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Literatura

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Célia A. N. Passoni

Literatura

Fuvest
Unicamp
Estudo das obras, resumos,
análise de textos, exercícios.

3ª edição atualizada, 2013

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COLEÇÃO NÚCLEO DE LITERATURA
Organização e Apresentação: Célia A. N. Passoni

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

FUVEST/UNICAMP: estudo das obras, resumos e análise de


textos, exercícios / organizado por Célia A. N. Passoni. –
3ª. ed. – São Paulo: Núcleo, 2012.

Vários autores.
ISBN 978-85-7263-342-0

1. Literatura (Vestibular) 2. Literatura brasileira (Vestibular)


3. Literatura portuguesa (Vestibular) I. Passoni, Célia A. N.

12-05840 CDD-378.1664

Índices para catálogo sistemático:


1. Vestibulares: Literatura 378.1664
2. Vestibulares: Literatura brasileira 378.1664
3. Vestibulares: Literatura portuguesa 378.1664

Todos os direitos reservados


EDITORA NÚCLEO
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CEP 04101-000 – São Paulo, SP – Brasil
Tel./Fax: (0**11) 2187-1130
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E-mail: livros@editoranucleo.com.br

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Índice

Viagens na minha terra


Almeida Garrett. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Til
José de Alencar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25

Memórias de um sargento de milícias


Manuel Antônio de Almeida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .35

Memórias póstumas de Brás Cubas


Machado de Assis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47

O cortiço
Aluísio Azevedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .61

A cidade e as serras
Eça de Queirós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .73

Vidas secas
Graciliano Ramos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .89

Capitães da Areia
Jorge Amado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

Exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

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Importante
Como utilizar

A Fuvest e a Unicamp têm recomendado a leitura de algumas obras que


os examinadores julgam ser as mais significativas no desenvolvimento da his-
tória das literaturas brasileira e portuguesa.
Na prova de Português, as questões de literatura costumam exigir não só
um bom domínio dos volumes, alguns detalhes sobre personagens, sequência
de capítulos, estilo dos autores, etc., como também associações temáticas e
estilísticas entre os autores. Por esse motivo, sugere-se a leitura de todas as
obras de forma integral.
Desde 2007, Unicamp e Fuvest unificaram a lista de leituras obrigató-
rias, mas mantiveram as características peculiares de seus exames. Por isso,
recomenda-se que o vestibulando estude os exames anteriores das duas fun-
dações.
Os estudos apresentados a seguir visam a dar um painel do enredo,
levando em conta algumas particularidades estilísticas, de modo a permitir,
àqueles que já leram, recordar passagens mais importantes, estabelecer rela-
ções obra/estilo de época e compará-las intertextualmente, apontando-lhes
aspectos comuns e seus diferenciais. Lembramos que os resumos não têm a
pretensão de captar a especificidade das obras e, consequentemente, as parti-
cularidades das questões dos referidos exames.

Abordagem
Nas próximas páginas, o vestibulando encontrará o esquema literário
da obra, contendo apresentação do autor e do narrador, estilo de época, per-
sonagens, linguagem, tempo e espaço e um resumo do enredo, ou análises
comentadas de poesias.

Questões em teste e questões escritas


Na finalização dos estudos dos autores, o estudante encontrará testes –
inéditos ou recolhidos de vestibulares – que abordam as principais caracterís-

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ticas da obra, bem como algumas questões escritas. No final, são apresentados
os gabaritos dos testes e uma possível resposta para as questões escritas, lem-
brando que são sugestões de resposta, servindo como roteiro de conferência,
porque cada questão admite mais de uma possibilidade de abordagem.
Esperamos que a obra possa ser de algum proveito, contribuindo, assim,
para seu melhor desempenho nas provas de Português e, de modo geral, para
seu sucesso nos vestibulares.

Bons exames!

Célia A. N. Passoni

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ROMANTISMO

Viagens na minha terra


Almeida Garrett

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Conhecendo o autor
Almeida Garrett (1799-1854) foi um dos mais representativos nomes do
Romantismo em Portugal. Hábil no uso da palavra, domina tanto o verso quan-
to a prosa. Defendeu ideias revolucionárias, participou da revolução liberal de
1820, seguindo, depois, para exílio na Inglaterra em 1823. Aí tomou contato
com o movimento romântico, descobrindo Shakespeare, Walter Scott entre
outros autores, visitando castelos feudais e ruínas de igrejas e abadias góticas,
vivências que se refletiriam na sua obra posterior. Em 1824, seguiu para a Fran-
ça, onde escreveu Camões (1825) e Dona Branca (1826), poemas considerados
marcos das tendências românticas em Portugal. Em 1826, foi anistiado e pôde
regressar à pátria, dedicando-se ao jornalismo. Deixou Portugal novamente
em 1828, com o retorno de D. Miguel. Novamente na Inglaterra, torna-se ávido
leitor das obras tanto inglesas quanto francesas. Mergulhou na literatura, filo-
sofia e história.
Com a vitória do liberalismo na revolução de setembro de 1836, instalou-
-se novamente em Portugal, após curta estadia em Bruxelas como cônsul-geral e
encarregado de negócios, onde lê Schiller e Goethe. Em Portugal exerceu cargos
políticos, distinguindo-se nos anos 1830 e 1840 como um dos maiores oradores
nacionais. Foram de sua iniciativa a criação do Conservatório de Arte Dramática,
da Inspeção-Geral dos Teatros, do Panteão Nacional e do Teatro Normal (atual-
mente Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa). Mais do que construir um teatro,
Garrett procurou renovar a produção dramática nacional segundo os cânones já
vigentes no estrangeiro.
Elegante, bon-vivant e, acima de tudo, frequentador da alta roda lisbonense,
facilmente conquistava amores e acumulava inimigos, não só por suas ideias infla-
madas e sua oratória convincente que vertia ideias polêmicas e, muitas vezes, des-
gastantes... Foi agraciado com o título de visconde e falece vítima de um cancro.

A inserção das Viagens


No início do século XIX, Portugal atravessava uma das mais conturbadas
épocas da sua história: a invasão das tropas francesas; a difusão das ideias liberais
e a Revolução Liberal do Porto em 1820; a promulgação da Constituição de 1822;
a contrarrevolução absolutista de 1823; outorga da Carta Constitucional e perjúrio
de D. Miguel; lutas liberais, entre outras.
Nesse contexto, ativo participante dos acontecimentos de sua pátria, sofrendo
perseguições, exílios e prisões por causa de suas ideias, Garrett foi um típico homem
de seu tempo. Ao lado do ativista, encontrava-se um produtivo artista, com vasta obra,
na qual mesclou tendência clássica com romântica, a primeira advinda de sua forma-
ção, a última adquirida por influência de seu exílio na Inglaterra e na França.

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As Viagens na minha terra estão inseridas na prosa de feições românticas.
A obra chegou a ser chamada de Viagem, por se tratar de uma única viagem. No
entanto, o autor optou pelo plural, talvez por pretender associar a viagem real
com aquelas conseguidas através das inúmeras viagens mentais ou digressões, que
serão comentadas mais adiante.
Viagens na minha terra foi publicada inicialmente na Revista Universal Lisbo-
nense entre 1842-44 e era precedida da seguinte nota da redação:
O escrito, cuja publicação agora encetamos, é exemplar de gênero precioso e novo em
nossa literatura. A seu autor, o Sr. Conselheiro Almeida Garrett, que nos honra com a sua ami-
zade e colaboração, cabe a glória de ter aberto mais de um caminho, que outros após ele têm
seguido e hão de seguir. – O teatro moderno, e o romance pátrio fundou-os ele incontestavel-
mente. As Impressões de Viagens, como em todos os países de adiantada civilização hoje se
escrevem em grande abundância, – estreia-as também ele agora. – No que damos à luz oferece-
mos pois aos frívolos um estudo desenfastiado, – aos estudiosos, uma recreação prestadia – aos
engenhos fecundos, um incentivo poderoso.

A obra tem 49 capítulos e foi editada em dois volumes no ano de 1846,


sendo, então, revisada pelo autor. As observações contidas nas páginas do livro
nascem de uma viagem realizada pelo autor a convite do político e correligionário
Passos de Manuel, eminente parlamentar e um dos vultos mais proeminentes do
liberalismo.
Se, por um lado, Viagens na minha terra pertence à literatura, mesclando fic-
ção e literatura de viagem, contendo descrições detalhadas da região percorrida
por Garrett e seus companheiros; por outro, constitui uma fonte de documenta-
ção que revela aspectos da história de Portugal, fixa momentos fundamentais da
política, sendo possível representar, por meio dela, a passagem de uma estrutura
política arcaica para a modernidade. Passado, presente e futuro são simbolizados
pelos personagens que compõem a novela inserida no volume, conforme será vis-
to posteriormente.

De viagem e viagens
Na introdução, o narrador em primeira pessoa confessa ter recebido influência
dos autores ingleses Swift, Sterne e do francês Xavier de Maistre, este último cita-
do logo nas primeiras páginas:
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que
é quase tão frio como São Petersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus
nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que
aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.

Dos mesmos autores herda a tendência para as divagações, diluídas por


toda obra. Se, por um lado, as digressões são ornamentos preciosos para o leitor

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poder compreender a bagagem ideológica do autor, adentrar os seus pensamen-
tos políticos, a sua visão de arte, a forma com que encara as línguas e as culturas
estrangeiras, mormente francesas e inglesas, com as quais conviveu boa parte de
sua vida; por outro, tornam a obra fragmentada, com prejuízos para a sequência,
porque a pena corre solta, e Garrett se deixa levar pelos impulsos do pensamento.
Portanto, as Viagens não são um livro para se ler corridamente, pois são necessá-
rias pausas para que o leitor possa acompanhar as interferências pessoais e ideo-
lógicas do autor, enfim, sentir todo processo criativo.
Nesse contexto, a linearidade cede lugar a reflexões do narrador. Por exem-
plo, a novela da “menina dos rouxinóis”, que de certa maneira é o fio condutor da
fabulação, só tem início no capítulo XI, depois de inúmeros preâmbulos, e segue,
com uma série de interrupções, até o final da obra.
As divagações têm os mais variados conteúdos: vão desde estudos acerca
da arte, da história de Portugal, o proselitismo político em que Garrett deixa pa-
tente suas ideias liberais, até uma vasta demonstração de sua cultura literária clás-
sica e moderna. Observe, por exemplo, a seguinte passagem, em que, a pretexto
de mostrar hospedagens e caminho percorrido, lança mão de vários artifícios que
vão de citações filosóficas e literárias a ironias pautadas na realidade portuguesa.
Eu comungava silenciosamente comigo nestas graves meditações, e revolvia incerta-
mente no ânimo a ponderosa dúvida: – se o administrar justiça direita aos povos valia a pena
de andar um desembargador a pé!... Lutava no meu ser o Sancho Pança da carne com o D. Qui-
xote do espírito – quando a Providência, que nos maiores apertos e tentações não nos abando-
na nunca, me trouxe a generosa oferta de um amigo e companheiro do vapor, o Sr. L.S.: era a
sua invejada carroça, e nela me deu lugar até à Azambuja.
A virtude é o galardão1 de si mesma, disse um filósofo antigo; e eu não creio no famoso
dito de Bentham2, que sabedoria antiga seja um sofisma3. O mais moderno é o mais velho, não
há dúvida; mas o antigo, que dura ainda, é porque tem achado na experiência a confirmação
que o moderno não tem. Jeremias Bentham também fazia o seu sofisma como qualquer outro.
Vamos percorrendo lentamente aquele mal composto marachão4, que poucos palmos
se eleva do nível baixo e salgadiço do solo; de inverno não se passará sem perigo; ainda agora
se não anda sem incômodo e receio. Estamos em Vila Nova e às portas do nojento caravança-
rai5, único asilo do viajante nesta, hoje, a mais frequentada das estradas do reino.
Parece-me estar mais deserto e sujo, mais abandonado e em ruínas este asqueroso lu-
garejo, desde que ali ao pé tem a estação dos vapores, que são a comodidade, a vida, a alma do
Ribatejo. Imagino que uma aldeia de alarves nas faldas do Atlas deve ser mais limpa e cômoda.

1 Galardão – prêmio, recompensa.


2 Bentham – Jeremias Bentham (1748-1832), filósofo e jurista inglês. Desenvolveu a teoria ética do utilita-
rismo, segundo a qual todo objeto tem sua utilidade definida pela capacidade de produzir prazer e evitar a
dor, permitindo a realização do indivíduo, sem, no entanto, comprometer o bem-estar coletivo.
3 Sofisma – argumento articulado a partir de uma aparente lógica mas que induz ao erro, raciocínio in-
consistente.
4 Marachão – represamento.
5 Caravançarai – estalagem.

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Oh! Sancho, Sancho, nem sequer tu reinarás entre nós! Caiu o carunchoso trono de teu
predecessor, antagonista, e às vezes amo; açoitaram-te essas nádegas para desencantar a for-
mosa del Toboso, proclamaram-te depois rei em Barataria, e nesta tua província lusitana nem
o paternal governo de teu estúpido materialismo pode estabelecer-se para cômodo e salvação
do corpo, já que a alma... oh! a alma...
Falemos noutra coisa.
Fujamos depressa deste monturo6. – É monótona, árida e sem frescura de árvores a es-
trada: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu
tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-
-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo, porém, com raras exce-
ções, é ótimo e, a troco de pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa
como as melhores da Europa.
Dizia um secretário de Estado, meu amigo, que, para se repartir com igualdade o me-
lhoramento das ruas por toda a Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e
bairro todos os três meses. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial, para as ca-
lendas gregas, eu hei de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de
Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.
Aí está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visíveis sinais de vida, assea-
das e com ar de conforto as suas casas. É a primeira povoação que dá indício de estarmos nas
férteis margens do Nilo português.
Corremos a apear-nos no elegante estabelecimento que ao mesmo tempo cumula as
três distintas funções, de hotel, de restaurant e de café da terra.
Santo Deus! Que bruxa que está à porta! Que antro lá dentro! ... Cai-me a pena da mão.

As formas de narrar
No transcorrer da narrativa, o autor interpõe os mais diferentes tons, des-
de o melodramático de gosto romântico, vazando assim a história de Joaninha,
a menina dos rouxinóis, até certo tom realista, não raro permeado de pontadas
irônicas ou humorísticas com que fluem as digressões e que revelam sua profunda
erudição.
 A linguagem
A obra é escrita em linguagem até então desconhecida dos portugueses, trans-
correndo ora nervosa, ora leve e corrente; inovando o nível vocabular, incluindo neo-
logismos e termos bilíngues. Bom exemplo é dado pelo verbo “flartar” (flertar), obtido
do inglês to flirt, com equivalência de sentidos; o que permite ao autor a observação:
O tom perfeito da sociedade inglesa inventou uma palavra que não há nem pode haver
noutras línguas, enquanto a civilização as não apurar. To flirt – é um verbo inocente, que se
conjuga ali entre os dois sexos e não significa namorar – palavra grossa e absurda, que eu de-
testo –; não significa “fazer a corte”; é mais do que estar amável; é menos do que galantear; não

6 Monturo – monte de lixo.

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obriga a nada; não tem consequências; começa-se, acaba-se, interrompe-se, adia-se, continua-
-se, acaba-se ou descontinua-se à vontade e sem comprometimento.
Eu flartava, nós flartávamos, elas flartavam...

Como este, Garrett faz uso de muitos outros termos ingleses, franceses ou
italianos, aproveitados da língua ou aportuguesados, como: chaperão, chefe de
obra, esquissa, retreta, tapessada (do francês), desapontar, fashionável, gim (do
inglês) e barbarismos, como lady, parlour, shakehands, cavassing, são observados
no transcorrer da obra. Tal versatilidade linguística só terá correspondente no final
século XIX, com a prosa inovadora de Eça de Queirós.
As Viagens são, portanto, sui generis, não pelo enredo que é sobremaneira
frágil, mas por terem encarado de forma diversa e criativa o diálogo do português
com outras línguas. Saboroso na obra é ver coexistirem pacificamente a erudição,
o coloquialismo urbano e provinciano, o bilinguísmo e os neologismos, demons-
trando a vivacidade da língua harmoniosamente.
 O gênero literário
Como o volume não segue uma linha definida, também não tem uma defi-
nição precisa de gênero; o autor vai dando asas à imaginação e à divagação, apro-
ximando-se do jeito indeciso dos românticos. Com cenas recolhidas pela imagi-
nação sonhadora, adornando-as com descrições perfeitas, Garrett cria a figura de
Joaninha, a “menina dos rouxinóis”. Também romântico é o antagonismo tenebro-
so, tipo roman noir, que advém da figura de Frei Dinis. E o leitor está porta adentro
do sonho, tentando desvendar-lhe a essência que, na verdade, é a essência do
próprio artista. Além disso, mescla crônicas de viagem no mais puro estilo exigido
pelo gênero.
Boa parte da obra, no entanto, trata de aspectos da viagem propriamen-
te dita. Nesse sentido, pode-se afirmar que ao lado de descrições das paisagens,
opiniões acerca da política, referências históricas de Portugal, interpõe-se um
momento lírico-dramático em que Garrett conta a história da “menina dos rouxi-
nóis”, história que ele ouviu de um companheiro de viagem. Finalmente, a partir
de determinado momento, realidade (a viagem) e ficção (a história de Joaninha)
se fundem.
Nos onze primeiros capítulos, entre demonstrações da vasta erudição de
Garrett, o leitor é conduzido ao vale de Santarém, tal como os relatos de viagem
costumam fazer; referindo-se a datas, companheiros e meio de transporte.
São 17 deste mês de julho, ano da graça de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de
boa estreia. Seis horas da manhã a dar em S. Paulo, e eu a caminhar para o Terreiro do Paço.
Chego muito a horas, envergonhei os mais madrugadores dos meus companheiros de viagem,
que todos se prezam de mais matutinos homens que eu. Já vou quase no fim da praça quando
oiço o rodar grave mas pressuroso de uma carroça d’ancien régime: é o nosso chefe e coman-
dante, o capitão da empresa, o Sr. C. da T. que chega em estado.

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A viagem dura nove dias e os viajantes atravessam cerca de setenta quilô-
metros, seguindo a rota desenhada no mapa a seguir:

O estuário do rio Tejo é cortado a vapor. Em seguida, de montaria, os via-


jantes pernoitam em Azambuja, depois em Cartaxo para finalmente chegarem ao
vale de Santarém. Aí, o autor é conduzido a uma janela e passa a narrar a história
de Joaninha.
O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e
deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita:
não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de sons, de dis-
posição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do
espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência.
As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão
fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocên-
cia e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique,
está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam
os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões;
a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela
meia aberta de uma habitação antiga mas não dilapidada – com certo ar de conforto grossei-
ro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga
e baixa; parece mais ornada e também mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se
vê...
Interessou-me aquela janela.

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Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto!
Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.
Como há de ser belo ver pôr o sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de maio!...
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela?... quem aprecie e saiba gozar todo
o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andam esvoaçando em
torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada: veem,
sentem pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado7 afeto do homem que não é poeta, entra sempre
o seu tanto de vil prosa humana: é liga sem que não se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher
não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia; e não há dor
física, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência
prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga
que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão
regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo
dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro8, o que se deixou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para com-
pletar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão – vestido de branco – oh! branco
por força... – a frente descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alça-
dos ao céu... De que cor os olhos? Não sei, que importa! É amiudar muito demais a pintura,
que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da
idealidade poética...
– Os olhos, os olhos... – disse eu, pensando já alto, e todo no meu êxtase – os olhos... pretos.
– Pois eram verdes!
– Verdes os olhos... dela, do vulto na janela?
– Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem preço.
– Quê! Pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher, bonita, bonita, e?...
– Ali não há ninguém – ninguém que se nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo,
um anjo, que deve estar no céu.
– Bem dizia eu que aquela janela...

7 Acrisolado – purificado, depurado.


8 Bernardim Ribeiro (1482?-1552?) – escritor e poeta renascentista, autor da novela Menina e moça.

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– É a janela dos rouxinóis...
– Que lá estão a cantar.
– Estão, esses lá estão ainda como há dez anos – os mesmos ou outros, mas a menina
dos rouxinóis foi-se e não voltou.
– A menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela?
– É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os franceses, e conta-se em duas
palavras.
– Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com os olhos verdes! Deve ser interes-
santíssimo. Vamos à história já.
– Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem.
Apeamo-nos com efeito; sentamo-nos; e eis aqui a história da menina dos rouxinóis,
como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha odisseia: estou com medo de entrar nele, porque dizem
as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é bom para isto, que em francês
que há outro não sei quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns
tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu: mas poesia ou ro-
mance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos: o que eu vou contar não é um
romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e incidentes raros; é uma história
simples e singela, sinceramente contada e sem pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo; e a matéria do meu conto para o se-
guinte.

 A fabulação
A história mal começa e já é interrompida por longa digressão sobre barões
e frades, mas as sementes da trama são lançadas: uma bela aldeã, órfã de pai e
mãe, criada pela avó, D. Francisca Joana, mulher cega e amargurada. Um frade,
antigo corregedor de comarca que abandona a vida civil e assume, na eclesiástica,
o nome de Frei Dinis da Cruz, sendo ele a única companhia da família, sempre às
sextas-feiras. Outro elemento masculino importante para a trama está ausente.
É Carlos, neto de D. Francisca, igualmente órfão, pois a mãe morrera ao lhe dar a
vida e cujo suposto pai havia desaparecido, juntamente com o pai de Joaninha,
em uma cheia do Tejo, quando o saveiro em que viajavam naufragou. Tudo parece
envolto em uma aura de mistério que instiga a imaginação. São todos ingredien-
tes indispensáveis para uma boa trama romântica. Conduzir habilmente o enredo
é tarefa do bom escritor e Garrett sabe, no momento em que isto se faz necessário,
prender a atenção do leitor, mesmo quando ele mesmo está perdido em uma ex-
cessiva rede de intrincados pensamentos.
Ao retomar a história, dois anos são passados desde a partida de Carlos. Frei
Dinis assume o papel de antagonista por sua forma de vida e de crença, e, prin-
cipalmente, por suas posições rígidas contra a filosofia dos liberais, acusando as

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ideias defendidas por ela de “perversoras de toda a ideia sã, de todo o sentimento
justo, de toda a bondade praticável”.
O chamado liberalismo, esse entendia ele: “Reduz-se”, dizia, “a duas coisas, duvidar e
destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim; é uma seita toda material em que a carne
domina e o espírito serve; tem muita força para o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o
pode fazer. Curar com uma revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa,
é sangrar um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo, mas as
forças vão-se, e a morte é a mais certa”.
Dos grandes e eternos princípios da Igualdade e da Liberdade dizia: “Em eles os prati-
cando deveras, os liberais, faço-me eu liberal também. Mas não há perigo: se os não entendem!
Para entender a liberdade é preciso crer em Deus, para acreditar na igualdade é preciso ter o
Evangelho no coração.”
As instituições monásticas eram, no seu entender e no seu sistema, condição essencial
de existência para a sociedade civil – para uma sociedade normal. Não paliava9 os abusos dos
conventos, não cobria os defeitos dos monges, acusava mais severamente que ninguém a sua
relaxação10; mas sustentava que, removido aquele tipo da perfeição evangélica, toda a vida cristã
ficava sem norma, toda a harmonia se destruía, e a sociedade ia, mais depressa e mais sem remé-
dio, precipitar-se no golfão do materialismo estúpido e brutal em que todos os vínculos sociais
apodreciam e caíam e em que mais e mais se isolava e estreitava o individualismo egoísta – últi-
ma fase da civilização exagerada que vai tocar no outro extremo da vida selvagem.

Ao mesmo tempo, Frei Dinis é responsável por acender a chama da suspei-


ta: descobre-se que há um espantoso e grande segredo entre ele e a velha, que
levou à morte a mãe de Carlos. Tamanho drama parece não combinar com a fres-
cura da paisagem, a leveza do retrato feminino traçado, o tom justo do diálogo,
nem com o caráter reformador da obra. Observe, por exemplo, o trecho já citado,
em que o narrador chega ao vale de Santarém, destaca a beleza da paisagem, a ja-
nela que o motiva a contar o caso de Joaninha, a lembrança da suavidade poética.
Outro exemplo: ao iniciar a novela, Garrett recheia-a de belos quadros românticos,
como o da neta que acorre ao chamado da avó cega, numa suavidade e leveza que
contrastam com o sabor da tragédia pretendida no enredo.
Tornemos à velhinha.
Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira11 que se mo-
via regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.
Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, doba-
doira, tudo pareceria uma graciosa escultura de Antônio Ferreira12 ou um daqueles quadros tão
verdadeiros do morgado13 de Setúbal.

9 Paliar – encobrir, dissimular, disfarçar.


10 Relaxação – ato ou efeito de relaxar.
11 Dobadoira – artefato para proceder ao enovelamento dos fios.
12 Antônio Ferreira (1528-1569) – poeta e escritor renascentista que ficou conhecido como “o Horácio por-
tuguês”.
13 Morgado – bens inalienáveis destinados ao primogênito da família.

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O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao movimento quase
imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava,
depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermi-
tências se ia alternando como um pulso de um que treme sezões.
Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor
era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe sus-
pendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada: reagia a vontade, e
a dobadoira tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os
tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a dobadoira que lhe ficava um pou-
co mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante
como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.
O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou tranquilamente
as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:
– Joaninha?
Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem
dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:
– Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.
– Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada
que se me embaraçou.
A velha era cega, cega de gota-serena, e paciente, resignada como a providência mi-
sericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura
provança de tão desconsolado martírio.

Chega ao vale o oficial Carlos, defensor das causas liberais, primo e amigo
de infância de Joaninha, a quem a moça julgava morto. Reencontrá-lo significou
fazer nascer no coração da menina o mais profundo amor. Embora Carlos também
esteja apaixonado por Joana, não lhe escapam as outras mulheres – o coração
volúvel do rapaz bate no ritmo de ardentes paixões.
A sequência narrativa é interrompida por novas digressões, mas o autor se
vê obrigado a terminar a obra, colocar pontos-finais – no intrincado caso amoroso,
desfazer duas cruéis dúvidas: a quem pertencerá o coração do nobre rapaz, já que
ele oscila entre a inglesa Georgina e a portuguesa Joaninha?; descobrir o mistério
que envolve a morte do pai é seu segundo objetivo. As características de Carlos
são semelhantes às do próprio Garrett; o personagem, portanto, com suas dúvidas
amorosas e suas ideias políticas, torna-se uma espécie de alter ego do autor.
Georgina chega a Portugal em busca de seu amor. Carlos, em campanha
na guerra civil, defendendo os liberais pela deposição de D. Miguel, foi ferido e
posteriormente recolhido por Frei Dinis ao convento de São Francisco. Mediante
explicações de Georgina, o frade abre-lhe as portas do convento para que a moça
servisse de enfermeira ao ferido.
Entre quatro paredes estão reunidos os principais personagens que com-
puseram a trama, resta agora dar-lhes um desfecho. Mas, ao rapaz é poupado o

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esforço da solução, uma vez que ela vem pronta, pelas mãos de Georgina. Já recu-
perado, Carlos pôde abrir-se para Georgina, declarando seu amor por ela. Porém
tarde demais, porque a moça, tomada por profunda afeição pela singela Joaninha,
revela que não o ama mais, e que é nos braços da prima que Carlos encontrará a
felicidade.
Como um bom dramaturgo, chega, também, o momento de grandes re-
velações. Frei Dinis é acusado de ter matado o genro e o filho da velha Francisca,
ignorando a identidade deles quando de um assalto. Ao avançar sobre o assassino
para vingar a morte de seu pai, outra revelação é configurada – o verdadeiro pai
de Carlos é o frade. Diante de confissões tão reveladoras, o rapaz opta por fugir e
por escrever uma carta em que dá explicações à pessoa que mais comoções so-
freu – Joaninha. A menina dos rouxinóis ensandeceu e, logo depois, veio a falecer.
Mas as coisas andam a passos de carruagem, e antes de dar ao leitor a conclusão,
Garrett compõe uma série de outras digressões, mas nada impede o leitor de sal-
tar algumas páginas e chegar mais rapidamente ao desfecho de tão melodramá-
tica história, que há muito vem se arrastando. É aí que o escritor, atando as duas
pontas da narrativa, recupera as páginas iniciais, fechando a trágica novela da vida
da menina dos rouxinóis. E o narrador volta a ser o turista português em viagem
de recreio por sua pátria, que conversa com Frei Dinis, tendo por ouvinte a velha
Francisca, que, sofrida com a morte da neta e com o esquecimento do neto, agora
barão, apenas vegeta à espera da morte.
Em um único capítulo, Garrett resume todo o final da narrativa de forma
rápida e certeira, em oposição à direção tomada até então.
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava
sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais
atenção, nem pareceu cônscio da minha estada ali.
Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
Fiz um esforço sobre mim mesmo, fui deliberadamente ao meu cavalo, montei, piquei
desesperado de esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila à hospedeira
casa do Sr. L. S.
Rimos e folgamos até alta noite: o resto dormimos a sono solto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha – e com uma enorme constelação de barões que
luzia num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, ver-
des, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões de milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta.
Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos.
O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Terreiro do Paço.

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Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quan-
tas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bor-
dão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura, porém.
Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito
prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.

Considerações finais
As frequentes menções a Dom Quixote e Sancho Pança têm a intenção de
contrapor o idealismo do cavaleiro ao materialismo de seu companheiro. Quixote
é austero, Sancho é prático; Quixote é idealista, Sancho é realista. Estendendo a
comparação, vê-se, em Viagens na minha terra uma divisão de polos que represen-
tam, à sua maneira, a história de Portugal. Recuperando a narrativa e as digressões
do autor, tem-se uma forma de representar passado e presente.
Joaninha, por exemplo, representa um Portugal idealizado, de beleza,
simplicidade, ingenuidade e de grandeza. Pode simbolizar o momento em que,
politicamente, defendiam-se as ideias absolutistas que levaram os portugueses
a navegar por mares desconhecidos. É a apoteose política e econômica do país,
momento de orgulho e de grandes perspectivas. Trata-se de um Portugal agrícola,
promissor e autossuficiente. Ao mesmo tempo significa a possibilidade de reto-
mar as glórias do passado e crescer rumo ao desenvolvimento. Ao lado da menina
dos rouxinóis está a força e a vitalidade da juventude, representada por Carlos. O
jovem é audaz, disposto a dar sua vida por sua causa. Ao fazer oposição a Dom Mi-
guel, representa a busca pela modernidade, a inserção de Portugal novamente no
mundo representativo, alter ego de Garrett na defesa do liberalismo. No entanto,
deve-se lembrar de que, no final, Carlos rende-se ao título de nobreza e ao dinhei-
ro, o que o fará vítima do ostracismo e, de certa forma, da alienação social, que o
aproxima do materialismo. Portanto, é um momento em Portugal que coincide
com o tempo de Garrett, em que os ideais não estão constituídos. Por esse par,
têm-se representado dois Portugais: agrícola x urbano, inocente x guerreiro e duas
formas de alienação: a que leva à loucura e à morte, no caso de Joaninha; a que
leva ao abandono das lutas, no caso de Carlos.
Tanto quanto Joaninha, Georgina, a namorada inglesa de Carlos, está do
lado do bem, representa a influência de uma cultura estrangeira, à qual Garrett
rende imenso respeito. Ela é capaz de atitudes abnegadas e de se tornar reclusa ao
saber que seu grande amor não lhe pertence. Entre os antagonistas, situa-se Frei
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Dinis, que metaforiza um Portugal arcaico. Antes de se tornar frade, pelos erros
cometidos, percebe-se que era preso a paixões carnais. Tornou-se homem de prin-
cípios austeros e de crenças rígidas, exercendo grande influência sobre Joaninha
e a avó. Representa o lado da Igreja autoritária e dogmática, punitiva e podero-
sa. O exercício do sacerdócio era uma forma de se redimir dos erros mundanos,
espiritualizar-se. Finalmente, a velha avó e sua cegueira e posterior alienação era
subserviente, passiva, aceitava as ordens do Frei Dinis como se fosse obrigada a
seguir seus passos. Representa certa cegueira com que os portugueses assumi-
ram algumas ideias para as quais não estavam preparados politicamente. Enfim,
Portugal é representado, nas páginas do livro de Garrett por meio de meandros
literários que o leitor tem de desvendar no transcorrer da leitura.
Mais ainda, Garrett possui outro mérito: fazer uma narrativa diferenciada
dos padrões usuais, abrir caminhos para o advento de grandes autores que bebe-
rão em sua fonte, como Eça de Queirós e Machado de Assis. Dono de uma lingua-
gem inovadora deixa herdeiros nas literaturas em língua portuguesa tal como é de
se esperar de grandes autores.

Textos extraídos de:


Almeida Garrett. Viagens na minha terra. São Paulo: Núcleo, 1992.

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ROMANTISMO

Til
José de Alencar

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Um escritor bem-intencionado
José Martiniano de Alencar (1829, Mecejana, CE - 1877, Rio de Janeiro, RJ)
forma-se em Direito em 1850 e inicia sua carreira de jornalista no Correio Mercantil
(RJ) quatro anos depois. Em 1956, já no Diário do Rio de Janeiro, trava uma célebre
polêmica com Gonçalves de Magalhães, publicando as Cartas sobre a Confedera-
ção dos Tamoios, as quais provocam reação no imperador D. Pedro II, que o pretere
em favor do autor de Suspiros poéticos e saudades. Pouco depois, estreia em ro-
mance com o folhetim Cinco minutos, mas sua primeira obra de vulto sai em 1857,
quando publica o épico indianista O guarani, que inspiraria o compositor erudito
Carlos Gomes a escrever uma ópera homônima de estrondoso sucesso.
Em 1860, falece seu pai, senador revolucionário e político de renome. O
contato do escritor com a lida política do pai influenciaria o jovem Alencar por
toda a vida, resultando em um intenso e permanente interesse pelas questões
de ordem pública, chamando a atenção sobre causas que afligiam e dividiam a
sociedade, como: o nativismo, a prostituição, o escravagismo, a corrupção a minar
as ralas fronteiras do império, entre outras.
José de Alencar desempenhou um leque impressionante de atividades
correlatas: foi jornalista, crítico, advogado (seu verdadeiro ganha-pão), polemista,
orador, dramaturgo, pesquisador aguçado, estilista ímpar da língua e romancista,
o primeiro grande prosador da literatura do Brasil. Em tudo, incansavelmente al-
mejando – nunca é demais realçar – a justa medida da brasilidade, numa análise
histórica, sociológica, artística e psicológica a um só tempo (nesses termos, o autor
pode ser vislumbrado como um precursor legítimo, embora remoto e fundamen-
talmente romântico, do Modernismo de 1922).
Elegeu-se deputado em 1861 e foi reeleito várias vezes. Em 1868, ocupa
a pasta de ministro da Justiça. Suas constantes desavenças com o imperador
D. Pedro II, que lhe vetara a entrada no Senado, em 1869, levam-no a se apartar
da carreira política, em 1870. Em 1876, ele, seus seis filhos e sua esposa Georgiana
leiloam os bens e se mudam para a Europa, com o fito de tratar da sua precária
saúde: Alencar, por quase toda a vida, foi vítima da tuberculose. Não obtendo efei-
to o tratamento em terra estrangeira, regressa ao Rio de Janeiro, vindo a falecer
em 1877.
É impressionante como em tão pouco tempo Alencar obteve êxito em pra-
ticamente tudo o que compôs e fez, impondo-se entre os intelectuais brasileiros
como um dos maiores nomes de sua época. De espírito nacionalista, Alencar pro-
curou descobrir o Brasil espacial e temporalmente, compondo quatro tipos de ro-
mances que seriam a base de toda a prosa brasileira posterior: (i) romances urba-
nos, em que trabalha o tempo presente (do escritor) e o meio urbano, nos quais
desenha as relações egoístas e interesseiras que se firmam entre os indivíduos,
subjugados pelo dinheiro. Neles, o amor subordina-se à posse e ao dinheiro, em-

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bora, como solução, seja encontrado um termo conciliador e a redenção: Lucíola,
Diva e Senhora ilustram com perfeição esse ciclo; (ii) romances históricos, nos quais
Alencar recupera e enaltece o passado e a memória nacionais, como em As minas
de prata, Alfarrábios e o também indianista O guarani; (iii) romances indianistas, em
que se pode contemplar a cartilha de Rousseau na pintura do “bom selvagem”,
tendo como cenário a selva virgem do país recém-descoberto ou totalmente vir-
gem. O índio nobre, valente, plasmado com grande viço e ambientado numa na-
tureza luxuriante, de rara beleza e idealização épica: O guarani, Iracema e Ubirajara
são notáveis exemplos; (iv) romances regionalistas, nos quais retrata o presente e
a formação de uma sociedade rural/sertaneja, em que a honra, o sangue, a tradi-
ção local e uma certa moralidade (pautada em convenções simples, mas impe-
riosas) prevalecem. São regionalistas os romances O gaúcho, O tronco do ipê, Til e
O sertanejo.

Til, o regionalismo paulista


Publicado em 1872, o romance Til está entre os chamados romances re-
gionalistas de Alencar, registrando aspectos como vestuário, festividades, alguns
modos de fala, alguns códigos sociais e familiares, e valores que retratam um país
ainda em formação, agreste e bruto, que adentra o interior, distanciando-se dos
focos urbanos.
Sobre essa paragem bucólica, perdida nos desvãos da imaginária geografia
brasileira, comenta o próprio José de Alencar, em seu prefácio a outro livro de sua
lavra, Sonhos d’ouro (também de 1872):
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia a cor
local, encontra-se ainda em pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nosso país (...) re-
cantos, que guardam intacto, ou quase, o passado. O tronco do ipê; Til e O gaúcho vieram dali...

Til é, tipicamente, um romance romântico: obra leve e lírica, repleta de pe-


ripécias, segredos inconfessáveis, coincidências do destino e eventos muitas ve-
zes inverossímeis, que se tornam possíveis graças à pena precisa e experiente do
narrador, que conduz a trama com elegância e competência. O romance revela
os namoricos, arrufos, caprichos e, em suma, a descoberta do amor entre quatro
adolescentes inseparáveis: Afonso, Linda, Miguel e Berta.
A obra é escrita em terceira pessoa, por um cuidadoso narrador observador
que não se inibe em se colocar na narrativa usando a primeira pessoa. A ação se
passa no ano de 1846. O cenário básico e pano de fundo é o interior paulista, uma
região que encontra seus primeiros momentos de progresso com a expansão da
cultura cafeeira e também da cana-de-açúcar:

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Cerca de uma légua abaixo da confluência do Atibaia com o Piracicaba, e à margem
deste último rio, estava situada a fazenda das Palmas.
Ficava no seio de uma bela floresta virgem, porventura a mais vasta e frondosa, das
que então contava a província de São Paulo, e foram convertidas a ferro e fogo em campos de
cultura. Daquela que borda as margens do Piracicaba, e vai morrer nos campos de Itu, ainda
restam grandes matas, cortadas de roças e cafezais. Mas dificilmente se encontram já aqueles
gigantes da selva brasileira, cujos troncos enormes deram as grandes canoas, que serviram à
exploração de Mato Grosso. Daí partiam pelo caminho d’água as expedições que os arrojados
paulistas levavam às regiões desconhecidas do Cuiabá, descortinando o deserto, e rasgando
as entranhas da terra virgem, para arrancar-lhe as fezes, que o mundo chama ouro e comunga
como a verdadeira hóstia.
No ano de 1846 era de recente fundação a fazenda das Palmas, que Luís Galvão, seu
proprietário, recebera de herança paterna, ainda nas condições de simples situação, com um
velho casebre de caipira, dois cafezais e alguma pouca roça.
Tinha Luís Galvão o gênio empreendedor e gosto para a lavoura; casando com a filha
de um capitalista de Campinas, que lhe trouxe de dote algumas dezenas de contos de réis, além
do crédito, pôde ele, dando alas à sua atividade, fundar uma importante fazenda, que a muitos
respeitos servia de norma e escola ao agricultor brasileiro.
Ao passo que se ia adiantando a lavra das terras, erguia-se na chapada fronteira ao rio
uma bela casa de morada em dois lances abarracados, com um pequeno mirante no centro,
sobreposto à larga portada; esta abria para o patamar, ladrilhado, de uma pequena escada de
seis degraus, que descia ao terreiro.
Formava o edifício uma face da vasta quadra, onde se fora levantando sucessivamente
casas para o administrador e feitores, senzalas para os escravos, o engenho de cana, a fábrica
do café, tulhas de feijão e milho, além de outros acessórios do grande estabelecimento rural,
que veio a tornar-se depois a fazenda das Palmas.
Do terreiro da casa partia o caminho principal da fazenda, que se estendia pelo espigão
da colina, e bifurcava-se de espaço a espaço para serventia das várias jeiras de lavoura. O ramo
principal, fugindo aos alagados e descrevendo uma grande curva, ia entroncar-se, a meia lé-
gua de Santa Bárbara, na estrada geral da Constituição a Campinas.

A fazenda das Palmas era propriedade de Luís Galvão, que a herdara e a


tornara próspera, como “norma e escola ao agricultor brasileiro”. Casa-se Galvão
com a filha de um rico capitalista de Campinas, D. Ermelinda. Da união, nascem
os gêmeos Afonso e Linda, apelido que a distinguia, por ter o mesmo nome da
mãe. Esse par juvenil irá contracenar com Miguel e Berta, esta última órfã e irmã
de criação de Miguel.
Filha de um capitalista de Campinas, D. Ermelinda recebera em um colégio inglês da
corte educação esmerada, que desenvolveu a natural distinção de seu espírito. Recolhida à sua
província, teria sem dúvida perdido ao atrito dos costumes do interior aquele tom fidalgo, se
fosse ele um artifício do hábito, em vez de um dom, que era da natureza, o qual o exemplo não
fizera senão polir.

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O entrecho começa quando Berta salva Miguel da descomunal fúria de um
impiedoso assassino da região, Jão Fera. Adiante, saberemos que Fera anda às vol-
tas com um certo Barroso, que lhe encomendara a morte de Luís Galvão, dono
da fazenda Palmas. Um núcleo dramático se constrói em torno do poder e auto-
ridade, verdadeiramente inexplicáveis, que a “pequena, esperta, ligeira, buliçosa”
Berta exerce sobre o matador.
Berta é, em tudo, a síntese romântica da femme perfeita: pura, ingênua, ab-
negada, caridosa e menina; mas, ao mesmo tempo, sedutora e mulher: “A antítese
banal do anjo-demônio torna-se realidade nela”. Ela enfeitiça os personagens, que
orbitam em torno de sua pureza e beleza.
Contradição viva, seu gênio é o ser e o não ser. Busquem nela a graça da moça e en-
contrarão o estouvamento do menino; porém mal se apercebam da ilusão, que já a imagem
da mulher despontará em toda sua esplêndida fascinação. A antítese banal do anjo-demônio
torna-se realidade nela, em quem se cambiam no sorriso ou no olhar a serenidade celeste com
os fulvos lampejos da paixão, à semelhança do firmamento onde ao radiante matiz da aurora
sucedem os fulgores sinistros da procela.

Por intermédio de Berta, também Luís Galvão acaba livre das garras de Jão
Fera, obra encomendada por Barroso, como vingança por um crime que Luís Gal-
vão cometera na juventude.
Jão Fera, reconhecendo a menina através da nuvem de sangue que lhe inflamava o
olhar, e vendo-a afrontar-lhe os ímpetos, não abateu logo de todo o fero senho, mas foi-se
aplacando a pouco e pouco. A ira que se arrojava do seu aspecto, retraiu-se e de novo afundou
pelas rugas do semblante, como a pantera que recolhe à jaula, rangendo os dentes.
Sua alma se impregnava do fluido luminoso dos olhos de Berta, e ele sentia-se trespas-
sado pelo desprezo que vertia no sorriso acerbo esse coração nobre e puro, sublevado pela in-
dignação. De repente começaram a tremer-lhe os músculos da face, como os ramos do pinheiro
percutidos pela borrasca; e as pálpebras caíram-lhe, vendando-lhe a pupila ardente e rúbida.
– Estavas aqui para matar alguém? perguntou a menina com um timbre de voz, seme-
lhante ao ringir do vidro.
Respondeu o capanga com uma palavra, que em vez de sair-lhe dos lábios, aprofun-
dou-se pelo vasto peito a rugir como se penetrasse em um antro.

Seguem-se inúmeros episódios, e o quebra-cabeça, afinal, se concatena e


se deslinda: no passado, Luís Galvão, galanteador, rico e jovem, protegido pelo
capanga Jão Fera, lançara-se em inúmeras aventuras amorosas. Uma delas, com o
grande amor, reprimido e devocional, de Fera: Besita. Esta, percebendo o descom-
promisso de Luís, contrai núpcias com Ribeiro, “mas este ao sair da igreja recebeu
uma carta, que o chamava a toda pressa a Itu para salvar a maior parte da herança”.
Ribeiro não volta, abandona a esposa e ganha o mundo numa vida, de forma
inconsequente e irresponsável, abandonando a esposa e não dando notícias de seu
paradeiro. Por puro capricho oportunista, Luís Galvão, disfarçado, uma noite invade

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o quarto de Besita e a engravida. Diga-se, de passagem, que Besita é totalmente
inocente, foi enganada e violentada. Desse encontro nasce Berta. Devotado a seu
grande amor, Jão Fera torna-se um anjo da guarda permanente da mãe e da filha.
Eis, porém, que algum tempo depois Ribeiro retorna e compreende a traição:
vê a mãe brincando com a filhinha, ainda bebê, e, num assomo de ira, mata Besita e
foge, antes que Jão pudesse fazer qualquer coisa. O bebê, então, é entregue, por Jão,
aos cuidados de nhá Tudinha, mãe de Miguel, e a história toda é abafada.
É nesse momento que Jão Fera se torna o selvagem e sanguinário assassino,
revelado no romance. Seu ódio por Ribeiro é incontrolável e visceral. Ocorre que, por
um arranjo da fatalidade, será esse mesmo Ribeiro quem, passados vinte anos, e sob
o falso nome de Barroso, irá contratar os serviços de Fera. Ambos não se reconhecem,
mas instintivamente se detestam. Os fatos se sucedem, até que a verdade vem à tona.
Berta descobre sua origem; Luís a aceita como filha e herdeira (embora a moça decline
disso, optando por cuidar dos enjeitados, como ela); Fera vinga a memória da amada,
Besita, barbaramente destroçando Barroso (Ribeiro), com as próprias mãos.
Entretanto, Jão Fera, embrenhado na espessura, atirava ao chão o corpo do Ribeiro,
quase desfalecido pelo terror e pela constrição formidável dos braços que o arrochavam.
O capanga sacara a faca da cinta, e com o golpe suspenso procurou sofregamente um
lugar para ferir, mas de modo que reanimasse com a mais intensa dor, aquele corpo desmaiado
sem contudo lhe tirar a vida, que ele queria conservar como um avaro, para sua vingança.
Ao cabo de um instante de hesitação arremessou de si a arma, arquejante aos arrancos
daquela sanha. Agachando-se então como um tigre que prepara o salto, com os dentes rangi-
dos e os lábios espumantes, se arremessou em cima do Ribeiro e tripudiou sobre o corpo em um
frenesi de selvagem ferocidade.
Quem o visse dilacerando a vítima com as mãos transformadas em garras, pensaria
que a fera de vulto humano ia devorar a presa e já palpitava com o prazer de trincar as carnes
vivas do inimigo.
Soou perto um brado de horror.
Transido e estúpido, Jão Fera viu Berta fugindo espavorida daquele sítio, ao qual a guia-
ra o Brás, por uma estulta malignidade. O idiota espreitara a cena anterior, e forjara no seu
bestunto aquela vingança.
O furor de Jão Fera transportou-se do cadáver, que já não o podia cevar, ao monstren-
go; na sua raiva o teria despedaçado, se este não corresse a abrigar-se sob a proteção de Berta.

Ao cabo, Jão Fera se redimiu por inspiração sublime de Berta. Trabalha no


eito, como escravo, mas livre das misérias que o embalaram. Til é um exemplar
volume romântico, que versa sobre adultério, vingança, honra e amores proibidos.

Til, obra pictórica com riqueza psicológica


Os personagens de Til são planos, isto é, têm pouca profundidade ou es-
tofo psicológico. Agem de forma convencional, caracterizando tipos pontuais e

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bem-definidos, cumprindo as necessidades românticas de criar uma narrativa que
oscila entre o bem e o mal, o certo e o errado, o sublime e o grotesco. As perso-
nagens estão inseridas no cenário agreste e rude em que são articulados os fatos
enfeixados no enredo. No entanto, na medida em que a narrativa caminha, a mão
de Alencar desenha um contorno psicológico, tênue, porém preciso, de modo que
o leitor é capaz de perceber quão lapidadas são suas personagens. Nesse senti-
do, ele antecipa a análise dos traços humanos, que tanto celebrizaria Machado de
Assis:
Toda a força vital da boicininga se concentrava no olhar, donde coava-se uma flama
tépida, por entre as titilações da membrana sutil, que reveste a retina da serpente. Encadeada
por este fio luminoso ao olhar cintilante de Berta, o medonho réptil parecia como deslumbrado
com súbito lampejo.

Uma exceção, na caracterização de tipos, se abre a Jão Fera personagem


denso que, sob inúmeros aspectos, nos remete ao Realismo. Embora profunda-
mente romântico em suas motivações interiores, Jão é construído como “fera” e
depois é desconstruído pela “bela” – a menina Berta – e passa da pura barbárie
à ascese e redenção, num percurso que muito lembra a conversão religiosa: de
fato, Berta é pintada como uma freira, a quem se deve uma devoção imaculada e
transformadora: todos os personagens macabros são submissos à magia de sua
presença: Zana, a escrava louca; Brás, o abobalhado filho da irmã de Luís e Jão Fera,
o vingador. Justifica-se, assim, o último capítulo do livro, “Alma sóror”.
Quando o Sol escondeu-se além, na cúpula da floresta, Berta ergueu-se ao doce lume
do crepúsculo, e com os olhos engolfados na primeira estrela, rezou a ave-maria, que repetiam,
ajoelhados a seus pés, o idiota, a louca e o facínora remido.
Como as flores que nascem nos despenhadeiros e algares, onde não penetram os es-
plendores da natureza, a alma de Berta fora criada para perfumar os abismos da miséria, que
se cavam nas almas, subvertidas pela desgraça.
Era a flor da caridade, alma sóror.

Jão Fera trava uma batalha final contra si mesmo e vence, ou seja, ameniza
sua consciência e fica em paz consigo mesmo. Vemo-lo, ao término do romance,
carpindo a terra, na enxada, numa renúncia à vida de banditismo e aventura que
levara até então. O homem “fera” concilia-se com a natureza (segundo os preceitos
do Romantismo) e dela tira o seu sustento e a paz de seu espírito.

Til, romance social


As personagens secundárias, e o contexto em que surgem, dão um agradá-
vel tempero à narrativa. O detalhismo de Alencar nos remete, como um cineasta,
aos mínimos detalhes das festividades (capítulo XVI – São João), dos falares, dos
cantares (“Cadonga, deixa de partes / É melhor desenganar / Que este negro da

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carepa / Não há fogo pra queimar”), da hierarquia social, das intrigas, dos códigos
de conduta da fazenda e do campo, regrados a valentia, justiça e brio. Tipos como
Chico Tinguá, Gonçalo Suçuarana, a preta Florência, etc., revelam uma época e
uma vivência social, estruturadas sobre relações de confiança, tradição e família.
Em Til, a renúncia a uma filha bastarda, Berta, se transforma em pano de fundo a
desvendar os mecanismos de uma sociedade marcada pelo preconceito, pela se-
paração entre ricos e pobres, doentes e sãos, pela injustiça e, principalmente, pela
regra de se fazer justiça com as próprias mãos.

Do til ao abecê do estilo


Certa vez, Gonçalves Dias aludiu à “poesia grande e santa” que, fervorosa-
mente, ele almejava – e obteve. O mesmo se dirá de José de Alencar, um autêntico
poeta na prosa. Sua linguagem, cheia de inovações estilísticas, adjetivação farta,
subjetividade e esmero nas descrições, com cenários inebriantes e paradisíacos,
enaltecendo, como poucos, a terra e a gente brasileira, é traço singular seu.
Como se lerá, páginas adiante, “Til” é o apelido que o demente Brás (criatura
bestializada, exposta numa tintura quase naturalista) empresta a Berta, pois en-
tende que o sinal gráfico do til está passeando no rostinho da menina, no nariz, no
desenho das orelhas, nos lábios finos e meigos, etc. Evidentemente, Alencar gera
metalinguagem, e o próprio romance Til passa a simbolizar um esforço em prol da
construção de uma escritura excepcional.
Permitido o jogo de palavras, Til se transforma numa grande lição de estilo,
numa linda obra de arte.

Textos extraídos de:


José de Alencar. Til. São Paulo: Núcleo, 2012.

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ROMANTISMO

Memórias de um
sargento de milícias
Manuel Antônio de Almeida

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Crônicas da vida suburbana
Escrito em pleno desenvolvimento do movimento romântico (1836-1881),
Memórias de um sargento de milícias não pode ser classificado como autentica-
mente romântico por fugir dos padrões tradicionais do romance do século XIX.
Enquanto romancistas urbanos como José de Alencar (1829-1877) e Joa-
quim Manuel de Macedo (1820-1882) escreviam seus romances sem preocupa-
ções de datar ou localizar as ações, tecendo personagens oriundas ou com livre
trânsito pelas camadas mais privilegiadas, Manuel Antônio de Almeida inicia seu
relato de forma diferente, pontuando tanto o tempo como o espaço suburbano.
O mesmo ocorre quanto à linguagem utilizada, mais prolixa e mais elaborada nos
dois primeiros românticos e mais solta, econômica e rápida em Manuel Antônio
de Almeida.
São dados a seguir trechos dos romances urbanos Senhora, A moreninha e
Memórias de um sargento de milícias, para serem constatadas as diferenças apon-
tadas.
Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela.
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a
rainha dos salões.
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilida-
de.
Era rica e formosa.
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores
que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante.
Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da corte como
brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira o seu
fulgor?
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conhe-
ciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade,
sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Aurélia era órfã; tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Masca-
renhas, que sempre a acompanhava na sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os es-
crúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emanci-
pação feminina.
(José de Alencar. Senhora. São Paulo: Ed. Núcleo, 2010.)

Seriam pouco mais ou menos onze da manhã quando o batelão de Augusto abordou à
ilha de... Embarcando às dez horas, ele designou ao seu palinuro o lugar a que se destinava, e
deitou-se para ler mais à vontade o Jornal do Comércio. Soprava vento fresco e, muito antes do
que supunha, Augusto ergueu-se, ouvindo a voz de Leopoldo que o esperava na praia.
– Bem-vindo sejas, Augusto. Não sabes o que tens perdido...

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– Então... muita gente, Leopoldo?
– Não: pouca, mas escolhida.
No entanto, Augusto pagou, despediu o seu bateleiro, que se foi remando e cantando
com seus companheiros. Leopoldo deu-lhe o braço, e, enquanto por uma bela avenida, orlada
de coqueiros, se dirigiam à elegante casa que lhes ficava a trinta braças do mar, o curioso es-
tudante recém-chegado examinava o lindo quadro que a seus olhos tinha e do qual, para não
sermos prolixos, daremos ideia em duas palavras. A ilha de... é tão pitoresca como pequena. A
casa da avó de Filipe ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam os estudantes a
divide em duas metades, das quais a que fica à esquerda de quem desembarca está simetrica-
mente coberta de belos arvoredos, estimáveis ou pelos frutos de que se carregam, ou...
(Joaquim Manuel de Macedo. A moreninha. São Paulo: Ed. Núcleo, 1996.)

Era no tempo do rei.1


Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos2 –; e bem lhe assentava o
nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que go-
zava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que sombra
caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e res-
peitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio
de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto
eram os desembargadores.
(Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Ed. Núcleo, 2011.)

O autor, para a confecção do volume, recolhe cuidadosamente as informa-


ções que lhe foram fornecidas por um colega de repartição, Antônio César Ramos.
Esse português, há longos anos radicado no Brasil, viera para cá como soldado e,
depois, chegara a sargento de milícias, ainda na Época Colonial, sob o comando de
um certo major, autoritário e disciplinado, conhecido como Vidigal.
O título, Memórias, marca o primeiro desafio a ser enfrentado pelo leitor:
usualmente, um livro de memórias é narrado em primeira pessoa e relata episó-
dios da vida de um personagem, geralmente protagonista. Nas Memórias de Ma-
nuel Antônio de Almeida, prevalece a ambiguidade, uma vez que o leitor não sabe
de quem são as memórias: do português, de quem o autor ouviu os relatos, ou
de Leonardo, o “herói” do livro e futuro sargento de milícias? A marca da dúvida
nasce do deslocamento do foco narrativo para a terceira pessoa e possibilita um
dinamismo interativo, cabendo ao leitor questionar, participar ou tomar partido.
Outro ponto a assinalar é que Manuel Antônio de Almeida pretendia narrar
a acidentada vida de uma criança nascida no começo do século XIX, mas foi muito
além, já que fez uma esplêndida reconstituição de época nas camadas suburba-

1 Observe-se que existem claramente dois tempos: o tempo do narrador, século XIX, contemporâneo à
escritura do volume, e o tempo dos fatos narrados, 1º quartel do século XIX. No entanto, esse início remete
o leitor à indeterminação temporal do “Era uma vez...” comum nos contos de fada.
2 meirinhos – antigos funcionários judiciais, equivalentes aos oficiais de justiça.

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nas: da obra, aflora um Rio de Janeiro mais popular; são focalizados costumes,
usos, moda, divertimentos, brigas familiares, intrigas de comadres, superstições,
música, linguagem e relações sociais peculiares aos meios retratados.
Aliando bom humor a uma certa dose de realismo, justapõe várias histórias
tendo como elo o personagem principal, malandro e traquinas, que figura mais
como anti-herói e lembra as peripécias de heróis do tipo picaresco3. A mola mestra
do livro é o movimento: a um acontecimento segue outro e mais outro, o que faz
Mário de Andrade assinalar que o livro só termina quando o inútil da felicidade
começa, quando não são mais possíveis as peripécias do anti-herói, “guapo rapaz
que nasceu sob a égide da aventura e das proezas”.

Uma obra em folhetins


As Memórias de Manuel Antônio de Almeida, por terem sido publicadas es-
parsamente, apresentam algumas características que a tornam sui generis. O autor
pôde acompanhar o gosto dos leitores e, de certa forma, interferiu na composição
dos capítulos para agradá-los e mantê-los cativos. Quase todos os episódios são
nucleares, marcados por algum incidente motivador que, geralmente, é utilizado
como pretexto para dar maior colorido ao cenário. Assim, o leitor contempla um
Rio de Janeiro festivo, agitado, movimentado pelos tipos populares, cujas ações
personificam as funções que exercem. São eles: o barbeiro, a parteira, os ciganos,
o mestre de cerimônias, o toma-largura e a moça do caldo. Somente de relance é
possível perceber o que ocorre no Paço, através de figurantes como um fidalgo,
um oficial superior, dois clérigos e uma senhora rica. Resta lembrar que o único
personagem autenticamente histórico da obra é o major Vidigal, principal repre-
sentante da autoridade policial que serviu nas ruas de 1809 a 1824, quando, então,
se aposentou.
Deve-se ter em mente que “popular” de modo algum refere-se a pobreza:
nesse Rio retratado, não há carências, o dinheiro corre solto, as heranças são gran-
des, e os dotes, atraentes.
O estilo jornalístico é reforçado pela utilização de uma linguagem sem exa-
geros, rápida, leve e solta, aproximando-se da oralidade, inclusive pela quase, au-
sência de metáforas.

3 picaresco – o herói picaresco é característico de certo tipo de novela, comum na Espanha do século XVI.
Participa de episódios de aventuras, geralmente na pele de um criado ladino ou de um andarilho. Sagaz
observador, o pícaro registra as fraquezas, desfila casos e cria tipos, de modo a traçar uma visão de largo
espectro da época. Normalmente, suas peripécias apresentam uma velada crítica social e relatam com certa
fidelidade as camadas sociais mais populares. No entanto, o pícaro é velhaco, cínico e ladino, qualidades que
não se encaixam perfeitamente em Leonardo, que sempre angaria simpatias e protetores. Além do mais,
é o pícaro que usualmente narra, em primeira pessoa, suas aventuras, o que não ocorre com o volume de
Manuel Antônio de Almeida, narrado em terceira pessoa, com passagens na 1ª pessoa do plural.

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A travessia de um malandro
Filho de beliscões e pisadelas
Em um único capítulo o autor narra as origens do herói. Leonardo Pataca e
Maria da Hortaliça, ambos portugueses, vieram para o Brasil e conheceram-se no
navio. Leonardo assenta uma pisadela em Maria, que retribui com beliscões. Entre
beliscões e pisadelas, a mulher vê-se grávida. Já no Rio, foram morar juntos e nas-
ce, sete meses depois, um filho,
(...) formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esper-
neador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o pei-
to. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o
menino de quem falamos é o herói desta história.

O batizado de Leonardo
Ao completar sete anos, Leonardo é descrito como um menino travesso,
irrequieto e teimoso. Acresce que o pai, desconfiado da traição de Maria, trava
com ela uma enorme discussão, culminando com a fuga da amante. Algum tempo
depois, fica-se sabendo que Maria da Hortaliça retorna a Portugal em companhia
de um capitão de navio. Como o pai não assumiu o menino e a mãe o havia aban-
donado, o compadre de Leonardo Pataca, padrinho do herói, passa a educá-lo.
Barbeiro de profissão, com mais de cinquenta anos, solteiro e solitário, o
padrinho afeiçoa-se muito ao afilhado, a ponto de perdoá-lo sempre e até mesmo
contemporizar com benevolência as travessuras do moleque.
Não foram poucas as malandragens de Leonardo. Ele fugia, embrenhava-se
no meio de ciganos, atiçava os vizinhos, fazia enormes algazarras, desmanchava
procissões, enfim, fazia tudo o que era possível fazer para infernizar a vida dos ou-
tros. No entanto, era simpático, alegre e, por isso, facilmente perdoado.
Entra em cena a comadre, parteira de profissão e religiosa por convicção.
Ambos – padrinho e madrinha – desejavam um grande futuro para o moleque. Ele
queria fazer do afilhado um padre; ela, que aprendesse um ofício; mas o menino
não tinha vocação nem para padre nem para artista. A única coisa que fazia, e
muito bem, era vadiar.
Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padri-
nho queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artista me-
tendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula4 arranjando-o em algum cartório,
e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente
às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a
pior possível: nem foi para Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez
nenhuma destas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-
-mestre, vadio tipo.

4 rábula – advogado que usa de ardis e bravatas para enredar as questões.

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O padrinho desesperava com isso vinte vezes em cada dia por ver frustrado o seu belo
sonho, porém não se animava mais a contrariar o afilhado, e deixava-o ir à sua vontade.

Enquanto Leonardo vai crescendo e traquinando, o narrador focaliza o pai.


Após ser abandonado por Maria da Hortaliça, Leonardo Pataca chora por algum
tempo a ausência da amante, mas logo se consola nos braços de uma cigana. Não
contente, recorre à feitiçaria para poder conquistá-la e durante um ritual “místico”
é preso pelo major Vidigal, astuto e poderoso policial que a todos fazia tremer. Só
se livra da prisão graças à comadre, que resolve interceder junto a um tenente-co-
ronel, velho conhecido seu, cujo filho havia seduzido Maria, a mãe de nosso herói.
Quanto à cigana, ela era também amante de um clérigo, mestre de cerimô-
nia da Igreja da Sé. A vingança do enciumado e preterido Leonardo Pataca é consu-
mada quando, em uma briga na casa da cigana, o padre é apanhado pelo Vidigal.
Mais para frente, já idoso, Leonardo Pataca torna-se mais bonachão; apertara-se
em novos laços amorosos, desta vez com Chiquinha, filha da comadre. Amasiado,
torna-se pai de uma menina mansa e risonha, em tudo diferente do irmão.
Voltando à vida do herói, Dona Maria, louca por demandas, simpatiza com o
malandro. “Já se vê que o menino não era dos mais infelizes, pois que, se tinha ini-
migos, achava também protetores por toda parte.” Dona Maria recebe a tutela de
uma sobrinha, Luisinha, moça roceira que herdara cerca de mil cruzados. Por essa
época Leonardo já deixara as estripulias de criança. Quando o compadre visitava a
velha senhora, fato que ocorria com relativa frequência, Leonardo sempre o acom-
panhava “e fazia diabruras pela casa enquanto estava em idade disso, e depois
que lhe perdeu o gosto, sentava-se em um canto e dormia de aborrecimento”. No
entanto, nosso herói fica realmente perturbado ao conhecer Luisinha, uma moça
roceira, feiosa, em tudo diferente das heroínas românticas. A cena que se deu
quando Luisinha é apresentada aos dois é de profunda leveza e rara felicidade.
Depois de mais algumas palavras trocadas entre os dois, D. Maria chamou por sua so-
brinha, e esta apareceu. Leonardo lançou-lhe os olhos, e a custo conteve o riso. Era a sobrinha
de D. Maria já muito desenvolvida, porém que, tendo perdido as graças de menina, ainda não
tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no
peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o
cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabe-
ça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. Trajava
nesse dia um vestido de chita roxa muito comprido, quase sem roda, e de cintura muito curta;
tinha ao pescoço um lenço encarnado de Alcobaça.
Por mais que o compadre a questionasse, apenas murmurou algumas frases ininteli-
gíveis com voz rouca e sumida. Mal a deixaram livre, desapareceu sem olhar para ninguém.
Vendo-a ir-se, Leonardo tornou a rir-se interiormente.
Quando se retiraram, riu-se ele pelo caminho à sua vontade. O padrinho indagou a cau-
sa da sua hilaridade; respondeu-lhe que não se podia lembrar da menina sem rir-se.
– Então lembras-te dela muito a miúdo, porque muito a miúdo te ris.

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Leonardo viu que esta observação era verdadeira.
Durante alguns dias umas poucas de vezes falou na sobrinha da D. Maria; e apenas o
padrinho lhe anunciou que teriam de fazer a visita do costume, sem saber porque, pulou de
contente, e, ao contrário dos outros dias, foi o primeiro a vestir-se e dar-se por pronto.
Saíram e encaminharam-se para o seu destino.

O apaixonado Leonardo
E assim Leonardo se apaixona por Luisinha. Certo dia, quando iam, compa-
dre e afilhado, à visita costumeira a dona Maria, encontraram lá o senhor José Ma-
nuel, velhaco de quilate, “crônica viva, porém crônica escandalosa, não só de todos
os seus conhecidos e amigos, e das famílias destes, mas ainda dos conhecidos e
amigos dos seus amigos e conhecidos e de suas famílias”. Como
(...) D. Maria era, como dissemos, rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua so-
brinha: se morresse D. Maria, Luisinha ficaria arranjada, e como era muito criança e mostrava
ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que se achasse, como José
Manuel, em disponibilidade; este pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha. Quando
Leonardo, esclarecido pela sagacidade do padrinho, entrou no conhecimento destas coisas, ficou
fora de si, e a ideia mais pacífica que teve foi que podia mui bem, quando fosse visitar D. Maria,
munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho, e na primeira ocasião oportuna
fazer de um só golpe em dois o pescoço de José Manuel. Porém teve de aplacar-se e ceder às ad-
moestações do padrinho, que sabia de todos os seus sentimentos, e que os aprovava.

Enciumado com a concorrência, Leonardo resolve declarar, bastante sem


jeito, o seu amor.
Entrementes, arma-se um plano para desbancar José Manuel. A comadre,
como era excelente fofoqueira, soube de um caso em que o velhaco roubara a
bolsa de dinheiro de uma moça e foi logo, ao pé do ouvido, contar para dona
Maria. Assim, José Manuel cai no conceito da honesta velhota. Mas o pelintra não
se deixa vencer e continua a abeirar-se da jovem, ou melhor, do dinheiro dela,
com a ajuda de um mestre de rezas, um cego muito afamado como arranjador de
casamentos.
Enquanto isso, o padrinho morre, deixando considerável herança a Leonardo.
(...) tratou-se de resolver uma importante questão: para a companhia de quem iria o
Leonardo? A abertura do testamento feita nesse mesmo dia resolveu a questão. O compadre
havia instituído a Leonardo por seu universal herdeiro. A comadre informou de semelhante
coisa ao Leonardo Pataca, e este apresentou-se para tomar conta de seu filho. Não pareceu o
rapaz muito satisfeito com a graça: não sei como veio-lhe à ideia aquele terrível pontapé que o
fizera fugir de casa; além disso raríssimas vezes vira depois disso a seu pai, e estava completa-
mente desacostumado dele. Não havia porém outro remédio; foi preciso obedecer e acompa-
nhá-lo para casa, onde encontrou sua pequena irmã, e quem a pusera no mundo.

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Novas travessuras
Herdeiro de um “bom par de mil cruzados”, passou a viver em companhia do
pai, mas, em breve, começam as brigas entre Chiquinha e o enteado, culminando
com o pai correndo atrás do rapaz com um espadim em punho. Eis que, na fuga,
Leonardo encontra um colega de arruaças, ex-sacristão da Sé, com um bando de
amigos. Ao vê-lo apurado, o malandro convida-o a reunir-se ao grupo. Foi assim que
conheceu Vidinha, uma mulata de altura regular, dentes muito brancos, lábios gros-
sos e úmidos, excelente cantora de modinhas. Imediatamente, encantou Leonardo.
Quando o bando foi embora, Leonardo os acompanhou, hospedando-se
na casa de Vidinha, em companhia do amigo Tomás da Sé. Enquanto Leonardo se
envolve com Vidinha, José Manuel continua suas investidas para conquistar Luisi-
nha, tratando, primeiro, de desfazer a fofoca maldosa. A madrinha, não podendo
interceder em favor do afilhado, simplesmente retarda seus intentos. Preocupada
com o sumiço do rapaz, passa a procurá-lo, encontrando-o após uma briga dele
com um dos três primos de Vidinha. Confabularam a madrinha e as duas tias de
Vidinha, ajeitaram-se as coisas e Leonardo continuou lá. Certo dia, foram a um
piquenique e encontraram o major Vidigal, que prendeu o rapaz por vadiagem.
Uma série de episódios dão sequência às articulações do enredo: como
Leonardo havia abandonado Luisinha porque ficara encantado com a faceira Vidi-
nha, José Manuel encontra terreno livre para seus intentos e aproveita-se de uma
demanda para pedir a moça em casamento a dona Maria. Luisinha, sentindo-se
traída, desolada e sem amor, aceita o velhaco como marido:
Deixemos aos noivos o gozo tranquilo da sua lua de mel; deixemos D. Maria desfazer-se
em carinhos e conselhos à sua sobrinha, que os recebia indiferentemente, e em atenções para
com José Manuel, cuja cabeça se tinha tornado repentinamente uma aritmética completa,
toda algarismos, toda cálculos, toda multiplicações; e voltemos a saber o que foi feito do Leo-
nardo, a quem deixamos na ocasião em que fora arrancado pelo Vidigal dos braços do amor
e da folia.

Enquanto é levado à prisão, Leonardo medita e encontra uma oportunidade


de escapar, conseguindo retornar à casa de Vidinha. Na vida profissional de Vi-
digal, nunca malandro algum havia escapado de suas garras ou o desrespeitado
daquela maneira. O major passa, por isso, a caçá-lo, nutrindo desejos de vingança
pela humilhação sofrida e pelo escárnio com que os granadeiros o haviam tratado.
A comadre, para amainar a ira do major, arranja um emprego para o afilha-
do na ucharia5 real. Alguns incidentes acontecem. Primeiro, Leonardo começa a
encher de mantimentos a despensa de Vidinha, mantimentos esses roubados da
despensa real. Segundo, resolve ir à casa do toma-largura6 quando o homem lá
não estava, para entregar um “caldo” à mulher dele como pretexto para namorá-la;

5 ucharia – depósito de mantimentos, despensa.


6 toma-largura – talaveira, criado do Paço.

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no entanto o toma-largura chega no momento exato, surpreendendo os dois em
atitude suspeita. Leonardo é perseguido e precisa fugir. No outro dia, nosso herói é
despedido. O caso se espalha; Vidinha, enciumada e furiosa, vai tomar satisfações
com a moça do caldo e desfeitear o toma-largura. Acontece, porém, que o homem
gostou da mulata e passou a cortejá-la. Leonardo, que havia seguido a amante até
a porta da ucharia, não conseguiu entrar porque Vidigal enfim o apanhou, trans-
formando-o em granadeiro.
Satisfaçamos agora em poucas palavras a curiosidade que têm sem dúvida os leitores
de saber o como chegara o Leonardo à posição em que se achava. Agarrado pelo major na por-
ta da ucharia, como se sabe, fora por ele em pessoa conduzido a lugar seguro, donde só saíra
para sentar praça no Regimento Novo. Todos os batalhões que havia na cidade tinham uma
companhia de granadeiros, e havendo uma vaga na companhia do Regimento Novo, fora o
Leonardo escolhido para preenchê-la. Sabendo disto o major, reclamou-o para seu serviço
(porque era dessas companhias de granadeiros que se tiravam soldados para o serviço policial),
pois como homem experimentado naquelas coisas, pressentira que ele lhe seria um valioso au-
xiliar. Até um certo ponto o major não se enganou. Com efeito o Leonardo, sendo naturalmente
astuto, e então até ali vivido numa rica escola de vadiação e peraltismo, deveria conhecer todas
as manhas do ofício. Havia porém uma circunstância que o impedia de prestar bons serviços,
e era que com ele próprio, com suas próprias façanhas, tinha muitas vezes o major de gastar o
tempo que lhe era preciso para o demais. (...)

Um final feliz
As diabruras de Leonardo continuam, e tantas faz que acaba novamente
sendo levado à prisão, somente conseguindo a liberdade com a ajuda da madri-
nha, que desencavou uma antiga namorada do major, para poder interceder pelo
afilhado.
Acresce que José Manuel morre, Luisinha, viúva, reencontra Leonardo e
reatam o antigo namoro. Como Leonardo era sargento de linha, não podia se casar,
mas “podia ficar ele soldado e casar, dando baixa na tropa de linha, e passando-se
no mesmo posto para as Milícias”.
Em poucas linhas, o autor encerra a história com uma sequência rápida dos
fatos.
Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de Dona Maria, a
do Leonardo Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores,
fazendo aqui o ponto-final.

Considerações finais
Memórias de um sargento de milícias é um dos mais excêntricos romances
do século XIX, o primeiro na Literatura Brasileira a focalizar camadas populares
com cenas reais em que a narrativa escapa da visão rósea do Romantismo. As per-
sonagens são o que são, não idealizadas e, portanto, não são seres viventes em

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um mundo estandartizado, dividido entre o Bem e o Mal. Foi Manuel Antônio de
Almeida o escritor que insuflou gotas de humor, abandonou a sofisticação das
construções linguísticas, aproximando sua obra de um linguajar oral; descontraí-
do, em estilo de “conversa com o leitor”, tal como hoje fazem os cronistas de jornal.
E, principalmente, arquitetou o estilo “malandro” de ser, uma malandragem alegre,
versátil, inteligente, característica de certos tipos brasileiros, que, dialeticamente,
oscilam entre dois universos antagônicos, a ordem (o casamento, a religião, a milí-
cia) e a desordem (a vida desregrada, a corrupção da Igreja, as algazarras popula-
res). A propósito, vale lembrar que o crítico Antonio Candido, no ensaio “A dialética
da malandragem”, classifica a novela como um exemplar romântico, mas de um
Romantismo diferente dos padrões usuais.

Textos extraídos de:


Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo:
Núcleo, 2011.

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REALISMO

Memórias póstumas
de Brás Cubas
Machado de Assis

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Um divisor de águas
Em 1880, a Revista Brasileira publica, entre março e dezembro, os capítulos
do quinto romance de Machado de Assis. No ano seguinte, sai publicado, pela
Tipografia Nacional, Memórias póstumas de Brás Cubas. A obra é considerada a
divisora de águas não só da literatura brasileira – marcando o início da estética
realista – como também da literatura machadiana, pois estabelece a ruptura do
escritor com os padrões que o norteavam até então, muito embora já estivesse
esboçando modificações na visão de mundo e na técnica de escrever desde laiá
Garcia, volume de 1878.
Machado de Assis estabelece uma série de rupturas alicerçadas em dois
pontos fundamentais: ele quebra a linearidade da narrativa tradicional e desloca o
interesse do enredo para a personagem.
Ao optar por uma lógica independente da cronologia, o narrador permite
que o leitor faça com ele uma viagem descontínua através dos tempos, sem que
se perca o rumo dos acontecimentos, possibilitando a inserção de cuidadosas re-
flexões em qualquer um dos capítulos da obra, ou permitindo a condução dos
acontecimentos sem ficar à mercê da necessidade de encadear os assuntos um
após outro.
Porém, a grande ruptura ocorre na preferência do autor não pelo enredo,
mas pela caracterização das personagens, analisadas por meio de seus aspectos
comportamentais, isto é, por meio da postura que assumem diante dos aconteci-
mentos e da sociedade em que vivem. Essa caracterização psicológica constitui
uma das maiores contribuições de Machado para a literatura do Brasil.
É por meio da análise das personagens que o escritor documenta a sua
época e a sociedade em que vive, lembrando que Machado jamais revela outra
sociedade que não as camadas mais privilegiadas do Rio de Janeiro e só registra o
que pode captar pela observação. Brás Cubas, por exemplo, nasce em 1805, no Rio
de Janeiro, e aí morre em 1869. Em um compasso histórico são referidos aconteci-
mentos que se passam e evoluem a partir do Rio de D. João, da Independência, do
Primeiro Reinado, da Regência, do Segundo Reinado, dos partidos políticos, das
ideias liberais e conservadoras. Assim, o leitor conhece a necessidade que esse ho-
mem tem de adaptar-se à sua época e de sobressair nela para poder ter seu nome
na história. Por isso, se faz necessário perseguir o dinheiro e o poder, e buscar a
ascensão social. Embora a crítica feita pelo escritor seja ferrenha, Machado sabe
camuflá-la, permeando-a com aparente isenção e vazando-a com ironia e cinismo.
O julgamento que se pode fazer dos acontecimentos sai do leitor a partir de suas
posições morais e de valores defendidos.
A elite social detém o poder e o dinheiro. Em torno dela existem aqueles
que estão sob seu domínio: o escravo, como posse, e o pequeno capitalista, que
já surge no meio urbano. O Brasil retratado é essencialmente agrário e vive de

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exportar matérias-primas e importar manufaturados, desde tecidos e adornos até
revistas, livros e espetáculos culturais. Enfim, um país de contrastes.
Engana-se, porém, quem vê Machado de Assis circunscrito à sua época. Ele é
capaz de desenhar um homem universal, com suas dúvidas, suas excentricidades,
seu egoísmo, seu ceticismo, sua melancolia e suas necessidades. Um homem que
pode ser encontrado no transcorrer dos séculos, pois, na essência, ele é o mesmo.

O morto e o mundo
A obra é narrada em primeira pessoa, por um morto que oniscientemente
se propõe a analisar a si e aos outros.
Sabe-se que um romance em primeira pessoa é parcial e o leitor só conhece
a realidade sob a óptica do narrador-personagem. No entanto, pelo fato de ser um
romance retrospectivo e dada a posição do narrador-morto, observa-se a onis-
ciência, por exemplo, na referência aos pensamentos de personagens, bem como
na forma de manipulá-los a seu bel-prazer.
O primeiro interesse do leitor, só satisfeito integralmente no último capítu-
lo, é saber por que um morto resolve escrever suas memórias. Brás Cubas, durante
sua vida, demonstrando vaidade incomum, perseguiu a imortalidade. Segundo
ele, várias são as formas para atingi-la: por meio do casamento e dos filhos, por
meio da política ou por meio de contribuições científicas. Confessa que não foi
casado, não teve filhos, não foi político, e sua tentativa de registrar seu nome nos
anais da ciência havia morrido com ele – o emplasto. Corroído pelo pessimismo,
cético por excelência, Brás Cubas tenta articular uma vingança contra a sociedade
e, ao mesmo tempo, numa derradeira tentativa, procura imortalizar-se escrevendo
um livro póstumo.
Não há dúvida de que Brás Cubas é a encarnação de profundas mudan-
ças sofridas por Machado. Em 1878, receoso de estar sofrendo um mal incurável,
o autor faz um retiro em Friburgo. Provavelmente aí iniciou uma revisão de seus
valores morais e estéticos, os quais deixaria vir à tona, moldando-os na visão de
mundo de Brás Cubas.
O leitor, logo de início, encontra uma inesperada dedicatória: “ao verme que
primeiro roeu as frias carnes” de um cadáver. Em seguida vem a explicação: um
defunto-autor “para quem a campa foi outro berço”, para quem a morte significou
o início de uma nova atividade, a de escritor. Consciente da renovação iniciada, iro-
nicamente afirma que começar de forma diferente – do fim para o começo – dei-
xaria o “escrito mais galante e mais novo”, menos vulgar, menos romântico. Com
falsa humildade, parafraseando Stendhal1, conduz os “talvez cinco leitores” pelas
memórias marcadas pelo trinômio pessimismo-humor-ironia.

1 Stendhal – pseudônimo de Henry Beyle (1783-1852), romancista francês; escreveu O vermelho e o negro
e A cartuxa de Parma, suas obras mais famosas.

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Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que
admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez. Dez?
Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a for-
ma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de
pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa2 e a tinta da melancolia,
e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio3. Acresce que a gente grave achará no
livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu ro-
mance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas
colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um
prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de
um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que em-
preguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas
nimiamente4 extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo:
se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

O narrador relata seu enterro com a frieza do morto, sem deixar de confes-
sar, embora veladamente, que não passa de um fracasso. Basta verificar que ao seu
enterro compareceram onze pessoas, prova de sua insignificância, que ele procu-
rou minimizar alegando a falta de anúncio e o dia chuvoso, provas incontestáveis
de uma “mentira” para satisfazer a vaidade de seu ego.
Para não dar mais tempo à autopiedade e já com vistas nos passos futu-
ros, o narrador apresenta alguns de seus traços caracterizadores – “sessenta e
quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro e possuía cerca de trezentos contos” –
e introduz o tempo e o espaço – “mês de agosto de 1869” na “bela chácara de
Catumbi”, onde encontrou a morte. É no capítulo inicial que definitivamente rom-
pe com a visão idealizadora da personagem romântica, ao mostrar seu profundo
apego aos bens materiais, sobretudo ao dinheiro, que tudo paga e tudo compra,
inclusive a gratidão do “bom e fiel amigo” que, na derradeira homenagem, articula
um pomposo discurso, irmanando sentimento e natureza, numa crítica às efusões
sentimentais do Romantismo.
Duas são as preocupações do protagonista: a primeira é tornar a obra tanto
mais próxima da realidade quanto da veracidade dos acontecimentos, de modo a
envolver o leitor na verossimilhança; daí relatar com lucidez, precisão e lógica até
mesmo o delírio que antecedeu sua morte. A segunda, leva-o a desenhar sua ge-
nealogia, enaltecendo e valorizando uma ascendência certamente menos nobre
que endinheirada, mas ansiosa de tradição e notoriedade, reafirmando, ao leitor, o
profundo apego de Brás Cubas aos bens mundanos e à tradição.

2 galhofa – zombaria, brincadeira.


3 conúbio – aliança, ligação.
4 nimiamente – exageradamente.

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Mas é necessário estabelecer um fio narrativo e, depois de apresentar-se de-
funto, identificar-se como membro de uma sociedade viciada, colocar pitadas de
suspense em torno de alguns vultos que serão retomados mais adiante; volta-se,
num salto temporal, à infância para começar seu relato de forma quase cronoló-
gica. Recuperar e analisar as personagens que, de uma forma ou de outra, contri-
buíram para a formação de sua personalidade é a principal tarefa a que se impôs.
No entanto, antes de passar aos acontecimentos que marcaram sua vida,
em um capítulo denominado “O delírio” (capítulo VII), o narrador passa a revelar,
de forma plenamente lógica, as contradições e os pesadelos que advêm da con-
templação dos tempos, percorrendo, em uma viagem através dos séculos, do mais
longínquo passado ao mais distante futuro.
(...) Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças
todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição
recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do
homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação
nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu
ali via era a condensação viva de todos os tempos. (...)

Nesse capítulo, o narrador conversa com Pandora5, em um diálogo cujo con-


teúdo estará na base da construção narrativa e de uma alegoria da humanidade; a
força e a indiferença de sua fala, a vontade de viver e a ânsia de poder constituem
a essência do homem.
(...) Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de
algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
– Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma
gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um
longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
– Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se
afirma. Vives: não quero outro flagelo.
– Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da exis-
tência.
– Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás
ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensan-
deceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres
viver.

5 Pandora – na mitologia clássica, é a primeira mulher, e seu nome significa “aquela que tem todos os
dons”. Cada deus lhe atribuiu um dom, mas Zeus destinou-a à punição da raça humana. Enviou Pandora a
Epimeteu, mandando-lhe de presente um vaso tampado. Assim que chegou à terra, Pandora, movida por
imensa curiosidade, destampou o vaso, libertando os males que ali estavam aprisionados e eles se espalha-
ram pela humanidade. Só restou no fundo do vaso a esperança, que não conseguiu sair a tempo, pois logo
Pandora repôs a tampa em seu lugar. Assim, os homens ficaram condenados a sofrer eternamente todos os
tipos de males.

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No capítulo IX, “Transição”, o narrador dá um salto e retorna à infância, ini-
ciando a exposição quase linear dos acontecimentos, mas não se esquecendo das
digressões e reflexões dos mais diferentes tipos, tanto filosóficas quanto psicoló-
gicas.
E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro.
Vejam: o meu delírio começou em presença de Virgília; Virgília foi o meu grão-pecado da ju-
ventude; não há juventude sem meninice; meninice supõe nascimento; e eis aqui como chega-
mos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram? Nenhuma juntura
aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada. De modo que o livro fica assim
com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto
de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem
suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira,
nem do inspetor de quarteirão. É como a eloquência, que há uma genuína e vibrante, de uma
arte natural e feiticeira, e outra tesa, engomada e chocha. Vamos ao dia 20 de outubro.

A partir daí, a narrativa começa a ter uma certa ordem cronológica. Menino
bem-nascido, Brás Cubas é criado cheio de mimos e momos. O narrador salta os
tempos escolares e passa à adolescência, relatando seu caso amoroso com a es-
panhola Marcela, prostituta sem pudores que representa outra grande quebra em
relação a modelos românticos.
(...) Era boa moça, lépida6, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tem-
po, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas7; luxuosa, impa-
ciente, amiga de dinheiro e de rapazes.

Encontram-se pela primeira vez logo após a Independência. Contava ele


17 anos. Mas o pai, percebendo os gastos do rapaz com o namoro, resolve mandá-
-lo estudar na Europa e, dessa forma, esquecer Marcela. O resumo da relação amo-
rosa está em uma das mais célebres passagens da obra:
... Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.

Retorna por ocasião da morte da mãe. Ainda abalado, passa a viver em retiro.
Quem o tira desse estado de apatia é o pai, ao lhe propor o casamento com Virgí-
lia, filha do Conselheiro Dutra, homem de grande influência política. Aceitando o
casamento, junto viria a Câmara dos Deputados. Antes, porém, de retornar à vida
na Corte, Brás Cubas enamora-se da filha de D. Eusébia:
(...) Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa!

Chamava-se Eugênia, que ironicamente significa “bem-nascida”. Por precon-


ceito, foge da moça e volta à cidade. Finalmente, vai à casa do Conselheiro Dutra.

6 lépida – ágil, esperta.


7 estouvamentos e berlindas – atitudes e comportamentos reprováveis.

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(...) Era uma pérola esse homem, risonho, jovial, patriota, um pouco irritado com os ma-
les públicos, mas não desesperando de os curar depressa. Achou que a minha candidatura era
legítima; convinha, porém, esperar alguns meses. E logo me apresentou à mulher, – uma esti-
mável senhora, – e à filha, que não desmentiu em nada o panegírico8 de meu pai. (...)
Depois de um mês, ele e Virgília estavam íntimos. Enquanto isso, faz um pa-
rênteses e conta que certo dia, entrando em uma loja, reencontra Marcela, com o
rosto amarelo e bexiguento, que nada lembrava a beleza e a opulência de outrora.
Retorna ao namoro com Virgília para narrar algo surpreendente, em um capítulo
saboroso em que compara metaforicamente a audácia da águia com a beleza do
pavão.
Então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais esbelto que eu, nem mais
elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me arrebatou Virgília e a can-
didatura, dentro de poucas semanas, com um ímpeto verdadeiramente cesariano. Não prece-
deu nenhum despeito; não houve a menor violência de família. Dutra veio dizer-me, um dia,
que esperasse outra aragem, porque a candidatura de Lobo Neves era apoiada por grandes
influências. Cedi; tal foi o começo da minha derrota. Uma semana depois, Virgília perguntou
ao Lobo Neves, a sorrir, quando seria ele ministro.
– Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.
Virgília replicou:
– Promete que algum dia me fará baronesa?
– Marquesa, porque eu serei marquês.
Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, dei-
xando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez
cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer coisa nenhuma. O lábio do homem não é
como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário.
Morre-lhe o pai, seguem-se a partilha da herança, discussões com a irmã
(Sabina) e o cunhado (Cotrim). Começa a viver reclusamente:
(...) indo de longe em longe a algum baile, ou teatro, ou palestra, mas a maior parte
do tempo passei-a comigo mesmo. Vivia; deixava-me ir ao curso e recurso dos sucessos e dos
dias, ora buliçoso9, ora apático, entre a ambição e o desânimo. Escrevia política e fazia literatu-
ra. Mandava artigos e versos para as folhas públicas, e cheguei a alcançar certa reputação de
polemista e de poeta. Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília,
futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor mar-
quês do que o Lobo Neves, – eu, que valia mais, muito mais do que ele, – e dizia isto a olhar para
a ponta do nariz…
Após permanecer algum tempo fora do Rio, Virgília volta. Os dois se reen-
contram em um baile:
(...) em casa de uma senhora, que ornara os salões do primeiro reinado, e não desornava
então os do segundo, a aproximação foi maior e mais longa, porque conversamos e valsamos.

8 panegírico – elogio.
9 buliçoso – agitado, ativo, esperto.

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A valsa é uma deliciosa coisa. Valsamos; não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele
corpo flexível e magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado.

Cerca de três semanas depois, Brás Cubas recebe um convite de Lobo Ne-
ves, marido de Virgília, para uma reunião íntima. O reencontro com a antiga na-
morada foi promissor: desta vez os dois valsam novamente, mas com apertos de
mãos e abraços mais fortes. Brota em ambos uma profunda atração, o que faz Brás
Cubas cogitar:
Mas, com a breca! quem me explicará a razão desta diferença? Um dia vimo-nos, tra-
tamos o casamento, desfizemo-lo e separamo-nos, a frio, sem dor, porque não houvera paixão
nenhuma; mordeu-me apenas algum despeito e nada mais. Correm anos, torno a vê-la, damos
três ou quatro giros de valsa, e eis-nos a amar um ao outro com delírio. A beleza de Virgília
chegara, é certo, a um alto grau de apuro, mas nós éramos substancialmente os mesmos, e eu,
à minha parte, não me tornara mais bonito nem mais elegante. Quem me explicará a razão
dessa diferença?
Engatilhado o caso amoroso, o adultério é consumado em um capítulo extre-
mamente sugestivo, denominado “O velho diálogo de Adão e Eva”, feito com ponti-
nhos. A partir daí, Brás Cubas põe-se a narrar o encontro com Quincas Borba. Anti-
go colega de escola, vive uma vida de misérias e privações. É pedinte de rua, mora
no terceiro degrau das escadas de São Francisco e furta o relógio de Brás Cubas.
Enquanto pobre, o narrador faz questão de mantê-lo à distância, esquecendo-se
do caso, desviando o pensamento para outras coisas, demonstrando o seu descaso
pela miséria humana. Somente depois, Brás Cubas aproximou-se de Quincas Borba.
Adiante, o narrador começa a encontrar problemas no relacionamento com
a amante. Virgília acredita que o marido desconfia de alguma coisa, pois já não a
trata da mesma maneira. Brás Cubas tenta convencê-la a fugir, para qualquer parte
do mundo onde pudessem viver em paz, mas a moça recusa-se. Propõe então que
aluguem uma casa, convidando, para tomar conta dela e encobrir os encontros,
uma antiga criada de Virgília, D. Plácida, que inicialmente rejeita a ideia de servir
ao casal, mas, ao cabo de seis meses, alivia a consciência com algumas histórias
patéticas inventadas por Brás Cubas. Este não lhe é ingrato e lhe oferta cinco con-
tos de réis (quantia que encontrara perdida em uma praia deserta). Os amantes
vivem tranquilos por alguns meses. Só têm a felicidade abalada com a notícia de
que Lobo Neves seria nomeado presidente de província. Brás Cubas pensa que o
caso está chegando ao final, mas Lobo Neves necessita de um secretário e o con-
vida para o cargo. Quem o dissuade é o cunhado Cotrim, alegando que a viagem
é perigosa, pois todos sabem das suas ligações adúlteras. No entanto, Lobo Neves,
supersticioso, recusa a nomeação, pois o decreto trazia a data de 13. Sucedem-se
episódios importantes, como uma carta anônima denunciando as intimidades de
Brás Cubas, a gravidez de Virgília e a profunda decepção do narrador com o aborto
daquele que teria sido seu filho; e, finalmente, uma carta surpreendente de Quin-
cas Borba, herdeiro de grande fortuna de um parente mineiro de Barbacena.

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Uma carta extraordinária
Por esse tempo recebi uma carta extraordinária, acompanhada de um objeto não me-
nos extraordinário. Eis o que a carta dizia:
“Meu caro Brás Cubas,
Há tempos, no Passeio Público, tomei-lhe de empréstimo um relógio. Tenho a satisfa-
ção de restituir-lho com esta carta. A diferença é que não é o mesmo, porém outro, não digo
superior, mas igual ao primeiro. Que voulez-vous, monseigneur? – como dizia Fígaro, – c’est
la misère10. Muitas coisas se deram depois do nosso encontro; irei contá-las pelo miúdo, se me
não fechar a porta. Saiba que já não trago aquelas botas caducas, nem envergo uma famo-
sa sobrecasaca cujas abas se perdiam na noite dos tempos. Cedi o meu degrau da escada de
S. Francisco; finalmente, almoço.
Dito isto, peço licença para ir um dia destes expor-lhe um trabalho, fruto de longo estu-
do, um novo sistema de filosofia, que não só explica e descreve a origem e a consumação das
coisas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon11 e Sêneca12, cujo estoicismo era um
verdadeiro brinco de crianças ao pé da minha receita moral. É singularmente espantoso esse
meu sistema; retifica o espírito humano, suprime a dor, assegura a felicidade, e enche de imen-
sa glória o nosso país. Chamo-lhe Humanitismo, de Humanitas, princípio das coisas. Minha
primeira ideia revelava uma grande enfatuação13; era chamar-lhe borbismo, de Borba; deno-
minação vaidosa, além de rude e molesta. E com certeza exprimia menos. Verá, meu caro Brás
Cubas, verá que é deveras um monumento; e se alguma coisa há que possa fazer-me esquecer
as amarguras da vida, é o gosto de haver enfim apanhado a verdade e a felicidade. Ei-las na
minha mão, essas duas esquivas; após tantos séculos de lutas, pesquisas, descobertas, sistemas
e quedas, ei-las nas mãos do homem. Até breve, meu caro Brás Cubas. Saudades do
Velho amigo
Joaquim Borba dos Santos.”
Li esta carta sem entendê-la. Vinha com ela uma boceta contendo um bonito relógio
com as minhas iniciais gravadas, e esta frase: Lembrança do velho Quincas. Voltei à carta, reli-a
com pausa, com atenção. A restituição do relógio excluía toda a ideia de burla; a lucidez, a
serenidade, a convicção, – um pouco jactanciosa14, é certo, – pareciam excluir a suspeita de
insensatez. Naturalmente o Quincas Borba herdara de algum dos seus parentes de Minas, e a
abastança devolvera-lhe a primitiva dignidade. Não digo tanto; há coisas que se não podem
reaver integralmente; mas enfim a regeneração não era impossível. Guardei a carta e o relógio,
e esperei a filosofia.

10 Que voulez-vous, monseigneur? c’est la misère – “O que vós quereis, senhor? é a miséria”. Fígaro, perso-
nagem criado pelo teatrólogo francês Beaumarchais (1732-1799), é um humilde barbeiro que tudo faz para
sobreviver.
11 Zenon – Zenon de Cício (c. 335-263 a.C.), filósofo grego, fundador do estoicismo. A virtude era, para
ele, a meta final da vida; dor e prazer não possuíam nenhuma importância: diante deles, o homem deveria
permanecer impassível.
12 Sêneca – Lucius Annaeus Seneca (c. 4 a.C.-65), filósofo, escritor e político romano, grande entusiasta e
divulgador do estoicismo.
13 enfatuação – soberba, vaidade.
14 jactanciosa – arrogante.

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Cotrim e Sabina armam o casamento de Brás Cubas com uma parenta afas-
tada, recém-chegada à corte:
(...) uma D. Eulália, ou mais familiarmente Nhã-loló, moça graciosa, um tanto acanha-
da a princípio, mas só a princípio. Faltava-lhe elegância, mas compensava-a com os olhos, que
eram soberbos e só tinham o defeito de se não arrancarem de mim, exceto quando desciam ao
prato; mas Nhã-loló comia tão pouco, que quase não olhava para o prato. (...)

Brás Cubas esquiva-se, mas torna a encontrar Virgília:


(...) Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensação dupla e indefiní-
vel. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal15, l’ange et la bête, com a diferença que
o jansenista não admitia a simultaneidade das duas naturezas, ao passo que elas aí estavam
bem juntinhas, – l’ange, que dizia algumas coisas do céu, – e la bête, que…

Entrementes três coisas acontecem. A primeira é a suspeita (praticamente


certeza) do adultério por parte de Lobo Neves. Ele vai à casa de D. Plácida e quase
pega os amantes em delito. A segunda é o reaparecimento de Quincas Borba, que
veio ter com Brás Cubas, a fim de expor sua teoria filosófica. A terceira é a nova
nomeação de Lobo Neves para presidente de província. Brás Cubas agarra-se à
esperança de outra recusa.
(...) se o decreto viesse outra vez datado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta sim-
ples transposição de algarismos eliminou deles a substância diabólica. Que profundas que são
as molas da vida!

Virgília parte com o marido. No capítulo CXV, Brás Cubas mostra a “dor” da
separação e analisa com muita propriedade a forma de encarar o amor de uma
personagem realista, distanciando-se do fatalismo romântico.
Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor nem prazer,
uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. Não se irrite o leitor com
esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande
desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria bio-
gráfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as
lembranças da minha aventura, e ao estômago com os acepipes16 de M. Prudhon...

Inicialmente, Brás Cubas sente o gosto da viuvez, mas duas forças o compe-
lem a voltar à vida agitada de costume. Uma – Sabina – que com empenho arma-
va o casamento do irmão com Nhã-loló. Outra – Quincas Borba – que finalmente
expõe ao narrador a teoria do Humanitismo, sistema filosófico criado por ele e
destinado a substituir todos os demais, cujos fundamentos estão transcritos no
capítulo CXVII.

15 Pascal – Blaise Pascal (1623-1662), matemático, físico, teólogo e escritor francês. Inventou, em 1647, a
máquina de calcular; como escritor, tornou-se célebre com a obra Pensamentos, publicada postumamente
em 1669.
16 acepipes – petiscos.

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Entre o queijo e o café, demonstrou-me Quincas Borba que o seu sistema era a destrui-
ção da dor. A dor, segundo o Humanitismo, é uma pura ilusão. Quando a criança é ameaçada
por um pau, antes mesmo de ter sido espancada, fecha os olhos e treme; essa predisposição é
que constitui a base da ilusão humana, herdada e transmitida. Não basta certamente a ado-
ção do sistema para acabar logo com a dor, mas é indispensável; o resto é a natural evolução
das coisas. Uma vez que o homem se compenetre bem de que ele é o próprio Humanitas, não
tem mais do que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação
dolorosa. A evolução, porém, é tão profunda, que mal se lhe podem assinar alguns milhares de
anos.
Quincas Borba leu-me daí a dias a sua grande obra. Eram quatro volumes manuscritos,
de cem páginas cada um, com letra miúda e citações latinas. O último volume compunha-se de
um tratado político, fundado no Humanitismo; era talvez a parte mais enfadonha do sistema,
posto que concebida com um formidável rigor de lógica. Reorganizada a sociedade pelo mé-
todo dele, nem por isso ficavam eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a facada
anônima, a miséria, a fome, as doenças; mas sendo esses supostos flagelos verdadeiros equívo-
cos do entendimento, porque não passariam de movimentos externos da substância interior,
destinados a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia universal,
claro estava que a sua existência não impediria a felicidade humana. Mas ainda quando tais
flagelos (o que era radicalmente falso) correspondessem no futuro à concepção acanhada de
antigos tempos, nem por isso ficava destruído o sistema, e por dois motivos: 1º porque sendo
Humanitas a substância criadora e absoluta, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do
mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende; 2º porque, ainda assim, não diminuiria
o poder espiritual do homem sobre a terra, inventada unicamente para seu recreio dele, como
as estrelas, as brisas, as tâmaras e o ruibarbo. Pangloss17, dizia-me ele ao fechar o livro, não era
tão tolo como o pintou Voltaire.

Aos quarenta anos surge a possibilidade de casamento com Nhã-loló. Re-


solve o narrador procurar o cunhado, para expor-lhe seu desejo matrimonial, prin-
cipalmente por amar a harmonia familiar. Mas não chega a se casar, pois a jovem
morre aos dezenove anos de idade.
(...) Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada
da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até o último jazigo, e me
despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse deveras.
(...) não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda daquela morte.
Creio até que esta me pareceu ainda mais absurda que todas as outras mortes. Quincas Borba,
porém, explicou-me que epidemias eram úteis à espécie, embora desastrosas para uma certa
porção de indivíduos; fez-me notar que, por mais horrendo que fosse o espetáculo, havia uma
vantagem de muito peso: a sobrevivência do maior número. Chegou a perguntar-me se, no
meio do luto geral, não sentia eu algum secreto encanto em ter escapado às garras da peste;
mas esta pergunta era tão insensata, que ficou sem resposta.

17 Pangloss – personagem de Cândido, romance satírico de Voltaire, pseudônimo de François-Marie


Arouet, escritor francês (1694-1778). Pangloss é um otimista inveterado, para quem tudo está pelo melhor,
no melhor dos mundos possíveis.

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Brás Cubas, aos cinquenta anos, reencontra Virgília. Foi num baile em 1855.
(...) Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de
ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava
formosa, de uma formosura outoniça, realçada pela noite. Lembra-me que falamos muito, sem
aludir a coisa nenhuma do passado. Subentendia-se tudo. Um dito remoto, vago, ou então um
olhar, e mais nada. Pouco depois retirou-se; eu fui vê-la descer as escadas, e não sei por que
fenômeno de ventriloquismo cerebral (perdoem-me os filósofos essa frase bárbara) murmurei
comigo esta palavra profundamente retrospectiva:
– Magnífica!
Mais uma vez Brás Cubas tenta a carreira política, mas ela novamente lhe
escapa. Não consegue ser ministro. Por esta altura, recebe um bilhete de Virgília,
pedindo-lhe para socorrer D. Plácida, que estava muito mal. Ela havia perdido todo
o dinheiro que lhe dera Brás Cubas. Um carteiro, fingindo-se enamorado, casara-
-se com ela; no final de alguns meses, inventou um negócio e fugiu com todas as
posses da mulher. Brás Cubas dá-lhe algum dinheiro e a interna na Misericórdia,
onde ela morre uma semana depois.
Quincas Borba ainda não publicara seu livro contendo a teoria filosófica do
Humanitismo. A aplicação política da teoria seria a base de um programa jornalís-
tico assinado por Brás Cubas. Publicado o jornal oposicionista:
(...) Vinte e quatro horas depois, aparecia em outros uma declaração do Cotrim, dizen-
do, em substância, que “posto não militasse em nenhum dos partidos em que se dividia a pá-
tria, achava conveniente deixar bem claro que não tinha influência nem parte direta ou indire-
ta na folha de seu cunhado, o Dr. Brás Cubas, cujas ideias e procedimento político inteiramente
reprovava. O atual ministério (como aliás qualquer outro composto de iguais capacidades)
parecia-lhe destinado a promover a felicidade pública”.

As relações do narrador com os parentes, que até então foram amistosas,


acabam rompidas. Mas o jornal de Brás Cubas morre; morre também Lobo Neves:
(...) com o pé na escada ministerial. Correu, ao menos durante algumas semanas, que
ele ia ser ministro; e pois que o boato me encheu de muita irritação e inveja, não é impossível
que a notícia da morte me deixasse alguma tranquilidade, alívio, e um ou dois minutos de pra-
zer. Prazer é muito, mas é verdade; juro aos séculos que é a pura verdade.
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília, ao pé do féretro, a soluçar. Quando le-
vantou a cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enterro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram
tirá-la e levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério;
e, para dizer tudo, não tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na
consciência. (...)
Seguem-se a reconciliação com o cunhado e o reencontro com Marcela,
que o narrador viu morrer pobremente; ainda mais deprimente foi constatar a mi-
séria em que vivia Eugênia “tão coxa como a deixara, e ainda mais triste”.

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Brás Cubas testemunha a semidemência e a morte do filósofo Quincas Bor-
ba, para finalmente narrar, com pessimismo e melancolia, seu último capítulo, em
que, de negativas, consegue extrair um saldo positivo no balanço de sua própria
vida.
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira
parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo,
por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os ho-
mens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso
determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não
fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, cou-
be-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte
de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qual-
quer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite
com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um
pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Considerações finais
Ao final de seu último capítulo, Brás Cubas melancolicamente chega a um
saldo positivo para sua vida: não teve filhos. Por que não quis transmitir o legado
da miséria humana?
Desde que Pandora anunciou que a humanidade era governada pelas leis
do egoísmo e da autopreservação, o discurso da personagem-narrador de Memó-
rias póstumas de Brás Cubas tenta provar com lucidez que a vida humana se esvai
em cada trecho percorrido, massacrada pelas veleidades.
O que se leva ao outro lado do mistério? Somente reflexões marcadas pelo
ceticismo irônico e pessimismo melancólico que perpassam as falsidades das rela-
ções humanas, marcadas pelas traições e valores relativamente frágeis; enfim, um
legado nada digno de orgulho.

Textos extraídos de:


Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Núcleo, 2012.

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NATURALISMO

O cortiço
Aluísio Azevedo

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Sob a ótica do Realismo
Os movimentos realista e naturalista chegaram ao Brasil com relativo atraso,
deixando suas marcas em nossa literatura somente a partir da década de 1880.
Na Europa, o Romantismo há muito havia deixado lugar para as ideias novas.
Divulgadas a partir de 1850, tais ideias eram voltadas para o estudo e a compreen-
são da filosofia positivista de Auguste Comte1, para entendimento e aplicação das
teorias da seleção natural e das influências exercidas pelo meio na formação do
indivíduo, conforme as teorias de Darwin2 e de Taine3. Começaram a ser pensadas
e divulgadas as doutrinas sociais que procuravam explicar o comportamento e a
situação das populações de camadas menos privilegiadas que se formavam nas
cidades e que cresciam em ritmo acelerado, devido ao grande surto industrial,
ao mesmo tempo em que se questionavam conceitos como justiça, classe social,
economia, entre outros temas.
Não que a pobreza estivesse aumentando substancialmente e a situação
fosse muito pior que no passado. O que se configurava era uma nova realidade ur-
bana até então desconhecida. Ao invés de se espalharem pelos campos, os pobres
e miseráveis aglomeravam-se nas cidades, produzindo um efeito de proximidade
quase desconhecido dos meios intelectuais.
O Romantismo idealizara o campo por estar distante dele; acreditara na
natureza, contemplando-a e fazendo dela a confidente de suas convulsões senti-
mentais. Também propusera temas voltados para o social, acusando governos de
práticas políticas indesejáveis, mas associando ao proselitismo político soluções
fáceis e rápidas, de modo a não melindrar o público leitor e manter a auréola de
perfeição que os românticos almejavam.
A realidade que agora se afigura é por demais forte para um escritor con-
templá-la com a mesma idealização romântica. Pela proximidade das transforma-
ções, urgia uma nova postura, mais áspera, mais direta, que criticava o que havia
para ser criticado. A realidade é para ser vista de frente e ser denunciada em toda
sua extensão.
Em 1857, espelhando o confronto moral entre dois mundos – o romântico e
o realista – foi publicado, na França, Madame Bovary, o marco realista de Flaubert4.

1 Auguste Comte – Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (1798-1857). Nasceu em Montpellier, na
França, e aos 16 anos já ingressava na Escola Politécnica de Paris. Fundador do positivismo, escola filosófica
de larga influência no Brasil.
2 Darwin – Charles Robert Darwin (1809-1882), célebre naturalista inglês. Fez parte de uma expedição às
costas da América do Sul (1831-1836), reunindo os primeiros materiais da sua obra Da origem das espécies
por via da seleção natural (1859).
3 Taine – Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893). Escritor, crítico e filósofo francês. Foi o mais expressivo teó-
rico do Naturalismo, influenciando de forma decisiva no desenvolvimento de toda a literatura de sua época.
4 Flaubert – Gustave Flaubert (1821-1880). Um dos maiores nomes da literatura francesa, artista de rara
perfeição técnica, caracterizado pela escolha da palavra exata que melhor traduzisse seu pensamento. Re-
tratista de costumes, em sua obra mais difundida, Madame Bovary, traça um perfil fiel da vida burguesa.

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No Brasil, José de Alencar levava ao público neste mesmo ano O guarani, concebi-
do dentro dos padrões mais fiéis do Romantismo, que ainda tinha longo caminho
a percorrer entre os leitores brasileiros. Foram necessárias mais de duas décadas
para as novas concepções chegarem ao Brasil, assim mesmo, via Portugal.
Causando impacto em boa parte do meio intelectual brasileiro, fascinado
pela prosa vigorosa, o estilo insinuante e a moral desgarrada, finalmente chegam
ao Brasil os romances de Eça de Queirós. Lembremos que O crime do padre Amaro
é de 1876 e O primo Basílio é de 1878. Se as obras exportadas do além-Atlântico
estarreceram os pacatos leitores da antiga colônia, é certo que também deixaram
admiradores e discípulos e, dentre eles, o mais ilustre é sem dúvida Aluísio Azeve-
do. O escritor maranhense, de um só fôlego, redige e publica em 1881 O mulato,
balanceando características da nova estética com os remanescentes da escola an-
terior. Essa obra constituiu uma verdadeira bomba de efeito destruidor, detona-
da em meio a uma comunidade que se viu retratada em boa parte das cenas de
denúncia à sociedade e ao clero.
Foram tantas as críticas, foram tão pujantes os ataques, que incompatibi-
lizaram o autor com sua terra natal. Para prosseguir em suas andanças literárias,
Aluísio Azevedo precisou renunciar ao Maranhão, seguindo para o Rio de Janeiro,
a convite do irmão Artur Azevedo. O Naturalismo ganhava seu primeiro grande
seguidor entre nós.
Não se deve esquecer que, no mesmo ano de O mulato, Machado de Assis
publicava Memórias póstumas de Brás Cubas, revigorando a prosa de ficção brasi-
leira e marcando o início do chamado Realismo. Entre nós, as duas correntes estão
muito próximas temporal e tematicamente.
Voltemos a Aluísio. Já no Rio, pretendendo estudar as características da vida
urbana então em plena expansão, redigiu seu segundo grande romance, publica-
do em folhetins em 1883. Casa de pensão nasceu da excelência do observador, que
se sentia deslumbrado por populações, e procurava captar a psicologia social e
não a individual. Ao se voltar para o trabalho da vida em coletividade, Aluísio Aze-
vedo iniciava uma linha até então desconhecida do romance brasileiro – o roman-
ce social. Nas vidas que se cruzam em Casa de pensão, o romancista tornou muito
reais e brasileiros os conglomerados humanos. Estavam abertos os caminhos para
O cortiço, o melhor de seus romances, que veio a público em 1890. Nesse intervalo,
o autor procurou manter vivo o ideal de sobreviver com literatura. Escreveu pro-
dução folhetinesca com que pretendia angariar as simpatias do público.

Subterrâneos da sociedade
Para produzir O cortiço, Aluísio Azevedo ateve-se à observação de dois am-
bientes: a habitação coletiva e o sobrado, representando do baixo para o alto os
extremos sociais do Rio de Janeiro do século XIX. A apresentação desses dois am-

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bientes nasce no primeiro capítulo e vai ganhando corpo até dominar quase todas
as situações. O cortiço – representado pela linha horizontal – tem vida própria e
seu colorido confunde-se com o personagem João Romão, tornando-se o ponto
culminante da obra, daí ser o título escolhido pelo autor. Por outro lado, o sobra-
do – espelhado na linha vertical – torna-se um monumento, símbolo do ápice, ou
seja, do ponto aonde se quer chegar.
João Romão não saía nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a
sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o ban-
co. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas
braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo,
de construir três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de
pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco fora de horas,
junto com a amiga, furtava à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material
das casas em obra que havia por ali perto.
Esses furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso,
graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas al-
turas. João Romão observava durante o dia quais as obras em que ficava material para o dia
seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sa-
cos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor.
Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcateia ao lado
do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então
o companheiro, carregado por sua vez.
Nada lhe escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco
ou a ferramenta dos marceneiros.
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto
de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistan-
do todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquista-
va, reproduziam-se os quartos e o número de moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a
ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca dei-
xando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando
por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando
cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais
a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela
pedreira, que ele todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, con-
templava de longe com um resignado olhar de cobiça.
Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e paralelepípedos,
e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que, dentro de ano e meio, arrematava
já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças
de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnífico para construir.
Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da

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venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; e de sorte que todo o flanco esquerdo
do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove
janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do
Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mu-
dar-se-ia ele para lá com a família, pois que a mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e com
fumaças de nobreza, já não podia suportar a residência no centro da cidade, como também
sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar
corpo.
O conjunto da obra nasce do resultado de ações intercambiadas de perso-
nagens que habitam o cortiço, isto é, da movimentação de todo esse ambiente
que surge nas linhas do volume, em contraste e em confronto com seu abastado
vizinho. Enquanto a narrativa caminha, o cortiço se antropomorfiza.
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua
infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo.

Transforma-se em um corpo maciço, capaz de enfrentar com vida as mais


diversas situações, ao mesmo tempo em que retrata a influência do meio mode-
lando o homem. Nesse ponto, são nítidos os passos que norteiam o escritor – Aluí-
sio Azevedo deixa-se levar pelos preceitos da estética naturalista, em que todos,
sem exceção, sofrem transformações físicas e morais contaminadas pelo meio em
que imperam a falta de travas morais e a depravação.
Verifica-se uma lenta metamorfose que transforma homens em animais ao
longo da obra, processo conhecido como zoomorfização:
(...) depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto
na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
(...) Leandra, por alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e
grossos, anca de animal do campo.
Rita Baiana (...) uma cadela no cio.
Até mesmo o cortiço, quase humanamente, reveste-se de novas cores e me-
lhor clientela social, numa trajetória proporcionalmente inversa à deterioração de
ambientes semelhantes, como a do cortiço “Cabeça de Gato” – àqueles que não
conseguem se manter, resta a degradação maior de cair em cortiços cada vez mais
miseráveis. Ao mudar suas feições, o ambiente somente confirma a mudança de
status de seu dono, que, depois de derramar sangue, suor e lágrimas, atinge, en-
fim, o ápice social.
E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade não falta-
va de todo o pão, porque já ninguém confiava roupa à desgraçada, e nem ela podia dar conta
de qualquer trabalho.
Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos. Coitada! já não causava dó, causava
repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os últimos vestígios do brio; vivia andrajosa, sem ne-
nhum trato e sempre ébria, dessa embriaguez sombria e mórbida que se não dissipa nunca.

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O seu quarto era o mais imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam
dela, muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsciência da infeliz. Agora,
o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava todas as manhãs apatetada,
muito triste, sem ânimo para viver esse dia, mas era só correr à garrafa e voltavam-lhe as risa-
das frouxas, de boca que já se não governa. Um empregado de João Romão, que ultimamente
fazia as vezes dele na estalagem, por três vezes a enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe dessem
alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao último em que Pombinha
apareceu por lá com Léonie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na rua.
E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no “Cabeça de Gato” que, à pro-
porção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-
-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o
outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro
tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo
por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de
larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso
de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma
podridão.
João Romão gradativamente torna-se o dono do terreno, dos barracos, de
uma pedreira e de uma venda. Em tudo – física e moralmente – ele está identifi-
cado ao cortiço. Ele não hesita em falsificar, roubar, explorar. No entanto, como
todos os outros habitantes, trabalha de sol a sol. O que o diferencia do restante é a
mesquinhez, a avareza e a avidez por poder.
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos,
fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar
os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que,
por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do
que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos
trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um deses-
pero de acumular, de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha,
a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal,
sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o
seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia
apoderar-se logo com as unhas.
O trecho permite verificar quão asquerosa é a figura surrada, ávida, miserá-
vel de João Romão, percorrendo as redondezas, sempre cobiçando com os olhos
o que de imediato não podia possuir. Coincidentemente, o físico do personagem
é tão desgastado como sua falta de moral: baixote, socado, em mangas de camisa,
calças arregaçadas e de tamancos. O sovina guarda vintém por vintém para che-
gar à posição do patrício Miranda, morador do sobrado.
Enfim, João Romão consegue a impressionante proeza de “economizar” à
custa de sua própria comida: mata a fome (animal) com restos da comida dos tra-
balhadores da pedreira, sequer se dá ao luxo de vez ou outra satisfazer a parte

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do homem, do prazer, do gosto pessoal. É movido a interesses, sempre visando
à ascensão social. Ao atingir seus objetivos, assume outros valores e outra perso-
nalidade: muda a vestimenta, escova os dentes, adentra em assuntos mundanos,
compra mobílias, enfim, dá-se a pequenos luxos para satisfazer sua vaidade. En-
contra no casamento com Zulmira a confirmação de seus anseios.
Para chegar onde quer, João Romão explora os trabalhadores da pedrei-
ra pagando-lhes um salário ínfimo, alugando-lhes os barracos e retendo o pouco
que lhes resta do dinheiro ou na venda ou nos juros muito altos (de 8% ao mês!)
cobrados por cada vintém emprestado. Ao oferecer desde quinquilharias até ali-
mento, o português toca no ponto fraco daqueles trabalhadores, que se tornam
presas fáceis, pois, segundo o autor naturalista, o espírito preguiçoso do brasileiro
se deixa acomodar inconscientemente à situação.
Aos personagens, não lhes são permitidas quaisquer reações, e o meio pas-
sa a dominá-los, incondicionalmente, mantendo-os a curtas rédeas. O meio é forte
e determina cada uma das ações, cada um dos pensamentos. Não há lugar para
sentimentos pessoais, os moradores só se unem para defender o ambiente, gozar
prazeres terrenos, comentar e espalhar notícias, enfrentar companheiros e traba-
lhar. E tudo serve para enriquecer cada vez mais João Romão.
Para “crescer” verdadeiramente na sociedade, ser um nobre, João Romão
não hesita em cortar o último laço que o prendia à pobreza. Devolve Bertoleza
à escravidão, a mesma escrava que o servira como amante e como empregada,
e que fora vilmente enganada pelo finório que lhe levara o dinheiro em troca de
uma alforria forjada.
Vizinho do cortiço está o sobrado, espaço reservado aos que foram mais
bem-sucedidos. Centrado na figura de Miranda, Aluísio Azevedo atém-se à tra-
jetória deste outro português, igualmente comerciante, igualmente ganancioso,
vivendo uma complexa situação. É aviltado moralmente pelo adultério da mulher,
coloca em dúvida a paternidade da própria filha e, no entanto, não se rebela con-
tra os fatos que o aviltam, pois está cioso da necessidade de manter as aparências
para resguardar-se socialmente. Vendeu-se ao dote da mulher e tem de aturá-la.
Busca avidamente o baronato para fugir da realidade mesquinha e torpe que o
rodeia, como se o título servisse para amortecer-lhe a consciência.
Entre os dois extremos sociais, tomam corpo outros personagens. Avultam
gradativamente as ruidosas lavadeiras que alugam os cubículos e as tinas de la-
var; mulheres que estão em perfeita interação com a paisagem, retratadas como
elementos a brotarem da terra e a se multiplicarem, povoando o cortiço sempre e
mais. Integram e completam o quadro uma galeria de tipos que vão de emprega-
dos braçais da pedreira aos operários da fábrica de massas italianas. Surgem, para
cada um dos personagens, muitas e movimentadas histórias. É visível a simpatia
com que o autor retrata essa multidão colorida de trabalhadores. Inversa é a forma

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com que relata o amoralismo das classes mais abastadas.
Do outro lado do cortiço, no sobrado, estão os parasitas, aqueles que não
trabalham, mas vivem de favores, da prestação de serviços de todos os tipos, desde
leves arranjos matrimoniais, que lhes rendem algum dinheiro, até boladas maiores
por serviços mais “difíceis”, tais como encontrar os donos de escravas fugitivas, ple-
namente exemplificado na figura de Botelho, que promove, por alguns contos de
réis, a aproximação de João Romão e Miranda e o casamento do vendeiro, dono
do cortiço, com Zulmira, a filha do dono do sobrado, além de sugerir como João
Romão poderia se ver livre de Bertoleza.
Em todos os personagens, o autor aponta os defeitos morais, os casos de
depravação sexual, a falta de travas da multidão de tipos que se multiplicam por
páginas e páginas do livro, enfileirando personagens que se embriagam, entre-
gam-se a outros vícios, dançam cheios de lascívia, tornam-se preguiçosos e, se-
gundo o autor, abrasileiram-se. Em comum, independentemente da classe social,
eles carregam a bagagem de taras hereditárias ou adquiridas. Entre os vícios e
os divertimentos, os personagens exalam promiscuidades devastadoras, liberam
uma sexualidade extravagante, bem ao gosto dos naturalistas. Se a leitura de
O cortiço já não escandaliza os leitores de épocas mais recentes, ainda provoca
espíritos mais puritanos devido a cenas que envolvem sexo, descritas quase foto-
graficamente, inclusive de relações homossexuais.
Exagera-se em tudo para poder provar com precisão o poder do binômio sexo/
dinheiro. Não há habitante que possa ser salvo. Impossível listar a quantidade de
exemplos a explorar o amoralismo do meio que leva à depravação. Tem-se como
mais perfeito exemplo o caso de Jerônimo, português trabalhador e honrado que
se abrasileira, tornando-se lascivo, preguiçoso, ardente e vingativo. Caído de amor
por Rita Baiana, lavadeira de boa índole, símbolo da volúpia e do prazer, a qual
provoca com sua sensualidade o confronto entre o amante Firmo e Jerônimo, cul-
minando na morte do primeiro. Outro caso é o de Pombinha, conduzida grada-
tivamente à prostituição, porque não resiste às pressões do meio e aos chama-
mentos eróticos do próprio corpo. De certa forma, o autor força algumas cenas,
polvilhando-as com chavões do naturalismo. É o caso da chegada das regras da
jovem, logo após os contatos homossexuais com a prostituta e lésbica Léoni. Des-
taca-se, neste clima, o Albino, ser indistinto, afeminado, também lavadeiro, que
vivia entre as mulheres. Há ainda a Bruxa, misto de feiticeira, curandeira e louca,
que ateia fogo – outro chavão naturalista – ao cortiço, motivo para as reformas e
os melhoramentos relatados no final.
Hábil observador, Aluísio Azevedo não deixa escapar cenas perfeitas, como
quando contrapõe o clima quente à umidade da pele das lavadeiras. Explorando
com sucesso as sinestesias, acaba por envolver o leitor em uma combinação per-
feita dos sentidos, traduzidos em quadros saborosos que expõem a vida cotidiana

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em ebulição, com movimentos raramente vistos na literatura brasileira, como o
incêndio do cortiço, um dos mais felizes exemplos.
A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia arder; não haveria
meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabeças de gato, leais nas suas justas
de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxílio de um
sinistro e dispostos até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os
feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se num relance; os
mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miseráveis
bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um entra e sai de maribondos defronte daquelas
cem casinhas ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos
ao ombro, numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e col-
chões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crianças
esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saíam clamores
apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou
a aparecer água. Quem a trouxe? ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes que se
despejavam sobre as chamas.
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
E tudo era um clamor.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrí-
vel; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em
brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das éguas selvagens,
dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem
sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultima-
mente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.
Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada,
que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas.
Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas pipas em car-
roça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar
os dez mil-réis da gratificação. A polícia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua
lá fora estava já atravancada com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam ga-
lopando desembestadas para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio, esque-
cido à parede de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de
campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito todo o quarteirão, anunciando que
chegava o corpo de bombeiros.
E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demônios de blusa
clara, armados uns de archotes e outros de escadinhas de ferro, apoderaram-se do sinistro,
dominando-o incontinenti, como uma expedição mágica, sem uma palavra, sem hesitações e
sem atropelos. A um só tempo viram-se fartas mangas de água chicoteando o fogo por todos
os lados; enquanto, sem se saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telha-
dos abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração vermelho do
incêndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando, piruetando, até estrangularem
as chamas que se atiravam ferozes para cima deles, como dentro de um inferno; ao passo que

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outros, cá de fora, imperturbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água
toda a estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta.

Da época literária, Aluísio Azevedo herda a linguagem embebida na norma


culta, no vocabulário escolhido, na frase lapidada. Do dom de observação nasce o
coloquial, chegando a registrar as contrações típicas da pronúncia de portugue-
ses, os sotaques encontrados em diferentes regiões suburbanas, as gírias tão co-
muns na fala. Esse cuidado com a tradução da linguagem popular torna o volume,
ainda hoje, motivo de bons estudos que possibilitam investigar a evolução da lin-
guagem coloquial dentro da literatura.
Os quadros populares, as personagens adequadas, o jeito de falar, tornam
O cortiço um dos mais interessantes volumes do século XIX, principalmente por-
que o autor faz pesquisa social sem o ranço de se deixar levar por ideologias, sem
procurar justificar nada, imparcial para tratar dos personagens, mas deixando-se
levar por uma simpatia contagiante. No trabalho com o meio, manifesta-se sem
pieguismos e sem comoções, traduzindo de forma quase imparcial os problemas
de camadas populares.

Considerações finais
Se se podem descontar pontos por certas cenas exageradas, como a iro-
nia muito forçada na condecoração de João Romão por méritos abolicionistas
justamente quando ele patrocinava o suicídio de Bertoleza; ou na cena em que
é descrita a chegada das regras de Pombinha, após contatos homossexuais com
Léoni; também se podem atribuir à obra saldos positivos. Para regozijo da camada
feminista, nada melhor do que constatar a importância da mulher, demonstrada
pela força que exerce sobre os homens e pelas mudanças que induz nos com-
portamentos. Para os aficionados por História, é interessante observar o sistema
financeiro do Período Imperial, bem como investigar a qualidade de vida das ca-
madas menos abastadas – quem poderia imaginar que o pobre passava a queijo,
vinho, manteiga e bacalhau! Uma miséria abastada...
Mais dois créditos: Aluísio Azevedo levou ao conhecimento do leitor o “jei-
tinho brasileiro de ser”, o mistério da vida que fervilha nas camadas menos pri-
vilegiadas; o segundo, e mais importante, é ter retratado um Rio de Janeiro não
somente como habitat de uma fauna humana que vive do funcionalismo público,
que parasita nos bastidores da política, que sobrevive às custas de “favores” feitos
a outros, que pratica usura e mais uma série de maldições que ainda hoje acompa-
nham os brasileiros, como também um Rio de Janeiro que trabalha, que se movi-
menta no dia a dia para tornar a cidade economicamente viável. Há mérito maior
que conseguir equacionar a vida social de uma época? Isso Aluísio Azevedo soube
fazer como nenhum outro.

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Assim, eram às vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros
assuntos palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicionista que principiava a formar-se
em torno da Lei Rio Branco. Então o Botelho ficava possesso e vomitava frases terríveis, para a
direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações,
aproveitando aquela válvula para desafogar o velho ódio acumulado dentro dele ...

Para aqueles que se interessam por conhecer as nuances históricas e sociais


do Brasil do século XIX, basta desvendar os segredos do romance. Página por pá-
gina, a leitura vai se transformando em uma gostosa revelação, demonstrando,
mais uma vez, a alquimia da palavra impressa. Registram-se cenas que deixam o
leitor ciente das condições sociais, políticas e econômicas de um Rio de Janeiro
que abre suas portas para o século XX, assume as condições de metrópole brasilei-
ra e passa a ser referência cultural do povo brasileiro. Vislumbram-se os cotidianos
dos polos sociais, a luta para se atingir ideais e uma multidão de “marionetes”, que
são conduzidas a seus destinos predeterminados pelas leis da natureza e pela in-
fluência do ambiente em que vivem.
Textos extraídos de:
Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Núcleo, 2010.

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REALISMO

A cidade e as serras
Eça de Queirós

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O escritor e suas obras
Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o
romance A cidade e as serras foi desenvolvido a partir da ideia central contida
no conto “Civilização”, datado de 1892. Na verdade, o escritor pretendia publi-
car uma série de pequenos volumes em que analisaria flagrantes da vida por-
tuguesa. Havia ainda, por parte do autor, a promessa de algo mais curto que o
normal, o volume não passaria de quatro capítulos e cerca de 130 páginas. Ao
que parece, os editores demoravam muito para finalizar obras muito extensas,
dificultadas pelo trabalho de composição tipográfica, revisão, correção do autor
e divulgação.
Em 1895, durante cerca de cinco meses, Eça revisou as provas deste volume
e introduziu inúmeras modificações. Após a morte do escritor, em 1900, os primei-
ros capítulos já se encontravam compostos e os demais, ainda em manuscrito, in-
clusive alguns capítulos inacabados. Coube a Ramalho Ortigão1, grande amigo do
escritor, rever os originais, decifrá-los, revisar as provas já compostas e, inclusive,
emendar algumas partes que careciam de sentido.
Para situar a obra A cidade e as serras no contexto das obras de Eça de Quei-
rós, é necessário revê-la como um todo. Ao publicar o conto “Singularidades duma
rapariga loura”, Eça foi considerado o iniciador da narrativa realista em Portugal.
Em seguida, escreveu, em conjunto com o amigo Ramalho Ortigão, a novela po-
licial O mistério da estrada de Sintra. Participava do jornal mensal As Farpas que,
como o próprio nome indica, tece inflamados artigos propondo reformas e satiri-
zando os costumes, a literatura e a política de Portugal.
Após discursar sobre “O Realismo como nova expressão de Arte” nas céle-
bres conferências do Casino Lisboense, publicou, em 1875, O crime do padre Amaro,
romance crítico em que combate a sociedade estagnada e o clero, e coloca em
prática a técnica realista de descrever aspectos psicofisiológicos com riqueza de
detalhes. Em 1878, volta-se para a família pequeno-burguesa escrevendo o volu-
me urbano O primo Basílio, revendo a educação da mulher, a constituição moral
da família e o ataque ferrenho às instituições burocráticas de Portugal. Produziu,
dez anos depois, Os Maias, ambientado em Portugal e em Paris, focalizando com
ironia e sarcasmo as altas esferas da sociedade, revelando-se mordaz e irreverente
no tratamento da política, da vida social e da literatura, com quadros repletos de
vivacidade e riqueza estilística.
Encerra-se aí a sua fase combativa, em que a literatura serve como escudo
contra instituições, e as palavras são as lanças a serem atiradas com ironia contra

1 Ramalho Ortigão – José Duarte Ramalho Ortigão (1836-1915), grande educador e escritor português,
criticou radicalmente os costumes e os vícios de sua época.

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Portugal, numa necessidade de denunciar o que havia de pequeno e estagnado
em relação a outros países, principalmente europeus. Nesse período, o autor exer-
cita com perfeição suas técnicas narrativas, manuseia a linguagem com preocupa-
ções formais, analisa os caracteres de suas personagens, lapida seu estilo e solu-
ciona seus problemas de índole literária, ao estabelecer criteriosamente os limites
da imaginação e da observação da realidade.
Depois de Os Maias, inicia uma nova fase, tão elaborada estilisticamente,
quanto preocupada em dar vazão à imaginação, que deixa correr mais solta. As-
sim, escreve O mandarim, novela de caráter fantástico, colocando “Sobre a nudez
forte da verdade – o manto diáfano da fantasia”, e, pelo mesmo lema, conduz o
volume A relíquia.
A partir de A relíquia percebe-se o início de uma nova fase, em que o escritor
reconsidera sua pátria, revê o português e Portugal com outros olhos, abandona
a sátira mordaz com que vinha retratando a vida portuguesa, substituindo-a por
uma ternura calma e sincera, quase uma redenção, à maneira de desculpas, por ter
escrito romances em que denunciava o atraso e o provincianismo da terra. A ilustre
casa de Ramires traz Eça de Queirós referindo-se liricamente aos grandes valores
portugueses: o homem, a paisagem e as origens históricas; em A cidade e as serras
acredita na vida simples e rústica, liberta o bucolismo2, valoriza os seres simples, a
distância da civilização, a pureza da vida campestre na mais sincera contaminação
romântica. Volta-se para a descrição das paisagens mais familiares que costumava
ver na infância. O primitivo de A cidade e as serras e o apego histórico de A ilustre
casa de Ramires compõem os romances da última fase do escritor, que, juntamen-
te com Correspondência de Fradique Mendes, colocam fecho de ouro aos escritos
de Eça de Queirós.

Ajustes da civilização
O romance é escrito em primeira pessoa por José Fernandes, personagem
de segundo plano na narrativa. O narrador-observador centraliza seu interesse na
figura de Jacinto, descrevendo-o como homem extremamente forte e rico, que,
embora tenha nascido em Paris, no 202 dos Campos Elísios, tem seus proventos
recolhidos de Portugal, onde a família possui extensas terras, desde os tempos de
D. Dinis. Plantações e produção de vinho, cortiça e oliveira, lhe rendem excelen-
te pecúnio, suficiente para bancar uma vida milionária na Cidade Luz. O avô de
Jacinto, também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam de D. Galeão, era um

2 Bucolismo – espírito de integração do homem com a natureza.

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fanático miguelista. Quando D. Miguel3 deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se
voluntariamente em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a
morte do marido, não regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o franzino
e adoentado Cintinho, que se casou com a filha de um desembargador, nascendo
desta união o protagonista.
Desde pequeno Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua saga-
cidade. Aos 23 anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos
e bigodes bem-tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo
chamado pelos companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”. Positivista4 inflamado,
Jacinto defendia a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é su-
periormente civilizado”. A maior preocupação de Jacinto era defender a tese de
que civilização é igual a cidade grande, e máquina é progresso. Exulta o fonógrafo,
o telefone cujos fios cortam milhares de ruas, barulhos de veículos, multidões...
Civilização é enxergar à frente.
Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos5 e sãos, nós podemos ape-
nas distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Nada mais! Se eu
porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo, por
trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões6 de geleia e caixas de ameixa seca. Concluo portanto
que é uma mercearia. Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só
o luzir da vidraça, uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os
do meu telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula a mi-
lhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda! Tens aqui pois o olho primitivo,
o da natureza, elevado pela Civilização à sua máxima potência da visão. E desde já, pelo lado
do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do
universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e com-
preende o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável
acumulação das noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é portanto que nos
devemos cercar de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções
a vantagem de viver.

Em fevereiro de 1880, Zé Fernandes recebe um chamado urgente do tio


para que retorne a Portugal. Parte para Guiães, pequena cidade serrana. Somente

3 D. Miguel – infante de Portugal (1802-1866), filho de D. João VI e da rainha D. Carlota Joaquina. Veio com a
família real para o Brasil em 1808 e regressou a Portugal em 1821 com seu pai. Em 1826, jurou a Carta Cons-
titucional, reconheceu seu irmão (nosso D. Pedro I) como sucessor legítimo de seu pai e casou-se com sua
sobrinha D. Maria, filha do seu irmão D. Pedro. Em 1828 assumiu a regência, jurando fidelidade novamente
à Carta. Semanas depois fez-se proclamar rei absoluto e iniciou um período de perseguição aos liberais (de-
fensores da Constituição). Seguiu-se a guerra civil de 1832-1834, com a derrota de D. Miguel e a vitória dos
liberais, ocupando o trono D. Pedro IV (no Brasil, D. Pedro I).
4 Positivismo – doutrina filosófica desenvolvida pelo francês Augusto Comte (1768-1857) caracterizada
por valorizar a Ciência e a experimentação contra qualquer espécie de metafísica; o movimento busca o
concreto, o real como base de qualquer conhecimento.
5 Lestos – ágeis, ligeiros.
6 Boiões – frascos, recipientes.

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após sete anos de vida na província, retorna a Paris e reencontra Jacinto no 202
dos Campos Elísios. O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para li-
gar dois andares do palacete; no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos
cheios de artifícios; e, enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fer-
nandes visita uma enorme biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos possí-
veis, dos mais renomados autores às mais diferentes ciências. A visita termina com
uma refeição em que foram servidas as mais sofisticadas iguarias e um convite de
Jacinto ao narrador, para que ele se hospedasse no 202.

Primeiros desencantos
Zé Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas
intensas atividades o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Ja-
cinto foi perdendo a credulidade, ao perceber a futilidade das pessoas com quem
convivia, a inutilidade de muitas das coisas de sua tão decantada civilização. Nos
raros momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o baru-
lho das ruas o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período
de nítido desencanto. Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o
estado de ânimo de Jacinto: um acidente podia tomar proporções enormes na co-
munidade fútil em que vivia, como por exemplo, o rompimento de um dos tubos
da sala de banho, jorrando água quente por todo o quarto, inundando os tapetes,
foi o bastante para fazer aparecer uma pilha de telegramas, alguns inclusive com
um riso sarcástico, como o do Grão-Duque Casimiro, dizendo que não mais apare-
ceria pelo 202 sem que tivesse uma boia de salvação.
As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-
-Duque, Jacinto já não aguentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes
explicava o uso dos diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o
microfone... O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara entalado no
elevador e os convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe não
chegou à mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão
densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um ca-
marada não o comoviam, como muito remotas, intangíveis, separadas da sua sensibilidade
por imensas camadas de algodão. Pobre Príncipe da Grã-Ventura, tombado para o sofá de
inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão
bravamente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a Força e a Matéria!

Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocor-
rendo com Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa
que espantou o narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que
era acometido: o patrão sofria de “fartura”.

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Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na
simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem
do século XIX nunca poderia saborear plenamente a “delícia de viver”, ele não encontrava agora
forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta
numa tipoia fácil. Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos
anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse
na sua solidão esse alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce cama-
rada! Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão
d’Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso ramo
de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão7 da bengala, conservava toda a
noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua
pressa em abalar, a sua fuga de ave solta... Raramente (e então com veemente arranque como
quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elísios. Não se ocupa-
ra mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla8, nem das
religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a
mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente como o lixo de uma vida finda. Também
lentamente se despegava de todas as suas convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa
murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de mail-coach9, ou a
um convite para algum castelo amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um
esforço saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava sempre um homem, depois de um
gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou em obediência a um dogma, devesse
ainda comer uma lampreia10 de ovos!
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem-cerradas e bem-defendidas contra
toda a intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com
todo aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de abafa-
mento, de atulhamento!...

Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d’Oriol, José
Fernandes e Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de
Montmartre. Ao se recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris en-
volta em uma nuvem cinzenta e fria, motivando profundas reflexões, pois a cidade –
tão cheia de vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandescências, incluindo
o soberbo 202, com todas as suas sofisticações – estava agora sucumbida sob as
nuvens cinzentas, a cidade não passava de uma ilusão.
... uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua grandeza
e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza har-
moniosa do corpo, e se tornou esse ser ressequido11 e escanifrado12 ou obeso e afogado em unto13

7 Castão – parte superior da bengala.


8 Telefones de Constantinopla – alusão à modernidade vazia, ao progresso prosaico.
9 Mail-coach – termo inglês, significa diligência.
10 Lampreia – tipo de peixe, muito saboroso.
11 Ressequido – seco, mirrado.
12 Escanifrado – muito magro, descarnado.
13 Unto – gordura, banha, óleo.

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de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas14, com chinós15, com
dentaduras de chumbo sem sangue, sem febre, sem viço16, torto, corcunda – esse ser em que Deus,
espantado, mal pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! Na Cidade findou a sua liberda-
de moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma
dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, atu-
rar: rico e superior como um Jacinto, a sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas,
cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua
tranquilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Su-
mida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo,
ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que
tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartando o desejo, incessantemen-
te padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos
logo na cidade se desumanizam! Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social
não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e
adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que
o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com
um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho. E o amor, na
Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos; onde a nobre carne de
Eva se vende, tarifada ao arrátel17, como a de vaca! Contempla esse velho deus do himeneu18, que
circula trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote! (...) Mas o que a
Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalida-
de ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de ideias e fórmulas que
constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os
pensamentos já pensados, só exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se destacar
na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola19, inventa num gemente esfor-
ço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...) Assim,
meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o
carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem
pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – o homem aparece como uma criatura
anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um
espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto
o que é a bela Cidade!

Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter so-


cial, indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão,
enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando aos
pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser necessário um
novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.

14 Cangalhas – armações que transportam a carga das bestas.


15 Chinós – cabeleiras.
16 Viço – vida, vigor.
17 Arrátel – antiga unidade de peso, equivalente a 429 g ou 16 onças.
18 Himeneu – casamento, matrimônio.
19 Gloríola – glória vã, fútil.

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Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade os gozos especiais que ela cria. O
resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimentos especiais, que só nela existem!
(...) A tua Civilização reclama insaciavelmente regalos e pompas, que só obterá, nesta amarga
desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço, uma migalha rati-
nhada20. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada
miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. (...)
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade, estendida
na planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde, filoso-
fando – considerando que para esta iniquidade não havia cura humana, trazida pelo esforço
humano. Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só abando-
narão ou afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por milagre novo, mais
alto que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa, muito forte, todo endu-
recido no pecado – e contra ele são impotentes os prantos dos humanitários, os raciocínios dos
lógicos, as bombas dos anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis
pois a esperança da Terra novamente posta num Messias!...

De Schopenhauer21 ao Eclesiastes22: pessimismo


Como já havia planejado, o narrador partiu para uma viagem pela Europa
e, ao retornar, procurou o amigo e tentou descobrir o que lhe passava na alma,
pois encontrou-o mais pessimista que nunca, depressão revelada pelas leituras
do Eclesiastes e do filósofo pessimista Schopenhauer. Nessas leituras, encontrava
um certo amparo ao comprovar que todo mal era resultante de uma lei universal
e, a partir daí, encontrou uma grata ocupação – maldizer a vida. Ao mesmo tempo,
sobrecarregou sua existência com fervores humanísticos. Mas de nada adianta-
va, pois Jacinto estava mesmo desolado. No inverno escuro e pessimista, Jacinto
acordou certa manhã e comunicou a José Fernandes que estava de partida para
Tormes. Decidiu viajar ao receber uma carta de Silvério, seu procurador, que di-
zia estarem concluídos os trabalhos de reerguimento da capela para onde seriam
trasladados os restos mortais de seus avós que ele não conhecera, mas de quem o
202 estava cheio de recordações.
Os preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização
para as serras. Jacinto encaixotou camas de pena, banheiras, cortinas, divãs, tape-
tes, livros, despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas serras.
Enquanto isso, renascia nele o amor pela cidade.
Partiram os dois amigos de volta a Portugal. As cidades passavam pelas ja-
nelas do trem: da França para a Espanha, da Espanha para Portugal... Tomado por

20 Ratinhada – do verbo ratinhar: dar com parcimônia, regatear.


21 Schopenhauer – Arthur Schopenhauer (1788-1860), filósofo alemão, acentuadamente pessimista, para
quem a vida é apenas dor. O seu pessimismo teve grande influência na arte e na filosofia do século XIX. Sua
obra mais conhecida é O mundo como vontade e representação.
22 Eclesiastes – livro do Antigo Testamento, atribuído a Salomão, um dos mais belos e filosóficos textos da
Bíblia. Desenvolve a máxima famosa: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.

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uma suave emoção, José Fernandes estava feliz em rever a pátria; Jacinto, aborre-
cido e enfadado principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram
em compartimentos errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o in-
tuito de acalmar o amigo, diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E ficaram os
dois só com a roupa do corpo. Enfim, chegaram em Tormes.
... e ambos em pé, às janelas, esperamos com alvoroço a pequenina estação de Tormes, termo
ditoso das nossas provações. Ela apareceu enfim, clara e simples, à beira do rio, entre rochas,
com os seus vistosos girassóis enchendo um jardinzinho breve, as duas altas figueiras assom-
breando o pátio, e por trás, a serra coberta de velho e denso arvoredo...

Desembarcaram em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pi-


menta, chefe da estação. Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por
Silvério, o procurador de Jacinto em terras portuguesas. Começaram então outros
desastres da viagem. Silvério não os aguardava: havia partido há dois meses para o
Castelo de Vide. Os criados Grilo e Anatole, que aparentemente estavam com as 23
malas em outro compartimento, não foram encontrados, o trem apitou e partiu,
deixando os dois sem nada. Não havia cavalos para atravessarem a serra, pois Mel-
chior, o caseiro, não os esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes
uma égua e um burro e ambos seguiram serra acima.
Esqueceram, por alguns instantes, os infortúnios passados enquanto con-
templavam a beleza da paisagem. Mas o pior ainda estava por acontecer: os caixo-
tes despachados de Paris há quatro meses não haviam chegado, e o mais civilizado
dos homens estava totalmente à mercê das serras. Como ninguém os esperava, a
casa não estava pronta para recebê-los, a reforma acontecia devagar, os telhados
ainda continuavam sem telhas, as vidraças sem vidros. Zé Fernandes sugeriu que
rumassem para casa de sua tia Vicência, em Guiães, e Jacinto retrucou que ia mes-
mo para Lisboa.
Melchior arranjou como pôde um jantarzinho, caseiro e simples, longe das
comidas sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida
que serviu para matar gostosamente a fome dos viajantes. O senhor de Tormes
regalou-se com o jantar que lhe parecera, à primeira vista, insuportável; e o casei-
ro, diante das manifestações de regozijo perante a comida, pensou que seu senhor
passava fome em Paris.
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tor-
mes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, pare-
cia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada
travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que
ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão23,
terminou por bradar: – “É divino!” Mas nada o entusiasmava como um vinho de Tormes, caindo

23 Platão – filósofo grego (428-347 a.C.), discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, um dos maiores
filósofos de todos os tempos.

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do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entran-
do mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que
ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou
Virgílio24:
– Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas
serras?
Após o jantar, ambos ficaram contemplando o céu cheio de estrelas, passa-
ram a ver os astros que na cidade não se dignavam ou não conseguiam observar.
O narrador ia-se deixando levar por um contato tão estreito com a paisagem, que
em breve surgia uma identificação total do homem com a natureza e em tudo
percebia-se Deus, num claro processo panteísta muito comum entre os românti-
cos e que Eça passou a assumir.
– Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
– Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral?
– Não sei.
Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de
Coimbra, minha mãe espiritual. Ele, porque na sua biblioteca possuía trezentos e oito tratados
sobre astronomia, e o saber assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem
se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro
Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos,
nós tão pequeninos, somos a obra da mesma vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha
e Sande25, constituímos modos diversos de um ser único, e as nossas diversidades esparsas so-
mam na mesma compacta unidade. Moléculas do mesmo todo, governadas pela mesma lei,
rolando para o mesmo fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao
mar sonoro – tudo é o mesmo corpo, onde circula como um sangue, o mesmo deus. E nenhum
frêmito de vida, por menor, passa numa fibra desse sublime corpo, que se não repercuta em to-
das, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um sol que não avisto,
nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, embaixo
na horta, sente um secreto arrepio de morte; e, quando eu bato uma patada no soalho de Tor-
mes, além o monstruoso Saturno26 estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Univer-
so! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
– Acredita!... O sol tremeu.
E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó
luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce.

O cansaço vence os dois viajantes. José Fernandes adormece sob os ape-


los de Jacinto para que ele lhe enviasse algumas peças brancas e lhe reservasse
alojamento em um bom hotel de Lisboa. Uma semana depois que José Fernan-

24 Virgílio – (71-19 a.C.) o mais célebre dos poetas latinos, autor da Eneida, das Geórgicas e das Bucólicas.
25 Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande – nesta passagem, Eça sobrepõe, à maneira panteísta, seres di-
versos em um todo único.
26 Saturno – na mitologia grega, filho de Urano e Gea. Devorava seus próprios filhos. Um deles, Júpiter,
destronou-o e expulsou-o do céu.

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des havia partido para Guiães, recebeu suas malas e imediatamente enviou um
telegrama para Lisboa, endereçado ao hotel Bragança, agradecendo pela baga-
gem que fora encontrada e alegrando-se pelo amigo estar novamente gozando
os privilégios de seres civilizados. No entanto, não obteve resposta. Certo dia, o
narrador voltando de Flor da Malva, da casa de sua prima Joaninha, parou na ven-
da de Manuel Rico, e ficou sabendo algo surpreendente através do sobrinho de
Melchior: Jacinto permanecia em Tormes já há cinco semanas. Ao visitar Jacinto,
José Fernandes o encontrou totalmente mudado, física e mentalmente. Nada nele
denunciava um homem franzino; estava encorpado, corado, como um verdadeiro
montês. E, principalmente, havia perdido o pessimismo.
Mas o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas – como Catão27
para chamar os servos, na Roma simples. E gritava:
– Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!
Pulei, imensamente divertido:
– Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódi-
cas?...
O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um
grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça
trazia num prato.

Um homem de bem com a vida


Um outro Jacinto nascia, um homem para quem o campo já não mais era
insignificante. Cada momento no novo espaço representava uma nova e alegre
descoberta. Enfim, era um homem de bem com sua vida. Aproveitando a presença
do amigo, Jacinto providenciou a transladação dos corpos de seus antepassados
para a Capelinha da Carriça, agora reconstruída. Zé Fernandes, hábil observador
do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava em ser o apreciador passivo
dos encantos da natureza. Ele queria participar de tudo, e lhe surgiam grandes
ideias como encher pastos, construir currais perfeitos, máquinas para produzir
queijos...
Certo dia, ao percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da
vida no campo: uma criança muito franzina viera pedir socorro para a mãe agoni-
zante. A partir desse momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois
ele conheceu o lado triste da serra, e reagiu, primeiro com caridade, depois, com a
reconstrução das casas para dar novo alento aos humildes. Em uma das inúmeras
visitas que lhe fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pou-
co de civilização naqueles cantos tão rústicos. O povo da região começou a agra-

27 Catão – também conhecido como Catão, o Antigo (234-149 a.C.), romano célebre pela austeridade dos
seus princípios e pelo esforço para reprimir o luxo, que começava a corromper Roma. Escreveu um tratado
sobre agricultura (De Re Rustica) muito interessante.

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decer as benfeitorias e logo passou a circular a lenda de que o senhor de Tormes
era D. Sebastião28 que havia voltado para ressuscitar Portugal.
Convidado por Zé Fernandes para o aniversário de tia Vicência, Jacinto en-
contraria aí a oportunidade de conhecer seus vizinhos, outros proprietários. No
entanto, a recepção não foi aquilo que o narrador esperava. Havia uma frieza por
parte dos habitantes da região, exceto tia Vicência que o recebeu como verdadeiro
sobrinho. Ao terminarem a ceia, vieram a saber o porquê daquela frieza: eles igno-
rantemente pensavam que o senhor de Tormes fosse miguelista como o avô e que
pretendia restituir D. Miguel ao poder.
E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com a sua chávena de café e o charuto fu-
megante, me disse, num daqueles seus olhares finos, que lhe valiam a alcunha de “Dr. Agudo:”
– “Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de novo a forca!...” E o mesmo fino olhar me
indicava o D. Teotônio, que arrastara Jacinto para entre as cortinas de uma janela, e discorria,
com um ar de fé e de mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom D. Teotônio considerava
Jacinto como um hereditário, ferrenho miguelista, – e na sua inesperada vinda ao solar de Tor-
mes, entrevia uma missão política, o começo de uma propaganda enérgica, e o primeiro passo
para uma tentativa de restauração. E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu
senti então a suspeita liberal, o receio de uma influência rica, nova, nas eleições próximas, e a
nascente irritação contra as velhas ideias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização
tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o Melo Rebelo,
que repunha a chávena vazia na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o “Dr. Agudo”.

Este jantar serviu de pretexto para o narrador mostrar a mentalidade atrasada


da sociedade serrana e aquilo que fazia sorrir Jacinto era, na verdade, um abismo
entre a ignorância e o progresso. A serra estava impregnada de ideias retrógradas,
ainda absolutistas, enquanto no final do século polvilhavam novas teorias e dou-
trinas filosóficas e políticas. Tentou-se ainda um jogo de voltarete para animar a
noite, mas a ameaça de uma tempestade fez os convidados baterem em retirada.
A manhã seguinte estava fresca e clara. José Fernandes levou o amigo até
Flor da Malva, para visitar sua prima Joaninha que não pudera comparecer à reu-
nião, pois o pai, Adrião, estava acamado. No caminho, encontram João Torrado,
um velho eremita que supôs estar diante de D. Sebastião. Essa figura ilustrava o
lado da profundidade do mito na mentalidade simples, pois, ao saudar Jacinto
como um profeta, trata-o como “pai dos pobres”. Nele estão associadas a sabedoria
e a simplicidade do povo.
E um estranho velho, de longos cabelos brancos, barbas brancas, que lhe comiam a
face cor de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a um bordão, com uma caixa de lata a
tiracolo, e cravou em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro, que faiscavam. Era o tio João
Torrado, o profeta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele apertou, sem despegar de Jacinto

28 D. Sebastião – décimo sexto rei português, desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir. Transformou-se


em figura lendária, e seu retorno simbolizaria o ressurgimento de Portugal.

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os olhos, que se dilatavam mais negros. Mandei vir outro copo, apresentei Jacinto, que corara,
embaraçado.
– Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez por aí todo esse bem à pobreza.
O velho atirou para ele bruscamente o braço, que saía cabeludo e quase negro, de uma
manga muito curta.
– A mão!
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar vivamente a luva, João Torrado longa-
mente lha reteve com um sacudir lento e pensativo murmurando:
– Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara!
Depois tomou o copo, que lhe oferecia o Torto, bebeu com imensa lentidão, limpou as
barbas, deu um jeito à correia que lhe prendia a caixa de lata, e batendo com a ponta do cajado
no chão:
– Pois louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o
meu dia, e vi um homem!
Eu então debrucei-me para ele, mais em confidência:
– Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei
D. Sebastião voltará?
O pitoresco velho apoiou as duas mãos sobre o cajado, o queixo da espalhada barba so-
bre as mãos, e murmurava, sem nos olhar, como seguindo a procissão dos seus pensamentos:
– Talvez voltasse, talvez não voltasse... Não se sabe quem vai, nem quem vem.

A chegada a Flor da Malva prepara o desfecho do romance. Joaninha, que


não tem sequer uma fala na narrativa, jovem de uma formosura ímpar, estaria des-
tinada a ser a senhora de Tormes.
Mas, à porta, que de repente se abriu, apareceu minha prima Joaninha, corada do pas-
so e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente,
numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabe-
los, – lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e
trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha,
de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem
casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira já de rosas.

Cinco anos se passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas
terras duas fidalgas crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Paris
enfim chegaram a Tormes e serviram para demonstrar o agora total equilíbrio do
protagonista: aproveitar o que poderia ser aproveitado e desprezar as inutilidades
da civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: “Sua Excelên-
cia brotara”. Certamente Jacinto descobrira seus melhores valores: era feliz e fazia
os outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa para conhecer o
202 e a civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro, era sempre adiado.
Quem voltou a Paris foi Zé Fernandes e lá, sentindo-se abandonado e ente-
diado, descobriu uma porção de fantoches a viverem uma vida falsa e mesquinha.

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Percebeu que os antigos conhecidos eram seres frágeis e vazios, idênticos entre
si e massas impessoais, amorfas, feitas para agradar ou desagradar os outros con-
forme seus interesses. Não suportando a cidade, retornou a Portugal. Esse serrano
que anteriormente valorizava os encantos da civilização foi tomado pelos mesmos
sentimentos de Jacinto e confirmou uma simples verdade: no fundo, reabilitou
Eça de Queirós com o seu Portugal.
Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas
todo o luxo, que já me enfartava havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de
invenção. Nas livrarias, sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelos, onde,
de cada página que ao acaso abria, se exalava um cheiro morno de alcova, e de pó de arroz, de
entre linhas trabalhadas com efeminado arrebique29, como rendas de camisas. Ao jantar, em
qualquer restaurante, encontrava, ornando e disfarçando as carnes ou as aves, o mesmo mo-
lho, de cores e sabores de pomada, que já de manhã, noutro restaurante, espelhado e doureja-
do, me enjoara no peixe e nos legumes. Paguei por grossos preços garrafas do nosso rascante30
e rústico vinho de Torres, enobrecido com o título de Château-isto, Château-aquilo, e pó postiço
no gargalo. À noite, nos teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como centro e único
fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de
gentes, estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo pilhérias senis. Esta sordidez da planície
me levou a procurar melhor aragem de espírito nas alturas da Colina, em Montmartre; – e aí, no
meio de uma multidão elegante de senhoras, de duquesas, de generais, de todo o alto pessoal
da cidade, eu recebia, do alto do palco, grossos jorros de obscenidades, que faziam estremecer
de gozo as orelhas cabeludas de gordos banqueiros, e arfar com delícia os corpetes de Worms e
de Doucet, sobre os peitos postiços das nobres damas. E recolhia enjoado com tanto relento de
alcova, vagamente dispéptico31 com os molhos de pomada do jantar, e sobretudo descontente
comigo, por me não divertir, não compreender a cidade, e errar através dela e da sua civilização
superior, com reserva ridícula de um censor, de um Catão austero. “Oh senhores!”, pensava eu
“pois não me divertirei nesta deliciosa cidade?”
Entrara comigo o bolor da velhice? ...

Textos extraídos de:


Eça de Queirós. A cidade e as serras. São Paulo: Núcleo, 1994.

29 Arrebique – enfeite ou cosmético de visível mau-gosto.


30 Rascante – que arranha, áspero.
31 Dispéptico – aquele que sofre de dispepsia: distúrbio da função digestiva.

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MODERNISMO

Vidas secas
Graciliano Ramos

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Em busca da perfeição
Publicado em 1938, Vidas secas é considerado o mais humano e poético dos
romances de Graciliano Ramos. Seguindo Caetés, São Bernardo e Angústia, todos
em primeira pessoa, apresenta uma ruptura em relação aos romances anteriores
por apresentar o foco narrativo em terceira pessoa. Trata-se de uma inovação por-
que o autor estava habituado a focalizar um personagem-narrador preocupado
em investigar seu mundo interior, elaborando uma espécie de autoanálise em que
a personagem descortina sua visão da realidade. A postura assumida em Vidas
secas volta-se para a análise de características mais objetivas, com personagens
não entregues à própria sorte, mas dirigidas, em seus destinos, pelas mãos do nar-
rador. Dessa forma, a revolta egoísta cede lugar ao tratamento mais amplo, aberto
a outros tipos de sentimentos, entre os quais se incluem a compaixão, a compreen-
são e a simpatia.
Uma característica da narrativa em terceira pessoa é a onisciência do narra-
dor, capaz de mostrar seca e friamente a miséria e a situação precária do mundo
exterior. Outra característica possível é a utilização do discurso indireto livre, que
tem como vantagem permitir ao narrador expandir sua “fala” e abrir-se para reve-
lar o que pensam e sentem as personagens, sem passar pelo crivo do narrador. Ao
lapidar estes recursos, Graciliano ajusta a maneira objetiva de analisar a realidade
a uma certa pessoalidade devido à forma envolvente com que trata o interior da
personagem, mostrando ao leitor não só a paisagem inóspita e os desajustes so-
ciais, como também o modo de ser, de pensar e de sentir das personagens.
Uma segunda novidade do livro é quanto à forma de composição. Cada um
dos treze capítulos constitui uma célula com ritmo próprio, de modo que o leitor
não encontra aí sua leitura habitual, direcionada e linear. A marcação do tempo
não é cronológica, existem somente algumas poucas referências a um tempo in-
determinado que serve para dirigir o leitor, mas o faz de maneira insólita e tatean-
te. Ocorre o mesmo quanto ao espaço, apresentado na amplitude da catinga, em
uma certa fazenda, perto de um povoado indeterminado.
Os capítulos inicial e final contêm o mesmo assunto – a família parte em
retirada – e têm, para diferenciá-los, o tratamento espaço-temporal. O primeiro –
“Mudança” – traz os retirantes fugindo da seca e se refugiando na mesma região,
defrontando-se com o espaço de uma fazenda abandonada. No último – “Fuga” – a
família parte para outra região, onde enfrentará o desconhecido que se lhe afigura
paradoxalmente como esperança e medo. Deve-se observar como são sugestivos
os vocábulos: fuga acrescenta ao significado de mudança o tom fatal imposto pelo
fato de se rumar ao encontro do desconhecido. A configuração desses dois capí-
tulos lembra visualmente uma espiral com o espaço sendo apresentado em um
crescente, tendo em comum o fato de apresentar ao leitor o universo físico em que
ocorre a tragédia social da seca.

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Aos elementos humanos da família cabem quatro capítulos – “Fabiano”,
“sinha Vitória”, “O menino mais novo”, “O menino mais velho” – e têm como elo dois
aspectos: o primeiro é a miséria do mundo físico (paisagem) extensiva ao mun-
do intelectual (linguagem) dos retirantes; o segundo, decorrente da carência de
linguagem, deixa transparecer a mundividência de cada um deles, traduzida em
duas posturas básicas: a falta de comunicação entre os participantes do grupo e a
força interior atribuída pelo autor às personagens, a partir da utilização do discur-
so indireto livre.
Uma personagem não humana, mas humanizada, é a cadela Baleia, à qual
Graciliano dedica um capítulo, justamente o de sua morte. Mais humanizada que
as crianças, a cadela atrai a simpatia do leitor por sua espontaneidade, vivacida-
de e capacidade de comunicar-se com outras personagens, sendo ela o único
elemento estranho à família a vencer as barreiras da incomunicabilidade. Baleia,
cujo nome espelha as ansiedades do sertanejo em constante procura pela água,
também atende às necessidades lúdicas, o relacionamento leve que apraz o homo
ludens, e, finalmente, o bicho é o elemento que aproxima as espécies, embora, no
contexto da obra, torne as reações humanas muito próximas dos instintos animais
(processo de antropomorfização, recurso usual entre os escritores naturalistas).
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se
diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o
chiqueiro de cabras. (...)

Baleia acumula outras importantes funções na narrativa: ela é guia, indican-


do a direção a ser tomada; é muitas vezes responsável pela sobrevivência do gru-
po como animal de caça; é companheira das crianças nas folganças e dos adultos
no trabalho. São atividades que a fazem partilhar a qualidade de personagem hu-
mana na narrativa. Ela pensa e age mais racionalmente do que outros elementos
do grupo, daí decorre a consciência profunda, manifestada quando de sua morte.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era
levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos.
Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse
desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros
de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meni-
nos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, ne-
nhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava
na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fa-
biano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. (...)
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era
tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandaca-

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ru penetravam na carne meio comida pela doença. (...)
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de
Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio
enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás.

Dois capítulos são dedicados ao soldado amarelo: no primeiro – “Cadeia” –


ele é o símbolo da repressão gratuita da autoridade:
... A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando
pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro.
– Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé
de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o
amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
– Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusa-
ção medonha e não se defendeu.
– Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra
nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as
trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou,
sentou-se num canto, rosnando:
– Hum! hum!
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim
senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem
acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns conde-
nados. Assim um homem não podia resistir.

Em outro quadro – “Soldado amarelo” – o autor alude à covardia desta mes-


ma autoridade quando distante das insígnias. Interessante notar que o adjetivo
amarelo pode ser entendido como uma alusão ao cáqui da farda, à cor doentia
do sertanejo e, por fim, ao pavor demonstrado pelo soldado quando distante do
destacamento policial.
... De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade. (...)
O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o fa-
cão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um
cristão: procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e espinhos. (...)
... Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? não
pisava os pés dos matutos, na feira? não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.

Outro capítulo – “Contas” –, dedicado a deixar explícita a exploração do ho-


mem, é assentado no terror produzido pelo nome “patrão”, força bruta envolta em
uma ausente identidade, em parte responsável pela desestrutura social encontra-
da no Nordeste:
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não

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tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encala-
crado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim dei-
xou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos
para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias
espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar
o negócio notou que as operações de sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão.
Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente
que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não
se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entre-
gando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca
arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar ser-
viço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se
havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. (...)

Sem dúvida, Graciliano deixa-se nortear por ideias socialistas, ao colocar a


explicação de tão intrincado problema social nas mãos ou do governo oligárquico –
até onde pode representar o soldado amarelo a defender os interesses de uma mi-
noria e abusar da autoridade – ou do proprietário de terras, explorador insensível
do sofrimento humano. É importante lembrar que as regiões predominantemente
secas do Nordeste são, ainda hoje, dominadas pelas grandes propriedades exten-
sivas de criação de gado.
Dois capítulos são dedicados a devastar a intimidade da família. O primeiro –
“Inverno” – trata do desconforto sofrido em uma noite chuvosa, típica do inverno
dessas regiões, quando todos estão encolhidos ao redor de uma fogueira sofren-
do as intempéries da umidade. O segundo – “Festa” – focaliza-os em dia de Natal
na feira da cidade. Ambos têm como característica a capacidade de Graciliano Ra-
mos de deixar transparente o visual, com a força pictórica de um artista plástico,
demonstrando com pinceladas coloridas o pequeno mundo de personagens so-
fridas.
Talvez o capítulo mais dramático da obra seja aquele que prenuncia uma
nova seca – “O mundo coberto de penas” – relatando a luta incessante que os ani-
mais, inclusive o homem, travam na constante luta pela sobrevivência.
O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o sertão
ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam,
bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado so-
nhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água,
queriam matar o gado. (...)
Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De re-

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pente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de
asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E
olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. (...)

Diante da força narrativa dos quadros, o enredo torna-se frágil: um grupo


de nordestinos, composto de Fabiano, a mulher (sinha Vitória), dois filhos, uma
cadela (Baleia) e, no início, um papagaio batem em retirada. Para a sobrevivência
do grupo, é travada uma luta incessante, incluindo o sacrifício do papagaio e a
mesquinha contribuição de Baleia através da caça de um preá, servindo para adiar
a morte do grupo. Após tempos de caminhada, abrigam-se em uma fazenda aban-
donada. Vêm as chuvas, Fabiano oferece seus préstimos de vaqueiro e continua na
fazenda consciente de sua transitoriedade naquelas paragens, quer porque o pa-
trão poderia expulsá-los a qualquer instante, quer pela seca, terror constante por
ser um processo cíclico e real. Nesse intervalo, Baleia morre. Quase desamparados,
partem em busca de novas terras quando chegam as secas, mas desta vez fugindo
para a cidade grande, acalentados pela esperança de uma vida melhor.
Dos elementos constitutivos de Vidas secas podem ser destacados: a paisa-
gem, a linguagem e o problema social, todos eles entrelaçados.

Paisagem: o sertão a pegar fogo


No início do volume, Graciliano Ramos apresenta a paisagem nordestina,
utilizando pouquíssimas palavras, vocábulos diretos e predominantemente deno-
tativos, justamente para reforçar-lhe a característica principal: a seca.
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.

O termo planície, denotativo de espaço amplo, é restringido por avermelhada.


Os elementos que designam vida (juazeiros) estão na paisagem apenas como duas
manchas verdes. A quase ausência de outros elementos indicativos de vida apenas
corrobora a proposta do autor de introduzir uma paisagem praticamente morta.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que
eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.

Visualmente, a paisagem estende-se vermelha. O escritor, através do jogo


das cores (branca e negra), completa o desencanto do cenário, uma vez que o
branco é a cor das ossadas e o negro, a dos urubus. Triste e miserável cenário que
estará presente em toda a obra, vencendo a vida porque traz em si o próprio sig-
nificado da morte.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras
arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certa-
mente o gado se finara e os moradores tinham fugido...

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O meio físico serve de apoio para a apresentação de personagens que se
identificam com a paisagem de modo a apresentar ao leitor a característica quase
simbiótica que une o humano ao local por ele habitado.
No entanto, nem tudo no Nordeste é seca. Ao chegar o inverno, as chuvas
chegam e acuam as personagens porque também as maltratam: a água é, ao mes-
mo tempo, sinônimo de fertilidade e de destruição e morte. No capítulo “Inverno”,
à maneira de um artista plástico, o autor retrata a família reunida em frente do
fogo, estampando todo o drama da miséria e do desamparo:
A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, sinha Vitó-
ria de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o
traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das
catingueiras, e o barulho do rio era como um trovão distante.

Ambientados neste pequeno mundo, as personagens ficam frágeis e que-


bradiças diante de cenários não familiares, como é notado nas vezes em que elas
vão ao povoado próximo. A cidade do “Soldado amarelo” e da “Festa” as amedron-
ta porque as comprime. Fabiano só encontra forças para pensar agressivamente,
desafiar e reagir aos brados quando fortalecido pela bebida.
Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na rou-
pa nova, o pescoço esticado, pisando em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, em-
baraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas
saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços
roçavam-lhe o corpo. (...)
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfia-
va que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. (...)
Bebeu ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas desafiando-as. Estava resolvi-
do a fazer uma asneira. (...)

A mesma catinga que abriga por algum tempo as personagens torna-se-


-lhes hostil. Há uma nova fuga: do espaço restrito partem rumo à terra desconhe-
cida/prometida e, como o espaço que se abre, florescem as esperanças para os
miseráveis em retirada.
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas,
o cheiro de carniças que lhe empestavam o caminho. (...) Iriam para diante, alcançariam uma
terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como
ela era nem onde era. (...) Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. (...) Chegariam a uma
terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente
para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória
e os dois meninos.

No encerramento do volume, Graciliano Ramos patenteia certa inverossimi-


lhança, ao permitir que Fabiano divague muito além do que lhe fora permitido até

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então. Uma possível explicação é a de ser a perspectiva da cidade uma ampliação
dos horizontes da personagem (Fabiano), uma vez que durante a narrativa suas
aspirações quanto ao futuro ou mesmo quanto ao presente eram reduzidas, por-
que na luta contra o meio ingrato as atenções são sempre dirigidas para a chance
de sobrevivência.

Linguagem: o reflexo das secas


Um dos aspectos mais construtivos de Vidas secas diz respeito ao trabalho
do escritor com a linguagem. Primeiramente é possível verificar a propriedade vo-
cabular do autor com relação à paisagem e à apresentação das personagens. Ao
tratar o cenário, como já foi esboçado, a linguagem enxuta serve para caracterizar
a ambientação seca e miserável do Nordeste.
Uma segunda maneira de analisar a propriedade vocabular diz respeito
ao tratamento das personagens. O autor, para apresentá-las, atribui a estas um
universo estreito em que o pensamento é moldado por palavras escolhidas de
um vocabulário parco; daí surgirem ambições pequenas e limites estreitos para os
pensamentos dos retirantes.
Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A Lua estava cercada de um halo
cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele,
Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta.

Na passagem anterior tem-se uma mostra de quão pequeno é o universo de


Fabiano. O número cinco é equivalente ao infinito no demonstrativo de quantida-
de que ele pretende dar às estrelas do céu.
Em contraponto, percebe-se que o domínio do mundo físico se dá menos
pelo pensamento que pela experiência sensitiva, tornando o empírico determi-
nante nas relações do homem com o ambiente. Analogamente, a relação dos
membros da família entre si e com o grupo é feita mais pela comunicação gestual
e/ou onomatopaica que pela palavra, que, no entanto, é o dom supremo do ser
racional. A redução do humano à condição de bicho é uma decorrência tão neces-
sária quanto elevar o bicho à condição humana, irmanados que estão na luta pela
sobrevivência e no constante desafio de enfrentar o ambiente inóspito.
– Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvin-
do-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar
coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas
como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença
dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase
imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

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– Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu ci-
garro de palha.
– Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias masti-
gando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o
expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçan-
do os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe
as marcas de ferro.

Sinha Vitória tinha aspirações tão pequenas quanto Fabiano; seu infinito era
ter uma cama, simbolizando a estabilidade, uma felicidade perseguida, mas não
fácil de atingir. Unia o casal a quase certeza de que a vida naquelas paragens é
marcada pela transitoriedade, não havendo raízes; o dia vindouro é inseguro, daí
apegarem-se a sonhos; por mais miúdos que fossem, serviam como válvulas de
escape.
Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos entretidos no barreiro, sujos
de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pé-de-turco, e não encontrou
motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano.
Dormiam naquilo, tinha-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de
lastro de couro, como outras pessoas.
(…) Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doi-
dice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam
ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam
o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada,
dormiriam bem debaixo de um pau.

Seu Tomás da bolandeira surge, neste contexto, como um ser posto entre
o humano e o divino, tornando-se o símbolo do saber, da humildade e da justiça.
Restam algumas questões: até que ponto os envolvidos pela miséria esta-
riam conscientes dos maus-tratos sofridos? Até que ponto a miséria sentida é mais
forte que a consciência que se tem dela? É possível uma revolta de Fabiano, se ele
não apresenta possibilidades de articulá-la concretamente devido aos limites de
sua linguagem? A velhice e a educação dos filhos poderiam efetivamente ser pen-
sadas dentro dos limites estreitos da consciência dos retirantes?

Patrão e soldado amarelo: entre a opressão e a repressão


Dois capítulos de Vidas secas são dedicados ao problema da submissão do
personagem diante da autoridade: “Contas” (capítulo X) e “Cadeia” (capítulo III).
Em “Contas”, o patrão engana a personagem com contas que ele não enten-
de e que diferem das feitas por sinha Vitória. Diante da “insolência” da personagem

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ao tentar contestar a autoridade do fazendeiro, impõe-se a submissão. O leitor,
por meio do discurso indireto livre, capta o fluxo do pensamento de Fabiano, que
revela sua incapacidade de articular e, consequentemente, de argumentar a seu
favor: “com o avô fora assim, com o pai fora assim e com ele também se repetiria
a mesma história?”. Embora sem se conformar, resigna-se e humildemente pede
desculpas diante da autoridade. O patrão representa o poder pela propriedade e
pelo dinheiro, portanto, o poder econômico.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente
que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não
se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entre-
gando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca
arranjar carta de alforria!

Em “Cadeia” tem-se outro momento de tensão do volume. Fabiano vai à


cidade, encontra um soldado que o convida para um jogo de cartas. Fabiano é
ludibriado no jogo, perde, desacata a autoridade, é humilhado e preso. A farda do
soldado é sua autoridade. A personagem tem consciência de que não fizera nada
e, se quisesse, poderia agredir o soldado, mas não o faz porque o soldado repre-
senta a autoridade instituída. Apenas esboça sua pequena indignação:
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim
senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem
acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns conde-
nados. Assim um homem não podia resistir.

Deve-se registrar que o capítulo mostra o poder político estabelecido a par-


tir da utilização das forças armadas, representadas pelo amarelo (cáqui) da farda
e simboliza o grupo repressor, coagindo e se impondo. Pode-se estabelecer um
paralelo entre a força bruta do grupo e submissão do indivíduo que não se in-
subordina e aceita passivamente a sua condição. Essa visão é bem marcada em
“Soldado amarelo” (capítulo XI) em que o mesmo soldado, estando sozinho, isto é,
longe do grupo, é submetido ao jugo do indivíduo e “amarela”, ou seja, perde sua
forma de coerção.

Existem soluções?
O problema social tratado em Vidas secas é extremamente brasileiro e de
âmbito regional. A seca gera miséria, e a miséria, a morte e a desolação. Nesse
sentido, é lícito pensar que não sobram alternativas para os retirantes a não ser as
migrações contínuas de terra para terra, na mesma região, caracterizando a mu-
dança; ou de região para região, transfigurando-se em fuga.
Em qualquer cenário, a relação estabelecida entre os retirantes e a fazenda
ou a cidade grande é de vassalagem e de exploração, uma vez que esses homens

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fortes acabam sendo tomados como mão de obra barata. Confundidas estão a
seca e a exploração sofrida pelos miseráveis, e Graciliano retrata a dura e cruel
realidade. No entanto, percebe-se que o vaqueiro respeita o trabalho que executa
e ama a terra em que vive. Mas o sentimento telúrico fica amortecido diante do
sofrimento advindo da falta de condições que viabilizam a sobrevivência do gru-
po, e o respeito pelo trabalho não lhe confere forças suficientes para enfrentar os
poderosos. A vida nada tem de diferente da paisagem, resumos que são da miséria
e da seca. O meio agride o homem, interferindo nas relações sociais. Nesse senti-
do, ao lado da tendência neorrealista coexiste a forte tendência neonaturalista em
Vidas secas.
Para concluir, é interessante notar a relação de semelhança entre os termos
catinga, opção gráfica de Graciliano (ele poderia ter optado pela forma caatinga),
para designar o lugar onde acontecem as ações do volume; e catinga, de catingar,
fedor, mau cheiro; por extensão, o desagradável odor de morte que exala dessas
regiões. As intempéries da natureza são geradoras da morte. Graciliano procura
denunciar a falta de amparo sofrida por esses homens fortes sujeitos ao abandono
e à falta de solidariedade. Em todos e em tudo estão as marcas do terror impressas
pelos tempos cruéis de uma natureza ingrata. Não há mão que se levante para
lutar pelos desamparados, não há governo que mude a situação já enraizada na
própria estrutura do poder. Para os sertanejos só existe o caminho da esperança
rumo ao Sul.

Textos extraídos de:


Graciliano Ramos. Vidas secas. São Paulo: Record, 2000.

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MODERNISMO

Capitães da Areia
Jorge Amado

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Paladino da Justiça
Jorge Amado (1912-2001) foi um dos escritores mais significativos da se-
gunda geração modernista (1930-1945), também conhecida como neorrealista.
Baiano de nascimento, exerceu o jornalismo e participou ativamente da vida polí-
tica da região, envolvido na chamada esquerda comunista. Influenciado pela ideo-
logia, coloca em muitas de suas obras os problemas relacionados com as injustiças
sociais, a exploração do homem pelo homem e o poder exercido pelos “senhores
de terra”. Como bom baiano, dedicou-se ao estudo das religiões e tradições afro-
-brasileiras, registrando aspectos pitorescos dos costumes e da vida de sua terra
natal em boa parte de suas obras. É um dos autores mais populares da moderna
ficção brasileira, traduzido para inúmeros idiomas, reconhecido internacional-
mente e fonte de influência para as literaturas de língua portuguesa, tanto em
Portugal como nos países lusófonos da África.
Sua trajetória literária pode ser estudada em duas fases, tendo como obra
delimitadora Gabriela, cravo e canela (1958). A primeira tem início com País do car-
naval (1932) e se estende até Subterrâneos da liberdade (1954), contendo boa parte
da ficção ideologicamente engajada de Jorge Amado. Situa-se nessa fase Capitães
da Areia (1937), seu sexto romance.
Capitães da Areia é uma narrativa de teor realista, revelando ao leitor um
mundo de miséria, pobreza, desnutrição, desamparo, desesperança, mas também
de companheirismo e poesia. Tem como ponto de partida e de chegada um trapi-
che, ou armazém abandonado, à beira-mar em Salvador, em que quase uma cen-
tena de crianças de rua procura abrigo. O livro não tem propriamente um enredo;
intercala quadros vividos por personagens que revelam certas facetas do bando
e da realidade, focados em suas vidas devassas, praticando pequenos crimes e
envolvidos em toda a sorte de vícios, sem amparo de autoridades ou do assis-
tencialismo religioso. Os meninos são liderados por Pedro Bala, moleque de 15
anos, filho de um operário assassinado durante uma greve, que tutela as ações
das crianças sob sua guarda, comandando os expedientes para obter dinheiro e
alimentos.
A obra é escrita em terceira pessoa por um autor onisciente, que procura ser
imparcial, ou seja, procura não se envolver na narrativa, mas se permite investigar
o interior das personagens e dirigir o enredo. O livro serve como uma arma de
denúncia contra o que existe de problemático na conjuntura social, daí seu caráter
engajado.
Ao registrar diferenças sociais e religiosas, os preconceitos e as discrepân-
cias de tratamento, a forma de falar e de agir de diferentes camadas sociais, Jor-
ge Amado elabora um painel amplo e colorido da cidade de Salvador no final
da década de 1930. Como não há determinação do tempo, percebe-se que as
ações vinculam-se às estratégias do cangaceiro Lampião, tido como uma espé-

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cie de Robin Hood pela população mais carente. As ações de Lampião (que se
estendem até 1938, ano de sua morte) tornam-se referências temporais, embora
o volume seja datado de 1937.
Um aspecto interessante da estrutura da obra está na forma como Jorge
Amado inicia o romance, tendo como ponto de partida uma série de reportagens
que versam sobre o tema “crimes cometidos por crianças abandonadas”.
Capitães da Areia, o primeiro romance urbano do escritor, recorre a expe-
dientes quase românticos para angariar a simpatia do leitor que, se por um lado
fica condoído com a vida dos maltrapilhos, também nutre certo desprezo pelas
camadas mais privilegiadas da população, que tapam os olhos diante de uma
realidade ingrata.
Jorge Amado chega ao século XXI renovado e atual. Suas preocupações
com desajustes sociais ainda hoje são estampadas em noticiários, as ações dos
personagens da década de 1930 são muito semelhantes às das crianças abando-
nadas e infratoras que ainda hoje constituem problemas de difícil solução.

Estrutura e enredo
Prólogo: “Cartas à redação”
O primeiro ponto importante na estruturação do romance é a forma extrema-
mente criativa como o autor o introduz. Abrindo-se para o universo jornalístico, há,
no prólogo intitulado “Cartas à redação”, transcrições ipsis litteris1 de algumas repor-
tagens e cartas publicadas no Jornal da Tarde, desencadeadas pela notícia “Crianças
ladronas”, cujo assunto é o roubo ocorrido na casa de um rico comerciante residen-
te em um bairro de elite de Salvador. A reportagem aponta crianças abandonadas
como responsáveis pelo crime. Em seguida, são transcritas cinco cartas vazadas em
linguagens diferentes, representando camadas sociais também diferentes.
A primeira, escrita em tom oficial, é redigida em nome do chefe de polícia,
que se exime de responsabilidade quanto ao crime, alegando que tais furtos deve-
riam ser coibidos pelo Juizado de Menores. A segunda carta, em linguagem florea-
da, vem assinada pelo Juiz de Menores, defendendo-se da acusação, colocando-se
à disposição da polícia, mas passando a responsabilidade para o reformatório. A
terceira e a quarta cartas contrastam com as demais pela linguagem utilizada. Na
terceira, pedindo desculpas pela letra e pelos erros, uma mãe trabalhadora acusa
o reformatório de não ser um lugar de aprendizagem, mas de deformação do ca-
ráter das crianças que lá são acolhidas, sendo deploráveis as condições de vida dos
menores nesse local. A quarta carta, assinada pelo padre José Pedro, é marcada
por uma linguagem mais enxuta; referenda as acusações da costureira, alegando

1 ipsis litteris (locução adverbial) – nos mesmos termos; tal como está escrito.

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desumanidade no tratamento das crianças recolhidas na instituição. A sexta carta,
subscrita pelo diretor do reformatório, refuta as acusações de forma laudatória.
Após visita às instalações do reformatório, o jornal publica uma nota na pri-
meira página, em que elogia o estabelecimento – “modelar onde reinam a paz e o
trabalho – um diretor que é um amigo – ótima comida...” –, ou seja, apoia os pro-
cedimentos educacionais do reformatório. Conforme a notoriedade do autor da
carta, ela é publicada em uma determinada página, facilitando (ou dificultando) a
leitura da mesma.
O prólogo escrito de forma sui generis2 procura dar verossimilhança ao con-
teúdo do livro, chamando a atenção do leitor para a realidade que ele deverá en-
contrar ao virar as páginas do livro.

1ª parte:
“Sob a lua, num velho trapiche abandonado”
Subdividida em 10 capítulos, a primeira parte apresenta o local em que as
ações transcorrerão. Um trapiche (ou armazém abandonado), à beira-mar, que no
passado fora um local movimentado e agora está sujo e infestado de ratos. Fora
frequentado inicialmente pela marginália, até ser tomado pelo bando dos Capi-
tães da Areia.
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem.
Antigamente aqui era o mar. Nas grandes e negras pedras dos alicerces do trapiche as
ondas ora se rebentavam fragosas, ora vinham se bater mansamente. A água passava por bai-
xo da ponte sob a qual muitas crianças repousam agora, iluminadas por uma réstia amarela
de lua. Desta ponte saíram inúmeros veleiros carregados, alguns eram enormes e pintados de
estranhas cores, para a aventura das travessias marítimas. Aqui vinham encher os porões e
atracavam nesta ponte de tábuas, hoje comidas. Antigamente diante do trapiche se estendia o
mistério do mar-oceano, as noites diante dele eram de um verde-escuro, quase negras, daquela
cor misteriosa que é a cor do mar à noite.

Ao contrário de outros grupos espalhados pela cidade, os Capitães da Areia


têm líder, seguem normas e, principalmente, obedecem a um chefe que cumpre o
papel de “manter um lar” para as crianças que ali vivem. Pedro Bala, quase natural-
mente, surge como líder e tem o papel de harmonizar, manter a ordem e, de certa
maneira, ensiná-los a agir sob certas circunstâncias. Com quinze anos, audaz, ativo
e conhecedor de todos os recantos da cidade, é marcado por uma cicatriz e por
seus cabelos loiros. Poucos lhe conheceram a mãe, e o pai “morrera de um balaço”,
daí talvez a origem de seu apelido. Para firmar a liderança, Pedro Bala destituiu o
caboclo Raimundo, após uma luta pelo “poder”.

2 sui generis (locução adjetiva) – sem semelhança com nenhum outro, único no gênero; original, singular.

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Não durou muito na chefia o caboclo Raimundo. Pedro Bala era muito mais ativo, sabia
planejar os trabalhos, sabia tratar com os outros, trazia nos olhos e na voz a autoridade de che-
fe. Um dia brigaram. A desgraça de Raimundo foi puxar uma navalha e cortar o rosto de Pedro,
um talho que ficou para o resto da vida. Os outros se meteram e como Pedro estava desarmado
deram razão a ele e ficaram esperando a revanche, que não tardou. Uma noite, quando Rai-
mundo quis surrar Barandão, Pedro tomou as dores do negrinho e rolaram na luta mais sensa-
cional a que as areias do cais jamais assistiram. Raimundo era mais alto e mais velho. Porém
Pedro Bala, o cabelo loiro voando, a cicatriz vermelha no rosto, era de uma agilidade espantosa
e desde esse dia Raimundo deixou não só a chefia dos Capitães da Areia, como o próprio areal.
Engajou tempos depois num navio.

O último parágrafo do primeiro capítulo revela o olhar lírico do autor para


com os desvalidos, que
Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando
pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os
que totalmente a amavam, os seus poetas.

O segundo capítulo introduz alguns outros personagens. João Grande,


subchefe, menino de 13 anos, moleque de bom coração e senso de justiça, não
tinha inteligência aguçada, mas sua enorme força muscular o fizera temido.
Sem-Pernas, espião do grupo, sabia fingir e agir em benefício próprio; agressivo
e revoltado por causa de um defeito físico, perdera os pais na imensidão da ci-
dade, e se aproveitava do fato de ser coxo para angariar a simpatia de uma mãe
de família. João José, cujo apelido é Professor, é o mais culto do bando, pratica-
mente autodidata, lia para os pequenos e se interessava por qualquer livro que
lhe caía nas mãos; além disso, tinha pendor para as artes plásticas, desenhando
com giz a realidade que o circundava com precisão. O Gato, mais malandro que
os outros, tornara-se amante de uma prostituta e dela recebia o necessário para
sua sobrevivência; é sinônimo de vigarista que tira proveito dos outros. Piruli-
to era uma verdadeira vocação religiosa e tinha entre seus roubos e pertences
duas imagens sagradas. Barandão e Almiro destacam-se por representarem o
despertar da homossexualidade. Boa-Vida é malandro como Gato, mas não é
galã; por ser feio, conquista os outros pelo gingado, pelo jeito de tocar violão e
cantar. Volta Seca, alto e magro, é outro elemento esquematizado e tipificado,
como são vários outros perfis humanos rejeitados pela vida e pela sociedade.
Praticamente todos os personagens da obra são conhecidos pelos apelidos que,
de uma forma ou de outra, representam alguma anomalia ou característica física
ou psicológica.
O autor, ao caracterizar os personagens, evidencia aspectos da vida dos
garotos que permitem revelar suas angústias, seus temores, sua formação moral.
Trata-se de crianças cuja personalidade fora construída no desamparo, sem o guia
da educação e sem o conforto, o carinho e a proteção dos pais. Essas crianças ape-

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nas encontram algum amparo em Don’Aninha, mãe de santo do terreiro da Cruz
de Opô Afonjá, no padre José Pedro e em Querido-de-Deus, o capoeirista.
... O Sem-Pernas recuou e a sua angústia cresceu. Todos procuravam um carinho, qual-
quer coisa fora daquela vida: o Professor naqueles livros que lia a noite toda, o Gato na cama
de uma mulher da vida que lhe dava dinheiro, Pirulito na oração que o transfigurava, Barandão
e Almiro no amor na areia do cais. O Sem-Pernas sentia que uma angústia o tomava e que
era impossível dormir. Se dormisse viriam os maus sonhos da cadeia. Queria que aparecesse
alguém a quem ele pudesse torturar com dichotes. Queria uma briga. Pensou em ir acender um
fósforo na perna de um que dormisse. Mas quando olhou da porta do trapiche, sentiu somente
pena e uma doida vontade de fugir. E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito, fugindo da
sua angústia.

No capítulo três da primeira parte, o leitor conhece Querido-de-Deus,


que os contrata para um “trabalho”. A forma como as crianças agem, desde a
articulação de um roubo, até sua execução, é mostrada com pequenos deta-
lhes.
No capítulo seguinte, “As luzes do carrossel”, o leitor conhece a face infantil
das crianças, deslumbradas com um carrossel itinerante que, embora decadente,
desperta a ingenuidade dos meninos. Um bando de pequenos criminosos mostra-
-se infantil diante de um carrossel. Nhozinho França, dono de um decadente par-
que de diversões, contrata Sem-Pernas e Volta Seca para ajudarem-no a vender
os ingressos. Os meninos acolhem a ideia com entusiasmo, ajudando a montar o
engenho e a vender ingressos.
Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá substituir Volta Seca na ven-
da de bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que
serviu a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro
cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua
imaginação os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição... E o cavalo corre e
cada vez corre mais, e ele mata a todos, porque são todos soldados ou fazendeiros ricos. Depois
possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, trens de ferro, montado no seu
cavalo, armado com seu rifle.
Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um
crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte.
Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os
lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola. Só vê as luzes que giram
com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos
aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é
um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já não vê os soldados que o sur-
raram, o homem de colete que ria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso
no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas na mais maravilhosa viagem do
mundo. Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto,
que ele o aperta com a mão.

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Ainda nesse capítulo, o leitor conhece o padre José Pedro, uma das poucas
pessoas a ter acesso ao esconderijo do bando. O padre é abnegado, preocupa-se
com os desamparados e, por isso, recebe advertências do alto clero. De origem
humilde, seu maior sonho era tornar-se pároco, mas, apesar das promessas, nun-
ca recebera uma paróquia. Enquanto todos desdenham os Capitães da Areia, o
padre procura entendê-los, tratando-os com dignidade e, aos poucos, angaria a
confiança do grupo. Paradoxalmente ao que se espera da religião, é condenado
por suas atitudes diante dos humildes, como se percebe pela conversa entre ele e
uma devota:
– O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor?
Um homem de responsabilidade, no meio desta gentalha...
– São crianças, senhora.
A velha olhou superior e fez um gesto de desprezo com a boca. O padre continuou:
– Cristo disse: “Deixai vir a mim as criancinhas”...
– Criancinhas... Criancinhas... – cuspia a velha. (...)
– Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões. Isso não são crianças ...

No capítulo “Docas”, em conversa com o estivador João de Adão, Pedro Bala


fica sabendo da vida heroica do pai, também estivador no porto, morto pela Ca-
valaria em uma greve. Ainda ouve a promessa de que, assim que quisesse, teria
garantido o ingresso nas docas, e, dessa forma, poderia seguir os passos do pai.
Nesse momento, pela primeira vez, Pedro Bala sente-se atraído pelo desejo de par-
ticipar de lutas libertárias. Ao mesmo tempo, ao longo dos capítulos, Jorge Amado
vai registrando suas observações sobre o meio religioso da Bahia, marcado pelo
sincretismo, algo muito pronunciado na vida baiana.
Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade, pois o Boa-Vida fora com o Querido-de-
-Deus dançar num bleforé. Desceu as ladeiras que o conduziam à cidade baixa. Ia devagar,
como se carregasse um peso dentro de si, ia como que curvado por dentro. Pensava na conver-
sa da tarde com João de Adão, conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai fora
um homem valente do cais, um homem que chegara a deixar uma história. Mas João de Adão
falara também dos direitos dos doqueiros. Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e, no
entanto, fora por estes direitos que seu pai morrera. E depois, na macumba do Gantois, Omolu,
paramentada de vermelho, dissera que o dia da vingança dos pobres não tardaria em chegar.

O esboço da consciência política coincide com a explosão do instinto ani-


malesco que o leva a violentar, nas areias da praia, uma jovem de quinze anos,
ainda virgem. Atormentado pelo desejo, não pensa na desumanidade da violência
que está praticando, mas, depois do ato
... tinha vontade de se jogar no mar para se lavar de toda aquela inquietação, a vontade
de se vingar dos homens que tinham matado seu pai, o ódio que sentia contra a cidade rica que se
estendia do outro lado do mar, na Barra, na Vitória, na Graça, o desespero da sua vida de criança
abandonada e perseguida, a pena que sentia pela pobre negrinha, uma criança também.

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Outros casos são narrados no transcorrer dos capítulos dessa primeira par-
te. Em “Aventuras de Ogum”, são relatadas a agilidade, inteligência e presteza dos
meninos para resgatar das mãos da polícia a imagem de Ogum. Em meio à gros-
seira realidade, até a religião passa pelo crivo das diferenças sociais.
... Os candomblés batiam em desagravo a Ogum e talvez num deles ou em muitos deles
Omolu anunciasse a vingança do povo pobre. Don’Aninha disse aos meninos com uma voz
amarga:
– Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre
não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus. –
Sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe de santo Don’Aninha. – Não se con-
tentam de matar os pobres a fome. Agora tiram os santos dos pobres... – e alçava os pu-
nhos.

Em “Deus sorri como um negrinho”, é revelada, de forma lírica e poética, a


vocação religiosa e mística de Pirulito, quando de um roubo de uma imagem san-
ta. Os paradoxos do grupo são acentuados principalmente quando se contrasta
a profunda desumanidade com a inconsciência de uma sociedade que privilegia
certos valores, mas que fecha os olhos para o real, que finge caridade, mas delega
ao outro fazê-la.
... O difícil para o padre José Pedro era conciliar as coisas. Mas ia tenteando e por
vezes sorria satisfeito dos resultados. A não ser quando João de Adão ria dele e dizia que só a
revolução acertaria tudo aquilo. Lá em cima, na cidade alta, os homens ricos e as mulheres
queriam que os Capitães da Areia fossem para as prisões, para o Reformatório, que era pior
que as prisões. Lá embaixo, nas docas, João de Adão queria acabar com os ricos, fazer tudo
igual, dar escola aos meninos. O padre queria dar casa, escola, carinho e conforto aos meni-
nos sem a revolução, sem acabar com os ricos. Mas de todos os lados era uma barreira. Ficava
como perdido e pedia a Deus que o inspirasse. E com certo pavor via que, quando pensava
no problema, dava, sem sequer o sentir, razão ao doqueiro João de Adão. Então era possuído
de temor, porque não fora assim que lhe haviam ensinado, e rezava horas seguidas para que
Deus o iluminasse.
Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha
fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na
garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho,
sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria.

O verdadeiro sentido da religião está no trecho em que Pirulito, movido


pela fé e encantado com a imagem do Menino Jesus que vê em uma vitrine, rou-
ba mais uma vez, mas transfigurado pelos ensinamentos religiosos incutidos pelo
padre, sonha com um milagre, uma doação da Virgem.
... Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus
braços e o chama com sua doce voz:
– Leve e cuide dele... Cuide bem...
Pirulito avança. Vê o inferno, o castigo de Deus, suas mãos e sua cabeça a arder uma

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vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino
que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.
Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não
tem mais fome nem sede nem frio .

Os três substantivos que encerram a citação abrem-se para o capítulo “Fa-


mília”. Os meninos planejam fazer grande roubo em uma casa rica e usam Sem-
-Pernas como isca. Aproveitando-se de sua deficiência, Sem-Pernas sondaria a
casa e indicaria ao grupo os objetos de valor que poderiam ser levados. No entan-
to, a família rica havia perdido um filho ainda criança, e, ao verem um menino com
quase a mesma idade do filho, condoem-se e o tratam com carinho. A perspectiva
de um lar faz Sem-Pernas esmorecer e refletir sobre suas próprias necessidades de
proteção, mas sua consciência “de classe” e o apego ao grupo superam a vontade
que teve de se entregar aos prazeres de uma família.
... Desta vez não o deixaram na cozinha com seus molambos, não o puseram a dor-
mir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. Era um hóspede (...) E
fumando o seu cigarro escondido (o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que está se escon-
dendo para fumar), o Sem-Pernas pensa sem compreender (...), mas tem medo. E levanta-se, sai
do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que ele é um
menino perdido, (...) Assim o mandarão para a cozinha, e ele poderá levar para diante sua obra
de vingança, conservar o ódio no seu coração. (...) E diante dos seus olhos passa a visão do ho-
mem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso
há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das
mãos do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão.
Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres.
Por isso teme que sejam bons para consigo.

Os três últimos capítulos da primeira parte do livro, “Manhã como um qua-


dro”, “Alastrim” e “Destino”, tratam, respectivamente, de uma antecipação do des-
tino do Professor, que, no futuro, se transformará em grande pintor e revelará ao
mundo a arte na criança que chora; a morte e a miséria das comunidades carentes,
quando do surto de varíola que se alastra pela região e o tratamento subumano
que é dado aos doentes; e, finalmente, da semente da revolução que começa a
germinar em Pedro Bala.
Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento de copos no balcão. Um velho
então disse:
– Ninguém pode mudar o destino. É coisa feita lá em cima – apontava o céu.
Mas João de Adão falou de outra mesa:
– Um dia a gente muda o destino dos pobres...
Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorridente. Mas João Grande e Boa-Vida
pareciam apoiar as palavras do velho, que repetiu:
– Ninguém pode mudar, não. Está escrito lá em cima.
– Um dia a gente muda... – disse Pedro Bala, e todos olharam para o menino.

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2ª parte:
“Noite da grande paz, da grande paz dos teus olhos”
A segunda parte, composta por oito capítulos, gira em torno de uma nova
personagem, apresentada no capítulo “Filha de bexiguento”. Trata-se de Dora, me-
nina que perde os pais vitimados pela bexiga que se alastrou pela cidade e a dei-
xou órfã, com um irmão menor, Zé Fuinha, sob seus cuidados. Como é rejeitada
por todos, principalmente por causa da doença dos pais, Dora só consegue abrigo
entre os Capitães da Areia. No início, a menina é vista como mulher e os meni-
nos do trapiche querem violentá-la, mas o Professor, Pedro Bala e João Grande
protegem a jovem, não deixando que nada de mal lhe aconteça. Gradativamente,
Dora vai deixando o papel de criança desabrigada para assumir o papel de mãe
carinhosa e meiga, protetora e defensora de uma prole que ela não tivera, mas que
faz questão de cuidar, conforme é dito em “Dora, mãe”.
... A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio
de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua
mãe. Dora está por trás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pe-
quenino de novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do
morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis
manejam a agulha, de quando em vez tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta.
Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou, remenda as camisas do Gato. Uma vontade de
deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se
recorda que ainda é uma criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem, fur-
tando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela.
Mas nesta noite é totalmente criança, esquece Dalva, suas mãos que o arranham, lábios que
prendem os seus em beijos longos, sexo que o absorve. Esquece sua vida de pequeno batedor
de carteiras, de dono de um baralho marcado, jogador desonesto. Esquece tudo, é apenas um
menino de quatorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas. Vontade de que ela
cante para ele dormir... Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho-papão. Dora mor-
de a linha, se inclina para ele. Os cabelos loiros dela tocam no ombro do Gato. Mas ele não tem
outro desejo senão que ela continue a ser sua mãezinha. (...)
Levanta, olha Dora com olhos agradecidos:
– Você é a mãezinha da gente, agora... – mas fica encabulado do que diz, pensa que
Dora não compreenderá mesmo, porque ela está rindo com seu rosto sério de quase mulher-
zinha. Mas Professor compreende, e Gato, na frente de Dora, falando numa voz feliz, mas sem
desejo, chamando-a de mãe, e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha, fica
gravado na cabeça do Professor como um quadro.
Embora secretamente, o Professor passara a amar a menina e, no futuro, em
suas produções artísticas, jamais deixará de colocar a imagem dela.
No capítulo “Dora, irmã e noiva”, a partir da integração definitiva da menina
ao grupo, inclusive participando como menino das atividades, assume, além do
papel de mãe, o papel de irmã.

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Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cida-
de inimiga. Agora a amava também, aprendia a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos
bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro
Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e
se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de “meu irmão”. O negro a
seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades
de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto:
– É valente como um homem...
Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da
Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes,
Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os o que ela lançava a João Grande,
a Sem-Pernas, a Gato e a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lan-
çava a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na
porta de uma loja:
– Ladrão! Ladrão! Me furtaram...
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os
elogios de João Grande, mas não sorri.
(...) Ela de longe sorria para Pedro Bala. Não havia nenhuma malícia no seu sorriso. Mas
seu olhar era diferente do olhar de irmã que lançava aos outros. Era um doce olhar de noiva, de
noiva ingênua e tímida. Talvez mesmo não soubessem que era amor. Apesar de não ser noite de
lua, havia um romântico romance no casarão colonial. Ela sorria e baixava os olhos, por vezes
piscava com um olho porque pensava que isto era namorar. E seu coração batia rápido quando
o olhava. Não sabia que isso era amor.
O capítulo “Reformatório” retoma as notícias do Jornal da Tarde, deixando
o leitor a par do que ocorrera com o bando desde o assalto frustrado até a cap-
tura de Dora e Pedro Bala. Em “Orfanato”, os pequenos criminosos, não querendo
denunciar os outros membros do grupo, tampouco o esconderijo que lhes serve
de abrigo, aceitam resignados a sorte: Pedro Bala vai preso e Dora é conduzida ao
orfanato. Os dois passam os maiores dissabores nas duas instituições até que são
soltos pelos companheiros. O caráter de Pedro Bala, verdadeiro líder, modela-se
ainda mais, pois, mesmo na solitária, mesmo sofrendo horrores, não se deixa sedu-
zir pelas facilidades que lhe prometem, não denuncia, não admite delatar nenhum
de seus companheiros. Entrementes, Dora adoece e míngua de uma febre que a
corrói. Ao serem soltos pelos companheiros, a menina já se encontra nos últimos
lampejos de vida. No capítulo “Dora, esposa”, no seu último ato consciente, torna-
-se completamente mulher e entrega-se a Pedro Bala. Encerrando a segunda parte
do livro tem-se “Como uma estrela de loira cabeleira”, mostrando a morte como
encantamento e, como quer Pedro Bala, Dora é transmudada em estrela, aquela
que o guiará.
Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu.
Assim foi com Zumbi, com Lucas da Feira, com Besouro, todos os negros valentes. Mas nunca
se viu um caso de uma mulher por mais valente que fosse, virar estrela depois de morta. (...)

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Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou
sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu.”

3ª parte:
“Canção da Bahia, canção da liberdade”
O narrador fecha o romance relatando o destino dos membros que foram
destacados ao longo do romance. As crianças tornam-se jovens e adultos e vão
deixando o trapiche. Professor parte para o Rio de Janeiro e inicia um curso de pin-
tura acadêmica, mas logo o abandona para dar vazão a seu veio artístico natural,
popular, espontâneo. Torna-se um pintor de sucesso, com direito a uma exposição.
Nessa noite, Professor não acendeu vela, não abriu livro de história. Ficou calado quan-
do João Grande veio para seu lado. Arrumava suas coisas numa trouxa. Quase tudo era livro.
João Grande olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem todos dissessem que não
havia negro mais burro (...)
Ainda de longe, Professor vê o boné de Pedro, que se sacode no cais. E no meio daqueles
homens desconhecidos, oficiais fardados, comerciantes e senhoritas, fica tímido, não sabe que
fazer, sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito
vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe en-
sina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam
todo o país.

Pirulito “desiste da sua liberdade, de ver e ouvir o espetáculo do mundo, da


marca de aventura dos Capitães da Areia para ouvir o chamado de Deus”, ingressa
na ordem dos Capuchinhos e ensina catecismo para crianças pobres. Padre José
Pedro finalmente realiza seu grande sonho e recebe sua paróquia, pequena e es-
quecida, no meio do cangaço, numa perdida vila do alto sertão. Ao despedir-se, o
padre vê reconhecido seu trabalho: recebe o agradecimento dos meninos. Boa-Vi-
da torna-se mais um malandro a vagar pelas ruas da cidade, “toca seu violão, come
e bebe do melhor, apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música. Arma
fuzuês nas festas, e quando a polícia o persegue, vem se esconder no trapiche”.
Gato viaja para Ilhéus em companhia de Dalva, prostituta e sua amante, torna-se
“jogador, vigarista e gigolô de mulheres”. João Grande ingressa na Marinha Mer-
cante. Volta Seca, após ser preso e torturado, encontra-se com o grupo de Lampião
e engaja-se, porque seu caminho é a vingança, “porque agora tinha uma missão na
vida: matar soldados de polícia.” O destino mais trágico foi o de Sem-Pernas, que,
para não se entregar à polícia, “sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os
guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um
que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço, como se fosse
um trapezista de circo”.

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... Só Pedro Bala não sabe o que fazer. Dentro em pouco será mais que rapazola, será
um homem e terá que deixar para outro a chefia dos Capitães da Areia. Para onde irá? Não
poderá ser um intelectual como Professor, cujas mãos só viviam para pintar, não nasceu para
malandro, como Boa-Vida, que não sente o espetáculo da luta diária dos homens, que só ama
andar vagabundeando pelas ruas, conversar acocorado nas docas, beber nas festas de morro.
Pedro sente o espetáculo dos homens, acha que aquela liberdade não é suficiente para a sede
de liberdade que tem dentro de si. Tampouco sente o chamado de Deus, como Pirulito o sentiu.
Para ele, as pregações do padre José Pedro nunca disseram nada. Gostava do padre como de
um homem bom. Só as palavras de João de Adão encontravam acolhida no seu coração. Mas
João de Adão mesmo sabe muito pouco. O que tem é músculos potentes e voz autoritária, e no
entanto amiga, para chefiar uma greve. Tampouco Pedro Bala quer ir como Gato enganar os
coronéis de Ilhéus, arrancar o dinheiro deles. Quer qualquer coisa que não sabe ainda o que é, e
por isso se demora entre os Capitães da Areia.

No capítulo “Notícias de jornal”, Jorge Amado novamente volta à redação do


Jornal da Tarde para, em forma de notícia, estampar manchetes, selando o destino
dos meninos: Professor expõe “cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os
sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra
de cabelos loiros e faces febris”; Gato e Volta Seca são presos. Enquanto para uns o
caminho é a lei ou a morte, para outros é a luta por um mundo melhor.
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham exis-
tência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas,
passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um
militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco esta-
dos como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da
ordem estabelecida.
No ano em que todas as bocas foram impedidas de falar, no ano que foi todo ele uma
noite de terror, esses jornais (únicas bocas que ainda falavam) clamavam pela liberdade de
Pedro Bala, líder da sua classe, que se encontrava preso numa colônia.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se ilumi-
naram ao saber da notícia. E, apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles lares era um
lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma
família.

Considerações finais
Capitães da Areia, embora não seja a obra-prima de Jorge Amado, tem ainda
hoje sua força na maneira contundente com que ele critica a sociedade como um
todo, sociedade marcada pelos contrastes, pelo descaso das autoridades e pelo
segregacionismo com que os mais privilegiados eliminam de suas existências a
consciência de que existem camadas mais pobres.
Percebe-se, também, o preconceito com que as crianças abandonadas são
tratadas e como são segregados não só aqueles que vivem na miséria, como aque-

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les que sofrem de alguma doença, principalmente se se tratar de alguma doença
contagiosa. Os meninos que representam os desamparados e desafortunados, de
uma forma ou de outra, lutam para saírem da miséria em que vivem, seja por meio
do roubo, da malandragem, ou por meio da arte, da política ou da religião.
Há a concepção do herói moderno, o anti-herói, construído a partir da ma-
landragem, da maneira como ele burla a realidade para sobreviver em meio às
intempéries. Há os verdadeiros heróis, aqueles que transcendem a existência alie-
nada em busca de algo mais substancial – o intelectual, pela denúncia através
de sua arte; o líder político, pela luta para a construção de uma nova realidade; o
religioso, por acreditar que nosso reino é em outro mundo. Alguns personagens,
que representam os deslocados, têm final trágico, são presos ou mortos – final
possível para todos aqueles que não se integram no quadro de redenção proposto
pelo autor e são os geradores de conflitos. As pequenas histórias protagonizadas
pelos integrantes do bando dos Capitães da Areia são articuladas para comover o
leitor, e essa narrativa feita com pequenos quadros alimenta uma espiral crescente
que levará Pedro Bala a estabelecer seus valores e, de certa forma, alinhavar o fio
condutor da narrativa. Todos giram em torno dele e em torno do trapiche. Pratica-
mente inexistem personagens que estão no outro lado, pertencentes às camadas
mais privilegiadas. Deles só ouvimos a voz, a voz que destoa, que caracteriza a
profunda discrepância social.

Textos extraídos de:


Capitães da Areia. Rio de Janeiro: Ed. Record, 74. ed.

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MODERNISMO

Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade

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Vida somente poesia
Em 1902, na cidade mineira de Itabira, nasce Carlos Drummond de Andrade,
um dos mais representativos poetas da moderna literatura brasileira. Como ele
mesmo diz, é filho de pais burgueses, que o educam no temor de Deus. Faz os pri-
meiros estudos na cidade natal e daí segue para Belo Horizonte. Posteriormente,
estuda como interno no Colégio Anchieta, educandário dirigido por padres jesuí-
tas, em Friburgo. Conforme escreve em Confissões de Minas:
Primeiro aluno da classe, é verdade que mais velho que a maioria dos colegas, com-
portava-me como um anjo, tinha saudades da família, e todos os outros bons sentimentos,
mas expulsaram-me por “insubordinação mental”. (...) A saída brusca do colégio teve influência
enorme no desenvolvimento dos meus estudos e de toda a minha vida. Perdi a fé. Perdi tempo.
E sobretudo perdi a confiança na justiça dos que me julgavam. Mas ganhei vida, e fiz alguns
amigos inesquecíveis.

Para obter diploma, frequenta o curso de Farmácia, mas não chega a exercer a
profissão. Mantém amizade com um grupo de intelectuais mineiros e se correspon-
de com os modernistas Manuel Bandeira e Mário de Andrade. Encabeçando A Revis-
ta (1925), Drummond torna-se um dos líderes do Movimento Modernista em Minas.
Em 1928, na Revista de Antropofagia publica o polêmico “No meio do caminho”, que
provocará o último grande escândalo da fase heroica do Modernismo (1922-1930).
Casado, leciona Português e Geografia no interior de Minas; retorna a Belo
Horizonte, onde se dedica ao jornalismo. Aceita depois a nomeação de funcioná-
rio da Secretaria da Educação. Transfere-se para o Rio como Chefe de Gabinete do
ministro da Educação Gustavo Capanema, cargo que exerce até 1945. Burocrata
por excelência, adepto da vida pacata e regular, aposenta-se em 1962 como fun-
cionário público do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico. Morre em 1987,
pouco depois do falecimento de sua única filha.

“Meu verso é minha consolação”


Carlos Drummond de Andrade estreia em 1930 com a publicação do volu-
me Alguma poesia, reunindo produções que vão de 1925 até 1930. Projetou-se,
então, num crescente nos meios culturais do Brasil, sendo considerado uma das
maiores expressões da poesia lírica do Modernismo.
Se, por um lado, é escritor extremamente individual – traduzindo em lin-
guagem seca, precisa e direta notas do mais puro lirismo –, por outro, soube dar
à sua poesia notações populares, cadências brasileiras muitas vezes impregnadas
de valores autobiográficos.
Influenciado por sua vivência mineira de Itabira, sua infância, seu ambien-
te familiar repleto de tradições, mistura sentimentalismo com irreverência e hu-
mor – “Eta vida besta, meu Deus.” – refletindo sua profunda compreensão dos va-

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lores que o cercam. Captando a realidade simples, cotidiana, torna-se o intérprete
do homem moderno, sendo esse mesmo homem o motivo das maiores atenções
do poeta, tanto nas relações dele com a realidade imediata, como no questiona-
mento dos grandes problemas que ele enfrenta no mundo.
Assim, sua poética se abre para captar o aspecto social. Em Sentimento do
mundo (1940) e A rosa do povo (1945), manifesta sua reação ante a miséria do ho-
mem no mundo moderno, sufocado por uma falta de humanidade, massacrado
por todos os mecanismos que constituem o processo de alienação.
Acrescenta-se à problemática social a consciência de um poeta que leva a
poesia a sério, isto é, acredita que a manipulação da palavra é tarefa de grande
responsabilidade e, por isso, investiga as possibilidades da expressão e da comu-
nicação. Cria, assim, uma linguagem poética inconfundível, tecnicamente perfeita
para adequar-se às necessidades de sua temática.
Convidado para escrever sua autobiografia para a Revista Acadêmica1,
Drummond tece comentários sobre suas produções:
Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volu-
me, Sentimento do mundo (1940). Só as elementares: meu progresso é lentíssimo, componho
muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta. Entendo que poesia
é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem ape-
nas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com
as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da
leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado
é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos. Infelizmente,
exige-se pouco do nosso poeta; menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista...
Herdeiro de 1922, Drummond verseja livremente, mas não teme aderir ao
verso tradicional, obedecendo, por vezes, às regras do soneto e da metrificação.
Na busca do formalismo, o poeta perde um pouco a sua imaginação, os ritmos
regulares fazem-no artífice do poema, sem a riqueza e originalidade dos ritmos
livres. Ele mesmo, percebendo que estava tolhido, diz: “Tenho saudades de mim
mesmo”, e, na necessidade de renovar-se, afirma: “preciso de outro verso bem dife-
rente”. Assim, abandona as formas fixas e volta a exprimir-se em versos moldados
no fluxo de sua poética. Não chega a ser concretista, mas pesquisa, em algumas
produções, a desintegração da palavra.
Com humor, ironia e irreverência, os poemas de Drummond evoluem com
sua prática poética. Através deles contemplam-se as transformações ocorridas no
próprio poeta e as transformações estéticas, sociais, políticas e muitas outras pelas
quais o mundo passa. Drummond é um atestado de evolução, recuperação, recria-
ção e consciência de que fazer poesia é algo de extrema seriedade.

1 “Autobiografia para uma revista”, escrita para a Revista Acadêmica, foi incluída em Confissões de Minas e
pode ser lida na íntegra no volume Obra completa da editora Aguilar, 1964.

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Entre eu e o mundo
Publicado em 1940, Sentimento do mundo é o terceiro livro de Carlos
Drummond de Andrade, seguindo Alguma poesia (1930) e Brejo das almas (1934).
O volume de 1940 abre uma nova fase na poesia de um dos maiores poetas do
Brasil de todos os tempos, reunindo produções escritas entre 1935 e 1940. São
poucos poemas - 28 no total - que traduzem a visão do poeta de si mesmo e as re-
flexões dele sobre o mundo à sua volta, tendendo para um olhar crítico e significa-
tivamente político que abre caminho para produções posteriores mais específicas
como José (1942) e A rosa do povo (1945).
Sentimento do mundo é uma obra que retrata o tempo de angústias que
antecede a 2ª Grande Guerra, o crescimento do nazifascismo, as imposições do
Estado Novo de Getúlio Vargas e as tensões advindas da eclosão do maior conflito
mundial do século, a própria guerra. Drummond quer, pela palavra, refletir sobre
esse tempo, tempo em que impera o pessimismo e, sobretudo, as dúvidas sobre
até onde chega a incapacidade de o homem reagir ao estado catastrófico que se
prenuncia e a inconsequência humana de não se rebelar diante dos problemas
que o mundo enfrenta. Ao se perceber impotente diante da amplitude dos proble-
mas com que se depara, o poeta confessa-se pessimista e solitário:
Tenho apenas duas mãos, / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de escravos, /
minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor. (...) esse amanhecer /
mais noite que a noite.

Drummond é dono de uma linguagem poética única, revelada na escolha


do termo preciso, na composição do verso enxuto, no comedimento da mensa-
gem, na disciplina exigida pelo fazer poético. Mescla melancolia, amargura, sar-
casmo, ironia, esperança – sentimentos e sensações extremamente pessoais, com
uma incrível capacidade analítica, refletindo criticamente sobre a realidade que
o circunda. De uma poesia pessoal, abre-se para uma temática universal, ou seja,
toma por tema as mazelas sociais que servem como pano de fundo para expressar
os dramas universais do homem.
Ao organizar sua Antologia poética, o poeta a estruturou a partir de nove
seções: 1) o indivíduo; 2) a terra natal; 3) a família; 4) amigos; 5) o choque social;
6) o conhecimento amoroso; 7) a própria poesia; 8) exercícios lúdicos e 9) uma vi-
são, ou tentativa de, da existência, assim nomeadas: “um eu todo retorcido”; “uma
província: esta”; “a família que me dei”; “cantar de amigos”; “na praça de convites”;
“amar-amaro”; “poesia contemplada”; “uma, duas argolinhas” e “tentativa de explo-
ração e de interpretação do estar-no-mundo”.
Para a análise de alguns poemas de Sentimento do mundo, seguiremos, até
onde possível, as sugestões temáticas do próprio autor, divididas em 4 segmentos:

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1) O indivíduo e suas reflexões
a) “Um eu todo retorcido”
Seção que investiga a formação do poeta e sua visão de mundo. Sempre
lúcido, discorre com amargor, pessimismo e ironia sobre o que ele, atento obser-
vador, capta de si mesmo e das coisas que o rodeiam. Inserem-se, além de “Senti-
mento do mundo” algumas de suas poesias mais significativas, como:
“Poema da necessidade”, em uma sequência anafórica são despejadas as
necessidades como se, para consertar o mundo, houvesse a necessidade de subs-
tituir a todos e acabar com o mundo:
É preciso casar João, / é preciso suportar Antônio / é preciso odiar Melquíades, / é preci-
so substituir nós todos (...) e anunciar o fim do mundo.

Ou em “A noite dissolve os homens” em que medita sobre a incomunica-


bilidade em paralelo com a escuridão sombria da noite que desce. Em paralelo,
o poeta pode contrapor a aurora, como o ressurgir, embora tênue, da esperança:
A noite é mortal, / completa, sem reticências, / a noite dissolve os homens (...) Havemos
de amanhecer. O mundo / se tinge com as tintas da antemanhã / e o sangue que escorre é doce,
de tão necessário / para cobrir tuas pálidas faces, aurora.

b) O tempo, a velhice e a morte


Em alguns poemas de Sentimento do mundo, a ideia de morte está intima-
mente ligada à sensação da passagem do tempo. O mundo é cambiante, ora a
vida se expande, ora se reduz, implacavelmente. Essa sensação pode ser traduzida
de maneira séria, mas pode trazer toques de um humor ácido. A vida se esvai aos
poucos, tendo como interlocutora as “Dentaduras duplas”:
... feéricas dentaduras, / admiráveis presas, / mastigando lestas / e indiferentes / a carne
da vida.

c) A família e a terra natal


Embora não tão presente nas poesias de Sentimento do mundo, o tema en-
contra dois grandes momentos na obra. O primeiro, em “Confidência do itabirano”,
em que o poeta revela a insatisfação do indivíduo consigo mesmo e com seu pas-
sado e sua formação. Por meio da memória, surge a amargura de se ver desprovido
de boas recordações do passado:
Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas
uma fotografia na parede. / Mas como dói.
O berço da família surge a partir da contemplação de um álbum de fotogra-
fias hiperbólico:
...alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, ...

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que traz visões intoleráveis como se tivessem a engolfar o homem, fazendo surgir
“Os mortos de sobrecasaca”.
Outro poema que pode ser encaixado nesta seção é “Canção da Moça-Fantasma
de Belo Horizonte”, lenda urbana narrada em primeira pessoa. Ela, a moça-fantasma,
vaga sem destino e, etérea, transfigurada em mulher de rua que transcende solitária:
Agora estou consolada, / disse tudo que queria, / subirei àquela nuvem, / serei lâmina
gelada, / cintilarei sobre os homens.

d) O cantar de amigos
Manuel Bandeira completa cinquenta anos em 1939. Merece toda a ternura
em uma bela homenagem repleta de carinho que lhe faz o amigo em “Ode ao
cinquentenário do poeta brasileiro”, composta das leituras e releituras e por frag-
mentos de poesias de Manuel Bandeira:
Não é o canto da andorinha, debruçada nos telhados da Lapa, / anunciando que tua
vida passou à toa, à toa. / Não é o médico mandando exclusivamente tocar um tango argenti-
no, / diante da escavação no pulmão esquerdo e do pulmão direito infiltrado. / Não são os car-
voeirinhos raquíticos voltando encarapitados nos burros velhos. / Não são os mortos do Recife
dormindo profundamente na noite...

2) Reflexões sobre a poesia e suas possibilidades


Nessa seção, estão agrupadas as poesias que discorrem sobre o ato ou a
necessidade de escrever. Drummond, arquiteto consciente da palavra, investiga e
avalia os mecanismos subjacentes à criação poética, bem como as possibilidades
que a linguagem tem de subverter a ordem do mundo, como em “Mãos dadas”.
Não serei o poeta de um mundo caduco / (...) O tempo é a minha matéria, o tempo pre-
sente, os homens presentes, / a vida presente.

Em “Congresso internacional do medo”, o poeta deixa-se levar pelo medo,


medo individual que, em um crescendo, contamina a sociedade, esteriliza, empa-
reda e paralisa, sepulta os homens e os mantém em isolamento:
Provisoriamente não cantaremos o amor, / (...) cantaremos o medo da morte e o medo
de depois da morte, / depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores
amarelas e medrosas.

O que o faz dizer, lucidamente, que a poesia vai estar a serviço de outras cau-
sas, aquelas que darão motivos para reflexões do social, em que será possível apon-
tar as necessidades e as discrepâncias do homem no seu meio social e no mundo
em que vive, vislumbrando uma possibilidade de futuro, como em “Mundo grande”:
Então, meu coração também pode crescer / Entre o amor e o fogo, / entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode. / Ó vida futura! nós te criaremos.

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3) O social: nosso tempo
Criar o futuro, para Drummond, remete fazer da poesia uma forma de resis-
tência: é a forma de sobrevivência e de esperança, mesmo que longínqua, de um
amanhecer, como nos versos de “A noite dissolve os homens”.
...as mãos dos sobreviventes se enlaçam, / os corpos hirtos adquirem uma fluidez, / uma
inocência, um perdão simples e macio... / Havemos de amanhecer...

Mas não há otimismo, a visão do poeta continua sombria e pessimista.


Assim, emerge de um contraponto entre esperança e dor a necessidade de inqui-
rir e de buscar a essência subjacente das coisas. É por meio da poesia que o poeta
sonda as possibilidades de capturar o que é imutável e eterno, sem mistificações.
Em “Os ombros suportam o mundo”:
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. /
Tempo, em que não se diz mais: meu amor (...) Chegou um tempo em que não adianta morrer. /
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação.
Em “Lembrança do mundo antigo”, o poeta contrapõe o passado ao presen-
te: no passado, havia luz, tranquilidade, paz em um mundo possível que merece
ser rememorado:
... Mas passeava no jardim, pela manhã!!! / Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Ou em “Madrigal lúgubre” em que retoma o motivo em contraposição ao


presente (fora) nefasto, amedrontado e sombrio, e o passado (dentro): trata-se de
uma abertura para a realidade:
Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico, / é o jornal sujo embrulhando fatos,
homens e comida guardada. / Dentro, vossas mãos níveas e mecânicas tecem algo parecido
com um véu. / O mundo, sob a neblina que criais, torna-se de tal modo espantoso / que o vosso
sono de mil anos se interrompe para admirá-lo.
O engajamento também está presente nas reflexões do poeta sobre as dis-
crepâncias sociais, a alienação e a necessidade de se pensar em reformas. Drum-
mond adere às ideias socialistas a fim de fazer de seu poema uma arma de com-
bate à miséria do trabalhador brasileiro. Na crônica poética “Operários no mar”,
ao divinizar o operário, distancia-o do burguês, representado pelo próprio poeta:
Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me des-
preza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos.

4) Os dramas do cotidiano
Nesse conjunto, há uma espécie de alargamento do gosto pelo cotidiano,
concebendo uma poesia que sai das ruas, do contato com o dia a dia, como se
vê em “Menino chorando na noite”, “Morro da Babilônia”, “Revelação do subúrbio”,
“Inocentes do Leblon”, entre outras.

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5) Exercícios poéticos: “uma, duas argolinhas”
Dois poemas de Sentimento do mundo podem partilhar a temática propos-
ta por Drummond. Em “Bolero de Ravel”, o poeta dialoga com a composição de
Ravel, tentando combinar o andamento da poesia com a música. A composição
do músico francês tem um ritmo invariável e uma melodia uniforme e repetitiva.
A sensação de mudança é dada pelo acréscimo de instrumentos – cordas, percus-
são, metais e madeiras.
Em La possession du monde há uma ironia em que se confunde a posse do
mundo com a posse de uma fruta. Rompendo com a respeitabilidade acadêmica,
Georges Duhamel, eminente intelectual francês, membro da Academia Francesa,
que abandonou a Medicina para dedicar-se à literatura, interrompe uma conversa
para pedir “uma engraçada fruta amarela”, ou seja, um mamão.
Houve uma hora em que ele se levantou / (em meio a erudita dissertação científica). /
Ia, talvez, confiar a mensagem da Europa / aos corações cativos da jovem América... / Mas
apontou apenas para a vertical / e pediu ce cocasse fruit jaune.

Algumas características dos poemas de Sentimento do mundo.


Psicologia do fazer poético, reflexão
1) “Sentimento do mundo” sobre as impossibilidades do eu e do
mundo, pessimismo e negativismo.
Heranças pessoais, amargura, melan-
2) “Confidência do itabirano” colia e sensação de impotência diante
do destino, autobiografia.
Verificação das necessidades tanto indivi-
3) “Poema da necessidade”
duais como coletivas. Visão apocalíptica.
Lirismo fabuloso, trabalho com o ima-
4) “Canção da Moça-Fantasma de
ginário popular, marginalidade e puri-
Belo Horizonte”
ficação.
Desejos e necessidades. Ironiza os an-
5) “Tristeza do império”
seios burgueses.
Crônica poética, reflexões sobre clas-
6) “Operários no mar” ses e antagonismos sociais, mistério
poético da realidade.
Lirismo utópico. Incorporação do sofri-
7) “Menino chorando na noite” mento alheio, dor universal em busca
da fraternidade e da solidariedade.
Alusão ao samba, à música, ao poder
8) “Morro da Babilônia” e à “Babilônia” em que se transformou
o morro.

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Medo como motor das possibilidades
9) “Congresso internacional do medo” de poesia, medo que paralisa e esteriliza
tanto o indivíduo quanto a sociedade.
Autobiográfico. Sondagem do passado a
10) “Os mortos de sobrecasaca” partir da contemplação de fotos: da ironia
zombeteira à explosão do sentimento.
Poesia antiacadêmica. Reflexão sobre
11) “Brinde ao juízo final”
a participação do poeta no mundo.
Alegoria que trata do problema social
12) “Privilégio do mar”
e das diferenças humanas.
Poesia de caráter social que critica cer-
13) “Inocentes do Leblon”
tas esferas da burguesia. Alienação.
Desde o berço o destino está traçado:
o amor, a carne, a vida e os beijos não
14) “Canção do berço”
têm a importância que a sociedade de
consumo lhes dá.
Poesia do cotidiano. Ressalta possibili-
15) “Indecisão do Meier”
dades de escolha.
Poesia lúdica: dialoga com a melodia
16) “Bolero de Ravel”
de Ravel e expressa impossibilidades.
Poesia lúdica, explorando contraste en-
17) “La possession du monde”
tre o acessório e o essencial. Ironia.
18) “Ode no cinquentenário do poeta Ode a Manuel Bandeira, poesia que
brasileiro” enaltece os 50 anos do poeta.
Poesia de grande significação existen-
19) “Os ombros suportam o mundo” cial, passagem do tempo e a vida sem
mistificações.
Sentimento do mundo: metalingua-
20) “Mãos dadas” gem, explorando necessidade de valo-
rizar o presente como matéria poética.
Sátira bem-humorada, revelando a pas-
21) “Dentaduras duplas” sagem do tempo e as reflexões sobre a
velhice.
Minas, o subúrbio como forma de re-
22) “Revelação do subúrbio”
velar a pequenez de algumas cidades.
Contraste entre a noite que dissolve os
23) “A noite dissolve os homens” homens e a aurora que simboliza a re-
vitalização (perspectiva da luz).

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Confronto entre o suave e o real, o cam-
24) “Madrigal lúgubre” pestre (madrigal) e o lúgubre (tempo
de guerra).
Revisitando o tempo e a vida passada
25) “Lembrança do mundo antigo”
em confronto com o mundo presente.
Desconstrução da utopia. Angústia e
26) “Elegia 1938”
pessimismo diante da indiferença.
Intertextualidade: Drummond e Tomás
27) “Mundo grande” Antônio Gonzaga, dualidade, esperança
no futuro.
Contemplação da noite e do farol da
28) “Noturno à janela do apartamento”
ilha Rasa. Fluxo da vida.

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Exercícios
escritos, testes e respostas

Viagens na minha terra


Almeida Garrett (1 a 19) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

Til
José de Alencar (20 a 35) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

Memórias de um sargento de milícias


Manuel Antônio de Almeida (36 a 68) . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

Memórias póstumas de Brás Cubas


Machado de Assis (69 a 104). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

O cortiço
Aluísio Azevedo (105 a 131) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163

A cidade e as serras
Eça de Queirós (132 a 150) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173

Vidas secas
Graciliano Ramos (151 a 188) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

Capitães da Areia
Jorge Amado (189 a 207) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194

Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade (208 a 227). . . . . . . . . . . . . 200

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Viagens na minha terra
Almeida Garrett
Exercícios testes

Texto para as questões de 01 a 03. 02. O autor mostra-se:


Este é que é o pinhal da Azambuja? a) decepcionado
Não pode ser. b) ludibriado
Esta, aquela antiga selva, temida quase re- c) infeliz
ligiosamente como um bosque druídico! E eu d) intransigente
que, em pequeno, nunca ouvia contar histórias e) revoltado
de Pedro de Malas-Artes que logo, em imagi-
03. A menção aos Salteadores de Schiller e
nação, lhe não pusesse a cena aqui perto!... Eu
Ausberge-des-Adrets:
que esperava topar a cada passo com a cova do
a) indicam que, devido a ausência de ambien-
Capitão Roldão e da dama Leonarda!... Oh! Que te, os personagens das peças mencionadas já
ainda me faltava perder mais esta ilusão... não terão cenário.
Por quantas maldições e infernos adornam o b) revelam tão somente a erudição do autor.
estilo dum verdadeiro escritor romântico, digam- c) reforçam a intenção do autor de confundir
-me, digam-me: onde estão os arvoredos fecha- o leitor.
dos, os sítios medonhos desta espessura? Pois isto d) definem os personagens que deveriam ser
é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?... Eu inseridos no contexto da narrativa.
que os trazia prontos e recortados para os colocar e) marcam a ausência de estilo a que o escri-
aqui todos os amáveis Salteadores de Schiller, e tor está sujeito, necessitando, ele mesmo, de
os elegantes facínoras de Ausberge-des-Adrets, recorrer aos clássicos franceses e ingleses.
eu hei de perder os maus chefes d’obra! Que é
perdê-los isto – não ter onde os pôr!...” 04. A respeito de Viagens na minha terra são
(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. São feitas três afirmações.
Paulo: Núcleo, 1992. pp. 31-32.) I. É possível refazer uma história de Portugal a
partir das personagens presentes na fabulação.
01. Segundo o texto: II. A ironia utilizada por Garrett, pelo seu tom
a) o autor segue para Azambuja em sua via- crítico e sarcástico, muitas vezes o indispõe
gem e lá encontra tudo que sua imaginação com os políticos de sua época.
infantil ainda recordava. III. Garrett incorre em erro ao nomear seu livro
b) o pronome demonstrativo “Esta” reforça a de Viagens, uma vez que se trata de uma úni-
decepção que o autor tem ao iniciar o trecho ca viagem feita de Lisboa a Santarém.
com uma indagação e afirmar, logo em segui-
da, “Não pode ser”. Estão corretas:
c) com “um bosque druídico” o autor quis a) somente as afirmações I e II.
dizer que as lendas e tradições ligadas ao pi- b) somente as afirmações I e III.
c) somente as afirmações II e III.
nheiral continuam vigorosas e ainda presen-
d) somente uma afirmação.
tes no imaginário popular.
e) todas as afirmações.
d) o autor se diz decepcionado com o que viu,
pois sua memória não conseguiu reconstituir 05. Sobre Viagens na minha terra são feitas as
a história de Pedro Malas-Artes, muito pre- seguintes afirmações.
sente na sua infância. I. Garrett aproxima-se da língua falada que,
e) as citações de personagens como dama no entanto, não deixa de ser literária, isto é,
Leonarda e Capitão Roldão remetem o leitor conscientemente artística.
aos dramas românticos ouvidos pelo autor. II. Em Garrett é possível perceber um estilo

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que vai desde o mais elaborado, próximo dos e) são formas de desanuviar os invernos es-
clássicos, passando por laivos românticos até tressantes de cidades como São Petersburgo.
prenunciar a refinada ironia de Eça de Queirós.
(Unifesp) Textos para as questões de 07 a 10.
III. A leveza da paisagem de Santarém con-
trasta com o drama carregado vivenciado Texto I:
pelas personagens da novela que envolve O vale de Santarém é um destes lugares pri-
Joaninha, a menina dos rouxinóis. vilegiados pela natureza, sítios amenos e delei-
Está(ão) correta(s): tosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo
a) somente a afirmação l. está numa harmonia suavíssima e perfeita: não
b) somente a afirmação II. há ali nada grandioso nem sublime, mas há
c) somente as afirmações l e II. uma como simetria de cores, de sons, de dispo-
d) somente as afirmações l e III. sição em tudo quanto se vê e se sente, que não
e) as afirmações l, II e III. parece senão que a paz, a saúde, o sossego do
espírito e o repouso do coração devem viver ali,
06. Que viaje à roda do seu quarto quem está à reinar ali um reinado de amor e benevolência.
beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase (...) Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro
tão frio como São Petersburgo – entende-se. Mas homem habitou com a sua inocência e com a
com este clima, com este ar que Deus nos deu, virgindade do seu coração.
onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de À esquerda do vale, e abrigado do norte pela
murta, o próprio Xavier de Maistre que aqui escre- montanha que ali se corta quase a pique, está
vesse, ao menos ia até o quintal. um maciço de verdura do mais belo viço e va-
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de riedade. (...)
estio, viajo até à minha janela para ver uma nes- Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se
guita de Tejo que está no fim da rua, e me enga- por entre um claro das árvores a janela meia
nar com uns verdes de árvore que ali vegetam sua aberta de uma habitação antiga, mas não di-
laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. lapidada – (...) A janela é larga e baixa; parece
E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas mais ornada e também mais antiga que o resto
do edifício, que todavia mal se vê...”
impressões: pois tinham muito que ver! Foi sem-
(Almeida Garrett, Viagens na minha terra.)
pre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba,
quer assunto mais largo. Pois hei de dar-lho. Vou
nada menos que a Santarém: e protesto que de Texto II:
quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se Depois, fatigado do esforço supremo, [o rio]
há de fazer crônica. se estende sobre a terra, e adormece numa lin-
Era uma ideia vaga; mais desejo que tenção, da bacia que a natureza formou, e onde o rece-
que eu tinha há muito de ir conhecer as ricas be como um leito de noiva, sob as cortinas de
várzeas desse Ribatejo, e saudar em seu alto trepadeiras e flores agrestes.
cume a mais histórica e monumental das nos- A vegetação nessas paragens ostentava ou-
trora todo o seu luxo e vigor; florestas virgens
sas vilas. Abalam-me as instâncias de um ami-
se estendiam ao longo das margens do rio, que
go, decidem-me as tonteiras de um jornal e que
corria no meio das arcarias de verdura e dos ca-
por mexeriquice quis encabeçar em desígnio
pitéis formados pelos leques das palmeiras.
político determinado a minha visita.
Tudo era grande e pomposo no cenário que
No parágrafo inicial, o autor diz entender que a natureza, sublime artista, tinha decorado
viagens à roda de um quarto: para os dramas majestosos dos elementos, em
a) só são possíveis para autores que não têm que o homem é apenas um simples comparsa.
imaginação e são incapazes de criar histórias. (...)
b) em climas temperados, não existem via- Entretanto, via-se à margem direita do rio
gens da forma como foram mencionadas. uma casa larga e espaçosa, construída sobre
c) são propícias para quando os autores vi- uma eminência e protegida de todos os lados
vem em ambientes mórbidos e sufocantes. por uma muralha de rocha cortada a ique.”
d) são pretextos para que os autores possam (José de Alencar, O guarani.)
fazer reflexões.

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Texto III: ro homem habitou” = “protegida de todos os
Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço lados por uma muralha de rocha cortada a pi-
De estar a ela um dia reclinado: que” = “Ali em vale um monte está mudado: /
Ali em vale um monte está mudado: Quanto pode dos anos o progresso!”
Quanto pode dos anos o progresso!
09. Com uma exceção, todos os segmentos
Árvores aqui vi tão florescentes,
a seguir, transcritos do texto I, poderiam ser
Que faziam perpétua a primavera:
convertidos da terceira para a primeira pes-
Nem troncos vejo agora decadentes.
soa, sem perda do sentido dado pela pers-
(Cláudio Manuel da Costa, Sonetos-VII.)
pectiva do narrador. A única exceção está em:
07. Podem ser encontradas características a) “Imagina-se por aqui o Éden...”
predominantes do estilo neoclássico ou arcá- b) “... montanha que ali se corta quase a pique...”
dico apenas: c) “... em tudo quanto se vê e se sente...”
a) no texto I. d) “... vê-se por entre um claro das árvores...”
b) no texto II. e) “... que todavia mal se vê...”
c) no texto III. 10. Lendo-se atentamente os textos I (de Al-
d) nos textos I e II. meida Garrett) e II (de José de Alencar), per-
e) nos textos II e III. cebe-se que ambos os narradores se identifi-
08. Há correspondência ou equivalência de cam quanto à atitude de admiração e louvor
sentido entre os segmentos transcritos em: à natureza contemplada. Entretanto, verifica-
a) “sítios amenos e deleitosos em que as plan- -se também, entre os dois, uma diferença pro-
tas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia funda e marcante no seu ato contemplativo,
suavíssima e perfeita” = “florestas virgens se quanto aos valores atribuídos a essa nature-
estendiam ao longo das margens do rio, que za. Essa diferença é marcada:
corria no meio das arcarias de verdura e dos a) pela existência da vegetação.
capitéis formados pelos leques das palmei- b) pela avaliação da magnitude e da beleza
ras.” = “Árvores aqui vi tão florescentes, / Que do cenário.
faziam perpétua a primavera” c) pela inclusão, na paisagem natural, da ha-
b) “não parece senão que a paz, a saúde, o bitação humana.
sossego do espírito e o repouso do coração d) pelo predomínio das referências ao mundo
devem viver ali, reinar ali um reinado de amor vegetal sobre as referências ao mundo mine-
e benevolência.” = “A vegetação nessas pa- ral (terra, rocha, montanha, etc.).
ragens ostentava outrora todo o seu luxo e e) pela explicitação da perda do paraíso ter-
vigor” = “Uma fonte aqui houve; eu não me restre.
esqueço / De estar a ela um dia reclinado”
c) “O vale de Santarém é um destes lugares pri- (Faap) Texto para as questões de 11 a 15.
vilegiados pela natureza, sítios amenos e delei- À esquerda do vale, e abrigado do norte pela
tosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo montanha que ali se corta quase a pique, está
está numa harmonia suavíssima e perfeita” = um maciço de verdura do mais belo viço e va-
“Depois, fatigado do esforço supremo, [o rio] riedade. A faia, o freixo, o álamo, entrelaçam os
se estende sobre a terra, e adormece numa ramos amigos; a madressilva, a musqueta pen-
linda bacia que a natureza formou” = “Ali em duram de um a outro suas grinaldas e festões;
vale um monte está mudado: / Quanto pode a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado
dos anos o progresso!” vestem e alcatifam o chão.
d) “não há ali nada grandioso nem sublime, mas Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se
há uma como simetria de cores, de sons, de por entre um claro das árvores a janela meia
disposição em tudo quanto se vê e se sente” = aberta de uma habitação antiga mas não dilapi-
“Tudo era grande e pomposo no cenário que dada – com certo ar de conforto grosseiro, e car-
a natureza, sublime artista, tinha decorado regada na cor pelo tempo e pelos vendavais do
para os dramas majestosos dos elementos” = sul a que está exposta. A janela é larga e baixa;
“Nem troncos vejo agora decadentes.” parece-me mais ornada e também mais antiga
e) “Imagina-se por aqui o Éden que o primei- que o resto do edifício que todavia mal se vê...

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Interessou-me aquela janela. a) visuais
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali? b) auditivas
Parei e pus-me a namorar a janela. c) gustativas
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço. d) olfativas
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e e) tácteis
um vulto por detrás. Imaginação decerto!
12. Observe:
Se o vulto fosse feminino!... era completo o
romance. “E ouvir cantar os rouxinóis”; “começou um
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga
janela? que há muito tempo me lembra de ouvir”; “e
E ouvir cantar os rouxinóis!... travou-se entre ambos um desafio tão regu-
E ver raiar uma alvorada de maio!... lar, em estrofes alternadas tão bem medidas,
Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa ja- tão acentuadas e perfeitas”. Predominam nes-
nela? ... quem aprecie e saiba gozar todo o prazer tas passagens as imagens:
tranquilo, todos os santos gozos de alma que pa- a) visuais
rece que lhe andam esvoaçando em torno? b) auditivas
Se for homem é poeta; se é mulher está ena- c) gustativas
morada. d) olfativas
São os dois entes mais parecidos da nature- e) tácteis
za, o poeta e a mulher namorada; veem, sen- 13. A personificação que dá sentimento e
tem, pensam, falam como a outra gente não vê, qualidade humanos a coisas, pode ser encon-
não sente, não pensa nem fala. trada neste exemplo:
Na maior paixão, no mais acrisolado afeto a) “... o álamo entrelaçam os ramos amigos...”
do homem que não é poeta, entre sempre o seu b) “A janela é larga e baixa...”
tanto de vil prosa humana: é liga sem que não c) “Quem terá o bom gosto e a fortuna de mo-
se lavra o mais fino do seu oiro. A mulher não; a rar ali?”
mulher apaixonada deveras sublima-se, ideali- d) “Se for homem é poeta; se for mulher está
za-se logo, toda ela é poesia, e não há dor física, enamorada.”
interesse material, nem deleites sensuais que a e) “Pareceu-me entrever uma cortina branca...
façam descer ao positivo da existência prosaica. e um vulto por detrás.”
Estava eu nestas meditações, começou um
rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que 14. “Se for homem é poeta; se é mulher está
há muito tempo me lembra de ouvir. enamorada”. Observe a correspondência ou a
Era ao pé da dita janela! simetria entre homem e mulher. É exemplo de:
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; a) anacoluto
e travou-se entre ambos um desafio tão regular b) onomatopeia
em estrofes alternadas tão bem medidas, tão c) silepse
acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro d) pleonasmo
do meu romance, esqueci-me de tudo o mais. e) paralelismo
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribei-
15. “Lembrou-me o rouxinol de Bernadim Ri-
ro, o que se deixou cair na água de cansado.
beiro, o que se deixou cair na água de cansado”.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela
O autor faz referência a um famoso escritor
hora, o fim de tarde... o que faltava para com-
antigo em relação à época dele. Com efeito,
pletar o romance?
(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. Cap. X.) Bernadim Ribeiro, em Portugal, cultivou a poesia
e a prosa de ficção (Menina e moça).
11. “... maciço de verdura do mais belo viço Se é anterior a ele, então Bernadim viveu na
e variedade”; “grinaldas e festões”; “carregada época do:
na cor pelo tempo”; “uma cortina branca... e a) Renascimento
um vulto por detrás”; “E ver raiar uma alvora- b) Romantismo
da de maio”; “O arvoredo, a janela, os rouxi- c) Realismo
nóis... àquela hora, o fim da tarde”. Predomi- d) Parnasianismo
nam nestas passagens as imagens: e) Simbolismo

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Exercícios escritos
Texto para as questões 16 e 17. 16. Almeida Garrett (1799-1854), que per-
Sim, leitor benévolo, e por esta ocasião te tenceu à primeira fase do romantismo por-
vou explicar como nós hoje em dia fazemos a tuguês, é poeta, prosador e dramaturgo dos
nossa literatura. Já me não importa guardar se- mais importantes da literatura portuguesa.
gredo; depois desta desgraça, não me importa Em Viagens na minha terra (1846), mistura,
já nada. Saberás, pois, ó leitor, como nós outros em prosa rica, variada e espirituosa, o relato
fazemos o que te fazemos ler. jornalístico, a literatura de viagens, as diva-
Trata-se de um romance, de um drama. Cui- gações sobre temas da época e os comentá-
das que vamos estudar a História, a natureza, rios críticos, muitas vezes mordazes, sobre a
os monumentos, as pinturas, os sepulcros, os literatura em voga, no período. Releia o texto
edifícios, as memórias da época? Não seja pa- que lhe apresentamos e, a seguir, responda:
teta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. a) A que gêneros literários se refere Almeida
Desenhar caracteres e situações do vivo da Garrett?
natureza, colori-los das cores verdadeiras da b) Quais os principais defeitos, segundo
História... isso é trabalho difícil, longo, delicado; Garrett, dos escritores portugueses que ela-
exige um estudo, um talento, e sobretudo um boravam obras de tais gêneros?
tacto!... Não, senhor; a coisa faz-se muito mais
17. No texto apresentado, Garrett se dirige
facilmente. Eu lhe explico.
mais de uma vez ao leitor, de maneira infor-
Todo o drama e todo o romance precisa de:
mal e descontraída, como se estivesse dialo-
Uma ou duas damas,
gando com ele. Baseado nesta observação,
Um pai,
demonstre de que modo o tom de informa-
Dois ou três filhos de dezenove a trinta anos,
lidade se revela também nas formas de tra-
Um criado velho,
tamento gramatical que o escritor usa para
Um monstro, encarregado de fazer as mal-
dirigir-se ao leitor.
dades,
Vários tratantes, e algumas pessoas capazes 18. D. Francisca, avó de Joaninha, em Viagens
para intermédios. na minha terra, tem um final trágico que pode
Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de ser lido como uma crítica do autor à situação
Dumas, de Eugénio Sue, de Vítor Hugo, e re- em que Portugal encontra-se. Explique essa
corta a gente, de cada um deles, as figuras que situação histórica tendo por base a narrativa.
precisa, gruda-as sobre uma folha de papel da
19. Em Viagens na minha terra, Garrett coloca
cor da moda, verde, pardo, azul – como fazem
um forte intertexto com D. Quixote de la Man-
as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrap-
cha, de Cervantes. Explique por que essa re-
-books; forma com elas os grupos e situações
lação é importante e em que medida ela se
que lhe parece; não importa que sejam mais
concretiza na obra.
ou menos disparatados. Depois vai-se às crôni-
cas, tiram-se uns poucos de nomes e palavrões
velhos; com os nomes crismam-se os figurões;
com os palavrões iluminam-se... (estilo de pin-
tor pinta-monos). – E aqui está como nós faze-
mos a nossa literatura original.
(Almeida Garrett. Viagens na minha terra. Cap. V –
fragmento. Obra Completa I. Porto: Lello & Irmão,
1963. pp. 27-28.)

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Respostas
Gabarito dos testes esta que sempre estabelecia os ditames.
Sua descrição é um demonstrativo da tristeza, re-
01.b 02.a 03.a 04.a 05.e 06.d signação, impotência. Sua postura é a reminiscên-
cia da dor, que não pode ver e pouco fala, “morta
07.c 08.a 09.b 10.b 11.a 12.b
de alma para tudo”, assim como Portugal, um país
13.a 14.e 15.a com um corpo agonizante.
“Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si
tinha uma dobadoura que se movia regularmente.
Respostas possíveis para as (...) Era o único sinal de vida que havia em todo esse
questões escritas quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoura, tudo
parecia uma graciosa escultura de Antônio Ferreira
(...) A velha era cega, cega de gota-serena, e pacien-
16. a) Garrett menciona os gêneros:
te, resignada como a providência misericordiosa
• dramático – teatro; de Deus permite quase sempre que sejam os que
neste mundo destinou à dura provança de tão des-
• épico – romance (narrativa de ficção). consolado martírio.” (cap. XI.)
De passagem, faz referência a crônicas, não como D. Francisca em sua cegueira é a manifestação da
gênero literário, mas àquelas pertencentes à histo- imprudência com que o liberalismo foi assumi-
riografia. do em Portugal. Isso evidencia a falta de visão e
b) Garrett critica os autores portugueses, por imi- o despreparo dos defensores do liberalismo, uma
tarem os franceses e serem artificiais na criação vez que não havia a devida articulação para colocá-
literária. -lo em prática naquele momento. Assim, como
D. Francisca, o país impotente assiste à sua destruição.
17. Essa informalidade mostra-se no uso oscilante
das formas de tratamento, expressas nas pessoas 19. A figura de D. Quixote liga-se diretamente a um
verbais: ideário mais espiritualista, à origem do liberalismo;
já Sancho Pança está ligado a um lado mais mate-
• tu: “te vou explicar”;
rialista. Dessa forma, podemos dizer que as figuras
• você: “Eu lhe explico”. de Quixote e Sancho representam as mudanças
“Não seja (você) pateta...”. pelas quais Portugal vinha passando (absolutismo/
liberalismo; materialismo/espiritualismo). No plano
18. D. Francisca, a avó de Joaninha, era a personifi- do enredo, podemos dizer que se ligam ora a Carlos
cação do Portugal subserviente, passivo, que sem- (de Quixote a Sancho) e ora a Frei Dinis (de Sancho
pre se dobrava às ordens da Igreja, uma vez que era a Quixote).

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Til
José de Alencar
Exercícios testes

20. O nascimento de Berta está envolto em a) descobre que eles são meios-irmãos.
um segredo: b) ama Afonso.
a) Seu pai não é o marido de Besita, porque c) não quer magoar a amiga que é apaixona-
ela era amante de Luís Galvão. da por ele.
b) Seu pai é Luís Galvão, que se fizera passar d) fez uma promessa de tornar-se freira.
por Ribeiro, marido de Besita. e) irá se mudar para longe.
c) Seu pai é Jão Fera, apaixonado por Besita e
seu antigo protetor. Texto para as questões 24 e 25.
d) Ela é adotada por Ribeiro e Besita.
e) Ela é adotada por Luís Galvão e D. Ermelinda. Entrou em casa para consolar nhá Tudinha; e
instantes depois se restabeleceu a cena plácida
21. Observe as afirmações a seguir sobre o
e melancólica do começo da tarde.
romance Til, de José de Alencar.
Quando o Sol escondeu-se além, na cúpula da
I. O romance pode ser enquadrado na litera-
tura regionalista, uma vez que apresenta usos floresta, Berta ergueu-se ao doce lume do crepús-
e costumes de uma determinada região. culo, e com os olhos engolfados na primeira estre-
II. Tem-se um narrador em 3a pessoa e obser- la, rezou a ave-maria, que repetiam, ajoelhados a
vador, que não se furta a comentar a maioria seus pés, o idiota, a louca e o facínora remido.
das situações vivenciadas pelos personagens Como as flores que nascem nos despenha-
principais. deiros e algares*, onde não penetram os esplen-
III. O tempo da narração é indefinido, con- dores da natureza, a alma de Berta fora criada
tendo flashbacks que explicam o presente da para perfumar os abismos da miséria, que se
narrativa. cavam nas almas, subvertidas pela desgraça.
Está(ão) correta(s) a(s) afirmação(ões): Era a flor da caridade, alma sóror.
(*) Algares: grutas, cavernas.
a) I, apenas.
b) I e III. 24. O trecho anterior deixa entrever uma ca-
c) III, apenas. racterística da estética romântica:
d) II e III. a) Busca por espaços bucólicos, esplendoro-
e) II, apenas. sos e cheios de luz.
22. Com base no enredo de Til, de José de b) Presença da religiosidade e idealização da
Alencar, indique a alternativa que completa a mulher segundo símbolo de santidade.
frase a seguir: c) Busca por um ideário ilusório e fantasioso,
Linda é apaixonada por (A), que é convencido remontando as imagens recolhidas da lite-
por (B) desse amor. (B) descobre ser irmã de ratura medieval.
Linda e (C), já que é filha de (D). d) Presença de religiosidade atrelada a uma
a) A-Afonso, B-Besita, C-Miguel, D-Ribeiro. heroína de personalidade fraca.
b) A-Miguel, B-Berta, C-Jão Fera , D-Ribeiro. e) Presença de uma heroína egoísta, fruto do
c) A-Afonso, B-Zana, C-Luís, D-Jão Fera. meio em que vive.
d) A-Luís, B-D. Ermelinda, C-Miguel, D-Luís.
25. Sabendo que essa é a cena final do ro-
e) A-Miguel, B-Berta, C-Afonso, D-Luís.
mance Til, o motivo de nhá Tudinha precisar
23. No início do romance Til, Berta e Miguel ser consolada é o fato de:
sentem-se atraídos. No entanto, a heroína de- a) ter perdido o marido.
siste do romance com o rapaz, pois ela: b) o filho Miguel ter ido estudar em São Paulo.

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c) a filha Berta não morar mais em sua casa. 28. No capítulo XXVI, “O abecê”, encontra-se a
d) ter perdido o filho. explicação do título do romance. Só não está
e) Berta ter ido para a casa de seu verdadeiro correto afirmar que o sinal gráfico é:
pai. a) o elo que Alencar encontrou para construir a
narrativa, associando-o ao deslumbramento
26. Segundo o crítico Antonio Candido, o
provocado por Berta no demente Brás.
“... fator dinâmico na obra de Alencar é a de-
b) o virtuosismo do til que se identifica ple-
sarmonia, o contraste duma situação, duma
na e completamente aos traços estilísticos
pessoa ou dum sentimento normal e tido por
com que o autor descreve os aspectos físi-
isso como bom, com uma situação, pessoa ou
sentimento discordante.” cos da personagem Berta.
A forma mais comum dessa desarmonia se- c) as feições da personagem principal, que são
ria o choque entre o bem e o mal. Aponte a semelhantes e se harmonizam com o til na
alternativa que traz a forma refinada desse concepção do demente Brás.
sentimento de discordância em Til. d) a relação entre o sinal gráfico e o demente
a) O amor irrealizado de Berta e Miguel. Brás que tem rancor por todos aqueles que
b) O casamento por interesse entre Berta e o circundam, excetuando Berta, identificada
Ribeiro. com a mesma perfeição do til.
c) O desvio de conduta de Jão Fera. e) a necessidade que os românticos têm de
d) Os desvios psicológicos de Brás. provocar no leitor a curiosidade para des-
e) A quebra de confiança entre Berta e Linda. vendar o suspense e o mistério que envol-
ve certos pormenores da narrativa.
27. O plano de vingança de Ribeiro (Barroso)
ia além da morte de Luís Galvão, pois: 29. Em Til, personagens como Jão Fera, Brás e
a) o vingador pretendia executar também Zana são concebidos:
Berta, fruto do amor entre Besita e Luís a) de maneira romântica, lembrando os tons
Galvão. macabros com que Victor Hugo pintou o
b) o homem pretendia executar todas as tes- corcunda de Notre Dame.
temunhas do assassinato de Besita, princi- b) como personagens planas, que emergem
palmente Zana e Brás. da bestialidade e percorrem os labirintos
c) Ribeiro invejou a felicidade familiar de seu do ódio em caminho para a redenção.
grande inimigo e queria tomar para si a es- c) como personagens sem nenhuma impor-
posa e os filhos dele. tância na narrativa, a não ser marcar o des-
d) o vingador não se contentaria jamais com fecho grotesco da obra.
uma única morte e pretendia matar toda a d) de forma a contrapor com a harmonia, e
família de Luís Galvão para lavar sua hon- a felicidade que combina paisagem e har-
ra. monia familiar.
e) Ribeiro gostaria de apagar todo o seu pas- e) de forma quase realista/naturalista, por re-
sado e viver em paz em outra região do presentarem a evolução do ódio à reden-
país. ção, a bestialidade incivilizada e à loucura.

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Exercícios escritos
Texto para as questões 30 e 31. 32. Fiel às tradições da antiga profissão, entendia
ele lá de si para si que um bom processo de ferrar
Finalmente, no segundo lugar da esquerda bestas devia ser por força excelente método de en-
defronte da moça via-se um menino de 15 anos sinar a leitura e a tabuada; e fossem tirá-lo dessa
de idade, cuja figura destoava de todo o ponto, ideia! Assim encaixava o abecê na cachola do me-
no quadro daquela família, que respirava a gra- nino com a mesma limpeza e prontidão com que
ça e a inteligência. metia um cravo na ferradura. Era negócio de dois
Era feio, e não só isso, porém mal amanhado gritos, um safanão e três marteladas.
e descomposto em seus gestos.Tinha um ar pas-
mo que embotava-lhe a fisionomia; e da pupila O excerto anterior fala de um personagem te-
baça coava-se um olhar morno, a divagar pelo mível na obra. De quem se trata? A quem ele
espaço com expressão indiferente e parva. está diretamente ligado? A quem ele se opõe?
Curvado como um arco sobre a mesa, com 33. Como as flores que nascem nos despenha-
as vestes em desalinho e os cabelos revoltos, deiros e algares, onde não penetram os esplen-
abraçava uma xícara de almoço, que lhe ficava dores da natureza, a alma de Berta fora criada
abaixo do queixo; e escancarando a boca enor- para perfumar os abismos da miséria, que se
me para sorver de um bocado a grande broa cavam nas almas, subvertidas pela desgraça.
de milho, ensopada no café, mastigava a tenra Era a flor da caridade, alma sóror.
massa a fortes dentadas e sofregamente como
se estivesse rilhando um couro. O trecho anterior é o final do romance Til. Co-
Percebia-se logo que a influência de D. Erme- mente a relação da heroína com os atributos
linda não penetrara nesse membro enfezado da que lhe são conferidos nesse excerto.
família, refratário a todo o preceito de ordem e Leia os dois textos a seguir e responda a
arranjo. Por isso a dona da casa, quando presi- questão 34.
dia a mesa de seu lugar de honra, observando o
serviço e ocupando-se de todos, não transpunha Texto I:
aquele ângulo, onde sentava-se o pequeno. Se
acontecia a seu olhar, circulando a sala, passar Rolos de chamas envoltas em denso bulcão
por aí, cegava-se e fugia com desgosto. de fumo subiam aos ares.
Naquele momento acabava o menino de fa- A casa das Palmas e suas dependências, vis-
zer uma das costumadas estrepolias, virando tas de longe, pareciam submersas em um turbi-
com o queixo a xícara, que entornou-lhe todo o lhão de fogo, que surgia das entranhas da terra
café no peito da camisa. e convolvia-se pelo negrume do espaço.
– Hô, hô, hô!... fez ele com um riso gutural e Açoitada pelo vento, a labareda estorcendo-
apatetado. -se e rabiando, rugia de sanha; ou sufocada
Acudiu a Rosa, para enxugar-lhe com o guar- um instante pelas abóbadas de fumaça e pelas
danapo a cara, pois ele não se mexia. camadas de palhiço, troava como um canhão,
– Que vergonha! murmurou a crioula em arrojando-se às nuvens.
meia voz. Marmanjo deste tamanho não sabe De instante a instante ouvia-se uma descar-
comer na mesa. ga de fuzilaria, correndo ao longo daquela fai-
xa incendiada que figurava a ala de um exército
30. O excerto anterior, retirado de Til, de José
em renhida batalha. Eram os gomos das canas,
de Alencar, apresenta uma personagem im-
que estalavam ao intenso calor do fogo.
portante da trama. Diga de quem se trata e
Com os sibilos da labareda enroscada no ar,
sua importância para a obra.
confundiam-se os silvos das cascavéis e jarara-
31. O excerto apresenta D. Ermelinda. Co- cas, que surpreendidas pelo incêndio, arremes-
mente sobre a situação dessa personagem savam-se furiosas contra o fogo e rompiam es-
na obra e sobre sua personalidade a partir do tortegando pelo campo abrasado.
texto e do conhecimento da obra como um As aves noturnas deslumbradas com o súbi-
todo. to clarão, fugiam soltando guinchos de terror,

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enquanto as feras, insufladas pelo instinto da va, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar
desolação, uivavam no fundo da floresta e tro- olho, depois de reacomodar, entre plangentes la-
tavam ligeiras para arrebatarem a presa ao in- mentações, o que se salvou do destroço. O tempo
cêndio e se abeberarem de sangue. levantou de novo à meia-noite. Ao romper da au-
Medonho espetáculo! rora já muita gente estava de pé e o vendeiro pas-
O incêndio crescia com tal velocidade, que sava uma revista minuciosa no pátio, avaliando
parecia uma catarata de fogo, a inundar o es- e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo.
paço, ameaçando comunicar-se à floresta, e De vez em quando soltava uma praga. Além do
submergir a terra em um pélago de chamas. que escangalharam os urbanos dentro das casas,
Do seio daquele surdo rumor produzido pelo havia muita tina partida, muito jirau quebrado,
ressolho da labareda, se desprendeu e reboou ao lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas;
longe um grito soturno; mugir da turba espavo- o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a
rida antes as tremendas convulsões da natureza. lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano,
– Fogo!... fogo!... fogo!... carregar um imposto sobre os moradores da esta-
Correndo à janela e abrindo-a outra vez, Luís lagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos
Galvão recuou espantado com a viva claridade, e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura
que o incêndio projetava sobre o terreiro e que durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo
lhe ferira os olhos. as providências para que tudo voltasse aos seus
Foi rápido, porém, o deslumbramento. De- eixos o mais depressa possível: mandou buscar
bruçando-se no peitoril e descobrindo o foco do novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os
incêndio que vomitava labaredas como a crate- quebrados; pôs gente a remendar o portão e a
ra de um vulcão, o fazendeiro compenetrou-se tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à pre-
imediatamente da realidade. sença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi
– O que é? perguntou D. Ermelinda, que para-
mesmo em mangas de camisa e sem meias; mui-
ra aterrada no meio do aposento.
tos do cortiço o acompanharam, quer por espírito
– Fogo no canavial.
de camaradagem, quer por simples curiosidade.
Atirada esta resposta à mulher, Luís Galvão (Aluísio Azevedo, O cortiço.)
saltou no terreiro e deitou a correr para as planta-
ções, lançando aos brados aquelas mesmas pala- 34. A partir da leitura dos dois excertos, apon-
vras, como aviso aos feitores e gente da fazenda. te as semelhanças e diferenças na concepção
(José de Alencar, Til.) do incêndio.
Texto II:
Textos para a questão 35.
A Bruxa, por influência sugestiva da loucura
de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar Texto I:
o cortiço.
Congo é um dos muitos conjuntos de dan-
Enquanto os companheiros o defendiam a unhas ças, músicas e manifestações folclóricas trazidos
e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava pa- pelos escravos ao Brasil no Período Colonial. É
lha e sarrafos para o número 12 e preparava uma particularmente caracterizado pelo uso de tam-
fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as bores em variados tamanhos, trajes e coreogra-
consequências foram do mesmo modo desastrosas, fias típicas e cânticos que invocam os deuses.
porque muitas outras casinhas, escapando como Atualmente é uma manifestação folclórico-re-
aquela ao fogo, não escaparam à devastação da ligiosa, em que se prestam homenagens a São
polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. Benedito e a Nossa Senhora da Penha, em festas
E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o provi- que acontecem ao longo dos meses de dezembro
dencial aguaceiro apagar também o outro incêndio e janeiro. São comuns no Espírito Santo as festas
ainda pior, que de parte a parte, lavrara nos ânimos. dedicadas a São Benedito, onde se derruba uma
A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. “A ir um, árvore alta, corta-se os galhos, deixando só o
iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para tronco (“mastro de São Benedito”), que é levado
quê? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!” pelas ruas e depois fixado no pátio da festa, com
Apesar do empenho do João Romão, ninguém um estandarte contendo a figura do santo.
conseguiu descobrir o autor da sinistra tentati- (http://pt.wikipedia.org/wiki/Congo_(folclore))

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Texto II: noite mais que o ruído dos agogôs e atabaques
que desagravavam Ogum. Don’Aninha era ma-
Ao repique de sinos e estrondo dos rojões, des-
gra e alta, um tipo aristocrático de negra, e sa-
filava pelo largo da matriz a luzida cavalgada
bia levar como nenhuma das negras da cidade
do Congo, precedida por um terno de rabecas e
suas roupas de baiana. Tinha o rosto alegre, se
frautas, que compunham a banda de música.
bem bastasse um olhar seu para inspirar abso-
Adiante vinham o rei e a rainha do Congo,
luto respeito. Nisso se parecia com o padre José
montando soberbos cavalos ricamente ajae- Pedro. Mas agora estava com um ar terrível
zados e trajando custosas roupas de veludos e suas imprecações contra os ricos e a polícia
e sedas. Seguiam-se os cavaleiros e damas da enchiam a noite da Bahia e o coração de Pedro
corte, que não ficavam somenos aos soberanos Bala.
do imaginário reino africano. Quando a deixaram, rodeada das suas filhas
Fazia de rainha Florência, que nesse dia triunfa- de santo, que beijavam sua mão, Pedro Bala
va sobre a rival, a mucama Rosa. O rei era o pajem prometeu:
de um ricaço da vizinhança; e todos os outros per- – Deixa estar, mãe Aninha, que amanhã te
sonagens, cativos das fazendas próximas. trago Ogum.
O luxo que ostentavam fora pago, parte com Ela bateu a mão na cabeça loira dele, sorriu.
as suas economias, e parte com dádivas dos João Grande e o Sem-Pernas beijaram a mão
senhores, cuja vaidade se personificava nos da negra. Desceram a ladeira. Os agogôs e ata-
próprios escravos. Cada um desses ricos fazen- baques ressoavam desagravando Ogum.
deiros se desvanecia da admiração que sentia o O Sem-Pernas não acreditava em nada, mas
povo pelas roupas vistosas que traziam galhar- devia favores a Don’Aninha.
damente seus pajens, e pelos soberbos cavalos Perguntou:
fogosos que eles meneavam com certo donaire. – O que é que a gente vai fazer? O troço está
No meio das figuras, vestidas à antiga e de fan- na polícia.
tasia, saltavam outras, cobertas ou antes eriçadas João Grande cuspiu, estava com certo receio.
da cabeça aos pés com os molhos de um capim – Não chame Ogum de troço, Sem-Pernas.
duro e híspido. Agitado pelo contínuo movimen- Ele castiga...
to, produzia essa croça verde um vivo sussurro, ao – Tá preso, não pode fazer nada – riu o Sem-
qual respondiam os chocalhos de latas e as caba- -Pernas.
ças, que tangiam os pretos assim mascarados. João Grande calou a boca, porque sabia que
Esse resquício dos folgares e danças dos ín- Ogum era grande demais, mesmo na cadeia
dios caiapós dava à festa africana uns ressaibos podia castigar o Sem-Pernas. Pedro Bala coçou
americanos, que faziam inteiro contraste com o queixo, pediu um cigarro:
as galas e louçanias emprestadas pela moda – Deixa eu matutar. A gente tem que dar conta.
europeia, ou pelos usos do Oriente. A gente garantiu a Aninha. Agora tem que fazer.
De ordinário costumam as pretas fazer a sua Desceram para o trapiche. A chuva entrava
folgança do Congo nas proximidades do Natal; pelos buracos do teto, a maior parte dos me-
mas nesse ano não a tinham podido aprontar ninos se amontoavam nos cantos onde ainda
para aquele tempo. havia telhado. O Professor tentara acender sua
(José de Alencar, Til.) vela, mas o vento parecia brincar com ele, apa-
Texto III: gava-a de minuto a minuto. Afinal ele desistiu
de ler essa noite e ficou peruando um jogo de
Pedro Bala sentiu uma onda dentro de si. Os sete e meio que o Gato bancava, ajudado por
pobres não tinham nada. O padre José Pedro Boa-Vida, num canto. Moedas no chão, mas ne-
dizia que os pobres um dia iriam para o reino nhum rumor desviava Pirulito das suas orações
dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas diante da Virgem e de Santo Antônio.
a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça (Jorge Amado, Capitães da Areia.)
naquilo. No reino do céu seriam iguais.
Mas já tinham sido desiguais na terra, a ba- 35. Os trechos anteriores mostram uma ca-
lança pendia sempre para um lado. racterística cultural brasileira muito comum.
As imprecações da mãe de santo enchiam a Explique, resumidamente, do que se trata.

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Respostas
Gabarito dos testes 32. Trata-se de Domingão, o professor arrumado
por Luís Galvão para ensinar as primeiras letras a
seu sobrinho. A personagem encontra-se direta-
20.b 21.a 22.e 23.c 24.b 25.b
mente ligado a Brás. O professor se opõe a Berta,
26.d 27.c 28.b 29.e já que esta ensina com calma, paciência e carinho,
enquanto Domingão acredita que a educação se
faz com castigos físicos.
Respostas possíveis para as 33. Berta é abnegada, deixa de se relacionar com
questões escritas Miguel, pois a melhor amiga estava apaixonada por
ele. Passa então a convencê-lo de que esse amor
30. Trata-se de Brás, um menino com problemas vale a pena. Também é caridosa, como mostra sua
mentais, que se afeiçoa à protagonista Berta, a qual atitude com Brás, o deficiente mental, a quem ela
procura, por meio de ensinamentos escolares, in- tenta socializar, com paciência e amor. Além disso,
tegrá-lo à vida social. É Brás que, em uma das aulas sabe reconhecer os que a ajudaram, retribuindo
que tinha com a moça, dá a ela o apelido de Til, já com verdadeira alma cristã, como acontece com
que a achava graciosa como o acento gráfico. Seu Zana e Jão Fera.
relacionamento com Berta mostra claramente a 34. Os dois incêndios não foram acidentais. No
força integradora e socializadora da protagonista. caso de Til, foi planejado, com intenção criminosa,
31. D. Ermelinda é a esposa de Luís Galvão. Casa- por Ribeiro. No caso de O cortiço, ocorreu espon-
-se com ele na juventude e tem dois filhos, Linda taneamente, após outras tentativas, por causa da
e Afonso. Representa a mulher da elite agrária do loucura da personagem Bruxa.
século XIX, dedicada ao marido e aos filhos, bem 35. Os três textos falam do sincretismo religioso,
como aos afazeres domésticos. Ela é força harmoni- que consiste na mistura de crenças e de elementos
zadora e de imposição da ordem na família Galvão das religiões afro com práticas da religião católica,
e aceita o passado de Luís Galvão em nome da paz como mostrado nos excertos.
familiar e de sua posição social.

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Memórias de um
sargento de milícias
Manuel Antônio de Almeida
Exercícios testes

Texto para as questões de 36 a 38. 36. O “canto dos meirinhos” refere-se:


Era no tempo do rei. a) ao hino corporativo entoado nos encon-
Uma das quatro esquinas que formam as ruas tros desses funcionários judiciais.
b) à taberna frequentada pelos integrantes
do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutua-
da máfia.
mente, chamava-se nesse tempo – O canto dos
c) à repartição pública onde se concentravam
meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, por-
esses funcionários judiciais.
que era aí o lugar de encontro favorito de todos d) ao recanto urbano onde se reuniam esses
os indivíduos dessa classe (que gozava então de funcionários do Judiciário.
não pequena consideração). Os meirinhos de hoje e) ao único lugar onde eram encontrados es-
não são mais do que a sombra caricata dos mei- ses funcionários do Judiciário.
rinhos do tempo do rei; esses eram gente temível
e temida, respeitável e respeitada; formavam um 37. Depreende-se do texto que:
dos extremos da formidável cadeia judiciária que a) na época em que os meirinhos eram pessoas
envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que muito consideradas, havia uma quantidade
grande de questões judiciais no Rio de Janeiro.
a demanda era entre nós um elemento de vida:
b) os meirinhos eram funcionários imperiais
o extremo oposto eram os desembargadores.
voltados para as atividades de censura e con-
Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, trole das diversões públicas.
fechavam o círculo dentro do qual passavam os c) os meirinhos eram juristas altamente espe-
terríveis combates das citações, provarás, razões cializados em processualística, ou melhor, do-
principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais minavam completamente a teoria e a prática
que se chamavam o processo. do processo judicial.
Daí sua influência moral. d) os meirinhos eram funcionários graduados
Mas tinham ainda outra influência, que é jus- do Poder Judiciário que desfrutavam de sóli-
tamente a que falta aos de hoje: era a influência da posição material e política.
que derivava de suas condições físicas. Os meiri- e) os meirinhos eram uma classe de funcio-
nhos de hoje são homens como quaisquer outros; nários imperiais que se ocupavam exclusiva-
nada têm de imponentes, nem no seu semblante mente da instrução e julgamento de quais-
nem no seu trajar, confundem-se com qualquer quer questões policiais.
procurador, escrevente de cartório ou contínuo de 38. O autor sugere que:
repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, a) a influência moral dos meirinhos derivava
não se confundiam com ninguém; eram originais, tanto do tipo de trabalho que faziam como
eram tipos: nos seus semblantes transluzia um do porte físico que possuíam.
certo ar de majestade forense, seus olhares calcu- b) o prestígio social dos meirinhos resultava
lados e sagazes significavam chicana. Trajavam tão somente das insígnias de prosperidade
sisuda casaca preta, calção e meias da mesma econômica que faziam questão de exibir.
cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrá- c) a consideração de que desfrutavam os mei-
tico espadim, e na ilharga direita penduravam um rinhos na Corte prendia-se sobretudo à iden-
círculo branco, cuja significação ignoramos, e co- tidade de pontos de vista que partilhavam
roavam tudo isso por um grave chapéu armado. com a nobreza.

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d) se comparados a outras categorias de fun- perdido todo aquele acanhamento físico de
cionários do Judiciário, os meirinhos não go- outrora. Além disso seus olhos, avermelhados
zavam de um prestígio social proporcional a pelas lágrimas, seu rosto empalidecido, se não
seu poder político. verdadeiramente pelos desgostos daquele dia,
e) a força de que dispunham os meirinhos no seguramente pelos antecedentes, tinham nessa
tempo do rei se assentava no controle estrito ocasião um toque de beleza melancólica, que
que exerciam sobre as tramoias judiciais e so- em regra geral não devia prender muito a aten-
bre a moda masculina. ção de um sargento de granadeiros, mas que
enterneceu ao sargento Leonardo, que apesar
39. (FCC) Daqui em diante trataremos o nosso
de tudo, não era um sargento como qualquer.
memorando pelo seu nome de batismo: não
E tanto assim, que durante a cena muda que
nos ocorre se já dissemos que ele tinha o nome
se passou, quando os dois deram com os olhos
do pai; mas se não o dissemos, fique agora dito.
um no outro, passaram rapidamente pelo pen-
E para que se possa saber quando falamos do
samento do Leonardo os lances de sua vida de
pai e quando do filho, daremos a este o nome
outrora, e remontando de fato em fato, chegou
de Leonardo e acrescentaremos o apelido de
àquela ridícula mas ingênua cena da sua decla-
Pataca, já muito vulgarizado nesse tempo,
ração de amor a Luisinha. Pareceu-lhe que ti-
quando quisermos tratar daquele.
nha então escolhido mal a ocasião, e que agora
Em Memórias de um sargento de milícias, de isso teria um lugar muito mais acertado.
que é exemplo o excerto anterior, Manuel A comadre, que dava uma perspicaz atenção
Antônio de Almeida cria uma personagem a tudo o que se passava, como que leu na alma
principal: do afilhado aqueles pensamentos todos; fez um
a) atípica, presa ao império da sensualidade e gesto quase imperceptível de alegria: raiava-lhe
oprimida pela carga genética. na mente alguma ideia luminosa. Começou
b) de elite, representante das camadas aris- então a retraçar um antigo plano em cuja exe-
tocráticas da sociedade e cujas desventuras cução por muito tempo trabalhava, e cujas pro-
traduzem a desagregação da burguesia do babilidades de êxito lhe haviam reaparecido no
tempo. que se acabava de passar.
c) complexa, rica de mistério e profundidade
40. Qual das passagens citadas a seguir reve-
psicológica, cuja intensa vida interior se vai
la que as personagens não se falaram?
revelando no curso dos acontecimentos.
a) “... os dois deram com os olhos um no ou-
d) popular, tipicamente um anti-herói, por meio
tro...”
do qual se faz a crítica dos valores da sociedade
b) “Luisinha achou Leonardo um guapo rapa-
burguesa e das instituições da época.
gão de bigodes e suíça;”
e) idealizada, com qualidades físicas e morais
c) “... durante a cena muda que se passou...”
que representam o protótipo dos heróis do
d) “... remontando de fato em fato, chegou
romance romântico.
àquela ridícula mas ingênua cena de sua de-
Texto para as questões de 40 a 42. claração de amor a Luisinha.”
e) “... fez um gesto quase imperceptível de
O Leonardo começou a procurar com os
alegria...”
olhos alguma coisa ou alguém que tinha curio-
sidade de ver; deu com o que procurava: era 41. Observe as seguintes passagens do texto:
Luisinha. Há muito que os dois se não viam; “... tendo perdido todo aquele acanhamento
não puderam pois ocultar o embaraço de que físico de outrora.”
se acharam tomados. E foi tanto maior essa “... passaram rapidamente pelo pensamento
emoção, que ambos ficaram surpreendidos um do Leonardo os lances de sua vida de outrora...”
do outro. Luisinha achou Leonardo um gua- Elas indicam, respectivamente:
po rapagão de bigodes e suíça; elegante até a) a diferença que Leonardo observou na fi-
onde pode sê-lo, um soldado de granadeiros, gura de Luisinha e o ressurgimento de seu
com o seu uniforme de sargento bem assente. amor por ela.
Leonardo achou Luisinha uma moça espigada, b) a aparente mudança de Luisinha que, em-
airosa mesmo, olhos e cabelos pretos, tendo bora tivesse perdido o acanhamento, conti-

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nuava sendo uma jovem tímida; e as traves- assassinato do toma-largura, amante da moça.
suras da vida de Leonardo. d) Luisinha casa-se com José Manuel, embora
c) o endurecimento físico de Luisinha, que nunca tenha deixado de gostar de Leonardo.
reafirma os sofrimentos por que passou a e) O major Vidigal prende Leonardo e depois
moça nas mãos do marido; e o ressurgimento acaba por engajá-lo à Milícia.
do amor de Leonardo por Luisinha.
44. A “sequência de situações”, referida por
d) o amadurecimento físico de Luisinha em
Antonio Candido, aparece aparentemente
comparação com a aparência acanhada que
solta, no entanto:
tinha outrora e o retroceder do pensamento
a) há uma unidade na obra, dada pela figura
de Leonardo, recapitulando o passado.
do anti-herói Leonardo, pois a estrutura é de
e) a postura desembaraçada de Luisinha, que
novela.
se sentia senhora de si no enterro do marido;
b) a unidade da obra, embora rara, é dada
e as reflexões que Leonardo pôde fazer a par-
pelo narrador que enlaça as personagens, em
tir de tais observações.
um único ambiente.
42. Em qual alternativa os termos correspon- c) a unidade da obra é dada pelas persona-
dem corretamente às expressões destaca- gens secundárias e pelo fato de a narração se
das? situar em um tempo determinado.
“... uma moça espigada, airosa mesmo.” d) há uma unidade da obra, dada justamente
“... não era um sargento como qualquer.” pela população das camadas menos privile-
“... com seu uniforme de sargento bem assente.” giadas do Rio de Janeiro e pela estrutura de
a) esbelta – vulgar – bem-talhado novela.
b) elegante – diferente – bem-assentado e) não há unidade na obra, embora a estru-
c) orgulhosa – comum – apertado tura de novela pudesse permitir um enlaça-
d) infeliz – incomum – ajustado mento dos fatos.
e) garbosa – invulgar – desalinhado 45. Como sempre acontece a quem tem muito
Texto para as questões 43 e 44. onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho
queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra,
Manuel Antônio deseja contar de que manei-
a quem a madrinha queria fazer artista me-
ra se vivia no Rio popularesco de D. João VI; as
tendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria
famílias mal-organizadas, os vadios, as procis-
fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e
sões, as festas e as danças, a polícia; o meca-
a quem enfim cada conhecido ou amigo queria
nismo dos empenhos, influências, compadrios,
dar um destino que julgava mais conveniente
punições que determinavam certa forma de
às inclinações que nele descobria, o pequeno,
consciência e se manifestavam por certos tipos
dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a
de comportamento (...). O livro aparece, pois,
pior possível: nem foi para Coimbra, nem para
como sequência de situações.
(Antonio Candido, Formação da literatura brasileira.)
a Conceição, nem para cartório algum; não fez
nenhuma destas coisas, nem também outra
43. O texto crítico faz alusão à “sequência de qualquer: constituiu-se um completo vadio, va-
situações” como uma série de pequenos rela- dio mestre, vadio tipo.
tos no interior de Memórias de um sargento de (...)
milícias. Em qual alternativa há pelo menos um Era a sobrinha de D. Maria já muito desen-
relato que não faz parte do volume referido? volvida, porém que, tendo perdido as graças de
a) Leonardo Pataca (o pai) amasia-se com Chi- menina, ainda não tinha adquirido a beleza de
quinha, filha da comadre, e com ela tem uma moça: era alta, magra, pálida; andava com o
filha, em tudo contrária ao irmão. queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras
b) Maria da Hortaliça retorna a Portugal em sempre baixas, e olhava a furto; tinha os bra-
companhia de um capitão de navio, abando- ços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-
nando o filho para não mais tornar a vê-lo. -lhe apenas até o pescoço, e como andava mal
c) Vidinha, enciumada, vai tomar satisfações penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma
com a moça do caldo e acaba envolvida em grande porção lhe caía sobre a testa e olhos,
um rumoroso acidente que culmina com o como uma viseira.

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Tomando como ponto de partida os textos briado à vista do aspecto da escola, que nunca
apresentados anteriormente, é possível afir- tinha imaginado.
mar que: (Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um
a) a obra é totalmente romântica, pela idea- sargento de milícias.)
lização com que descreve a personagem fe- Observando-se, neste trecho, os elementos
minina. descritivos, o vocabulário e, especialmente, a
b) a caracterização das personagens reflete as lógica da exposição, verifica-se que a posição
preocupações do mais puro realismo presen- do narrador frente aos fatos narrados caracte-
tes em todas as obras do autor. riza-se pela atitude:
c) enquanto a personagem masculina ajusta- a) crítica, em que os costumes são analisados
-se mais à figura de um malandro, a figura fe- e submetidos a julgamento.
minina é construída sem idealização, descrita b) lírico-satírica, apontando para um juízo mo-
quase à maneira do movimento realista que ral pressuposto.
ainda estava por vir. c) cômico-irônica, com abstenção de juízo mo-
d) devido à maneira direta de focalizar as ral definitivo.
personagens e descrevê-las retirando delas d) analítica, em que o narrador onisciente prio-
as características idealizadoras, seu autor é riza seu afastamento do narrado.
considerado o primeiro grande realista da li- e) imitativa ou de identificação, que suprime
teratura brasileira. a distância entre o narrador e o narrado.
e) enquanto a personagem masculina é um
típico herói, a personagem feminina, tímida e 48. (Mack)
singela, é descrita à maneira romântica. A comadre
Cumpre-nos agora dizer alguma cousa a res-
46. A respeito de Memórias de um sargento de peito de uma personagem que representará no
milícias, só não é lícito dizer que: decorrer desta história um importante papel, e
a) sua linguagem fácil e seus vocábulos que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos
corriqueiros tecem uma espécie de documen- de passagem no primeiro capítulo: é a comadre.
tação da fala em camadas mais populares. Era a comadre uma mulher baixa, excessi-
b) o herói, filho de beliscões e pisadelas, esca- vamente gorda, bonachona, ingênua ou tola
pa da concepção tradicional de personagem até um certo ponto e finória até outro; vivia do
romântica. ofício de parteira, que adotara por curiosidade,
c) são frequentes as interferências do narra- e benzia de quebranto; todos a conheciam por
dor, que mantém diálogo com o leitor para muito beata e pela mais desabrida papa-missa
que ambos – leitor e autor – possam meditar da cidade.
a respeito do desenvolvimento da obra, em (Manuel Antônio de Almeida)
uma atitude claramente metalinguística.
d) o livro teve reconhecimento tardio princi- Considere as seguintes afirmações.
palmente porque nele não se encontram os I. Apesar de romântica, a obra destaca-se pela
ingredientes comuns aos romances da época. quebra da idealização dos personagens.
e) Manuel Antônio de Almeida volta-se II. Valorização das peripécias em detrimento
para a confecção de tipos com rica carac- da análise psicológica, retratação de aspectos
terização psicológica, permitindo ao leitor pitorescos da vida urbana, estilo despojado
conhecer o mundo exterior e interior das típico da crônica de costumes são traços que
personagens. identificam a obra.
III. O protagonista Leonardo é considerado
47. (Fuvest) Era este um homem todo em pro- um herói pícaro, cujo objetivo na vida é, basi-
porções infinitesimais, baixinho, magrinho, de camente, a luta pela sobrevivência.
carinha estreita e chupada, e excessivamente Assinale:
calvo; usava de óculos, tinha pretensões de la- a) se todas estão corretas.
tinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá b) se todas estão incorretas.
aquela palha. Por isso era um dos mais acre- c) se apenas I e III estão corretas.
ditados na cidade. O barbeiro entrou acompa- d) se apenas II e III estão corretas.
nhado pelo afilhado, que ficou um pouco esca- e) se apenas I está correta.

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49. (ITA) Assinale a opção correta com relação Veremos quais foram os resultados que
à obra Memórias de um sargento de milícias, alcançaram o compadre e o Leonardo com a
de Manuel Antônio de Almeida: aliança formada com a comadre contra o con-
a) O livro trata da história de um amor impos- corrente à Luisinha.
sível passada no século XIX.
No trecho “Se Leonardo se afligira do modo
b) A história é contada numa linguagem po-
que acabamos de ver pelo contratempo que
pular da mesma maneira como foram escritas
outras obras da época. lhe sobreviera com o aparecimento e com as
c) O livro trata das peripécias do protagonis- disposições de José Manuel, o padrinho não
ta, personagem cômico, pobre e sem nobreza se incomodava menos com isso...” a última
de caráter. oração funciona como um argumento em re-
d) A história se passa num ambiente rural, lação à primeira. Esse argumento indica:
tal como a história de O sertanejo, de José de a) causa em relação à primeira oração, justifi-
Alencar. cando a ideia proposta.
e) A história é contada numa linguagem que b) condição em relação à primeira oração,
segue os padrões clássicos da época. apresentando uma hipótese diante da ideia
proposta.
50. (PUC) O trecho a seguir foi extraído da obra c) fim em relação à primeira oração, mostran-
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel do a finalidade da ideia proposta.
Antônio de Almeida. Refere-se ao primeiro e d) oposição em relação à primeira oração, in-
último parágrafos do capítulo XXII – “Aliança” – vertendo a ideia proposta.
Tomo I. A partir dele, responda a questão: e) acréscimo em relação à primeira oração,
Se Leonardo se afligira do modo que aca- reforçando a ideia proposta.
bamos de ver pelo contratempo que lhe sobre-
viera com o aparecimento e com as disposições (Fuvest) Texto para as questões 51 e 52.
de José Manuel, o padrinho não se incomodava Sua história tem pouca coisa de notável. Fora
menos com isso; vendo que o afilhado se fa- Leonardo algibebe1 em Lisboa, sua pátria;
zia homem, e tendo decididamente abortado aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Bra-
aquele seu gigantesco plano de mandá-lo à sil. Aqui chegando, não se sabe por proteção
Coimbra, enxergava na sobrinha de D. Maria de quem, alcançou o emprego de que o vemos
um meio de vida excelente para o seu rapaz. empossado, e que exercia, como dissemos, des-
Verdade é que se lembrava de que D. Maria po- de tempos remotos. Mas viera com ele no mes-
dia com muito justa razão, se as cousas conti- mo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria
nuassem do mesmo modo, quando chegasse o da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa,
momento do desfecho das cousas, recusar sua
saloia2 rechonchuda e bonitota. O Leonardo,
sobrinha a um rapaz que não se ocupava em
fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de
cousa alguma, e que não tinha futuro. Por este
sua mocidade mal-apessoado, e sobretudo era
motivo muitas vezes instava com o afilhado
para que ensaiasse na cara de algum freguês maganão3. Ao sair do Tejo, estando a Maria en-
tolo entrar no ofício; porém este recusava-se costada à borda do navio, o Leonardo fingiu que
obstinadamente. A comadre, quando alguma passava distraído por junto dela, e com o ferra-
vez aparecia por casa do barbeiro, não cessava do sapatão assentou-lhe uma valente pisadela
de insistir no seu antigo projeto de fazer o rapaz no pé direito. A Maria, como se já esperasse por
entrar para a Conceição. Uma ocasião em que aquilo, sorriu-se como envergonhada do grace-
nisso falou diante dele, custou-lhe a história jo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tre-
uma forte sarabanda: o rapaz tomara gosto à mendo beliscão nas costas da mão esquerda.
vida de vadio, e por princípio algum queria dei- Era isto uma declaração em forma, segundo os
xá-la. E se em outras ocasiões estava ele desse usos da terra: levaram o resto do dia de namoro
humor, agora depois dos últimos acontecimen- cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena
tos, quando o amor e o ciúme lhe ocupavam a de pisadela e beliscão, com a diferença de serem
alma, não queria ouvir falar em semelhantes desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguin-
cousas; acreditava que a sua melhor ocupação te estavam os dois amantes tão extremosos e
devia consistir em dar cabo do rival que se lhe familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.”
antepusera. (Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um
(...) sargento de milícias.)

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Glossário: (Mack) Texto para as questões 54 e 55.
(1) algibebe – mascate, vendedor ambulante.
O major era pecador antigo, e no seu
(2) saloia – aldeã das imediações de Lisboa.
tempo fora daqueles de que se diz que não
(3) maganão – brincalhão, jovial, divertido.
deram o seu quinhão ao vigário: restava-
-lhe ainda hoje alguma cousa que às ve-
51. Nesse excerto, o modo pelo qual é relata-
5 zes lhe recordava o passado: essa alguma
do o início do relacionamento entre Leonar-
cousa era a Maria Regalada que morava
do e Maria:
na prainha. Maria Regalada fora no seu
a) manifesta os sentimentos antilusitanos do tempo uma mocetona de truz*, como
autor, que enfatiza a grosseria dos portugueses vulgarmente se diz: era de um gênio so-
em oposição ao refinamento dos brasileiros. 10 bremaneira folgazão, vivia em contínua
b) revela os preconceitos sociais do autor, que alegria, ria-se de tudo, e de cada vez que se
retrata de maneira cômica as classes popula- ria fazia-o por muito tempo e com muito
res, mas de maneira respeitosa a aristocracia gosto; daí é que vinha o apelido – regalada
e o clero. – que haviam ajuntado a seu nome.
c) reduz as relações amorosas a seus aspectos 15 Isto de apelidos, era no tempo destas
sexuais e fisiológicos, conforme os ditames histórias uma cousa muito comum; não
do Naturalismo. estranhem pois os leitores que muitas das
d) opõe-se ao tratamento idealizante e senti- personagens que aqui figuram tenham
mental das relações amorosas, dominante no esse apêndice ao seu nome.
Romantismo. (Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um
e) evidencia a brutalidade das relações inter- sargento de milícias.)
-raciais, própria do contexto colonial-escravista. (*) de truz – de primeira ordem, magnífica.

52. No excerto, o narrador incorpora elemen- 54. No segmento “fora daqueles de que se diz
tos da linguagem usada pela maioria das per- que não deram o seu quinhão ao vigário”, a
sonagens da obra, como se verifica em: expressão não deu o seu quinhão ao vigário:
a) “... aborrecera-se porém do negócio...” a) foi empregada em sentido figurado e deve
ser entendida assim: “não agia em conformi-
b) “... de que o vemos empossado...”
dade com a moral e os bons costumes”.
c) “... rechonchuda e bonitota.”
b) é um recurso de estilo, utilizado para levar à
d) “... envergonhada do gracejo...” compreensão do seguinte traço pecaminoso da
e) “... amantes tão extremosos...” personagem: “rejeitava o pagamento do dízimo”.
53. (PUC) Das alternativas a seguir, indique a c) constitui uma metáfora, com a qual o nar-
que contraria as características mais significa- rador caracteriza o traço de incredulidade da
tivas do romance Memórias de um sargento de personagem com relação à fé católica.
d) pode ser substituída, sem prejuízo do sen-
milícias, de Manuel Antônio de Almeida.
tido original, por: “não desempenhava ne-
a) Romance de costumes que descreve a vida
nhuma atividade assistencial”.
da coletividade urbana do Rio de Janeiro, na e) compõe a caracterização do major e, de-
época de D. João VI. notativamente, aponta para a seguinte ideia:
b) Narrativa de malandragem, já que Leonar- “não reconhecia seus erros perante o pároco”.
do, personagem principal, encarna o tipo do
malandro amoral que vive o presente, sem 55. A frase que, no contexto, pode ser correta-
qualquer preocupação com o futuro. mente entendida como uma consequência é:
a) “... essa alguma cousa era a Maria Regala-
c) Livro que se liga aos romances de aventura,
da...” (linhas 5 e 6)
marcado por intenção crítica contra a hipocri-
b) “Maria Regalada fora no seu tempo uma
sia, a venalidade, a injustiça e a corrupção social. mocetona de truz...” (linhas 7 e 8)
d) Obra considerada de transição para um novo c) “... era de um gênio sobremaneira folga-
estilo de época, ou seja, o Realismo/Naturalismo. zão...” (linhas 9 e 10)
e) Romance histórico que pretende narrar fa- d) “... fazia-o por muito tempo e com muito
tos de tonalidade heroica da vida brasileira, gosto...” (linhas 12 e 13)
como os vividos pelo major Vidigal, ambien- e) “... não estranhem pois os leitores...” (linhas
tados no tempo do rei. 16 e 17)

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56. (PUC) Era a sobrinha de D. Maria já muito de- com a do filho, por outro com a do agregado, e
senvolvida, porém que, tendo perdido as graças que afinal não era senão vida de enjeitado, que
de menina, ainda não tinha adquirido a beleza o leitor sem dúvida já adivinhou que ele o era.
de moça: era alta, magra, pálida; andava com A troco disso dava-lhe o mestre sustento e mo-
o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras rada, e pagava-se do que por ele tinha já feito.
sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços fi- (Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um
nos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe ape- sargento de milícias.)
nas até o pescoço, e como andava mal penteada e (*) fâmulo – empregado, criado.
trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção Nesse excerto, mostra-se que o compadre
lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira. provinha de uma situação de família irregular
O trecho anterior é do romance Memórias de e ambígua. No contexto do livro, as situações
um sargento de milícias, de Manuel Antônio desse tipo:
de Almeida. Dele pode afirmar-se que: a) caracterizam os costumes dos brasileiros,
a) confirma o padrão romântico da descrição por oposição aos dos imigrantes portugueses.
da personagem feminina, representada nessa b) são apresentadas como consequência da in-
obra por Luisinha. tensa mestiçagem racial, própria da colonização.
b) exemplifica a afirmação de que o referido c) contrastam com os rígidos padrões morais
romance estava em descompasso com os pa- dominantes no Rio de Janeiro oitocentista.
drões e o tom do Romantismo. d) ocorrem com frequência no grupo social
c) não fere o estilo romântico de descrever e mais amplamente representado.
narrar, pois se justifica por seu caráter de tran- e) começam a ser corrigidas pela doutrina e
sição da estética romântica para a realista. pelos exemplos do clero católico.
d) justifica, dentro do Romantismo, a caracte- (Unifesp) Para responder as questões de nú-
rização sempre idealizada do perfil feminino meros 58 a 61, leia os dois textos a seguir.
de suas personagens.
e) insere-se na estética romântica, apesar das Texto 1:
características negativas da personagem, que
fazem dela legítima representante da dialéti-
ca da malandragem.
57. (Fuvest) Os leitores estarão lembrados do
que o compadre dissera quando estava a fazer
castelos no ar a respeito do afilhado, e pensan-
do em dar-lhe o mesmo ofício que exercia, isto
é, daquele arranjei-me, cuja explicação prome-
temos dar. Vamos agora cumprir a promessa.
Se alguém perguntasse ao compadre por seus
pais, por seus parentes, por seu nascimento,
nada saberia responder, porque nada sabia a
respeito. Tudo de que se recordava de sua histó-
ria reduzia-se a bem pouco. Quando chegara à
idade de dar acordo da vida achou-se em casa
de um barbeiro que dele cuidava, porém que
nunca lhe disse se era ou não seu pai ou seu pa-
rente, nem tampouco o motivo por que tratava
da sua pessoa. Também nunca isso lhe dera cui-
dado, nem lhe veio a curiosidade de indagá-lo.
Esse homem ensinara-lhe o ofício, e por inau-
dito milagre também a ler e a escrever. Enquan-
to foi aprendiz passou em casa do seu... mestre, (Adaptado de releitura de uma passagem do início
em falta de outro nome, uma vida que por um do romance Memórias de um sargento de milícias.
lado se parecia com a do fâmulo*, por outro Disponível em www.fotolog.terra.com.br/biradantas.)

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Texto 2: I. Esse romance incorpora, dentre outros valo-
res do Romantismo, a idealização da mulher
Quando saltaram em terra começou a Maria a
sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e do amor.
e daí a um mês manifestaram-se claramente os II. O protagonista da história, Leonardinho, fi-
efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses de- lho de Leonardo e Maria da Hortaliça, afasta-
pois teve a Maria um filho (...). E este nascimen- -se do perfil de herói romântico, e sua história
to é certamente de tudo o que temos dito o que desenvolve-se numa narrativa em que se de-
mais nos interessa, porque o menino de quem nunciam as mazelas sociais.
falamos é o herói desta história.” III. A obra retrata a alta sociedade carioca do sé-
(Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um culo XIX, criticando o jogo de interesses sociais.
sargento de milícias.) Está correto apenas o que se afirma em:
a) I.
58. Com base nas informações do texto 1, é b) II.
correto afirmar que Leonardo: c) III.
a) acreditava que a vida no Brasil poderia ser d) I e III.
tão interessante quanto a de Portugal.
e) II e III.
b) saiu de Portugal em companhia de sua na-
morada, Maria da Hortaliça. 62. (PUC) Quando saltaram em terra começou
c) buscava um ofício lucrativo e agradável no a Maria a sentir certos enojos; foram os dous
Brasil, como o que tinha em Portugal. morar juntos; e daí a um mês manifestaram-se
d) veio ao Brasil em razão de seu enfado com claramente os efeitos da pisadela e do beliscão;
a vida que levava em Portugal. sete meses depois teve a Maria um filho, formi-
e) via o Brasil como um lugar de raras chances dável menino de quase três palmos de compri-
de êxito pessoal. do, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e
59. Com base nas informações verbais e visuais, chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou
é correto afirmar que o beliscão de Maria repre- duas horas seguidas sem largar o peito. E este
senta: nascimento é certamente de tudo o que temos
a) a cumplicidade na situação de aproxima- dito o que mais nos interessa, porque o menino
ção desencadeada pela pisadela. de quem falamos é o herói desta história.
b) o desdém da quitandeira frente à intenção O trecho anterior integra o romance Memórias
de aproximação de Leonardo. de um sargento de milícias, de Manuel Antônio
c) a condenação à atitude de Leonardo, por de Almeida. Considerando o romance como
supor uma intimidade indesejada. um todo, indique a alternativa que contém in-
d) o repúdio da quitandeira à situação, vendo formações que não são pertinentes a essa obra.
Leonardo como homem desprezível. a) É classificado como romance folhetinesco,
e) a aceitação de uma amizade, mas não de e foi publicado em capítulos no jornal carioca
uma aproximação íntima entre ambos. Correio Mercantil entre 1852 e 1853.
60. Observando as formas verbais fora, abor- b) Segundo alguns críticos, pode ser consi-
recera-se e viera, é correto afirmar que repre- derado precursor do movimento realista, por
sentam ações: causa da forma como caracteriza o cotidiano
a) simultâneas, por essa razão expressas to- dos personagens, moradores dos bairros po-
das no mesmo tempo e modo verbal. pulares do Rio de Janeiro.
b) inconclusas em um tempo anterior ao plano c) É considerado como o romance da ma-
das ações narradas no pretérito imperfeito. landragem, narrado em terceira pessoa e
c) simultâneas e frequentes no tempo passa- inteiramente aclimatado no tempo em que
do, daí a opção pelo pretérito imperfeito. D. João VI governou o Brasil.
d) situadas em diferentes momentos, por isso d) É considerado um romance picaresco, por
expressas em diferentes tempos verbais. causa das ações de seu herói principal, e ple-
e) situadas num tempo anterior ao plano das namente identificado com o ideário românti-
ações narradas no pretérito perfeito. co vigente na literatura da época.
e) Prende-se ao Romantismo brasileiro, ainda
61. Analise as afirmações sobre Memórias de que apresente um certo descompasso com
um sargento de milícias. os padrões e o tom da estética romântica.

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Exercícios escritos
63. (Unicamp) No capítulo XXIII das Memórias cartório, e a quem enfim cada conhecido ou
de um sargento de milícias, o major Vidigal é amigo queria dar um destino que julgava mais
visitado por três mulheres que intercedem conveniente às inclinações que nele descobria,
por Leonardo. o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas,
escolheu a pior possível: nem foi para Coim-
O major recebeu-as de rodaque de chita e ta-
bra, nem para a Conceição, nem para cartório
mancos, não tendo a princípio suposto o qui-
algum; não fez nenhuma destas coisas, nem
late da visita; apenas porém reconheceu as
também outra qualquer: constituiu-se um com-
três, correu apressado à camarinha vizinha, e
pleto vadio, vadio mestre, vadio tipo.
envergou o mais depressa que pôde a farda;
(...)
como o tempo urgia, e era uma incivilidade
Era a sobrinha de D. Maria já muito desen-
deixar sós as senhoras, não completou o unifor- volvida, porém que, tendo perdido as graças de
me, e voltou de novo à sala de farda, calças de menina, ainda não tinha adquirido a beleza de
enfiar, tamancos, e um lenço de Alcobaça sobre moça: era alta, magra, pálida; andava com o
o ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras
assim, apesar da aflição em que se achava, mal sempre baixas, e olhava a furto; tinha os bra-
pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios. ços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-
Compare essa imagem do major com a que ele -lhe apenas até o pescoço, e como andava mal
tem nos capítulos anteriores. Diga se a nova penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma
imagem do major antecipa o resultado da visi- grande porção lhe caía sobre a testa e olhos,
ta das três mulheres e explique por quê. como uma viseira.
(Manuel Antônio de Almeida)
64. (Unicamp)
Tomando como ponto de partida a descrição
Manuel Antônio deseja contar de que manei-
das personagens presentes nos trechos ante-
ra se vivia no Rio popularesco de D. João VI; as riores, e considerando o romance como um
famílias mal-organizadas, os vadios, as procis- todo, justifique a afirmação do crítico Anto-
sões, as festas e as danças, a polícia; o meca- nio Candido de que Memórias de um sargento
nismo dos empenhos, influências, compadrios, de milícias, obra escrita no Romantismo, esta-
punições que determinavam certa forma de va meio em descompasso com os padrões e o
consciência e se manifestavam por certos tipos tom do momento.
de comportamento (...). O livro aparece, pois,
como sequência de situações. 66. (Fuvest) Considere o seguinte fragmento
(Antonio Candido, Formação da literatura brasileira.) do antepenúltimo capítulo de Memórias de
um sargento de milícias, no qual se narra a vi-
Podemos entender a “sequência de situa- sita que D. Maria, Maria Regalada e a comadre
ções” a que se refere Antonio Candido como fizeram ao major Vidigal, para interceder por
uma série de pequenos relatos no interior de Leonardo (filho):
Memórias de um sargento de milícias, de Ma-
nuel Antônio de Almeida. O major recebeu-as de rodaque1 de chita e
a) Quem dá unidade, na obra, a essa sequên- tamancos, não tendo a princípio suposto o
cia de relatos aparentemente soltos? quilate da visita; apenas porém reconheceu as
b) Cite um desses relatos e mostre como ele três, correu apressado à camarinha2 vizinha,
e envergou o mais depressa que pôde a farda:
se articula com a linha mestra do romance.
como o tempo urgia, e era uma incivilidade dei-
65. (PUC) Como sempre acontece a quem tem xar sós as senhoras, não completou o uniforme,
muito onde escolher, o pequeno, a quem o e voltou de novo à sala de farda, calças de en-
padrinho queria fazer clérigo mandando-o a fiar3, tamancos, e um lenço de Alcobaça sobre
Coimbra, a quem a madrinha queria fazer artis- o ombro, segundo seu uso. A comadre, ao vê-lo
ta metendo-o na Conceição, a quem D. Maria assim, apesar da aflição em que se achava, mal
queria fazer rábula, arranjando-o em algum pôde conter uma risada que lhe veio aos lábios.

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(1) rodaque – espécie de casaco. b) No trecho aqui reproduzido, o narrador
(2) camarinha – quarto. compara duas épocas diferentes: o seu pró-
(3) calças de enfiar – calças de uso doméstico. prio tempo e o tempo do rei. Esse procedi-
mento é raro ou frequente no livro? Com que
a) Considerando o fragmento no contexto da
objetivos o narrador o adota?
obra, interprete o contraste que se verifica
entre as peças do vestuário com que o major 68. (Fuvest) Leia o excerto de Memórias de um
voltou à sala para conversar com as visitas. sargento de milícias, de Manuel Antônio de Al-
b) Qual a relação entre o referido vestuário do meida, para responder o que se pede.
major e a sua decisão de favorecer Leonardo
(filho), fazendo concessões quanto à aplica- Caldo entornado
ção da lei? A comadre, tendo deixado o major entregue
à sua vergonha, dirigira-se imediatamente para
67. (Fuvest) Leia o trecho de abertura de
a casa onde se achava Leonardo para felicitá-
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
-lo e contar-lhe o desespero em que a sua fuga
Antônio de Almeida e responda ao que se pede.
tinha posto o Vidigal. (...) A comadre, segundo
Era no tempo do rei. seu costume, aproveitou o ensejo, e depois que
Uma das quatro esquinas que formam as se aborreceu de falar no major desenrolou um
ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se sermão ao Leonardo, (...). O tema do sermão foi
mutuamente, chamava-se nesse tempo – O a necessidade de buscar o Leonardo uma ocupa-
canto dos meirinhos –; e bem lhe assentava ção, de abandonar a vida que levava, gostosa
o nome, porque era aí o lugar de encontro fa- sim, porém sujeita a emergências tais como a
vorito de todos os indivíduos dessa classe (que que acabava de dar-se. A sanção de todas as leis
gozava então de não pequena consideração). que a pregadora impunha ao seu ouvinte eram
Os meirinhos de hoje não são mais do que a as garras do Vidigal.
sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei;
esses eram gente temível e temida, respeitável Você concorda com as afirmações que se-
e respeitada; formavam um dos extremos da guem? Justifique suas respostas.
formidável cadeia judiciária que envolvia todo a) Vê-se, no excerto, que a comadre procura
o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda incutir em Leonardo princípios morais desti-
era entre nós um elemento de vida: o extremo nados a corrigir o comportamento do afilhado.
oposto eram os desembargadores. b) No sermão que prega a Leonardo, a coma-
dre manifesta a convicção de que o trabalho é
a) A frase “Era no tempo do rei” refere-se a fator decisivo na formação da personalidade
um período histórico determinado e possui, de um jovem.
também, uma conotação marcada pela inde-
terminação temporal. Identifique tanto o pe-
ríodo histórico a que se refere a frase quanto
a mencionada conotação que ela também
apresenta.

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Respostas
Gabarito dos testes Além da caracterização pouco (ou quase nada)
romântica das personagens, o livro gira em torno
de camadas sociais e ambientes diversos dos que
36.d 37.a 38.a 39.d 40.c 41.d eram exibidos nas obras tipicamente românticas –
42.a 43.c 44.a 45.c 46.e 47.c Manuel Antônio de Almeida enfoca o universo dos
pequenos funcionários públicos, dos trabalhadores
48.a 49.c 50.e 51.d 52.c 53.e da baixa burguesia, dos moradores dos subúrbios e
54.a 55.e 56.b 57.d 58.d 59.a até dos morros cariocas.

60.e 61.b 62.d 66. a) O major Vidigal, personagem responsável


pela manutenção da ordem social no romance
Memórias de um sargento de milícias, volta à sala
“de farda, calças de enfiar, tamancos e um lenço
Respostas possíveis para as de Alcobaça”, ou seja, parte de seu traje remete ao
questões escritas universo da lei e da ordem (a farda, o lenço) e parte
se relaciona ao improviso e à desordem (a calça, os
tamancos). A personagem materializa, portanto, as
63. Essa imagem descontraída e pouco marcial
esferas da lei/não lei em seu próprio traje.
não combina com a figura atemorizante com que
o major Vidigal se impunha, nas suas missões poli- b) Atendendo à intercessão das três senhoras, Vidi-
ciais, perante a população carioca. gal se decide pela libertação de Leonardo, ou seja,
Diante dessa figura tão à vontade e receptiva, o lei- deixa de cumprir a lei em nome de seus interesses
tor conclui, por antecipação, que Vidigal atenderia particulares. Ele transita, assim, entre o cumprimen-
o pedido das três senhoras, no sentido de que li- to da lei e o não cumprimento dela, o que, aliás, é
bertasse, sem castigo, Leonardo (filho). tematizado no próprio traje disparatado com que
essa personagem se apresenta.
64. a) Como a estrutura é de uma novela, quem dá
unidade à obra é o anti-herói Leonardo. 67. a) O período histórico é o primeiro quartel do
século XIX, quando da vinda da família real (1808) e
b) Por exemplo, as histórias paralelas de Leonardo
do rei D. João VI. Ao mesmo tempo, existe uma in-
Pataca (o pai) que se “casa” com Chiquinha, filha da
determinação temporal, típica dos contos de fada:
comadre; a Maria da Hortaliça retornando a Portu-
“Era uma vez...”.
gal; os ciúmes de Vidinha que acabam por jogá-la
nos braços do toma-largura; o casamento de Lui- b) Jogar com dois tempos é procedimento fre-
sinha com José Manuel; os casos do major Vidigal; quente no livro e o autor o utiliza para contrapor o
entre outros. Todos os episódios, aparentemente tempo presente (do narrador) ao passado, muitas
desvinculados, que formam narrativas paralelas vezes resultando na ironia, no humor e no movi-
acabam alinhavados pelas ligações dos persona- mento da obra.
gens com Leonardo (filho). 68. a) Não. Ela não quer corrigir as ações de Leo-
65. O “descompasso” entre Memórias de um sargen- nardo, mas, temerosa das “garras do Vidigal”, procu-
to de milícias e as outras obras do período mostra- ra incutir no afilhado a necessidade de encontrar
-se, quanto às personagens: meios de escapar delas, no caso, pelo trabalho.
• na utilização do herói-pícaro (ou anti-herói) como b) Não. O sermão da comadre prega a necessidade
protagonista – Leonardo filho ajusta-se mais à figu- de Leonardo buscar uma ocupação para escapar às
ra de um malandro que a de um mocinho; garras de Vidigal, revelando-se assim a ausência de
preocupação com a formação do caráter do jovem.
• na figura feminina construída sem idealização,
descrita quase à maneira realista-naturalista que
ainda estava por vir.

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Memórias póstumas
de Brás Cubas
Machado de Assis
Exercícios teste

69. (Mack) Sobre o romance Memórias póstu- quais renega os valores da primeira fase.
mas de Brás Cubas, não é correto afirmar que: d) antecede as conquistas modernistas, com
a) é uma obra inovadora do processo narrati- uma postura crítica diante da civilização in-
vo, que introduz o Realismo no Brasil. dustrial e uma atitude de denúncia das misé-
b) Brás Cubas atua como defunto-narrador, rias do mundo rural.
capaz de alterar a sequência do tempo cro- e) desmistifica as idealizações românticas e
nológico. assume uma visão crítica que, despindo as
c) o memorialismo exarcebado acaba por con- aparências que encobrem a realidade, busca
ferir à obra um caráter de crônica. as razões últimas das ações humanas.
d) constitui um romance de crítica ao Roman-
72. (FEI)
tismo, deixando entrever muita ironia em vá-
rios momentos da narrativa. Mas o livro é enfadonho, cheira a sepulcro, traz
e) revela crítica intensa aos valores da socie- certa contração cadavérica; vício grave, e aliás
dade e ao próprio público leitor da época. ínfimo, porque o maior defeito deste livro és tu,
leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
70. (FGV) O romance Memórias póstumas de
devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o
Brás Cubas foi publicado num momento sig-
estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo
nificativo da literatura brasileira, tanto para
são como os ébrios, guinam à direita e à esquer-
a carreira de Machado de Assis, como para o
da, andam e param, resmungam, urram, garga-
desenvolvimento da prosa no Brasil. Tornou-se
lham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
um divisor entre: (Machado de Assis, Memórias
a) a prosa romântica e a realista-naturalista. póstumas de Brás Cubas.)
b) o romantismo e o cientificismo literário.
Assinale a alternativa que apresenta a carac-
c) os remanescentes clássicos e a necessidade
terística de Machado de Assis que melhor se
de modernização.
aplica ao texto anterior:
d) o espírito conservador e o espírito revolu-
a) Machado de Assis procura lançar a dúvida
cionário.
quanto à verdadeira identidade das pessoas:
e) a prosa finissecular e a imposição renova-
aparentamos o que somos ou somos o que
dora da época.
aparentamos.
71. (FCC) Memórias póstumas de Brás Cubas é b) A literatura machadiana busca as causas
considerado romance divisor de águas da obra secretas do ser humano. O homem é um ser
machadiana porque, a partir dele, o autor: complexo, voltado para a maldade.
a) assume de vez a visão romântica da reali- c) Machado de Assis mostra uma visão pes-
dade, apenas esboçada nos romances da cha- simista, desencantada do ser humano. Apre-
mada primeira fase. senta o homem com falhas, egoísmo, ambi-
b) se insere na estética naturalista, ao denun- ções, vaidade, cinismo, hipocrisia.
ciar as mazelas sociais, os casos patológicos d) Ele é o cientista psicólogo. Procura, cons-
e os aspectos mais repugnantes da realidade. tantemente, analisar o comportamento do
c) procede a uma retifïcação da própria obra, homem, desvendando sua miséria e apresen-
através da voz de personagens por meio das tando-o como perverso e egoísta.

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e) O narrador, muitas vezes, constrói a obra com 74. Assinale a alternativa que apresenta só
o leitor, isto é, o narrador interrompe para dis- palavras relacionais retiradas do texto.
cutir, trocar ideias, comentar a própria narrativa. a) uso, seja, algum, para, mas.
73. (Fatec) b) e, eu, entre, este, em.
(...) e tudo ficou sob a guarda de Dona Plá- c) em, para, ou, mas, entre.
cida, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira d) berço, nascimento, campa, princípio, fim.
dona da casa. e) vulgar, diferente, galante, novo, radical.
Custou-lhe muito a aceitar a casa: farejara a 75. “... levaram a adotar...”
intenção e doía-lhe o ofício: mas afinal cedeu. (...)
“... a sua morte...”
Eu queria angariá-la (...). Quando obtive a
“... não a pôs...”
confiança, imaginei uma história patética dos
meus amores com Virgília, um caso anterior ao As três ocorrências de a são, respectivamente:
casamento, a resistência do pai, a dureza do a) preposição, pronome, preposição.
marido, e não sei que outros toques de novela. b) pronome, artigo, preposição.
Dona Plácida não rejeitou uma só página da c) preposição, artigo, pronome.
novela; aceitou-as todas. Era uma necessidade d) artigo, artigo, preposição.
da consciência. Ao cabo de seis meses quem e) artigo, pronome, pronome.
nos visse a todos três juntos diria que a Dona
76. O autor afirma que:
Plácida era minha sogra.
Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco a) vai começar suas memórias pela narração
contos. de seu nascimento.
b) vai adotar uma sequência narrativa vulgar.
Considerando o trecho de Memórias póstu- c) o que o levou a escrever suas memórias
mas de Brás Cubas, de Machado de Assis, assi- foram duas considerações sobre a vida e a
nale a alternativa correta quanto ao procedi- morte.
mento do narrador.
d) vai começar suas memórias pela narração
a) Denuncia o comportamento de Plácida,
da sua morte.
que coloca o dinheiro acima de qualquer ou-
tro valor. e) vai adotar a mesma sequência narrativa
b) Ironiza a atitude de Plácida, que aceita utilizada por Moisés.
como verdadeira uma história inventada. 77. Definindo-se como um “defunto autor”, o
c) Fica comovido com a dor de Plácida e passa narrador:
a tratá-la como sogra. a) pôde descrever a própria morte.
d) Identifica-se com Plácida, para quem o ideal
b) escreveu suas memórias antes de morrer.
amoroso está acima das convenções sociais.
c) obteve em vida o reconhecimento de sua
e) Critica a atitude de Plácida, que valoriza a
instituição familiar falida. obra.
d) ressuscitou na sua obra após a morte.
(Fuvest) Texto para as questões de 74 a 79. e) descreveu a morte após o nascimento.
Algum tempo hesitei se devia abrir estas memó-
78. Segundo o narrador, Moisés contou sua
rias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em
morte no:
primeiro lugar o meu nascimento ou a minha
morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo a) promontório.
nascimento, duas considerações me levaram a b) meio do livro.
adotar diferente método: a primeira é que eu c) fim do livro.
não sou propriamente um autor defunto, mas d) introito.
um defunto autor, para quem a campa foi ou- e) começo da missa.
tro berço; a segunda é que o escrito ficaria as-
79. O tom predominante no texto é de:
sim mais galante e mais novo. Moisés, que tam-
a) luto e tristeza.
bém contou a sua morte, não a pôs no introito,
mas no cabo: a diferença radical entre este livro b) humor e ironia.
e o Pentateuco. c) pessimismo e resignação.
(Machado de Assis, Memórias d) mágoa e hesitação.
póstumas de Brás Cubas.) e) surpresa e nostalgia.

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(Fatec) Texto que servirá de referência para d) Ceticismo, pessimismo em relação ao ser
responder a questão 80. humano; romance histórico.
e) Quebra da estrutura habitual da narrativa;
Virgília? Mas então era a mesma senhora que refinada ironia na composição de persona-
alguns anos depois...? A mesma; era justamente gens.
a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus
últimos dias, e que antes, muito antes, teve lar- 81. (Fuvest)
ga parte nas minhas mais íntimas sensações. O senão do livro
Naquele tempo contava apenas uns quinze Começo a arrepender-me deste livro. Não que
ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida ele me canse; eu não tenho que fazer; e, real-
criatura da nossa raça e, com certeza, a mais mente, expedir alguns magros capítulos para
voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse a esse mundo sempre é tarefa que distrai um
primazia da beleza, entre as mocinhas do tem- pouco da eternidade. Mas o livro é enfadonho,
po, porque isto não é romance, em que o autor cheira a sepulcro, traz certa contração cadavé-
sobredoura a realidade e fecha os olhos às sar- rica; vício grave, e aliás ínfimo, porque o maior
das e espinhas; mas também não digo que lhe defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa
maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas
não. Era bonita, fresca, saía das mãos da natu- a narração direita e nutrida, o estilo regular e
reza, cheia daquele feitiço, precário, eterno, que fluente, e este livro e o meu estilo são como os
o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e
secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, param, resmungam, urram, gargalham, amea-
muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de çam o céu, escorregam e caem...
ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma (Machado de Assis)
devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que Tendo em vista o contexto das Memórias pós-
medo. tumas de Brás Cubas, é correto afirmar que,
Aí tem o leitor, em poucas linhas, o retrato nesse excerto:
físico e moral da pessoa que devia influir mais a) as imagens que se referem ao próprio livro,
tarde na minha vida; era aquilo com dezesseis mesmo exageradas, apontam para caracterís-
anos. Tu que me lês, se ainda fores viva, quando ticas que esse romance de fato apresenta.
estas páginas vierem à luz, – tu que me lês Vir- b) ao ponderar a opinião do leitor, o narrador
gília amada, não reparas na diferença entre a novamente evidencia o respeito e a conside-
linguagem de hoje e a que primeiro empreguei ração que tem por ele.
quando te vi? Crê que era tão sincero então c) o movimento autocrítíco põe em relevo,
como agora; a morte não me tornou rabugento, principalmente, a modéstia e a contenção ca-
nem injusto. racterísticas do narrador.
d) o fato de o narrador dirigir-se diretamente
– Mas, dirás tu, como é que podes assim dis-
ao leitor configura um momento de exceção
cernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la
no livro.
depois de tantos anos?
e) a atitude do narrador contradiz a constân-
Ah! indiscreta! ah! ignorantona!
cia e a persistência com que habitualmente
(Machado de Assis)
executa seus projetos.
80. No texto anterior, podem-se observar as 82. (PUC-C)
seguintes características da prosa machadiana: Algum tempo hesitei se devia abrir estas memó-
a) Romance de costumes, preocupa-se em rias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em
reproduzir a vida na Corte do século XIX; pu- primeiro lugar o meu nascimento ou a minha
rismo na linguagem. morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo
b) Intromissão do narrador, que conversa nascimento, duas considerações me levaram a
com o leitor; idealização na composição de adotar diferente método: a primeira é que não
personagens. sou propriamente um autor defunto, mas um
c) Distanciamento dos problemas do seu defunto autor, para quem a campa foi outro
tempo: escapismo; superficialidade na cria- berço; a segunda é que o escrito ficaria assim
ção de personagens. mais galante e mais novo.

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A condição anterior na qual se apresenta e lógico, apresenta afirmações que ultrapas-
o narrador das Memórias póstumas de Brás sam a razão e o senso comum.
Cubas, de Machado de Assis, permitiu-lhe: b) a combinação de hesitações e autocrítica
a) isentar-se de qualquer compromisso com já caracteriza o tom de arrependimento com
a realidade objetiva, permanecendo no plano que o defunto autor relatará sua vida impro-
do imaginário e do fantástico. dutiva.
b) manter um frio julgamento de sua própria c) as hesitações e dúvidas revelam a presença
história, dispensando as marcas subjetivas da de um narrador inseguro, que teme assumir a
ironia e do humor. condução da narrativa e a autoridade sobre
c) reconstruir caprichosamente a totalidade os fatos narrados.
da própria história, com humor crítico e dis- d) as preocupações com questões de método
creta melancolia. e as reflexões de ordem moral mostram um
d) pairar acima das fraquezas humanas, anali- narrador alheio às meras questões literárias,
sando-as com rigor ético e severidade moral. tais como estilo e originalidade.
e) satirizar as tendências românticas e espi- e) as considerações sobre o método e sobre a
ritualistas da época, submetendo-as a uma lógica da narração configuram o modo carac-
visão cientifïcista da História. terístico de se iniciar o romance no Realismo.
(Fuvest) Texto para as questões de 83 a 85. 84. A metáfora presente em “a campa foi outro
berço” baseia-se:
Óbito do autor a) na relação abstrato/concreto que há em
Algum tempo hesitei se devia abrir estas me- campa/berço.
mórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se po- b) no sentido conotativo que assume a pala-
ria em primeiro lugar o meu nascimento ou a vra campa.
minha morte. Suposto o uso vulgar seja come- c) na relação de similaridade estabelecida en-
çar pelo nascimento, duas considerações me tre campa e berço.
levaram a adotar diferente método: a primeira d) no sentido denotativo que tem a palavra
é que eu não sou propriamente um autor defunto, berço.
mas um defunto autor, para quem a campa foi e) na relação todo/parte que existe em cam-
outro berço; a segunda é que o escrito ficaria pa/berço.
assim mais galante e mais novo.
85. No texto, o particípio suposto expressa
(Machado de Assis. Memórias póstumas
uma ideia de:
de Brás Cubas. Capítulo Primeiro.)
a) causa
83. Considerando-se este fragmento no con- b) finalidade
texto da obra a que pertence, é correto afir- c) tempo
mar que, nele: d) concessão
a) o discurso argumentativo, de tipo racional e) conformidade

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Exercícios escritos
86. (Unicamp) A conhecida ironia de Macha- Digo-vos que as lágrimas eram verdadeiras”?
do de Assis fica evidente na seguinte passa- b) Transcreva do texto a frase que, revelando
gem do romance Memórias póstumas de Brás o estado de espírito do narrador, indicia seu
Cubas: envolvimento com Virgília.
... Marcela amou-me durante quinze meses e (FGV) Texto para as questões de 88 a 93.
onze contos de réis (...).
Capítulo LXXVI
Nesse, como em muitos outros trechos de O estrume
seus romances, o escritor usa com maestria
Súbito deu-me a consciência um repelão,
as palavras, obtendo, através da sua combi-
acusou-me de ter feito capitular a probidade
nação, o efeito irônico desejado.
de D. Plácida, obrigando-a a um papel torpe,
Diga qual é a ironia presente na passagem
depois de uma longa vida de trabalho e priva-
citada e explique de que maneira Machado
ções. Medianeira não era melhor que concubi-
consegue obter o efeito irônico através das
na, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa
relações de significação que se estabelecem
de obséquios e dinheiros. Foi o que me disse a
entre as palavras que ele escolheu.
consciência; fiquei uns dez minutos sem saber
(PUC) Instrução: a questão de número 87 que lhe replicasse. Ela acrescentou que eu me
refere-se ao texto a seguir. aproveitara da fascinação exercida por Virgí-
lia sobre a ex-costureira, da gratidão desta,
No momento em que eu terminava o meu mo-
enfim da necessidade. Notou a resistência de
vimento de rotação, concluía Lobo Neves o seu
D. Plácida, as lágrimas dos primeiros dias, as
movimento de translação. Morria com o pé na
caras feias, os silêncios, os olhos baixos, e a mi-
escada ministerial. Correu ao menos durante
nha arte em suportar tudo isso, até vencê-la.
algumas semanas, que ele ia ser ministro; e pois
E repuxou-me outra vez de um modo irritado
que o boato me encheu de muita irritação e in-
e nervoso.
veja, não é impossível que a notícia da morte
Concordei que assim era, mas aleguei que
me deixasse alguma tranquilidade, alívio, e um
a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo
ou dois minutos de prazer. Prazer é muito, mas é
da mendicidade: era uma compensação. Se
verdade: juro aos séculos que é a pura verdade.
não fossem os meus amores, provavelmente
Fui ao enterro. Na sala mortuária achei Virgília,
D. Plácida acabaria como tantas outras criatu-
ao pé do féretro, a soluçar. Quando levantou a
ras humanas; donde se poderia deduzir que o
cabeça, vi que chorava deveras. Ao sair o enter-
vício é muitas vezes o estrume da virtude. O que
ro, abraçou-se ao caixão, aflita; vieram tirá-la e
não impede que a virtude seja uma flor cheiro-
levá-la para dentro. Digo-vos que as lágrimas
sa e sã. A consciência concordou, e eu fui abrir a
eram verdadeiras. Eu fui ao cemitério; e, para
porta a Virgília.
dizer tudo, não tinha muita vontade de falar;
levava uma pedra na garganta ou na consciên- 88. “Medianeira não era melhor que concubi-
cia. No cemitério, principalmente quando dei- na, e eu tinha-a baixado a esse ofício...”
xei cair a pá de cal sobre o caixão, no fundo da a) Afinal qual o ofício de D. Plácida?
cova, o baque surdo da cal deu-me um estreme- b) Que diferença existe entre um e outro?
cimento passageiro, é certo, mas desagradável;
e depois a tarde tinha o peso e a cor do chumbo; 89. “Ela acrescentou que eu me aproveitara
o cemitério, as roupas pretas... da fascinação exercida por Virgília sobre a ex-
-costureira, da gratidão desta, enfim da ne-
(Machado de Assis)
cessidade.”
87. a) Considerando o romance Memórias a) De que necessidade se trata?
póstumas de Brás Cubas como um todo, qual b) D. Plácida não aceitou de pronto. O que de-
o verdadeiro motivo que teria levado o narra- nota a resistência dela descrita no texto?
dor a afirmar, referindo-se a Virgília: “Quando 90. A personagem precisou exercitar sua
levantou a cabeça, vi que chorava deveras. (...) “arte em suportar tudo isso, até vencê-la”.

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a) Por que arte? Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu
b) Como conciliar essa vitória da personagem ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda
com a necessidade da alínea “a” da questão para ir na venda beber.
anterior? – Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
91. No texto a personagem joga com as pala- – Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não
vras virtude e vício. pede. Entra para casa, bêbado!
a) De que vício e de que virtude se trata? Saí do grupo, que me olhava espantado e
b) Que análise permite o fato de a persona- cochichava as suas conjecturas. Segui cami-
gem relacionar ambos? nho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que
sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria
92. “... acusou-me de ter feito capitular a pro- matéria para um bom capítulo, e talvez alegre.
bidade de D. Plácida...” Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco.
a) Dê o significado do verbo capitular. Exteriormente, era torvo o episódio do Valon-
b) Probidade é derivado de probo. O que sig-
go; mas só exteriormente. Logo que meti mais
nifica probo?
dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo
93. “Concordei que assim era, mas aleguei gaiato, fino e até profundo. Era um modo que
que a velhice de D. Plácida estava agora ao o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas
abrigo da mendicidade: era uma compensa- recebidas, – transmitindo-as a outro. Eu, em
ção.” Há neste período uma oração coorde- criança, montava-o, punha-lhe um freio na
nada sindética adversativa que é ao mesmo boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia
tempo principal em relação a uma subordina- e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha
da substantiva objetiva direta. de si mesmo, dos braços, das pernas, podia tra-
a) Qual é essa oração coordenada sindética balhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga
adversativa que é também principal? condição, agora é que ele se desbancava: com-
b) Qual a sua oração subordinada substantiva prou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto
objetiva direta? juro, as quantias que de mim recebera. Vejam
(Fuvest) Texto para as questões de 94 a 101. as sutilezas do maroto!
O vergalho (Machado de Assis, Memórias
póstumas de Brás Cubas.)
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo,
por aquele Valongo fora, logo depois de ver e 94. Na sua opinião, o capítulo em questão
ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajunta- mostra um autor preocupado com a institui-
mento; era um preto que vergalhava outro na ção escravagista ou apenas preocupado em
praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia so- revelar formas do comportamento humano?
mente estas únicas palavras: Justifique sua resposta.
– “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, per-
95. O narrador diz que gosta dos capítulos
dão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada
alegres.
súplica, respondia com uma vergalhada nova.
a) O capítulo em questão é alegre?
– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão,
bêbado! b) Fundamente sua resposta.
– Meu senhor! gemia o outro. 96. No diálogo entre Nhonhô e Prudêncio há
– Cala a boca, besta! replicava o vergalho. diferentes registros de fala.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser a) Aponte esses registros.
o do vergalho? Nada menos que o meu mole- b) O que esses registros indicam?
que Prudêncio, – o que meu pai libertara alguns
anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e 97. Observe atentamente as falas das perso-
pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele nagens ao longo do capítulo.
preto era escravo dele. a) Entre que personagens ocorre o tratamento
– É, sim, nhonhô. em segunda pessoa do singular?
– Fez-te alguma coisa ? b) E o tratamento em terceira pessoa do sin-
– É um vadio e um bêbado muito grande. gular?

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98. “... perguntei-lhe se aquele preto era es- 103. (Unicamp) No romance Memórias pós-
cravo dele.” tumas de Brás Cubas, o narrador fornece ao
a) Em que tipo de discurso foi elaborada essa leitor uma visão nada lisonjeira das persona-
interrogativa? gens, especialmente quando se trata das per-
b) Transforme-a em discurso direto. sonagens femininas.
99. Brás Cubas é o Nhonhô em questão. Qual a) Sabendo que essa visão do narrador é
a origem e o significado da palavra Nhonhô? acentuada no processo de construção da-
quela que foi a sua primeira e grande paixão
100. “Segui caminho, a desfiar uma infinida- de juventude, identifique essa personagem e
de de reflexões, que sinto haver inteiramente cite ao menos um dos traços que a caracte-
perdido...” rizam.
a) A forma verbal sinto seria melhor compreen- b) Referindo-se a D. Plácida, afirma o narra-
dida como percebo ou como lamento? dor: “Foi assim que lhe acabou o nojo”. Qual a
b) Qual a fundamentação que o contexto ofe- função exercida por essa personagem na tra-
rece para sua resposta?
ma do citado romance? De que nojo se trata
101. O dicionário informa que vergalho é o e de que modo ele teria acabado?
órgão genital dos bois e dos cavalos; depois
104. (Unicamp) Leia a sequir o capítulo CX, de
de cortado e seco, é também o azorrague fei-
Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado
to desse órgão.
de Assis, e que significativamente tem o título
Qual o sentido que a palavra vergalho assume
em cada uma destas frases: de “31”:
a) “Cala a boca, besta! replicava o vergalho.” Uma semana depois, Lobo Neves foi nomeado
b) “Quem havia de ser o do vergalho?” presidente de província. Agarrei-me à esperan-
ça da recusa, se o decreto viesse outra vez da-
102. (Fuvest) tado de 13; trouxe, porém, a data de 31, e esta
Este último capítulo é todo de negativas. Não simples transposição de algarismos eliminou
alcancei a celebridade do emplasto, não fui mi- deles a substância diabólica. Que profundas
nistro, não fui califa, não conheci o casamento.
que são as molas da vida!
Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me
a boa fortuna de não comprar o pão com o suor a) O narrador refere-se aí a um episódio de
do meu rosto. bastante importância para o prosseguimento
(Machado de Assis, Memórias de sua vida amorosa. Quais as relações entre
póstumas de Brás Cubas.) o narrador e a personagem Lobo Neves aí ci-
a) Explique resumidamente o que era o “em- tada?
plasto” e por que deveria ter trazido celebri- b) Que episódio anterior deve ser levado em
dade a Brás Cubas. conta para se entender o trecho “Agarrei-me
b) Relacionando-a sucintamente ao contexto só- à esperança da recusa, se o decreto viesse ou-
cio-histórico em que se desenvolve o enredo do tra vez datado de 13” ?
romance, explique a frase “coube-me a boa c) A frase “Que profundas que são as molas da
fortuna de não comprar o pão com o suor do vida!” pode ser interpretada como irônica no
meu rosto”. contexto do romance. Por quê?

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Respostas
Gabarito dos testes b) “que a velhice de D. Plácida estava agora ao abrigo
da mendicidade”

69.c 70.a 71.e 72.e 73.b 74.c 94. O autor se preocupa tanto com as formas de
comportamento humano quanto com a escravi-
75.c 76.d 77.a 78.c 79.b 80.e dão.
81.a 82.c 83.a 84.c 85.d Com o comportamento porque faz uma reflexão
ampla sobre a maneira pela qual os seres humanos
descontam as injúrias recebidas, injuriando outros.
Respostas possíveis para as Com a escravidão porque vivia numa sociedade
onde havia senhores e escravos e ele mesmo, nar-
questões escritas rador, fora um senhor de escravo, e talvez por esta
razão o episódio chama-lhe a atenção.
86. A ironia está na conotação comercial, vincu- 95. a) O capítulo não é alegre.
lando a duração do amor ao dinheiro. Na verdade,
Marcela não amou Brás Cubas; apenas teve com ele b) O capítulo descreve, entre outros aspectos, um
uma relação motivada pelo interesse. episódio no qual um ex-escravo está aplicando cas-
O pensamento irônico nasce da combinação entre tigos físicos em um escravo e as reflexões que este
a pouca duração temporal e a vultosa quantia en- fato suscita no narrador.
volvidas no caso amoroso.
96. a) • “Ainda hoje deixei ele na quitanda (...) para
87. a) Por ter sido Virgília, durante algum tempo, na venda beber...” – falar coloquial e inculto de Pru-
amante de Brás Cubas, este supôs que ela não dêncio;
“amava” o marido, daí estranhar aquelas lágrimas • “Fez-te alguma coisa?”; “... perdoa-lhe” – falar culto
que não eram por simples conveniência. de Nhonhô.
b) “levava uma pedra na garganta ou na consciên- b) Indicam os diferentes graus de cultura e, consequen-
cia”. temente, de nível social entre Nhonhô e Prudêncio.
Apesar da alforria, a relação senhor-escravo permane-
88. a) Encobertar os amores ilícitos de Virgília com
ce, sendo explicitada também no plano da linguagem.
Brás Cubas.
b) Concubina é a amante, aquela que vive amasiada. 97. a) Na 2ª pessoa estão as falas de:
Medianeira é a intermediária. No caso de D. Plácida, • Prudêncio dirigindo-se ao escravo: “Toma, diabo!”;
encoberta os amores ilícitos recebendo pagamento. “Cala a boca, besta!”; “Entra para casa, bêbado!”;
• Brás Cubas dirigindo-se a Prudêncio: “Fez-te algu-
89. a) Dona Plácida estava passando por dificulda- ma coisa?”.
des financeiras, quando Virgília a procurou.
b) Na 3ª pessoa está a fala de Prudêncio dirigindo-se
b) “lágrimas dos primeiros dias, as caras feias, os si- a Brás Cubas: “Nhonhô manda, não pede” denotando
lêncios, os olhos baixos”.
a distância entre as personagens.
90. a) Arte significa toda a técnica, todos os mala- Deve-se observar a mudança de pessoa na fala de
barismos que a personagem teve de enfrentar para Prudêncio, que, ao utilizar a 2ª pessoa referindo-
conseguir vencer o humor de D. Plácida. -se ao escravo assemelha-se à postura de Nhonhô
b) Enquanto o tempo corre, a consciência de referindo-se a ele.
D. Plácida vai-se acomodando à situação e, entre a 98. a) Discurso indireto.
necessidade material e a moral, vence a primeira.
b) Perguntei-lhe:
91. a) No texto, vício é o adultério – uma vez de- – Esse preto é seu escravo?
sencadeado, não volta atrás; virtude é a caridade de
acolher uma mendiga. 99. Nhonhô é o tratamento que os escravos davam
ao senhor. É uma variante de senhor > sinhô > nho-
b) No caso de Brás Cubas, não haveria a virtude se
nhô > ioiô.
não houvesse o vício, isto é, se não houvesse amo-
res ilícitos não haveria a prática da caridade. 100. a) Como lamento.
92. a) Fazer render, ceder. b) Brás Cubas lamentava o fato de ter perdido a in-
finidade de reflexões que seriam “matéria para um
b) Probo: aquele que tem caráter íntegro, honesto.
bom capítulo, e talvez alegre” porque o autor gos-
93. a) “mas aleguei” tava “dos capítulos alegres”.

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101. a) O vergalho está no sentido figurado e se re- b) Dona Plácida é “medianeira”, uma antiga ama de
fere a Prudêncio. Virgília que vai acobertar as relações adúlteras en-
b) Vergalho está no sentido literal, significando tre esta e Brás Cubas.
açoite, chicote. Quando lhe é proposto que tome conta da casi-
nha da Gamboa, lança mão de um invólucro moral
102. a) O emplasto é uma espécie de panaceia (nojo) para recusar tal função, mas esse nojo é con-
universal, uma vez que seria um medicamento venientemente superado quando Brás Cubas lhe
que curaria todas as doenças da humanidade, das oferece dinheiro pela tarefa que executará.
mais simples às mais complexas. Por outro lado, o
emplasto significaria para Brás Cubas a perseguida 104. a) Brás Cubas e Lobo Neves tinham relações
imortalidade, dando-lhe o “primeiro lugar entre os amistosas, embora fossem rivais no campo amoro-
homens, acima da ciência e da riqueza”. so.
b) Brás Cubas vive de rendimentos dos bens her- b) A primeira nomeação de Lobo Neves para pre-
dados; representa uma parte da elite social do Rio sidente de província veio datada de 13 e, como ele
de Janeiro do século XIX que não precisava do tra- era supersticioso, recusou a nomeação, permane-
balho para sua sobrevivência. No contexto de uma cendo no Rio, o que permitiu a continuidade do
sociedade escravocrata, Brás reflete a posição do caso amoroso entre Brás Cubas e Virgília.
senhor, insensível e egoísta.
c) A frase é irônica porque Brás Cubas, ao tratar das
103. a) Marcela, prostituta, extremamente interes- crendices (no caso a troca de 13 por 31), critica a
sada em homens que lhe possam trazer bons ren- forma como os homens se deixam levar por coisas
dimentos. supérfluas e/ou casuísmos.

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O cortiço
Aluísio Azevedo
Exercícios testes

(Fatec) Leia o texto para responder as ques- havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava
tões 105 e 106. de cócoras, no chão, escamando peixe, para a
Ao chegarem à casa, João Romão pediu ao ceia do seu homem, quando viu parar defronte
cúmplice que entrasse e levou-o para o seu es- dela aquele grupo sinistro.
critório. Reconheceu logo o filho mais velho do seu
– Descanse um pouco... disse-lhe. primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o
– É, se eu soubesse que eles se não demora- corpo. Num relance de grande perigo compreen-
vam muito ficava para ajudá-lo. deu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de
– Fique para jantar. São quatro e meia, segre- quem se vê perdido para sempre: adivinhou que
dou-lhe na escada. tinha sido enganada; que a sua carta de alforria
Tomavam café, quando um empregado era uma mentira, e que o seu amante, não tendo
subiu para dizer que lá embaixo estava um coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
senhor, acompanhado de duas praças, e que Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém,
desejava falar ao dono da casa. circunvagou os olhos em torno de si, procuran-
– Vou já, respondeu este. E acrescentou para do escapula, o senhor adiantou-se dela e segu-
o Botelho: – São eles! rou-lhe o ombro.
– Deve ser, confirmou o velho. – É esta! disse aos soldados que, com um
E desceram logo. gesto, intimaram a desgraçada a segui-los. –
– Quem me procura?... exclamou João Ro- Prendam-na! É escrava minha!
mão com disfarce, chegando ao armazém. A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas
Um homem alto, com ar de estroina, adian- de peixe, com uma das mãos espalmadas no
tou-se e entregou-lhe uma folha de papel. chão e com a outra segurando a faca de cozi-
João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a de- nha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
fronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um Os policiais, vendo que ela se não despacha-
silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros va, desembainharam os sabres. Bertoleza en-
pararam em meio do serviço, intimidados por tão, erguendo-se com ímpeto de anta bravia,
aquela cena em que entrava a polícia. recuou de um salto e, antes que alguém conse-
– Está aqui com efeito... disse afinal o nego- guisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e
ciante. Pensei que fosse livre... fundo rasgara o ventre de lado a lado.
– É minha escrava, afirmou o outro. Quer E depois emborcou para a frente, rugindo e
entregar-ma?... esfocinhando moribunda numa lameira de san-
– Mas imediatamente. gue. João Romão fugira até ao canto mais escu-
– Onde está ela? ro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
– Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de Nesse momento parava à porta da rua uma
entrar... carruagem. Era uma comissão de abolicionis-
O sujeito fez sinal aos dois urbanos, que o tas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosa-
acompanharam logo, e encaminharam-se to- mente o diploma de sócio benemérito.
dos para o interior da casa. Botelho, à frente Ele mandou que os conduzissem para a sala
deles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia de visitas.
atrás, pálido, com as mãos cruzadas nas costas. (Aluísio Azevedo, O cortiço.)
Atravessaram o armazém, depois um peque-
no corredor que dava para um pátio calçado, 105. Para livrar-se de Bertoleza, João Romão
chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que agiu de forma dissimulada, tramando contra

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ela, como mostram alguns índices explicita- d) as personagens, na sua maioria, sejam ho-
dos no texto. Assinale a alternativa contendo mens ou mulheres, vivem quase que exclusi-
somente passagens marcadas por tais índices: vamente em função dos impulsos do desejo e
a) “São quatro e meia, segredou-lhe na esca- da perversidade sexual.
da.” / “Ele mandou que os conduzissem para a e) a vida difícil das personagens, tão ligadas
sala de visitas.” à criminalidade e à prostituição, é condicio-
b) “João Romão pediu ao cúmplice...” / “– Quem nada pelo meio adverso em que vivem e por
me procura?... exclamou João Romão com problemas biopatológicos.
disfarce...”
108. (Unifesp)
c) “– Descanse um pouco... disse-lhe.” / “João
Fechou-se um entra e sai de marimbondos
Romão fugira até ao canto mais escuro do ar- defronte daquelas cem casinhas ameaçadas
mazém, tapando o rosto com as mãos.” pelo fogo. Homens e mulheres corriam de cá
d) “E acrescentou para o Botelho: – São eles!” / para lá com os tarecos ao ombro, numa bal-
“Tenha a bondade de entrar...” búrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se
e) “– Vou já, respondeu este.” / “Pensei que fos- agora de camas velhas e colchões espocados.
se livre...” Ninguém se conhecia naquela zumba de gri-
106. Com base no texto, considere as seguin- tos sem nexo, e choro de crianças esmagadas,
tes afirmações: e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero.
I. Nesse trecho, Aluísio Azevedo mostra-se Da casa do Barão saíam clamores apopléticos;
irônico ao expor como era frágil o movimento ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espo-
linhava com um ataque. E começou a aparecer
abolicionista, já que a cena revela o contraste
água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo;
entre a aparência e a essência de João Romão
mas viam-se baldes e baldes que se despeja-
diante da escravidão.
vam sobre as chamas.
II. A narrativa se desenrola em linguagem
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
simples, em tom coloquial, como é próprio
E tudo era um clamor.
da prosa naturalista.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à
III. Mostra-se o traço naturalista na descrição boca de uma fornalha acesa. Estava horrível;
da morte de Bertoleza, pela óptica do anima- nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro,
lesco, com referências como “ímpeto de anta de cabocla velha, reluzia que nem metal em
bravia, (...) rugindo e esfocinhando”. brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorri-
IV. Também é marca do Naturalismo a constru- da e abundante como as das éguas selvagens,
ção de personagens como João Romão, que dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída
desprezava a moral para atingir seus objetivos. do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem
Deve-se concluir que estão corretas as afir- sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no
mações: meio daquela orgia de fogo, com que ultima-
a) I, II e III, somente. mente vivia a sonhar em segredo a sua alma
b) II, III e IV, somente. extravagante de maluca.
c) II e III, somente. Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu es-
d) I, III e IV, somente. talar o madeiramento da casa incendiada, que
e) I, II, III e IV. abateu rapidamente, sepultando a louca num
montão de brasas.
107. (ITA) Acerca do romance O cortiço, de (Aluísio Azevedo, O cortiço.)
Aluísio Azevedo, não é correto dizer que:
a) todas as personagens, por serem muito po- Releia o fragmento de O cortiço, com especial
bres, enveredam pelo mundo do crime ou da atenção aos dois trechos a seguir.
prostituição. Ninguém se conhecia naquela zumba de gri-
b) as personagens Bertoleza, Rita Baiana e tos sem nexo, e choro de crianças esmagadas,
Pombinha, ainda que sejam pobres, possuem e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero.
temperamentos distintos. (...)
c) homens e mulheres são, na sua maioria, E começou a aparecer água. Quem a trouxe?
vítimas de uma situação de pobreza que os Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e
desumaniza muito. baldes que se despejavam sobre as chamas.

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No fragmento, rico em efeitos descritivos e mento feminino torna as mulheres frágeis e
soluções literárias que configuram imagens volúveis.
plásticas no espírito do leitor, Aluísio Azeve- d) Para o escritor naturalista, os traços ins-
do apresenta características psicológicas de tintivos determinam o comportamento das
comportamento comunitário. Aponte a alter- pessoas.
nativa que explicita o que os dois trechos têm e) O escritor realista defende a tese de que o
em comum. autoritarismo é resultado da herança genéti-
a) Preocupação de um em relação à tragédia ca, sendo, portanto, independente da posi-
do outro, no primeiro trecho, e preocupação ção social.
de poucos em relação à tragédia comum, no
segundo trecho. 110. (Mack)
b) Desprezo de uns pelos outros, no primeiro
Uma transformação, lenta e profun-
trecho, e desprezo de todos por si próprios,
da, operava-se nele, dia a dia, hora a
no segundo trecho.
hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-
c) Angústia de um não poder ajudar o outro,
-lhe os sentidos (...). A vida americana e
no primeiro trecho, e angústia de não se co-
5 a natureza do Brasil patenteavam-lhe
nhecer o outro, por quem se é ajudado, no
agora aspectos imprevistos e sedutores
segundo trecho.
que o comoviam (...).
d) Desespero que se expressa por murmúrios,
E assim, pouco a pouco, se foram re-
no primeiro trecho, e desespero que se ex-
formando todos os seus hábitos singelos
pressa por apatia, no segundo trecho.
10 de aldeão português: e Jerônimo abrasi-
e) Anonimato da confusão e do “salve-se
leirou-se.
quem puder”, no primeiro trecho, e anonima-
to da cooperação e do “todos por todos”, no (Aluísio Azevedo, O cortiço.)
segundo trecho. Considerando o fragmento transcrito no
contexto do romance, a expressão “abrasi-
109. (Mack) Alexandre, em casa, à hora de des-
leirou-se” (linhas 10 e 11) revela que Jerô-
canso, nos seus chinelos e na sua camisa desa-
nimo:
botoada, era muito chão com os companheiros
a) adquiriu comportamento solto e criativo,
de estalagem, conversava, ria e brincava, mas
voltando-se para a fruição artística.
envergando o uniforme, encerando o bigode e
b) transformou-se num homem amoroso e
empunhando a sua chibata com que tinha o
mais inteligente.
costume de fustigar as calças de brim, ninguém
c) ficou motivado a ascender social e econo-
mais lhe via os dentes e então a todos falava
micamente.
“teso” e por cima do ombro. A mulher, a quem
d) recuperou a saúde física, graças aos estí-
ele só dava “tu” quando não estava fardado,
mulos da natureza tropical.
era de uma honestidade proverbial no cortiço,
e) tornou-se mais inclinado aos prazeres sen-
honestidade sem mérito, porque vinha da indo-
suais.
lência do seu temperamento e não do arbítrio
do seu caráter. 111. Durante dois anos o cortiço prosperou de
(Aluísio Azevedo) dia para dia, ganhando forças, socando-se de
Assinale a alternativa que apresenta comen- gente. E ao lado o Miranda assustava-se, in-
tário crítico adequado ao texto. quieto com aquela exuberância brutal de vida,
a) Para o escritor realista, imbuído dos princí- aterrado defronte daquela floresta implacável
pios cientificistas do século XIX, a beleza física que lhe crescia junto da casa, por debaixo das
das personagens deve necessariamente cor- janelas, e cujas raízes piores e mais grossas do
responder à beleza moral. que serpentes, minavam por toda parte, amea-
b) A personagem de romance romântico çando rebentar o chão em torno dela, rachan-
notabiliza-se por um comportamento social do o solo e abalando tudo.
agressivo, que contrasta com a afetividade, (Aluísio Azevedo, O cortiço.)
característica do convívio familiar. A partir da leitura do trecho anterior, e ten-
c) De acordo com os cânones da estética do em vista o contexto social retratado pela
naturalista, a indolência típica do comporta- obra, pode-se dizer que:

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a) Miranda, ex-morador do cortiço, mudou-se c) II e III.
porque não conseguia se adaptar a esse am- d) III, apenas.
biente rude e hostil. e) IV, apenas.
b) vizinho do cortiço, Miranda admirava a força
113. Assinale a alternativa incorreta:
e a coragem dos trabalhadores da pedreira.
a) João Romão é ganancioso e mesquinho,
c) diferente de Miranda, que demonstra des-
sendo capaz de muitas desonestidades para
prezo pelos moradores do cortiço, estes o
atingir seu objetivo de acumular dinheiro.
admiravam, por ser um modelo de homem
b) Rita Baiana é uma mulata bonita e sensual
íntegro e bem-sucedido nos negócios.
que trabalha como lavadeira e está sempre
d) a personagem Miranda é representante do
disposta a ajudar os outros.
clero, o que justifica seu moralismo com rela-
ção aos moradores do cortiço. c) Jerônimo, a princípio, mostra-se bastante
e) o sobrado, onde mora Miranda, e o cortiço saudoso de sua terra, mas, indo morar no cor-
representam lados opostos dentro da socie- tiço, sucumbe às influências perniciosas do
dade carioca retratada pelo romance. meio e transforma-se totalmente.
d) Pombinha, embora seja moradora do cor-
112. tiço, mostra-se como uma exceção a esse
Texto I: meio dentro do romance, comportando-se
A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por de maneira diversa dos demais personagens,
alcunha a “Machona”, portuguesa feroz, berra- durante todo o desenrolar da história.
dora, pulsos cabeludos e grossos, anca de ani- e) Miranda, português que se torna vizinho
mal do campo. do cortiço de João Romão, cultiva em relação
a este um profundo sentimento de inveja,
Texto II: embora tal sentimento vá se invertendo ao
longo do romance, ou seja, é João Romão
Não podia tirar os olhos daquela criatura de ca- quem passa a sentir inveja de Miranda.
torze anos, alta, forte e cheia, apertada em um
vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos (ITA) Texto para as questões 114 e 115.
grossos, feitos em duas tranças com as pontas Ela saltou em meio da roda, com os braços na
atadas uma à outra, a modo do tempo, des- cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a
ciam pelas costas. Morena, olhos claros e gran- cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita,
des, nariz reto e comprido, tinha a boca fina e o como numa sofreguidão de gozo carnal, num
queixo largo. requebrado luxurioso que a punha ofegante; já
Contrastando-se as descrições apresentadas correndo de barriga empinada; já recuando de
em cada um dos excertos, são feitas as se- braços estendidos, a tremer toda, como se fosse
guintes afirmações: afundando num prazer grosso que nem azeite,
I. As personagens, descritas de modo bas- em que se não toma pé e nunca se encontra
tante pormenorizado, pertencem ao mesmo fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava
romance. um gemido prolongado, estalando os dedos no
II. O estilo naturalista de descrição está bem ar e vergando as pernas, descendo, subindo,
claro no primeiro trecho. sem nunca parar com os quadris, e em seguida
III. O segundo trecho apresenta uma das per- sapateava, miúdo e cerrado freneticamente, er-
sonagens femininas mais marcantes da histó- guendo e baixando os braços, que dobrava, ora
ria da literatura brasileira: Capitu, do romance um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne
Dom Casmurro, escrito por Machado de Assis. lhe fervia toda, fibra por fibra titilando.
IV. Leandra, descrita como personagem tipi- Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um
camente naturalista, conforme o texto I, e grito de aplauso explodia de vez em quando,
Pombinha, jovem adolescente pura e sem rubro e quente como deve ser um grito saído do
malícia, conforme o texto II, são personagens sangue. E as palmas insistiam cadentes, certas,
secundárias. num ritmo nervoso, numa persistência de lou-
Está correto o que se afirma em: cura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo,
a) I e II. ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com
b) I, II e IV. as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão,

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a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, c) apenas a II.
batendo os calcanhares, os braços a querer fugir- d) apenas a III.
-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-se. E de- e) as afirmações II e III.
pois, surgiu também a Florinda e logo o Albino e
115. I. O narrador caracteriza Rita através de
até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.
uma série de metáforas relacionadas às sen-
O chorado arrastava-os a todos, despotica-
sações táteis, visuais, olfativas e gustativas.
mente, desesperando aos que não sabiam dan-
II. Por algumas características observáveis no
çar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele
demônio, tinha o mágico segredo daqueles mo- texto, podemos incluí-lo no estilo de época
vimentos de cobra amaldiçoada; aqueles reque- que dominou a segunda metade do século
bros que não podiam ser sem o cheiro que a mula- XIX e início do século XX.
ta soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, III. Enfatiza-se no texto o comportamento ani-
harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante. mal do ser humano.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe De acordo com o texto, pode(m) estar
toda a alma pelos olhos enamorados. correta(s):
Naquela mulata estava o grande mistério, a a) todas.
síntese das impressões que ele recebeu chegando b) apenas a I.
aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o c) apenas a II.
calor vermelho das sestas da fazenda; era o aro- d) apenas a III.
ma quente dos trevos e das baunilhas, que o ator- e) nenhuma das afirmações anteriores.
doara nas matas brasileiras; era a palmeira virgi- 116. Alexandre, em casa, à hora de descanso,
nal e esquiva que se não torce a nenhuma outra nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada,
planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era era muito chão com os companheiros de esta-
o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do lagem, conversava, ria e brincava, mas enver-
caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela gando o uniforme, encerando o bigode e empu-
era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a nhando a sua chibata, com que tinha o costume
muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tem- de fustigar as calças de brim, ninguém mais lhe
po em torno do corpo dele, assanhando-lhe os via os dentes e então a todos falava teso e por
desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas cima do ombro. A mulher, a quem ele só dava
pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, “tu“ quando não estava fardado, era de uma
para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha honestidade proverbial no cortiço, honestidade
daquele amor setentrional, uma nota daquela sem mérito, porque vinha da indolência do seu
música feita de gemidos de prazer, uma larva da- temperamento e não do arbítrio do seu caráter.
quela nuvem de cantáridas que zumbiam em tor-
no da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa Em relação ao excerto anterior, analise as se-
fosforescência afrodisíaca.“ guintes assertivas:
I. Quando estava em casa, de folga, Alexandre
114. Dadas as afirmações: era muito duro (“chão”) com os amigos.
I. O narrador, predominantemente oniscien- II. Quando vestia sua farda, Alexandre parecia
te, preocupa-se preferencialmente com o vestir uma outra personalidade, mais séria, si-
mundo interior das personagens. suda, moderada.
II. O narrador, observador, enfatiza aspectos III. A honestidade da mulher é destacada
sensuais do comportamento da personagem como um positivo traço de seu caráter.
e seleciona da realidade aspectos perceptí- Estão corretas:
veis pelos sentidos. a) I, II e III.
III. O narrador, após sugerir alguns elementos
b) I e II, apenas.
perceptíveis da realidade, subjetivamente en-
c) I e III, apenas.
fatiza aspectos positivos do comportamento
d) II e III, apenas.
da personagem.
e) II, apenas.
Inferimos que, de acordo com o texto,
pode(m) estar correta(s): 117. E naquela terra encharcada e fumegante,
a) todas. naquela umidade quente e lodosa, começou a
b) apenas a I. minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo,

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uma coisa viva, uma geração, que parecia bro- precisava. Por ali não se encontrava jornalei-
tar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e ro, cujo ordenado não fosse inteirinho parar
multiplicar-se como larvas no esterco. às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase
sempre emprestado aos tostões, cobrava juros
No trecho anterior, o autor procura descrever
de oito por cento ao mês, um pouco mais do
o cortiço:
que levava aos que garantiam a dívida com pe-
a) atenuando os problemas sociais por meio
nhores de ouro ou prata.
do determinismo.
b) acentuando a inocência e a fragilidade das No excerto anterior, encontram-se inúme-
personagens, as quais, contra a vontade, ti- ras táticas de que João Romão se valeu para
nham de viver como bichos. prosperar seu negócio, exceto:
c) vinculando-o às formas mais primitivas e a) eliminar os intermediários, comprando
poéticas da natureza, ainda que isso involun- produtos diretamente da Europa.
tariamente destacasse um aspecto sombrio e b) misturar vinho com água e cachaça para
asqueroso. reduzir seu teor alcoólico, preservando assim
d) acentuando o modo animalesco como vi- a saúde de seus clientes.
viam seus moradores, comparando-os aos c) aumentar a variedade de produtos à venda
vermes que habitam o esterco. em seu estabelecimento.
e) obedecendo aos padrões realistas, ou seja, d) ampliar o espaço físico do recinto, transfor-
de modo objetivo e fiel à realidade, privando- mando sua taverna num bazar.
-se de exageros e metáforas. e) emprestar dinheiro cobrando juros.

118. Afinal, já não lhe bastava sortir o seu es- 119. (UEL) A questão refere-se aos trechos a
tabelecimento nos armazéns fornecedores; co- seguir.
meçou a receber alguns gêneros diretamente Justamente por essa ocasião vendeu-se tam-
da Europa: o vinho, por exemplo, que ele dantes bém um sobrado que ficava à direita da venda,
comprava aos quintos nas casas de atacado, separado desta apenas por aquelas vinte braças;
vinha-lhe agora de Portugal às pipas, e de cada e de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio,
uma fazia três com água e cachaça; e despa- coisa de uns vinte e tantos metros, despejava
chava faturas de barris de manteiga, de caixas para o terreno do vendeiro as suas nove janelas
de conserva, caixões de fósforos, azeite, queijos, de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, nego-
louça e muitas outras mercadorias. ciante português, estabelecido na rua do Hospí-
Criou armazéns para depósito, aboliu a qui- cio com uma loja de fazendas por atacado.
tanda e transferiu o dormitório, aproveitando (...)
o espaço para ampliar a venda, que dobrou de E durante dois anos o cortiço prosperou de
tamanho e ganhou mais duas portas. dia para dia, ganhando forças, socando-se
Já não era uma simples taverna, era um bazar de gente. E ao lado o Miranda assustava-se,
em que se encontrava de tudo: objetos de armari- inquieto com aquela exuberância brutal de
nho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, vida, aterrado diante daquela floresta im-
roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda placável que lhe crescia junto da casa, por
para roupa de mulher, chapéus de palha próprios debaixo das janelas, e cujas raízes piores e
para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes mais grossas do que serpentes miravam por
de chifre, lenços com versos de amor, e anéis e toda parte, ameaçando rebentar o chão
brincos de metal ordinário. em torno dela, rachando o solo e abalando
E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair tudo.
lá, ou então ali ao lado, na casa de pasto, onde (Aluísio Azevedo. O cortiço. São Paulo: Martins,
os operários das fábricas e os trabalhadores da 1974. 26. ed. pp. 23 e 33.)
pedreira se reuniam depois do serviço, e ficavam Com base nos fragmentos citados e nos co-
bebendo e conversando até às dez horas da noi- nhecimentos sobre o romance O cortiço, de
te, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe Aluísio Azevedo, considere as afirmações a
frito em azeite e dos lampiões de querosene. seguir.
Era João Romão quem lhes fornecia tudo, I. A descrição do cortiço, feita através de uma
tudo, até dinheiro adiantado, quando algum linguagem metafórica, indica que, no roman-

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ce, esse espaço coletivo adquire vida orgâni- volvia-se preguiçoso, resignando-se,
ca, revelando-se um “ser” cuja força de cresci- vencido, às imposições do sol e do calor,
mento assemelha-se ao poderio de raízes em muralha de fogo com que o espírito eter-
desenvolvimento constante que ameaçam namente revoltado do último tamoio en-
tudo abalar. 25 trincheirou a pátria contra os conquista-
II. A inquietação de Miranda quanto ao cresci- dores aventureiros.
mento do cortiço deve-se ao fato de que sua E assim, pouco a pouco, se foram refor-
casa, o sobrado, ainda que fosse uma constru- mando todos os seus hábitos singelos de
ção imponente, não possuía uma estrutura ca- aldeão português: e Jerônimo abrasilei-
paz de suportar o crescimento desenfreado do 30 rou-se. (...)
vizinho, que ameaçava derrubar sua habitação. E o curioso é que, quanto mais ia ele cain-
III. Não obstante a oposição entre o sobrado do nos usos e costumes brasileiros, tanto
e o cortiço em termos de aparência física dos mais os seus sentidos se apuravam, posto
ambientes, os moradores de um e outro espa- que em detrimento das suas forças físicas.
ço não se distinguem totalmente, haja vista 35 Tinha agora o ouvido menos grosseiro para
que seus comportamentos se assemelham a música, compreendia até as intenções
em vários aspectos, como, por exemplo, os poéticas dos sertanejos, quando cantam
de João Romão e Miranda. à viola os seus amores infelizes; seus olhos,
IV. Os dois ambientes descritos marcam uma dantes só voltados para a esperança de
oposição entre o coletivo (o cortiço) e o indi- 40 tornar à terra, agora, como os olhos de um
vidual (o sobrado) e, por extensão, remetem marujo, que se habituaram aos largos ho-
também à estratificação presente no contex- rizontes de céu e mar, já se não revoltavam
to do Rio de Janeiro do final do século XIX. com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do
Estão corretas apenas as afirmativas: Brasil, e abriam-se amplamente defronte
a) l e II. 45 dos maravilhosos despenhadeiros ilimita-
b) l e III. dos e das cordilheiras sem fim, donde, de
c) II e IV. espaço a espaço, surge um monarca gigan-
d) l, III e IV. te, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias
e) II, IIl e IV. refulgentes e as nuvens toucam de alvos
50 turbantes de cambraia, num luxo oriental
(Fuvest) Texto para as questões de 120 a 125. de arábicos príncipes voluptuosos.
(Aluísio Azevedo, O cortiço.)
Passaram-se semanas. Jerônimo to-
mava agora, todas as manhãs, uma xíca- 120. Considere as seguintes afirmações, rela-
ra de café bem grosso, à moda da Ritinha, cionadas ao excerto de O cortiço:
e tragava dois dedos de parati “pra cortar I. O sol, que, no texto, se associa fortemente
5 a friagem”. ao Brasil e à “pátria”, é um símbolo que per-
Uma transformação, lenta e profunda, corre o livro como manifestação da natureza
operava-se nele, dia a dia, hora a hora, tropical e, em certas passagens, representa o
reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os princípio masculino da fertilidade.
sentidos, num trabalho misterioso e sur- II. A visão do Brasil expressa no texto manifes-
10 do de crisálida. A sua energia afrouxava ta a ambiguidade do intelectual brasileiro da
lentamente: fazia-se contemplativo e época em que a obra foi escrita, o qual acatava
amoroso. A vida americana e a natureza e rejeitava a sua terra, dela se orgulhava e en-
do Brasil patenteavam-lhe agora aspec- vergonhava, nela confiava e dela desesperava.
tos imprevistos e sedutores que o como- III. O narrador aceita a visão exótico-român-
15 viam; esquecia-se dos seus primitivos tica de uma natureza (brasileira) poderosa e
sonhos de ambição, para idealizar felici- transformadora, reinterpretando-a em chave
dades novas, picantes e violentas; torna- naturalista.
va-se liberal, imprevidente e franco, mais Aplica-se ao texto o que se afirma em:
amigo de gastar que de guardar; adqui- a) I, somente.
20 ria desejos, tomava gosto aos prazeres, e b) II, somente.

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c) II e III, somente. b) promoção da música a emblema da nação.
d) I e III, somente. c) desconsideração do valor do trabalho.
e) I, II e III. d) crença na existência de um caráter nacio-
nal brasileiro.
121. Ao comparar Jerônimo com uma crisáli-
e) tendência ao antilusitanismo.
da, o narrador alude, em linguagem literária,
a fenômenos do desenvolvimento da borbo- 124. No trecho “dos maravilhosos despenha-
leta, por meio das seguintes expressões do deiros ilimitados e das cordilheiras sem fim,
texto: donde, de espaço a espaço, surge um monar-
I. “transformação, lenta e profunda” (linha 6); ca gigante” (linhas 45 a 48), o narrador tem
II. “reviscerando” (linha 8); como referência:
III. “alando” (linha 8); a) a chapada dos Guimarães, anteriormente
IV. “trabalho misterioso e surdo” (linhas 9 e 10). coberta por vegetação de cerrado.
Tais fenômenos estão corretamente indica- b) os desfiladeiros de Itaimbezinho, outrora
dos em: revestidos por exuberante floresta tropical.
a) I, apenas. c) a chapada Diamantina, então coberta por
b) I e II, apenas. florestas de araucária.
c) III e IV, apenas. d) a serra do Mar, que abrigava originalmente
d) II, III e IV, apenas. a densa mata Atlântica.
e) I, II, III e IV. e) a serra da Borborema, caracterizada, no
passado, pela vegetação da caatinga.
122. Os costumes a que adere Jerônimo em
sua transformação, relatada no excerto, têm 125. Destes comentários sobre os trechos
como referência, na época em que se passa a destacados, o único que está correto é:
história, o modo de vida: a) “tragava dois dedos de parati” (linha 4): ex-
a) dos degredados portugueses enviados ao pressão típica da variedade linguística predo-
Brasil sem a companhia da família. minante no discurso do narrador.
b) dos escravos domésticos, na região urbana b) “pra cortar a friagem“ (linhas 4 e 5): essa ex-
da Corte, durante o Segundo Reinado. pressão está entre aspas, no texto, para indi-
c) das elites produtoras de café, nas fazendas car que se trata do uso do discurso indireto
opulentas do Vale do Paraíba fluminense. livre.
d) dos homens livres pobres, particularmente c) “patenteavam-lhe agora aspectos impre-
em região urbana. vistos” (linhas 13 e 14): assume o sentido de
e) dos negros quilombolas, homiziados em “registravam oficialmente”.
refúgios isolados e anárquicos. d) “posto que em detrimento das suas forças
físicas” (linhas 33 e 34): equivale, quanto ao
123. Um traço cultural que decorre da pre- sentido, a “desde que em favor”.
sença da escravidão no Brasil e que está e) “tornava-se (...) imprevidente” (linha 18)
implícito nas considerações do narrador do e “resignando-se (...) às imposições do sol”
excerto é a: (linhas 21 e 22): trata-se do mesmo prefixo,
a) desvalorização da mestiçagem brasileira. apresentando, portanto, idêntico sentido.

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Exercícios escritos
126. E o mugido lúgubre daquela pobre cria- c) Como você interpreta a frase de Miranda,
tura abandonada antepunha à rude agitação a respeito de sua esposa: “Eu me sirvo dela
do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de como quem se serve de uma escarradeira”?
uma vaca chamando ao longe, perdida ao cair
da noite num lugar desconhecido e agreste. (...). 129. a) Qual é a principal atividade remunera-
E Piedade, assentada à soleira de sua porta, pa- da das mulheres? Por quê?
ciente e ululante como um cão que espera pelo b) Existe alguma simetria na construção das
dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra... personagens Piedade e Bertoleza?
(Aluísio Azevedo, O cortiço.)
130. No capítulo XV o escritor coloca um im-
a) Identifique no trecho anterior duas figuras
portante episódio que envolve dois persona-
de linguagem.
b) Que sentido tais recursos dão ao texto? gens: Firmo e Jerônimo.
a) O que acontece com Firmo?
127. Sim, João Romão já convidava para beber b) Qual a relação desse episódio com o abra-
alguma coisa. Mas não era à toa que o fazia, que sileiramento de Jerônimo?
aquele mesmo não metia prego sem estopa!
131. (Unicamp) Leia o seguinte comentário a
Sobre o trecho anterior, responda:
respeito de O cortiço, de Aluísio Azevedo:
a) Qual a classificação morfológica e função
sintática de “o”? Com efeito, o que há n’O cortiço são formas
b) Qual o possível significado da expressão primitivas de amealhamento*, a partir de mui-
“não metia prego sem estopa”? to pouco ou quase nada, exigindo uma espécie
de rigoroso ascetismo inicial e aceitação de
128. Botelho conhecia as faltas de Estela como modalidades diretas e brutais de exploração,
as palmas da própria mão. O Miranda mesmo,
incluindo o furto (...) como forma de ganho e a
que o via em conta de amigo fiel, muitas e mui-
transformação da mulher escrava em compa-
tas vezes lhe confiara em ocasiões desesperadas
de desabafo, declarando francamente o quanto nheira-máquina. (...) Aluísio foi, salvo erro meu,
no íntimo a desprezava e a razão por que não a o primeiro dos nossos romancistas a descrever
punha na rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe minuciosamente o mecanismo de formação de
toda a razão; entendia também que os sérios in- riqueza individual.
teresses comerciais estavam acima de tudo. (...) N’O cortiço [o dinheiro] se torna implicita-
– Uma mulher naquelas condições, dizia ele mente objeto central da narrativa, cujo ritmo
convicto, representa nada menos que o capital, acaba se ajustando ao ritmo da sua acumula-
e um capital em caso nenhum a gente despre- ção, tomada pela primeira vez no Brasil como
za! Agora, você o que devia era nunca chegar-se eixo da composição ficcional.
para ela... (Antonio Candido. “De cortiço a cortiço”.
– Ora! explicava o marido. Eu me sirvo dela In: O discurso e a cidade. São Paulo:
como quem se serve de uma escarradeira! Duas Cidades, 1993.)
O capítulo II menciona o personagem Miran- (*) amealhar: acumular (riqueza), juntar (dinheiro)
da, e contém importante informação sobre aos poucos.
o espaço em que se desenvolvem as ações.
a) Explique a que se referem o rigoroso asce-
Com base no trecho anterior e no capítulo
como um todo, responda: tismo inicial da personagem em questão e as
a) Que sentimento Miranda nutria com rela- modalidades diretas e brutais de exploração
ção a João Romão? que ela emprega.
b) Como o velho Botelho é introduzido no b) Identifique a “mulher escrava” e o modo
romance? Resuma a história de vida do per- como se dá sua transformação em “compa-
sonagem. nheira-máquina”.

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Respostas
Gabarito dos testes amizade antiga com Miranda – com quem chegou
a trabalhar na juventude –, foi morar com este.
c) Miranda se referia à esposa sem doçura ou en-
105.b 106.e 107.a 108.e 109.d 110.e canto, como se ela fosse um mero objeto destituído
111.e 112.c 113.d 114.c 115.a 116.e de maior importância.
117.d 118.b 119.d 120.e 121.e 122.d 129. a) No ambiente retratado no livro, a principal
atividade remunerada das mulheres era lavadora
123.c 124.d 125.b
de roupa, visto que aproveitavam as condições
propícias que o cortiço oferecia: espaço adequado
e água em abundância.
Respostas possíveis para as
questões escritas b) Sim. Ambas vivem à mercê de seus homens e são
destinadas a serem vítimas da traição deles.

126. a) Metáfora, em ”E o mugido lúgubre daquela 130. a) Enganado por Pataca, Firmo vai à praia com
pobre criatura abandonada antepunha à rude agi- a esperança de flagar Rita Baiana com algum estra-
tação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha nho. No entanto, Pataca e outros dois homens o
de uma vaca chamando ao longe...”, pois Piedade encurralam e batem nele até Firmo falecer.
é tida como vaca; comparação, em “E Piedade, as- b) Após o ataque, Jerônimo efetua o pagamento
sentada à soleira de sua porta, paciente e ululan- aos capangas e paga-lhes uma bebida. Consegue
te como um cão que espera pelo dono”, trecho no ainda, como recordação, a navalha da vítima. De-
qual a mesma personagem é comparada a um cão. pois de se despedir dos comparsas, ele vai para
b) Tais recursos criam um processo de identifica- casa, onde se encontra com Rita Baiana. A perda
ção da personagem com animais, ou seja, tenta-se das travas morais que culmina com a eliminação
chamar atenção para os aspectos mais primitivos de Firmo constitui a total adaptação de Jerônimo
do homem, algo que foi intensamente explorado ao meio e, consequentemente, a sua entrega aos
pelo Naturalismo. desregramentos e à lubricidade.
127. a) Sintaticamente, o termo “o” tem função de 131. a) Trata-se do personagem João Romão, que,
objeto direto do verbo fazer; morfologicamente, tal para enriquecer, sacrifica-se a si mesmo, vivendo
termo assume a classificação de pronome substan- uma vida mesquinha e miserável; contentando-se
tivo demonstrativo. com os restos dos outros, rouba e explora os tra-
b) Tal expressão, dentro do contexto, significa agir balhadores da pedreira e os inquilinos do cortiço;
de modo pensado. usa e abusa da serviçal Bertoleza com uma única
finalidade – aumentar seus bens.
128. a) Miranda nutria um misto de raiva e inveja
em relação a João Romão. Raiva por causa de o vizi- b) A “mulher escrava” em questão é Bertoleza. João
nho não ter aceitado negociar com ele um pedaço Romão aproxima-se dela, finge que a protege, fal-
de terreno; inveja por causa da prosperidade finan- sifica a carta de alforria, embolsa o dinheiro que ela
ceira de João Romão. ajuntara e emprega-a, sem salário, como quituteira
da venda, fazendo-a trabalhar incansavelmente.
b) João Botelho era um agregado na casa de Mi-
randa. Como ele vivia de favor, esforçava-se para A mulher, profundamente grata pela “liberdade”
agradar os donos da casa. João Botelho era comer- comprada, é duplamente explorada: como empre-
ciante, trabalhou com especulações, chegando in- gada, por tornar-se “mula de carga” de João Romão
clusive a enriquecer. No entanto, pouco a pouco foi e como amante, usada apenas sexualmente, sem
perdendo sua fortuna e, aproveitando-se de uma qualquer envolvimento afetivo.

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A cidade e as serras
Eça de Queirós
Exercícios testes

Texto para as questões 132 e 133. cinto não ter voltado a Paris, como era de se
Suma ciência esperar.
x b) o espanto de Severo, filho de Melchior, ao
Suma potência perceber que o narrador não sabia que Jacin-
to não tinha planos de partir.
132. No romance A cidade e as serras, o ideal c) a preocupação de Severo, pois ele acredi-
anteriormente exposto: tava que o patrão esquecera de avisar seus
a) é seguido pelo protagonista desde o início amigos de que ficaria mais tempo em Tormes.
até o final do volume. d) a surpresa do narrador ao constatar que
b) é seguido pelo narrador, que o abandona Jacinto ficara em Tormes.
devido à constatação de que o campo pode e) que Severo se divertiu ao saber que o nar-
propiciar uma vida melhor. rador desconhecia a intenção de Jacinto de
c) é seguido pelo protagonista que, no en- permanecer mais tempo nas serras.
tanto, acaba por rejeitá-lo ao constatar que o
homem pode ser mais feliz no campo. Texto para as questões 135 e 136.
d) é aceito pelo narrador e para ilustrá-lo uti-
liza o exemplo do seu grande amigo Jacinto. – Ó Jacinto, eu daqui a um instante também
e) é aceito pelo protagonista e para ilustrá-lo quero água! E se compete a esta rapariga trazer
utiliza o exemplo de Júlio Dinis. as coisas, eu, de cinco em cinco minutos, quero
uma coisa!... Que olhos, que corpo... Caramba,
133. O conceito exposto no texto: menino! Eis a poesia toda viva da serra... (...)
a) é pura e simplesmente teórico e idealista. – É uma bela moça, mas uma bruta (...) Mere-
b) é uma equação idealista que o protago- ce o seu nome de Ana Vaqueira. Trabalha bem,
nista procura colocar em prática cercando-se digere bem, concebe bem. Por isso a fez a Na-
dos avanços tecnológicos que a riqueza pode tureza, assim sã e rija; e ela cumpre. O marido,
comprar. todavia, não parece contente, porque a desan-
c) é a síntese da bem-aventurança que perse- ca. Também é um belo bruto... Não, meu filho,
gue o protagonista da primeira à última pági- a serra é maravilhosa e muito grato lhe estou...
na do volume. Mas temos aqui a fêmea em toda a sua anima-
d) consiste na essência da filosofia futurista lidade e o macho em todo o seu egoísmo... São
defendida pelo narrador da obra. porém verdadeiros, genuinamente verdadeiros!
e) é a essência do Positivismo defendida pelo E esta verdade, Zé Fernandes, é para mim um
autor no volume. repouso!
Texto para a questão 134.
135. a) O trecho demonstra que Jacinto não
– Ora essa! Então o Sr. D. Jacinto está em Tor-
comungava do mesmo entusiasmo do amigo
mes?
ao se referir à beleza da mulher do campo.
O meu espanto divertiu o Severo:
b) O trecho ilustra duas diferentes posições de
– Então Vossa Excelência... Pois em Tormes
Jacinto a respeito da mulher do campo: sensível
é que ele está, há mais de cinco semanas, sem
e bela por um lado, bruta e leal por outro.
arredar! E parece que fica para a vindima, e vai
c) O trecho se refere à inutilidade e à falsidade
lá uma grandeza!
das mulheres do campo se comparadas com
134. O texto indica: os animais.
a) o espanto do protagonista pelo fato de Ja- d) O trecho destaca a delicadeza e a sensi-

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bilidade das mulheres do campo, dons que teórica da primeira parte do romance.
o homem só pode encontrar nos seres que d) A cidade era concebida como algo distante
vivem em perfeita interação com a Natureza. da solidão e Paris um teto que abriga milhões
e) O trecho mostra que Zé Fernandes é realis- de seres humanos. Com o passar do tempo,
ta e Jacinto é idealista.
Jacinto percebe que sua civilização o agride,
136. Depreende-se do texto que: o isola, o entedia e o maltrata. Este jogo de
a) as relações humanas em nada diferenciam opostos constitui o centro de interesses de A
das relações animais, por isso, Ana Vaqueira cidade e as serras.
e seu marido são chamados de “brutos” pelo e) Embora Eça de Queirós seja considerado o
narrador.
grande renovador do romance em Portugal,
b) no campo, as relações humanas, por mais
primárias e brutais que sejam, têm a riqueza da sua linguagem torna-se empobrecida devido
autenticidade sem disfarces de conveniência. à utilização de um linguajar popular, incorre-
c) o homem encontra seus verdadeiros senti- to e errado.
mentos somente quando contempla a beleza
139. O fiel criado Grilo diz que o patrão sofria
da mulher campesina.
de “fartura” porque:
d) as relações humanas do homem campe-
sino não têm a riqueza e a sensibilidade das a) constatou que a doença do narrador era de
relações do homem urbano. fundo psicológico.
e) Jacinto e Zé Fernandes têm exatamente as b) percebeu que a apatia de Jacinto era devi-
mesmas posições com relação aos sentimen- da aos excessos permitidos pela fortuna.
tos do homem do campo. c) concluiu que riqueza não traz felicidade.
137. Em determinado momento do roman- d) confirmou o que o narrador já sabia: a far-
ce, as leituras prediletas de Jacinto eram tura de Jacinto não lhe trazia esperanças de
Schopenhauer e Eclesiastes. Daí, é possível uma vida melhor.
deduzir que cresciam no personagem: e) nem o narrador, nem Jacinto puderam per-
a) o tédio e o pessimismo. ceber quanta filosofia guardava o humilde
b) a crença e a esperança. criado.
c) o descaso e a ociosidade.
d) a dúvida e a vaidade. 140. Ao visitar a vasta biblioteca de Jacinto, o
e) a inveja e o pessimismo. narrador percebe:
a) a atração que as literaturas exerciam sobre
138. Assinale a alternativa incorreta:
a) A vida no campo é apresentada como mo- o protagonista.
delar, excetuando o momento em que Jacinto b) a preocupação com encadernações luxuo-
reconhece a realidade da fome nos casebres, sas, o que tornava uniforme a aparência das
a necessidade de reformas e de mais privilé- estantes.
gios ao homem do campo. De certa maneira, c) uma diversidade enorme de títulos e te-
reforça a tese da inflamada e revolucionária mas, remetendo ao início das oscilações psi-
geração de 1870. cológicas do protagonista.
b) Ao retomar o tema do conto “Civilização”,
d) a diversidade de títulos, mas sempre ten-
A cidade e as serras desenvolve um assunto
dendo aos mesmos temas: a ciência e o pro-
que sempre fascinou Eça de Queirós: a ideia
do encontro com a terra-mãe, com a doçura gresso tecnológico.
de viver no campo. Esta forma idealista de en- e) a atração que a ciência e a psicologia exer-
xergar a natureza indica uma aproximação do cem sobre o protagonista.
idealismo romântico.
141. Arrastei então por Paris dias de imenso
c) Através da máxima: “O homem só é su-
periormente feliz quando é superiormente tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas
civilizado” determina o poder da cidade, da todo o luxo, que já me enfartava havia cinco
técnica, do brilho de quem pode comandar anos, sem uma graça nova, uma curta frescura
os destinos da humanidade. Constitui a base de invenção.

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O pensamento exposto no texto pode ser b) A atividade intelectual do indivíduo deve-
atribuído a: -se fazer acompanhar do labor produtivo do
a) Jacinto, antes do encontro das serras. trabalho braçal, sem o que o homem se infe-
b) Jacinto, quando retornou a Paris, depois de licita e desviriliza.
descobrir a beleza do campo. c) O sentimento de integração a um mundo
c) a Jacinto, durante o período de depressão finalmente reconciliado, o sujeito só o alcan-
e pessimismo. ça pela experiência avassaladora da paixão
d) ao narrador, que redescobre a beleza do amorosa, vivida como devoção irracional e
campo somente depois de constatar o tédio absoluta a outro ser.
da cidade. d) Elites nacionais autênticas são as que ado-
e) ao narrador, que ao retornar a Paris sentiu-se tam, como norma de sua própria conduta, os
enganado pelas aparências da civilização. usos e costumes do país profundo, constituí-
do pelas populações pobres e distantes dos
142. (Fuvest) Tendo em vista o conjunto de pro-
centros urbanos.
posições e teses desenvolvidas em A cidade e as
e) Uma vida adulta equilibrada e bem desen-
serras, pode-se concluir que é coerente com o uni-
volvida em todos os seus aspectos implica a
verso ideológico dessa obra o que se afirma em:
participação do indivíduo na política parti-
a) A personalidade não se desenvolve pelo
dária, nas atividades religiosas e na produção
simples acúmulo passivo de experiências, des-
literária.
provido de empenho radical, nem, tampouco,
pela simples erudição ou pelo privilégio.

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Exercícios escritos
143. (Fuvest) Os romances de Eça de Queirós
costumam apresentar críticas a aspectos im-
portantes da sociedade portuguesa, frequen-
temente acompanhadas de propostas (explí-
citas ou implícitas) de reforma social.
Em A cidade e as serras:
a) qual o aspecto que se critica nas elites por-
tuguesas?
b) qual é a relação, segundo preconiza o ro-
mance, que essas elites deveriam estabelecer
com as classes subalternas?
144. Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos
encontramos e acamaradamos em Paris, nas
escolas do Bairro Latino – para onde me man-
dara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de
Noronha e Sande, quando aqueles malvados
me riscaram da Universidade por eu ter esbor-
rachado, numa tarde de procissão, na Sofia, a
cara sórdida do Dr. Pais Pita. Ora nesse tempo
Jacinto concebera uma ideia... Este Príncipe
concebera a ideia de que “o homem só é supe-
riormente feliz quando é superiormente civili-
zado”. E por homem civilizado o meu camarada
entendia aquele que, robustecendo a sua força
pensante (...) quase onipotente, quase oniscien-
te, e apto portanto a recolher dentro de uma so-
a) O que há em comum entre eles?
ciedade e nos limites do progresso (tal como ele
b) O que os diferencia?
se comportava em 1875) todos os gozos e todos
os proveitos que resultam de Saber e de Poder... 146. Texto I:
Pelo menos assim Jacinto formulava copiosa- E, então, surgiu por trás da parede do alpen-
mente a sua ideia, quando conversávamos de dre um rapazito, muito rotinho, muito magri-
fins e destinos humanos, sorvendo bocks poei- nho, com uma carita miúda, toda amarela sob
rentos, sob o toldo das cervejarias filosóficas, no a porcaria, e onde dois grandes olhos pretos se
Boulevard Saint-Michel. arregalavam para nós, com vago pasmo e vago
a) Como caracterizar o narrador? medo. (...)
b) Quem é Jacinto? O rapazinho emudecera, chupando o dedo,
c) Qual característica psicológica de Jacinto com os tristes olhos pasmados. E o Silvério sor-
é fundamental como pedra de toque para o ria, com bondade:
desenvolvimento da trama? – Nada, este é sãozinho... Coitado, assim
amarelito e enfezadito porque... Que quer
145. Levando-se em conta o tema de A cida-
V. Exª? Mal comido, muita miséria... Quando há
de e as serras, leia os versos de Bocage e a pro-
o bocadito de pão aquilo é para todo o rancho.
paganda de um edifício em construção:
Muita fomezinha, muita fomezinha.
Vem, ó Marília, vem lograr comigo Jacinto pulou bruscamente a borda do carro.
Destes alegres campos a beleza, – Fome? Então ele tem fome? Mas há aqui
Destas copadas árvores o abrigo: fome?
Deixa louvar da corte a vã grandeza: Os seus olhos rebrilhavam, num espanto co-
Quanto me agrada mais estar contigo movido, em que pediam, ora a mim, ora ao Sil-
Notando as perfeições da Natureza! vério, a confirmação desta miséria insuspeita. E

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fui eu que esclareci o meu Príncipe: apesar de tão devoto, o seu Deus! Na sala no-
– Está claro que há fome, homem! Tu imagi- bre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre
navas que o Paraíso se tinha perpetuado aqui os damascos o retrato do “seu salvador“, enfei-
nas serras, sem trabalho e sem miséria... tado de palmitos como um retábulo, e por bai-
xo a bengala que as magnânimas mãos reais
Texto II:
tinham erguido do lixo. Enquanto o adorável,
... Era um pequeno rotinho, esfaimadinho,
desejado infante penou no desterro de Viena, o
que se prendia a nós, num imenso pasmo das
barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege
nossas pessoas, e com a confusa esperança,
amarela, do botequim do Zé Maria em Belém
talvez, que delas, como de deuses encontrados
à botica do Plácido nos Algibebes, a gemer as
num caminho, lhe viesse afago ou proveito. E
saudades do anjinho, a tramar o regresso do
Jacinto, para quem ele mais especialmente ar-
anjinho.
regalava os olhos tristes, e que aquela miséria,
e a sua muda humildade, embaraçavam, aca- Texto II:
nhavam horrivelmente, só soube sorrir, mur- O Cintinho crescera. Era um moço mais es-
murar o seu vago Está bem... está bem... . Fui eu guio e lívido que um círio, de longos cabelos
que dei ao pequenito um tostão, para o fartar, corredios, narigudo, silencioso, encafuado em
o despegar das nossas pessoas. Mas como ele, roupas pretas, muito largas e bambas; de noite,
com o seu tostão bem agarrado, nos seguia sem dormir, por causa da tosse e de sufocações,
ainda, como no sulco da nossa magnificência, errava em camisa com uma lamparina através
o Silvério teve de o espantar, como a um pássa- do 202; e os criados na copa sempre lhe cha-
ro, batendo as mãos (...). mavam a “Sombra“. (...) mais tarde, com a me-
Sobre o rio, com efeito, reluzia um pedaço de lada flor dos seus vinte anos, brotou nele outro
azul lavado e lustroso; e a grossa camada de sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do
nuvens já se ia enrolando sob a lenta varrede- desembargador Velho, uma menina redondi-
la do vento, que as varria, despejadas e vazias, nha como uma rola, educada num convento de
para um canto escuso dos céus. Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava,
consertava relógios e fabricava chapéus (...)
Texto III: Como uma sombra, casou; deu mais algumas
– Não! Não nos iludamos, Zé Fernandes, voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e
nem façamos Arcádia. É uma bela moça, mas passou, como uma sombra.
uma bruta... Não há ali mais poesia, nem mais
sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que Texto III:
numa linda vaca turina. Merece o seu nome de Jacinto medrou com a segurança, a rijeza, a
Ana Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, con- seiva de um pinheiro das dunas.
cebe bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã e Não teve sarampo e não teve lombrigas. As
rija; e ela cumpre. O marido todavia não parece Letras, a Tabuada, o Latim entraram por ele
contente, porque a desanca. Também é um belo tão facilmente como o sol por uma vidraça. (...)
bruto... Não, meu filho, a serra é maravilhosa e Todos os seus amigos (éramos três, contando o
muito grato lhe estou... Mas temos aqui a fê- seu velho escudeiro preto, o Grilo) lhe conserva-
mea, em toda a sua animalidade e o macho em ram sempre amizades puras e certas. (...) Rijo,
todo o seu egoísmo... São porém verdadeiros, rico, indiferente ao Estado e ao Governo dos
genuinamente verdadeiros! E esta verdade, Zé Homens, nunca lhe conhecemos outra ambi-
Fernandes, é para mim um repouso. ção além de compreender bem as Ideias Gerais,
e a sua inteligência, nos anos alegres de escolas
a) As passagens anteriores ilustram a tendên- e controvérsias, circulava dentro das filosofias
cia que Eça de Queirós vinha mantendo até mais densas (...)
então. Qual é?
Texto IV:
b) De que maneira A cidade e as serras marca
Mas, à porta, que de repente se abriu, apa-
o início de uma nova fase na obra do escritor?
receu minha prima Joaninha, corada do passo
147. Texto I: e do vivo ar, com um vestido claro um pouco
... amou aquele bom infante como nunca aberto no pescoço, que fundia mais docemen-
amara, apesar de tão guloso, o seu ventre, e te, numa larga claridade, o esplendor branco

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da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos você dizer por aí, pelos sítios, que el-rei D. Se-
cabelos, – lindamente risonha, na surpresa que bastião voltara?
alargava os seus largos, luminosos olhos ne-
a) No trecho, Jacinto é chamado, pelo velho,
gros (...) E foi assim que Jacinto (...) na Flor da
de “Pai dos Pobres”. Essa qualificação indica
Malva, viu aquela com quem casou, em maio,
que Jacinto mantinha com os pobres da serra
na capelinha de azulejos, quando o grande pé
uma relação democrática e igualitária? Justifi-
de roseira se cobrira já de rosas.
que sua resposta.
a) No primeiro texto é apresentado Jacinto b) Tendo em vista o contexto da obra, expli-
Galeão. Explique, a partir do texto, algumas que sucintamente por que o narrador, no fi-
de suas características. nal do trecho, se refere a “el-rei D. Sebastião”.
b) No segundo texto é apresentado Cintinho,
149. (Fuvest) Leia o excerto de A cidade e as
pai de Jacinto. Dê algumas de suas caracte-
serras, de Eça de Queirós, e responda ao que
rísticas.
se pede.
c) No terceiro fragmento, o narrador refere-
Na sala, a tia Vicência ainda nos esperava
-se a Jacinto da mesma maneira? Quem é
desconsolada, entre todas as luzes, que ardiam
Grilo?
no silêncio e paz do serão debandado:
d) É possível perceber alguma intenção de
– Ora uma coisa assim! Nem querem ficar
Eça ao retratar esses personagens de manei-
para tomar um copinho de geleia, um cálice de
ras diversas?
vinho do Porto!
e) Qual é a importância de Joaninha?
– Esteve tudo muito desanimado, tia Vicên-
148. Leia o trecho de A cidade e as serras, de cia! – exclamei desafogando o meu tédio. –
Eça de Queirós, e responda o que se pede. Todo esse mulherio emudeceu, os amigos com
um ar desconfiado...
Então, de trás da umbreira da taverna, uma
Jacinto protestou, muito divertido, muito sin-
grande voz bradou, cavamente, solenemente:
cero:
– Bendito seja o Pai dos Pobres!
– Não! Pelo contrário. Gostei imenso. Excelen-
E um estranho velho, de longos cabelos bran-
te gente! E tão simples... Todas estas raparigas
cos, barbas brancas, que lhe comiam a face cor
me pareceram ótimas. E tão frescas, tão ale-
de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado a
gres! Vou ter aqui bons amigos, quando verifi-
um bordão, com uma caixa a tiracolo, e cravou
carem que eu não sou miguelista.
em Jacinto dois olhinhos de um brilho negro,
Então contamos à tia Vicência a prodigiosa
que faiscavam. Era o tio João Torrado, o pro-
história de D. Miguel escondido em Tormes... Ela
feta da serra... Logo lhe estendi a mão, que ele
ria! Que coisas! E mau seria...
apertou, sem despegar de Jacinto os olhos, que
– Mas o Sr. Jacinto, não é?
se dilatavam mais negros. E mandei vir outro
– Eu, minha senhora, sou socialista...
copo, apresentei Jacinto, que corara, embara-
a) Defina sucintamente o miguelismo a que
çado.
se refere o texto e indique a relação que há
– Pois aqui o tem, o senhor de Tormes, que fez
entre essa corrente política e a história do
por aí todo esse bem à pobreza.
Brasil.
O velho atirou para ele bruscamente o braço,
b) Tendo em vista o contexto da obra, explique
que saía, cabeludo e quase negro, de uma man-
o que significa, para Jacinto, ser “socialista”.
ga muito curta.
– A mão! 150. (Unicamp) Os trechos a seguir foram extraí-
E quando Jacinto lha deu, depois de arrancar dos de A cidade e as serras, de Eça de Queirós.
vivamente a luva, João Torrado longamente Mas dentro, no peristilo, logo me surpreen-
lha reteve com um sacudir lento e pensativo, deu um elevador instalado por Jacinto – apesar
murmurando: do 202 ter somente dois andares, e ligados por
– Mão real, mão de dar, mão que vem de uma escadaria tão doce que nunca ofendera a
cima, mão já rara! asma da Srª. D. Angelina! Espaçoso, tapetado,
(...) Eu então debrucei a face para ele, mais ele oferecia, para aquela jornada de sete segun-
em confidência: dos, confortos numerosos, um divã, uma pele
– Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é certo de urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras

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gradeadas com charutos e livros. Na antecâme- o poço escuro do elevador, onde mergulhara
ra, onde desembarcamos, encontrei a tempe- uma vela que lhe avermelhava mais a face es-
ratura macia e tépida duma tarde de Maio, em braseada. Espreitei, por sobre o seu ombro real.
Guiães. Um criado, mais atento ao termômetro Em baixo, na treva, sobre uma larga prancha,
que um piloto à agulha, regulava destramente o peixe precioso alvejava, deitado na travessa,
a boca dourada do calorífero. E perfumadores ainda fumegando, entre rodelas de limão. Ja-
entre palmeiras, como num terraço santo de cinto, branco como a gravata, torturava deses-
Benares, esparziam um vapor, aromatizando e peradamente a mola complicada do ascensor.
salutarmente umedecendo aquele ar delicado e Depois foi o Grão-Duque que, com os pulsos
superfino. cabeludos, atirou um empuxão tremendo aos
Eu murmurei, nas profundidades do meu as- cabos em que ele rolava. Debalde! O aparelho
sombrado ser: enrijara numa inércia de bronze eterno.
– Eis a Civilização! (Eça de Queirós. A cidade e as serras. São Paulo:
– Meus amigos, há uma desgraça... Companhia Editora Nacional, 2006. pp. 28-63.)
Dornan pulou na cadeira: – Fogo?
a) Levando em consideração os dois trechos,
– Não, não era fogo. Fora o elevador dos pratos
explique qual é o significado do enguiço do
que inesperadamente, ao subir o peixe de S. Alte-
elevador.
za, se desarranjara, e não se movia, encalhado!
b) Como o desfecho do romance se relaciona
(...)
com esse espisódio?
O Grão-Duque lá estava, debruçado sobre

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Respostas
Gabarito dos testes b) Apelidado de “a Sombra”, era doentio e frágil.
Morreu tuberculoso pouco antes do nascimento
de seu único filho. Teve dois interesses: os tornos
132.c 133.b 134.d 135.a 136.b 137.a e a mulher.

138.e 139.b 140.c 141.e 142.a c) Jacinto é rico, inteligente, forte e culto. Os outros
personagens da leva parisiense são apresentados
caricaturescamente. Grilo é escudeiro de Jacinto,
um negro livre e observador arguto do patrão, a
Respostas possíveis para as
quem é profundamente dedicado.
questões escritas
d) Contrapõe a mediocridade dos portugueses
desterrados à inteligência de Jacinto para, com ele,
143. a) O atraso e o conservadorismo. metaforizar o retorno de um autêntico Portugal.
b) A proposta do romance é uma reforma social, e) Joaninha é personagem que representa a ca-
encabeçada pelos mais privilegiados, que promo- pitulação de Jacinto. Ela fixara o personagem no
vesse a assistência social através do amparo e pro- campo.
teção aos menos favorecidos. Quando Jacinto, pro-
tagonista de A cidade e as serras, teve seu apelido 148. a) Não. Jacinto faz uma série de obras em Tor-
mudado de “Príncipe da Grã-Ventura” para “Pai dos mes visando ao bem da gente pobre da serra, mas
Pobres” esse caráter paternalista fica evidenciado. isso não caracteriza uma relação social de igualda-
de entre ele e os outros, pois ele jamais abdicou de
144. a) O volume é narrado em 1ª pessoa por José sua posição de grande senhor rural. As reformas fo-
Fernandes, que também é personagem secundá- ram impulsionadas pelo espírito cristão de carida-
rio, portando-se como mero espectador (obser- de, as quais fazem com que Jacinto seja chamado
vador). Limita-se a narrar de forma objetiva o que de “Pai dos Pobres”, numa alusão a São Francisco de
deduz de suas observações. Assis.
b) Jacinto é o personagem principal, motivo das b) Para a gente pobre de Tormes, Jacinto era “el-rei
observações de José Fernandes que o conheceu D. Sebastião” que voltara para cuidar de seu povo.
em Paris, nas escolas do Bairro Latino. Nesse sentido, Jacinto encarna o mito do “Deseja-
c) A euforia com que defende a ideia de que “o ho- do”, o qual viria para promover o bem-estar de sua
mem só é superiormente feliz quando é superior- gente, crença que na cultura portuguesa é conhe-
mente civilizado”. cida como sebastianismo.

145. a) O bucolismo ou a valorização da natureza é 149. a) Trata-se da corrente política que apoiava
um tema além de escolas literárias e reflete a neces- D. Miguel de Bragança, em sua disputa com seu
sidade de o homem procurar refúgio na natureza. irmão D. Pedro I (D. Pedro IV, em Portugal) pela
Coroa portuguesa. A volta de D. Pedro I a Portu-
b) A época em que foram redigidos, a linguagem uti- gal, em 1831, acentuou o vazio de poder no Brasil,
lizada, a forma de composição, prosa (Eça) e poesia provocando as grandes e graves crises políticas do
(Bocage). O texto de Eça e os versos de Bocage são Período Regencial, que apressaram a aprovação da
ideológicos enquanto o último é propagandístico, maioridade de D. Pedro II em 1840.
mudando, portanto, as funções de linguagem de
emotiva e poética nos dois literatos para apelativa b) Para Jacinto, ser socialista era estar do lado dos
na propaganda. pobres. Nesse sentido, sem nunca deixar de ser o
grande proprietário rural que era, tomou uma sé-
146. a) Realismo/Naturalismo. rie de medidas que beneficiavam a estes. Por isso,
b) Eça tem como tema a restauração do nacionalis- Jacinto foi identificado a D. Sebastião, que voltara
mo e a exaltação ao meio campestre (bucolismo), para cuidar de seu povo, sendo também chamado
temas estes que não fazem parte do ideário realis- de “Pai dos Pobres”.
ta. 150. a) O enguiço do elevador serve para o narra-
147. a) O avô de Jacinto, Galeão, era miguelista e dor expor, de modo crítico e irônico, a dependên-
desprezava D. Pedro. Com a derrota de D. Miguel, cia, cada vez maior, do homem em relação à tecno-
Galeão abandona voluntariamente Portugal e logia (ou às “necessidades” criadas pelo progresso
passa a viver em Paris. Como era rico proprietário, do mundo moderno).
desfrutava de uma vida confortável em terras es- b) No desfecho do romance, fica clara a ideia de
trangeiras. que é necessário separar o fútil do útil: por exem-

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plo, Jacinto instala telefone nas serras de Tormes modernidade em nome de uma pretensa pureza
em razão de sua utilidade, o que contrasta com o e preservação do mundo natural, mas de absorver
episódio do elevador, o símbolo do fútil, das fal- do progresso apenas o que realmente contribui
sas necessidades criadas pela modernidade. Não para a felicidade do homem.
se trata de descartar a tecnologia, o progresso, a

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Vidas secas
Graciliano Ramos
Exercícios testes

151. (Fatec) 153. (PUC-C)


Fabiano ouviu o falatório desconexo do bêba- Considere o texto a seguir de Vidas secas, de
do, caiu numa indecisão dolorosa. Ele também Graciliano Ramos.
dizia palavras sem sentido, conversava à toa.
Chegariam a uma terra desconhecida e civiliza-
Mas irou-se com a comparação, deu murradas
da, ficariam presos nela. E o sertão continuaria
na parede. Era bruto, sim senhor, nunca havia
a mandar gente para lá. O sertão mandaria
aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso
para a cidade homens fortes, brutos, como Fa-
por isso? Como era? Então mete-se um homem
biano, sinha Vitória e os dois meninos.
na cadeia porque ele não sabe falar direito?
(Graciliano Ramos, Vidas secas.) A utilização sistemática de um tempo verbal,
Nesse trecho, a expressão “... não sabe falar di- no trecho destacado de Vidas secas, de Graci-
reito?” reforça o ponto de vista predominante liano Ramos, deve ser considerada:
do narrador, que define: a) um recurso excepcional, num romance em
a) uma ambiguidade muito marcante no que são raras as imagens do futuro, dada a
comportamento de Fabiano. condição das personagens.
b) o conflito entre Fabiano e o poder repre- b) uma marca estilística que expressa, ao lon-
sentado pelo soldado amarelo. go do romance, o regime de expectativa em
c) o domínio da linguagem culta (padrão) que vivem os protagonistas.
como capacidade primeira, que garante ao c) um traço da ironia do narrador, produzido
homem a defesa do direito à liberdade. pelo distanciamento objetivo que ele preser-
d) a identificação de Fabiano com seu Tomás va em relação às suas personagens.
da bolandeira. d) um traço estilístico em que se apoia o nar-
e) a “indecisão dolorosa” de Fabiano em situa- rador para figurar o caráter utópico que im-
ções que não exigiam o domínio da palavra. primiu a esse romance.
e) uma característica de estilo de um roman-
152. (ITA) Assinale a melhor opção, consideran- ce em que o tempo subjetivo determina a se-
do as seguintes asserções sobre Fabiano, perso- quência das ações.
nagem de Vidas secas, de Graciliano Ramos:
I. Devido às dificuldades pelas quais passou (FEI) O texto a seguir refere-se às questões
no sertão, tornou-se um homem rude, man- 154 e 155.
dante da morte de vários inimigos seus. Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arru-
II. Comparava-se, com orgulho, aos animais, mara-se. Chegara naquele estado, com
pois era um homem errante que vivia fugin- a família morrendo de fome, comendo
do da seca. raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo
III. Sentia-se fraco para exigir seus direitos 5 de um juazeiro, depois tomara conta da
diante de patrões e autoridades, por isso não casa deserta.
se considerava um homem, mas um bicho. Ele, a mulher e os filhos tinham-se ha-
Está(ão) correta(s): bituado à camarinha escura, pareciam
a) apenas I. ratos – e a lembrança dos sofrimentos
b) apenas III. 10 passados esmorecera (...).
c) I e II. – Fabiano, você é um homem, exclamou
d) I e III. em voz alta.
e) II e III. Conteve-se, notou que os meninos esta-

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vam perto, com certeza iam admirar-se va pouco. Admirava as palavras compridas e
15 ouvindo-o falar só. E, pensando bem, difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir
ele não era um homem: era apenas um algumas, em vão, mas sabia que elas eram inú-
cabra ocupado em guardar coisas dos teis e talvez perigosas.
outros. (...) Uma das crianças aproximou-se, perguntou-
Olhou em torno, com receio de que, fora -lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a
20 os meninos, alguém tivesse percebido testa, esperou de boca aberta a repetição da
a frase imprudente. Corrigiu-a, murmu- pergunta. Não percebendo o que o filho dese-
rando: java, repreendeu-o. O menino estava ficando
– Você é um bicho, Fabiano. muito curioso, muito enxerido. Se continuasse
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim assim, metido com o que não era da conta dele,
25 senhor, um bicho, capaz de vencer difi- como iria acabar? Repeliu-o, vexado:
culdades. – Esses capetas têm ideias...

154. Assinale a alternativa que interpreta in- 156. Assinale a alternativa correta:
corretamente o trecho anterior: a) Fabiano costuma questionar a manipula-
a) Fabiano mostra-se orgulhoso por ter con- ção das palavras por parte dos poderosos.
seguido livrar a família da miséria absoluta. b) Fabiano se afeiçoa aos animais, pois com-
b) As lembranças do passado enchem de be- preende a linguagem dos bichos.
leza e ternura a vida de Fabiano. c) A linguagem e a conduta de Fabiano refle-
c) No trecho citado, o autor se refere ao processo tem a aridez da região.
de desumanização ao qual os retirantes nordes- d) Fabiano, muito curioso, não gostaria que os
tinos são submetidos, comparando-os a animais. seus filhos se tornassem curiosos como o pai.
d) Depois de muito sofrimento, Fabiano e sua e) Fabiano é um exímio comunicador, pois
família conseguem se instalar em uma pe- consegue se comunicar com os animais e
quena propriedade rural. com os brutos.
e) Nesse trecho, evidencia-se que Fabiano e 157. Indique a opção incorreta:
sua família são retirantes da seca. a) A “gente da cidade” é vista como uma gen-
155. O estilo do autor do texto anterior é te culturalmente mais preparada, pois conhe-
caracterizado pelo frequente emprego do ce as palavras compridas e difíceis.
discurso indireto livre. Assinale a alternativa b) O mundo descrito no texto é tão árido que
que transcreve uma passagem em que esse chega a desumanizar as pessoas, evitando a
recurso é exemplificado: comunicação e as relações humanas.
a) “... a lembrança dos sofrimentos passados c) Fabiano conhece bem os seus direitos.
esmorecera...” (linhas 9 e 10) d) As palavras são “inúteis”, pois no mundo de
b) “Fabiano ia satisfeito.” (linha 1) Fabiano quase não há diálogo.
c) “Sim senhor, arrumara-se.” (linhas 1 e 2) e) Fabiano é descrito como um animal, arisco,
d) “Olhou em torno, com receio...” (linha 19) instintivo e temeroso da ação dos “homens”.
e) “– Fabiano, você é um homem...” (linha 11) 158. A propósito da passagem “– Esses cape-
Texto para as questões 156 e 157. tas têm ideias...”, é correto afirmar que:
a) Fabiano aprova a criatividade dos filhos.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com b) “ter ideias”, no contexto da obra, é perigo-
animais. Os seus pés duros quebravam espi- so em virtude das limitações socioculturais a
nhos e não sentiam a quentura da terra. Mon- que estão confinadas as personagens.
tado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a c) Fabiano associa a palavra “capetas” a
ele. E falava uma linguagem cantada, monossi- “ideias”, mas essa associação é involuntária e
lábica e gutural, que o companheiro entendia. totalmente desprovida de sentido.
A pé, não se aguentava bem. Pendia para um d) as reticências indicam um pensamento
lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. truncado, o que, aliás, é muito pouco fre-
Às vezes utilizava nas relações com as pessoas quente no protagonista.
a mesma língua com que se dirigia aos brutos – e) Fabiano possui um invejável poder de sín-
exclamações, onomatopeias. Na verdade fala- tese e por isso usa poucas palavras.

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159. Aponte a opção que melhor se encaixa caminhado o dia inteiro, estavam cansados
no fragmento a seguir: e famintos. Ordinariamente andavam pou-
co, mas como haviam repousado bastante na
Fabiano estirava o beiço e rosnava. Aquela coisa
areia do rio seco, a viagem progredira bem três
arriada e achacada metia as pessoas na cadeia,
léguas. Fazia horas que procuravam uma som-
dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma
bra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe,
criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim
através dos galhos pelados da catinga rala.
apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano
(Graciliano Ramos, Vidas secas.)
até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura.
Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Por que moti- 161. Reestruturando-se o terceiro período do
vo o governo aproveitava gente assim? texto, mantém-se o sentido original apenas em:
a) A viagem progredira bem três léguas, uma
a) Fabiano, ao ver como é franzino o soldado
vez que haviam repousado bastante na areia
amarelo, compreende que o poder é uma
do rio seco, dado que ordinariamente anda-
questão de farda, e não de força física.
vam pouco.
b) Fabiano se sentiria humilhado se apanhas-
b) Haviam repousado bastante na areia do
se do governo.
rio seco; a viagem progredira bem três léguas
c) O governo, aos olhos de Fabiano, é um
porque ordinariamente andavam pouco.
“grande soldado amarelo”.
c) Porque haviam repousado bastante na
d) Se “apanhar do governo não é desfeita”, Fabia-
areia do rio seco, ordinariamente andavam
no, conclui-se, aprova a ação covarde do soldado
pouco, e a viagem progredira bem três lé-
amarelo, que é uma autoridade do governo.
guas.
e) Esse é o episódio em que Fabiano mata o
d) Ainda que ordinariamente andassem pouco,
soldado amarelo.
a viagem progredira bem três léguas, pois ha-
160. O trecho a seguir revela algumas das viam repousado bastante na areia do rio seco.
crenças e ambições de sinha Vitória. Leia-o e e) Em virtude de andarem ordinariamente pou-
indique a alternativa correta. co e de haverem repousado bastante na areia do
rio seco, a viagem progredira bem três léguas.
Preparou-se para cuspir novamente. Por uma
extravagante associação, relacionou esse ato 162. Tendo em vista a relação, nesse texto,
com a lembrança da cama. Se o cuspo alcan- entre o vocabulário e os efeitos de sentido, é
çasse o terreiro, a cama seria comprada antes incorreto afirmar que:
do fim do ano. Encheu a boca de saliva, incli- a) o adjetivo “avermelhada” retrata o rigor do
nou-se – e não conseguiu o que esperava. Fez clima.
várias tentativas, inutilmente. O resultado foi b) “rio seco”, “galhos pelados”, “catinga rala”
secar a garganta. Ergueu-se desapontada. Bes- caracterizam um espaço hostil aos viajantes.
teira, aquilo não valia. c) as palavras empregadas pelo narrador re-
a) A passagem revela o mecanismo da su- produzem as das personagens.
perstição do povo nordestino, que costuma d) os nomes dos viajantes substituem-se por
obter seus bens a partir de encantamentos. um adjetivo substantivado: “os infelizes”.
b) Sinha Vitória não vai conseguir a cama ape- e) a expressão “o dia inteiro” equivale a “todo
nas porque não conseguiu cuspir longe. o dia”.
c) É possível associar “cuspo” a água (fertilida- (Fuvest) Texto para as questões 163 e 164.
de) e “secar a garganta” a seca (infertilidade).
d) Sinha Vitória considerava a cama uma coi- Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano res-
sa supérflua, e por isso não cuspiu com mais mungou, franziu a testa, achando a frase extra-
força. vagante. Aves matarem bois e cabras, que lem-
e) A mágica do cuspir funcionava com Fabia- brança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou
no, mas não com sinha Vitória. que ela estivesse tresvariando.
(Graciliano Ramos, Vidas secas.)
(Fuvest) Texto para as questões 161 e 162.
163. Uma das características do estilo de Vi-
Na planície avermelhada, os juazeiros alarga- das secas é o uso do discurso indireto livre,
vam duas manchas verdes. Os infelizes tinham que ocorre no trecho:

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a) “Sinha Vitória falou assim” fim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor),
b) “Fabiano resmungou” acreditara na sua velha. Mas pedia desculpa e
c) “franziu a testa” jurava não cair noutra.
d) “que lembrança” O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o
e) “Olhou a mulher” chapéu varrendo o tijolo. Na porta, virando-se,
enganchou as rosetas das esporas, afastou-se
164. O prefixo assinalado em “tresvariando”
tropeçando, os sapatões de couro cru batendo
traduz ideia de:
no chão como cascos.
a) substituição
Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não
b) contiguidade
deviam tratá-lo assim. Dirigiu-se ao quadro len-
c) privação
tamente. Diante da bodega de seu Inácio virou
d) inferioridade
e) intensidade o rosto e fez uma curva larga. Depois que acon-
tecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-
(Fuvest) Texto para as questões de 165 a 168. -se numa calçada, tirou do bolso o dinheiro,
Pouco a pouco o ferro do proprietário quei- examinou-o, procurando adivinhar quanto lhe
mava os bichos de Fabiano. E quando não tinha tinham furtado. Não podia dizer em voz alta
mais nada para vender, o sertanejo endividava- que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-
-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e -lhe o gado quase de graça e ainda inventavam
na hora das contas davam-lhe uma ninharia. juro. Que juro! O que havia era safadeza.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano (Graciliano Ramos, Vidas secas.)
ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou 165. O texto, assim como todo o livro de que
a transação meio apalavrada e foi consultar a foi extraído, está escrito em terceira pessoa.
mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para No entanto, o recurso frequente ao discurso
o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou- indireto livre, com a ambiguidade que lhe é
-se, distribuiu no chão sementes de várias es- característica, permite ao autor explorar “o
pécies, realizou somas e diminuições. No dia se- filete da escavação interior”, na expressão de
guinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar Antonio Candido.
o negócio notou que as operações de Sinha Assinalar a alternativa em que a passagem é
Vitória, como de costume, diferiam das do pa- nitidamente discurso indireto livre:
trão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a) “Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e
a diferença era proveniente de juros. na hora das contas davam-lhe uma ninharia.”
Não se conformou: devia haver engano. Ele b) “Pouco a pouco o ferro do proprietário
era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que queimava os bichos de Fabiano.”
era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com cer- c) “Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu
teza havia um erro no papel do branco. Não se os estribos.”
descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. d) “Passar a vida inteira assim no toco, entre-
Passar a vida inteira assim no toco, entregando gando o que era dele de mão beijada!”
o que era dele de mão beijada! Estava direito e) “O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas,
aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar o chapéu varrendo o tijolo.”
carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, 166. O texto, no seu conjunto, revela que Fa-
achou bom que o vaqueiro fosse procurar ser- biano:
viço noutra fazenda. a) ousou enfrentar o branco, provando-lhe
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. que as contas dele estavam erradas.
Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se b) ao perceber que era lesado, defendeu com
havia dito palavra à toa, pedia desculpa. Era êxito seus direitos.
bruto, não fora ensinado. Atrevimento não ti- c) conscientizou-se de que era vítima de safa-
nha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar deza, e conseguiu justiça.
questão com gente rica? Bruto, sim senhor, mas d) concluiu que era explorado na venda do
sabia respeitar os homens. Devia ser ignorância gado e nas contas.
da mulher, provavelmente devia ser ignorância e) indignou-se com sua situação, mas voltou
da mulher. Até estranhara as contas dela. En- às boas com o patrão.

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167. A respeito de sinha Vitória, a mulher de de episódios relativamente independentes e
Fabiano, é possível afirmar que: sequências parcialmente truncadas. Essas ca-
a) tinha miolo, não errava nas operações e racterísticas da composição do livro:
tentava atenuar os conflitos do marido com a) constituem um traço de estilo típico dos
o patrão. romances de Graciliano Ramos e do regiona-
b) era mesmo ignorante; quando Fabiano per- lismo nordestino.
cebeu seu erro, foi pedir desculpas ao patrão. b) indicam que ele pertence à fase inicial de
c) além de errar nas contas, irritava-se com a Graciliano Ramos, quando este ainda seguia os
diferença dos juros. ditames do primeiro momento do Modernismo.
d) suas contas sempre diferiam das do patrão, c) diminuem o seu alcance expressivo, na me-
mas ela pedia a Fabiano que se conformasse. dida em que dificultam uma visão adequada
e) era o único apoio do vaqueiro, mas infeliz- da realidade sertaneja.
mente sua ação não tinha efeito. d) revelam, nele, a influência da prosa seca e
lacônica de Euclides da Cunha, em Os sertões.
168. Assinalar a alternativa que apresenta e) relacionam-se à visão limitada e fragmentária
orações de mesma classificação que as deste que as próprias personagens têm do mundo.
período: “Não se descobriu o erro, e Fabiano
perdeu os estribos.” 171. (PUC)
a) “Pouco a pouco o ferro do proprietário Alguns dias antes estava sossegado, preparan-
queimava os bichos de Fabiano.” do látegos, consertando cercas. De repente, um
b) “Foi até a esquina, parou, tomou fôlego.” risco no céu, outros riscos, milhares de riscos
c) “Depois que acontecera aquela miséria, te- juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a
mia passar ali.” anunciar destruição. Ele já andava meio des-
d) “Tomavam-lhe o gado quase de graça e confiado vendo as fontes minguarem. E olhava
ainda inventavam juro.” com desgosto a brancura das manhãs longas e
e) “Não podia dizer em voz alta que aquilo era a vermelhidão sinistra das tardes.
um furto, mas era.”
O crítico Álvaro Lins, referindo-se a Vidas
169. (PUC) Dos enunciados a seguir, indique secas, obra de Graciliano Ramos, da qual se
aquele que não condiz com as características extraiu o trecho anterior, afirma que, além de
de Fabiano, personagem de Vidas secas, obra ser o mais humano e comovente dos livros do
de Graciliano Ramos. autor, é “o que contém maior sentimento da
a) Era vaqueiro, via-se mais como bicho do terra nordestina, daquela parte que é áspera,
que como homem, as pernas faziam dois dura e cruel, sem deixar de ser amada pelos
arcos, os braços moviam-se desengonçados. que a ela estão ligados teluricamente”. Por
Parecia um macaco. outro lado, merece destaque, dentre os ele-
b) Vivia longe dos homens, só se dava bem com mentos constitutivos dessa obra, a paisagem,
animais, tinha um vocabulário pequeno e falava a linguagem e o problema social.
uma língua cantada, monossilábica e gutural. Assim, a respeito da linguagem de Vidas se-
c) Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, cas, é correto afirmar-se que:
a barba e os cabelos ruivos, vivia em terra a) apresenta um estilo seco, conciso e sem
alheia e cuidava de animais alheios. sentimentalismo, o que retira da obra a força
poética e impede a presença de característi-
d) Era bruto, nunca havia aprendido, não sa-
cas estéticas.
bia explicar-se. Violento, não respeitava o go-
b) caracteriza-se por vocabulário erudito e
verno e odiava seu Tomás da bolandeira, ho-
próprio dos meios urbanos, marcado por es-
mem que falava bem, lia livros e sabia onde
tilo rebuscado e grandiloquente.
tinha as ventas.
c) revela um estilo seco, de frase contida, clara
e) Tinha vindo ao mundo para amansar brabo,
e correta, reduzida ao essencial e com voca-
curar feridas com rezas, consertar cercas de inver-
bulário meticulosamente escolhido.
no a verão, cortar mandacaru e ensebar látegos.
d) apresenta grande poder descritivo e capaci-
170. (Fuvest) Um escritor classificou Vidas dade de visualização, mas apoia-se em sintaxe
secas como “romance desmontável”, tendo marcada por períodos longos e de estrutura su-
em vista sua composição descontínua, feita bordinativa, o que prejudica sua compreensão.

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e) marca-se por estilo frouxo e sintaxe desco- dor perenemente combalido e exausto, pere-
nexa, à semelhança da própria estrutura da nemente audacioso e forte (...). Reflete, nestas
novela que se constrói de capítulos soltos e aparências que se contrabatem, a própria na-
ordenação circular. tureza que o rodeia.
(Euclides da Cunha, Os sertões.)
172. (ITA) Os romances de Machado de Assis
e os de Graciliano Ramos são exemplos bem-
-acabados da forte presença do realismo na Texto III:
literatura brasileira. Entretanto, há diferenças Vivia longe dos homens, só se dava bem com
bem marcantes entre a ficção realista do sé- os animais. Os seus pés duros quebravam espi-
culo XIX e a ficção de cunho realista da Gera- nhos e não sentiam a quentura da terra. Mon-
ção de 30. Algumas delas são: tado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a
I. As obras realistas do século XIX (em particu- ele. E falava uma linguagem cantada, monossi-
lar os romances de Machado de Assis) retra- lábica e gutural, que o companheiro entendia.
tam a burguesia rica, enquanto os romances (Graciliano Ramos, Vidas secas.)
de Graciliano Ramos retratam apenas os reti-
rantes vítimas da seca. 173. No texto III, a descrição do personagem
II. No século XIX, o Realismo tem preferência Fabiano aponta para as seguintes caracterís-
pela temática do adultério feminino e do triân- ticas, exceto:
gulo amoroso, tema este que não é central a) adaptação do personagem ao meio natural.
nas obras da Geração de 30, que se preocu- b) identificação com o animal.
pam mais com a desigualdade social. c) caráter antissocial.
III. Os romances machadianos são urbanos; as d) comportamento primitivo e espontâneo.
obras de Graciliano Ramos retratam, em ge- e) revolta devido a sua condição familiar.
ral, os ambientes rurais do Nordeste.
174. Considere as seguintes afirmações acer-
IV. No Realismo do século XIX, as personagens,
ca dos textos I, II e III:
em geral, são mesquinhas, vis e medíocres. Já
I. Nos três fragmentos o narrador descreve
na ficção realista dos anos 1930, as persona-
aspectos físicos e comportamentais de per-
gens são, sobretudo, produtos de um meio
sonagens do sertão brasileiro, marcados pela
social adverso e injusto.
vida agreste e miserável.
Estão corretas:
II. Embora publicadas em contextos diferen-
a) apenas I, II e III.
tes, as respectivas obras se enquadram no
b) apenas I, II e IV.
mesmo estilo de época: o Realismo.
c) apenas II, III e IV.
III. Nos três fragmentos revela-se uma con-
d) apenas III e IV.
cepção determinista do homem.
e) todas.
Assinale:
(Mack) Textos para as questões 173 e 174. a) se apenas a afirmação I estiver correta.
Texto I: b) se apenas a afirmação II estiver correta.
Uma transformação, lenta e profunda, c) se apenas a afirmação III estiver correta.
operava-se nele, dia a dia, hora a hora, revis- d) se apenas as afirmações I e III estiverem
cerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos corretas.
(...). A vida americana e a natureza do Brasil e) se nenhuma afirmação estiver correta.
patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e 175. (PUC)
sedutores que o comoviam (...). O mulungu do bebedouro cobria-se de arriba-
E assim, pouco a pouco, se foram reformando ções. Mau sinal, provavelmente o sertão ia ape-
todos os seus hábitos singelos de aldeão portu- gar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se
guês: e Jerônimo abrasileirou-se. nas árvores da abeira do rio, descansavam,
(Aluísio Azevedo, O cortiço.) bebiam e, como em redor não havia comida,
Texto II: seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado
Atravessa a vida entre ciladas, surpresas re- sonhava desgraças. O sol chupava os poços,
pentinas de uma natureza incompreensível, e e aquelas excomungadas levavam o resto da
não perde um minuto de tréguas. É o batalha- água, queriam matar o gado (...) Alguns dias

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antes estava sossegado, preparando látegos, b) utiliza apenas linguagem referencial, uma
consertando cercas. De repente, um risco no vez que o objetivo é informar sobre a nova
céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nu- seca que se anuncia.
vens, o medonho rumor de asas a anunciar des- c) emprega linguagem com função apelativa
truição. Ele já andava meio desconfiado vendo com o objetivo de configurar, com imagens
as fontes minguarem. E olhava com desgosto a visuais, em dimensão plástica, o quadro da
brancura das manhãs longas e a vermelhidão penúria da seca.
sinistra das tardes. (...) d) despreza o uso de recursos estilísticos e
O trecho anterior é de Vidas secas, obra de marca-se por fatalismo exagerado, impedin-
Graciliano Ramos. Dele é correto afirmar que: do a manifestação poética da linguagem.
a) emprega linguagem figurada e explora a e) vale-se de linguagem marcadamente emo-
gradação como recurso estilístico para anun- tiva, capaz de revelar o estado de angústia do
ciar a passagem de aves a caminho do Sul. casal agoniado que sonhava desgraças.

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Exercícios escritos
176. (Unicamp) O capítulo “O mundo coberto b) Como o episódio escolhido por você exem-
de penas”, do romance Vidas secas (Graciliano plifica a relação, percebida por Fabiano, entre
Ramos), inicia-se com a seguinte descrição um uso mais “difícil” da linguagem e o poder
feita pelo narrador: exercido por determinadas pessoas?
O mulungu do bebedouro cobria-se de arri- 178. (PUC)
bações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, enca-
pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-
minhou-se ao rio seco, achou no bebedouro
-se nas árvores da beira do rio, descansavam,
dos animais um pouco de lama. Cavou a areia
bebiam e, como em redor não havia comida,
com as unhas, esperou que a água marejasse e,
seguiam viagem para o Sul. (...) O sol chupava
debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado,
os poços, e aquelas excomungadas levavam o
caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que
resto da água, queriam matar o gado.
vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia
Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano resmun-
muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no
gou, franziu a testa, achando a frase extravagan-
céu. O poente cobria-se de cirros – e uma alegria
te. Aves matarem bois e cabras, que lembrança!
doida enchia o coração de Fabiano.
(...) Um bicho de penas matar o gado! Provavel-
(Graciliano Ramos, Vidas secas.)
mente sinha Vitória não estava regulando.
Álvaro Lins afirma que “o mais brasileiro dos
a) Sinha Vitória vê a chegada das aves ao be- livros do Sr. Graciliano Ramos é sem dúvida
bedouro do gado como um sinal. De acordo a novela Vidas secas, publicada em 1938 (...).
com o enredo de Vidas secas, o que simboliza Além de ser o mais humano e comovente dos
a chegada das aves? livros de ficção deste autor, Vidas secas é o
b) Transcreva, do trecho citado, uma passagem que contém maior sentimento da terra nor-
que confirme a resposta dada ao item anterior. destina”. A respeito dessa obra, responda:
c) Como o sinal identificado por sinha Vitória a) Por que o título Vidas secas?
pode ser relacionado à trajetória da família de b) O que há em comum entre o primeiro e o
Fabiano, em Vidas secas? último capítulos dessa novela?
177. (Unicamp) Uma personagem constan- 179. (Unicamp) Em Vidas secas, após ter ven-
temente mencionada em Vidas secas, de Gra- cido as dificuldades, postas no início da nar-
ciliano Ramos, é seu Tomás da bolandeira. rativa, Fabiano afirma: “Fabiano, você é um
Homem letrado, é tido como um exemplo de homem...”. Corrige-se logo depois: “Você é um
“sabedoria” por Fabiano, que muitas vezes o bicho, Fabiano”. Em seguida, encontrando-
vê como um modelo. -se com a cadelinha, diz: “Você é um bicho,
Em horas de maluqueira Fabiano desejava Baleia”.
imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, Ao chamar a si mesmo e a Baleia de “bicho”,
e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se Fabiano estabelece uma identificação com
perfeitamente que um sujeito como ele não ti- ela. Na leitura de Vidas secas, podem-se per-
nha nascido para falar certo. ceber vários motivos para essa identificação.
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estra- Cite dois desses motivos.
gava os olhos em cima de jornais e livros, mas (Fuvest) As questões de 180 a 182 referem-se
não sabia mandar: pedia. Esquisitice um ho- ao texto a seguir, extraído de Vidas secas, obra
mem remediado ser cortês. Até o povo censu- de Graciliano Ramos.
rava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a
Ainda na véspera eram seis viventes, contando
ele. Ah! quem disse que não obedeciam?
com o papagaio. Coitado, morrera na areia do
a) Cite um episódio do romance em que fica rio, onde haviam descansado, à beira de uma
evidente a dificuldade de expressão de Fabia- poça: a fome apertara demais os retirantes e
no, na presença de pessoas que julga supe- por ali não havia sinal de comida. (...) Sinha Vi-
riores. tória, queimando o assento no chão, as mãos

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cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensa- essa carência se manifesta, apontando suas
va em acontecimentos antigos que não se re- consequências para a personagem.
lacionavam: festas de casamento, vaquejadas,
184. (ITA) O romance Vidas secas de Gracilia-
novenas, tudo numa confusão.
no Ramos, publicado em 1938, é um marco
180. “Ainda na véspera eram seis viventes”. da ficção social brasileira, pois registra de
“seis viventes” coloca num mesmo grupo ho- forma bastante realista a vida miserável de
mens e animais. O que os aproxima? uma família de retirantes que vive no sertão
nordestino. A cachorra Baleia tem um papel
181. Na obra de Graciliano Ramos, o social e o
especial no livro, pois é sobretudo na relação
psicológico coexistem. Comente essa afirma-
dos personagens com esse animal que pode-
ção, utilizando elementos do texto.
mos perceber que elas não se desumanizam,
182. Vidas secas, reconhecidamente, compõe-se apesar de suas condições de vida. Conside-
de capítulos que se constituem em quadros des- rando essa ideia, explique qual a importância
tacáveis, como se fossem narrativas autônomas. do capítulo “Baleia” no romance.
a) O que confere unidade à obra?
185. (Fuvest)
b) Qual a relação existente entre o capítulo
inicial, “Mudança”, e o final, “Fuga”? E, pensando bem, ele não era homem: era ape-
nas um cabra ocupado em guardar coisas dos
183. (FGV)
outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos
O menino mais novo teve uma dúvida e apre- azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vi-
sentou-a timidamente ao irmão. Seria que via em terra alheia, cuidava de animais alheios,
aquilo tinha sido feito por gente? O menino descobria-se, encolhia-se na presença dos
mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas brancos e julgava-se cabra.
iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu Esse é o retrato de Fabiano, do livro Vidas se-
os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por cas, de Graciliano Ramos.
gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espí- a) Por que o autor enumera os caracteres físi-
rito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavel- cos de Fabiano?
mente aquelas coisas tinham nomes. O meni- b) Que sentido tem a palavra cabra no texto?
no mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, 186. (PUC)
com certeza as preciosidades que se exibiam
nos altares da igreja e nas prateleiras das lo- O mulungu do bebedouro cobria-se de arri-
jas tinham nomes. Puseram-se a discutir a bações. Mau sinal, provavelmente o sertão ia
questão intrincada. Como podiam os homens pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-
guardar tantas palavras? Era impossível, nin- -se nas árvores da beira do rio, descansavam,
guém conservaria tão grande soma de conhe- bebiam e, como em redor não havia comida,
cimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam seguiam viagem para o Sul. O casal agoniado
distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas sonhava desgraças. O sol chupava os poços,
por gente. E os indivíduos que mexiam nelas e aquelas excomungadas levavam o resto da
cometiam imprudência. Vistas de longe, eram água, queriam matar o gado. (...)
bonitas. Admirados e medrosos, falavam bai- Alguns dias antes estava sossegado, prepa-
xo para não desencadear as forças estranhas rando látegos, consertando cercas. De repente,
que elas porventura encerrassem. um risco no céu, outros riscos, milhares de ris-
(Graciliano Ramos, Vidas secas.) cos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas
a anunciar destruição. Ele já andava meio des-
A escassez da linguagem verbal é um dos tra-
confiado vendo as fontes minguarem. E olhava
ços mais marcantes dos sertanejos de Vidas
com desgosto a brancura das manhãs longas e
secas. Em vários episódios do livro exami-
a vermelhidão sinistra das tardes. (...)
nam-se os efeitos dessa carência na vida das
personagens. (Graciliano Ramos)
a) Que resultado dessa carência aparece no O texto integra o romance Vidas secas, de Gra-
trecho anterior? ciliano Ramos. A linguagem sintética caracte-
b) Mencione outra passagem do livro em que riza um texto enxuto e conciso, não porém

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destituído de marcas poéticas que dão a ele juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo
colorido e visualidade. tempo o guarda que dava caça aos criminosos;
a) Considerando o romance como um todo, o nas causas da sua imensa alçada não haviam
que prenuncia o trecho em questão? testemunhas, nem provas, nem razões, nem
b) Destaque, no trecho dado, o elemento que processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça
indicia o que vai acontecer. era infalível; não havia apelação das senten-
c) Ainda no trecho em questão, destaque: ças que dava, fazia o que queria, ninguém lhe
• uma gradação. tomava contas. Exercia enfim uma espécie de
• uma prosopopeia. inquirição policial. Entretanto, façamos-lhe jus-
• uma sinédoque. tiça, dados os descontos necessários às ideias
• uma hipérbole. do tempo, em verdade não abusava ele muito
187. (Fuvest) Leia as afirmações a seguir e res- de seu poder, e o empregava em certos casos
ponda o que se pede. muito bem empregado.
I. A dureza do clima, que se manifesta princi- (Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um
palmente nas grandes secas periódicas, explica sargento de milícias. Rio de Janeiro: Livros Técnicos
todas as aflições de Fabiano ao longo da narra- e Científicos, 1978. p. 21.)
tiva de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Nesse ponto um soldado amarelo aproxi-
a) Você concorda com essa afirmação? Justifi- mou-se e bateu familiarmente no ombro de
que sucintamente sua resposta. Fabiano:
II. Apesar de quase atrofiadas na sua rusticida- – Como é, camarada? Vamos jogar um trinta
de, as personagens de Vidas secas, de Gracilia- e um lá dentro?
no Ramos, conservam um filete de investigação Fabiano atentou na farda com respeito e ga-
da interioridade: cada uma delas se perscruta, guejou, procurando as palavras de seu Tomás
reflete, tenta compreender a si e ao mundo, da bolandeira:
ajustando-o à sua visão. – Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. En-
b) Você considera essa afirmação correta? fim, contanto, etc. É conforme.
Justifique brevemente sua resposta. Levantou-se e caminhou atrás do amare-
188. (Unicamp) Os trechos a seguir foram lo, que era autoridade e mandava. Fabiano
extraídos de Memórias de um sargento de milí- sempre havia obedecido. Tinha muque e subs-
cias e Vidas secas, respectivamente. tância, mas pensava pouco, desejava pouco e
obedecia.
O som daquela voz que dissera “abra a porta”
(Graciliano Ramos. Vidas secas. Rio de Janeiro:
lançara entre eles, como dissemos, o espanto e
Record, 2007. p. 28.)
o medo. E não foi sem razão; era ela o anúncio
de um grande aperto, de que por certo não po- a) Que semelhanças e diferenças podem ser
deriam escapar. Nesse tempo ainda não estava apontadas entre o Major Vidigal, de Memórias
organizada a polícia da cidade, ou antes esta- de um sargento de milícias, e o soldado amare-
va-o de um modo em harmonia com as tendên- lo, de Vidas secas?
cias e ideias da época. O major Vidigal era o rei b) Como essas semelhanças e diferenças se
absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia relacionam com as características de cada
respeito a esse ramo de administração; era o uma das obras?

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Respostas
Gabarito dos testes dignidade) e a fome, que rebaixa as personagens
a animais lutando pela sobrevivência. Cabe salien-
tar que, paralelamente à animalização do homem,
151.c 152.e 153.b 154.b 155.c 156.c ocorre uma antropomorfização do animal. O ato
157.c 158.b 159.a 160.c 161.d 162.c de devorar o papagaio, durante a retirada, é clara-
mente um ato antropofágico, em que se come um
163.d 164.e 165.d 166.d 167.e 168.d “elemento da família”. Baleia, a cadela, tem nome,
169.d 170.e 171.c 172.c 173.e 174.c ao contrário dos meninos; quando ela está morren-
do, sonha (como os homens) com um mundo cheio
175.a de preás, que ela comeria à farta – até ela, como os
seres humanos, constrói uma utopia.
180. A miséria e a seca.
Respostas possíveis para as
questões escritas 181. Como se observa no texto, o plano social – a
fome, a falta de comida; enfim, a miséria, a seca – arti-
cula-se com o plano psicológico, em que o narrador
176. a) O retorno das secas.
onisciente vai nos revelando o fluxo de consciência
b) “... provavelmente o sertão ia pegar fogo.” de sinha Vitória, o caos mental – festas, vaquejadas,
c) Os retirantes, como as aves, “vinham (...) arran- novenas, “tudo numa confusão”.
chavam-se (...) seguiam viagem para o Sul.”
182. a) São dois os fatores que dão unidade à obra:
177. a) Tanto diante do soldado amarelo (autorida- as personagens e o trabalho com a paisagem mi-
de oficial) como diante do patrão é clara a dificul- serável e seca.
dade de expressão de Fabiano. b) “Mudança” e “Fuga” são capítulos que tratam da
b) Fabiano tem dificuldade em entender o que as retirada da família de um ponto para outro, carac-
pessoas dizem. Nos casos citados, a personagem terizando o processo gradativo de expulsão do
não consegue articular sua defesa externa, embora homem da terra. No primeiro, as personagens par-
internamente rumine as injustiças sofridas quando tem em retirada e se alojam em um ponto (fazenda
é torturado pelo soldado que o prendera injusta- abandonada) na mesma região, indicando simples
mente durante um jogo de cartas, ou se sente in- deslocamento. No segundo, está caracterizada a
capaz de argumentar diante do patrão na hora do busca por um espaço libertador, procurado em ou-
acerto de contas. Assume sua inferioridade em re- tra região distante, indicando a expulsão.
lação àqueles que detêm o poder.
183. a) As personagens sentem medo do inatingí-
A relação mando-poder verbal recebe três distin- vel (linguagem) que se tornou um mito.
ções: mando pelo gosto do poder (soldado ama-
relo), mando pela posição econômica (patrão) e b) A escassez da linguagem verbal pode ter como
o mando “suave” de Tomás da bolandeira, em sua consequências o medo, como, por exemplo, no epi-
humildade de homem culto e cortês. sódio do soldado amarelo, ou na descrição das rela-
ções de Fabiano com o patrão. Pode ainda ter como
178. a) Porque reflete o problema do Nordeste – a consequência a admiração e o respeito, como por
seca – que gera a profunda miséria das persona- seu Tomás da bolandeira.
gens, daí Vidas (personagens e paisagens) secas
(miséria social e fenômeno natural). 184. No volume Vidas secas, o capítulo “Baleia” tem
uma significação especial: foi o quadro que deu
b) Ambos escrevem sobre a fuga das personagens.
origem ao romance. É importante notar que a ca-
O primeiro é a fuga da seca, que se dá no mesmo
chorrinha mereceu um capítulo inteiro para si. Ela
meio rural (do sítio seco para a fazenda de gado). O
é uma personagem não humana que se antropo-
último é a fuga para a cidade grande.
morfiza: tem identidade, marcada pelo nome pró-
179. Em Vidas secas ocorre uma animalização prio; garante a sobrevivência das pessoas quando
do homem: “Você é um bicho, Fabiano”. Entre os fogem (é animal de caça); tem desejos e sonhos
motivos que estabelecem a identidade homem- (“um mundo cheio de preás”), etc. As personagens
-animal, podemos mencionar a falta de domínio humanas se descaracterizam como humanos (zoo-
da linguagem (Fabiano, como os bichos, expressa- morfização): não têm identidade (por exemplo,
-se por grunhidos), a ausência de nomes dos filhos Fabiano de quê?); animalizam-se para conseguir
(sem identidade, como os bichos), a falta de con- forças para enfrentar o meio árido em que vivem.
sideração social (fazendo que o homem perca sua A presença de Baleia (mesmo após a sua morte)

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não deixa os humanos se esquecerem de que são ou “... cobria-se de arribações” (arribações por aves).
homens, ela é um elo com uma humanidade que • Hipérbole: “o sertão ia pegar fogo” ou “... milhares
se dilui. Cabe ressaltar que há uma ironia no nome de riscos juntos...”.
dela, uma vez que se trata de um animal pequeno,
magro e de um ambiente notadamente seco. As- 187. a) Não. A dureza do clima justifica boa parte
sim, o nome Baleia poderia representar a perma- das aflições de Fabiano, mas não todas. A persona-
nente busca por água. gem também é oprimida socialmente quer pelo Es-
tado, como no episódio do soldado amarelo, quer
185. a) Ao enumerar características físicas de Fa- pela exploração do patrão.
biano, o autor o associa à paisagem ressecada
b) Sim, em termos, considerando apenas as perso-
do Nordeste: vermelho, queimado e ruivo, tendo
nagens do núcleo familiar. Estas tendem a um mo-
como cobertura o céu azul/olhos azuis. Dessa for-
vimento de interiorização, de autorreflexão, como
ma identifica o homem com a natureza.
no exemplo célebre: “Você é um bicho, Fabiano“.
b) No texto, o termo é utilizado em oposição a ho- Por outro lado, elas tendem a modelar o mundo de
mem: “ele não era homem: era apenas um cabra acordo com seus próprios limites sociais e culturais,
ocupado em guardar coisas dos outros...”; e em como os de linguagem, por exemplo.
oposição a branco (pessoas que Fabiano julga-
va superiores a ele): “encolhia-se na presença dos 188. a) Ambos representam o poder, a autoridade
brancos e julgava-se cabra”. e, também, o abuso no exercício de suas funções.
No entanto, diferenciam-se em um ponto essencial:
186. a) Prenuncia que “o sertão ia pegar fogo”. Indica o major Vidigal é elemento de repressão, enquan-
o início de uma longa estiagem e de um novo período to o soldado amarelo é, sobretudo, elemento de
de seca. opressão.
b) O indício do que vai acontecer está caracterizado b) Memórias de um sargento de milícias, em vários
pela invasão das aves de arribação. momentos, alinha-se aos romances de costumes,
c) • Gradação: “Vinham em bandos, arranchavam- retratando práticas de um determinado momento
-se nas árvores da beira do rio, descansavam, be- da vida social brasileira; no caso, como o poder po-
biam e (...) seguiam viagem para o Sul” ou “... um ris- licial era exercido e sob quais circunstâncias.
co no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos”. Vidas secas, por sua vez, pretende ser uma obra de
denúncia social e política, revelando um conjunto
• Prosopopeia: “O sol chupava...”. de forças naturais e sociais que flagelam e oprimem
• Sinédoque: “... chupava os poços” (poços por água) o homem.

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Capitães da Areia
Jorge Amado
Exercícios teste

189. Assinale a alternativa incorreta quanto do-se na caracterização do tipo malandro.


aos personagens de Capitães da Areia: c) na obra, fica claro o conflito entre o sertão baia-
a) Gato e Boa-Vida são semelhantes, já que no, mais pobre e dominado pelo latifúndio, e a
ambos são exemplos daqueles que se utilizam zona litorânea, marcada pela riqueza do cacau.
da malandragem para obter recompensas. d) o trapiche torna-se o personagem principal
b) Gato e Boa-Vida são contrastantes, já que o do volume, como ocorre em O cortiço, cuja
primeiro é elegante e sedutor e o segundo é personagem principal é o próprio cortiço.
mulato, troncudo e feio. e) trata-se de um romance completamente
c) Enquanto Pirulito é a essência da abne- maniqueísta, pois as personagens são cons-
gação, Sem-Pernas é o rancor compulsivo e truídas de tal modo que se tornam tipos linea-
feroz. res, sem nuances psicológicas.
d) Volta Seca, como Sem-Pernas, é vingativo
192. Da leitura dos volumes Vidas secas e Ca-
e mau; ambos são incapazes de um ato de
pitães da Areia, conclui-se que:
companheirismo.
a) são volumes que não pertencem ao regio-
e) Boa-Vida e Pirulito são personagens que
nalismo nordestino.
contrastam, porque o primeiro encaminha-se
b) representam o ponto mais alto das obras
para a vida boêmia e o segundo encontra-se
de seus autores, respectivamente, Jorge
na ascese.
Amado e Graciliano Ramos.
190. Em Capitães da Areia: c) são escritos de forma que o leitor possa lê-
a) a linguagem é simples, os capítulos são se- -los a partir de qualquer ponto, porque são
quenciais e há demarcação precisa do tempo. construídos com capítulos que constituem
b) na fala das personagens, o autor emprega unidades autônomas.
a variante não padrão; os capítulos narram d) é possível observar pontos comuns, já que
episódios isolados. ambos são formados pela narração de pe-
c) predomina na obra um tom panfletário, quenos quadros.
deflagrado pela luta entre classes sociais, e a e) têm somente personagens caracterizados
trama se concentra em um único conflito: a por seus apelidos.
greve dos operários.
d) todas as personagens são caracterizadas Texto para as questões de 193 a 195.
como vítimas, por isso pode-se concluir que
– Boa-tarde, dona Margarida.
o autor pretende chamar a atenção para a in-
Mas a viúva Margarida Santos assestou no-
teração entre classes sociais.
vamente o “lorgnon“ de ouro:
e) apesar de se aproximar do coloquial, o au-
– O senhor não se envergonha de estar nes-
tor faz uso apenas da linguagem padrão.
se meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um
191. Sobre Capitães da Areia é correto afirmar homem de responsabilidade, no meio desta
que: gentalha...
a) os meninos são caracterizados ora como – São crianças, senhora.
homens, ora como crianças, como se pode A velha olhou superior e fez um gesto de des-
observar no episódio do carrossel e na narra- prezo com a boca. O padre continuou:
ção de suas aventuras amorosas. – Cristo disse: “Deixais vir a mim as crianci-
b) Jorge Amado, à maneira de Euclides da nhas...”.
Cunha, privilegia a descrição da Bahia, deten- – Criancinhas... Criancinhas... – cuspia a velha.

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(...) e) como forma de registrar a superioridade da
Pedro Bala aí riu escandalosamente, pensan- mulher diante da criança abandonada.
do que se não fosse pelo padre a velha já não
196. A respeito dos personagens do romance
teria o “barret“ nem tampouco o “lorgnon“...
Capitães da Areia, assinale a alternativa incor-
193. Levando-se em consideração o trecho reta.
anterior e o livro como um todo, assinale a a) Eles são identificados pelos cognomes, ge-
alternativa correta: ralmente extraídos de uma qualidade ou de
a) Dona Margarida procura alertar o padre um defeito físico ou psicológico.
José Pedro, pois este, sem o saber, estava aju- b) Uma das funções dos apelidos é dar ao lei-
dando os Capitães da Areia. tor uma visão do modo de ser de cada um dos
b) O padre José Pedro se aproximou dos jo- habitantes do trapiche.
vens com segundas intenções, em nada liga- c) Aqueles que não estão ligados ao trapiche
das à religião ou à caridade. só são referidos pelo primeiro nome.
c) O ponto de desacordo entre o padre José d) Só quem os pequenos abandonados res-
Pedro e Dona Margarida é o fato de esta ser peitam e/ou amam tem acesso ao trapiche.
ateia e aquele, religioso. e) Para serem aceitos no grupo, os meninos
d) O trecho ilustra uma questão polêmica em passavam por um ritual de iniciação.
torno dos menores marginalizados, indagan- 197. Leia o texto.
do se eles seriam vítimas ou culpados.
e) O trecho ressalta o poder argumentativo Uma vez, e era o verão, um homem parara ves-
de Pedro Bala, na tentativa de ludibriar tanto tido com um grosso sobretudo para tomar um
o padre como a velha. refresco numa das cantinas da cidade. Parecia
um estrangeiro. Era pelo meio da tarde e o ca-
194. A respeito do texto são feitas três afir- lor doía nas carnes. Mas o homem parecia não
mações: senti-lo, vestido com seu sobretudo novo.
I. Dona Margarida, embora essencialmente No trecho, Jorge Amado utiliza uma figura de
religiosa, é exemplo de ideal de virtudes que linguagem que consiste no entrecruzamento
não coincide com a prática. de sensações. Trata-se de um processo:
II. O padre José Pedro, destituído de vocação a) metafórico
religiosa, encontra na caridade uma forma de b) metonímico
satisfazer sua necessidade de pregar o bem. c) sinestésico
III. Pedro Bala respeita o padre, mas não se d) sintático-semântico
pode afirmar que seja um crente ou que te- e) paralelístico
nha sentimentos religiosos.
198. Leia o texto.
Estão corretas:
a) todas as afirmações. – Professor... Professor...
b) somente as afirmações I e II. – O que é? – Professor estava semiadormecido.
c) somente as afirmações I e III. – Eu quero uma coisa.
d) somente as afirmações II e III. Professor sentou-se. O rosto sombrio de Volta
e) nenhuma das afirmações. Seca estava meio invisível na escuridão.
– É tu, Volta Seca? Que é que tu quer?
195. Lorgnon é uma palavra de origem fran- – Quero que tu leia pra eu ouvir essa notícia
cesa e designa uma espécie de óculos sem de Lampião que o Diário traz. Tem um retrato.
hastes. O autor utiliza o termo: – Deixa pra amanhã que eu leio.
a) como uma forma de mostrar que além do – Lê hoje, que eu amanhã te ensino a imitar
português ele também sabe o francês. direitinho um canário.
b) para designar um tipo de óculos que não O professor buscou uma vela, acendeu, co-
existe no Brasil. meçou a ler a notícia do jornal. Lampião tinha
c) para dar à mulher uma característica parti- entrado numa vila da Bahia, matara oito sol-
cular, mostrando-lhe a deficiência visual. dados, deflorara moças, saqueara os cofres da
d) para distinguir o status da mulher de uma prefeitura. O rosto sombrio de Volta Seca se ilu-
classe social superior a de seus interlocutores. minou. Sua boca apertada se abriu num sorriso.

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E ainda feliz deixou o Professor, que apagava a b) A referência à fuga é desnecessária, visto
vela, e foi para o seu canto. Levava o jornal para que ninguém consegue de lá escapar, nem
cortar o retrato do grupo de Lampião. Dentro mesmo Pedro Bala.
dele ia uma alegria de primavera. c) A matéria jornalística é isenta na defesa do
Levando em consideração o trecho anterior e diretor do reformatório, que, aliás, é um velho
o livro como um todo, analise as afirmações amigo do Jornal da Tarde.
a seguir: d) A afirmação do diretor sobre a regenera-
I. Professor, na verdade, era mais um dos Ca- ção é irônica e subentende o tratamento que
pitães da Areia. Ele recebeu essa alcunha de- é dispensado aos menores que para lá são
conduzidos.
vido a seu gosto pela leitura.
e) A reforma aludida é possível porque conta
II. Volta Seca sofre uma profunda inquietação
com a ação apostólica do padre José Pedro
ao saber que Lampião, seu padrinho, come-
junto ao reformatório e cuja ação é respeita-
tia diversos crimes bárbaros pelo interior da
da pelo diretor.
Bahia.
III. Volta Seca vê Lampião menos como crimi- 200. (Fuvest) Inimigo da riqueza e do trabalho,
noso que como símbolo de luta e revolta. amigo das festas, da música, do corpo das ca-
Assinale: brochas. Malandro. Armador de fuzuês. Joga-
a) se todas estiverem corretas. dor de capoeira navalhista, ladrão quando se
b) se apenas I e II estiverem corretas. fizer preciso.
(Jorge Amado, Capitães da Areia.)
c) se apenas II e III estiverem corretas.
d) se apenas II estiver incorreta. O tipo cujo perfil se traça, em linhas gerais,
e) se apenas III estiver correta. nesse excerto, aparece em romances como
199. (PUC) O diretor do Reformatório Baiano Memórias de um sargento de milícias, O corti-
para Menores Abandonados e Delinquentes é ço, além de Capitães da Areia. Essa recorrência
um velho amigo do Jornal da Tarde. Certa vez indica que:
a) certas estruturas e tipos sociais originários
uma reportagem nossa desfez um círculo de ca-
do Período Colonial foram repostos durante
lúnias jogadas contra aquele estabelecimento
muito tempo nos processos de transforma-
de educação e seu diretor. Hoje, ele se achava na
ção da sociedade brasileira.
polícia esperando poder levar consigo o menor
b) o atraso relativo das regiões Norte e Nor-
Pedro Bala. A uma pergunta nossa respondeu:
deste atraiu para elas a migração de tipos
– Ele se regenerará. Veja o título da casa que
sociais que o progresso expulsaria do Sul/
dirijo:
Sudeste.
“Reformatório”. Ele se reformará.
c) os romancistas brasileiros, embora críticos
E a outra pergunta nossa, sorriu:
da sociedade, militaram com patriotismo na
– Fugir? Não é fácil fugir do Reformatório. Posso defesa de nossas personagens mais típicas e
lhe garantir que não o fará. mais queridas.
O trecho anterior é do romance Capitães da d) certas ideologias exóticas influenciaram
Areia, de Jorge Amado. De acordo com o texto, negativamente os romancistas brasileiros,
indique a alternativa verdadeira: fazendo-os representar, em suas obras, tipos
a) A regeneração se dá porque, segundo o sociais já extintos quando elas foram escritas.
Juiz de Menores, em carta à redação do jor- e) a criança abandonada, personagem central
nal, o reformatório é um ambiente onde se dos três livros, torna-se, na idade adulta, um
respiram paz e trabalho e onde as crianças elemento nocivo à sociedade dos homens de
são tratadas com o maior carinho. bem.

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Exercícios escritos
201. [Don’Aninha] tinha o rosto alegre, se bem sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos
bastasse um olhar seu para inspirar absoluto envoltos em alegria. Escutavam religiosamente
respeito. Nisso se parecia com padre José Pedro. aquela música que saía do bojo do carrossel na
a) Que significado possível pode ter a aproxi- magia da noite da cidade da Bahia só para os
mação dessas duas personagens (José Pedro ouvidos aventureiros e pobres dos Capitães da
e Don’Aninha)? Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário
b) Qual o envolvimento das duas persona- que vinha pela rua, vendo a aglomeração de
gens citadas com o grupo de crianças aban- meninos na praça, veio para o lado deles. E fi-
donadas? cou também parado, escutando a velha músi-
ca. Então a luz da lua se estendeu sobre todos,
202. O nome ou apelido do indivíduo em algu-
as estrelas brilhavam ainda mais no céu, o mar
mas culturas é bastante significativo. Explique
ficou de todo manso (talvez que lemanjá tives-
a razão dos apelidos emprestados aos seguin-
se vindo também ouvir a música) e a cidade era
tes personagens: Sem Pernas, Professor e João
como que um grande carrossel onde giravam
Grande.
em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Nes-
203. Pedro Bala, antes de sair, falou para todos se momento de música eles sentiram-se donos
os capitães da areia: da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sen-
– Minha gente, eu vou fazer um troço difícil. tiram irmãos porque eram todos eles sem cari-
Se eu não aparecer até de manhã, vocês fica nho e sem conforto e agora tinham o carinho
sabendo que eu tou na polícia e não demoro a e conforto da música. Volta Seca não pensava
ta no reformatório, até fugir. Ou até vocês me com certeza em Lampião nesse momento. Pe-
tirar de lá. dro Bala não pensava em ser um dia o chefe de
(...) todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas
– Pedro foi fazer um troço difícil. Se não voltar em se jogar no mar, onde os sonhos são todos
de manhã, é que ta na chave... belos. Porque a música saía do bojo do velho
a) Identifique no excerto anterior uma figu- carrossel só para eles e para o operário que pa-
ra de linguagem e justifique a resposta com rara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida
uma passagem do texto. por todos os homens da cidade.
b) É comum na representação da fala da perso- (Jorge Amado. Capitães da Areia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 68.)
nagem o uso de uma linguagem mais coloquial.
Busque no texto um exemplo de desvio da nor- a) De que modo esse capítulo estabelece um
ma padrão e reescreva-o segundo essa norma. contraste com os demais do romance? Quais
204. Querido-de-Deus, que era um pescador são os elementos desse contraste?
valente e capoeirista sem igual, também acre- b) Qual a relação de tal contraste com o tema
ditava neles [nos deuses negros que vieram da do livro?
África], misturava-os com os santos dos bran- 207. (Fuvest) Leia o seguinte excerto de Capi-
cos que tinham vindo da Europa. tães da Areia, de Jorge Amado, e responda ao
a) Qual o nome dado a essa mistura religiosa? que se pede.
b) Além da religião, qual é a outra manifesta-
O sertão comove os olhos de Volta Seca. O
ção cultural africana presente no texto?
trem não corre, este vai devagar, cortando as
205. a) Caracterize o tempo em Capitães da terras do sertão. Aqui tudo é lírico, pobre e belo.
Areia. Só a miséria dos homens é terrível. Mas estes
b) Explique o título dado ao volume. homens são tão fortes que conseguem criar be-
206. (Unicamp) Leia o trecho a seguir, do capí- leza dentro desta miséria. Que não farão quan-
tulo “As luzes do carrossel”, de Capitães da Areia: do Lampião libertar toda a caatinga, implantar
O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na a justiça e a liberdade?
pianola e começou a música de uma valsa antiga. Compare a visão do sertão que aparece no
O rosto sombrio de Volta Seca se abria num excerto de Capitães da Areia com a que está

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presente no livro Vidas secas, de Graciliano Responda, conforme solicitado, consideran-
Ramos, considerando os seguintes aspectos: do cada um desses aspectos nas duas obras
a) a terra (o meio físico); citadas.
b) o homem (o sertanejo).

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Respostas
Gabarito dos testes conduzidas, mas que importunam, fazem-se pre-
sentes, deixam suas marcas. Interessante notar o
da em vez do de no título.
189.d 190.b 191.a 192.d 193.d 194.c
206. a) Nesse capítulo, as personagens são apre-
195.d 196.e 197.c 198.d 199.d 200.a sentadas em um estado de intensa alegria, desper-
tado pelo contato com as luzes do carrossel, viabi-
lizando a ligação, até então perdida, com o lúdico,
Respostas possíveis para as ou seja, com a magia do carrossel.
Ao se depararem com as luzes do brinquedo, os
questões escritas meninos se esquecem da realidade brutal, de
modo que aqueles homens em corpos de meninos
201. a) Don’Aninha é mãe de santo, portanto, uma não só readquirem, momentaneamente, a infância
representante das religiões africanas. A aproxima- perdida, como também ressignificam a cidade da
ção das duas personagens é um sinal do convívio Bahia, na medida em que a veem como “um gran-
pacífico dessas crenças. de carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os
b) As duas personagens servem de apoio para as Capitães da Areia”.
crianças. São os únicos elementos fora do trapiche Por meio dessa ressignificação, estabelece-se um
que mantêm ligação com o grupo. contraste entre os comportamentos das persona-
gens, pois, ao longo do romance, são apresentadas
202. Sem-Pernas é coxo, Professor é o único do como transgressoras e, nesse capítulo, são vistas
trapiche que conhece leitura e João Grande recebe pelo lado infantil, ingênuo e desamparado de cada
esse nome não só porque é maior que os demais, uma delas, humanizando-as.
mas porque também tem um bom coração.
b) O tema do livro é a ação das crianças como
203. a) “ta na chave” – metonímia. A chave pela ca- adultos marginais; porém, no capítulo “As luzes do
deia, ou seja, parte pelo todo. carrossel”, a infância roubada é restituída às perso-
b) “eu tou” – eu estou. nagens, ainda que momentaneamente.
Jorge Amado chama a atenção do leitor para um
204. a) Sincretismo religioso. problema social que transforma a criança em víti-
b) A prática da capoeira. ma dos preconceitos e da violência da sociedade.

205. a) O tempo, relativamente extenso, mas impre- 207. a) O sertão, para Volta Seca, é “lírico, pobre e
ciso, compreende um retalho da vida dos meninos, belo” e “comove os olhos”. Em Capitães da Areia, o
desde a infância até a maturidade. Contudo, há a sertão é belo porque “homens (...) conseguem criar
oportunidade de conhecer com mais intensidade beleza dentro dessa miséria”. Em Vidas secas, a terra
o tempo de alguns personagens como Pedro Bala é pobre e seca e é fator determinante para a miséria.
e Dora. b) O homem, em Capitães da Areia, é capaz de
b) O título é metafórico. Pode-se pensar em jovens transcender seu estado de miséria e criar beleza,
que vivem à beira-mar, portanto, nas areias da praia justiça e liberdade por meio de uma tomada de
onde se situa o trapiche, e de lá comandam suas consciência de seu papel social. Em Vidas secas, ele
vidas, daí o capitães. Pode-se ir além, pensar em é incapaz de superar a miséria que se revela tanto
crianças que, como areia, são dissolvidas, levadas, no plano físico quanto no intelectual.

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Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade
Exercícios testes

208. Considerando-se a obra Sentimento do a) querer se aproximar dos outros e partilhar


mundo, é possível afirmar que Drummond: o mundo.
a) explora todos os aspectos que já foram tra- b) buscar se desconstruir em função de sua
balhados nos livros anteriores e acrescenta uma incapacidade de lidar com seus problemas.
visível preocupação com o momento social. c) comprometer-se com outras formas de poe-
b) focaliza com menor intensidade aspectos sia, principalmente aquelas que não fazem
de seu “eu” em detrimento de uma crítica à apelo social.
família e à terra natal. d) refugiar-se em si mesmo, procurando des-
c) minimiza a situação social em função de pir-se de suas angústias.
seus problemas pessoais. e) confessar-se incapaz de lidar com proble-
d) aprofunda a temática que já vinha desen- mas pessoais.
volvendo em função de suas preocupações
com a situação de conflito que se aproxima. 211. É comum na literatura os poetas dialo-
e) revitaliza sua poesia em função de sua preo- garem com outros poetas/textos. Nos versos
cupação com o versejar de forma moderna. de “Mundo grande”, Carlos Drummond de
Andrade refere-se aos seguintes versos:
209. (UFSM-RS) Assinale a alternativa incorre-
ta a respeito da poesia de Carlos Drummond Eu tenho um coração maior que o mundo,
de Andrade: tu, formosa Marília, bem o sabes:
a) O jogo verbal, em alguns poemas, acentua Um coração, e basta,
a relativização das várias faces da realidade. onde tu mesma cabes.
b) O sujeito poético, várias vezes, reveste suas
expressões de um fino traço de humor. a) do poeta árcade Cláudio Manuel da Costa.
c) O sujeito poético, constantemente, trans- b) do escritor romântico Almeida Garrett.
mite sensações de dúvida e de negação. c) do maior representante do Arcadismo em
d) Os versos que contêm uma ênfase mística Portugal: Bocage.
podem ser vistos como produtos do fervor d) do introdutor do Romantismo no Brasil.
católico do poeta. e) do maior representante do Arcadismo no
e) Importantes poemas publicados na década Brasil.
de 1940 tratam de temas de caráter social. 212. Os poemas de caráter autobiográfico de
Texto para as questões 210 e 211. Drummond:
a) remetem às lembranças da família bem
Mundo grande estruturada que perdeu as posses com as fre-
Não, meu coração não é maior que o mundo. quentes crises econômicas do governo Var-
É muito menor.
gas, como se lê em “Confidência do itabirano”.
Nele não cabem nem as minhas dores.
b) tratam da família, centrada na figura da
Por isso gosto tanto de me contar.
mãe opressora que se transformou, após a
Por isso me dispo,
morte, em uma simples fotografia, como em
por isso me grito,
“Os mortos de sobrecasaca”.
por isso frequento os jornais, me exponho
c) as lembranças da terra natal que lhe tra-
[cruamente nas livrarias:
zem recordações nem sempre salutares e
preciso de todos.
que, mesmo passados muitos anos, ainda
210. A percepção de que não dá conta do deixam profundos sulcos no presente, como
mundo, leva o poeta a: em “Confidência do itabirano”.

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d) tratam da terra natal, sempre motivo de a) sente-se desconfortável diante da sua inca-
boas recordações, uma terra farta e fértil só se pacidade de dinamitar a ilha de Manhattan.
esvai quando o sol se põe, como em “Revela- b) faz uma reflexão sobre sua incapacidade de
ção do subúrbio”. atingir seus ideais de igualdade, levando-o a
e) remetem às lembranças das pessoas com acreditar que qualquer luta deve ser coletiva.
que conviveu, revividas pelos seus retratos c) faz um apelo revolucionário para que se
expostos em uma sala da casa da fazenda, possa chegar a um bom termo as intervenções
como em “Os mortos de sobrecasaca”. terroristas nos Estados Unidos da América.
d) reforça a preocupação do poeta com o
Texto para a questão 213. “mundo caduco” em que só existem momen-
tos pacíficos breves que, na verdade, consti-
Madrigal lúgubre
tuem preparação para outras intervenções.
Em vossa casa feita de cadáveres, e) resvala na esperança de poder se unir a outros
ó princesa! Ó donzela! homens para que se possa articular uma ação
Em vossa casa, de onde o sangue escorre, conjunta em favor dos pobres e necessitados.
Quisera eu morar. (...)
Texto para as questões 215 e 216.
213. Sabendo-se que madrigal é uma com-
posição poética ou poético-musical que traz La possession du monde
um tema singelo ou exprime um pensamen- Os homens célebres visitam a cidade.
to terno ou galante, pode-se inferir que: Obrigatoriamente exaltam a paisagem.
a) o título do poema deixa antever a grande Alguns se arriscam no Mangue,
antítese trabalhada, já que o termo “lúgubre” outros se limitam ao Pão de Açúcar,
se antepõe à leveza do “madrigal”. mas somente George Duhamel
b) o termo foi usado com propriedade por passou a manhã inteira no meu quintal.
Drummond, no poema ele trará as reminis- Ou antes, no quintal vizinho do meu quintal.
cências que guarda dos contos de fadas e das Sentado na pedra, espiando os mamoeiros,
personagens fantásticas. conversava com o eminente neurologista.
c) ao usar “cadáveres” para ilustrar uma casa Houve uma hora em que ele se levantou
já morta, o autor destaca a importância dos (em meio a erudita dissertação científica).
contos de fada para a formação do imaginá- Ia, talvez, confiar a mensagem da Europa
rio infantil. aos corações cativos da jovem América...
d) o autor pretende contrapor o que ele viveu Mas apontou apenas para a vertical
no passado, no aconchego da família, e o pre- e pediu ce cocasse fruit jaune.
sente, nefasto e repleto de maus presságios.
215. Esse poema é caracteristicamente mo-
e) o poeta metaforiza a passagem do tempo e
dernista porque nele:
o envelhecimento dos contos de fada, agora
a) a uniformidade dos versos reforça a simpli-
cadáveres.
cidade preconizada pelo poeta.
b) tematiza-se aspectos do cotidiano, com iro-
Texto para a questão 214.
nia e bom humor, vazando-os em versos des-
Elegia 1938 compromissados com a estética tradicional.
(...) Coração orgulhoso, tens pressa de confessar c) satiriza-se o estilo pomposo da poesia fran-
[tua derrota cesa a partir da menção ao acadêmico Georges
e adiar para outro século a felicidade coletiva. Duhamel.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a d) a linguagem coloquial dos versos livres
[injusta distribuição apresenta com humor o cotidiano encarnado
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de em uma simples conversa de botequim.
[Manhattan. e) o dia a dia surge como novo palco das sen-
sações poéticas, sem que se imprima alguma
214. Elegia é um poema, geralmente terno e
nota diferenciada no fazer poético.
triste, em que tem por tema algo que faz o
poeta sofrer. Sabendo-se disso, o trecho final 216. Destacam-se nesse poema característi-
de “Elegia 1938” permite inferir que o poeta: cas marcantes de Drummond. São elas:

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a) a ruptura com a lírica tradicional, a ironia e d) faz uma paródia do poema de Drummond,
o estilo prosaico. imitando-o em um texto que se caracteriza
b) a memória familiar, o canto elegíaco e sen- pelo sentimentalismo.
timental. e) apresenta uma paráfrase do poema de
c) a exposição da timidez pessoal, a fala amar- Drummond, com o propósito de divulgá-lo
gurada e a recuperação da forma fixa. entre os leitores da revista em que está pu-
d) a preocupação de cunho social, o pessimis- blicado.
mo e a desintegração do verso livre.
e) a tendência ao metafísico, o discurso re- 218. Comparando-se o início dos textos dos
buscado e o humor sutil. dois autores, observa-se que:
a) embora com algumas diferenças nos ele-
(UEL) As questões 217 e 218 referem-se aos mentos selecionados, ambos fazem referên-
textos que seguem. cia a um passado marcado pela luta por um
ideal político.
Alguns anos vivi em Itabira. b) para Drummond, lembrar Itabira dói, devi-
Principalmente nasci em Itabira. do à saudade de sua juventude; para Toledo,
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. lembrar Che Guevara dói, devido à descrença
Noventa por cento de ferro nas calçadas. atual nos ideais dos anos 60.
Oitenta por cento de ferro nas almas. c) ambos gostariam de voltar ao passado, re-
(...) presentado, no poema de Drummond, pela
Tive ouro, tive gado, tive fazendas. foto de sua cidade natal e, no texto de Toledo,
Hoje sou funcionário público. pelo pôster de um herói de sua juventude.
Itabira é apenas uma fotografia na parede. d) há uma semelhança no início dos dois tex-
Mas como dói! tos, pois os autores retratam o mesmo perío-
(Carlos Drummond de Andrade. “Confidência do do da história do Brasil.
itabirano”. In: Obra completa. Rio de Janeiro: e) ambos têm como tema principal a tristeza
Aguilar, 1964. p. 101.)
pela perda da juventude.
Che Guevara (1967) 219. (Mack)
Que boina, que belo, que barba...
É preciso casar João,
Que sonho, que sanha, que santo...
é preciso suportar Antônio,
O olhar que, na foto célebre,
é preciso odiar Melquíades,
escruta ao longe, e espreita, e espia,
é preciso substituir nós todos.
confïrma-o como inigualável
É preciso salvar o país,
sentinela da utopia.
é preciso crer em Deus,
(...)
é preciso pagar as dívidas,
Che Guevara (2001) é preciso comprar um rádio,
É apenas um pôster é preciso esquecer fulana.
na parede. O paralelismo dos versos, no contexto, contri-
Mas como dói. bui para a expressão:
(Renato Pompeu de Toledo. “Epigramário dos náu- a) de uma visão idealizada das relações huma-
fragos dos anos 60”. Veja, 21.02.2001. p. 150.) nas.
b) da ideia do caráter ininterrupto das pres-
217. O final do texto de Toledo: sões sociais sobre o indivíduo.
a) faz um plágio do texto de Drummond, o c) da interrupção da obrigatoriedade.
que é um sinal de desonestidade e incapaci- d) do constante questionamento sobre a fu-
dade criativa do autor.
gacidade do tempo.
b) coincide acidentalmente com o texto de
e) do bem-estar produzido pela utopia como
Drummond; como ambos retratam situações
única possibilidade de realização.
semelhantes, usam também textos análogos.
c) evoca intencionalmente o conhecido poe- 220. (UFJF) Leia, agora, o poema “Lembrança
ma de Drummond, para marcar a semelhança do mundo antigo”, de Carlos Drummond de
de sentimentos. Andrade.

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Lembrança do mundo antigo II. No texto, o contraste entre a linguagem de
Clara passeava no jardim com as crianças. gosto antigo e a dicção moderna, ao invés de
O céu era verde sobre o gramado, marcar uma ruptura histórica, realça a conti-
a água era dourada sob as pontes, nuidade do comportamento das elites.
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados, III. O poeta trata com ironia cortante a aura
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas, de liberdade que costuma acompanhar as
a menina pisou a relva para pegar um pássaro, referências à liberação sexual ocorrida no
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era século XX.
[tranquilo ao redor de Clara. Está correto o que se afirma em:
As crianças olhavam para o céu: não era proibido. a) I, apenas.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não b) II, apenas.
[havia perigo. c) I e II, apenas.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os d) II e III, apenas.
[insetos. e) I, II e III.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
222. (UFT)
esperava cartas que custavam a chegar,
A noite dissolve os homens
nem sempre podia usar vestido novo. Mas
A noite
[ passeava no jardim, pela manhã!!!
desceu. Que noite!
Havia jardim, havia manhãs naquele tempo!!!
Já não enxergo meus irmãos.
(Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do E nem tão pouco os rumores que outrora me
mundo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 61.)
[perturbavam.
A leitura do poema permite afirmar que o A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se
mundo de Clara é: [combate,
a) uma distorção da realidade. nos campos desfalecidos, a noite espalhou o
b) uma sátira à inocência. [medo e a total
c) uma idealização da realidade. incompreensão.
d) um rompimento com a simplicidade. A noite caiu. Tremenda, sem esperança...
e) uma desvalorização da vida simples. Os suspiros acusam a presença negra que paralisa
221. (FGV) Considere as seguintes afirmações [os guerreiros.
sobre o poema de Drummond: E o amor não abre caminho na noite.
A noite é mortal, completa, sem reticências,
Tristeza do império a noite dissolve os homens, diz que é inútil sofrer,
Os conselheiros angustiados a noite dissolve as pátrias, apagou os almirantes
ante o colo ebúrneo [cintilantes!
das donzelas opulentas nas suas fardas.
que ao piano abemolavam A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem
“bus-co a cam-pi-na se-re-na [remédio...
pa-ra li-vre sus-pi-rar”, Os suicidas tinham razão.
esqueciam a guerra do Paraguai, Aurora, entretanto eu te diviso,
o enfado bolorento de São Cristóvão, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais a
a dor cada vez mais forte dos negros e dos bens que repartirás com todos os homens.
e sorvendo mecânicos Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
uma pitada de rapé, adivinho-te que sobes,
sonhavam a futura libertação dos instintos vapor róseo, expulsando a treva noturna.
e ninhos de amor a serem instalados nos O triste mundo fascista se decompõe ao contato
[arranha-céus de [de teus
Copacabana, com rádio e telefone automático. teus dedos frios, que ainda se não modelaram
(Carlos Drummond de Andrade. [mas que avançam
Sentimento do mundo) na escuridão
I. As referências temporais e espaciais do tex- como um sinal verde e peremptório.
to permitem situar na segunda metade do Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
século XIX a cena nele figurada. minha carne estremece na certeza de tua vinda.

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O suor é um óleo suave, as mãos dos sobrevi de espírito do poeta, fazendo o leitor crer que
se enlaçam, aquela noite tenha sido diferente das demais.
os corpos hirtos adquirem uma fluidez, uma b) O poeta transita entre concreto e abstrato,
[inocência, um perdão utilizando-se da linguagem figurada, muito
simples e macio...
comum nesse gênero textual.
Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã c) O pronome relativo “que” em “que outrora
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário me perturbavam” funciona como sujeito da
para colorir tuas pálidas faces, aurora. oração que introduz. Sua função é unir ora-
(Carlos Drummond de Andrade, ções por coordenação.
Sentimento do mundo.) d) Os versos narram, em primeira pessoa, a
Assinale a resposta incorreta: escuridão da noite, encadeando, por grada-
a) O ponto de exclamação marca um estado ção, o processo de dissolução dos homens.

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Exercícios escritos
223. (UFJF) Leia, com atenção, o texto a se-
guir: com medo de não repararmos suficientemente
Congresso internacional do medo em suas luzes que mal têm tempo de brilhar.
Provisoriamente não cantaremos o amor, A noite come o subúrbio e logo o devolve,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. ele reage, luta, se esforça,
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, até que vem o campo onde pela manhã repontam
não cantaremos o ódio porque esse não existe, [laranjais
existe apenas o medo, nosso pai e nosso e à noite só existe a tristeza do Brasil.
[companheiro, (Carlos Drummond de Andrade. Obra completa.
o medo grande dos sertões, dos mares, dos Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. p. 112.)
[desertos, Analise os diferentes modos de sentir, pensar,
o medo dos soldados, o medo das mães, o viver e dizer as imagens do país, representa-
[medo das igrejas, dos nos textos.
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
[democratas, 225. (Fuvest)
cantaremos o medo da morte e o medo de depois Não serei o poeta de um mundo caduco.
[da morte, Também não cantarei o mundo futuro.
depois morreremos de medo Estou preso à vida e olho meus companheiros.
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
[e medrosas. Entre eles, considero a enorme realidade.
(Carlos Drummond de Andrade. Nova reunião.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1983. p. 71.) Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
No poema, as únicas ações realizadas pelo a) Identifique o autor do poema e o movi-
homem são cantar o medo e morrer de medo. mento literário a que pertence.
Explique a relação entre essas duas ações e o b) O que se entende por “mundo caduco”?
verso final – “e sobre nossos túmulos nasce- (Fuvest) Texto para a questão 226.
rão flores amarelas e medrosas”.
Não serei o poeta de um mundo caduco.
224. (UFBA) Também não cantarei o mundo futuro.
I. Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Riquezas naturais Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Muitos metaes pepinos romans e figos Entre eles, considero a enorme realidade.
De muitas castas O presente é tão grande, não nos afastemos.
Cidras limões e laranjas Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Uma infinidade Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
Muitas cannas daçucre Não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem
Infinito algodam [vista da janela,
Também há muito paobrasil Não distribuirei entorpecentes ou cartas de
Nestas capitanias [suicídio,
(Oswald de Andrade. Pau-Brasil. 2. ed. São Paulo: Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por
Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 72.) [serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
II.
[os homens presentes,
Revelação do subúrbio
A vida presente.
Quando vou para Minas, gosto de ficar de pé,
[contra a vidraça do carro, 226. a) Indique um verso do texto em que o
vendo o subúrbio passar. autor rejeita uma característica do Romantis-
O subúrbio todo se condensa para ser visto mo.
[depressa, b) Qual é a característica rejeitada?

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227. (UFBA) me apalpou. Não tinha carne
Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte e por cima do vestido
e por baixo do vestido
Eu sou a Moça-Fantasma
era a mesma ausência branca,
que espera na Rua do Chumbo
um só desespero branco...
o carro da madrugada.
Podeis ver: o que era corpo
Eu sou branca e longa e fria,
foi comido pelo gato.
a minha carne é um suspiro
As moças que ainda estão vivas
na madrugada da serra.
(hão de morrer, ficai certos)
Eu sou a Moça-Fantasma.
têm medo que eu apareça
O meu nome era Maria.
e lhes puxe a perna... Engano.
Maria-Que-Morreu-Antes.
Eu fui moça, serei moça
Sou a vossa namorada
deserta, per omnia secula1.
que morreu de apendicite,
Não quero saber de moças.
no desastre de automóvel
Mas os moços me perturbam
ou suicidou-se na praia
Não sei como libertar-me.
e seus cabelos ficaram
Se o fantasma não sofresse,
longos na vossa lembrança.
se eles ainda me gostassem
Eu nunca fui deste mundo:
e o espiritismo consentisse,
Se beijava, minha boca
mas eu sei que é proibido,
dizia de outros planetas
vós sois carne, eu sou vapor.
em que os amantes se queimam
Um vapor que se dissolve
num fogo casto e se tornam
quando o sol rompe na Serra.
estrelas, sem ironia.
Agora estou consolada,
Morri sem ter tido tempo
disse tudo que queria.
de ser vossa, como as outras.
subirei àquela nuvem,
Não me conformo com isso,
serei lâmina gelada,
e quando as polícias dormem
cintilarei sobre os homens.
em mim e fora de mim,
Meu reflexo na piscina
meu espectro itinerante
da Avenida Paraúna
desce a Serra do Curral,
(estrelas não se compreendem),
vai olhando as casas novas,
ninguém o compreenderá.
ronda as hortas amorosas
(Rua Cláudio Manuel da Costa), (Carlos Drummond de Andrade. Sentimento
para no Abrigo Ceará, do mundo. In: Afrânio Coutinho (Org.). Carlos
Drummond de Andrade. Obra completa: poesia.
não há abrigo. Um perfume
Rio de Janeiro: Aguilar, 1964. pp. 102-103.
que não conheço me invade: (Biblioteca Luso-Brasileira. Série Brasileira))
é o cheiro do vosso sono
quente, doce, enrodilhado Sobre o poema, é correto afirmar:
nos braços das espanholas... 01) O texto é permeado por um tom de la-
Oh! deixai-me dormir convosco. mento da moça-fantasma, motivado pela
E vai, como não encontro perda do mundo real.
nenhum dos meus namorados, 02) O espaço físico pelo qual a personagem
que as francesas conquistaram, transita é delimitado na superfície do texto.
e que beberam todo o uísque 04) As expressões “eu sou branca”, “minha
existente no Brasil brancura”, “ausência branca” e “desespero
(agora dormem embriagados), branco” intensificam a ideia de um ser abstra-
espreito os carros que passam to, inorgânico.
com choferes que não suspeitam 08) O discurso lírico da segunda estrofe iden-
de minha brancura e fogem. tifica a figura do fantasma com outros seres
Os tímidos guardas-civis, que se tornaram invisíveis para o mundo real.
coitados! Um quis me prender.
Abri-lhe os braços... Incrédulo, 1 per omnia secula – por todos os séculos.

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16) A voz poética revela desejo de comunhão 64) O final do poema evidencia o restabeleci-
com a natureza, com o sagrado e com os ho- mento da integração da personagem com o
mens. mundo real.
32) O poema lírico revela imagens de tédio, Indique o valor da soma das alternativas cor-
de ódio e de desespero de um ser oprimido, retas e justifique sua resposta.
desejoso de mudanças sociais.

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Respostas
Gabarito dos testes b) As características rejeitadas são: uma forma de
lirismo-amoroso e a natureza idealizada.

208.d 209.d 210.a 211.e 212.c 213.a 227. 15 (01 + 02 + 04 + 08)


214.b 215.b 216.a 217.c 218.b 219.b 01) Correto. Com diversas passagens do texto, o
tom de lamento predomina, como se pode per-
220.c 221.e 222.c ceber em “morri sem ter tido tempo de ser vossa,
como as outras”.
02) Correto. O espaço físico “real”, no poema, é con-
Respostas possíveis para as
firmado pela presença de logradouros (Rua Cláu-
questões escritas dio Manuel da Costa), personagens (guardas-civis),
bem como comportamentos mundanos (“bebe-
223. No contexto do entreguerras, da ditadura de ram todo uísque existente no Brasil”).
Vargas e da afirmação do capitalismo industrial, o 04) Correto. A recorrência do aspecto de “brancura”,
eu lírico enfatiza o medo através das formas versais no poema, denota ideia de espiritualidade e, por-
e do verso final, criticando a apatia política e social tanto, de abstração.
advinda desse sentimento, ressaltando que será
este a herança das futuras gerações. 08) Correto. Fica evidente, na 2ª estrofe, que o eu
lírico compara sua morte com as outras mortes
224. Em “Riquezas naturais”, Oswald de Andrade de pessoas que também não mais fazem parte do
faz uma releitura da literatura de informação da mundo “real” (“Sou a vossa namorada / que mor-
época do descobrimento. Ele enumera as belezas reu de apendicite / no desastre de automóvel / ou
do Brasil daquela época, como os “muitos metaes”
suicidou-se na praia”).
e o “paobrasil”. Drummond, em “Revelação do su-
búrbio”, evidencia a “tristeza do Brasil” de seu tem- 16) Incorreto. Não aparece, no poema, qualquer de-
po; seu olhar recai sobre o subúrbio de Minas Ge- sejo de comunhão com a natureza, com o sagrado
rais, com uma oposição entre o dia e a noite, que e com os homens.
reforça a ideia de luta e tristeza. 32) Incorreto. Não aparecem os sentimentos de
225. a) Carlos Drummond de Andrade – Modernis- desespero e de desejo de mudanças sociais, entre-
mo. tanto são comprovadas as imagens de tédio (“Ago-
b) Mundo passado (e ultrapassado). Drummond está ra estou consolada, / disse tudo que queria”) e ódio
negando o passado nostálgico, romântico, idealizado. (“Como não encontro nenhum dos meus namora-
Seu compromisso é com o presente e com a realidade. dos que as francesas conquistaram”).
226. a) “Não serei o cantor de uma mulher, de uma 64) Incorreto. Fica comprovado, através da última
história, / Não direi os suspiros ao anoitecer, a pai- estrofe, que o eu lírico continua atrelado ao mundo
sagem vista da janela”. metafísico.

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Perfil de cores: Perfil genérico de impressora CMYK
Composição Tela padrão

Impressão e acabamento nas oficinas da

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Fax: (19) 3869-3536
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