. E esse é um motivo para agradecer tam-
bém ao Senhor: a fidelidade que temos procurado ter a nosso evangelho, ao esposo santo da
Igreja, a Jesus Cristo. A Igreja tem ali, bem claro, seu programa: ser fiel ao seu evangelho,
tratar de analisar sua própria vida, suas relações sociais, sua instalação no mundo à luz do
evangelho, e só é autêntico o que pode resistir à luz desse evangelho. Nenhuma felicidade de
um filho da Igreja pode ser felicidade autêntica se não se fundar no evangelho de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo, que proclamava: “Bem-aventurados os que tem o coração livre das pri-
sões da riqueza, dos egoísmos, das vinganças, dos rancores, dos ódios” (Monsenhor Rome-
ro).

Voltar ao Evangelho era o que já nos pedia nosso Fundador: Que felicidade a vossa de
poderdes levar sempre convosco o Santo Evangelho, “em que estão escondidos todos os te-
souros da ciência e da sabedoria de Jesus Cristo!” (Cl 2,3). Sede fiéis a esta prática. Desse
livro sagrado deveis haurir as verdades que deveis ensinar todos os dias a vossos alunos,
para inspirar-lhes, por esse meio, o verdadeiro espírito cristão. Para isto, nutri diariamente a
vossa alma com as santas máximas deste livro misterioso. Fazer que elas vos sejam familia-
res pela assídua meditação (MF 159,1).
Voltar ao Evangelho é voltar ao essencial. Muito conscientes, porém, de que nossa iden-
tidade está sempre a caminho, razão pela qual parece-me muito oportuna a observação que
nos faz o antigo Superior Geral dos Claretianos: O importante é que todos busquemos a fide-
lidade à vida consagrada que o Espírito está inspirando para o futuro, e não cultivemos a
nostalgia do que foi em outros tempos. Falou-se, com frequência, em “voltar ao essencial”. É
uma expressão que expressa um desejo sincero de maior fidelidade, mas que sempre teremos
que pronunciar com muito cuidado, porque, “ao essencial” não se volta crendo que alguma
vez já o alcançamos plenamente; “ao essencial” teremos que continuar buscando sempre,

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porque se trata de entregar-se ao seguimento e à imitação de Jesus Cristo, o único Senhor
(Josep Maria Abella, CMF, L’Osservatore Romano, 17.11.2010).
Por isso, convido-os, ao término dessas reflexões, a que peçamos ao Espírito Santo que
nos transforme em Jesus Nosso Senhor, para, desse modo, segui-Lo amorosamente e continu-
armos sua missão, como discípulos e missionários, certos de que: “Ele sempre pode, com sua
novidade, renovar nossa vida e nossa comunidade porque, embora atravesse épocas obscuras
e debilidades eclesiais, a proposta cristã nunca envelhece. Jesus Cristo também pode romper
os esquemas mesquinhos nos quais pretendemos encerrá-lo e nos surpreender com sua cons-
tante criatividade divina.” (EG 11)

80
PALAVRA DO FUNDADOR

Procure conservar essa graça. Esforce-se para que haja muita caridade entre vocês, a fim de
promover a salvação do próximo, e para que tudo se faça de forma conveniente e educada,
como entre Irmãos que devem amar-se entre si e suportar os defeitos uns dos outros (C 67,3).

TEXTO BÍBLICO E INSPIRAÇÕES

ITs 2,8
ICor 15, 28 Mt 10,5-15 – IITm 1,6-18 ou IITm 3,14-17

 Estou disposto a aceitar o convite de Papa Francisco de “primeirear” nas relações, a


tomar a iniciativa em minha relação com meus Irmãos e já não pensar que eles devem
adivinhar que já lhes amo e me interesso por eles?

ANOTAÇÕES

81
Anexo 1

REVISÃO ESPIRITUAL DAS PESSOAS

1. A renovação do Instituto acontece na medida em que cada Irmão, cada Comunidade e os diversos
Capítulos e Conselhos trabalharem para renovar-se espiritualmente: “As melhores adaptações às
necessidades de nosso tempo somente serão exitosas se acompanhadas da renovação espiritual
(PC 2)

Por isso, convida-se a cada Irmão a renovar-se espiritualmente.

2. Renovar-se espiritualmente é, em primeiro lugar, renovar a consciência de que unicamente o Espí-


rito Santo pode rejuvenescer os Irmãos e suas Instituições: não há renovação possível que não
comece pela melhoria da verdadeira oração, e que não implique no permanente esforço para favo-
recer a meditação e a contemplação.

3. Renovar-se espiritualmente é reconhecer as delicadezas incansáveis do amor do Pai que guia, se


doa e perdoa em sua própria vida de Irmão, mediante sua vocação à existência humana, seu
chamado à fé e ao batismo, sua inserção na Igreja, seu compromisso com o Instituto e todo o teci-
do de sua vida diária como homem, cristão e religioso.

4. Renovar-se espiritualmente é compreender que a vocação recebida é vocação para o amor: só


amando aqueles com os quais se relaciona é que o Irmão contribui para revelar a eles que Deus
os ama também a eles e os convoca para darem entre os homens testemunho do amor.

5. Todavia, no decurso dessa renovação pessoal, é necessário estar continuamente atento às reali-
dades presentes no mundo e na Igreja. Isso porque, renovar-se espiritualmente é também intensi-
ficar o esforço para viver os problemas dos homens de hoje: aplicar-se a discernir, com simpatia,
suas caraterísticas peculiares; informar-se continuamente sobre a condição humana nos tempos
que correm; permanecer decididamente unidos, em comunhão de amor, com os homens de nos-
sos dias e com a vida dos contemporâneos tais como são.

E viver em comunhão com a vida da Igreja é fazer próprias suas iniciativas “em matéria bíblica,
litúrgica, dogmática, pastoral, ecumênica, missionária e social” (PC 2c).

Declaração
“O Irmão das Escolas Cristãs no Mundo de Hoje”
1967, nº 3

82
Anexo 2
SO TU ME SONDAS E ME CONHECES
Luis A. Gonzalo Diez, CMF.
Diretor de Vida Religiosa

Acaba de ser publicada uma obra de Filosofia, com o título provocador Tantos tópicos tontos.
Seu autor declara que, neste momento, o que se pretende salientar é o “relativismo moral e cultural, o
nivelamento de todos e em tudo, o recurso enganador ao direito para justificar nossa falta de virtude”.
Na hora de falar da oração, e desta na vida consagrada, tampouco estamos livres dos tópicos
que, mais que tontos, nos parecem típicos. Por exemplo: nosso consenso, nunca discutido, sobre o
valor da oração, a centralidade da mesma, o alimento que supõe para que as ações não sejam apenas
feitas, mas expressão do Reino... Falamos e falamos de como a vida de oração é sustento dos Conse-
lhos Evangélicos, da vida em comunhão e, logicamente, da missão. Mais ainda, entendemos, porque o
personalizamos, que é cada um que deve encontrar seu tempo, suas maneiras e seus horários. Compete
a cada um deixar-se trabalhar pela Palavra escrita, proclamada e contextualizada en los avatares de la
vida... E, então, quando quase chegamos ao clímax, chegamos a afirmações como: “tudo é oração”; “o
importante é viver em clave de oração” e “tudo nessa vida é anúncio de transcendência” ...
E é verdade. Que pode estar encobrindo uma realidade dolorosa: o manejo de alguns tópicos pa-
ra não encarar a situação. O afirmamos muitas vezes, as dificuldades da vida religiosa não provêm da
carência de ideias, nem da falta de capacidade para enfrentar trabalhos, nem sequer de que nos aban-
done a saúde ou nos pesem os anos. ... O drama está em ter situado, como algo mais da vida, o diálogo
com a transcendência. Um item a mais do dia, um momento, um tópico a mais na apertada jornada de
um homem e de uma mulher que, diariamente, se queixa de que “não tenho tempo”
Peritos, e até meticulosos, nas artes da programação, nos esquecemos que a responsabilidade e
possibilidade primeira de nossa vida passa, todavia, por ser pessoas de oração, pessoas de Deus. Isso
sim, tido como sabido, que o primeiro é o primeiro, mas sem dar possibilidade para o primeiro. Nos
estaremos fazendo peritos na exortação sobre a oração sem fazer oração? Estaremos falando e propon-
do algo que não vivemos?
Parecem-me absolutamente injustas as referências à vida consagrada como sendo uma vida se-
cularizada. Sobretudo quando estas referências se fazem desde la barrera e apoiadas em elementos
externos, ou como nostalgia de outro tempo que não este em que vivemos. Surpreendo-me, ao mesmo
tempo, vendo como estas críticas me doem como sal em ferida aberta ... mas, com a mão no coração,
tenho que perguntar-me se não estarei atuando, calculando e oferecendo como pessoa envolvida num
sistema de produção e criação que domesticou a Deus e não como uma testemunha do Espírito para
este tempo.
São Bento, nas orientações que ofereceu aos mestres de noviços, dizia-lhes que deviam ater-se
unicamente a que estes buscassem a Deus. Parece que, quando este valor acontece, o outro virá por
acréscimo.
Quem sabe, nós, em meio à voragem do viver e significar, devêssemos perguntar-nos e oferecer;
modernizar mensagens e reorganizar propostas, tenhamos que parar, sentar-nos, serenar-nos e pergun-
tar-nos, uma e outra vez: Que buscas? Que esperas? Estás buscando a Deus?
E desligando o computador, fechando o facebook, desconectando o iphone, omitindo o último
contanto do twiter e deixando para depois a próxima estratégia da reunião, programação pastoral do
colégio, encontro solidário da paróquia ou campanha da casa de acolhida ou hospital ... lembrar os
nomes da própria comunidade, fazer silêncio, fechar os olhos e repetir apenas: Tu, só tu, me sondas e
me conheces.

(Vida religiosa, Monográfico: Orar como convém,


Caderno 1/2012/vol. 112, pp. 1-2)
83
Anexo 3

ORAÇÃO CONTEMPLATIVA

A Deus se pode chegar pela palavra e pelos sacramentos, pela natureza e pela história, e por
tantos outros caminhos!

Todavia, chega o momento em que se sente a necessidade de ir a Ele diretamente, isto é, de


escutá-lo sem a mediação de palavras ou de orações alheias, de vê-Lo sem recorrer a reflexos seus que
há no mundo, de abordá-Lo sem o caminho da religião, mas pelo da mística, ou seja, por um conheci-
mento de primeira mão. Esse momento é o da oração contemplativa.

A mística não destrói as religiões, as transcende. O místico pode praticar atos religiosos, mas
sabe que é na atenção amorosa, inclusive mais do que na Palavra de Deus das Escrituras, que Deus o
espera.

Preferir a leitura da Bíblia à oração contemplativa é como preferir a leitura da carta de um


amigo a um encontro direto com ele.

Porque há tempo para rezar e aprender, para rezar e sentir, para rezar e pensar; mas, se al-
guém seguiu um caminho de fé sério, chega o momento de rezar e de colocar o coração em seu lugar,
para escutar.

A oração contemplativa busca o encontro com Deus com simplicidade de meios. O contem-
plativo não lê nem fala em colóquio íntimo com Deus; faz silêncio e escuta. Fazer silêncio e escutar é
primordial. São João da Cruz e Simone Weil o chamam “a atenção amorosa”. Quem está amorosa-
mente atento ao presente se encontra com o mistério da vida. E então, é quando começa a verdadeira
festa.

Pablo D’Ors
Vida Nueva n.2.878(enero-2014) p.45

84
Anexo 5

COMENTÁRIOS DE UM STARETZ
ÀS PALAVRAS DE JESUS SOBRE A ORAÇÃO (Mt 6,5-14)

Irmão, Irmã:

Tu queres encontrar a Deus.

 Agradeça a Ele, pois foi Ele quem semeou em tua alma o desejo de buscá-Lo. Foi Ele
que encheu teu coração de nostalgia.
 Pensa que é Ele quem te busca a ti. Deixa-te alcançar.
 Oferece teu tempo e tua atenção. E também teu silêncio.
 Deseja ardentemente o amor e a presença d’Ele em tua vida.
 Vive na simplicidade e na transparência. Não te faças notar. Segue teu caminho como
uma peregrinação interior. É ali que o encontrarás. É na habitação de tua alma, na casa
de tua vida que deves estabelecer o lugar do encontro.
 Viaja ao fundo de teu próprio ser. Olha as pessoas e os acontecimentos, a natureza, teu
próprio trabalho... veja tudo com o coração iluminado pela fé, e descobrirás que em tudo
isso poderás encontrar a Deus.
 Reconcilia-te com a vida, com tua própria pobreza.
 Aceita tudo o que Deus te dá. Vive em atitude de louvor e de ação de graças.
 Reconcilia-te com teus irmãos. Faze do perdão a norma de tua vida, e da compreensão
tua maneira de olhar aos demais.
 Vive teu trabalho como caminho de encontro. E teu descanso como a grande ocasião de
recriar a comunhão interior.
 Tenha paz. Desterra de tua vida tudo o que te afasta dela.
 Vive para isso da confiança. Não esqueças que Deus é o Pai providente. E que seu amor
e o alcance de sua providência não tem limites.
 Recorda a parábola do bom samaritano. Nunca dês a volta ao ver o irmão que sofre.
 Recorda que Deus é Pai. O Pai bom, próximo, teu Pai. Ele te ama a ti. És seu filho, sua
filha. E que Jesus, quando te ensinou a invocá-Lo te disse para chamá-Lo “Pai Nosso”.
Se esqueces o “nosso” perdes boa parte de teus direitos de chamá-Lo Pai.
 Deseja ansiosamente a chegada do Reino. Compromete-te pelo Reino, e trabalha para
que seja realidade na terra.
 Quando oras na intimidade de teu silêncio não estás só, estão teus irmãos. É a humani-
dade, é a Igreja que ora em ti.
 Intercede e suplica com confiança. De Deus receberás quanto d’Ele esperes. Ao interce-
der, não ponhas limites a teu amor.
 Quando queiras encontrar a Deus, quando desejas fazer de tua oração um tempo de en-
contro, “entra em teu próprio interior ... ali fala ao Pai”.
 Faze de tua oração um tempo “fora do tempo”. Vive teu encontro com o Pai com a ati-
tude gratuita de quem dá e recebe tudo como um dom.
 Não contabilizes nem o tempo nem a intensidade do encontro.
 Ora explicitamente quando puderes ... mas prolonga tua oração sempre, em todo tempo,
em toda circunstância e em todo lugar.
 Quando estiveres com o Pai enche teu coração de sua presença. E converte teu coração
85
em um lugar de oração onde a oração é constante.
 Não fales muito em tua oração. Pensa: “O Pai já sabe ...” Limita-te, em todo caso, a di-
zer-Lhe: “Senhor, aqui estou, ao teu dispor”.
 Mais que falar é bom que escutes. E ... mais que esforçar-te por pedir, diz ao Pai que es-
peras tudo d’Ele.
 Valoriza como caminho extraordinário de encontro o simples fato de poderes estar um
momento gratuitamente com Ele e n’Ele.
 Abre tua vida ao Amor. Amando te encontrarás com o Amor. Se fazes de tua vida um
gesto de amor estarás fazendo o melhor caminho para encontrar a Deus em tua oração.
 Fecha a porta aos ruídos do desamor, à intranquilidade, ao egoísmo e ao orgulho. Todas
essas coisas te incapacitam para escutar e para encontrar a Deus em tua oração silencio-
sa.
 Em teu encontro com o Pai ama e vive a gozosa experiência de saber-te amado por Ele.
 Só poderás encontrar o Pai se acompanhas tua oração com uma vida de sincero caminho
de identificação com o Cristo.
 Ele é o caminho, a verdade e a vida. N’Ele encontrarás ao Pai.
 Una tua oração à d’Ele e te farás “adorador do Pai em espírito e em verdade”. Diga com
força ao Senhor Jesus: “Sê Tu minha oração”. E deixa-te guiar pelo Espírito Santo. Ele é
o “único” e verdadeiro mestre. Ele, com seu vento e com o fogo de seu amor, te introdu-
zirá no encontro.
 Inclina teu ouvido e teu coração para receber com amor e eficazmente a Palavra. Nela
encontrarás a Deus. Aprende a lê-la “escutando”. Pensa que não é uma palavra “deixa-
da” num livro, mas que é uma palavra d’Ele para ti. Se vives em tudo de acordo com ela
farás de toda a tua vida um encontro.
 Em teu diálogo com o Senhor terás que limitar-te, muitas vez, a dizer simplesmente
“sim”, “que se faça em mim segundo a tua Palavra”, como disse Maria, a mulher orante
e disponível.
 Faze de toda a tua vida uma resposta gozosa à vontade de Deus. Ele tem um plano de
amor para ti. Faze o dom de teu amor absoluto e abandona-te nas mãos do Pai.
 Valoriza a presença do Senhor na Eucaristia como um lugar de encontro. Ele está ali. E
te espera, porque te ama.
 Que tua oração seja sempre um encontro profundo com o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
 O lugar privilegiado desse encontro, na fé, se realiza na celebração da Eucaristia. É sa-
crifício e sacramento do encontro, que logo poderás prolongar na vida.
 É encontro com o Pai e com a Igreja, com os irmãos que fazem caminho contigo para o
encontro.
 A missa é a “páscoa”, a passagem do Senhor em teu dia. Vive de “páscoa” em “páscoa”.
É o encontro com Ele até que volte.
 Nunca “acabes” tua oração. Que não se termine ao sair de tua “habitação” porque a con-
tinuas na vida. Nela está o verdadeiro lugar do encontro ... de vosso encontro. Deus, o
Pai, está aí, em tua vida. Não duvides de encontrá-Lo. Porque tu o buscas em tua oração
e Ele vem a teu encontro na oração e na vida.
 Não esqueças a resposta a tua pergunta: Qual é o essencial da oração? “Jesus”. Amém.

(Cadernos de Oração, n.55 [1988]10-12.)

86
Anexo 4
UMA ESPIRITUALIDADE PARA O SÉCULO XXI:
PARA UM TEMPO DE SÍNTESE ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

Javier Melloni
Foro de Profissionais Cristãos de Madri
Periodista Digital, 20 de dezembro de 2011.

Melloni, teólogo e antropólogo jesuíta, grande conhecedor das tradições religiosas do Oriente e
especialista em diálogo inter-religioso, foi o palestrante do Foro convocado por Profissionais Cris-
tãos de Madri, com o título Uma espiritualidade para o século XXI: para um tempo de síntese
entre Oriente e Ocidente”. Oriente e Ocidente complementam-se – está é a sua tese – e esses tem-
pos difíceis que vivemos como espécie humana são, também, tempos propícios para descobrir essa
diferença e complementariedade, que ele sintetizou em oito polaridades:

1. Instinto de Superação versus Aceitação:

No Ocidente tratamos de “superar” os problemas, de combater suas causas, de atuar. Dedica-


mos nossa energia para transformar o exterior.
No Oriente tratam sobretudo de aceitar a adversidade, o que não significa submeter-se nem
resignar-se, antes assumir essa adversidade fluindo com ela. Concent5ram sua energia em transfor-
mar-se interiormente.

2. Futuro-passado versus Presente:

A tradição bíblica vive da memória das testemunhas que traçaram o caminho e da esperança
na vinda da plenitude dos tempos. Passado e Futuro são essenciais na experiência cristã da fé.
Já o Oriente busca a qualidade do momento presente. A esperança é necessária já que antecipa
o que espera; mas, ao mesmo tempo, deve-se viver já no presente o que se espera como futuro.
Como dizia Gandhi: “Não há um caminho para a paz, porque a paz é o caminho”.

3. Personalização versus Oceanização:

O Ocidente sublinha o valor inalienável da pessoa humana, com tudo o que isso trouxe para o
reconhecimento dos direitos humanos.
Em troca, o Oriente considera que, se o “eu” se magnifica, encapsula a vida em uma referência
egocêntrica e se separa da totalidade, isolando-se das fontes da vida. Por isso o caminho espiritual
hindu e o budista denunciam as armadilhas do eu e se abrem à compaixão universal. Para o Oriente
Deus não é um “Tu” ao qual me dirijo desde meu “eu”, mas o mar que se descobre sabendo-se onda.
É necessário sustentar ambas perspectivas: a singularidade de cada onda, em sua radical es-
pecificidade, e, ao mesmo tempo, a consciência de ser mar.

4. Razão Analítica versus Razão Simbólica:

O Ocidente, a partir de uma aproximação analítica, decompõe a realidade, busca a especiali-


zação dos conhecimentos, para aprofundá-los. Esse impulso poderoso, esse "olhar flecha" sobre o
mundo enfrenta o risco da fragmentação.
Em troca, o Oriente projeta sobre o mundo um olhar global, que reúne os contrários, que acolhe,
sem discriminar nem julgar.
Necessitamos de ambos os olhares a ocidental, baseada no princípio de contradição, base do
espírito crítico, que acentua o que nos separa, e a oriental, que acentua o partilhar, o ser que nos é
comum.

5. Identidade versus Fluidez:

Trata-se de ver a árvore ou de ver o bosque: Ocidente vê a árvore e Oriente olha mais o con-
junto, o bosque. O importante do bosque é o fluxo constante de vida, que possibilita passar além das
existências individuais. Por isso, os budistas tibetanos fazem mandalas, belíssimas composições com
87
areia colorida, representações simbólicas do mundo, que destroem ao final, porque o importante foi o
caminho espiritual percorrido em sua elaboração e não a conservação do resultado.
Os ocidentais, em troca, quando veem mandalas desejam congelá-las em museus.

6. Ação versus Não Ação:

Como vimos, o Ocidente trata de mudar o mundo; por vezes antes de entender e escutar o que
passa.
O Oriente se expressa neste artesão que, antes de esculpir sua obra de madeira, tranquiliza
seu eu, o silencia, elege sua árvore, aquela que lhe fala, aquela na qual a natureza revelará sua bele-
za mediante o trabalho de suas mãos. Trata-se de ter menos para “ter-se” mais.

7. Palavra versus Silêncio.

O próprio do Ocidente é a palavra, como enuncia o Prólogo do Evangelho de São João: “No
princípio existia a Palavra”. Daí derivam os relatos, os arrazoados, os conceitos, etc., e, também, o
excesso de ruído. Para que a palavra adquira força, é necessário haver silêncio no meio. O silêncio
não anula a palavra: é o fundo que lhe dá sentido.
O Oriente é atraído por esse fundo, enquanto que o Ocidente por sua expressão. Mas ambas
as coisas são necessárias.

8. Plenitude versus Vazio:

O Ocidente busca a plenitude a realização pessoal; o Oriente, a vacuidade, o esvaziamento de


si mesmo, o vazio.
Para que a plenitude não estufe necessita da vacuidade. E a vacuidade necessita encher-se de
plenitude.
Nestes momentos de globalização, a consciência dos desafios postos ao ser humano leva-nos
a cuidar de três aspectos:
 a veneração do Mistério, que abre a via mística;
 a solidariedade ativa, que abre a via ética;
 a contestação de nossos desejos, para que nossa necessidade de recursos natu-
rais não devaste o planeta, o que envolve a via ecológica.

Viver esta tríade é tarefa da espiritualidade contemporânea e está presente em todas as


tradições religiosas. Todas elas nos dizem, de um modo ou de outro, que a pobreza – não a miséria
– é uma bênção, na medida em que permite um uso limitado e responsável gerador de solida-
riedade e compaixão. Isto é, interioridade, trabalho pela justiça e o uso sustentável e solidário do
planeta são os três pilares que constituem a espiritualidade integral e que capacitam o ser humano a
viver com sabedoria e veneração sobre a Terra.

88
Anexo 6

ELOQUENTES SILÊNCIOS

Na Bíblia aparece muitas vezes o silêncio ou os silêncios, os silêncios dos humanos e os


silêncios de Deus. Deus fala e Deus cala. Nos Salmos há muitas referências ao silêncio (Sl 4
ou Sl 37). Não se trata do silêncio como um simples calar, não dizer nada, mas de uma atitude
de confiança, de esperança, de abertura a Deus como Mistério que está para além de nossas
palavras e conceitos.
Diferentemente de tradições religiosas, como a judaica ou as orientais, especialmente as
budistas, os cristãos falamos demasiado de Deus e com Deus, usamos demasiadas palavras,
sobretudo na liturgia. Falamos demasiado de Deus e escutamos pouco a Deus e a suas ima-
gens, os homens e mulheres, relato de Deus. Todavia, na tradição cristã, há uma teologia apo-
fática, ou do silêncio, desenvolvida sobretudo pelos místicos, Lamentavelmente, se reduz o
silêncio aos místicos. Atualmente, as pessoas tem medo do silêncio, é incapaz de permanecer
em silêncio, como se fosse necessário estar o tempo todo com os auriculares postos ou com o
mp3 ou o mp4.
Contudo, o silêncio é fundamental na experiência do Deus de Jesus, já que Deus nos
transcende, como nossas palavras ou imagens nunca capturamos nem captamos nem expres-
samos adequadamente totalmente o ser de Deus. Deus é inefável e transcendente, como assi-
nala Santo Agostinho. O mistério de Deus se sugere, se indica, se agrada e se faz agradável.
Inútil pretender abarcá-lo com a palavra. Para isso é preciso cultivar o silêncio, como aparece
constantemente na Tradição da Igreja. Não se trata de um silêncio absoluto, de não falar, mas
de um silêncio relativo, para silenciar nossos preconceitos, conceitos, manipulações do nome
de Deus e abrir-nos ao Deus de Jesus, para que Ele nos mostre seu rosto. Não é o silêncio do
não falar, nem o silêncio do não saber nada de Deus; não é o silêncio do grande vazio, nem o
silêncio administrativo de “quem cala, consente”; não é o silêncio covarde e indiferente, mas
o silêncio eloquente.
• É o silêncio que nos abre ao Mistério, que nos leva a Deus, que está para além da
afirmação e da negação (Pseudodionísio); ou, como disse Kena Upanisad, “além de todo o
conhecido e de todo o desconhecido”.
• O silêncio criativo e recreativo, “a cena que recria e enamora” (São João da Cruz),
como o olhar silencioso dos que se amam, quando se contemplam em silêncio.
• O silêncio para escutar, acolher o rosto de Deus, para esperar e confiar n’Ele: “É bom
esperar em silêncio a salvação de Deus”.
(Vicente VIDE, Decano da Faculdade de Teologia da
Universidade de Deusto, Encarte: Anunciar ao Deus vivo
numa sociedade secularizada, Vida Nova n.2788, fevereiro
de 2012, pp.26-28.)

89
Anexo 7

BUSCAR E ENCONTRAR A DEUS EM TODAS AS COISAS

Extrato da entrevista do Papa Francisco a Antônio Spadaro


SJ, Diretor de La Civiltà Cattolica de 29.08.2013

 Santidade, como se faz para buscar y encontrar a Deus em todas as coisas?


O que disse no Rio tem um valor temporal. É verdade que temos a tentação de buscar a Deus
no passado ou no que cremos que pode acontecer no futuro. Deus certamente está no passado, por-
que nele estão os passos que foi deixando. E está também no futuro como promessa. Porém o Deus
“concreto”, por falar assim, está no hoje. Por isso, as lamentações jamais nos ajudam a encontrar a
Deus. As lamentações que se ouvem hoje sobre este mundo “bárbaro”, acabam gerando na Igreja
desejos de ordem, entendido como pura conservação, como defesa. Não. É preciso encontrar a Deus
em nosso hoje.
Deus se manifesta numa revelação histórica, no tempo. É no tempo que inicia os processos, o
espaço os cristaliza. Deus se encontra no tempo, nos processos em curso. Não se deve dar prefe-
rência aos espaços de poder frente aos tempos, por vezes longos, dos processos. O nosso é colocar
em marcha processos, mais que ocupar espaços. Deus se manifesta no tempo e está presente nos
processos da história. Isto nos faz preferir as ações que geram novas dinâmicas. E exige paciência e
espera.
Encontrar a Deus em todas as coisas não é um eureka empírico. No fundo, quando desejamos
encontrar a Deus, gostaríamos constatá-Lo imediatamente por meios empíricos. Mas, assim não se
encontra a Deus. Encontra-se a Deus na brisa suave de Elias. Os sentidos capazes de perceber a
Deus são os que Ignácio chama “sentidos espirituais”. Ignácio quer que abramos a sensibilidade espi-
ritual e, assim, encontremos a Deus além de um contato puramente empírico. Necessita-se uma ati-
tude contemplativa: é o sentimento de quem vai pelo bom caminho da compreensão e do afeto frente
às coisas e às situações. Sinais de que estamos nesse bom caminho são a paz profunda, a consola-
ção espiritual, o amor de Deus e de todas as coisas em Deus.

 Se o encontro com Deus em todas as coisas não é um "eureka empírico" e se, por tanto, se
trata de um caminho que vai lendo na história, é possível cometer erros...

Sim. Este buscar e encontrar a Deus em todas as coisas deixa sempre margem à incerteza.
Deve deixá-la. Se alguém diz que encontrou a Deus com certeza total e não deixa certa margem à
incerteza, algo não vai bem. Considero isso como uma clave importante. Se alguém tem respostas
para todas as perguntas, temos uma prova de que Deus não está com ele. Quer dizer que é um falso
profeta que usa a religião em seu próprio benefício. Os grandes guias do povo de Deus, como Moi-
sés, sempre deixaram espaço à dúvida. Temos que deixar espaço ao Senhor, não a nossas certezas;
temos que ser humildes. Em todo verdadeiro discernimento, aberto à confirmação da consolação
espiritual, está presente a incerteza.

O perigo que existe, no buscar e encontrar a Deus em todas as coisas, são os desejos de ser
demasiado explícitos, de dizer com certeza humana e com arrogância: “Deus está aqui”. Desse modo
encontraríamos apenas um Deus à nossa medida. A atitude correta é a agostiniana: buscar a Deus
para encontrá-Lo e encontrá-Lo para buscá-Lo sempre mais. E frequentemente o buscamos às apal-
padelas, como lemos na Bíblia. Esta é a experiência dos grandes Padres da fé, nossos modelos. É
necessário reler o Capítulo 11 da Carta aos Hebreus. Abraão, pela fé, partiu sem saber para onde ia.
Todos os nossos antepassados na fé morreram tendo diante dos olhos os bens prometidos, porém de
90
muito longe... Não nos entregaram a vida com um roteiro onde tudo já estava escrito, mas em algo
que consiste em andar, caminhar, fazer, buscar, ver ... É preciso embarcar na aventura da busca do
encontro e do deixar-se buscar e do deixar encontrar-se por Deus.

Porque Deus é o primeiro, é sempre o primeiro. Deus “primereia”. Deus é um pouco como a flor
do almendro da tua Sicília, Antônio, que é sempre a primeira a aparecer. Assim o lemos nos profetas.
Por tanto, a Deus se encontra no caminho, caminhando. Ao ouvir-me alguém poderia dizer que isso é
relativismo. É relativismo? Sim, se mal entendido, como uma espécie de confuso panteísmo. Não, se
entendido no sentido bíblico, segundo o qual Deus é sempre uma surpresa e jamais se sabe onde e
como encontrá-Lo, porque não és tu que fixas o tempo nem o lugar para encontrar-te com Ele. É pre-
ciso discernir o encontro. E, para isso, o discernimento é fundamental.

Um cristianismo restauracionista, legalista, que quer tudo claro e seguro, não irá encontrar na-
da. A tradição e a memória do passado necessitam ajudar-nos a reunir o valor necessário para abrir
novos espaços para Deus. Aquele que hoje buscasse sempre soluções disciplinares, que tendesse à
“segurança” doutrinal de modo exagerado, que buscasse obstinadamente recuperar o passado perdi-
do, possui uma visão estática e involutiva. E, assim, a fé converte-se numa das tantas ideologias.
Pessoalmente, tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de toda pessoa. Deus está na vida
de cada um. E, mesmo, quando a vida de uma pessoa foi um desastre, quando os vícios, a droga ou
qualquer outra coisa a destruíram, Deus está naquela vida. Pode-se e deve-se buscar a Deus em
toda vida humana. Embora a vida de uma pessoa seja um terreno cheio de touceiras e espinheiros,
tem sempre um espaço no qual pode crescer a boa semente. É necessário confiar em Deus.

91
Anexo 8
SER IRMÃOS HOJE E AMANHÃ -
HOMENS INTERIORES NA SIMPLICIDADE DO EVANGELHO
(44º Capítulo General, Cir. 455, pp. 11-17)

HORIZONTE:
Irmãos espiritualmente significativos em comunidades proféticas.

1. Olhos Abertos
São João Batista de La Salle foi um homem que se deixou impressionar e se comoveu diante
da situação de abandono dos “filhos dos artesãos e dos pobres” ao contemplar o desígnio de salva-
ção de Deus (Cf. R 11)
É esta mesma espiritualidade de olhos abertos que nosso Instituto precisa cultivar neste início
do século XXI. Uma espiritualidade que compreende que o mundo, as culturas, as ciências e as artes,
a vida dos povos e das pessoas, especialmente se forem pobres, são palavras com as quais Deus
nos chama, nos interpela, nos busca e se mostra a si mesmo.

2. Realismo místico
Este é o realismo místico lassaliano, esse que tantos Irmãos viveram, como dizia o Irmão Mi-
chel Sauvage (CL 55, 105-125). Uma espiritualidade encarnada em cada uma de nossas terras e no
momento presente. Um modo de sentir e ver a realidade com um olhar de fé que nos leve a trabalhar,
junto com nossos Irmãos e outros educadores e agentes de pastoral, de modo que creiamos que
possa redundar em algo mais agradável ao Deus presente e ativo na história. Uma sensibilidade que
nos leve a descobrir que os direitos humanos, especialmente os das crianças e dos jovens, são os
direitos de Deus.

3. Seduzidos
Como na vida de La Salle, a construção desta sensibilidade e desse impulso apostólico não é
algo que acontece espontaneamente dentro de nós (Cf. R 81). Exige uma formação que nos leve a
apaixonar-nos por Jesus, Encarnação de Deus, esplendor de sua força redentora no Mistério Pascal.
Um apaixonar-se que vivenciamos como entrega pessoal, consciente e responsável, ao Espírito de
Jesus Cristo que vive na Igreja e no mundo. Um estar apaixonados que é sempre disponibilidade e
busca, espírito de discernimento, sobretudo em tempos de perplexidade e de incerteza, como são os
nossos. Estar apaixonados e, num único movimento, abertos em adoração a Deus e em amor servi-
çal aos homens e a toda a criação.

4. Oração: imperativo existencial


Nessa formação, a oração mental ocupa um lugar de destaque, que levou nosso Santo Funda-
dor a defini-la como o primeiro e principal dos exercícios diários (Cf. R 69; 73). Essa oração não é
possível como atividade cotidiana caso não haja em nós, os Irmãos, perguntas ativas acerca do sen-
tido da vida, que se conectem com respostas que falem de Deus, de maneira simbólica e metafórica.
Uma vida de oração cotidiana exige também que estejamos conscientes de nossa própria in-
constância na adesão ao bem, à verdade e à beleza. Um Irmão que ora todos os dias precisa ter
autocontrole do corpo e da mente; um sentido de presença pessoal arraigado; uma autoestima sadia;
uma progressiva unificação das sensações, das emoções, dos afetos, das ideias, dos valores e das
92
decisões, em torno de um projeto de vida de fé; e uma crença em Jesus Cristo que se abra tanto a
um desenvolvimento doutrinal personalizado quanto para uma relação de adesão amorosa. Somente
assim viveremos a oração como um imperativo existencial e não como uma dependência infantil de
horários e estruturas exteriores.

5. Comunidades de Oração
Por esta mesma razão necessitamos de comunidades nas quais seja possível a vida de ora-
ção. Comunidades onde os Irmãos possam cultivar “juntos e por associação”, nosso relacionamento
com o Deus de Jesus. O encontro cotidiano com Deus no Pão e na Palavra é o caminho. Palavra de
Deus que não esteja encerrada na Escritura, mas que esteja livre e ativa na vida dos povos e das
pessoas.
Nossa oração cotidiana terá que desenvolver-se, então, como um exercício de leitura orante da
Palavra de Deus. Um tipo de leitura que nos leve a descobrir, por um lado, a relação religiosa que
existe entre a história e a situação socioeconômica de nossos povos – encarnada na vida simples das
pessoas com quem vivemos – e, por outro, as narrações bíblicas (Cf. MR 1-2 e 6). E encontrar qual
relação tem ambas com nossa própria vida de consagrados, associados para buscar juntos a glória
de Deus no ministério educativo e evangelizador. Deste modo, a Escritura será, com feição renovada,
nossa primeira e principal regra (Cf. R 6).

6. Ser mais e ter menos


Queremos ser mais homens de contemplação, de relação amorosa com Deus, com os outros e
com toda a criação, porque ali onde está o nosso tesouro está o nosso coração.
Por conseguinte, precisamos revisar nosso estilo de vida. Muitas comunidades e muitos Ir-
mãos, temos coisas em demasia, fazemos demasiadas coisas, queremos coisas em demasia, alguns
de nós ambicionamos demasiado poder, estamos demasiadamente cheios de nós mesmos.
Desse modo, nossa vida torna-se estranha aos pobres (Cf. R 32) e demasiadamente seme-
lhante à dos ricos. Em decorrência, não somos significativos nem para uns nem para outros.
A espiritualidade lassaliana é uma espiritualidade de simplicidade. Realismo místico significa
consciência dos limites da possibilidade, uma consciência responsável acerca do necessário, do rea-
lizável, do desejável. Uma consciência humilde, comedida. Temos que elaborar uma visão participati-
va e de comunhão acerca dos bens materiais, uma visão coerente com o estrilo de pobreza que nos-
sa Regra nos convida a viver.

7. Êxodo y Resistência
Esta é uma espiritualidade de Êxodo. Somos os escravos, e temos que deixar-nos libertar por
Deus. Somos os escravos que temos que arriscar nossas falsas seguranças para enfrentar os riscos
do deserto, confiados na Presença do Deus das Promessas e na Lei nova que Ele nos propõe para
sermos livres.
Não somos libertados para reproduzirmos uma nova situação de escravidão. Somos libertados
para sermos profetas de um mundo novo. Por isso, a nossa espiritualidade é, também, uma espiritua-
lidade de resistência. Nossas comunidades – e cada Irmão – temos que aprender a dizer “não”, a
dizer “basta”, a dizer “isso não é o nosso”, a dizer “não em nosso nome”. E a estabelecer alternativas.

93
8. Comunidades Alternativas
Como comunidades de fé somos chamados a colaborar na construção de mais comunidades
de fé (R 51 a), novas ilhas de esperança e de criatividade. Comunidades alternativas. Isto é, comuni-
dades que busquem assemelhar-se à primeira comunidade de Jerusalém e à comunidade das nos-
sas origens lassaliana. Comunidades de adultos que possam servir de referência a outros adultos,
para jovens e para crianças, pela sua qualidade de vida interior. Grupos onde os jovens possam fazer
um caminho de crescimento que os leve a também serem referência para adultos, jovens e crianças.
Grupos de crianças que sejam promessa de alternativa para a vida da Igreja e da sociedade. Comu-
nidades alternativas, núcleos eclesiais de rosto humano em nossa sociedade e em nossa Igreja que,
muitas vezes, não o são tanto (Cf. R 17c. d.)

9. Chamados
Somos chamados a construir comunidades de Irmãos nas quais busquemos com alegria os
momentos de oração comunitária. E isso tem a ver menos com a novidade de estilos do que com a
seriedade da atividade, ainda que seja inegável a necessidade de tomar um tempo para revisar o que
fazemos ao elaborar os projetos comunitários.
Somos chamados a ser o rosto humano de Deus. O Deus da história nos chamou neste tempo
para manifestar aos homens, especialmente aos pobres, sua presença neste mundo, a partir do tra-
balho educativo.
Somos chamados a ser Irmãos dos demais em seus próprios itinerários de espiritualidade. Ne-
cessitamos de Irmãos e de comunidades que vivam com autenticidade evangélica. Necessitamos de
Irmãos e de comunidades que desencadeiem um processo irrefreável de conversão que nos ajude a
responder àquilo que Deus nos pede!

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Anexo 9
DIÁLOGO ENTRE O IRMÃO LEÃO E SÃO FRANCISCO

Saltando de pedra em pedra, Leão atravessou, correndo, a torrente. Francisco o se-


guiu. Mas levou mais tempo. Leão, que o esperava, de pé, na outra margem, contemplava a
água límpida, correndo com rapidez, sobre a areia dourada, entre as massas cinzentas de
rochas. Quanto Francisco o alcançou, continuou com sua atitude contemplativa. Parecia não
poder deixar de extasiar-se desse espetáculo. Francisco o olhou e viu tristeza em seu rosto.
—Tens um ar sonhador— lhe disse simplesmente Francisco.
— Ah! Se pudéramos ter um pouco desta pureza – respondeu Leão – também nós co-
nheceríamos a alegria louca e desbordante de nossa irmã água e seu impulso irresistível!
Havia em suas palavras uma profunda nostalgia, e Leão olhava, melancolicamente, a
torrente, que não cessava de fugir em sua pureza inapreensível.
— Vem! – lhe disse Francisco, agarrando-o pelo braço
E começaram os dois outra vez a andar. Depois de um momento de silêncio, Francisco
perguntou a Leão:
— Saber tu, irmão, o que é pureza de coração?
— É não ter nenhuma falta de que censurar-se – contestou Leão, sem duvidar.
— Então compreendo tua tristeza – disse Francisco – porque sempre temos algo de que
censurar-nos.
— Sim – disse Leão -, e isso é, precisamente, o que me faz desesperar de chegar algum
dia à pureza de coração.
— Ah! Irmão Leão. Creia-me – contestou Francisco -, não te preocupes tanto com a
pureza da tua alma. Volta teu olhar para Deus. Admira-O. Alegra-te do que Ele é, Ele, todo
santidade. Agradeça-Lhe por Ele mesmo. É isso mesmo, irmãozinho, ter o coração puro. E
quanto te tenhas voltado assim para Deus, não tornes mais a voltar-te sobre si. Não te per-
guntes onde estás com referência a Deus. A tristeza de não ser perfeito e de encontrar-te pe-
cador é um sentimento humano, demasiado humano. É preciso olhar mais para o alto, muito
mais para o alto. Deus, a imensidade de Deus e seu inalterável esplendor. O coração puro é
o que não cessa de adorar ao Senhor vivo e verdadeiro. Interessa-te profundamente na vida
de Deus e serás capaz, no meio de todas as tuas misérias, de vibrar com a eterna inocência e
a eterna alegria de Deus. Um coração assim está ao mesmo tempo despojado e pleno. Basta-
lhe que Deus seja Deus. Nisso mesmo encontrará toda a sua paz, toda a sua alegria e, então,
o próprio Deus será sua santidade.
— Todavia, Deus pede nosso esforço e nossa fidelidade – observou Leão.
— É verdade – respondeu Francisco -. Mas a santidade não é um dever que se cumpre,
nem uma plenitude que acontece. É, em primeiro lugar, um vazio que se descobre, e que se
aceita, e que Deus vem preencher na medida em que a pessoa se abre a sua plenitude. Veja!
Nosso nada, ao aceitar-se, se torna o espaço livre no qual Deus pode criar. O Senhor não
deixa ninguém arrebatar sua glória. Ele é o Senhor, o Único, o Santíssimo. Porém estende a
mão ao pobre, o tira do barro em que está imerso e o faz sentar-se acima dos príncipes de
seu povo, para que veja sua glória. Então Deus se faz o azul de sua alma. Contemplar a gló-
ria de Deus, irmão Leão, descobrir que Deus é Deus, eternamente Deus, muito acima do que
somos ou do que podemos chegar a ser, saciar-se totalmente do que Ele é. Extasiar-se diante
de sua eterna juventude e agradecer-Lhe por Ele mesmo, por motivo de sua misericórdia in-
defectível, é a exigência mais profunda do amor que o Espírito do Senhor não cessa de der-
ramar em nossos corações, isso é ter um coração puro, porém, essa pureza não se alcança
por maior que seja o esforço pessoal, ou vivendo em tensão.
— Então, o que se deve fazer? - perguntou Leão.

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— É preciso simplesmente não guardar nada de si próprio. É varrer tudo, inclusive es-
sa aguda percepção de nossa miséria; deixar o terreno livre, aceitar o ser pobre; renunciar a
tudo o que pesa, inclusive o peso de nossas faltas; não ver mais que a glória do Senhor e dei-
xar-se irradiar por ela. Deus é, isso basta. O coração torna-se então leve, já não se sente a si
mesmo, como uma cotovia embriagada de espaço e de azul. Abandonou todo cuidado, toda
inquietude. Seu desejo de perfeição transformou-se em puro e simples querer a Deus.
Irmão Leão escutava gravemente, enquanto andava à frente de seu pai. Mas, à medida
que avançava, sentia que seu coração se fazia leve e que o invadia uma grande paz. (Elói
LECLERC, A sabedoria de um pobre, Merova, 2003, pp 128-131).

Reflexão:
Diante da constatação de minhas limitações, defeitos, debilidades, obscuridades, falta de
vontade, meus pecados..., tantos retiros e bons desejos e resoluções .... e frutos limitados, a
atitude descrita por Francisco é a atitude básica que convêm que se firme em meu interior. Em
palavras postas nos lábios de Francisco de Assis, o importante é a contemplação de Deus,
Deus e seu Reinado, não nós e nossas limitações. “Buscai primeiro o Reino de Deus e sua
Justiça e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6,33).
Na oração esta atitude nos levará a pedir ao Senhor não tanto que nos transforme e nos
ajude a superar nossas debilidades, mas a dizer-Lhe simplesmente “santificado seja Teu no-
me, venha a nós o Teu Reino, faça-se a Tua vontade”.
Por outro lado, as mudanças e transformações que podem ocorrer em mim, não são fru-
to, primeiramente, de meu esforço, do voluntarismo: vem quando vem, venham quando ve-
nham, da forma que o Senhor dispor. Da contemplação de Jesus na oração, de contemplar seu
olhar, suas atitudes, seu modo de atuar, poderá chegar o dia em que seu olhar seja meu olhar,
suas atitudes minhas atitudes, seu modo de atuar meu modo de atuar: será na medida em que
seu Espírito seja meu espírito.

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ORAÇÃO DA COMUNIDADE

Obrigado, Senhor,
por nos convocar a ser homens de esperança,
através do ministério apostólico da educação.

Fortalecei em nós a mística,


através da comunhão com Deus,
das nossas práticas de espiritualidade
pessoais e comunitárias,
da vivência do espírito de fé e zelo,
da meditação diária, da partilha da Palavra de
Deus e da Eucaristia.

Intensificai em nós as relações fraternas,


através da humanização
do nosso quotidiano,
da simplicidade, da acolhida,
da sensibilidade
e do cuidado do outro.

Iluminai-nos, Senhor,
para que possamos assumir
a nossa formação
como um itinerário existencial de fé
e de construção de sentido,
para toda a vida.
E comprometei-nos
no desenvolvimento da cultura vocacional,
como sinal de esperança.

Ajudai-nos a partilhar alegremente


o carisma com os colaboradores leigos,
e ser com eles e para eles coração, memória e
garantia do carisma lassalista,
para responder com fidelidade criativa
às necessidades das novas gerações.

Amém.

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