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PEDAGOGIAS DAS INFÂNCIAS,

CRIANÇAS E DOCÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
DIRETORIA DE CURRICULOS E EDUCAÇÃO INTEGRAL
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL

PEDAGOGIAS DAS INFÂNCIAS,


CRIANÇAS E DOCÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
PEDAGOGIAS DAS INFÂNCIAS, CRIANÇAS Conselho Editorial:
E DOCÊNCIASNA EDUCAÇÃO INFANTIL Coordenadores:
Prof. Dr. Valdo Hermes de Lima Barcelos
Prof. Msc. Carlos Giovani D. Pasini
Realização:
Membros:
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Prof. Dr. João B. A. Figueiredo
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA Prof. Dr. Elenor Kunz
DIRETORIA DE CURRICULOS E EDUCAÇÃO INTEGRAL Prof. Dr. Wenceslau Leães Filho
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL Profa. Msc. Sandra Maders
Prof. Msc. Rafael Friedrich
Prof. Msc. Élvio de Carvalho
Organização do Livro: Prof. Msc. Alysson do Amaral
Viviane Ache Cancian
Simone Freitas da Silva Gallina
Noeli Weschenfelder

Foto da capa: Alvaro Pouey


Demais fotos ilustrativas entre os artigos: Arquivos da
Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo - UFSM
Capa e Diagramação: Joana Paula Alves
Editoração e Arte Final: Felipe Toniolo
Revisão Ortográica: Fabiano Machado e Carlos Giovani
Delevati Pasini
Impressão e Acabamento: Editora e Gráica Caxias
Tiragem: 7.500 exemplares
O livro Pedagogias das Infâncias, Crianças e Docências na Educação Infantil é
um convite aos interlocutores a busca por uma
Pedagogia que respeite todas as crianças nas suas diferenças.

Vitória Cancian Pinheiro, 8 anos


Vitória Cancian Pinheiro, 8 anos
Agradecimentos

Ao Ministério da Educação/MEC.
À professora Rita de Cássia de Freitas Coelho, Secretaria Geral de Educação Infantil/COEDI/MEC.
À Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.
Ao Centro de Educação.
Ao Núcleo de Desenvolvimento Infantil/NDI.
À Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo/UEIIA.
À Fundação de Apoio à Tecnologia e Ciência /FATEC.
À Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul /UNIJUÍ.
À Universidade de Passo Fundo/UPF.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
À Universidade Federal da Bahia/ UFBA.
Aos Gestores, docentes, crianças, e demais segmentos dos 150 municípios das Unidades do
Proinfância que participaram do projeto de assessoramento.
À Equipe do Proinfância.
Sumário
Sobre os autores ........................................................................................................... 13

Prefácio ......................................................................................................................... 19
Ana Lúcia Goulart Faria

Apresentação ............................................................................................................... 23
Viviane Ache Cancian
Simone Freitas da Silva Gallina
Noeli Valentina Weschenfelder

Pedagogias das Docências na Educação Infantil ............................................ 25

1. Processos formativos e docências na Educação Infantil: indagações do vivido .................. 27


Viviane Ache Cancian

2. O assessoramento em Educação Infantil e a construção de processos coletivos ............... 41


Noeli Valentina Weschenfelder
Denise Motta Marchand
Vladinei Weschenfelder

3. Entre a obra física do Proinfância e a obra político pedagógica ......................... 69


Regina Lúcia Couto de Melo
4. A formação em contexto: a mediação do desenvolvimento proissional praxiológico ........ 87
Júlia Oliveira-Formosinho

5. Um estudo sobre as políticas públicas de formação docente para a Educação Infantil no


Brasil: uma análise das Diretrizes Curriculares do Curso de Pedagogia (2006) e metas do
Plano Nacional de Educação (2001-2010) .............................................................................. 115
Débora Teixeira de Mello

6. Três notas sobre a formação inicial e a docência na Educação Infantil ............................... 131
Maria Carmen Silveira Barbosa

7. A Centralidade do Estágio na Formação de Professores(as) de Educação Infantil .............. 141


Viviane Drumond

8. Práticas pedagógicas na Educação Infantil: do lugar da impossibilidade ao lugar da


possibilidade ............................................................................................................................. 161
Viviane Ache Cancian
Juliana Goelzer

9. A arte e as crianças: caminhos a explorar, linguagens a experimentar e um mundo todo


à espera de ser descoberto .................................................................................................... 179
Agnese Infantino
Franca Zuccoli

10. Traçar, riscar e rabiscar: experiência de desenhar na Educação Infantil ...................... 193
Sandra Regina Simonis Richter

11. Para além dos acalantos: a proposta Pedagógico-musical com bebês .......................... 213
Aruna Noal Correa
12. E se o chapéu da chapeuzinho não fosse vermelho? Um olhar sobre as linguagens infantis 227
Juliana Goelzer
Daliana Löler

Pedagogias das infâncias e crianças ................................................................. 241

13. As crianças e a desaparição das infâncias ....................................................................... 243


Simone Freitas da Silva Gallina

14. Descolonizando nossos pensamentos: por uma pedagogia descolonizada para a


Edução Infantil .......................................................................................................................... 253
Alex Barreiro
Ana Lúcia Goulart de Faria

15. A descolonização de saberes e poderes acerca da infância na formação continuada


de professoras: um diálogo entre a pesquisa acadêmica e o assessoramento pedagógico 269
Noeli Valentina Weschenfelder

16. A menina e as batatas: infância, ilosoia, brinquedo e brincadeira ............................. 281


Tânia de Vasconcelos

17. Contribuições de Emmi Pikler para a educação de bebês nos contextos brasileiros .......... 297
Paulo Sergio Fochi
Carina Cavalheiro
Claudia F. Bergamo Drechsler

18. Educação Infantil – uma relexão acerca do tempo ....................................................... 309


Sueli Salva
19. Relações etárias entre crianças pequenas da Educação Infantil ......................................... 325
Patrícia Dias Prado

20. Relexões sobre a avaliação das crianças na Educação Infantil: escutas, olhares, registros
atentos ...................................................................................................................................... 341
Catarina Moro

21. Formação em contexto para a reconstrução da pedagogia em creche: a relevância perce-


bida de conteúdos e processos .................................................................................................. 351
Sara Barros Araújo
Júlia Oliveira-Formosinho
Sobre os autores

Agnese Infantino Ana Lúcia Goulart de Faria


Professora pesquisadora, ensina “peda- Professora da Faculdade de Educação da
gogia da infância “pelo Departamento de Ciên- Unicamp. Membro do colegiado de doutorado
cias Humanas na Universidade Milano –Bicoc- da Università Milano Bicocca.Coordenadora do
ca. Sua atividade de pesquisa e formação está GEPEDISC linha culturas infantis (grupo de es-
principalmente voltada à organização e proje- tudo e pesquisa em educação e diferenciação
to nas creches. sociocultural).Apoiadora do MIEIB e FPEI.

Alex Barreiro Aruna Noal Correa


Historiador, mestre em educação pela Formada em Pedagogia pela Universida-
Unicamp e doutorando em educação pela de Federal de Santa Maria (UFSM) e Mestre em
mesma universidade. Pertence aos grupos de Educação pela mesma instituição. Possui Dou-
pesquisa GEPEDISC linha culturas infantis (Gru- torado em Educação na linha de Estudos so-
po de estudos e pesquisa em Educação e di- bre Infâncias do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio
ferenciação sociocultural) e GEISH (Grupo de
Grande do Sul (UFRGS). Possui pesquisas com
Estudos Interdisciplinar em Sexualidade Hu-
ênfase na formação de professores, educação
mana). Atualmente, é professor universitário
infantil, bebês e educação musical. Professo-
dos cursos de História e Pedagogia das Facul- ra formadora no Projeto de Assessoramento
dades Integradas Maria Imaculada (Mogi Gua- Proinfância-UFSM; Professora Adjunta do De-
çu-SP) e da rede municipal de ensino de Mogi partamento de Metodologia de Ensino do Cen-
Guaçu (SP). tro da Educação da UFSM; Professora no Curso
de Especialização em Educação Infantil- UFSM;
Avaliadora do curso de Aperfeiçoamento em
Docência na Educação Infantil.

13
Carina Cavalheiro Débora Teixeira de Mello
Pedagoga (Unisinos) e Especialista em Doutora em Educação pela UNICAMP,
Educação Infantil (Unisinos). professora do Departamento de Administra-
ção Escolar do Centro de Educação da UFSM.
Catarina Moro Pesquisadora nas áreas de Políticas Públicas e
Professora do Departamento de Teoria Educação Infantil, Gestão Educacional e Forma-
e Prática de Ensino, da UFPR. Pesquisadora do ção de Professor. Vice-diretora da Unidade de
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil Ipê Amarelo/UFSM. Coorde-
Educação Infantil (NEPIE) na mesma Univer- nadora adjunta do Projeto do Assessoramento
sidade. É formada em Psicologia, Especialista Proinfância/UFSM. Coordenadora e docente
em Educação Infantil, Mestre em Psicologia do Curso de Especialização em Docência na
da Infância e da Adolescência e Doutora em Educação Infantil/UFSM. Coordenadora adjun-
Educação. Tem como temas de interesse: prá- ta do Curso de Aperfeiçoamento de Docência
ticas educativas para/com a pequena infância, na Educação Infantil.
avaliação de contexto e políticas públicas em
educação infantil. Coordena a ReVirEI - Revista Denise Motta Marchand
Virtual de Educação Infantil. Pedagoga (PUC/RS), Especialista em
Educação Infantil (UFRGS). Atuou como Profes-
Claudia F. Bergamo Drechsler sora Formadora no Projeto de Assessoramento
Licenciada em Educação Física (Unisi- ao Proinfância entre os anos de 2013 e 2014.
Exerce o cargo de Professora de Educação In-
nos), Especialista em Educação Infantil (Unisi-
fantil junto à Rede Municipal de Ijuí.
nos) e professora de educação infantil da rede
pública de Gramado – RS.
Franca Zuccoli
Professora pesquisadora da Universidade
Daliana Löler
Milano Bicocca, Departamento de Ciências Hu-
Professora do Ensino Básico, Técnico e
manas para a formação “Ricardo Massa”, é do-
Tecnológico na Unidade de Educação Infantil
cente de Didática geral e Educação da imagem.
Ipê Amarelo/Universidade Federal de Santa Foi coordenadora da seção didática da Fundação
Maria. Doutoranda em Educação pela Univer- Arnaldo Pomodoro e atualmente colabora com
sidade Federal de Pelotas. Assistente Pesqui- algumas instituições de museu, desenvolven-
sa no Projeto de Projeto do Assessoramento do pesquisa nacional e internacional, entre elas
Proinfância/UFSM. TDMEducation, do Museu Triennale Design de

14
Milão. É presidente da Opera Pizzigoni. Publicou Juliana Goelzer
pela Edizioni Junior os seguintes livros: em 2010, Professora do Ensino Básico, Técnico e
“Dalle tasche dei bambini… Gli oggetti, le storie, Tecnológico e Diretora do Departamento de
la didattica” e, em 2014, “Didattica tra scuola e Ensino Pesquisa e Extensão na Unidade de
museo. Antiche e nuove forme delsapere”. No Bra- Educação Infantil Ipê Amarelo, UEIIA/UFSM.
sil, publicou: Formar-se com arte entre museu e Doutoranda em Educação pela Universidade
pré-escola; Educação e Realidade. v. 40,n.4,2015;
Federal de Santa Maria. Assistente Pesquisa no
com AgneseInfantino, Revista Eventos Pedagó-
Projeto de Projeto do Assessoramento Proin-
gicos, A arte como ferramenta de exploração e
fância/UFSM.
conhecimento, Unemat, v. 6, n 3, 2015.

Júlia Oliveira-Formosinho Maria Carmen Silveira Barbosa


Professora da Universidade Católica Por- Graduada em Pedagogia pela Univer-
tuguesa. Vice-presidente da Associação Criança, sidade Federal do Rio Grande do Sul (1983),
onde dirige o Centro de Investigação. Membro especialista em Alfabetização em Classes Po-
da Direção da EuropeanEarlyChildhoodEdu- pulares pelo GEEMPA (1984) e em Problemas
cationResearchAssociation(EECERA) e coorde- no Desenvolvimento Infantil pelo Centro Li-
nadora dos números monográicos da revista dia Coriat (1995), mestre em Planejamento
desta associação europeia. É consultora do pro- em Educação pela Universidade Federal do
jeto Contextos Integrados de Educação Infantil, Rio Grande do Sul (1987), Doutora em Educa-
sedeado na Faculdade de Educação da Univer- ção pela Universidade Estadual de Campinas
sidade de S. Paulo. Membro da Direção do Ins- (2000) e Pós-doutora pela Universitat de Vic,
tituto Latinoamericano de Estudios sobre laIn- Catalunya, Espanha (2013). Atualmente, é Pro-
fancia (ILADEI). Tem publicado a nível nacional fessora Associada da Faculdade de Educação
e internacional nas temáticas da pedagogia da da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
infância, formação de professores, desenvolvi- e atua como Professora Permanente no Progra-
mento proissional e investigação praxeológica. ma de Pós-Graduação em Educação, na Linha
Acaba de editar, com Chris Pascal, o livro Asses- de Pesquisa: Estudos sobre as Infâncias e como
sment and evaluation of transformation in ear- Professora Colaboradora no Programa de
ly childhood. Este é o primeiro livro da EECERA Mestrado em Educação da UNISC na Linha de
Book Series editado pela Routledge e que será Pesquisa Aprendizagem, Tecnologias e Lingua-
em breve traduzido para o Brasil. Contacto: jf- gens na Educação. Foi coordenadora do GT07
formosinho@gmail.com

15
- Educação de crianças de 0 a 6 anos, da Anped Ciências Sociais e Educação pela FE-UNICAMP.
e participou do Comitê Cientíico da mesma Atuou como professora de cursos de especiali-
entidade. É editora da Revista Pátio - Educação zação em Educação Infantil, professora bolsista
infantil e participa como avaliadora em outras do curso de Pedagogia da UNICAMP, professo-
revistas cientíicas. Atua como Líder de Pesqui- ra substituta no curso de Pedagogia da UFSC.
sa Grupo de Estudos em Educação Infantil e Envolvida com a formação de professoras(es)
Infância - GEIN - e como orientadora de teses da Educação Infantil, desenvolve ensino, ex-
e dissertações nos seguintes temas: educação tensão e pesquisa com crianças pequenas e
básica, educação infantil, infância, formação de bem pequenas nas temáticas das linguagens
professores, creche, pré-escola e alfabetização. e culturas infantis, nos campos da Pedagogia
Participa do Movimento Interfóruns de Educa- da Infância e das Ciências Sociais, em especial,
ção Infantil - MIEIB. na Antropologia da criança e na Sociologia da
infância, na interface com as Artes na primeira
Noeli Valentina Weschenfelder infância.
Licenciada em Geograia e Pedago-
gia (UNIJUÍ), Mestrado em Educação (UFSM), Paulo Sergio Fochi
Doutorado em Educação (UFRGS); Professora Pedagogo, especialista em educação
do Programa de Pós-Graduação em Educação infantil, mestre em educação na linha estudos
nas Ciências: Mestrado e Doutorado (UNIJUÍ). sobre infância (UFRGS) e doutorando em edu-
Supervisora de Pesquisa do Projeto de Asses- cação na linha de didática e formação de pro-
soramento Proinfância/UFSM. Coordenado- fessores (USP). É professor do curso de peda-
ra Adjunta do Curso de Aperfeiçoamento em gogia na Unisinos e PUC-RS, coordena o curso
Educação Infantil. de Especialização em Educação Infantil da Uni-
sinos, atua como consultor da educação infan-
Patrícia Dias Prado til na base nacional comum curricular do MEC,
Professora Doutora da Faculdade de participa do grupo de estudos Ciei - Contextos
Educação - USP/SP, junto ao Depto. de Metodo- Integrados de Educação Infantil/USP/CNPQ.
logia de Ensino e Educação Comparada - EDM, Foi professor de crianças e atua na formação
área da Educação Infantil. Possui graduação de professores
em Psicologia pela UNESP - Bauru/SP, mestrado
e doutorado em Educação junto ao Depto de

16
Regina Lúcia Couto de Melo de Investigação e Inovação em Educação (ESE-
Consultora do Proinfância no Rio Grande -IPP) e do Centro de Investigação em Estudos
do Sul no período de outubro 2010 a outubro da Criança (UM). Tem investigado nas áreas
de 2011. Integrante da equipe avaliadora da im- da pedagogia da infância, qualidade dos con-
plantação de escolas inanciadas com recursos textos de creche e investigação praxeológica.
do Proinfância em Minas Gerais ( 2013/2014). Contacto: saraujo@ese.ipp.pt
Mestranda, pesquisadora do Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas sobre Relações Étnico-Raciais Simone Freitas da Silva Gallina
e Ações Airmativas na UFMG( 2014/2015). Licenciada em Filosoia pela Universi-
dade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre
Sandra Regina Simonis Richter em Educação/UFSM, Doutora em Educação
Sandra Regina Simonis Richter, licencia- pela Universidade Estadual de Campinas(UNI-
da em Educação Artística - Artes Plásticas e CAMP), Docente do Centro de Educação no De-
doutora em Educação pela Universidade Fede- partamento de Administração Escolar/UFSM.
ral do Rio Grande do Sul, professora do Depar- Supervisora e Docente do Curso de Especiali-
tamento de Educação e do Programa de Pós- zação em Educação Infantil/UFSM; Docente do
-Graduação em Educação da Universidade de Curso de Especialização em Gestão Educacio-
Santa Cruz do Sul, vice-lider dos grupos de pes- nal/UFSM. Supervisora de Pesquisa do Projeto
quisa Estudos Poéticos UNISC/CNPq e LinCE de Assessoramento Proinfância/UFSM.
-Linguagem, Cultura e Educação UNISC/CNPq.
Sueli Salva
Sara Barros Araújo Pedagoga, Especialista em Dança, Dou-
Professora-Adjunta da Escola Superior tora em Educação pela UFRGS, Professora do
de Educação do Instituto Politécnico do Porto Centro de Educação da UFSM, ligada ao Depar-
(ESE-IPP), onde coordena o Mestrado em Edu- tamento de Metodologia do Ensino, professora
cação Pré-Escolar. Doutorada em Estudos da do Programa de Pós-Graduação em Educação
Criança pela Universidade do Minho (UM), com da UFSM, Pós-Doutora pela Universitàdegli
licenciatura e mestrado em Psicologia pela Studi di Milano. Formadora no Projeto de As-
mesma universidade. Membro da Direção da sessoramento Proinfância/UFSM.
Associação Criança. Investigadora do Centro

17
Viviane Ache Cancian de Atendimento Especializado em DST-HIV/
Pedagoga e Mestre pela UNIJUÍ e Dou- AIDS e junto à Coordenadoria de Políticas para
tora em Educação/UFC. Professora Adjunta as Mulheres do Município de Ijuí.
do Departamento de Metodologia do Ensino
do Centro de Educação da UFSM. Pesquisado- Tânia de Vasconcellos
ra nas áreas de Educação, Educação Infantil, Pedagoga formada pela UERJ, Mes-
Gestão Educacional e Formação de Professor. tre em Educação pela PUC-Rio e Doutora em
Diretora da Unidade de Educação Infantil Ipê Educação pela UFF. Na Universidade Federal
Amarelo/UFSM. Presidente Nacional Unidades Fluminense, é professora da Faculdade de Edu-
Universitárias de Educação Infantil. Coorde- cação lotada no Departamento de Sociedade,
nadora Geral do Projeto do Assessoramento Conhecimento e Educação, atuando na área
Proinfância/UFSM. Coordenadora Adjunta e de Educação Infantil. No Programa de Pós-Gra-
docente do Curso de Especialização em Do- duação em Educação - PPGE está vinculada ao
cência na Educação Infantil/UFSM. Coordena- campo de conluência “Linguagem, Cultura e
dora e docente do Curso de Aperfeiçoamento Processos Formativos”. Dedica-se nos últimos
de Docência na Educação Infantil. anos à pesquisa das relações entre Infância e
Cultura, particularmente quanto à produção
Viviane Drumond da infância e à produção do lugar; quanto ao
Doutora em Educação pela Faculda- jogo, brinquedo e brincadeira na perspectiva
de de Educação da Universidade Estadual de do patrimônio e quanto ao diálogo entre a in-
Campinas – UNICAMP, professora do Curso de fância e a ilosoia. UFF - Núcleo de Estudos de
Pedagogia da Universidade Federal do Tocan- Infância e Cultura.
tins - UFT/Campus Miracema.

Vladinei Roberto Weschenfelder


Psicólogo (UFRGS), Especialista em Psi-
cologia Clínica (UFRGS). Atuou como Assisten-
te de Pesquisa no Projeto de Assessoramento
ao Proinfância entre os anos de 2013 e 2014.
Exerce o cargo de Psicólogo junto ao Serviço

18
Prefácio

Em tempos difíceis como estamos vivendo no momento, esta coletânea de artigos organizados
por Viviane Ache Cancian, Simone Freitas da Silva Gallina e Noeli Weshenfelder vem na hora certa e
traz uma exposição dos nossos acertos e um convite à relexão para essas pesquisas, teorias e práticas
pedagógicas da educação infantil que vimos desenvolvendo, voltadas a uma pedagogia da educação
infantil descolonizada e emancipatória. Mesmo sendo difícil interromper o descaso com a criança pe-
quena e seu direito à educação infantil, à arte, à brincadeira tão bem expresso na vinheta de Frato
(1982), nada melhor então do que delirar com o saudoso Eduardo Galeano.

TONUCCI, Francesco (FRATO). A solidão da criança. Campinas,


São Paulo: Autores Associados, 2008.

19
“Que acham se delirarmos por um curto promessas. A solenidade deixará de acreditar que
espaço de tempo? Que acham se ixarmos nossos é uma virtude, e ninguém, ninguém levará a sério
olhos mais além da infâmia? Para imaginarmos alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mes-
outro mundo possível. O ar estará limpo de todo mo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos
veneno, que não venha dos medos humanos, e poderes, e nem por falecimento, nem por fortuna
das humanas paixões. Nas ruas, os carros serão se tornará o canalha em um virtuoso cavaleiro. A
esmagados pelos cães. As pessoas não serão diri- comida não será uma mercadoria, nem a comu-
gidas pelos carros. Nem serão programadas pelo nicação um negócio, porque a comida e a comu-
computador. Nem serão compradas pelos super- nicação são direitos humanos. Ninguém morrerá
mercados. Nem serão também assistidas pela TV. de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
A TV deixará de ser o membro mais importante As crianças de rua não serão tratadas como se fos-
da família, e será tratada como o ferro de passar sem lixo, porque não existirão crianças de rua. As
ou a máquina de lavar roupa. Será incorpora- crianças ricas não serão tratadas como se fossem
do aos códigos penais o crime de estupidez para dinheiro, porque não haverá crianças ricas. A edu-
aqueles que o cometem. Por viver para ter ou para cação não será privilégio daqueles que possam
ganhar, ao invés de viver para viver simplesmente. pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem
Assim como canta o pássaro sem saber que can- não possa comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs
ta, e como brinca a criança sem saber que brinca. siamesas condenadas a viver separadas, serão no-
Em nenhum país irão prender os rapazes que se vamente juntas de volta, bem grudadinhas, costas
recusam a cumprir o serviço militar, senão aqueles com costas. Na Argentina, as loucas da “Plaza de
que queiram servi-lo. Ninguém viverá para traba- Mayo” serão um exemplo de saúde mental, por-
lhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os que elas se negaram a esquecer nos tempos de
economistas não chamarão mais o nível de vida amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja cor-
ao nível de consumo, nem chamarão de qualida- rigirá algumas erratas das escritas de Moisés, e o
de de vida a quantidade de coisas. Os cozinheiros sexto mandamento mandará festejar o corpo. A
não acreditarão que as lagostas adoram serem Igreja também realizará outro mandamento que
fervidas vivas. Os historiadores não acreditarão Deus havia esquecido: “Amarás a natureza da
que os países adoram serem invadidos. Os políti- qual fazes parte”. Serão relorestados os desertos
cos não acreditarão que os pobres adoram comer do mundo e os desertos da alma. Os desesperados

20
serão esperados, e os perdidos serão encontrados,
porque eles são os que se desesperam de muito,
muito esperar, e eles se perderam de muito, muito
procurar. Seremos compatriotas e contemporâ-
neos de todos os que tenham vontade de beleza
e vontade de justiça, tenham nascido quando
tenham nascido e tenham vivido onde tenham
vivido, sem que importem nem um pouquinho
as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos
imperfeitos, porque a perfeição continuará sendo
o chato privilégio dos Deuses, mas neste mundo,
neste mundo trapalhão, seremos capazes de viver
cada dia como se fosse o primeiro e cada noite
como se fosse a última”.
GALEANO, Eduardo.
Direito ao delírio, 2011. :<http://www.you-
tube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ

Ana Lúcia Goulart de Faria


Inverno de 2015

21
Apresentação

Nesse livro encontramos textos que problematizam imagens de pensamento sobre as infâncias,
as crianças e as docências. Imagens possíveis que aparecem nos textos que compõem esse livro, arti-
culando-se a partir das fronteiras temáticas entre: pedagogia e infâncias e crianças e docências e edu-
cação infantil. Textos nos quais as escritas airmam os tensionamentos oriundos das investigações, das
práticas de formação e autoformação, que constituíram o processo das ações do Projeto de Cooperação
Técnica irmada entre o Ministério de Educação (MEC), Diretoria de Currículo e Educação Integral, Se-
cretaria de Educação Básica (SEB), e Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI) e a Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM), através do Núcleo de Desenvolvimento Infantil- NDI/CE e da Unidade de
Educação Infantil Ipê Amarelo- UEIIA. Projeto realizado em parceria com a Universidade do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e com a Universidade de Passo Fundo (UPF).
Os artigos são produções que resultam desse processo de assessoramento do projeto através das
leituras, dos estudos, dos seminários e das teleconferências. São um convite para pensar a descoloniza-
ção da Pedagogia das infâncias e crianças, partindo da interlocução com os saberes e fazeres propostos
nos cursos de formação de professores na Universidade. Sendo que um dos propósitos colocados aqui
é o de estabelecer os elementos que permitem problematizar a racionalidade que instituí e constituí
o currículo, uma racionalidade técnica-instrumental colonizadora do espaço escolar e que se expressa,
por exemplo, na lógica da aplicabilidade de atividades pensadas a priori.
Uma questão importante é a que se refere à alteridade nos processos de formação, pois encontra-
mos registros de uma colonização da racionalidade ao mundo escolar não só apenas no que se refere
à produção de conhecimento, mas também em relação ao poder estabelecido, aos casos em que a vio-
lência simbólica cristaliza as relações no contexto das práticas e vivências escolares. Essas vivências que
iniciam muitas vezes nos processos formativos tocam e constituem docentes, que passam a colonizar
infâncias e crianças em sala nas instituições de Educação Infantil

23
Nesse sentido, os textos também se caracterizam como o espaço no qual se problematiza as con-
cepções que algumas vezes negam a possibilidade da escuta das vozes das crianças, negando assim a
possibilidade de ouvir, sentir, perceber, reconhecer aqueles que possam ser sujeitos de seu conhecimento.
As linhas traçadas nesse livro são encontros com afetos que tratam da Pedagogia e seus disposi-
tivos, suas práticas, suas experimentações na ordem do vivido das crianças, suas infâncias e as relações
dos docentes com suas atividades epistêmicas-práticas. Com os afetos que os sujeitos experimentam
mediante uma Pedagogia em devir, uma aprendizagem da descoberta das crianças e do universo das
infâncias.
Pedagogias das infâncias, crianças e docências na educação infantil airma a importância do diá-
logo em torno das práticas de colonização das infâncias que VIVEM a escola de educação infantil em
detrimento de processos de emancipação. É um movimento que atravessa as fronteiras dentro e fora
das instituições, das condições subjetivas vividas pelos sujeitos. Por muitas pedagogias que respeitem as
diferenças que a vida produz em suas mais diversas formas sociais, políticas e culturais.

Viviane Ache Cancian


Simone Freitas da Silva Gallina
Noeli Weschenfelder
Primavera de 2015

24
PARTE I

PEDAGOGIAS DAS DOCÊNCIAS


NA EDUCAÇÃO INFANTIL
1
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

Viviane Ache Cancian

Um processo de muitos desaios uma (pre) ocupação com os processos formati-


vos que tenham relexo no contexto escolar, na
A atuação proissional na Universidade sala de aula. Um sonho, uma utopia, ou ações e
nos convida na docência a enfrentarmos desa- propósitos que podem se concretizar.
ios diários que nos tocam, nos transformam e Ao assumirmos o Projeto assessoramen-
nos mostram, no dizer de Gadamer (1998), a “im- to e acompanhamento pedagógico às redes e
portância da abertura para diálogo”, e o quanto sistemas de ensino na implementação do Proin-
precisamos sair do lugar de quem tem um saber fância em municípios da região centro, noroeste
para nos colocarmos em diálogo com a realida- e norte do Estado do Rio Grande do Sul no inal
de, com o contexto que transcende os muros de 2012, assumimos junto esse compromisso
da instituição. Falo enquanto alguém que já ex- de abertura para dialogarmos com 150 muni-
perimentou e vivenciou diferentes realidades, cípios das sobreditas, que receberam Unidades
experiências que me tocaram, marcaram. Na Proinfância1 e já estavam estas em funciona-
condição ora de professora da rede municipal mento, em fase implementação ou em fase de
de Ijuí, ora de coordenadora geral da secretaria construção. Para Regina Mello, (2011) “tinham
de educação de Ijuí, ora de consultora da for- obra física da Unidade, agora faltava a constru-
mação de professores no Estado do Ceará, me ção da obra pedagógica”(p.8).
permitiram a constituição de uma sensibilidade
no que se refere às questões da minha docên- 1 Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de
Equipamentos para a rede Escolar Pública de Educação Infantil-
cia. Essas experiências fazem com que eu tenha Proinfância.

27
Viviane Ache Cancian

Trata-se de um projeto de Cooperação rante todo o meu processo formativo, é o que


técnica irmado entre a Secretaria de Educação me tocou2, me constitui docente.
Básica (SEB), Coordenadoria de Educação In- Muitos foram os desaios postos junto
fantil (COEDI), Ministério de Educação (MEC), e aos municípios. Inicialmente, foi preciso reali-
a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), zar a formação da equipe de assessoramento.
executado pelo Núcleo de Desenvolvimento Tínhamos nessa equipe de assessoramento três
Infantil-NDI/CE em parceria com a Unidade de grupos diferentes, grupos que pertenciam a três
Educação Infantil Ipê Amarelo, com a Universi- Universidades, UNIJUÍ, UPF, UFSM e os que não
dade do Noroeste do Estado do Rio Grande do eram professores dessas Universidades eram
Sul-UNIJUÍ, com a Universidade de Passo Fun- alunos da Pós-graduação ou egressos. Territó-
do - UPF. Destaca-se a importância de projetos rios geográicos, concepções teóricas, que mar-
que aproximam um grupo de professores dou- cavam as diferenças dentro do próprio grupo,
tores, mestres, especialistas das universidades portanto, estava dado o primeiro desaio.
com os proissionais docentes, gestores das Com as atividades de formação da equi-
unidades do Proinfância e gestores das Secre- pe em andamento, tínhamos o desaio de mo-
tarias Municipais de Educação. bilizar e sensibilizar os municípios para a parti-
Ter inanciamento e a possibilidade de cipação no projeto de assessoramento técnico
realizar um trabalho de assessoramento não é pedagógico, para sua efetiva adesão com res-
relevante apenas para os municípios, mas prin- ponsabilidade. Os polos se organizaram, con-
cipalmente para a Universidade, que se renova vidando os municípios, através de associações
e se aproxima da comunidade externa através municipais, conselhos, fóruns de Educação In-
da extensão, e isso, por sua vez, vem acompa- fantil, reuniões, e a equipe de Ijuí visitou todos
nhado pela pesquisa, produção de conheci- os seus municípios, para a sensibilização.
mentos, que têm relexos diretos nos cursos de Organizamos o projeto com os ciclos for-
formação de professores. Penso que a exten- mativos, visitas técnicas, devolutivas, encontro
são cumpre com a função social das Universi- de gestores, seminário inicial e inal, roda de
dades e é de extrema relevância. Desse modo,
como egressa da UNIJUÍ compreendi que essa
premissa é importante, pois era uma prática
dessa universidade que vivi intensamente du- 2 LARROSA, Jorge. Notas da experiência e saber da expe-
riência. In: Revista RBE. Nº 19, Jan/Fev/Mar/Abr 2002. p.20-28.

28
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

conversas3. É importante destacar que em cada para que eles se comprometessem propondo
polo (Santa Maria, IJuí, Passo Fundo) tínhamos planejamentos, planos de ação para suprir as
municípios referência. Uma média de 4 - 5 muni- demandas e projetar as mudanças necessárias.
cípios referência4 por polo, pois não queríamos De acordo com Campos (2013), as re-
formações com grande número de pessoas, for- formas educacionais, as metas das reformas
mação em massa, e porque entendíamos que atravessam contradições e descompassos sem
por termos municípios distantes dos polos isso muitas vezes garantias de recursos materiais e
facilitaria a locomoção e a participação. humanos, mas “é importante reconhecer que
O projeto realizou os ciclos formativos as reformas com todas as limitações e contra-
para docentes, gestores e equipes das SMEDs dições tiveram méritos de ajudar a incluir a
dos 150 municípios, com temáticas emergen- educação na agenda política e dar a visibilida-
tes. Realizamos uma pesquisa quali-quantita- de social a questões que antes estavam apenas
tiva para caracterização do acesso à educação restritas ao campo especíico de atuação dos
infantil, que incluía levantamento dos dados educadores” (p.5).
do IBGE, TCE/RS, INEP, Censo Escolar 2012, de- Nesse sentido o projeto de assessora-
manda e a oferta (atendimento) por faixa etária mento técnico-pedagógico em todos os mo-
dos 150 municípios formação de professores, mentos se constituiu em ações de formação
atendimento das metas do PNE (2014). Os da- e de articulação necessária que perpassaram
dos foram trabalhados ao longo do processo estudos dos documentos legais com inalida-
de assessoramento, com o objetivo de conhe- de de criar movimentos que potencializassem
cer as realidades, os contextos, e de trazer para a aprendizagem, porque não dizer, criar formas
o debate os reais problemas dos municípios, a partir dos problemas vivenciados e experien-
ciados pelas unidades, gestores, professores,
pais, crianças-infâncias. Queríamos contribuir
3 Para conhecimento das ações desenvolvidas no projeto de
assessoramento recomenda-se a leitura do livro: Docências na para o fortalecimento das políticas públicas
Educação Infantil: currículo, espaços e tempos. municipais de Educação Infantil com a imple-
4 Polo de Santa Maria - Santa Maria (14 municípios); Estrela
(17 municípios); Frederico Westphalen (7municípios); Santa Cruz
mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais
(15 municípios) Polo Ijuí - Ijuí (12 municípios); Tenente Portela de Educação Infantil (Res. CEB/CNE 05/2009)
(8 municípios); Santa Rosa (14 municípios); Santo Augusto (11
municípios) Polo Passo Fundo - Passo Fundo (21 municípios);
no cotidiano das instituições.
Erechim (16 municípios); Não–me–toque (9 municípios); Soleda- Paralelamente, estabelecemos critérios
de (7 municípios).
para realização das visitas técnicas e decidi-

29
Viviane Ache Cancian

mos por 8 unidades por polo, duas para cada pesquisa e para as unidades Proinfância, à medi-
município referência. Após as visitas técnicas, da que lidar com as questões que depõem con-
planejamos a retomada das questões obser- tra um trabalho que respeite as crianças, suas
vadas e desse modo retornamos às unidades infâncias, demanda abertura e compreensão da
para realizar as devolutivas junto aos professo- natureza da docência e das práticas.
res e gestores. Esse processo está diretamente Após um ano de projeto, decidiu-se por
relacionado com a compreensão de que não trabalhar a formação inspirados na perspecti-
é possível somente constatar o modo como va teórica de Oliveira-Formosinho & Kishimo-
as práticas se efetivam, quais docências, e sim to(2002), acerca da formação em contexto5
estabelecer um diálogo que ao mesmo tempo nos 8 municípios que receberam visitas técni-
seja formativo, e que os municípios pudessem cas por polos e devolutiva. Nas formações, as
compreender o processo que estávamos pro- Unidades receberam professores formadores,
pondo desencadear. coordenadores, supervisores e assistentes de
Precisavamos discutir que práticas pe- pesquisa6 para trabalhar junto aos diferentes
dagógicas estavam presentes nas Unidades de segmentos das Unidades, equipes pedagógi-
Educação Infantil, se eram práticas numa pers- cas das SMEDs, com questões que emergiram
pectiva assistencialista, que não investiam em nas visitas e devolutivas nessas Unidades. Cada
proissinais com formação, em docentes nas unidade organizou o tempo para essas forma-
turmas, em detrimento de práticas com prois- ções de acordo com suas possibilidades. Saí-
sionais qualiicados e formados para atuar na mos muitas vezes para trabalhar com todos os
Educação Infantil, pois tais posturas políticas sujeitos envolvidos, nesses momentos tivemos
nos municípios teriam implicações diretas nos a participação de todos.
processos formativos que estávamos dela- Percebemos, ao realizarmos a avaliação
grando. De acordo com Campos (2013), (...) “se e retomada das ações do projeto, e também
as reais condições de implementar as práticas principalmente quando houve a necessidade
desejadas não são situadas em um determina- de alguns membros da equipe do polo de San-
do contexto, há um sério risco de que perma- ta Maria interromperem sua participação, que
neçam apenas como meta ou projeto” (p.41).
Esse momento da devolutiva delagrou 5 Formação em contexto rejeita a pedagogia tradicional e
propõe pedagogia participativa, no cotidiano do fazer pedagógico.
novos desaios e exigiu um diálogo intenso para 6 É importante destacar que por mais que cada participante
as equipes formativas, para as assistentes de do projeto não tivesse as mesmas atribuições todos participa-
vam das formações em contexto.

30
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

após um ano de projeto, estávamos privile- respeita as crianças, as infâncias, assim como
giando os gestores, que por vários motivos não todos os segmentos nela envolvidos.
assumiram o repasse da formação para o con- Nesse sentido, poderíamos nos pergun-
junto das professoras. Além disso, havia des- tar até quando teremos pessoas sem formação
continuidade e rotatividade na participação e condições de assumir determinados cargos
dos docentes nas atividades formativas, além somente por interesses partidários? Enquanto
disso, as Unidades e as SMEDS mudam cons- tivermos gestores que assumem esses lugares
tantemente os quadros de docentes. Este con- e não se interessam nem em ler e conhecer as
junto de fatores não garantia que o proposto e normativas nacionais, as políticas e as propos-
dialogado chegasse até a sala com as crianças. tas nacionais de educação, como consegui-
Tivemos embates e enfrentamentos com remos aproximá-las das Unidades e trazê-las
secretários de educação por solicitação das di- para o debate junto aos docentes, sem proje-
retoras, devido às trocas de professores, para tos externos, como esse de assessoramento?
que os professores continuassem junto às suas
escolas, pois haviam participado de um ano de Muitas indagações? Entre elas quais
projeto e quando estavam conseguindo efe- processos formativos? Quais políticas
tuar mudanças, eram removidas para outras formativas?
unidades, inclusive para o ensino fundamen-
tal e vindo professores do ensino fundamental Compreender o vivido e os desaios que
para Educação Infantil. se colocam nas Unidades de Educação Infantil,
Essa é uma prática das secretarias de nas docências, demanda pensar em políticas
educação, realizar as trocas dos docentes das formativas voltadas para os docentes da Edu-
escolas sem o desejo desses, sem respeitar tra- cação Infantil e da Educação Básica, implica em
jetórias, muitas vezes por questões partidárias. investimentos que qualiiquem esses proces-
Essas questões mostram uma falta de com- sos formativos, implica em Projetos de Coope-
preensão de muitos gestores que ocupam es- ração Técnica entre o MEC e as Universidades,
paços de poder e decisão, pois seus cargos são em políticas que invistam em projetos que
muitas vezes partidários, o que resulta na falta busquem qualiicar a prática.
de compreensão do que signiica educação, Ressalta-se aqui a necessidade de políti-
educação infantil, a gestão de uma Secretaria cas formativas que vão além de programas e
de Educação, de uma escola da infância, que projetos anuais, com formações em massa, que

31
Viviane Ache Cancian

trabalhem apenas com índices de professores Os ciclos formativos, como já citado aci-
que receberam a formação, com quantitativos ma, focaram temáticas emergentes, tais como:
e, sim, políticas voltadas para a formação em concepções de infância e suas implicações
contexto, para a formação em exercício, nos para o trabalho pedagógico junto às crianças;
desaios da proissão, que subsidiem os do- as crianças e sua diversidade nas culturas con-
centes a serem sujeitos que aprendem sem- temporâneas em diferentes tempos e espaços
pre, que estudam suas práticas, que realizam na educação infantil nas Unidades do Proin-
rupturas e aprendizagens na Educação Infantil, fância; linguagens infantis; as especiicidades
que criem territórios das infâncias, muitas in- do trabalho com bebês e com crianças de 4-6
certezas e indagações. anos; leitura e escrita; currículo e planejamen-
Além disso, implica em políticas que te- to; avaliação; Projeto Político-Pedagógico.
nham continuidade, que apóiem a garantia da Durante todo o processo que se esten-
especiicidade das infâncias, das crianças; que deu até maio de 2015, buscamos realizar um
garantam projetos dessa envergadura, proje- processo formativo que desaiava os sujeitos
tos de assessoramento técnico pedagógico, e envolvidos para que pudessem partir de suas
Cursos de Especialização e Aperfeiçoamento práticas, da observação e da ação, da com-
em docência na Educação Infantil. Portanto, a preensão dos contextos, se apropriando do
continuidade de ações e diálogos em conjunto trabalhado realizado nas formações para levar
com as Universidades, com fóruns buscando a aos seus pares nas Unidades do Proinfância, a
formulação e implementação das políticas, qua- im de constituir uma rede nas unidades, nos
liicam a área da educação infantil, os processos municípios. Acredita-se que a construção e
formativos e, consequentemente, suas práticas. a consolidação de uma rede formativa signi-
Com base nessa compreensão, o proje- icam possibilidades de reencaminhamento
to de assessoramento técnico pedagógico às das práticas nas salas com as crianças, num
redes e sistemas na implementação do Proin- aprofundamento teórico-relexivo em que os
fância visou qualiicar a educação infantil nos docentes assumem signiicados para as suas
municípios, desenvolver ações formativas que formações no exercício da proissão.
qualiicassem a implementação das políticas Tal propósito gerou desconforto em
públicas das DCNEI para a educação infantil, muitos municípios e Unidades do Proinfância,
realizar a formação continuada de docentes e principalmente quando os docentes e gesto-
gestores. res retornavam aos municípios e levavam as

32
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

DCNEI (2009), numa perspectiva de aproximar dos docentes, seus saberes e não saberes, um
seus pares do discutido nas formações. Muitos tempo que demanda apropriação, compreen-
conseguiram realizar os estudos e discutir e são e maturidade intelectual... um tempo que
desaiar, mas em alguns municípios tínhamos se constrói, um tempo de desaios.
depoimentos que não chegavam até as Uni- É importante deixar claro que defendermos
dades, motivo pelo qual a cada ciclo formativo a formação continuada é diferente de trazermos
vinha uma representatividade diferente. Isso professores para palestrar ou para trabalhar te-
conirma que a falta de seriedade dos gesto- mas como autoajuda, motivação, nas Unidades;
res e de continuidade de um processo muitas precisamos contrapor com algo. E nesse sentido
vezes é resultado da falta de continuidade nos precisamos ir além, propondo, para que os pro-
processos formativos. fessores se apoderem do trabalhado, do estuda-
do, para que haja rupturas em práticas, cristaliza-
As três Universidades se colocaram como
das, repetitivas e mecânicas, instituídas ao longo
parceiras na Cooperação Técnica com o MEC/
dos anos na educação infantil.
SEB/COEDI e em interlocução com os municí-
Em contraponto com palestras, com os
pios que participaram do projeto trabalharam
ciclos formativos, em função dos motivos já
para que os municípios constituíssem as redes
explícitos acima, da diiculdade de chegar nas
e elaborassem um plano de ação para as suas
Unidades e nas práticas, a formação em con-
Unidades. Cada unidade enviou para o polo o
texto - como vivenciado nos 8 municípios nos
plano e buscou implementá-lo e no inal do quais trabalhamos acompanhando diretamen-
projeto os docentes das Unidades foram con- te todos os sujeitos envolvidos na formação -,
vidados a escreverem um resumo expandido permite um processo de desconstrução e re-
sobre suas práticas, sobre os relexos do plano construção de práticas outras, “construção da
de ação nas Unidades, e para confeccionarem Práxis[...], desenvolvimento proissional” (Oli-
um banner para participarem no seminário i- veira-Formosinho, 2013, p. 25-60).
nal do Proinfância, relatando suas práticas na Acredita-se que a formação precisa ser no
roda de conversa com outros municípios. contexto, ela não é externa, se dá no exercício da
Nas rodas de conversas muitas práticas proissão e fortalece os sujeitos nos espaços insti-
de superação nos surpreenderam, cada uma tucionais. Ao falarmos em formação no exercício
dentro dos limites e possibilidades dos sujeitos da proissão, não estamos negando a formação
envolvidos. Esse respeito ao tempo dos profes- acadêmica, pelo contrário, o aprendido é ponto
sores é fundamental, compreender o processo de partida para novas aprendizagens.

33
Viviane Ache Cancian

A formação no exercício da proissão se que não começa alegando precisar tempo. An-
dá em dois momentos que se considera funda- dam a procura não do tempo perdido, mas de
mentais: o primeiro refere-se à fala e o segun- um tempo que nunca lhe dão. Falta tempo ou
do, à escrita, pois estes momentos assumem a falta paixão?”(1997, p.15).
função de construção-reconstrução de signii- Ao se criar espaços de fala e de escrita
cados, que oportunizarão o entendimento das nas instituições, os docentes explicitam o fa-
diferentes complexidades do fazer pedagógico zer, as práticas pedagógicas, as suas docências
(Cancian, 1998, p.13-14). e retornam à própria teoria para entender os
Um processo que se dá no coletivo dos desaios que se colocam, numa teorização da
educadores, em que todos têm voz e vez, num própria prática, das docências, através de uma
diálogo esclarecido, emancipado, das manifes- racionalidade que justiica, que argumenta. Do
tações do vivido, das práticas, das interações ponto de vista participativo, não exclui as me-
e vivências. Para Marques (1999), “professo- diações culturais e linguísticas.
res entre si falantes de si”, num espaço criado, O vivido até aqui brevemente apresenta-
onde as histórias de vida, as singularidades se do em um recorte, e nesse artigo, se entrelaça
cruzam e tecem resigniicações “[...] ampliam e tece muitos ios, ios que fomos tecendo ao
e se consolidam na abertura para os horizon- longo do projeto, junto a diferentes sujeitos de
tes mais vastos dos conceitos especíicos das territórios distintos, que nos desaiaram a pen-
diversas ciências e áreas de saber (Marques, sar nos processos formativos e docências, no
1999, p.17), numa compreensão de que os signiicado da educação, no compromisso de
instituintes, ao reletirem sobre o que se insti- pensar uma educação numa perspectiva ética.
tui, rompem com o que está posto, o que está
dado, com práticas conformistas, com proces- Qual Educação Infantil para uma unida-
sos de alienação. “Para isso, o desaio centra-se de do Proinfância? Qual docência na Ed.
no aprender a falar do que sabe, no fundamen- Infantil?
tar as posições implícita ou explicitamente as-
Uma educação para a liberdade só poderá ser
sumidas[...], que requer momento da parada, radical quando for capaz de uniicar na diferen-
da sistematização e da organização das ideias ça a conquista da justiça social e a conquista da
justiça ecológica (Oliveira, 2001, p.290).
através da escrita” (Cancian, 1997, p.28). No di-
zer de um grande mestre, Marques: “Há gente

34
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

Surge o desaio de pensar as Unidades bilidade, pois é capaz de decisões livres (Olivei-
ra, 2001, p.287-288).
de educação infantil7 com a infância, com o
humano, em pensar com profundidade, numa
Trata-se aqui de questionar que racio-
perspectiva pedagógica, que realize interven-
nalidade e compreensões perpassam as prá-
ções e esteja em permanente construção/re-
ticas, as docências e as formações na área de
construção, num processo dinâmico, em cons-
Educação Infantil. Qual educação para quais
tante movimento. Pensar a educação Infantil
infâncias e crianças? Qual docência, ou quais
- e aqui como izemos um assessoramento a
docências? Será que conseguimos nos desaios
150 municípios, faço o recorte mostrando um
postos pela prática dar conta das experiências
processo apenas para as unidades do proinfân-
sociais, da diversidade, da epistemologia cul-
cia-, começo pensar o que signiica educação,
tural e política? Será que conseguimos perce-
pela ideia de um reconhecimento universal e
ber a diversidade epistemológica presente nas
uma práxis da libertação, um mundo humano,
Instituições/Unidades de educação infantil va-
onde todas as crianças possam ser livres em to-
lorizando os conhecimentos do contexto, das
das as suas dimensões de existir.
vozes até então caladas?
Uma educação que leve a sério a nova cons- Compreender qual Educação, qual do-
ciência planetária e que levante a pretensão cência ou quais docências passa também por
de tornar possível o situar-se corretamente
em nosso mundo terá de ajudar as pessoas
rever a estrutura das instituições numa pers-
a captar a realidade como uma unidade de pectiva temporal e espacial - outras formas
opostos, ou seja, a perceber que ser humano de expressão: linguística, corpórea, musical...
e natureza se manifestam em sua diferença:
o ser humano, enquanto capaz de captar o Nos constantes enfrentamentos no assessora-
sentido tanto da natureza como de si mesmo, mento muitos docentes alegavam ter posturas
transcende fundamentalmente a natureza, autoritárias, conservadoras, rígidas, em função
mesmo sendo parte dela. A transcendência
revela o ser humano como ser de sentido, que das exigências legais; no entanto, as leis, as
situa todo e qualquer dado em um horizonte diretrizes educacionais, são amplas e lexíveis,
de signiicação, e que age a partir do sentido
percebe-se nas práticas, nas ações docentes,
captado. Por essa razão ele é o ser da responsa-
que muitas vezes os docentes são mais rígidos
7 Ao pensarmos os desaios, estou me referindo para além do
que as leis.
processo de assessoramento as unidades do Proinfância. Além É preciso desejo para intervir no sistema
disso, falo do lugar de gestora de uma Unidade de Educação In-
fantil e na condição de docente do Ensino Superior, orientadora
educacional, é preciso proissionalismo e
de estágios na Educação Infantil e nos Anos Iniciais.

35
Viviane Ache Cancian

seriedade, o que contrapõe muitas posturas educativas? Como garantir um projeto políti-
também de adultos infantis e de docentes co-pedagógico que dê conta dos direitos das
muito imaturos. Somos marcados pela crianças, do humano e da cultura?
pedagogia da homogeneidade e temos que A relevância de uma instituição de edu-
aprender a respeitar a diversidade, mudar a cação infantil é a formação ética. No entanto,
lógica, permitindo experiências diversas que o que encontramos muitas vezes nas institui-
contribuirão para condição humana, já que ções são concepções positivistas e moralistas
o humano se constrói através de diferentes que não permitem que as crianças pensem ou
dimensões e aprende a ser. que tenham autonomia. Essa prática é comum
Quais dimensões do cerne da condição desde o trabalho que é realizado com a leitura
humana? Ainal, quais dimensões formar? Falta dos livros infantis, que acaba não sendo uma
um horizonte do projeto de Educação Infantil, leitura com o objetivo de formar leitores, mas
um projeto de educação básica, um lugar para uma leitura moralizante, muitas vezes com li-
o sentimento, para a imaginação que às vezes vros de cunho religioso e com livros de autoa-
encontramos nas práticas com crianças peque- juda, a im de moralizar as infâncias e formar
nas na Educação Infantil e que quando a crian- seres humanos dóceis e domesticados. É preci-
ça vai crescendo, com 4-5 anos, vai lentamen- so ter clareza que um projeto político-pedagó-
te sendo abandonado e quando chega aos 6-7 gico de uma instituição é importante porque
anos, é negado totalmente. O que está fora de passa pela construção de um novo sujeito, ou
foco? O Campo pedagógico? Só recuperando seja, passa sempre por uma tensão constante
a teoria pedagógica mais profunda, a teoria da entre este projeto de ser humano (sujeito) e o
educação, o avanço na humanização, as condi- projeto de sociedade.
ções reais em que se reproduzem a existência, Estas questões estão postas nos currícu-
a construção da Infância, o tempo infância, o los e práticas na Educação Infantil, que não re-
tempo do humano. letem práticas de 24 bebês em uma sala, em
Poderíamos então nos questionar acer- práticas de atendimento das crianças em mais
ca do tempo das instituições, dos reais tempos de 12 horas. Curioso e, no mínimo, estranho é
das crianças, dos tempos das infâncias que não encontrarmos municípios, docentes e discentes
têm tempo nas instituições. Como permitir dos cursos de pedagogia que naturalizaram a
nas instituições de educação infantil vivências quantidade (excesso) em detrimento da quali-

36
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

dade, com a aceitabilidade e legitimidade de O que leva os gestores e os docentes a


gestores, sem trazer para o debate o que está legitimar sem questionar quem vai hu-
por trás, o que leva uma instituição a legitimar manizar a infância, nos processos mate-
tais práticas sem contrapor e atender os parâ- riais que a sociedade dá ou permite para
metros de qualidade (MEC) as DCNEIS, que indi- ser gente?
cam número de alunos por docente, desqualii-
cando as práticas das Unidades que atendem as O docente necessita reconhecer a ma-
exigências dos Parâmetros de qualidade e das terialidade que produz, caso contrário, pode
DCNEI, e caracterizando-as como utópicas. cair em um idealismo. Educar é explorar estas
Outro exemplo é o que aconteceu em tensões entre sujeito-sociedade. Ao mesmo
uma das nossas formações, em que a Unidade tempo em que racionalizamos e compreen-
atendia as crianças em uma região próxima às demos tal exigência frente a uma sociedade
fábricas que empregavam seus pais e doavam em que o mercado dita as normas para todos
à Unidade dinheiro que era utilizado para a os setores da sociedade, nos perguntamos: o
compra de brinquedos e, em contrapartida, a quanto legitimamos práticas sem compreender
Unidade disponibilizava atendimento esten- o que está por trás, num processo de tarefeiros?
dido de 12 horas diárias para as crianças. Ao Muitos docentes se encontram numa zona de
questionarmos sobre a permanência tempo- conforto, numa perspectiva do menor esforço,
ral excessiva na Unidade, ou seja, mais de 10 assumindo Secretarias de Educação, salas de
horas, e sobre a qualidade do tempo, uma das aula com materiais prontos, com apostilamen-
docentes se surpreendeu ao perceber que não tos, e justiicando a compra e implementação
havia pensado que estavam (enquanto pro- desses materiais pela formação que é dada
posta pedagógica) formando futuros trabalha- pelas indústrias que comercializam esses pro-
dores de fábricas. dutos. Nesse sentido, Marilena Chaui esclarece
que “quando você quer saber se algo é ou não
racional (para decidir a racionalidade de algu-
ma coisa, de uma ação, de uma instituição [...],
toma como critério o modo de inserção disso
que está examinando no jogo do mercado”
(2001, p.16).

37
Viviane Ache Cancian

Ledo engano em achar que esse tipo de crianças nos seus contextos. Aqui poderíamos
função que o docente vai exercer e que traz aprender com os movimentos sociais que in-
para o centro do processo a reprodução dos corporaram em suas lutas os avanços culturais
materiais, e não as crianças, traz a realização e políticos.
do docente, pois ninguém se realiza com um
trabalho mecânico, de reprodução, não sen- E nas instituições de educação infantil,
do autor e não produzindo. Pior ainda, além como trazemos essas questões? Como
de não realizar o docente, causa nas crianças tratamos da imaginação, da curiosidade
frustração em ter no dia a dia práticas diretivas, e os sentimentos da criança? O tempo é
sem sentido e signiicado para elas (crianças), um tempo de viver? Um tempo de vivên-
cias plenas?
pois muitas vezes distante da realidade e do
contexto, práticas que vão na contramão das
Essas perguntas são algumas das muitas
Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação
que surgiram e surgem para os formadores nas
Infantil (2009). Universidades e para os docentes nas Unida-
Portanto, o desaio está dado: ter uma des de Educação Infantil.
outra docência, onde as práticas pedagógicas, O ser humano, de acordo com Oliveira
as docências na Educação Infantil que humani- (2001, p.288), “[...] é o ser da responsabilidade,
zarem a infância, que mudarem as estruturas, pois é capaz de decisões livres”; portanto, o
os tempos-espaços rígidos, darão conta dos grande desaio é superar a racionalidade téc-
avanços sociais e culturais, pois trarão no cerne nica e instrumental que tem legitimado a apli-
uma maior sensibilidade e um projeto mais de- cabilidade de saberes e conhecimentos em
mocrático, cultural e social. Para tal precisa-se detrimento de uma racionalidade que dialoga
ter clareza que os docentes são sujeitos sociais- e produz conhecimentos a partir das práticas
-culturais e que, portanto, muitas vezes essas instituídas nas instituições.
Fica para todos os docentes do ensino
constituições de cada sujeito é que deinem as
superior e da educação básica, principalmente
práticas na educação infantil.
da educação infantil, o desaio de uma docên-
Há sempre uma grande preocupação no
cia que não aprisiona, que não direciona, que
discurso dos docentes no conteúdo e método, não “ensina um conteúdo conformista, sexista,
no o quê e como trabalhar com as crianças, e racista, classista, adultocêntrico, homofóbico,
não em como trabalhar com os complexos dito neutro, para todas as crianças, sejam elas da
processos vividos pelos professores e pelas

38
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO

elite, das camadas populares, negras, indígenas, ção da Pedagogia. Espaços da Escola, IJuí:UNI-
brancas e trabalhadoras...” (Farias, 2011, xiv), mas JUÍ, ano 4, n 31, jan/mar. 1999, p15-23.
que reconhece a diversidade e liberta em todos MELO, Regina Lúcia Couto de. Orientações
os sentidos; que tece sempre outros ios, outras para o planejamento da expansão da Edu-
tecituras dos ios das infâncias e das crianças. cação Infantil e para a implantação das Ins-
tituições de Educação Infantil no contexto
Referências bibliográicas dos Municípios do Rio Grande do Sul con-
veniados com o Proinfância e Indicadores
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Qualidade na Educação Infantil. Projeto
de Educação Básica. Diretrizes Curriculares OEI/BRA/09/001: Fortalecimento Institucional
Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: das Secretarias Municipais de Educação na For-
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39
2
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A
CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

Noeli Valentina Weschenfelder


Denise Motta Marchand
Vladinei Roberto Weschenfelder

Situando o contexto O assessoramento e acompanhamento


realizado especiicamente junto à Região No-
Este artigo realiza um exercício de aná- roeste do Estado do Rio Grande do Sul teve
lise sobre a construção de processos coletivos abrangência sobre um conjunto de 46 muni-
no assessoramento a escolas de Educação In- cípios referenciados ao Programa Proinfância,
fantil conveniadas ao Programa Proinfância1, apresentando Ijuí como Cidade Pólo. Este ar-
buscando construir um texto que dê conta da tigo cumpre uma função descritiva e analítica
realidade em sua complexidade. sobre o assessoramento a partir de uma amos-
Os processos em questão inserem-se em tra formada por 08 escolas, extraídas deste
um contexto mais amplo, que diz respeito ao conjunto de 46 municípios.
Projeto de Assessoramento e Acompanhamento Os critérios para determinação da amos-
Pedagógico às Redes e Sistemas de Ensino na Im- tra foram a existência de Unidade Proinfância
plementação do Proinfância em Municípios da em operação há pelo menos um ano e proximi-
Região Central, Norte e Noroeste do Estado do dade geográica em relação à Cidade Polo de
Rio Grande do Sul - MEC/UFSM2. Ijuí. Coincidentemente, a localização dos muni-
cípios favoreceu a dispersão geográica, cons-
1 Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de
tituindo-se uma amostra representativa do
Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil território de abrangência da Região Noroeste.
(Proinfância). Esta amostra compõe o grupo de municípios
2 O Projeto de Assessoramento nas Regiões Central, Norte e
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sulteve abrangência sobre
que recebeu assessoramento diferenciado in
um conjunto de 150 municípios. loco, através de visitas técnicas e formações em

41
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

contexto no decorrer dos dois anos do projeto. conhecimento, tais como a Filosoia da Infân-
Os demais municípios referenciados ao Polo de cia, a Sociologia da Infância e a Antropologia
Ijuí receberam acompanhamento através de da Criança. Este diálogo toma de empréstimo
encontros regionais em municípios referência algumas ferramentas metodológicas e concei-
do território de abrangência. tuais para melhor compreender a infância, suas
Este exercício de análise é restrito, por- experiências, suas culturas, aprofundando co-
tanto, ao conjunto de 08 municípios que com- nhecimentos e rompendo com as representa-
põe a amostra do Polo Ijuí, na Região Noroeste. ções generalizantes e universalistas, pautadas
Os elementos trazidos para análise emergem em uma racionalidade que pouco reconhece
da construção de processo com estes municí- as crianças como atores sociais e a infância
pios. As relações estabelecidas junto às Unida- como grupo social.
des Proinfância com as equipes das escolas e Na metodologia do projeto de asses-
gestores municipais foram consideradas estra-
soramento os proissionais formadores são
tégicas e ricas em possibilidades. Por esta razão,
compreendidos a um só tempo como inves-
as questões que emergem como categorias de
tigadores e como instrumentos da pesquisa.
análise junto às diferentes realidades locais fo-
Este exercício de exploração em campo não é
ram tomadas como objeto de problematização
necessariamente neutro ou desprovido de im-
em tempo real, nas visitas técnicas e nas for-
plicação. Lapassade (2001) reconhece diferen-
mações em contexto, chamando os diferentes
tes níveis de envolvimento do observador, es-
atores para uma posição de responsabilidade
tabelecendo uma escala de possibilidades. Em
compartilhada frente à Educação Infantil.
um extremo localiza a Observação participante
A observação participante como io periférica, onde pode existir certo grau de im-
condutor plicação do observador no contexto, mas não
tanta que venha a bloquear sua capacidade de
As estratégias e ações do projeto de as- análise. Em outro extremo localiza a Observa-
sessoramento dialogam com metodologias de ção participante total ou completa, onde existe
pesquisa, tornando claro que esta proposta se uma possibilidade de imersão signiicativa em
conigura mais complexa do que se colocava campo, mais controversa de um ponto de vis-
inicialmente. Leituras outras são necessárias. ta técnico e teórico, sendo mais indicada em
Neste sentido, intensiicamos o diálogo que a estudos etnográicos. Entre estes extremos o
Pedagogia tem feito com outros campos do autor reconhece ainda como alternativa viável

42
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

a construção de uma Observação com partici- Desse modo, o movimento de sistema-


pação ativa, mais próxima das estratégias ado- tização permitiu mapear alguns elementos
tadas pelo projeto de assessoramento. que emergem do cotidiano e se impõe como
Nesta modalidade de observação ica categorias de análise, constituindo objetos de
compreendida a possibilidade de participação problematização ao longo do assessoramento.
dos formadores em todas as atividades do con- Nesse contexto, receberam atenção especial as
texto, tendo um pé dentro e outro fora, de modo categorias que dizem respeito às relações en-
a assegurar certo distanciamento e estranha- tre obra física e obra pedagógica, além da pro-
mento na relação com o outro e com o contex- posta pedagógica, o planejamento, o registro
to. Esta concepção de observação participante e avaliação, os processos de escolarização nos
assume-se como um elemento que perpassa espaços educativos, a formação inicial e conti-
toda a experiência de assessoramento às esco- nuada, o lugar da coordenação pedagógica, a
las da amostra, estabelecendo um io condutor construção de territórios e os elementos da in-
para o processo de trabalho e assegurando o fância que transbordam para além das tarefas
rigor metodológico. propostas. Estes objetos de problematização
Sendo assim, ica subentendido que é serão posteriormente retomados e discutidos.
imprescindível uma relação de troca, uma vez Ao dizer da relação com os sujeitos, é
que a observação com participação ativa traz importante reconhecer que o projeto de as-
pressuposta a permeabilidade na relação com sessoramento possui dimensão simbólica mais
o contexto vivo, favorecendo emergir catego- ampla, não restrita aos encontros ou ativida-
rias de análise em interlocução com as singu- des formativas. Trata-se de reconhecer que
laridades locais. Essa permeabilidade produz todas as etapas do processo e do percurso
efeitos em uma relação de reciprocidade entre realizado tiveram efeitos junto aos sujeitos e,
aqueles que são reconhecidos como formado- especialmente, junto ao contexto das escolas
res, os de fora, e aqueles que são reconhecidos de Educação Infantil. Estes efeitos são percep-
como os sujeitos do estudo, os de dentro. A tíveis desde as visitas prévias de aproximação
problematização da realidade vivida entre for- a todos os municípios para reconhecimento
madores e sujeitos abre a um só tempo, tanto a das equipes e dos espaços educativos; pas-
possibilidade de ordenamento para o processo
sando pelo momento de pactuação, onde os
de assessoramento, quanto a possibilidade de
gestores das Secretarias Municipais de Educa-
ressigniicação das práticas pedagógicas e dos
ção estabeleceram um compromisso formal de
processos de trabalho.

43
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

envolvimento, demarcando papéis e responsa- de compreensão e controle sobre variáveis que


bilidades; passando também pelos contatos e se encontram no campo do visível e que, por
diálogos telefônicos, onde foram negociados isso mesmo, oferecem uma fotograia sobre as
os dias e horários para realização das visitas relações construídas com as crianças e sobre
técnicas; passando ainda pelas tratativas de in- as concepções presentes na proposta pedagó-
terrupção pontual do atendimento às crianças, gica da escola. Madalena Freire (1994) discute
para realização das atividades de formação em esta articulação, sugerindo que estes aspectos
contexto com o conjunto das equipes. estarão, inevitavelmente, materializados nos
Estes efeitos exercidos junto aos sujeitos espaços educativos.
e junto aos ambientes eventualmente rele-
tem um esforço das escolas para adequação e A metodologia em desconstrução:
construção de uma imagem mais próxima ao as visitas técnicas como ponto de partida
socialmente desejável. Uma adequação e uma
imagem que nem sempre reletem a revisão Durante o primeiro ano do projeto, o
profunda ou consistente das concepções e das trabalho de assessoramento às escolas da
práticas pedagógicas. Este esforço das escolas, amostra foi realizado essencialmente a partir
no sentido de buscar adequações para atender de visitas técnicas. Estas visitas eram agenda-
a uma expectativa externa que é presumida, das previamente com as equipes das escolas,
especialmente no período inicial do assessora- e contavam com a imersão dos formadores
mento, transita por relações com os formado- junto ao contexto durante um dia inteiro de
res onde existe um pressuposto de autoridade, atividade, acompanhando desde a chegada
ainal de contas, tratam-se em certa medida de das crianças, as trocas de turnos, até o inal do
representantes do Ministério da Educação. expediente de trabalho.
Compreende-se que estes efeitos de Foram momentos como foco em estra-
adequação em si mesmos não constituem um tégias de observação com participação ati-
obstáculo ou um viés para o processo de inves- va, seguidas por reuniões de assessoramento
tigação e discussão. Por outro lado, constituem técnico e pedagógico com pequenos grupos
um rico material para análise e relexão com em cada escola. Estes pequenos grupos eram
os sujeitos, em uma interlocução pautada pela constituídos basicamente por representantes
horizontalidade e pela transparência. De modo das equipes diretivas e coordenações pedagó-
geral, estas adequações expressam um desejo gicas das escolas e das Secretarias Municipais

44
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

de Educação, contando frequentemente com a mais amplas, articuladas com a organização


participação de gestores. e o funcionamento da instituição, materiali-
A observação com participação ativa zadas em suas rotinas e em suas relações com
compreende o próprio investigador como um os espaços e materiais, para posteriormente
instrumento de pesquisa que atua, simultanea- estabelecer critérios mais seletivos, articulados
mente, na coleta e na interpretação dos dados especialmente com as concepções e as práticas
(Lapassade, 2001). Neste contexto, a observa- pedagógicas que constituem o território.
ção constitui uma técnica complementada com Após a realização das observações, os
outras ferramentas e estratégias. A interação li- formadores contavam com um breve período
vre com professoras, auxiliares, direção e demais em reservado para compartilhar impressões
membros da equipe coloca-se nesta dimensão, e organizar os apontamentos e elementos da
do mesmo modo que a interação com as famí- documentação levantados ao longo do dia. En-
lias e com as crianças. Neste período inicial, tam- tão, como última etapa de cada visita técnica,
bém foram realizadas entrevistas semiestrutura- era realizada uma reunião de sistematização
das, focadas no levantamento de informações e com pequenos grupos, que eram constituídos
na construção de uma investigação diagnóstica. por representantes da equipe diretiva e coor-
A documentação deste processo foi realizada denação pedagógica da escola e da Secretaria
através de registros escritos, fotograias, peque- Municipal de Educação, contando frequente-
nas ilmagens, análise de documentos técnicos, mente com a participação de gestores. Nestas
além dos documentos produzidos pelas profes- reuniões de sistematização, com duração apro-
soras e pelas próprias crianças. ximada de duas horas, os apontamentos e os
Este movimento permitiu realizar a in- elementos de documentação apresentados
vestigação sistemática de questões signiicati- pelos formadores cumpriam uma função orga-
vas junto ao contexto das escolas da amostra. nizadora da discussão e da relexão.
Permitiu também o mapeamento de questões Esta dinâmica de discussão e relexão com
que não estavam previstas inicialmente, e que os sujeitos não poderia ser classiicada como uma
tiveram a oportunidade de emergir como ca- abordagem de devolução. O dinamismo próprio
tegorias de análise a partir do discurso dos su- e as características singulares presentes neste
jeitos e das interações com o contexto, consti- momento de sistematização desconstroem a
tuindo os objetos de problematização. ideia de uma leitura unilateral da realidade e uma
Neste sentido, o processo de investigação transmissão vertical de conhecimentos, onde os
realiza um movimento que parte de questões sujeitos estão supostos a um saber e a uma ava-

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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

liação externa. Os apontamentos e elementos de sentimento era compartilhado entre aquelas


documentação cumpriam nestas reuniões uma pessoas que não tinham acesso aos momentos
função meramente delagradora. de sistematização. As diiculdades enfrentadas
A partir do exercício de problemati- pela direção e coordenação pedagógica das es-
zação, os traços de uma análise diagnóstica colas, no sentido de compartilhar e multiplicar
foram emergindo como resultado de um pro- estas vivências mais restritas de sistematização
cesso coletivo de discussão, em um esforço
com o conjunto da equipe, além da diiculdade
compartilhado de leitura da realidade, articu-
de construir uma cultura de pares apoiada na
lando um debate onde as Diretrizes Curricula-
análise dialogada do contexto, trouxe gradual-
res Nacionais para a Educação Infantil (2009) e
mente a necessidade de revisar o formato ope-
os Indicadores de Qualidade (2009) exercem
uma posição de centralidade. racional do assessoramento.
Desse modo, a partir do segundo ano
Aproximações com a formação em de assessoramento, a imersão dos formado-
contexto res no cotidiano da escola foi substituída pe-
los encontros de formação em contexto. Neste
Ao longo do primeiro ano de assesso- momento, realizamos um contraponto signii-
ramento, foi se construindo uma percepção cativo em relação à concepção metodológica
extremamente favorável sobre os momentos de formação em contexto postulada por Oli-
de discussão e relexão, especialmente sobre veira-Formosinho e Araújo (2013), que vem
as reuniões de sistematização com a direção, caracterizada pelo envolvimento continuado
a coordenação pedagógica e a gestão. Apesar e progressivo entre um pesquisador externo e
das trocas com o conjunto da equipe também uma professora da escola. O projeto de asses-
serem enriquecedoras, estas trocas permane- soramento subverte esta premissa, propondo
ciam restritas a contatos e interações pontuais a instituição de espaços coletivos de interlocu-
ao longo da visita técnica, sem a potencialida- ção e relexão, apoiados na investigação siste-
de do debate coletivo. mática das práticas pedagógicas e das concep-
Do mesmo modo, prevalecia nas equi- ções que dão sustentação a estas práticas.
pes um sentimento de desconexão com o pro- Nestes encontros de formação em con-
cesso de assessoramento e a mistiicação das texto, que eram negociados e agendados pre-
reuniões de sistematização, que eram repre- viamente com a direção, as escolas suspendiam
sentadas como um espaço privilegiado. Este

46
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

o atendimento às crianças para realizar uma Esta noção de deslocamento da posi-


série de atividades formativas com o conjunto ção de objeto para uma posição de sujeito
da equipe, desde a direção e a coordenação pe- da análise foi explorada ao longo de todo
dagógica, as auxiliares e monitoras, até as esta- assessoramento com as escolas da amostra.
giárias e os proissionais de apoio, representado Porém, a partir do segundo ano do projeto,
pela área administrativa, cozinha e limpeza. este movimento passou a realizar progres-
A dinâmica de trabalho nesta etapa se or- sivas aproximações com as concepções de
ganizava também em torno da investigação das formação em contexto propostas por Olivei-
categorias de análise construídas ao longo do ra-Formosinho e Araújo (2013). As autoras
processo, com a problematização e a sistemati- reconhecem as práticas do cotidiano em uma
zação em espaços coletivos de interlocução. posição de centralidade neste processo, ofe-
recendo ponto de partida para a análise críti-
ca da realidade e a geração de alternativas de
uma forma compartilhada. O projeto de asses-
soramento dialoga com este pressuposto de
interlocução, envolvendo sujeitos e formado-
res em uma relação onde o contexto emerge
como categoria de análise, criando condições
que favorecem a transformação da realidade.
A metodologia do projeto esteve
Professoras investigando elementos do contexto para apoiada na observação com participação ati-
posterior discussão no espaço coletivo.
va, integrando os sujeitos a este processo de-
Ao ampliar o circuito de ação para o con- reconhecimento e documentação, desaiando
junto da equipe da escola, o assessoramento a composição de uma matriz narrativa sobre
propõe uma desconstrução do contexto de o cotidiano a partir de muitos discursos e di-
análise, desaiando os sujeitos a produzirem um ferentes linguagens. Um processo de compo-
deslocamento, assumindo eles próprios a posi- sição que traz implícita a possibilidade de sua
ção de pesquisadores, juntamente com os for- própria desconstrução, em uma leitura crítica
madores externos, em um exercício sistemático da realidade, suportada nestes mesmos discur-
de investigação e problematização do cotidiano sos e linguagens.
e dos elementos que constituem este território.

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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

uma metodologia, onde o estranho que vem de


fora não produz alteridade. Do mesmo modo,
não se trata de estabelecer uma relação de
conveniência frouxa com as referências teóri-
cas e técnicas, como em um bufê a quilo. Tra-
ta-se da construção de um diálogo crítico em
movimento de aproximação com o contexto
vivo, onde o próprio processo formativo assu-
Documentação trazidado contexto pelas
professoras para análise com o coletivo. me-se como objeto de problematização, asse-
gurando a construção de uma identidade de
A unidade deste processo foi assegurada assessoramento consistente com a realidade,
em um referenciamento claro com os marcos buscando superar a abordagem prescritiva ou
teóricos e legais presentes nas DCNEI (2009). essencializante.
Os Indicadores de Qualidade na Educação In- A metodologia presente no projeto de
fantil (2009), por sua vez, também cumpriram assessoramento é compreendida como um
uma função determinante, sendo um elemen- processo e, como tal, passa por ajustes opera-
to recorrente ao longo do projeto, no estabe- cionais e eventualmente por uma revisão de
lecimento de referências para o debate e na concepções, onde as relações com os sujeitos
objetivação de planejamentos de curto e mé- possuem uma dimensão instituinte (Castoriadis,
dio prazo. Pelo fato do assessoramento ter sido 1995) de práticas e saberes compartilhados. Ao
pactuado previamente em uma relação transi- longo do projeto, a metodologia de assesso-
tória com as escolas, houve uma preocupação ramento técnico e pedagógico através de visi-
importante com a continuidade das ações e tas técnicas foi passando por um percurso de
dos processos após o encerramento do proje- transformação, em um diálogo estreito com as
to. Neste sentido, os sujeitos foram desaiados equipes das escolas e dos municípios, buscan-
a construir de forma autônoma um plano de do aproximações da proposta com a realidade
ação articulado com os Indicadores de Quali- vivida no cotidiano.
dade na Educação Infantil (2009). Este processo de formação em contexto
Os movimentos de aproximação reali- não diz respeito simplesmente a um conjun-
zados pelo projeto de assessoramento com a to de atividades formativas realizadas junto à
formação em contexto que é proposta por Oli- realidade concreta, que poderíamos denomi-
veira-Formosinho e Araújo (2013) não tratam- nar chão de escola. Diz respeito fundamental-
simplesmente de replicar uma concepção e mente a um trabalho onde o contexto vivo e

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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

as microrrelações emergem como objetos de O desaio consistia em retornar para o


problematização, noção assinalada como um espaço educativo não mais na condição de
pressuposto no planejamento das ações e es- educadoras e funcionárias, mas como pesqui-
tratégias de assessoramento. sadoras, com a tarefa de realizar um mapea-
Em uma das primeiras atividades de mento de questões signiicativas, relacionadas
aproximação mais clara com as concepções de às identidades, culturas infantis e práticas pe-
formação em contexto e de construção de uma
dagógicas.
identidade própria para o assessoramento,
Ao tomar o material do cotidiano como
este pressuposto foi explorado de forma lúdi-
objeto de análise com os sujeitos, abre-se
ca com as equipes das escolas. Nesta atividade
os sujeitos, representados pela direção, coor- uma porta de entrada e um canal de diálogo
denação pedagógica, professoras, auxiliares sustentado pelo desejo e pela possibilidade
e monitoras, estagiárias e demais pessoas da de reconhecimento mútuo. O movimento de
equipe de apoio, eram desaiadas a um deslo- interlocução então assume-se como uma pos-
camento físico e simbólico. Em um momento sibilidade de desconstrução daquilo que se
inicial, todas foram convidadas a acompanhar apresenta como verdade no discurso dos su-
os formadores para fora do espaço educativo. jeitos. Uma desconstrução que não representa
Em frente à escola era iniciada uma roda de necessariamente aniquilação ou destruição do
conversa sobre o lugar das interações e das outro, mas a oportunidade de decomposição
brincadeiras nas práticas pedagógicas. Em e análise, onde um sistema fechado de pensa-
um momento posterior eram desaiadas a um mento é aberto para a diferença e para a con-
exercício que iniciava de forma lúdica e evoluía
tradição.
para um processo de investigação, análise e
O exercício de problematização desaia
problematização coletiva.
a desconstrução deste sistema de pensamento
fechado, onde as crianças são tomadas como
objeto passivo de uma prática pedagógica
apoiada na transmissão. Um sistema de pensa-
mento onde o adulto encontra-se em posição
de centralidade, e não a criança.
Derrida (1999) discute esta ideia de des-
construção como um quase-conceito, que não
Roda de conversa em frente à escola. carrega em si uma deinição precisa ou deiniti-

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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

va. Assim, mais do que um método, diz respei- A interlocução proposta pelo projeto de
to a um gesto e uma postura ética e política, assessoramento envolve, portanto, o exercício
profundamente preocupada com a alteridade. de alteridade (Derrida, 1999), e demanda um
Este exercício de desmontagem do discurso movimento até a fronteira com o outro, exigin-
abre a possibilidade de revelar os elementos do certo afastamento daquelas certezas que
que estão dissimulados ou que permanecem vão sendo colecionadas pelo sujeito ao longo
invisíveis na leitura da realidade e nas boas da sua existência pessoal e proissional. Este
práticas, demonstrando os lapsos, os espaços deslocamento pelas bordas traz uma esperan-
em branco, e desvelando os ininitos discursos ça de contaminação pelo outro e, por conse-
que estão por trás da aparente unidade. Neste quência, a promessa de um estranhamento
sentido, o autor vislumbra a necessidade de re- quando voltar o olhar para si mesmo. Este
conhecer o não-dito tanto quanto aquilo que é encontro com o estranho em si mesmo não
expressamente dito em um discurso.
é isento de tensão e sofrimento sendo, nesta
Aqui tomamos o discurso em sua ma-
mesma medida, desaiador e transformador.
terialidade, em uma dimensão mais ampla,
não somente nas falas, nos documentos pro-
duzidos pelas professoras e nos registros das
crianças. Mas também nos planejamentos, na
escolha das literaturas infantis, na organização
dos espaços e materiais, nos tempos e rotinas,
nas concepções de identidade presentes no
contexto e na estética das salas. Discursos que Formação em contexto em um momento de
constituem o território e que fazem a coloni- sistematização com o coletivo.
zação da infância. Uma colonização que usual-
A experiência de estranhamento por
mente não reconhece os desejos e as culturas
parte das professoras e outras pessoas da equi-
infantis e, não reconhecendo, deixa de dialogar
com estes pequenos sujeitos. Trata-se de um pe não está assegurada previamente. Não se
discurso onde as culturas infantis permane- trata de um movimento simples, pois requer a
cem excluídas ou reprimidas, quase invisíveis, construção de um discernimento crítico e re-
sendo lançadas à margem e, por isso mesmo, lexivo sobre as próprias práticas e concepções.
assumindo um caráter transgressivo neste que Trata-se de uma desconstrução. A produção
parece ser o lugar da boa educação. desta experiência parte da permeabilidade ao

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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

discurso do outro em uma relação de alterida- sobre as concepções e a transformação não so-
de. Muitas professoras referem desconforto e mente das práticas pedagógicas, mas também
sofrimento ao vivenciarem este processo. Elas do próprio processo de assessoramento onde
sofrem e não estão contentes. A percepção opera esta interlocução.
de que as suas práticas pedagógicas com as
crianças estão articuladas com uma concepção Os objetos de problematização
especíica de sujeito produz interrogações no
campo ético e político, que desestabilizam al- Ao longo do Projeto de Assessoramen-
gumas convicções que estão profundamente to foi realizado um percurso signiicativo de
enraizadas. Convicções que orientam, cons- investigação e relexão compartilhada com os
ciente ou inconscientemente, as decisões que sujeitos. Um percurso perpassado por tensio-
são tomadas no cotidiano. namentos e possibilidades de articulação, de-
Nem todos os sujeitos colocam-se da monstrando a dimensão de desaio e a potên-
mesma forma diante deste processo. Algumas cia dos espaços de interlocução.
A rede de signiicados que foi sendo te-
professoras parecem simplesmente imper-
cida a muitas mãos permitiu o mapeamento de
meáveis a este tipo de interlocução e não fa-
elementos que emergem a um só tempo como
zem o distanciamento necessário para analisar
pontos de impasse e pontos de possibilidade
o seu fazer e o seu pensar, reiterando práticas
no campo da Educação Infantil. Esta articula-
mecânicas e descontextualizadas. Outras pro-
ção, aparentemente contraditória, somente é
fessoras, ao sentirem balançar suas referências,
possível porque vem sustentada em um pro-
fazem um rápido movimento na busca de sub-
cesso de interlocução, onde os objetos vão se
sídios para operar conceitualmente sobre a constituindo como categorias de análise a par-
realidade, alcançando um efeito notável sobre tir de um discurso produzido por muitas vozes.
as suas práticas e suas relações com as crianças. Ao revisitar o percurso de assessoramen-
Por outro lado, aquelas professoras que já pos- to, se faz necessário um esforço de sistemati-
suem uma trajetória proissional e intelectual zação sobre alguns daqueles elementos que
identiicada com estes pressupostos, parecem emergem da realidade e se impõe nos pro-
exercer um efeito de convergência na relação cessos de investigação. São elementos que se
com os pares, constituindo pequenos núcleos entrecruzam e dialogam. Neste momento, po-
de articulação e de trocas signiicativas. Trata- rém, são elencados em tópicos com uma fun-
-se de um diálogo que desaia o pensamento ção meramente didática:

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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

a) Obra física e obra pedagógica cas pedagógicas. O trabalho de assessoramento


trouxe a possibilidade de problematizar estes
O assessoramento realizado não possui elementos em nível equipe, contextualizando os
objetivo ou prerrogativa de análise sobre as efeitos destas situações no cotidiano de trabalho
condições de execução ou de utilização das Uni- com as crianças, uma vez que muitas destas de-
dades Proinfância. No entanto, é reconhecida a cisões estavam restritas à gestão. Veriicou-se ao
indissociabilidade existente entre a obra física longo do projeto que alguns municípios realiza-
e a obra pedagógica, conceito apresentado por ram a reversão destas situações, buscando uma
Regina Melo (2011, p. 8). Os sujeitos trazem a articulação entre a tomada de decisões e as con-
necessidade de problematizar estas questões. A cepções político-pedagógicas.
apropriação simbólica dos espaços sugere pas-
sar pela intervenção concreta, sendo comum a b) A proposta pedagógica
realização de ajustes e ou mesmo a subversão
de inalidades junto aos espaços das escolas. A proposta pedagógica ou projeto po-
Estas intervenções dizem respeito a si- lítico pedagógico, enquanto resultado de um
tuações diversas, que vão desde o fechamento processo coletivo, mostra-se muito frágil no
lateral do pátio coberto e do refeitório, pas- contexto das escolas em assessoramento. As
sando pelo fechamento parcial de pequenos realidades são muito distintas neste sentido,
cômodos dentro destes espaços e até mesmo havendo situações onde o documento exis-
o cercamento ou aterramento do aniteatro. te, mas mostra-se estranho ao coletivo de
Também foram trazidas para debate situações
trabalho, sugerindo sua concepção em outro
de desarticulação da sala de professoras para
contexto e parecendo cumprir uma demanda
utilização como refeitório, ou da sala de secre-
meramente formal e documental. Em outras
taria para utilização como espaço de transição
situações, percebe-se um esforço pontual de
com as crianças, além da transformação da sala
construção de percurso, mas sem um enten-
multiuso em sala de aula para abertura de no-
dimento claro quanto à inalidade e eventuais
vas vagas, ou mesmo a transformação do ba-
nheiro para crianças portadoras de deiciência parâmetros para discussão e formalização.
em depósito, ou aproveitamento dos dormitó- Ao longo do processo surgiram muitas
rios e trocadores para esta mesma inalidade. interrogações a respeito dos elementos que
Algumas destas decisões têm um sério balizam as práticas pedagógicas no cotidiano
efeito sobre os processos de trabalho em nível de trabalho das escolas. Apesar do claro desejo
de equipe, sobre a organização dos tempos e es- de correr por fora e assumir a condução desse
paços com as crianças e, portanto, sobre as práti- processo, o que se veriica é uma tendência a

52
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

oferecer respostas pontuais frente às deman- como um espaço estratégico, onde são pen-
das da realidade, efetivando reuniões pedagó- sados elementos importantes do cotidiano de
gicas e estudos dirigidos de modo a suprir as trabalho, sendo um aspecto interessante o fato
carências emergenciais, engolidas pelo cotidia- de que a grande maioria destas escolas conse-
no. Os planos de estudo e os planejamentos de gue assegurar a liberação das professoras em
médio e longo prazo parecem burocratizados, pelo menos um turno semanal para atividades
pouco permeáveis ao exercício da alteridade de planejamento e estudo.
com as crianças e com a comunidade onde No que diz respeito ao planejamento, es-
estas estão inseridas, reféns das questões de peciicamente, veriica-se que o calendário de
desenvolvimento, mais focados em uma pers- datas comemorativas assume uma posição de
pectiva de estimulação e aquisição de compe- centralidade. Algumas professoras referem o
tências do que nas questões centrais alavanca- desenvolvimento de mini-projetos a partir des-
das pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para se calendário, que na realidade representam o
a Educação Infantil (2009). desenvolvimento de uma série de atividades
Estas questões, que têm na proposta ao longo de vários dias, de modo geral desar-
pedagógica um pano de fundo, possuem uma ticuladas, em torno de uma temática comum.
densidade e uma complexidade signiicativas. Para muitas professoras é dolorosa a percep-
Apesar de terem sido objeto de análise siste- ção sobre o efeito massiicador dessa dinâmi-
mática pelos sujeitos ao longo de todo o per- ca, claramente materializada na uniformidade
curso de assessoramento, em muitos aspectos de conteúdos trabalhados nos diferentes gru-
permanecem como pontos de impasse ainda pos, desde o maternal até a pré-escola e, even-
em aberto. tualmente, até mesmo nos berçários.
O exercício de planejamento no trabalho
c) O planejamento com os bebês e com as crianças bem pequenas
mostra-se muito tímido junto ao contexto de
Em um contexto ideal as situações de assessoramento, havendo insegurança entre
planejamento possuem estreita relação com a as professoras quanto aos caminhos de articu-
proposta pedagógica da escola, e são construí- lação teórica e técnica. O trabalho com bebês
das em uma matriz signiicante onde as con- e crianças pequenas diz respeito a um campo
cepções de criança e de currículo assumem-se de conhecimento e investigação instigante,
como determinantes. As escolas em assesso- sendo reconhecidas as múltiplas competên-
ramento apresentam a reunião pedagógica cias destes pequenos sujeitos (Fochi, 2015). No

53
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

entanto, este campo ainda é pouco conhecido ção e discussão destes elementos ao longo do
e pouco reletido junto às escolas, prevalecen- assessoramento permitiu testemunhar uma
do as iniciativas apoiadas em concepções de movimentação crescente em torno do planeja-
desenvolvimento e estratégias de estimulação. mento autônomo nos diferentes grupos, com
No percurso de assessoramento mostraram-se processos um pouco mais lexíveis, em suces-
muito valiosas as articulações entre as concep- sivas aproximações e diálogos com as crianças.
ções de documentação pedagógica e progeta-
zione (Gandini e Goldhaber, 2002, p. 154; Fochi, d) Registro e avaliação
p. 82, 2015), favorecendo uma compreensão
da documentação enquanto ferramenta que As concepções e experiências de registro
possibilita a construção de um conhecimento e e avaliação encontram no plano ideal, do mes-
um diálogo respeitoso com a criança pequena. mo modo que o planejamento, estreita relação
Afasta-se da ideia de currículos predeinidos e com a proposta pedagógica. Foi possível veri-
estágios de desenvolvimento, e consequente- icar no assessoramento que as estratégias de
mente aproxima-se de uma ideia de aborda- registro das professoras vêm, de modo geral,
gem geral mais lexível e também complexa, na forma de compilação e colagem dos exer-
na qual são feitas hipóteses iniciais sobre o tra- cícios e atividades realizadas com as crianças
balho da sala de aula (...) que estão sujeitas a mo- em um caderno, a título de ilustração para os
diicações e mudanças de direção à medida que planos de aula. As crianças também possuem
o trabalho real avança (Gandini, p. 218, 2012). seus cadernos individuais ou pastas, onde são
Foi veriicada inicialmente uma única colocadas estas produções. Eventualmente,
experiência efetiva de trabalho com a metodo- estas são expostas em sala de aula, até serem
logia de projetos (Barbosa e Horn, 2008), com substituídas pelas atividades seguintes.
objetivos mais claros e uma abordagem parti- Naquilo que se refere à avaliação, as ex-
cipativa, focada na construção de um processo periências encontradas não são muito diver-
mais do que em resultados. Nesta situação, as siicadas. A elaboração de parecer descritivo
crianças tinham papel ativo, sendo buscada individual e a organização de cadernos ou
uma articulação das experiências e dos saberes pastas constituem as principais estratégias
destes pequenos sujeitos com os elementos
para acompanhamento do trabalho pedagó-
apresentados pela professora, em um contex-
gico e para avaliação da evolução das crianças.
to de pesquisa e sistematização. A investiga-
O formato predominante de parecer é aque-

54
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

le focado em aspectos de desenvolvimento, As discussões realizadas buscaram suporte


com atenção ao domínio de habilidades e nas concepções de documentação pedagógi-
competências sociais, afetivas, intelectuais e ca (Dahlberg, Moss e Pence, 2003; Gandini e
motoras das crianças, além de referências ao Goldhaber, 2002), de modo a incorporar uma
trabalho desenvolvido para alcançar estes ob- dimensão mais relexiva e democrática para
jetivos. É clara a relação com uma concepção as práticas pedagógicas, especialmente no
trabalho com as crianças em idade precoce
de aprendizagem apoiada na transmissão, fo-
no berçário e no maternal, favorecendo uma
cada em resultados e na explicitação dos mé-
ampliação do olhar. O entendimento de que
todos para se atingir estes resultados.
existe a possibilidade de integrar os atos de
Outro aspecto, que aparece como ele- observação e registro, e também os atos de
mento comum no conjunto das escolas, diz reletir, analisar e compartilhar parece abrir
respeito à inexistência de um tempo e espaço rotas alternativas nas relações com as crian-
assegurado para interlocução com as famílias ças, com o conjunto da equipe e, fundamen-
a respeito das estratégias ou conteúdos de talmente, com as famílias.
avaliação das crianças e do próprio trabalho
pedagógico. O repasse do material produzido e) A escolarização na educação infantil
pelas crianças, juntamente com a entrega do
parecer ou relatório, constituem as principais No princípio do projeto as experiên-
estratégias de compartilhamento e diálogo cias presentes nas escolas da amostra eram
sobre o percurso individual e coletivo das reveladoras de uma abordagem escolarizada,
crianças com as famílias. com um viés desenvolvimentista e preparató-
Ao longo de todo o assessoramento foi rio para alfabetização, a partir do maternal e
realizado um movimento de interlocução, re- especialmente nas turmas de pré-escola. As
letindo sobre esta noção pontual de registro práticas pedagógicas pareciam organizadas
e avaliação, buscando desconstruir a ideia de em uma dicotomia entre os momentos de
um foco restrito à criança e ampliando a aná- brincadeira livre ou dirigidas e os momentos
lise para o contexto das relações e das práti- de aprendizagem.
Os momentos de aprendizagem se-
cas pedagógicas. O registro e avaliação com
o foco nos processos é um movimento de di- guiam um padrão homogeneizado e estavam
fícil compreensão e assimilação ao cotidiano. presentes no cotidiano de todas as escolas da
amostra, dizendo respeito a atividades foto-

55
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

copiadas, baixadas da internet ou reproduzi- Ao longo do projeto vão sendo percebi-


das a partir de apostilas, que abarrotavam as das experimentações graduais, no sentido de
pastas e os cadernos individuais das crianças. dialogar com os interesses e curiosidades das
Em uma das escolas da amostra o município crianças. Mas, como já foi referido, este movi-
já havia realizado um investimento signiicati- mento de experimentação diz respeito a um
vo de recursos no apostilamento para a Edu- processo de apropriação que é lento, onde o
cação Infantil. Nos demais, as atividades eram desconforto de olhar para si mesmo só não é
bem ilustradas em planos de aula que se as- maior que o desconforto por abrir mão de cer-
semelham muito entre as diferentes escolas e tezas e convicções. Neste sentido, esse processo
seguiam uma rotina quase idêntica ao longo não passa por rupturas, mas por uma descons-
dos dias. trução progressiva, em uma caminhada que é
As atividades eram constituídas de dolorosa e que envolve certo luto. Muitas pro-
modo geral por exercícios visomotores de fessoras, ao analisarem suas práticas, comparti-
caçar ou reproduzir letras, identiicar cores, lham a angústia de estar diante de um abismo.
estabelecer relações entre iguras, letras e pa- Desse modo, o diálogo e a troca com os pares
lavras, recortar, picotar, colar, pintar em áreas cumpre uma função airmativa de novas possi-
ou iguras pré-determinadas. Atividades fo- bilidades e de deslocamentos do olhar, percor-
cadas no desenvolvimento de competências rendo as bordas de outros discursos.
preparatórias para alfabetização, entendida
como processo de aquisição e apropriação do f) A formação inicial e continuada
sistema da escrita alfabético e ortográico (Soa-
res, 2004, p. 16) fora de um contexto de letra- As discussões sobre formação inicial eram
mento e distantes de práticas sociais signiica- pautadas junto às escolas por argumentos de ges-
tivas de leitura e escrita. tão, relacionados a implicações e custos quanto à
nomeação de professoras. A maior parte dos mu-
nicípios costuma adotar a estratégia instrumental
de priorizar a nomeação de auxiliares ou monito-
ras, que são direcionadas para assumir a regência
das turmas, especialmente nos grupos de berçário
e maternal. Apesar de não ser reconhecido em ní-
Documentação trazida do contexto pelos formadores vel de discurso, está implícita a percepção da edu-
para análise: Maternal II em diferentes escolas. cação das crianças menores como uma modalida-

56
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

de menor de educação. A análise dialogada destas mento em um contexto de debate mais amplo e
questões permite reconhecer um impacto nas difícil, que tem como horizonte o imperativo de
relações de trabalho, relacionado especialmen- uma política de recursos humanos própria para a
te ao temor de eventuais demandas trabalhistas, Educação Infantil. Uma política com a estrutura-
criando um clima de desconforto na relação entre ção de um quadro de pessoal, um plano de car-
auxiliares e professoras. Nestes casos, o planeja- reira, de cargos e salários e, fundamentalmente,
mento e o parecer sobre as crianças permanecem um processo de formação continuada, que esteja
a cargo das coordenações pedagógicas, trazendo pautado por pressupostos éticos e políticos, reco-
sérias implicações sobre as práticas pedagógicas e nhecendo a necessidade de constituir direções e
acrescentando um componente de alienação ao coordenações pedagógicas legítimas e fortaleci-
trabalho. O deslocamento do debate para o cam- das junto às escolas.
po político-pedagógico constitui um desaio per-
manente no contexto de assessoramento. g) O lugar da coordenação pedagógica
Os processos de formação continuada em
geral são organizados de modo a suprir carências As professoras indicam ao longo do as-
especíicas e conferir alguma homogeneidade ao sessoramento uma carência nas escolas quanto
trabalho, sendo comum a contratação de institui- a espaços e momentos de trabalho coletivo e de
ções de ensino superior ou proissionais de fora do relexão, levando a uma análise sobre a função e a
município para o desenvolvimento de palestras atuação das coordenações pedagógicas junto ao
ou oicinas. Os eixos de trabalho costumam estar contexto. O aspecto de potencialidade existente
relacionados aos planos de estudos do município, nos processos de interlocução foi exaustivamente
abordando temas como planejamento, avaliação, explorado no assessoramento, especialmente ao
currículo, educação inclusiva, relações professor- longo do segundo ano, quando estas experiências
-aluno, musicalidade, além de temas como disci- tiveram um caráter mais vivencial e relexivo.
plina, agressividade, sexualidade, em uma pers- A coordenação pedagógica da escola está
pectiva de desenvolvimento. pressuposta neste lugar de interlocução, de guar-
O debate sobre planejamento estratégico diã das conexões (Gandini, p. 90, 2012). A proble-
em nível de gestão tomou contornos nítidos no matização deste lugar desestabiliza os sujeitos,
decorrer do projeto de assessoramento, haven- desconstrói a zona de conforto que vem apoiada
do municípios da amostra que redirecionaram em uma inserção proissional burocratizada e de
editais de concurso, priorizando a contratação de gabinete. Desaia a pensar uma atuação produ-
professoras em detrimento de outros cargos. Estas tora de alteridade, com articulações individuais e
movimentações vão acontecendo no assessora- coletivas, não somente com as professoras e de-

57
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

mais proissionais da equipe; uma articulação com Neste sentido, a sala do grupo e a escola são mais
as famílias e com a comunidade onde a escola do que simplesmente um espaço onde as coisas
encontra-se inserida, em uma relação com o currí- acontecem. Trata-se de um ambiente que exerce
culo e com o contexto vivo; uma articulação entre função simbólica, que favorece ou limita o desen-
a teoria e a prática, desaiando a documentação, volvimento intelectual, a imaginação, a criatividade
a socialização e relexão sobre as experiências; e, e a troca com outras crianças e com os adultos. Esta
fundamentalmente, uma articulação e um diálo- discussão nas escolas remete a uma percepção ini-
go com os sujeitos infantis. cial de empobrecimento. As próprias professoras
Ao pensarmos coletivamente sobre estes reconhecem os grandes espaços planos e vazios,
aspectos nas escolas da amostra, começa a tomar ou então espaços povoados por mesas, classes e
forma uma noção de formação em contexto, onde cadeiras, em uma perspectiva de escolarização que
os elementos do cotidiano podem ser elevados a ca- limita e despotencializa as vivências lúdicas, afeti-
tegorias de análise, vindo a se constituir objetos de vas e intelectuais das crianças. Os espaços educa-
conhecimento e de intencionalidade pedagógica. tivos que escapavam desta impressão no início do
Esta noção de formação em contexto orga- projeto eram excepcionais.
niza um endereçamento ao lugar da coordenação
pedagógica. Ao distanciar-se do pressuposto de um
interlocutor ou pesquisador externo, a formação em
contexto abre um conjunto de possibilidades mais
próximas da realidade, demarcando um empode-
ramento local e, por isso mesmo, uma dimensão de
responsabilidade que gera insegurança em algumas
proissionais.
Trata-se de um elemento que nos faz pensar
na importância de estratégias de formação conti-
nuada e de instrumentalização teórica e técnica para
as coordenações pedagógicas.

h) A construção de territórios

As crianças possuem uma característica ine-


rente de interagir com os pares e com os ambien-
tes onde se encontram, constituindo um território.

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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

carinhosamente acolhida como um processo,


de modo a compreender juntamente com os
sujeitos as contradições em nível de discursos
e de práticas. Existe uma diiculdade em reco-
nhecer estas contradições como aspectos de
um processo que exige um tempo de assimi-
lação e elaboração. E, por outro lado, uma dii-
culdade em se reconhecer o papel da coorde-
nação pedagógica no mapeamento e relexão
coletiva sobre estas contradições.
O diálogo com as culturas infantis passa
necessariamente pela valorização das produ-
ções individuais e coletivas das crianças, sejam
elas pinturas, colagens, desenhos, rabiscos,
esculturas de barro ou sucata, materiais natu-
Documentação trazida do contexto pelos formadores para
análise: Maternal II e pré-escola I em diferentes escolas rais coletados no ambiente externo, registros
de investigações e pesquisas, bem como as
Outro aspecto que emerge da análise
referências pessoais e familiares, que se apre-
diz respeito à estética das salas, marcada por
sentam no discurso, nos traços de memória,
uma carência quase absoluta de expressão das
nas fotograias e em outros objetos trazidos
identidades e das culturas infantis. Muitos es-
paços eram coloridos e repletos de adereços do contexto familiar. Passa fundamentalmente
decorativos, com uma onipresença de mode- pelo reconhecimento da criança, mesmo em
los produzidos e massiicados pela cultura de idade precoce, como sujeito curioso, que obser-
consumo. É muito interessante acompanhar va e brinca, que ao brincar constrói hipóteses e
no assessoramento o modo como o discurso aprende, na relação com o outro e com o mun-
dos sujeitos vai buscando uma apropriação do, um sujeito que tem imaginação e, por isso
destes códigos de leitura da realidade, nas mesmo, fantasia, deseja, constrói sua identida-
preocupações conceituais, que vão produzin- de e produz cultura. Neste sentido, percebe-se
do novos sentidos para experiências tão en- um movimento progressivo de diálogo onde
raizadas. Uma apropriação que não é rápida as identidades infantis vão muito lentamente
e nem assegurada na partida, que precisa ser construindo pequenos territórios.

59
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

i) A infância que transborda

É da condição humana esta busca pelo


outro, especialmente na infância. Curiosamente,
este movimento perseguido insistentemente
pelas crianças, através do brinquedo, do faz de
conta, através da conexão com o outro, acaba
colocando-se como transgressivo, subvertendo
a tarefa proposta em algo colorido, divertido.
Durante a observação participante, em uma
das escolas da amostra, um grupo de crianças
trabalhava sobre a semana da pátria. Deveriam
escrever a palavra BRASIL com massinha de mo- Tio, esse é o meu bigode Chinês...

delar. A professora dava dicas de como fazer O desejo das crianças realmente parece
para aquela pequena bolinha de massa render maior. Transborda para além das tarefas pro-
tantas letras. As crianças que conseguiam inali- postas, como se transitasse por caminhos di-
zar a tarefa tinham que esperar pelas outras. E as ferentes. Como se a infância izesse resistência,
outras, bem, as outras... entrincheirada na fantasia. Durantesituação
de observação participante em outraescola da
amostra, uma das crianças, um menino, icou
intrigado com a presença do formador. Mordia
os dedos tentando entender a presença deste
estrangeiro em seu grupo, quando se deu por
conta que lhe faltava um dente na boca. Não
teve dúvida, levantou-se de onde estava e veio
mostrar a gengiva reluzente. Logo a turma
inteira cercava o formador para mostrar seus
buracos e os dentes moles. Contavam histó-
rias sobre a fada dos dentes, sobre a mamãe
guardar em uma caixinha, sobre a troca por
Eu já tô pronto... dinheirinho ou presentes, queriam saber se o

60
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

formador também havia perdido seus dentes.


Quando a professora recomendou que todos
voltassem para os seus lugares para terminar
a atividade. No dia anterior, já haviam passa-
do um pincel atômico sobre o contorno pon-
tilhado de um Curupira fotocopiado. Estavam
trabalhando sobre folclore. Neste dia, deve-
riam pintá-lo com giz de cera. A professora foi
solicitando às crianças que recordassem como
era o Curupira, qual era a cor do cabelo. Ainal,
todos sabem que o Curupira tem o cabelo ver-
melho. Aquele mesmo menino olhava para o ...só tem dente em cima...
seu Curupira, olhava para o formador. Não con-
Considerações inais
seguia entrar no clima. Quando teve um estalo
e levantou novamente com o seu trabalho em
O formato de assessoramento às escolas
mãos. Antes de ser chamado para retornar ao
através de visitas técnicas passou por um pro-
seu lugar na sala, teve a oportunidade de inter-
cesso dinâmico de análise e transformação. A
pelar o formador: “Olha só, coitado desse Curu-
construção de uma interlocução com os sujei-
pira, só tem dente em cima!”
tos tornou possível esta revisão das ferramentas
metodológicas. Curiosamente, a interlocução
que sustentou este processo foi a mesma que
permitiu reconhecer previamente a necessida-
de e o caráter imperativo desta transformação.
Ao discutir o percurso de assessoramen-
to somos colocados diante de um dado de rea-
lidade que merece nossa atenção. Este dado
diz respeito aos momentos de interlocução e
troca dentro das equipes das escolas, os quais-
permanecem como um território a ser explo-
rado. O exercício de discussão e avaliação dos
Olha só o meu dentinho...

61
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

processos de trabalho e das práticas pedagó- de buscar referências mais consistentes para
gicas encontra-se muito distante do cotidiano a construção das práticas pedagógicas e para
dos espaços educativos. a organização dos processos de trabalho. Um
Neste sentido, é relevante o fato de que esforço que busca amarração com os marcos
em todas as escolas da amostra foi manifesta- teóricos e legais, representados especialmen-
da como imperativa a demanda de ampliação te pelas DCNEI (2009). No entanto, os avanços
do assessoramento ao conjunto dos proissio- construídos pelas escolas ao longo do projeto
nais que constituem a equipe das instituições, de assessoramento contrastam com a sua pró-
desde a direção, a coordenação pedagógica, pria fragilidade, denotando a fragmentação e a
professoras, auxiliares e monitoras, estagiárias, necessidade de aprofundamento.
administrativo, até a cozinha e a limpeza, de A ideia de construção de processos transita
justamente por esta via. Esta construção diz res-
modo a democratizar o acesso aos espaços de
peito a relações complexas e jogos de força mui-
formação e de interlocução.
to diversos. Relações que se airmam no campo
Ao inal do projeto, nas últimas ativida-
ético e político, que estão articuladas com con-
des de formação em contexto, o convite para
dições trabalho, com possibilidades de valoriza-
participação já se encontrava estendido aos re-
ção proissional, e que possuem uma dimensão
presentantes das famílias com crianças matri-
social e afetiva importante. Relações complexas,
culadas na escola. Esta tendência progressiva
que exercem efeitos sobre as práticas pedagó-
de ampliação do circuito de discussão parece
gicas e sobre a construção da identidade pro-
sinalizar para um desejo de abertura dos pro-
issional, estruturando um percurso que não é
cessos de relexão e de decisão nos espaços
linear e tampouco uniforme.
educativos, em um contexto de diálogo que
Esta fragilidade demonstra também a di-
não se conigura como massiicador ou esva-
iculdade efetiva de apropriação das ferramen-
ziado de objetivos e intencionalidade. Pelo
tas de trabalho pelos sujeitos no campo teórico
contrário, parece apostar com otimismo na
e técnico, sinalizando carências históricas que
construção de um contexto acolhedor da al-
remontam aos processos de formação inicial,
teridade, buscando pontos de convergência e
reletindo trajetórias com propostas acadêmicas
não necessariamente pontos de consenso.
desconectadas e desprovidas da capacidade de
É inegável que existem experiências be-
articulação e diálogo com a realidade. É neste ce-
líssimas de interlocução com as crianças em
nário que as equipes das escolas constroem seus
escolas da amostra. Neste mesmo contexto, é
percursos, fazendo-nos pensar que a atuação na
inegável também o esforço intenso no sentido

62
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS

Educação Infantil tem a ver com um trabalho de A revisão da metodologia de assessora-


trincheira, onde a infância faz resistência. mento em um contexto de discussão e avalia-
Neste cenário, o trabalho sistemático de ção coletiva permitiu a vivência e a percepção
formação continuada com professoras e demais de um elemento fundamental para pensarmos
integrantes das equipes assume uma importân- a formação continuada e a avaliação no campo
cia fundamental. Mas não se trata de uma for- da Educação Infantil. Este elemento está rela-
mação qualquer, que diga de um sujeito infantil cionado ao pressuposto de que a transforma-
abstrato ou de abordagens prescritivas. ção da realidade passa necessariamente pela
Trata-se de incorporar aos processos for- construção de processos coletivos, onde a pro-
mativos códigos que permitam dialogar com blematização e a interlocução entre os sujeitos
o contexto, abrindo um espaço de reconhe- assumem um papel determinante, instituinte
cimento das crianças como sujeitos potentes, de novas práticas e novos saberes.
desejantes e produtores de culturas. Mais do
que isso, um reconhecimento e um diálogo Referências bibliográicas
com estes pequenos sujeitos que dizem de
uma história pessoal, familiar e comunitária.
BARBOSA, Maria Carmen Silveira; HORN, Maria da
Diálogo efetivo, de modo que estes elementos
Graça Souza. Projetos Pedagógicos na Educa-
possam ter materialidade nas relações com as
ção Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2008.
crianças e nos processos de decisão sobre os
espaços, os materiais, as rotinas, os planeja- BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curri-
mentos, as documentações e as práticas peda- culares Nacionais para a Educação Infantil. Re-
gógicas em um sentido amplo. solução CNE/CEB nº 05/2009 de 17 de dezembro
Uma formação em contexto que permita de 2009. Brasília: CNE/CEB. Dez, 2009.
realizar a análise sistemática das práticas peda- BRASIL. Ministério da Educação. Indicadores de
gógicas e das concepções que oferecem sus- Qualidade na Educação Infantil. Brasília: CNE/
tentação para estas práticas. Uma identidade CEB, 2009.
de formação em contexto que não requeira ne-
cessariamente um interlocutor externo, e que CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginá-
possa estar referenciada à coordenação peda- ria da sociedade. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra,
gógica da escola, potencializando os espaços e 1995.
tempos de discussão coletiva e de supervisão DAHLBERG, Gunilla; MOSS, Peter; PENCE, Alan.
individual, em processos que sejam produto- Documentação pedagógica: uma prática para a
res de alteridade.

63
Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder

relexão e para a democracia. In ____: Qualidade Portugal: Porto, 2013.


na educação da primeira infância. Porto Ale- MELO, Regina Lúcia Couto de. Orientações para
gre: Artmed, 2003, p. 189-207. o planejamento da expansão da Educação
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Infantil e para a implantação das Instituições
Perspectiva, 1999. de Educação Infantil no contexto dos Municí-
pios do Rio Grande do Sul conveniados com
FREIRE, Madalena. Dois Olhares ao espaço-ação
o Proinfância e Indicadores de Qualidade na
na pré-escola. In MORAIS, Regis de. Sala de aula:
Educação Infantil. Projeto OEI/BRA/09/001: For-
que espaço é esse? 7. ed. Campinas, SP: Papirus,
talecimento Institucional das Secretarias Munici-
1994.
pais de Educação na Formulação e Implementa-
GANDINI, Lella. As vozes essenciais dos professo- ção da Política Municipal de Educação Infantil /
res: conversas a partir de ReggioEmilia. In ____: O Produto 4, p. 8, 2011.
papel do ateliê na educação infantil: a inspira-
SOARES, Magda. Letramento e alfabetização: as
ção de Reggio Emilia. Porto Alegre: Penso, 2012,
muitas facetas. Revista Brasileira de Educação,
p. 75-90.
n. 25, 2004. Disponível em:<http://www.scie-
GANDINI, Lella; Goldhaber. Duas relexões sobre lo.br/pdf/rbedu/n25/n25a01.pdf>. Acesso em:
a documentação. In: GANDINI, Lella; EDWARDS, 20set. 2015.
Carolyn. Bambini: A abordagem italiana à Edu-
cação Infantil. Porto Alegre: Artmed, p. 150-169,
2002.
LAPASSADE, Georges. L’Observation participan-
te. Revista Europeia de Etnograia de Educa-
ção, 2001, nº 1, p. 9-26.
FOCHI, Paulo. Ainal, o que os bebês fazem no
berçário? Comunicação, autonomia e saber-fa-
zer de bebês em um contexto de vida coletiva.
Porto Alegre: Penso, 2015.
FORMOSINHO, Júlia Oliveira; ARAÚJO, Sara Bar-
ros. Educação em Creche: Participação e Diver-
sidade. Série Infâncias, Contextos, Diversidades.

64
3
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA
POLÍTICO PEDAGÓGICA

Regina Lúcia Couto de Melo

Introdução cação infantil. Destaco neste texto as narrativas


produzidas por essas proissionais, resgatando
Este texto toma como ponto de partida o elementos do diálogo estabelecido naquele
trabalho desenvolvido no assessoramento para momento, enfatizando as diferentes experiên-
implantação das escolas no âmbito do Progra- cias de trabalho com as crianças e oferecendo
ma Nacional de Reestruturação e Aquisição de elementos para a continuidade da construção
Equipamentos para a Rede Escolar Pública de das obras político pedagógicas.
Educação Infantil - Proinfância - do Rio Gran-
de do Sul (2010/11). Apresenta um panorama 1. A organização do trabalho de asses-
geral sobre o acesso à educação infantil no pe- soria aos municípios
ríodo 1997-2008 e alguns desaios enfrentados
pelos municípios integrados ao Proinfância A assessoria desenvolvida no âmbito do
durante o período do assessoramento. Em se- Proinfância do Rio Grande do Sul é parte do
guida, trata de um outro momento deste Pro- projeto “Fortalecimento Institucional das Se-
grama (maio 2015) quando participei de uma cretarias Municipais de Educação na Formula-
roda de conversa no II Seminário Regional do ção e Implementação da Política Municipal de
Proinfância (Santa Maria), junto a professoras Educação Infantil”, deinida pelo MEC/COEDI
e gestoras públicas que apresentaram suas ex- de forma integrada ao Plano de Desenvolvi-
periências relativas aos processos formativos e mento da Educação(PDE, 2007), tendo como
as mudanças das práticas pedagógicas na edu- objetivo:

69
Regina Lúcia Couto de Melo

dadãs e de trabalho dos e das proissionais da


[…] estruturar e desenvolver processos de educação, a produção acadêmica e documen-
planejamento técnico-pedagógico e de ges-
tos produzidos pelo MEC sobre os direitos das
tão/avaliação da política de educação infan-
til nos municípios que integram o Programa crianças e a qualidade da educação infantil.
Proinfância, tendo em vista a implantação e O marco legal da educação infantil for-
aprimoramento das propostas pedagógicas
nas escolas (Ministério da Educação/Secreta-
mulado com a participação da sociedade foi
ria de Educação Básica. Termo de Referência, instituído pela Constituição Federal (BRA-
Edital 151/2010). SIL,1988) e alterado por meio de duas Emen-
das Constitucionais ( EC nº53, 2006; e EC
Esta ação denominada pela coordena- nº59,2009). Essas emendas geraram leis que
ção da COEDI/MEC como “obra político peda- regulamentaram temas especíicos, principal-
gógica” reconhece a necessidade de trabalhar mente o inanciamento e atualizaram a prin-
com as equipes das Secretarias Municipais de cipal norma jurídica no campo da educação, a
Educação, de forma análoga ao projeto arquite- Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional/
tônico, construindo as bases para sua deinição LDB nº9394(BRASIL,1996). A primeira alteração
de forma coletiva, compartilhada com diferen- sobre o direito à educação infantil está referen-
tes atores sociais. Não bastava o entendimento ciada na idade de 6 anos para o ingresso no en-
e a aplicação das Diretrizes Curriculares Nacio- sino fundamental, determinando o limite entre
nais da Educação Infantil ( BRASIL, 2009b,c), esta etapa da educação básica e o da educação
como referencial estruturante da ocupação infantil. Além disso, determinou pela primeira
dos prédios construídos com recursos federais. vez o dever do Estado de prover recursos espe-
O pressuposto é que os espaços físicos proje- cíicos para a educação infantil, como primeira
tados como espaços educativos dependem de etapa da educação básica, por meio da criação
projetos pedagógicos para se transformarem do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
em espaços educativos das crianças daque- da Educação/Fundeb ( BRASIL, 2006). Seguin-
la comunidade, cidade, Estado. As referências do o mesmo princípio da participação demo-
para a construção da obra pedagógica são crática, outras dimensões que coniguram a
principalmente as normas jurídicas sobre o di- qualidade da educação infantil foram regula-
reito à educação infantil e as regulamentações mentadas pelo Conselho Nacional de Educa-
das políticas públicas; as experiências cidadãs ção(CNE), Conselhos Estaduais e Municipais
das crianças e suas famílias, as experiências ci- de Educação, entre outros: os processos de in-

70
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

tegração das instituições de educação infantil […] a dívida da sociedade e da educação bra-
sileira para com as crianças pequenas é enor-
pelos sistemas de ensino, a gestão pedagógica, me, o déicit da oferta é intenso e mais inten-
a gestão operacional, os planos de carreira e a so, para grupos sociais mais necessitados; a
formação de professores, etc. Podemos air- qualidade da oferta é precária (ROSEMBERG,
2010, p.178).
mar com o apoio da análise recente de ROSEM-
BERG ( 2015, p.217- 218) sobre as políticas pú-
Esta breve contextualização do pon-
blicas e a qualidade da educação infantil, que
to de vista macro político é importante para
os investimentos apoiados pelos movimentos
considerar os pressupostos do trabalho de
sociais, inicialmente contra o “atendimento po- assessoramento aos municípios na constru-
bre para pobre”, se deslocaram para o “ordena- ção da “obra político pedagógica” e ressaltar
mento legal e político”. Sintetizando, a política as características do assessoramento, não só
nacional (ROSEMBERG,2015,p.220- 221) vem particularizando a implantação de novas es-
reforçando desde 1993, uma concepção de colas, mas considerando-as, como parte de
criança, como sujeito social e histórico, marca- uma política municipal de educação infantil.
da pelo meio social e construtora da socieda- Ou seja, considerando as características des-
de e das culturas. Então, podemos considerar sas políticas no Rio Grande do Sul, as tensões
que a direção normativa e política centrada no próprias do direito à educação em contextos
direito das crianças são recentes e avançaram de desigualdades sociais, a diferenciação e não
muito quando comparamos o momento atual hierarquização do sistema federativo brasilei-
com a invisibilidade de bebês e crianças pe- ro, e a descentralização como uma determina-
quenas nas políticas educacionais das décadas ção constitucional das políticas de educação
de 1980. No entanto, esta posição alcançada dirigidas às crianças de 0 a 5 anos, seguimos as
no marco legal e na política nacional é ainda seguintes orientações no assessoramento aos
mais recente em relação aos investimentos re- municípios:
lativos ao acesso público de qualidade (PROIN-
FÂNCIA,2007), contemporâneos da inclusão da - A intenção de inluenciar práticas educati-
educação infantil na política de inanciamento vas e políticas públicas municipais em con-
sonância com as novas Diretrizes Curriculares
da educação básica (Fundeb). Por outro lado, a Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) foi
mesma pesquisadora enfatiza a persistência de explicitada para os dirigentes e gestores dos
desigualdades educacionais, logo após a insti- municípios que integraram o estudo, e a par-
ticipação voluntária dos mesmos é parte de
tuição do Fundeb: um compromisso político de contribuir para a

71
Regina Lúcia Couto de Melo

democratização da educação infantil de qua- -escola do ponto de vista quantitativo, no pe-


lidade.
ríodo anterior ao assessoramento, para situar
- As diferenças culturais e sociais, assim como
as desigualdades e condições de cada municí- em parte alguns desaios enfrentados pelos
pio para gerir políticas públicas de educação municípios. O conteúdo desenvolvido não
infantil foram consideradas na composição
da amostra dos municípios que integraram o
permite estabelecer relações de causa e efeito,
estudo. típicas de pesquisas de impacto, mas podem
- A opção pela associação das atividades de esclarecer determinadas condições da implan-
estudo, apoio técnico e acompanhamento
tação das novas escolas.
justiicada pelo favorecimento da análise das
condições de oferta da educação infantil pe- O assessoramento aos municípios do
los próprios dirigentes, gestoras(es) e profes- Proinfância ocorreu no período entre a EC
soras(es). A delimitação de situações proble-
ma para intervir, segundo um plano de ação nº59/ 2009 e a Lei 12.796/2013, que atuali-
deinido pelo dirigente e sua equipe pedagó- zou a LDB (1996), em relação a faixa etária da
gica constituiu-se em um instrumento impor-
tante para ampliar a capacidade de planeja-
pré-escola e a obrigatoriedade (4 e 5 anos)e
mento e avaliação de políticas e projetos, com incorporou nesta norma legal a cobertura de
foco nas instituições de educação infantil (IEI). programas de material didático, transporte es-
- A realização de reuniões periódicas (bimes-
colar, assistência à saúde a todas as etapas da
trais) com a presença de representantes de
municípios da amostra e de municípios vizi- educação básica1. Além da extensão do direito
nhos, assim como as consultas por e-mail e público subjetivo para a educação básica obriga-
as reuniões estaduais com a participação de
centenas de representantes dos municípios tória e o recenseamento anual, como dever do
para debater problemas comuns e modos de poder público.
atuação do poder público municipal e de seus
Destaca-se que o Rio Grande do Sul teve
parceiros no enfrentamento dos problemas
detectados, pode resultar na emergência e/ uma pequena expansão da oferta da educação
ou fortalecimento de redes de parceiros para infantil no período de 1997 a 2008, aquém da
ações especíicas e lutas comuns. (Conteúdo demanda, portanto, tinha uma grande “dívida
extraído do Produto nº4, produzido por MELO
(2011) para o MEC.) social histórica” com a educação das crianças
de 0 a 5 anos, especialmente com a educação
2. A dívida social e os desaios enfrenta- das crianças de 0 a 3 anos e crianças do campo.
dos pelos municípios
1 A obrigatoriedade da matrícula na pré-escola (Emenda
Constitucional nº59,2009) se refere à obrigação das famílias. O
Estado pela Constituição Federal (1988) e pela LDB(1996) deve
No espaço restrito deste texto, vamos
prover a oferta gratuita de educação infantil às crianças de até 5
apontar a situação do acesso à creche e à pré- anos de idade( BRASIL, 1996, art.4º, Inciso II; EC nº53,2006).

72
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

A referida Unidade Federada ampliou o aces- por promotores públicos no processo con-
temporâneo de judicialização da educação
so à creche em 11,5 pontos percentuais entre
infantil (ARTES & UNBEHAUM, 2015, p.228).
1997 e 2008, se posicionando abaixo do cresci-
mento da Região Sul, que atingiu 17,3 pontos
Ressalta-se que o trabalho de monitora-
percentuais. Para o mesmo período, o acesso
mento das taxas de atendimento da educação
à pré-escola é mais favorável à inclusão das
infantil e a política desenvolvida pelo Tribu-
crianças de 4 a 6 anos, que cresceu 16,3 pontos
nal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
percentuais. No entanto, o acesso à pré –escola
contribuiu positivamente para a alteração da
na Região Sul icou aquém das demais regiões
posição deste Estado no cenário nacional, con-
brasileiras. (CIEP, 2010).
forme demonstra (FLORES, 2015). Em 2010, o
A produção acadêmica sobre as desi-
conhecimento da população sobre os direitos
gualdades educacionais geralmente aborda o
das crianças e a expansão do mercado de tra-
território nacional e grandes regiões, apontan-
balho para as mulheres ampliaram a demanda
do diferentes fatores explicativos em função da
deinição do objeto de estudo e da abordagem pela educação infantil. Por outro lado, a nova
ao longo da história da educação brasileira (OLI- escola em vários municípios, apesar de signi-
VEIRA & SANTANA,2010 e ARTES & UNBEHAUM, icar uma oportunidade de acesso à educação
2015). Em relação à educação infantil destaca-se infantil com infraestrutura de qualidade, não
os estudos de Fúlvia Rosemberg, desde a década supria o número de vagas das listas de espera.
de 1980 até recentemente, demonstrando pela E os municípios que implantavam escolas no
análise comparativa e de séries históricas que as início do ano letivo só tinham inanciamento
diferenças de acesso à creche e à pré-escola são para custeá-las no ano seguinte. Portanto, nes-
mais signiicativas entre regiões/localização do te cenário as políticas municipais continuavam
domicílio, do que as relativas a outras variáveis, a estabelecer critérios para o acesso à educa-
como raça/cor, meninas/meninos, atribuindo ção infantil, geralmente focados nas condições
esta ocorrência ao: socioeconômicas das famílias.
Apesar dos estudos realizados durante
[…] processo histórico de criação de progra- o processo de assessoramento, por meio de
mas para a então denominada “população questionários eletrônicos respondidos pelos
carente” e a oferta municipal e conveniada
frequentemente estabelecer prioridade para dirigentes municipais, que revelavam a inten-
crianças provenientes de famílias com níveis ção de atenderem de crianças de 0 a 3 anos,
inferiores de renda, opção também reforçada
no limite da capacidade máxima das salas dis-

73
Regina Lúcia Couto de Melo

poníveis das escolas do Proinfância, no conta- colaboram para incidir em instâncias políticas,
to direto ressaltavam os desaios para atender para além do campo da educação infantil, como
crianças menores de 3 anos, pelas exigências o plano diretor; as políticas econômicas e tributá-
de novos recursos inanceiros e: demanda so- rias locais, de combate à sonegação de impostos,
cial e de direito de cuidar e educar em período reduzindo gradativamente a dívida social com as
integral; custos mais elevados que outros ní- crianças pequenas das zonas urbana e rural.
veis de ensino; atendimento de menor número O processo de assessoramento focava
de crianças por turmas em relação às turmas principalmente em suportes conceituais e aná-
de pré-escola; pouca ou nenhuma experiência lise das práticas pedagógicas, sensibilizando
acumulada de atuação com bebês; formação decisores ao analisar as políticas municipais de
inicial precária dos professores para atender educação infantil, incluindo as instituições dos
esta faixa etária; investimentos necessários em sistemas de ensino afetos à regulamentação e
formação em serviço, entre outros motivos. autorização para funcionamento das escolas.
Desta forma, ainda sem o apoio pela União de Quanto à integração da educação infantil nos sis-
antecipação dos valores do Fundeb2, referen- temas de ensino veriicamos que havia a preva-
tes às novas matrículas, os municípios tendiam lência de funções normativas e função formativa
a transferir em parte ou a totalidade das crian- de reconhecimento das crianças de 0 a 3 anos,
ças que frequentavam escolas precárias para como sujeitos de direitos, não era exercida. Não
as novas escolas e continuavam a praticar cri- havia um trabalho para que as instituições de
térios eletivos para o acesso à creche. educação infantil cumprissem determinadas exi-
Neste cenário, há muitos outros determi- gências legais, com suportes para professores e
nantes a serem considerados, como os relativos a gestores.
déicits de terrenos para construir novas escolas; As devolutivas das observações realiza-
capacidade de gerenciamento da política muni- das nas escolas se constituíram em momentos
cipal de educação infantil; abertura de canais de importantes para reletir sobre as condições da
participação e controle social pela sociedade que oferta pública e as políticas públicas de acesso.
As tendências veriicadas na análise dos
2 A partir de 2013 foi criado pelo MEC/FNDE o “Módulo Edu- projetos político pedagógicos e nas práticas
cação Infantil Manutenção” do SIMEC de análise e aprovação das
pedagógicas observadas possuem uma forte
solicitações dos municípios e DF para a transferência de recursos
destinados a ampliação do acesso à educação infantil, contem- vinculação com as políticas de acesso à educa-
plando as novas turmas de educação infantil( creche e pré-esco-
ção infantil. Embora sejam ações de natureza
la). As unidades do Proinfância foram contempladas, segundo os
mesmos critérios das novas turmas pela Lei 12.499 (29/9/2011). diferente, expressam valores ainda dominan-

74
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

tes na sociedade, para as crianças mais pobres, 3. A visão das professoras sobre a cons-
escolas como espaço disciplinador das mes- trução da obra político pedagógica com
mas. Mas esta ideologia está se modiicando, a colaboração das crianças
pelos processos formativos vivenciados pelas
professoras, com foco nas crianças reais, como Em primeiro lugar, é preciso destacar
sujeitos de direitos sociais e culturais; com in- que esta síntese deve ser entendida como uma
vestimentos de recursos pedagógicos que reunião de anotações e registros feitos a partir
enriquecem os ambientes de aprendizagem e das narrativas das professoras e gestoras e das
a auto-observação das professoras, como me- apresentações realizadas dia 14/5/15, durante
diadoras de processos educativos. o II SEMINÁRIO REGIONAL – PROINFÂNCIA
Algumas questões sobre a especiicida- (Santa Maria/RS). Abrange aspectos relevantes
de do trabalho docente na educação infantil para as participantes da roda de conversa,
monopolizaram minha atenção, em relação que demandam uma atenção continuada
ao que observava como práticas repetitivas e para sustentar a renovação em curso e me
de instrução, por exemplo: colorir desenhos
senti privilegiada nesta interlocução sobre
prontos, enileirar crianças para qualquer des-
os processos de mudança das práticas
locamento, horas padronizadas para dormir, al-
pedagógicas na educação infantil, cuja
fabetos enileirados acima do campo de visão
atualidade e pertinência é muito signiicativa.
das crianças, permanência das crianças vendo
As narrativas escritas se dividem em in-
programas de TV, crianças durante longos pe-
dividuais (5) e em grupo de no máximo 3 pro-
ríodo em sala de aula e não exploração dos am-
issionais (5); enfocam diferentes temas e têm
bientes externos da escola, tendo como refe-
em comum o destaque de duas ações, coor-
rência modos de ensinar para crianças maiores.
O convite para participar da roda de denadas pelas equipes de três universidades
conversa no II Seminário Regional do Proin- - UFSM, UNIJUI e UFPF:
fância foi uma oportunidade importante para - o processo de formação continuada -
nas narrativas escritas.
retomar uma interlocução com professoras e
- as visitas técnicas envolvendo observa-
gestoras que participaram de processos for-
ções e devolutivas - nas narrativas orais, duran-
mativos nas universidades e este diálogo me
te a roda de conversa.
motivou a participar desta publicação.
As questões que me instigaram tomam
como referência o conceito de currículo da

75
Regina Lúcia Couto de Melo

educação infantil das DCNEI (BRASIL, 2009b), Como é visto o despertar para um trabalho
entendido como parte do projeto político pe- sistemático de relexão coletiva que permi-
dagógico: te emergir um novo sentido ao signiicado
desgastado e desvalorizado da experiência
[…] conjunto de práticas que buscam articu- escolar para crianças pequenas?
lar as experiências e os saberes das crianças
com os conhecimentos que fazem parte do
patrimônio cultural, artístico, cientíico e tec- […] Pensar os espaços da escola e suas pos-
nológico. Tais práticas são efetivadas por meio sibilidades, como algo que nos desacomoda
de relações sociais que as crianças desde bem exige romper com paradigmas que vão além
pequenas estabelecem com os professores e da sala de aula (Quinze de Novembro).
as outras crianças, e afetam a construção de […] Um dos maiores desaios vivenciados
suas identidades (BRASIL, 2009b, p.6). nesse processo foi compreender que não pre-
cisamos seguir sempre pelos mesmos cami-
nhos enrijecidos […] Quando o professor tem
As apresentações na roda de conversa a oportunidade de pesquisar a sua própria
foram muito além das narrativas escritas, reve- prática, ele coloca-se no lugar de produtor de
lando desenvoltura e espontaneidade, essen- conhecimento[…] (Santo Augusto).

ciais para deter a atenção de todas e contex- […] Caminhada construída no cotidiano […]
Medo da mudança […]Desejo de fazer dife-
tualizar os diferentes momentos das políticas rente […] Reconhecer a criança, como ator
municipais de educação. Além disso, relata- principal da sua própria aprendizagem (Te-
ram os sentimentos presentes nos processos nente Portela).

formativos que vivenciaram: angustiadas no […] Encontramos muitos desaios e barreiras


impregnadas em práticas engessadas na me-
momento que receberam a devolutiva das ob- todologia tradicional, ocorreu resistência a
servações feitas pelas professoras das universi- mudança e a possibilidade de um novo olhar
dades e valorizando muito as incertezas e inse- às variadas infâncias e que cada criança é uma
e traz consigo vivências e experiências que
guranças sobre as mudanças no cotidiano das podem sim contribuir para o crescimento e
escolas. Apurei minha atenção para o que ex- fortalecimento do grupo. A prática docente
pressavam e intervi com poucas questões rela- deve contribuir com esse processo de cresci-
mento intelectual, afetivo, social e motor. Ao
cionadas ao esclarecimento da abrangência do poucos, conseguiu-se que o corpo docente
processo de mudança e ao momento histórico realizasse tentativas para novas experiências,
da educação infantil nos municípios. possibilitando as crianças expressarem suas
vontades e desejos. Sendo mais autônomas,
A seguir, apresento os textos seleciona- podendo realizar escolhas tanto de brincadei-
dos das narrativas escritas e autorizadas para ras, como afetivas e sociais onde seus interes-
divulgação, organizados por questões: ses em novas descobertas foram valorizados

76
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

e desenvolvidos através de projetos onde o (Projetos de trabalho, nomeando a experiência


brincar ganhou espaço (Ibarama). como “interação diferenciada com os bebês”).
Nesta parte, os subtítulos em itálico, com ex-
Os desaios em torno da especiicidade da pressões entre aspas e com grifos meus teve a
educação infantil e as narrativas sobre as intenção de aproximar as narrativas de gran-
crianças - processos diferenciados em cada des categorias de registro, utilizando termos e
município: palavras das próprias narrativas para organizá-
-las, seguindo diferentes lógicas sobre as fun-
A centralidade da criança na educação ções do brincar, questões de gênero, os brin-
infantil expressa nos termos - cuidar e educar, quedos relativos à faixa etária e a permanência
como dimensões indissociáveis, foi extendida do hábito de ensinar:
para a educação básica, o que reforça o poder O brincar como “estratégia eicaz” […]
de sua função social. (DCNEB, Parecer CNE/CEB “para a conquista da autonomia” […] na cons-
nº7, 2010 e Resolução CNE/CEB nº 4, 2010, Títu- trução da identidade das crianças por meio do
lo II art.6º). A especiicidade da educação infantil lúdico.
é airmada nos eixos norteadores das práticas O brincar na construção de subjetividades
pedagógicas – as interações e as brincadeiras – em determinada cultura de gênero e idade.
desdobrados em doze situações/experiências,
abrangendo o conhecimento de si e do mundo. A partir da observação dos grupos, identii-
camos os tipos de cantos que atenderiam o
(DCNEI, Resolução CNE/CEB nº5/2009). A neces-
interesse das crianças. Nas turmas de pré-es-
sidade de mudança nas práticas pedagógicas cola, construímos casinhas, pistas de carros,
precisa assumir um debate sobre este foco e so- loresta, mercadinho, castelo, Vila dos Porqui-
nhos, canto da beleza e jogos. Com as turmas
bre a cisão entre creche e pré-escola. da Creche, piscina de bolinhas e balões, canto
Nas narrativas escritas estes eixos são das sensações, cabanas (Teutonia).
destacados sobre diferentes perspectivas: seis
relatam processos de mudança que devem “[…] Constatar que espaços organizados
ocorrer nas práticas pedagógicas, citando au- com a participação das crianças favorecem dife-
tores e as DCNEI. Quatro descrevem os proces- rentes possibilidades e aprendizagens.”
sos de trabalho com as crianças do pré-escolar
e apenas uma narrativa aponta o que se pre- Em um primeiro momento, realizamos o es-
tudo da organização do espaço e tempo na
tende realizar com as crianças de 0 a 3 anos

77
Regina Lúcia Couto de Melo

educação infantil, problematizando e relacio- com consequências concretas, principalmente


nando o tema com as questões percebidas
no ambiente da escola. Mas a visão de que o
no dia a dia. […] As rodas de conversa com
as crianças serviram de base para a modiica- pedagógico é algo instrucional permanece em
ção destes espaços, visto que elas elencavam algumas narrativas, fragmentando os sujeitos
aquilo que desejavam que permanecesse e os
espaços que gostariam de modiicar (Quinze
e ocultando a perspectiva de reconhecimento
de Novembro). das culturas das crianças.
2. Os espaços formativos das crianças ain-
Algumas normas para vivenciar experiên- da se localizam basicamente dentro das escolas,
cias signiicativas: mas as crianças se tornam fontes de consulta para
mudanças importantes no ambiente escolar.
…Tanto professoras quanto monitoras preci- 3. As narrativas são desenvolvidas prin-
saram fazer este exercício de afastamento das
rotinas inlexíveis, criando novas possibilida- cipalmente sobre as crianças do pré, valorizan-
des, juntamente com seus alunos. No decor- do-as pela sua capacidade de se expressar. Os
rer dos dias, foi possível observar mudanças
na forma de organização dos brinquedos. As
bebês e crianças menores, além de ter acesso
crianças passaram a participar ativamente na restrito na educação infantil, continuam invisi-
organização das salas. Nas turmas dos ber- bilizadas nas narrativas, pretende-se desenvol-
çários as monitoras estavam gradativamente
modiicando a rotina e incluindo o trabalho ver “o trabalho com projetos”.
com projetos, em uma interação diferenciada Os primeiros passos no processo de mu-
com os bebês (Santo Augusto).
dança das práticas pedagógicas são revela-
…trabalhamos a alimentação saudável, com
contação de histórias, cantigas, brincadeiras dos ao informarem sobre o que foi feito pelas
variadas, alinhavo, jogos confeccionados, de- crianças, suas vantagens. O compartilhamento
gustação de diferentes alimentos como fru-
tas e legumes que não são muito conhecidos
do protagonismo com as crianças inicia com
por eles, sempre incentivando a degustação a atenção sobre as mesmas, expressando o
de diferentes alimentos, conscientizando a quanto estão valorizando a participação delas
importância de ingerirmos alimentos saudá-
veis e ainda izemos o plantio de uma horti- e esta direção é vista como uma grande con-
nha (Frederico Westphalen). quista.
Porque será que as narradoras não in-
Comentários da roda de conversa: cluiram as vozes das crianças? Diiculdade de
registro dessas vozes? Ausência de recursos de
1. As práticas sob o comando da(s) pro- gravação e ilmagem para descrever experiên-
fessora(s) dão espaço para a escuta das crianças

78
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

cias enriquecedoras para professoras e crian- que buscam traduzir a identidade das crian-
ças em espaços de dança, cantigas, contação
ças? Jornadas extenuantes e sem deinição de de histórias, entre outros (Quinze de Novem-
hora atividade para planejamento e avaliação bro).
do processo? O grande desaio foi poder explorar o poten-
cial de cada criança com diferentes atividades
As narrativas espontâneas falam da an- lúdicas, onde ela possa produzir sua história,
gústia sentida ao descobrir que o fazer pe- seus sentidos, criando sua própria identidade
dagógico estava centrado em uma visão de (Roca Sales).
[…] que cada criança é uma e traz consigo
criança passiva, que depende para aprender
vivências e experiências que podem sim con-
principalmente de um outro que sabe, sob res- tribuir para o crescimento e fortalecimento do
ponsabilidade absoluta da professora. A inicia- grupo (Ibarama).

tiva de transformar os espaços com a participa-


ção das crianças produziu mudanças visíveis e O que signiica “traduzir a identidade”
retroalimentou o processo formativo: das crianças?

Ao mesmo tempo em que a formação desa- Consideramos necessário evidenciar


comodava o pensamento das professoras, as que o conceito de identidade é polissêmico e
discussões proporcionavam um novo olhar, expressa uma relação com o tempo e espaço.
descobertas e encantos, ao ver que nem tudo
estava perdido (Santo Augusto). A identidade representa habitualmente dois
processos:
- o individual - remete à garantia de per-
Qual(is) o(s)conteúdos mais frequentes manência no tempo de características de um
relativo às crianças nas narrativas escri- indivíduo.
tas? - o coletivo - remete aos peris sociais e
culturais dos indivíduos na sociedade.
Identidade das crianças e da turma – apa-
receu em 3 narrativas de forma diferenciada: Ou seja, permite destacar a singulari-
dade de um indivíduo e as dimensões sociais
A cada transformação a identidade das crian- e culturais de pertencimento, cada vez mais
ças nos espaços ia se conigurando, como luidas. No entanto, as identidades não nos
algo presente. […] A partir dos anseios das
crianças, uma das propostas de modiicação pertencem, são atribuídas pelo outro e se mo-
foi a inserção de rodas de vivências na escola, diicam ao longo do tempo e do espaço que

79
Regina Lúcia Couto de Melo

ocupamos. A ideia de que “os sujeitos huma- infantil, critérios que privilegiam as condições
nos desenvolvem sua identidade por meio de socioeconômicas das família. No momento
experiências de reconhecimento intersubjeti- seguinte, quando essas crianças passam a fre-
vo” foi teorizada por HONNETH ( 2003, p. 115- quentar a escola, é comum serem alvo de air-
213) que também trata dos padrões de reco- mativas, que generalizam as privações cultu-
nhecimento. rais do seu ambiente:
A maneira como as culturas italiana,
africana e afro-brasileira, alemã, portuguesa, A ação Sacola da Leitura proporcionou o con-
entre outras foram incorporadas em cada su- tato com os livros e o despertar …do encan-
tamento pelas histórias e contos infantis. Este
jeito imigrante e à cultura nacional e do Rio é um projeto que já vem trazendo benefícios
Grande do Sul é percebida nas manifestações na vida de nossos alunos, pois os envolve em
das crianças? É possível trabalhar no ambiente um mundo que muitas vezes não faz parte de
sua realidade (Roca Sales).
escolar, com situações e experiências concre-
tas que estão presentes nas culturas infantis? E
E o contrário: O que faz parte do univer-
nos processos de formação das crianças, com-
so cultural da criança, é reconhecido no coti-
partilhados com as famílias? Relacioná-lo com
diano da escola? As histórias inventadas pelas
outro tema recorrente nas narrativas – tempo
crianças viram livros? Quantas bibliotecas pú-
e espaço, que estão estreitamente vinculados
blicas para crianças existem em cada cidade?
à cultura na qual as representações sobre as
O conceito de mediação nos ajuda a
crianças e a infância se constroem e recons-
compreender os processos culturais identitá-
troem.
rios nas produções de signiicados pelas crian-
As contribuições de Corsaro (2005) para
ças, que intermediam as relações com o outro.
as práticas pedagógicas e a de Qvortrup (2010)
As professoras, ao observarem o brincar das
para as políticas públicas, centrada na visão so-
crianças, estão valorizando as signiicações
bre as crianças e a infância, como “co-construto- imaginárias? Com que inalidades? Essas signi-
ras de sua inserção na sociedade e na cultura”, icações imaginárias possuem muitas funções:
colaboram para o desenvolvimento de práticas são representações que estruturam as visões
pedagógicas convergentes com o direito à edu- de mundo em geral; designam emoções, zo-
cação deinido constitucionalmente. nas de permissão e de interdição das ações; e
Comentamos anteriormente sobre os se integram à vida, aos afetos, criando oportu-
processos eletivos para ter acesso à educação nidades de interações.

80
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

Neste esforço de mudança das práticas Assim, os projetos político pedagógicos


pedagógicas da educação infantil as signiica- se constituem como uma obra pedagógica de
ções imaginárias das crianças são uma base fun- longo alcance, cujo signiicado deve se manter
damental das experiências vivenciadas. Quando vivo e caminhar de forma articulada com os
uma criança de 5 anos, pergunta para outra de processos formativos, garantindo-se o tempo
6 anos: Você têm certeza que quer icar ban- necessário para sua construção no espaço es-
guela? Há vários conhecimentos envolvidos: ela colar, com a participação imprescindível das
pensa que o desejo é que comanda o dente; faz crianças, das professoras e de atores sociais
uma pergunta para quem está se gabando com comprometidos com o direito e a qualidade da
o dente mole; e escuta a resposta com atenção educação infantil.
para conirmar ou não sua dúvida.
Referências bibliográicas
Reletir, incorporar e trabalhar este sa-
ber no momento presente com as crianças, im-
plica uma atividade de resistência criativa, uma ARTES, Amélia. Escritos de Fúlvia Rosemberg./
renúncia a repetição de discursos e práticas. Os Amélia Artes, Sandra Unberhaum. – São Paulo:-
discursos das professoras em prol de uma mu- Cortez: Fundação Carlos Chagas,2015.
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descobrir outros sentidos. Talvez uma ativida- República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Se-
de docente sustentada nas culturas da infância nado, 1988.
e nas diferenças culturais dos ambientes onde _______. Constituição (1988) Emenda Consti-
vivem, fundada no pressuposto de que todas tucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006.Dá
as culturas são incompletas, como nos aler- nova redação aos arts. 7º, 23, 30, 206, 208, 211 e
ta Santos (1997, p.114 ), possa contribuir para 212 da Constituição Federal e ao art. 60 do Ato
valorizar o diálogo entre elas (crianças) e entre das Disposições Constitucionais Transitórias.
as crianças e professoras, percebendo que “a _______. Constituição (1988) Emenda Cons-
incompletude é mais facilmente perceptível titucional nº 59, de 11 de novembro de 2009.
do exterior, a partir de outra cultura”, se des- Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposi-
ções Constitucionais Transitórias para reduzir,
cobrindo mutuamente na multiplicidade de
anualmente, a partir doexercício de 2009, o
trajetórias de vida, e não em uma única cultura
percentual da Desvinculação das Receitas da
(BRASIL, 2004).
União(DRU) incidente sobre os recursos des-

81
Regina Lúcia Couto de Melo

tinados à manutenção e desenvolvimento do _______. Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001.


ensino de que trata o art. 212 da Constituição Aprova o Plano Nacional de Educação e dá ou-
Federal , dá nova redação aos incisos I e VII do tras providencias. Diário Oicial da União. Bra-
art.208, de forma a prever a obrigatoriedade sília, DF, 10 jan. 2001.
do ensino de quatro a dezessete anos e am- _______. Ministério da educação. Conselho
pliar a abrangência dos programas suplemen- Nacional de Educação. Parecer nº.04/2000: Di-
tares para todas as etapas da educação básica,
retrizes operacionais para a educação infantil.
e dá nova redação ao §4º do art.211 e ao §3º do
Brasília:2000.
art.212 e ao caput do art. 214, com a inserção
neste dispositivo de inciso VI. Diário Oicial da _______. Ministério da Educação. Conselho
União, Brasília, 12 nov.2009ª Nacional de Educação. Parece CNE/CP nº1, de
17 de junho de 2004. Institui as Diretrizes Cur-
_______. Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996.
riculares Nacionais para a Educação das Rela-
Estabelece as diretrizes e bases da educação
ções Étnico-Raciais e para o Ensino de História
nacional. Diário Oicial da União, Brasília, 10
jan.1996. e Cultura Afro-brasileira e Africana. Diário Oi-
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titucional nº 59/2009, que torna obrigatório _______. Ministério da Educação. Conselho Na-
a educação a partir de 4 até 17 anos de idade, cional de Educação. Parecer CNE/CEB nº20, de
atendimento ao educando, em todas as etapas 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes
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suplementares de material didático-escolar, Diário Oicial da União, Brasília, 9 dez. 2009b.
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dispõe sobre direito público subjetivo na edu- Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº5,
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82
ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA

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Regina Lúcia Couto de Melo

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84
4
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO: A MEDIAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

Júlia Oliveira-Formosinho

Contributos para uma desconstrução da à compreensão da imagem de criança que se


pedagogia transmissiva sustem e às expectativas que essa imagem
aponta para a concepção de escola, educação,
Este capítulo faz uma apresentação da pedagogia em sala, relação entre formação
formação em contexto (Oliveira-Formosinho, da criança e formação do proissional. Nesta
1998; Oliveira-Formosinho & Formosinho, perspectiva, uma âncora central para pensar a
2001; Oliveira-Formosinho & Kishimoto, 2002), formação reside na compreensão de imagem
uma forma emergente de formação de profes- de criança porque a formação é vista ao servi-
sores que se situa numa visão do mundo de- ço das crianças e famílias, e a sua qualidade é
mocrática e participativa, numa epistemologia reletida na interatividade das oportunidades
da complexidade (Morin, 2008), numa teoria que oferece à criança e aos educadores.
da educação co-construtivista (Werstch, 1985; A formação em contexto começa assim
Freire, 2000), numa pedagogia participativa no desenvolvimento de uma visão do mundo
(Dewey, 1971; Oliveira-Formosinho & Formosi- que pensa na imagem de pessoa – a imagem
nho, 2012; Formosinho & Formosinho 2015b), de criança, a imagem de adulto proissional.
na investigação praxiológica (Oliveira-Formosi- A desconstrução da forma tradicional de
nho & Formosinho, 2012). pensar a educação de infância é um requisito
A natureza desta perspectiva de forma- para o pensar e fazer formação em contexto,
ção, que recusa o modelo escolarizante de pois que o peso histórico da pedagogia de in-
ensinar os professores, exige que se remonte fância tradicional precisa de ser reletido criti-

87
Júlia Oliveira-Formosinho

camente para que se possa fazer a conscienti- da pedagogia do passado, mas a consciência
zação (Freire, 1970) do que ela envolve em si de que ela resiste e persiste e que portanto a
mesma, do que envolve junto da criança e do construção de entendimentos e modos peda-
que envolve no pensamento sobre a formação gógicos diferentes, plurais, diversos precisa de
dos proissionais que educam as crianças. se situar perante aquilo que rejeita e articular
A formação em contexto começa, por- aquilo que propõe.
tanto, na desconstrução do modo tradicional Ao longo de três décadas de estudo da
de fazer pedagogia da infância, neste capítulo cultura pedagógica que se cria nos centros
realizada sobre um ângulo especíico – o dos educativos e nas salas de educação de infância
materiais preferencialmente utilizados para (que desenvolvi quer em Portugal quer em ou-
criar a cultura pedagógica para a infância, pois tros países, tais como Espanha, Inglaterra, Bra-
que sabemos que os materiais pedagógicos sil) entendi que a compreensão dos materiais
não são neutros nem inocentes tal como não o pedagógicos que se utilizam para desenvolver
é nenhuma dimensão da pedagogia. Veiculam o ato educativo são indicadores centrais para
um pensamento sobre a infância, uma imagem deinir a cultura em presença (Oliveira-Formo-
de criança, uma compreensão de educação e sinho, 1998; Oliveira-Formosinho, Kishimoto &
escola, uma compreensão dos papéis do edu- Pinazza, 2007).
cador e da criança que aprende.
Os materiais pedagógicos falam e estão
A escolha deste ângulo de análise tem
acessíveis para uma leitura nos espaços cole-
a ver com o conhecimento sobre a natureza
tivos das instituições, no espaço de cada sala
dos materiais pedagógicos que se escolhem,
individual de atividades, no espaço exterior do
pois são um espelho para a compreensão do
centro educativo, na documentação que os vi-
pensamento sobre as outras dimensões da pe-
sibiliza (Oliveira-Formosinho, 2011).
dagogia. Essa natureza interfere no ambiente
Descobri também que os proissionais
educativo que se cria, no estilo de interações
têm um conhecimento implícito sobre a na-
adulto-criança que se privilegia, nas atividades
que se desenvolvem, na avaliação que se prati- tureza dos materiais pedagógicos como uma
ca (Oliveira-Formosinho, 1998). porta para o entendimento da pedagogia em
A incursão neste modo tradicional de presença. Descobri ainda que muitos estão
fazer pedagogia da infância não signiica um insatisfeitos com os materiais com que traba-
encerramento híper crítico na desconstrução lham com as crianças, mas encontram-se en-

88
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

cerrados num mundo cultural, proissional (co-


mercial…) que os empurra para materiais que
rejeitam!
Vamos fazer um zoom nessa cultura
para a infância através de imagens que falam,
de perguntas que me colocaram ao longo da
minha investigação sobre materiais pedagógi-
cos.

Continuemos agora ouvindo alguns dos


pedidos de ajuda que me foram dirigidos pe-
rante a alienação sentida na utilização não es-
condida desses materiais: “como posso ver-me
livre delas [ichas], Professora?”
Continuemos a ouvir as vozes dos pro-
Comecemos por estas imagens como
issionais empurrados para este modo de fazer
exempliicativas de tantas outras que se en-
pedagogia que é simultaneamente alienan-
contram, mundo fora, nas salas de atividades.
te dos direitos das crianças a aprender e dos
Qual é a imagem da criança implícita nestes
direitos dos professores a ensinar: “não tem
materiais? A imagem de educador? Qual o
sentido para mim usar ichas”; “as crianças não
conceito do ato educativo?
gostam”; “a Professora ajuda-me?”; “posso ter
Continuemos ouvindo vozes que escu-
formação na Associação Criança?”; “porque é
tei a falar sobre estes materiais: “Professora, as
que na formação inicial não nos iniciam a ou-
ichas perseguem-me desde o meu primeiro
tras práticas?”.
ano como educadora”; “… desde o meu es-
De facto as ichas são expressão de uma
tágio”; “… desde a minha formação inicial”;
certa cultura para a infância, de uma certa cul-
“Perseguem-me desde a minha frequência
tura pedagógica.
do jardim-de-infância…!”.

89
Júlia Oliveira-Formosinho

• uma nova imagem de criança – com


agência e capacidades de exploração, comuni-
cação, expressão, narração, signiicação;
• uma outra imagem de proissional –
com o poder de escutar, de dar tempo e espa-
ço, de dar voz, de documentar e incluir a voz
das crianças;
• uma harmonização de vozes (a da
criança e do proissional) através da escuta, da
negociação, da colaboração;
Porque falam de pessoas – a pessoa da • a reconstrução do conhecimento pro-
criança e a pessoa do proissional. Falam de issional prático no âmbito da pedagogia da
expectativas sobre crescer, aprender e ensinar. infância.
Falam de rotinas e de métodos. Induzem com- Façamos um outro zoom numa outra
portamentos. Retiram espaço ao pensamento cultura pedagógica desenvolvida com a infân-
pedagógico. Criam práticas. Constituem-se em cia e que se torna visível através da documen-
cultura. Cristalizam como cultura. tação pedagógica sobre um dos muitos mo-
mentos de maravilhamento de que podemos
Contributos para uma reconstrução da usufruir quando investigamos contextos que
pedagogia da infância (com envolvimento, conhecimentos, crenças
e princípios) persistiram na procura de modos
A primeira tarefa proissional de forma- respeitadores de fazer pedagogia da infância.
ção em contexto é a tomada de consciência Acompanhemos, através da documen-
crítica sobre a pedagogia instalada nos centros tação pedagógica, a sintonia entre a Inês e
de educação de infância e onde não se vislum- a Manuela, sua educadora. A sintonia, entre
bra o respeito pela competência e agência da a criança e a educadora, no pensamento e
criança. A relexão que permite a tomada de vivência das situações educativas transpor-
consciência crítica aconselha um caminho de ta-nos para outra cultura pedagógica: uma
reconstrução pedagógica. A reconstrução de cultura pedagógica que se desenvolve com
cultura pedagógica tradicional passa por: a infância.

90
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

– É uma árvore com vento. Eu também te-


nho vento na minha cara.
– Tu estás a sentir o vento, Inês?
– Olha, Manuela, fecha os olhos e vais
sentir.
A Inês tem direito à voz, à agência, à
Mateus (2 anos) Inês (2 anos) criatividade e tem direito a uma educadora
sensível que, em processos de formação em
A Inês pega na sua prancha e papel e mui-
contexto (Oliveira-Formosinho & Formosinho,
to cuidadosamente leva o material até o exte-
2001; Oliveira-Formosinho & Kishimoto, 2002),
rior.
também disfrutou desses direitos. A interativi-
Primeiro deita-se e olha ixamente para
dade entre os direitos dos educadores à forma-
tudo o que a rodeia. Depois pousa o lápis e a
ção e da criança à aprendizagem é reconheci-
prancha na relva, levanta-se dando um pulo e
da na literatura na área (Oliveira-Formosinho,
eleva os olhos ixando-os na árvore que está ao
1998; Parente, 2004; Lino, 2005; Craveiro, 2007;
seu lado. Azevedo, 2009; Novo, 2010; Vieira, 2010; Araú-
– Olha, Manuela, as árvores estão a me- jo, 2011; Cardoso, 2012; Pires, 2013; Machado,
xer. 2014; Freitas-Luís, 2014; Sousa, 2015).
– São as árvores que estão a mexer, ou se- A formação em contexto que recusa um
rão as folhas? modelo escolarizante transferido da relação
Inês volta a sentar-se, estica as pernas, aluno-professor tradicional e hierárquica que
pega rapidamente no lápis e coloca a prancha silencia todos e dá voz à narração de um (Frei-
nas suas pernas. re, 2000) desenvolve um modelo formativo
Volta a ixar o olhar na árvore e depois que conceptualiza os proissionais como su-
baixa o olhar para a folha e desenha o tronco. jeitos da formação e não como recipientes de
– Olha, Mateus [colega], é o tronco desta informação.
árvore. Dá-lhes voz e participação, desde o iní-
Pára e tendo o lápis em suspenso, olha cio da formação: no primeiro momento de to-
para o desenho e depois olha para a árvore. Fe- mada de consciência crítica sobre a identidade
cha os olhos e levanta a cara para o ar. Abre os atual da pedagogia praticada no centro educa-
olhos e rapidamente desenha a árvore. tivo e nas salas de atividade. Dá-lhes voz na to-

91
Júlia Oliveira-Formosinho

mada de consciência crítica sobre a verdade de Pedagogia-em-Participação1.


que o seu quotidiano está imerso numa cultura Fez-se a desconstrução do “sempre iz
pedagógica que os antecedeu e os formou e pela assim…”, “sempre vi assim…”, “aprendi assim…”,
qual não são responsabilizados. “já foi assim o meu jardim-de-infância…”. Qual
Desenvolve estes processos numa peda- é o valor deste “assim”? Precisamos de pensar!
gogia da escuta e do respeito sabendo que assim A cultura deve conservar o que repre-
está a facilitar a transferência da pedagogia que senta + SER, + PERTENCER, + PARTICIPAR, + EX-
escuta e respeita para o trabalho pedagógico PLORAR, + COMUNICAR, + NARRAR e APREN-
com as crianças. Estamos perante o isomorismo DER. Deve dispensar a letra morta que nega a
dos processos formativos em que a vivência de identidade da criança e do proissional e, por-
uma formação de educadoras baseada na ética tanto, nega o presente e o futuro.
do respeito se constituiu em âncora para o de-
senvolvimento da qualidade pedagógica e edu-
cacional com as crianças.
Contemplemos o impacto da agência con-
sentida da criança, num olhar renovado sobre
este artefato cultural feito pela Inês. Pensamos
o que nos diz da sua agência e liberdade, da sua
cooperação com a educadora, da sua relação
com um colega, da sua visão de si como aprendiz.
Das primeiras produções que apresentei
(as ichas) para a produção da Inês, em compa-
nhia da Manuela, fez-se um milagre? Talvez…
Mas fez-se uma densa construção da pedago-
gia da infância que harmoniza as intenções e
propósitos das crianças e as dos proissionais
e da sociedade. Um caminho que vai da apren-
dizagem implícita da proissão a uma aprendi-
zagem explícita de uma gramática pedagógica
para fazer pedagogia da infância: neste, caso a 1 As gramáticas pedagógicas participativas são plurais (Oli-
veira-Formosinho, 2013). A tradição é singular, desenvolve cur-
rículo pronto a vestir de tamanho único (Formosinho, 2007).

92
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

A formação em contexto como constru- A formação em contexto é, portanto,


ção da praxis: o papel dos modelos pe- uma formação situada, no aqui e agora da
dagógicos instituição que é o centro educativo, no quo-
tidiano do fazer pedagógico. Orienta-se para
A formação em contexto conceptualiza- uma pedagogia explícita com a infância, re-
-se como uma forma de mediação pedagógica quer uma pedagogia situada para os proissio-
para o desenvolvimento proissional praxio- nais. Propõe que essa pedagogia situada seja
lógico, isto é, assume que a teleologia da for- da família das pedagogias participativas, com
mação de educadores reside na sua orientação claro conhecimento do porquê da rejeição da
para a educação das crianças, isto é, para a prá- pedagogia tradicional que advém da tomada
tica da pedagogia da infância como contexto de consciência crítica sobre o que se considera
educativo para desenvolver a aprendizagem e não-pedagogia.
o ensino de qualidade com as crianças. Entende-se, portanto, que a formação
em contexto parte de uma visão do mundo
Orienta-se para a praxis, isto é, para a
que quer, para as crianças e para os adultos, o
ação proissional situada que desenvolve práti-
reconhecimento da pessoa com direitos e de-
cas que dialogam com a teoria e a investigação
veres, merecedora de respeito e de voz, deten-
(o mundo dos saberes), que se sustentam na tora de competências e agência. Uma pessoa
ética e deontologia proissionais e que abra- que se relaciona com o mundo, o homem e a
çam a complexidade do ato educativo. vida de forma ativa e adaptativa; que se rela-
ciona com o conhecimento de forma relexiva,
participativa, produtiva.
Esta visão do mundo (que é o primeiro
fundamento da formação em contexto) air-
ma-a como democrática e participativa e re-
quer uma teoria da educação coconstrutivista
(Dewey, 1971; Werscth, 1985; Freire, 2000; For-
mosinho & Formosinho, 2015b) que não silen-
cia a voz do aluno com o peso da transmissão
do conhecimento porque sabe que a educação
abre a porta à co-construção do conhecimen-
to, quer ao nível dos processos quer ao nível
dos conteúdos.

Diagrama 1- Praxis

93
Júlia Oliveira-Formosinho

Para a clariicação da perspetiva da for- visão do mundo que progressivamente se está


mação em contexto, passo a analisar um dia- a fazer – por exemplo, as ichas que negam a
grama que visa estudar a sua natureza (diagra- agência das crianças e dos professores; a ava-
ma 2) que se apresenta de seguida. liação seletiva que cataloga crianças muito pe-
quenas como sabendo ou não sabendo, sendo
ou não inteligentes; as interações insensíveis
que cortam a autonomia e os poderes das
crianças.
Requer a tomada de consciência críti-
ca do que é a pedagogia implícita que se de-
senvolve com base no que é costume fazer-se
(“sempre vi assim”, “sempre iz assim”, “ensina-
ram-me assim”). A pedagogia implícita vivida
de uma forma letárgica requer acordar para o
emergir de processos de tomada de consciên-
cia crítica, que só podem verdadeiramente de-
senvolver-se deixando o pensamento único,
procurando encontrar modos plurais de pen-
sar-fazer pedagogia da infância, tomando de-
cisões sobre aquela perspectiva (modelo peda-
gógico) que se constituirá em gramática para
os processos de formação para a transforma-
ção que se visam com a formação em contexto.
Diagrama 2 - Formação em contexto
A herança pedagógica do século XX (Oli-
A orientação da formação em contexto
para a praxis enquanto ação proissional situa- veira-Formosinho, Kishimoto & Pinazza, 2007;
da, referenciada, ética, complexa requer toma- Kishimoto & Oliveira-Formosinho, 2013; For-
das de decisão, pois exige a conscientização mosinho & Pascal, 2015) brindou-nos com pe-
sobre a identidade atual das práticas que a ins- dagogias da infância que se constituíram num
tituição e as salas de atividades desenvolvem; grito perante a educação burocrática e centra-
a compreensão daquilo que se entende, nessas lizada, em pleno desenvolvimento a partir da
práticas, como valor; a desconstrução do que Revolução Industrial (Formosinho & Formosi-
é incompatível com a reconceptualização da

94
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

nho, 2015a), que ensina a todos como se fos- O patrimônio pedagógico disponível
sem um só, criando currículos pronto a vestir com o qual podemos dialogar para construir o
de tamanho único (Formosinho, 2007). presente e o futuro é rico em gramáticas pe-
Brindou-nos também com o desenvol- dagógicas participativas, como pedagogias
vimento de modelos pedagógicos sócio-cons- explícitas. Estas dizem-se, falam, abrem-se ao
trutivistas para a educação de infância (Olivei- diálogo, à crítica, à aceitação, à contextualiza-
ra-Formosinho, 2013) que se constituem numa ção porque são democráticas.
herança plural para o desenvolvimento das Podemos então perguntar o que é uma
práticas educativas em contexto de sala de ati- gramática pedagógica para a educação de in-
vidades. fância. A natureza dos modelos pedagógicos
A formação em contexto dispõe portan- sócio-construtivistas clariica-se com a metá-
to de referenciais pedagógicos para pensar os fora da gramática pedagógica para a praxis da
caminhos a percorrer a transformação da prá- pedagogia participativa. Porquê? O modelo pe-
tica de ensino-aprendizagem, em sala de ati- dagógico constituiu um modo de pensar, fazer,
vidades. A formação em contexto assume que avaliar o ensino e a aprendizagem da criança
os processos de desenvolvimento proissional que exige uma aprendizagem proissional sis-
que visa são de natureza praxiológica, isto é, temática e uma experimentação experiencial
visam transformar o quotidiano pedagógico, monitorizada (Oliveira-Formosinho & Formo-
os modos de ensinar e aprender, os modos de sinho, 2013; Oliveira-Formosinho, 2007). Não é
relacionamento pessoal e interpessoal, os mo- um conjunto de receitas e rituais. É uma gramá-
dos de avaliação. Constitui-se na procura de tica para o pensar, o fazer, o dizer e o avaliar do
uma cultura pedagógica com a infância que a modo de viver a pedagogia em sala.
respeite, a provoque a ser +, pensar +, fazer +, Exige, portanto, um modo formativo que
aprender +, narrar +. deve instituir os proissionais como sujeitos de
Estamos perante a necessidade de assu- construção de conhecimento sobre a gramática
mir que a transformação não é cega, que a sua pedagógica e a sua contextualização na ação. O
primeira exigência é a tomada de consciência modo formativo que os inspire na forma como
sobre os focos da mudança, que a sua inevita- educar as crianças porque o respeito que vivem
bilidade reside no encontro de uma gramática enquanto formandos é o respeito que se dese-
para o ato educativo que nos afaste do modo ja que tenham pelas crianças com quem traba-
transmissivo de fazer pedagogia da infância lham. Estamos perante o valor isomórico dos
que desconstruímos e rejeitamos. processos formativos respeitadores.

95
Júlia Oliveira-Formosinho

A gramática pedagógica progressi- visa a transformação da ação proissional


vamente apropriada representa a saída da como transformação do quotidiano pedagó-
letargia da pedagogia implícita rotineira e gico que se vive com a criança e da cultura
costumeira (“sempre iz assim…”) para uma pedagógica que o aqui e agora educativo vai
pedagogia explícita que sabe mostrar a ação instituindo.
imbuída de pensamento e fundada na ética. Continuemos a analisar este instrumen-
Que sabe interrogar-se constantemente sobre to imagético (diagrama 2) que desenvolvi
como melhor servir (através do ato educativo) para ajudar à compreensão do que é a forma-
as crianças, as famílias, a sociedade. ção em contexto.
A formação em contexto para a transfor- A pedagogia (quer com a criança quer
mação da praxis é assim desenvolvida em com- com os proissionais) desenvolve-se nas coor-
panhia do formador (o mediador pedagógico), denadas espaço-temporais que sustentam
sendo que formador e formandos saem do iso-
os processos formativos. No espaço e tempo
lamento a que a pedagogia tradicional implí-
da formação para a transformação é preci-
cita condena os proissionais e entram em diá-
so decisões colaboradas em torno dos focos
logo com a riqueza dos modos democráticos e
de aprendizagem e experimentação que ini-
participativos de fazer pedagogia da infância.
ciam uma procura de resposta cooperada aos
A formação em contexto vive-se então
problemas identiicados nas práticas vividas
como a co-criação, pelos proissionais e seus
atuais. A pedagogia que tem um forte susten-
formadores, de novos processos para aprender
táculo na sensatez, na sensibilidade e no bom
caminhos alternativos da pedagogia da infân-
cia que, progressivamente, fecundarão novos senso, compreende a lentidão dos processos
caminhos para a aprendizagem das crianças. de transformação da prática e vive-os com
Almeja-se a circularidade das aprendizagens: tranquilidade. Na tranquilidade da transfor-
o educador enquanto participante dos proces- mação alcança realizações que se constituem
sos de aprendizagem institui a criança como em valor acrescentado para a aprendizagem
participante ativo da sua aprendizagem. das crianças. A lentidão ganhou velocidade
A formação em contexto é, portanto, porque alcançou realizações. Criou-se como
um veículo para a transformação da pedago- pedagogia viva.
gia da infância porque se constitui em desen-
volvimento proissional praxiológico. Porque

96
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

A formação em contexto como media- de um modelo pedagógico, é o dilema de har-


ção pedagógica monizar a necessidade de provocar, ensinar,
dizer e a necessidade de se silenciar e escutar.
A abertura que se construiu perante os Exige-se a suspensão dos saberes do formador,
modos alternativos de pensar e fazer pedago- dos dizeres do formador, do ensinar do forma-
gia da infância ajuda à abertura que é necessá- dor instituindo assim quotidianamente uma
ria para desenvolver os processos de formação pedagogia da escuta que não signiica mera-
em contexto dos proissionais e ajuda também mente trocar o espaço-tempo de detenção da
à escuta da voz dos participantes na formação. palavra, da apresentação de pensamento, mas
Nos processos formativos participativos, a pe- sim a procura séria e crítica de dar voz a quem
dagogia da abertura e da escuta é um requisito se forma e harmonizar essa voz com a própria
indispensável para iniciar o processo transfor- voz de quem forma.
mativo. O formador enquanto mediador pe-
dagógico tem de ser mestre na pedagogia da
abertura e da escuta.
Ser mestre na pedagogia da abertura e
da escuta cria dilemas éticos. Nos processos de
formação em contexto para a pedagogia par-
ticipativa, os participantes criam sentimentos
de pressa porque vislumbram as vantagens e
a ética do modo participativo a que estão a ini-
ciar-se. Pedem ao formador respostas (foi este
o habitus que criaram enquanto estudantes). A
sensibilidade do formador tenta-se e… resiste.
Vivencia o dilema que a minha pesquisa me Diagrama 3 - Mediação pedagógica

permite equacionar como o da provocação- A formação em contexto como meio de


-suspensão (Oliveira-Formosinho, 1998, 1999). concretização da pedagogia participativa com
Um dos dilemas mais constantemente a infância é um processo de mediação peda-
vividos pelas pessoas que desenvolvem me- gógica (ver diagrama 3), no âmbito da forma-
diação pedagógica, no âmbito da formação ção de educadoras, que visa a transformação
em contexto, para a transformação da pedago- das práticas pedagógicas, reconstruindo o
gia da infância em direção à contextualização ambiente educativo e recriando o quotidiano
pedagógico.

97
Júlia Oliveira-Formosinho

A mediação pedagógica começa na des- lecem relações múltiplas e que procuram o


construção da pedagogia implícita e rotineira, desenvolvimento de abertura proissional, em-
libertando para a reconstrução da pedagogia, patia pessoal e proissional, coniança mútua
na agência proissional situada, no quotidia- para se poderem abrir nas suas motivações e
no informado por saberes e ética, visando as intenções e criar propósitos para as focagens
pedagogias participativas, inscritas numa vi- do processo transformativo. É nestas focagens
são do mundo humanista e democrática e nas que colaborativamente se encontram as pes-
teorias sócio-construtivistas. soas e os grupos, desenvolvendo ciclos de pen-
A ação pedagógica situada que alme- samento-ação-relexão e tomando decisões
ja a transformação, através da mediação pe- sobre etapas na aprendizagem experiencial
dagógica (ver diagrama 4), desenvolvida em situada.
companhia, abre o mundo pedagógico a pos-
sibilidades alternativas (Oliveira-Formosinho,
Kishimoto & Pinazza, 2007; Formosinho & Pas-
cal, 2015).

Diagrama 4 - Ação transformadora situada


Diagrama 5 - Focagens
Estes processos (ver diagrama 5), quan-
A documentação sistemática dos pro-
do densamente documentados, permitem
gressivos processos de transformação quando
investigar (descrever, analisar, interpretar) a
rigorosamente estudada com as metodologias
transformação criada no dinamismo dos en-
da investigação praxiológica disponíveis (For-
contros entre pessoas e grupos que estabe-
mosinho & Oliveira-Formosinho, 2012; Pascal

98
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

& Bertram, 2012) permitirá a construção de co- A teleologia para o desenvolvimento


nhecimento proissional praxiológico porque destas focagens reside na gramática pedagó-
integra na ação (nas práticas), o pensamento gica que se escolheu para orientar a formação
e a ética. Fecunda o fazer no saber e no ser. em contexto. Contextualizar uma pedagogia
Transforma a pedagogia da infância e estuda da infância em cada sala de atividades e no
os processos transformativos para, civicamen- centro educativo como um todo signiica uma
te, os poder disponibilizar a outros contextos aprendizagem proissional sistemática para
proissionais. que o uso dessa gramática se constitua em
A construção de uma comunidade rele- valor acrescentado para a aprendizagem das
xiva para a vivência de processos transformati- crianças.
vos desenvolve-se entre pessoas, com pessoas, A formação em contexto poderá desen-
para pessoas. Entre grupos, com grupos, para volver-se também com o objetivo de aprendi-
grupos. Paralisa e acaba, se não se desenvolver, zagens proissionais menos amplas tais como
desde os primeiros contactos, a coniança que
estratégias, técnicas, competências especíicas.
advém do sentimento de respeito do forma-
Devo, contudo, chamar a atenção que
dor pelos formandos, da empatia que sente e
esta utilização reduzida da formação em con-
apresenta e que os certiica que não são julga-
texto não pode esperar obter os mesmos re-
dos pelas oportunidades que não tiveram para
sultados que se alcançam com a formação para
aprender. Intuem, sentem, descobrem que se
uma visão sistémica e integrada da pedagogia
deseja criar colaborativamente novas oportu-
nidades para aprendizagem proissional. da infância, em que se reconstroem os saberes
Sentir-se genuinamente respeitado vai proissionais em todas as dimensões centrais
desenvolvendo abertura que permite lenta- para o desenvolvimento da ação proissional
mente que o dinamismo das motivações se co- quotidiana e se recria a visão do mundo, do
mece a revelar e a ser conversado. No diálogo e homem, da vida, da aprendizagem, da relação
na relexão crítica descobrir-se-ão propósitos. da pessoa com o conhecimento.
Os propósitos constituir-se-ão em progressivos Devo também chamar à atenção para
focos da ação proissional colaborada. A a possibilidade da formação em contexto ser
formação em contexto começa, com lentidão, usada para a aprendizagem de práticas de pe-
a fecundar a ação para a transformar através dagogia transmissiva.
de ciclos de aprendizagem proissional
experiencial.

99
Júlia Oliveira-Formosinho

A Pedagogia-em-Participação: uma gra- com João Formosinho (Oliveira-Formosinho &


mática para ensinar e aprender Formosinho, 2001; Formosinho & Oliveira-For-
mosinho, 2008; Formosinho & Formosinho,
Cada gramática pedagógica disponibili- 2015b)2. Assim, passo a fazer uma breve apre-
za um modo idiossincrático de fazer pedagogia sentação da Pedagogia-em-Participação como
que carateriza a sua identidade como propos- uma gramática para ensinar e aprender.
ta pedagógica para o ensino-aprendizagem Começo pela primeira dimensão – a de-
da criança. Contudo, de uma análise que iz inição clara da intencionalidade educativa
de sete gramáticas pedagógicas (Oliveira-For- respeitadora das crianças, das educadoras,
mosinho, 1998) disponíveis para o desenvolvi- das famílias – a primeira saliência partilhada
mento da pedagogia da infância, emergem sa- pelas gramáticas pedagógicas co-construtivis-
liências partilhadas por todas essas gramáticas, tas.
isto é, cinco dimensões transversais a todos os Na Pedagogia-em-Participação, tivemos
modelos pedagógicos de qualidade que ana- como uma das primeiras preocupações deinir
lisei: os eixos de intencionalidade educativa como
• a deinição clara da intencionalidade âncoras para o pensar, fazer e avaliar o proces-
educativa respeitadora das crianças, das edu- so de ensino e aprendizagem das crianças. Esta
cadoras, das famílias; deinição foi feita através da fusão entre estu-
• a deinição clara e lexível das áreas de dos teóricos e a experimentação proissional
de práticas, no contexto das considerações éti-
aprendizagem;
cas que advém da visão do mundo democráti-
• os critérios para a criação de um am-
ca e participativa que adotamos.
biente educativo provocador de aprendiza-
A Pedagogia-em-Participação identii-
gens;
cou, em diálogos entre a teoria, as práticas e
• os sistemas de monitorização da quali-
a investigação, eixos de intencionalidade edu-
dade do quotidiano praxiológico;
cativa (de natureza holística) que constituem
• a perspectiva teoricamente congruen-
uma bússola para pensar e realizar a pedago-
te para fazer a avaliação das aprendizagens. gia no quotidiano em abertura e escuta dos
Passo agora a clariicar essas dimensões propósitos das crianças.
transversais aos modelos pedagógicos estuda-
dos, utilizando o caso especíico da Pedago- 2 Progressivamente o leque de autores da Pedagogia-em-
gia-em-Participação, a proposta pedagógica -Participação desenvolveu-se (Azevedo, 2009; Araújo, 2011; Ma-
chado, 2014; Sousa, 2015)
da Associação Criança, de que sou coautora

100
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

Essas intencionalidades (Formosinho & Os eixos do ser e estar, do pertencer e


Oliveira-Formosinho, 2008; Oliveira-Formosi- participar, do explorar e comunicar, do signi-
nho & Araújo, 2013; Formosinho & Formosinho, icar e narrar dão origem a um trabalho siste-
2015b) orientam-nos para apoiar: mático com as semelhanças e as diferenças. A
1. o desenvolvimento de identidades re- Pedagogia-em-Participação é uma pedagogia
lacionais; intercultural que se desenvolve no quotidiano
2. o desenvolvimento de sentimentos de educativo, pois que todas as suas intenciona-
pertença e participação ao centro educativo, à lidades são perpassadas pela preocupação
sala de atividades, às situações de brincadeira de celebrar tanto as semelhanças como as di-
e aprendizagem; ferenças. Procura-se uma integração vivida e
3. o desenvolvimento das identidades monitorizada no quotidiano de todas as dife-
aprendentes na exploração comunicativa do renças – psicológicas, sociais, culturais.
mundo, da natureza, da cultura através dos sen-
Pensamos a pedagogia da infância como
tidos inteligentes e das inteligências sensíveis;
um processo de desenvolvimento de identi-
4. a narração da aprendizagem com as
dades plurais: a educação de infância precisa
linguagens culturais com vista à criação de sig-
tornar-se assim um meio para cultivar a hu-
niicado;
manidade apoiando o desenvolvimento das
5. a consciência de si como pessoa e
identidades pessoais, relacionais, holísticas nos
como identidade aprendente.
seus contextos e culturas, das identidades que
aprendem em pertença e participação, das
identidades que exploram em comunicação e
se iniciam a narrar a signiicatividade da apren-
dizagem.
Concebemos os eixos pedagógicos
como uma realidade dinâmica que se desen-
volve em interatividade: a interatividade den-
tro dos pólos de cada eixo e a interatividade
entre os eixos. Em nome desta interatividade
pede-se aos proissionais que os interpretem
de forma comunicativa, pois, por exemplo, a
interatividade dentro do eixo das identidades
Diagrama 6 - Eixos de intencionalidade educativa da
Pedagogia-em-Participação

101
Júlia Oliveira-Formosinho

pede que se torne comunicativa a aprendi- zagem – a segunda saliência partilhada pelas
zagem experiencial no âmbito do ser, sentir, gramáticas pedagógicas co-construtivistas.
pensar tal como a interatividade entre os ei- A interatividade dentro de cada pólo dos
xos pede aos proissionais que interpretem o eixos de intencionalidade educativa e a inter-
ensino-aprendizagem em atos comunicativos conetividade entre os eixos permite apontar
entre os quatro eixos. para quatro áreas centrais de aprendizagem
Exempliicando, as identidades plurais experiencial: as identidades, as relações, as
são interpretadas em relação comunicativa linguagens e os signiicados. Importa que as
com as pertenças participativas. As identidades proissionais as entendam em comunicação e
que pertencem e participam com bem-estar compreendam que todas visam o desenvolvi-
são provocadas para a exploração comunicati- mento das identidades pessoais e aprendentes
va em aprendizagens experienciais integradas. que são interativas.
A emergência da narração das aprendizagens As oportunidades de aprendizagem ex-
desenvolve-se em interatividade que se cria na periencial que se criam devem proporcionar
interpretação comunicativa deste eixo com os experiências tanto no desenvolvimento das
outros. identidades e das relações, como na aprendiza-
A comunicabilidade entre os eixos da gem das linguagens e da signiicação. Importa
intencionalidade educativa integra as inalida- que a natureza holística da criança nos desaie
des que deinimos para a educação de infân- a olhar estas aprendizagens num contexto de
cia, tornando-as interdependentes e apelando integração.
a uma aprendizagem holística. A intencionali- Pensamos que é importante e decisivo
dade assim deinida reconhece a identidade da negociar com as crianças (sem “desculpas” de
criança como holística e pede à educação que que são muito pequeninas… são, mas ofere-
respeite essa identidade, criando aprendiza- cem-nos muitos sinais que a ética proissional
gens interdisciplinares, porque a realidade do nos desaia a ler) propósitos nestas áreas, tanto
saber é transdisciplinar e a natureza da criança ao nível das grandes inalidades como ao nível
é holística, aproxima a realidade de forma in- dos objetivos, tanto ao nível das experiências
tegrada (Formosinho, 2015; Formosinho & For- de aprendizagem como da sua avaliação. Pen-
mosinho, 2015b). samos que é importante e decisivo garantir, na
Passo para a segunda dimensão – a de- pedagogia, que o aprender esteja integrado
inição clara e lexível das áreas de aprendi- com o aprender a aprender, porque a forma de

102
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

ensinar está, antes de mais, preocupada com


as formas de aprender. Porque a forma de en-
sinar está, antes de mais, preocupada com a
aprendizagem proissional da ética do respeito
pelos aprendentes.
Os diagramas que se seguem eviden-
ciam a relação entre os eixos de intencionali-
dade educativa (diagrama 7) e as quatro am-
plas áreas de aprendizagem que propomos na
Pedagogia-em-Participação (diagrama 8).

Diagrama 8 - Áreas de aprendizagem da


Pedagogia-em-Participação

As duas primeiras áreas de aprendiza-


gem – identidades e relações – nascem do cru-
zamento de dois eixos pedagógicos: o ser-estar
e o pertencer-participar. A comunicação entre
ambos promove o desenvolvimento de identi-
dades plurais e de relações múltiplas, direciona
para a aprendizagem acerca de mim, dos ou-
Diagrama 7 - Eixos de intencionalidade educativa da Pedagogia- tros, das relações, da participação, da pertença.
em-Participação Estas são áreas de aprendizagem vitais
para as crianças, sendo, portanto, necessário
que o contexto educativo faculte aprendiza-
gem experiencial nestes âmbitos. Estas expe-
riências são do nascimento aos seis anos, isto

103
Júlia Oliveira-Formosinho

é, durante toda a educação de infância, tão re- A aprendizagem dos instrumentos cul-
levantes como as experiências de apropriação turais e o desenvolvimento das funções psico-
comunicativa e signiicativa das linguagens lógicas superiores tem lugar no uso reletido,
culturais, dos conteúdos curriculares. Desde o na ação pensada. O mesmo é verdade para a
nascimento e ao longo de toda a vida preciso inteligência, isto é, a inteligência desenvol-
de querer e de poder responder a perguntas ve-se usando-a na relexão que a experiência
tão centrais como: Quem sou eu? Quem é ela/ pede, antes, durante e depois da ação que
ele? Como nos relacionamos? Como me sinto? provoca. A conversação e a comunicação com
Como se sente ela/ele? Como me veem? Como os outros apoiam esta aprendizagem e desen-
os vejo? Onde pertenço? Como contribuo? É volvimento (Formosinho & Oliveira-Formosi-
valorizada a minha participação? É valorizado nho, 2008).
o meu brincar? Brinco e aprendo? Entro na terceira dimensão – os crité-
As duas outras áreas de aprendizagem – rios para a criação de um ambiente educati-
linguagens e signiicados – nascem do cruza- vo provocador de aprendizagens – a terceira
mento de dois outros eixos pedagógicos (o ex- saliência partilhada pelas gramáticas pedagó-
plorar e comunicar e o criar e narrar as jornadas gicas co-construtivistas.
de aprendizagem), projetando aprendizagens Na Pedagogia-em-Participação, experi-
das linguagens culturais, de outros conteúdos mentamos e aprendemos como construir um
curriculares signiicativos. Desde o nascimento ambiente educativo que apoie, como segun-
e ao longo de toda a vida preciso de querer e do educador, o desenvolvimento quotidia-
de poder responder a perguntas tão centrais no das intencionalidades pedagógicas e das
como: qual é para mim o signiicado do que áreas de aprendizagem (Oliveira-Formosinho,
aprendo? Como aprendo? Posso usar os senti- 1998; Formosinho & Oliveira-Formosinho,
dos inteligentes e plurais? Posso usar as inte- 2008; Oliveira-Formosinho & Araújo, 2013).
ligências sensíveis e plurais? Posso comunicar Desenvolvemos longas jornadas proissionais
as minhas explorações? Beneicio de um con- e processos de investigação sobre a diferença
texto comunicativo? Sou observado nos meus da aprendizagem experiencial da criança em
sinais e escutado nas minhas perguntas? Sou ambientes educativos participativos e respei-
acompanhado na narrativa da minha aprendi- tosos e em ambientes tradicionais e rotineiros
zagem experiencial? Sou acompanhado na mi- (Oliveira-Formosinho, 1998; Azevedo, 2009;
nha preocupação de dar signiicado à aprendi- Araújo, 2011; Cardoso, 2012; Machado, 2014).
zagem?

104
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

Os ambientes educativos transmitem


mensagens, colaboram (ou não) no desenvol-
vimento do projeto educativo e dos seus obje-
tivos. Suportam (ou não) a ideologia educativa
dos educadores e do centro. Respeitam (ou
não) os direitos das crianças a serem co-auto-
ras das suas aprendizagens. A construção de
conhecimento pela criança requer um contex-
to material, social, pedagógico que suporte,
promova, facilite e celebre a participação, ou
seja, um contexto que participe na construção Diagrama 9 - Dimensões da pedagogia

da participação (Formosinho & Formosinho,


2015b). Crescer em participação para crescer Entro na quarta dimensão – os sis-
em aprendizagem. temas de monitorização da qualidade do
Na Pedagogia-em-Participação, é im- quotidiano praxiológico – a quarta saliência
prescindível pensar, de forma integrada, as di- partilhada pelas gramáticas pedagógicas co-
versas dimensões pedagógicas (ver diagrama -construtivistas visa a monitorização da qua-
9), uma vez que se considera que a qualidade lidade do ensino-aprendizagem desenvolvi-
dessas dimensões tem impacto diferenciado da pelos próprios profissionais.
na co-construção das aprendizagens das crian- Na Pedagogia-em-Participação, en-
ças. Considera-se também que não existem
quanto pedagogia da escuta ativa e da cons-
dimensões pedagógicas neutras porque a for-
trução participada de conhecimento, reco-
ma como se pensa e materializa as dimensões
nhece-se a complexidade do ato de ensinar
centrais da pedagogia contém uma visão do
e aprender e a sua interatividade com a do-
mundo, da vida, do homem, da sociedade, do
cumentação que visa a monitorização (ver
conhecimento, e especiicamente da relação
diagrama 10).
entre a criança e o conhecimento (Formosinho
& Formosinho, 2015b)3.

3 Para uma análise detalhada dos critérios para desenvolver


no quotidiano as dimensões pedagógicas integradas ver Olivei-
ra-Formosinho (2011), Oliveira-Formosinho e Araújo (2013) e Oli-
veira-Formosinho, Kishimoto e Pinazza (2007).

105
Júlia Oliveira-Formosinho

Diagrama 10 - Documentação pedagógica Diagrama 11 - Documentação pedagógica

A documentação pedagógica é, Monitorizar é descrever, analisar, inter-


portanto, uma forma de recolher informação pretar a interconectividade do ensinar e apren-
der através da pedagogia que ouve e escuta,
sobre os dois pólos deste binômio, pois que
que olha e que vê, que regista e que por isso
monitorizar o aprender requer ética e cientii-
dispõe de memória para se compreender, para
camente a monitorização do ensinar. A inter-
se celebrar, para se recriar.
conectividade destes dois binómios torna os
Entro na quinta dimensão – a perspe-
processos de ensinar e aprender, documentar
tiva teoricamente congruente para fazer a
e monitorizar relacionais e contextuais.
avaliação das aprendizagens – a quinta sa-
Pede-se à proissional que se contenha,
liência partilhada pelas gramáticas pedagógi-
se silencie por causa do valor acrescentado
cas co-construtivistas que visa a compreensão
que é escutar a criança e o grupo. Suspenda o da aprendizagem de cada criança e do grupo
seu saber, o seu fazer, o seu dizer numa atitude e que visibiliza o progresso na aprendizagem
proissional e ética para ver o que se torna in- da criança.
visível se não pararmos para olhar. Olhar e ver Na Pedagogia-em-Participação interro-
a aprendizagem em ação, escutar de formas gamos a documentação para perguntar o que
múltiplas as vozes múltiplas, registrar e reletir nos diz sobre as jornadas de aprendizagem das
para compreender o aprender em relação com crianças e com isso somos remetidos para dois
as oportunidades que o ambiente educativo conceitos centrais da perspetiva: conceito de
cria (ver diagrama 11). planiicação solidária e o conceito de avaliação
solidária.

106
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

O que entendemos por planiicação soli- Esta imagem diz-nos que a proissional
dária? O diagrama 12 constitui um modo ima- exerce uma pedagogia da escuta enquanto vê,
gético de atribuir signiicado ao conceito. ouve, regista as crianças em ação – faz docu-
mentação que posteriormente edita. Faz isto
durante uma semana no im da qual, num dos
tempos da rotina diária, devolve às crianças a
documentação que realizou e editou.
Esta generosa devolução motiva conver-
sas, análises, diálogos, cria novas expectativas
de aprendizagem. Neste processo, negoceiam-
-se compromissos para novas planiicações.
A planiicação deixa de ser um ato isolado da
educadora para ser um ato proissional solidá-
rio com as suas crianças e com o grupo.
Esta forma de desenvolver a planiicação
fecunda a ação que se lhe segue com as vozes
das crianças, porque as inclui. A ação torna-se
mais negociada, mais cooperada, mais ética
e, com isso, ganha signiicatividade. Inicia-se
novo ciclo de documentação.
A documentação desenvolvida pela
proissional constitui-se num patrimônio para
processos relexivos acerca da aprendizagem
experiencial negociada procurando explicar o
aprender em ação.
A documentação tornou-se veículo para
fazer a conexão entre a planiicação solidária, a
ação negociada, a aprendizagem solidária.
Este patrimônio documental desenvol-
Diagrama 12 - Planiicação solidária
vido continuamente e que fala de cada crian-
ça pede para ser incluído no seu portfólio de

107
Júlia Oliveira-Formosinho

aprendizagem. A aprendizagem precisa de ser formação com o formador que medeia a apren-
celebrada pelas crianças e suas educadoras, dizagem e permite esperar que os proissionais
pelos pais e outra família, pelo centro de edu- aprendam o valor libertador e democrático de
cação de infância. Os portfólios assim desen- controlar o poder do seu saber e instituir no
volvidos contêm a documentação autêntica da quotidiano, vivido com as crianças, a aprendi-
aprendizagem vivida. Este patrimônio docu- zagem solidária.
mental permite-nos revelar o aprender.
A Pedagogia-em-Participação utiliza vá- Referências bibliográicas
rios meios para proceder a esse revelar e fazer a
análise da documentação: os eixos de intencio- ARAÚJO, S. B.. Pedagogia em creche: Da ava-
nalidade educativa e as áreas de aprendizagem liação da qualidade à transformação praxio-
da Pedagogia-em-Participação, as narrativas lógica. Tese de Doutoramento em Estudos da
das crianças, dos pais e das proissionais quan- Criança – Especialização em Metodologia e Su-
do revisitam os portfólios de aprendizagem, os pervisão da Educação de Infância. Braga: Uni-
instrumentos de observação pedagógica que versidade do Minho. 2011.
permitem ler a documentação. AZEVEDO, A.. Revelando a aprendizagem
Torna-se transparente a relação vital en- das crianças: A documentação pedagógica.
tre ensinar e aprender, documentar e avaliar. Tese de Mestrado em Educação de Infância.
Para a Pedagogia-em-Participação a documen- Braga: Universidade do Minho. 2009.
tação pedagógica serve o desaio de revelar a CARDOSO, G. B.. Criando contextos de quali-
aprendizagem solidária que nasce na planiica- dade em creche: ludicidade e aprendizagem.
ção solidária. Tese de Doutoramento em Estudos da Crian-
Desenvolver a aprendizagem solidária e ça – Área de Especialização em Metodologia
revelá-la é libertador, porque mostra a conec- e Supervisão em Educação de Infância. Braga:
tividade da agência da criança e das proissio- Universidade do Minho. 2012.
nais sendo promissor para a sociedade demo- CRAVEIRO, M. C.. Formação em contexto: Um
estudo de caso no âmbito da pedagogia da in-
crática. fância. Dissertação de doutoramento em Estu-
A formação em contexto como media- dos da Criança. Braga: Universidade do Minho.
ção pedagógica para a utilização de pedago- 2007.
gias participativas revela a constante partilha DEWEY, J.. Experiência e educação. São Paulo:
do poder entre os proissionais em processo de Companhia Editora Nacional. 1971.

108
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO

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5
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
NO BRASIL: UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

Débora Teixeira de Mello

A educação das crianças está diretamente re- atendimento às crianças de 0 a 5 anos no Brasil,
lacionada com a cidadania e, quando o Estado
bem como analisar alguns desaios colocados
garante que todas as crianças serão educadas,
este tem em mente, sem sombra de dúvidas, as para os municípios diante dessa expansão. Os
exigências e a natureza da cidadania resultados aqui trazidos são dados ainda par-
(Marshall, 1967, p. 73).
ciais originados de uma pesquisa em proces-
so de realização. Este é um estudo na área de
Este estudo investiga as políticas públi-
políticas públicas de educação, cujos métodos
cas de educação no Plano Nacional de Edu-
para a coleta de dados envolveram pesquisa
cação (2001), o acesso à educação infantil no
em sítios oiciais do Governo Federal — Minis-
Brasil e os embates da carreira docente para os
tério da Educação (MEC), IBGE (Instituto Brasi-
proissionais da educação infantil, ressaltando
leiro de Geograia e Estatística), INEP (Instituto
suas disposições enquanto política de Estado.
Nacional de Pesquisas em Educação Anísio Tei-
A análise considera a perspectiva de expansão
xeira), investigados para levantamento docu-
de matrículas na Educação Infantil, as Diretri-
mental e estatístico.
zes Curriculares do Curso de Pedagogia (2006)
Entendo a política educacional como
e as políticas de formação de professores para
uma política pública de natureza social, em
esta área, considerando as metas do Plano Na-
que ao analisá-la deve-se considerar o contex-
cional de Educação Lei 10.172/2001.
to socioeconômico, cultural e político em que
O estudo objetivou evidenciar as polí-
é formulada e implementada (Azevedo, 1997).
ticas de formação de professores para a Edu-
As políticas públicas para a formação de pro-
cação Infantil a partir da expansão recente do
fessores da educação infantil serão aqui anali-

115
Débora Teixeira de Mello

sadas nesta perspectiva, e como uma política ções destinadas a acolher as crianças pequenas
que se constrói na ação do Estado. no Brasil assumiram desde o inal do século XIX
Nessa perspectiva, para Jobert & Müller e início do século XX muitas formas, podemos
(1987), ao pensarmos no desenvolvimento das aqui deini-las como creche, escola maternal,
políticas públicas, devemos ter presente que jardim-de-infância, parques infantis, pré-es-
as políticas públicas têm como objeto especí- cola. Historicamente, no Brasil, as instituições
ico de análise o estudo de programas gover- denominadas creches tiveram como função a
namentais, particularmente suas condições de guarda e cuidado da criança pequena1, relega-
emergência, seus mecanismos de operação e da a um segundo plano nas politicas públicas
os prováveis impactos sobre a vida social e eco- de educação. É durante a Primeira República
nômica. Segundo os autores, para compreen- que surgem os primeiros registros da criação
der o Estado, é essencial tomar consciência da de creches e jardins de infância em muitos
complexidade das relações Estado-sociedade; municípios do país. As iniciativas de expansão
é, para isso, preciso: das instituições são de caráter caritativo, ilan-
trópico, ligados a órgãos de assistência social,
[...] primeiramente considerar a heteroge-
saúde ou educacional (Kulmann, 2003). Uma
neidade e as contradições incontestáveis
do Estado em ação que não são produto do maior expansão de atendimento somente
acaso, nem mesmo uma resultante mecâni- acontecerá nos anos 70 e 80 através do Projeto
ca da extensão de seu domínio de atividade.
Mas se explicam pelas exigências múltiplas e de Creches Casulo da LBA (Legião Brasileira de
contrárias às quais qualquer ordem política Assistência)2.
deve responder, e em segundo lugar, a ação
do Estado nunca é uma resposta automática a
situações sociais bem deinidas. Ela exige um
trabalho de aprendizagem e invenção para se
adaptar às incertezas fundamentais que mar-
cam qualquer ação política (Jobert & Muller, 1 No início do século XX, que as ações desencadeadas em
1987, p. 17). prol da infância futuro da pátria estão em consonância com a
busca de modernização da sociedade. O discurso médico-higie-
nista presente nas políticas públicas para a infância até meados
E ao olharmos para a evolução das políti- do século XX, no Brasil, contribuiu para fundamentar as bases de
um sistema de assistência à infância.
cas públicas de expansão e acesso à educação
2 Projeto Casulo – política de Previdência e Assistência Social
infantil no Brasil, é preciso reconhecermos um coordenado pela LBA para ampliação ou implantação de atendi-
mento à criança de 0 a 6 anos. Serviço público de atendimento a
longo caminho que foi percorrido. As institui- essa população por meio de instituições de caráter ilantrópico ou
comunitário por meio de convênio (Campos, 2001; Vieira, 2010).

116
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

É a partir dos Movimentos Sociais da Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), é


década de 70 e 80, quando as mulheres dos que pela primeira vez em uma LDB a Educação
grandes centros urbanos reivindicam o direito Infantil é apresentada como a primeira etapa
à Creche como garantia do seu direito ao tra- da Educação Básica, dividida em creche, aten-
balho e à participação política, que surgiu o dimento destinado à faixa etária de até 3 anos
Movimento de Luta por Creches (Rosemberg, e pré-escola, quando a oferta é voltada às crian-
1989; Campos, 1999). Na transição dos gover- ças entre 4 até 6 anos de idade.
nos democráticos dos anos 80, a discussão Nesse contexto, seguiu-se uma amplia-
da inclusão da creche no setor educacional é ção de vagas na educação infantil durante os
acirrada, discutindo-se se a creche deve estar anos 90, mas especialmente na faixa etária de
vinculada à assistência social: de um lado, os 0 a 3 anos, a expansão de vagas é muito len-
órgãos assistenciais colocam-se como deten- ta e ainda insuiciente. Entre os anos de 1995
tores de um saber acumulado sobre a organi-
a 1999, conforme dados da Pesquisa Nacional
zação e funcionamento destas instituições; e
por Amostra de Domicílios (PNAD), a cobertura
de outro lado, os setores educacionais enten-
de atendimento de 0 a 3 anos passou de 7,6 % a
dem que a creche deve estar vinculada à área
9,2% em 1999, com uma ampliação de somen-
educacional integrada à educação pré-escolar,
te 1,6% de aumento de matrículas, a pré-esco-
numa rejeição ao caráter assistencialista desta
la no mesmo período tendo uma ampliação de
instituição ao longo de sua história.
cobertura de 53,5% em 1995, para 60,2% em
É com a Constituição de 1988 que os di-
1999 perfazendo uma ampliação de 6,7%.
reitos das lutas das mulheres dos Movimentos
Tabela 1. Taxa de frequência na Educa-
Sociais, as disputas dos organismos de assis-
ção Infantil, segundo as faixas etárias no Brasil
tência social e a educação convergem na con-
(1997 – 2007)
sagração do direito da criança, e não somente
da mãe trabalhadora, superando o viés assis-
tencialista desta disputa e consagrando um
novo sujeito de direitos a criança no Brasil e
integrando a creche e a pré-escola no sistema
educacional. Após a conquista na Constituição
Fonte: Microdados da Pnad (IBGE)
de 1988, na aprovação da Lei de Diretrizes e

117
Débora Teixeira de Mello

O FUNDEF (Fundo de Manutenção e De- ção infantil, em creche e pré-escola, às crianças


senvolvimento do Ensino Fundamental e Valo- até 5 (cinco) anos de idade – as crianças de 6
rização do Magistério) foi aprovado em 1996 anos foram direcionadas para matrícula no Ensi-
pela Emenda Constitucional n.14 Lei 9.424/96 no Fundamental. A mesma emenda constitucio-
e teve vigência até 2006. A concepção do FUN- nal instituiu o FUNDEB - Fundo de Manutenção
DEF durante o governo Fernando Henrique da Educação Básica e Valorização do Proissio-
Cardoso (1994-2001) foi explicada pela má nais da Educação. A nova emenda 53/06 passou
gestão dos recursos que deviam concentrar- a vincular os recursos inanceiros já previstos, a
-se no Ensino Fundamental. A focalização dos toda a educação básica, não focalizando os in-
recursos inanceiros no Ensino Fundamental vestimentos no ensino fundamental.
durante a vigência do FUNDEF acarretou um Com a implementação do FUNDEB
recuo da expansão das matrículas nos muni- (2006), a partir da luta dos movimentos sociais
cípios que vinham ampliando as matrículas na
envolvendo a União dos Dirigentes Munici-
educação infantil, sendo que o investimento
pais de Educação (UNDIME), o Movimento In-
nesta etapa da educação básica icou depen-
terforuns de Educação Infantil do Brasil (MIEI-
dendo das sobras de recursos (Pinto, 2007).
BI) e Confederação Nacional de Trabalhadores
(CNTE) em diálogo com o MEC e o Congresso
Educação Infantil Pós-FUNDEB
Nacional, inalmente foram vinculadas fontes
de inanciamento para creches e pré-escolas
O cenário na expansão de vagas na edu-
nos sistemas de ensino e foi garantida a in-
cação infantil começa a se modiicar a partir da
extinção do Fundo de Manutenção e Desenvol- clusão das creches e pré-escolas conveniadas
vimento do Ensino Fundamental e Valorização com o poder público municipal. Ficaram tam-
do Magistério FUNDEF (1996) e aprovação e bém estabelecidos na legislação do FUNDEB,
implementação do Fundo de Manutenção da novos parâmetros de legais para a distribui-
Educação Básica e Valorização dos Proissionais ção dos recursos públicos, estabelecendo-se
da Educação FUNDEB (2006) em 2006, ainda no obrigações das instituições conveniadas do
primeiro mandato do governo Lula. Em 2006, serviço prestado à população, com padrões
foi incorporada uma Emenda Constitucional mínimos de qualidade a serem atendidos e
53/2006 que modiicou o art. 208 da CF/88 - in- comprovação de inalidade não-lucrativa das
ciso IV - que é dever do Estado oferecer a educa- instituições (Vieira, 2010).

118
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

Os dados do PNAD em relação à expan- cação de 2001 (PNE 10.172/01). No Plano Na-
são da matrícula em creche e pré-escolas entre cional de Educação (PNE/2001), havia uma pre-
2005 e 2007 evidenciam um aumento signii- visão de ampliação de cobertura para a faixa
cativo desta cobertura matrículas. etária de 0 a 3 anos, tendo como meta incluir
Tabela 2. Taxa de frequência na Educa- até 50% dessas crianças até o inal da década e
ção Infantil, segundo as faixas etárias no Brasil 80% das crianças de 4 a 5 anos.
(1997 – 2007): No diagnóstico da Educação Infantil do
PNE 10.172/01, as condições das instituições
de atendimento às crianças de 0 a 3 anos, em
grande parte creches públicas, ilantrópicas e
assistenciais, já havia uma análise das diicul-
dades enfrentadas pelas instituições que aten-
dem essa faixa etária:
Fonte: Microdados da Pnad (IBGE)
A maioria dos ambientes não conta com pro-
Ao analisarmos os dados do PNAD entre issionais qualiicados, não desenvolve pro-
grama educacional, não dispõe de mobiliário,
2005 e 2007, estes demonstram que a cobertu- brinquedos e outros materiais pedagógicos
ra para faixa de 0 a 3 anos no segmento creche adequados. Mas deve-se registrar, também,
que existem creches de boa qualidade, com
cresceu de 2005 de 13% para uma taxa de co-
proissionais com formação e experiência no
bertura de 17,1% em 2007, uma ampliação de cuidado e educação de crianças, que desen-
4,1% pontos percentuais. E na faixa etária da volvem proposta pedagógica de alta qualida-
de educacional. Bons materiais pedagógicos
pré-escola, de 4 a 6 anos de idade, em 2005, e uma respeitável literatura sobre organiza-
uma taxa de 72% de cobertura passou para ção e funcionamento das instituições, para
77,6%, um percentual de aumento de cobertu- esse segmento etário vêm sendo produzidos
nos últimos anos no país (PNE, 2001).
ra de 5,6 % pontos percentuais.
Os dados evidenciam uma ampliação de
Diante deste cenário, uma das ações do
matrículas ainda lenta, especialmente no seg-
MEC foi incluir no PDE (Plano de Desenvolvimen-
mento de 0 a 3 anos no país, mas que come-
to da Educação, 2007) a destinação de recursos
çam a se modiicar mais rapidamente após a
inanceiros para a educação infantil, aumentan-
implementação do FUNDEB, mesmo que ainda
do sua oferta. E, para qualiicar o atendimento
distante das metas do Plano Nacional de Edu-

119
Débora Teixeira de Mello

nas instituições de educação infantil, foi criado o lheres chefes de família, com maiores percen-
tuais de jovens em situação de pobreza e com
Programa Nacional de Reestruturação e Aquisi-
menores disponibilidades de recursos para
ção de Equipamentos para a Rede Escolar Públi- inanciamento de educação infantil (FNDE/
ca de Educação Infantil (Proinfância). Segundo Proinf/legislação, 2008).
dados do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvi-
mento da Educação, 2008): Com a implementação do Proinfância, os
municípios contaram com o apoio do governo
O Programa foi instituído pela Resolução nº
federal para construção das unidades de educa-
6, de 24 de abril de 2007, e é parte das ações
do Plano de Desenvolvimento da Educação ção infantil, para compra de mobiliário e insta-
(PDE) do Ministério da Educação. Seu objetivo lações. A partir da realização das matrículas das
é prestar assistência inanceira, em caráter su-
plementar, ao Distrito Federal e aos municípios novas crianças, os municípios passaram a rece-
que efetuaram o termo de adesão ao plano ber os recursos do FUNDEB, conforme a Medida
de metas Compromisso Todos pela Educação
Provisória n.562/2012. E houve, também, a pos-
(MEC, 2008). O Programa dispõe de recursos
para a aquisição de equipamentos e mobiliá- sibilidade da discussão de assessoria do MEC aos
rios. Para isso, o MEC exige que os Municípios municípios conveniados, no que se refere a te-
façam a adesão ao Plano de Metas e elaborem
o Plano de Ações Articuladas (PAR) de sua lo- mas relativos à implementação do trabalho pe-
calidade para receber essa assistência (FNDE/ dagógico para essas unidades, a partir das con-
Notícias/2008).
sultorias do Ministério da Educação nos estados.
Com os dados do Censo Escolar MEC/
O MEC e o FNDE estabeleceram critérios
INEP (2010), já é possível veriicarmos uma
para classiicação dos municípios que foram
mudança na ampliação das matrículas na edu-
estabelecidos segundo três dimensões:
cação infantil, pós-FUNDEB e com o programa
a) populacional: prioridade aos municípios Proinfância. Em relação às taxas de matrícula
com maior população na faixa etária consi- na Educação Infantil, destaca-se que, no Bra-
derada, maior taxa de crescimento da popu-
lação nessa faixa etária e com maior concen- sil, a matrícula em creche era da ordem de
tração de população urbana; 2.298.207 e a da pré-escola de 4.692.045, tota-
b) educacional: prioridade aos municípios
com menores taxas de defasagem idade-sé- lizando uma matrícula na Educação Infantil de
rie no ensino fundamental e com maiores 6.756.698 crianças, com um percentual de co-
percentuais de professores com formação em bertura de atendimento de 23,6% em creche,
nível superior;
c) vulnerabilidade social: prioridade dos sendo que dez anos antes, em 2000, esse per-
municípios com maiores percentuais de mu-

120
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

centual era de 9,4% das crianças dessa faixa Em 2009, assistimos à aprovação da
etária. Na pré-escola, em 2010, o percentual Emenda Constitucional 59/09, que garantiu o
de matrícula encontrado era de 80,01% e, no acesso à educação básica obrigatória e gratui-
ano 2000, esse percentual alcançava apenas ta dos 4 aos 17 anos. Essa alteração colocou sob
61,4% das crianças de 4 a 6 anos. responsabilidade dos municípios e do Distrito
Destaca-se, ainda, no Censo 2010, que Federal a ampliação de vagas na educação in-
o maior número de matrículas da creche está fantil e, com prazo até 2016, para que as vagas
sob responsabilidade dos municípios em tor- para o ingresso das crianças de 4 anos sejam
no de 65,2%, num total de 1.345.180 crianças, criadas e o acesso universalizado. No Brasil, essa
seguida da rede privada com 710.917 matrí- nova legislação trouxe uma questão: como o
culas 34,0%. Mas, 361.032 matrículas da rede Sistema Educacional Brasileiro, especiicamente
privada 50,8% são instituições parcialmente as redes municipais, vem enfrentando o desaio
conveniadas com os municípios (Resumo Téc- da expansão da Educação Infantil, especialmen-
nico/Censo Escolar, 2010). te com a inclusão de creches e pré-escolas no
Os dados reairmam a necessidade de sistema de ensino. Desde a LDB 9394/96, a Edu-
expansão de Programas como o Proinfância cação Infantil passou a fazer parte da Educação
para que sejam superadas as alternativas de Básica e tem como princípio que os municípios
baixo custo de conveniamento com institui- e outras instâncias governamentais coloquem a
ções ilantrópicas, comunitárias e privadas pe- Educação Infantil, incluindo a rede de creches,
los municípios. Os dados também evidenciam no sistema de educação e responsabilizem-se
que, apesar da legislação vigente, que as me- pelas redes de creches já existentes. Diante des-
tas de ampliação e acesso à educação infantil te cenário, surgem algumas questões: Como os
ainda não foram atingidas nos dez anos de vi- municípios ampliarão as vagas para o acesso
gência do PNE (2001). Destaca-se também, a a todas as crianças de 4 anos? Como formar e/
necessidade de expansão de vagas, especial- ou ampliar o quadro de docentes para atender
mente na faixa etária de 0 a 3 anos, quando essa demanda, respeitando a legislação em que
ainda estão muito distantes os 23,6% da meta para atuar na Educação Infantil, admite-se como
de 50% de cobertura de matrícula para essa formação mínima o normal/magistério, e prefe-
faixa etária. rencialmente que o professor tenha formação
superior em Pedagogia?

121
Débora Teixeira de Mello

A expansão da educação infantil e o de- O PNE (2001) também deiniu diretrizes


saio da formação de professores para a formação de professores. Segundo o
documento, seria necessário estabelecer: um
Um desaio que se impôs aos municípios Programa Nacional de Formação dos Proissio-
foi a contratação de professores para a etapa da nais de Educação Infantil com a colaboração da
educação básica, pois, com a inclusão das cre- União, Estados e Municípios, inclusive das uni-
ches no sistema de ensino, o peril proissional versidades e institutos superiores de educação
para atuar na Educação Infantil passou a ser o e organizações não governamentais, que reali-
professor. Mas, especialmente quando se trata ze as seguintes metas:
do segmento das crianças de 0 a 3 anos, atendi-
a) que, em cinco anos, todos os dirigentes de
da na instituição denominada creche, o desaio instituições de educação infantil possuam for-
torna-se mais evidente: como contar com um mação apropriada em nível médio (modalida-
de Normal) e, em dez anos, formação de nível
quadro de professores e plano de carreira incor- superior;
porando os monitores, recreacionistas, auxilia- b) que, em cinco anos, todos os professores
tenham habilitação especíica de nível médio
res que vêm atuando nessas instituições? e, em dez anos, 70% tenham formação espe-
No que diz respeito à formação de pro- cíica de nível superior. Ainda, segundo o PNE
fessores, a LDB 9394/96 prevê no Título VI – (2001): A partir da vigência deste plano, so-
mente admitir novos proissionais na educação
Dos Proissionais da Educação — no seu artigo infantil que possuam a titulação mínima em
62 — a formação de professores das crianças nível médio, modalidade normal, dando-se pre-
ferência à admissão de proissionais graduados
pequenas, no ensino superior, admitindo-se em curso especíico de nível superior.
como formação mínima o magistério:
Mas, apesar das metas do PNE (2001),
Art. 62. A formação de docentes para atuar na
educação básica far-se-á em nível superior, quanto à formação dos professores da Edu-
em curso de licenciatura, de graduação plena, cação Infantil, as pesquisas demonstram que,
em universidades e institutos superiores de
em 2007, segundo o Estudo Exploratório sobre
educação, admitida, como formação mínima
para o exercício do magistério na educação o Professor Brasileiro - com Base no Censo Es-
infantil e nos 5 (cinco) primeiros anos do ensino colar 2007 - publicado em 2009, (MEC/INEP).
fundamental, a oferecida em nível médio na
modalidade normal (Redação dada pela Lei
Assim, no segmento da creche, em 2007, con-
nº 12.796, de 2013). tava-se com 95.643 professores, sendo que
destes 2.896 (3%) tinham somente o Ensino

122
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

Fundamental, 9.465 (9,9%) tinham o Ensino relação a proissionalização do professor para a


Médio, 43.027, um número maior de profes- etapa da Educação Infantil, estamos distantes
sores tinha formação no curso Normal/Magis- da meta do PNE de 70% dos docentes com ní-
tério (45%) e 35.570 (37%) Ensino Superior em vel superior atuando em creches e pré-escolas
Licenciatura e 4.685 (4,9%) outro curso supe- quando já se passaram 18 anos de aprovação
rior. do novo ordenamento legal.
Na pré-escola, 3.229 professores têm so- Em 2010, os dados do Censo da Educa-
mente Ensino Fundamental (1,3%), 14.837 so- ção Superior (MEC/INEP, 2010) apontam um
mente Ensino Médio (6,2%), 99.435 possuem aumento das matrículas no curso de Pedago-
curso Normal/Magistério (41,3%), 109.556 gia entre os anos de 2002 a 2009: em 2002 fo-
possuem Ensino Superior em Licenciatura ram 357 mil matrículas no curso de Pedagogia,
(45,55%) e 13.476 possuem Ensino Superior passando para 555 mil em 2009, um aumento
sem licenciatura (5,6%). Destaca-se que na cre- de mais de 60% das matrículas. Reconhece-se
che somente 37% dos professores têm Ensino o investimento do MEC nos cursos de formação
Superior com Licenciatura e na pré-escola esse de professores, mas o aumento de matrículas
universo é de 45,55% dos professores. Consi- no curso de Pedagogia está condicionado tam-
derando que o PNE (10.172/01) foi aprovado bém à expansão deste curso pela modalidade
em 2001, veriica-se que a formação de pro- a distância.
fessores para essa etapa vem apresentando E foi em consonância com esse momen-
um quadro mais favorável, apesar de ainda en- to da ampliação de vagas no curso de forma-
contrarmos em torno de 12,9% de professores ção de professores que em 2006, foram apro-
sem a formação mínima recomendada pela le- vadas as Diretrizes Curriculares para formação
gislação atuando no segmento creche e 7,5% de professores no curso de Pedagogia – Reso-
quando se trata da pré-escola. Esta situação é lução CNE/CP n. 1 de 15 de maio de 2006: no
agravada no segmento creche, pelo fato de as texto das diretrizes a formação de professores
creches absorverem grande parte dos prois- para a Educação Infantil está prevista no art. 4o:
sionais contratados pelas áreas de saúde e as-
sistência social, como monitores, recreacionis- O curso de Licenciatura em Pedagogia desti-
na-se à formação de professores para exercer
tas, auxiliares antes da vigência LDB 9394/96. O funções de magistério na Educação Infantil
que vem demonstrar que, apesar das conquis- e nos anos iniciais do Ensino Fundamental,
nos cursos de Ensino Médio, na modalidade
tas do ordenamento legal dos anos 80 e 90, em
Normal, de Educação Proissional na área de

123
Débora Teixeira de Mello

serviços e apoio escolar e em outras áreas nas cursos de Pedagogia. As políticas públicas de
quais sejam previstos conhecimentos peda-
gógicos. formação de professores só terão efetividade,
quando estiverem em consonância com as ins-
Em pesquisa sobre formação de profes- tituições formadoras, neste caso, as universida-
sores, Gatti (2010) analisa que, investigando os des responsáveis pela formação dos alunos do
currículos do curso de Pedagogia em 71 cursos curso de Pedagogia.
presenciais, evidenciou que somente 5,3% do Ainda, no PNE (2001) havia uma meta so-
conjunto das disciplinas obrigatórias dos cursos bre a expansão de cursos com formação espe-
apresentavam conteúdo especíico da etapa da cíica para atuação na Educação Infantil, meta
Educação Infantil. A pesquisa aponta que no es- no. 24: Ampliar a oferta de cursos de formação
tudo das ementas das disciplinas existe maior de professores de educação infantil de nível supe-
preocupação com a oferta das disciplinas de rior, com conteúdos especíicos, prioritariamente
formação geral de teorias políticas, sociológicas
nas regiões onde o déicit de qualiicação é maior,
e psicológicas, do que um embasamento teóri-
de modo a atingir a meta estabelecida pela LDB
co-prático para a atividade de ensino.
para a década da educação. Essa meta ressalta-
Neste estudo, analisando as grades curri-
va os dez anos para ajuste do sistema educa-
culares de três universidades públicas federais
do Rio Grande do Sul, encontramos, nos currí- cional, para sua implementação, possibilitando
culos dos cursos de Pedagogia, com carga ho- que os professores em 10 anos completassem
rária de 3200 horas uma média de 5% a 10% de sua formação em nível superior. Esperava-se
disciplinas que contemplam como conteúdo um investimento na formação de professores
a discussão da ação pedagógica ou docência para a Educação Infantil nos cursos de gradua-
na Educação Infantil. As pesquisas vêm con- ção em Pedagogia, cursos de Especialização
irmar, que apesar da legislação vigente na Lato Sensu na área da Educação Infantil.
implementação de políticas de formação de As primeiras inciativas para atender às
professores para atuarem na Educação Infantil, metas do PNE (2001) de formação inicial e con-
é necessário promover uma discussão com as tinuada dos professores da educação básica fo-
universidades de como contemplar e ampliar o ram explicitadas no Plano de Desenvolvimento
conhecimento da especiicidade de uma ação da Educação (PDE, 2007) com a criação da Po-
pedagógica com crianças de 0 a 5 anos nos lítica Nacional de Formação de Proissionais do

124
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

Magistério da Educação Básica, instituída pelo Na continuidade da política de formação


Decreto 6.755 de 29 de janeiro de 2009. Uma de professores da Educação Básica, a Diretoria
Política Nacional de Formação de Proissionais de Políticas de Formação, Materiais Didáticos e
do Magistério da Educação Básica tem a inali- de Tecnologias para Educação Básica/Coorde-
dade de apoiar a formação inicial e continuada nação Geral de Formação de Professores CG-
dos professores das redes públicas da educação FORM, em parceria com a Coordenação Geral
de Educação Infantil (COEDI), da Diretoria de
básica em regime de colaboração entre a União,
Concepções e Orientações Curriculares para
os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Educação Básica, com a participação de Uni-
As ações foram implementadas, mais re-
versidades parceiras do MEC executoras do
centemente, com apoio do governo federal, a
Proinfantil, elaborou em 2009 o Projeto do Cur-
partir da iniciativa da Secretaria de Educação so de Especialização. A oferta da Especialização
Básica (SEB) do MEC, uma ação articulada entre iniciada em 2010 contou com a adesão de 13
a Diretoria de Concepções e Orientações Cur- universidades e um total de 2.955 professores
riculares para a Educação Básica/Coordenação matriculados.
Geral de Educação Infantil (COEDI). Um exem- A partir da Constituição de 1988 e LDB
plo é o Programa Proinfantil , ofertado desde 9394/96, vivemos a expectativa da formação
2005, um curso de nível médio, a distância, na de professores para atuar junto às crianças de
modalidade normal, visando a formação dos 0 a 6 anos atendendo as diretrizes da legisla-
professores que atuam na Educação sem for- ção. Mas, o peril do professor para atuar junto
mação Especíica: às instituições de atendimento a crianças pe-
quenas, como as creches, vem sendo conquis-
Destina-se aos proissionais que atuam em tado muito recentemente. Ao incorporarem a
sala de aula da educação infantil, nas creches creche como segmento educacional, muitas
e pré-escolas das redes públicas – municipais
e estaduais – e da rede privada, sem ins lu- vezes os sistemas de ensino não estiveram
crativos – comunitárias, ilantrópicas ou con- preparados para atender à formação das edu-
fessionais – conveniadas ou não, sem a for- cadoras de creche em serviço ou em formação
mação especíica para o magistério. O curso,
com duração de dois anos, tem o objetivo de continuada. A necessidade de formação desses
valorizar o magistério e oferecer condições de grupos de educadoras é um desaio colocado
crescimento ao proissional que atua na edu-
aos estados e municípios, como sintetiza Nas-
cação infantil (portal.mec.gov.br/proinfantil).
cimento (1999):

125
Débora Teixeira de Mello

[...] discutir a formação de proissionais para [...] As creches, especialmente, as comunitá-


a Educação Infantil pressupõe a urgência de rias e conveniadas geralmente apresentam
uma atenção bastante acurada, sobre as im- maiores deiciências, quanto ao prédio e os
plicações do assentamento da creche como equipamentos, nos aspectos de conforto,
parte integrante dos sistemas educacionais. saneamento e adequação à faixa etária (p.
Desta tarefa não poderão se furtar respon- 118-119).
sáveis pela política educacional. Não apenas
direitos sociais estão em jogo, mas também o
presente, o futuro de milhões de crianças, e a Como auxiliar os municípios na supe-
perspectiva de justiça social (p.112). ração deste cenário ainda presente nos dias
atuais? Acreditamos que se precisam estabele-
Conforme estudo de Campos et al cer novos patamares de acesso e expansão de
(2006), analisando as diiculdades de implan- qualidade da educação infantil, e para isso sen-
tação da nova legislação pelos sistemas de do necessária a articulação dos entes federati-
educação, quanto à formação de professores vos do país, independente dos governos e de
para atuar na Educação Infantil, especialmen- sua gestão, mas do estabelecimento de políti-
te quando se trata da instituição creche, são cas de Estado. Assim, superam-se as desigual-
maiores as diiculdades da implementação das dades sociais e educacionais entre municípios,
políticas públicas de educação, para os municí- estados e regiões num novo pacto federativo
pios e estados brasileiros: mais equitativo (Oliveira, 2011).
Os dados iniciais desse estudo eviden-
[...] Ao mesmo tempo em que, em muitos es-
tados e prefeituras, foram organizados cur- ciaram que as políticas governamentais têm
sos de formação para educadores leigos que um longo caminho a percorrer para ampliação
já se encontravam trabalhando nessas insti-
tuições, muitas prefeituras e entidades têm da formação inicial e continuada dos prois-
contestado a exigência e buscado subterfú- sionais que atuam na Educação Infantil. Esse
gios, por exemplo, contratando educadores
como se desempenhassem atividades de cenário passa a sofrer modiicações com a ex-
limpeza, para fugir ao requisito da formação pansão da oferta da Educação Infantil e como
prévia (p.90).
consequência exige uma proissionalização
Os resultados da pesquisa, arroladas de- docente para atuação nessa etapa e sua valo-
monstram que as educadoras de creche têm
rização proissional.
diiculdade de superar as rotinas empobreci-
das de cuidados com alimentação e higiene;
incorporando práticas que levem ao desen-
volvimento integral das crianças [...]

126
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)

Conclusões parciais senvolvimento da Educação (PDE), um progra-


ma de governo do MEC, e esse cenário passou
Diferentemente de outros países, prote- a sofrer modiicações na busca da ampliação
ção à infância no Brasil só vem se desenvolven- da oferta da Educação Infantil e como conse-
do com mais força nas últimas décadas a partir quência exigiu uma proissionalização docente
das conquistas do novo marco legal dos anos para atuação nesse nível de ensino, o que vem
80. As necessidades e as demandas de cui- acontecendo ao longo desses anos, gradativa-
dados e educação da pequena infância e dos mente, na implementação de políticas públi-
benefícios trazidos às famílias dessas crianças cas municipais.
têm sido conclamadas pelos movimentos so- Diante desse quadro, a conquista da in-
ciais e entidades representativas como UNDI- clusão das creches no sistema de inanciamen-
ME, MIEIBI, CNTE, ANPED. to do FUNDEB lei n.11.494/2007, consequência
Segundo a UNESCO (2005), os países da mobilização dos movimentos sociais, foi
com fortes convicções relativas à igualdade determinante para a melhoria da qualidade
entre gêneros e à democracia social (nórdicos, do atendimento em creches. E com a aprova-
por exemplo) reagiram de maneira rápida e po- ção do novo Plano Nacional de Educação Lei
sitiva com medidas destinadas a reconciliar as 13.005, de 25 de junho de 2014, que ressalta
necessidades do trabalho e das famílias. Con- na meta 1.8 a relevância da formação de pro-
tudo, os países caracterizados pelas ideologias fessores para a Educação Infantil — promover a
liberais e orientadas para o mercado (Estados formação inicial e continuada dos(as) proissio-
Unidos, Reino Unido e Austrália) tenderam, até nais da educação infantil, garantindo, progres-
tempos recentes, a deixar a questão a cargo sivamente, o atendimento por proissionais com
das famílias, tendo a participação do governo formação superior. Nesse momento, vivemos a
minimizada. O Brasil, ao longo dos anos, fez expectativa de que sua implantação possa dar
uma opção também por situações alternativas novos rumos à qualidade de educação e cui-
na educação e no cuidado das crianças peque- dados das crianças pequenas, esperamos que
nas: políticas focalizadas que não incluíram possam se cumprir os princípios consagrados
os direitos das crianças a um atendimento de em legislação desde os anos 80 para a criança
qualidade. Em 2007, foi lançado o Plano de De- brasileira, tornando-a sujeito de direitos.

127
Débora Teixeira de Mello

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129
6
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Maria Carmen Silveira Barbosa

Introdução pequenas. Isto é, atributos considerados “femi-


ninos”, de uma boa mãe ou sensível mulher, ou
Ser professora de Educação Infantil é aqueles que poderiam ser prejudiciais à pró-
exercer uma proissão nova, ainda em constru- pria docência com crianças mais velhas, tais
ção, que se forja no encontro entre (a) as teorias como falta de domínio de classe, estar em vias
de formação docente, (b) as especiicidades da de aposentadoria e ter que afastar-se da turma,
prática cotidiana em creches e pré-escolas e (c) stress ou outro.
os saberes e os conhecimentos especíicos da Na Lei de Diretrizes e Bases de 1961, a
área da Educação Infantil. No Brasil, os cursos educação das crianças de 0 a 6 anos não es-
para a formação de professores de Educação tava presente; na LDB de 1971 temos, no con-
Infantil em nível superior são muito recentes. texto da educação compensatória, a chegada
Até pouco tempo os professores eram forma- da educação pré-escolar; e, em 1996, vamos
dos para a docência no ensino fundamental encontrar a formulação da Educação Infantil
(anos iniciais) no curso normal ou magistério e, como uma etapa especíica da Educação Básica,
posteriormente, após estudos adicionais, eram organizada como um bloco único, fortalecido
considerados aptos para atuarem nos Jardins pela exigência de exercício de uma docência
de Infância, nas Creches ou na Pré-escola. Na (1996). Desde então estamos procurando cons-
ausência de formação, e havendo necessidade, truir um modo de formar e ser docente na Edu-
as professoras iniciavam a carreira até mesmo cação Infantil. Um modelo que não reproduz ao
sem formação alguma sendo selecionadas por estilo de docência dos demais níveis do siste-
seus atributos pessoais, como, ser mulher, ter ma educacional, mas que respeite os processos
calma, fala tranquila, mansa, gostar de crianças educacionais que exigem atenção às especiici-

131
Maria Carmen Silveira Barbosa

dades etárias e as propostas educativas centra- situada a formação inicial dos professores da
das no binômio educar e cuidar. Educação Infantil, grande parte dos formadores
Estamos, neste momento histórico, ma- não viveram a experiência de serem professores
peando o que conigura esta “peculiar” docên- de crianças pequenas; não distinguem com cla-
cia. Uma docência que se caracteriza por ser reza o que distingue e/ou aproxima uma crian-
indireta, por ser relacional, por não ministrar ça de três anos ou cinco anos e também, muitos
aulas, por não estar centrada em conteúdos deles, não compreendem o que signiica uma
disciplinares, por estar com as crianças e não escola infantil neste momento histórico, com
controlando-as. Isto é, por desconstruir aquilo essas crianças, nessa cultura, e sua contribuição
que por muitos foi identiicado como o cerne, na formação humana. Muitos nem mesmo sa-
o “óbvio”, da docência. Muito ainda precisa ser bem como ela funciona.
feito nas escolas para aprendermos a nomear, a Assim, grande parte dos docentes uni-
partir daquilo que é realizado no dia a dia, quais versitários não tem nem a experiência empíri-
são as práticas e as temáticas pertinentes para a ca da docência com crianças e bebês, nem do-
formação do professor de educação infantil. É, minam as teorias explicativas que contribuem
nesse contexto que levantamos algumas consi- para a relexão sobre a ação pedagógica com
derações sobre o tema trazendo nessas notas, as crianças pequenas na escola.
um começo de conversa, isto é, apresentando A questão do formador dos novos prois-
alguns apontamentos para o diálogo. sionais não ter sido um proissional da educa-
ção infantil, não ter a experiência docente em
escolas que tenham esta oferta educativa, e/
A formação inicial precisa partir da ex- ou não ter investigações com bebês e crianças
periência e de um olhar aprofundado so- pequenas tem sido um fato muito relevante
bre a infância e a educação infantil para a não qualiicação dos novos professores
que se formam no ensino superior com teorias
De acordo com Antônio Nóvoa (2014), e propostas inadequadas para a leitura crítica
a construção de um proissional da educação das realidades onde irão atuar e com ausên-
ocorre tanto na instituição formativa como tam- cia de um repertório teórico e prático para a
construção de proposições inovadoras na área.
bém nas escolas onde esses professores/as se
Alguns acadêmicos, em inal de formação, não
encontram e constroem sua identidade pessoal
possuem informações mínimas sobre a situa-
e a identidade social da proissão no cotidiano.
ção social, econômica e política da infância,não
Nas universidades, locus onde atualmente está
conhecem as grandes questões que envolvem

132
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

o ser criança na sociedade contemporânea, zações nos saberes e fazeres docentes na Edu-
não circulam com intimidade no universo cação Infantil que diicultam de modo relevante
teórico dos estudos do campo da educação o desenvolvimento de práticas com qualidade
infantil e das pedagogias da infância nem mes- social, inovadoras, contextualizadas, criativas na
mo sabem posicionar-se frente as grandes ten- área da pequena infância e mantém, no cam-
sões teóricas da área, desconhecem (e acham po da docência, a contínua repetição, pelas no-
mesmo desnecessário compreender) a legis- vas professoras, das suas experiências pessoais
lação brasileira da Educação Infantil, pois não sem resigniicação, sem aprimoramento, sem
vinculam legislação, políticas públicas em sua rupturas. Um curso de licenciatura que habilita
relação com o dia a dia da escola. para a realização de uma ação pedagógica para
É fundamental reconhecer que o curso a qual não oferece formação é algo de imensa
de licenciatura em Pedagogia tem falhado na irresponsabilidade, pois pressupõe que as alu-
formação dos proissionais da docência em nas cheguem na universidade já qualiicadas,
educação infantil. As crianças de 0 a 3 anos quando isto não é, efetivamente, uma realidade.
estão invisíveis nos currículos, as disciplinas As demais licenciaturas não pressupõem que
metodológicas centram-se em áreas de conhe- os alunos, por terem frequentado a escola, não
cimento acadêmicas nem sempre pertinentes necessitem discutir a didática e a pedagogia,
à creche. A brincadeira e os jogos não tem nem os conhecimentos da disciplina que vão
relevância na formação, pois essas disciplinas ministrar, pois já os estudaram. Ora, na EI os fu-
(jogo, ludicidade, recreação, brincadeira, mú- turos professores tem pouca carga horária para
sica, artes plásticas) quando estão presentes, discutir temas especíicos da docência dos 0 aos
tem caráter complementar, muitas vezes ins- 6 anos, pois a formação que se pretende genera-
trumental, e não são vistos como fundamentos lista acaba por centrar nos temas da gestão e dos
de uma pedagogia especiica; o cuidado não grandes processos educacionais. Por que não na
é tomado como pressuposto teórico e prático gestão da sala? Das relações entre as crianças?
da ação pedagógica na educação infantil; a ali- Entre as proissionais? Entre as famílias?
mentação, o sono, o banho perdem seu caráter Talvez a insistência em realizar a forma-
pedagógico. As culturas infantis não são estu- ção do “dois em um” curso de pedagogia e o
dadas. Essas ausências no Curso de Pedagogia curso normal e/ou magistério, condensado
apontam uma formação inicial extremamente em quatro anos, não seja exatamente a opção
precária para a docência na Educação Infantil. adequada para a formação de bons proissio-
A desconsideração pelas crianças de 0 a 3 nais docentes, licenciados, isto é, professores
anos nos cursos de Pedagogia geram desvalori-

133
Maria Carmen Silveira Barbosa

que atuam junto às crianças1. A questão da re- sas práticas, inadequada para um proissional
lação entre bacharelado e licenciatura se im- que escolhe como tarefa proissional ser pro-
põe também para a pedagogia, pois até pouco fessor ou pedagogo.
tempo não se colocava, já que o pedagogo era Esta proissão tem um caráter híbrido:
um bacharel, e a formação para a docência com relexivo e ativista. Um professor de crianças
crianças estava centrada no curso Normal ou pequenas tem uma relação forte com a ação,
Magistério. É preciso uma relexão contextualiza- com um corpo que se movimenta junto com
da na realidade do nosso país, no que estamos as crianças, com a artesania de um saber que se
vivendo e observando nas escolas. São muitos produz em contexto, com a técnica que se quer
os países que formam dois proissionais da edu- apurada, a elaboração de materiais, com mo-
cação: o professor e o pedagogo, o licenciado e dos de registro das práticas, de organização de
o bacharel, o pedagogo social e o professor. processos sociais, com temas teóricos e práticas
Cada vez temos mais conhecimento so- pouco desenvolvidas na formação inicial. Mudar
bre a Educação Infantil: pesquisas, teses, dis- os modos como a formação inicial é realizada é
sertações, TCCs, que não são conhecidos e que um passo necessário para fundar a experiência
se fossem estudados, divulgados certamente de outra possibilidade de aprender e de ensinar,
fariam avançar o campo da formação. Mas não isto é, mudar a relação com o conhecimento.
há tempo. Fica para a formação continuada. Conteúdo novo em forma antiga desmerece a
Como selecionamos o que é o inicial e o que possibilidade da aprendizagem radical.
cabe a formação continuada?
Além, é claro, que não podemos esque- Uma atividade proissional que implica
cer da nossa tradição escolástica de formação a pesquisa e a militância
proissional, vinda dos seminários e dos cursos
de Filosoia e Teologia, com grande base em Ana Lucia G. de Faria sempre airma,
leituras, escritas e relexões, certamente muito utilizando os autores italianos, que ser profes-
importante na formação de padres, pastores e sor de Educação Infantil implica em tornar-se
ilósofos, mas, talvez, se centrada apenas nes- um Criancista e também um Criançólogo. Am-
pliando e situando em nosso contexto as pala-
vras da autora, seria possível dizer que ser um
1 A Lei LDBEN 9394/96, com seus encaminhamentos foi vi-
sta pelos autores do campo da formação como uma forma de criancista é colocar-se como ator social (peda-
aligeiramento na formação de professores e gestores no Brasil gogo) que analisa a infância no que se refere
e via de subordinação para as politicas neoliberais. Até hoje as
discussões sobre uma base comum na formação do pedagogo e
a sua inserção na sociedade. Estar informado
a docência como base da identidade proissional do pedagogo para compreender o contexto no qual vivem
ainda não encontraram solução (ERNS & p.2).

134
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

as crianças, os produtos culturais que lhes são Reivindicar condições de trabalho, qua-
oferecidos, as situações de vida das crianças no lidade no trabalho, legislações democráticas,
país, seus direitos legais, a precariedade que a igualdade social entre as crianças através do
muitas vezes atinge suas vidas, isto é, apren- direito de todas as vagas na Educação Infantil
der a analisar a criança em contexto e a tomar assumindo o compromisso com uma ética de
posicionamentos frente a estas situações a responsabilidade frente à criança e à socieda-
de. Hoje, por exemplo, precisamos nos posicio-
partir do lugar onde está inserido: a escola de
nar sobre vários aspectos da vida das crianças,
educação infantil. O que pode a escola frente a
pois as relações econômicas, especialmente o
esta situação? Como ela pode melhorar? Como
neoliberalismo, com o consumo, a competitivi-
pode contribuir para que mais direitos sejam dade, o aceleramento e a produtividade estão
garantidos às crianças? Quais novos direitos modiicando a situação de vida das crianças
podem ser garantidos às crianças podem ter e com isto as demandas ou exigências para a
para que suas infâncias sejam mais desaiantes, educação infantil. Como vamos respondê-las?
alegres, instigantes? Ser um Criançólogo signiica optar por
Esta atitude exige participar de um co- estudar as crianças pequenas e acompanhar
letivo de relexão – escola, sindicato, grupo suas vidas, seus começos, suas primeiras vezes
de estudo e formação – para a construção de ... estar junto com elas como um pedagogo.
ações sociais coletivas que realmente tenham Lembrando que a pedagogia é sempre uma
signiicado social e também para cada criança. maneira de interferir na vida das crianças e que
Um grupo que tenha pontos de vista diversos e esta ação é um ato de grande responsabilida-
de, sendo também um privilégio, pois aponta
possa analisar a complexidade do tema. Eviden-
caminhos, faz escolha, sugere modos de ser e
ciar o quanto as ações, as propostas e os proje-
se colocar no mundo.
tos realizados nas escolas de educação infantil
Um estudioso de bebês e crianças e da
ampliam os mundos das crianças pequenas, Educação Infantil precisa compreender as suti-
oferecendo para elas experiências de vida co- lezas, as minúcias da prática pedagógica, esta
letiva, de aprender a conviver com a diversida- invisível sabedoria da inseparabilidade entre
de social, tendo a comunidade e os pais como ação educativa e de cuidado na escola de edu-
os maiores aliados. Participar da elaboração de cação infantil. Gostar de crianças, ter desejo de
políticas públicas integradas para a infância e estar com elas, conversar, compartilhar tem-
militar pela defesa do direito das crianças - de pos, espaços e aventuras. Sentir-se desaiada a
proteção, provisão e participação – na família, compreendê-las nas suas próprias línguas.
na escola, na vida são tarefas de um criancista!

135
Maria Carmen Silveira Barbosa

Considerando que estamos formando A docência na educação infantil não é


um conhecimento teórico, com rigor cientíico, uma docência convencional: ela está em
que não é o da psicologia aplicada – que co- processo de invenção
nheceu as crianças individualmente – mas um
saber composto a partir das crianças em sua As abordagens teóricas sobre docência,
diversidade social e cultural, nas suas singu- nas ultimas revisões que empreendi, demons-
laridades, nas aprendizagens que acontecem tram que não serem suicientes para pensar a
“entre elas” nos espaços de vida coletiva. Nos- complexidade do fazer pedagógico do profes-
so objetivo como pesquisadores da pequena sor de sala na educação infantil. A pedagogia,
infância, na educação infantil é compreender especialmente aquela realizada com as crian-
melhor as crianças em seus grupos e seus mo- ças pequenas, é basicamente uma proissão re-
dos de vida, aprender junto com elas, crianças, lacional. Não se é docente apenas com aquilo
e delinear aspectos importantes para conso- que se têm do ponto de vista da informação
lidar práticas pedagógicas potencializadoras racional, mas também com aquilo que se é,
destas vidas infantis. como a capacidade de relacionar-se, de inte-
Tornar o cuidado e a educação de ragir, de tocar, de olhar, de cantar, de correr,
crianças pequenas uma função social reconhe- de desenhar, e outras tantas características da
cida, marcando a diferença da avó, da mãe, da proissão que envolvem o corpo, isto é, o fazer
babá ou ainda da irmã mais velha. Empreen- do professor. A docência não é simplesmente
der um processo de formação cultural, pessoal transmitir conteúdos objetivos para os alunos.
e cientíica – de longo prazo – para tecer sua O/A professor/a, ao relacionar-se com
formação e sua prática. Com as crianças, tudo um bebê, leva consigo sua experiência como
pessoa, sua experiência de infância, de corpo-
exige tempo e profundidade, e essa complexi-
reidade, suas concepções de política, de reli-
dade não é passível de ser simpliicada. Cons-
giosidade, suas experiências estéticas, a postu-
tituir uma perspectiva de formação e desen-
ra ética a que se ilia e essas marcam o modo
volvimento proissional implica em imbricar
como olham, interagem e educam as crian-
sentido de vida e sentido de proissão. Realizar
ças. Porém esses são conceitos que formam o
uma educação infantil de qualidade é mostrar
modo como os professores são ou agem e que
à sociedade, à seriedade, a complexidade, a
icam absolutamente excluídas da nossa rele-
exigência do fazer docente com crianças pe-
xão sobre o que é ser professor e dos modos
quenas. Enim, enfrentar a ausência de prestí-
como se propõe sua formação.
gio proissional com a apropriação de conheci-
Assim como as crianças têm um corpo,
mentos e de saberes próprios, especíicos. uma história, uma vida fora da escola, as pro-

136
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

fessoras e professores também têm. Precisamos público. Distinguindo crenças e gostos pes-
discutir como essas diversidades pessoais se tra- soais, de conhecimentos e saberes. Não se está
duzem e se concretizam no momento da prática propondo a “higienização” da vida pessoal, ao
pedagógica, pois elas signiicam modos distin- contrário, justamente reivindicando trazê-la a
tos de educar e criar possibilidades pedagógi- tona, para releti-la, e para que as característi-
cas e oportunidades de aprendizagens para as cas pessoais possam também se desenvolver
crianças. Ao negá-las, ou desmerecê-las por não nas novas experiências formativas, nos contex-
serem acadêmicas, elas operam sobre os profes- tos de trabalho, aprofundando as experiências
sores sem mediação, sem conscientização, sem prévias. Se gosto de samba, é possível justiicar
a possibilidade de revisão e transformação. sua presença na escola por inúmeros motivos,
Além disso, na docência o professor/a mas meu gosto pessoal não pode impedir o
leva consigo o seu repertório artístico, cultural, acesso das crianças a outros modos de produ-
cientíico, tecnológico, ambiental que consti- ção musical da população brasileira. Gostar de
tuiu em sua biograia e quando chega frente samba não impede outras escutas.
a um grupo de crianças em uma escola, essa Zeichner (2010), ao apresentar as novas
formação anterior, seus posicionamentos, suas epistemologias sobre a formação de profes-
escolhas (que não são neutras) dependem das sores, mostra que o conhecimento acadêmico
oportunidades que tiveram anteriormente. A não é a única fonte de conhecimento. Outros
universidade tem um profundo compromisso espaços, outras experiências, outras concep-
com esta formação ampliada, especialmente ções podem contribuir para a formação. No
tendo em vista que grande parte dos alunos Brasil, podemos pensar o quanto a educação
de pedagogia, candidatos a professor no Brasil, popular, a educação proposta nos centros cul-
tiveram poucas oportunidades formativas tan- turais, as metodologias dos movimentos so-
to na escolarização formal como nos restritos ciais, as experiências das escolas, os processos
espaços culturais das cidades brasileiras. audiovisuais de ativistas sociais e culturais po-
Os cursos de pedagogia e a formação deriam enriquecer a formação dos professores
continuada na escola necessitam visibilizar que irão trabalhar, em sua maioria, nas escolas
esta experiência de vida de modo relexivo. públicas. Oferecer outros conhecimentos que,
Fazê-los pensar sobre aquilo que consideram como airma o autor, coexistam em plano de
como algo natural, aquilo que tem como cren- igualdade com o conhecimento acadêmico
ça, pois analisando e distinguindo a crença que tradicionalmente se oferecem nos campus
pessoal – no âmbito privado – podem resig- universitários.
niicá-las nas ações pedagógicas no espaço

137
Maria Carmen Silveira Barbosa

Para ser relexivo é preciso aprender a pedagógicas, faça a leitura crítica dos grandes
construir perguntas, não apenas dar respos- pedagogos e não apenas rápida, ilustrativa,
tas. Quando um professor conta uma história como se esta obra fosse algo do passado. Um
bacana, uma poesia que sensibiliza e faz pen- estudo sério e contextualizado da pedagogia.
sar ou então quando se diverte com as coisas É impossível que Freinet, Montessori, Pistrak,
que as crianças produzem na escola, ele tam- Dewey e tantos outros sejam ministradas em
bém aprende na escola, conhece algo novo, uma única aula de história da educação, como
constrói novos desaios proissionais, relete referência, não, eles são os clássicos da peda-
sobre a docência. Quando ele escreve, relete, gogia e suas ideias e práticas podem, ainda
documenta, apresenta, torna público aquilo hoje, fazer pensar sobre a escola.
que realizou se torna mais proissional e enfa- O ensino e a extensão nas escolas através
tiza sua professoralidade. Isto é, dá estatuto ao de projetos como PIBID e outros mostram que
saber da experiência, reconhece a alteridade a relação universidade e escola pode ser muito
dos/as professores, e cria uma docência rele- mais orgânica e com ênfase na compreensão e
xiva. Esta operação precisa ser feita com as/ na produção de novos modos de fazer-docên-
os professoras/es para que elas/es aprendam cia. Por im, a pesquisa sobre a docência, sobre
a pensar na diversidade e não apenas aceitar processos de aprendizagem, sobre as meto-
normas sem compromisso de compreendê-las. dologias, sobre a relação com a comunidade
A concepção equivocada da docência, e a família, sobre as culturas infantis e juvenis,
ainda tão presente nos debates sobre o curso sobre a relação da cultura com a educação, so-
de pedagogia, airma que se o mesmo icasse bre modelos curriculares, a revisão dos conhe-
voltado para a docência, seria centrado apenas cimentos aprendidos na escola - que no futuro
em “conteúdos a serem transmitidos”, sendo serão propiciados as novas gerações - amplia a
assim, pouco crítico e centrado em tarefas. É visão de docência e a inventa em sua profundi-
impossível aceitar que pesquisadores possam dade técnica e abrangência política, cientíica,
continuar tendo esta visão que deine a técni- pessoal e cultural. Uma tarefa difícil, complexa,
ca, o como fazer, as escolhas metodológicas, e que esvaziamos de sentido ao acreditar que a
os modos de organização de tempo e espaço formação generalista fosse suiciente.
como temas simples e fáceis que não precisam É fundamental compreender que a
de discussão. A docência com crianças, jovens docência na educação infantil, como já foi dito,
e adultos é um ato político e técnico de grande seja compreendida como uma construção so-
complexidade. Exige uma formação onde o en- cial e geracional, que está sendo pensada e
sino aprofunde a relexão sobre as experiências produzida hoje, por todas nós, disputando ou

138
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

agregando concepções. Um processo proposto Referências bibliográicas


a partir dos questionamentos que busca cons-
ENS, Romilda; VAZ, Fabiana A. B., Políticas de
truir teorias em diálogo com as experiências.
formação de professores no Brasil: caminhos
Reletindo, fazendo a nossa socialização prois-
do curso de pedagogia. Revista Histedbr On-
sional – nos conhecendo, nos reconhecendo e
-line, Campinas, n.43, p. 143-158, set. 2011.
estabelecendo outros parâmetros para o exer-
cício da docência. Como airmamos no início GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro:
desse texto, ser professora de Educação Infan- Civilização Brasileira, 1981.
til é exercer uma proissão nova, uma proissão NÓVOA, António. O regresso dos Professores.
cujas características ainda estão sendo formu- Campo Grande: OMEP, 2014. ZEICHNER, Ken.
ladas. É preciso lutar para que esta docência Nuevas epistemologia em formación Del pro-
não seja aprisionada em modelos teóricos de fesorado. Repensando las conexiones entre lãs
docência que negam o corpo – das crianças e asignaturas del campus y lãs experiencias de
dos professores, em teorias que se centram na prácticas em La formación Del profesorado em
transmissão de informações, em teorias que La universidad. Revista Interuniversitaria de
pressupõe que se não houver atos explícitos de Formación Del Profesorado, 68 (24,2) (2010),
ensino as crianças, não irão aprender. É preciso, p. 123-149.
como já disse Ferreira Gullar, fugir das inúme-
ras armadilhas que existem no mundo. E para
isso é preciso indagar, problematizar, deslocar,
desnaturalizar: as teorias de formação docente
e procurar nos conhecimentos especíicos da
área da Educação Infantil elaborados a partir
da observação e indagação das especiicidades
da prática cotidiana em creches e pré-escolas,
das interações com as crianças e as famílias,
com análise dos contextos de função social
das escolas de educação infantil, das relexões
sobre a infância, as culturas infantis, a relação
arte e criança e muitos outros caminhos, não
convencionais, para pensar e praticar a formação
inicial e a docência na educação infantil.

139
7
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

Viviane Drumond

A partir das Diretrizes curriculares nacio- las. Conhecimentos que, na maioria das vezes,
nais do curso de Pedagogia (Brasil, 2006), a for- não são abordados no curso de Pedagogia,
mação de professores(as) de Educação Infantil pois este, de modo geral, valoriza a cognição
passou a ser contemplada nos cursos univer- e a aprendizagem de conteúdos, em detrimen-
sitários, com a obrigatoriedade do estágio to do movimento, do corpo, das brincadeiras,
docente em creches e pré-escolas. Assim, os da ludicidade, das invenções, que são próprios
cursos de Pedagogia viram-se diante do desa- das crianças.
io de reformular seus projetos curriculares e Discutir a formação de professor(a) de
propor cursos que formem os(as) estudantes crianças pequenas envolve uma complexidade
para três tipos de docência: a docência para a de conhecimentos. A docência na Educação
creche, para a pré-escola e para os anos iniciais Infantil constitui-se em um campo em constru-
do Ensino Fundamental. ção, com características peculiares, que extra-
Nesse cenário, os cursos de Pedagogia pola o modelo de professor(a) da escola, pois
passaram a discutir a docência e o estágio cur- tem, no binômio educação e cuidado, as mar-
ricular nos anos iniciais do Ensino Fundamental cas da sua especiicidade. Na educação das
e também na Educação Infantil. E isso signiica crianças pequenas são as relações entre os su-
dotar o conteúdo das disciplinas que integram jeitos: adulto-adulto, adulto-criança e criança-
o curso de conhecimentos especíicos sobre -criança que conferem sentido à existência das
as crianças pequenas em espaços coletivos instituições educativas. Ser professor(a) de cre-
de educação, como as creches e as pré-esco- che ou de pré-escola não é o mesmo que ser

141
Viviane Drumond

professor(a) de disciplina escolar que ensina professores(as) na construção de sua propos-


conteúdos – é outra proissão, uma proissão ta de educação para a primeira infância. Faria
que está sendo inventada (Mantovani; Perani, (2007, p. 283), em um artigo que discute a pro-
1999). “A professora de creche é uma profes- posta educacional defendida por Malaguzzi,
sora de criança e não professora de disciplina considera que a visão otimista da criança, autô-
escolar. Portanto, sem salas de aula, sem clas- noma, capaz, com ininitas possibilidades, que
ses, sem alunos(as)” (Faria; Richter, 2009, p. 15). constrói pensamentos, “exigiu uma professora
Mantovani e Perani (1999) falam da ex- também dotada”. Malaguzzi (apud Faria, 2007)
periência – realizada na Itália – de formação dizia que, para uma criança diferente, é preciso
de professores(as) de Educação Infantil para uma escola diferente e também uma professo-
atuar nas creches implantadas após a reforma ra diferente. Mas essa professora não existia,
legislativa nos anos de 1970. Para as autoras, precisou ser inventada a cada dia, trabalhando
a creche de “novo tipo” exigiu desde o início junto com as crianças e com os outros adultos,
a formação de “novos educadores”, ou seja, o experimentando, errando, corrigindo, revendo
problema da formação de professores(as) foi e reletindo sobre o trabalho realizado. Nesse
enfrentado juntamente com a implantação das processo, estar junto com as crianças e manter
creches, pois partia-se da ideia de que a forma- o distanciamento necessário para observá-las
ção era uma das questões centrais na constru- tornou-se uma das ferramentas mais impor-
ção do projeto em andamento. tantes para a prática pedagógica.
Assim, juntamente com a proposta das Portanto, discutir uma “nova” formação
creches com caráter educativo e não mais signiica que os conteúdos dessa formação de-
assistencialista, foram pensados o papel e a vem ser revistos, de modo a garantir aos(às) fu-
formação de professores(as). A proissão de turos(as) proissionais a aquisição de referências
professores(as) de creche estava sendo inven- para atuar na docência com crianças pequenas;
tada e, considerando sua complexidade, foram e isso impõe a deinição de novos currículos de
precisos novos instrumentos para produzir as formação, que contemplem, além dos conheci-
necessárias modiicações de atitude e de com- mentos teóricos e da pesquisa empírica, as in-
portamento dos(as) professores(as) (Mantova- formações em contexto real, a observação nas
ni; Perani, 1999). creches e nas pré-escolas. Nesse sentido, para
O educador italiano Loris Malaguzzi tam- Mantovani e Perani (1999), a formação prática
bém enfrentou a questão da formação dos(as) por meio de estágio, por um período de tempo

142
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

prolongado, revelou-se uma experiência extre- cadas sob os olhos da crítica. Por im, o terceiro
mamente signiicativa na formação de profes- movimento é assinalado pela força da criança.
sores(as) de crianças pequenas. Assim, o está- A política cognitiva inventiva é indicada como
gio foi entendido e cada vez mais reconhecido abertura para as virtualidades.
como momento central da formação de profes- Assim, a criança lança-se na aventura da
sores(as) de crianças pequenas. criação, da invenção. Não a criança empírica,
mas a criança das formas, ou seja, a criação, a
Como são formados os(as) professo- inventividade, o movimento involutivo que, ao
res(as)? dissolver as formas criadas, abre espaço para a
criação de formas outras. A criança é associa-
Ao tratar da formação de professores(as) da à inocência do devir, que não necessita de
de Educação Infantil, o estudo buscou pro- motores externos – deuses ou leis –; que não
blematizar o que se costuma entender como se move por falta, insuiciência ou penúria, mas
formação de professores(as), ou seja, como al- por efeito da plena positividade de um desejo
guém se torna professor(a)? Como são forma- criador, que se manifesta em um eterno e in-
dos os(as) professores(as)? A partir de relexões cessante jogo de construção e destruição (Fer-
apresentadas por Clareto (2011), Chauí (1980), raz, 2002 apud Clareto, 2011).
Fernandes (1987) entre outros autores(as). A criança é invenção; nesse sentido, a
Na perspectiva de responder tais ques- aprendizagem é compreendida como cultivo,
tionamentos, Clareto (2011, p. 52) lança mão, como inventividade. Aprender como cultivo e
como recurso de escrita, das três metamorfo- não como aquisição de conhecimento. Apren-
ses anunciadas pelo Zaratustra de Nietzsche, der não como resolução de problemas, mas,
que identiica três modos pelos quais pode- antes, como problematização, como invenção
mos olhar a formação do(a) professor(a): “o mo- de problemas. “A invenção não é um aconteci-
do-camelo, o modo-leão e o modo-criança”. O mento espontâneo ou instantâneo, ela precisa
primeiro aponta uma formação conteudista: os ser cultivada: a invenção implica uma duração,
conteúdos, as metas, os objetivos e as avalia- um trabalho com restos, uma preparação que
ções são colocados como verdades que preci- ocorre no avesso do plano das formas” (Kas-
sam ser carregadas e transmitidas. O segundo trup, 1999 apud Clareto, 2011, p. 58).
movimento é marcado pela crítica: os conteú- Desse modo, para Clareto (2011), apren-
dos, as metas, os objetivos e as avaliações são der não signiica sair de um estado no qual não
tratados como verdades que precisam ser colo-

143
Viviane Drumond

se sabe algo, para um estado no qual se passa ao optar pelo humanismo, não criticaríamos
a saber esse algo. Não é o “estado de se saber a ideologia. Por outro lado, aprofundar a ideia
algo”, mas o processo, a passagem, o momen- da educação como conscientização é reavaliar
to. Assim, “aprender vem a ser tão-somente o a questão da conscientização. Uma pedagogia
intermediário entre não-saber e saber, a pas- crítica deveria interrogar esse risco cotidiano:
sagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que de onde vem e por que vem a sedução de tor-
aprender, ainal de contas, é uma tarefa ininita nar-se guru? De onde vem e por que vem em
[...]” (Deleuze, 2006 apud Clareto, 2011, p. 53). nós e nos(as) alunos(as) o desejo de que haja
Também Chaui (1980) problematiza a um mestre, o apelo à igura da autoridade?
formação de professores(as) quando pergun- Buscando responder a esses questio-
ta: o que é formar? O que é ser o(a) profes- namentos, as ideias de Florestan Fernandes
sor(a)? Para a autora, o(a) professor(a) trabalha (1987) nos diz em que a universidade deveria
para suprimir a igura do(a) aluno(a) enquan- tender para a pesquisa, e não para o ensino,
to aluno(a), isto é, o trabalho pedagógico se para não ser uma mera reprodutora de saber,
efetua para fazer com que a igura do(a) estu- sem criatividade e originalidade, para ser ca-
dante desapareça. Para isso, o(a) professor(a) paz de promover a mudança social. Para esse
precisa fazer um esforço cotidiano para que pensador, o(a) professor(a) não pode estar
seu lugar permaneça vazio, pois seu trabalho alheio(a) às mudanças. A mudança, em qual-
é tornar possível o preenchimento desse lugar quer sociedade, é um processo político. E o(a)
por todos aqueles que estão excluídos dele e professor(a) deveria realizá-la nos dois níveis
que aspiram por ele e pelo qual não poderiam – dentro da escola e fora dela, ou seja, tem
aspirar se já estive preenchido por um senhor que fundir seu papel de professor(a) ao seu
e mestre (Chaui, 1980). papel de cidadão(ã).
Para aprofundar essa discussão, a pes- Fernandes (1987) retoma uma antiga re-
quisadora citada estabelece uma oposição lexão de Marx: quem educa o(a) educador(a)?
entre educação como formação e como cons- O(A) professor(a) educa os outros, mas ele(a)
cientização. Na visão humanística que enxer- também é educado(a), ou seja, no processo de
ga o(a) aluno(a) como im, a educação passa educar, se educa, se reeduca. O(A) educador(a)
a ser um instrumento de conhecimento e de está se reeducando, em grande parte, por sua
transformação do real, mas, segundo a auto- ação militante. Nessa situação, o(a) professor(a)
ra, essa não seria uma alternativa viável, pois, se vê obrigado(a) a redeinir sua relação com a

144
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

escola, com o conteúdo da educação, sua rela- geralmente são ministradas teorias prescriti-
ção com o(a) estudante, com os pais e as mães vas, deixando para o inal do curso, no estágio,
dos(as) estudantes e com a comunidade. o momento de colocar em prática os conheci-
Nessa perspectiva, o estágio assume es- mentos. Este estudo sobre o estágio busca en-
paço central na formação de professores(as), frentar as questões dos saberes da prática na
pois permite o contato direto com o contexto formação dos(as) estudantes, ao reconhecer
de educação de crianças pequenas em creches o estágio como campo de produção de saber,
e pré-escolas, o que favorece a pesquisa, a pro- na medida em que articula os conhecimentos
dução de conhecimentos pedagógicos e a ino- teóricos e práticos.
vações no trabalho docente. Freitas (1996) destaca o estágio como
o lócus privilegiado na formação de professo-
O estágio na formação de professo-
res(as). Traz importantes relexões para discutir
res(as) de Educação Infantil
os estágios no curso de Pedagogia; e toma o
trabalho docente como base para a formação
A pesquisa de Silva (2005) sobre os cur-
do pedagogo, enfrentando a suposta dicoto-
sos de Pedagogia e sobre a formação de profes-
mia entre teoria e prática. A autora pontua que
sores(as) para a Educação Infantil sinaliza para
o curso de Pedagogia, em geral, é marcado por
a importância dos estágios como um espaço a
uma estrutura propedêutica, com um acúmulo
mais na construção da Pedagogia da Educação
de disciplinas teóricas que não contemplam o
Infantil. A inclusão dos estágios na Educação
contato do(a) estudante com a realidade das
Infantil possibilita a discussão e a elaboração
escolas públicas. E acabam recaindo sobre os
de um conjunto de conhecimentos, a respei-
estágios, geralmente, no inal do curso, pro-
to das crianças pequenas e da docência nessa
blemas que deveriam ter sido enfrentados du-
etapa educacional, a partir do contato com o
rante todo o curso, principalmente no que diz
cotidiano das creches e das pré-escolas e com
respeito à articulação entre teoria e prática.
práticas educativas de professores(as) que
Segundo a autora, as próprias condições
atuam nessas instituições.
da produção do trabalho do(a) professor(a), his-
Os estudos sobre o estágio (Infantino,
toricamente, contribuíram para a valorização da
2013; Freitas, 1996) apontam para a fragmenta-
teoria, em detrimento da prática, reproduzindo
ção dos conhecimentos teóricos e práticos nos
a divisão entre o trabalho intelectual e o traba-
cursos de formação de professores(as), onde

145
Viviane Drumond

lho manual, característica da sociedade capita- universidade pública e o sistema educacional,


lista. Essa mesma lógica se manifesta na estru- o curso de Pedagogia da Universidade Federal
tura curricular do curso de Pedagogia, mas, no de São Paulo (UNIFESP) implementou uma mo-
caso dos estágios, as posições são contraditó- dalidade de estágio curricular denominada de
rias, pois, tanto as disciplinas consideradas “teó- residência pedagógica (Finco et al., 2012).
ricas”, quanto as atividades práticas, são vistas Essa proposta envolveu professores(as)
como “tábuas de salvação na formação teórico- do curso de Pedagogia, estudantes e os(as)
-prática dos alunos, futuros professores”. Desse professores(as), coordenadores(as) e gesto-
modo, Freitas (1996, p.33) enfatiza a unidade en- res(as) das escolas públicas em um conjunto
tre a teoria e a prática, “entendendo que a teoria de atividades coletivas, com o objetivo de re-
contém elementos da prática e que a prática su- letir sobre a prática pedagógica. Nessa moda-
põe necessariamente elementos teóricos”. lidade de estágio, o(a) estudante em formação
Nessa direção, a proposta de estágio acadêmica vivencia, por um tempo prolonga-
discutida por Infantino (2013) busca promo- do e contínuo, caracterizado como imersão, o
ver uma experiência formadora na prática processo de contato sistemático e temporário
pedagógica em unidades educativas volta- com práticas proissionais reais. Nesse sentido,
das às crianças pequenas. “O estágio é com- as Diretrizes curriculares nacionais para a forma-
preendido como um contexto formador teó- ção de professores da Educação Básica (Brasil,
rico-prático, quebrando a implícita suposição 2002, p. 23) airmam que:
de que um momento teórico deve prevalecer
sobre o prático” (Infantino, 2013, p. 10). Assim, uma concepção de prática mais como com-
ponente curricular implica vê-la como uma
procura ativamente interlocução e colabora- dimensão do conhecimento que tanto está
ção formativa com as creches públicas e com presente nos cursos de formação, nos mo-
mentos em que se trabalha na relexão so-
os(as) professores(as) de creche diretamente
bre a atividade proissional, como durante o
envolvidos(as) no estágio, na qualidade de tu- estágio, nos momentos em que se exercita a
tores(as). atividade proissional. [...] A ideia a ser supe-
rada, enim, é a de que o estágio é o espaço
Buscando enfrentar questões centrais reservado à prática, enquanto, na sala de aula
pontuadas pelos estudos sobre o estágio, se dá conta da teoria.
como: a fragmentação dos saberes (teóricos x
práticos), a aprendizagem prática dos(as) estu- É no contato com o contexto da Educa-
dantes e o fortalecimento de vínculos entre a ção Infantil, com as crianças e os(as) professo-

146
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

res(as), no dia a dia das creches e das pré-es- o tema das crianças e da relação entre os(as)
colas, que os(as) estudantes têm sua atenção professores(as) e as crianças, as estagiárias de
despertada para questões que passariam des- Educação Infantil envolvidas na pesquisa es-
percebidas, caso fossem abordadas apenas do creveram:
ponto de vista da teoria, com a leitura de tex-
tos, por exemplo. A respeito dos conhecimen- Percebi que as crianças são ativas, só que elas
não são respeitadas dentro do espaço delas.
tos construídos nos estágios, uma estagiária Tudo é decidido pela professora (E. 6).
fez o seguinte comentário: “Pra mim contribuiu
enormemente, por que tirei muitas provas, con- O que observei é que tem hora que as crian-
ças querem brincar e elas não podem brincar,
segui ver muitas relações entre o que vi na práti- pois, se pegar um brinquedo, são forçadas a
ca com as leituras” (E1. 6). deixar (E. 17).
Então, a partir das falas das estagiárias, é
A minha visão sobre a Educação Infantil mu-
possível inferir que é pelas experiências e vivên- dou a partir desse contato com as crianças.
cias nos espaços da Educação Infantil, e, parale- Antes pensava que as crianças tinham que
sair alfabetizadas, com os estudos aprendi
lamente a esses momentos, pelo contato com
que é uma fase de descobertas, brincadeiras e
leituras e discussões na universidade que os(as) um aprendizado diferenciado (E. 12).
estudantes elaboram seus conhecimentos.
Ao abordar a experiência italiana de for-
A observação permitiu conhecer as mação de professores(as) de Educação Infantil,
crianças Mantovani e Perani (1999, p. 90) observam que,
nos primeiros anos, pela escassez de materiais
Mantovani e Perani (1999) consideram que retratassem experiências de docência em
que, desde os primeiros cursos, as discussões creches e pré-escolas, muitos conhecimentos
sobre a criança e os estágios se mostraram es- precisaram ser construídos na prática. Assim,
senciais para a formação de docentes. O es- desde os primeiros cursos, começou a aparecer
tágio é o momento em que o(a) estagiário(a) com frequência o problema “da observação,
observa a criança, é sua primeira ocasião de como base acessível a todos e como motiva-
contato com os(as) adultos(as) que trabalham ção a aquisição de informações teóricas mais
na instituição e também com as famílias e a complexas”.
comunidade em geral. Especialmente sobre De acordo com estas autoras, no processo
de construção de uma proposta que contribuísse
1 A letra E corresponde a palavra Estagiária.

147
Viviane Drumond

para preparar satisfatoriamente os(as) professo- as crianças pequenas, pois se mostra um ins-
res(as) para atuar nas creches, a observação como trumento útil para conhecer mais sobre elas.
metodologia se tornou o centro do debate sobre A observação é a base para fundamentar as
a pesquisa e sobre a intervenção na primeira in- direções do trabalho educativo com as crian-
fância. Observar foi natural e intuitivo para quem ças e, de qualquer forma, é uma competência
teve que atuar na creche, sem experiência e sem necessária para quem trabalha com as crianças
material à disposição. “Observar em situação na- pequenas. O(A) professor(a) deve saber captar
tural, considerando o contexto ambiental e de todos os sinais comunicativos que a criança
relação, é hoje a principal proposta metodológi- manifesta. A observação determina o tipo de
ca da pesquisa sobre os pequenos” (Mantovani; intervenção a ser realizada e, nesse sentido, re-
Perani, 1999, p. 94). E acrescentam: presenta uma atitude de respeito para com a
criança (Mantovani; Perani, 1999).
Nós acreditamos que, para o educador, apren- Também Infantino (2013), ao discutir os
der a observar a criança, identiicar suas mo-
dalidades comunicativas mais elementares, estágios como momento de interação entre o
instaurar um relacionamento comunicativo saber acadêmico e o saber produzido na práti-
especíico com ela, sejaas bases da preparação
ca, nas instituições de Educação Infantil, abor-
pedagógica. Uma vez que o adulto entende
isto e continua aprendê-lo pela observação, da a observação como metodologia de traba-
quase sempre ele descobrirá qual é o jogo ou o lho. Segundo a autora, a observação durante o
material mais adequado para uma determina-
da criança ou para um determinado grupo em
estágio não inda na elaboração de protocolos
um determinado momento, o que dar à crian- de observação para um simples exercício téc-
ça, o que dizer a ela, como organizar ou intervir. nico, mas é proposta como método:
Quando o adulto aprende a ver a criança, sa-
bendo que ela é um ser ativo, conseguirá mais
facilmente notar como ela se relaciona com o A observação como método implica uma
espaço, com os objetos, com os outros, vai se atitude educativa fundamental, baseada na
dar conta de como acontece a interação com o capacidade de pensar e reletir, enquanto os
grupo (Mantovani; Perani, 1999, p. 93). estagiários se envolvem como atores na ação
em curso; sustenta uma atitude de lúcida
presença proissional descentralizada, para
Mas, mesmo nos dias atuais, em que as propiciar comportamentos e intervenções
educativas que, fundamentados na escuta e
pesquisas avançaram e oferecem informações
na compreensão profunda daquilo que está
e referências sobre as crianças em espaços co- acontecendo no contexto e com as outras
letivos, a observação continua a ser uma exi- pessoas, possam ser realmente um benefício
para as crianças (Infantino, 2013, p. 22).
gência para aqueles(as) que trabalham com

148
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

Observar é uma habilidade fundamen- tins – UFT/campus de Miracema com o objetivo


tal na formação dos(as) professores(as), porque, de analisar o trabalho pedagógico desenvolvi-
observando, aprende-se cada vez mais sobre as do com a disciplina: “Estágio da Educação Infan-
crianças e cria-se motivação para realizar pesqui- til (Creche e Pré-Escola)”. Com esse propósito, foi
sas bibliográicas e leituras para interpretar em documentado o trabalho realizado com o está-
nível teórico as ações e as práticas educativas. A gio em creches e pré-escolas por um semestre,
observação ajuda a identiicar os temas de maior com uma turma de vinte e uma estudantes-es-
diiculdade no trabalho dos(as) docentes da Edu- tagiárias. Os estágios foram realizados em cre-
cação Infantil, que serão a base para fundamen- ches e pré-escolas públicas municipais de Mi-
tar hipóteses de trabalho e de pesquisa. Pela ob- racema do Tocantins e de mais dois municípios
servação, o(a) professor(a) pode reletir sobre sua vizinhos: Tocantínia e Miranorte.
prática com as crianças, pois “[...] observar leva a O estágio contou com as seguintes cate-
conhecer o próprio comportamento e, portan- gorias de observação: relação adulto-adulto (de
2

to, a ter um progressivo autocontrole e também dentro e de fora da instituição): relações entre
uma atitude sem inferências excessivas em rela- os(as) professores(as) e as famílias, comunida-
ção a criança” (Mantovani; Perani, 1999, p. 94). de; relação adulto-adulto (de dentro da institui-
Assim, na formação inicial do(a) profes- ção): relações entre proissionais docentes que
sor(a) de Educação Infantil, deve ser previsto o atuam nas creches e pré-escolas, considerando
estágio por um período de tempo prolongado, a formação e as relações de poder; relação adul-
pela importância do contato com a prática edu- to-criança (políticas): relação entre os adultos e
cativa, pela necessidade de aprender a observar as crianças, nas políticas públicas, na legislação,
atentamente as crianças nas instituições. Além nos documentos oiciais; relação adulto-crian-
disso, a observação se mostra um método útil ça (pedagogias): relação entre os(as) professo-
para pesquisa e relexão sobre o trabalho reali- res(as) e as crianças, a partir das pedagogias e
zado nas creches e nas pré-escolas. das pesquisas; relação criança-criança: relações
entre as crianças. Além destas cinco categorias
A Pesquisa com o Estágio de Educação principais, outras três, que perpassam as de-
Infantil
2 Estas categorias foram trabalhadas, inicialmente, pela Pro-
fessora Drª Ana Lúcia Goulart de Faria, nos estágios de Educação
A pesquisa foi realizada com o curso de Infantil, no Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da
Unicamp. E, também, são discutidas no livro Culturas infantis em
Pedagogia da Universidade Federal do Tocan- creches e pré-escolas: estágio e pesquisa, com a organização do
Gepedisc – Culturas Infantis (2011).

149
Viviane Drumond

mais, foram consideradas na análise dos dados: das pré-escolas? As proissionais docentes da
o espaço físico, as brincadeiras infantis e as rela- Educação Infantil mantêm relações de colabo-
ções de gênero e étnico-raciais. ração ou de hierarquias entre elas? As práticas
Além dos registros descritivos sobre a pedagógicas têm como eixo norteador as brin-
unidade de Educação Infantil onde o estágio foi cadeiras e as ludicidades ou buscam antecipar
realizado, constam nos cadernos de estágio ela- a escolarização? Como os(as) professores(as)
borados pelas estagiárias: uma legenda com as cuidam das crianças e as educam no dia a dia?
categorias de análise do estágio; a planta baixa A organização dos tempos e dos espaços nas
da unidade de Educação Infantil; fotograias do instituições permite que as crianças produzam
espaço físico, impressas ou gravadas em um CD. as culturas infantis? Como os(as) adultos(as) e
Assim, o estágio na Educação Infantil as crianças convivem com as diferenças e di-
analisa o cotidiano das creches e das pré-es- versidades nas unidades de Educação Infantil?
colas a partir das diversas relações que se es- O tema das políticas públicas de Educa-
tabelecem nesses espaços, que contam com a ção Infantil é discutido no estágio, quando se
presença de crianças e adultos, e não de uma observa a relação adulto-criança, a partir da le-
única relação: professor(a)-criança. Portanto, gislação, dos documentos oiciais e das políti-
observa e analisa as seguintes relações: pro- cas públicas construídas para a primeira etapa
fessores(as)-famílias, professor(a)-professor(a), da Educação Básica e a forma como os direitos
professor(a)-criança e criança-criança. das crianças são ou não garantidos nas políti-
Desse modo, as discussões promovidas cas municipais e no dia a dia das creches e das
nos estágios revelam a compreensão das esta- pré-escolas.
giárias sobre as políticas de Educação Infantil A LDB (Brasil, 1996) deiniu que todos(as)
dos municípios envolvidos nos estágios, bem os(as) professores da Educação Básica devem
como as propostas pedagógicas que vêm sen- ter formação, preferencialmente, em nível su-
do construídas no cotidiano das creches e das perior, sendo admitida a formação em nível
pré-escolas. Alguns questionamentos foram médio, na modalidade Normal, para a Educa-
levantados, a partir dos conhecimentos sobre
ção Infantil e para os anos iniciais do Ensino
a Educação Infantil abordados nos estágios:
Fundamental. Assim, as estagiárias procuraram
a relação entre os três atores da Educação In-
analisar até que ponto a formação das prois-
fantil – professores(as), crianças e pais/mães
sionais que atuam com as crianças atende às
– está ocorrendo nos espaços das creches e
exigências da legislação. Vejamos este relato:

150
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

Onde eu estagiei, observei que a professora Quando as crianças terminaram de lanchar, a


não tem formação, ela é concursada como professora anunciou que, As duas professoras
Agente de Serviços Gerais (Asgs) e está den- estavam deitadas no colchão, junto com as
tro da sala de aula, atuando com as crianças. crianças. Enquanto uma professora dobrava
Observamos que a legislação não está sendo os lençóis e arrumava os colchões, a outra or-
cumprida. Na LDB está bem claro: só pode ganizava as mesas para servir o lanche. […] as
atuar na Educação Infantil quem tem pedago- duas professoras sentaram no chão e come-
gia ou médio magistério (E. 3). çaram a cantar músicas novamente. […] uma
professora dava banho e a outra enxugava e
vestia roupas limpas nas crianças (C.8).
As pesquisas sobre a educação das
crianças pequenas em espaços coletivos cha- As estagiárias também registraram si-
mam a atenção para a formação de docentes
tuações em que prevalece a hierarquia entre
que cuidam das crianças e as educam. A via-
a dupla de professoras, como nas pré-escolas
bilização das instituições de Educação Infantil
onde foram identiicadas duas categorias de
que respeitem os direitos da criança implica
professora: a regente e a auxiliar, como mos-
na qualiicação educacional e proissional
tram os relatos:
dos(as) trabalhadores(as) dessas instituições.
As estagiárias registram situações em A professora regente fala pra auxiliar tomar
conta das crianças que ela ia rodar mais “ta-
que a relação entre as professoras da mesma reinhas” (C. 4).
turma é de colaboração: realizam conjunta-
mente as tarefas em alguns momentos e, em Na pré-escola em que eu estagiei tinha duas
professoras na sala, elas têm uma relação boa,
outros, dividem as atividades entre elas, mas a professora regente e a professora auxiliar.
o clima é de cooperação, como nestes exem- Não observei hierarquia entre elas. Trabalham
em conjunto. Quando eu cheguei lá, falei com
plos:
a professora: “Ah, aqui são duas professoras?”.
Ela me disse: “É, eu sou a regente e a outra é a
Enquanto as crianças dormem, as professoras professora assistente”. Mas não observei hie-
aproveitam para fazer o relatório do período rarquia entre elas, são duas professoras, pro-
em que estiveram com eles, relatam os acon- fessora X e professora Y (E. 2).
tecimentos ocorridos no seu turno. Colocam
os objetos nos lugares e organizam a sala para
entregarem para as professoras do período da Na verdade, a hierarquia entre as prois-
tarde, que chegam às 12 horas (C3. 1). sionais está posta pela própria questão salarial,
pelo fato de uma ser a professora regente e a
3 A letra C corresponde a Caderno de Campo. outra, a auxiliar. Mas o que a estagiária quis dizer

151
Viviane Drumond

é que observou entre elas uma relação de tra- meninos, vai trocar fraldas. E, quando ela che-
ga lá na creche, que falam pra ela: “Você vai
balho de cooperação e parceria, pois são duas dar aula aqui”, ela se depara com um monte
proissionais que fazem o mesmo trabalho, ape- de criancinhas que ela vai ter que dar banho,
nas dividem as tarefas entre elas. O signiicado vai ter que tirar fralda de cocô, e às vezes ela
fala: “Mas eu não estudei pra isso, né?” (E. 4).
de relações de poder e hierarquia entre as pro-
issionais da Educação Infantil foi um dos assun-
O trabalho com os estágios buscou
tos debatidos nos encontros com as estagiárias,
observar as crianças, as relações que se esta-
que inicialmente não percebiam as disputas e as
belecem entre elas como grupo. O registro das
hierarquias nas relações docentes, pois, aparen-
observações evidencia o protagonismo infantil
temente, a convivência entre elas mostrava-se
no dia a dia das creches e das pré-escolas. As
“harmoniosa”. Mas, aos poucos, foi sendo cons-
estudantes observaram que as crianças fazem
truindo um entendimento com as estudantes,
coisas inusitadas, surpreendendo a professora,
de modo que percebessem as disputas, os con-
mas, em outros momentos, se comportam exa-
litos e as divergências que permeiam as rela-
tamente como os adultos querem, reprodu-
ções de trabalho no espaço educativo.
zindo comportamentos. As crianças inventam
A relação entre o educar e o cuidar, como
muitas maneiras para se expressar, para esta-
processos indissociáveis (Sayão, 2010), foi pro-
belecer laços e comunicação com as outras:
blematizada nos estágios. As estagiárias dis-
uma criança belisca a outra, uma abraça outra
cutiram a importância da formação inicial das
repentinamente, crianças maiores cuidam das
docentes, questionando até que ponto os(as)
menores, meninos e meninas constroem re-
professores(as) estão sendo preparados(as) para
lações de amizade. Há criança solidária e cari-
atuar com as crianças pequenas nas creches e
nhosa, crianças que gostam de brincar juntas,
nas pré-escolas, considerando a especiicidade
criança que quer icar sozinha, sem fazer nada.
dessas instituições. Os relatos a seguir abordam
o educar e o cuidar na Educação Infantil e reve- A cultura que as crianças já estão produzindo,
lam que, para muitos(as) estudantes do curso já considerada por Florestan Fernandes, a cul-
de Pedagogia, ainda não está claro qual é a fun- tura infantil, aquela que se expressa por pen-
samentos e sentimentos que chegam até nós,
ção do(a)docente de crianças pequenas: não só verbalmente, mas por meio de ima-
gens e impressões que emergem do conjunto
A professora da creche que fez o magistério, a da dinâmica social, reconhecida nos espaços
pedagogia, em momento nenhum a gente es- das brincadeiras e permeada pela cultura
tudou dizendo que a professora vai banhar os adulta, não se constitui somente em obras

152
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

materiais, mas na capacidade de as crianças descritivo dos espaços, planta baixa da unida-
transformarem a natureza e, no interior das
de (desenhada pela estagiária ou cópia) e fo-
relações sociais, de estabelecer múltiplas re-
lações com seus pares, com crianças de outras tograias. Também nos seminários em que dis-
idades e com adultos, criando e inventando cutimos os estágios, a organização do tempo
novas brincadeiras e novos signiicados (Pra-
do, 2005, p. 101). e do espaço das creches e das pré-escolas foi
apresentada em fotograias ou vídeos, produ-
As crianças são ativas, constroem rela- zidos pelas estagiárias. Elas foram orientadas
ções muito peculiares de coniança, de respei- a observarem a estrutura física das unidades
to e de amizade, durante as brincadeiras. Estar e cada um dos espaços internos e externos: as
juntas e fazer as coisas em pares ou grupos, salas, os banheiros, o refeitório, os corredores,
confrontar-se, compor brincadeiras coletivas, o pátio, o parque, a brinquedoteca, a cozinha,
cuidar dos amigos e das amigas menores e a lavanderia, a sala de professores(as), a sala
zelar por eles, reproduzir e também inventar a da direção, etc., pois a organização do espaço
partir da observação dos maiores ou dos me- relete a intencionalidade pedagógica dos(as)
nores, associar o prazer da brincadeira às par- professore(as), como observa Faria (1999, p. 69-70):
cerias e amizades são comportamentos relata- Uma pedagogia da educação infantil que ga-
dos com constância nos cadernos de campo: ranta o direito à infância e o direito a melho-
res condições de vida para todas as crianças
Encontrei as crianças sentadas conversando (pobres e ricas, brancas, negras e indígenas,
entre elas, enquanto mais crianças iam che- meninos e meninas, estrangeiras e brasileiras,
gando (C.1). portadoras de necessidades especiais etc.)
deve, necessariamente, mediante nossa di-
Dois irmãos icavam o tempo todo juntos, não versidade cultural e, portanto, a organização
se separavam por nada. E uma monitora falou do espaço, contemplar a gama de interesses
que não conseguia separá-los por nada (C.3). da sociedade, das famílias e prioritariamente
das crianças, atendendo às especiicidades de
Uma menina e um menino que aparentam ter cada demanda a im de possibilitar identida-
uma relação carinhosa sentaram próximos e de cultural e sentimento de pertencimento.
icaram conversando (C. 20). [...] Cada grupo de proissionais de uma de-
terminada instituição organizará o espaço de
acordo com seus objetivos pedagógicos, de
Outra categoria abordada nos estágios modo a superar os modelos rígidos de escola,
é o espaço físico das unidades de Educação de casa e de hospital.
Infantil, que foi observado e registrado, nos
cadernos de campo, de várias formas: registro

153
Viviane Drumond

Assim, o espaço é discutido nos estágios, Assim, observar e analisar o cotidiano da


e as estagiárias são convidadas a observar o es- Educação Infantil envolve discutir diferentes
paço físico da creche ou da pré-escola onde formas de relações de poder: gênero, classe,
realizam o estágio. E, como complemento des- idade, raça. Nas relações sociais cotidianas, “as
sa observação, deve constar no caderno de crianças pequenas constroem suas identida-
campo uma planta baixa da unidade de Educa- des, aprendem desde pequenas os signiica-
ção Infantil, desenhada pela própria estagiária dos de serem meninas ou meninos, negras e
ou copiada dos arquivos da instituição. brancas [...]” (Finco; Oliveira, 2011, p. 62). Desse
Além do registro descritivo dos espaços modo, experimentam, no convívio social, o sig-
da Educação Infantil, constam nos cadernos de niicado da condição social de ser criança.
campo fotograias das creches e das pré-esco-
las. A partir da observação das imagens, é possí- O grande desaio está em dar visibilidade
a uma criança concreta, que difere de uma
vel fazer algumas inferências sobre a pedagogia criança homogeneizada. Está em conhecer
que se constrói nesses espaços. Na Educação as especiicidades das crianças e das infân-
Infantil todos os espaços são educativos, pois o cias das camadas populares, que podem ser
pobres, negras, meninos ou meninas, com
cuidar e o educar acontecem de forma indisso- marcas regionais e dialetais, e acabam sendo
ciável do cotidiano das crianças. Nesse sentido, excluídas da história. Buscamos dessa forma,
durante os estágios na Educação Infantil, as es- contribuir para o aprofundamento e o ques-
tionamento das concepções a respeito das
tagiárias são orientadas a observar todos os es- crianças pequenas brasileiras e da educação
paços e a registrar o movimento e a dinâmica infantil pública, numa perspectiva de gênero
das crianças e das professoras em todos eles. e de raça, para a construção de uma pedago-
gia da infância que respeite a construção das
No que diz respeito às discussões sobre
identidades das crianças pequenas e que não
as relações de gênero e étnico-raciais, o espaço transforme suas diferenças em desigualdade
da Educação Infantil foi discutido como lugar (Finco; Oliveira, 2011, p. 58).
de confronto e convívio com as diferenças e di-
versidades desde a pequena infância. Trazer o Os relatos das estagiárias, nos cadernos
debate das relações de gênero e étnico-raciais de campo/estágio, mostram que as relações
para as discussões sobre a formação de profes- de gênero e étnico-raciais são um dos critérios
sores(as) de Educação Infantil signiica propor usados pelos(as) professores(as) na organiza-
outra Pedagogia: “uma pedagogia da escuta, ção do tempo e do espaço na Educação Infan-
uma pedagogia das relações, uma pedagogia til. Os relatos a seguir são reveladores de como
da diferença [...]” (Faria, 2006, p. 286). o critério de gênero aparece na intencionalida-
de pedagógica dos(as) docentes.

154
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

onde se supõe que os(as) proissionais docentes


Observei que os meninos não brincam com as e não docentes estejam em constante relação
meninas, nas mesas há o grupo das meninas e
o grupo dos meninos (C. 20). com os familiares e a comunidade. São duas ins-
tituições responsáveis pela educação das crian-
A professora pede que façam a ila para lan- ças: a família e a creche/pré-escola. São institui-
char. Divide a ila em meninas e meninos. As
ções sociais distintas em seus objetivos, com
meninas vão ao lavatório e, em seguida, os
meninos (C.19). saberes e práticas educativas diferenciadas, mas
que realizam – ou pelo menos deveriam realizar
Teve um dia que estava muito calor, as moni- – papéis complementares, que contribuem para
toras tiraram as camisetas dos meninos e das
meninas não, elas também queriam tirar, mas a educação da mesma criança.
as monitoras não deixaram. Então, acho que Considerando a complexidade que en-
isso também é uma forma de preconceito. Os volve as relações no espaço da Educação In-
meninos podem icar sem camiseta e as meni-
nas não. E elas mesmas estavam reclamando fantil e a importância de que os três atores da
que estavam com calor e estavam todas sua- Educação Infantil: família, docente e criança
das (C. 5). estejam em constante comunicação e diálogo,
durante os estágios, as estagiárias foram orien-
Nos estágios, quanto às relações de gê- tadas a observar e analisar as relações entre as
nero, foram observadas diferentes posturas das famílias, os(as) docentes e as crianças na insti-
docentes. Há professoras bem abertas, promo- tuição de Educação Infantil, ou seja, a atentar
vendo uma relação de respeito às diferenças para a forma como ocorre a relação entre os(as)
com as crianças, mas, ao mesmo tempo, foram proissionais docentes e as famílias.
evidenciadas situações em que as professoras As estagiárias observam se os responsá-
repreendem o comportamento das crianças,
veis pelas crianças entram no espaço da creche
reproduzindo práticas sexistas. Nesse caso, os
ou da pré-escola ou esperam pelas crianças
padrões convencionais da sociedade são acei-
no portão. De acordo com um dos cadernos
tos e transmitidos às crianças, sem questiona-
de estágio (C. 9), “poucas são as crianças que
mentos por parte das docentes. O que eviden-
são levadas pelos acompanhantes até a sala. A
cia a ausência de uma formação que discuta as
diferenças das crianças e suas famílias e a im- maioria é deixada no portão” (C.9). Já outro ca-
portância do respeito às diversidades. derno (C. 13), informa que “as crianças chegam
As instituições de Educação Infantil são uma a uma acompanhadas pela mãe ou pai,
espaços educativos para as crianças, embora se- ou irmão, normalmente eles entram até a sala
jam também lugares de convivência de adultos, para falar com a professora” (C. 13).

155
Viviane Drumond

Assim, nos estágios, as estudantes são com as diferenças e diversidades de gênero e


envolvidas na organização e na apresentação étnico-raciais na Educação Infantil.
de seminários, com o objetivo de discutir e
problematizar as experiências vividas com os Considerações Finais
estágios nas creches e nas pré-escolas.Os se-
minários representam um momento de análise Uma proposta de educação emancipado-
e de relexão sobre as práticas observadas nos ra para a primeira infância exige a ação de pro-
estágios; signiicam a oportunidade de discutir issionais docentes compromissados com uma
e problematizar os conhecimentos discutidos pedagogia não escolar, centrada na criança e na
na universidade, a partir das leituras e do estu- experiência infantil, que proporcione a constru-
do da bibliograia que consta no programa da ção de todas as dimensões humanas, geralmen-
disciplina e dos saberes construídos no contato te negadas na escola: o imaginário, o lúdico, o
com as crianças e com os(as) professores(as) nas artístico. As crianças não separam saber e expe-
unidades de Educação Infantil. Nesse processo, riências; assim, espera-se que elas possam brin-
os registros dos cadernos de campo foram revi- car, descobrir, inventar, criar e produzir culturas.
sitados como fonte de informação e pesquisa. O estágio de Educação Infantil, conforme
A discussão do cotidiano das creches e proposto e analisado, elegeu a observação como
das pré-escolas, a partir das categorias de aná- principal abordagem metodológica, e o caderno
lise dos estágios, permitiu olhar para as crian- de campo foi utilizado como ferramenta para o
ças pequenas em um contexto de relações, registro das observações do cotidiano das cre-
uma criança em relacionamento. Além disso, ches e das pré-escolas. Isso favoreceu a produção
permitiu: conhecer a organização do tempo de narrativas, com um estilo de escrita que per-
e do espaço das creches e das pré-escolas e o mitiu às estudantes-estagiárias maior liberdade
que revelam sobre a intencionalidade educa- de expressão: a subjetividade ganhou espaço e
tiva e pedagógica da instituição e dos(as) pro- a escrita passou a ter sentido e signiicado para
fessores; identiicar as relações de poder entre quem a produz, pois está diretamente relacio-
os(as) professores(as) da Educação Infantil e nada às experiências e às vivências dos sujeitos
discutir a formação docente; problematizar as envolvidos. Por essas razões, esse estilo de escrita
políticas públicas construídas para a Educação guarda proximidades com os gêneros discursivos
Infantil; observar as brincadeiras de meninos literários, em que o(a) autor(a) tem maior liber-
e meninas e a produção das culturas infantis; dade para expressar-se, e difere profundamente
analisar como adultos e crianças convivem dos textos mais padronizados, como os acadêmi-
cos, por exemplo (Fiad; Silva, 2009).

156
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL

Os cadernos de campo retratam as per- A pedagogia é uma ciência social aplicada;


cepções das estagiárias, um determinado modo portanto, uma ciência da prática, que busca suas
de ver uma realidade, uma descrição muito par- bases epistemológicas em outras ciências, como
ticular de um contexto de educação das crianças a sociologia, a psicologia, a ilosoia e outras. A
pequenas e das práticas produzidas nesses espa- ausência de um campo epistemológico próprio
ços; conhecimentos que só a estagiária que está na pedagogia não signiica carência de referên-
em formação, no estágio — e um estágio que ar- cias teóricas; ao contrário, a relação entre teoria
ticula teoria e prática — consegue perceber. En- e prática está implícita na pedagogia, como ciên-
tão, falo de um saber produzido pelas estagiárias, cia da prática (Freitas, 1994).
que observam e descrevem uma realidade com- Assim, a pedagogia da Educação Infantil
plexa como o cotidiano da Educação Infantil. busca articular o educar e o cuidar, a experiência
e o saber, a teoria e a prática, as ciências e a arte e
O estudo destaca as contribuições das ca-
problematiza as teorias que trabalham antagoni-
tegorias de observação e de análise do estágio
zando esses binômios. A partir de um referencial
de Educação Infantil, que contempla as relações
dialético, olha para as contradições e questiona
entre os adultos, entre os adultos e as crianças
saberes considerados antagônicos na educação
e entre as crianças, envolvendo professores(as),
da pequena infância.
familiares e crianças no contexto da Educação
A Educação Infantil busca estabelecer in-
Infantil. A partir das categorias deinidas, foi pos-
terlocuções entre a arte e as ciências da educa-
sível ampliar o campo de formação de docentes ção, na construção de pedagogias para a peque-
de crianças pequenas e discutir a criança, como na infância. As crianças são curiosas, inventivas,
sujeito do seu próprio conhecimento e de sua criativas, pesquisadoras; observam; testam suas
própria história – uma criança ativa, que estabe- hipóteses; misturam produções artísticas e cien-
lece múltiplas relações com os adultos e com as tíicas; mostram à pedagogia que a arte e as ciên-
outras crianças nos espaços educativos. cias não são modos antagônicos de pensar. As ar-
A observação e a análise dos cadernos de tes podem ensinar a pedagogia a valorizar o que
campo das estagiárias possibilitaram discutir e as crianças sabem e suas formas de pensamento;
problematizar o cotidiano das crianças e das pro- a lidar com o inesperado e o imprevisto que as
fessoras, nos espaços das creches e das pré-esco- crianças insistem em mostrar.
las, campo de estágio; ou seja, permitiram com-
partilhar os conhecimentos que dizem respeito à
docência com as crianças pequenas.

157
Viviane Drumond

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159
8
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR
DA POSSIBILIDADE

Viviane Ache Cancian


Juliana Goelzer

De que lugar falamos professores e todos os sujeitos envolvidos ar-


ticulem conhecimentos e tenham suas ações
A Unidade de Educação Infantil Ipê Ama- subsidiadas por processos de relexão sobre
relo (UEIIA) é uma Unidade da Universidade Fe- as práticas realizadas. Desse processo, decorre
deral de Santa Maria (UFSM-RS) que vem cons- uma compreensão teórico-prática da natureza
truindo, ao longo dos últimos 27 anos, uma do trabalho docente, que permite que todos os
história de lutas e práticas que fazem a defesa envolvidos pensem, racionalizem, organizem e
de uma educação infantil pública e de quali- conduzam suas intervenções na realidade, arti-
dade para todas as crianças brasileiras. Cons- culando a formação acadêmica como um todo.
tituiu-se, ao longo desses anos, em campo de Essa história que nos constituiu nos per-
investigação e práticas dentro da universidade, mite hoje como espaço formativo dentro da
possibilitando a formação proissional e acadê- UFSM, e como unidade que se vincula pedago-
mica dos estudantes de graduação e pós-gra- gicamente ao Centro de Educação (CE/UFSM),
duação, de diferentes cursos e centros de ensi- buscar uma interlocução de saberes com os
no, eis que é um espaço de ensino, pesquisa e municípios da região central do RS, a im de
extensão da UFSM. que juntos possamos reletir acerca dos sabe-
O fato de a unidade conviver, na sua es- res e fazeres da docência, assumindo uma pos-
trutura institucional, com a formação inicial e tura investigativo-relexiva mediante situações
continuada, é um diferencial numa unidade de problemáticas concretas.
educação infantil, o que faz dela um espaço de A UEIIA realiza essa interlocução junto ao
aprendizagem no qual acadêmicos, egressos, Projeto de assessoramento e acompanhamento

161
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

pedagógico às redes e sistemas de ensino na im- cada pólo, e atividades dentro das unidades que
plementação do PROINFÂNCIA em municípios estavam recebendo acompanhamento in loco.
da região centro, noroeste e norte do Estado do Tais atividades consistiam em: realização
Rio Grande do Sul - NDI/UFSM, junto ao Curso de de visitas técnicas a oito unidades, que visa-
Especialização em Docência na Educação Infan- vam o acompanhamento da organização da
til/NDI/UFSM, e ao Curso de Aperfeiçoamento estrutura e do funcionamento das instituições;
em Docência na Educação Infantil/UEIIA, que momentos de devolutivas dessas visitas, nos
se tratam de projetos inanciados pelo governo
quais a equipe dialogava com a direção, coor-
federal, que integram a Política de Formação de
denação e com o grupo de professores das
Professores MEC/SEB/COEDI/UFSM.
escolas visitadas com o objetivo de promover
A UEIIA e o Proinfância relexões acerca de aspectos observados na
Unidade que comprometiam a efetivação de
Ao longo dos dois anos de vigência do uma educação de qualidade para as crianças
Projeto de assessoramento e acompanhamen- pequenas; formações em contexto3, as quais
to pedagógico às redes e sistemas de ensino na aconteciam com as equipes das instituições
implementação do PROINFÂNCIA em municí- visitadas, dentro da unidade, durante as quais
pios da região centro, noroeste e norte do Esta- se discutiam os aspectos pontuados nos mo-
do do Rio Grande do Sul, diferentes atividades mentos de devolutivas; ações de formação
foram desenvolvidas pela equipe (coordenado- continuada com professores e gestores (Ci-
res, supervisores, professores pesquisadores e clos Formativos) dos municípios de cada polo,
assistentes de pesquisa) nessas três regiões do no município polo, nos municípios referências;
Estado. Em cada uma dessas regiões, as ações
e ações de formação continuada com os pro-
do projeto envolveram, em alguns momentos,
fessores e gestores de todos os municípios
atividades com todos os municípios no municí-
envolvidos no projeto, em um dos pólos.
pio pólo da região1 - ou em apenas um dos pó-
los, para todos os municípios envolvidos no pro- Ao longo de todo esse processo a Unida-
jeto - atividades nos municípios referência2 de de de Educação Infantil Ipê Amarelo foi tornan-

1 Em cada região havia um município pólo que centralizava 3 Formação em contexto (Oliveira-Formosinho, 1998; Olivei-
as principais ações do projeto; o município pólo da região cen- ra-Formosinho & Formosinho, 2001; Oliveira-Formosinho & Kishi-
tral era Santa Maria; da região norte era Passo Fundo, e da região moto, 2002) uma forma emergente de formação de professores
noroeste era o município de Ijuí. que se situa numa visão do mundo democrática e participativa,
2 Cada pólo tinha 4 municípios referência para a realização na investigação praxiológica (Oliveira-Formosinho & Formosi-
dos ciclos formativos. nho, 2012).

162
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

do-se uma referência para os municípios envol- a equipe do projeto apresentou as práticas da
vidos nas ações formativas desenvolvidas e, ao UEIIA como um modelo a ser seguido, pois acre-
longo do processo relexivo que vinha desenca- ditamos que cada contexto é único e carrega
deando-se, ela despontava como um “lugar de consigo seus desaios e suas possibilidades.
possibilidade”, que desaiava esses proissionais As práticas pedagógicas da UEIIA foram,
à busca e realização de outras e novas possibili- no nosso entendimento, um desaio para os
dades de práticas para a qualiicação do traba- municípios, já que se trata de uma escola pú-
lho pedagógico desenvolvido nas unidades. blica que também enfrenta diiculdades em re-
A UEIIA enquanto uma referência para es- lação ao quadro de docentes e ao orçamento,
ses municípios foi constituindo-se ao longo de entre outros, mas que nem por isso deixa de
todos esses momentos formativos nas unidades enfrentá-los no coletivo a im de superá-los.
e nos municípios, momentos nos quais professo- Diante da resposta dos municípios em
res, gestores e demais proissionais que atuavam relação às nossas práticas, optamos em socia-
nas escolas (re)conheciam determinados aspec- lizar brevemente neste artigo algumas das prá-
tos que comprometiam a efetivação de uma ticas que vivenciamos em algumas unidades e
educação de qualidade que respeitasse o tem- que na UEIIA foram superadas com processos
po, o espaço e as especiicidades das crianças e formativos constantes, momentos de planeja-
sentiam a necessidade de superação das práti- mentos e registros e com a produção e sociali-
cas que não articulavam-se com esse objetivo. zação do conhecimento, e principalmente com
Era nesses momentos que a UEIIA apare- a escuta sensível às crianças.
cia como o “lugar da possibilidade”, pois à me-
dida que pontuávamos os aspectos compro- Escutar as crianças: o princípio de tudo
metedores da qualidade, apresentávamos – em
contraponto – práticas desenvolvidas hoje na Bom amigo Malaguzzi,
Menino eterno, pede-me, antes de eu retor-
nossa unidade e o processo de superação das nar ao Brasil, que escreva algumas palavras
antigas práticas. A partir disso, muitos profes- dedicadas às meninas e aos meninos italia-
nos. Não sei se saberia dizer algo de novo a
sores e gestores demonstraram interesse em
um tal pedido. O que poderia dizer ainda aos
conhecer a nossa unidade e passaram a orga- meninos e às meninas deste inal de século?
nizar visitas para conhecer o espaço e as ações Primeira coisa, aquilo que posso dizer em fun-
ção de minha longa experiência nesse mun-
pedagógicas nela desenvolvidas. Nesse senti- do, é que devemos fazê-lo sempre mais boni-
do, cabe salientar que em nenhum momento to. E baseando-me em minha experiência que

163
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

torno a dizer, não deixemos morrer a voz dos Direitos das Crianças (1989), no artigo 12, está
meninos e das meninas que estão crescendo. claro que “A criança tem o direito de expressar
Paulo Freire, abril, 1990 (Faria; Silva; [s.d.]).
sua opinião e de ser ouvida toda a vez que se
tomam decisões que lhe dizem respeito”, e esse
Esta carta foi escrita por Freire, no ano de precisa ser ponto de partida para a efetivação
1990, após um grande e importante Congres- de uma prática pedagógica que garanta os di-
so Internacional que ocorreu em Reggio Emi- reitos das infâncias e das crianças.
lia. Na ocasião, Loris Malaguzzi pediu a Paulo Garantir esse direito é desconstruir uma
Freire que lhe escrevesse uma carta dedicada compreensão de docência assentada numa
às meninas e aos meninos italianos (Faria; Silva, perspectiva de ensino, de “dar aula”, de a priori
[s.d.]). determinar, numa visão adultocêntrica, o que a
Quando Paulo Freire defende que é pre- criança deseja e necessita, propondo uma ati-
ciso “não deixar morrer a voz dos meninos e vidade única para todas as crianças e exigindo
das meninas que estão crescendo”, ele nos fala delas aceitação e imobilidade, desconsideran-
da importância de escutar a criança; escutar a do assim suas cem, cem e cem formas de se ex-
pressar (Edwards; Gandini; Forman, 1999).
criança é dar a ela a oportunidade de expres-
sar-se em suas diferentes formas e construir re- Poderia argumentar que é conveniente, e
lações com seus pares na perspectiva da cria- até muito escolar, decidir, planejar, toda uma
ção de uma cultura da infância. Para Malaguzzi, série de atividades importantes para mim e
adequar toda a atividade do grupo a elas. De-
escutar a criança é uma forma ética de estar e terminaria uma situação em que amiúde e du-
relacionar-se com ela (Edwards; Gandini; For- rante a maior parte do tempo comum, todos
man, 1999). E essa escuta, segundo Rinaldi e todas vêem todos e todas fazerem algo (isto
é, a mesma coisa) sob minha ordem; e em que
(2012, p.124), não é aquela que se dá apenas os indivíduos e seus corpos estão, por assim
com os ouvidos: “Escuta, portanto, como metá- dizer, protegidos da sua própria aglomeração
ao serem colocados em movimentos preci-
fora para a abertura e a sensibilidade de ouvir e
sos em momentos precisos (simpliicando,
ser ouvido – ouvir não somente com as orelhas, se todos e todas fazem a mesma coisa – me-
mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, lhor ainda se sentados – é mais difícil que se
choquem, briguem, disputem um brinquedo,
olfato, paladar, audição e também direção)”. errem...) (Russo, 208, p. 152-153).
Essa escuta, que é algo aceito e que se
massiica no discurso dos docentes, não se per-
Neste trecho, Russo (2008) nos desaia,
cebe em grande parte das práticas com meni-
a partir de sua prática na educação infantil, a
nos e meninas; no entanto, na Convenção dos

164
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

reletir sobre o quanto determinadas práticas cebidas e nem compreendidas pelos adultos.
diretivas podem nos acomodar e impedir uma Escutar os bebês, por isso mesmo, tal-
escuta atenta e sensível, e o quanto ela ainda vez seja uma das mais difíceis tarefas quando
é negada, seja por falta de compreensão ou nos propomos pensar uma pedagogia para as
por falta de vontade dos professores. Uma das crianças e para as infâncias. No entanto, nossas
questões que agravam a compreensão da im- vivências ao longo do projeto de assessora-
portância da escuta é o fato de que os proces- mento nos mostraram o quanto escutar todas
sos formativos vão numa outra direção, prin- as crianças, de todas as idades, ainda cons-
cipalmente quando a formação é magistério, titui-se um desaio à docência. Resultado de
e ao longo do projeto nós vivenciamos nas um processo formativo que se esquece de nos
visitas técnicas realizadas o relexo dessas for- contar e de nos sensibilizar para o fato de que
mações. Observamos uma preocupação exces- as crianças são vivas, ativas, curiosas, capazes
siva em propor algo, construído pelo professor e muito competentes, e não “alunos” à espera
para as crianças - como, por exemplo, jogos, de orientações sobre o que e como fazer. Re-
cartazes, folhas mimeografadas, fotocopiadas sultado de um trabalho diário calcado em uma
- e não em organizar espaços tempos e ma- rotina estabelecida e engessada, que nos per-
teriais para que elas tivessem a possibilidade mite apenas olhar para o relógio, e não para as
de construir, criar, inventar, sendo autores das crianças, para seus desejos e necessidades.
suas construções. Quando compreendemos que um traba-
Além disso, a escuta também não é algo lho pedagógico de qualidade na educação in-
fácil porque demanda conhecimento em várias fantil que respeite os direitos das crianças tem
áreas, como antropologia, psicologia, pedago- como base o processo de escuta da criança,
gia, sociologia, ilosoia... que nos remetem à compreendemos a necessidade de repensar to-
compreensão conceitual e epistemológica do das as ações do nosso cotidiano, a im de que es-
ser criança e das infâncias. Nesse sentido, sa- tas partam desse princípio. Para Rinaldi (2012),
lientamos que a escuta dos bebês é ainda algo a pedagogia da escuta compreende uma escuta
extremamente complexo, que exige sensibi- como tempo de ouvir, escuta como curiosidade,
lidade, abertura para observação e escuta do desejo, dúvida, interesse, emoção, escuta das
corpo que se expressa, deseja, aprende, silen- cem, mil linguagens, de um tempo cheio de si-
cia, que se comunica com os iguais das mais lêncios, de longas pausas, um tempo interior, de
variadas formas, expressões essas que não per- nós mesmos. Uma pedagogia que se abre para

165
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

as diferenças, que reconhece o valor do ponto so que o mundo conclama, que a vida dessas
crianças espera para que possam explorar o
de vista e da interpretação dos outros. Escutar
mundo assim como quem explora a diversida-
os outros e escutar o que os outros têm de nós. de das cores ao observar a beleza do arco-íris,
Uma pedagogia que não produz resposta, mas o colorido das lores e das borboletas em todos
os momentos do cotidiano. E isso não apenas
que formula questões, dúvidas, incertezas, e
porque as crianças “serão os adultos do futuro”,
que está permanentemente aberta a mudanças. mas porque as crianças são hoje, e são o que
temos de melhor: a sabedoria, a alegria, a es-
Uma interlocução com o vivido na UEIIA pontaneidade, a curiosidade, as perguntas, a
sinceridade, a amizade, o desaio. São elas que
a cada dia nos desaiam com suas formas de
Muito do vivido na educação infantil ser e estar no mundo, são elas que nos cobram
revela práticas sem conhecimento das impli- o compromisso que temos. E elas merecem, e
lhes é de direito, que esse compromisso seja
cações da responsabilidade da tarefa docente, assumido por todos nós.
haja vista que se trata da educação de crianças
pequenas, da formação de seres humanos, o Assumir esse compromisso exige de
que exige uma racionalidade ética. Muitas das
cada um, das unidades a construção de uma
crianças que em outros tempos viviam suas
proposta de educação infantil que ofereça ex-
infâncias numa socialização com suas famílias,
periências signiicativas e qualiicadas para as
atualmente se inserem numa socialização em
crianças, com clareza de seus objetivos, a partir
ambientes coletivos e com isso, às vezes, pas-
do que deinem as diretrizes nacionais. Desse
sam mais tempo com os docentes, nas unida-
modo, a construção/reconstrução de um pro-
des, do que em casa com suas famílias, o que
jeto político-pedagógico requer compreender
requer um projeto político-pedagógico e um
trabalho docente qualiicado. Nesse sentido, a qual im se dirige a educação infantil nas
Goelzer (2014, p. 185) lembra da nossa respon- unidades, qual ação político-pedagógica e
sabilidade e compromisso com as crianças: qual agir. Portanto, um projeto que se funda-
mente não somente na racionalidade técnica,
Pensar a educação das crianças pequenas é instrumental, mas acima de tudo numa racio-
uma tarefa que nos tem desaiado constante- nalidade ética. Que seja relexo da construção
mente. Isso porque educar crianças é, com cer-
teza, a tarefa mais importante que podemos coletiva de todos os envolvidos e expressão da
receber e, digo aos professores, que podemos prática. Um processo no qual os educadores
escolher. Nós, pedagogos, que escolhemos es-
tem consciência, clareza teórico-conceitual,
tar ali, precisamos nos colocar e assumir este
lugar com a responsabilidade e o compromis- um aprofundamento teórico consubstanciado
das práticas (Cancian, 2003).

166
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

lentamente em várias unidades substituindo


O que se expressa sob a forma de projeto os referenciais, muito embora ainda não hou-
político-pedagógico da escola [...], é a de o
professor se colocar realmente no lugar de al- vesse uma compreensão do conteúdo deste
guém que aprende sempre, que busca um en- documento por parte de todos os envolvidos,
tendimento teórico-prático de seu fazer. Caso
contrário, o projeto político-pedagógico não o que se reletia nas práticas e nos discursos
passará de um conjunto de excelentes inten- dos docentes.
ções que servem tão-somente para preencher Na UEIIA, parte-se do pressuposto de
uma formalidade da escola, e que em nada re-
letem o real entendimento do coletivo acer- que um projeto político-pedagógico necessita
ca de suas práticas e de suas aprendizagens retratar a história, a vida da escola, o dizer des-
(Cancian, 1997, p. 81).
ta vida, o que se faz no dia a dia. Processo que
também envolve escuta atenta e sensível as di-
Nesse sentido, ao assumirmos o desaio ferentes vozes dos envolvidos: pais, professo-
de aproximar os sujeitos envolvidos nas uni- res, crianças, funcionários, com relação ao que
dades do Proinfância com as políticas para a acreditam, ao que pensam, ao que esperam
educação infantil, em especial com as Diretri- e ao que propõem nesse processo de educa-
zes Curriculares Nacionais de Educação Infantil ção das crianças, num processo dialógico. Um
(DCNEI, 2009), buscamos num primeiro mo- projeto que tenha como base as normativas
mento o reconhecimento das propostas des- presentes nas políticas e diretrizes nacionais,
sas unidades, a im de compreender as impli- numa proximidade com o planejamento e com
cações dessas políticas nos desaios da prática. as práticas pedagógicas.
Ao conhecermos as propostas dessas
unidades, encontramos um distanciamento Escuta que possibilita planejar com e
entre o proposto e o vivido - isso quando ha- não para as crianças
via uma proposta da unidade e não somen-
te das redes e sistemas como um todo. Nas Organizar um planejamento na educa-
propostas, num primeiro momento, encon- ção infantil exige escutar as crianças para que
tramos como referencial os Referenciais Cur- ele seja uma construção conjunta, organizado a
riculares Nacionais para a Educação Infantil partir e com elas, e não simplesmente para elas.
(RCNEI, 1998) e, após os primeiros encontros Contudo, para muitos professores e em muitas
escolas, o planejamento ainda parece ser uma
formativos, nos quais houve uma primeira
tarefa fácil, que requer apenas um olhar rápido
aproximação com as DCNEI 2009, estas foram

167
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

para os meses do ano e suas datas comemo- to anual organizado pelo coletivo de professores
rativas, planejamento esse que propõe que as antes mesmo da chegada das crianças, cabe o
crianças passem semanas e meses, durante lon- questionamento: onde icam guardadas, ao lon-
gas horas ensaiando para apresentar aos adul- go de todo o ano, as perguntas, as demandas, os
tos músicas e histórias que são apenas reprodu- interesses das crianças? O que fazemos diante
zidas, muitas vezes sem sentido e signiicado. de suas necessidades? Onde escondemos suas
Isso revela as necessidades e desejos dos adul- especiicidades, a singularidade daquilo que
tos sobrepondo-se às das crianças, que deixam é próprio dos bebês e das crianças pequenas?
de ser a centralidade e os sujeitos do processo, Onde aparece no planejamento a possibilidade
sem qualquer questionamento político e social da criança ser criança e viver a sua infância de
do que perpassa essas datas comemorativas. forma criativa e autônoma? Que dimensão ocu-
Durante o assessoramento às escolas, pa o brincar e as interações crianças-crianças-a-
essa discussão em torno do planejamento dultos no planejamento?
se fez muito presente a todo momento. As Não encontramos respostas para essas
paredes das salas das crianças e da sala dos perguntas diante de planejamentos expostos
professores evidenciavam, já desde a nossa nas paredes que dirigem o trabalho durante
chegada, um planejamento exatamente as- todo dia num engessamento do tempo, com
sim: uma lista com os meses do ano, as datas rotinas que dissociam o cuidar e educar, com-
comemorativas e as propostas que deveriam preendendo como pedagógico apenas uma
ser organizadas às crianças considerando-se atividade dirigida no dia, marcada pelo compro-
essas datas. “Projetos” únicos para todas as misso do turno com professor.
turmas da escola e o mesmo material para to- Talvez isso se justiique muitos profes-
das as crianças - crianças de 0 a 5 anos. sores acreditarem que para as crianças peque-
Uma proposta de trabalho que toma as nas “qualquer coisa serve”, que “elas gostam
datas comemorativas como eixo do trabalho de tudo” ou porque para as crianças pequenas
e que, para além disso, ainda prevê as mesmas basta organizar tarefas que dêem conta de pre-
propostas para todas as crianças, é uma propos- pará-las para o processo de alfabetização, numa
ta que desconsidera completamente as histó- perspectiva de aprendizagem escolar, “quando
rias, trajetórias, curiosidades e necessidades das pensa-se na leitura como decodiicação e na
crianças. Diante de um calendário pré-determi- escrita como cópia repetitiva de sinais gráicos”
nado desde o início do ano, de um planejamen- (Ferreiro, 2007, p.56), numa perspectiva reducio-

168
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

nista da cultura escrita, que as crianças, desde ensino fundamental de nove anos, que prima
muito pequenas, são obrigadas a enfrentar. pela garantia da infância em sua singularidade.
Tais práticas foram discutidas nas forma- Nesse sentido, Kramer (2007, p. 19-20)
ções em contexto, pois em muitas de nossas nos lembra que:
visitas às unidades, ao entrar nas salas de pré-
Entender que as pessoas são sujeitos da
-escola encontrávamos os ambientes decora- história e da cultura, além de serem por
dos com alfabetos recortados de cartilhas, com elas produzidas, e considerar os milhões de
estudantes brasileiros de 0 a 10 anos como
alfabetos de EVA no alto das paredes, que ga-
crianças e não só estudantes, implica ver o
rantiam somente o alcance do olhar dos adultos pedagógico na sua dimensão cultural, como
e não das crianças. Em algumas dessas situa- conhecimento, arte e vida, e não só como
algo instrucional, que visa a ensinar coisas.
ções, ao indagarmos o objetivo de tais propo- Essa relexão vale para a Educação Infantil e
sições, as respostas revelavam professores con- o Ensino Fundamental.
cursados para atuar nos anos iniciais do ensino
fundamental sendo professores da educação Na UEIIA, nosso estudo acerca do signiicado
infantil, sem compreensão da especiicidade da de escutar a criança nos possibilitou compreender
prática pedagógica com crianças de 0 a 5 anos, que valorizá-la como alguém que tem necessida-
sem a compreensão de que a cultura escrita é des, interesses e capacidades requer um planeja-
mais que o conhecimento e reprodução de le- mento que seja organizado a partir dela e do que
tras e números. Na fala clara e espontânea de ela tem a nos dizer. Isso exigiu de nós, professores,
uma atenção muito maior aos seus movimentos,
uma das professoras, tais práticas justiicam-se
bem como a compreensão de que a centralidade
porque “eu só sei fazer isso”. Essas práticas apa-
do processo são elas, as crianças, e não nós, adultos.
recem sempre com essa justiicativa, ou de que
elas acontecem porque os pais querem. Estou com eles, sou “professor” deles de uma
Nesse momento, pontuamos a necessida- outra maneira; procuro lançar sobre eles e fa-
de de que professores do ensino fundamental zer com que sintam um olhar diferente do de
quem realiza incumbências semelhantes. E ao
precisam estar no ensino fundamental, e que guiar – como eu também faço, e muito – suas
precisam aprender com a educação infantil e atividades, procuro não colocar em prática,
não o inverso, e de que a falta de conhecimen- nunca, a exigência de que se devam produzir
to na área muitas vezes é camulada, justiicada testes de resultado, pior ainda se disfarçados,
que só servem para mim (Russo, 2008, p. 157).
pelas demandas externas de pessoas que não
são da área, que não conhecem as orientações
normativas para a educação infantil e para o

169
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

Para tanto, muitos foram e são os desa- nejarmos enfrentando o desaio da superação.
ios para todos os docentes e acadêmicos que Somos cada vez mais desaiados a pensar um
atuam na UEIIA, pois isso exige desconstruir a planejamento não de atividades, mas sim um
ideia de professor que dá aula, direciona, outra planejamento que organiza espaços, tempos e
compreensão de docência na educação infan- materiais para que as crianças assumam o lugar
til, num planejamento em que reconhecemos de sujeitos do processo. É importante salientar
a criança como inteligente, criativa, crítica, que esses desaios serão sempre constantes, pois
capaz e como produtora de cultura. Ao com- à medida que percebemos a complexidade dos
preender o planejamento a partir da escuta saberes e conhecimentos, maiores são as nossas
das crianças muitas são as surpresas e desaios, exigências de respeito aos direitos das crianças.
pois a todo o momento eles nos mostram que
a forma com leem o mundo é diferente da dos Escuta que nos permite respeitar os
adultos, o que só conseguimos compreender tempos das crianças
se estivermos sensíveis.
Também são grandes os desaios que se Na UEIIA, a escuta dos bebês nos mostrou
colocam para a UEIIA nos momentos em que a importância de respeitar os diferentes tempos
recebemos alunos de diferentes cursos para in- de cada menino e menina, principalmente na
serções e estágios, e nos deparamos com a di- hora do sono, pois quando estão com sono, dor-
iculdade de superar a racionalidade presente mem inesperadamente, em cima do prato, de
ainda nos planejamentos que perpassa a ideia pé, no meio dos brinquedos e brincadeiras. Isso
de aplicabilidade, sem conhecer e considerar nos fez compreender que não é necessário escu-
as crianças nesse processo, e o quanto seus recer o ambiente, colocar músicas de ninar, em-
tempos são diferentes dos tempos dos adultos. balar crianças até dormir. Cabe ressaltar que esse
Ser um espaço que produz e socializa conheci- processo não foi algo fácil de desconstruir, pois
mentos nos permitiu superar um planejamen- muitos dos docentes viveram em suas próprias
to voltado para as datas comemorativas e a infâncias o tempo determinado da hora do sono,
proposições fechadas, e hoje nos desaia cons- tempo de embalar e legitimar uma rotina dada
tantemente a rever o que fazemos e superar a e instituída nas unidades. Uma prática cultural-
todo momento a força do tempo, que muitas mente construída, que perpassa a visão assis-
vezes nos aprisiona e que não percebemos. tencialista e que se justiica nos discursos como
Esse afastamento e a racionalização do tempo de descanso, necessário para as crianças.
vivido nas práticas, com base nos registros, nos Após muitos estudos e discussões que
permitem a todo momento avaliarmos e repla- sempre trazem a criança como centralidade

170
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

nos processos pedagógicos, reairmamos que icarem ansiosas perante a exigência de dormir
as crianças na UEIIA só dormem quando tem mesmo que sem desejo desenvolviam alguns
sono. Faz alguns anos que nossas crianças dor- mecanismos de escape como a masturbação,
mem a qualquer hora do dia, quando sentem e outras que aguardavam nas salas sentadas
o desejo e a necessidade de dormir, descansar. em tapetes, em silêncio, sem poder brincar até
Cada criança traz para a escola seu “kit sono”, que todos acordassem. Isso tudo sem falar do
e quando quer dormir já vai buscando-o e
espaço que as camas ocupam nas salas e que
organizando num colchonete a sua cama, na
impossibilitam a organização de um maior es-
própria sala. Dorme e, ao acordar, volta para
paço para o brincar...
junto do grupo, que nem por isso “fez silêncio”
ou deixou de participar da organização do tra- Ao discutir essas questões tivemos de-
balho pedagógico na turma. Sendo assim, em poimentos de muitos adultos que se inco-
vários momentos do dia se observa na unida- modam com essa “hora do sono”, muitos dos
de crianças nas salas dormindo e acordando de quais traumatizados dos seus tempos de in-
forma natural e espontânea. fância, depoimentos das equipes das Secre-
Essa perspectiva de acabar com o horário tarias Municipais de Educação que recebem
do sono após o almoço, instituído na rotina das relatos de pais que airmam esses momentos
unidades de educação infantil, gerou no projeto como traumáticos para as crianças. Uma das
de assessoramento muitos conlitos, pois ques- justiicativas para essa rotina seguir instituída
tionava toda uma organização das unidades em é de que não há docentes para esse tempo, e
que o foco não era o tempo das crianças, mas sim estagiários e monitores; ainda, é o tempo
sim o tempo e as necessidades dos adultos. Du-
do professor fazer seu intervalo. Mostrávamos
rante as visitas técnicas encontramos cartazes já
os riscos de deixar bebês e crianças com bol-
na entrada das unidades indicando o horário do
sistas, com contratos CIEE4 com alunos do en-
sono de todas as crianças e solicitando que nes-
se horário se izesse silêncio. sino médio, sem compreensão das suas fun-
Ao acompanhar a organização dessa ro- ções e do trabalho com crianças pequenas na
tina, acompanhamos longos períodos de espe- educação infantil.
ra das crianças que não dormem por aquelas Em um grande número de unidades,
que dormem. Outros que eram obrigados dei- essas questões estruturais também são justii-
tar, muitas vezes na mesma cama, ou no mes- cativas para a falta de respeito com o tempo
da criança em outros momentos do cotidiano,
mo colchonete. Crianças que permaneciam até
três horas no tempo do sono, outras que por
4 Centro Integração Empresa Escola

171
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

como o momento da acolhida, da higiene e em condições normais um menino ou uma


menina não aceita passar 5 horas em um lu-
da refeição. Esses momentos são marcados na
gar sem um “fazer”. ”Dizer” e “falar com” são
maioria das vezes por longos tempos de espe- casuísticas do “fazer”, mas não são suicien-
ra, seja na entrada, na ila do banheiro, na espe- tes para eles, nem por um ano, nem por três.
ra do outro que chega depois da sua entrada, Grande parte do tempo que terão passado
aqui, será gasto fazendo, não vendo fazer, não
na espera pela higienização, na espera para a esperando que outros façam, e nem esperan-
alimentação, na espera dos que dormem. Mo- do muito tempo a própria vez. Grande parte
mentos que expressam a falta de coniança na do que terão dito, será enquanto faziam algo.
criança como alguém competente e capaz de Grande parte do que direi para eles, será en-
quanto fazem e enquanto eu faço algo, com
desenvolver sua autonomia desde pequena e eles ou sozinho (Russo, 2008, p. 158).
a incompreensão de que a criança se expressa
através de um corpo que deseja, aprende, que Ao questionarmos a falta de lugar dos
comunica. tempos das crianças nessas práticas do coti-
Vivenciamos momentos de chegada das diano, não podíamos deixar de pontuar outros
crianças marcados por longas esperas, pois vi- tempos que também não respeitam a singu-
nham esperando desde as suas entradas nas laridade de cada criança, como o momento
vans e ônibus escolares, e ao chegarem não da troca de fraldas, o qual geralmente tem
encontravam uma acolhida afetuosa de quem horários pré-determinados e que é realizado
se preocupa e compreende o quanto esse mo- em série nas unidades. Durante nossas visitas,
mento é importante para as crianças e seus fa- assistimos crianças sendo trocadas de forma
miliares. Pelo contrário, ou icam na ila esperan- “mecânica” e chorando muito ao serem “larga-
do para entrar na sala, já condicionadas a essa das” no chão, ao mesmo tempo em que outra
domesticação dos corpos5, ou são recepciona- criança já era levada para o fraldário. Nesses
das nas salas por pessoas sem formação, muitas momentos, airmávamos a importância desse
vezes expostas a televisão ou ao rádio com as tempo que se destina a troca de fraldas e as di-
notícias locais. Por sinal, a televisão se tornou mensões do cuidado que são perpassadas pela
um aliado para a improvisação do planejamen- afetividade, pelo olhar do adulto que sustenta
to, um passatempo de longos momentos, até de a criança.
horas… Com relação a esses “tempos de espe- Romper com essas práticas na educação
ra”, Russo nos faz alerta, ao mesmo tempo em infantil é um grande desaio, haja vista que es-
que nos diz de uma outra prática: sas práticas estão enraizadas, marcas de um
tempo em que o trabalho com as crianças de
0 a 6 anos era marcado puramente pelo as-
5 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2000.

172
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

sistencialismo. Contudo, outra compreensão e materiais organizados pelo professor; nos


é possível e necessária quando atuamos em momentos de higiene elas são incentivadas
defesa dos direitos das crianças, o que requer a realizarem as ações de cuidado com o cor-
o processo de escuta atenta e sensível para po sozinhas, embora sempre com a mediação
que se compreenda que o tempo da criança do adulto; nos momentos das refeições elas
é diferente do tempo do adulto e que as ações são incentivadas a servirem o seu prato, se ali-
que envolvem o cuidar estão indissociadas das mentarem com autonomia - desde bebês - a
ações que envolvem o educar. cuidar do espaço e valorizar o alimento; ainda,
Na nossa unidade, viemos estudando e elas são o tempo todo incentivadas no cuida-
compreendendo o signiicado dessas práticas, do com os seus materiais pessoais, a se respon-
que durante muito tempo também marcaram sabilizar pelos seus pertences e pelo que é do
a nossa trajetória, uma vez que a compreensão coletivo.
que se tinha da criança e do seu processo de É assim que na UEEIA organizamos nossa
desenvolvimento era outra. Escutar a criança e vida cotidiana, dando à criança o lugar de sujeito,
valorizá-la como alguém capaz tem nos levado coniando nas suas capacidades e respeitando
já há bastante tempo a uma atuação que res- suas especiicidades, pois compreendemos que
peite os tempos da criança e incentive o seu não é possível falar em autonomia, em respeito
processo de construção da autonomia. Assim, ao seu tempo quando a submetemos a longas
não existem mais aquelas longas ilas para di- esperas, a ilas, quando lhe entregamos tudo
recionar as crianças seja para o banheiro, re- pronto ou realizamos ações por elas, ou quando
feitório ou qualquer outro lugar, como se elas atuamos em série, como se elas fossem seres
não tivessem capacidade para se deslocar com programados, e não seres humanos únicos,
autonomia pelo espaço, e o planejamento é em um intenso processo de humanização
organizado prevendo diferentes atividades ao (Mello, 2008). Essa organização nos permite
mesmo tempo para que as crianças possam, transformar os espaços em ambientes que
de fato, aproveitar o seu tempo fazendo, “não favorecem a os movimentos e as transições das
vendo fazer, não esperando que outros façam, crianças, possibilitando assim que as práticas
e nem esperando muito tempo a própria vez”. sociais de comer, vestir e dormir, por exemplo,
Ainda, todos os momentos são organi- sejam assumidas como parte fundamental - e
zados de modo a favorecer a construção da pedagógica - de nossa atuação junto a elas.
autonomia pelas crianças. Nos diferentes mo- Assim, ao pensar em mudanças e rup-
mentos do dia, elas escolhem seus brinquedos turas nas práticas cristalizadas, rotinizadas e
e suas brincadeiras dentro do espaço, tempo instituídas nas unidades de educação infantil,

173
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

busca-se discutir a organização curricular, e na séries). [...] é alegre, observadora e aprendeu


com as crianças maiores diversas habilidades
UEIIA, buscamos articular o currículo com as
e destreza motora com mais rapidez, o que me
práticas sociais e culturais das crianças. Numa surpreendeu. Quanto aos colegas de menor ida-
perspectiva de que o currículo emerge das de ou com deiciências, senti que ela aprendeu
crianças, famílias e docentes, e que perpassa a que eram mais sensíveis, necessitavam mais
cuidado. Ou seja, penso que a convivência com
própria organização das turmas, as concepções crianças de diferentes faixas etárias foi muito
e compreensões que temos, fomos compreen- importante para o seu desenvolvimento e a
dendo que os limites didático-pedagógicos se adaptação das atividades ou seja o planeja-
referiam aos padrões baseados na homogenei- mento pedagógico das professora foi impor-
tante a im de valorizar a singularidade de cada
dade e nos padrões ixos de desenvolvimento. um e isto também foi relevante [...] (2008. De-
Partindo dessa compreensão, desde 2008 poimento da mãe de uma criança).
a nossa organização curricular se dá por tur-
mas de multi-idades, forma de organização que Durante uma avaliação, ao inal do pri-
compreende a importância das crianças convi- meiro ano, com as famílias da turma multi-ida-
verem com crianças de múltiplas idades, e não de, que iniciou como uma experiência piloto,
apenas com seus coetâneos. Essa organização fomos surpreendidos com o relato acima, de
curricular se consubstancia numa prática con-
uma mãe que não é da área da educação, de
dizente com os fundamentos teóricos de uma
que a organização por faixas etárias segue o
abordagem sócio-histórica em prol de uma pe-
modelo de referência dos anos iniciais, por sé-
dagogia das diferenças, em devir, e que contes-
rie. A organização com separação das crianças
tam as teorias de desenvolvimento único.
por turmas com uma única faixa etária tem um
Eu, [...], mãe da aluna [...,] da Turma Integração referencial teórico que precisávamos superar,
do Núcleo Infantil IPÊ AMARELO da Universida- pois queríamos aproximar o máximo nossas
de Federal de Santa Maria-RS, expresso a ava-
práticas das práticas sociais das crianças.
liação referente ao projeto implementado nesta
escola. Vale salientar que minha declaração se Sendo assim, ampliamos a organiza-
embasa na diferenciação vivenciada com esta ção das turmas por multi-idades para todas
modalidade visto possuir um outro ilho que as turmas, escutando e respeitando os limites
também frequentou esta mesma escola sob
outra modalidade (berçário,....., ou seja, séries). dos docentes, de suas práticas que precisam
Diante da realidade expressa gostaria de salien- sempre ser revisitadas, e assim desaiamos, ao
tar o quanto me surpreendi com a experiência, longo desses anos, todos os envolvidos a rom-
pois minha ilha apresentou um desenvolvi- perem com a organização curricular até então
mento e socialização muito mais rápido, a soli-
dariedade foi um dos marcos e posso dizer que trabalhada e enfrentar o desaio de conviver
é notável a diferença da forma tradiconal (por com crianças de diferentes idades na mesma

174
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

turma. Compreende-se que o trabalho com possível e enriquecedora para eles, muito embo-
turmas multi-idades desacomoda o docente e ra a ideia da turma multi-idade ainda fosse vista
faz com que suas práticas sejam reconstruídas, como uma realidade muito distante.
haja vista os desaios que se colocam diaria- Assim, para que fosse possível (re)pensar
mente de respeito às diferenças. a organização dos tempos na educação in-
Tal experiência foi muitas vezes discu- fantil, desaiando os professores a avançarem
tida nas formações ao longo do projeto, pois nessa compreensão, apresentar nossa organi-
era comum os professores das unidades bus- zação na UEIIA nesse momento foi importante
carem as justiicativas mais diversas para que para que os docentes dessas instituições per-
nem mesmo nas áreas externas as crianças de cebessem que também com relação aos tem-
diferentes idades se encontrassem. Em muitas pos é possível - e mais do que isso, necessário
dessas escolas, encontramos muros que impe- - encontrar outras possibilidades de atuação
diam as crianças de diferentes idades de inte- que respeitem a criança na sua singularidade.
ragirem umas com as outras, com a justiicati- Marcar a UEEIA como lugar de possibilidade foi
va de que “os maiores machucam os menores”, fundamental para que esses professores per-
ou de que “os bebês atrapalham os maiores”. cebessem que outra docência - marcada pela
Em outras escolas, mesmo que não houvesse escuta às crianças - fosse possível e necessária.
muros concretos, estes eram colocados pelos
docentes de um modo ou de outro. Cada crian-
ça em sua turma; juntas, apenas as crianças da Concluindo: a escuta que nos permitiu
mesma idade. estar neste lugar de possibilidades
Ao mostrar que a integração entre as
crianças de diferentes idades era não apenas Ao buscarmos retomar o vivido, marca-
uma prática habitual, mas uma forma de organi- do pelo lugar da impossibilidade nas unidades
zação da nossa escola, ao mesmo tempo em que e os desaios postos para o lugar da possibilida-
éramos alvo de muitos olhares duvidosos e por de, fomos tendo a clareza de que esse proces-
vezes de muitas críticas, fomos muito lentamen- so é lento e que muitas unidades, encorajadas
te marcando esse outro lugar de possibilidade. por práticas de superação, aos poucos busca-
À medida que voltávamos às escolas após essas ram assumir enfrentamentos e desaios junto
discussões, fomos observando portas entre os aos seus pares que não aceitavam mudanças,
muros e a retirada das “cercas” do espaço desti- e que não estavam abertos a escuta dos iguais,
nado para os bebês. Fomos aos poucos ouvindo seus pares e das crianças.
os relatos de que essa era uma prática realmente

175
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer

Num lugar de possibilidade, de buscar CANCIAN, Viviane Ache. O Processo de Apren-


tornar público o público, enxergamos práticas dizagem do Professor à Luz da Racionalida-
que foram em busca de rupturas, e acredita- de Comunicativa. Ijuí : UNIJUÍ, 1997.
mos na UEIIA como espaço de formação inicial CANCIAN, Viviane Ache. A ética na constru-
e continuada que precisa sempre se colocar ção/reconstrução do projeto político-pe-
nesse lugar de busca por um projeto de edu- dagógico de escola, na formação/ação dos
cação infantil que tenha o compromisso com educadores: uma dimensão ineliminável. For-
a formação humana, com a ética, com um pro- taleza, 2003. (Tese de Doutorado).
jeto que é tecido por todos os sujeitos envol- EDWARDS, Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN,
vidos, e que tece uma infância sem rupturas, George. As cem linguagens da criança: a
uma infância livre e respeitada. abordagem de Reggio Emilia na educação da
Nossa luta por uma educação infantil de primeira infância. Tradução Dayse Batista. Por-
qualidade que respeite os direitos fundamen- to Alegre: Artmed, 1999.
tais das crianças é uma luta séria e constante, FARIA, Ana Lúcia Goulart de; SILVA, Adriana
e por isso atuamos nesses projetos em parceria Alves. Por uma nova cultura da infância. In: A
com o Ministério da Educação, pois compreen- criança em foco. Revista Educação: Cultura e
demos que nos cabe o desaio de dialogar, Sociologia da Infância. [s.d.].
realizando a interlocução de saberes com ou-
FERREIRO, Emilia. O Ingresso nas culturas da
tras unidades de educação infantil por acredi- escrita. In: FARIAS, Ana Lúcia Goulart de (Org.)
tar que estamos cada vez mais avançando na O Coletivo infantil em creches e pré-escolas:
construção de outra docência da educação in- fazeres e saberes. São Paulo: Cortez, 2007.
fantil, e que isso de alguma forma nos coloca
GOELZER, Juliana. O diálogo e a afetividade
na ininitude do conhecimento.
no contexto da educação infantil: as “pessoas
grandes” dizendo a sua palavra. Dissertação de
Mestrado (Mestrado em Educação) - Universida-
Referências bibliográicas de Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2014.
KRAMER, Sonia. Infância e sua singularidade.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria In: BEAUCHAMP, Jeanete; PAGEL, Sandra Deni-
de Educação Básica. Diretrizes Curriculares se; NASCIMENTO, Aricélia Ribeiro do. Ensino
Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: fundamental de nove anos: orientações para
MEC, SEB, 2010. a inclusão da criança de seis anos de idade.

176
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE

Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de


Educação Básica, 2007.
MELLO, Suely Amaral. Infância e humaniza-
ção: algumas considerações na perspectiva
histórico-cultural. Perspectiva, Florianópolis, v.
25, n. 1, 83-104, jan./jun. 2007.
RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia:
escutar, investigar e aprender. Tradução: Vania
Cury. São Paulo: Paz e Terra, 2012.
RUSSO, Danilo. De como ser professor sem
dar aulas na escola da infância (III). Trad.
de Fernanda L. Ortale e Ilse P. Moreira. Revista
Eletrônica de Educação. São Carlos, SP: UFSCar,
v.2, no. 2, p. 149-174, nov. 2008. Disponível em
http://www.reveduc.ufscar.br.

177
9
A ARTE E AS CRIANÇAS: CAMINHOS A EXPLORAR,
LINGUAGENS A EXPERIMENTAR E UM MUNDO
TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

Agnese Infantino
Franca Zuccoli

Observar as crianças: o ponto de partida um substrato cultural e respondiam a necessi-


básico dades e características especíicas. Nas déca-
das seguintes, esses estudos se enriqueceram
O desenho e as criações tridimensionais constantemente abrindo perspectivas dife-
das crianças, uma ferramenta de conhecimento rentes: algumas profundamente relacionadas
Se você observa com curiosidade e às posições de Georges-Henri Luquet (1927),
atenção as crianças, mesmo que pequenini- Viktor Lowenfeld (1960)1, Jean Piaget, Rhoda
nhas, enquanto se relacionam com o mundo, Kellogg (1969) e às análises quase exclusiva-
surge um aspecto extremamente evidente mente cognitivas, como, por exemplo, a de
relativo à necessidade delas de deixar uma Luquet, com a deinição de quatro estágios
marca, um rabisco, nas folhas ou nas super- de desenvolvimento pictórico, outras com um
fícies que encontram à sua disposição, ou olhar mais complexo, que procurava e procu-
a necessidade de modelar, dando forma a ra examinar o desenho como uma linguagem
composições tridimensionais. Isto é conir- com diferentes inalidades e necessidades
mado por numerosos estudos sobre o dese- (Golomb, 2004).
nho infantil, desde o início do século XX. Em Um aspecto diferente, relativo aos de-
particular, é necessário lembrar os estudos senhos infantis, é trazido à luz por Loris Mala-
de Corrado Ricci (1887) que, em 1800, cole-
tou centenas de garatujas infantis, expondo
1 A pesquisa feita por este autor, após sua morte, graças ao
como os desenhos não eram uma prática trabalho de revisão e atualização do estudioso W. Lambert Bri-
incompleta ou defeituosa, como atestavam ttain, foi publicada em 1960 em Creativite and mental growth,
MacMillan, New York.
algumas pesquisas na época, mas possuíam

179
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

guzzi nas escolas da infância de Reggio Emilia conhecimento, primeiramente observando e


(Edwards, Gandini, Forman, 1995; Vecchi, Giu- compreendendo, depois enriquecendo, inte-
dici), onde o desenho torna-se uma maneira grando e encorajando estas ações em diferen-
de conhecer e observar o mundo, para reletir tes direções possíveis. Muito distante é a idéia
sobre o que acontece e questionar-se. Um uso de incluir constantemente atividades, uma
diferente do habitual, que recordamos, com após a outra, transformando o horário da pre-
um grande salto temporal, é também o uso sença das crianças na creche ou na pré-esco-
que muitíssimos artistas, Leonardo da Vinci la em um quebra-cabeça composto de ações
(1452-1519) em primeiro lugar, izeram para fragmentadas, mais semelhante aos horários
investigar a realidade, para ampliar as obser- das nossas ocupações como adultos, ou uma
vações cientíicas, em um momento em que divisão antecipada de conteúdos em discipli-
as barreiras disciplinares ainda não estavam nas. Mais coerente do que a ideia de observa-
erguidas. Estas observações, direcionadas para ção vigilante e atentas dos adultos, sobre as
o tema do desenho são apenas um primeiro ações naturalmente construídas pelas crianças,
ponto deste artigo para ressaltar como o dese- podemos articular uma nova perspectiva em
nho, combinado com a modelagem e as explo- um luxo constante, que respeita o ritmo lento
rações são características constantes da vida de algumas realizações e os tempos necessários
das crianças. A atenção a este aspecto, que em e naturais (Zavalloni, 2012). Como já vimos, as
um primeiro momento chamaremos generica- crianças usam naturalmente uma abordagem
mente “artístico” é o ponto central da nossa re- artística, porque traços, rabiscos, desenhos, pin-
lexão, porque destaca a ideia que utilizaremos turas e criações tridimensionais são uma lingua-
às vezes. A hipótese é que nesta área não seja gem própria e inata da infância, sem a neces-
necessário impor experiências que surgem a sidade de que haja algum tipo de intervenção
partir de um pensamento adulto, mas, pelo impositiva pelos adultos e é observando esses
contrário, seja conveniente encorajar, após ter primeiros movimentos naturais que se pode
realizado observações cuidadosas, as pesqui- entender quais são as ações mais signiicativas
sas e as descobertas das crianças, oferecendo- para se oferecer, estritamente ligadas a esse gru-
-lhes contextos ricos de materiais adequados po especíico, às descobertas realizadas.
e estimulantes. Este artigo baseia-se na ideia Nestas relexões, devem ser inseridas
de que as crianças, mesmo muito pequenas, referências a outras duas experiências, feitas
já desenvolveram ou ainda estão construindo em diferentes campos, mas igualmente rele-
as habilidades para conhecer o mundo em que vantes para a nossa discussão: a proposta dos
estão inseridas. O papel do educador e do pro- pedagogos Pujol I Mongay M. e Roca I Cunill N.
fessor será então o de incentivar estas ações de (1995) que em projetos dedicados à educação

180
A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

infantil, sempre começando a partir de um mo- pergunta do que queremos dizer por arte neste
mento livre de descoberta e de brincadeira, ob- artigo. Trata-se de uma questão complexa para
servados de perto pelos educadores, para, em a qual não é possível dar uma única explicação,
seguida, estruturar percursos realmente sig- mas nos impulsiona a buscar nas palavras de crí-
niicativos e os momentos de “lambuzeira” do ticos e artistas algumas interpretações possíveis.
físico David Hawkins (1979)2, que também aos A primeira airmação é a do ilósofo e crítico de
jovens do ensino médio ou universitário pro- arte Dino Formaggio que redeine o conceito de
punha uma primeira fase de experimentação arte, elaborando esta tautologia simples: “A arte
com materiais relacionados às leis da física que é tudo o que os homens chamam de arte” (Arte -
deveriam ser aprendidas, para que este conhe- Enciclopédia ilosóica, Milão, ISEDI, 1973). Com
cimento se enraizasse realmente no patrimô- isto, ressalta o peso que a história humana teve
nio cultural dos jovens. Encorajar e enriquecer ao escolher algumas formas de expressão, cata-
podem ser, então, dois verbos adequados para logando-as como artísticas, em relação a outras.
os movimentos do adulto, aliados aos movi- Um vaso grego foi inicialmente talvez um boni-
mentos das crianças, em uma espécie de dan- to recipiente decorado de uma forma elegante,
ça realizada simultaneamente, em vez de uma mas depois tornou-se um símbolo e uma das
ação que vem do alto e não reconhece a rique- representações mais completas daquele pas-
za de conhecimento já desenvolvido de forma sado. A escolha humana de identiicar formas
independente pelas crianças, que desde pe- particularmente signiicativas para representar
quenininhas, são exploradoras competentes. momentos de pesquisa pode ser um passo que
facilita a compreensão. Mas essa deinição não
Educação à arte: uma experiência trans- é suiciente e nos leva a procurar frases e ideias
formadora propostas pelos próprios artistas, como as pala-
vras de Picasso, que airmava “Eu nunca iz uma
Após este primeiro passo que resgata pintura como uma obra de arte, é tudo pesqui-
o trabalho artístico como uma prática natural sa” ou Georges Braque, que escreveu em seus
e reinada das crianças, surge naturalmente a Cahiers “A arte é uma forma de representação”
(Braque, 2002, p.13) ou Jackson Pollock, que se
2 O físico David Hawkins percebeu, depois de muitos anos de detinha no aspecto mais material:
ensino, como os jovens do ensino médio, que tinham brincado pou-
co com materiais diferentes quando pequenos, tivessem extrema
difuculdade em compreender as leis da física Esses alunos conse- Em minha opinião, a técnica se desenvolve
guiam memorizar apenas por períodos curtos essas informações, naturalmente a partir de uma necessidade, e a
porém sem obter uma competência real. Para superar este proble- partir desta necessidade o artista extrai novas
ma estabeleceu um ambiente estruturado em suas aulas divididas maneiras de expressar o mundo ao seu redor.
por momentos. O primeiro passo era dedicado à “lambuzeira”.

181
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

Eu uso métodos diferentes das técnicas tradi- sas áreas do conhecimento.


cionais de pintura (Pollock, 2006, p.81). O uso do desenho em seus manuscritos
une-se com a escrita e nos mostra um olhar
Posição também sublinhada pela crítica indagador que desenvolve um processo contí-
Angela Vettese: nuo de pesquisa. Outros aspectos, que são pon-
tos de contato com a prática educacional, são
Pessoas, coisas, animais, lugares, emoções: a
partir do século XX, a arte visual é feita com aqueles relacionados com a experimentação
tudo. Sua linguagem tem assumido uma constante de uma maneira diferente de expres-
gama de possibilidades expressivas que en- sar-se, além de novos materiais e ferramentas a
globa todos os meios. Estas experimentações
serem utilizados. Neste caso, a arte contempo-
têm procurado aumentar o valor da invenção:
os novos métodos de execução não são jogos rânea nos mostra uma pluralidade de propostas
imotivados, mas relexos naturais do modo que se servem constantemente de materiais
em que se vive, se produz, se consome e tro- por muito tempo negligenciados, produtos
camos informações (Vettese, 2010, p.V).
descartados e pouco considerados, tirados do
cotidiano e utlizados de outro modo. Muitos
Esta visão geral, certamente muito frag- outros poderiam ser os pontos em comum en-
mentada, nos permitiu capturar pelo menos tre a arte e a atividade educacional, mas estes
alguns passos fundamentais da prática artís- são provavelmente os que podem ser explícita-
tica em si. Talvez mais do que deinir e delimi- dos de melhor forma. Observemos agora como
tar o âmbito artístico, tentativa falida ao longo muitos autores confrontaram-se com a questão
dos séculos, pode nos ser útil identiicar quais que coloca em conexão a idéia de arte com a
características da arte podem ser signiicativas da educação. Figuras como John Dewey (1985,
na educação. Na verdade, vimos como a arte 1995), Célestin Freinet, Rudolf Steiner (1970,
foi no passado, e também continua sendo no 1980), Herbert Read (1954), Arno Stern (1975,
presente, uma maneira de conhecer e explorar Stern & Lindbergh, 2005) Bruno Munari (Munari
sem fronteiras disciplinares. Questionar-se, in- B. 1.981, de 2009; A. Munari 1986 Restelli, 2002),
vestigar, explorar, documentar, realizar, criar são para citar apenas alguns dos mais conhecidos
algumas de suas outras inalidades. Muitas de do mundo europeu, tentaram, ao longo do tem-
suas ações visam o conhecimento do mundo. po, aprofundar estes dois aspectos, propondo
Para enfatizar esse ponto em particular já men- uma combinação das duas áreas, o que favorece
cionamos Leonardo da Vinci, que nos lembra um crescimento contínuo nascido deste contá-
como, durante muito tempo, as divisões entre
gio. Esses autores enfrentaram, de fato, diferen-
disciplinas não eram tão claras e a exploração e
tes aspectos da relação entre arte e educação,
pesquisa moviam-se constantemente nas diver-
investigando esta perspectiva a partir de pontos

182
A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

de vista, às vezes opostos, outras vezes simila- mada igurativa ou plástica: a teoria que apre-
sentarei engloba todas as formas de expressão
res. Sua abordagem foi extremamente signiica-
do “eu”, literário e poético (verbal) e também
tiva, porque conseguiu evidenciar quantos pon- musical ou auditivo, e constitui uma tomada
tos em comum existem entre arte e educação, de contato integral com a realidade a ponto de
ser capaz de chamar-se educação estética, ou
interessando-se pelo que fazer, além de como a educação dos sentidos, em que se baseiam
fazê-lo, valorizando uma perspectiva quase à a consciência e, em última análise, a inteligên-
beira da capacidade artesanal e explorativa. Tal- cia e o julgamento do indivíduo humano. So-
mente quando os sentidos são levados a uma
vez a igura de Herbert Read (1893 - 1968), que harmoniosa e constante relação com o mundo
movendo-se a partir das teorias de John Dewey, exterior será possível constituir uma personali-
possa nos intessar mais neste artigo porque nos dade “integrada” (Read, 1954, p.26).
propõe a ideia de uma educação que pode se
Algumas páginas mais adiante, retoma
realizar justamente através da utilização da arte.
essas reivindicações, chegando a declarar:
Seu texto “Education through art” (Read,
1954) é a formalização da hipótese teórica de A educação pode, portanto, ser deinida
que a arte pode se tornar a base da educação. como um processo que visa cultivar as formas
Ele observa a relação entre arte e educação atra- de expressão, ensinando crianças e adultos
como produzir sons, imagens, movimentos,
vés de duas teses contrastantes: a primeira, de instrumentos e ferramentas. [...] Todas as fa-
uma educação diretiva, que faz o homem trans- culdades de relexão, lógica, memória, sensi-
formar-se naquilo que ele não é, e a segunda, bilidade e intelecto estão envolvidas nesses
processos e abrangem todos os aspectos da
inspirada nos princípios de liberdade que per- educação. E todos esses processos abrangem
mite tornar-se o que se é, abraçando totalmente a arte [...] (Read, 1954, p.30).
esta segunda ideia. Aqui suas referências vão
desde Platão até Rousseau, de Pestalozzi a Mon- Como pudemos ver, embora de uma for-
tessori, chegando a Dewey e Holmes. Desde o ma muito fragmentada e não exaustiva, a his-
início de seu tratado ele se afasta de uma con- tória da educação para a arte, especialmente
cepção de educação artística limitada a uma vi- para as crianças maiores, é uma história com
são exclusivamente disciplinar, dado que se re- um grande passado, com iguras brilhantes de
fere a uma ideia de realidade como experiência referência que ao longo do tempo estabelece-
orgânica total, e, de fato, assim escreve: ram pontos essenciais. O trabalho do educador
pressupõe que estes pontos possam ser uma
Que seja claro desde o início que não me reiro base de confronto, veriicando-se com quais
apenas a uma “educação artística” como tal, o estamos de acordo ou não, redescobrindo, na
que poderia ser mais apropriadamente cha-

183
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

prática, uma trama viva de referências teóri- feitas, inserindo uma atenção especíica para
cas. Uma posição central para nossa discussão as ações de descoberta, brincadeiras e conhe-
pode ser talvez a de Herbert Read, que nos fala cimento que mesmo crianças muito pequenas
de uma educação que é feita por meio da arte podem desenvolver. Das diretrizes observare-
e não uma visão disciplinar e exclusivamente mos apenas a proposta dedicada à arte, desta-
de conteúdo. Talvez este ponto pode ser o mais cando algumas especiicações. A primeira é ter
signiicativo também em nossas análises que compreendido o potencial do termo campo de
tratam de crianças muito pequenas. experiência, indicado nas Diretrizes Nacionais
em: “Campos de experiência”:
Um confronto com as Diretrizes Nacio-
nais Italianas (2012) Os professores aceitam, valorizando e ex-
pandindo, as curiosidades, as explorações,
e as propostas das crianças, e criam oportu-
Esta panorâmica ligada a uma visão da nidades de aprendizagem para facilitar a or-
arte e da educação nos permite entrar em uma ganização do que as crianças descobrem. A
análise detalhada das Diretrizes Nacionais de experiência direta, a brincadeira, o procedi-
mento por tentativa e erro, permitem que a
2012, para compreender como também as re- criança, devidamente orientada, aprimore e
ferências legislativas podem ser signiicativas sistematize os aprendizados. Cada campo de
quando lidam com estas questões. As Diretri- experiência fornece um conjunto de objetos,
zes se tornaram os novos pontos de referência situações, imagens e linguagens, referimen-
tos aos sistemas simbólicos da nossa cultura,
legislativa para o primeiro ciclo da escola italia- capazes de evocar, estimular e acompanhar
na, entendendo com este termo a pré-escola e aprendizagens progressivamente mais segu-
o ensino fundamental. Um percurso que come- ras (Diretrizes Nacionais, 2012, p.18).
ça aos três anos e termina aos quatorze. Pela
primeira vez em escolas italianas já não se fala No contexto especíico da arte, a pro-
mais de programas prescritivos, mas de diretri- posta feita retoma a perspectiva traçada no
zes, delineando uma série de sugestões e hipó- primeiro parágrafo:
teses que as escolas, em sua especiicidade, de-
Imagens sons, cores. As crianças expressam
vem tornar viável. Especial atenção é dedicada
pensamentos e sentimentos com imaginação
também à arte e à imagem. Devemos lembrar e criatividade: a arte dirige esta propensão,
que em um passado não muito distante (1800 educando ao prazer da beleza e da qualidade
continuando até o inal do século XX) a arte se estética. A exploração dos materiais disponí-
veis permite viver as primeiras experiências
destinava apenas ao treino motório visando artísticas, que são capazes de estimular a cria-
a graia correta e agradável da escrita e orto- tividade e contagiar outras aprendizagens.
graia. Desde então, muitas mudanças foram

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A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

(...) O encontro das crianças com a arte é uma por um lado e, por outro lado, as dinâmicas
oportunidade para ver o mundo em torno de- que compõem o planejamento pedagógico e
las com olhos diferentes. Os materiais explo-
rados pelos sentidos, as técnicas experimen- organizacional da creche e, em geral, das estru-
tadas e compartilhadas no atelier da escola, turas educativas, exigem o esclarecimento de
as observações de lugares (praças, jardins, algumas coordenadas de base. Trata-se de ex-
paisagens) e obras (pinturas, museus, arqui-
plicitar mais detalhadamente o signiicado das
tetura) ajudarão a melhorar as habilidades
de percepção, cultivar o prazer da utilização propostas artísticas destinadas a crianças mui-
da produção e da invenção para aproximar à to pequenas, juntamente com os princípios e
cultura e ao patrimônio (Diretrizes Nacionais, opções que no planejamento, tanto do ponto
2012 p.20).
de vista pedagógico quanto ao organizacional,
que são realizadas pelo grupo de educadores
Este modo de brincar, observar e olhar, dentro do ambiente da creche ou de outra es-
experimentar diferentes materiais, torna-se en- trutura de educação infantil. Estes dois níveis
tão uma oportunidade de descoberta e expe- (conceitos, ideias de infância e processos de
riência, e a arte em si não se coloca mais em um planejamento pedagógico-organizacionais)
pedestal distante e inatingível (Zuccoli, 2010, estão interligados mais do que nunca, à luz do
2014), mas torna-se parte de uma exploração atual debate na Itália, e em geral na Europa, so-
(Smith, 2008) que permite desenvolver um bre a organização composta pela oferta peda-
olhar e um pensamento diferentes, mais ricos gógica para a infância (dirige-se cada vez mais
e estimulantes. claramente em direção a um cenário que supera
as deinições tradicionais de estruturas educati-
Creche, crianças, processos de conheci- vas para a infância de zero a três anos, em segui-
mento da, de três a seis anos para pensar nas estruturas
educativas para zero a seis anos) e políticas de
Se, como mostrado nos parágrafos an- desenvolvimento das estruturas garantindo os
teriores, compreendemos a arte não tanto princípios de acesso e sustentabilidade.
como uma área “disciplinar”, mas como uma A relexão sobre as formas e a possibi-
dimensão de experiência, e portanto também lidade de ativar propostas artísticas voltadas
de conhecimento, compartilhados por adultos a crianças pequenas e crianças muito peque-
e crianças, lancemos as premissas para rele- nas não pode ser alheia às linhas gerais deste
tir sobre as propostas artísticas voltadas para debate, tornando-se uma contribuição para
crianças muito pequenas, na idade da creche. tematizar de uma forma novas possibilidades
A delicadeza, mas também o enorme poten- da educação infantil. Em alguns aspectos, o
cial de desenvolvimento desta fase da vida, tema da arte na creche abre a possibilidade

185
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

de tematizar e problematizar a própria identi- ção no grupo socioafetivo e cultural de que fa-
dade da creche em relação a outras estruturas zem parte. As crianças crescem e aprendem de
educativas, solicitando encontrar linhas para forma tanto mais signiicativa e segura, quanto
um pensamento educacional próprias da pe- mais o contexto de vida e os relacionamentos
dagogia da creche e que, embora envolva as com pessoas que lhes são familiares que cui-
peculiaridades que caracterizam a vida e o dam delas são estáveis, consistentes, reconhe-
desenvolvimento de crianças muito peque- cíveis, carinhosamente incentivantes e favore-
nas, não se fecham em si mesmas, mas sabem cedoras, sem ansiedade ou restrições, o normal
articular projetos educativos conjuntos, tendo estímulo ao crescimento e ao conhecimento.
em vista o crescimento das crianças em sua Trata-se de processos de aprendizagem por
evolução ao longo dos anos além da creche, participação direta, mencionados por Rogof,
e desenvolvimentos pedagógicos viáveis para que se solidiicam mediante a peculiaridades
outras estruturas e para a escola. Esta possibi- da relação entre adultos (especialistas) e crian-
lidade de abertura apoia-se na capacidade de ças que fornecem modelos e oportunidades de
focalizar as especiicidades das dinâmicas de exercício prático, mediante a dinâmica especí-
desenvolvimento, aprendizagem e construção ica do aprendizado dirigido. Estes processos
do conhecimento que em crianças pequenas, de aprendizagem que podemos observar nas
com idade inferior a três anos, acontecem de sequências da vida cotidiana, em família e em
forma predominantemente espontânea e na- geral no contexto de vida das crianças, ocor-
tural graças à participação ativa nos contextos rem em formas muito semelhantes também
sociocultural da vida em família e no contexto nas estruturas educativas, em particular na cre-
social mais amplo, nas estruturas educativas. che, estrutura educativa realmente especial,
As pesquisas sobre o desenvolvimento porque é núcleo de pluralidade de saberes sem
realizadas na área sócio-construtivista e da psi- ensino. Neste panorama, brevemente apresen-
cologia cultural, que se baseiam na natureza tado, é possível contextualizar e conceituar
dos processos educativos e do desenvolvimen- também propostas artísticas que podem se
to, assinalam como as crianças muito peque- tornar uma oportunidade pedagógica para as
nas, em idade muito precoce, sejam capazes de crianças, mesmo as muito pequenas, se de fato
conhecer, aprender esponteamente e, gradual- oferecidas, juntamente com outras linguagens
mente, dominar de uma forma original o con- e oportunidades de conhecimento, como ex-
junto das regras, dos ritmos, das coordenadas pressão signiicativa da cultura a que os educa-
culturais que regem a organização do espaço, dores se referem com coerência e continuida-
dos tempos e dos rituais do dia e das condutas de nas práticas pedagógicas implementadas
familiares substancialmente graças à participa- cotidianamente. Se assumimos o pressuposto

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A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

de que as crianças pequenininhas são capazes cessário para deinir um primeiro nível estético
de selecionar e reelaborar de forma autônoma fundamental que expressa o mundo artístico a
elementos de conhecimento relevados cultu- que as professsoras se referem além das oca-
ralmente porque vivem de forma espontânea siões especíicas de arte que podem ser con-
e natural um contexto caracterizado por arte- iguradas intencionalmente para as crianças. E
fatos, símbolos, valores e regras, então tam- este é o primeiro e básico nível artístico, que
bém as linguagens artísticas, como qualquer permeia o contexto da vida das crianças, cuja
outra linguagem, poderão ser oferecidas para atenção é fundamental, porque esta é a sede
crianças como oportunidades autenticamente do aprendizado espontâneo das crianças. Esta-
enriquecedoras e signiicativas, desde que não mos apoiando, assim, o princípio de que a arte
sejam concebidas e organizadas como conteú- e as linguagens artísticas para a creche não
do asséptico e artiicialmente construído para coincidem com o tempo dedicado ao desenho,
este im, mas como elementos constitutivos à pintura, ou à modelagem, mas envolvem
da cultura e do mundo dos educadores. Esta como possibilidade de expressão plena todo o
forma de pensar as oportunidades de conhe- dia de educadores e crianças e também dizem
cimento na creche, torna-se signiicativa a qua- respeito às formas e às maneiras pelas quais
lidade artística que caracteriza os contextos e poderão inluenciar os relacionamentos.
espaços materiais e simbólicos que envolvem
educadores e crianças: a atenção com as cores Crianças, arte e linguagens
(das paredes, dos móveis, do material disponí-
vel para crianças etc ...), a graça e a harmonia Nessa idade não se trata de entrar em
com a qual estão dispostos os espaços, a mo- contato com as dimensões nem instrumen-
bília e os objetos, o gosto estético que pode tais nem conceituais das linguagens artísti-
ser capturado pelo olhar observando os canti- cas, mas se trata de reinar o olhar, adquirir e
nhos de interesse em particular (bonecas por construir categorias de base para ser capaz de
exemplo, cuidadosamente dispostas, vestidas, compreender as dimensões da sensibilidade
penteadas e não jogadas despidas em grandes artística do cotidiano, deixar vestígios e sinais
cestos), mas também as ações das professoras que expressam uma sensibilidade artística na
na organização de objetos no espaço (uma ces- escolha de cores, formas, na intensidade e na
ta de frutas de material de qualidade, não de força das linhas, na busca do equilíbrio e da
plástico grosseiro e colorido vistoso, a atenção proporção nas tantas criações e trabalhos que
com que se colocam os lápis de cor, giz de cera têm como protagonistas as crianças, ao longo
e canetinhas em cestas escolhidas e adequa- dos diferentes momentos do dia na creche, em
das para este im bem organizadas), tudo o ne- muitos contextos diferentes, enquanto brin-

187
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

cam no jardim, à mesa, quando estão lidan- A professora oferece às crianças a cola dispos-
ta em pratos, os grupos se sentam em torno
do com jogos de construção. Se observamos de mesas cobertas com plástico. A observa-
atentamente o agir das crianças, percebemos ção se concentra em três meninas de 30 me-
que não é possível separar com uma linha ní- ses. A professora, depois de colocar a cola nos
pratos, pergunta o que querem fazer com a
tida as suas experiências “artísticas” das outras cola. As meninas respondem, rindo, que que-
experiências de exploração e descoberta. De rem colar pedaços de papel. A professora per-
fato, muitas vezes o que torna únicas as mo- gunda porque estão rindo. Respondem que a
cola parece o creme que a mãe usa! A profes-
dalidades de conhecimento do mundo pelas sora propõe que toquem a cola. Gaia: Eu pos-
crianças é justamente sua inter-relação profun- so tocar apenas com um dedo? Professora:
como você quiser. Inicialmente, as meninas
da e física entre linguagens e diferentes abor-
traçam sinais com um dedo, em seguida, co-
dagens que só encontram um lugar nas áreas meçar a usar ambas as mãos em movimentos
especíicas e separadas. para o mundo adulto, circulares. Ilaria: Eu faço um sol. Gaia: Eu uma
tartaruga. Uma das meninas mergulha a mão
e nos anos seguintes, gradualmente, também inteira na cola, as outras a imitam: é macia. Pa-
para as crianças em contato com a aprendiza- rece um creme ... Gaia: minhas mãos estão pe-
gem estruturada quando uma criança de 30 gajosas, podem atrair insetos? A professora a
tranquiliza e pergunta por que pensou nisso.
meses traça linhas em uma folha, ativa simul- Gaia diz que uma vez suas mãos estavam pe-
taneamente diferentes dimensões do conheci- gajosas, sujas de mel, e vieram as moscas. Ila-
mento, pensamento, imaginação... a folha, em ria: mel é bom, eu como com cereal. Gaia: eu
também como cereais na xícara. As meninas
contato com os dedos, comunica sensações falam sobre seu café da manhã e, enquanto
(áspero, liso....), a cor do papel (branco, pre- isso, traçam linhas circulares com a cola. Ilaria:
parece um quadro!! A professora diz que vai
to...) e seu tamanho evoca emoções, evocando
pendurá-lo quando secar.
memórias, provocam movimentos tímidos ou
impetuosos (muitas linhas próximas umas das É importante que esta integração das
outras, ou longas ilas que escapam da folha linguagens e experiências, surgidas de uma
colorindo a mesa ....) e estas diferentes dimen- proposta pensada para a expressão artística, a
sões se integram às dimensões sociais relacio- partir da qual se origina um luxo de conheci-
nadas às interações com outras crianças. mentos que poderíamos chamar de holístico
Neste exemplo extraído de uma estru- (e talvez alguns poderão deinir como desor-
tura educativa, este aspecto emerge muito denado ou caótico) não seja interrompida pe-
las professoras, mas, ao contrário, encontrem
claramente:
espaço para se desdobrar em processos que
se auto alimentam de estímulos e solicitações

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A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO

que têm relevância e signiicado para as me- citações, informações e desaios que incitem a
ninas envolvidas. Não faz sentido deinir qual curiosidade das crianças.
linguagem deve ser predominante (a de ex- Este exemplo ajuda a deslocar o proble-
pressão artística? a verbal? a simbólica?), uma ma da arte do nível dos conteúdos (o que ofe-
vez que a evolução deste fazer criativo espon- recer como conteúdo artístico especíico para
tâneo (não dirigido para produto predeinido crianças?) para o do contexto (qual realidade
pela professora que, contudo, está presente e diária para professoras e crianças?) e faz com
envolvida pelas meninas) permite que se de- que se torne prioritário o critério de coerência
senvolvam mais dimensões simultaneamente. ao nível educacional e organizacional como ten-
É importante permitir, as crianças desta idade são que exige um investimento constante de
em que se fundamentam as bases da identida- responsabilidade por parte de todos os prota-
de pessoal, vivenciar em liberdade esta riqueza gonistas envolvidos no sistema de ensino. Nesta
e pluralidade expressiva. Meninas comparam perspectiva, perde relevância a decisão de con-
categorias (creme, cola, mel) e buscam um iar o desenvolvimento de linguagens artísticas
projeto criativo que chega a um produto inal aos especialistas em arte ou atelieristas com
(parece um quadro!), participando de um pro- habilidades artísticas especíicas e, pelo contrá-
cesso que realmente tem signiicado para elas rio, é reavaliado o papel e o valor da professora
e que, portanto, justamente por isso, pode ge- que, na troca de experiências durante o plane-
rar conhecimento. A professora, com base na jamento de seu grupo de trabalho, desenvolve
experiência vivida pelas crianças e valorizando uma proposta educacional em que linguagens
os passos que a caracterizaram, terá à sua dis- diferentes, no luxo diário, podem ser oferecidas
posição, nos dias seguintes, a possibilidade de como oportunidade, pretexto ou desaio para
retomar e revitalizar alguns pontos para enri- as crianças. Pensamos que apoiar nas crianças a
quecer ainda mais a exploração das meninas, abertura, a curiosidade, o interesse pelas lingua-
expandindo o plano das oportunidades e pos- gens artísticas na visão holística que estamos in-
sibilidades, partindo seja do ponto de vista da dicando, ou seja, o entrelaçamento vital com ou-
expressão artística, por exemplo, ampliando a tras formas de expressão e conhecimento, seja a
variedade de materiais e objetos disponíveis), atitude fundamental e a sensibilidade de base
seja partindo do ponto de vista dos proces- das professoras, mais do que a competência ar-
sos de descoberta e de construção do conhe- tística especíica, entendida como um conjunto
cimento (as moscas são atraídas pelo mel, a de habilidades técnicas e artísticas em sentido
cola parece creme...). As crianças abrem trilhas literal. Pode, sem dúvida, ser interessante para
de conhecimento que as professoras devem as crianças conhecer artistas na creche, visitar
manter vivas, mas também ampliar com soli- instalações de arte e ver a arte ao vivo, mas o

189
Agnese Infantino e Franca Zuccoli

que realmente alimenta e orienta o desenvolvi- J., Understanding art education. Engaging re-
mento da sensibilidade artística nos pequenos lexively with practice. Routledge, Oxon, 2010.
é a cultura e o zelo pela qualidade cultural e ar- BRAQUE, G., Cahier 1917-1955 (ed. or. Cahier de
tística geral que se vive e se respira nos contex- Georges Braque, 1994), Abscondita, Milano, 2002.
tos da vida diária na creche, com as professoras CAGGIO, F., Abbatinali R. (a cura di). “... Quasi
que cuidam delas regularmente e que, com seu arte...” manufatti di bambini impegnati. Edi-
comportamento, podem ter um papel mais ou zioni Junior, Azzano San Paolo, 2004.
menos favorável para o desenvolvimento do CANNONI, E.. Il disegno dei bambini. Carocci,
potencial criativo das crianças. Pensamos por- Roma, 2012.
tanto em iguras de professoras cultas e artisti- DEWEY, J.. Arte come esperienza e altri scrit-
camente preparadas, capazes de atribuir valor ti (ed. orig. Art as Experience), Firenze, La Nuova
e signiicado artístico às experiências e criações Italia, 1995.
espontâneas das crianças mas não rigidamente DEWEY, J.. Scuola e società (éd. orig. The School
orientadas para captar nos gestos e traços de and society,1899), Firenze, La Nuova Italia, 1985.
cor das crianças somente as expressões artísti- EDWARDS, C., GANDINI, L., FORMAN, G. (org.). I
cas, mas também evoca outras linguagens, em Cento linguaggi dei bambini. L’approccio di
uma trama heurística para apreender e valorizar. Reggio Emilia all’educazione dell’infanzia.
Este trabalho, nada fácil e óbvio, não pode ser Edizioni Junior, Azzano San Paolo, 1995.
realizado isoladamente, mas em profundo acor- FREINET, C.. L’apprendimento del disegno.
do e sinergia com o todo o grupo de trabalho (ed. or. La méthode naturelle L’apprentissage
compartilhando passo a passo a evolução e as du dessin, 1975), Editori Riuniti, 1980.
modiicações ao longo do ano. Cabe ao grupo GOLOMB, C.. L’arte dei bambini: contesti cul-
de trabalho tornar viáveis essas experiências turali e teorie psicologiche. (ed. or. Child Art
de exploração e pesquisa das crianças, deinir in Context: A Cultural and Comparative Per-
as condições estruturais para o trabalho diário spective, 2002), Cortina, Milano, 2004
da creche, escolhendo critérios organizacionais INFANTINO, A. “Estágio e formação na práti-
coerentes: privilegiar a organização de peque- ca pedagógica em creches públicas italianas”.
nos grupos de crianças, lexibilizar a extensão Olh@res: Revista do Departamento de Edu-
dos ritmos do dia, disponibilizar objetos e mate- cação da Universidade Federal de São Pau-
riais ao alcance das crianças. lo. Unifesp, Dossiê Temático: Estágios curricu-
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191
10
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA
DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Sandra Regina Simonis Richter

Vocês que olham tudo é tanto começar-se no mundo quanto come-


com os olhos sempre abertos, çar um mundo no percurso de uma história já
sua lucidez nunca
se banha em lágrimas? constituída. Cada nascimento traz consigo a
irrupção da novidade, da imprevisibilidade e
Michel Serres da irreversibilidade. Não há, nessa perspectiva,
nem utilidade nem necessidade, mas plurali-
Profundamente imbricados, os atos de dade como “a” condição de toda vida política
brincar, traçar e criar emergem juntos no pra- (Arendt, 2004, p. 15). Cada singularidade, úni-
zer da ação lúdica de investigar e decifrar o ca em sua qualidade de insubstituível, cria seu
mundo. O humano, desde bebê, inaugura sen- modo próprio de coexistir na pluralidade do
tidos pelo prazer de mover-se e agir no mundo, mundo comum, ou seja, no público1 como o
pelo prazer de ser surpreendido pela sua ação, que pertence a todos: simultaneamente iguais
pela possibilidade de modiicar-se, de mudar e diferentes (Arendt, 2004).
o rumo das coisas pela decisão de iniciar um Para sublinhar a relevância pedagógica
gesto. Por isso, para Arendt (2004, p. 190), agir de considerar com Arendt (2004) a “pluralida-
signiica tomar iniciativa, começar, imprimir
movimento a algo que “não é o início de uma
coisa, mas de alguém que é ele próprio um
iniciador”. Nesse sentido, agir é como um se- 1 O termo “público” é aqui utilizado no sentido que lhe dá
Arendt (2004, p. 62) de ser “o próprio mundo, na medida em que
gundo nascimento ao manter estreita relação é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro
com a condição da natalidade na qual nascer dele. (...) tem a ver com o artefato humano, com o produto de
mãos humanas, com os negócios realizados entre os que, juntos,
habitam o mundo feito pelo homem”.

193
Sandra Richter

de”2 como condição do agir na convivência e olhar de outro modo as primeiras experiências
a potência transformativa de iniciar uma ação de riscar e rabiscar – além e aquém das teorias
no mundo, este ensaio aborda educação, arte e do “desenvolvimento gráico” – para reter o fe-
infância desde a íntima relação entre imagina- nômeno da potência3 dos bem pequenos agir
ção, jogo e desenho. Aproximar infância, arte e e iniciar um gesto no mundo no ato mesmo de
educação é estabelecer interlocução entre três aprender pelo disegno4 – desenho e desígnio
campos de estudos que apontam para a radical
– “a composição de diferentes acessos e expe-
experiência de começar. Como airma o poeta,
riências com e a partir do desenho –, projetan-
arte é infância. Arte signiica não saber que do percursos inusitados para uma linguagem,
o mundo já é, e fazer um. Não destruir nada tão antiga e tão permanente, em contínua re-
que se encontra, mas simplesmente não achar
nada pronto. Nada mais que possibilidades. solução” (Derdyk, 2007, p. 17).
Nada mais que desejos. E, de repente, ser reali-
zação, ser verão, ter sol. Sem que se fale disso,
involuntariamente. Nunca ter terminado. Nun-
ca ter o sétimo dia. Nunca ver que tudo é bom.
Insatisfação é juventude (Rilke, 2007, p. 192).

Tanto a infância quanto a educação e a


arte dizem respeito à temporalidade dos come-
ços. A experiência de começar é uma das mais
densas de sentido na convivência mundana e,
por isso, a intenção que orienta este ensaio é a
de convidar o leitor a acolher a complexidade As crianças pequenas, em sua presença,
que é iniciar o gesto de fazer algo aparecer ao
olhar – de aprender a trazer ao visível uma nar- 3 Cabe destacar que para Agamben (2006; 2008), estamos
destinados e abandonados à potência no sentido “(...) de que
rativa gestual – a partir da existência da crian- todo o seu poder de agir é constitutivamente um poder de não
agir e todo o seu conhecer, um poder de não conhecer” (Agam-
ça e não a partir de prévias explicações sobre ben, 2006, p.20).
ela ou sobre a ação de desenhar. Um convite a 4 Conforme Derdyk (2007, p. 21), citando Vilanova Artigas
(1967), “o ‘disegno’ do Renascimento, donde se originou a pala-
vra para todas as outras línguas ligadas ao latim, como era de
2 “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de esperar, tem os dois conteúdos entrelaçados, um signiicado e
sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém uma semântica, dinâmicos, que agitam a palavra pelo conlito
seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, que ela carrega consigo ao ser a expressão de uma linguagem
exista ou venha a existir” (Arendt, 2004, p. 16). para a técnica e de uma linguagem para a arte”.

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TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

em seu modo direto de interpretar e estabele- quenas na Educação Básica coloca ao pensa-
cer interações e signiicações com os outros e mento pedagógico a necessidade de reletir
consigo mesmas, subvertem crenças e pressu- suas concepções tanto da experiência da crian-
postos conceituais dos adultos ao mostrarem a ça pequena com a ação de desenhar quanto da
complexidade de viver um corpo “fenomênico relação entre educação e arte, pois a complexi-
indiviso”, ou seja, ao estarem “no social e no seu dade que tece a docência na Educação Infantil
corpo, nos dois meios ao mesmo tempo sem exige substituir as explicações e informações
nenhuma diiculdade” (Merleau-Ponty, 2006, das coisas e do mundo pela experiência do
p. 476 e 479). Nesse sentido, a fenomenologia corpo com as coisas no mundo. Supõe com-
emerge como potente condição para interrogar preender, com Gadamer (2005, p. 465), que “ex-
e abordar projetos pedagógicos voltados para periência contém sempre a referência a novas
a valorização dos riscos e rabiscos das crianças experiências. Nesse sentido, a pessoa a quem
pequenas ao favorecer a consideração do corpo chamamos experimentada não é somente al-
vivo em movimento no mundo: corpo que sen- guém que se tornou o que é através das expe-
te, que não é corpo em si, mas corpo em situa- riências, mas também alguém que está aberto
ção. Ou seja, em sua existência mundana. a experiências”.
Educar diz respeito ao acontecimento Nessa compreensão, torna-se importan-
que emerge dos encontros entre os adultos e as te a intencionalidade pedagógica de voltar-se
crianças, ou seja, entre modos de sentir e de pen- para a ação das crianças pequenas traçarem li-
sar em tempos diferentes. Aqui, acontecimento nhas como um fazer intimamente comprome-
não é o que se produz em um mundo, mas aber- tido com a tensão dos ensaios, das tentativas,
tura de um mundo. Por isso, Bárcena (2012, p. 67) dos desvios, das explorações, dos acasos e re-
airma ser a experiência da diferença entre tem- petições ocorridos no tempo do percurso para
pos, a descontinuidade temporal entre gerações, alcançá-las, pois tais tensões fazem parte dos
aquilo que especiica e possibilita a transmissão processos de igurar que a imagem plástica
pedagógica. A necessária inscrição no tempo e torna visíveis (Pohlmann, Richter, 2010).
na linguagem é o que nos torna educáveis, pois O ato de traçar linhas emerge na infân-
tanto a experiência do tempo quanto da lingua- cia como brincadeira, acolhendo e se nutrin-
gem diz respeito à potência transformativa do do da variedade de gestos que engendram
corpo em movimento no mundo. espaços de linguagem conigurados pela ínti-
A entrada dos bebês e das crianças pe- ma relação entre a tensão do jogo e a diversão

195
Sandra Richter

e alegria do regozijo que emerge da necessi- cia a um processo de observação e avaliação


dade vital de lançar o corpo à sensibilidade (valoração) marcado por prévias concepções,
de estar em linguagem (Richter, Berle, 2015). O permitam reter a alteridade linguageira entre
que importa, aqui, é como a criança formula adultos e crianças pequenas.
um sentido ao mundo que a rodeia: a criança Trata-se de resistir ao risco de nomina-
não sabe menos que o adulto, sabe de outro lizar, isto é, de converter um verbo (ação) em
modo (Cohn, 2005, p. 33). um nome ou substantivo e assim estancar a
Supõe compreender com Merleau-Pon- temporalidade do processo para reter um re-
ty (2006, p. 238) que “a diferença entre adulto sultado “inal”, ixar um produto, algo passível
e criança não é a diferença entre uma menta- de ser medido, quantiicado, comparado, ava-
lidade lógica e uma mentalidade pré-lógica. É liado. Para Von Foerster (1996), a explicação do
apenas a diferença entre um mundo percebi- mundo passa pelo modo como o explicamos
do”. Para Korczak (2006, p. XIII), a extrema dii- (“não vemos o que não podemos explicar ou
culdade dos adultos estabelecerem interações compreender”), isto é, como inventamos (in-
linguageiras e se comunicarem com as crian- go) explicações para o que acreditamos ver.
ças ocorre porque elas “utilizam as mesmas Propor outro olhar aos primeiros riscos
palavras [os mesmos gestos, os mesmos sons] e rabiscos realizados por crianças pequenas
que todos nós e nelas colocam um conteúdo exige o estranhamento do familiar para reter
completamente diferente”. o detalhe que nos coloca diante de uma no-
Adultos, ao observarem e valorarem vidade. Estranhamento capaz de promover o
algo, estão comprometidos com interesses, en- encontro ou o confronto com estranhas sutile-
volvidos em processos e interrogações que afe- zas que emergem do mistério da formação, do
tam este algo observado. Adultos interrogam movimento de tornar-se operador fabuloso da
como é o mundo para as crianças pequenas e e na linguagem. Aqui, como sugere Bachelard
só podem utilizar uma linguagem adulta. Não em sua obra voltada pra a imaginação poética,
há forma de traçar, nesta linguagem, como a não há vínculo da imaginação com a percep-
criança vê o mundo. Talvez, com as crianças ção, muito menos subordinação da imagem à
pequenas, fosse pertinente trocar os verbos ideia, mas acontecimento de linguagem.
“observar” e “valorar” ou “avaliar” por “produzir
com”, “interatuar”, “participar”, “compartilhar”.
Outros verbos que, ao favorecer a resistên-

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TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Obstáculo aos rabiscos das crianças pe- “lições da teoria”, entre saber manual e saber
quenas: primado do realismo intelectual, desconsideram o fundo cultural e
social tecido pelo poder auto-criador do hu-
A intenção de deter-se no fenômeno da mano agir e não-agir, de produzir e refazer o
potência da ação de riscar e rabiscar das crian- mundo no ato de interpretar e transigurá-lo
ças pequenas tende a apresentar uma série de em sentidos e signiicados no coletivo. A frag-
diiculdades aos parâmetros e distinções do mentação se desdobra nas concepções de
olhar adulto e a instalar paradoxos que sub- realidade a partir da polarização entre razão e
vertem quadros pedagógicos de referências, imaginação, entre teoria e prática, e instala o
dados por premissas educacionais insistente- esquecimento da ludicidade, a eliminação do
mente preservadas. Premissas que dizem res- prazer da atenção estética implicada em toda
peito às concepções de ludicidade, de imagi- ação que promove a integração entre sensível
nação e de desenho enraizadas na redutora e inteligível. Esse esquecimento do prazer lú-
oposição entre um “dentro” (subjetividade) e dico advém de uma “clareza analítica” que pro-
um “fora” (objetividade). A polarização entre jeta objetivos orientados pelos imperativos da
sujeito e objeto impõe a hierarquia da razão produtividade que outorgam à ação um papel
sobre a imaginação e engendra tanto a hege- de meio instrumental.
monia da palavra e da nomeação quanto le- Porém, quando a expectativa é pelos re-
gitima o processo analítico da imagem como sultados da ação, o que se nega é o processo da
semelhança e identiicação. O postulado da experiência (Gadamer, 2005, p. 461). A conse-
representação mantém a imaginação no plano quência imediata é a separação entre “pensar”
da psicologia como entidade mental, privada e e “fazer”, ou seja, a fragmentação simpliicadora
inobservável, no plano da ilosoia popular da nos modos de agir e estar em linguagem pela
criatividade como decalque, uma cópia, uma desconsideração à experiência linguageira do
segunda coisa e no plano da pedagogia como corpo sensível que age no mundo para inaugu-
livre representação da fantasia5. rar sentidos e tornar inteligível a convivência.
As teorias que sustentam o pensamento A cisão entre razão e imaginação emer-
pedagógico, historicamente demarcadas pela ge, no pensamento ocidental, da visão como
polarização entre a “sabedoria da prática” e as metáfora privilegiada do conhecimento deini-
do pela operação intelectual capaz de separar
5 Herança tanto da teoria empirista do conhecimento quan- a sombra (trevas e erros) da luz sobre as coi-
to da psicologia de inspiração behaviorista.

197
Sandra Richter

sas (pureza e verdade). A metáfora do conhe- e a perspectiva a correta adequação visual a


cimento como luz instala a percepção visual um modelo pré-visto (axioma da semelhança).
– o ver – como ato intelectual: um juízo de co- Portanto, há um alívio generalizado quando
nhecimento. Esse olhar racional põe o mundo as crianças passam a igurar algo reconhecível
como representação ou conceito: aquele que pelo adulto pois deixam para trás o “informe”, o
contempla o que vê, ao mesmo tempo identi- não-saber, o nada dizer! Há o esquecimento de
ica e analisa. Aqui, a imagem torna-se relexo que os primeiros riscos produzidos pelas crian-
ou espelho do real, subordinada ao olho como ças pequenas permanecem, transformam-se,
condutor da ação de igurar, e a imaginação metamorfoseiam-se no gesto do corpo tem-
torna-se irrealidade por vincular-se, por oposi- poralizado pela ação no mundo.
ção às “imagens reais”, à ilusão, icção, delírio, A tendência pedagógica em desconsi-
fantasia, alucinação, disfarce. Premissas hege- derar tanto a imprevisibilidade do gesto quan-
monicamente aceitas, sem muito interrogar, to a temporalidade do corpo sustenta projetos
pois enraizadas na polarização entre inteligível educativos na Educação Infantil que privilegiam
e sensível (Richter, 2005). apenas a espacialidade do contorno da ima-
A convicção pedagógica no postulado gem em detrimento dos ritmos do gesto que a
da representação – o que o “fora-objeto” apre- produz e a faz aparecer. Trata-se daquilo que a
senta e o “dentro-sujeito” re-apresenta como palavra é capaz de nomear e analisar: os temas
semelhança ou identidade – orienta e legiti- abordados ou “re-apresentados” geralmente no
ma a desvalorização aos modos das crianças espaço do suporte do papel branco A4.
riscarem e rabiscarem, atestando os primeiros Porém, destaca Merleau-Ponty (1996,
traços e linhas como etapa “inicial” a ser rapi- p.230), a experiência das crianças é sempre a
damente superada por não representar nada. A de uma totalidade: é talvez com a condição de
pedagogia alia-se à psicologia do desenvolvi- não falar de uma “representação do mundo” na
mento e à psicanálise em sua desconsideração criança que podemos alcançar a compreensão
à complexidade dos primeiros traços. da aderência lúdica às situações dadas como
No pensamento pedagógico vigora a característica fundamental da experiência lin-
concepção de que os rabiscos constituem guageira das crianças. A criança brinca porque
apenas uma etapa inicial a ser superada em gosta, porque pela brincadeira obtém satisfa-
sua não-identidade com as coisas, pautada na ção e divertimento no enfrentamento aos de-
crença objetivista ser da imagem o realismo saios e às provocações do mundo.

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TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Desde o nascimento, a criança é co-autora O que os rabiscos das crianças pequenas


de suas aprendizagens e co-promotora de seus expõem é o movimento formante do comple-
desaios, tendo as ações lúdicas alta prioridade xo processo de formação da forma6 em devir:
tanto para sua diversão quanto para o êxito de sua potência formativa. Não há aqui lingua-
suas iniciativas no mundo. Implica compreen- gem a deinir ou explicar, mas entrega à potên-
der com Merleau-Ponty (2011, p. 537) que “a lin- cia heurística7 das possibilidades linguageiras
guagem adquire sentido para a criança quando do traço e da linha. Potência que diz respeito
constitui situação para ela”. O paradoxo do rabis- à abertura de outras dimensões da realidade
co está em conigurar, na emergência espontâ- pelo prazer incessantemente renovado pelo
nea do gesto, um todo e, ao mesmo tempo, um jogo heurístico, pelo poder de busca a partir
ainda não ser. Entre a densidade e a incomple- “de um laboratório submergido e silencioso de
tude, entre a simultaneidade do completo e do tentativas, provas, experimentos para comuni-
incompleto, habita o sentido de tornar visível a car, organizar intercâmbios e interações” (Mala-
inclusão de um passado e o anúncio de uma for- guzzi, 2004, p. 16). Então o divertimento surge
ma por vir. Um futuro de linguagem fazendo-se como uma questão das transformações que aí
na repetição, na imitação, no devaneio, no pen- ocorrem. As crianças brincam porque gostam
samento ritmado pelo gesto. de brincar, e é precisamente no divertimento
que reside sua liberdade e seu caráter profun-
damente estético (Huizinga, 2000, p. 10; p. 5).
Na Educação Infantil, quando adultos se
detém no fenômeno da produção de traços
e das primeiras igurações das crianças pe-
quenas ocorre simultaneamente um fascínio
e uma recusa, uma simpatia acompanhada

6 O termo forma é ambíguo, sujeito ao risco de passar pela


leitura de simples contraposto de “matéria” ou “conteúdo”. Aqui,
forma é considerada como totalidade irrepetível em sua singula-
ridade, como dinâmica resultante de um percurso de formação
que conclui e inclui o movimento de produção que lhe dá “for-
ma”, ou seja, que lhe dá nascimento, que a faz “aparecer”.
7 Heurística – subst.. fem. - arte de inventar, de fazer descober-
tas; ciência que tem por objeto a descoberta dos fatos (Houaiss)

199
Sandra Richter

de reprovação. Ao prioritariamente abordar a no qual estávamos existindo, promovendo a


ação de desenhar como produto (“o” desenho), abertura a outras aprendizagens, a outros mo-
“bela-arte” ou “atividade artística”, desconside- dos de conceber o mesmo: nossa metamorfo-
ra sua relevância na ciência e nas realizações se. O gesto joga com possibilidades de percur-
técnicas ao apresentar às crianças pequenas sos que inauguram modos de olhar. O jogo de
interdições impostas por concepções de ima- traçar linhas, riscar e rabiscar, só alcança êxito
gem como espelho das coisas, por opção pelo quando permite a quem o faz seguir brincan-
“ensino da arte” (área de conhecimento), por do, projetando movimentos e deslocando-se,
restrições preocupadas em uniformizar modos seguir imaginando e tecendo a imprevisibili-
de imaginar através de visões para ver-obser- dade de alianças com outras tentativas. Seguir
var-analisar que visam puriicar o verdadeiro aprendendo.
do falso, o certo do errado, e assim, controlar os
perigos da icção e da fabulação das imagens Todos – crianças e adultos – riscam e ra-
que se desviam do “real”. biscam
O obstáculo pedagógico aos riscos e
De certo modo, todo mundo desenha. Trace-
rabiscos, na Educação Infantil, muitas vezes jamos um plano de trabalho, rabiscamos para
gravita em torno de expectativas dadas pela reletir melhor sobre um problema, para ex-
supervalorização de resultados imediatos, ren- plicar um endereço na cidade. O desenho se
torna mesmo uma escritura automática para
dimento e produção de semelhanças que não distrair a mão e a cabeça. O bloco de croquis
permitem considerar que a busca no ato de de- é como um diário realizado em qualquer can-
senhar é contínua no tempo da ação do gesto to, um convite à introspecção, à anotação do
pensamento. O caráter provisório do desenho
fazer aparecer linhas, e por isso não é possível recusa qualquer grandiloqüência. A rapidez, a
determinar – pré-ver ou pré-dizer – completa- lentidão, a violência, a fragilidade ou a volúpia
do gesto se mostra instantaneamente, através
mente como terminará. O momento signiica-
de um simples traço (Poester, 2005, p. 58).
tivo é aquele da admiração, no qual a criança se
surpreende a si mesma. O traço torna a ação do gesto visível. “O
A surpresa é um fenômeno que permi- gesto não é a reação nervosa a uma ação de
te enfrentar e reletir aquilo que damos por estímulo, mas a resposta do corpo humano
óbvio, favorecendo a transgressão de certezas ao mundo que o interpela” (Galimberti, 2006,
pelo estranhamento ao familiar, como outro p. 85). Porque os gestos não são isiológicos,
mundo desconhecido que intersecta aquele mas a mediação das intenções do corpo que

200
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

tendem a unir as coisas às ações que estas soli- do, ele é o seu próprio signiicado” e, por isso,
citam (Galimberti, 2006), os desígnios do traço pode jogar com sentidos e signiicados, com
redimensionam nossa relação com o mundo as coisas e com as pessoas. Como diz Gadamer
em seu poder de colocar sob os olhos aquilo (2005, p. 160), “todo jogar é um ser-jogado. O
que não vemos ou não podemos ver. Isto é, po- atrativo do jogo, a fascinação que exerce, resi-
dem ampliicar o real tanto no plano técnico8 de justamente no fato de que o jogo se asse-
e cientíico como no artístico ao permitirem nhora do jogador”.
passar do plano oculto ou intangível ao plano É o que nos diz Merleau-Ponty (2002)
disto que é mostrado, tornado visível (Richter, quando destaca que o desenho da criança,
2005). Essa é a complexidade da ação de dese- assim como do adulto, não pretende mostrar
nhar desde as primeiras experiências de riscar um sinal de identiicação “objetivo” do que vê
e rabiscar em algum suporte que receba a ins-
para comunicar-se com quem o olhará já que
crição de um gesto. Pelos devaneios da mão, o
sua inalidade é marcar no papel um traço de
traço designa
sua relação com as coisas. Aqui, não é o olhar
a transitividade do desenho que percorre os que domina, mas aquilo que desperta no
domínios da arte, da técnica e da ciência, cos- corpo e o instala no mundo, aquilo que fez
turando percepções e conceitos, dinamizan-
vibrar o olhar da criança – ou do adulto – e
do a inteligibilidade e a sensibilidade de pen-
samentos e ações engatados nas linhas que se virtualmente seu tato, seus ouvidos, seu senti-
projetam no espaço do mundo, provocando mento do acaso. Trata-se de dar um testemu-
tessituras de signiicados sempre emergentes
e em trânsito (Derdyk, 2007, p. 24). nho e não de fornecer informações (Merleau-
-Ponty, 2002, p. 186).
Podemos então pensar, com Leminski As produções igurativas – as igurações
(2009, p. 324), que desenhar “é uma ação vol- – por não serem espelhos idealizados, repre-
tada para o traço como materialidade, a linha sentação de uma ausência, mas “a exibição
como coisa do mundo. Um desenho – uma i- real de uma presença simulada” (Lichtenstein,
guração – propriamente não tem um signiica- 1994, p. 180), tornam a abordagem dos riscos
e rabiscos das crianças um imenso desaio à
pretensão de submetê-las ao domínio da ade-
8 Para Galimberti (2006, p. 87), o pacto original entre corpo quação entre palavra e mundo. Esse o desaio
e mundo que o gesto evidencia, é a condição de onde parte o
agir técnico, que permite ao humano, de per si inapto para o pedagógico. Diante da hegemonia da palavra,
mundo, constituir um mundo possível.

201
Sandra Richter

do tudo dizer e nomear, explicar e analisar, di- já conhecido no corpo adulto, ou seja, o que
icilmente encontramos no tempo e espaço da o adulto apresenta para a criança como expe-
Educação Infantil adultos dispostos ou dispo- riência cultural acumulada e o que a criança
níveis para brincarem com linhas, com as crian- projeta para o adulto como tempo ingênuo de
ças compartilharem a experiência lúdica de uma arte e de uma ciência adiante, ser aquilo
desenhar e inventar percursos ao olhar. que permite constituir repertórios para o devir,
Cabe advertir que não se trata nem de um repertório para atualização futura.
desenhar para a criança nem como uma crian- Porém, paralisados pela ideia de “be-
ça, muito menos “ensinar” a desenhar como la-imagem” – desenho “certo” ou “bem-feito”
adulto, mas desenhar com a criança como adul- – muitos adultos esquecem que tanto a arte
to capaz também de brincar com suas possibi- como a técnica e a ciência recorrem aos mes-
lidades de igurar e conigurar sentidos através mos meios em sua investigação do universo:
de traços e linhas. Como diz Deleuze (2003, p. com alguns traços e linhas podem contrair a
21), “nunca se aprende fazendo como alguém, imensidão do mundo não apenas para tra-
mas fazendo com alguém”. Assim como pode- duzir sua profundidade como para alcançar a
mos brincar com palavras e poetizar o vivido e riqueza da multiplicidade de horizontes que
o possível de ser vivido com as crianças, pode- ampliicam e favorecem sua aproximação
mos brincar ao desenhar, cantar, falar e dançar através de uma apropriação: a instauração de
com as crianças e não “para” elas. Não se trata uma inteligibilidade.
de ensinar uma “atividade” – o que fazer – mas
de viver com as crianças a ludicidade dos en- Riscos e rabiscos: linhas brincantes
saios do fazer, de efetuar a interlocução cultu-
ral entre o que adultos sabem fazer e o que as Lançar um olhar fenomenológico para
crianças podem ensaiar fazer. os primeiros traços das crianças pequenas no
Encontros entre adultos e crianças con- cotidiano da educação infantil é promover
iguram movimento inindável – ou existencial abertura à surpresa que emerge do interesse
pela experiência lúdica de traçar linhas – pelo
– de aprendizagens no qual ambos sempre
tempo da ação do gesto jogar com a ação de
aprendem. Implica compreender com Michel
fazer aparecer linhas em alguma superfície – e
Serres (1993) a airmação de ser a mistura en-
não apenas pelos resultados visuais alcança-
tre o não saber ainda do corpo da criança e o
dos ou esperados. Ação implica iniciativa do

202
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

corpo, signiica considerar o ponto de vista de é o que determina seu aparecer no processo
quem a realiza, de quem toma a decisão de ini- mesmo de sua produção. A repetição instrui ao
ciar um gesto que dá outro rumo às coisas. ensinar a realizar escolhas (Bachelard, 2000).
Riscar e rabiscar diz respeito à expe- Repetição não supõe a redutora com-
riência lúdica de tornar visível a ação do cor- preensão de “fazer igual” – o mesmo – mas
po traçar linhas que não delimitam objetos ou realimentação que implica a continua reela-
iguras, mas propõem e instauram percursos boração do que aconteceu antes. Experiên-
que se inscrevem no tempo: uma linha renun- cias não apenas imediatamente agradáveis,
cia; uma linha repousa ao se deter. Uma linha mas realimentadoras de experiências por vir.
se fecha; outra se arrendonda; outra alonga o Benjamin (1994) destaca o equívoco adulto de
olhar. Fios partem ainda, lenta ou bruscamen- observar a brincadeira da criança sob o ponto
te, forjando uma escritura temporal que anun- de vista da imitação enquanto cópia ou trans-
cia a passagem da linha ao signo. Movimento crição passiva. Brincando e jogando com linhas
intenso que expõe a qualidade expressiva da a criança explora seu poder criador-inventivo
linha profundamente comprometida com os ao exercer e exercitar a liberdade de repetir e
ritmos do corpo. A linha emerge da “pontinha re-iniciar movimentos no mundo.
da mão” como um sismógrafo muito sensível Para Cattani (2004), a repetição é a trans-
do que ocorre no corpo9. gressão, é o modo – o procedimento – de per-
A linha “– estrutura óssea do desenho seguir uma questão plástica (uma linha, um
– capta, delineia, designa, atrai, arrasta, puxa, modo de traçar). É experimentação, investiga-
traceja, lança, planeja, projeta como vetores ção, interrogação, envolve o jogo, o acaso, as
de ação que se estendem dos traços do pen- lógicas combinatórias (Cattani, 2004, p. 80).
samento” (Derdyk, 2007, p. 18). Na iniciativa de Ações que não são privilégio das crianças, mas
realizar o gesto de traçar o importante é tentar que com elas e nelas começam. A repetição é
fazer, é ensaiar gestos sem saber de antemão o o cerne da brincadeira: a criança recria a expe-
que se “deve fazer” e “como fazer”, mas apren- riência, começa sempre tudo de novo, desde o
der a fazer como um perfazer que acontece no início. Nada dá mais prazer que “brincar outra
processo mesmo de equacionar o acaso que o vez” para saborear repetidamente, de modo
produziu. Por isso, a historicidade do percurso mais intenso, os mesmos êxitos e triunfos (Ben-
9 Citação anotada a partir da escuta de Edith Derdyk no Se-
jamin, 1994, p. 253). A fascinação, o poder de
minário Linguagens e Infância, evento ocorrido na Faculdade de envolvimento dados pelo encanto, pela excita-
Educação da Universidade de São Paulo - USP, em 2011.

203
Sandra Richter

ção, pela tensão da expectativa, pela alegria da partir de mudanças de direção que acontecem
repetição, pela distensão após o esforço, fazem durante o percurso do gesto sobre o suporte.
do divertimento uma abertura existencial ao O gesto enlaça o movimento em seu futuro, o
mundo capaz de nos impregnar de uma ale- signiicado do gesto, da iguração, que há de
gria de viver elementar. Uma alegria que é mais desenhar-se. O gesto plástico é movimento
que o prazer que dão as coisas sérias, úteis e valorativo: vamos fazendo e vamos avaliando.
agradáveis. Essa alegria emerge do transbor- É ato de estar presente, fazer-se real, viver que
damento da vida, de uma ampliação do viver remete ao futuro, constante reformulação de
capaz de promover a necessária suspensão suas próprias intenções. Os traços mostram-
temporária das ações no cotidiano. Essa ultra- -se sempre inacabados, sempre atuais em suas
passagem dos limites da realidade física, pro- repetições. Cada marca contém a gestação de
movida pelo divertimento, deine por excelên- outra, o germe de outra marca, engendrando
cia o lúdico como dimensão primal da vida. O
um encadeamento.
divertimento resiste a toda análise e interpre-
Pela repetição, o gesto e sua marca for-
tação lógicas porque se ancora na dinâmica de
jam e inventam percursos para o olhar (que é
valorar e signiicar o vivido no ato mesmo de
diferente do olho conduzir a ação do gesto).
revivê-lo pela imaginação (Bachelard, 1990).
Tentar é jogar com possibilidades. Tentar é ta-
Os primeiros traços são marcados pelo
tear, é projetar movimentos, é brincar, é imagi-
acaso. Exigem da criança disponibilidade para
nar e, por isso, a tentativa joga com seu tempo,
a investigação, para a ação de perseguir gestos
com seu ritmo, com seu valor, pois “o movi-
que não sabem como terminará. Nesse movi-
mento de exploração lúdica dos traços, mão mento que é jogo não possui nenhum alvo em
e linha são inseparáveis: ensaiam, buscam, que termine, mas renova-se em constante re-
fazem e refazem, alternadamente sonham e petição” (Gadamer, 2005, p. 156). Por isso, as-
pensam no jogo das aparências. Da repetição sim como “o luxo contínuo do rio de Heráclito,
emerge o vínculo que especiica a brincadeira, nunca se desenha o mesmo desenho, nunca o
termo cuja origem deriva de brinco, do latim traço da linha será igual. Em permanente mu-
vincùlum – liame, laço, atadura. tação, a natureza do desenho é sempre a mes-
A repetição dos traços vincula-se à va- ma e sempre outra!” (Derdyk, 2007, p. 17).
lores rítmicos nos quais as linhas são vetores, As linhas rabiscadas arrebatam a visão
direções, intervalos. Um espaço plasmado a pela espontaneidade do movimento que en-

204
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

frenta o não formado ainda. Ao invés de uma No percurso da ação de desenhar não há
visão já conigurada, uma forma pré-vista, viabi- subjetividade nem objetividade, mas evento,
lizam um mundo em formação, em tentativa de pois nesse fazer não há comando – domínio da
formar-se a partir de lacunas e supressões. Essa ação – mas a surpresa que emerge da impre-
supressão é mais importante para a eiciência visibilidade dos tateios e dos acasos da ação
da visão que a nitidez das igurações deinidas exploratória dos traços sempre inacabados,
em todos os seus detalhes. A clareza de deta- sempre outros. Movimento aberto ao devir, ao
lhes não exige nada do olhar, nenhum esforço inusitado que é iniciar a coexistência do gesto
para colocar outras imagens na imagem, de es- impulsivo e o traço intencionado, tão diferente
tabelecer correspondências e relações igurati- do gesto e do traço ensinados. Implica com-
vas. Há mais para projetar pela imaginação no preender com Merleau-Ponty (1991, p.79), que
vago e no impreciso, do que no já visualizado os traços “saem de mim como os meus gestos,
pela percepção. Há mais coisas para ver no que são-me arrancados pelo que quero dizer como
se oculta do que naquilo que se mostra. A aten- os meus gestos pelo que quero fazer”. Meu cor-
ção ampliica-se investida pelo poder de ver a po pode signiicar para além de sua existência,
intimidade do avesso das coisas, sua imensidão ou seja, pode começar, anunciar ou recomeçar
oculta. Essa imensidão está em nós e não nas e implantar um sentido naquilo que não tinha.
coisas, no eco que reverbera em nós. Nesse sentido, o ato de riscar e rabiscar
Nos percursos dos rabiscos, a visão adul- não supõe um repertório de gestos ou de ima-
ta é exigida a voltar-se para os sentidos em pro- gens, mas certo modo de agir e ser surpreen-
cesso de constituição formal de um sentido. Os dido pelo que aparece, pois não traduz, na
começos, as iniciativas das crianças riscarem e criança que traça e desenha, um pensamento já
rabiscarem para brincar com linhas subvertem feito, mas o consuma. O espaço é ocupado an-
petriicadas convenções de reconhecimento tes por acontecimentos do que por percepções
adulto ao expor o princípio poético do proces- ou formas formadas, pois se trata de um espaço
so de artifício plástico da forma. As sutis trans- de afetos e não de propriedades observáveis.
formações surgem como um passeio por ter- O que aí vigora são valorações e não medidas.
ritórios desconhecidos no qual a linha assume Ou seja, vigora uma percepção háptica10 e não
uma via de acesso ao compromisso vital com
10 Sob sugestão de Merleau-Ponty (2011), opto por háptico –
o mundo de retirar desse encontro sentidos a em oposição ao óptico – pelo termo não opor visão e tato, suge-
partir da expressividade do gesto. rindo que o olho pode tocar assim como o tato pode engendrar
visões.

205
Sandra Richter

óptica. O espaço é ocupado por intensidades comerá os mesmos alimentos que a lagarta.
A única coisa que se mantém é o sistema ner-
rítmicas, qualidades tácteis, forças e ruídos, in- voso. Assim é que a lagarta se destrói como
tervalos e silêncios. Um espaço de linguagem tal para poder constituir-se como borboleta
esquadrinhando percursos no qual a criança (Morin, 1996, p. 286).
não está “diante” dele, tampouco está “dentro”:
ela está nele, participando do devir linguageiro A metamorfose, em Bachelard (1995), é
do acontecimento plástico. Torna-se, aqui, im- meio de concretizar de imediato um ato vigo-
portante compreender com Gadamer (2005) roso: a conquista de outro movimento, outro
que o humano não tem linguagem, ele é lingua- tempo. As primeiras aprendizagens diferem de
gem; que compreensões não ocorrem com, mas todas as demais porque não podem tornar a
na linguagem, ou seja, ao estar em linguagem. serem vividas. A primeira vez é insubstituível
em seu acontecimento corporal único e sin-
Entre o sensível e o inteligível: as meta- gular, pois não podem voltar a serem apren-
morfoses do gesto e da linha didas, apenas repetidas (Richter, 2005). Supõe
compreender, com Bachelard (1995) e com
O enigma do humano está em sua po- Morin (1996, p. 286), que a ação de aprender
tência transformativa – suas metamorfoses – a emerge como ação de nos metamorfosear, ou
partir das primeiras experiências de aprendiza- seja, como transformação radical daquilo que
gem no e com o mundo. Transformações ocor- em nós permanece. Permanece em nós por-
rem quando algo passa a acontecer de outro que o corpo “lembra de tudo, sem qualquer
modo e não quando desaparecem. No que foi diiculdade ou impedimento. (...) a inteligência
transformado sempre permanece aquilo mes- humana se distingue da artiicial apenas pelo
mo que possibilitou a sua transformação (San- corpo” (Serres, 2004, p. 18) e, por isso, para
tos, 2003, p. 26). O processo da metamorfose é Bachelard (1995, p. 106), “na inteligência não
delicado, pois implica mudança radical: todo o há nada que não tenha estado primeiro nos
ser transforma-se mantendo-se. músculos”. Aqui, o corpo em movimento não
apenas se desloca no mundo, mas é capaz, nas
Para que a lagarta se converta em borboleta, palavras de Serres (2004, p. 139), “de todas as
deve encerrar-se numa crisálida. O que ocor-
re no interior da lagarta é muito interessante; metamorfoses possíveis; se ele não as execu-
seu sistema imunológico começa a destruir ta de maneira perfeita, ele sabe, pelo menos,
tudo o que corresponde à lagarta, incluindo simulá-las ou imitá-las”. Portanto, não é trivial
o sistema digestivo, já que a borboleta não

206
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

o modo como podem acontecer interações lú- basta recordação: têm que serem transmuta-
dicas entre adultos e crianças pequenas com a dos, reinventados, recontados, refeitos, desde
ação de riscar e rabiscar na Educação Infantil. os últimos aos atuais, em um movimento que
Contra a crença geral, os primeiros tra- é tanto de conservação como de renovação.
ços, os riscos e rabiscos, não terminam, não Para aprender não basta explorar, manipular,
constituem mera “etapa inicial do desenvolvi- falar sobre, há que refazer, recontar, rearranjar
mento” – seja do humano seja do graismo – os próprios movimentos.
pois permanecem, tem continuidade, se trans- Os riscos e rabiscos, na repetição inven-
formam e duram em suas metamorfoses ao tam-se, recomeçam, retomam, reinventam-se,
nos mostrarem que o fazer é sempre produzir11 complexiicam-se em atualizações que vão en-
o mesmo de modos diferentes. Pela repetição gendrando movimentos transigurativos que
– que o corpo e a memória permitem – os ris- nos faz aprender a ver – e agir – de outros modos,
cos e rabiscos se complexiicam em relações porque espaços de linguagem se alteraram e já
possíveis para constituir o que permanece em não é possível ver e ter as mesmas visões. Não
nós não tanto como “aquilo” ou “o que” apren- são gestos superados. Coniguram ritmos, duram
demos, mas o modo como aprendermos a fa- em suas descontinuidades. Por serem descontí-
zer-pensar “aquilo”. Os primeiros gestos que o nuos podem ser re-arranjados, podem começar e
corpo aprende são possibilidades para trans- recomeçar “outra vez” para inaugurar outros ges-
formar – atualizar – outras aprendizagens. tos e outras marcas. Não somos imóveis, o corpo
Para que os primeiros riscos e rabis- se movimenta, desloca-se, sedimenta gestos e
cos – as primeiras marcas – permaneçam não marcas no corpo. A recursividade do gesto tem-
poraliza-se na repetição mesma.
11 O verbo produzir é aqui compreendido no sentido pleno e Nessa abordagem, prévias concepções
diverso que Morin (2002, p.199-201) restitui ao sentido do termo:
“Produzir signiica, no sentido principal para nós aqui, conduzir de “arte” e suas adjetivações em contemporâ-
ao ser ou à existência (...) a partir de materiais brutos. A geração nea, moderna ou outra, não permitem pensar
de um ser por um outro é a forma biológica inal da poesia”. As-
sim, Morin utiliza o termo poiesis para devolver ao termo produ- a potência das crianças pequenas começarem
ção sua conotação criadora – seu caráter genésico de interações um gesto no mundo ao trazerem a condição de
criadoras – diante da conotação tecnoeconômica que o aprisio-
nou à noção de fabricação repetitiva de bens materiais contraria, um olhar já determinado por sua nomeação,
portanto, à ideia de criação: “é preciso notar que a ideia de cria-
ção está longe de ser contrária à de produção: toda produção
ou seja, por prévias classiicações e discursos.
não é necessariamente criação, mas toda criação é necessaria- Prévias expectativas que impedem compreen-
mente produção”.

207
Sandra Richter

der que “arte não se sabe, se faz para saber” Em Bachelard (1988), a qualidade das in-
(Derdyk, 2010, 34). terações não provem dos aspectos observáveis
Acolher a tendência, no campo educa- e conhecidos do mundo, mas do envolvimen-
cional, de considerar a linguagem do desenho to com os valores que emerge desta interação.
como “tradicional” diante das produções ar- Os sentidos produzem sentidos pela vontade
tísticas contemporâneas, torna-se no mínimo de olhar para o interior das coisas, tornando a
complicada quando o assunto é educação de visão aguçada, penetrante, para além do pano-
crianças pequenas. O que se poderia dizer tra- rama oferecido à visão.
dicional são os critérios ou discursos em torno Já não se trata de uma curiosidade con-
da ação de desenhar pautados na redutora templativa e passiva, mas de uma curiosidade
concepção – tão datada quanto localizada – de agressiva porque inspetora, investigativa, pro-
vocando naquela criança curiosa que penetra
arte como relexo ou identiicação de um “real”
na mundanidade do mundo a constituição em
ditado pela nomeação de uma racionalidade
si mesma de planos diferenciados de profun-
simpliicadora. O discurso sobre arte é que é
didade que a conduz ao extremo da sensibili-
datado, histórico. Porém, como potência de
dade, aquela que promove a fusão entre corpo
pensamento e experiência de linguagem dese-
e mundo. A complexidade está em considerar
nhar e pintar não são “tradicionais” porque não
com Bachelard (1989) o limiar entre o medo e
são categorias! Desenhar (assim como pintar,
a curiosidade que acompanha toda ação inicial
modelar, esculpir) é gesto no mundo. Esquecer
da criança sobre o mundo, pois
o caráter experimental e operativo da arte é
desconsiderar o corpo que age no mundo e o o medo trava a curiosidade (...) Gostaríamos
transigura como modo de torná-lo inteligível. de ver e temos medo de ver. Eis o limiar sen-
sível de todo conhecimento. Nesse limiar o
O encontro com “as coisas da arte” (Rilke,
interesse ondula, perturba-se, volta. (...) Não
2007) é sempre contemporâneo à experiência raro revela-se aí estranhas sutilezas. Como au-
sensível que só pode emergir em presença – mentam as ondulações de medo e curiosida-
de quando a realidade não está presente para
o inquietante perdura, permanece presente,
moderá-las, quando se imagina! (...) imagens
nos instala no presente – no aqui e agora do efetivamente imaginadas, realmente dese-
encontro do corpo sensível, portanto transfor- nhadas (...) estamos em presença do ato au-
mentativo pelo qual a imaginação ultrapassa
mador, com a produção artística. Porém, cada
a realidade (Bachelard, 1989, p. 122).
vez menos o corpo é solicitado. Permanece a
análise, a abstração, a explicação.

208
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Para Bachelard (1988, p. 113), implica in- ção Infantil como tempo e lugar de aprender
verter ou substituir a percepção pela admira- a encantar-se com o ato lúdico de estar em
ção para acolher os valores daquilo que se per- linguagem, como espaço formativo de tem-
cebe, pois é essa capacidade de ultrapassar o poralização de um corpo que tem que apren-
percebido que faz a imaginação reencontrar e der a alternadamente pensar e sonhar, idear e
prolongar as forças que estão no mundo. devanear. Complexiicar interações no e com o
Acompanhar o tempo do aparecer dos mundo pelo ato de narrar, recontar e refazer o
traços das crianças pequenas supõe adentrar vivido: aprender a magicar e a imaginar.
no movimento de seus riscos e rabiscos e com
elas imaginar. Admirar-se. Compartilhar uma Referências bibliográicas
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211
11
PARA ALÉM DOS ACALANTOS:
A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

Aruna Noal Correa

O acalanto, ou as cantigas de ninar, é


entoado pelas pessoas de maneira cultural.
Pergunte-se sobre algumas canções de sua in-
fância, ou das infâncias de seus ilhos. Em que
momento o adulto canta para acalantar o bebê,
em que situações? Em geral, quando os bebês
estão chorando, cansados, ou por um ato de
prazer, de relacionar-se com eles. E na creche
não é diferente; os adultos também cantam
para os bebês dormir, tranquilizá-los ou em
uma relação afetiva pessoal com os pequenos.
E o acalanto, dentre outros, é um dos primeiros
ritmos que o bebê ouve após o nascimento2.
A partir dessa breve introdução, viso res-
gatar uma das formas pelas quais observo que a
música está conectada ao cotidiano dos bebês.
Instrumentos musicais originais incorporados ao
cotidiano dos bebês em berçário (Davi1) E, nesse sentido, o capítulo que se apresenta,
dispõe sobre uma visão de bebê capaz, que pro-
duz conhecimento, cultura, sons e porque não,
1 As imagens apresentadas neste capítulo são dos bebês par-
ticipantes de pesquisa de doutorado, que contou com um Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido para uso de suas imagens
em meios acadêmicos. 2 Com base em citação de Lydia Hortélio (1977).

213
Aruna Noal Correa

música. Foi nessa direção, que a tese, a qual este [...] a criança é percebida como um outro, como
um diferente, mas não como adulto incom-
artigo está conectada, se desenvolveu.
pleto, impotente, mudo ou gago. É percebida
Muito disto, em contrapartida a uma como ser competente, em sua inteireza, capaz
visão de bebê considerado como um sujeito de soisticadas formas de comunicação, mes-
mo quando bebê, estabelecendo trocas sociais
pequeno e frágil, que vive o entremeio entre a
com coetâneos e adultos, através de uma rede
ênfase que socialmente relegamos ao momen- complexa de vínculos afetivos (p. 213).
to do parto, e as potencialidades do vir a ser, de
alcançar determinadas capacidades. Gottlieb Este bebê potente entra em contato com
(2009), em expressivo texto acerca de onde fo- uma nova gama de relações e experiências
ram parar os bebês que conhecemos, sugere quando passa a frequentar a creche. A creche,
que a atenção despendida pelos pesquisado- que no Brasil abrange a faixa etária de zero a
res para com os bebês é quase inexistente, “em
cinco anos, na Itália corresponde ao nido, no
quase toda a literatura antropológica bebês são
qual frequentam as crianças bem pequenas até
frequentemente negligenciados, como se esti-
os três anos de idade. O berçário dos bebês bra-
vessem fora do escopo tanto do conceito de cul-
sileiros, na Itália corresponde a um espaço no
tura quanto dos métodos da disciplina” (p. 313).
interior do nido denominado lactário, no qual
Acrescentando que o bebê é percebi-
os bebês, que também identiico como crianças
do pela clara dependência conectada ao sexo
bem pequenas, ocupam com maior frequên-
feminino, a aparente ausência de memória
quando adulto acerca desta época da vida e in- cia. O que não inviabiliza que os bebês ocupem
capacidade de comunicação, com ínimo grau suas demais dependências.
de racionalidade, dentre outros fatores men- A creche italiana não é assistencialis-
cionados pela autora. Expondo que “uma ava- ta, não identiica a criança como “aluno” “[...]
liação intercultural adequada dos bebês pode apesar de incluir, em seu ideário, a garantia da
também nos ajudar a superar nossas próprias continuidade com a pré-escola e a escola; por-
convicções acerca da natureza da natureza e tanto, apesar de ser uma instituição educativa,
da natureza da cultura” (Gottlieb, 2009, p. 327). diferencia-se da escola” (p. 213), e ainda, não
A compreensão que enfatizo, está vin- objetiva preponderantemente a preparação
culada à concepção de criança e bebê italiano. do futuro adulto. A creche propicia “[...] que a
Para tanto, tomo como base o trecho extraído criança seja hoje alguém com muita imagina-
de Faria (1998), no qual a autora expõe: ção para, quando adulta, ser capaz de cons-
truir uma sociedade diferente, onde convivam

214
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

crianças e adultos diferentes dos atualmente sob muitas origens. Suponho que essa concep-
existentes” (Faria, 1998, p. 213). ção, acerca dos bebês explorarem o cotidiano
Para além dos acalantos, este capítulo de maneira sonoro-musical, possibilitará, de
traz arraigada, uma vertente permeada pela certo modo, a eles, construir referências musi-
perspectiva de ver os bebês a desenvolver o cais particulares.
seu potencial sonoro-musical, como crian- Principalmente, porque ao pensarmos na
ças ativas, protagonistas da ação de explorar música dos bebês, “[...] quase sempre remete-
musicalmente o contexto que os cerca. Foi mos às canções de ninar ou acalantos [...], [e] é
durante o processo do doutorado e do aden- interessante notar que relatos do uso de música
tramento nas relexões acerca da pedagogia com bebês e crianças pequenas existem desde
da creche italiana, e da sociologia da infância, a antiguidade [...]” (Ilari, 2006, p. 271). Época em
que acreditei que poderia discorrer acerca das que se compreendia a música a partir da pers-
potencialidades sonoro-musicais dos que dei- pectiva da epistemologia da palavra acalanto
xaram a muito tempo, de serem considerados
(Huizinga, 2000, p. 118), sem observar que a mú-
meros receptores de conhecimento (Redin,
sica também pode originar-se com os bebês. O
2005), e de serem ouvintes passivos e pouco
que deixa transparecer, que não trato em minha
soisticados (Ilari, 2002, p. 84). Concepções
pesquisa de doutorado de uma novidade, e sim
que icaram em um tempo no qual todos os
de tema que envolve crescente relexão.
conhecimentos eram um pouco mais limita-
dos.
Considerações acerca de conceitos que
Ainal, como já dizia Margaret Mead, crianças nos fazem compreender a música pelo
existem em toda parte, e por isso podemos viés dos bebês
estudá-las comparando suas experiências e
vivencias; mas essas experiências e vivencias
são diferentes para cada lugar, e por isso te- Antecipadamente, podemos pensar
mos que entendê-las em seu contexto socio- num processo formativo precoce com o uso
cultural (Cohn, 2005, p. 26).
da música (questões que envolvem a formação
pensando no futuro da criança) ou, em um pro-
As crianças são diferentes também em
cesso conectado a estimulação de diferentes
seus tempos, em épocas, e vivem infâncias
áreas do cérebro (neurocientiicamente falan-
totalmente diferentes; o que permite que ob-
do), e que certamente é uma verdade. Entre-
servemos o quanto a educação musical para
tanto, viso com a investigação, compreender
bebês pode ser múltipla, abarcando vivências

215
Aruna Noal Correa

aquele processo de construção do conheci- aprendizagem e conhecimento diário dos pe-


mento sonoro-musical que parte do bebê, que quenos. Dessa forma, trabalha-se com o ima-
tem início com sua curiosidade explorativa3, e ginário dos bebês, o que passa por um modo
que tem a ver com o contexto em que ele faz de ver além daquilo que lhes é permitido ma-
determinadas explorações. nipular.
Acreditando, a partir do que expõe Ila- Os bebês, e a crianças bem pequenas, são
ri (2006, p. 273), que “os bebês são ouvintes perspicazes, criativos, e esta criatividade vai além
competentes desde muito cedo”, e que é o seu do modo de ver do adulto. Nesta proporção, se-
entorno que potencializa suas experiências ria incoerente ignorar a ação do adulto nas ela-
nas mais variadas áreas do conhecimento. Um borações dos bebês. Sobretudo, observo, com
ambiente rico sugere aos bebês curiosidade base em Benjamin (2011, p. 96), que não é possí-
com relação as mais diversas áreas do conhe- vel organizar algo para as crianças somente,
cimento. Acerca disto, Manfred Spitzer (2007,
[...] em um âmbito da fantasia, no país feérico
p. 181) sugere que “[...] as crianças precisam de
de uma infância ou arte puras. O brinquedo,
um ambiente interessante e a sua curiosidade mesmo quando não imita os instrumentos
deve ser satisfeita [...]” (p. 200), pois “[...] os be- dos adultos, é confronto, e, na verdade, não
tanto da criança com os adultos, mas des-
bés não ‘metem coisas na cabeça à força’, mas tes com a criança. Pois quem senão o adul-
aprendem muito rapidamente e muito [...]” (p. to fornece primeiramente à criança os seus
181). brinquedos? E embora reste a ela uma certa
liberdade em aceitar ou recusar as coisas, não
Essa vertente de pensamento tornou-se poucos dos mais antigos brinquedos (bola,
mais coerente quando conheci os espaços das arco, roda de penas, pipa) terão sido de cer-
escolas4 italianas de Reggio Emília. Nas quais ta forma impostos à criança como objetos de
culto, os quais só mais tarde, e certamente
as vivências ocorrem em especial, a partir dos graças a força da imaginação infantil, transfor-
materiais que são ofertados cotidianamente, maram-se em brinquedos.
mas também construídas pelos bebês para
além do que é proposto pelos adultos, que O que signiica dizer que os materiais, ob-
se organizam em função das necessidades de jetos e instrumentos podem compor o espaço/
tempo do berçário sem a necessidade e a previ-
são de objetivos, usos e funções. Voltando o olhar
3 Termo salientado na medida em que serve à pesquisa como à perspectiva da pedagogia da creche italiana, o
ênfase para a curiosidade, mencionado por Benjamin (2011).
4 Em nota de rodapé anterior, mencionei os nidos e
espaço do berçário organizado pelos adultos lhes
scuollas’dell infanzia italianos. oferece três coisas importantes, três elementos

216
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

que se entrelaçam: o espaço físico para explorar, infantil sem cantar com as crianças.
o entorno humano e o contexto deste entorno E assim o é, mas como algo naturalizado,
(Malaguzzi apud Hoyuelos, 2004, p. 134). marcadamente corriqueiro aos bebês. Ou seja,
Nessa conjunção, ica clara a aposta ita- neste sentido a música e o canto, mais espe-
liana, que engloba também, a dimensão da fan- ciicamente, são incorporados por valores do
tasia, do envolvimento da imaginação dos bem adulto, do espaço/tempo em que é desenca-
pequenos. São chaves, folhas, sementes, objetos deada, e do bebê que está envolvido naquela
que corriqueiramente não entrariam na sala de ação. É permeada pelo sentido do acalanto,
berçário, mas que potencialmente são investidos que ofereci no início deste capítulo.
nestes espaços na esperança de que a imagina- Dewey (2010, p. 97) sugere que:
ção da criança pequena permitirá a construção
de processos exploratórios variados. Em geral, há uma reação hostil à concepção
da arte que a liga às atividades da criatura viva
O que nos remete a compreender que os em seu ambiente. A hostilidade à associação
espaços de berçário podem ser enriquecidos das belas-artes com os processos normais do
também no que se relaciona a área de música. viver é um comentário patético ou até trágico
sobre a vida, tal como comumente vivida. É
Características simples agregadas ao cotidiano
somente pelo fato de a vida ser usualmente
dos bebês torna instigante a exploração sonoro- muito mirrada, abortada, embotada ou car-
-musical dos pequenos. Desse modo, “o desen- regada que se alimenta a ideia de haver um
volvimento cognitivo-musical deve-se à progres- antagonismo intrínseco entre o processo da
vida normal e a criação e apreciação de obras
siva diferenciação e reorganização dos esquemas da arte estética.
musicais, que se tornam mais reinados em fun-
ção da estimulação do ambiente” (p. 115) expõe Pois advém, em grande parte, da cultura
Cecília França, em artigo publicado em 2008. musical que o adulto construiu anteriormente.
Ao pensarmos sobre a organização do Trata-se de uma música que cantamos porque
cotidiano dos bebês na creche, observamos temos vontade. O que aqui é proposto, é que
que “[...] a música tem um papel importante no necessariamente não será uma rotina voltada
desenvolvimento e na rotina da criança pré-ver- à música que permeará essas descobertas, mas
bal” (Ilari, 2006, p. 296). Assim como na escrita de
inicialmente, as possibilidades oferecidas pelo
minha dissertação (Correa, 2008), quando pude
contexto de berçário que trará essa construção
reletir acerca de uma das narrativas mais mar-
sonoro-musical à tona.
cantes das professoras de educação infantil en-
Como menciona Spitzer (2007), em ci-
trevistadas, quando uma delas mencionou que
tação anterior, os bebês precisam de seus
não há como entrar em uma sala de educação

217
Aruna Noal Correa

tempos e espaços para construir um conheci- menciona que as relações que construímos no
mento signiicativo. E as experiências, acima decorrer dos dias são “[...] sempre contamina-
de tudo precisam fazer sentido para o bebê, das pelas experiências que trazemos conosco”5.
dentro daquilo que já se viveu. A experiência, Complementarmente, expõe que “[...] as crian-
diria Dewey (2010), “[...] ocorre continuamente, ças não são moldadas pela experiência, mas dão
porque a interação do ser vivo com as condi- forma à experiência” (Malaguzzi, 1999, p. 98).
ções ambientais está envolvida no próprio pro- O mais importante, será sempre, que:
cesso de viver” (p. 109). Devo ressaltar apenas,
que para que a vivência torne-se experiência [...] a qualidade da informação a que somos
ela deve ser considerada singular. expostos e a quantidade de informação que
adquirimos [, que] têm efeitos sobre a estrutu-
O que signiica que: ra cerebral ao longo de toda a nossa vida. Pro-
vavelmente, esse processo não é a única ma-
[...] todas as culturas do mundo têm canções neira pela qual a informação é armazenada no
especiais para bebês e crianças pequenas. E, cérebro, mas é de grande importância para a
mesmo que o bebê não entenda quem é Tutu compreensão de como as pessoas aprendem
Marambá, ou o que exatamente quer dizer a (Bransford; Brown; Cocking, 2007, p. 160).
letra da canção, ele já está pronto para com-
preender as mensagens afetivas implícitas na
voz e no gestual daquele que canta. Mais do Nesta perspectiva, relito sobre a dimen-
que isso, experiências musicais afetivas como são da educação musical dos bebês, no que se
essa ajudam não apenas na modulação do refere às preocupações aparentes com conteú-
comportamento e do humor do bebê, mas
também aparentam constituir parte da base dos e estruturas. Resgato, aqui, uma citação de
do pensamento musical humano no decorrer Ilari (2006), que fornece subsídios para enfatizar
da vida (Ilari, 2006, p. 296). que o bebê “[...] dispõe de diversas competên-
cias musicais, algumas que têm início ainda no
Pelo viés da neurociência, os bebês nas- útero materno”, complementando, que “ao que
cem com uma bagagem de conhecimento. tudo indica, essas competências são inluencia-
Cerebralmente, o bebê já possui todos os neu- das e desenvolvidas ora pela maturação normal
rônios necessários para as conexões do saber do ser humano ora pelas interações do bebê
(Bransford; Brown; Cocking, 2007). O que as com sua família e cultura” (Ilari, 2006, p. 294).
modulam, segundo estes autores, são espe- Ao abranger aqui também, os adultos, que per-
ciicamente as experiências, que simples ou meiam as relações cotidianas com o bebê.
complexas, levarão à maturação do desenvolvi-
mento do bebê. Malaguzzi (1993, p. 2) também 5 Tradução da autora da pesquisa, do original: “[...] always
contaminated with the experiences that we bring with us”.

218
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

Retomo, agora na linha de raciocínio de pela nova visão musical que apresentava ao
Malaguzzi, à concepção de criança/bebê incor- mundo. Nessa direção, Cage (apud Schafer,
porada pela pesquisa de doutorado, o qual a 1992, p. 120) sugere que “Música é sons, sons à
considera “[...] um ser dotado de altas capaci- nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de
dades desde o nascimento. Em potência, con- salas de concerto”.
tém todas as capacidades humanas e todas E a música dos bebês, poderia ser ob-
as suas linguagens expressivas” (Hoyuelos, servada com esta mesma deinição? Sugiro
2004, p. 72). E acrescenta que “a imaturidade que sim e que, além de ritmo, melodia, harmo-
da criança não é impotência, mas a possibili- nia, dentre outras características, a música dos
dade e potencial de crescer” (Malaguzzi apud bebês seja considerada experimentação dos
Hoyuelos, 2004, p. 75). sons, baseada nos processos exploratórios que
Ambas as perspectivas de criança são realizam no mundo que o cerca, por meio dos
entrelaçadas ao compreender que elas pos- sons produzidos por si, por instrumentos, obje-
suem muito além de cem capacidades, cem tos e materiais diversos, pelo corpo em contato
formas de ver o mundo, cem, aqui compreen- com outras superfícies e o que mais a imagina-
didas na concepção de Malaguzzi. Esta possibi- ção permitir.
lidade, acrescentaria, é ainda permeada pelas Além das experimentações sonoras pro-
conexões que o bebê estabelece antes mesmo tagonizadas pelos bebês, o que emerge do co-
do nascer. O som está na vida do ser humano tidiano do berçário, são algumas interferências
desde o útero materno (Klaus; Klaus, 2007; To- construídas pelos adultos, em relação ao con-
matis, 1999; Trevarthen, 2002). tato com um repertório vasto, vinculado aos
Para Murray Schafer (1992, p. 25), a dis- diferentes gêneros musicais e culturais, a pro-
cussão que envolve um conceito acerca da mú- posta de um espaço rico sensorialmente, o ofe-
sica deve ser realista e em relação ao cenário recimento de instrumentos musicais originais,
musical da atualidade, ou seja, a música muda para que os bebês passem a ter a curiosidade
de acordo com o momento histórico e com a musical a respeito das diferentes formas e so-
cultura, e todos merecem “[...] uma deinição noridades tímbricas, entre outros.
de música que seja útil e ‘viva’”. Ceppi e Zini (2011), acerca das palavras-
Ao considerar insuiciente sua deinição -chave para uma pedagogia da creche italiana,
de música (mencionada em “O compositor na mencionam a polisensorialidade, palavra que
sala de aula”), Schafer (1992) questiona John deine aquilo que a pesquisa incorpora como
Cage acerca de sua concepção, justamente questão fundamental para que o berçário da

219
Aruna Noal Correa

creche brasileira permita a organização desse É o sujeito que decide, escolhe se e quando
aprender. Aprender é, portanto, essencial-
processo de exploração musical de forma cor-
mente uma escolha livre e de liberdade de
riqueira6, cotidiana. submeter-se. O contexto, deinido e deter-
Estes autores expõem ainda, que: minado pelas relações e interações com os
outros e, em seguida, também pelos espaços,
móveis, cor, iluminação, ruído, determina as
A qualidade de um ambiente é resultado de
possibilidades e qualidade dos processos de
uma multiplicidade de fatores: tem inluên-
auto-aprendizagem que cada um escolhe a
cia a forma do espaço, a organização fun-
produzir nesse contexto e graças a esse con-
cional, o conjunto de percepções sensoriais
texto (Ceppi; Zini, 2011, p. 17).
(luz, cor, sistema acústico e microclimático,
sugestões táteis). A lógica que regula tal per-
cepção não é unívoca. [...] o ambiente deve É o bebê, em constante relação de
ser assim concebido como um espaço po-
lisensorial, não tanto no sentido de ser rico exploração com o ambiente, que escolhe quais
de estimulação, quanto no sentido que deve conhecimentos construir e no seu tempo.
ser equipado com diferentes valores senso- Portanto, cabe aos adultos a organização das
riais para que todos possam se sintonizar
segundo a própria característica de recepção possibilidades sonoro-musicais, com os quais
individual. Não podendo conceber que as os bebês entrarão em contato no universo do
soluções sejam um padrão único para todos
berçário.
(Ceppi; Zini, 2011, p. 16).

A música: entre o contexto e a experi-


Além disto, é inegável que os bebês
ência7
constroem e estruturam os conhecimentos
sonoro-musicais com os mesmos materiais
A metáfora dos acalantos, ao qual direcio-
que dispõem; por isso mesmo, se justiica a no o título deste capítulo, está permeada pela
proposta de um ambiente rico e instigante. necessidade de reletir sobre a prática pedagó-
Com o objetivo de organizar o pensamento gico-musical dos professores pedagogos. Den-
acerca da música produzida pelos bebês na tre os destaques para o trabalho musical com as
perspectiva da pedagogia da creche italiana, crianças pequenas na educação infantil, saliento
concebe-se que: o olhar atento do adulto para as produções e

7 Em consonância com minha fala na formação para o Proje-


to Proinfância, acima mencionada, teço, aqui, algumas relexões
6 Dewey (2010, p. 71) expõe que “[...] o produto artístico bro- acerca do que considero relevante para uma proposta pedagó-
ta [...] quando o pleno sentido da experiência corriqueira se ex- gica envolta pela música. Ressaltando a importância de se con-
pressa [...]”. textualizar com a realidade a qual a proposta estará direcionada.

220
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

explorações sonoro-musicais cotidianas. É preci-


so compreender que as crianças constroem seu
gosto e experiências musicais desde o útero ma-
terno, e precisamos considerar a escolha minucio-
sa de um repertório musical que seja amplo, dinâ-
mico e agradável às crianças, em especial.

O brincar-musical com instrumentos musicais originais.

Sugiro, ainda, que seja considerado, para


um trabalho cotidiano com música, a oferta de
instrumentos musicais alternativos e originais, com
atenção a acuidade sonora, possibilitando que os
bebês e crianças pequenas possam explorar de
forma livre estes materiais oferecidos.
Além disto, a construção de materiais sono-
ros poderá instigar e despertar explorações sono-
ro-musicais diversas, como o caso dos móbiles e
tapetes sonoros que, acessíveis ao manuseio das
crianças, podem ser confeccionados com dife-
rentes tipos de materiais, como chaves, tampi-
nhas de garrafa, guizos, sementes, bambu, den-
tre outros elementos que sugiram o contato com
a sonoridade produzida, para além dos materiais
plásticos, com a madeira, metais, elementos da
natureza, que promovam som ou a ausência
deste, para que a criança pequena construa seus
parâmetros musicais.
A exploração do móbile sonoro.

221
Aruna Noal Correa

Dentre outras propostas, as histórias cionar a exploração dos sons que a envolvem,
musicadas também são relevantes meios de como clavas8 ritmadas ao chão sugerindo o
exploração sonoro-musical. No qual os adultos caminhar de um animal, sopros de intensida-
se valem dos elementos que compõem as his- des diversas, sugerindo o som característico do
tórias escolhidas. vento, a apreciação de ritmos variados e acom-
panhamento de um brincar-musical a partir de
pandeiros, maracas ou chocalhos, a exploração
das superfícies da sala e dos sons proporciona-
dos por estes, a apreciação e exploração dos
sons que circundam o berçário.
Os sons que permearam o “passeio”: uma história sobre o trem.
Enfatizo que a função primordial está em:

Ao inal, destaco que é relevante que se [...] assumir como legítimas as suas formas
tenha como principal preocupação o enrique- de comunicação e relação, mesmo que os
signiicados que as crianças atribuem às suas
cimento das propostas e planejamentos, no experiências possam não ser aqueles que os
sentido de oportunizar, com intencionalidade adultos que convivem com elas lhes atribuem
pedagógica, espaços, tempos, materiais, das (Ferreira, 2009, p. 147).

crianças que frequentam a educação infan-


til. Ao resgatar as bases teóricas utilizadas até Portanto, é possível construir novos
aqui, posso sugerir que são os adultos, que ali parâmetros de produção de um brincar-mu-
se encontram, que devem oportunizar espaços sical cotidiano pelos bebês, que certamente
instigantes e enriquecidos. poderá ser interpretado, a partir destes vieses,
como produção musical, como a música dos
O que não é o mesmo que “minar” os
bebês: entre o contexto em que se insere e as
dias das crianças com atividades que tenham
experiências sonoro-musicais construídas.
a música como acompanhamento. Mas que se-
jam propostas mais amplas, de forma a abarcar
as múltiplas linguagens ou a polisensorialida-
de, com a intenção de explorar, também, os
elementos musicais que podemos envolver em
cada situação, como é o caso de contar uma 8 Instrumento musical original que pode ser substituído por
instrumento musical produzido com material alternativo, com
história, como sugeri anteriormente, e propor- material semelhante e adaptado.

222
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS

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224
12
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE
VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS
LINGUAGENS INFANTIS

Juliana Goelzer
Daliana Löler

No decorrer do caminho para a casa da Vovó, dado na escolha das cores, tamanhos, formas
Chapeuzinho Vermelho foi coletando lores para
e aromas que vieram compondo o nosso ra-
entregar-lhe, sendo cuidadosa na escolha das
cores, dos aromas e da perfeição das pétalas de malhete, expressando assim a sutileza do que
cada uma delas. vivemos com as crianças e professores nas es-
colas pelas quais passamos.
Assim como Chapeuzinho Vermelho, Compartilhamos aqui esse ramalhete,
nós também, ao longo da caminhada no Pro- mostrando e valorizando o que as unidades
jeto de Assessoramento e Acompanhamento visitadas ao longo do projeto foram desen-
Pedagógico às Redes e Sistemas de Ensino na volvendo com as crianças com o objetivo de
Implementação do Proinfância em Municípios promover uma educação infantil de qualidade,
da Região Central e do Noroeste do Estado do que atenda e respeite os interesses e necessi-
Rio Grande do Sul, atuando como Assistentes dades das crianças com as quais trabalham. A
de Pesquisa1, fomos compondo o nosso rama- escrita que segue tem o objetivo de mostrar
lhete com estudos, rodas de conversa, visitas, experiências potencializadoras das linguagens
encontros formativos, formações em contexto das crianças, as quais foram desenvolvidas pe-
e diálogos com as crianças. Tivemos muito cui- las escolas de educação infantil que receberam
as Visitas Técnicas2 ao longo do Projeto de As-
1 Nossa função enquanto Assistentes de Pesquisa consistia
sessoramento referido acima.
em: apoiar o trabalho dos professores/pesquisadores na coleta,
tratamento e análise dos dados; participar das visitas técnicas 2 Uma das etapas da pesquisa consistia na realização dessas
nos municípios; organizar material de apoio para a pesquisa; visitas para acompanhar a organização da estrutura e o funcio-
acompanhar as reuniões das equipes. namento das instituições de educação infantil.

227
Juliana Goelzer e Daliana Löler

Considerando a multiplicidade de expe- Com os avanços mais recentes nos as-


riências – cores, sentidos, cheiros, sabores, for- pectos legais, o campo teórico da educação
mas, ritmos, danças, texturas - que compõem infantil vive um intenso processo de revisão
(ou que deveriam) o universo da educação in- das suas concepções sobre educação de crian-
fantil, discutimos a potencialização das lingua- ças em espaços coletivos na tentativa de supe-
gens infantis e os limitadores do seu desenvol- rar os antigos paradigmas que a reconheciam
vimento nos contextos visitados a partir de dois como espaço e tempo destinado aos cuidados
eixos de discussão, os quais deinimos como a de saúde, higiene, alimentação e a proteção
padronização e reprodução de modelos, e a dos menores. Tal revisão passa necessariamen-
organização dos espaços. Justiicamos essas te pela compreensão de o que signiica os ter-
escolhas por compreender que nos contextos mos “criança” e “infância”, os quais, ao mesmo
visitados, na maioria dos casos, estes se consti- tempo em que diferem de acordo com o cam-
tuíam as barreiras que na maior parte do tem- po teórico no qual são produzidos (Sociologia,
po limitavam a potencialização das linguagens Antropologia, Pedagogia, História, Psicologia,
infantis. Delimitamos assim a nossa discussão, entre outros), se encontram quando se trata de
mas sem jamais desconsiderar a existência de pensar a educação das crianças.
outros limitadores, os quais, neste momento, Ao longo do tempo, na medida em que
não se coniguram foco de discussão. foram ocorrendo mudanças na forma de com-
Cabe pontuar que as situações aqui re- preender a criança e as suas infâncias, também
latadas e os seus desdobramentos são parte foram mudando as formas de compreender
de um contexto que é preciso ser considerado o trabalho desenvolvido com elas nas insti-
como parte e/ou resultado de um processo tuições infantis. Os estudos mais recentes de
formativo de ação-relexão-ação. Por isso, o ex- Oliveira-Formosinho (2007) apontam para a
posto neste texto não deve ser tomado como necessidade de se pensar uma Pedagogia da
uma verdade absoluta, mas como possibilida- Infância que assegure as especiicidades das
de para a relexão em outros contextos de edu- infâncias nas propostas pedagógicas desenvol-
cação de crianças. vidas nas instituições educativas. Tal perspecti-
va teórica tem como um dos seus princípios a
Envolvida com as belezas do caminho, Chapeu-
zinho Vermelho distraiu-se por um instante e, de Pedagogia da Participação, que compreende a
repente, sentiu-se perdida. Recorreu então às suas criança como um ser ativo, questionador, capaz
memórias para recordar o trajeto até então per- de participar do planejamento das atividades,
corrido para sentir-se segura e continuar...
levantar hipóteses, investigar e cooperar na re-

228
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

solução de problemas. É um ser que interage rentes linguagens, desenvolvendo práticas pe-
intensamente com outras crianças, com adul- dagógicas que garantam experiências que fa-
tos e com o meio. Dito d´outro modo, a criança voreçam a imersão das crianças nas diferentes
é vista como um ser com capacidade de agên- linguagens e o progressivo domínio por elas
cia, que tem potencial para fazer agora, e não de vários gêneros e formas de expressão.
somente como alguém que um dia virá a ser. Nesse contexto cabe aos professores, em
Na perspectiva de uma Pedagogia da consonância com a proposta pedagógica, atuar
Participação, entende-se que a criança desde a como observadores das práticas infantis e de-
mais tenra idade comunica-se com o mundo de senvolver o que Rinaldi (2014) deine como uma
diferentes formas: através do choro, dos olha- Pedagogia da Escuta. Para a autora, a escuta das
res, movimentos, falas, silêncios, entre outros, crianças se dá não somente a partir dos ouvidos,
as quais coniguram-se como diferentes lingua- mas em todos os sentidos (tato, olfato...), o que
gens. De acordo com Salles; Faria (2012) a lin- implica em estar aberto para também interpre-
guagem é a capacidade que o ser humano tem tar as mensagens que são comunicadas através
de compartilhar signiicados, o que se estrutura das diferentes linguagens. Escutar signiica prin-
através de múltiplas formas, como por exemplo, cipalmente valorizar as crianças e os seus sabe-
através da linguagem oral, gestual, plástica, mu- res, os quais são expressos nos momentos de
sical entre outras. Neste sentido, as várias formas interações e brincadeiras.
de linguagem são ao mesmo tempo mediadoras De acordo com Gobbi (2010), as crian-
das relações estabelecidas entre as crianças e os ças, ao brincar
outros e com o meio, e necessitam ser pensadas
[...] experimentam e descobrem a vida que
e trabalhadas intencionalmente nas propostas pulsa em diferentes ritmos a partir das lingua-
pedagógicas das instituições como objeto de gens com as quais aprendem a relacionar-se
conhecimento (Salles; Faria, 2012). com os outros: trata-se da extraordinária ca-
pacidade de provar a vida de modo intenso,
As Diretrizes Curriculares Nacionais para com tudo o que isso envolve [...]. Capazes que
a Educação Infantil (Brasil, 2010) orientam que as crianças são de materializar suas ideias,
ainda que tantas vezes incompreensíveis aos
as propostas pedagógicas das instituições que
adultos, os pequenos exibem amplo interesse
atendem as crianças de 0 a 6 anos tenham sobre todas as coisas, estendendo um amplo
como objetivo garantir a elas o acesso a pro- espectro que vai das questões sobre a nature-
za humana àquelas voltadas para os demais
cessos de apropriação, renovação e articulação aspectos da vida (Gobbi, 2010, p.1).
de conhecimentos e aprendizagens de dife-

229
Juliana Goelzer e Daliana Löler

Diante disso e a partir desse processo de Assim como foi para muitos de nós, ain-
escuta, cabe ao professor potencializar as lin- da hoje, para muitas crianças, é retirada a pos-
guagens das crianças de modo ético e sensível, sibilidade de expressão da sua imaginação e
possibilitando a elas “experimentar e descobrir criatividade, uma vez que são condicionadas à
a vida”, bem como criar espaços no cotidiano reprodução de modelos e padrões. Condicio-
das instituições nos quais “as manifestações namos as crianças a moldarem-se aos padrões
infantis estejam presentes sendo compreen- citados anteriormente quando lhes entrega-
didas na sua inteireza” (Gobbi, 2010, p.2). As mos uma folha com um desenho a ser colori-
linguagens são as ferramentas para a com- do, quando todos devem colar a mesma forma
preensão e a comunicação das crianças com o geométrica na mesma posição para fazer o
mundo e nós, professores, somos responsáveis chapéu do palhaço, ou quando simplesmente
não podem misturar as cores das tintas.
por viabilizar ou não processos que permitam
Situações como essas foram presencia-
as crianças fazer uso dessas ferramentas.
das em algumas unidades visitadas, dentre as
No meio da loresta, a Chapeuzinho admirava quais, uma das que havia adotado o sistema
o colorido exuberante das árvores, pois elas não
eram do mesmo tom esverdeado, ou sequer eram
de apostilamento enquanto metodologia de
verdes, como um dia lhe disseram. – Por que me trabalho com as crianças. Em uma dessas oca-
disseram que elas eram todas iguais? siões, observamos um grupo de crianças dei-
xando a marca da sua mão com tinta em uma
Ao indagar-se sobre o “falso mundo” que das folhas da apostila. Para que o “carimbo”
um dia tentaram lhe convencer que existia, fosse realizado de forma “correta”, a professora
Chapeuzinho nos desaia a buscar respostas pintava a mão da criança com o pincel e a po-
para a sua indagação. Quantas vezes menos- sicionava sobre o espaço destinado ao carim-
prezamos os saberes das crianças e tentamos bo. Em outras situações, em unidades que não
convencer-lhes a ver e a expressar a sua com- faziam uso da apostila, frequentemente, eram
preensão de mundo com as lentes de quem se utilizadas folhas com desenhos prontos para
limita a vê-lo de uma única forma. A quem um que as crianças apenas pintassem ou tivesse
dia não tentaram convencer de que toda a casa a sua disposição apenas um tipo de material
tem uma chaminé com fumaça e telhado trian- para fazer colagens. Para além dessas situações
gular, que as nuvens são sempre azuis e que o observadas, em muitas escolas os trabalhos ex-
sol nasce sempre atrás das montanhas? postos nas paredes evidenciavam uma partici-

230
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

pação acentuada dos adultos em detrimento tos sistematizados que legitimam as ações
da participação das crianças, o que era revela- sobre as crianças. Com foco no produto inal
do pela extrema semelhança de formas, cores, e no enchimento de pastas com trabalhos das
traços e tamanhos, além de que, as crianças crianças, onde icam as sensações e emoções
não demonstravam propriedade ao construir que as crianças vivem ao longo dos dias em
narrativas sobre os trabalhos expostos, denun- que permanecem nas escolas?
ciando que, algumas vezes, sequer haviam par- Por apostarmos e acreditarmos em uma
ticipado dos processos de construção. Pedagogia da Infância que compreende a
A centralidade que o adulto tem ocu- criança enquanto um sujeito global, de muitas
pado nas relações estabelecidas nas institui- linguagens e que se constitui nas relações de
ções de educação infantil é uma dimensão educação e cuidado consigo, com o espaço e
que vem sendo superada muito lentamente. É com os outros, defendemos que as subjetivi-
fato que estamos aprendendo a ser docentes dades e a liberdade nos processos das crianças
de crianças pequenas, pois se olharmos para a são tão mais importantes na sua constituição
história da educação, pensar a especiicidade enquanto ser humano do que saber identiicar
das crianças pequenas é algo extremamente os números e associá-los às suas respectivas
novo e, na ânsia de construir um modo de ser quantidades, ou ainda, muito mais signiicati-
proissional, muitas vezes, nos perdemos pela vos do que deixar uma marca em uma folha em
falta de clareza do peril proissional desejado branco para cumprir a tarefa do dia.
e/ou partimos de referenciais já existentes, nos Não defendemos aqui a ideia de que as
colocando, como airma Kishimoto (2011), “ao crianças sejam isoladas do que foi sendo pro-
reboque das séries iniciais do ensino funda- duzido historicamente, mas que a apropriação
mental”, sendo este um padrão de referência desses elementos da cultura aconteça respei-
equivocado, que vem cristalizando práticas tando as suas formas de ação e interação com o
conhecidas como de “escolarização” na educa- mundo, através das linguagens. Nesse aspecto,
ção infantil, nas quais as relações estabelecidas cabe uma discussão sobre o uso de apostilas
ocorrem numa lógica impositiva do professor ou cartilhas pedagógicas na educação infantil.
para o aluno. Acompanhamos, ao longo do projeto,
Nessa perspectiva, as escolas adquirem algumas tentativas de implementação desses
um caráter de garantia de escolaridade, acú- materiais nas unidades de educação infantil,
mulo de hábitos, experiências e conhecimen- eram materiais desconexos das realidades das

231
Juliana Goelzer e Daliana Löler

crianças e com alto custo inanceiro para os vés da pintura não só nas folhas, mas também
municípios. O que leva um grupo de pessoas nos muros, nas calçadas e nos azulejos, respon-
a priorizar o investimento numa concepção de dendo a isso com euforia e encantamento ao
educação infantil tarefeira em detrimento da deixar as marcas da sua expressão com traços
construção de espaços que valorizam a ação e irmes e coloridos.
criação infantil? Por que comprar apostilas ao in- Logo, as apostilas também passaram a
vés de apostar em brinquedos, livros, fantoches, ser vistas como limitadoras do potencial cria-
argilas, espaços para a exploração com água? tivo das crianças e das professoras, que de
Isso revela determinadas concepções de criança certa forma também estavam condicionadas
e trabalho pedagógico na educação infantil. a esta perspectiva de educação. Salles; Faria
Ao longo desse projeto, a superação (2012. p. 56) apontam para a importância de
desses modelos de padronização e reprodução “os proissionais da educação infantil se colo-
aconteceram à medida que os professores das carem como sujeitos sensíveis e abertos para
Unidades passaram a compreender a criança a construção de laços afetivos, falando com as
como capaz das mais variadas e criativas pro- crianças, aconchegando-as, tocando-as, trans-
duções, como alguém competente em esco- mitindo-lhes segurança e carinho”, dimensões
lher para compor as suas produções. Conforme do trabalho docente que não se efetivam no
Salles; Faria (2012, p.56), isso é compreender a momento que o trabalho é regido por um
criança como sujeito, pois, principio de reprodução mecânica de modelos
prontos. Afetividade que não está presente no
as relações sempre têm dois lados – de um momento em que negamos o potencial das
lado o adulto e do outro a criança. São, por-
tanto, relações dialógicas – entre o adulto e crianças, direcionando as suas ações e até mes-
a criança que possibilitam a constituição da mo fazendo por elas e não com elas.
subjetividade da criança, como também con-
Aos poucos, os interesses e as necessida-
tribuem para a contínua constituição do adul-
to sujeito. des das crianças foram ganhando espaço no pro-
cesso educativo, promovendo uma educação
A partir dessa compreensão, os adultos infantil que tem a criança como centralidade do
aos poucos destituíram-se do lugar de cen- processo, assegurando a ela o direito de expres-
tralidade do processo educativo e as crianças sar-se em suas diferentes linguagens.
passaram a ter a possibilidade de explorar a Em outro momento, vivenciamos a efe-
tinta com todo o corpo, e a expressar-se atra- tivação desse direito quando encontramos

232
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

um grupo de crianças reunidas no saguão de Imagine como seria difícil seguir o ca-
uma escola. Fazia pouco que haviam assistido minho se, de repente, a Chapeuzinho en-
a uma peça de teatro organizada pelas profes- contrasse um riacho sem uma ponte que lhe
soras, e logo elas tiveram a oportunidade de, desse passagem, ou, se houvesse uma árvore
com o microfone, cantar, declamar versos ou caída no caminho, obstruindo a passagem.
contar histórias, de uma forma espontânea. Esses são alguns dos obstáculos – muitas
Os sentimentos de alegria, euforia e orgulho vezes intransponíveis – que os bebês e as
permeavam aquele espaço, demonstrando o crianças pequenas enfrentam nas escolas
encantamento das crianças com a oportunida- quando o espaço é pensado na lógica do
de de serem ouvidas pelos colegas e (principal- adulto, desconsiderando as necessidades e os
mente?) pelas professoras. interesses das crianças.
Acreditar nas capacidades criadoras e Inúmeras foram as vezes que acompa-
expressivas das crianças, escutá-las e poten- nhamos as crianças das escolas visitadas na di-
cializar as suas diferentes linguagens é o papel fícil tarefa de tocar - quiçá de explorar - os brin-
do professor na educação infantil. Apostamos quedos, os livros, os móbiles, ou até mesmo de
na importância de ampliar os repertórios das visualizar suas fotos e produções que estavam
crianças, apresentando a elas o mundo em expostas nas paredes, pois geralmente estes
suas diferentes composições. Contudo, impor estavam somente ao alcance dos adultos. Nes-
algo como modelo, como padrão a ser segui- ses momentos, percebíamos nas crianças o
do, como a árvore que não pode ser cor-de-ro- mesmo desejo que nós, adultos, por vezes te-
sa porque deve ser verde, não cabe quando de- mos de tocar as estrelas. Um sonho impossível?
fendemos uma educação infantil que acredite Assim como a disposição dos elementos
na criança capaz, ativa e competente e que, da natureza deiniu o trajeto de Chapeuzinho,
por isso mesmo, pretende ser potencializadora também a forma como organizamos os espa-
das múltiplas linguagens. ços nas instituições de educação infantil deine
as interações, as explorações, as possibilidades
Ao chegar à casa da Vovó com seu ramalhete de aprendizagem. Esse espaço revela nossas
lindo e perfumado, Chapeuzinho olha para trás
e dá-se conta do quanto ela desconhecia as be- concepções de criança e de trabalho peda-
lezas e os segredos escondidos na loresta. Ela gógico. Horn (2004) corrobora essa airmação
percebe que o modo como os elementos da na-
quando destaca que
tureza estavam organizados, foi o que deiniu o
seu percurso.

233
Juliana Goelzer e Daliana Löler

[...] o espaço é rico em signiicados, podendo – é o de colocar-se na perspectiva das crianças,


ser lido em suas representações, mostrando a
tentar “ver o mundo com os seus olhos”. Se i-
cultura em que está inserido através de ritos
sociais, de colocação e de uso dos objetos, de zermos isso, nos daremos conta do quanto
relações interpessoais, etc. Por meio da leitura muitas vezes permitimos que as crianças ve-
“das paredes e das organizações dos espaços”
das salas de aula de instituições de educação jam somente as paredes vazias ou decoradas
infantil, é possível depreender que concepção com personagens de histórias e desenhos in-
de criança e de educação infantil o educador fantis. Onde estão suas fotos? Onde estão suas
tem (Horn, 2004, p. 37).
produções? Na maioria das vezes, se estiverem
nas salas, estão ao alcance apenas dos adultos.
Uma de nossas tarefas centrais enquan-
Por isso, cabe a pergunta: que lugar estamos
to Assistentes de Pesquisa do Projeto era jus-
dando à criança quando organizamos os espa-
tamente a realização dessa “leitura das pare-
ços nas instituições de educação infantil? De
des e das organizações dos espaços”, e essa
que modo a organização desses espaços tem
observação mais atenta foi um dos elementos
potencializado o desenvolvimento das lingua-
que nos permitiu aos poucos conhecer a pro-
gens das crianças?
posta pedagógica de cada uma das unidades.
Ao relembrar, em meio a fotos e diários de
Se reconhecemos a criança como capaz, ativa
campo, a organização dos espaços nas escolas
e competente, se acreditamos em seu poten-
visitadas, concordamos com Horn (2004. p. 27-
cial criador e transformador, por que retirar do
28) quando esta aponta para o fato de que
seu alcance os materiais que tornam possível
essa criação e transformação? Se colocamos a A maioria das escolas brasileiras ainda ofere-
criança como centralidade no processo edu- ce um espaço que determina a disciplina, em
uma relação de mão única, na qual a criança
cativo, se lhe damos o papel de protagonista
é mantida em uma imobilidade artiicial. [...]
das ações, por que os materiais estão apenas percebo que sempre existe um “lugar nobre”
ao alcance dos adultos? Esse fato não revela o destinado a mesas e cadeiras, e ao quadro-
-negro, o que legitima o fato de estar senta-
adulto como central e suas necessidades se so- do, estar desenhando, pintando, recortando;
brepondo às necessidades das crianças? cada criança com seus lápis, com suas tintas,
Acreditamos que um dos movimentos com sua tesoura. Em geral, essa é a organiza-
ção do espaço de uma sala de aula quadrada
necessários no processo de formação tanto ou retangular, onde as mesas ocupam o lugar
inicial quanto continuada dos professores – central e, encostados nas paredes, os livros
processo este que aos poucos fomos realizan- (quando existem), a prateleira de jogos, os
brinquedos da “casinha”, o lugar para depen-
do com os professores das unidades visitadas

234
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

durar trabalhos e mochilas. [...] os professores Nesse sentido, destacamos que essa
parecem ignorar que o ato de brincar/jogar
forma de organização do espaço, a qual con-
é algo muito sério para a criança, e que ela
pode aprender interagindo com objetos, ex- templa várias propostas acontecendo simul-
plorando e descobrindo o mundo. taneamente, permitem a descentralização do
adulto, que deixa de ser aquele que, com o pla-
Esse cenário muitas vezes foi retratado nejamento de uma única proposta, diz onde,
em nossas visitas, mas ao longo do projeto, à quando e como as crianças devem se organi-
medida que os professores foram sendo de- zar. Pelo contrário, essa organização permite,
saiados a reverem suas concepções sobre as ao mesmo tempo em que desaia a criança a
crianças e seu processo de desenvolvimento - escolher o cenário, os brinquedos e materiais,
o que foi lentamente tornando possível outra e os seus parceiros na brincadeira. Para tanto, o
compreensão acerca da importância da orga- professor exerce um papel fundamental nesse
nização do espaço no desenvolvimento das processo, que é o de organizador do tempo, do
crianças, o quanto ele potencializa ou não o espaço e das intervenções que realizará ao lon-
desenvolvimento das linguagens - os brinque- go das brincadeiras.
dos, os livros, os móbiles, as fotos e as produ- Outras unidades apostaram, na maioria
ções tornaram-se mais acessíveis às crianças, e das vezes com o auxílio das famílias, na qua-
as “barreiras intransponíveis” foram dando lu- liicação dos espaços externos, construindo
gar a caminhos cheios de possibilidades. brinquedos e objetos interativos com material
Exemplo disso foram as propostas orga- reciclado, casinhas de alvenaria e parques com
nizadas por algumas unidades que, para além brinquedos diversos, como elementos que
de tornar os brinquedos acessíveis, apostaram podem promover as interações e brincadeiras
na organização diária de cantinhos temáticos, enquanto eixos norteadores do trabalho peda-
espaço no qual as crianças circulavam tendo a gógico na educação infantil.
oportunidade de realizar escolhas para a cons- Com relação ao espaço organizado para
trução das suas brincadeiras. Dentre esses can- os bebês, os espelhos que antes icavam es-
tinhos, estavam o cantinho da fantasia, do mer- condidos atrás das poltronas, ou de cartazes,
cado, da casinha, do salão de beleza, da oicina, em momento posterior já estavam bem à vista
do teatro, da música, dos jogos, propiciando às das crianças, em um local central da sala, pois
crianças a liberdade de escolha dentro de es- os professores compreenderam a importância
paços intencionalmente planejados para o de- dessa exploração para o desenvolvimento das
senvolvimento de suas linguagens. crianças.

235
Juliana Goelzer e Daliana Löler

Aos poucos também foram compreen- “espaço de convivência coletiva”. Acreditamos


dendo a importância de permitir aos bebês que isso sim seja criar pontes para tornar pos-
a visibilidade dos espaços externos, pois em sível o caminho da descoberta, da criação, do
outros momentos portas e janelas icavam fe- desenvolvimento das linguagens.
chadas, com os vidros cobertos por cortinas Ainda com relação às experiências com
ou papéis, impedindo que as crianças tivessem o espaço externo, algo que nos inquieta há
acesso ao que acontecia para além das quatro muito é que a natureza e os seus elementos,
paredes da sala. E em alguns casos, quando essenciais para a vida humana na terra, diicil-
esses vidros foram descobertos, o que estava mente compõem o cenário das brincadeiras e
ao alcance de sua visão era uma estrutura de produções infantis. Nas escolas visitadas, isso
concreto que dava suporte à caixa d’água da não foi muito diferente, porém, presenciamos
escola, um cenário triste, sombrio e sem sen- algumas tentativas de maior aproximação com
tido para as crianças. Desaiados a perceber o esses elementos através de situações como,
mundo pela perspectiva das crianças, o que por exemplo, a participação das crianças na
antes era uma construção sombria e sem senti- construção da horta da escola.
do, ganhou um colorido especial. Essa escassez de experiências relacionadas
Faria e Salles (2012) destacam que, além ao mundo natural revela a diiculdade de envol-
da autonomia, a organização do espaço deve ver estes elementos no planejamento. Por isso,
promover o contato com a natureza, com as
manifestações culturais, bem como promover [...] é fundamental resgatar a concepção de
criança como um ser da natureza. Conside-
diferentes interações entre as crianças. Obser- rando essa concepção o trabalho com esse
vamos, nesse sentido, de modo especial com campo de experiências (relacionadas aos sa-
beres e conhecimentos sobre o mundo físico
relação aos bebês, que eles passaram a habi-
e natural)3 deve partir da premissa de que
tar os espaços para além das suas salas, tendo somos apenas uma entre as diversas espécies
possibilidades de interação com elementos da que convivem em nosso planeta e que a so-
brevivência dessas espécies é indispensável
natureza e com as crianças das outras turmas para a nossa vida (Salles; Faria, 2012, p. 92).
e de outras idades. Nestes espaços, pontes fo-
ram sendo construídas permitindo a interação Para que possamos resgatar a concepção
de todas as crianças da escola, e aos poucos a de criança defendida pelas autoras, é fundamen-
delimitação “espaço das crianças menores e es-
paço das crianças maiores” foi dando lugar ao
3 Nota explicativa incluída pelas autoras do texto.

236
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

tal a realização de práticas pedagógicas que pro- O envolvimento das crianças em proje-
movam a interação das crianças com a natureza tos como este reforça a compreensão que veio
visando o conhecimento, o cuidado e a preser- sendo construída com os professores de que a
vação, defendendo uma postura de responsabi- criança é capaz de participar ativamente dos
lidade com esse espaço, consigo mesmo e com mais variados processos de organização dos
os outros, uma vez que somos uma entre várias espaços, sejam eles abertos ou fechados, o
espécies, conforme destacado pelas autoras. que permite experiências múltiplas, o desen-
Garantir essas experiências implica ir além volvimento das suas linguagens expressivas e
de plantar sementes de feijão em copinhos plás- possibilitam a interação (Barbosa; Horn, 2001).
ticos dentro da sala ou disponibilizar uma caixa O processo que vivenciamos ao longo
com terra para as crianças brincarem. Mas im- deste Projeto de Assessoramento revelou o
plica acima de tudo problematizar com elas si- quanto a falta de um espaço organizado e pen-
tuações do cotidiano que tem revelado a degra- sado para/com a criança deixa de ser potencia-
dação ambiental e exigido de nós uma postura lizador das múltiplas linguagens.
sustentável frente à degradação dos recursos na-
turais. Nesse sentido, a construção da horta es- Após ter presenteado a sua querida Vovó com
o lindo ramalhete, elas decidem seguir juntas
colar possibilitou às crianças vivências para além por caminhos até então desconhecidos para
de acompanhar o crescimento dos vegetais, mas compartilhar as flores e seguir novos cami-
nhos...
as relações de cuidado e respeito necessárias en-
tre os seres humanos (cuidado de si e dos outros)
e o mundo natural (todas as formas de vida do As crianças são seres intensos, que co-
planeta). Um trabalho de consciência planetária. tidianamente revelam, nas instituições de
Em algumas dessas experiências nas es- educação infantil, o quanto são desejosas e
colas observamos que houve apenas o envolvi- curiosas por descobrirem o mundo e as pos-
mento dos adultos no processo de construção e sibilidades de interação e construção que este
cuidado da horta, cabendo às crianças apenas a lhes oferece. Nesse caminho de descoberta, elas
tarefa de colher o que foi plantado. Já em outras, demonstram toda a sua capacidade criativa, o
tivemos a certeza da participação das crianças que fazem, por exemplo, quando transformam
em todo o processo ao ouvir delas a narrativa de a pequena pedra do caminho em uma grande
como foi a construção e os cuidados necessários montanha que guarda um tesouro misterioso.
para o crescimento das plantas, e o quanto esse Reconhecer essa criança não é uma tarefa sim-
conjunto de vivências lhes foi signiicativo.

237
Juliana Goelzer e Daliana Löler

ples e nem para qualquer adulto; há que se ter tadores desse processo de desenvolvimento, a
preservado a sensibilidade de escutar. saber: a padronização e a reprodução de mo-
Em se tratado de escolas de educação in- delos e a organização dos espaços.
fantil, é preciso que as dimensões de saber es- Para superar essas limitações e “construir
cutar e amar estejam entrelaçadas à dimensão pontes” que possam nos levar a outros cami-
da competência e responsabilidade proissio- nhos, defendemos que escutar a criança para
nal, o que requer um processo formativo que promover de fato a sua participação no coti-
nos possibilita entender quem é essa criança e diano da escola coniguram-se como meios
do que ela precisa para se constituir um ser hu- para potencializar o desenvolvimento das lin-
mano feliz, criativo, critico e responsável. guagens infantis.
Ao indar a composição deste ramalhete, Gobbi (2010, p. 2) enfatiza:
olhamos para trás e reconhecemos professores
que desde o início da nossa caminhada realiza- As manifestações linguageiras das crianças e
dos artistas convidam a reorganizar o mundo
vam um trabalho de escuta e de promoção da e experimentá-lo em outras versões, media-
participação das crianças, e que foram sensíveis dos pelos corpos que se mexem, que nem
sempre falam com palavras e letras, mas que
e acolhedoras ao processo formativo que se ini-
tanto dizem, provocando a conhecer o desco-
ciava. Mas reconhecemos de um modo especial nhecido ao mesmo tempo em que se cons-
aqueles professores que, assim como nós, foram troem outros lugares de experiências, estra-
nhando e conhecendo a todo instante.
compondo o seu ramalhete ao longo do Projeto
de Assessoramento, permitindo-se e desaiando-
As possibilidades da escuta e da partici-
-se a conhecer essa criança da qual falamos, es-
pação das crianças que defendemos nesse texto
cutá-la e junto dela redescobrir a amorosidade e
também nos provocam a conhecer o desconhe-
a responsabilidade necessária para a prática edu-
cido e construir com e para as crianças outros
cativa com as crianças, o que veio possibilitando
lugares de experiências. A partir de agora, as
outras e novas experiências com elas.
experiências que estão sendo vivenciadas pelo
A discussão que aqui propomos teve
grupo de professores que nos acompanhou
como centralidade o modo como os profes-
nessa trajetória, bem como as experiências que
sores tem potencializado, em suas ações pe-
nós estamos vivenciando a partir do que nos
dagógicas, o desenvolvimento das linguagens
provocou, remetem ao caminho percorrido pela
das crianças. Ao propor essa relexão, apresen-
Chapeuzinho à casa da Vovó; porém, agora com
tamos dois elementos que consideramos limi-
o ramalhete em mãos, seguiremos por outros

238
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS

caminhos – e esperamos que os nossos compa- OLIVEIRA-FORMOSINHO, J. (Org). Pedago-


nheiros de jornada também o façam – compar- gia(s) da infância. Dialogando com o passado,
tilhando as lores e colorindo novos caminhos. construindo o futuro: Artmed, 2007.
RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emília:
escutar, investigar e aprender. 2. ed. São Paulo:
Referências bibliográicas Paz e Terra, 2014.
SALLES, Fátima; FARIA, Vitória Líbia Barreto de.
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contros e desencontros na educação infan-
til. 4. ed. São Paulo. Cortez, 2011.

239
PARTE 2

PEDAGOGIAS DAS INFÂNCIAS


E CRIANÇAS
13
AS CRIANÇAS E A
DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS

Simone Freitas da Silva Gallina

A pessoa ponderada parece esquecer tudo da lados nas práticas da educação infantil, pois
criança que foi e que se acreditava eterna
aparece nas práticas rotineiras, acabam en-
(Edgar Alan Poe).
contrando respaldo em uma lógica discursiva
e no encadeamento das justiicações sobre as
Esse texto trata de pensamentos resul-
práticas escolares. Há que se cuidar com aquilo
tantes das afecções de leituras, discurso se
que nos ensina Foucault, que numa sociedade
práticas formativas que tenho vivenciado, seja
capitalista nos encontramos numa situação
a partir dos relatos dos que trabalham com a
onde o esforço social é para “transformar o cor-
educação infantil, sejam da literatura e suas
po em força de trabalho e o tempo em tempo
ideias sobre as crianças e as infâncias. Dessas
de trabalho” (1996, p.119) e isso caracteriza a
vivências destacam-se duas questões interes-
pessoa inserida nessa sociedade, a saber, “o su-
santes. A primeira é que boa parte dos sujeitos
jeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,
expressam em suas falas aquilo que as institui-
regras, ordens” (1999, p.106). O nosso contexto
ções pretendem constituir a partir das políticas
educacional contemporâneo não está imune a
das infâncias, a saber, formas disciplinares de
esse trato disciplinar, olhando cuidadosamen-
vigilância e controle. A segunda, como conse-
te se faz notar que as experimentações infantis
quência da primeira, que essas formas acabam
e sua importância para a vida das crianças qua-
produzindo as vivências das crianças no con-
se sempre acabam sendo reféns dessas práti-
texto da educação infantil.
cas disciplinares e controladoras. Perdendo,
Um dos pontos mais intrigantes é que o
assim, uma dimensão importante da infância
disciplinamento e o controle, mesmo que ve-

243
Simone Freitas da Silva Gallina

que se refere à singularidade das crianças. Essa Como se pode observar, para enfrentar a
perda acaba criando problemas, à medida que questão da naturalização, precisamos bem mais
a potência de experimentar é capturada por do que propor uma prática educativa, também
práticas que tentam conciliar o princípio do é preciso propor uma ordem discursiva que
cuidado com as práticas educativas. possibilite desconstruir a noção equivocada de
Neste sentido, a desaparição das infâncias educação, especialmente do cuidado das crian-
tem como um dos pontos de apoio a perda da ças pequenas a partir da lógica higienista.
experimentação que é engendrada na prática No entanto, essa ideia da constituição de
pela naturalização da infância ou pela aceitação uma prática discursiva deve ser tomada com cau-
tácita de uma espécie de natureza infantil: tela. Pois devemos considerar o quanto Foucault
falou das práticas discursivas e não discursivas,
A intensidade e importância que noções acentuando algo que nos escapa, algo que gera
como desenvolvimento, crescimento e inte- um campo de força capaz de se retroalimentar,
resse alcançaram nos discursos pedagógicos
principalmente quando as tencionamos: “ga-
atuais expressam a naturalização e ampla
aceitação da ideia acerca da existência de cer- nham corpo em conjuntos teóricos, em institui-
ta natureza infantil, de uma condição própria ções, em esquemas de comportamento, em
das crianças que reconhecemos e atribuímos
tipos de transmissão e de difusão, em formas
a meninos e meninas que parece estar pre-
sente neles ainda antes de nascerem. [...] De- pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem
senvolvimento e crescimento aparecem com e as mantêm” (Foucault, 1977, p. 12). A cautela
frequência para descrever tanto os propósitos em relação a prática discursiva se deve ao fato de
e ins educativos com crianças quanto os re-
sultados e avaliações dos próprios processos que a mesma está estritamente relacionada com
escolares. [...] O reconhecimento de uma for- o desenvolvimento de técnicas e dispositivos de
ma de imaturidade mental e física na infân- controle social dos indivíduos. O cuidado precisa
cia é o assinalamento de um estado de sub-
desenvolvimento e a ixação de uma forma ser redobrado, ainal, o problema maior é quan-
de distribuição e organização etária da vida. do as mesmas acompanham ou são acompanha-
Assim, a dupla desenvolvimento-crescimento das por processos de automatismo, nos quais os
serve para explicar o comportamento “natu-
ral” e “normal” dos indivíduos da espécie hu- sujeitos acreditam em um dado que os transcen-
mana; com ele, inscreve-se a vida do sujeito de e que os determinam.
humano na naturalidade de um processo, de
uma ação ou de um efeito de “se” desenvolver [...] O fato de considerar que o sujeito huma-
para produzir ou aumentar uma capacidade no por si mesmo não consegue desenvolver
ou uma potência presente como germe na as suas potências e que também não são
criança (Marín-Díaz, 2010, p.97-98). suicientes os cuidados físicos (de proteção

244
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS

e alimentação, por exemplo) é usado como educacional. Por isso pensamos que com essa
argumento para assinalar a necessidade e
questão da desaparição, que esperamos ainda
importância do processo educativo. Assim o
reconhecimento da infância como uma fase da elucidar adiante, tratamos de problematizar o
vida foi também a construção de uma suposta tema das infâncias na contemporaneidade.
homogeneidade nas experiências das crianças
e a produção de um conjunto de noções domi-
Ao substituirmos as potencialidades pela
nantes para modelar e regular, de forma per- ideia lógica de um ainda-não-mais-possível, a
manente e continua, nosso olhar e nossas prá- ideia de que existe uma essência ou algo pronto
ticas adultas com aqueles sujeitos infantis. Do
lado daquela natureza infantil a ser cuidada, esperando para se tornar presente, perdemos a
ajudada e protegida, assinala-se o processo oportunidade de identiicar no processo educa-
educativo – o ensino, a instrução, a formação, tivo a invenção de outras vivências a partir das
a disciplina, o governo pedagógico – para ga-
rantir o desenvolvimento e/ou a superação experimentações infantis. Por essa razão, torna-
das condições naturais das crianças (Marín- -se pertinente perceber no contexto da escola
-Díaz, 2010, p.97-98, grifo meu).
quais variáveis potencializam a ideia de que as
crianças pequenas estão, a partir de seu direito
Aqui vemos que o afastamento da ideia
ao brincar, construindo regras de aparição-nas-
do cuidado não é suiciente para afastar a ideia
cimento em um mundo que, ao mesmo tempo,
da “natureza infantil” como crença básica que
deve ser visto como dado e novidade.
inluencia sobremaneira o modo de educar as
crianças. Em resumo, ao invés do educar ser [...]“Crianza” é também a crença que indica
um processo complexo e aberto a novidades, as coisas que se acreditam pela tradição [...]
“Crianza” em napolitano é aquilo que se toma
a ideia de um germe ou de uma regularidade
cuidado de preservar; são as provisões, as
natural acaba minando a ideia da educação coisas que sustentarão o futuro. A criança é a
como um processo crítico e criativo. Como se provisão da humanidade. “ter crianza” é deixar
a quem vem agora, às crianças, o mundo edu-
o que procurássemos seria o melhor modo de cado para contar o próprio presente. A criança
atualizar aquilo que já se encontra naturalmen- é necessária e frágil. Não se pode perdê-la sem
te na criança. Essa teleologia natural acaba se perder a vida. A verdade do educar é passar
sem perder a vida. Educar dando vida ao mun-
incrustando nas concepções e práticas educa- do e mundo à vida (Ferraro, 2010, p. 220).
cionais e acaba tirando-as do domínio da novi-
dade e da imprevisibilidade. Claro que não es- Interessante observar que na trajetória
tamos advogando contra a regularidade, antes histórica e política as crianças, no que classi-
tentando argumentar que por si só essa ideia camente intitulamos de dimensão da esfera
é demasiadamente nociva para o processo

245
Simone Freitas da Silva Gallina

pública, aparecem no discurso hegemônico de ser um problema em relação às questões de


como sendo criaturas desprovidas ou incapa- gênero, acaba trazendo diiculdades para a pró-
zes. Incapazes de desenvolver quaisquer ati- pria questão educacional. Contudo, por razões
vidades que exijam atribuições que tradicio- de prioridade, não desenvolverei aqui essa ques-
nalmente reconhecemos como sendo apenas tão. Proponho me ater a primeira delas.
possível para alguns outros seres. Entre os primórdios da elaboração da no-
ção de infância se destaca Comenius e seu escri-
Trata-se do uso da noção de governo, que em to A escola da Infância. No capítulo intitulado
Kant é adjetivado como “pedagógico” e que
em Herbart se refere a uma ação de conhe- “Como educar as crianças para o conhecimen-
cimento e controle das tendências naturais to das coisas”, Comenius enfatiza que desde os
infantis, daquela natureza onde se alojam as
primeiros anos as crianças elaboram um co-
sementes do ímpeto cego e os desejos rudes
da criança. Tal governo pedagógico procura nhecimento sobre as coisas. Ou seja, aprendem
observar e controlar com pressão constante e física, ótica, astronomia, história, economia. O
tangível a natureza infantil, para que a criança
não oriente sua vontade num sentido contrá-
aprendizado inicia com questões simples e tem
rio ao da sociedade e não se constitua num por referência coisas que estão ao seu alcance,
risco social (Marín-Díaz, 2010, p.102-103). culminando naquilo que ele denomina de com-
preender as coisas por si mesmo.
Curiosamente, duas questões aparecem Essa ideia é interessante e sem dúvida
nesse contexto com bastante evidência. A pri- proporcionou uma agenda para a pedagogia
meira é que talvez com a efetivação dessa con- ocidental. Contudo, ela tem um aspecto pro-
cepção deixe de ser considerado que as crian- blemático à medida que institui um modelo
ças nas suas vivências podem ir além do que para o conhecimento, que opera segundo um
lhes é atribuído pelas concepções tradicionais. deslocamento conceitual, caracterizado por
Essa questão sugere que precisamos revisar o etapas nas quais as crianças vão trocando con-
que permanece oculto e cuja ocultação acaba ceitos1 no intuito de chegar ao conhecimento.
sustentando e guiando a educação infantil. A Com isso, Comenius estabeleceu a infância
segunda é que a referida natureza infantil, que
exige cuidado, expõe uma relação complexa en-
1 Utilizo os termos “conceito” e “noção” aplicados a infância
tre as crianças e as mulheres. Mas que, sub-repti- com apoio na ideia de Lev Vigotski de que a criatividade “permite
ciamente, essa dimensão da maternidade passa à criança, ao exercitar seus impulsos e hábitos criativos, dominar
a linguagem humana, a ferramenta mais sutil e complexa para
para a dimensão pedagógica. Essa questão, além formular e transmitir os pensamentos humanos, seus sentimen-
tos, o mundo interior do homem” (2014, p. 84-5).

246
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS

como sendo uma espécie de etapa de pré-co- O exemplo dado por Matthews é vul-
nhecimento. gar, como ele mesmo airma, mas que nos faz
Essa suposta etapa de que fala Come- pensar sobre certas deinições que acabaram
nius caracteriza-se pelo domínio de algumas sendo incontestes para a tradição. Trata-se da
noções comuns aos diversos âmbitos da vida descrição e comentário do comportamento de
cotidiana, posteriormente, serão trocadas por Michael, um bebê de quinze meses que, ao bri-
noções mais especíicas das diversas áreas do gar com Paul, por causa de um brinquedo, vê
conhecimento cientíico, conforme ele mesmo que o mesmo se põe a chorar. Num primeiro
sugere pelos nomes apresentados. Mas, qual momento, Michael entrega o brinquedo ao ou-
é de fato o problema com essa concepção da tro bebê, para que ele pudesse brincar. Como
infância? Vou tentar mostrar esse aspecto pro- o choro continuou, Michael deu seu ursinho,
blemático a partir de um exemplo tirado da mas isso também não adiantou. Segundo o re-
moral. lato, Michael teria hesitado e logo depois corri-
Gareth Matthews mostra, em seu livro “A do ao quarto de Paul e trouxe-lhe o cobertor, o
ilosoia da infância”, que a ideia de desenvolvi- que teria feito com que o choro parasse.
mento moral, uma ideia aparentemente tran- O que interessa para Matthews nesse
quila de como se adquire o domínio de noções exemplo é uma possibilidade interpretativa so-
que irão possibilitar a moralidade, acaba sendo bre o comportamento de Michael. Fica claro é
contraditória com as vivências infantis. Mais que, ao falhar na entrega do brinquedo, Michael
que isso, Matthews nos mostra que essa ideia teria tido a possibilidade de considerar outras
acaba sendo responsável pela deinição da in- alternativas. Contudo, não icava claro o que se
fância como uma etapa pré-moral, ao menos passou com ele quando trouxe o cobertor e con-
seguiu acalmar o amigo. Duas possibilidades
como igura na teoria contemporânea do de-
disponíveis foram descartadas por Matthews.
senvolvimento moral de Lawrence Kohlberg.
A primeira seria a de que Michael teria
Essa etapa pré-moral é caracterizada por dois
se lembrado de que o cobertor confortara o
níveis pré-convencionais, a saber, o nível orien-
tado por castigo-obediência e o nível orienta-
do por benefício-satisfação.2 do castigo”, um “quartinho escuro” e tantos outros recursos utili-
zados para dar conta das crianças que não se comportam “ade-
quadamente”. Essas diferentes formas de lidar com o compor-
2 Aliás, essas noções centrais na concepção do desenvolvi- tamento infantil possuem por referência o mesmo tratamento
mento moral iguram de forma mais ou menos velada no ideário pré-moral que igura na base da concepção de desenvolvimento
da educação infantil. Quantas vezes nos deparamos com o fato moral de Lawrence Kohlberg, a saber, o nível orientado por cas-
de que em certas escolas há a “cadeirinha de pensar”, o “cantinho tigo-obediência.

247
Simone Freitas da Silva Gallina

amigo em outra oportunidade e, simplesmen- de que a ação que executam é algo de bom,
te, teria imitado uma ação eicaz no passado. pois, digamos, que poderia ajudar ou consolar
Essa possibilidade foi descartada pelo parecer alguém e não apenas ser uma forma de evitar
dos pais de que Michael não tivera essa opor- um castigo ou uma forma de ser recompensa-
tunidade no passado. Também não se torna do” (Matthews, 1997, p. 96).
atraente a possibilidade de que a ação de Mi- Independente do apoio teórico utilizado
chael tivesse por base a lembrança de que uma por Matthews, para fazer tal inferência, convém
outra criança foi acalmada com um cobertor. notar que na sua posição podemos perceber
Essa reação complexa foi descartada por várias algumas questões que podem nos estimular
razões, entre elas igura o fato de que o cober- a repensar as vivências infantis. Em especial a
tor de Paul estava fora do campo perceptivo de questão de que não devemos aceitar tranqui-
Michael e, estar fora do campo perceptivo nes- lamente o encorajamento de que, para termos
sa idade, já conigura em um bom motivo para uma boa avaliação moral do comportamento
abandonar essa possibilidade de explicação. das crianças, devemos nos distanciar delas. O
Mas há uma possibilidade que Matthews que icou manifesto no exemplo e na inter-
considera como muito signiicativa, a saber, de pretação dada, mesmo não tendo espaço aqui
que Michael teria raciocinado por analogia para mostrar como Matthews mostra e resolve
que seu amigo Paul se sentiria consolado por os problemas da concepção de Kohlberg, foi o
algo que amava, da mesma maneira como ele fato de que a infância se constitui de inúmeras
amava o seu ursinho. O que interessa nesse dimensões em relação ao desenvolvimento da
exemplo dado Matthews é que na interpreta- moralidade. Ficando explícita a possibilidade
ção mais plausível do comportamento de Mi- dessas dimensões no exemplo da dimensão da
chael, a da analogia, o seu comportamento só “imaginação moral”.
faz sentido se presumimos que ele julgou que Essa dimensão seria aquela na qual algu-
devia consolar Paul. mas crianças conseguem “compreender” a ali-
Por que essa possibilidade se torna in- ção de alguém e são capazes de encontrar uma
teressante? Porque esse exemplo mostra que alternativa para aliviar ou fazer ela desaparecer.
“algumas crianças muito pequenas por vezes Aliás, segundo Matthews, não só essa dimensão
se comportam de maneiras genuinamente desconsiderada por Kohlberg é possível, mas
morais e não apenas pré-morais. Isto signiica outras também, como a dimensão distributiva
que agem com algum tipo de compreensão que muitos de nós às vezes aplicamos à prática

248
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS

infantil da “divisão igualitária dos biscoitos”, que ordem de uma brincadeira com o (des)conhe-
continua sendo até hoje “um paradigma da jus- cido, algo que é da ordem da sua descober-
tiça distributiva” fundamental para a vida moral ta sobre/do mundo, algo que é da ordem do
(Matthews, 1997, p. 108). elaborar os sentidos sobre suas descobertas.
Que precisamos estar atentos para evi- Podemos perceber isso, como mostra Virilio,
tar que as nossas práticas pedagógicas este- quando uma “a criança pequena que, após um
jam orientadas por concepções das infâncias despertar particularmente difícil, ausenta-se
como mundos diferentes dos nossos. O pro- sem saber a cada manhã e vira involuntaria-
blema com elas é que nos induzem a pensar mente sua xícara é tratada como desastrada,
as crianças como sendo aqueles que irão na- recebe uma repreensão e acaba sendo punida”
turalmente evoluir em nossa direção. Não so- (Virilio, 2015, p.21). Essa cena bem comum nas
mente perdemos uma noção interessante de nossas vidas não só mostra que a sociedade
criança como agente moral, mas, sobretudo, contemporânea não tem sido suicientemen-
perdemos a oportunidade de que em muitas te cuidadosa com a necessidade de conceder
ocasiões podemos aprender com elas sobre a às infâncias certas vivências onde as crianças
própria moralidade. efetivamente são respeitadas. Mostra também
Primeiramente, convém observar que que constantemente perdemos a oportunida-
ao não percebermos e não lidarmos com essas de de experienciar com a criança e vivenciar
dimensões abertas e criativa da infância, acaba- com ela as suas potencialidades. Essa talvez
mos fazendo-as desaparecer. O que estou air- seja a ausência que produz a desaparição.
mando aqui, seguindo Paul Virilio em sua Esté- O que falar dos regramentos? Das exaus-
tica da Desaparição, que o que desaparece são tivas ordenações no tempo e no espaço do con-
as infâncias, enquanto potencialidades. Mesmo texto escolar? Talvez aqui o problema resida
num primeiro momento complexa, essa ques- justamente no fato que para muitos as regras
tão é muito importante para pensar a ausência são intocáveis, pois são pensadas do ponto de
como algo que nos acontece, e acontece, princi- vista de sua capacidade pedagógica de disci-
palmente, às crianças, pois elas são as que mais plinar docilmente os corpos infantis. Regras e
vivenciam tais momentos de ausência. atividades regradas, as conhecidas “horas de...”.
Muitas vezes o adulto atribui à criança Nesse sentido, é interessante observar que tais
a condição de ser uma desajustada ou uma rotinas não são um capítulo à parte na peda-
desastrada, por não reconhecer algo que é da gogia da infância. Há muitas produções que

249
Simone Freitas da Silva Gallina

defendem a gestão das rotinas como sendo característicos, alguns seixos ou ossinhos... O
essencial da brincadeira distribui-se entre os
um elemento imprescindível nos planejamen- polos extremos do visto e do não visto; por isso
tos e planiicações das ações docentes. Não se sua construção e a unanimidade que impele
trata aqui de sermos contra o planejamento, a as crianças a aceitar espontaneamente suas
regras levam-nas à experiência picnoléptica
questão que podemos nos colocar é de saber (Virilio, 2015, p.23).
o quanto esse disciplinamento a partir das ro-
tinas da escola, que também ocorre no âmbito Mas o que propriamente aprenderíamos
social, propicia a desaparição das infâncias. se brincássemos mais com as crianças? Talvez
Ora, o que Virilio nos chama a atenção aprenderíamos que, assim como elas, esta-
em seu texto é que precisamos criar experiên- mos submetidos à picnolepsia, uma estranha
cias de cultura sobre as crianças. Experiências situação temporal na qual, com frequência, o
em que as crianças nos ensinariam o que não tempo passa e nada acontece. Ora, essa situa-
aprendemos quando as submetemos a rigo- ção picnoléptica na qual também nós, adultos,
rosas rotinas de disciplinamento e controle. estamos acometidos faz com que, sem que
Quem sabe ao realizar tais experiências de vi- desconiamos, um pouco da nossa duração
vência poderíamos ser capazes de compreen- quando estamos com as crianças nos escapa
der coisas que são importantes serem com- e, com ela, escapam coisas que deixamos de
preendidas sobre as crianças e suas infâncias. compreender. Talvez por estarmos muito preo-
O problema é que ao tentar compreendê-las a cupados em educar e não em brincar com as
partir de uma estrutura prévia, seja ela a do in- crianças, escapa-nos a possibilidade de com-
fante do pré-conhecimento de Comenius, ou da preender e aprender que na nossa vivência
criança da pré-moralidade de Kohlberg, talvez com as crianças pode estar nos escapando as
perdemos a possibilidade de compreender e vivências e as experiências delas. Essas coisas
aprender brincando com as crianças coisas que que podem estar nos escapando a todo mo-
ainda não temos no âmbito epistêmico e moral. mento, como tentei mostrar a partir do caso
de Michael apresentado por Gareth Matthews,
A brincadeira não é ingênua nem engraçada,
iniciada por cada um desde o nascimento; a revelam aquilo que estou chamando proviso-
própria austeridade de seus instrumentos, riamente, por tomar de empréstimo de Paul
de suas regras e representações desencadeia
Virilio, a desaparição das infâncias.
na criança,paradoxalmente, o prazer e até
a paixão: umas linhas ou sinais traçados de
maneira efêmera, um punhado de números

250
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS

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251
14
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS:
POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA
A EDUÇÃO INFANTIL

Alex Barreiro
Ana Lúcia Goulart de Faria

A passagem da Idade Média para a Mo- de seu estatuto cientíico, desvinculando-se


dernidade marcou na Europa uma ruptura com de suas inalidades religiosas, como utilizadas
as estruturas sociais, políticas e econômicas que nos mosteiros, - espaços educacionais privile-
estavam se desenvolvendo através das relações giados durante a Idade Média -, portanto, al-
feudais, e dentre os fatores que mobilizaram cançando uma laicidade e importância central
este conjunto de alterações, podemos desta- para as sociedades europeias, que percebiam
car: a chegada dos espanhóis e portugueses no
na pedagogia os instrumentos civilizatórios
continente americano e a exploração de rique-
deste “novo” homem.
zas deste solo, culminando na intensiicação co-
Foi na issura marcada entre a religiosi-
mercial e aceleração do sistema capitalista.
Conforme Franco Cambi (1999): dade cristã e o desenvolvimento dos Estados
modernos que o projeto de colonização euro-
a ruptura da modernidade apresenta-se, por- peu se desenvolveu. E, como destacou Tzvetan
tanto, como uma revolução, e uma revolução Todorov (2003), duas importantes concepções
em muitos âmbitos: geográicos, econômicos,
político, social, ideológico, cultural e pedagó- ideológicas foram disputadas, sendo elas a es-
gico; de fato também no âmbito pedagógico cravista e a colonialista.
(Cambi, 1999, p. 196).
Todorov (2003, p.256) ressalta que o
projeto escravista, apesar de possuir muitos
Para o autor, a revolução no âmbito adeptos, não parecia ser o mais eiciente e es-
pedagógico está relacionada ao processo de tratégico do ponto de vista dos interesses dos
transformação da pedagogia e da educação, colonizadores, pois:
que conquistaram ao longo da modernida-

253
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

O escravismo, neste sentido da palavra, reduz usos da pedagogia como instrumento de colo-
o outro ao nível de objeto, o que se manifesta
nização das diferenças e formação educativa. E
particularmente em todos os comportamen-
tos em que os índios são tratados como me- é justamente na hierarquização dos valores cul-
nos de que os homens: sua carne é utilizada turais e de organização social que as investidas
para alimentar os índios que restam, ou até
mesmos os cães; matam-nos para usar sua
pedagógicas eurocêntricas - em torno dos ideais
gordura, que supõe-se, curam os ferimen- de civilização e modernidade – promoveram
tos dos espanhóis: e assim são considerados um genocídio cultural e dos diversos habitantes
como animais de corte: cortam-se todas as
extremidades, nariz, mãos, seios, língua, sexo, de nosso continente, massiicando as diferenças
transformando-os em aleijões, como se cor- étnicas e impondo as bases epistemológicas da
tam árvores; propõe-se utilizar-lhes o sangue produção do conhecimento.
para regar o jardim, como se fosse água de rio
(Todorov, p.256, 2003). A elaboração intelectual do processo de moder-
nidade produziu uma perspectiva de conheci-
Desta forma, reduzir a população que mento e um modo de produzir conhecimento
que demonstram o caráter do padrão mundial
habitava do outro lado do atlântico à condição de poder: colonial/moderno, capitalista e euro-
de objeto, considerando-os desprovidos de centrado. Essa perspectiva e modo concreto de
produzir conhecimento se reconhecem como
alma, não era uma medida interessante e viá-
eurocentrismo (Quijano, 2005, p.115).
vel economicamente, politicamente e religio-
samente, portanto, “a eicácia do colonialismo é A “pedagogia colonizadora” buscou na
superior à do escravismo, ou pelo menos é isto noção de “modernidade” europeia os funda-
que podemos constatar atualmente” (Todorov, mentos para a constituição de suas práticas
2003, p.257). As medidas colonialistas possibi- educacionais, conhecimentos e saberes cien-
litavam, ao contrário do escravismo, submeter tíicos, atendendo as exigências de formação
os indígenas à cultura do homem europeu, deste novo homem, sem abandonar as neces-
permitindo que eles aprendessem o idioma
sidades da construção de um pertencimen-
e a religião, perdendo muitos de seus referen-
to religioso, marcado pelos valores, história e
ciais culturais, como “os sacrifícios humanos, o
dogmas do cristianismo, em especial, católico.
canibalismo, a poligamia, o homossexualismo”,
Edward Said, no prefácio de sua obra
trazendo à tona o “cristianismo, as roupas euro-
“Orientalismo” (2003), descreveu que as socie-
peias, animais domésticos, utensílios” (Todorov,
dades contemporâneas árabes e muçulmanas
2003, p.259). Mas, para alcançar os interesses do
sofrerem um maciço ataque em razão de seu
projeto colonialista, foi necessário requerer aos

254
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

dito atraso, de sua falta de democracia e de acreditando, conjuntamente, que o despertar


sua supressão dos direitos das mulheres, que da modernidade e o chamado desenvolvimen-
simplesmente chegamos a nos esquecer que to serão conquistados na medida em que nos
noções como “modernidade”, “iluminismo” e esforçarmos para atingir os progressos já rea-
“democracia” não são conceitos simples e con- lizados pelos países do dito primeiro mundo.
sensuais que se encontram ou não, como ovos Para a contemplação deste projeto, é impres-
de páscoa na sala de casa. E sem dúvidas, esta cindível que a educação das crianças desde o
relexão pode e deve ser tomada para questio- nascimento seja submetida as pedagogias mo-
narmos o processo de colonização das terras dernas, aqui denominadas por colonizadoras.
“além-mar” chamadas de Américas, uma vez A epistemologia do colonizador – embo-
que a noção de modernidade europeia foi ra sempre encontramos algumas brechas - de-
utilizada desde o início da colonização para iniu as maneiras pela qual produzimos os nos-
classiicar e organizar o mundo aos seus olhos, sos conhecimentos, e permeou os discursos de
subdividindo os países e as culturas entre de- diferentes saberes, como a história, a sociolo-
senvolvido e subdesenvolvido, civilização e gia, a psicologia e também a psicanálise.
barbárie, avançado e arcaico, tomando como Em “Pedagogia dos Desejos: eugenia,
prerrogativas os valores e os modos de pro- psicanálise e sexualidade infantil brasileira”,
dução (capitalista) tecnológico de suas civili- Barreiro (2015) recorre a um conjunto de docu-
zações. Desta forma, “a luta contra a opressão mentações entre o inal do século XIX e os anos
colonial não apenas muda a direção da história 1930, apresentando aos leitores/as a arena de
ocidental, mas também contesta sua ideia his- combate que se formou no Brasil em torno da
toricista de tempo como um tempo progressi- sexualidade infantil, especialmente, com a che-
vo e ordenado” (Bhabha, 2013, p.79). gada da psicanálise e a tradução dos textos de
Imersos na relação educacional etno- Sigmund Freud, que foram interpretados à luz
cêntrica difundida pelos colonizadores – ape- dos interesses eugênicos (racistas, sexistas, ho-
sar de sabermos a forte resistência enfrentada mofóbicos) no país.
por diferentes populações que já habitavam
as Américas, secularmente assistimos à disso- Vereis como a psicanálise vos abrirá os olhos,
para compreenderdes as excelências e os de-
lução do mosaico cultural das populações lo- feitos da vossa pedagogia. Vereis o quanto
cais, a contaminação dos valores do homem é mal educar recalcando e o quanto é ótima
a sublimação, quando não é possível a des-
branco, e aprendemos a pensar como eles,
truição, a condenação dos complexos. Com-

255
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

preendereis que cada criança é um indivíduo compreendermos que nenhuma suposta con-
diverso, com sua herança diversa, com um pas-
cepção de natureza, como o sexo, o desejo, o
sado diverso. Descobrireis, em cada uma, essas
tendências sexuais e só lhes negam os que não gênero e a sexualidade encontra-se isenta das
querem ver; esses impulsos informes, nebulo- contaminações culturais.
sos, que a idade não permite tenham a aplica-
ção desejada e que exteriorizam em traços de
caráter, em mudanças de humor, em travessu- As pedagogias descolonizadoras
ra, em displicência, em mentira, em todos esses
sete pecados mortais, que se resumem num só [...] de nós izeste monstros, vosso humanis-
deles (Porto-Carrero, 1934, p. 28). mo nos supõe universais e vossas práticas
racistas nos particularizam (Sarte, 1968, p.04).
Uma das questões levantadas por Barrei-
ro é com relação à ressonância desses discur- O trecho do ilósofo Jean Paul Sartre nos
sos no tempo histórico e seus dispositivos1 de permite reletir sobre o legado colonial aqui
disciplinamento (Foucault, 2010), se referindo deixado, possibilitando, inclusive, analisar os
aos efeitos que eles provocaram na educação efeitos da racialização e das políticas heternor-
sexual das crianças e de que forma essas leituras mativas construídas na educação da infância
e interpretações da psicanálise inluenciaram a brasileira ao longo da história.
formação dos docentes (creches, pré-escolas e Como destacou Faria (2011, p.XIV), as
ensino fundamental) no Brasil, ressaltando que: crianças vivenciam dentro e fora das escolas uma:

Desde o inal do século XIX passamos por um [...] educação reprodutora que didatiza o lúdi-
processo neocolonizador, este não neces- co, patologiza a infância e reduz a educação ao
sariamente marcado por características de ensino. E como pretexto da democratização do
dependências político-administrativas e eco- conhecimento ensina-se um conteúdo confor-
nômicas, e sim pela formação de uma rede mista, sexista, racista, classista, adultocêntrico,
discursiva e cientíica sobre a vida, produzida homofóbico, dito neutro, para todas as crian-
a partir dos saberes e da cultura europeia, ten- ças, sejam elas da elite, das camadas populares,
do o corpo, o sexo, os desejos e a sexualidade negras, indígenas, brancas, trabalhadoras [...].
como territórios biopolíticos coloniais (Barrei-
ro, 2015, p. 42).
Em pesquisa de inspiração etnográica
“Meu cabelo é assim, igualzinho o da Bruxa...
Portanto, é preciso estar atento para
todo armado”, Santiago (2014) descreve o pro-
cesso racializador enfrentado pelas crianças
1 Discursos institucionais, como a família, a psiquiatria, a psi- pequenininhas negras que cotidianamente
canálise, o religioso, etc.

256
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

não encontram na creche um espaço de legi- (Fragmento do Caderno de Campo, 23 de ou-


tubro de 2012) (Santiago, 2012, p.63-64).
timidade étnica e de pertencimento. Em uma
das cenas registradas por Santiago, a garota
Zacimba2 acorda assustada e chorando por ter O fragmento permite analisarmos que a
tido um pesadelo em que associava a igura da ressonância das práticas colonialistas encon-
bruxa narrada na história pela professora com tram-se institucionalizadas, aculturando as di-
a sua própria imagem, relação estabelecida a ferenças ao processo de embranquecimento
partir do cabelo armado da personagem de li- cultural brasileiro, pois ao hierarquizarmos os
teratura infantil e o seu. valores estéticos do corpo, busca-se apagar os
traços étnicos e as características de perten-
Durante a realização das atividades do dia das cimento de seu povo, ensinando as crianças,
bruxas, na hora do sono, Zacimba (menina ne-
gra de 3 anos) acorda chorando e a docente
desde pequenininhas, a dicotomia de valores
vai ao encontro dela e pergunta: como belo e feio, ruim e bom, bem e mal, certo
- O aconteceu? e errado, verdadeiro e falso, etc.
- Eu tenho cabelo de bruxa, igual àquela histó-
ria3 que você contou... Outras passagens são descritas pelo pes-
- Por que você tem cabelo de bruxa? Bruxa quisador, evidenciando como a percepção das
não existe!
- O meu cabelo é assim (pausa) [a menina professoras sobre os conceitos de raça, gênero
aponta para os seus cachos], igualzinho o da e sexualidade estão marcados por uma visão
bruxa, todo armado!
racista e heteronormativa, como se houvesse
- Mas você não é bruxa...
- Olha lá o cabelo dela, é igual ao meu! uma única maneira correta de ser homem e
- O seu não é de bruxa, ele não ica armado mulher, de manifestar a afetividade e de ser ne-
sempre, existe muitas coisas que deixam ele
baixinho. gro ou branco. A educação das crianças funcio-
A docente abraça a menina e a leva tomar na como um instrumento político de manuten-
água no refeitório.
ção do colonialismo e das relações coloniais.
Para contrapor este modelo da educa-
2 O pesquisador utilizou nomes ictícios de origem africana
ção da infância, propomos descolonizar as prá-
para denominar as crianças. A opção por esses nomes deve-se
ao intuito do autor em homenagear as culturas africanas. ticas pedagógicas, proporcionando as crianças
3 Santiago destaca que a história contada pela docente foi “O uma autonomia para a construção da subjeti-
Sonho de Rapunzel”, uma produção da Disney, e menciona que
durante essa atividade as crianças icaram impressionadas com vidade, de produção das culturas infantis, de
os longos cabelos lisos e loiros da protagonista e destacaram suas singularidades, das diferenças, e, sobretu-
principalmente as diferenças deste cabelo para com o da bruxa,
que eram pretos, enrolados e com volume.

257
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

do, da emancipação humana. Mas, ainal, em diversidades e diferenças também estejam re-
que consiste essas práticas descolonizadoras? presentadas, dando visibilidade a todas as pes-
Como evitar que as crianças sejam condenadas soas e legitimando outras possibilidades de ser
a um sistema que extirpe, “o mais cedo possí- e viver em sociedade.
vel, sua capacidade especíica de expressão” e Para que essas transformações na edu-
cação colonial e colonizadora aconteçam,
tente “adaptá-la, o mais cedo possível, aos va-
mencionamos algumas medidas, como: o re-
lores, signiicações e comportamentos domi-
conhecimento das diferentes organizações
nantes”? (Guattari, 1987, p. 53). familiares; a descolonização das linguagens e
práticas racistas; a representação da mulher e
do gênero feminino em paridade ao homem e
ao gênero masculino e a possibilidade da criança
tornar-se protagonista da construção da própria
identidade.
Essas medidas estão diretamente relacio-
nadas à organização, ao ensino, à decoração e
Charge feita pela (o) cartunista Laerte Coutinho. As crianças
enquanto brincam são abordadas por um adulto que reconhe-
arquitetura do espaço educacional, uma vez que
cendo a transgressão quer eliminá-la e sugere que assistam TV. em muitas creches e pré-escolas a representa-
ção em imagens de mulheres, homens e famílias
Apesar de parecer estranho reunir as pa- negras, indígenas e outras não brancas estão au-
lavras “pedagogia”, “educação” e “subjetividade” sentes, e desta forma também encontram-se as
no mesmo texto, de fato este encontro é pos- histórias e gravuras dos livros de literatura infan-
sível. A pedagogia como sabemos, foi histori- til encomendados, as danças e músicas que são
camente constituída como uma ferramenta de ensinadas para as crianças, em suma, as práticas
disciplinamento, de imposição das normas so- pedagógicas não levam em consideração as di-
ciais e de sutura do sujeito às normas. Contudo, versidades étnicas do nosso país, os diferentes
é na contramão dessa operacionalidade peda- arranjos familiares, contemplando majoritaria-
gógica que as pedagogias descolonizadoras de- mente o tradicional modelo de família nuclear
sempenham suas funções. burguesa e a cultura caucasiana.
Destacaremos aqui algumas relexões Entretanto, é interessante que professo-
que, na nossa opinião, contribuem para que o res e professoras possam, junto com as crianças,
espaço institucional das creches e pré-escolas construir diferentes representações acerca do
ofereçam às crianças um ambiente em que as conceito “raça” e “família”, produzindo esculturas,
desenhos, vídeos, pinturas, imagens, utilização

258
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

de recursos audiovisuais, entre outros instrumen-


tos, demonstrando a pluralidade e hibridez cultu-
ral que constitui o mosaico das diferenças brasi-
leiras, como famílias inter-raciais, mono e homo
parentais, adotivas, indígenas, etc.
Outra preocupação são os vícios racistas
que a linguagem adquiriu historicamente, e que
são pronunciados no dia a dia, muitas vezes, ma-
terializando-se nos utensílios escolares, como a
expressão utilizada pelos professores e profes- Giz de cera “cor de pele”
soras “cor de pele” para referir-se ao tom de cor Disponíveis em: http://br.blastingnews.com/
porto-alegre/2015/03/empresa-lanca-colecao-
bege ou “rosinha”. Expressão ainda presente em -de-giz-de-cera-com-12-lapis-que-imitam-as-
alguns rótulos de tintas e para fazer referência -cores-de-pele-00323465.html. Site acessado
dia 26/06/2015.
aos lápis de cores, giz de cera e canetinhas hi-
drocor. Podendo também recordarmos o uso Outro exemplo é a aprovação da lei
de expressões como “a coisa tá preta”, “a ovelha 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade
negra da família”, “serviço de preto”, “não nega a do ensino de História da África na educação bá-
cor”, “amanhã é dia de branco”, “mercado negro”, sica, possibilitando às crianças reconhecimen-
“tuas negas”, “denegrir”, “inveja branca”, “da cor to e proximidade com as culturas de matrizes
do pecado”, “barriga suja”, entre outras. Descolo-
africanas e também trabalhando/cooperando
nizar a linguagem exige não apenas um policia-
no combate à discriminação racial no país. As-
mento da fala, mas, sobretudo, mudar as lentes
pelas quais observamos os fenômenos sociais e sim, temos o que é mais difícil na docência com
(re)interpretamos a realidade, nos posicionando crianças que é reinar o nosso olhar e desco-
diante do outro e na relação com outro em linhas lonizar os nossos pensamentos para que elas
horizontais, ou seja, não hierárquicas. também percebam as sutilezas das diferenças,
Movimentos de resistências contra hege- sabendo a origem das desigualdades para po-
mônicos do ponto de vista da perspectiva cultu- der resistir e combatê-las.
ral e racial vem crescendo no Brasil, produzindo No que diz respeito às relações de gêne-
instrumentos para se combater e/ou resistir aos ro e formas pelas quais as práticas pedagógicas
discursos racistas, um exemplo são os giz de cera
corroboram para a manutenção de uma ordem
“cor de pele” produzidos pela “Uniafro”, variando
binária, heteronormativa e patriarcal, pode-
entre as tonalidades do bege ao preto.
mos mencionar a separação das caixas de brin-

259
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

quedos e cores, onde o azul, os carrinhos, bolas gênero, fundamentando suas críticas em uma
e espadas permanecem distantes do rosa, das suposta ideia de natureza estática que pré deter-
bonecas, casinhas e utensílios domésticos, in- mina a infância e a vida a partir da genitalidade.
dicando o lugar especíico em que cada grupo As discussões e pedagogias visando a
de crianças deve brincar e desenvolver suas ati- paridade de gênero que poderiam emancipar
vidades a partir do critério sexual anatômico. a infância, dando as crianças alternativas para
Está instaurada nesta dinâmica a naturalização viver distintas experiências foram vetadas nos
dos gêneros, provenientes de nossa herança plenários municipais, retirando do PNE (Plano
colonial europeia, e qualquer ação transgres- Nacional de Educação) a palavra “gênero”, o
sora por parte das crianças fará com que os do- que provocou forte reação por partes de pro-
centes e colegas percebam com estranheza as fessores/as, ativistas e grupos envolvidos com
a causa4, como a ANPED, o Fórum Paulista de
razões que levaram esse sujeito a identiicação
Educação Infantil- FPEI 5, entre outros pelo Brasil.
com outras possibilidades de brincar. O olhar
É também no campo das relações de
de estranhamento recairá sobre a sexualidade
gênero que podemos apresentar para as
infantil, pois ao associar o sexo a respectivas e
crianças a paridade e equidade de direitos entre
determinadas práticas sociais, a transgressão
os diferentes sexos e gêneros, permitindo que
simboliza justamente a passagem da mascu-
meninas por meio da imaginação e brincadeiras
linidade para a feminilidade e vice-versa. E é
de “faz de contas” realize atividades e funções
contra esta percepção denominada por hete-
das quais hoje estão, majoritariamente, sendo
ronormatividade que devemos empreender ocupadas por homens. E também com que
esforços no campo educacional, desconstruin- meninos desenvolvam as funções relacionadas
do as fronteiras de masculinidades e feminili- ao cuidado dos ilhos, a limpeza da casa,
dades para possibilitar às crianças outras for- etc. atividades até então atribuídas ao sexo
mas de subjetivação no exterior da estrutura. feminino. Ao desconstruirmos as demarcações
No entanto, o que vivemos hoje no Brasil é
justamente o oposto, uma crescente “onda” mo- 4 Disponível em: http://www.anped.org.br/news/entidades-
-reagem-a-tentativa-de-exclusao-de-questoes-que-abordam-
bilizada por discursos fundamentalistas cristãos -genero-e-sexualidade-nos-planos-de-educacao. Acessado em:
ocupam o cenário político e em nome da moral 26/06/2015.
5 Disponível em: http://fpeicrianca.blogspot.com.br/. Aces-
e dos bons costumes, interpelam toda a literatu- sado em 27/06/2015. Ver em anexo o manifesto indignado II do
ra cientíica produzida no campo das relações de FPEI a respeito do tema.

260
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

das linhas de gênero, promovendo uma treinar habilidades e competências alienantes,


equidade e o reconhecimento pleno do que não propiciam qualquer análise crítica da
exercício da cidadania por parte de ambos os nossa realidade”. E diante o controle exercido e a
sexos, estamos impedindo que a engrenagem submissão promovem a reprodução social, pois
da máquina colonialista possa reproduzir as
desigualdades, determinando as funções e ao mesmo tempo em que aproximam as
crianças de um novo saber, também as afas-
o lugar em que cada um deles deve ocupar tam de seu universo cultural e as iniciam na
culturalmente na ordem social. lógica da competição e da individualidade,
seja pela busca constante por notas e ren-
dimentos que as permitam avançar etapas
educativas, ou simplesmente nos processos
de assassinatos das potências infantis, que se
iniciam no processo de alfabetização em uma
só linguagem (Faria; Barreiro; Macedo; Santia-
go; Santos, 2013, p. 36).

Charge feita pelo cartunista italiano Frato. Meninas subvertendo É contrário a este modelo pedagógico
as questões de performances de gênero.
colonial e capitalista que as pedagogias desco-
Portanto, as pedagogias descolonizado-
lonizadoras operam, exaltando as diferenças e
ras ou anti-colonialistas podem colocar o mun-
as diversidades culturais, permitindo com que
do de ponta cabeça, e:
as crianças explorem suas múltiplas possibilida-
assim, contribuem para os estudos das crian- des de existir e expressar-se. Para isso buscamos
ças e das culturas infantis, dando maior visi- pensar as crianças e as infâncias nas suas dife-
bilidade às crianças como protagonistas de renças, na singularidade e também no seu pro-
uma sociedade adultocêntrica, podendo des-
sa forma romper com as inluências de uma tagonismo, como sujeitos produtores de cultu-
ciência androcêntrica e adultocêntrica. Ofere- ras, e não unicamente como um meio passivo
cem também elementos para a desconiança
sobre o qual se inscreve signiicados culturais.
dos discursos que pretendem construir verda-
des absolutas sobre as infâncias (Faria; Finco,
2011, p.04).

O que vemos hoje, como ressaltaram (Fa-


ria; Barreiro; Macedo; Santiago; Santos, 2013, p.
36) “são estruturas escolares preocupadas em

261
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

Referências bibliográicas ___________. Revoluções Moleculares: pul-


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127 p. Dissertação (mestrado) - Universidade
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criança. Campinas, São Paulo: Autores Asso-
GUATTARI, Felix. As creches e a iniciação. In:
ciados, 2008.

262
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

ANEXO I: cindíveis na discussão e debate no âmbito da


Educação Básica.
MANIFESTO INDIGNADO II: A CONSTRU- As inserções destas temáticas no contex-
ÇÃO DE VERDADES ÚNICAS to da educação não são resultado de uma mera
discussão partidária ou modismo educacional;
“A criança deve aprender o que é a socieda- são, antes, posturas éticas daqueles/as que, en-
de, o que são seus instrumentos.”
GUATTARI, Félix. As creches e a iniciação. In:
gajados/as na construção de uma sociedade
Revoluções Moleculares: Pulsações políticas mais justa e plural, se preocupam em trabalhar
do desejo. Trad. Suely Belinha Rolnik. 3. ed. a diversidade e a diferença com vistas a mini-
São Paulo: Ed. Brasilienses, 1985.
mizar as desigualdades existentes no interior
de creches, pré-escolas e escolas. Além disso,
O Fórum Paulista de Educação Infantil temas como gênero, orientação sexual, racismo
(FPEI), frente a atual conjuntura política que vem etc. são bandeiras de luta dos movimentos so-
minando as conquistas e as lutas dos movimen- ciais para que os sujeitos, em sua multiplicida-
tos sociais pela construção de uma sociedade de, sejam respeitados em suas singularidades e
mais justa, equânime e que valorize e respeite que, a partir disto, seja possível repensar outras
os diferentes sujeitos, manifesta seu repúdio ao relações sociais, para além da hierarquização,
retrocesso político que censura a problematiza- discriminação e exclusão da diversidade. Assim,
ção sobre as relações de gênero, o racismo e a não se trata somente de oferecer aprendizagem
valorização da diversidade nos Planos Munici- a negros/negras, indígenas, travestis, transe-
pais de Educação. xuais, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais ou os/
Atualmente, as formas de vida na socie- as marginalizados/marginalizadas, pois isto é
dade capitalista são alvo de permanente vigi- um direito de todo cidadão, mas, trata-se de um
lância e de controle, como já denunciava Fúlvia projeto político para a construção de uma socie-
Rosemberg na década de 1990. A segregação e dade plural, diversa e com justiça social.
a domesticação dos corpos das crianças peque- O que então está em pauta é a constru-
nas estão alicerçadas na lógica binária do que é ção de uma sociedade na qual as pessoas te-
ser mulher/homem, branco/preto e pobre/rico. nham o direito de fazer escolhas. Uma educação
Este modelo ideológico e normativo põe em que não problematiza as normas e os padrões
evidência o retrocesso que os setores conser- hegemônicos em uma determinada formação
vadores e reacionários da sociedade brasileira econômico social admite, em seu silêncio, as
têm defendido e, por outro lado, aponta para a hierarquias, as desigualdades, além da forma-
importância da inclusão destes temas, impres-

263
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

ção e a sedimentação dos preconceitos, que, está dentro de nós, talvez porque tenhamos
no limite, sustentam a intolerância e a violência boas intenções”. Finalizamos este manifesto
contra uma parte considerável, e ainda excluída, com as charges de Laerte (2015) e, reiterando o
da sociedade brasileira. quanto esse processo de exclusão de gênero, da
Para a efetiva construção de uma educa- sexualidade e da diversidade, somente reforça
ção emancipatória, plural, e, de fato, inclusiva, o jogo da subordinação e das hierarquias, po-
desde a creche até o ensino superior, é funda- dendo vir a alimentar a intolerância e a violência
mental a problematização destes temas, essen- contra uma parte signiicativa, e ainda excluída,
ciais na construção de nossas identidades, para da sociedade brasileira.
que todos possam ter criticamente a capacida-
de de compreender a maneira pela qual ocor-
re o processo de individuação e socialização.
Esta é, aliás, a orientação do Plano Nacional de
Educação em Diretios Humanos, publicado em
2009, para a Educação Básica, segundo a qual é
necessário “fomentar a inclusão, no currículo es-
colar, das temáticas relativas a gênero, identida-
de de gênero, raça e etnia, religião, orientação
sexual, pessoas com deicência, entre outros,
bem como todas as formas de discriminação e
violações de diretos, assegurando a formação
continuada dos(as) trabalhadores(as) da educa-
ção para lidar criticamente com esses temas.”
Portanto, esse debate deve estar presen-
te desde a creche, na educação das crianças
pequenininhas, para que elas possam reconhe-
cer as origens das desigualdades e construir as
ferramentas teóricas necessárias para a luta, se
assim se engajarem, por uma sociedade plural
e mais justa. Como airma Chauí (1980, p.40), “a
ideologia não está fora de nós como um poder
perverso que falseia nossas boas intenções: ela

264
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL

Referências bibliográicas

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reitos Humanos. Plano Nacional de Educa-
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Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2009.
CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Educação. Educação
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GUATTARI, F. Revoluções Moleculares: Pul-
sações políticas do desejo. Trad. Suely Belinha
Rolnik. 3. ed. São Paulo: Ed. Brasilienses, 1985.
ROSEMBERG, Fúlvia. É de pequeno que se tor-
ce o pepino: criança negra, casa e escola; rela-
tório. São Paulo: FCC/FAPESP, 1994.

265
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria

266
15
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA
DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PRO-
FESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMI-
CA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO

Noeli Valentina Weschenfelder

A relexão sobre os processos de forma- to e Acompanhamento Pedagógico às Redes


ção docente envolve uma busca por referen- e Sistemas de Ensino na Implementação do
ciais epistemológicos, teóricos e pedagógicos Proinfância em Municípios da Região Central,
quanto a práticas educativas com crianças em Norte e Noroeste do Estado do Rio Grande do
contextos de Educação Infantil, apostando em Sul - MEC/UFSM1. Esta experiência de aproxi-
um processo de descolonização de saberes e mação esteve apoiada em estratégias de ob-
poderes sobre a infância. servação participante, além de entrevistas,
O desaio de uma descolonização impli- bem como o acompanhamento a momentos
ca mudança na cultura proissional docente e de formação regionais e locais, sendo estas ati-
nas práticas pedagógicas, havendo a necessi- vidades realizadas por Acadêmicas de Pedago-
dade de melhor conhecer o que distingue as gia2 que atuavam como Bolsistas de Iniciação à
crianças no modo como vivem sua infância em Pesquisa do CNPq e FAPERGS.
seus diferentes contextos socioculturais. Nes- A partir deste processo de aproximação
se sentido, interessa observar e reletir sobre as pesquisadoras tiveram a oportunidade de
como tais concepções estão presentes nas prá- realizar trocas e discussões com professoras e
ticas pedagógicas produzidas junto às escolas. coordenações pedagógicas do grupo de esco-
Este artigo transita por estas questões,
realizando um exercício de relato e relexão so- 1 Esta experiência de aproximação foi realizada junto a um
bre a experiência de aproximação entre a pes- pequeno grupo de municípios localizados na região noroeste,
referenciados ao Polo Ijuí no Projeto de Assessoramento.
quisa acadêmica e o Projeto de Assessoramen- 2 Acadêmicas de Pedagogia: Caroline Crestani e Cristina
Rupp Pereira.

269
Noeli Valentina Weschenfelder

las referenciadas, disponibilizando subsídios pedagógicas, tornando possível conhecer ou-


de diferentes ordens para as práticas pedagó- tras concepções em um contexto de múltiplos
gicas com as crianças e para a relexão teórica discursos. Este processo traz a possibilidade de
entre as equipes. O processo de aproxima- reletir sobre vivências e relações com as crian-
ção entre a pesquisa acadêmica e o projeto ças, desaiando o exercício de novas práticas
de assessoramento trouxe a possibilidade de pedagógicas junto aos contextos de Educação
construir uma análise sobre o modo como as Infantil. Estes espaços educativos não dizem
professoras vivenciam os processos de desco- respeito simplesmente a um lugar onde as coi-
lonização epistêmica, em experiências de so- sas acontecem. Trata-se de um espaço-tempo
cialização do conhecimento sobre a infância e que ocupa posição de centralidade nos proces-
sobre as crianças, abrindo espaço para instituir sos de socialização pública das crianças.
outros fundamentos para uma racionalidade Há algum tempo estamos realizando o
sobre a infância. trabalho investigativo com crianças no con-
texto de escolas públicas da periferia urbana e
Aproximações entre a pesquisa e o as- área rural em situações especíicas de pesquisa,
sessoramento acompanhando acadêmicas em formação ini-
cial e/ou professoras em formação continuada.
A proposta de diálogo entre a pesqui-
Nesse sentido, intensiicamos o diálogo que
sa acadêmica e o projeto de assessoramento
a Pedagogia tem feito com outros campos do
vem sendo gestada na conluência de alguns
conhecimento, tais como a Filosoia da Infân-
estudos com a formação inicial e continuada
cia, a Sociologia da Infância e a Antropologia da
no âmbito da UNIJUÍ, e também a partir da in-
Criança, tomando de empréstimo algumas fer-
terlocução realizada com outras universidades,
ramentas metodológicas e conceituais para me-
tratando de questões ligadas à infância, à do-
lhor entender a infância, suas experiências, suas
cência e ao currículo escolar. Enim, relaciona-
culturas, aprofundando conhecimentos e rom-
das a uma pedagogia para a infância.
pendo com as representações generalizantes e
Parte-se do pressuposto de que socia-
universalizantes, pautadas em uma racionalida-
lizar outros conhecimentos sobre a infância e
de que pouco reconhece as crianças como ato-
sobre as crianças entre professores/as permi-
res sociais e a infância como grupo social.
tiria romper com uma visão hegemônica que
Desde o ano de 2012 desenvolvemos a
pautou e ainda pauta as práticas e as relações
pesquisa Formação de professoras da escolari-

270
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO

zação inicial e cinema: narrativas, experiências e dez por cento é mentira - A desbiograia oicial de
cuidado de si 3. Este espaço de investigação e re- Manoel de Barros; Língua de Mariposas; Crianças
lexão tem permitido examinar a formação de invisíveis, entre outros. Acadêmicas e proissio-
professores/as e a infância em suas interfaces nais que atuam em espaços educativos trouxe-
com o cinema. O exercício de problematização ram suas memórias de infância e de ser criança,
está concentrado nas relações, enredos, signi- em um contexto de trocas signiicativas, sendo
icados, experiências e práticas dos docentes a experiência de apreciar cinema algo novo na
com o cinema, tomadas a partir de memórias vida de muitos destes sujeitos.
autobiográicas. Consideramos a temática rele- A partir do ano de 2013 esta pesquisa
vante e necessária à formação docente, ao Cur- iniciou uma aproximação e um diálogo com
so de Pedagogia, como também à formação o Projeto de Assessoramento4, proporcionando
continuada. Assim, as memórias de infância e uma ampliação do grupo de participantes e,
tempos de ser criança permitem problemati- por consequência, uma ampliação signiicati-
zar, na relação docente, as interações que adul- va da abrangência. Esta pesquisa contou com
tos e sujeitos infantis estabelecem entre si em a participação de Acadêmicas de Pedagogia
meio a saberes e fazeres cotidianos. que atuavam como Bolsistas de Iniciação à
Esta interlocução entre a pesquisa e o en- Pesquisa do CNPq e FAPERGS. As atividades
sino favoreceu a construção de uma trama de de pesquisa junto ao projeto de assessora-
possibilidades enriquecedoras. Neste cenário, mento consistiram de visitas em campo, junto
algumas estratégias tomaram uma dimensão a escolas de Educação Infantil de alguns mu-
e um caráter institucional, como o Ciclo de Ci- nicípios referenciados, com a realização de
nema desenvolvido junto à UNIJUÍ. Esta estra- observação participante e entrevistas, com a
tégia, apoiada em uma cultura de socialização posterior socialização de materiais teóricos e
entre os pares, favoreceu oportunidades de outros subsídios linguageiros, para utilização
sensibilização e problematização no território tanto nos processos de formação continuada
de encontro entre a Pedagogia e a Antropolo- das equipes das escolas, quanto nas práticas
gia, na exibição e discussão de ilmes como Só pedagógicas com as crianças. Além das ativi-
dades em campo, as pesquisadoras tiveram a
3 Esta pesquisa representa uma interlocução entre a UNIJUÍ,
a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tendo como re- 4 Projeto de Assessoramento e Acompanhamento Peda-
ferência a Profa. Dra. Valeska Fortes de Oliveira, e a Universidade gógico às Redes e Sistemas de Ensino na Implementação do
Federal de Minas Gerais (UFGM), tendo como referência a Profa. Proinfância em Municípios da Região Central, Norte e Noroeste
Dra. Inês Teixeira de Castro. do Estado do Rio Grande do Sul - MEC/UFSM.

271
Noeli Valentina Weschenfelder

oportunidade de acompanhar vários encon- para os diferentes grupos sociais que compõe
tros de formação regionais e encontros locais as escolas. Observamos e problematizamos, de
de formação em contexto5, realizados ao longo modo especial, os signiicados atribuídos ao es-
dos anos de 2013 e 2014 no âmbito do projeto tar em interação, ao planejar, conviver, partilhar
de assessoramento. processos formativos, construir currículos, reco-
Tais atividades foram sistematizadas nhecendo, sobretudo, que estes constituem ter-
posteriormente em relatórios de pesquisa. O ritórios de produção de saberes e poderes.
cenário de análise e discussão deste estudo, A investigação permitiu examinar a for-
por sua vez, tinha como proposta a organiza- mação docente na Educação Infantil e a infân-
ção em dois eixos signiicativos. No primeiro cia, buscando ampliar a interface com a cul-
eixo, estavam enfatizados o viver cotidiano, tura, através do cinema em especial, e outras
as memórias autobiográicas de infância e as artes linguageiras, como a poesia, a música e a
relações com as crianças em espaço-tempo literatura infantil. Neste sentido, as dimensões
da escola infantil: O cinema de cada um/uma, estéticas, políticas e culturais da formação do-
a poesia, a literatura infantil e a música infantil. cente foram tomadas em consonância com os
Por outro lado, no segundo eixo, estava enfa- desaios colocados pelas Diretrizes Nacionais
tizado o cinema, a poesia, a literatura infantil Curriculares para a Educação Infantil (2009).
e a música infantil, sendo tomados como uma A aproximação em questão parte do pres-
potência no cotidiano dos espaços educativos, suposto teórico-analítico de que as professoras
com vistas ao desmantelamento de um senti- são sujeitos socioculturais (Castro, 1996), que
do único para o fazer pedagógico, bem como a se diferenciam dos demais grupos, categorias
infância como dispositivo de poder/saber. e segmentos de trabalhadores, a partir de sua
Ao longo do percurso foi reiterada a impor- condição docente de articulação teórico-práti-
tância de considerar, nos processos formativos ca, na constituição de uma práxis. De tal modo,
e educativos, o sentido das práticas instituídas tem-se caracterizado e analisado as relações e
vivências dos participantes da pesquisa com as
5 Os encontros de formação regionais consistiam de ativi- suas memórias autobiográicas. Esta análise in-
dades formativas em micropolos geográicos no território de
abrangência do Polo Ijuí, compreendido por 46 municípios. Os
cide também sobre as suas relações e vivências
encontros de formação em contexto consistiam de atividades com o cinema, a literatura, a poesia e a música
formativas e assessoramento realizado in loco, junto às escolas
integrantes da amostra do Polo Ijuí, compreendida esta amostra
infantil, buscando compreender o lugar destas
por 08 municípios. Ambas as atividades eram integrantes da me- linguagens em suas vidas. A análise desenvol-
todologia de trabalho do projeto de assessoramento.

272
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO

vida com os sujeitos reconhece trajetórias pes- Trabalhamos com o pressuposto de que
soais e proissionais marcadas por experiências deslocamentos nas concepções de criança e
muito restritas e pouco diversiicadas, que im- de infâncias exercem efeitos signiicativos na
plicam em certa medida num estreitamento das cultura proissional das professoras, nas práti-
práticas pedagógicas com as crianças. cas pedagógicas com as crianças e nas relações
Interessa, então, a partir destes recortes, construídas com as famílias.
compreender imagens, visões e concepções de Nesse sentido, interessa reletir nos espa-
criança e infância, ampliando a análise sobre os ços de formação acadêmica sobre as concep-
saberes e fazeres docentes em suas vidas, em ções que estão presentes e que se revelam nas
seus processos formativos e em seu trabalho práticas pedagógicas de adultos com crianças
no cotidiano da escola infantil, bem como os pequenas. Os campos da Sociologia da Infância
signiicados e sentimentos que se inscrevem e da Antropologia da Criança contribuem de for-
em seus encontros com as crianças.
ma particular no que se refere às diversas manei-
ras de entender a socialização, gostos, tempos,
Universidade e interculturalidade
espaços, brincadeiras, culturas, modos infantis
de ver, estar e interagir com o mundo, frequentar
No campo pedagógico, vivemos as últi-
a escola, enim, seu universo simbólico.
mas décadas com muitas inquietações e mu-
danças no modo de conceber a infância e as Esta proposta de trabalho relete sobre
formas de socialização destes pequenos su- a formação docente e insere-se no campo da
jeitos, especialmente nas instituições de edu- Educação Intercultural, problematizando refe-
cação infantil. As concepções presentes nas renciais epistemológicos, teóricos e pedagó-
DNCEI (2009) assumem uma perspectiva ge- gicos relativos às práticas educativas escolares
nerosa com a criança e com o currículo, reco- com crianças, com vistas à descolonização de
nhecendo a possibilidade de encontro entre as saberes e poderes. A interculturalidade traz uma
experiências e os saberes das crianças com o perspectiva de alteridade na relação com o ou-
patrimônio acumulado pela humanidade nos tro, estando pressuposto um respeito à diferen-
âmbitos cultural, artístico, ambiental, cientíico ça, onde esta possui uma dimensão de diversi-
e tecnológico. Trata-se de uma ideia de currí- dade, não implicando práticas sociais desiguais.
culo cultural, estando as professoras em uma Pressupõe o saber do outro e o bem viver, em
posição de mediação. um espaço que gera relações outras de saber e

273
Noeli Valentina Weschenfelder

poder, onde o professor não é mais a centralida- mael Palamidessi6 (2000), quando enfatiza que a
de do processo. A interculturalidade assume-se problematização emerge quando um aspecto da
então como um caminho possível neste proces- realidade se conforma por efeito da atenção e da
so de descolonização de saberes e poderes so- interrogação a que é submetida por um grupo ou
bre a infância. Produz deslocamentos. setor da sociedade (p. 213). Uma problematiza-
Estas mudanças passam necessariamen- ção funcionaria quando se propõe que algo seja
te pela revisão dos percursos de formação melhorado, modiicado ou reletido. A identiica-
acadêmica e proissionais, para além das di- ção de uma problematização seria possível quan-
mensões técnicas e teóricas, assegurando um do, ao redor de certo objeto, tema ou questão, são
espaço de relexão e vivência em um campo produzidos e circulam valores, imperativos, exi-
ético e político. Neste sentido, a mudança na gências, regras, enim, discursos (p. 214).
A convergência para este campo de de-
cultura proissional encontra uma posição de
bate traz muitos questionamentos. Podería-
centralidade no debate, representando a bus-
mos nos interrogar sobre o modo como con-
ca deste espaço onde os diferentes modos de
cebemos as crianças que hoje estão na escola
ser e de viver a infância, em seus diferentes
infantil. Sobre como concebemos a infância
contextos socioculturais, sejam acolhidos.
na contemporaneidade. Que relações são pos-
A aproximação entre a pesquisa acadê-
síveis estabelecer com outras infâncias, com
mica e o projeto de assessoramento, como já
memórias e lembranças de nosso tempo de
foi colocado, foi construída a partir de diversas
criança? Quais expressões culturais da infância
práticas voltadas à formação inicial de profes- poderiam ser observadas na escola infantil? O
sores/as no Curso de Pedagogia e nos processos que sabemos sobre o universo simbólico das
de formação continuada junto à rede pública crianças que estão na escola infantil? Como vi-
de ensino. Estas vivências convergem para o vem seus cotidianos? Como as crianças vivem
objetivo comum de ampliar referenciais episte- sua experiência de infância? Como signiicam
mológicos, teóricos e pedagógicos, relativos às estar na escola infantil? O que e como apren-
práticas educativas com crianças na perspectiva dem com seus pares? Como brincam e intera-
intercultural, com vistas à descolonização de sa- gem? Como reconhecem a professora, as ativi-
beres e poderes acerca da infância.
Ao problematizar esta temática de estu- 6 O pesquisador vale-se do conceito de problematização de-
dos, lançamos mão das palavras de Mariano Is- senvolvido por Foucault (1998, 1999 e 1996), utilizado também
por Jorge Larrosa (1998).

274
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO

dades, os espaços? Como percebem os tempos xões que trazem pressuposto um imperativo
vividos na escola? Como nós adultos nos rela- de investigação sobre o universo das crianças
cionamos com as crianças? e sobre como estas vivem os seus cotidianos,
Interrogar sobre o modo como pro- e os próprios signiicados construídos sobre a
fessore/as e familiares se relacionam com as vivência de estar na escola infantil.
crianças em seus processos de socialização, As atividades acadêmicas propostas em
permitiria desmantelar signiicados universais disciplinas do currículo no Curso de Pedagogia
de conhecimento sobre a infância e as crian- realizam um movimento de problematização
ças. Em uma busca por outras racionalidades, sobre as contribuições da educação intercultu-
outras possibilidades que possam recusar mo- ral. As trajetórias de formação inicial exercem
delos que uniicam sentidos, estéticas, lingua- um papel determinante na constituição da do-
gens e fazeres pedagógicos. cência, ainda que a noção mais ampla dos pro-
Assistimos uma reconceitualização da cessos de formação circule por um conjunto de
infância na contemporaneidade, contribuindo vivências em diferentes tempos e espaços. De
para o reconhecimento das vantagens sociais, acordo com Nóvoa (1995, p.25):
culturais e pedagógicas da participação das
crianças em seus processos de aprendizagens A formação não se constrói por acumulação
(de cursos, de conhecimentos ou de técnicas),
(Tomás, 2007 e 2011), recusando a ideia de ne- mas sim através de um trabalho de relexivi-
gatividade e promovendo a ideia de alterida- dade crítica sobre as práticas e de (re) constru-
ção permanente de uma identidade pessoal.
de. Levantando o questionamento e a relexão
Por isso é tão importante investir a pessoa e
sobre quem é esse outro infantil para as pro- dar um estatuto ao saber da experiência.
fessoras e como estas se relacionam cotidiana-
mente com estes sujeitos. Nas pesquisas realizadas nos últimos anos
Ao direcionarmos nosso olhar para es- temos tomado a infância e a docência como ele-
tas questões, necessariamente vamos estar mentos fundamentais do processo educativo. A
atentos também às vozes das crianças e aos partir delas problematizamos concepções como
elementos presentes em seus discursos, bus- participação e protagonismo, vozes e narrativas,
cando reconhecer as imagens que estas cons- imaginário infantil e linguagens, subjetividades
troem sobre as professoras, sem descuidar e identidades docentes e infantis, mediante es-
das expressões culturais da infância que estão tudos pautados em diversos campos do conhe-
presentes nos espaços educativos. São rele- cimento no diálogo com a Pedagogia.

275
Noeli Valentina Weschenfelder

Entendemos que o ato pedagógico sancionada, onde se combinam em proporções e


requer um diálogo permanente com diversas em relações variáveis um componente funcional
referências de conhecimento e entre diferen- e um componente imaginário (Castoriadis, 1982,
tes grupos sociais e culturais. Nesse sentido, p. 159). Reiteramos a importância de considerar
as contribuições de Ricardo Vieira (2008) são nos processos formativos e educativos o senti-
válidas ao debate e para pensar sobre a forma- do das práticas instituídas, pois o contexto de
ção de professores/as pautada no desenvolvi- formação inicial de professores/as, bem como
mento da capacidade para agir intercultural- a formação continuada nas escolas e seus cur-
mente. O autor propõe o estudo de narrativas rículos, constituem-se territórios de produção,
educativas, tanto de alunos quanto de profes- circulação e consolidação de signiicados.
sores/as, como uma das possibilidades para Outras leituras evidenciam que o ima-
mostrar como os sujeitos interiorizam os vá- ginário social fala mediante várias linguagens.
rios elementos culturais de que se apropriam, Nesse sentido, Valeska Fortes de Oliveira (2000)
ou que produzem, criando identiicações nos contribui para pensar os modos como investi-
seus grupos de pertença. Muitas são as possi- gar neste campo do imaginário, bem como as
bilidades narrativas, elas poderão ser tomadas ricas possibilidades em adentrar por essas lin-
em sua dimensão estética, política e cultural, guagens, pois, segundo a autora, criar espaços
o que permite reconhecer a escola e suas re- de fala é instituir/instituindo sentidos.
lações cotidianas como locus privilegiado do Nos espaços educativos dedicados à in-
contexto formativo, nas dimensões política,
fância, as relações cotidianas são plurais e dema-
pedagógica, epistêmica, relacional, ética e es-
siadamente complexas, pois são diferentes gru-
tética, conforme airma Maria Tereza Goudard
pos sociais que habitam e interagem na escola,
Tavares (2008).
desde as professoras e funcionárias até as crian-
Os estudos sobre o Imaginário Social,
ças e suas famílias. São pessoas que vivem em
esquema de análise proposto por Castoriadis
condições materiais e práticas sociais especíicas
(1982), possibilitam apreender um pouco mais
e, portanto, possuem diferentes representações
do universo sociocultural de adultos e crianças
acerca das crianças e da infância, das relações de
da/na Educação Infantil. As instituições educa-
poder e saber, dos modos de ser e viver.
cionais, escola e universidade, são aqui consi-
deradas em suas distintas signiicações para os
grupos que nela convivem, podendo ser consi-
deradas como uma rede simbólica, socialmente

276
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO

Considerações inais A perspectiva intercultural assumida por


Reinaldo Matias Fleuri é ancorada em Catarine
Inspiradas em estudos de Reinaldo Ma- Walsh, Orlando Fals Borda, Walter Mignolo e
tias Fleuri (2004), buscamos aproximações com outros. Traz a oportunidade de problematizar
a perspectiva intercultural na formação docente a estrutura colonial e sua ligação com o capita-
para infância. O autor apresenta contribuições lismo de mercado, apontando para a constru-
no sentido de compreender criticamente as ção de sociedades diferentes, inscritas em ou-
diferenças, promovendo sua interação em um tra ordem social. Para tais autores, em especial
processo racional que não as anule, mas que ati- para Catarine Walsh, a interculturalidade crítica
ve o potencial criativo e crítico dos sujeitos e dos traz um apelo dos povos e grupos sociais his-
contextos em interação. Em nosso caso, docen- toricamente subalternizados, assim como dos
tes e coordenações pedagógicas em processos setores que lutam, junto com eles, pela re-fun-
de formação continuada. Prossegue argumen- dação social e descolonização, pela construção
tando que, em um processo de pesquisa de tal de um mundo melhor. Para a autora, trata-se de
natureza, seria possível recusar um posiciona- entender e construir a interculturalidade como
mento individual de observação supostamente
projeto político, social, ético e epistêmico, uma
neutro e exterior aos fatos e à vida sujeitos.
vez que a diferença é construída como padrão
Concordamos com o autor, ao reconhe-
de poder colonial que atravessa praticamente
cermos que o desaio nesta perspectiva de in-
todas as esferas da vida.
terculturalidade tem sido desenvolver recursos
O desaio que se coloca para a pesquisa
e processos capazes de acionar a elaboração e
intercultural seria reconhecer os múltiplos fa-
a circulação de informações entre os sujeitos,
tores, dimensões, contextos, sujeitos e perspec-
de modo que se auto-organizem, em relações
de reciprocidade nos seus respectivos espaços. tivas que interagem e que não podem ser reduzi-
Neste sentido, os encontros de formação e as das por um único código e um único esquema a
formações em contexto, ao longo do projeto de ser proposto como modelo transferível universal-
assessoramento, constituiriam um fator mobi- mente (Fleuri, 2001).
lizador importante nos processos de interações Concordamos com esta perspectiva, assu-
e trocas entre os sujeitos, entre os diferentes mindo o risco implicado na elaboração crítica de
grupos e até mesmo entre municípios, ofere- conhecimento. Desse modo, a inserção junto ao
cendo condições favoráveis para ressigniicar e contexto de análise, bem como a interlocução e
transformar os seus contextos de atuação. a troca entre pesquisadores e sujeitos não pode

277
Noeli Valentina Weschenfelder

ser considerada neutra ou desprovida de inten- Eda. O imaginário e a formação do professor. In.
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artigo/767/textoCompleto

279
16
A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA,
BRINQUEDO E BRINCADEIRA

Tânia de Vasconcellos

Foi Adélia quem vaticinou:


Mulher é ser desdobrável. Sarah me conta segredos
Ela é, disse. Desses que serão sempre nossos
Vou caminhando mulheres Que serão sempre meus
As muitas que sou, E que, inalmente, poderão voar
As tantas que me habitam (Vasconcellos, 2010).
E as que hospedo.

Vejo Sarah que se desdobra


Deitada sobre o meu colo, Introdução
Apoiada na minha barriga
Na intimidade
Em que nos (re)conhecemos O nascimento de uma criança afeta de
muitas formas o seu entorno. Sua presença im-
Sarah tem cabelo tonhonhoim
Um sorriso vira-lata,
põe pensar a condição da criança, as relações
Desses que se abrem para qualquer um. de gênero, as relações étnico-raciais, as constru-
Uma despretensão de ser ções sociais que regulam os marcos da infância,
Que salta pelo maroto do olho
E um desejo de querer a tudo o modo de produção de existência das crianças,
Marcado na pele e no gosto de sal suas histórias e geograias. O nascimento de
uma criança obriga a pensar a infância. A infân-
Sarah me olha
E eu olho o mundo através dela cia que se abre diante de nossos olhos, e que é
Sarah me obriga a pensar um aqui, um agora; a infância como prenúncio
Mulheres e os seus lugares de um tempo futuro, e que é possibilidade, é
A ponta de seus dedos e seus toques
O retoque do avesso de um projeto político; a infância que vivemos e a que
Feminino alado viveram os que foram crianças antes de nós, e

281
Tânia de Vasconcellos

que é memória, é patrimônio; a infância dos Até o Fim. Os versos de Torquato dizem: “quan-
processos sociais; a infância das instituições; a do eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio
infância da cultura, das ideias; a infância como ler a minha mão [...] eis que esse anjo me disse/
surgimento do novo, do inaugural; a infância apertando minha mão/ com um sorriso entre
como parte do que nos constitui humanos. dentes/ vai bicho desainar/ o coro dos conten-
Quando minha sobrinha Sarah nasceu, tes”. O anjo de Chico também prenuncia des-
escrevi o poema que serve de epígrafe a este graças “Quando nasci veio um anjo safado/ o
artigo e traduz parte dessas inquietações. Ter chato do querubim/ e decretou que eu estava
um bebê no colo, olhar nos seus olhos não é ta- predestinado/ a ser errado assim. Já de saída
refa fácil. Há na profundidade do olhar do bebê a minha estrada entortou,/ mas vou até o im”.
algo de misterioso e secreto. É a própria vida Se os poetas estão aqui logo à entrada
que lhe indaga e comunica a partir desse olhar. do texto, é porque é preciso pensar sobre a for-
O poema em questão bebeu diretamen- ça profética que a educação tem ao vaticinar
te do poema Com Licença Poética, de Adélia sobre as crianças. Ao dizer-lhes o que devem e
Prado, que airma: “Quando nasci um anjo es- o que podem ser. Ao prescrever, ao julgar. Ao
belto,/ desses que tocam trombeta, anunciou:/ reduzir – em sua vocação fundante por norma-
vai carregar bandeira./ Cargo muito pesado pra lizar, normatizar. E ao mesmo tempo porque é
mulher” (Prado, 1993, p.11). O texto de Adélia, fundamental ter em conta a capacidade poéti-
por sua vez, tomou por ponto de partida o Poe- ca das crianças de irem “até o im”, a despeito
ma de Sete Faces, do Drummond, de 1930, que dessas profecias, muitas vezes contrariando
diz “Quando nasci, um anjo torto/ desses que essas profecias. A capacidade que as crianças
vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gau- têm de teimosamente resistirem em sua força
che na vida” (Drummond, 2013, p.11). Também infantil e no gesto brincante que cria novos
Manoel de Barros, em seu poema Desobjeto, se mundos, novas relações, novas realidades.
assume gauche, um sujeito esquerdo, desen- Os poetas também foram chamados
caixado: “O menino que era esquerdo e tinha aqui para nos lembrar a necessidade de mirar
cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o diferente, pois talvez só possamos enxergar a
pente naquele estado terminal” (Barros, 2003, criança com olhos capazes de desver e transver
poema III). Os versos de Drummond se multi- – olhos de poeta. Isso implica que, na impossi-
plicaram na cena poética e musical – o tema do bilidade de se (re)tornarem crianças, cabe aos
anjo torto foi retomado por Torquato Neto em professores se inventarem poetas. Dito de ou-
Let’s Play That e depois por Chico Buarque em tra forma, a formação docente é antes de tudo

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

formação estética. Não de aquisição de um dis- velho sábio. Ferreira Gullar colocou a questão:
curso sobre a estética, mas de experiência esté- “Traduzir-se uma parte na outra parte – que
tica capaz de sustentar a produção intencional é uma questão de vida ou morte – será arte?”
de uma nova condição infantil: um novo cor- (Gullar, 2004). Sim. Eu penso que sim.
po, um novo gesto, um novo olhar, uma nova
atitude. Encontramos em Pablo Picasso um Construir olhos de ver: Uma criança que
exemplo dessa intencionalidade. Ele airma- brinca
va que aos 15 anos já sabia desenhar como o
pintor Raphael, mestre lorentino da Renascen- Observar. Aprender a ver.
ça, mas que precisou de uma vida inteira para É impressionante o tanto que nos
aprender a desenhar como as crianças. escapa daquilo que acreditamos ter visto.
Tenho defendido em meus escritos que Caminhe com outra pessoa, lado a lado, e
um professor é sempre muito mais velho que tente reproduzir posteriormente a memória
sua idade. Há nele, concentrado, todo o tempo do que foi visto. Como é difícil encontrar
do mundo: A experiência da humanidade da pontos de correspondência, particularmente
qual ele é representante e é a sua tarefa conec- se vamos aos detalhes. Se repetir o mesmo
tá-la à criança – sua legítima herdeira. Ao mes- trajeto com uma criança, daí serão diferenças
mo tempo em que há no professor esse sábio abismais. Caminhamos pelas mesmas ruas
ancião, sua comunicação com a criança depen- e becos, mas não passamos pelos mesmos
de de uma linguagem que só outra criança é lugares. Atravessamos o espaço por diferentes
capaz. É necessário, portanto, acessar a criança corredores topológicos. Cada um vê o que o
que o habita e da qual ele se distanciou. Pro- seu olhar procura e, via de regra, não temos
vavelmente, como todas as crianças, Pablo Pi- tanto controle objetivo sobre o buscamos
casso, quando criança, sabia desenhar como as ver quanto acreditamos possuir. A primeira
crianças desenham. Mas só a intencionalidade questão que coloco a mim mesma ou a
de uma formação estética que ele construiu alguém a quem eu esteja orientando é: Por
para si pôde devolver-lhe a experiência do de- que enxerguei isso, dentre tantas coisas que
senho infantil. Do mesmo modo, a formação estavam acontecendo? Por exemplo, quem
do professor não se basta nos saberes acadê- já viu crianças numa praça pública ou em
micos. É necessária a experiência sensível ca- um pátio da escola durante o recreio sabe
paz de reunir suas duas partes: o infante e o da multiplicidade de acontecimentos que se

283
Tânia de Vasconcellos

oferecem aos olhos do observador. Então me A vivência é uma unidade na qual, por um
lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que
pergunto, por que, dentre tantas, essa cena se vivencia, está representado – a vivência
me chama a atenção? Costumo dizer aos sempre se liga àquilo que está localizado fora
professores e aos meus estudantes: “Coniem da pessoa – e, por outro lado, está represen-
tado como eu vivencio isso, ou seja, todas as
no seu olhar!”. Ninguém pesquisa longe de si. particularidades da personalidade e todas as
As questões que interessam estão de algum particularidades do meio são apresentadas na
modo inscritas no sujeito. Nem por isso são vivência, tanto aquilo que é retirado do meio,
todos os elementos que possuem relação
questões individuais, uma vez que todo o com dada personalidade, como aquilo que é
processo de constituição desse sujeito também retirado da personalidade, todos os traços de
seu caráter, traços constitutivos que possuem
é fruto de processos coletivos, sociais.
relação com dado acontecimento. Dessa for-
Há na obra de Vigotski um conceito ao ma, na vivência, nós sempre lidamos com a
qual a academia vem dando especial atenção, união indivisível das particularidades da per-
sonalidade e das particularidades da situação
particularmente no que tange à compreensão representada na vivência. Por isso, parece
dos processos de desenvolvimento da criança. apropriado conduzir de maneira sistemática a
Esse conceito recebeu em russo o nome de pe- análise do papel do meio no desenvolvimen-
to da criança, conduzi-la do ponto de vista
rejivánie. No texto de Vigotski Quarta Aula: A das vivências da criança, porque na vivência,
questão do meio na pedologia (Vigotski, 2010), como já coloquei, são levadas em conta todas
a tradutora lança mão do Dicionário de Psicolo- as particularidades que participaram da de-
terminação de sua atitude frente a uma dada
gia Clínica de Tvorogov para explicar as razões situação (Vigotski, 2010, p.686/687).
de sua escolha. O vocábulo aparece deinido
como “condição mental, evocada por fortes A vivência vem sendo postulada como
sensações e impressões. Perejivánie não é ape- unidade de análise e pesquisadores têm se
nas uma realidade direta à consciência, de seus dedicado a pensar instrumentos capazes de
conteúdos e de suas condições, não é apenas capturá-la. Cito como exemplo os Mapas Vi-
algo experimentado, mas também um traba- venciais, recurso desenvolvido pelo professor
lho interior, um trabalho mental”. Diante disso, Jader Janer em pesquisas com crianças. O tra-
a tradutora elegeu a palavra vivência como a balho de Reinaldo José de Lima, por ele orien-
que mais claramente pode expressar essa ideia tado, é uma dessas contribuições (Lima, 2014).
na língua portuguesa. Essa referência não é fortuita. A análise do tra-
Nas palavras de Vigotski, balho de Lima que tive a oportunidade de fazer,
quando o mesmo ainda estava em processo de

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

escrita e, depois, na sua forma inal, me levou a menina arrastando a caixa com rodinhas pela
alça – parece que ela conduz um carrinho de
pensar a vivência como uma categoria funda- feira feito às suas dimensões. Na mão leva
mental para reletir sobre a categoria trabalho uma fraldinha de pano. Movimentando-se
e suas múltiplas relações, mais especiicamen- entre este espaço e o quintal ela organiza a/as
brincadeira/s. Primeiro enrola a batata na fral-
te o trabalho docente, o trabalho do professor, da e a nina, embalando nos bracinhos. Depois
o trabalho do professor-pesquisador. rola a batata numa direção e noutra. Gira a
Argumento uma possibilidade outra, batata e bate palmas. Puxa a batata arrastada
na fraldinha de pano. É uma batata-boneca,
uma mudança de direção no sentido da consi- batata-bola, batata-pião, batata-carrinho. E
deração das vivências. Que a vivência não seja segue assim até a avó aparecer para coniscar
as batatas, pois batata não é brinquedo e há
apenas apreciada como condutor das questões
tanto com que se brincar (Observação do co-
em que a colocamos para o que é observado tidiano familiar).
– as vivências das crianças –, mas também no
sentido de compreender a própria ação do Observar não é fortuito. Exige prepa-
pesquisador. Tenho pensado a vivência como ração, exige estar em consonância com uma
uma categoria que se dirige ao pesquisador, forma especial de relexividade que seja ela
ao professor, ao adulto que observa. Tenho me mesma um método capaz de guiar. A pesqui-
perguntado sobre as vivências do professor. sa etnográica que tem inspirado a Educação
Tenho me perguntado sobre o que conduz o também tem apontado alguns parâmetros
meu olhar para a cena. E como compreender a em relação a isso. A observação deve ser fru-
direção do meu olhar pode me ajudar a com- to de um contínuo debruçar sobre o cenário
preender o que eu vejo. observado. Não basta tomar uma cena isolada.
Para compreender o seu signiicado é preciso
A menina agora tem menos de dois anos. Ela
brinca na casa da avó sobre o olhar distraído constância na observação. Uma permanência.
dos adultos. O espaço é uma área coberta Além da permanência, é preciso atenção. Aten-
entre a cozinha e o quintal que serve ao lazer ção aos pormenores, aos grandes e pequenos
dos adultos com mesa e sofás e que também
abriga os cestos de brinquedos das crianças. acontecimentos. Atenção aos contextos. Mas
Desprezando os brinquedos industrializados não basta olhar o que fazem. É preciso atentar
a menina volta a sua atenção a uma caixa de para como interpretam o que fazem. E, estan-
plástico com alça e rodinhas – cuja função
original é guardar os blocos de montar – e, do de posse desses registros, conseguir pro-
aproveitando a condição contígua da cozi- duzir um relato que seja digno do que foi vi-
nha, ela se esgueira e reaparece trazendo na
vido. Que faça jus à experiência do grupo e do
caixa algumas batatas. Olhando a cena – a

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Tânia de Vasconcellos

observador. E depois, debruçar-se sobre todo tam? Essas são perguntas que a humanidade
esse universo relatado e buscar compreendê- se faz há muito tempo. Autor de um dos pri-
-lo. Construir essa compreensão no coletivo. meiros estudos que tomam o jogo na dimen-
Compartilhar o que foi aprendido com e entre são da cultura, publicado originalmente em
as crianças em diferentes níveis: com as pró- 1938, Johan Huizinga chega a dizer que o jogo
prias crianças, entre os colegas, entre os pais e é mais antigo que esta (Huizinga, 2000).
outros parceiros. O conhecimento partilhado Em estudos mais recentes, Jean-Marie
torna a todos mais potentes. Llôte desenvolveu uma análise do simbolismo
Princípios como esses podem ser encon- dos jogos e criou quatro categorias gerais sob
trados no trabalho de Manuel Sarmento (Sar- as quais organizou as diferentes estruturas de
mento, 2003) ou em manuais como o de Bog- jogos: Os jogos de sociedade, aos quais organi-
dan e Biklen (1994). E, da mesma forma que é zou sob o lema “o prazer de estar junto”; os jo-
importante que a formação do professor con- gos de território, cujo lema é “A ordem do mun-
temple a pesquisa, também é saber que a pes- do”; os jogos de sorte, obviamente “A sorte ou
quisa excita o pensamento e, por isso, nunca revés”; e os brinquedos, aos quais deu por lema
se sabe aonde se pode chegar. Se a função da “A magia dos objetos”. A cada um deles atribuiu
pesquisa é provocar o pensamento, tal como a um antijogo – aquela conduta que põe tudo a
brincadeira, ela é imprevisível. perder e acaba com a brincadeira. Nos jogos de
Observar Sarah bebê brincando me fez sociedade: as caretas; nos de território: o caos;
mais uma vez investigar o simbolismo dos nos de sorte: as trapaças. Quanto aos brinque-
objetos que dão suporte às brincadeiras: Os dos... bem, podemos falar disso mais adiante.
brinquedos. Antes de falar do que despotencializa os
brinquedos, é melhor retomar o sentido brin-
A boneca, a bola, o pião, o carrinho: cante da criança que torna brinquedo qualquer
Quantos símbolos cabem numa batata? objeto – até uma batata. E transforma a batata
em toda coisa existente. A magia dos objetos
O estudo do jogo, brinquedo e brinca- de que falou Lhôte depende, primeiramente,
deira é muito antigo. Existem obras que re- da capacidade de encantar que é própria da
montam a muitos séculos. Quais são os jogos e brincadeira e dos demais ritos sagrados.
brinquedos que existem e como são apropria- A função primeira que Sarah confere à
dos nas diferentes culturas? O que represen- batata é a de uma boneca-bebê.

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

Uma das questões que Lhôte se coloca A bola encontra diferentes simbolismos.
é sobre em que medida as bonecas destina- Mas em muitas culturas a ela é identiicada com
das às crianças pequenas são iguras mágicas os astros em movimento. Na brincadeira de Sa-
de proteção contra qualquer suposto mal, ou rah a beleza e a expectativa estão no percurso
são fruto das criações das próprias crianças. Eu que faz a batata-bola de um ponto a outro. Ela
me pergunto se é possível fazer tão claramente a lança e a acompanha com o olhar. Depois, se
essa distinção. Há no gesto de Sarah uma atitu- desloca e a lança outra vez desenhando um
de de cuidado. Uma memória de uma conduta novo percurso. A brincadeira lembra um diálo-
de bebê que ela aos poucos deixa para trás e, go sem palavras. Um diálogo consigo própria.
ao mesmo tempo, a invenção de uma compa- Ela lança a bola, ela mesma a recebe e a lança
nhia, de um outro, de uma relação que não é novamente. A bola é, em diferentes culturas, um
pré-existente. Ela embala a batata e, embora símbolo associado à trajetória da lua ou do sol.
ainda não fale, murmura. Como quem canta.
Esse simbolismo ligado aos astros aparece de
As bonecas são uma companhia e ao mes-
forma um pouco modiicado nas narrativas que
mo tempo um duplo. Essa boneca-batata se do-
acompanham o pião. O pião é associado simbo-
bra mais aos desígnios brincantes de Sarah que
licamente ao movimento de rotação dos astros.
as demais – que não precisaram de encantamen-
Aos ciclos da vida. Seja pela diiculdade de se
to para tornar-se bonecas. Que exibem desde
fazer girar a batata-pião, seja pela excitação que
a fábrica seus cabelos louros, suas tranças, suas
produz quando inalmente o consegue. O fato
roupinhas. A boneca-batata não, ela teve que
é que Sarah celebra o movimento: Bate palmas!
ser concebida desde o princípio. Como os ídolos
primitivos que foram talhados na natureza – na A batata apoiada na fralda se converte
madeira e na pedra –, ela guarda a singularidade em carrinho que Sarah puxa pelo quintal. Um
de ser encanto para quem a encantou. modelo reduzido e improvisado. A apropria-
Freud, em seu texto Escritores Criativos e ção do mundo em modelos reduzidos fascina
Devaneio, airma que toda criança brinca de ser as crianças e os adultos. Os modelos reduzidos
grande. Eu penso que toda criança brinca de ser para uns são brinquedos, para outros, bibelôs.
Deus. Como o Deus do Gênesis, ela cria mundos A diferença entre brinquedos e bibelôs é que
e sopra vida ao pó. E do mesmo modo desfaz o uns se prestam à atividade brincante e outros
encanto e transforma tudo em outra coisa. Nes- apenas à contemplação. O problema é que
se caso, de batata a boneca, de boneca a bola. essa diferença só é visível para os adultos.

287
Tânia de Vasconcellos

A chegada da avó e o conisco das bata- de ser pensada na sua dimensão sagrada. Isso
tas interrompem a brincadeira. Como explicar é interessante, pois compartilho a ideia de que
aos adultos a potência brincante das batatas toda brincadeira é, simultaneamente, sagrada
frente ao mundo produzido pelos fabricantes e profana. No seu exercício divino, a criança
de brinquedos? brincante criando mundos sopra vida ao seu
Para Lhôte, a categoria que abarca os redor. A brincadeira é, no meu entender, uma
brinquedos, e que ele chamou de “A Magia dos forma de epifania que revela o divino em nós.
Objetos”, se divide em quatro estações: As igu- Agora podemos falar sobre a categoria
ras humanas; as imagens do mundo; os mode- que Lhôte classiicou como antijogos, na relação
los reduzidos; e, inalmente, as formas litúrgi- com os brinquedos: Os jogos educativos. Nosso
cas. É curioso perceber que na brincadeira, que exercício de pensar a batata como brinquedo –
não durou tanto tempo assim, Sarah percor- e experimentar por meio da ação brincante de
reu quase todas as categorias descritas. Criou Sarah a liberdade e multiplicidade de possibili-
uma boneca – uma representação da igura dades que podemos encontrar nesse objeto tão
humana. Criou uma bola e um pião – que são cotidiano, tão prosaico, tão à mercê da imagina-
exemplos de imagens do mundo. Criou mode- ção infantil – pode nos ajudar a pensar o cami-
los reduzidos quando investiu sua batata em nho oposto. Imaginar um objeto que se disfarça
carrinho. Sem nenhum brinquedo em mãos, de brinquedo para comunicar conteúdos, para
Sarah percorreu todo um leque de categorias. inculcar condutas, para promover a produção
A única categoria que parece não ter sido con- de algo para além da brincadeira.
templada foi a de Formas Litúrgicas. Nela, o
autor enumera os chocalhos, os balanços, as Brinquedos Enganosos: É preciso agora, ao
término deste capítulo consagrado aos brin-
pipas... Brinquedos capazes de religar os ho- quedos evocar os antijogos correspondentes.
mens às divindades e que foram usados para A trapaça é o antijogo dos jogos de sorte/
azar, as caretas dos jogos de sociedade, os
uma comunicação com o céu, como as pipas;
jogos educativos são as caretas e as trapaças
para o sacrifício humano e dádivas aos deuses, dos brinquedos. Certamente, todos os jogos
como os balanços; ou para espantar ou atrair são educativos em si mesmos, até certo pon-
to. Eles se tornam nocivos quando a vontade
espíritos, como os chocalhos. É verdade, Sarah de inculcar um ensinamento qualquer se so-
não brincou com nada disso... No entanto, li- brepõe ao desejo de liberdade e de lorescer
turgia é uma palavra que tem na sua origem da criança. Eu lembro que a palavra “inculcar”
signiica “pisar com os calcanhares”. Um jogo
um sentido profano – o serviço ao povo, antes deliberadamente educativo e que tem a in-

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

consciência de admitir isso como tal, este “pi- Recentemente, tem se ouvido falar mui-
sar com os calcanhares” o coração e a alma da
to em ócio criativo, numa tentativa de reabi-
criança pequena – pelo menos até a idade em
que aprende a ler, porque então os pobres te- litar o ócio e distingui-lo dos temas da vadia-
rão outras oportunidades para serem educa- gem, marginalidade, e outros com os quais o
dos. Na sua forma mais hedionda o brinquedo
capital o identiicou, dentre outros, a ociosi-
educativo impõe uma propaganda política ou
religiosa e, portanto, tende a implicar o ódio dade burguesa – a ostentação do não traba-
em uma consciência (Lhôte, 2010, p.207). lho por parte dos que vivem da exploração
do trabalho alheio. O conceito de ócio criativo
Ao contrário de promover um ataque coloca-o entre as categorias que a Educação,
aos ditos “brinquedos educativos”, o que está por exemplo, pode tomar a sério. No entanto,
proposto aqui é uma distinção: Por princípio, independentemente de reconhecer que a ati-
os brinquedos educativos não são brinquedos. vidade contemplativa e o enriquecimento do
Podem ser boas ferramentas didáticas, podem mundo interior são bases para a criação, atrelar
ser bons recursos pedagógicos. Mas não são à ideia de ócio a obrigatoriedade de produção
brinquedos, não são do campo da brincadeira. de algo, de criação é um paradoxo.
A brincadeira se inscreve entre as ativida- Mas isso não signiica que brincar não
des que têm um im em si mesmas. Elas estão seja sério. Brincar é muito sério.
fora do campo das atividades que geram algo
Acaso não poderíamos dizer que ao brincar
para além delas mesmas – as ditas atividades toda criança se comporta como um escritor
produtivas. Esse é o universo do ócio. A nobre criativo, pois cria um mundo próprio, ou me-
lhor, reajusta os elementos de seu mundo de
categoria do ócio – tão desprezada numa socie-
uma nova forma que lhe agrade? Seria errado
dade que só pretendeu produzir, tão deslocada supor que a criança não leva esse mundo a sé-
numa sociedade que só pretende consumir. rio: ao contrário, leva muito a sério a sua brin-
cadeira e despende na mesma muita emoção.
Essa categoria inapreensível a que Marx cha- A antítese de brincar não é o que é sério, mas
mou “Tempo Livre” – que está para além das ne- o que é real (Freud, 1976, p.149).
cessidades e que é tempo inindo de invenção
do si mesmo. Filosoia, por exemplo, se encontra Se aproximarmos essa airmação de
entre as atividades que têm im em si mesmas Freud do conceito de vivência em Vigotski,
e, portanto, não são produtivas. A produção do podemos nos perguntar: Mas, ainal, o que é o
pensamento serve ao próprio pensamento. Se real, se a vivência de cada um produz um sen-
ele tem outro Senhor, já não é livre para pensar. tido único e irrepetível? Uma coniguração que
está lá fora e cá dentro. Que constitui a própria

289
Tânia de Vasconcellos

personalidade e dela não mais se aparta. Brin- de ser um observador privilegiado, de ver cres-
car é, acima de tudo, brincar com o próprio cerem crianças, acompanhar diferentes etapas
sentido do real. Onde está o real? Na aparência e processos vividos por sujeitos e instituições.
do cotidiano ou na vitalidade da brincadeira? A formação na pesquisa qualitativa me
ensinou a importância do meu corpo na pes-
Construir uma escrita no corpo: Extratos de quisa. A observação, a participação, a presença.
memória O pesquisador é ele mesmo, o principal instru-
mento de apreensão do campo. O registro no
Como muitos professores, eu comecei caderno de campo, no diário de campo, as dife-
a trabalhar com crianças pequenas antes de rentes formas de notação são expressão de uma
completar 18 anos. A juventude e um sentido inscrição que se dá primeiro no corpo. A conti-
de trabalho ainda em construção e não burocra- nuidade da experiência de pesquisa consolidou
tizado me ajudaram muito a me aproximar do a certeza de que no meu corpo estavam inscri-
universo das crianças. Em muitos sentidos, eu tos muitos mais dados de campo do que eu ha-
ainda me sentia infante. Estava em formação. E, via registrado. O que foi vivenciado pela menina
embora considere que esse processo não esteja professora que fui podia se oferecer agora às mi-
concluído, que ele não se conclui, a verdade é nhas relexões desta professora adulta. Podiam
que passados quase quarenta anos, posso com- ser olhadas em uma outra perspectiva. A matu-
preender hoje bem mais do que compreendia ridade me autorizou a lançar mão dessas ins-
em meados da década de 1970, quando come- crições e trazê-las à tona na minha escrita e no
cei a trabalhar com crianças pequenas. meu trabalho de formação inicial e continuada
Enquanto trabalhava com os pequenos, de professores. Para identiicá-las tenho usado o
aprendia muito com eles e, sobre eles, apren- termo “extratos de memória”.
dia com mestres diretos e autores. De modo Todos os professores têm memórias de
que quando cheguei à universidade, ou seja, sua trajetória. São crianças emblemáticas em
quando a minha formação ganhou contornos questões não respondidas que são vívidas na
institucionais, eu já trazia um monte de inquie- lembrança, situações que podem ser narradas
tações tatuadas em mim. Ainda que eu não com detalhes minuciosos... Ninguém esquece
pudesse compreender completamente o que o que o inquieta. O pensamento não comporta
vivia, ou tinha vivido, guardei, como tantas e não respeita as linearidades do tempo cro-
professoras, memórias de situações que atra- nológico. Ademais, para além da vida de pro-
vessei, de cenas observadas, da oportunidade fessor estão também as inscrições da infância.

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

As memórias da escola, o aluno que fomos um Frente às batatas da pequena Sarah, a louça in-
dia. A criança que fomos, e que continuamos glesa de outra Sara – desta vez minha avó – se
sendo. Um estudante de medicina ou enge- presta de brinquedo:
nharia pode chegar à universidade sabendo
muito pouco sobre o contexto proissional que Depois da escola pela manhã, as tardes eu
as passava em casa, na companhia de minha
viverá depois. Na educação é diferente. Todo avó Sara. Quando ela não estava envolvida
professor começou uma formação docente em suas tarefas, me contava histórias, casos
nas suas primeiras experiências na escola. A do seu tempo de menina, cantava canções
em iídiche, seu dialeto: canções folclóricas,
formação proissional do professor está o tem- de criança, de ninar. Brincávamos de boneca,
po todo negociando – consciente ou incons- desenhávamos e, sobretudo, tomávamos chá.
Havia na casa um aparelho de chá de louça in-
cientemente – com essas memórias. Acessar
glesa na cor salmão com frisos dourados que
esse material – pessoal e coletivo – e colocá-lo só saía do armário em dias de festa ou para
à disposição da formação inicial e continuada receber um convidado importante. Nos dias
em que “tomávamos chá” era essa louça de
de professores tem sido uma prática constante. luxo que vinha para a mesa arrumada com a
Qual o valor e o sentido dessas inscrições toalha branca na sala. As torradas que no dia a
para a pesquisa? Como lançar mão de algo tão dia icavam na lata eram colocadas em cestos;
geleia, manteiga, queijo, tudo saía de seu uso
impreciso como a memória? Não estariam esses habitual e se apresentava em bandejas, com-
dados contaminados pelo tempo, pela imagi- poteiras, pratos de porcelana. E assim, com
nação, pela interpretação? Em resposta a essas este requinte ingido, tomávamos chá. Na ver-
dade, brincávamos de “tomar chá” (Extrato de
questões tenho me lançado outra pergunta: E Memória).
quando toda produção de conhecimento não
foi interpretação? Nunca. Mesmo quando olho Olhar novamente, produção de lem-
agora esse dado novo que me traz essa criança brança e produção de sentido. O passado nun-
que salta à minha frente também estou inter- ca é ixo. Ele se move a cada vez que o olhamos.
pretando. Também o meu olhar se move impul- Ele muda conosco.
sionado por inscrições anteriores. Todo pesqui- Essa narrativa me lembra um texto de
sador tem suas próprias demandas. É preciso
Vigotski (2009), onde ele se pergunta por que
bom senso, mas nada melhor do que a vida para
duas irmãs brincam de ser irmãs? A pergunta se-
viviicar a produção de pensamento.
ria: De que brincam duas irmãs quando brincam
Nesse movimento, memórias também
de ser irmãs? Talvez pudéssemos compreen-
me ajudam a colocar questões em diálogo.
der se entendermos que todas as brincadeiras

291
Tânia de Vasconcellos

guardam embutida alguma forma, mesmo que clichê. Mas a instauração da brincadeira exige a
rudimentar, de regra. Ou algo a que podemos integralidade da presença. Na brincadeira, mais
chamar de estatuto da brincadeira. Brincar de que tudo, é preciso estar por inteiro.
ser irmãs é um modo de explicitar aquilo que
se entende por “ser irmãs”. O fato de as meninas Brincar e realidade: infância e ilosoia
serem irmãs não implica, necessariamente, uma
forma particular de conduta. Mas ao brincarem Em 2008, Jorge Larrosa nos brindou com
de irmãs, elas evocam aquilo que acreditam que um texto intrigante em um seminário sobre In-
deva ser o universo das irmãs. Problematizam a fância e Filosoia. Nele, o autor interroga o pró-
questão. Colocam-na em discussão. Pensam so- prio estatuto do real. Ele nos fala de desejo de
bre o papel social das irmãs. realidade e, a rigor, só podemos desejar aquilo
de que carecemos. Sentimos falta do que não
É o mesmo caso do “brincar de tomar chá”.
temos. Na opinião de Larrosa, então, estamos
A brincadeira de tomar chá nada tem a ver com
em busca de um real que se dissipou. Nas pa-
o lanche da tarde – usual, ordinário, comum. A
lavras do autor, “o real está difícil”. Chamo o i-
brincadeira remete a pensar em si a partir de
lósofo para a conversa porque quero dar peso
uma outra possibilidade de si mesmo. A exercer-
a um conceito que para mim é muito caro: a
se nessa outra condição. Não é um “faz de conta
ideia de experiência. Walter Benjamin (2012)
que” está mais próximo de um “e se”.
tomou a si a discussão da experiência e da sua
Nos dois casos – as batatas e a louça in-
expropriação. Larrosa retoma o tema.
glesa –, os brinquedos surgem por dentro das
brincadeiras. Ou seja, eles se colocam na provo- A experiência não é outra coisa senão a nossa
cação de um uso brincante do objeto cotidiano. relação com o mundo, com os outros e com
nós mesmos. Uma relação em algo que nos
Porque não são, a rigor, brinquedos, não ativam passa, nos acontece. Então o desejo de reali-
padrões esperados de conduta lúdica. Ao con- dade está ligado à experiência, no sentido de
que o real só acontece se experimentado: o
trário, desaiam. A brincadeira só pode se ins- real é o que nos passa, nos acontece na expe-
taurar porque uma atitude brincante a impõe. A riência. Portanto, a experiência é esse modo
atitude frente à atividade, e não tão somente a de relação com o mundo, com os outros e
com nós mesmos em que o que chamamos
atividade, deine a condição brincante. Isso por- de realidade adquire a validade, a força, a pre-
que é possível estar envolvido burocraticamen- sença, a intensidade e o brilho aos quais me
referi. O desejo de realidade não é muito di-
te em uma atividade repetindo uma conduta ferente do desejo de experiência. Mas de uma
experiência que não esteja ditada pelas re-

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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

gras do saber objetivante ou crítico, ou pelas explica, não se captura em um discurso, não se
regras da intencionalidade técnica ou prática
sabe... Esse caminho não será dado pela razão.
(Larrosa, 2008, p. 186-187).

Para que o que existe tenha essa força, esse


Na argumentação do autor, temos hoje brilho, essa intensidade, que o validem como
um problema com a realidade e com o próprio real, talvez não nos sirva nem a razão objeti-
vante, nem a razão instrumental, nem a razão
conceito de realidade, seu conhecimento e representativa, nem a razão jurídica, nem a
transformação. A sensação de um mundo que razão crítica, nem a razão explicadora. Talvez,
foi plenamente realizado provoca uma sensação ainda tenhamos de explorar as formas de re-
lação com o mundo, com os outros e com nós
de irrealidade. Ainal, tudo o que existe já foi tor- mesmos que façam justiça ao acontecimento,
nado objetivo, posto em ordem, categorizado à presença, à proximidade, à airmação, à sur-
presa (Larrosa, 2008, p.189).
e determinado, o que, para Larrosa, equivale a
dizer que foi desperdiçado como real.
Não há como não concordar com Lar-
O tipo de relação com o que existe e que não rosa. O real está difícil... e me parece que se
é posta a perder, ou não é desperdiçada, não tornou mais difícil de lá para cá. A pouca vita-
parte de posição alguma, se não que é literal-
mente, ex-posição. O sujeito da experiência é lidade se esvai e há um sentimento estranho
um sujeito ex-posto, ou seja receptivo, aberto, de que a vida já nos chega vivida. Não estamos
sensível e vulnerável. Além de ser também presentes. A barbárie cresce em todo o mundo
um sujeito que não constrói objetos, mas se
deixa afetar por acontecimentos. O desejo de e, como sempre, são as crianças as que caem
realidade, cria então um desejo de aconteci- primeiro no front. São os importantes sem im-
mento (Larrosa, 2008, p.187). portância. Seguimos insensíveis. Não nos diz
respeito. Uma distância crítica nos separa da
O autor retoma o tema do real, destacan- vida que não nos afeta: postamos mensagens
do-o da ideia de aparência. O que dá ao real um sobre a morte do pequeno Aylan Kurdi – refu-
sentido capaz de validá-lo como força, brilho e giado de três anos que sobreveio morto no mar
intensidade é a presença. E não a representa- da Turquia. Reclamamos do trânsito engarrafa-
ção. Desse modo, o desejo de realidade seria do pela manifestação da comunidade do Caju,
também um desejo de presença, de proximida- no Rio de Janeiro, que toma a rodovia em re-
de, de airmação amorosa. Para construir essas volta pela morte do menino Herinaldo Vinícius
novas relações, capazes de trazer realidade ao de Santana, onze anos, morto com um tiro na
nosso real que se tornou opaco, se desvitalizou, cabeça quando ia comprar uma bolinha de
é preciso a surpresa e o novo. Aquilo que não se ping pong. O real está por um clique. Um ava-

293
Tânia de Vasconcellos

tar tomou o lugar dos homens e em seu nome Fazer da poesia morada. Desaiar o coro
se exerce cidadão. Estamos mudos, como dis- dos contentes: Carregar bandeira, ser gauche
se Benjamin sobre os homens retornados da na vida, um esquerdo que inventa desobjetos
guerra: cada vez mais pobres em experiências com seu cacoete de poeta e seu alicate cre-
comunicáveis. As ações da experiência conti- moso. Saber que, a despeito de vaticínios, va-
nuam em baixa. Valem cada vez menos. mos até o im!
Na perspectiva da lógica racionalista que No dia 6 de setembro deste ano, em
objetiva, classiica, separa, distingue, discrimina, visita à exposição Picasso e a modernidade es-
é compreensível que em meio à crise de refu- panhola, no Centro Cultural Banco do Brasil,
giados que toma a Europa alguém pergunte a no Rio de Janeiro, me deparei com os esboços
um menino de quatro anos se havia estrangei- de Picasso para o que seria depois a Guernica.
ros em seu Jardim de Infância. E é luminoso sa- Espantou-me a atualidade das imagens irma-
ber que o pequeno Niklas respondeu: “Não. Lá das nos anos 1930. Em particular as gravuras
só tem crianças” (WDR Lokalzeit aus Aachen, sobre o tema do Minotauro – símbolo de vio-
2015). Deixando claro que, em contrapartida a lência e poder. Em quatro delas o pintor ofe-
uma lógica excludente, está a amorosidade da rece uma redenção ao personagem. Na mais
lógica infantil. tocante ele apresenta o Minotauro cego guia-
do por uma menina na noite (Picasso, 2015). Eu
À guisa de conclusão estava me aproximando e afastando das telas
para tentar ver em perspectiva quando uma
Disse Larrosa em citação anterior que menina de uns oito anos, vendo aquele vai e
“talvez ainda tenhamos de explorar as formas vem, interpretou-o como desorientação. Ela
de relação com o mundo, com os outros e com me interpelou, perguntando: “Quer que eu te
nós mesmos, que façam justiça ao aconteci- mostre a saída?”. Olhei seus olhos profundos
mento, à presença, à proximidade, à airmação, e bebi na sua presença e sorriso. “Oh, sim!”,
à surpresa”. Não é à toa que nos voltamos aos pensei mentalmente. Se houver saída, só uma
pequenos. Há muito que se aprender com eles. criança poderá apontá-la. Sorri e agradeci
Na ação brincante da pequena Sarah en- pela oportunidade do encontro.
xergo presença, força transformadora, lumino-
sa, uma airmação de vida que me faz pensar
que, longe de imitar o real, a brincadeira dá
realidade ao real, o viviica. A brincadeira como
caminho – de resistência, de superação, de air-
mação de novas possibilidades.

294
A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA

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295
17
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO
DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS

Paulo Sergio Fochi


Carina Cavalheiro
Claudia F. Bergamo Drechsler

No Brasil, na última década, o acesso de um cotidiano que acolhe bebês em contextos


bebês em espaços coletivos de educação tem de vida coletiva. Tais noções são fortemente
crescido signiicativamente. Este fato, por um atravessadas pelas ideias da pediatra húngara
lado, signiica a busca pela garantia dos direitos Emmi Pikler e pela suas companheiras de tra-
dos meninos e meninas a frequentarem a creche balho no Instituto Lóczy, pois acreditamos que
e, por outro, implica em um desaio para a forma- este referencial possa contribuir signiicativa-
ção de professores que atuarão nestes espaços. mente com as especiicidades da ação peda-
Ao mesmo tempo, ainda não temos acu- gógica no berçário.
mulado saberes necessários para reletir o que Dentre os diversos aspectos que pode-
compõem esta “didática dos bem pequenos”, ríamos tratar a partir do referencial indicado,
ou, da “didática do fazer” como deinem Bon- escolhemos três pontos que consideramos fun-
dioli e Mantovani (1998, p. 31). Sabemos, no en- damentais, a saber: (i) o valor da atividade autô-
tanto, que muitos daqueles saberes da tradição noma e do movimento livre, (ii) as atividades de
pedagógica não atendem as necessidades dos atenção pessoal e (iii) o brincar dos bebês. Antes
bebês e das crianças bem pequenas na creche, de entrarmos em cada um destes pontos, opta-
tampouco, dos professores. A docência na cre- mos por contextualizar brevemente a trajetória
che é uma proissão que está sendo inventada. de Emmi Pikler e oferecer ao leitor alguns ele-
Por isso, o intuito deste texto é destacar mentos referenciais para compreender melhor
alguns pressupostos que consideramos impor- a obra desta importante estudiosa.
tantes a serem observadas na organização de

297
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler

Trajetória de uma pediatra que lutou importantes na construção dos protocolos de


pelo respeito as crianças trabalho da pediatra. Para ela, nestas situações,
não poderia ser mecanizado o processo ou
Emmi Pikler nasceu em Viena, na Áustria, deixado o bebê em segundo plano para o
em 1902, formou-se em medicina e licenciou- simples cumprimento da tarefa.
-se em pediatria no Hospital Universitário de Além disto, a pediatra húngara não
Viena. Depois de trabalhar muitos anos como via a necessidade de instruir ou exercitar o
pediatra e desenvolver sua pesquisa sobre mo- bebê, no sentido de estimulá-lo diretamente,
vimento livre, a pediatra foi convidada para as- pois a pediatra não considerava que o bebê
sumir a direção do Instituto Lóczy.
fosse passivo e pudesse se tornar uma pes-
Lóczy, mesmo nome da rua onde se locali-
soa ativa pelo impulso do adulto. Ao contrá-
za o instituto, funciona desde o início da década
rio, para a autora, o bebê é um sujeito ativo
de 40 como uma das instituições de acolhimen-
e é ele que deve atuar nos espaços, com os
to de crianças órfãs de Budapeste (Falk, 2011).
materiais, nas interações com os outros be-
Na ocasião em que Pikler assume a direção, o
momento histórico era muito particular, pois tra- bês e adultos a partir do seu desejo. Pikler
tava-se do im da segunda guerra mundial. Ao não acreditava que o modelo de intervenção
chegar em Lóczy, a pediatra espantou-se com a direta pudesse acelerar o desenvolvimento
falta de infraestrutura e com a precariedade do do bebê e pensava que, “caso acelerasse, não
lugar, assim como com a postura dos adultos representaria nenhuma vantagem para sua
responsáveis por “acolher” e “cuidar” dos meni- vida nem para seu desenvolvimento” (Falk,
nos e meninas que ali estavam naquele instituto. 2011, p. 19).
Emmi Pikler já havia veriicado em suas Aliás, a autora já havia conirmado de
pesquisas que intimidade e reciprocidade do que a criança que tem liberdade para brincar,
adulto com o bebê tem um valor profundo correr pelas ruas, jogar, subir em árvores, entre
no desenvolvimento integral da criança. Por outras atividades, sofre menos fraturas e me-
esta razão, acreditava que o adulto devesse nos traumas do que crianças superprotegidas.
construir o mais alto grau de consciência
Emmi Pikler estava convencida de que a criança
sobre suas intervenções. Os momentos de que pode mover-se com liberdade e sem restri-
aproximação mais íntima, como o da higiene, ções é mais prudente, já que aprendeu a me-
lhor maneira de cair; enquanto que a criança
do sono e da alimentação, sempre foram pautas

298
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS

superprotegida e que se move com limitações ou distante;


tem mais riscos de acidentes porque lhe faltam • O encorajamento e a manutenção da saúde fí-
experiências e desconhece suas próprias capa- sica da criança, fato que não só é base dos prin-
cidades e seus limites (Falk, 2011, p.18). cípios precedentes como também é um resul-
tado da aplicação adequada desses princípios.
Durante muitos anos, Pikler e uma de
suas principais colaboradoras, Drª Judit Falk, Visionária, Pikler já anunciava o paradoxo
constroem no Instituto Lóczy outra referên- da potência e da impotência dos bebês. Ou
cia de atenção à criança. Elas desenvolveram seja, por um lado ela airmava que os meninos e
uma ilosoia que buscava oferecer às crianças meninas, mesmo os bem pequenos, são ativos
que ali estavam, uma experiência de vida que e competentes para eleger as suas próprias
preservava o seu desenvolvimento e evitava atuações mas, ao mesmo tempo, dependem
as carências que podiam criar-se por causa da do outro, da presença presente, do adulto que
ausência dos pais. A experiência de Pikler de- cria bons contextos para que os bebês possam
monstra um profundo respeito pela criança atuar de forma autônoma (Fochi, 2015a).
pequena e as suas necessidades, revelando Neste sentido, os saberes construídos
pistas importantes sobre o papel do outro, em por Emmi Pikler em Lóczy, tanto em relação ao
especial, do adulto. papel do adulto quanto dos processos vividos
A partir do trabalho da pediatra no Insti- pelas crianças bem pequenas, constituem um
tuto Lóczy, construiu-se quatro princípios bá- reportório importante para pensar a educação
sicos sobre o cuidado com bebês em espaços das crianças na coletividade.
coletivos (Falk, 2011, p.28), a saber: Pikler faleceu em 1984 e, a partir de
1986, o instituto passou a carregar o nome de
• A valoração positiva da atividade autônoma da sua fundadora, chamando-se, então, Instituto
criança, baseada em suas próprias iniciativas;
• O valor das relações pessoais estáveis da Emmi Pikler. Atualmente, este instituto não
criança – e dentre estas, o valor de sua relação atua mais como orfanato e funciona como um
com uma pessoa em especial – e da forma e
do conteúdo especial dessa relação;
importante centro de formação direcionado a
• Uma aspiração constante ao fato de que professores, médicos, psicólogos e estudiosos
cada criança, tendo uma imagem positiva de do tema da primeiríssima infância e, também,
si mesma, e segundo seu grau de desenvolvi-
mento, aprenda a conhecer sua situação, seu como uma creche pública.
entorno social e material, os acontecimentos
que a afetam, o presente e o futuro próximo

299
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler

Atividade autônoma e movimento livre Então, para que a criança tenha con-
iança em si mesma, aqueles que a acompa-
Entende-se por atividade autônoma nham precisam também coniar em suas ca-
toda e qualquer atividade livre e espontânea pacidades. Coniar não é desejar que a criança
“escolhida e realizada pela criança – atividade chegue em algum lugar determinado pelo
originada de seu próprio desejo” (Tardos; Szan-
adulto ou que ela faça algo já previsto anteci-
to-Feder, 2011, p.52).
padamente. Mas, estar disponível para que os
Na experiência de Lóczy, Pikler nos dire-
ciona ao conceito de movimento livre. Através meninos e meninas possam ir descobrindo as
do movimento livre, a criança atinge o completo possibilidades do seu corpo e os mecanismos
conhecimento do seu corpo e de suas capacida- para alcançar seus desejos. Neste sentido, a
des, conhece seus limites e assim consegue con- construção da autonomia da criança indepen-
iar em si mesma. Nesta perspectiva, as crianças de da estimulação do adulto.
movimentam-se livremente, brincam com tran- Sabemos que existe uma preocupação
quilidade, aproveitando os espaços e os mate- dos pais e educadores sobre a necessidade de
riais, descobrindo a si mesmas e aos demais.
“ajudar” ou “exercitar” as crianças para que se
Segundo Tardos e Szanto-Feder (2011, p.48),
desenvolvam integralmente. Porém, podemos
Para a criança, a liberdade de movimentos sig- airmar a partir dos estudos da pediatra hún-
niica a possibilidade, nas condições materiais gara que não existe essa necessidade. Emmi
adequadas, de descobrir, de experimentar, de
aperfeiçoar e de viver, a cada fase de seu de- Pikler acreditava que o espaço, o material e o
senvolvimento, suas posturas e movimentos. olhar da cuidadora, era o necessário para “esti-
mular” o desenvolvimento da criança, pois não
O adulto cria as condições externas ne-
se trata apenas desenvolvimento motor, mas
cessárias para a criança realizar suas aventuras
sim, em pensar a criança na sua inteireza.
e desventuras da vida. Dá presença, respeitan-
do a criança com afetividade e tranquilidade,
As atividades de atenção pessoal
permanecendo no campo de visão dela para
que ela se sinta segura, garantindo o apoio
Os pressupostos postulados por Emmi
para as suas experiências e conquistas, além
Pikler airmam que a criança é um ser único,
de encorajá-la ao movimento livre, de forma
singular e que por isso precisa de cuidados e
autônoma, sem intervenção direta.

300
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS

atenção. É preciso encará-la como uma pessoa de a ideia de cooperar com a criança” (Hevesi,
com necessidades, expectativas, sentimentos. 2011, p. 86).
Um dos temas desenvolvidos pela autora é a Tomando como exemplo o momen-
respeito das atividades de atenção pessoal (Da- to da alimentação. Ao realizar este ato com
vid, Appel, 2010; Fochi, 2015a; Fochi 2015b). criança em um espaço de vida coletiva, o
Estas atividades são aquelas relaciona- adulto precisa estar consciente de que suas
das ao comer, ao descansar, à higiene. São, ações devem ir no sentido de contribuir para
como próprio nome diz, atividades pessoais que a criança tome consciência sobre o que
dos bebês. Portanto, momento importante e está acontecendo, estabeleçam relações com
de grande aprendizagem para estes que re- a materialidade envolvida, de modo que ela
cém estão chegando na cena humana. possa ir gradativamente conseguindo execu-
A partir disto, Pikler destaca sobre o cui- tar por si própria. Para que isso ocorra, é ne-
dado, desde a forma de segurar o bebê até a cessário observar três elementos importan-
maneira com que o alimento é dado a criança, tes: (i) enquanto for necessário que o adulto
chamando atenção para a necessidade dos auxilie a criança na alimentação, deverá anun-
gestos amorosos e carinhosos, da calma e da ciar as suas ações de modo a antecipar para
paciência com que se cuida e educa o bebê. a criança o que está por acontecer. Também
Tardos (1992, p. 19) nos convoca para o valor (ii) é importante que um adulto torne-se re-
educativo da forma como a educadora toca o ferência para um pequeno grupo de criança,
bebê, pois “a mão do adulto é para a criança de forma a criar códigos reconhecíveis pelos
uma fonte importante de experiência”. meninos e meninas dos momentos que estão
Além de um toque cuidadoso, outro por vir e, (iii) respeitar o ritmo de cada criança
elemento a ser considerado é a participação sem antecipar etapas.
das crianças no cuidado do seu corpo. O grau A partir destes elementos, constrói-se
de participação é diretamente inluenciado então uma verdadeira relação pessoal, tor-
pelo tipo de relacionamento entre educador e nando o cuidar um momento único, íntimo e
o bebê, ou seja, os educadores devem “tratar pleno de comunicação.
a criança não como um objeto, mas como um
ser humano vivo e aceitam como possibilida-

301
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler

O brincar dos bebês na creche noções básicas acerca de si mesmos, dos outros
e do mundo, aprendendo a dominar e conhecer
“O primeiro brinquedo do bebê é o cor- as partes do nosso corpo e suas funções, a nos
po do adulto que cuida dele” (Goldschmied; Ja- orientarmos no espaço e no tempo, a manipu-
ckson, 2006, p.113), seja ele seu pai, sua mãe ou larmos, construirmos e estabelecermos relações
o cuidador. Brooker, Woodhead (2013, p.17) nos com os outros.
explica que “os bebês aprendem a conhecer a si No entanto, os adultos precisam permitir
mesmos e o mundo em que vivem mediante as que os bebês e crianças bem pequenas possam
interações lúdicas com seus primeiros cuidado- ter momentos em que brinquem sozinhos, onde
res”. Ao mamar, por exemplo, o bebê através da possam aprender por sua própria iniciativa. Ao
sucção no seio de sua mãe experimenta o sugar adulto, compete criar as condições necessárias
mais forte, a pausa. Busca pegar adereços como para que a brincadeira se concretize e tenha uma
brincos, colares, óculos, entrelaça seus dedos nos observação atenta para com o bebê. As crianças
cabelos. Todas essas interações e experimenta- que não brincam sozinhas, muitas vezes, costu-
ções representam maneiras iniciais de brincar. mam apresentar essa diiculdade em decorrên-
Também a mão compõe uma das primei- cia da conduta intervencionista do adulto, onde
ras descobertas da criança. Ela dedica grande as tornam passivas e sem iniciativas.
parte do seu tempo a observá-la, acompanhá-la Cabe aqui, salientar que a atividade autô-
com sua cabeça e seus olhos. Chokler (2014, p. noma permite à criança seguir seu próprio ritmo,
3) descreve que “o descobrimento, primeiro, e a sua curiosidade, explorar e experimentar a auto-
utilização depois, de suas próprias mãos como nomia. Fabrés (2011, p.56) lembra que um dos
objeto de exploração e de brincar, constitui um principais objetivos da educação dos pequenos
rito fundamental no desenvolvimento infantil”. é “favorecer, facilitar a progressiva aquisição de
O brincar é uma necessidade humana. Ele sua autonomia, para que chegue a ser autônomo
ocupa o lugar central do aprendizado das crian- como pessoa, que possa ser, fazer e decidir por
ças desde o nascimento, isto é, quando estão si mesmo”. Considerando esta perspectiva que
brincando, as crianças estão construindo as “ba- reforça o dever da educação em tornar os peque-
ses” de toda a sua futura aprendizagem. O brin- nos seres autônomos, “é necessário que comece-
car é a maneira como as crianças se comunicam, mos por respeitar a sua atividade autônoma, sua
indispensável e fundamental para a nossa forma- liberdade de movimentos, seu processo evoluti-
ção em todas as etapas de nossa vida. Desde pe- vo, partindo claramente da ideia de uma criança
quenos, através do brincar, vamos incorporando competente desde o nascimento” (Fabrés, 2011,
p. 56).

302
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS

A autora nos mostra que temos de ter um pontaneamente. Será esse chão rígido que vai
profundo respeito pelo bebê, sendo ele um su- auxiliá-la a encontrar a posição mais confortável
jeito de ação, um sujeito capaz, para quem de- e segura, sem “camular” seus movimentos, onde
vemos proporcionar espaços e condições a im os objetos agem de forma real, rolam quando
de que ele possa contemplar a sua atividade são lançados, fazem barulho quando jogados
autônoma e o seu brincar livre para ir progres- contra o solo, o que não seria possível em um
sivamente adquirindo autonomia, favorecendo solo revestido com espuma ou qualquer outra
suas aquisições e sua aprendizagem a partir de superfície fofa (Kálló, 2013).
seus próprios erros e acertos. Esse brincar vai ao Com este espaço estruturado para o brin-
encontro da abordagem Pikler, baseada no res- car livre, somando a conscientização do adulto
peito dos movimentos da criança e uma atitude de sua postura em relação à criança, devemos
não intervencionista do adulto, permitindo seu proporcionar e oferecer objetos para que o brin-
desenvolvimento autônomo. car aconteça. Objetos que permitam a realização
Além da conduta do adulto, é importante das experimentações por parte da criança, que
garantir um espaço adequado para que a crian- façam com que ela, através da sua curiosidade,
ça possa gradualmente construir sua liberdade vá buscar pelo que a cerca.
de movimentos e desenvolver o brincar livre, As autoras Éva Kálló e Györgyi Balog, com-
sendo necessário e essencial que haja uma “área panheiras de trabalho de Emmi Pikler em Lóczy,
do brincar”. Esta área deve ser um local protegi- trazem em seu livro intitulado como “Los Oríge-
do para as crianças que apenas icam de barriga nes del Juego Libre” (2013) um estudo profundo
para cima, outro local para as crianças que já se do brincar livre, desde o descobrimento inicial
deslocam ou engatinham e outra área para as das mãos do bebê, a sua manipulação, a experi-
que já caminham (Kálló, 2013). É imprescindível mentação com objetos e a construção e combi-
que hajam esses espaços separados para garantir nação com os mesmos.
que todas as crianças tenham o seu momento do A partir das relexões de Kálló e Balog
brincar livre sem interferir e nem desconcentrar o (2013), organizamos o quadro a seguir para iden-
brincar do outro, para centrarem-se inteiramente tiicar algumas características de manipulação
na exploração de seus brinquedos/objetos. dos objetos e, por isso, determinadas opções de
O local ideal para que isso ocorra deve materiais. Em hipótese alguma tal resumo tenha
ter um solo rígido, sua consistência é vital para a intenção de apresentar estágios ou períodos
o desenvolvimento da mobilidade da criança, determinantes e universais, mas consideramos
onde ela possa fazer suas próprias escolhas e que são noções importantes para reletir os be-
descobertas, movimentando-se e brincando es- bês e suas experiências primeiras.

303
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler

304
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS

A partir destas informações, acreditamos compreenderem equivocadamente a ideia de


que ica evidente o quanto o bebê realiza ativi- socialização e, a partir desse equívoco, os mo-
dades a partir de seu próprio desejo. Perceber mentos do cotidiano ser organizado para que
tais aspectos nos ajuda a reletir melhor sobre e os bebês façam todos juntos o tempo todo –
organização de espaço para o brincar das crian- hora da higiene, hora da água, hora do sono,
ças, dos materiais disponibilizados e do tempo hora da alimentação – ou, por não ser reconhe-
cido a complexa tarefa que é tornar-se eu ao
necessário para que os meninos e meninas bem
mesmo tempo em que se tornam grupo.
pequenos possam se descobrir, descobrir seu
O propósito deste texto foi destacar
corpo, suas mãos, o seu entorno, o mundo.
aquilo que consideramos fundamental a ser
reletido para não cairmos nesta e em tantas
Utopia do cotidiano: considerações i-
outras armadilhas. Considerar as atividades de
nais
atenção pessoal um aspecto importante do
cotidiano, compreender o valor do movimento
A chegada de bebês nos ambientes co-
livre e das atividades autônomas e perceber a
letivos nos convoca a problematizar e reletir
intensidade e riqueza das brincadeiras dos be-
os modos como as instituições estão se organi-
bês estruturam não só alguns caminhos para
zando para acolher os universos daqueles que
a organização das instituições, mas, também,
recém chegaram. Sonhar com a utopia do co-
para a própria formação dos professores.
tidiano é o que nos ensina Emmi Pikler e suas
Assim como Pikler enfrentou o desaio
companheiras de trabalho em Lóczy.
de propor um espaço melhor, mais cuidadoso,
A atenção a cotidianeidade e as ativi-
sensível e atento aos bebês, também nós pos-
dades que daí decorrem são o ponto chave
samos caminhar rumo a creches que consigam
para estas autoras, que reforçam o valor das
acolher “a complexidade da chegada dos be-
primeiras experiências para a vida dos meni-
bês no mundo” (Fochi, 2015b, p. 53).
nos e meninas. O fato destas crianças estarem
tão precocemente na coletividade é um alerta
para perseguirmos modos de funcionamento
em que a ideia de “individuo” não se perca no
excesso do “todos juntos”.
Esta é uma armadilha perigosa e fácil de
ser armada dentro das instituições. Seja por

305
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler

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307
18
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO
ACERCA DO TEMPO

Sueli Salva

Chegou a hora da aventura cada um, a vontade incontida de controlar o


em busca do tempo perdido
tempo. Tal feito faz parte das estratégias huma-
o que a humanidade grita é
eu quero a liberdade, é lógico. nas construídas ao longo da história da humani-
Mas o que a natureza ensina dade. Mesmo que, concretamente, seja impossí-
é que nada tem que ser cronológico...
Paulinho Moska vel controlar o tempo, as estratégias construídas
para isso conseguem direcionar o comporta-
Tempo para nascer, tempo para crescer, mento humano submetendo-o ao tempo. Po-
tempo para ser adulto, tempo para envelhecer. rém, esse desejo de controlar o tempo não se
Tempo para ser criança, tempo para brincar, traduz apenas em vontade de controlá-lo para
tempo para ir à escola, tempo para trabalhar, si, mas, sobretudo, controlar o outro.
tempo de lazer, tempo para parar de brincar. Em cada espaço institucional o tempo
Tempo passado, tempo presença, tempo futu- tem um sentido diferente, tem a sua especii-
ro. Tempo de dormir, tempo de acordar, tempo cidade, mas em todos eles subjaz o desejo de
de chegar, tempo de partir, perder tempo. Vida controle do tempo do outro, através de im-
de muitos tempos, vida sem tempo, tempo posição de rotinas rígidas. Esse controle pode
sem vida... ser também aprendizagem e o que se faz
Há tantas formas de nos referirmos ao em nome dela ica no limiar entre controle e
tempo, há tantas formas de vivermos o tempo, aprendizagem, em uma linha muito tênue que
como há dentro de cada um de nós, como se separa os dois, cujas fronteiras não podem ser
fosse o desejo da humanidade traduzido em delimitadas uma vez que uma pode invadir a

309
Sueli Salva

outra. O tempo da instituição escolar é esse denominaram tempo externo, tempo social.
tempo que está sempre no limiar entre contro- Melucci (2004) também fala de outro tempo,
le e aprendizagem. Sob esses dois argumentos aquele interno, dos afetos, das emoções e vive
(um explicito - aprender e outro implícito-con- no corpo, que dá oportunidade ao indivíduo
trolar) constrói-se a ideia de que na instituição de fugir ao controle do tempo, embora de for-
escolar é tempo de aprender, tempo de inte- ma muito sutil e efêmera. Elias (1984) fala de
ração, tempo do brincar, porém, implicitamen- tempo da experiência que também está rela-
te, também é tempo de controlar o corpo e de cionado ao indivíduo, aquilo que o sujeito vive,
submetê-lo ao tempo, ou seja, também é tem- que constrói ao longo da vida e que também
po de aprender o tempo. foi construído historicamente, passado de ge-
Todos, de algum modo, somos submeti- ração a geração. O tempo da experiência tem
dos ao tempo. A natureza que nos permite nas- por um lado um caráter social, pois se relaciona
cer anuncia nesse mesmo instante que temos ao contexto social no qual o sujeito está em in-
um tempo para viver. Um tempo que nos leva do teração com o outro e, por outro lado, está re-
nascimento à morte. Esse é o tempo da natureza. lacionado ao sujeito e a sua subjetividade. De
No intervalo do nascimento à morte, desse tem- qualquer modo o tempo da experiência é um
po que chamamos tempo da natureza ou pode- tempo vivido e construído socialmente e tem a
mos denominar ciclo da vida, somos submetidos função de coordenação e integração.
a uma variabilidade de tempos, que pouco tem Deste modo, nos interrogamos acerca
relação com a natureza, embora tenha sido cons- do tempo da infância. Como ele é vivido pelas
truído sobre as bases da natureza. Relacionado à crianças nas instituições de educação infantil?
natureza, temos o marco do nascimento à morte, Quais as estratégias utilizadas para ensinar o
porém, esses eventos estão submetidos a outros tempo às crianças e ao mesmo tempo possi-
tantos tempos, que a natureza, a qual nos rege, bilitar que ela tenha espaço para viver o tem-
de forma soberana e não mais absoluta, oferece po das emoções. As instituições possibilitam
margens a outros tempos: O tempo da história, que as crianças possam aprender o tempo de
tempo do indivíduo, tempo da razão, tempo da uma forma humanizadora? Quais as possibili-
emoção, tempo da cultura, tempo da experiên- dades que a criança encontra nas instituições
cia, tempo da máquina - o relógio. de educação infantil para viver o tempo do
O tempo da máquina é aquele que passa corpo, tempo da emoção, dos sentimentos
e pode ser medido, cronometrado e que não e, de forma harmoniosa e integrada também
pode retornar que Melucci (2004) e Elias (1984) viver o tempo social, tempo relógio? Como a

310
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

instituição de educação infantil possibilita que políticas direcionadas à infância. Esse investi-
a criança organize a vida de acordo com o tem- mento inclui tanto a questões relativas a infraes-
po, possibilitando harmonia entre corporeida- trutura quanto da formação de professores,
de, subjetividade e tempo? através de cursos oferecidos em parceria com
Partindo destas ideias iniciais e destes estados, municípios e IFES. Através do Plano de
questionamentos, pretende-se aprofundar al- Desenvolvimento da Educação (PDE), o Minis-
guns aspectos relativos ao tempo da infância tério da Educação, o Plano de Metas e Compro-
vivido pelas crianças nas instituições de edu- missos Todos Pela Educação possibilita aos es-
cação infantil as quais o grupo acompanhou tados e municípios a criação do Plano de Ações
durante o desenvolvimento do projeto de “As- Articuladas (PAR1), Plano Nacional de Formação
sessoramento e Acompanhamento Pedagógi- dos Professores da educação Básica (PARFOR2),
co de Ensino na Implementação do Proinfância
em Municípios da Região Central e Noroeste 1 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), apresen-
do estado do Rio Grande do Sul”, mais especi- tado pelo Ministério da Educação em abril de 2007, colocou à
disposição dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, ins-
icamente reletir sobre os modos de apreen- trumentos eicazes de avaliação e implementação de políticas
der, aprender e viver o tempo no interior das de melhoria da qualidade da educação, sobretudo da educação
básica pública. O Plano de Metas Compromisso Todos pela Edu-
instituições. Busca-se pensar quais as possibili- cação, instituído pelo Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007,
dades que a criança encontra na instituição de inaugurou um novo regime de colaboração, conciliando a atua-
ção dos entes federados sem lhes ferir a autonomia, envolvendo
educação infantil para viver o tempo do cor-
primordialmente a decisão política, a ação técnica e atendimen-
po, tempo da emoção, dos sentimentos e, de to da demanda educacional, visando à melhoria dos indicadores
forma harmoniosa e integrada, também viver educacionais. A partir da adesão ao Plano de Metas, os estados,
os municípios e o Distrito Federal passaram à elaboração de seus
o tempo social, tempo relógio e ao longo do respectivos Planos de Ações Articuladas (PAR). A partir de 2011,
tempo, organizar a vida de acordo com o tem- os entes federados poderão fazer um novo diagnóstico da situa-
ção educacional local e elaborar o planejamento para uma nova
po, possibilitando harmonia entre corporeida- etapa (2011 a 2014), com base no Ideb dos últimos anos (2005,
de, subjetividade e tempo. 2007 e 2009).
(fonte: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_con-
tent&id=159&Itemid=235).
O Tempo nas Instituições de Educação 2 O Parfor, na modalidade presencial é um Programa emer-
Infantil gencial instituído para atender o disposto no artigo 11, inciso III
do Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009 e implantado em
regime de colaboração entre a Capes, os estados, municípios o
A partir de 2005, o Governo Federal, atra- Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior – IES. Tem
como objetivo Induzir e fomentar a oferta de educação superior,
vés das políticas desenvolvidas pelo Ministério gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede
da Educação, tem investido na construção de pública de educação básica, para que estes proissionais possam
obter a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educa-

311
Sueli Salva

através da Plataforma Freire, oferecendo aos até de forma ingênua em alguns momentos,
professores da educação básica cursos de EAD, mas que se constituem em formas de agres-
cursos presenciais, entre eles a Especialização e são à criança. Nestes momentos, percebíamos
o Aperfeiçoamento em Docência para a Educa- que a formação é essencial e que deve ser
ção Infantil, programa Proinfância3, etc.. prioridade na educação infantil, uma vez que
Nosso grupo faz parte dessa formação a escola tradicional tem inluenciado de for-
através do projeto “Assessoramento e Acom- ma muito contundente a rotina da instituição
panhamento Pedagógico de Ensino na Imple- de educação infantil. Desse modo, nos propo-
mentação do Proinfância4” em Municípios da mos aqui reletir acerca da categoria tempo,
Região Central, Noroeste e Norte do estado buscando fazer uma relação entre o concei-
do Rio Grande do Sul”. Durante as “formações to e as práticas pedagógicas realizadas com
em contexto”, percebemos que a categoria as crianças pequenas. Compactuamos com
tempo necessita ser aprofundada, visto que, a concepção de Barbosa e Horn (2001) que a
de modo geral, as crianças são submetidas ao organização do tempo na Educação Infantil
tempo social e ao disciplinamento do corpo deve ser feito com base nas necessidades das
através de rotinas rigidas. Tais conclusões tem crianças o que exige que os professores este-
origem nas observações realizadas durante as jam atentos a elas.
visitas técnicas e nas formações em contexto, Partimos de alguns exemplos concretos
bem como provenientes de relatos e vídeos os quais observamos nas escolas que se consti-
que algumas escolas enviaram a coordenação. tuem em momentos que as crianças pequenas
São ações realizadas com as crianças na rotina são submetidas ao tempo da escolarização e
da escola, muitas vezes, de forma inconsciente, do disciplinamento dos corpos. Tempo em que
os bebês devem icar no bebê-conforto ape-
ção Nacional – LDB e contribuam para a melhoria da qualidade nas olhando o que está acontecendo ao seu
da educação básica no País. (fonte: http://www.capes.gov.br/
educacao-basica/parfor). redor sem poder interagir; tempo que as crian-
3 O curso de Especialização em Docência na Educação Infan- ças icam esperando para comer, quer seja no
til é um curso de pós-graduação (lato sensu), ofertado pelas IFES,
de forma presencial aos professores da educação infantil, com refeitório, quer seja na sala; tempo de fazer a
experiência comprovada em docência na educação infantil. A atividade considerada “a mais nobre” da escola,
UFSM está ofertando a segunda edição.
4 O projeto é coordenado pelas professoras Viviane Ache
que em geral é uma atividade de reprodução,
Cancian e Débora Teixeira de Mello respectivamente coordena- própria do processo de escolarização dos anos
dora e vice-coordenadora.

312
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

iniciais; tempo que a criança ica realizando “a através dos seus símbolos, marca o tempo que
atividade” na sala, enquanto as outras crianças passou, o tempo que falta, a hora de chegar, a
estão brincando para recuperar a atividade fei- hora de sair. Somos também regidos pelo ca-
ta pelas outras crianças no dia anterior e que lendário criado a partir das estações do ano, ou
esta, por alguma razão, não consegui realizar seja, inspirado em uma natureza cíclica. Sem
no tempo “certo”; e o mais marcante e talvez prescindir dessa necessidade e do que social-
mais traumático para as crianças, ‘o tempo do mente implica viver sob a égide do tempo, nos
sono’, imposto a todas as crianças na mesma perguntamos: Como pensar e compreender o
hora do dia. São diferentes situações nas quais tempo da criança, o tempo que transcorre na
o tempo relógio e o tempo do adulto prevalece sua corporeidade? Haveria algum modo de
sobre o tempo da criança. pensar e construir esse tempo inspirado na
Para compreender o tempo não basta subjetividade infantil?
ter ao nosso alcance o relógio e olhar para os Esse tempo, submetido a uma natureza
seus ponteiros, especialmente, quando esse que faz passar o tempo, a uma máquina que
tempo está relacionado a criança. No nosso co- indica o passar do tempo, mas que ao mesmo
tidiano, o tempo nos cerca, e essa certeza nos tempo reserva um potencial individual indica
impulsiona a nomear e organizar eventos do a multiplicidade de tempos. Esse tempo, que
cotidiano. Da mesma forma nas instituições de é também possibilidade para fugir ao controle
educação infantil. Essa organização é necessá- do tempo, que é denominado tempo interno,
ria e de certa forma nos dá segurança para nos que não pode ser medido, porque está relacio-
movermos entre um evento e outro, entre uma nado a subjetividade, as emoções, aos senti-
atividade e outra. mentos e é próprio de cada individuo também
O problema se constitui quando em indica multiplicidade de tempos. Como então
nome da organização, o tempo do adulto, so- organizar o tempo, respeitando a multiplicida-
cial e contínuo, prevalece sobre o tempo da de e o tempo subjetivo? Como então pensar
criança. Costumamos dizer: temos pouco tem- esse tempo de forma coletiva, sem agredir a
po, nos falta tempo, ainda tem tempo, termi- criança, mas ao mesmo tempo manter uma or-
nou o tempo e para não deixar o tempo esvair- ganização? Será possível conciliar tempo social
-se, organizamos rotinas. Fazemos a rotina com e tempo interno? Respeitamos o tempo que a
base no cadenciar do ponteiro do relógio, que criança precisa para amarrar o tênis? Para ali-

313
Sueli Salva

mentar-se? Respeitamos o tempo das necessi- acontecem tanto as atividades repetitivas, ro-
dades isiológicas das crianças ou impomos o tineiras, triviais, como também é o locus onde
tempo dos adultos? há a possibilidade de encontrar o inesperado,
Durante a história da humanidade mui- onde há margem para a inovação”.
tos pensadores se questionaram sobre o tem- Candido Portinari pintou o tempo da
po e sobre a possibilidade de ser medido. A infância, expressou com os tons da terra ver-
existência do relógio torna concreta a ação de melha o deleite das crianças brincando, sem
medir o tempo. Norbert Elias (1984, p.8) airma pressa e sem controle. A luz do sol apenas
que “os relógios exercem na sociedade a mes- servia como reguladora do tempo de brincar.
ma função que os fenômenos naturais – a de Nenhum relógio, nenhum adulto a espreita.
meios de orientação para homens inseridos Nesse tempo, pode-se dizer que não há rotina,
numa sucessão de processos sociais e físicos”. mas há uma forma de organização do cotidia-
Remetendo essa ideia a instituição de Edu- no que possibilita o “inesperado, a inovação”. O
cação Infantil, entendemos o relógio como o corpo e sua sincronia em interação com outros
meio de orientação para organização da rotina, corpos e outras crianças, de algum modo, re-
estabelecendo o tempo de entrada, de alimen- presenta uma infância menos controlada e me-
tação, higienização, tempo de dormir, tempo nos submetida ao tempo do relógio.
da volta para a casa. Sendo o tempo algo que
pode ser aprendido socialmente e que envolve
tanto a subjetividade (tempo interno) como os
signiicados sociais (tempo social) não deve-
ríamos também respeitar o tempo da criança
para organizar a rotina instituição de educação
infantil? Isso não signiica opor-se à ideia de
rotina. Barbosa (2000, p. 94), em suas relexões
sobre rotina, argumenta que as mesmas “po-
dem ser vistas como produtos culturais cria-
dos, produzidos e reproduzidos no dia-a-dia,
tendo como objetivo a organização da cotidia-
nidade.” Em contraposição a ela, pode-se pen- Portinari. Futebol. Óleo sobre tela, 1935.
sar em formas de ‘organizar o cotidiano’, sendo
esse conceito mais lexível, “pois é nele que

314
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

reza. Sabemos que socialmente, essas crianças


também estavam submetidas ao tempo do
relógio, porém, mais do que a rotina, perpas-
sa uma forma de organização do cotidiano. A
obra pode ser um apelo para respeitar o tem-
po do corpo, como pode representar uma das
formas possíveis das crianças viverem o tempo.
De qualquer modo, os relógios foram
criados para que o homem pudesse organi-
zar o seu tempo. Essa forma de medir o tempo
nasce de uma necessidade de organização hu-
mana e até hoje é levada a termo, através da
Portinari. Roda Infantil. Óleo sobre tela, 1932. máquina relógio.

Para Elias, os relógios “servem também Quando em estágios precoces da sociedade,


para harmonizar os comportamentos de uns fez-se sentir a necessidade de situar os aconte-
cimentos e de avaliar a duração de alguns pro-
para com os outros, assim como para adap- cessos no âmago do devir, adquiriu-se o hábi-
tá-los a fenômenos naturais, ou seja, não ela- to de escolher como norma um certo tipo de
borados pelo homem” (1984, p.8) como, por processos físicos, limitando-se aos fenômenos
naturais, únicos, como tudo o que decorre do
exemplo, o dia e a noite, organizando o tempo devir. [...] Essas sequências recorrentes, comer,
do sono, tempo de alimentar-se. Os relógios o ritmo das marés, os batimentos do pulso ou
exercem, portanto, uma função positiva na so- o nascer e o pôr-do-sol ou da lua, foram uti-
lizadas para harmonizar as atividades dos ho-
ciedade. Assim, em qualquer instituição, quer mens e para adaptá-las a processos que lhes
seja de educação ou não, vamos ser regidos eram externos, da mesma maneira que foram
pelo tempo do relógio, que embora tenha sido adaptadas, em estágios posteriores, aos sím-
bolos que se repetem no mostrador de nossos
inspirado nos movimentos da natureza, obe- relógios (Elias, 1984, p. 8).
dece a um sistema linear, objetivo, irreversível
e que se contrapõe, em parte, ao tempo que
Esse tempo, medido a partir das sequên-
se revela nas obras “Futebol” e “Roda Infantil”,
cias da natureza, da regularidade, e que serve
de Cândido Portinari. As crianças pintadas por
para harmonizar as atividades dos homens,
ele parecem viver intensamente a liberdade do
também busca harmonizar a nossa vida coti-
tempo do corpo, regido pelo tempo da natu-
diana e, cuidadosamente, deveria harmonizar a

315
Sueli Salva

vida das crianças nas instituições de educação É o passar dos anos, o movimento do
infantil. Em nome dessa pretensa harmoniza- sol e da lua, o processo de envelhecimento
ção, constrói-se as rotinas as quais as crianças que nos coloca diante da irreversibilidade do
são submetidas constantemente, porém nem tempo. Na tentativa do homem de organizar
sempre essas rotinas respeitam a subjetivida- tais eventos, de qualquer modo, irreversíveis,
de da crianças, ou podemos dizer, nem sempre ele busca organizar o cotidiano a partir do
respeitam o tempo interno das crianças. tempo relógio, assim, tem a ilusão de controlar
O tempo que passou a ser medido, cons- o tempo. Ato consciente, porém, ineiciente.
truído a partir dos movimentos da natureza, O mesmo não ocorre em relação ao processo
precisou ser construído a partir de certa regu- de aprendizagem do tempo (não tempo como
laridade, esse tempo forma uma continuidade objeto – como experiência cotidiana e seus
sucessiva, recorrente, cadenciada, igual, que eventos), pois situar-se em um cotidiano orga-
se constitui como pontos de referência. Esses
nizado exige uma aprendizagem desse proces-
pontos de referência são expressos através da
so, por isso a concepção de que o tempo tam-
linguagem (hora, minutos, segundos) e como
bém requer aprendizagem e compreensão.
tal se tornam símbolos, da mesma forma que
De acordo com Elias (1984), essa sem-
outras tantas expressões relativas ao tempo,
pre foi uma necessidade dos seres humanos,
se constituem como formas simbólicas de ex-
porém, um sujeito, por si só, não tem como
pressões sobre o tempo, como: calendário,
compreender o tempo, ele “vai sendo assimi-
estações do ano, ano, mês, que representam
unidades de tempo. lado pela criança na medida em que cresce
numa sociedade”. Para o autor, o “conceito de
O movimento aparente do Sol, de um ponto a tempo não é objeto de uma aprendizagem, em
outro do horizonte, assim como o movimento sua simples qualidade de instrumento”. É uma
dos ponteiros de um relógio de um ponto do
mostrador a outro, são exemplos de sequên- aprendizagem que ocorre durante o processo
cias recorrentes que podem servir como uni- de crescimento, a partir das experiências vivi-
dades de referência e meios de comparação das pelos sujeitos nos contextos que vive.
para segmentos de processos pertencentes a
uma outra serie e que não, podem ser direta- É durante esse processo que a criança:
mente relacionados, em razão de seu caráter
sucessivo. Em sua qualidade de símbolos re- Vai-se familiarizando com o “tempo” como
guladores e cognitivos, essas unidades de re- símbolo de uma instituição social cujo caráter
ferência adquirem a signiicado de unidades coercitivo ela experimenta desde cedo. Se no
de tempo (Elias, 1984, p. 13). decorrer de seus primeiros dez anos de vida,
ela não aprender a desenvolver um sistema

316
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

de autodisciplina conforme essa instituição nometrar o tempo é uma forma de organizar a


se não aprender a se portar e a modelar sua
vida é importante, mas também ter como cen-
sensibilidade em função do tempo, ser-lhe-á
muito difícil, se não impossível, desempenhar tro a criança e seu processo de aprendizagem
o papel de um adulto no seio dessa sociedade do tempo é um aspecto que não pode ser ne-
(Elias, 1984, p. 14).
gligenciado. Como então familiarizar a criança
com o tempo sem que seja um processo ape-
Entretanto, pode haver diferentes formas nas de submissão a regras externas?
de ensinar o tempo às crianças, sem que se to- Percebemos que, de acordo com Nor-
lha a liberdade, como expressou Manuel de Bar- bert Elias (1994), familiarizar-se com o tempo
ros, em “O Apanhador de Desperdícios “[...] Pre- é uma necessidade humana da qual não po-
zo a velocidade das tartarugas mais que a dos demos prescindir. Para ele o tempo é um ins-
mísseis. [...]”. Talvez tenhamos que reaprender trumento de orientação indispensável para a
o tempo do ciclo, o tempo da natureza, o tem- organização do indivíduo. Entretanto, ainda
po lento, o tempo descompassado do tempo. que tenhamos que nos submeter ao tempo e
Talvez tenhamos que aprender que diferentes apreendê-lo para podermos organizar nossa
pessoas vivem o tempo de maneira diferente, vida, há uma margem de autonomia da qual
sentem o tempo de maneira diferente e que o ser humano pode dispor, além do tempo da
conciliar essa diferença será sempre um desaio natureza o qual não podemos controlar.
que necessita conhecimento e sensibilidade.
Esses espaços de liberdade, que podem am-
Sobre aprender e o luir do tempo: mar- pliar-se ou se restringir, tem limites, e o curso
externo da natureza sempre tem a última pa-
gens de liberdade lavra. No entanto, foi ele (o tempo) que produ-
ziu esses seres dotados do mais alto nível de
Essa tentativa de controle e organização organização o que se conhece até hoje, isto
é, os homens, os quais possuem, entre outras
é levada a termo nas instituições de educação coisas, a capacidade de se comunicar por in-
infantil, e em nome da harmonia e do proces- termédio de símbolos sociais especíicos, que
so de familiarização com o tempo, passam a não estão inscritos em seus genes, mas que
eles inventaram e dos quais se servem para se
submeter às crianças a uma série de controles, orientar no mundo (Elias, 1984, p. 18).
cronometrados, cadenciados, pelos ponteiros
do relógio. Portanto, saber que o tempo pode É, portanto, essa margem de liberdade
ser sentido e vivido de forma diferente, que o que nos interessa, uma vez que dela podemos
tempo é também o tempo do corpo, que cro- dispor e que pode ser denominada de tempo

317
Sueli Salva

interno. É um processo, no qual o indivíduo retornam em outros tempos do mesmo modo


busca diferenciação. O tempo social exerce em celebrações que se perpetuam.
uma força coercitiva no indivíduo, essa força A lecha indica que o tempo faz um per-
está sempre presente, não como forma de curso linear, contínuo, com um objetivo delimi-
violência, mas uma presença constante da qual tado ao inal. Esse é o princípio do Cristianismo.
os indivíduos não podem escapar. Mas o tempo Na religião, colocava-se o im da vida como o
interno, aquele que é vivido de forma diferente momento da salvação cujo princípio moral di-
por cada sujeito e de forma diferente em cada zia que era preciso ser suicientemente bom
evento cotidiano, é aquele que possibilita ter para a alma ir ao céu depois da morte, e que
a ilusão de fugir do controle do tempo social. sofreriam o castigo eterno aqueles que não se
Como então trabalhar com as crianças de forma enquadravam dentro da moral cristã. A moral
a orientá-las para a construção do tempo social, cristã contém o tempo do ciclo, mas agrega a
em seu processo de organização, sem que lhe dimensão da lecha. A indústria se beneiciou
seja usurpada a margem de liberdade de que do princípio da meta religiosa, utilizando-o
pode dispor para viver o tempo interno? para garantir que os trabalhadores se esforças-
Uma alternativa poderia ser ventilada atra- sem para ser eicientes e seriam recompensa-
vés da compreensão da dimensão do tempo in- dos ao inal. A escola, igualmente, beneiciou-
terno, que pode signiicar potencializar o espaço -se desse princípio, criada na modernidade,
de liberdade que ainda resta a cada indivíduo. tem como foco principal o resultado em de-
Alberto Melucci (2004) nos ajuda a com- trimento do processo, por mais que as teorias
preender a dimensão do tempo de outra forma. contemporâneas busquem romper com esse
O autor utiliza metáforas para representá-lo, as paradigma. Ainda prevalece o discurso que ser
iguras são: o círculo, a lecha, os pontos e a bom aluno hoje possibilita a você ser um bom
espiral. O tempo do círculo é percorrido conti- proissional amanhã. É essa concepção que
nuamente, de maneira circular e retorna sem- perpassa quando tornamos a Educação Infan-
pre ao mesmo ponto. Este é também o tempo til tempo de preparação de preparação para o
do mito, lugar onde as coisas se repetem, nada Ensino Fundamental, esquecendo que o tem-
se acrescenta deinitivamente e também nada po da Educação Infantil é o tempo da vida, não
se perde. É o tempo da natureza, das fases da de preparação para a vida (Rinaldi, 2012). Esse
lua, das estações do ano. Esse tempo tem ori- tempo que adia é o tempo da meta, de algo
gem no mito, ou no sacro quando se desenro- que deve ser alcançado no futuro. É a igura do
lam os acontecimentos de uma cultura e que tempo linear que invadiu o ‘espaço escolar’.

318
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

A igura linear do tempo como lecha embebe unindo essas três iguras. Com base no ponto,
as raízes profundas da cultura ocidental e ali-
seguindo a lógica da meta, movemo-nos, con-
menta, ainda hoje a nossa representação do
tempo. Existe uma salvação que não é mais tinuamente, de forma circular, nos conectando
religiosa, uma salvação laicizada que conia à a outros tantos pontos, de uma maneira não
racionalidade técnico-cientíica, ao desenvol- uniforme e em níveis diferentes. Movemo-nos
vimento, ao crescimento econômico, mas que
coloca no futuro o sentido do presente (Me- sobre uma base, mas não nos ixamos nela.
lucci, 2004, p. 15).
A espiral é uma igura fascinante, porque é um
A igura do tempo linear está em declínio. desaio aos dilemas do tempo, uma tentati-
va de dar forma ao desejo mais profundo que
Para explicar a forma em que estamos vivendo nos anima cada vez que encontramos a plu-
o tempo hoje o autor propõe a ideia de pon- ralidade de dimensões e de movimentos que
tos. A igura dos pontos representa o tempo constituem a nossa experiência temporal: no
movimento circular que avança no espaço se
que estamos vivendo na contemporaneidade. expressa o sonho demasiado humano que o
“É a percepção de uma sequência descontínua, luir quer também manter (Melucci, 2004, p.19).
mista, heterogênea, uma sucessão de momen-
tos temporais muitas vezes desconexos entre Esse é o tempo da experiência, que é
si” (Melucci, 2004, p. 20). São as diferentes ex- também representado pelo ciclo, que repre-
periências cotidianas que vivemos com tem- senta os ritos os quais dão sentido ao nosso
pos, muitas vezes, opostos, que nos deslocam viver, que move os indivíduos e que possibilita
em diferentes dimensões de tempo. Imagens viver diferentes dimensões do tempo, inclusive
televisivas, gráicas, introduzem no dia a dia o tempo interno.
uma variabilidade de tempos que nos arrasta
instantaneamente de um tempo a outro, com Aquele que acompanha os afetos, emoções e
vive no corpo [...] possui características opos-
ritmos distintos. tas. É múltiplo e descontínuo. Na experiência
Embora os pontos representem a forma subjetiva, tempos diversos coexistem, suce-
de viver o tempo contemporaneamente, se- dendo-se e sobrepondo-se. Existe um tempo
cíclico, como aquele do mito [...] se manifesta
gundo o autor, nenhuma dessas iguras con- no corpo, nas emoções [...]. Um tempo simul-
segue representar o complexidade da expe- tâneo: muitos tempos existem contempora-
riência do tempo, propondo, assim, a igura da neamente, ontem e amanhã, o meu e o teu,
aqui e em outro lugar (Melucci, 2004, p. 25).
espiral que surge da união das três iguras an-
teriores: O círculo, a lecha e o ponto. No nos-
A dimensão do tempo interno, embora o
so cotidiano, só conseguimos viver o tempo
‘tempo relógio’ seja o mesmo, sua compreen-

319
Sueli Salva

são subjetiva é outra, podendo ainda ser di- relação aos eventos, percorrê-los para a frente
ferente de pessoa para pessoa. Essa forma de ou retornar. Com a possibilidade de ir e retornar,
compreensão do tempo é de caráter pessoal, o tempo interno se caracteriza também como
subjetivo. É aquela margem que o sujeito dis- um tempo de memória e, portanto, “reversível”,
põe para fugir ao controle da linearidade do oferecendo-nos, assim, a possibilidade de mo-
ciclo da vida, da velocidade que temos que nos diicar o sentido, até mesmo do nosso passado.
submeter para nos movermos de um ponto ao Para Melucci (2004, p. 23), “o passado
outro e ao mesmo tempo ser partícipe dos ri- contém aquilo que passou e prepara, portan-
tos que dão sentido ao viver. É esse tempo que to, o presente, que, por sua vez, anuncia aquilo
pode ser sentido a partir da subjetividade de que ainda não é e que será”. Nesse movimento,
cada um, portanto, em alguns momentos pode muitas coisas do passado podem retornar ao
parecer muito rápido, ou pode parecer uma presente, através da memória. “A memória é se-
eternidade, vai depender do sujeito e do signi- letiva e reconstrói a história do mundo e a nos-
icado que o sujeito atribui a um evento exter- sa própria a partir do projeto”, que já é um dire-
no. Por exemplo, para uma criança que gosta cionamento ao futuro. É, portanto, a presença
muito de brincar de casinha, inserir-se nessa que pode unir passado, presente e futuro. “É no
brincadeira pode fazer o tempo passar rápido, presente que o passado relete a sua luz e sua
enquanto que para outra, se ela for submetida sombra sobre o futuro e que este ilumina ou
a essa brincadeira e não gosta, esse tempo po- turva aquela porção de nós mesmos na qual
de-lhe parecer uma eternidade. queremos ou podemos nos reconhecer.”
Da mesma forma quando uma criança Como a percepção do tempo varia para
ica impedida de sair no pátio para brincar com cada sujeito, para cada momento através da
os seus colegas porque não realizou a ativida- emoção, do corpo, do Eros, e a máquina não
de dirigida solicitada pela professora. Enquanto respeita essa variabilidade, cria-se o que o au-
para aqueles que estão no pátio o tempo pode tor chama de “oposição” entre tempo externo
parecer curto, para aquela que icou na sala “de (tempo social) “irreversível” e o tempo interno
castigo” o tempo pode parecer muito longo. (das emoções), que é continuamente “reversí-
Essa característica do tempo interno é concei- vel”.O tempo interno é “variável” e, muitas ve-
tuada de “descontinuidade” (Melucci, 2004, p. zes, não cumpre as exigências e cobranças do
25). Outra característica do tempo interno é cha- tempo social. Essa “oposição”, cria uma um ten-
mada de “multidirecional”. Essa característica, são irresolvível, mas que pode ser amenizada
segundo o autor, dá-nos a possibilidade de, em através da cultura que “reduz essa tensão ofe-

320
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

recendo canais para a expressão simbólica do agressiva. É essa aprendizagem que constitui o
tempo interno, como a arte, o mito, o jogo, a sujeito, inserindo-a no campo social e relacio-
sacralidade.” (Melucci, 2004, p.25). nal. Precisamos dar espaço ao tempo interno,
Depreende-se dessa ideia a importância compreender de que forma a criança signiica
de uma prática pedagógica na Educação Infan- seu tempo, procurando compreender o que a
til permeada pela expressão simbólica do jogo, criança gosta, o que não gosta, ajudando-a a
do brincar, da arte da expressão, da imaginação, construir novos signiicados ao que faz.
contemplando um modo de viver o tempo de
forma mais harmônica. Essa forma de viver o O nosso tempo não é somente o do relógio,
tempo perpassa o corpo enquanto corporeida- nem unicamente da alma, mas também o
tempo que permite o desabrochar das lores,
de. Um tempo da vida que se mostra através da que regula as grandes migrações e que pro-
corporeidade que não se submete à lógica linear, duz a metamorfose que dá vida à borboleta.
que tem o seu próprio tempo, cria novas tessitu- Nesses ritmos da natureza que tecem o tem-
po humano conjugam-se o círculo e a mudan-
ras, passa e faz passar pelo encanto da vida. ça (Melucci, 2004, p. 25).

O tempo, o tempo lui./ E assim o sangue


escorre em cada veia/ O vento brinca com Quando uma criança ica durante longo
os grãos de areia/ Poetas cortejando a bran-
tempo sentada no tapete esperando os outros
ca luz/ E ao mesmo tempo que machuca/ o
tempo, me passeia/ Quem sabe o que será chegarem; quando ela ica longo tempo sen-
de mim?/ Quem sabe o que será de nós?/ O tada no bebê-conforto, sem possibilidade de
tempo que antecipa o im/ também desata os
nós5 [...] (Martins, 1999, 4).
locomover-se; quando é obrigada a dormir
sem que tenha sono; quando ica de castigo;
O “tempo interno” tem seu próprio tem- quando ica esperando durante muito tempo
po de “desatar os nós”, de modo que oferecer todos os colegas terminarem a refeição para
as crianças possibilidades de desatar seus sair do refeitório; quando não se respeita o
nós e viver seus tempos é possível, mesmo tempo que a criança leva para tirar o seu casa-
que seja por essa pequena margem, mas que code forma autônoma; quando não se permi-
agrega pontos, lecha e círculo em uma circu- te que ela desabotoe ou abotoe seus sapatos;
laridade luida sem im. O tempo precisa ser quando não se permite que ela vá ao banheiro
aprendido, mas não necessariamente de forma no momento que sente necessidade, em todos
esses momentos estamos submetendo a crian-
5 Música interpretada por Ney Matogrosso no CD “Olhos de ça apenas ao tempo da máquina relógio, tendo
Farol”.

321
Sueli Salva

como parâmetro a visão adultocêntrica de or- Finalizando: para continuar reletindo


ganização do tempo. Ensinar o tempo a criança sobre o tempo na Educação Infantil
signiica dar-lhe a possibilidade de viver as três
dimensões do tempo contemporaneamente, o Ao longo da relexão foram elabora-
círculo que materializa o ritmo, os pontos que das muitas perguntas sobre o tempo dire-
materializam a descontinuidade e lecha que cionado para a instituição de educação in-
materializa o projeto. fantil. São perguntas que surgem a partir de
conhecimentos teóricos sobre o tempo, de
A presença do ritmo carrega consigo também conhecimentos tácitos e dos dados empíricos
a alternância entre velocidade e lentidão, en-
tre movimento e quietude. Na sucessão das produzidos nas ‘formações em contexto’. Este
estações, como nos ritmos da respiração, o conjunto de conhecimentos nos fornecem
tempo da natureza alterna a tensão e disten-
elementos para reletir sobre a qualidade do
são, aceleração e pausa, acumulo e emissão.
Desse tempo, gravado em nosso corpo, po- tempo das crianças vivido nas instituições de
demos até nos esquecer, mas ele é impres- educação infantil, que foi nosso objetivo neste
cindível. Podemos respeitá-lo ou violentá-lo.
Contudo, nossa experiência temporal é, quer
artigo. Optamos por trazer um arcabouço teó-
o reconheçamos ou não, também um grande rico que nos permite compreender o quanto é
respiro que nos conecta ao cosmo (Melucci, complexo pensar sobre o tempo, entender o
2004, p. 25).
que é o tempo, aprender o tempo, viver o tem-
po. A relexão sobre a qualidade do tempo vi-
Esse, portanto, se constitui num ape-
vido pelas crianças na instituição de educação
lo aos professores e professoras que atuam
infantil leva em considerando que nenhuma
nas instituições de Educação Infantil para que
criança de quatro (4) e cinco (5) anos deverá
não submetam as crianças somente ao tempo
icar fora dela, uma vez que a Educação Infantil
externo, que possibilitem o luir do tempo a
se tornou uma etapa obrigatória da Educação
partir da corporeidade das crianças, que res-
Básica. Desse modo, torna-se fundamental re-
peitem seus ritmos, que adotem formas de or-
letir sobre a qualidade do tempo que a criança
ganização do cotidiano de modo mais luído.
será submetida na instituição. A nossa concep-
Isso não signiica que a criança seja deixada a
ção epistemológica sobre o tempo incidirá di-
própria sorte, mas que através do tempo da
retamente na vida ‘de todas’ as nossas crianças,
corporeidade possa aprender as relações e vi-
portanto, queremos demarcar o nosso posicio-
vê-las intensamente de forma viva e humana.
namento e a nossa defesa em favor desse tem-

322
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO

po como tempo da vida e não como tempo de de si em uma sociedade global. São Leopoldo:
preparação para a vida como nos alertou Rinal- Unisinos, 2004.
di (2012). Priorizar o tempo da vida é privilegiar
MOSKA, Paulinho. Gotas de tempo Puro. CD –
a organização do cotidiano em detrimento das
Olhos de Farol – Ney Matogrosso – Poly Gram,
rotinas rígidas como enfatiza Barbosa (2000);
1999, 2.
é privilegiar o tempo da corporeidade, da ex-
pressividade, do criar; do brincar; da curiosi- MARTINS, Fred. Novamente. CD – Olhos de Fa-
dade; do aprender; do ensinar; da alegria; do rol – Ney Matogrosso, 1999, 4.
fascínio pelo novo. Priorizar o tempo da vida é RINALDI, Carla. Diálogos com ReggioEmilia –
exercitar a tolerância de espera do adulto para escutar, investigar e aprender. São Paulo: Paz e
privilegiar a tempo da criança. Terra, 2012.

Referências bibliográicas

BARBOSA, Maria Carmem Silveira. Fragmentos


Sobre Rotinização da Infância. In. Educação e
Realidade. Nº25(1)jun/jul. 2000. p.93-113.
______; HORN, Maria da Graça. Organização
do espaço e do tempo na escola infantil. In:
CRAIDY, Carmem Maria; KAERCHER, Gládis Eli-
se. Educação Infantil. Pra que te quero? Porto
Alegre: Artmed, 2001, p. 67-79.
BARROS, Manuel. Apanhador de Desperdícios.
Acesso em 01 de novembro de 2014. http://
www.entreculturas.com.br/2010/10/manoel-
-de-barros-o-panhador-de-desperdicios/
ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1984.
MELUCCI, Alberto. O Jogo do Eu. A mudança

323
19
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS
DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Patrícia Dias Prado

As relações etárias entre crianças pe- Ensino na implementação do Proinfância em


quenas da Educação Infantil foi a palestra que Municípios da Região Central do Estado do Rio
proferi no II Seminário Regional Proinfância, III Grande do Sul, com a Universidade Federal de
Seminário da Especialização em Docência na Santa Maria (UFSM), Universidade Regional do
Educação Infantil e I Seminário Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (Unijuí) e Uni-
Curso de Aperfeiçoamento em Docência na versidade de Passo Fundo (UPF).
Educação Infantil: Crianças, infâncias e docên- Nesta ocasião, busquei divulgar os resul-
cias na Educação Infantil, realizado em maio tados de minha pesquisa de doutorado (Prado,
de 2015, direcionado às/aos gestoras/es, do- 2015), que investigou, através do estudo et-
centes das unidades vinculadas ao Projeto de nográico, as relações de idade entre crianças
Assessoramento do Proinfância/Universidade pequenas (de 3 a 6 anos de idade) em uma ins-
Federal de Santa Maria/RS; acadêmicas/os dos tituição de Educação Infantil pública paulista.
Cursos de Especialização em Educação Infan- Ampliando o conceito de infância para além
til e Aperfeiçoamento em Educação Infantil; à de um recorte etário e das teorias desenvolvi-
Equipe de Assessoramento do Projeto Proin- mentistas, no campo das Ciências Sociais, em
fância; docentes e bolsistas da Unidade de especial, na Antropologia da Criança e na So-
Educação Infantil Ipê Amarelo/UFSM - o qual ciologia da Infância, articulada às produções
tive grande satisfação em participar, agrade- brasileiras e italianas, no campo da Educação
cendo à Equipe de Assessoramento e Acompa- Infantil, apresentei as crianças para além de
nhamento Pedagógico, às Redes e Sistemas de reprodutoras das determinações etapistas e

325
Patrícia Dias Prado

cronológicas impostas, inventoras de novas (descanso, refeições, banho, parque), estabele-


formas de se ter determinada idade, novas lin- cendo relações afetivas diversiicadas, contra-
guagens entre menores e maiores. riando outros campos do conhecimento que
No presente artigo1, contextualizarei, de pesquisam esta faixa etária (Prado, 2012b, 2015).
forma breve, a temática da pesquisa e o lugar Numa sociedade a serviço da produção
de onde falo, num exercício de construir um de saberes indispensáveis para a regulação
diálogo entre os dados coletados, com diferen- disciplinar e social do curso de vida, os crité-
tes perspectivas teóricas, buscando compreen- rios fornecidos à Educação Infantil2 são aqueles
der as relações etárias entre as crianças peque- que agrupam, dividem, segregam, isolam, cada
nas na/da Educação Infantil e problematizar as vez mais as crianças somente segundo sua
inalidades das idades da infância (Veiga Neto, dita evolução cronológica, em termos de suas
2000), entre as incapacidades a ela atribuídas, aptidões e capacidades cognitivas especíicas
em contraponto às inventividades das crianças - os espaços, o funcionamento, a estrutura e
menores e maiores juntas e separadamente. as relações que se tecem nas instituições de
Atenta para a capacidade de as crianças educação infantil são, por sua vez, organizados
pequenas e pequenininhas expressarem-se de acordo com as exigências do mundo do
através de múltiplas linguagens (choros, olha- trabalho nas sociedades capitalistas.
res, gestos, balbucios, risadas, silêncios, toques, As crianças de 0 a 6 anos, em tais espa-
falas, movimentos, etc.), não apenas através da ços, geralmente, não compartilham brinca-
fala (Edwards et al 1999, Callari Galli 1993 e 2005, deiras ou outras atividades com crianças de
D’Alessandro e Campione 2002, dentre outros/ idades diferentes. Esta possibilidade começa a
as), investigando suas manifestações e expres- ser prevista e/ou planejada no campo da edu-
sões culturais, observei sua capacidade de trans- cação infantil brasileira, como no caso da pro-
gressão, de sociabilidade, de invenção e criação posta de agrupamentos multietários da Rede
de propostas de brincadeiras não previstas pelas Municipal de Educação Infantil do município
professoras, de construção de regras com liber-
dade, de continuidade das brincadeiras em dias
alternados, de escolha de parceiros distintos 2 Espaços garantidos para crianças de 0 a 5 anos e 11 meses
(professoras, crianças, maiores, menores, meni- de idade pela Constituição Brasileira de 1988, como dever do Es-
tado (art. 208) e opção da família; deinidos pelas Leis de Diretri-
nas, meninos) para atividades também distintas zes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) como Educação
Infantil, primeira etapa da Educação Básica, também composta
1 Versão revista e ampliada do trabalho em Prado (2012b). pelo Ensino Fundamental e Ensino Médio.

326
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

paulistano pesquisado3, porém, com inúmeras No campo de observação, investiguei as


diiculdades para sua efetiva implementação. relações de idade através das brincadeiras e do
Uma delas se deve ao fato de que a in- convívio entre crianças pequenas de idades
fância, em situação educativa, precisa ser com- iguais e diferentes, especialmente, entre 3 e 6
preendida e investigada, não no sentido de se anos, buscando ampliar e alargar meu olhar
identiicar padrões de normalidade quanto ao sobre a infância, a educação e a cultura, mais
desempenho das crianças ou de se estabele-
precisamente, contrariando aquelas correntes
cer regularidades e modelos para a orientação
de pensamento que se fundamentam numa
prática de proissionais docentes e não docen-
perspectiva cronológica de progresso e de
tes da Educação Infantil. Na deinição do papel
central e controlador das proissionais, enco- evolução linear dos sujeitos.
bre-se a vinculação social e histórica das crian- Como fenômeno da cultura, as relações
ças, uma vez que estas são vistas apenas como que as crianças estabeleciam entre si e com as
seres biológicos que percorrem etapas deini- professoras eram relações vinculadas ao so-
das pela faixa etária, tomando-se o que é par- cial, permeadas não somente pelas relações
ticular pelo universal, limitando e cerceando as de idade, como também de classe social, de
produções coletivas das crianças e desconhe- etnia, de gênero.
cendo os possíveis sentidos e signiicados das As crianças observadas apresentaram
misturas de idades. formas de sociabilidade que estavam além da
Sem saída estão as crianças, que neces- capacitação para a vida social, adulta, séria ou
sitam ser vistas por inteiro, como membros produtiva, como prevê um mundo da ordem
de uma classe social situada histórica e cultu-
da modernidade - para além da socialização,
ralmente, sem ser divididas em inúmeras ha-
especialmente nos momentos em que estavam
bilidades e comportamentos, resgatando seu
juntas e misturadas sem o controle disciplinari-
lugar como alguém que participa da história,
zador das professoras, embora não totalmente
da sociedade e da cultura de seu tempo, mo-
diicando-as e sendo modiicadas por elas. Mas dele distanciado. Nesses momentos, as crian-
qual é a idade da infância? ças podiam ser o que eram, relacionando-se de
formas diferenciadas com as professoras e com
3 Definido na Resolução da Secretaria Municipal de Edu- outras crianças de idades iguais, diferentes,
cação do município pesquisado, n.23/2002: Cap.1, Art.2º, item
III - “Reorganizar os agrupamentos e as turmas por faixa etária
maiores, menores, meninas, meninos, negros,
mais próxima: de 3 meses a 1 ano e 11 meses; de 2 a 3 anos; brancos... e tornando-se crianças a sua moda.
de 4 a 6 anos.”

327
Patrícia Dias Prado

Assim também observou Ferreira (2004) Através da análise do material coletado


em sua etnograia com crianças pequenas (de (observação com registro em caderno de cam-
3 a 6 anos) portuguesas em um Jardim de In- po, entrevistas com as professoras, conversas
fância, reairmando, alimentando e impulsio- informais com as crianças, fotograias minhas e
nando a consolidação de uma Pedagogia da das crianças, recolha de canções, histórias e de-
Infância que leve em conta a capacidade de senhos das crianças) sobre o coletivo de crian-
as crianças estabelecerem relações na diversi- ças brincando com crianças da mesma idade,
dade de gênero, de classe social, de idade, de da mesma turma e com crianças de idades e
tamanho, assim como de produzirem saberes, de turmas diferentes, juntas e separadamen-
construindo culturas próprias dos grupos in- te, não houve como distinguir tais separações,
fantis no convívio coletivo: nem precisar as idades de cada uma das crian-
ças ou se certiicar sobre quais eram as maiores
Entretanto, dado que a idade não corresponde e as menores em idade. Nas diversas produções
a uma variável natural e que a variabilidade de das crianças foi possível observar a diversidade
desenvolvimento biológico, psicológico e so-
cial nem sempre permite estabelecer uma cor- de formas, estilos, cores, igurações e elemen-
respondência coerente entre tamanho, idade e tos presentes, sem que fosse possível identii-
competências, o facto de se ser mais frágil do car as idades das mesmas. O que isso signiica?
ponto de vista físico não signiica, necessaria-
mente, ser mais novo, nem implica, do ponto O enigma da infância já discutido por
de vista das interações, uma menor competên- Larrosa (1998) apresenta-se na capacidade de
cia cognitiva ou social (Ferreira, 2004, 76).
as crianças pequenas brasileiras, meninas e
meninos, maiores e menores, construírem or-
O fato de nem sempre encontrarmos dens próprias, estruturarem grupos de pares
uma correspondência coerente entre tama- heterogêneos e se apropriarem de formas di-
nho, idade e competências entre as crianças ferenciadas do espaço e do tempo através das
pequenas (não só das crianças) coloca, pois, brincadeiras. As crianças menores e maiores,
em questão, a própria noção de infância e de meninas e meninos apropriavam-se do espa-
Educação Infantil. Se as crianças nos surpreen- ço e instauravam outras formas de estabele-
dem, propondo o inusitado, o imprevisto num cimento de relações sociais. As idades das in-
espaço previsto, planejado e organizado, en- fâncias no plural conirmavam-se, ao mesmo
tão, não detemos o controle sobre seus pensa- tempo em que se diluíam nas produções das
mentos e atitudes como ousamos supor. próprias crianças.

328
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Nas mediações com os outros, que en- airma, demonstra Moragas (2003), os precon-
sinavam, aprendiam e faziam juntas, crianças ceitos etários criam categorias falsas. No caso
maiores e menores construíam seu mundo de da infância, estas categorias (falsas), assenta-
cultura através do estabelecimento de relações das numa visão restritamente evolutiva e cro-
peculiares de coniança, de respeito e de ami- nológica, referem-se à incapacidade das crian-
zade, durante as brincadeiras compartilhadas, ças menores e maiores de brincarem juntas,
assim como observou Cardoso (2004), investi- pois estariam em momentos distintos de seu
gando a construção de agrupamentos multie- crescimento e, por isso, não se entenderiam, se
tários em outra instituição pública de Educa- atrapalhariam ou se machucariam – algo que
ção Infantil paulista. não foi conirmado na pesquisa.
Comprovando e airmando os “Critérios Reairmo, assim, minha hipótese inicial de
para um Atendimento em Creches que respeite que, em contato com um mundo de signiica-
os Direitos Fundamentais das Crianças” (Brasil, ções, em especial, aquelas advindas do convívio
2009), no que diz respeito ao direito de as crian- etário diversiicado, as crianças são capazes de
ças desenvolverem sua curiosidade, imagina- transcender, ir além das aparências das coisas
ção e capacidade de expressão, onde se pode e representá-las de maneira independente da
ler: “bebês e crianças bem pequenas aprovei- singularidade ou da materialidade daquilo que
tam a companhia de crianças maiores para de- percebem, conhecem ou tomam contato.
senvolver novas habilidades e competências” e A construção da infância como uma fase
em seguida: “crianças maiores aprendem muito de dependência e da vida adulta como o inver-
observando e ajudando a cuidar de bebês e de so, de independência e maturidade, alargou ain-
crianças pequenas”, observei que, mais do que da mais a distância, afastou ainda mais crianças
desenvolver habilidades e competências en- e adultos, em especial, na vida moderna (Elias,
tre si, as crianças menores e maiores comparti- 1990). Mas a consequente visão da delimitação
lhavam, negociavam e trocavam experiências, da infância a partir somente de um recorte etá-
construindo juntas novas formas de brincar, de rio, deinido por oposição ao adulto, pela pouca
fazer as coisas do dia a dia (nova ortograia). idade ou pela dita integração social inadequa-
Elas também rompiam com os precon- da, vem sendo contestada por diversos cam-
ceitos e, consequentemente, com falsas cate- pos de conhecimento como a Antropologia e a
gorias teóricas em relação à infância, no que Sociologia, que apontam para a diversidade de
tange às relações de idade, pois, como bem formas de inserção da criança na realidade, no

329
Patrícia Dias Prado

cotidiano, nas brincadeiras, conigurando uma de convívio diversiicado entre as crianças da


nova epistemologia da infância. mesma idade e de idades diferentes, e entre
Na Sociologia, Qvortrup (2000) também elas e as professoras, não em formas ritualiza-
passa a ideia de uma possível inversão da or- das de uma etapa para a outra.
dem instituída, quando airma que as crian- As sociedades, portanto, em diferentes
ças podem ser dependentes dos adultos, mas momentos históricos, atribuem signiicado es-
que os adultos também são dependentes das pecíico às etapas do curso de vida dos indiví-
crianças, abrindo caminho para compreender duos, infância, juventude, velhice; estabelecem
as relações da infância com outras gerações e atribuições também especíicas e preferenciais
suas proposições para iluminar o entendimen- de cada grupo de idade na divisão social do
to das relações e dos conceitos no interior da trabalho e dos papéis na família. Britto da Mot-
própria infância. ta (1995) diz que estas atribuições, além de não
Na Antropologia, especialmente, os perío- se conirmarem numa cronologia de ordem
dos em que a vida se desdobra podem ser con- biológica, são relações construídas num tempo
cebidos como construções culturais. Esta é uma social, dinâmico e mutável.
das contribuições fundamentais desse campo Ampliar o conceito de idades para se pen-
do conhecimento que, através dos estudos et- sar os períodos de vida, nesta perspectiva, impli-
nográicos, seja em sociedades tribais brasileiras ca em compreendê-las (as idades) como produ-
(Seeger 1980), entre os Xavante (Maybury-Lewis tos e também como produtoras de fenômenos
1984), entre os Nuer (Evans-Pritchard 1993), en- e práticas sociais, espaço de relações de poder,
tre os Arapesh (Mead 1979), entre os Talensis de construção de regras e de papéis sociais.
(Turner 1974), dentre outras, entendem e con- Bourdieu (1983) nos lembra que, assim
ceituam a cultura como o dispositivo produtor como as divisões por classes sociais, as divisões
de signiicados de práticas sociais, como pro- por idade ou geração também são construídas
dutora e não simplesmente como produto dos socialmente. Estas classiicações sempre im-
homens, reveladora de modiicações sociais e põem uma ordem em que cada um deve se
contrária ao determinismo dos evolucionistas. manter em seu lugar.
Os dados analisados demonstraram que Romper com a obviedade, compreen-
as linguagens transformavam-se nos espaços dendo o curso da vida para além do conceito
educativos, quando eram permitidas e favore- ou das atribuições ocidentais contemporâneas
cidas oportunidades de experiências abertas de faixas etárias também se torna um impor-

330
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

tante passo para se pensar sobre os períodos gundo o Estatuto da Criança e do Adolescen-
da vida, no caso a infância, como construção te (1999), artigo 2º, por exemplo, considera-se
social e cultural – pois não nascemos crianças, criança a pessoa com 12 anos incompletos. Já
tornamo-nos crianças (Faria, 1994). de acordo com a Convenção dos Direitos da
Estudando a sociedade europeia e a Criança (Sarmento; Pinto 1997, p.15), artigo 1º,
construção das categorias de idade, entre i- “considera-se como criança todo ser humano
nais do século XVIII e princípios do século até os 18 anos”.
XIX, Ariès (1981) já airmava que os períodos Desta forma, também as identidades etá-
em que a vida se desdobra mudam historica- rias, como airma Veiga Neto (2000), são neces-
mente. Mesmo criticado por eleger fontes que sariamente móveis, visto que o critério do tem-
privilegiavam o estudo das crianças da aristo- po vivido é suiciente para que todos percorram
cracia, o mesmo autor tem como contribuição diferentes grupos, esperando-se que cada um
epistemológica e metodológica fundamentais assuma identidades etárias diferentes ao longo
a construção de um sentimento de infância da vida, quais os processos pelos quais apren-
que revela, também, uma construção social do demos e ensinamos a ter determinada idade? A
tempo – um tempo que passa a ser percebido partir de quais critérios? Em função de quê?
como legítimo, um tempo em que se é criança, Lutar contra a cronologia é contrariar o
um tempo de viver numa situação privilegiada, tempo da exploração capitalista e a transfor-
sem grandes obrigações. mação das idades em mercadoria, é ampliar o
A idade como categoria traz em si uma próprio conceito de idade, genérico e dinâmi-
relexão de ordem política, epistemológica e co e que determina as relações sociais, as rela-
metodológica em sua relação com os contextos ções etárias e/ou as relações de idade. Expres-
educativos, pensando aqui, na educação infantil sar e incorporar a noção de experiência, tendo
como espaço de construção de pertencimentos a brincadeira como a materialização deste pro-
etários. Entretanto, a infância como categoria cesso, revela as culturas infantis que as crianças
social marcada pela heterogeneidade não pode estão produzindo, suas transgressões, sociabi-
ser deinida apenas por critérios etários ou para lidades, invenções, regras, prazeres, relações e
diferenciar-se da totalidade de pessoas que ain- linguagens.
da não têm esta ou aquela idade. Além da condição infantil brincante, que
Mesmo por critérios etários, não há con- se difere do conceito de uma natureza infantil,
senso para deinir as idades da infância; se- observei outros elementos fundamentais que

331
Patrícia Dias Prado

podem ser apontados para caracterização des- A mistura entre as crianças de idades
ta mesma condição das crianças, dentre eles, diferentes pode ser tão signiicativa para as
estar juntas e fazendo as coisas junto, confron- crianças, para as proissionais docentes e para
tar-se, compor brincadeiras coletivas, cuidar e a sociedade de forma mais ampla, quanto já
zelar dos amigos e amigas menores, reproduzir é a convivência entre crianças da mesma ida-
e também inventar a partir da observação dos de - experimentando vivências mais e menos
maiores e vice-versa, associar o prazer da brin- conlitivas, mais e menos cooperativas, tendo
cadeira às parcerias e amizades, aos alimen- a oportunidade de conviver com parceiros da
tos e a diversos elementos da natureza (água, mesma idade e também de idades diferentes.
areia, animais, etc.), enim, construir culturas Entretanto, torna-se importante apontar
infantis na diversidade étnica, de classe social, que, no espaço contraditório da instituição pes-
quisada, as professoras também foram observa-
de gênero, de tamanho, de turma e de idade.
das negociando regras de conduta ou das brin-
Propor a mudança de olhares, de luga-
cadeiras com as crianças, mediando conlitos de
res e a mistura de idades, sob esse ponto de
forma democrática e estendendo às crianças a
vista, implica na construção de uma Pedago-
possibilidade de decisões e de escolhas na or-
gia da Educação Infantil que dialogue com as
ganização das atividades, e de algumas brinca-
contribuições de campos diversos do conheci-
deiras - uma relação pedagógica de mão dupla
mento (pensando aqui, no campo das Ciências
na mistura de suas turmas de crianças. Quais os
Sociais), que ouça e observe as crianças para
conhecimentos advindos e revelados pelas pro-
sua elaboração, planejamento e organização. fessoras, para a não priorização de um espaço
Uma pedagogia que leve em consideração a escolarizante e, sim, de experimentações, que
capacidade de as crianças menores e maiores, poderiam ser levadas em consideração para
quando juntas, construírem uma relação de re- relexão sobre o processo de formação prois-
ferência umas para as outras, no sentido de de- sional, pensando ainda mais, na proposta dos
monstrar, disputar, sugerir, negociar, convidar, agrupamentos multietários que promova as re-
trocar e compartilhar experiências e brincadei- lações etárias entre as crianças pequenas?
ras. Nestes momentos, menores e maiores es- As crianças evidenciavam que maiores e
tabelecem relações mais solidárias e coopera- menores viviam experiências diversas e seme-
tivas do que quando estão separadas (somente lhantes, quando estavam no espaço educativo
entre as crianças de sua turma e idade). (e fora dele), ou que aprendiam umas com as

332
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

outras, independentemente de suas idades, não As crianças maiores e menores pesquisa-


por acaso. As professoras pesquisadas, mesmo das, na mistura etária, tinham como referência e
assumindo um desconhecimento em relação às eram atendidas em seus desejos e necessidades
teorias que embasavam suas propostas educa- pelas professoras, que lançando mão de suas
tivas em curso, uma vez que estas também es- dimensões brincalhonas, propondo a recons-
tão por ser construídas, transgrediam como as trução da criatividade que sufocamos quando
crianças, quando não priorizavam a lógica esco- adultos, deixando com que as crianças as en-
lar da semelhança e/ou uma visão naturalizada, volvessem e também expressassem sua criati-
linear e progressiva de suas capacidades. vidade (Ghedini, 1994), permitiam um encontro
Embora existam outras experiências com o desconhecido, uma troca entre diferen-
educativas diferenciadas, que pressupõem al- tes e um reconhecimento entre semelhantes,
guma mistura de idade entre as crianças pe- ainda que negada e oposta ao trabalho sério e
produtivo. Isto propiciava a construção de um
quenas na Educação Infantil e entre as crian-
olhar investigativo e de uma maior autonomia
ças grandes e os jovens na escola e fora dela
das crianças maiores, menores e das próprias
acontecendo4, a sistematização deste tema
professoras, alargando suas possibilidades edu-
ainda merece interesse de outras(os) pesqui-
cativas de convívio, de escolhas e de transfor-
sadoras(es) e o meu, especialmente, por tantas
mações daquele espaço e para além dele.
outras curiosidades que esta pesquisa me trou-
Ali, icava claro, não somente a abertu-
xe. Para não ter certezas ou conclusões sobre
ra e valorização, por parte da equipe gestora,
a infância, sobre as crianças, sobre as idades e como também das proissionais docentes para
sobre sua educação, busquei sistematizar aqui que a proissão de professora de crianças pe-
uma destas experiências educativas à luz de quenas pudesse ser inventada (Mantovani; Pe-
velhas teorias, ousando construir outras, novas rani, 1999), propondo a “desalienação, vivida à
teorias que estão sendo elaboradas à luz de revelia do sistema dominante” (Perrotti, 1982,
novas experiências (e vice-versa), na constru- p. 21). Contudo, os dados analisados apontam
ção coletiva do conhecimento. para uma necessidade emergente de formação
proissional que envolva a relexão, o estudo e
4 Como, por exemplo, o projeto de educação não formal, Pro- a discussão de conteúdos teóricos e práticos,
jeto Crianças do CRUSP (Conjunto Residencial da Universidade sobre os agrupamentos multietários na rede
de São Paulo/SP), que coordeno, desde 2009, junto ao Programa
Aprender com Cultura e Extensão da USP/SP, com encontros diá-
municipal de Educação Infantil pesquisada e
rios para propostas lúdicas e artísticas para e com crianças de 2 a também, para além dela.
12 anos juntas (PRADO, 2014).

333
Patrícia Dias Prado

O espaço pesquisado revela a não prio- tas mesmas ações só as são em um espaço, e
rização da escolarização precoce das crianças, este é o que dá forma às próprias ações (Heide-
uma vez que a alegria da brincadeira não era gger, 1962). O onde é que determina o como
uma exceção circunstancial, um intervalo, um do ser, porque este signiica presença.
recreio, deinindo para as crianças a infância: Assim, a organização institucional dos
“[...] como um período peculiar da vida, de fan- tempos e dos espaços educativos possui ín-
tasia, jogo e brinquedo, de amadurecimento”, tima relação com a construção das experiên-
exatamente oposta a de “Regimar e seus Ami- cias e vivências temporais e espaciais das
gos: a criança na luta pela terra e pela vida” crianças. A noção de temporalidade e espa-
(Martins, 1993, p.67), uma infância como “re- cialidade compartilhada por elas relaciona-se
síduo de um tempo que está acabando”. A in- diretamente com os modos (mais ou menos
fância na instituição investigada tinha tempo e conscientes) como os espaços educativos são
espaço para se realizar. E quais aspectos inte-
geridos pelas proissionais docentes e não do-
retários puderam ser evidenciados e conheci-
centes que têm responsabilidades educativas
dos nestas experiências? Como é possível pen-
(Nigito, 2004).
sar a organização dos tempos e espaços para
Os agrupamentos multietários na Edu-
aproximá-los de uma proposta educativa de
cação Infantil poderiam, assim, negar uma
crianças pequenas de diferentes idades juntas?
proposição central de organizar os tempos e
Que signiicados, sentidos, intencionalidades e
espaços educativos de forma fragmentada e
concepções educativas esta organização dos
pautada na educação das crianças mais velhas
tempos e dos espaços compreende?
na escola, que as reúne e as classiica segundo
É a intencionalidade, especialmente
a lógica da semelhança, aquela que uniformi-
discutida por Santos (2004), não válida somente
za grupos, turmas, conteúdos e métodos de
para rever a produção do conhecimento, que
ensino, acreditando numa padronização das
pressupõe o encontro e o diálogo, a implicação
aprendizagens:
mútua dos sujeitos e dos objetos que consoli-
dam uma noção de presença. Assim, os seres A história do ensino mostra-nos que as socie-
humanos também podem ser deinidos por dades escolarizadas, nos séculos XVI, XVII e
suas intencionalidades que passam, funda- XVIII, criaram a noção de grau e a divisão de
alunos por idade ou capacidade, consagran-
mentalmente, pela compreensão da essência do a noção moderna de homogeneidade no
do espaço e das ações que se convertem em ensino e na aprendizagem (Valiati 2006, p.40).
trajetórias espaço-temporais, uma vez que es-

334
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Diferentemente do espaço escolar, a já que as crianças efetivamente estabeleciam


Educação Infantil não tem como fundamento relações diversas entre si, inventavam brinca-
o processo de ensino-aprendizagem, que ain- deiras entre menores e maiores e se apropria-
da assim, é necessário ser questionado, pois, vam dos novos espaços, antes restrito a uma
as diferenças, assim como as semelhanças, não única turma de crianças – uma pedagogia das
seriam igualmente importantes, como são na presenças, que rompa com a lógica de uma
educação das crianças pequenas? Os agrupa- monocultura do tempo e do espaço linear (ins-
mentos poderiam propor, então, uma ruptura pirada numa sociologia das presenças propos-
na regulamentação de uma única temporali- ta por Sousa Santos, 2005), pois:
dade e espacialidade da infância e das formas
como (onde, quando, com quem, por quanto Um espaço e o modo como é organizado re-
sulta sempre em ideias, das opções, dos sabe-
tempo) as crianças devem estabelecer suas re- res das pessoas que nele habitam. Portanto, o
lações, não ignorando a diversidade de expe- espaço de um serviço voltado para as crian-
riências e de relações etárias que estas estabe- ças traduz a cultura da infância, a imagem da
criança, dos adultos que o organizam; é uma
lecem dentro e fora do ambiente educativo. poderosa mensagem do projeto educativo
Segundo Genovese (2006), somente a concebido para aquele grupo de crianças (Ga-
pluralidade cultural pode ser a base de uma lardini, 1996, p.6).
identidade lexível, aberta ao confronto e à tro-
ca; o ponto de partida para a construção de no- O espaço pesquisado também reletia
vos percursos da experiência educativa, com a o modo de produção capitalista, característi-
consciência de que a dimensão social das re- co das sociedades industriais, que estabelece
lações é elemento fundante dos processos de uma sociedade de classes que tem, na opo-
conhecimento, que implicam, como num jogo sição dos grupos de indivíduos (que, por sua
contínuo de espelhos, construir-se a partir dos vez, ocupam diferentes papéis no sistema
produtivo), o fundamento de suas relações,
outros e vice-versa.
oprimindo suas frágeis representantes - as
A novidade trazida pelas propostas in-
crianças - frágeis sim, pela mesma opressão
vestigadas revelava que crianças e professoras,
que lhes nega a perspectiva de constituição
no diálogo e no encontro, estavam presentes e
de sujeitos que constroem a história e que
não ausentes. Promovendo a convivência das
criam cultura. O espaço pesquisado reprodu-
crianças de diferentes idades, as professoras
zia este modelo, ao mesmo tempo em que o
não somente garantiam o trânsito entre espa- interrompia, o contrariava, quando admitia a
ços físicos, mas também entre espaços sociais, capacidade de as crianças transformá-lo em

335
Patrícia Dias Prado

espaços de alegria, medo, proteção, mistérios, nos grupos infantis (Fernandes, 1979), evi-
descobertas, misturas e relações entre crian- denciando a não idade da infância, ou mes-
ças pequenas de diferentes idades. mo, infâncias de muitas idades, estava sendo
A condição infantil, portanto, com- construída no espaço pesquisado e, por isso,
preendida em novos espaços-tempos educa- o caracterizava e o destacava como uma ex-
tivos, concebida para além da idade, através periência pública educativa inovadora com
das experiências compartilhadas, revelava crianças pequenas que pode e deve ser esten-
que a própria infância estava presente tam- dida e renovada, a partir de outras crianças
bém nas professoras e que ela poderia, por- pequenas e suas professoras, sejam paulistas,
tanto, não acabar com a idade - poderia estar sejam sul-rio-grandenses!
em constante construção mesmo quando não
se é mais criança (Katz, 1996).
Desta forma, uma Pedagogia da Edu- Referências bibliográicas
cação Infantil que possibilite às professoras
aprender com as crianças pequenas e bem ARIÈS, Philippe. História social da criança e da
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uma determinada idade em função de outras os direitos fundamentais das crianças. 2. ed.,
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336
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL

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337
Patrícia Dias Prado

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338
20
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES,
REGISTROS ATENTOS

Catarina Moro

Avaliar crianças na Educação Infantil não uma avaliação padrão, por objetivos, em que re-
constitui um tema novo; entretanto, sempre se gistra se a criança faz, não faz, faz com ajuda; na
constitui em tema controverso. A diversidade de qual não há previsão de registro narrativo para
ideias a respeito se deve a distintos e múltiplos descrever a criança e as propostas educativas
fatores, contudo talvez duas questões estejam realizadas. Nesse caso, a avaliação depõe acerca
na base de todos os outros: a concepção sobre da educação ali realizada e permite uma rele-
criança e acerca da inalidade da educação in- xão acerca da existência ou não de consistência
fantil. Distintos propósitos e formas de avaliação e coerência entre nossos discursos, nossos pro-
efetivadas em muitas instituições de educação pósitos e nossas práticas.
infantil país afora (como gosto de brincar, ‘país É sempre necessário lembrarmos que
adentro’ para lembrarmos que é de dentro e por temos uma sustentação e uma orientação
dentro dos muitos municípios brasileiros que a legal, no campo da Educação, sobre o que são
educação infantil acontece, se realiza e se con- as diretrizes acerca da avaliação na educação
cretiza), revelam o que se permite e o que se infantil; assim como é bom demarcarmos que
espera das crianças nesta etapa da educação. há nos contextos institucionais reais em que
Ainda que tais avaliações não explicitem e até crianças de até 6 anos são cuidadas e educadas
mesmo contrariem o que é divulgado compar- inúmeras práticas avaliativas em desacordo
tilhado pela própria instituição, pelos próprios com o que temos como prerrogativa legal no
professores como o mais adequado às crianças. momento. A considerar também que o que está
Por exemplo, a instituição declara que pretende estabelecido em lei e em diretrizes curriculares
educar crianças autônomas, sujeitos de direitos, se articula com discussões cientíicas que vem
histórica e culturalmente constituídos e utiliza sendo empreendidas no campo, na atualidade.

341
Catarina Moro

A LDB nº 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases sibilidade de diálogo com as famílias, a im de


da Educação Nacional), de 1996, atualizada dar signiicado a esta exigência e não apenas
pela Lei nº 12.796, no ano de 2013, refere que a entende-la como obrigatoriedade. Nesse diá-
avaliação na educação infantil tem como ina- logo, é importante a conscientização sobre as
lidade o acompanhamento e o registro do de- inalidades da educação infantil e o sentido da
senvolvimento das crianças, sem relação com participação contínua da criança nas atividades
a promoção ou retenção das crianças, seja em organizadas para o seu grupo na unidade. Os
relação a etapa seguinte – Ensino Fundamental encaminhamentos para garantir a frequência
– ou na mesma etapa, o que já estava posto de mínima de 60% do total de 200 dias letivos para
1996 e inclui elementos que antes não esta- as crianças acima de 4 anos (educação pré-es-
vam presentes e se referem ao tempo da jorna- colar) devem ser objeto de decisão da unida-
da diária, ao número mínimo de dias e horas ao de educativa e prevista no regimento escolar.
longo do ano letivo, indicando a exigência de Nesse sentido, é importante o registro diário do
um percentual mínimo de frequência. comparecimento das crianças acima de 4 anos
Sobre tais elementos, podemos consi- matriculadas na unidade de educação infantil.
derar que o estabelecimento da carga mínima Eventuais faltas podem ser legalmente justiica-
anual atende ao princípio de assegurar tem- das e mesmo não sendo, precisamos problema-
po para a convivência e o envolvimento das tizar e decidir sobre o que poderíamos fazer en-
crianças em experiências diversas e signiica- quanto instituição, pois uma criança com menos
tivas para ampliação de seus conhecimentos de 60% de presença não deverá ser impedida
e aprendizagens. Exigindo planejamento e de frequentar a educação infantil. De outro lado,
acompanhamento efetivo das atividades coti- além de conscientizar os pais sobre a importân-
dianas de modo a dar sentido à função socio- cia da presença diária da criança, é importante
política e pedagógica da educação infantil. periodicamente mantê-los informados sobre
A observância da jornada diária de no o percentual de faltas e comparecimentos dos
mínimo, 4 horas para o turno parcial e de 7 ilhos, buscar junto a eles os motivos das faltas
horas para o integral, implica assegurar tem- à instituição e conversar sobre como assegurar
po para a permanência da criança na unidade uma melhor a assiduidade.
educativa, de modo a beneiciar-se das vivên- Outro dado presente no Art. 31, com a lei
cias que ali lhe são proporcionadas e que de- 12.796/2012, diz respeito à “expedição de docu-
vem ser bem planejadas. mentação que permita atestar os processos de
A frequência mínima exigida precisa ser desenvolvimento e aprendizagem da criança”.
entendida e problematizada como uma pos- Esta exigência legal que precisa ser interpretada

342
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS

com atenção e cautela para que a avaliação das natário privilegiado, as famílias de cada criança.
crianças na educação infantil não venha a ser É importante que uma cópia ique arquivada na
atrelada exclusivamente ao controle burocráti- instituição para subsidiar as trocas de informa-
co e oicial dos sistemas de ensino. Tal interpre- ções entre os professores que trabalharão com a
tação poderia nos levar ao preenchimento de i- criança nos grupos/turmas subsequentes.
chas e realização de pareceres ou relatórios que A avaliação das crianças na educação in-
se baseiam em um ideal de desenvolvimento e fantil não pode estar a serviço do ensino fun-
aprendizado para as crianças e não nas muitas damental, não pode se orientar pelo currículo
possibilidades das crianças reais. De forma al- do 1º ano. O foco da avaliação na educação in-
guma se pode entender “documento” como um fantil se centra na criança integral, nela como
histórico escolar, ou como um boletim expresso um todo, na sua complexidade e particulari-
em notas ou conceitos e o atestar como um cer- dade e na diversidade das crianças entre elas.
tiicado de aprovação do desempenho infantil, Nesse sentido, não se relaciona exclusivamen-
como um teste de habilidades. te a determinados conteúdos, como a lingua-
gem escrita e a matemática, geralmente áreas
Nesse aspecto é importante destacar dois pon- com maior visibilidade e importância no ensi-
tos: 1) nas DCNEI não aparece o verbo atestar,
no fundamental.
mas sim a expressão “documentação que per-
mita às famílias conhecer...”; 2) a LDB fala em Em 2009, o Conselho Nacional de Edu-
documentação, que é referente a processos, e cação (CNE) atualiza as Diretrizes Curriculares
não a resultados, não se confundindo com no- Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e,
tas ou conceitos. Uma avaliação padronizada
não ajuda aos professores e gestores reletir
em seu Art. 10, inciso I, sobre a avaliação das
sobre a prática educativa realizada e as con- crianças refere que ela implica “a observação
dições de aprendizagem oferecidas e adequar crítica e criativa das atividades, das brincadei-
estas práticas de acordo com as necessidades ras e interações” que elas realizam no cotidia-
das crianças. Com isso, corre-se o risco de se
perder a concepção, ainda em constituição, de no. Como podemos entender essa proposição?
que avaliar as crianças pequenas é enfrentar Primeiro, considerando que se parte da inten-
o desaio de revelar o universo infantil na sua ção de estar-se o tempo todo atento ao que as
singularidade e transformação mediado pe-
crianças fazem, como fazem, com quem fazem,
las experiências educativas a elas oferecidas
(Moro; Oliveira, 2014, p.201). se fazem algo ou contrário, se se esquivam de
realizar determinadas atividades, brincadeiras
É importante ter em conta que a expedi- (quais seriam?), interações (com quem seria?).
ção da referida documentação é responsabilida- Segundo, buscando formas de reletir, a partir
de da instituição educativa que tem como desti- de uma postura crítica, sobre o que foi observa-

343
Catarina Moro

do; de formas distintas e que permitam captar do. Ao avaliá-la, o professor também avalia
o processo e o contexto educativos (Moro,
mais detalhes, outros elementos e que levem
2015, prelo1).
ao registro do que fora observado. O registro é
a estratégia fundamental e complementar para
O inciso IV (Art. 10, BRASIL, 2009a) traz uma
que o professor relita sobre o que vê e enten-
interlocução importante no que se refere a todo
de acerca dos modos como a criança se revela,
o trabalho realizado por uma instituição de edu-
se manifesta e comunica seus saberes. O inciso
cação infantil que deve ser assegurada por um
II, do Art. 10, indica algumas modalidades de
processo avaliativo que traga uma “documenta-
registro referindo a “utilização de múltiplos re-
ção especíica que permita às famílias conhecer
gistros realizados por adultos e crianças (relató-
o trabalho da instituição junto às crianças e os
rios, fotograias, desenhos, álbuns, etc.)”, a im de
processos de desenvolvimento e aprendizagem
documentar sobre as crianças individualmente
da criança na Educação Infantil” (BRASIL, 2009a).
e sobre toda ação educativa (Brasil, 2009a).
Assim, a avaliação tem como destinatárias tam-
Além de coletar materiais, desenhos, fotos e bém as famílias, sendo direito dos pais acompa-
de produzir registros é preciso saber como nhar o que está acontecendo com seus ilhos e
analisá-los e o que fazer com eles. A questão de compreender as práticas desenvolvidas na
é ter clareza sobre o que fazer com os regis- instituição. A avaliação deve, inclusive, permitir
tros. Como a Alice [no país das maravilhas] é
preciso escolher um caminho a seguir. O fun- às próprias crianças acompanharem suas con-
damental em quaisquer das formas de regis- quistas, diiculdades e possibilidades, ao longo
tro escolhidas é que estas permitam captar de seu processo de desenvolvimento e constru-
a singularidade de cada criança, as peculiari-
ção do conhecimento.
dades vividas e seus aspectos inusitados. Os
registros não fornecem apenas elementos Há várias possibilidades de oportunizar às
para a elaboração de relatórios ou pareceres crianças o conhecimento e o entendimento de
individuais sobre as crianças, mas contribuem suas conquistas. Entretanto, o diálogo acerca de
para a relexão sobre o fazer educativo, ou
seja, para uma auto-avaliação acerca do tra- suas participações, produções, no sentido de lhes
balho do professor, incluindo o planejamento dar “escuta”, permitir a elas terem “voz” no cotidia-
da prática educativa tanto na dimensão da no da educação infantil é de extrema relevância.
sala de aula, quanto na dimensão institucio- Propostas como relatórios, pareceres des-
nal. Nesse sentido, temos a evidência de que
as diferentes dimensões da avaliação são in- critivos e portfólios têm sido boas alternativas
terdependentes. Não há como avaliar exclu- para a documentação e o registro do acompa-
sivamente a aprendizagem, desconsiderando
o contexto educacional que se criou para que
tal aprendizagem aconteça. Ao observar a 1 MORO, C. Avaliação em educação infantil: desaios, tran-
criança, se observa também o contexto cria- sformações, perspectivas. Curitiba: Editora UFPR, (no prelo).

344
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS

nhamento das aprendizagens e do desenvolvi- Entre as ferramentas, os instrumentos


mento das crianças. Permitem materializar “as que possibilitam o acompanhamento e a do-
observações que fazemos e legitimam nossa cumentação acerca da criança o portfólio é um
tomada de decisão acerca das mudanças e inter- dos quais permitem a interação com as próprias
venções, quando necessárias. Ao mesmo tempo, crianças, à medida que ela pode nos ajudar a
constituem uma forma de documentar, de es- elaborá-lo, ao escolher produções suas para sua
crever histórias, de criar memórias.” (Moro, 2011, composição, ao registrarmos comentários, falas
p.37). O registro constitui o fazer educativo, não suas sobre o que já está disposto nele. O portfó-
se restringe exclusivamente à avaliação, mas traz lio permite também que as famílias contribuam
à esta, subsídios fundamentais. na sua composição, além de poderem apreciá-
-lo à medida que vai sendo constituído.
[...] Cada professor pode inventar, criar seus
próprios instrumentos de coleta e registro de Podemos dizer, com o compositor Lenine, que
informações, pois só assim eles serão adequa- o portfólio “pede um pouco mais de calma”,
dos ao seu contexto de trabalho. Cabe a ele uma vez que a construção de um portfólio
no seu contexto de atuação e com a coope- requer o acompanhamento longitudinal das
ração de seus pares decidir se vai utilizar uma experiências educativas, dos fatos interessan-
pauta de observação, como vai fazer uso des- tes, do cotidiano da criança, das situações que
sa pauta, se vai realizar descrições diárias na se repetem e dão indícios para se perceber
forma de registro contínuo ou de ocorrências como a criança está trilhando aprendizados
signiicativas. O fundamental em quaisquer signiicativos. Nessa relação com o tempo,
das formas de registro escolhidas é que es- trabalhar com portfólios nos pede tempo e
tas permitam captar a singularidade de cada alma – afetos, coragem e disposição. Exige
criança, as peculiaridades vividas e seus as- um necessário exercício de revisita aos velhos
pectos inusitados. Os registros não fornecem conceitos de avaliação, o que nem sempre é
apenas elementos para a elaboração de rela- fácil de ser conquistado. Envolve o desejo de
tórios ou pareceres individuais sobre as crian- tornar a avaliação um processo em continui-
ças, mas contribuem para a relexão sobre o dade, num movimento de ir e vir que requer
fazer educativo, ou seja, para uma auto-ava- do professor mais do que o contato com os
liação acerca do trabalho do professor. Nesse produtos resultantes das atividades realiza-
sentido, temos a evidência de que as diferen- das (Moro, 2011, p.42).
tes dimensões da avaliação são interdepen-
dentes. Não há como avaliar exclusivamente As atuais DCNEI em relação às prerroga-
a aprendizagem, desconsiderando o contexto
tivas da avaliação da criança retomam a LDB
educacional que se criou para que tal apren-
dizagem aconteça. Ao observar a criança se no sentido de ser realizada através de acom-
observa também o contexto criado. Ao ava- panhamento e registro do desenvolvimento
liá-la o professor também avalia o processo e de cada uma, ao longo do processo educativo,
o contexto educativos (Moro, 2011, p.37-38).
sem inalidade de retenção ou promoção das

345
Catarina Moro

crianças para níveis ou etapas subsequentes cipação de conteúdos ou de rotinas próprias


(Inciso V). A prerrogativa de avaliar a criança, dos grupos de crianças mais velhas; que requer
sistematicamente e de forma compreensiva, “atenção redobrada para a concepção de ava-
atentando ao seu potencial de aprendizagem, liação que se deseja adotar, assim como, quais
com vistas à promoção de boas oportunidades práticas avaliativas disseminar na educação in-
de crescimento, compete a todas as institui- fantil” (Moro; Oliveira, 2014).
ções, sejam do segmento público ou privado. Na Itália e em Portugal, possivelmente
Alterações recentes em âmbito nacio- em outros países também, há algum tempo
nal relacionadas à estruturação da educação existem discussões e proposições relativas à
básica tensionam tal prerrogativa; dentre elas: “documentação pedagógica”2 e, no Brasil, tem
a reorganização do ensino fundamental, com despontado algumas3. Esta entendida como
aumento do tempo dos anos iniciais para nove
anos, Lei nº 11.274 (Brasil, 2006); a ampliação 2 A exemplo das proposições e discussões acerca da Docu-
mentação Pedagógica, cabe o registro de algumas publicações
da obrigatoriedade de matrícula e frequência em Portugal e na Itália: MALAVASI, L.; ZOCCATELLI, B. Documen-
escolar para crianças e jovens entre os 4 e os tar os projetos nos serviços educativos. Lisboa: APEI, 2013; SÁ-
17 anos (Emenda Constitucional nº 59, Bra- -CHAVES, I. (Org.). Os ‘portfólios’ relexivos (também) trazem
gente dentro: relexões em torno do seu uso na humanização
sil, 2009e) e a alteração da LDB (Lei nº 12.796, dos processos educativos. Porto: Porto Editora, 2005; SÁ-CHA-
Brasil, 2013) que modiicou entre outros, como VES, I. Portfolios relexivos: estratégias de formação e de super-
visão. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2004; BENZONI, Isabella
discutido anteriormente, o artigo 31. Cada (Org.). Documentare? Sí, grazie. Bergamo: Edizioni Junior, 2008;
uma e todas estas mudanças repercutem dire- SAVIO, D. Il portfolio alla scuola dell’infanzia: un’occasione per
tamente no cotidiano do trabalho pedagógico mettersi in ricerca. Bergamo: Edizioni Junior, 2006; BALSAMO, C.
Dai fatti alle parole: rilessioni a più voci sulla documentazione
das instituições de educação infantil e impli- educativa. Bergamo: Edizioni Junior, 1998.
cam em readequações no planejamento, na 3 Acerca das discussões no Brasil, sugere-se: MARQUES,
programação das práticas educativas e avalia- Amanda Cristina Teagno Lopes. A Construção de Práticas de
Registro e Documentação no Cotidiano do Trabalho Peda-
tivas das crianças, a im de não provocar ruptu- gógico da Educação Infantil. Tese (Doutorado em Educação).
ras, descontinuidades nos processos de apren- Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2010; MAR-
QUES, Amanda Cristina Teagno; ALMEIDA, Maria Isabel de. A do-
dizagem nos distintos momentos de transição cumentação pedagógica na abordagem italiana: apontamentos
- da casa à creche ou pré-escola, no interior da a partir de pesquisa bibliográica. Revista Diálogo Educacional.
própria etapa da educação infantil ou desta Curitiba, v.12, n.36, maio/ago 2012, p.441-458; MARQUES, Aman-
da Cristina Teagno; ALMEIDA, Maria Isabel de. A documentação
etapa para o ensino fundamental. No Art. 10, pedagógica na educação infantil: traçando caminhos, construin-
das DCNEI, Inciso III, há uma ressalva quanto a do possibilidades. Revista Educação Pública. Cuiabá, v. 20, n.
44, set./dez. 2011, p. 413-428; BARACHO, Nayara Vicari de Paiva.
necessidade de se valorizar as especiicidades A documentação na abordagem de Reggio Emilia para a
de cada etapa e as questões etárias, sem ante- Educação Infantil e suas contribuições para as práticas peda-
gógicas: um olhar e as possibilidades em um contexto brasilei-

346
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS

sendo a concretização do processo avaliativo da lizadas, as instruções e os apoios oferecidos


trajetória individual da criança ou da trajetória às crianças individualmente e ao coletivo de
crianças, a forma como o professor respondeu
coletiva dos grupamentos por turma. A docu- às manifestações e às interações das crianças,
mentação pedagógica se articula, enriquece os agrupamentos que as crianças formaram,
e tensiona a avaliação da oferta educativa, das o material oferecido e o espaço e o tempo
garantidos para a realização das atividades.
práticas cotidianas realizadas nos vários contex-
Espera-se, a partir disso, que o professor pos-
tos educativos (muitas vezes compreendida na sa pesquisar quais elementos estão contri-
e como avaliação institucional), permitindo sua buindo, ou diicultando, as possibilidades de
transformação, sua melhoria. Assim, é impor- expressão da criança, sua aprendizagem e
desenvolvimento, e então fortalecer, ou mo-
tante articular a avaliação da oferta educativa – diicar, a situação, de modo a efetivar o Pro-
das condições e práticas – com a avaliação das jeto Político-Pedagógico de cada instituição
crianças. O sentido de ambas é sua coexistência, (Brasil, 2009b, p. 16).
não há como se efetivar apenas uma ou outra.
As Diretrizes de 2009, assim como a LDB, Também no âmbito das políticas públi-
no que diz respeito à avaliação em educação in- cas a avaliação constitui um tema desaiador.
fantil, explicitam melhor os processos relativos Em 2011, o MEC instituiu um Grupo de Traba-
ao aprendizado e desenvolvimento das crian- lho, com vistas à construção de subsídios para
ças. Já o Parecer CNE/CEB n. 20/2009, que subsi- a deinição de uma política de avaliação da
dia a Resolução n. 05/2009, referente às DCNEI, educação infantil no Brasil. As discussões des-
discute a articulação entre a avaliação das crian- te Grupo resultaram no documento “Educação
ças e a avaliação de contexto, relativa às opor- infantil: subsídios para construção de uma
tunidades educativas no cotidiano de trabalho: sistemática de avaliação” (Brasil, 2012). Entre
as indicações feitas neste documento merece
As instituições de Educação Infantil, sob a óti-
destaque a indicação de incluir a educação in-
ca da garantia de direitos, são responsáveis
por criar procedimentos para avaliação do fantil nas formulações sobre a Política Nacional
trabalho pedagógico e das conquistas das de Avaliação da Educação Básica, consideran-
crianças. A avaliação é instrumento de rele- do as especiicidades da educação na faixa etá-
xão sobre a prática pedagógica na busca de
melhores caminhos para orientar as apren-
ria de até 6 anos de idade.
dizagens das crianças. Ela deve incidir sobre Agora, em 2015, o INEP – Instituto Nacio-
todo o contexto de aprendizagem: as ativi- nal de Pesquisas Educacionais.- após um período
dades propostas e o modo como foram rea- de discussões e estudos, trouxe a público a pro-
posta da Avaliação Nacional da Educação Infan-
ro. 2011. 234f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, til (ANEI), como possibilidade de monitoramento
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

347
Catarina Moro

da oferta em âmbito nacional. Contudo, persiste com nosso olhar, escuta e registros atentos;
o desaio para sua implementação, uma vez que que possam nos fazer reletir e propor novas
a portaria que deveria instituir a ANEI ainda re- práticas voltadas à ampliação de conhecimen-
quer a assinatura do atual Ministro da Educação, tos e vivências das crianças.
assim como ter assegurada as condições para
sua efetivação. Essa questão requer posiciona- Referências bibliográicas
mentos e acompanhamento dos pesquisadores
dos movimentos sociais e dos proissionais da BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
área em geral, para que de fato a educação in- 1996. Estabelece as diretrizes e bases da edu-
fantil assegure que a avaliação nacional a ser ins- cação nacional. Diário Oicial da União, Poder
tituída seja acerca da oferta educativa às crianças Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível
e não do desempenho individual de cada uma. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9394.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
Finalizando BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto.
Secretaria de Educação Fundamental. Refe-
Em todos os níveis educacionais e princi-
rencial curricular nacional para a educação
palmente na educação infantil importa muito
infantil. Brasília: MEC; SEF, 1998. 3 v.
mais avaliar o que permite e como se permite
à criança apropriar-se de novos e ampliados BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Na-
conhecimentos, que a enriqueçam como seres cional de Educação. Câmara de Educação Básica.
que produzem cultura e não exclusivamente Resolução n. 5, de 17 de dezembro de 2009.
seus desempenhos individuais. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Não há uma avaliação modelo que pode a Educação Infantil. Diário Oicial da União, Po-
servir de guia para o nosso compromisso de der Legislativo, Brasília, DF, 18 dez. 2009a.
acompanhar as conquistas e os desaios das BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de
aprendizagens das crianças que cuidados e Educação Básica. Indicadores da qualidade na
educamos na educação infantil, há sim a pos- educação infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009b.
sibilidade de investigarmos sempre outras ex- BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacio-
periências, de estabelecermos intercâmbios nal de Educação. Parecer CNE/CEB n. 20/2009, de
entre nós professores de uma mesma ou de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes
diferentes instituições acerca do que pode ser Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
instigante às crianças no cotidiano educativo. Diário Oicial da União, Poder Legislativo, Brasí-
E proporcionarmos tais situações, seguindo-as lia, DF, 9 dez. 2009c. Seção 1, p. 14.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de

348
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS

Educação Básica. Política de educação infan- ção dos proissionais da educação e dar outras
til no Brasil: Relatório de avaliação. Brasília: providências. Diário Oicial da União, Poder
MEC; SEB; Unesco, 2009d. Legislativo, Brasília, DF, 5 abr. 2013. Disponível
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Cons- em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
titucional n. 59, de 11 de novembro de 2009. ato2011-2014/2013/lei/l12796.htm>. Acesso
Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposi- em: 19 out. 2014.
ções Constitucionais Transitórias para reduzir, BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014.
anualmente, a partir do exercício de 2009. Diá- Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE
rio Oicial da União, Poder Legislativo, Brasí- e dá outras providências. Diário Oicial da
lia, DF, 12 nov. 2009e. Disponível em: <http:// União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 26 jun.
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ 2014. Disponível em: <http://www.planalto.
Emendas/Emc/emc59.htm>. Acesso em: 19 gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/
out. 2014. L13005.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
BRASIL. Lei n. 11.274, de 06 de fevereiro de MORO, C. (Desa)Fios da avaliação. Revista Educa-
2006. Altera a redação dos arts. 29, 30, 32 e 87 ção. Número Especial Educação Infantil. Vol. 2. São
da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Paulo, p. 31-43, out. 2011. ISNN: 1415-5486
que estabelece as diretrizes e bases da educa- MORO, C. Avaliação em educação infantil:
ção nacional, dispondo sobre a duração de 9 desaios, transformações, perspectivas. Curiti-
(nove) anos para o ensino fundamental, com ba: Editora UFPR, 2015. No prelo.
matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos
MORO, C.; OLIVEIRA, Z. de M. R. de. Avaliação e
de idade. Disponível em: http://www.planal-
educação infantil: crianças e serviços em foco.
to.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/
Em: FLORES, M. L.; ALBUQUERQUE, S. Imple-
l11274.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
mentação do Proinfância no Rio Grande do
BRASIL. Ministério da Educação. Educação in- Sul: perspectivas políticas e pedagógicas.
fantil: subsídios para construção de uma sis- Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014, p. 199-216.
temática de avaliação. Documento produzido
pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria
número 1.147/2011, do Ministério da Educa-
ção. Brasília: MEC, 2012.
BRASIL. Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para dispor sobre a forma-

349
21
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO
DA PEDAGOGIA EM CRECHE: A RELEVÂNCIA PERCEBIDA
DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

Sara Barros Araújo


Júlia Oliveira-Formosinho

Introdução Simultaneamente, é possível identii-


car, na atualidade, um conjunto de projetos /
A formação de educadores de infância perspectivas pedagógicas orientadas para a
para os contextos de creche tem vindo a ser experimentação de práticas de elevada qua-
reconhecida como inluente na qualiicação lidade na educação de crianças nos primei-
destes serviços de educação e cuidados e na ros três anos de vida – aquilo que Peter Moss
experiência das crianças que os frequentam. designou como “ilhas de dissenso” (“islands
Este nexo tem vindo a ser reforçado no âm- of dissent”) – que reconhecem o direito dos
bito de investigação que tem tomado como proissionais a um apoio contínuo sustenta-
objeto a qualidade destes contextos. Os resul- dor das práticas, podendo-se destacar expe-
tados destes estudos têm enfatizado a impor- riências pedagógicas na Itália (Reggio Emilia,
tância de uma formação especializada, que Pistóia, San Miniato), nos Estados Unidos (Hi-
prepare os proissionais adequadamente para ghScope), em Inglaterra (Pen Green Center),
uma ampla gama de necessidades de crianças em Espanha (Rosa Sensat), em Portugal (Pe-
e famílias (Andersson, 1989; Burchinal, Cam- dagogia-em-Participação).
pbell, Bryant, Wasik & Ramey, 1997; Love et al.,
O presente capítulo visa a apresenta-
2003; National Institute of Child Health and
ção de um estudo1 realizado no âmbito de
Human Development - Early Child Care Re-
search Network (Nichd - Eeccrn), 2001), bem
1 O estudo que aqui se apresenta foi apresentado, numa pri-
como da existência de estruturas de apoio meira versão, na tese de doutoramento da autora, a qual foi inan-
contínuo que sustentem as suas práticas ciada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia através de uma
Bolsa de Doutoramento (SFRH/BD/41184/2007), e pelo Programa
(Love et al., 2003). de Formação Avançada do Instituto Politécnico do Porto.

351
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

uma destas perspetivas pedagógicas, a Pe- Este corolário democrático materializa-se sob
dagogia-em-Participação, que defende, en- duas formas: a participação de todos na vida
quanto um dos seus corolários, o direito dos da instituição e na comunidade, e a participa-
proissionais à formação, direito esse que, por ção na co construção da própria aprendizagem
seu turno, é reconhecido enquanto condição e desenvolvimento.
para a garantia de direitos das crianças e das Esta perspectiva considera que a Pe-
famílias. A apresentação contemplará, num dagogia da Infância se organiza em torno do
primeiro momento, aspetos teóricos relativos conhecimento construído na ação situada, ar-
à formação em contexto para, num segundo ticulado com a teoria e com crenças e valores,
momento, dedicar-se à caracterização das numa triangulação interativa (Oliveira-Formo-
percepções de educadoras de infância acerca sinho, 2007). A Pedagogia da Infância tenta
dos conteúdos e processos da formação responder a diferentes níveis de complexida-
com maior relevância na aprendizagem de, direta e indiretamente implicados na ação
proissional e na reconstrução da pedagogia educativa, através deste processo de diálogo
em contexto de creche. interativo entre teoria, práticas e crenças. As-
sume-se, pois, a sua natureza profundamente
Pedagogia-em-participação: a forma- holística e integrada, centrada numa praxis da
ção em contexto para a reconstrução da participação (ibidem).
pedagogia A formação em contexto é concebida
como o processo privilegiado para a recons-
No âmago das crenças, valores e princí- trução da pedagogia, pressupondo uma dialé-
pios da Pedagogia-em-Participação, a perspe- tica entre a formação, a ação e a investigação
tiva educativa da Associação Criança, encon- (Formosinho & Oliveira-Formosinho, 2008). A
tra-se a democracia, à qual se aspira enquanto formação em contexto distancia-se de práticas
im e meio, isto é, aspira-se a que esteja pre- formativas centradas num modelo escolar, em
sente tanto no âmbito das grandes inalidades que a relação entre formadores e formandos
educacionais, como no âmbito do quotidiano é modelada à luz da relação professor-aluno,
vivido por todos os atores, como participação em contextos do tipo sala de aula e com pro-
de crianças e adultos (Oliveira-Formosinho, postas programáticas à margem dos projetos
2007, 2011b; Oliveira-Formosinho & Araú- e situações de trabalho dos professores. Trata-
jo, 2013; Oliveira-Formosinho & Formosinho, -se de um sistema tecnocrático, de formatação
2013; Oliveira-Formosinho & Gambôa, 2011).

352
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

bancária2, predominantemente teoricista e da formação3, por serem aquelas que mais cen-
desvalorizador dos saberes experienciais dos tralmente se relacionam com as inalidades do
professores (Machado & Formosinho, 2009). trabalho apresentado neste capítulo.
Neste sentido, revela-se um sistema dicoto- No que concerne à dimensão física, a for-
mizador da teoria e da prática, sobrepondo mação em contexto é, tal como a própria de-
uma racionalidade técnica, na qual a prática é signação deixa adivinhar, realizada no terreno,
concebida como a concretização/aplicação da centrando-se nos contextos de trabalho. Assim
teoria e técnicas cientíicas, a uma racionalida- concebida, possibilita o reforço do potencial
de prática em que o professor é reconhecido formativo do ambiente de trabalho (Machado
como um proissional capaz de reletir na e so- & Formosinho, 2009), através da construção de
bre a prática (Schön, 1992) e em que a teoria saberes situados, da aprendizagem-em-ação,
é transformada em hipótese de trabalho capaz de aprendizagem experiencial (Oliveira-For-
de fecundar a prática (Machado & Formosinho, mosinho & Formosinho, 2001). Nesta ótica,
2009). Estas práticas formativas baseadas na ra- permite ultrapassar a dissociação entre espa-
cionalidade técnica têm vindo a ser associadas ços e tempos da formação e espaços e tempos
à instrumentalidade e normatividade da for- do trabalho (Ferreira, 2001; Machado & For-
mação dos professores, à negação das suas di- mosinho, 2009), passando-se para uma lógica
mensões emancipatórias, a constrangimentos e dinâmica de formação que une tempos e
ao desenvolvimento proissional e à mudança lugares da cidadania, do trabalho e da forma-
endógena das instituições (ibidem). ção num processo único e integrado (Ferreira,
A formação em contexto surge como 2001). A formação em contexto relete, então,
resposta alternativa à formação centrada num uma perspetiva ecológica do desenvolvimento
modelo escolar. No sentido de caracterizar esta proissional que reconhece e analisa o proces-
alternativa, tomaremos como referência três so de interação mútua e progressiva entre um
dimensões interligadas: a dimensão física, a di- professor/educador ativo e em crescimento e
mensão psicossocial e a dimensão pedagógica o ambiente em transformação em que ele está
inserido (Oliveira-Formosinho, 2009). Assim, é
um processo formativo que se realiza, numa

2 Numa educação de tipo bancário, cada professor, individual- 3 Baseamo-nos na proposta de Formosinho ao equacionar as
mente, procura “acumular” conhecimentos que “aforra” porque lhe diferentes vertentes da formação centrada na escola: a física, a
dão “créditos” e proventos na carreira, sem, no entanto, precisar se organizacional, a psicossocial, a pedagógica e a político-cívica e/
mobilizar a curto prazo os conhecimentos acumulados (Machado ou político-corporativa (1991, op. cit. Oliveira-Formosinho & For-
& Formosinho, 2009, p. 289). mosinho, 2001).

353
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

extensão relevante, dentro das fronteiras fí- com educadoras de infância, que a identiicação
sicas do microssistema, mas que atenta nas dos saberes docentes, numa fase inicial do pro-
inter-relações entre este sistema e outros con- cesso, é fundamental, quer como base relexiva,
textos, mais imediatos ou mais vastos. Como quer como ponto de partida para a mudança e
argumentam Formosinho e Oliveira-Formosi- transformação das práticas.
nho (2008), metade do tempo da formação em A formação em contexto valoriza igual-
contexto é passado fora desse contexto, em mente uma visão relacional e colaborativa da
atividades de estudo e supervisão. Os autores formação. Como sublinhado por Oliveira-For-
consideram, então, quatro componentes deste mosinho, Azevedo e Mateus-Araújo (2009), Na
trabalho formativo: (i) o tempo de contacto nas formação em contexto desenvolve-se, de forma
salas de atividades (com os proissionais, para mediada e em companhia, uma deinição local
proissionais e crianças); (ii) o tempo de contac- e colaborativa dos objetivos para a transforma-
to no contexto, mas fora das salas de ativida- ção praxiológica, isto é, promove-se uma cen-
des (com o líder pedagógico, o líder organiza- tração no quotidiano praxiológico onde colabo-
cional, as famílias); (iii) o tempo de estudo, fora rativamente emergem os focos e propósitos da
do contexto, dedicado à avaliação, relexão e formação (p. 83). Nesta lógica formativa, reco-
planiicação da formação; e (iv) o tempo de su- nhece-se o valor de uma cultura colaborativa
pervisão dedicado à relexão e orientação com do trabalho docente que rompe com a cultura
o supervisor da intervenção. individualista e com o isolamento.
Numa dimensão psicossocial, a formação Apesar da centração nos docentes, é
em contexto conigura uma formação centrada importante ressalvar que não constitui uma
nos docentes, em que estes são considerados formação que se encerre nos docentes ou na
sujeitos, e não objetos, da sua formação (Fer- escola, conotando uma visão umbiguista ou
reira, 2001). Os formadores afastam-se de um corporativa (Oliveira-Formosinho & Formo-
trabalho feito para os docentes, onde estes se sinho, 2001), mas que possibilita o cultivo da
mantêm como recetáculos passivos, para uma abertura, quer a outros microssistemas, quer
cultura de trabalho formativo com os docentes, àqueles a quem serve. De facto, é necessário
participado e em corresponsabilização (Cravei- que a escola interatue com instituições de for-
ro, 2007). A formação em contexto valoriza a ex- mação, especialistas em educação, movimen-
periência e biograia dos professores (Ferreira, tos pedagógicos, associações proissionais de
2001). Craveiro (2007) concluiu, no âmbito do professores, associações sindicais de professo-
seu extenso trabalho de formação em contexto res, redes de escolas, projetos de professores

354
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

(Oliveira-Formosinho, 2009; Oliveira-Formosi- contexto que tem acompanhado, a necessidade


nho & Formosinho, 2001). Em concomitância, de um entrelaçamento entre teorização e ação,
deve estar permanentemente atenta às neces- a integração de um saber natural e de um saber
sidades daqueles que serve, nomeadamente cientíico, visando práticas sensíveis à complexi-
as crianças. Por tal, a formação em contexto dade e especiicidade dos processos formativos
permite honrar simultaneamente o direito dos naquele local, naquele tempo e com aqueles
professores ao desenvolvimento proissional sujeitos. A autora airma que só por esta via será
e o direito das crianças a uma aprendizagem possível produzir saber orgânico, sistemático e
signiicativa (Oliveira-Formosinho, Azevedo & comunicável sobre o trabalho pedagógico em
Mateus-Araújo, 2009). creche ou, de forma mais ampla, uma cultura
A dimensão pedagógica airma uma for- robusta de creche.
mação em contexto centrada nas práticas, par-
tindo da identiicação coletiva de necessidades Formação em contexto de creche: um
para a co construção de um processo formativo estudo acerca da relevância percebida
que possibilite a transformação daquelas. Na óti- de conteúdos e processos
ca de Oliveira-Formosinho (2009), é a formação
centrada nas práticas que aproxima os proces- Objetivo e coniguração metodológica
sos de formação contínua e o desenvolvimento
proissional. Privilegiam-se, então, os saberes O estudo teve como objetivo compreen-
relevantes para a prática, pois são as mudanças der o impacto de um processo de formação
na prática o veículo que possibilita o impacto em contexto, tomando como foco as perspe-
junto das crianças (Oliveira-Formosinho, 2007). tivas das educadoras de infância acerca dos
Neste processo, a ação e a relexão interagem conteúdos e processos percebidos como mais
continuamente, pois transformar o mundo da relevantes na aprendizagem proissional e na
pedagogia da infância requer o suporte da re- reconstrução da pedagogia. O estudo foi de-
lexão que permite a fusão do saber e do pensar senvolvido em duas salas de creche da cidade
(Oliveira-Formosinho, Azevedo & Mateus-Araú- do Porto, no norte de Portugal, envolvendo
jo, 2009, p. 83), concebendo-se ciclos de experi- duas proissionais, uma a desenvolver a sua
mentação permeados pela relexão sistemática, ação proissional numa sala frequentada por
os quais possibilitam a construção progressiva crianças entre os 12 e 24 meses (doravante
da inovação (ibidem). No âmbito mais estrito da designada educadora SM) e uma educadora a
pedagogia em creche, Cipollone (1998) apolo- desenvolver a sua ação numa sala para crian-
giza, com base nas experiências formativas em

355
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

ças entre os 24 e os 36 meses (doravante desig- so foi desenvolvido ao longo de nove meses,
nada educadora CR). O estudo envolveu ainda compreendendo 58 encontros de trabalho, e
uma formadora em contexto, concomitante- centrando-se na transformação da qualidade
mente investigadora. através de processos de experimentação en-
A recolha de dados foi realizada através volvendo espirais de ação e relexão, tomando
da adoção de uma abordagem multimetódica, como referência quatro abordagens pedagógi-
combinando três sistemas observacionais, no cas para a creche, de natureza socioconstrutivis-
rasto da proposta de Evertson e Green (1989): ta: a Pedagogia-em-Participação, a abordagem
(i) um sistema observacional narrativo, cons- HighScope, a perspetiva de Reggio Emilia e a
tituído pelas notas de campo da formadora e proposta de Elinor Goldschmied. Numa terceira
entrevistas às educadoras de infância; (ii) um fase, foi conduzida uma avaliação multimetódi-
sistema observacional categorial, correspon- ca do impacto da formação em contexto.
dendo à utilização de instrumentos de obser-
vação da qualidade do programa, do empenha- Conteúdos e processos da formação em
mento do adulto, do bem-estar, envolvimento e contexto na percepção das participan-
experiências de aprendizagem da criança; e (iii) tes
um sistema observacional tecnológico, associa-
do aos registros fotográicos acerca de elemen- A análise indutiva de dados permi-
tos estruturais e processuais. Os dados apresen- tiu identiicar cinco temas émicos caracteri-
tados neste capítulo foram recolhidos através zadores das percepções das educadoras de
do sistema observacional narrativo e sujeitos a infância no que concerne os conteúdos e
análise de conteúdo, de natureza indutiva, re- processos formativos mais relevantes na sua
sultando na identiicação de temas émicos4. aprendizagem proissional, como se elucida
O estudo foi desenvolvido ao longo de seguidamente.
três fases: uma fase de avaliação inicial multime-
tódica da qualidade do contexto; uma segun- A importância do foco em referenciais
da fase, dedicada ao desenvolvimento de um especíicos à ação proissional em cre-
processo de formação em contexto, mediado che
por uma formadora em contexto. Este proces-
A especiicidade dos conteúdos da
4 Utilizamos a distinção traçada por Stake (1999) entre temas formação, orientados para a natureza da edu-
éticos (questões que o investigador traz do exterior) e temas cação e cuidados em contexto de creche, foi
émicos (os temas dos atores que pertencem ao caso).

356
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

assumida como relevante por todos os ele- que as educadoras veriicavam a existência de
mentos envolvidos. A formação em tais refe- referenciais especíicos para creche, bem como
renciais, quer ao nível da formação inicial, quer a sua complexidade e alcance. No inal do pe-
contínua, havia sido caracterizada pelas educa- ríodo de formação, as impressões muito posi-
doras como muito lacunar. Apesar de a qualii- tivas veiculadas por uma das educadoras dão
cação e competência proissional ser conside- conta dos efeitos da formação na sua identida-
rada, nos contextos de creche, um critério de de de educadora de creche:
qualidade relevante e com impacto no desen-
volvimento da criança (Berthelsen & Brownlee, Eu acho que é assim, neste momento, não me
sinto, de todo, como é que eu hei de dizer, não
2007; Berthelsen, Brownlee & Boulton-Lewis, me sinto inferior nem constrangida se me dis-
2002; Burchinal, Campbell, Bryant, Wasik & serem: Vais trabalhar sempre em creche (…) E
se me disserem Vais icar só em creche, porque
Ramey, 1997; Nicdh Eccrn, 2001), a percep-
acho que é daquelas coisas que eu sinto que
ção destas educadoras conirmava evidências também evoluí, que mudei em relação ao ano
reiteradas por vários autores e estudos passado, eu gosto do trabalho em creche, mas
achava que era muito limitativo e, neste mo-
acerca da realidade portuguesa, os quais têm mento, se me disserem, Vais trabalhar só em
sublinhado as fragilidades da formação inicial creche, não tenho medo. Não tenho medo e, é
e contínua dos educadores de infância para assim, não tenho medo de estagnar proissio-
nalmente, porque acho que tenho aqui ma-
a ação proissional em creche (exs.: Araújo, terial que me vai permitir continuar a evoluir
2011; Carvalho, 2005; Coelho, 2005; ME-DEB, enquanto proissional (entrevista à educado-
2000; Oliveira-Formosinho, 2011a; Portugal, ra SM, julho 2009).

1998). Uma das educadoras revelou mesmo a


total ausência de conteúdos neste domínio na É possível airmar, ilustrada neste ex-
sua formação inicial e contínua, o que a levou certo e partilhada pelas duas educadoras, a ex-
a airmar que tudo aquilo que eu tinha em cre- tração de sentidos positivos face à experiência
che era do pré-escolar (Entrevista à educadora formativa e uma perceção de impacto positivo
CR, julho 2009). As emoções evocadas relati- na sua proissionalidade docente, enquanto
vamente à perspetiva de trabalhar em creche educadoras a desenvolver a sua ação em cre-
eram de frustração e sensação de se sentir perdi- che, designadamente um emergente sentido
da (educadora SM) e assustada (educadora CR). de mestria e competência, maior segurança
Ao longo da formação em contexto fo- e sentimentos de maior valia pessoal e pro-
ram sendo visíveis a surpresa e satisfação com issional. Parece-nos que a proissionalidade

357
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

docente destas educadoras foi ganhando no- textos de creche, às crianças e adultos que aí
vos contornos, partindo de uma identidade e se movem, revelou-se preponderante na re-
proissionalidade deprimidas, que não se en- construção das práticas. Os estudos realizados
contrariam desfasadas do elevado condiciona- por Oliveira-Formosinho e colaboradores têm
mento que representam as imagens presentes sublinhado a ligação signiicativa e capaci-
na matriz socio-histórica. Estas imagens têm tante da aprendizagem e experimentação de
vindo a relegar o educador a trabalhar em cre- propostas pedagógicas explícitas no desen-
che para uma posição subsidiária de agente de volvimento proissional das educadoras de in-
cuidados e não de agente educativo (Araújo, fância em creche (Cardoso, 2011; Lucas, 2006;
2009b), o que tem contribuído para a menor Oliveira-Formosinho & Araújo, 2011). De igual
atenção, investimento e legitimação social des- modo, no presente estudo, esta aprendizagem
te proissional, bem como para a ausência de e experimentação de referenciais pedagógicos
critérios precisos para fundamentar a sua prois- para a ação proissional em creche parece-nos
sionalidade (Bondioli & Mantovani, 1998). Como encontrar-se associada ao robustecimento da
evidenciado pelo estudo de Coelho (2005) identidade proissional das educadoras e ao
acerca das conceptualizações de um grupo de início da reconstrução, de forma situada e re-
educadoras a trabalhar em creche, apesar da lexiva, da sua proissionalidade docente.
assunção por parte destas da natureza especia-
lizada e diferenciada do seu trabalho, a incerteza A equipe de trabalho enquanto elemen-
endémica (Katz, 1998, op. cit. Coelho, 2005) acer- to catalisador da mudança
ca do seu papel coloca-se com maior acuidade
aos educadores a trabalhar nesta valência, refor- O trabalho em equipe, de natureza
çada por sentimentos de desvalorização social, colaborativa, representou uma característica
que emergem no próprio seio da comunidade processual da formação em contexto recorren-
proissional. O estudo de Coelho evidencia, no temente assinalada pelas proissionais como
caso de muitas educadoras, a ausência de um vantajosa no processo de mudança encetado.
referencial suicientemente explícito que as situe De facto, apesar da existência anterior de parti-
e permita deinir a sua proissionalidade sem re- lhas informais entre as educadoras, estas regis-
correrem sistematicamente à comparação com a travam-se a um nível supericial, assistemático
actividade em contexto pré-escolar (p. 351). e ainalístico do ponto de vista pedagógico.
No caso em análise, a experimentação O clima relacional positivo pré-existente
em ciclos de ação e relexão de propostas pe- foi salientado enquanto condição facilitadora,
dagógicas sensíveis às características dos con- servindo como plataforma para o desenvolvi-

358
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

mento subsequente de novos saberes colabo- tas, todas juntas, foi facilitador para haver
uma interação de todas as educadoras e das
rativos, como surge ilustrado nas palavras de
salas, do que se passava nas salas (Entrevista à
uma das educadoras, na entrevista inal: educadora CR, julho 2009).

Acho que deveriam ser de manter [os en- Este excerto relete benefícios de pro-
contros de trabalho] porque acho que foram
muito importantes, (…) porque tornámo-nos cessos inerentes ao trabalho em equipe, no-
realmente uma equipa, em que, em que nos meadamente o incremento da partilha e do
desaiávamos umas às outras, em que nos
conhecimento acerca das vivências nas restan-
ajudavámos, em que nos compreendíamos e
começamos até a perceber… quero dizer, eu tes salas. Outros benefícios foram igualmente
também estava no ATL, também era diferente, reconhecidos, como a compreensão mútua e a
mas eu sei que também elas aqui em baixo,
que não…muitas vezes não sabiam o que é empatia em momentos de mais difícil gestão
que se passava na sala umas das outras, esta- do ponto de vista emocional, o apoio e encora-
vam muito mais isoladas e eu própria, que es- jamento, bem como o desaio mútuo.
tava lá em cima, também não sabia, de todo,
o que se passava aqui nas salas. Que embora A construção coletiva de saberes, através
haja uma relação de amizade entre nós, que da implicação de todas as educadoras, foi par-
o há, mas falávamos assim muito de circuns- ticularmente salientada enquanto vantagem
tância daquilo que se passava. E também falá-
vamos das diiculdades que sentíamos, ou eu percebida da formação. As educadoras referi-
no ATL, ou elas aqui em baixo e tentávamos ram a maior harmonia e coerência ao nível das
ajudar, mas não foi tão rigoroso, tão bom, tão
práticas (não apenas nas salas de creche, mas
elucidativo, como foi nestes momentos. (…)
Por exemplo, acho se não tivessem havido es- alargando esta análise às salas de atividades do
tes momentos mesmo ao nível do jogo heu- pré-escolar), que outorgaram à partilha de refe-
rístico, se calhar nunca nos tínhamos aperce-
bido que estava a haver o jogo heurístico na renciais teóricos comuns. Uma das educadoras
sala da SM, por exemplo, não é? Se tivesse reconheceu ainda a relevância da construção
sido noutra altura, em que a SM, por ela pró- de uma base de discurso uniforme e coerente, co-
pria, se tivesse documentado o jogo heurísti-
co ou ela própria tivesse feito uma formação mum a todas (Entrevista à educadora SM, julho
sozinha, ou no exterior, e tivesse trazido para 2009), derivada da partilha de referenciais teó-
a sala dela, eu duvido muito…nós íamos sa- ricos e da relexão conjunta. De facto, foram-
ber que a SM estava a fazer o jogo heurístico,
atenção, não é, porque falávamos sobre isso, -se tornando notórios, de forma paulatina, um
mas se calhar não íamos chegar ao ponto de maior rigor, segurança e comunhão ao nível de
entender sequer o que era o jogo heurístico.
referenciais no discurso proissional das edu-
(…) E enquanto que aqui na formação, como
tínhamos essas duas vezes por semana, jun- cadoras, não enquanto relexo, nas palavras

359
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

de Paulo Freire, de um jogo da verbosidade ou A relevância de uma abordagem contex-


balé de conceitos (Freire & Fagundez, 1985), mas tual à formação
enraizado em processos de análise, discussão e
colaboração num processo transformativo. O locus espacial de desenvolvimento da
Estas evidências corroboram dados de formação, a própria unidade educativa estuda-
outros estudos que salientam as vantagens da, foi salientado como uma mais-valia do pro-
do envolvimento da equipa numa jornada de cesso formativo, quer ao longo do desenrolar
aprendizagem em companhia nos processos de deste, quer nas entrevistas inais. A este respei-
aprendizagem proissional (Azevedo, 2009; Ci- to, dois aspetos assumiram relevância: o foco
pollone, 1998; Craveiro, 2007; Mesquita, 2013; nas práticas e situações educativas reais e pró-
Oliveira-Formosinho, Azevedo & Mateus-Araú- ximas, e a implicação dos atores locais. Atente-
jo, 2009). A este nível, o presente estudo con- mos nas palavras de uma das educadoras:
irma a natureza duplamente generativa do
trabalho em equipa: por um lado, permitiu ve- Não é uma fórmula que se chegue ali e se
aplique e está, porque isto precisa de ajustes
riicar a aprendizagem do trabalho no seio de aos contextos, às crianças, aos grupos. (…)
uma equipe, de natureza colaborativo e rele- uma formação para ser sentida e vivida tem
que partir dos contextos, acho que isso é uma
xivo e, por outro lado, permitiu observar esta mais-valia, porque a gente tem exemplos de
mesma arena interpessoal enquanto condição formações que são dadas porque tem que
e meio para outras aprendizagens proissio- ser para a formação, porque tem que se dar
formação. Para mim, a formação não se dá, a
nais, nomeadamente ao nível da gestão de di- formação faz-se. Acho que só uma formação
ferentes dimensões da pedagogia. Podíamos, feita em contexto, que implique diretamente
as pessoas daquele contexto, é que produz
assim, airmar estar perante a emergência de efeitos (…). Porque, para já, há um crescimen-
uma pequena comunidade aprendente, que to, cresce-se como mente, e depois, outra coi-
se envolvia na construção progressiva de um sa que eu acho que a formação em contexto
traz, é construir-se coletivamente, é o fazer-
referencial educativo comum e que se ia cons- mos formação e não o darem-nos formação.
tituindo e reconhecendo enquanto comunida- Isto é um processo similar com as crianças,
elas conseguem apropriar-se muito mais e
de de prática (Wenger, 1998).
constroem conhecimento quando estão im-
plicadas diretamente, quando começam a fa-
zer os projetos, quando começam a construir
as coisas do nada. Agora, quando a gente lhes
apresenta modelos, eles até podem dizer é
A, B, C e D, mas aquilo, de facto, trouxe-lhes

360
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

conhecimento? Produziu conhecimento in- às necessidades de adultos e crianças, criando


ternamente? Para mim, não (Entrevista à edu-
condições para o seu envolvimento e co prota-
cadora SM, julho 2009).
gonismo. As educadoras revelaram que estes
Patente neste excerto está a valoriza- contornos formativos permitiram o aumento da
ção de uma formação que parte das necessida- compreensão acerca das situações educativas,
des e problemas reais dos contextos e envolve facilitaram a interiorização de propostas e a in-
direta e ativamente os seus atores. Tal como tegração da teoria e da prática.
salienta a educadora, a formação não constitui Na perspetiva da formadora, a inexis-
uma fórmula aplicável de forma autista, mas tência de uma formatação hermética a deinir
antes um processo aberto e valorizador da a priori os conteúdos e estratégias formativas
participação das pessoas diretamente implica- e, em contraste, a auscultação contínua das
das. O excerto revela também um paralelismo evidências do contexto e a permeabilidade às
traçado pela educadora entre o processo de diversas perspectivas em presença, permitiram
construção de conhecimento do adulto e o das a abertura à emergência de novos tópicos de
crianças, reconhecendo em ambos a natureza análise na formação e no labor investigativo.
ativa e experiencial. Dito de outra forma, as pa- Apesar de norteados por prioridades ao nível
lavras da educadora sugerem o isomorismo da formação, que coniguraram o estabeleci-
pedagógico proposto por Formosinho e Oli- mento de inalidades no processo de investi-
veira-Formosinho (2008), referindo-se a uma gação, a natureza contextualizada e contex-
equivalência nos modos de aprendizagem e tualizadora, participativa e integradora da
desenvolvimento de adultos e crianças, que formação em contexto criou condições para
conigura uma homologia epistemológica da uma maior complexiicação, alargamento e
aprendizagem de uns e outras (Oliveira-Formo- adequação do processo de transformação.
sinho, 2005). Neste caso, é valorizada a forma-
ção que se distancia de um modelo de forma- A necessidade de mediação pedagógica
ção tradicional, que as educadoras associavam à
formação inicial e contínua realizada até então, Ainda numa ótica processual, foi tam-
tendente à transmissão de modelos e à cisão da bém assinalado o contributo da formadora em
teoria e da prática, reconhecendo, antes, as vir- contexto na experimentação sustentada de
tuosidades de uma abordagem formativa que referenciais pedagógicos. A este propósito, foi
reconhece e se alimenta de uma estreita ligação salientada a importância de a formadora cons-
às idiossincrasias contextuais, designadamente tituir um elemento externo ao contexto mas,

361
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

simultaneamente, detentora de conhecimento lógica de pendor tecnocrático e transmissivo


e compreensão profundos das condições estru- (Machado & Formosinho, 2009; Oliveira-For-
turais e dinâmicas do mesmo. A experiência da mosinho, 2007) e, noutros moldes formativos,
formadora, a montante, enquanto supervisora convidar à implicação das proissionais em
de estágios na instituição e o envolvimento con- atos colegiais de avaliação da realidade, de
junto anterior num projeto formativo - o projeto co deinição de focagens e de ação reletida,
Desenvolvendo a Qualidade em Parcerias (Araú- de forma sistemática e co-responsabilizadora.
jo, 2009a) -, abrira caminho, na perspetiva das As palavras de uma das educadoras, quando
proissionais, a este conhecimento privilegiado questionada em entrevista acerca do papel da
do contexto, bem como à construção de con- formadora em contexto, traz alguma evidência
dições relacionais e interativas facilitadoras dos acerca do que ele implicou e representou:
processos. Paralelamente, o facto de constituir
um elemento externo traduzir-se-ia num desa- Eu acho que foi um papel muito útil. Exa-
tamente por isso, porque apoiou a todas,
io ao embotamento da capacidade crítica que a apoiou-nos a todas, incentivou… criou-nos…
condição endógena das educadoras fomentara. porque nem sempre nos deu a papinha feita,
Socorrendo-nos das palavras das educadoras: É não é? E também fez com que nós próprias
avançássemos, por exemplo, para as leituras.
alguém que nos vem mexer com a consciência Pode-nos ter dito este livro, se calhar…, não
(Notas de campo da investigadora (CNC5_64), é? Ou leiam este, ou leiam aquele, mas fomos
12 Novembro 2008); e também: quem vem de nós que…(…) E foi porque a Sara criou aquela
expectativa em nós, que nós fomos, tivemos
fora traz uma outra leitura, tem uma outra visão curiosidade e fomos ler. (…) Porque nos pôs
que nós não temos e está atenta a pormenores a pensar, nos pôs a avaliar aquilo que estáva-
que podem fazer muita diferença (Entrevista à mos a fazer nas nossas salas e que tínhamos
vindo a fazer nas nossas salas e nos pôs a ler
educadora SM, julho 2009). também, pôs-me a mim, pôs-me a ler e, real-
Neste caso, o papel de mediação pare- mente, a reletir e ir reletindo no dia-a-dia
ceu favorecer a inserção crítica (Freire, 2005) sobre aquilo que estava a acontecer, o que
é que se estava a passar e o que é que podia
das educadoras, desaiando-as para uma ob-
modiicar ou alterar (Entrevista à educadora
jetivação da realidade, condição sine qua non CR, julho 2009).
para uma ação consciente, e não ingénua, so-
bre a mesma (Freire, 1979). Tal como sublinha- Neste papel de mediação, algumas estra-
do anteriormente, este processo teve inerente tégias se coniguraram, para as educadoras e
o afastamento do papel da formadora de uma
formadora, como mais relevantes no processo
5 Conjunto de notas de campo. de revisão, compreensão e transformação de

362
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

práticas, designadamente a avaliação colabo- op. cit. Greig & Taylor, 1999) que deve nortear
rativa da qualidade das salas, a sugestão e in- a investigação ancorada num paradigma inter-
centivo às leituras e à relexão, a apresentação pretativo e participativo.
e relexão em torno de diferentes materiais, Na ótica das proissionais, o ethos da for-
como vídeos ou powerpoints (que reletiam mação fomentou também uma maior proximi-
realidades com que se poderia aprender), o dade entre a teoria e a prática, possibilitando
incentivo à experimentação na prática, o ques- uma tradução mais luída da primeira em pro-
tionamento, o feedback, os confrontos empá- cessos de aprendizagem experiencial das edu-
ticos ou as paragens estratégicas ao longo do cadoras, mais signiicativos para a equipe e,
processo, no sentido da regulação do mesmo. por tal, sustentadores e nutridores dos proces-
Igualmente destacado como elemento sos de aprendizagem proissional. Neste caso,
relevante do papel da formadora foi a atenção a formadora em contexto foi reconhecida en-
às necessidades do grupo para além das neces- quanto elemento que, num primeiro momen-
sidades investigativas. De facto, a atenção às pes- to, convidou as educadoras a ler, reposicionan-
soas surgiu como elemento motivacional para o do a importância dos saberes teóricos e da sua
envolvimento das educadoras no processo, re- atualização e que, num segundo momento, fa-
letindo uma desejável centração nos docentes cilitou a ponte entre a teoria e a prática, encora-
enquanto sujeitos, e não objetos, da formação jando a relexão acerca da teoria à luz das pos-
(Ferreira, 2001; Machado & Formosinho, 2009), sibilidades e constrangimentos contextuais,
bem como, acrescentaríamos, o seu foco huma- procurando uma constante calibração e con-
nista e ético-social. De facto, foi salientado pelas textualização ao nível do processo formativo.
educadoras o valor que atribuíam a uma inves- Estes constituíram processos que, juntamente
tigação que não se cingia à recolha de dados de com o debate em torno de crenças e valores,
um contexto, com pouco ou nulo benefício dos igualmente realizado de forma situada e tangí-
atores locais, mas que criava oportunidades de vel, traduziram o início da construção de uma
aprendizagem e transformação para tais atores. pedagogia participativa nas salas estudadas.
A este propósito, parece-nos oportuno a asso-
ciação desta perspetiva à necessária lógica de
reciprocidade (Lincoln & Guba, 2000), de bene-
fício e de justiça (Beauchamp & Walters, 1989,

363
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

A percepção de complexidade e incom- sentida pela formadora, mas não verbalizada


pletude do processo formativo pelas educadoras, de consolidação de aprendi-
zagens no âmbito da interação adulto-criança e
A formação em contexto foi unanime- da observação, registo e interpretação; e (iii) a
mente reconhecida como complexa e percebi- necessidade de enveredar por dimensões ainda
da como incompleta no inal do processo. No não abordados na especiicidade e altamen-
primeiro caso, os elevados níveis de integração te relevantes na ação pedagógica em creche,
e continuidade inerentes à formação necessi- como a construção de parcerias com as famílias
taram criar rupturas com modos pedagógicos e o envolvimento com a comunidade.
que eram omissos na sua consideração. Apesar A observação, sobretudo numa das sa-
da natureza contextual da formação e da cons- las, da convivência de paradigmas distintos
tância da mediação pedagógica, aigurou-se ao nível da ação pedagógica, ora integrando
muito exigente para as educadoras gerir múlti- práticas participativas, ora enformada por uma
plas integrações pedagógicas: a integração da pedagogia transmissiva, reforçava a evidência
teoria e da prática, a integração ao nível de di- de que os processos de mudança não são isen-
ferentes dimensões pedagógicas, a integração tos de ambivalências e contradições e de que
das aprendizagens curriculares das crianças. necessitam de um período de tempo razoavel-
A par da complexidade, era notória a mente longo para que a estabilização e conso-
consciência de que o processo formativo neces- lidação de aprendizagens se concretize.
sitaria manter uma continuidade, norteado por A dependência que, no inal da forma-
propósitos de consolidação e lançamento de ção, ainda se fazia sentir face à formadora em
novos desaios. A auscultação de necessidades contexto constituía outra prova da necessida-
e motivações permitiu o elencar de três núcleos de que haveria de prolongar temporalmente
de atenção no processo formativo, numa ver- o processo formativo, no sentido de garantir
tente prospetiva: (i) a necessidade sentida pelas a crescente autonomização e capacidade de
proissionais de consolidação de aprendizagens decisão, ação e relexão das educadoras, as
realizadas (sobretudo, organização do espaço quais se revelavam críticas na sustentação do
exterior, organização de materiais, pedagogia processo de transformação e indicadores de
de projeto, atividades como o cesto dos tesou- relevo na avaliação do seu impacto. Assim,
ros e jogo heurístico e, nas suas palavras, a ne- o processo formativo foi assumido consen-
cessidade de compreender melhor o que é uma sualmente como o início de uma jornada de
pedagogia da participação; (ii) a necessidade aprendizagem ou, no rasto de Formosinho e

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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS

Oliveira-Formosinho (2008), como uma etapa Parece-nos plausível airmar que a for-
de iniciação, à qual se deveriam suceder etapas mação em contexto, ao elevar o nível de cons-
de avanço, estabilização e consolidação. ciência das educadoras acerca da realidade, e
A equipa demonstrava, no inal desta do seu papel nessa realidade, gerara maior exi-
primeira etapa, condições para a continuidade gência, um locus de controlo mais internaliza-
do processo, como a motivação, a energia e a do e uma maior responsabilização pelo proces-
insatisfação. De facto, evocavam a concomi- so de mudança. Neste caso, parecia-nos estar
tância de sentimentos de bem-estar e de um perante uma situação de angústia generativa,
certo desconforto associado à formação em uma vez que surgia associada à motivação
contexto, como se poderá veriicar no seguinte para a transformação de práticas.
excerto das notas de campo da investigadora:
Considerações inais
A educadora SM reconheceu que, a par do
bem-estar, os encontros de trabalho também
lhe geram alguma angústia. As restantes edu- O presente capítulo dedicou-se à apre-
cadoras concordaram. Pedi que me explicas-
sentação e análise de um processo de recons-
sem melhor o que sentiam e a educadora CG
[sala 3-4 anos] respondeu: Isto também tem a trução da pedagogia em creche, em que a
ver com a angústia do conhecer. A SM conti- formação em contexto se destacou enquanto
nuou: A minha angústia agora é dupla. Porque
se eu não tivesse feito este processo, eu acha- formato privilegiado. Nesta opção, a natureza
va que estava tudo bem na sala. Agora, consi- contextual do processo formativo e investi-
go apontar os pontos críticos e às vezes não
gativo foi reconhecida enquanto condição e
sei como dar a volta. E agora há uma maior
insatisfação. É como o D. Juan do Kierkegaard. meio para a efetivação dos processos de mu-
Pedi à SM um esclarecimento. A educadora, dança. De facto, a imersão no contexto abriu
sorrindo, explicou: O D. Juan icava muito en-
tusiasmado quando conhecia uma mulher, caminho a uma ação orientada por necessi-
mas depois ia icando insatisfeito. Eu agora dades e problemas concretos, sem negligên-
também estou mais insatisfeita. A educadora cia de referenciais explícitos a sustentar essa
CG interveio novamente: E agora não posso
dizer: A culpa é deles, eles é que não apren- ação, altamente valorizados, como explana-
dem, as famílias é que não os apoiam. Agora, do, pelas educadoras de infância. Este equi-
eu questiono-me a mim própria, questiono
as minhas práticas. As restantes educadoras
líbrio construído entre processos indutivos
concordaram, enfaticamente, com as palavras e dedutivos na formação (Formosinho & Oli-
proferidas pela CG (Notas de campo da inves- veira-Formosinho, 2008) possibilitou, por um
tigadora (CNC_101), 11 maio 2009).
lado, o afastamento de potenciais situações

365
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho

de voluntarismo ingênuo e, por outro lado, Referências bibliográicas


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