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Um novo uso do que não se cura

Marina Recalde

A insônia infantil me levou ao encontro de um analista em meus primeiros anos de vida.


Análise que durou um tempo breve, do qual tenho só alguma imagem difusa, mas que
foi suficiente para o apaziguamento do sintoma. Anos depois, o retorno da insônia,
aterrador e angustiante, potencializado pela morte de meu pai, voltaria a levar-me
novamente à análise, em plena adolescencia.

Análise que se interrompeu ao cabo de uns anos, da qual, contudo, pude extrair um
saldo terapêutico importante, o que inclui o apaziguamento do laço com o Outro
materno, que era atormentador, e o esclarecimento de algumas coordenadas de minha
neurose, que permitiu calar alguns sintomas conversivos profundamente vitorianos que
haviam tomado o corpo. Por outro lado, foi possível resgatar o sentido do humor
proveniente do lado materno, que foi e é fundamental para minha vida e, também, para
minha posição de analista.

Depois, um impasse na relação com o homem amado e o retorno da angústia


devastadora que me tomava o corpo, uma alergia na pele e um sintoma de tremor
incontrolável em determinadas situações, me levaram a eleger um analista, com o qual
transitaria um caminho analítico por mais de vinte anos.

Análise que, como disse em outros testemunhos, se desenvolveu em três períodos (...).
Ela me permite situar um marco para poder pensar o sinthoma, seu uso.
O sinthoma, eu entendo como um novo modo de funcionamento, não fora dos ecos que
permitem avançar, cada vez, na demonstração do impossível de nomear, gozo que
escapa ao significante, mas que ainda assim permite inscrever algo que, sabemos,
apesar de não chegar a nomear o inominável, o toca, o roça, o sopra…

Assim, causada por este trabalho incessante, hoje vou privilegiar os eixos fundamentais
do que foi minha análise e meu passe, neste passar contínuo que se iniciou faz algum
tempo.

1) O sintoma
A insônia havia me levado a uma análise infantil que transcorreu – dizem – em silêncio.
Contudo, a analista pode captar um dizer neste sem palavras com o qual me
apresentava, e o sintoma cessou em pouco tempo. Anos depois, na puberdade, o
sintoma retornaria de um modo feroz, desencadeado pelo desaparecimento violento de
familiares e amigos, em plena ditadura. Um recurso infantil que usava antes, já não era
eficaz. Na infância, ao tentar conciliar o sono, uma tela branca vinha em mina cabeça,
tela que ia enchendo-se de traços negros, provocando-me uma inquietude angustiante
e um tremor que ia aumentando. Só cessava de tremer quando essa tela, agora plena
de coisas pretas, tornava-se novamente branca. Levou muitos anos, e um longo
percurso analítico, para me dar conta da lógica fantasmática que animava este recurso:
fazer que o negro se tornasse branco. Só assim conseguia dormir.

A relação com o Outro materno, era atormentadora. Assim, era sempre posta à prova,
exigida mais e mais, em um ponto inalcançável que me deixava exausta. O tremor tinha
se tornado a resposta frente a situações de angústia, e sem piedade me sacudia,
invadindo tudo e fazendo existir o gozo no corpo. Pouco a pouco, o sintoma foi marcando
o ritmo do laço com o Outro, e também tornando minhas noites, eternas e aterradas,
em noites de insônia.

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Com a adolescência e os primeiros encontros com o outro sexo, um novo sintoma se
agregava ao tremor e também me tomava o corpo: uma alergia na pele, que se tornava
ingovernável.

2) A Fantasia (fundamental)
A história de contrastes já iniciada por meus avós, e que ao longo da minha vida tomará
diversas formas, tomou corpo em um casamento entre uma mulher branca, de classe
média (minha mãe) e um homem de pele escura, proveniente de uma classe pobre
(meu pai). Por razões diversas, os excessos de meu pai haviam-no localizado em um
lugar de desprezo, lugar de dejeto negro. De toda maneira, o amor entre eles adveio e
com ele, vieram os filhos.

O tom negro de minha pele, escura como a de meu pai, sempre foi um motivo de
angústia e desprezo, não só em minha relação com o Outro como – e fundamentalmente
– para mim mesma, Era eu mesma, soube depois e já em análise, que havia me tornado
portadora desse desprezo, imersa em situações que me devastavam, em um anseio
desesperado para branquear-me.

Havia me localizado como uma “negra de merda”, ligando um significante (“negra”) à


injúria frequente que vinha do Outro.

O analista interpreta, remetendo-me ao amoroso apelido paterno: “Negro não era o


apelido de seu pai? Não o chamavam de Negro? Estava pasma. Havia aparecido outra
vertente do negra que não havia notado. O S1 que havia comandado minha vida,
mostrava assim suas duas faces: a face ligada à injúria, e a outra face, nova mas desde
sempre ai, ligada ao amor ao pai.
Sobressalto-me. Meu apelido infantil e adolescente tinha sido, precisamente, “a Negra”.
Ainda hoje, meus amigos da época, que ainda mantenho, me chamam assim. Jamais
havia levado isso em conta.

Foi uma descoberta notável: um S1, negra, que não tem mais um significado unívoco.
Havia aparecido a vertente amável desse nome, não mais ligado à injúria mas ao amor
ao pai, desarticulando o que havia se constituído como frase fantasmática. Com uma
injeção gozosa que eu mesma havia fabricado sem sabê-lo, havia mantido o “negra” de
modo injurioso.

Será também na terceiro período analítico, que este “negra”, significante a partir do
qual havia se tornado legível o programa de gozo na experiência analítica, será enlaçado
em uma nova volta, não mais à injúria nem o amor ao pai, mas a “decidida” que havia
irrompido em uma entrevista com a passadora.

Um lapso, que me provocou risos, permitiu traduzir minha posição de submissão ao


Outro: em vez de pedir a um motorista de taxi que me esperasse, lhe disse: “por favor,
espero que me peça”, o que marcava claramente a posição ativa com que a pulsão
traçava seu trajeto, dando vida a um Outro à medida de um gozo até aqui ignorado.

Um Outro frente ao qual me colocava a sua mercê, disposta a tudo, para acalmá-lo e
preenchê-lo, cuidando para que nada da fantasia se deixasse entrever e assim tentar
garantir seu amor. Era eu que havia me feito olhar assim, produzindo esse sintagma
que iria ordenar fantasmaticamente minha vida e nutrir o sintoma ligado ao dizer
sempre sim e ao que tomava meu corpo, especialmente, as erupções na pele.

O objeto olhar, depois de todas essas voltas, deixa de ter essa consistência e cai.

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Meu inconsciente estava “seco”. Não havia mais associações, nenhuma razão para
continuar. A análise finaliza. O analista se despede: “resta enviar a carta…”. Apresento-
me ao passe. A resposta do cartel é não. Fico desconcertada e angustiada e com raiva,
perturbação que levou algum tempo para sumir: não havia sido nomeada e o
Secretariado me transmitia o que li como uma demanda de algo mais. Era um algo mais
que me levou de volta à análise e teve um efeito interpretativo. Um algo mais que, em
função do último período, me permitiu inscrever de boa maneira o que poderia ter se
inscrito como uma demanda louca e caprichosa que tinha sido tão familiar. A resposta
do cartel marcava que nessa oportunidade não tinha podido concluir com uma
nomeação e considerava desejável um trabalho maior de formalização.

A resposta negativa, foi um “não” que me surpreendeu e que exigiu uma nova resposta,
não mais ligada à devastação por um Outro cruel que sempre diz não, que pede mais,
e que angustia, senão que desta vez colocava à prova se o obtido se verificava no
percurso analítico sustentado por quase vinte anos. Se algo dessa “negra”, agora
decidida, ressoava em mim, com um novo uso, permitindo-me dizer “sim” ou “não”
frente a uma demanda do Outro, então, tinha que voltar à análise para poder localizar
esse “não” e poder concluir. Ir ou não, novamente, ao passe.

Hoje posso afirmar que esta formalização, marcada pela primeira resposta, foi
necessária, porque implicou em dar um passo a mais para produzir a separação final.
Da minha hystória e do analista. Voltar a me apresentar no passe, dar esse passo
suplementar, se decidiu sob as coordenadas que implicam dizer, “sim” ou “não”, sem o
Outro e foi sancionado com uma nomeação.

“Negra decidida” que agora me situa podendo dizer não, mas também dizer sim, de
outra maneira.
Ai onde, irremediavelmente, havia dito sim, para tentar acalmar e preencher o Outro,
esperando que Ele me peça, tal como a fantasia havia alentado, para evitar a suposta
crueldade ou raiva do Outro, adivinho outra tonalidade libidizando de outra maneira o
“negra” anteriormente ligado à injúria, e voltando a eleger o parceiro amado, que soube
acompanhar e alentar estes movimentos.

3) Acalantos que batem no corpo


Às vezes acontece se escutar e repetir, até a saturação, frases e canções infantis, sem
saber o que dizem. Os sem sentidos infantis foram múltiplos (cada um terá os seus)
transmitidos por gerações, que às vezes se repetem como um eco, frases que depois
terão, no melhor dos casos, um sentido que dará um novo significado a essa música
que bate nos corpos, acompanhando a infância.

Assim aconteceu, em meu caso, com a canção do gato e do ratinho, cantiga de ninar
transmitida de uma geração à outra pela via materna:

A cantiga é a seguinte:
“Era um ratinho pequenininho, pequenininho que chegava ao morro por um buraquinho.
Era um gato grande fazendo ron ron, muito aconchegado sobre uma almofada.
Saiu o ratinho, subia na almofada, tinha o pobrezinho, medo de sua sombra.
Quando, de repente, escutou um grande estrondo.
Viu os olhos grandes de um tremendo gato.
E sentiu uma patada sobre seu rabinho, e saiu tremendo todo assustadinho.
E aqui acaba o conto do meu ratinho, que chegava ao morro pelo buraquinho...

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Como podem ver, é uma cantiga que não tem fim, recomeça sempre e que,
inevitavelmente, situa um ratinho trêmulo sendo encurralado por um tremendo gato de
olhar cruel, em um circuito infinito.
Cantiga que ficou no esquecimento, como um lalala sem sentido que, contudo, havia
sido escutado inúmeras vezes, até que foi recuperada na primeira vez que me
apresentei ao passe.

Esta canção nunca havia entrado na análise e sua irrupção surpreendente naquelas
entrevistas com os passadores, colocou-a em cheio no último período analítico.
Isso nunca havia entrado na análise e, contudo, representava muito bem o circuito
pulsional que ali se desdobrava: esse ratinho me representava alerta e trêmulo,
tratando de evitar que o Outro fizesse comigo a seu capricho.

Ratinho negro e aterrorizado, que formou parte de meu estofo gozoso onde havia
estruturado minha neurose infantil.
Finalmente entrou na análise alguns desses significantes primeiros, que haviam me
acalentado, o que me permitiu reduzir, até onde pude, esse núcleo real, encontro
contingente com lalíngua e seus efeitos de gozo no corpo, “puro choque pulsional” sobre
o qual se erigiu a fantasia, transformando o contingente em necessário.

Real sem sentido que havia irrompido no passe e que evidenciava o que estava fora do
sentido na borda das ficções. Ali, justo onde haviam se nutrido o sintoma e a fantasia,
evidenciando a lógica em que ambos haviam se constituído, fundidos nesse real do qual
haviam se nutrido.

Neste ponto quero retomar o comentário de JAM a propósito do testemunho


apresentado por mim no último Congresso. Ali – entre outras questões – marcou, por
um lado, a dimensão do ratinho como uma contra identificação. Por outro lado, localizou
a outra face do Outro materno, a vitalidade que permitiu situar uma identificação a esse
traço (cujo avesso está nesta contra identificação), identificação primeira do lado do
vital.

Isto me levou a perguntar-me pelas consequências de introduzir a vitalidade, ali onde


o tremor havia ficado ligado ao ratinho alerta e aterrorizado, e repensar assim um novo
modo de funcionamento articulado ao “decidida” que havia me nomeado, mas agora
com uma nova volta, nomeando aquele acontecimento de corpo que havia me
atravessado de maneira ainda mais radical.

Vitalidade que tomará diversas e decididas maneiras, matizadas por um humor que me
permitiu suavizar o peso superegóico da neurose. Vitalidade que me permite hoje
colocá-la a serviço de uma vida causada por uma força viva, e não mais a serviço do
uso que a fantasia havia ditado. Vitalidade agora articulada ao uso sinthomático que
me permite enlaçar de outro modo a pulsão, uma vez desligada da fantasia que havia
me atormentado.

Aquela vitalidade havia me constituído, como um golpe de vida, vivificado um corpo,


possibilitando a saída da devastação materna, realçando as duas faces: o tremor
aterrorizado que aquele ratinho representava muito bem e o tremor que agita o corpo,
signo de vitalidade que também tinha vindo do Outro materno.

Laço sinthomático que me permite interrogar se ele estava ali desde sempre: É algo
que se inventa? Algo que se descobre? Ou este novo uso impede de dizer que o que
estava ali, desde sempre, é o que está agora?

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Vitalidade que havia sido anterior à análise, sem dúvida. Contudo, ter podido levar um
percurso analítico até o final, desalojando as coordenadas fantasmáticas e sintomáticas,
que ali também se embebiam, me permitiram dar um novo uso a este nome, presente
ali desde sempre, agitando o corpo.

O novo deste uso permite também dar um novo estatuto ao tremor, não mais de
angústia como a neurose mandava, senão como signo de um corpo vivo, que resiste à
mortificação do significante e que insiste, a cada vez, podendo dar um novo destino à
pulsão que não cessa.

Porque é uma leitura, uma análise transcorre perfurando e fazendo cair os significantes
que, vindos do Outro, produziam mortificação. E o que surge no final é um significante
que não se inscreve mais na cadeia que se enlaça neuroticamente ao Outro.
Penso que não importa se o nome é novo ou não. O novo é o uso.

Como nos indica J-A. Miller: “ou a revelação ou o sinthoma”. Ponto singular, inominável,
ponto de invenção onde o parlêtre conseguiu enlaçar-se de outro modo ao Outro, pela
via deste novo fazer.
Então? É um significante novo? É um uso novo e como tal é um significante novo, ainda
que esteja formado pelas mesmas letras que aquele S1, enlaçado à neurose que o
atravessamento fantasmático permitiu separar? E se é assim? Este significante é o que
permite um novo modo de laço com o Outro, uma invenção singular que não é o Nome
do Pai, agora desligado do padecimento?

O sinthoma entendido assim, dá um nome próprio ao sujeito, dá um nome ao que não


cessa de não se escrever, um nome singular, que não forma classe, que não faz
conjunto mas faz série, e que permite que o significante não mortifique o corpo mas
que o vivifique, enlaçando-o novamente ao Outro. Penso que trata-se sempre de um
nome novo, dado pelo uso, sem dúvida, um lugar novo também.

Em meu próprio caso, ter sido surpreendida nas entrevistas com a primeira passadora
pelo significante “decidida” e o fato de colocá-lo na análise, me permitiu, por um lado,
retomar e evocar uma interpretação – inesquecível – feita no começo da análise. E, por
outro lado, um novo uso daquele “decidida” que agora nomeava outra borda e, que –
em uma nova volta – pode enlaçar-se a essa vitalidade radical.

Não se trata de dar um nome, porque sim. É um nome que, sabemos, não chega a
nomear o inominável, mas em meu caso, posto a trabalho, veio evidenciar que o circuito
pulsional se armou e que agora podia dizer sim ou não.
O dizer sempre sim, se sustentava no esforço de fazer existir a relação sexual,
capturada também na borda que implica dizer sempre sim, frente ao não (neste caso
cruel) do Outro. Definitivamente, é um modo que continua enredado no sim e no não,
na lógica da diferença. Encontrar-se neste lugar, novo, está para além de dizer sim ou
não.
É um dizer sim ou não sem o Outro.

Sustentada neste “há sinthoma” e não no “há relação”, que tentava fazer existir, era
uma zona que implicava um outro dizer e um outro modo de dar, não mais articulado
ao dar o que se tem. Zona que, nas últimas Jornadas da EOL, Éric Laurent denominou,
a propósito de meu testemunho, de indecidível. Isto é, para além do Outro.
Zona onde se inventa a partir de uma enunciação, e que não se articula mais à demanda
insaciável do Outro. Zona que, definitivamente, a cada vez, bordeia um furo. Litoral
entre o simbólico e o real, eco no corpo de uma vitalidade que não cessa.

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Tradução: Ana Lucia Lutterbach Holck

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