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CRIANÇAS E DOCÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
DIRETORIA DE CURRICULOS E EDUCAÇÃO INTEGRAL
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Ao Ministério da Educação/MEC.
À professora Rita de Cássia de Freitas Coelho, Secretaria Geral de Educação Infantil/COEDI/MEC.
À Universidade Federal de Santa Maria/UFSM.
Ao Centro de Educação.
Ao Núcleo de Desenvolvimento Infantil/NDI.
À Unidade de Educação Infantil Ipê Amarelo/UEIIA.
À Fundação de Apoio à Tecnologia e Ciência /FATEC.
À Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul /UNIJUÍ.
À Universidade de Passo Fundo/UPF.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
À Universidade Federal da Bahia/ UFBA.
Aos Gestores, docentes, crianças, e demais segmentos dos 150 municípios das Unidades do
Proinfância que participaram do projeto de assessoramento.
À Equipe do Proinfância.
Sumário
Sobre os autores ........................................................................................................... 13
Prefácio ......................................................................................................................... 19
Ana Lúcia Goulart Faria
Apresentação ............................................................................................................... 23
Viviane Ache Cancian
Simone Freitas da Silva Gallina
Noeli Valentina Weschenfelder
6. Três notas sobre a formação inicial e a docência na Educação Infantil ............................... 131
Maria Carmen Silveira Barbosa
10. Traçar, riscar e rabiscar: experiência de desenhar na Educação Infantil ...................... 193
Sandra Regina Simonis Richter
11. Para além dos acalantos: a proposta Pedagógico-musical com bebês .......................... 213
Aruna Noal Correa
12. E se o chapéu da chapeuzinho não fosse vermelho? Um olhar sobre as linguagens infantis 227
Juliana Goelzer
Daliana Löler
17. Contribuições de Emmi Pikler para a educação de bebês nos contextos brasileiros .......... 297
Paulo Sergio Fochi
Carina Cavalheiro
Claudia F. Bergamo Drechsler
20. Relexões sobre a avaliação das crianças na Educação Infantil: escutas, olhares, registros
atentos ...................................................................................................................................... 341
Catarina Moro
13
Carina Cavalheiro Débora Teixeira de Mello
Pedagoga (Unisinos) e Especialista em Doutora em Educação pela UNICAMP,
Educação Infantil (Unisinos). professora do Departamento de Administra-
ção Escolar do Centro de Educação da UFSM.
Catarina Moro Pesquisadora nas áreas de Políticas Públicas e
Professora do Departamento de Teoria Educação Infantil, Gestão Educacional e Forma-
e Prática de Ensino, da UFPR. Pesquisadora do ção de Professor. Vice-diretora da Unidade de
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil Ipê Amarelo/UFSM. Coorde-
Educação Infantil (NEPIE) na mesma Univer- nadora adjunta do Projeto do Assessoramento
sidade. É formada em Psicologia, Especialista Proinfância/UFSM. Coordenadora e docente
em Educação Infantil, Mestre em Psicologia do Curso de Especialização em Docência na
da Infância e da Adolescência e Doutora em Educação Infantil/UFSM. Coordenadora adjun-
Educação. Tem como temas de interesse: prá- ta do Curso de Aperfeiçoamento de Docência
ticas educativas para/com a pequena infância, na Educação Infantil.
avaliação de contexto e políticas públicas em
educação infantil. Coordena a ReVirEI - Revista Denise Motta Marchand
Virtual de Educação Infantil. Pedagoga (PUC/RS), Especialista em
Educação Infantil (UFRGS). Atuou como Profes-
Claudia F. Bergamo Drechsler sora Formadora no Projeto de Assessoramento
Licenciada em Educação Física (Unisi- ao Proinfância entre os anos de 2013 e 2014.
Exerce o cargo de Professora de Educação In-
nos), Especialista em Educação Infantil (Unisi-
fantil junto à Rede Municipal de Ijuí.
nos) e professora de educação infantil da rede
pública de Gramado – RS.
Franca Zuccoli
Professora pesquisadora da Universidade
Daliana Löler
Milano Bicocca, Departamento de Ciências Hu-
Professora do Ensino Básico, Técnico e
manas para a formação “Ricardo Massa”, é do-
Tecnológico na Unidade de Educação Infantil
cente de Didática geral e Educação da imagem.
Ipê Amarelo/Universidade Federal de Santa Foi coordenadora da seção didática da Fundação
Maria. Doutoranda em Educação pela Univer- Arnaldo Pomodoro e atualmente colabora com
sidade Federal de Pelotas. Assistente Pesqui- algumas instituições de museu, desenvolven-
sa no Projeto de Projeto do Assessoramento do pesquisa nacional e internacional, entre elas
Proinfância/UFSM. TDMEducation, do Museu Triennale Design de
14
Milão. É presidente da Opera Pizzigoni. Publicou Juliana Goelzer
pela Edizioni Junior os seguintes livros: em 2010, Professora do Ensino Básico, Técnico e
“Dalle tasche dei bambini… Gli oggetti, le storie, Tecnológico e Diretora do Departamento de
la didattica” e, em 2014, “Didattica tra scuola e Ensino Pesquisa e Extensão na Unidade de
museo. Antiche e nuove forme delsapere”. No Bra- Educação Infantil Ipê Amarelo, UEIIA/UFSM.
sil, publicou: Formar-se com arte entre museu e Doutoranda em Educação pela Universidade
pré-escola; Educação e Realidade. v. 40,n.4,2015;
Federal de Santa Maria. Assistente Pesquisa no
com AgneseInfantino, Revista Eventos Pedagó-
Projeto de Projeto do Assessoramento Proin-
gicos, A arte como ferramenta de exploração e
fância/UFSM.
conhecimento, Unemat, v. 6, n 3, 2015.
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- Educação de crianças de 0 a 6 anos, da Anped Ciências Sociais e Educação pela FE-UNICAMP.
e participou do Comitê Cientíico da mesma Atuou como professora de cursos de especiali-
entidade. É editora da Revista Pátio - Educação zação em Educação Infantil, professora bolsista
infantil e participa como avaliadora em outras do curso de Pedagogia da UNICAMP, professo-
revistas cientíicas. Atua como Líder de Pesqui- ra substituta no curso de Pedagogia da UFSC.
sa Grupo de Estudos em Educação Infantil e Envolvida com a formação de professoras(es)
Infância - GEIN - e como orientadora de teses da Educação Infantil, desenvolve ensino, ex-
e dissertações nos seguintes temas: educação tensão e pesquisa com crianças pequenas e
básica, educação infantil, infância, formação de bem pequenas nas temáticas das linguagens
professores, creche, pré-escola e alfabetização. e culturas infantis, nos campos da Pedagogia
Participa do Movimento Interfóruns de Educa- da Infância e das Ciências Sociais, em especial,
ção Infantil - MIEIB. na Antropologia da criança e na Sociologia da
infância, na interface com as Artes na primeira
Noeli Valentina Weschenfelder infância.
Licenciada em Geograia e Pedago-
gia (UNIJUÍ), Mestrado em Educação (UFSM), Paulo Sergio Fochi
Doutorado em Educação (UFRGS); Professora Pedagogo, especialista em educação
do Programa de Pós-Graduação em Educação infantil, mestre em educação na linha estudos
nas Ciências: Mestrado e Doutorado (UNIJUÍ). sobre infância (UFRGS) e doutorando em edu-
Supervisora de Pesquisa do Projeto de Asses- cação na linha de didática e formação de pro-
soramento Proinfância/UFSM. Coordenado- fessores (USP). É professor do curso de peda-
ra Adjunta do Curso de Aperfeiçoamento em gogia na Unisinos e PUC-RS, coordena o curso
Educação Infantil. de Especialização em Educação Infantil da Uni-
sinos, atua como consultor da educação infan-
Patrícia Dias Prado til na base nacional comum curricular do MEC,
Professora Doutora da Faculdade de participa do grupo de estudos Ciei - Contextos
Educação - USP/SP, junto ao Depto. de Metodo- Integrados de Educação Infantil/USP/CNPQ.
logia de Ensino e Educação Comparada - EDM, Foi professor de crianças e atua na formação
área da Educação Infantil. Possui graduação de professores
em Psicologia pela UNESP - Bauru/SP, mestrado
e doutorado em Educação junto ao Depto de
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Regina Lúcia Couto de Melo de Investigação e Inovação em Educação (ESE-
Consultora do Proinfância no Rio Grande -IPP) e do Centro de Investigação em Estudos
do Sul no período de outubro 2010 a outubro da Criança (UM). Tem investigado nas áreas
de 2011. Integrante da equipe avaliadora da im- da pedagogia da infância, qualidade dos con-
plantação de escolas inanciadas com recursos textos de creche e investigação praxeológica.
do Proinfância em Minas Gerais ( 2013/2014). Contacto: saraujo@ese.ipp.pt
Mestranda, pesquisadora do Núcleo de Estu-
dos e Pesquisas sobre Relações Étnico-Raciais Simone Freitas da Silva Gallina
e Ações Airmativas na UFMG( 2014/2015). Licenciada em Filosoia pela Universi-
dade Federal de Santa Maria (UFSM), Mestre
Sandra Regina Simonis Richter em Educação/UFSM, Doutora em Educação
Sandra Regina Simonis Richter, licencia- pela Universidade Estadual de Campinas(UNI-
da em Educação Artística - Artes Plásticas e CAMP), Docente do Centro de Educação no De-
doutora em Educação pela Universidade Fede- partamento de Administração Escolar/UFSM.
ral do Rio Grande do Sul, professora do Depar- Supervisora e Docente do Curso de Especiali-
tamento de Educação e do Programa de Pós- zação em Educação Infantil/UFSM; Docente do
-Graduação em Educação da Universidade de Curso de Especialização em Gestão Educacio-
Santa Cruz do Sul, vice-lider dos grupos de pes- nal/UFSM. Supervisora de Pesquisa do Projeto
quisa Estudos Poéticos UNISC/CNPq e LinCE de Assessoramento Proinfância/UFSM.
-Linguagem, Cultura e Educação UNISC/CNPq.
Sueli Salva
Sara Barros Araújo Pedagoga, Especialista em Dança, Dou-
Professora-Adjunta da Escola Superior tora em Educação pela UFRGS, Professora do
de Educação do Instituto Politécnico do Porto Centro de Educação da UFSM, ligada ao Depar-
(ESE-IPP), onde coordena o Mestrado em Edu- tamento de Metodologia do Ensino, professora
cação Pré-Escolar. Doutorada em Estudos da do Programa de Pós-Graduação em Educação
Criança pela Universidade do Minho (UM), com da UFSM, Pós-Doutora pela Universitàdegli
licenciatura e mestrado em Psicologia pela Studi di Milano. Formadora no Projeto de As-
mesma universidade. Membro da Direção da sessoramento Proinfância/UFSM.
Associação Criança. Investigadora do Centro
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Viviane Ache Cancian de Atendimento Especializado em DST-HIV/
Pedagoga e Mestre pela UNIJUÍ e Dou- AIDS e junto à Coordenadoria de Políticas para
tora em Educação/UFC. Professora Adjunta as Mulheres do Município de Ijuí.
do Departamento de Metodologia do Ensino
do Centro de Educação da UFSM. Pesquisado- Tânia de Vasconcellos
ra nas áreas de Educação, Educação Infantil, Pedagoga formada pela UERJ, Mes-
Gestão Educacional e Formação de Professor. tre em Educação pela PUC-Rio e Doutora em
Diretora da Unidade de Educação Infantil Ipê Educação pela UFF. Na Universidade Federal
Amarelo/UFSM. Presidente Nacional Unidades Fluminense, é professora da Faculdade de Edu-
Universitárias de Educação Infantil. Coorde- cação lotada no Departamento de Sociedade,
nadora Geral do Projeto do Assessoramento Conhecimento e Educação, atuando na área
Proinfância/UFSM. Coordenadora Adjunta e de Educação Infantil. No Programa de Pós-Gra-
docente do Curso de Especialização em Do- duação em Educação - PPGE está vinculada ao
cência na Educação Infantil/UFSM. Coordena- campo de conluência “Linguagem, Cultura e
dora e docente do Curso de Aperfeiçoamento Processos Formativos”. Dedica-se nos últimos
de Docência na Educação Infantil. anos à pesquisa das relações entre Infância e
Cultura, particularmente quanto à produção
Viviane Drumond da infância e à produção do lugar; quanto ao
Doutora em Educação pela Faculda- jogo, brinquedo e brincadeira na perspectiva
de de Educação da Universidade Estadual de do patrimônio e quanto ao diálogo entre a in-
Campinas – UNICAMP, professora do Curso de fância e a ilosoia. UFF - Núcleo de Estudos de
Pedagogia da Universidade Federal do Tocan- Infância e Cultura.
tins - UFT/Campus Miracema.
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Prefácio
Em tempos difíceis como estamos vivendo no momento, esta coletânea de artigos organizados
por Viviane Ache Cancian, Simone Freitas da Silva Gallina e Noeli Weshenfelder vem na hora certa e
traz uma exposição dos nossos acertos e um convite à relexão para essas pesquisas, teorias e práticas
pedagógicas da educação infantil que vimos desenvolvendo, voltadas a uma pedagogia da educação
infantil descolonizada e emancipatória. Mesmo sendo difícil interromper o descaso com a criança pe-
quena e seu direito à educação infantil, à arte, à brincadeira tão bem expresso na vinheta de Frato
(1982), nada melhor então do que delirar com o saudoso Eduardo Galeano.
19
“Que acham se delirarmos por um curto promessas. A solenidade deixará de acreditar que
espaço de tempo? Que acham se ixarmos nossos é uma virtude, e ninguém, ninguém levará a sério
olhos mais além da infâmia? Para imaginarmos alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mes-
outro mundo possível. O ar estará limpo de todo mo. A morte e o dinheiro perderão seus mágicos
veneno, que não venha dos medos humanos, e poderes, e nem por falecimento, nem por fortuna
das humanas paixões. Nas ruas, os carros serão se tornará o canalha em um virtuoso cavaleiro. A
esmagados pelos cães. As pessoas não serão diri- comida não será uma mercadoria, nem a comu-
gidas pelos carros. Nem serão programadas pelo nicação um negócio, porque a comida e a comu-
computador. Nem serão compradas pelos super- nicação são direitos humanos. Ninguém morrerá
mercados. Nem serão também assistidas pela TV. de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.
A TV deixará de ser o membro mais importante As crianças de rua não serão tratadas como se fos-
da família, e será tratada como o ferro de passar sem lixo, porque não existirão crianças de rua. As
ou a máquina de lavar roupa. Será incorpora- crianças ricas não serão tratadas como se fossem
do aos códigos penais o crime de estupidez para dinheiro, porque não haverá crianças ricas. A edu-
aqueles que o cometem. Por viver para ter ou para cação não será privilégio daqueles que possam
ganhar, ao invés de viver para viver simplesmente. pagá-la, e a polícia não será a maldição de quem
Assim como canta o pássaro sem saber que can- não possa comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs
ta, e como brinca a criança sem saber que brinca. siamesas condenadas a viver separadas, serão no-
Em nenhum país irão prender os rapazes que se vamente juntas de volta, bem grudadinhas, costas
recusam a cumprir o serviço militar, senão aqueles com costas. Na Argentina, as loucas da “Plaza de
que queiram servi-lo. Ninguém viverá para traba- Mayo” serão um exemplo de saúde mental, por-
lhar, mas todos nós trabalharemos para viver. Os que elas se negaram a esquecer nos tempos de
economistas não chamarão mais o nível de vida amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja cor-
ao nível de consumo, nem chamarão de qualida- rigirá algumas erratas das escritas de Moisés, e o
de de vida a quantidade de coisas. Os cozinheiros sexto mandamento mandará festejar o corpo. A
não acreditarão que as lagostas adoram serem Igreja também realizará outro mandamento que
fervidas vivas. Os historiadores não acreditarão Deus havia esquecido: “Amarás a natureza da
que os países adoram serem invadidos. Os políti- qual fazes parte”. Serão relorestados os desertos
cos não acreditarão que os pobres adoram comer do mundo e os desertos da alma. Os desesperados
20
serão esperados, e os perdidos serão encontrados,
porque eles são os que se desesperam de muito,
muito esperar, e eles se perderam de muito, muito
procurar. Seremos compatriotas e contemporâ-
neos de todos os que tenham vontade de beleza
e vontade de justiça, tenham nascido quando
tenham nascido e tenham vivido onde tenham
vivido, sem que importem nem um pouquinho
as fronteiras do mapa nem do tempo. Seremos
imperfeitos, porque a perfeição continuará sendo
o chato privilégio dos Deuses, mas neste mundo,
neste mundo trapalhão, seremos capazes de viver
cada dia como se fosse o primeiro e cada noite
como se fosse a última”.
GALEANO, Eduardo.
Direito ao delírio, 2011. :<http://www.you-
tube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ
21
Apresentação
Nesse livro encontramos textos que problematizam imagens de pensamento sobre as infâncias,
as crianças e as docências. Imagens possíveis que aparecem nos textos que compõem esse livro, arti-
culando-se a partir das fronteiras temáticas entre: pedagogia e infâncias e crianças e docências e edu-
cação infantil. Textos nos quais as escritas airmam os tensionamentos oriundos das investigações, das
práticas de formação e autoformação, que constituíram o processo das ações do Projeto de Cooperação
Técnica irmada entre o Ministério de Educação (MEC), Diretoria de Currículo e Educação Integral, Se-
cretaria de Educação Básica (SEB), e Coordenação Geral de Educação Infantil (COEDI) e a Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM), através do Núcleo de Desenvolvimento Infantil- NDI/CE e da Unidade de
Educação Infantil Ipê Amarelo- UEIIA. Projeto realizado em parceria com a Universidade do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ) e com a Universidade de Passo Fundo (UPF).
Os artigos são produções que resultam desse processo de assessoramento do projeto através das
leituras, dos estudos, dos seminários e das teleconferências. São um convite para pensar a descoloniza-
ção da Pedagogia das infâncias e crianças, partindo da interlocução com os saberes e fazeres propostos
nos cursos de formação de professores na Universidade. Sendo que um dos propósitos colocados aqui
é o de estabelecer os elementos que permitem problematizar a racionalidade que instituí e constituí
o currículo, uma racionalidade técnica-instrumental colonizadora do espaço escolar e que se expressa,
por exemplo, na lógica da aplicabilidade de atividades pensadas a priori.
Uma questão importante é a que se refere à alteridade nos processos de formação, pois encontra-
mos registros de uma colonização da racionalidade ao mundo escolar não só apenas no que se refere
à produção de conhecimento, mas também em relação ao poder estabelecido, aos casos em que a vio-
lência simbólica cristaliza as relações no contexto das práticas e vivências escolares. Essas vivências que
iniciam muitas vezes nos processos formativos tocam e constituem docentes, que passam a colonizar
infâncias e crianças em sala nas instituições de Educação Infantil
23
Nesse sentido, os textos também se caracterizam como o espaço no qual se problematiza as con-
cepções que algumas vezes negam a possibilidade da escuta das vozes das crianças, negando assim a
possibilidade de ouvir, sentir, perceber, reconhecer aqueles que possam ser sujeitos de seu conhecimento.
As linhas traçadas nesse livro são encontros com afetos que tratam da Pedagogia e seus disposi-
tivos, suas práticas, suas experimentações na ordem do vivido das crianças, suas infâncias e as relações
dos docentes com suas atividades epistêmicas-práticas. Com os afetos que os sujeitos experimentam
mediante uma Pedagogia em devir, uma aprendizagem da descoberta das crianças e do universo das
infâncias.
Pedagogias das infâncias, crianças e docências na educação infantil airma a importância do diá-
logo em torno das práticas de colonização das infâncias que VIVEM a escola de educação infantil em
detrimento de processos de emancipação. É um movimento que atravessa as fronteiras dentro e fora
das instituições, das condições subjetivas vividas pelos sujeitos. Por muitas pedagogias que respeitem as
diferenças que a vida produz em suas mais diversas formas sociais, políticas e culturais.
24
PARTE I
27
Viviane Ache Cancian
28
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
conversas3. É importante destacar que em cada para que eles se comprometessem propondo
polo (Santa Maria, IJuí, Passo Fundo) tínhamos planejamentos, planos de ação para suprir as
municípios referência. Uma média de 4 - 5 muni- demandas e projetar as mudanças necessárias.
cípios referência4 por polo, pois não queríamos De acordo com Campos (2013), as re-
formações com grande número de pessoas, for- formas educacionais, as metas das reformas
mação em massa, e porque entendíamos que atravessam contradições e descompassos sem
por termos municípios distantes dos polos isso muitas vezes garantias de recursos materiais e
facilitaria a locomoção e a participação. humanos, mas “é importante reconhecer que
O projeto realizou os ciclos formativos as reformas com todas as limitações e contra-
para docentes, gestores e equipes das SMEDs dições tiveram méritos de ajudar a incluir a
dos 150 municípios, com temáticas emergen- educação na agenda política e dar a visibilida-
tes. Realizamos uma pesquisa quali-quantita- de social a questões que antes estavam apenas
tiva para caracterização do acesso à educação restritas ao campo especíico de atuação dos
infantil, que incluía levantamento dos dados educadores” (p.5).
do IBGE, TCE/RS, INEP, Censo Escolar 2012, de- Nesse sentido o projeto de assessora-
manda e a oferta (atendimento) por faixa etária mento técnico-pedagógico em todos os mo-
dos 150 municípios formação de professores, mentos se constituiu em ações de formação
atendimento das metas do PNE (2014). Os da- e de articulação necessária que perpassaram
dos foram trabalhados ao longo do processo estudos dos documentos legais com inalida-
de assessoramento, com o objetivo de conhe- de de criar movimentos que potencializassem
cer as realidades, os contextos, e de trazer para a aprendizagem, porque não dizer, criar formas
o debate os reais problemas dos municípios, a partir dos problemas vivenciados e experien-
ciados pelas unidades, gestores, professores,
pais, crianças-infâncias. Queríamos contribuir
3 Para conhecimento das ações desenvolvidas no projeto de
assessoramento recomenda-se a leitura do livro: Docências na para o fortalecimento das políticas públicas
Educação Infantil: currículo, espaços e tempos. municipais de Educação Infantil com a imple-
4 Polo de Santa Maria - Santa Maria (14 municípios); Estrela
(17 municípios); Frederico Westphalen (7municípios); Santa Cruz
mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais
(15 municípios) Polo Ijuí - Ijuí (12 municípios); Tenente Portela de Educação Infantil (Res. CEB/CNE 05/2009)
(8 municípios); Santa Rosa (14 municípios); Santo Augusto (11
municípios) Polo Passo Fundo - Passo Fundo (21 municípios);
no cotidiano das instituições.
Erechim (16 municípios); Não–me–toque (9 municípios); Soleda- Paralelamente, estabelecemos critérios
de (7 municípios).
para realização das visitas técnicas e decidi-
29
Viviane Ache Cancian
mos por 8 unidades por polo, duas para cada pesquisa e para as unidades Proinfância, à medi-
município referência. Após as visitas técnicas, da que lidar com as questões que depõem con-
planejamos a retomada das questões obser- tra um trabalho que respeite as crianças, suas
vadas e desse modo retornamos às unidades infâncias, demanda abertura e compreensão da
para realizar as devolutivas junto aos professo- natureza da docência e das práticas.
res e gestores. Esse processo está diretamente Após um ano de projeto, decidiu-se por
relacionado com a compreensão de que não trabalhar a formação inspirados na perspecti-
é possível somente constatar o modo como va teórica de Oliveira-Formosinho & Kishimo-
as práticas se efetivam, quais docências, e sim to(2002), acerca da formação em contexto5
estabelecer um diálogo que ao mesmo tempo nos 8 municípios que receberam visitas técni-
seja formativo, e que os municípios pudessem cas por polos e devolutiva. Nas formações, as
compreender o processo que estávamos pro- Unidades receberam professores formadores,
pondo desencadear. coordenadores, supervisores e assistentes de
Precisavamos discutir que práticas pe- pesquisa6 para trabalhar junto aos diferentes
dagógicas estavam presentes nas Unidades de segmentos das Unidades, equipes pedagógi-
Educação Infantil, se eram práticas numa pers- cas das SMEDs, com questões que emergiram
pectiva assistencialista, que não investiam em nas visitas e devolutivas nessas Unidades. Cada
proissinais com formação, em docentes nas unidade organizou o tempo para essas forma-
turmas, em detrimento de práticas com prois- ções de acordo com suas possibilidades. Saí-
sionais qualiicados e formados para atuar na mos muitas vezes para trabalhar com todos os
Educação Infantil, pois tais posturas políticas sujeitos envolvidos, nesses momentos tivemos
nos municípios teriam implicações diretas nos a participação de todos.
processos formativos que estávamos dela- Percebemos, ao realizarmos a avaliação
grando. De acordo com Campos (2013), (...) “se e retomada das ações do projeto, e também
as reais condições de implementar as práticas principalmente quando houve a necessidade
desejadas não são situadas em um determina- de alguns membros da equipe do polo de San-
do contexto, há um sério risco de que perma- ta Maria interromperem sua participação, que
neçam apenas como meta ou projeto” (p.41).
Esse momento da devolutiva delagrou 5 Formação em contexto rejeita a pedagogia tradicional e
propõe pedagogia participativa, no cotidiano do fazer pedagógico.
novos desaios e exigiu um diálogo intenso para 6 É importante destacar que por mais que cada participante
as equipes formativas, para as assistentes de do projeto não tivesse as mesmas atribuições todos participa-
vam das formações em contexto.
30
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
após um ano de projeto, estávamos privile- respeita as crianças, as infâncias, assim como
giando os gestores, que por vários motivos não todos os segmentos nela envolvidos.
assumiram o repasse da formação para o con- Nesse sentido, poderíamos nos pergun-
junto das professoras. Além disso, havia des- tar até quando teremos pessoas sem formação
continuidade e rotatividade na participação e condições de assumir determinados cargos
dos docentes nas atividades formativas, além somente por interesses partidários? Enquanto
disso, as Unidades e as SMEDS mudam cons- tivermos gestores que assumem esses lugares
tantemente os quadros de docentes. Este con- e não se interessam nem em ler e conhecer as
junto de fatores não garantia que o proposto e normativas nacionais, as políticas e as propos-
dialogado chegasse até a sala com as crianças. tas nacionais de educação, como consegui-
Tivemos embates e enfrentamentos com remos aproximá-las das Unidades e trazê-las
secretários de educação por solicitação das di- para o debate junto aos docentes, sem proje-
retoras, devido às trocas de professores, para tos externos, como esse de assessoramento?
que os professores continuassem junto às suas
escolas, pois haviam participado de um ano de Muitas indagações? Entre elas quais
projeto e quando estavam conseguindo efe- processos formativos? Quais políticas
tuar mudanças, eram removidas para outras formativas?
unidades, inclusive para o ensino fundamen-
tal e vindo professores do ensino fundamental Compreender o vivido e os desaios que
para Educação Infantil. se colocam nas Unidades de Educação Infantil,
Essa é uma prática das secretarias de nas docências, demanda pensar em políticas
educação, realizar as trocas dos docentes das formativas voltadas para os docentes da Edu-
escolas sem o desejo desses, sem respeitar tra- cação Infantil e da Educação Básica, implica em
jetórias, muitas vezes por questões partidárias. investimentos que qualiiquem esses proces-
Essas questões mostram uma falta de com- sos formativos, implica em Projetos de Coope-
preensão de muitos gestores que ocupam es- ração Técnica entre o MEC e as Universidades,
paços de poder e decisão, pois seus cargos são em políticas que invistam em projetos que
muitas vezes partidários, o que resulta na falta busquem qualiicar a prática.
de compreensão do que signiica educação, Ressalta-se aqui a necessidade de políti-
educação infantil, a gestão de uma Secretaria cas formativas que vão além de programas e
de Educação, de uma escola da infância, que projetos anuais, com formações em massa, que
31
Viviane Ache Cancian
trabalhem apenas com índices de professores Os ciclos formativos, como já citado aci-
que receberam a formação, com quantitativos ma, focaram temáticas emergentes, tais como:
e, sim, políticas voltadas para a formação em concepções de infância e suas implicações
contexto, para a formação em exercício, nos para o trabalho pedagógico junto às crianças;
desaios da proissão, que subsidiem os do- as crianças e sua diversidade nas culturas con-
centes a serem sujeitos que aprendem sem- temporâneas em diferentes tempos e espaços
pre, que estudam suas práticas, que realizam na educação infantil nas Unidades do Proin-
rupturas e aprendizagens na Educação Infantil, fância; linguagens infantis; as especiicidades
que criem territórios das infâncias, muitas in- do trabalho com bebês e com crianças de 4-6
certezas e indagações. anos; leitura e escrita; currículo e planejamen-
Além disso, implica em políticas que te- to; avaliação; Projeto Político-Pedagógico.
nham continuidade, que apóiem a garantia da Durante todo o processo que se esten-
especiicidade das infâncias, das crianças; que deu até maio de 2015, buscamos realizar um
garantam projetos dessa envergadura, proje- processo formativo que desaiava os sujeitos
tos de assessoramento técnico pedagógico, e envolvidos para que pudessem partir de suas
Cursos de Especialização e Aperfeiçoamento práticas, da observação e da ação, da com-
em docência na Educação Infantil. Portanto, a preensão dos contextos, se apropriando do
continuidade de ações e diálogos em conjunto trabalhado realizado nas formações para levar
com as Universidades, com fóruns buscando a aos seus pares nas Unidades do Proinfância, a
formulação e implementação das políticas, qua- im de constituir uma rede nas unidades, nos
liicam a área da educação infantil, os processos municípios. Acredita-se que a construção e
formativos e, consequentemente, suas práticas. a consolidação de uma rede formativa signi-
Com base nessa compreensão, o proje- icam possibilidades de reencaminhamento
to de assessoramento técnico pedagógico às das práticas nas salas com as crianças, num
redes e sistemas na implementação do Proin- aprofundamento teórico-relexivo em que os
fância visou qualiicar a educação infantil nos docentes assumem signiicados para as suas
municípios, desenvolver ações formativas que formações no exercício da proissão.
qualiicassem a implementação das políticas Tal propósito gerou desconforto em
públicas das DCNEI para a educação infantil, muitos municípios e Unidades do Proinfância,
realizar a formação continuada de docentes e principalmente quando os docentes e gesto-
gestores. res retornavam aos municípios e levavam as
32
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
DCNEI (2009), numa perspectiva de aproximar dos docentes, seus saberes e não saberes, um
seus pares do discutido nas formações. Muitos tempo que demanda apropriação, compreen-
conseguiram realizar os estudos e discutir e são e maturidade intelectual... um tempo que
desaiar, mas em alguns municípios tínhamos se constrói, um tempo de desaios.
depoimentos que não chegavam até as Uni- É importante deixar claro que defendermos
dades, motivo pelo qual a cada ciclo formativo a formação continuada é diferente de trazermos
vinha uma representatividade diferente. Isso professores para palestrar ou para trabalhar te-
conirma que a falta de seriedade dos gesto- mas como autoajuda, motivação, nas Unidades;
res e de continuidade de um processo muitas precisamos contrapor com algo. E nesse sentido
vezes é resultado da falta de continuidade nos precisamos ir além, propondo, para que os pro-
processos formativos. fessores se apoderem do trabalhado, do estuda-
do, para que haja rupturas em práticas, cristaliza-
As três Universidades se colocaram como
das, repetitivas e mecânicas, instituídas ao longo
parceiras na Cooperação Técnica com o MEC/
dos anos na educação infantil.
SEB/COEDI e em interlocução com os municí-
Em contraponto com palestras, com os
pios que participaram do projeto trabalharam
ciclos formativos, em função dos motivos já
para que os municípios constituíssem as redes
explícitos acima, da diiculdade de chegar nas
e elaborassem um plano de ação para as suas
Unidades e nas práticas, a formação em con-
Unidades. Cada unidade enviou para o polo o
texto - como vivenciado nos 8 municípios nos
plano e buscou implementá-lo e no inal do quais trabalhamos acompanhando diretamen-
projeto os docentes das Unidades foram con- te todos os sujeitos envolvidos na formação -,
vidados a escreverem um resumo expandido permite um processo de desconstrução e re-
sobre suas práticas, sobre os relexos do plano construção de práticas outras, “construção da
de ação nas Unidades, e para confeccionarem Práxis[...], desenvolvimento proissional” (Oli-
um banner para participarem no seminário i- veira-Formosinho, 2013, p. 25-60).
nal do Proinfância, relatando suas práticas na Acredita-se que a formação precisa ser no
roda de conversa com outros municípios. contexto, ela não é externa, se dá no exercício da
Nas rodas de conversas muitas práticas proissão e fortalece os sujeitos nos espaços insti-
de superação nos surpreenderam, cada uma tucionais. Ao falarmos em formação no exercício
dentro dos limites e possibilidades dos sujeitos da proissão, não estamos negando a formação
envolvidos. Esse respeito ao tempo dos profes- acadêmica, pelo contrário, o aprendido é ponto
sores é fundamental, compreender o processo de partida para novas aprendizagens.
33
Viviane Ache Cancian
A formação no exercício da proissão se que não começa alegando precisar tempo. An-
dá em dois momentos que se considera funda- dam a procura não do tempo perdido, mas de
mentais: o primeiro refere-se à fala e o segun- um tempo que nunca lhe dão. Falta tempo ou
do, à escrita, pois estes momentos assumem a falta paixão?”(1997, p.15).
função de construção-reconstrução de signii- Ao se criar espaços de fala e de escrita
cados, que oportunizarão o entendimento das nas instituições, os docentes explicitam o fa-
diferentes complexidades do fazer pedagógico zer, as práticas pedagógicas, as suas docências
(Cancian, 1998, p.13-14). e retornam à própria teoria para entender os
Um processo que se dá no coletivo dos desaios que se colocam, numa teorização da
educadores, em que todos têm voz e vez, num própria prática, das docências, através de uma
diálogo esclarecido, emancipado, das manifes- racionalidade que justiica, que argumenta. Do
tações do vivido, das práticas, das interações ponto de vista participativo, não exclui as me-
e vivências. Para Marques (1999), “professo- diações culturais e linguísticas.
res entre si falantes de si”, num espaço criado, O vivido até aqui brevemente apresenta-
onde as histórias de vida, as singularidades se do em um recorte, e nesse artigo, se entrelaça
cruzam e tecem resigniicações “[...] ampliam e tece muitos ios, ios que fomos tecendo ao
e se consolidam na abertura para os horizon- longo do projeto, junto a diferentes sujeitos de
tes mais vastos dos conceitos especíicos das territórios distintos, que nos desaiaram a pen-
diversas ciências e áreas de saber (Marques, sar nos processos formativos e docências, no
1999, p.17), numa compreensão de que os signiicado da educação, no compromisso de
instituintes, ao reletirem sobre o que se insti- pensar uma educação numa perspectiva ética.
tui, rompem com o que está posto, o que está
dado, com práticas conformistas, com proces- Qual Educação Infantil para uma unida-
sos de alienação. “Para isso, o desaio centra-se de do Proinfância? Qual docência na Ed.
no aprender a falar do que sabe, no fundamen- Infantil?
tar as posições implícita ou explicitamente as-
Uma educação para a liberdade só poderá ser
sumidas[...], que requer momento da parada, radical quando for capaz de uniicar na diferen-
da sistematização e da organização das ideias ça a conquista da justiça social e a conquista da
justiça ecológica (Oliveira, 2001, p.290).
através da escrita” (Cancian, 1997, p.28). No di-
zer de um grande mestre, Marques: “Há gente
34
PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
Surge o desaio de pensar as Unidades bilidade, pois é capaz de decisões livres (Olivei-
ra, 2001, p.287-288).
de educação infantil7 com a infância, com o
humano, em pensar com profundidade, numa
Trata-se aqui de questionar que racio-
perspectiva pedagógica, que realize interven-
nalidade e compreensões perpassam as prá-
ções e esteja em permanente construção/re-
ticas, as docências e as formações na área de
construção, num processo dinâmico, em cons-
Educação Infantil. Qual educação para quais
tante movimento. Pensar a educação Infantil
infâncias e crianças? Qual docência, ou quais
- e aqui como izemos um assessoramento a
docências? Será que conseguimos nos desaios
150 municípios, faço o recorte mostrando um
postos pela prática dar conta das experiências
processo apenas para as unidades do proinfân-
sociais, da diversidade, da epistemologia cul-
cia-, começo pensar o que signiica educação,
tural e política? Será que conseguimos perce-
pela ideia de um reconhecimento universal e
ber a diversidade epistemológica presente nas
uma práxis da libertação, um mundo humano,
Instituições/Unidades de educação infantil va-
onde todas as crianças possam ser livres em to-
lorizando os conhecimentos do contexto, das
das as suas dimensões de existir.
vozes até então caladas?
Uma educação que leve a sério a nova cons- Compreender qual Educação, qual do-
ciência planetária e que levante a pretensão cência ou quais docências passa também por
de tornar possível o situar-se corretamente
em nosso mundo terá de ajudar as pessoas
rever a estrutura das instituições numa pers-
a captar a realidade como uma unidade de pectiva temporal e espacial - outras formas
opostos, ou seja, a perceber que ser humano de expressão: linguística, corpórea, musical...
e natureza se manifestam em sua diferença:
o ser humano, enquanto capaz de captar o Nos constantes enfrentamentos no assessora-
sentido tanto da natureza como de si mesmo, mento muitos docentes alegavam ter posturas
transcende fundamentalmente a natureza, autoritárias, conservadoras, rígidas, em função
mesmo sendo parte dela. A transcendência
revela o ser humano como ser de sentido, que das exigências legais; no entanto, as leis, as
situa todo e qualquer dado em um horizonte diretrizes educacionais, são amplas e lexíveis,
de signiicação, e que age a partir do sentido
percebe-se nas práticas, nas ações docentes,
captado. Por essa razão ele é o ser da responsa-
que muitas vezes os docentes são mais rígidos
7 Ao pensarmos os desaios, estou me referindo para além do
que as leis.
processo de assessoramento as unidades do Proinfância. Além É preciso desejo para intervir no sistema
disso, falo do lugar de gestora de uma Unidade de Educação In-
fantil e na condição de docente do Ensino Superior, orientadora
educacional, é preciso proissionalismo e
de estágios na Educação Infantil e nos Anos Iniciais.
35
Viviane Ache Cancian
seriedade, o que contrapõe muitas posturas educativas? Como garantir um projeto políti-
também de adultos infantis e de docentes co-pedagógico que dê conta dos direitos das
muito imaturos. Somos marcados pela crianças, do humano e da cultura?
pedagogia da homogeneidade e temos que A relevância de uma instituição de edu-
aprender a respeitar a diversidade, mudar a cação infantil é a formação ética. No entanto,
lógica, permitindo experiências diversas que o que encontramos muitas vezes nas institui-
contribuirão para condição humana, já que ções são concepções positivistas e moralistas
o humano se constrói através de diferentes que não permitem que as crianças pensem ou
dimensões e aprende a ser. que tenham autonomia. Essa prática é comum
Quais dimensões do cerne da condição desde o trabalho que é realizado com a leitura
humana? Ainal, quais dimensões formar? Falta dos livros infantis, que acaba não sendo uma
um horizonte do projeto de Educação Infantil, leitura com o objetivo de formar leitores, mas
um projeto de educação básica, um lugar para uma leitura moralizante, muitas vezes com li-
o sentimento, para a imaginação que às vezes vros de cunho religioso e com livros de autoa-
encontramos nas práticas com crianças peque- juda, a im de moralizar as infâncias e formar
nas na Educação Infantil e que quando a crian- seres humanos dóceis e domesticados. É preci-
ça vai crescendo, com 4-5 anos, vai lentamen- so ter clareza que um projeto político-pedagó-
te sendo abandonado e quando chega aos 6-7 gico de uma instituição é importante porque
anos, é negado totalmente. O que está fora de passa pela construção de um novo sujeito, ou
foco? O Campo pedagógico? Só recuperando seja, passa sempre por uma tensão constante
a teoria pedagógica mais profunda, a teoria da entre este projeto de ser humano (sujeito) e o
educação, o avanço na humanização, as condi- projeto de sociedade.
ções reais em que se reproduzem a existência, Estas questões estão postas nos currícu-
a construção da Infância, o tempo infância, o los e práticas na Educação Infantil, que não re-
tempo do humano. letem práticas de 24 bebês em uma sala, em
Poderíamos então nos questionar acer- práticas de atendimento das crianças em mais
ca do tempo das instituições, dos reais tempos de 12 horas. Curioso e, no mínimo, estranho é
das crianças, dos tempos das infâncias que não encontrarmos municípios, docentes e discentes
têm tempo nas instituições. Como permitir dos cursos de pedagogia que naturalizaram a
nas instituições de educação infantil vivências quantidade (excesso) em detrimento da quali-
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PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
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Viviane Ache Cancian
Ledo engano em achar que esse tipo de crianças nos seus contextos. Aqui poderíamos
função que o docente vai exercer e que traz aprender com os movimentos sociais que in-
para o centro do processo a reprodução dos corporaram em suas lutas os avanços culturais
materiais, e não as crianças, traz a realização e políticos.
do docente, pois ninguém se realiza com um
trabalho mecânico, de reprodução, não sen- E nas instituições de educação infantil,
do autor e não produzindo. Pior ainda, além como trazemos essas questões? Como
de não realizar o docente, causa nas crianças tratamos da imaginação, da curiosidade
frustração em ter no dia a dia práticas diretivas, e os sentimentos da criança? O tempo é
sem sentido e signiicado para elas (crianças), um tempo de viver? Um tempo de vivên-
cias plenas?
pois muitas vezes distante da realidade e do
contexto, práticas que vão na contramão das
Essas perguntas são algumas das muitas
Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação
que surgiram e surgem para os formadores nas
Infantil (2009). Universidades e para os docentes nas Unida-
Portanto, o desaio está dado: ter uma des de Educação Infantil.
outra docência, onde as práticas pedagógicas, O ser humano, de acordo com Oliveira
as docências na Educação Infantil que humani- (2001, p.288), “[...] é o ser da responsabilidade,
zarem a infância, que mudarem as estruturas, pois é capaz de decisões livres”; portanto, o
os tempos-espaços rígidos, darão conta dos grande desaio é superar a racionalidade téc-
avanços sociais e culturais, pois trarão no cerne nica e instrumental que tem legitimado a apli-
uma maior sensibilidade e um projeto mais de- cabilidade de saberes e conhecimentos em
mocrático, cultural e social. Para tal precisa-se detrimento de uma racionalidade que dialoga
ter clareza que os docentes são sujeitos sociais- e produz conhecimentos a partir das práticas
-culturais e que, portanto, muitas vezes essas instituídas nas instituições.
Fica para todos os docentes do ensino
constituições de cada sujeito é que deinem as
superior e da educação básica, principalmente
práticas na educação infantil.
da educação infantil, o desaio de uma docên-
Há sempre uma grande preocupação no
cia que não aprisiona, que não direciona, que
discurso dos docentes no conteúdo e método, não “ensina um conteúdo conformista, sexista,
no o quê e como trabalhar com as crianças, e racista, classista, adultocêntrico, homofóbico,
não em como trabalhar com os complexos dito neutro, para todas as crianças, sejam elas da
processos vividos pelos professores e pelas
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PROCESSOS FORMATIVOS E DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: INDAGAÇÕES DO VIVIDO
elite, das camadas populares, negras, indígenas, ção da Pedagogia. Espaços da Escola, IJuí:UNI-
brancas e trabalhadoras...” (Farias, 2011, xiv), mas JUÍ, ano 4, n 31, jan/mar. 1999, p15-23.
que reconhece a diversidade e liberta em todos MELO, Regina Lúcia Couto de. Orientações
os sentidos; que tece sempre outros ios, outras para o planejamento da expansão da Edu-
tecituras dos ios das infâncias e das crianças. cação Infantil e para a implantação das Ins-
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39
2
O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A
CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder
contexto no decorrer dos dois anos do projeto. conhecimento, tais como a Filosoia da Infân-
Os demais municípios referenciados ao Polo de cia, a Sociologia da Infância e a Antropologia
Ijuí receberam acompanhamento através de da Criança. Este diálogo toma de empréstimo
encontros regionais em municípios referência algumas ferramentas metodológicas e concei-
do território de abrangência. tuais para melhor compreender a infância, suas
Este exercício de análise é restrito, por- experiências, suas culturas, aprofundando co-
tanto, ao conjunto de 08 municípios que com- nhecimentos e rompendo com as representa-
põe a amostra do Polo Ijuí, na Região Noroeste. ções generalizantes e universalistas, pautadas
Os elementos trazidos para análise emergem em uma racionalidade que pouco reconhece
da construção de processo com estes municí- as crianças como atores sociais e a infância
pios. As relações estabelecidas junto às Unida- como grupo social.
des Proinfância com as equipes das escolas e Na metodologia do projeto de asses-
gestores municipais foram consideradas estra-
soramento os proissionais formadores são
tégicas e ricas em possibilidades. Por esta razão,
compreendidos a um só tempo como inves-
as questões que emergem como categorias de
tigadores e como instrumentos da pesquisa.
análise junto às diferentes realidades locais fo-
Este exercício de exploração em campo não é
ram tomadas como objeto de problematização
necessariamente neutro ou desprovido de im-
em tempo real, nas visitas técnicas e nas for-
plicação. Lapassade (2001) reconhece diferen-
mações em contexto, chamando os diferentes
tes níveis de envolvimento do observador, es-
atores para uma posição de responsabilidade
tabelecendo uma escala de possibilidades. Em
compartilhada frente à Educação Infantil.
um extremo localiza a Observação participante
A observação participante como io periférica, onde pode existir certo grau de im-
condutor plicação do observador no contexto, mas não
tanta que venha a bloquear sua capacidade de
As estratégias e ações do projeto de as- análise. Em outro extremo localiza a Observa-
sessoramento dialogam com metodologias de ção participante total ou completa, onde existe
pesquisa, tornando claro que esta proposta se uma possibilidade de imersão signiicativa em
conigura mais complexa do que se colocava campo, mais controversa de um ponto de vis-
inicialmente. Leituras outras são necessárias. ta técnico e teórico, sendo mais indicada em
Neste sentido, intensiicamos o diálogo que a estudos etnográicos. Entre estes extremos o
Pedagogia tem feito com outros campos do autor reconhece ainda como alternativa viável
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va. Assim, mais do que um método, diz respei- A interlocução proposta pelo projeto de
to a um gesto e uma postura ética e política, assessoramento envolve, portanto, o exercício
profundamente preocupada com a alteridade. de alteridade (Derrida, 1999), e demanda um
Este exercício de desmontagem do discurso movimento até a fronteira com o outro, exigin-
abre a possibilidade de revelar os elementos do certo afastamento daquelas certezas que
que estão dissimulados ou que permanecem vão sendo colecionadas pelo sujeito ao longo
invisíveis na leitura da realidade e nas boas da sua existência pessoal e proissional. Este
práticas, demonstrando os lapsos, os espaços deslocamento pelas bordas traz uma esperan-
em branco, e desvelando os ininitos discursos ça de contaminação pelo outro e, por conse-
que estão por trás da aparente unidade. Neste quência, a promessa de um estranhamento
sentido, o autor vislumbra a necessidade de re- quando voltar o olhar para si mesmo. Este
conhecer o não-dito tanto quanto aquilo que é encontro com o estranho em si mesmo não
expressamente dito em um discurso.
é isento de tensão e sofrimento sendo, nesta
Aqui tomamos o discurso em sua ma-
mesma medida, desaiador e transformador.
terialidade, em uma dimensão mais ampla,
não somente nas falas, nos documentos pro-
duzidos pelas professoras e nos registros das
crianças. Mas também nos planejamentos, na
escolha das literaturas infantis, na organização
dos espaços e materiais, nos tempos e rotinas,
nas concepções de identidade presentes no
contexto e na estética das salas. Discursos que Formação em contexto em um momento de
constituem o território e que fazem a coloni- sistematização com o coletivo.
zação da infância. Uma colonização que usual-
A experiência de estranhamento por
mente não reconhece os desejos e as culturas
parte das professoras e outras pessoas da equi-
infantis e, não reconhecendo, deixa de dialogar
com estes pequenos sujeitos. Trata-se de um pe não está assegurada previamente. Não se
discurso onde as culturas infantis permane- trata de um movimento simples, pois requer a
cem excluídas ou reprimidas, quase invisíveis, construção de um discernimento crítico e re-
sendo lançadas à margem e, por isso mesmo, lexivo sobre as próprias práticas e concepções.
assumindo um caráter transgressivo neste que Trata-se de uma desconstrução. A produção
parece ser o lugar da boa educação. desta experiência parte da permeabilidade ao
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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
discurso do outro em uma relação de alterida- sobre as concepções e a transformação não so-
de. Muitas professoras referem desconforto e mente das práticas pedagógicas, mas também
sofrimento ao vivenciarem este processo. Elas do próprio processo de assessoramento onde
sofrem e não estão contentes. A percepção opera esta interlocução.
de que as suas práticas pedagógicas com as
crianças estão articuladas com uma concepção Os objetos de problematização
especíica de sujeito produz interrogações no
campo ético e político, que desestabilizam al- Ao longo do Projeto de Assessoramen-
gumas convicções que estão profundamente to foi realizado um percurso signiicativo de
enraizadas. Convicções que orientam, cons- investigação e relexão compartilhada com os
ciente ou inconscientemente, as decisões que sujeitos. Um percurso perpassado por tensio-
são tomadas no cotidiano. namentos e possibilidades de articulação, de-
Nem todos os sujeitos colocam-se da monstrando a dimensão de desaio e a potên-
mesma forma diante deste processo. Algumas cia dos espaços de interlocução.
A rede de signiicados que foi sendo te-
professoras parecem simplesmente imper-
cida a muitas mãos permitiu o mapeamento de
meáveis a este tipo de interlocução e não fa-
elementos que emergem a um só tempo como
zem o distanciamento necessário para analisar
pontos de impasse e pontos de possibilidade
o seu fazer e o seu pensar, reiterando práticas
no campo da Educação Infantil. Esta articula-
mecânicas e descontextualizadas. Outras pro-
ção, aparentemente contraditória, somente é
fessoras, ao sentirem balançar suas referências,
possível porque vem sustentada em um pro-
fazem um rápido movimento na busca de sub-
cesso de interlocução, onde os objetos vão se
sídios para operar conceitualmente sobre a constituindo como categorias de análise a par-
realidade, alcançando um efeito notável sobre tir de um discurso produzido por muitas vozes.
as suas práticas e suas relações com as crianças. Ao revisitar o percurso de assessoramen-
Por outro lado, aquelas professoras que já pos- to, se faz necessário um esforço de sistemati-
suem uma trajetória proissional e intelectual zação sobre alguns daqueles elementos que
identiicada com estes pressupostos, parecem emergem da realidade e se impõe nos pro-
exercer um efeito de convergência na relação cessos de investigação. São elementos que se
com os pares, constituindo pequenos núcleos entrecruzam e dialogam. Neste momento, po-
de articulação e de trocas signiicativas. Trata- rém, são elencados em tópicos com uma fun-
-se de um diálogo que desaia o pensamento ção meramente didática:
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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder
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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
oferecer respostas pontuais frente às deman- como um espaço estratégico, onde são pen-
das da realidade, efetivando reuniões pedagó- sados elementos importantes do cotidiano de
gicas e estudos dirigidos de modo a suprir as trabalho, sendo um aspecto interessante o fato
carências emergenciais, engolidas pelo cotidia- de que a grande maioria destas escolas conse-
no. Os planos de estudo e os planejamentos de gue assegurar a liberação das professoras em
médio e longo prazo parecem burocratizados, pelo menos um turno semanal para atividades
pouco permeáveis ao exercício da alteridade de planejamento e estudo.
com as crianças e com a comunidade onde No que diz respeito ao planejamento, es-
estas estão inseridas, reféns das questões de peciicamente, veriica-se que o calendário de
desenvolvimento, mais focados em uma pers- datas comemorativas assume uma posição de
pectiva de estimulação e aquisição de compe- centralidade. Algumas professoras referem o
tências do que nas questões centrais alavanca- desenvolvimento de mini-projetos a partir des-
das pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para se calendário, que na realidade representam o
a Educação Infantil (2009). desenvolvimento de uma série de atividades
Estas questões, que têm na proposta ao longo de vários dias, de modo geral desar-
pedagógica um pano de fundo, possuem uma ticuladas, em torno de uma temática comum.
densidade e uma complexidade signiicativas. Para muitas professoras é dolorosa a percep-
Apesar de terem sido objeto de análise siste- ção sobre o efeito massiicador dessa dinâmi-
mática pelos sujeitos ao longo de todo o per- ca, claramente materializada na uniformidade
curso de assessoramento, em muitos aspectos de conteúdos trabalhados nos diferentes gru-
permanecem como pontos de impasse ainda pos, desde o maternal até a pré-escola e, even-
em aberto. tualmente, até mesmo nos berçários.
O exercício de planejamento no trabalho
c) O planejamento com os bebês e com as crianças bem pequenas
mostra-se muito tímido junto ao contexto de
Em um contexto ideal as situações de assessoramento, havendo insegurança entre
planejamento possuem estreita relação com a as professoras quanto aos caminhos de articu-
proposta pedagógica da escola, e são construí- lação teórica e técnica. O trabalho com bebês
das em uma matriz signiicante onde as con- e crianças pequenas diz respeito a um campo
cepções de criança e de currículo assumem-se de conhecimento e investigação instigante,
como determinantes. As escolas em assesso- sendo reconhecidas as múltiplas competên-
ramento apresentam a reunião pedagógica cias destes pequenos sujeitos (Fochi, 2015). No
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entanto, este campo ainda é pouco conhecido ção e discussão destes elementos ao longo do
e pouco reletido junto às escolas, prevalecen- assessoramento permitiu testemunhar uma
do as iniciativas apoiadas em concepções de movimentação crescente em torno do planeja-
desenvolvimento e estratégias de estimulação. mento autônomo nos diferentes grupos, com
No percurso de assessoramento mostraram-se processos um pouco mais lexíveis, em suces-
muito valiosas as articulações entre as concep- sivas aproximações e diálogos com as crianças.
ções de documentação pedagógica e progeta-
zione (Gandini e Goldhaber, 2002, p. 154; Fochi, d) Registro e avaliação
p. 82, 2015), favorecendo uma compreensão
da documentação enquanto ferramenta que As concepções e experiências de registro
possibilita a construção de um conhecimento e e avaliação encontram no plano ideal, do mes-
um diálogo respeitoso com a criança pequena. mo modo que o planejamento, estreita relação
Afasta-se da ideia de currículos predeinidos e com a proposta pedagógica. Foi possível veri-
estágios de desenvolvimento, e consequente- icar no assessoramento que as estratégias de
mente aproxima-se de uma ideia de aborda- registro das professoras vêm, de modo geral,
gem geral mais lexível e também complexa, na forma de compilação e colagem dos exer-
na qual são feitas hipóteses iniciais sobre o tra- cícios e atividades realizadas com as crianças
balho da sala de aula (...) que estão sujeitas a mo- em um caderno, a título de ilustração para os
diicações e mudanças de direção à medida que planos de aula. As crianças também possuem
o trabalho real avança (Gandini, p. 218, 2012). seus cadernos individuais ou pastas, onde são
Foi veriicada inicialmente uma única colocadas estas produções. Eventualmente,
experiência efetiva de trabalho com a metodo- estas são expostas em sala de aula, até serem
logia de projetos (Barbosa e Horn, 2008), com substituídas pelas atividades seguintes.
objetivos mais claros e uma abordagem parti- Naquilo que se refere à avaliação, as ex-
cipativa, focada na construção de um processo periências encontradas não são muito diver-
mais do que em resultados. Nesta situação, as siicadas. A elaboração de parecer descritivo
crianças tinham papel ativo, sendo buscada individual e a organização de cadernos ou
uma articulação das experiências e dos saberes pastas constituem as principais estratégias
destes pequenos sujeitos com os elementos
para acompanhamento do trabalho pedagó-
apresentados pela professora, em um contex-
gico e para avaliação da evolução das crianças.
to de pesquisa e sistematização. A investiga-
O formato predominante de parecer é aque-
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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
de menor de educação. A análise dialogada destas mento em um contexto de debate mais amplo e
questões permite reconhecer um impacto nas difícil, que tem como horizonte o imperativo de
relações de trabalho, relacionado especialmen- uma política de recursos humanos própria para a
te ao temor de eventuais demandas trabalhistas, Educação Infantil. Uma política com a estrutura-
criando um clima de desconforto na relação entre ção de um quadro de pessoal, um plano de car-
auxiliares e professoras. Nestes casos, o planeja- reira, de cargos e salários e, fundamentalmente,
mento e o parecer sobre as crianças permanecem um processo de formação continuada, que esteja
a cargo das coordenações pedagógicas, trazendo pautado por pressupostos éticos e políticos, reco-
sérias implicações sobre as práticas pedagógicas e nhecendo a necessidade de constituir direções e
acrescentando um componente de alienação ao coordenações pedagógicas legítimas e fortaleci-
trabalho. O deslocamento do debate para o cam- das junto às escolas.
po político-pedagógico constitui um desaio per-
manente no contexto de assessoramento. g) O lugar da coordenação pedagógica
Os processos de formação continuada em
geral são organizados de modo a suprir carências As professoras indicam ao longo do as-
especíicas e conferir alguma homogeneidade ao sessoramento uma carência nas escolas quanto
trabalho, sendo comum a contratação de institui- a espaços e momentos de trabalho coletivo e de
ções de ensino superior ou proissionais de fora do relexão, levando a uma análise sobre a função e a
município para o desenvolvimento de palestras atuação das coordenações pedagógicas junto ao
ou oicinas. Os eixos de trabalho costumam estar contexto. O aspecto de potencialidade existente
relacionados aos planos de estudos do município, nos processos de interlocução foi exaustivamente
abordando temas como planejamento, avaliação, explorado no assessoramento, especialmente ao
currículo, educação inclusiva, relações professor- longo do segundo ano, quando estas experiências
-aluno, musicalidade, além de temas como disci- tiveram um caráter mais vivencial e relexivo.
plina, agressividade, sexualidade, em uma pers- A coordenação pedagógica da escola está
pectiva de desenvolvimento. pressuposta neste lugar de interlocução, de guar-
O debate sobre planejamento estratégico diã das conexões (Gandini, p. 90, 2012). A proble-
em nível de gestão tomou contornos nítidos no matização deste lugar desestabiliza os sujeitos,
decorrer do projeto de assessoramento, haven- desconstrói a zona de conforto que vem apoiada
do municípios da amostra que redirecionaram em uma inserção proissional burocratizada e de
editais de concurso, priorizando a contratação de gabinete. Desaia a pensar uma atuação produ-
professoras em detrimento de outros cargos. Estas tora de alteridade, com articulações individuais e
movimentações vão acontecendo no assessora- coletivas, não somente com as professoras e de-
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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder
mais proissionais da equipe; uma articulação com Neste sentido, a sala do grupo e a escola são mais
as famílias e com a comunidade onde a escola do que simplesmente um espaço onde as coisas
encontra-se inserida, em uma relação com o currí- acontecem. Trata-se de um ambiente que exerce
culo e com o contexto vivo; uma articulação entre função simbólica, que favorece ou limita o desen-
a teoria e a prática, desaiando a documentação, volvimento intelectual, a imaginação, a criatividade
a socialização e relexão sobre as experiências; e, e a troca com outras crianças e com os adultos. Esta
fundamentalmente, uma articulação e um diálo- discussão nas escolas remete a uma percepção ini-
go com os sujeitos infantis. cial de empobrecimento. As próprias professoras
Ao pensarmos coletivamente sobre estes reconhecem os grandes espaços planos e vazios,
aspectos nas escolas da amostra, começa a tomar ou então espaços povoados por mesas, classes e
forma uma noção de formação em contexto, onde cadeiras, em uma perspectiva de escolarização que
os elementos do cotidiano podem ser elevados a ca- limita e despotencializa as vivências lúdicas, afeti-
tegorias de análise, vindo a se constituir objetos de vas e intelectuais das crianças. Os espaços educa-
conhecimento e de intencionalidade pedagógica. tivos que escapavam desta impressão no início do
Esta noção de formação em contexto orga- projeto eram excepcionais.
niza um endereçamento ao lugar da coordenação
pedagógica. Ao distanciar-se do pressuposto de um
interlocutor ou pesquisador externo, a formação em
contexto abre um conjunto de possibilidades mais
próximas da realidade, demarcando um empode-
ramento local e, por isso mesmo, uma dimensão de
responsabilidade que gera insegurança em algumas
proissionais.
Trata-se de um elemento que nos faz pensar
na importância de estratégias de formação conti-
nuada e de instrumentalização teórica e técnica para
as coordenações pedagógicas.
h) A construção de territórios
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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder
delar. A professora dava dicas de como fazer O desejo das crianças realmente parece
para aquela pequena bolinha de massa render maior. Transborda para além das tarefas pro-
tantas letras. As crianças que conseguiam inali- postas, como se transitasse por caminhos di-
zar a tarefa tinham que esperar pelas outras. E as ferentes. Como se a infância izesse resistência,
outras, bem, as outras... entrincheirada na fantasia. Durantesituação
de observação participante em outraescola da
amostra, uma das crianças, um menino, icou
intrigado com a presença do formador. Mordia
os dedos tentando entender a presença deste
estrangeiro em seu grupo, quando se deu por
conta que lhe faltava um dente na boca. Não
teve dúvida, levantou-se de onde estava e veio
mostrar a gengiva reluzente. Logo a turma
inteira cercava o formador para mostrar seus
buracos e os dentes moles. Contavam histó-
rias sobre a fada dos dentes, sobre a mamãe
guardar em uma caixinha, sobre a troca por
Eu já tô pronto... dinheirinho ou presentes, queriam saber se o
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O ASSESSORAMENTO EM EDUCAÇÃO INFANTIL E A CONSTRUÇÃO DE PROCESSOS COLETIVOS
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Noeli Valentina Weschenfelder, Denise Motta Marchand e Vladinei Roberto Weschenfelder
processos de trabalho e das práticas pedagó- de buscar referências mais consistentes para
gicas encontra-se muito distante do cotidiano a construção das práticas pedagógicas e para
dos espaços educativos. a organização dos processos de trabalho. Um
Neste sentido, é relevante o fato de que esforço que busca amarração com os marcos
em todas as escolas da amostra foi manifesta- teóricos e legais, representados especialmen-
da como imperativa a demanda de ampliação te pelas DCNEI (2009). No entanto, os avanços
do assessoramento ao conjunto dos proissio- construídos pelas escolas ao longo do projeto
nais que constituem a equipe das instituições, de assessoramento contrastam com a sua pró-
desde a direção, a coordenação pedagógica, pria fragilidade, denotando a fragmentação e a
professoras, auxiliares e monitoras, estagiárias, necessidade de aprofundamento.
administrativo, até a cozinha e a limpeza, de A ideia de construção de processos transita
justamente por esta via. Esta construção diz res-
modo a democratizar o acesso aos espaços de
peito a relações complexas e jogos de força mui-
formação e de interlocução.
to diversos. Relações que se airmam no campo
Ao inal do projeto, nas últimas ativida-
ético e político, que estão articuladas com con-
des de formação em contexto, o convite para
dições trabalho, com possibilidades de valoriza-
participação já se encontrava estendido aos re-
ção proissional, e que possuem uma dimensão
presentantes das famílias com crianças matri-
social e afetiva importante. Relações complexas,
culadas na escola. Esta tendência progressiva
que exercem efeitos sobre as práticas pedagó-
de ampliação do circuito de discussão parece
gicas e sobre a construção da identidade pro-
sinalizar para um desejo de abertura dos pro-
issional, estruturando um percurso que não é
cessos de relexão e de decisão nos espaços
linear e tampouco uniforme.
educativos, em um contexto de diálogo que
Esta fragilidade demonstra também a di-
não se conigura como massiicador ou esva-
iculdade efetiva de apropriação das ferramen-
ziado de objetivos e intencionalidade. Pelo
tas de trabalho pelos sujeitos no campo teórico
contrário, parece apostar com otimismo na
e técnico, sinalizando carências históricas que
construção de um contexto acolhedor da al-
remontam aos processos de formação inicial,
teridade, buscando pontos de convergência e
reletindo trajetórias com propostas acadêmicas
não necessariamente pontos de consenso.
desconectadas e desprovidas da capacidade de
É inegável que existem experiências be-
articulação e diálogo com a realidade. É neste ce-
líssimas de interlocução com as crianças em
nário que as equipes das escolas constroem seus
escolas da amostra. Neste mesmo contexto, é
percursos, fazendo-nos pensar que a atuação na
inegável também o esforço intenso no sentido
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA
POLÍTICO PEDAGÓGICA
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Regina Lúcia Couto de Melo
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA
tegração das instituições de educação infantil […] a dívida da sociedade e da educação bra-
sileira para com as crianças pequenas é enor-
pelos sistemas de ensino, a gestão pedagógica, me, o déicit da oferta é intenso e mais inten-
a gestão operacional, os planos de carreira e a so, para grupos sociais mais necessitados; a
formação de professores, etc. Podemos air- qualidade da oferta é precária (ROSEMBERG,
2010, p.178).
mar com o apoio da análise recente de ROSEM-
BERG ( 2015, p.217- 218) sobre as políticas pú-
Esta breve contextualização do pon-
blicas e a qualidade da educação infantil, que
to de vista macro político é importante para
os investimentos apoiados pelos movimentos
considerar os pressupostos do trabalho de
sociais, inicialmente contra o “atendimento po- assessoramento aos municípios na constru-
bre para pobre”, se deslocaram para o “ordena- ção da “obra político pedagógica” e ressaltar
mento legal e político”. Sintetizando, a política as características do assessoramento, não só
nacional (ROSEMBERG,2015,p.220- 221) vem particularizando a implantação de novas es-
reforçando desde 1993, uma concepção de colas, mas considerando-as, como parte de
criança, como sujeito social e histórico, marca- uma política municipal de educação infantil.
da pelo meio social e construtora da socieda- Ou seja, considerando as características des-
de e das culturas. Então, podemos considerar sas políticas no Rio Grande do Sul, as tensões
que a direção normativa e política centrada no próprias do direito à educação em contextos
direito das crianças são recentes e avançaram de desigualdades sociais, a diferenciação e não
muito quando comparamos o momento atual hierarquização do sistema federativo brasilei-
com a invisibilidade de bebês e crianças pe- ro, e a descentralização como uma determina-
quenas nas políticas educacionais das décadas ção constitucional das políticas de educação
de 1980. No entanto, esta posição alcançada dirigidas às crianças de 0 a 5 anos, seguimos as
no marco legal e na política nacional é ainda seguintes orientações no assessoramento aos
mais recente em relação aos investimentos re- municípios:
lativos ao acesso público de qualidade (PROIN-
FÂNCIA,2007), contemporâneos da inclusão da - A intenção de inluenciar práticas educati-
educação infantil na política de inanciamento vas e políticas públicas municipais em con-
sonância com as novas Diretrizes Curriculares
da educação básica (Fundeb). Por outro lado, a Nacionais da Educação Infantil (DCNEI) foi
mesma pesquisadora enfatiza a persistência de explicitada para os dirigentes e gestores dos
desigualdades educacionais, logo após a insti- municípios que integraram o estudo, e a par-
ticipação voluntária dos mesmos é parte de
tuição do Fundeb: um compromisso político de contribuir para a
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Regina Lúcia Couto de Melo
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA
A referida Unidade Federada ampliou o aces- por promotores públicos no processo con-
temporâneo de judicialização da educação
so à creche em 11,5 pontos percentuais entre
infantil (ARTES & UNBEHAUM, 2015, p.228).
1997 e 2008, se posicionando abaixo do cresci-
mento da Região Sul, que atingiu 17,3 pontos
Ressalta-se que o trabalho de monitora-
percentuais. Para o mesmo período, o acesso
mento das taxas de atendimento da educação
à pré-escola é mais favorável à inclusão das
infantil e a política desenvolvida pelo Tribu-
crianças de 4 a 6 anos, que cresceu 16,3 pontos
nal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul
percentuais. No entanto, o acesso à pré –escola
contribuiu positivamente para a alteração da
na Região Sul icou aquém das demais regiões
posição deste Estado no cenário nacional, con-
brasileiras. (CIEP, 2010).
forme demonstra (FLORES, 2015). Em 2010, o
A produção acadêmica sobre as desi-
conhecimento da população sobre os direitos
gualdades educacionais geralmente aborda o
das crianças e a expansão do mercado de tra-
território nacional e grandes regiões, apontan-
balho para as mulheres ampliaram a demanda
do diferentes fatores explicativos em função da
deinição do objeto de estudo e da abordagem pela educação infantil. Por outro lado, a nova
ao longo da história da educação brasileira (OLI- escola em vários municípios, apesar de signi-
VEIRA & SANTANA,2010 e ARTES & UNBEHAUM, icar uma oportunidade de acesso à educação
2015). Em relação à educação infantil destaca-se infantil com infraestrutura de qualidade, não
os estudos de Fúlvia Rosemberg, desde a década supria o número de vagas das listas de espera.
de 1980 até recentemente, demonstrando pela E os municípios que implantavam escolas no
análise comparativa e de séries históricas que as início do ano letivo só tinham inanciamento
diferenças de acesso à creche e à pré-escola são para custeá-las no ano seguinte. Portanto, nes-
mais signiicativas entre regiões/localização do te cenário as políticas municipais continuavam
domicílio, do que as relativas a outras variáveis, a estabelecer critérios para o acesso à educa-
como raça/cor, meninas/meninos, atribuindo ção infantil, geralmente focados nas condições
esta ocorrência ao: socioeconômicas das famílias.
Apesar dos estudos realizados durante
[…] processo histórico de criação de progra- o processo de assessoramento, por meio de
mas para a então denominada “população questionários eletrônicos respondidos pelos
carente” e a oferta municipal e conveniada
frequentemente estabelecer prioridade para dirigentes municipais, que revelavam a inten-
crianças provenientes de famílias com níveis ção de atenderem de crianças de 0 a 3 anos,
inferiores de renda, opção também reforçada
no limite da capacidade máxima das salas dis-
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Regina Lúcia Couto de Melo
poníveis das escolas do Proinfância, no conta- colaboram para incidir em instâncias políticas,
to direto ressaltavam os desaios para atender para além do campo da educação infantil, como
crianças menores de 3 anos, pelas exigências o plano diretor; as políticas econômicas e tributá-
de novos recursos inanceiros e: demanda so- rias locais, de combate à sonegação de impostos,
cial e de direito de cuidar e educar em período reduzindo gradativamente a dívida social com as
integral; custos mais elevados que outros ní- crianças pequenas das zonas urbana e rural.
veis de ensino; atendimento de menor número O processo de assessoramento focava
de crianças por turmas em relação às turmas principalmente em suportes conceituais e aná-
de pré-escola; pouca ou nenhuma experiência lise das práticas pedagógicas, sensibilizando
acumulada de atuação com bebês; formação decisores ao analisar as políticas municipais de
inicial precária dos professores para atender educação infantil, incluindo as instituições dos
esta faixa etária; investimentos necessários em sistemas de ensino afetos à regulamentação e
formação em serviço, entre outros motivos. autorização para funcionamento das escolas.
Desta forma, ainda sem o apoio pela União de Quanto à integração da educação infantil nos sis-
antecipação dos valores do Fundeb2, referen- temas de ensino veriicamos que havia a preva-
tes às novas matrículas, os municípios tendiam lência de funções normativas e função formativa
a transferir em parte ou a totalidade das crian- de reconhecimento das crianças de 0 a 3 anos,
ças que frequentavam escolas precárias para como sujeitos de direitos, não era exercida. Não
as novas escolas e continuavam a praticar cri- havia um trabalho para que as instituições de
térios eletivos para o acesso à creche. educação infantil cumprissem determinadas exi-
Neste cenário, há muitos outros determi- gências legais, com suportes para professores e
nantes a serem considerados, como os relativos a gestores.
déicits de terrenos para construir novas escolas; As devolutivas das observações realiza-
capacidade de gerenciamento da política muni- das nas escolas se constituíram em momentos
cipal de educação infantil; abertura de canais de importantes para reletir sobre as condições da
participação e controle social pela sociedade que oferta pública e as políticas públicas de acesso.
As tendências veriicadas na análise dos
2 A partir de 2013 foi criado pelo MEC/FNDE o “Módulo Edu- projetos político pedagógicos e nas práticas
cação Infantil Manutenção” do SIMEC de análise e aprovação das
pedagógicas observadas possuem uma forte
solicitações dos municípios e DF para a transferência de recursos
destinados a ampliação do acesso à educação infantil, contem- vinculação com as políticas de acesso à educa-
plando as novas turmas de educação infantil( creche e pré-esco-
ção infantil. Embora sejam ações de natureza
la). As unidades do Proinfância foram contempladas, segundo os
mesmos critérios das novas turmas pela Lei 12.499 (29/9/2011). diferente, expressam valores ainda dominan-
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA
tes na sociedade, para as crianças mais pobres, 3. A visão das professoras sobre a cons-
escolas como espaço disciplinador das mes- trução da obra político pedagógica com
mas. Mas esta ideologia está se modiicando, a colaboração das crianças
pelos processos formativos vivenciados pelas
professoras, com foco nas crianças reais, como Em primeiro lugar, é preciso destacar
sujeitos de direitos sociais e culturais; com in- que esta síntese deve ser entendida como uma
vestimentos de recursos pedagógicos que reunião de anotações e registros feitos a partir
enriquecem os ambientes de aprendizagem e das narrativas das professoras e gestoras e das
a auto-observação das professoras, como me- apresentações realizadas dia 14/5/15, durante
diadoras de processos educativos. o II SEMINÁRIO REGIONAL – PROINFÂNCIA
Algumas questões sobre a especiicida- (Santa Maria/RS). Abrange aspectos relevantes
de do trabalho docente na educação infantil para as participantes da roda de conversa,
monopolizaram minha atenção, em relação que demandam uma atenção continuada
ao que observava como práticas repetitivas e para sustentar a renovação em curso e me
de instrução, por exemplo: colorir desenhos
senti privilegiada nesta interlocução sobre
prontos, enileirar crianças para qualquer des-
os processos de mudança das práticas
locamento, horas padronizadas para dormir, al-
pedagógicas na educação infantil, cuja
fabetos enileirados acima do campo de visão
atualidade e pertinência é muito signiicativa.
das crianças, permanência das crianças vendo
As narrativas escritas se dividem em in-
programas de TV, crianças durante longos pe-
dividuais (5) e em grupo de no máximo 3 pro-
ríodo em sala de aula e não exploração dos am-
issionais (5); enfocam diferentes temas e têm
bientes externos da escola, tendo como refe-
em comum o destaque de duas ações, coor-
rência modos de ensinar para crianças maiores.
O convite para participar da roda de denadas pelas equipes de três universidades
conversa no II Seminário Regional do Proin- - UFSM, UNIJUI e UFPF:
fância foi uma oportunidade importante para - o processo de formação continuada -
nas narrativas escritas.
retomar uma interlocução com professoras e
- as visitas técnicas envolvendo observa-
gestoras que participaram de processos for-
ções e devolutivas - nas narrativas orais, duran-
mativos nas universidades e este diálogo me
te a roda de conversa.
motivou a participar desta publicação.
As questões que me instigaram tomam
como referência o conceito de currículo da
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Regina Lúcia Couto de Melo
educação infantil das DCNEI (BRASIL, 2009b), Como é visto o despertar para um trabalho
entendido como parte do projeto político pe- sistemático de relexão coletiva que permi-
dagógico: te emergir um novo sentido ao signiicado
desgastado e desvalorizado da experiência
[…] conjunto de práticas que buscam articu- escolar para crianças pequenas?
lar as experiências e os saberes das crianças
com os conhecimentos que fazem parte do
patrimônio cultural, artístico, cientíico e tec- […] Pensar os espaços da escola e suas pos-
nológico. Tais práticas são efetivadas por meio sibilidades, como algo que nos desacomoda
de relações sociais que as crianças desde bem exige romper com paradigmas que vão além
pequenas estabelecem com os professores e da sala de aula (Quinze de Novembro).
as outras crianças, e afetam a construção de […] Um dos maiores desaios vivenciados
suas identidades (BRASIL, 2009b, p.6). nesse processo foi compreender que não pre-
cisamos seguir sempre pelos mesmos cami-
nhos enrijecidos […] Quando o professor tem
As apresentações na roda de conversa a oportunidade de pesquisar a sua própria
foram muito além das narrativas escritas, reve- prática, ele coloca-se no lugar de produtor de
lando desenvoltura e espontaneidade, essen- conhecimento[…] (Santo Augusto).
ciais para deter a atenção de todas e contex- […] Caminhada construída no cotidiano […]
Medo da mudança […]Desejo de fazer dife-
tualizar os diferentes momentos das políticas rente […] Reconhecer a criança, como ator
municipais de educação. Além disso, relata- principal da sua própria aprendizagem (Te-
ram os sentimentos presentes nos processos nente Portela).
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA
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ENTRE A OBRA FÍSICA DO PROINFÂNCIA E A OBRA POLÍTICO PEDAGÓGICA
cias enriquecedoras para professoras e crian- que buscam traduzir a identidade das crian-
ças em espaços de dança, cantigas, contação
ças? Jornadas extenuantes e sem deinição de de histórias, entre outros (Quinze de Novem-
hora atividade para planejamento e avaliação bro).
do processo? O grande desaio foi poder explorar o poten-
cial de cada criança com diferentes atividades
As narrativas espontâneas falam da an- lúdicas, onde ela possa produzir sua história,
gústia sentida ao descobrir que o fazer pe- seus sentidos, criando sua própria identidade
dagógico estava centrado em uma visão de (Roca Sales).
[…] que cada criança é uma e traz consigo
criança passiva, que depende para aprender
vivências e experiências que podem sim con-
principalmente de um outro que sabe, sob res- tribuir para o crescimento e fortalecimento do
ponsabilidade absoluta da professora. A inicia- grupo (Ibarama).
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Regina Lúcia Couto de Melo
ocupamos. A ideia de que “os sujeitos huma- infantil, critérios que privilegiam as condições
nos desenvolvem sua identidade por meio de socioeconômicas das família. No momento
experiências de reconhecimento intersubjeti- seguinte, quando essas crianças passam a fre-
vo” foi teorizada por HONNETH ( 2003, p. 115- quentar a escola, é comum serem alvo de air-
213) que também trata dos padrões de reco- mativas, que generalizam as privações cultu-
nhecimento. rais do seu ambiente:
A maneira como as culturas italiana,
africana e afro-brasileira, alemã, portuguesa, A ação Sacola da Leitura proporcionou o con-
entre outras foram incorporadas em cada su- tato com os livros e o despertar …do encan-
tamento pelas histórias e contos infantis. Este
jeito imigrante e à cultura nacional e do Rio é um projeto que já vem trazendo benefícios
Grande do Sul é percebida nas manifestações na vida de nossos alunos, pois os envolve em
das crianças? É possível trabalhar no ambiente um mundo que muitas vezes não faz parte de
sua realidade (Roca Sales).
escolar, com situações e experiências concre-
tas que estão presentes nas culturas infantis? E
E o contrário: O que faz parte do univer-
nos processos de formação das crianças, com-
so cultural da criança, é reconhecido no coti-
partilhados com as famílias? Relacioná-lo com
diano da escola? As histórias inventadas pelas
outro tema recorrente nas narrativas – tempo
crianças viram livros? Quantas bibliotecas pú-
e espaço, que estão estreitamente vinculados
blicas para crianças existem em cada cidade?
à cultura na qual as representações sobre as
O conceito de mediação nos ajuda a
crianças e a infância se constroem e recons-
compreender os processos culturais identitá-
troem.
rios nas produções de signiicados pelas crian-
As contribuições de Corsaro (2005) para
ças, que intermediam as relações com o outro.
as práticas pedagógicas e a de Qvortrup (2010)
As professoras, ao observarem o brincar das
para as políticas públicas, centrada na visão so-
crianças, estão valorizando as signiicações
bre as crianças e a infância, como “co-construto- imaginárias? Com que inalidades? Essas signi-
ras de sua inserção na sociedade e na cultura”, icações imaginárias possuem muitas funções:
colaboram para o desenvolvimento de práticas são representações que estruturam as visões
pedagógicas convergentes com o direito à edu- de mundo em geral; designam emoções, zo-
cação deinido constitucionalmente. nas de permissão e de interdição das ações; e
Comentamos anteriormente sobre os se integram à vida, aos afetos, criando oportu-
processos eletivos para ter acesso à educação nidades de interações.
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO: A MEDIAÇÃO DO
DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
Júlia Oliveira-Formosinho
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Júlia Oliveira-Formosinho
camente para que se possa fazer a conscienti- da pedagogia do passado, mas a consciência
zação (Freire, 1970) do que ela envolve em si de que ela resiste e persiste e que portanto a
mesma, do que envolve junto da criança e do construção de entendimentos e modos peda-
que envolve no pensamento sobre a formação gógicos diferentes, plurais, diversos precisa de
dos proissionais que educam as crianças. se situar perante aquilo que rejeita e articular
A formação em contexto começa, por- aquilo que propõe.
tanto, na desconstrução do modo tradicional Ao longo de três décadas de estudo da
de fazer pedagogia da infância, neste capítulo cultura pedagógica que se cria nos centros
realizada sobre um ângulo especíico – o dos educativos e nas salas de educação de infância
materiais preferencialmente utilizados para (que desenvolvi quer em Portugal quer em ou-
criar a cultura pedagógica para a infância, pois tros países, tais como Espanha, Inglaterra, Bra-
que sabemos que os materiais pedagógicos sil) entendi que a compreensão dos materiais
não são neutros nem inocentes tal como não o pedagógicos que se utilizam para desenvolver
é nenhuma dimensão da pedagogia. Veiculam o ato educativo são indicadores centrais para
um pensamento sobre a infância, uma imagem deinir a cultura em presença (Oliveira-Formo-
de criança, uma compreensão de educação e sinho, 1998; Oliveira-Formosinho, Kishimoto &
escola, uma compreensão dos papéis do edu- Pinazza, 2007).
cador e da criança que aprende.
Os materiais pedagógicos falam e estão
A escolha deste ângulo de análise tem
acessíveis para uma leitura nos espaços cole-
a ver com o conhecimento sobre a natureza
tivos das instituições, no espaço de cada sala
dos materiais pedagógicos que se escolhem,
individual de atividades, no espaço exterior do
pois são um espelho para a compreensão do
centro educativo, na documentação que os vi-
pensamento sobre as outras dimensões da pe-
sibiliza (Oliveira-Formosinho, 2011).
dagogia. Essa natureza interfere no ambiente
Descobri também que os proissionais
educativo que se cria, no estilo de interações
têm um conhecimento implícito sobre a na-
adulto-criança que se privilegia, nas atividades
que se desenvolvem, na avaliação que se prati- tureza dos materiais pedagógicos como uma
ca (Oliveira-Formosinho, 1998). porta para o entendimento da pedagogia em
A incursão neste modo tradicional de presença. Descobri ainda que muitos estão
fazer pedagogia da infância não signiica um insatisfeitos com os materiais com que traba-
encerramento híper crítico na desconstrução lham com as crianças, mas encontram-se en-
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
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Júlia Oliveira-Formosinho
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
Diagrama 1- Praxis
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
nho, 2015a), que ensina a todos como se fos- O patrimônio pedagógico disponível
sem um só, criando currículos pronto a vestir com o qual podemos dialogar para construir o
de tamanho único (Formosinho, 2007). presente e o futuro é rico em gramáticas pe-
Brindou-nos também com o desenvol- dagógicas participativas, como pedagogias
vimento de modelos pedagógicos sócio-cons- explícitas. Estas dizem-se, falam, abrem-se ao
trutivistas para a educação de infância (Olivei- diálogo, à crítica, à aceitação, à contextualiza-
ra-Formosinho, 2013) que se constituem numa ção porque são democráticas.
herança plural para o desenvolvimento das Podemos então perguntar o que é uma
práticas educativas em contexto de sala de ati- gramática pedagógica para a educação de in-
vidades. fância. A natureza dos modelos pedagógicos
A formação em contexto dispõe portan- sócio-construtivistas clariica-se com a metá-
to de referenciais pedagógicos para pensar os fora da gramática pedagógica para a praxis da
caminhos a percorrer a transformação da prá- pedagogia participativa. Porquê? O modelo pe-
tica de ensino-aprendizagem, em sala de ati- dagógico constituiu um modo de pensar, fazer,
vidades. A formação em contexto assume que avaliar o ensino e a aprendizagem da criança
os processos de desenvolvimento proissional que exige uma aprendizagem proissional sis-
que visa são de natureza praxiológica, isto é, temática e uma experimentação experiencial
visam transformar o quotidiano pedagógico, monitorizada (Oliveira-Formosinho & Formo-
os modos de ensinar e aprender, os modos de sinho, 2013; Oliveira-Formosinho, 2007). Não é
relacionamento pessoal e interpessoal, os mo- um conjunto de receitas e rituais. É uma gramá-
dos de avaliação. Constitui-se na procura de tica para o pensar, o fazer, o dizer e o avaliar do
uma cultura pedagógica com a infância que a modo de viver a pedagogia em sala.
respeite, a provoque a ser +, pensar +, fazer +, Exige, portanto, um modo formativo que
aprender +, narrar +. deve instituir os proissionais como sujeitos de
Estamos perante a necessidade de assu- construção de conhecimento sobre a gramática
mir que a transformação não é cega, que a sua pedagógica e a sua contextualização na ação. O
primeira exigência é a tomada de consciência modo formativo que os inspire na forma como
sobre os focos da mudança, que a sua inevita- educar as crianças porque o respeito que vivem
bilidade reside no encontro de uma gramática enquanto formandos é o respeito que se dese-
para o ato educativo que nos afaste do modo ja que tenham pelas crianças com quem traba-
transmissivo de fazer pedagogia da infância lham. Estamos perante o valor isomórico dos
que desconstruímos e rejeitamos. processos formativos respeitadores.
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pede que se torne comunicativa a aprendi- zagem – a segunda saliência partilhada pelas
zagem experiencial no âmbito do ser, sentir, gramáticas pedagógicas co-construtivistas.
pensar tal como a interatividade entre os ei- A interatividade dentro de cada pólo dos
xos pede aos proissionais que interpretem o eixos de intencionalidade educativa e a inter-
ensino-aprendizagem em atos comunicativos conetividade entre os eixos permite apontar
entre os quatro eixos. para quatro áreas centrais de aprendizagem
Exempliicando, as identidades plurais experiencial: as identidades, as relações, as
são interpretadas em relação comunicativa linguagens e os signiicados. Importa que as
com as pertenças participativas. As identidades proissionais as entendam em comunicação e
que pertencem e participam com bem-estar compreendam que todas visam o desenvolvi-
são provocadas para a exploração comunicati- mento das identidades pessoais e aprendentes
va em aprendizagens experienciais integradas. que são interativas.
A emergência da narração das aprendizagens As oportunidades de aprendizagem ex-
desenvolve-se em interatividade que se cria na periencial que se criam devem proporcionar
interpretação comunicativa deste eixo com os experiências tanto no desenvolvimento das
outros. identidades e das relações, como na aprendiza-
A comunicabilidade entre os eixos da gem das linguagens e da signiicação. Importa
intencionalidade educativa integra as inalida- que a natureza holística da criança nos desaie
des que deinimos para a educação de infân- a olhar estas aprendizagens num contexto de
cia, tornando-as interdependentes e apelando integração.
a uma aprendizagem holística. A intencionali- Pensamos que é importante e decisivo
dade assim deinida reconhece a identidade da negociar com as crianças (sem “desculpas” de
criança como holística e pede à educação que que são muito pequeninas… são, mas ofere-
respeite essa identidade, criando aprendiza- cem-nos muitos sinais que a ética proissional
gens interdisciplinares, porque a realidade do nos desaia a ler) propósitos nestas áreas, tanto
saber é transdisciplinar e a natureza da criança ao nível das grandes inalidades como ao nível
é holística, aproxima a realidade de forma in- dos objetivos, tanto ao nível das experiências
tegrada (Formosinho, 2015; Formosinho & For- de aprendizagem como da sua avaliação. Pen-
mosinho, 2015b). samos que é importante e decisivo garantir, na
Passo para a segunda dimensão – a de- pedagogia, que o aprender esteja integrado
inição clara e lexível das áreas de aprendi- com o aprender a aprender, porque a forma de
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
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Júlia Oliveira-Formosinho
é, durante toda a educação de infância, tão re- A aprendizagem dos instrumentos cul-
levantes como as experiências de apropriação turais e o desenvolvimento das funções psico-
comunicativa e signiicativa das linguagens lógicas superiores tem lugar no uso reletido,
culturais, dos conteúdos curriculares. Desde o na ação pensada. O mesmo é verdade para a
nascimento e ao longo de toda a vida preciso inteligência, isto é, a inteligência desenvol-
de querer e de poder responder a perguntas ve-se usando-a na relexão que a experiência
tão centrais como: Quem sou eu? Quem é ela/ pede, antes, durante e depois da ação que
ele? Como nos relacionamos? Como me sinto? provoca. A conversação e a comunicação com
Como se sente ela/ele? Como me veem? Como os outros apoiam esta aprendizagem e desen-
os vejo? Onde pertenço? Como contribuo? É volvimento (Formosinho & Oliveira-Formosi-
valorizada a minha participação? É valorizado nho, 2008).
o meu brincar? Brinco e aprendo? Entro na terceira dimensão – os crité-
As duas outras áreas de aprendizagem – rios para a criação de um ambiente educati-
linguagens e signiicados – nascem do cruza- vo provocador de aprendizagens – a terceira
mento de dois outros eixos pedagógicos (o ex- saliência partilhada pelas gramáticas pedagó-
plorar e comunicar e o criar e narrar as jornadas gicas co-construtivistas.
de aprendizagem), projetando aprendizagens Na Pedagogia-em-Participação, experi-
das linguagens culturais, de outros conteúdos mentamos e aprendemos como construir um
curriculares signiicativos. Desde o nascimento ambiente educativo que apoie, como segun-
e ao longo de toda a vida preciso de querer e do educador, o desenvolvimento quotidia-
de poder responder a perguntas tão centrais no das intencionalidades pedagógicas e das
como: qual é para mim o signiicado do que áreas de aprendizagem (Oliveira-Formosinho,
aprendo? Como aprendo? Posso usar os senti- 1998; Formosinho & Oliveira-Formosinho,
dos inteligentes e plurais? Posso usar as inte- 2008; Oliveira-Formosinho & Araújo, 2013).
ligências sensíveis e plurais? Posso comunicar Desenvolvemos longas jornadas proissionais
as minhas explorações? Beneicio de um con- e processos de investigação sobre a diferença
texto comunicativo? Sou observado nos meus da aprendizagem experiencial da criança em
sinais e escutado nas minhas perguntas? Sou ambientes educativos participativos e respei-
acompanhado na narrativa da minha aprendi- tosos e em ambientes tradicionais e rotineiros
zagem experiencial? Sou acompanhado na mi- (Oliveira-Formosinho, 1998; Azevedo, 2009;
nha preocupação de dar signiicado à aprendi- Araújo, 2011; Cardoso, 2012; Machado, 2014).
zagem?
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
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Júlia Oliveira-Formosinho
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A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
O que entendemos por planiicação soli- Esta imagem diz-nos que a proissional
dária? O diagrama 12 constitui um modo ima- exerce uma pedagogia da escuta enquanto vê,
gético de atribuir signiicado ao conceito. ouve, regista as crianças em ação – faz docu-
mentação que posteriormente edita. Faz isto
durante uma semana no im da qual, num dos
tempos da rotina diária, devolve às crianças a
documentação que realizou e editou.
Esta generosa devolução motiva conver-
sas, análises, diálogos, cria novas expectativas
de aprendizagem. Neste processo, negoceiam-
-se compromissos para novas planiicações.
A planiicação deixa de ser um ato isolado da
educadora para ser um ato proissional solidá-
rio com as suas crianças e com o grupo.
Esta forma de desenvolver a planiicação
fecunda a ação que se lhe segue com as vozes
das crianças, porque as inclui. A ação torna-se
mais negociada, mais cooperada, mais ética
e, com isso, ganha signiicatividade. Inicia-se
novo ciclo de documentação.
A documentação desenvolvida pela
proissional constitui-se num patrimônio para
processos relexivos acerca da aprendizagem
experiencial negociada procurando explicar o
aprender em ação.
A documentação tornou-se veículo para
fazer a conexão entre a planiicação solidária, a
ação negociada, a aprendizagem solidária.
Este patrimônio documental desenvol-
Diagrama 12 - Planiicação solidária
vido continuamente e que fala de cada crian-
ça pede para ser incluído no seu portfólio de
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Júlia Oliveira-Formosinho
aprendizagem. A aprendizagem precisa de ser formação com o formador que medeia a apren-
celebrada pelas crianças e suas educadoras, dizagem e permite esperar que os proissionais
pelos pais e outra família, pelo centro de edu- aprendam o valor libertador e democrático de
cação de infância. Os portfólios assim desen- controlar o poder do seu saber e instituir no
volvidos contêm a documentação autêntica da quotidiano, vivido com as crianças, a aprendi-
aprendizagem vivida. Este patrimônio docu- zagem solidária.
mental permite-nos revelar o aprender.
A Pedagogia-em-Participação utiliza vá- Referências bibliográicas
rios meios para proceder a esse revelar e fazer a
análise da documentação: os eixos de intencio- ARAÚJO, S. B.. Pedagogia em creche: Da ava-
nalidade educativa e as áreas de aprendizagem liação da qualidade à transformação praxio-
da Pedagogia-em-Participação, as narrativas lógica. Tese de Doutoramento em Estudos da
das crianças, dos pais e das proissionais quan- Criança – Especialização em Metodologia e Su-
do revisitam os portfólios de aprendizagem, os pervisão da Educação de Infância. Braga: Uni-
instrumentos de observação pedagógica que versidade do Minho. 2011.
permitem ler a documentação. AZEVEDO, A.. Revelando a aprendizagem
Torna-se transparente a relação vital en- das crianças: A documentação pedagógica.
tre ensinar e aprender, documentar e avaliar. Tese de Mestrado em Educação de Infância.
Para a Pedagogia-em-Participação a documen- Braga: Universidade do Minho. 2009.
tação pedagógica serve o desaio de revelar a CARDOSO, G. B.. Criando contextos de quali-
aprendizagem solidária que nasce na planiica- dade em creche: ludicidade e aprendizagem.
ção solidária. Tese de Doutoramento em Estudos da Crian-
Desenvolver a aprendizagem solidária e ça – Área de Especialização em Metodologia
revelá-la é libertador, porque mostra a conec- e Supervisão em Educação de Infância. Braga:
tividade da agência da criança e das proissio- Universidade do Minho. 2012.
nais sendo promissor para a sociedade demo- CRAVEIRO, M. C.. Formação em contexto: Um
estudo de caso no âmbito da pedagogia da in-
crática. fância. Dissertação de doutoramento em Estu-
A formação em contexto como media- dos da Criança. Braga: Universidade do Minho.
ção pedagógica para a utilização de pedago- 2007.
gias participativas revela a constante partilha DEWEY, J.. Experiência e educação. São Paulo:
do poder entre os proissionais em processo de Companhia Editora Nacional. 1971.
108
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
FORMOSINHO, J.. O currículo uniforme pron- Early Childhood Education Research Jour-
to-a-vestir de tamanho único. Cadernos de nal, 20(4), p.591-606. 2012.
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gualde: Edições Pedago. Edição inicial in João and Evaluation for Transformation in Early
Formosinho (Org.) (1987), O Insucesso Escolar Childhood. London: Routledge. 2015.
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cação. Braga: Universidade do Minho. 2007. Editora Paz e Terra. 1970.
FORMOSINHO, J.. Pedagogic documentation: FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: Saberes
Uncovering solidary learning. In J. FORMOSIN- necessários à prática educativa. 15. ed. Coleção
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tribution of praxeological research. European dade do Minho. Braga: Universidade do Minho.
2014.
109
Júlia Oliveira-Formosinho
110
A FORMAÇÃO EM CONTEXTO A MEDIAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL PRAXIOLÓGICO
111
5
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE
FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL
NO BRASIL: UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO
NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
A educação das crianças está diretamente re- atendimento às crianças de 0 a 5 anos no Brasil,
lacionada com a cidadania e, quando o Estado
bem como analisar alguns desaios colocados
garante que todas as crianças serão educadas,
este tem em mente, sem sombra de dúvidas, as para os municípios diante dessa expansão. Os
exigências e a natureza da cidadania resultados aqui trazidos são dados ainda par-
(Marshall, 1967, p. 73).
ciais originados de uma pesquisa em proces-
so de realização. Este é um estudo na área de
Este estudo investiga as políticas públi-
políticas públicas de educação, cujos métodos
cas de educação no Plano Nacional de Edu-
para a coleta de dados envolveram pesquisa
cação (2001), o acesso à educação infantil no
em sítios oiciais do Governo Federal — Minis-
Brasil e os embates da carreira docente para os
tério da Educação (MEC), IBGE (Instituto Brasi-
proissionais da educação infantil, ressaltando
leiro de Geograia e Estatística), INEP (Instituto
suas disposições enquanto política de Estado.
Nacional de Pesquisas em Educação Anísio Tei-
A análise considera a perspectiva de expansão
xeira), investigados para levantamento docu-
de matrículas na Educação Infantil, as Diretri-
mental e estatístico.
zes Curriculares do Curso de Pedagogia (2006)
Entendo a política educacional como
e as políticas de formação de professores para
uma política pública de natureza social, em
esta área, considerando as metas do Plano Na-
que ao analisá-la deve-se considerar o contex-
cional de Educação Lei 10.172/2001.
to socioeconômico, cultural e político em que
O estudo objetivou evidenciar as polí-
é formulada e implementada (Azevedo, 1997).
ticas de formação de professores para a Edu-
As políticas públicas para a formação de pro-
cação Infantil a partir da expansão recente do
fessores da educação infantil serão aqui anali-
115
Débora Teixeira de Mello
sadas nesta perspectiva, e como uma política ções destinadas a acolher as crianças pequenas
que se constrói na ação do Estado. no Brasil assumiram desde o inal do século XIX
Nessa perspectiva, para Jobert & Müller e início do século XX muitas formas, podemos
(1987), ao pensarmos no desenvolvimento das aqui deini-las como creche, escola maternal,
políticas públicas, devemos ter presente que jardim-de-infância, parques infantis, pré-es-
as políticas públicas têm como objeto especí- cola. Historicamente, no Brasil, as instituições
ico de análise o estudo de programas gover- denominadas creches tiveram como função a
namentais, particularmente suas condições de guarda e cuidado da criança pequena1, relega-
emergência, seus mecanismos de operação e da a um segundo plano nas politicas públicas
os prováveis impactos sobre a vida social e eco- de educação. É durante a Primeira República
nômica. Segundo os autores, para compreen- que surgem os primeiros registros da criação
der o Estado, é essencial tomar consciência da de creches e jardins de infância em muitos
complexidade das relações Estado-sociedade; municípios do país. As iniciativas de expansão
é, para isso, preciso: das instituições são de caráter caritativo, ilan-
trópico, ligados a órgãos de assistência social,
[...] primeiramente considerar a heteroge-
saúde ou educacional (Kulmann, 2003). Uma
neidade e as contradições incontestáveis
do Estado em ação que não são produto do maior expansão de atendimento somente
acaso, nem mesmo uma resultante mecâni- acontecerá nos anos 70 e 80 através do Projeto
ca da extensão de seu domínio de atividade.
Mas se explicam pelas exigências múltiplas e de Creches Casulo da LBA (Legião Brasileira de
contrárias às quais qualquer ordem política Assistência)2.
deve responder, e em segundo lugar, a ação
do Estado nunca é uma resposta automática a
situações sociais bem deinidas. Ela exige um
trabalho de aprendizagem e invenção para se
adaptar às incertezas fundamentais que mar-
cam qualquer ação política (Jobert & Muller, 1 No início do século XX, que as ações desencadeadas em
1987, p. 17). prol da infância futuro da pátria estão em consonância com a
busca de modernização da sociedade. O discurso médico-higie-
nista presente nas políticas públicas para a infância até meados
E ao olharmos para a evolução das políti- do século XX, no Brasil, contribuiu para fundamentar as bases de
um sistema de assistência à infância.
cas públicas de expansão e acesso à educação
2 Projeto Casulo – política de Previdência e Assistência Social
infantil no Brasil, é preciso reconhecermos um coordenado pela LBA para ampliação ou implantação de atendi-
mento à criança de 0 a 6 anos. Serviço público de atendimento a
longo caminho que foi percorrido. As institui- essa população por meio de instituições de caráter ilantrópico ou
comunitário por meio de convênio (Campos, 2001; Vieira, 2010).
116
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
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Débora Teixeira de Mello
118
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
Os dados do PNAD em relação à expan- cação de 2001 (PNE 10.172/01). No Plano Na-
são da matrícula em creche e pré-escolas entre cional de Educação (PNE/2001), havia uma pre-
2005 e 2007 evidenciam um aumento signii- visão de ampliação de cobertura para a faixa
cativo desta cobertura matrículas. etária de 0 a 3 anos, tendo como meta incluir
Tabela 2. Taxa de frequência na Educa- até 50% dessas crianças até o inal da década e
ção Infantil, segundo as faixas etárias no Brasil 80% das crianças de 4 a 5 anos.
(1997 – 2007): No diagnóstico da Educação Infantil do
PNE 10.172/01, as condições das instituições
de atendimento às crianças de 0 a 3 anos, em
grande parte creches públicas, ilantrópicas e
assistenciais, já havia uma análise das diicul-
dades enfrentadas pelas instituições que aten-
dem essa faixa etária:
Fonte: Microdados da Pnad (IBGE)
A maioria dos ambientes não conta com pro-
Ao analisarmos os dados do PNAD entre issionais qualiicados, não desenvolve pro-
grama educacional, não dispõe de mobiliário,
2005 e 2007, estes demonstram que a cobertu- brinquedos e outros materiais pedagógicos
ra para faixa de 0 a 3 anos no segmento creche adequados. Mas deve-se registrar, também,
que existem creches de boa qualidade, com
cresceu de 2005 de 13% para uma taxa de co-
proissionais com formação e experiência no
bertura de 17,1% em 2007, uma ampliação de cuidado e educação de crianças, que desen-
4,1% pontos percentuais. E na faixa etária da volvem proposta pedagógica de alta qualida-
de educacional. Bons materiais pedagógicos
pré-escola, de 4 a 6 anos de idade, em 2005, e uma respeitável literatura sobre organiza-
uma taxa de 72% de cobertura passou para ção e funcionamento das instituições, para
77,6%, um percentual de aumento de cobertu- esse segmento etário vêm sendo produzidos
nos últimos anos no país (PNE, 2001).
ra de 5,6 % pontos percentuais.
Os dados evidenciam uma ampliação de
Diante deste cenário, uma das ações do
matrículas ainda lenta, especialmente no seg-
MEC foi incluir no PDE (Plano de Desenvolvimen-
mento de 0 a 3 anos no país, mas que come-
to da Educação, 2007) a destinação de recursos
çam a se modiicar mais rapidamente após a
inanceiros para a educação infantil, aumentan-
implementação do FUNDEB, mesmo que ainda
do sua oferta. E, para qualiicar o atendimento
distante das metas do Plano Nacional de Edu-
119
Débora Teixeira de Mello
nas instituições de educação infantil, foi criado o lheres chefes de família, com maiores percen-
tuais de jovens em situação de pobreza e com
Programa Nacional de Reestruturação e Aquisi-
menores disponibilidades de recursos para
ção de Equipamentos para a Rede Escolar Públi- inanciamento de educação infantil (FNDE/
ca de Educação Infantil (Proinfância). Segundo Proinf/legislação, 2008).
dados do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvi-
mento da Educação, 2008): Com a implementação do Proinfância, os
municípios contaram com o apoio do governo
O Programa foi instituído pela Resolução nº
federal para construção das unidades de educa-
6, de 24 de abril de 2007, e é parte das ações
do Plano de Desenvolvimento da Educação ção infantil, para compra de mobiliário e insta-
(PDE) do Ministério da Educação. Seu objetivo lações. A partir da realização das matrículas das
é prestar assistência inanceira, em caráter su-
plementar, ao Distrito Federal e aos municípios novas crianças, os municípios passaram a rece-
que efetuaram o termo de adesão ao plano ber os recursos do FUNDEB, conforme a Medida
de metas Compromisso Todos pela Educação
Provisória n.562/2012. E houve, também, a pos-
(MEC, 2008). O Programa dispõe de recursos
para a aquisição de equipamentos e mobiliá- sibilidade da discussão de assessoria do MEC aos
rios. Para isso, o MEC exige que os Municípios municípios conveniados, no que se refere a te-
façam a adesão ao Plano de Metas e elaborem
o Plano de Ações Articuladas (PAR) de sua lo- mas relativos à implementação do trabalho pe-
calidade para receber essa assistência (FNDE/ dagógico para essas unidades, a partir das con-
Notícias/2008).
sultorias do Ministério da Educação nos estados.
Com os dados do Censo Escolar MEC/
O MEC e o FNDE estabeleceram critérios
INEP (2010), já é possível veriicarmos uma
para classiicação dos municípios que foram
mudança na ampliação das matrículas na edu-
estabelecidos segundo três dimensões:
cação infantil, pós-FUNDEB e com o programa
a) populacional: prioridade aos municípios Proinfância. Em relação às taxas de matrícula
com maior população na faixa etária consi- na Educação Infantil, destaca-se que, no Bra-
derada, maior taxa de crescimento da popu-
lação nessa faixa etária e com maior concen- sil, a matrícula em creche era da ordem de
tração de população urbana; 2.298.207 e a da pré-escola de 4.692.045, tota-
b) educacional: prioridade aos municípios
com menores taxas de defasagem idade-sé- lizando uma matrícula na Educação Infantil de
rie no ensino fundamental e com maiores 6.756.698 crianças, com um percentual de co-
percentuais de professores com formação em bertura de atendimento de 23,6% em creche,
nível superior;
c) vulnerabilidade social: prioridade dos sendo que dez anos antes, em 2000, esse per-
municípios com maiores percentuais de mu-
120
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
centual era de 9,4% das crianças dessa faixa Em 2009, assistimos à aprovação da
etária. Na pré-escola, em 2010, o percentual Emenda Constitucional 59/09, que garantiu o
de matrícula encontrado era de 80,01% e, no acesso à educação básica obrigatória e gratui-
ano 2000, esse percentual alcançava apenas ta dos 4 aos 17 anos. Essa alteração colocou sob
61,4% das crianças de 4 a 6 anos. responsabilidade dos municípios e do Distrito
Destaca-se, ainda, no Censo 2010, que Federal a ampliação de vagas na educação in-
o maior número de matrículas da creche está fantil e, com prazo até 2016, para que as vagas
sob responsabilidade dos municípios em tor- para o ingresso das crianças de 4 anos sejam
no de 65,2%, num total de 1.345.180 crianças, criadas e o acesso universalizado. No Brasil, essa
seguida da rede privada com 710.917 matrí- nova legislação trouxe uma questão: como o
culas 34,0%. Mas, 361.032 matrículas da rede Sistema Educacional Brasileiro, especiicamente
privada 50,8% são instituições parcialmente as redes municipais, vem enfrentando o desaio
conveniadas com os municípios (Resumo Téc- da expansão da Educação Infantil, especialmen-
nico/Censo Escolar, 2010). te com a inclusão de creches e pré-escolas no
Os dados reairmam a necessidade de sistema de ensino. Desde a LDB 9394/96, a Edu-
expansão de Programas como o Proinfância cação Infantil passou a fazer parte da Educação
para que sejam superadas as alternativas de Básica e tem como princípio que os municípios
baixo custo de conveniamento com institui- e outras instâncias governamentais coloquem a
ções ilantrópicas, comunitárias e privadas pe- Educação Infantil, incluindo a rede de creches,
los municípios. Os dados também evidenciam no sistema de educação e responsabilizem-se
que, apesar da legislação vigente, que as me- pelas redes de creches já existentes. Diante des-
tas de ampliação e acesso à educação infantil te cenário, surgem algumas questões: Como os
ainda não foram atingidas nos dez anos de vi- municípios ampliarão as vagas para o acesso
gência do PNE (2001). Destaca-se também, a a todas as crianças de 4 anos? Como formar e/
necessidade de expansão de vagas, especial- ou ampliar o quadro de docentes para atender
mente na faixa etária de 0 a 3 anos, quando essa demanda, respeitando a legislação em que
ainda estão muito distantes os 23,6% da meta para atuar na Educação Infantil, admite-se como
de 50% de cobertura de matrícula para essa formação mínima o normal/magistério, e prefe-
faixa etária. rencialmente que o professor tenha formação
superior em Pedagogia?
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Débora Teixeira de Mello
122
UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
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Débora Teixeira de Mello
serviços e apoio escolar e em outras áreas nas cursos de Pedagogia. As políticas públicas de
quais sejam previstos conhecimentos peda-
gógicos. formação de professores só terão efetividade,
quando estiverem em consonância com as ins-
Em pesquisa sobre formação de profes- tituições formadoras, neste caso, as universida-
sores, Gatti (2010) analisa que, investigando os des responsáveis pela formação dos alunos do
currículos do curso de Pedagogia em 71 cursos curso de Pedagogia.
presenciais, evidenciou que somente 5,3% do Ainda, no PNE (2001) havia uma meta so-
conjunto das disciplinas obrigatórias dos cursos bre a expansão de cursos com formação espe-
apresentavam conteúdo especíico da etapa da cíica para atuação na Educação Infantil, meta
Educação Infantil. A pesquisa aponta que no es- no. 24: Ampliar a oferta de cursos de formação
tudo das ementas das disciplinas existe maior de professores de educação infantil de nível supe-
preocupação com a oferta das disciplinas de rior, com conteúdos especíicos, prioritariamente
formação geral de teorias políticas, sociológicas
nas regiões onde o déicit de qualiicação é maior,
e psicológicas, do que um embasamento teóri-
de modo a atingir a meta estabelecida pela LDB
co-prático para a atividade de ensino.
para a década da educação. Essa meta ressalta-
Neste estudo, analisando as grades curri-
va os dez anos para ajuste do sistema educa-
culares de três universidades públicas federais
do Rio Grande do Sul, encontramos, nos currí- cional, para sua implementação, possibilitando
culos dos cursos de Pedagogia, com carga ho- que os professores em 10 anos completassem
rária de 3200 horas uma média de 5% a 10% de sua formação em nível superior. Esperava-se
disciplinas que contemplam como conteúdo um investimento na formação de professores
a discussão da ação pedagógica ou docência para a Educação Infantil nos cursos de gradua-
na Educação Infantil. As pesquisas vêm con- ção em Pedagogia, cursos de Especialização
irmar, que apesar da legislação vigente na Lato Sensu na área da Educação Infantil.
implementação de políticas de formação de As primeiras inciativas para atender às
professores para atuarem na Educação Infantil, metas do PNE (2001) de formação inicial e con-
é necessário promover uma discussão com as tinuada dos professores da educação básica fo-
universidades de como contemplar e ampliar o ram explicitadas no Plano de Desenvolvimento
conhecimento da especiicidade de uma ação da Educação (PDE, 2007) com a criação da Po-
pedagógica com crianças de 0 a 5 anos nos lítica Nacional de Formação de Proissionais do
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UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
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Débora Teixeira de Mello
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UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
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Débora Teixeira de Mello
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UM ESTUDO SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DAS METAS DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2001-2010)
GATTI, B.A. Formação de Professores no Brasil. e Sociedade, Campinas. Vol.28, n.100, p.877-
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IBGE. Pesquisa Nacional de Amostra por Do- Brasília: UNESCO, 2005.
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inep.gov.br. Acesso em: 20 de setembro de 2015. Disponível em: <http://www.nossasaopaulo.
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tion. Paris: Puf, 1987. Acesso em 10 de abril de 2012.
129
6
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
131
Maria Carmen Silveira Barbosa
dades etárias e as propostas educativas centra- situada a formação inicial dos professores da
das no binômio educar e cuidar. Educação Infantil, grande parte dos formadores
Estamos, neste momento histórico, ma- não viveram a experiência de serem professores
peando o que conigura esta “peculiar” docên- de crianças pequenas; não distinguem com cla-
cia. Uma docência que se caracteriza por ser reza o que distingue e/ou aproxima uma crian-
indireta, por ser relacional, por não ministrar ça de três anos ou cinco anos e também, muitos
aulas, por não estar centrada em conteúdos deles, não compreendem o que signiica uma
disciplinares, por estar com as crianças e não escola infantil neste momento histórico, com
controlando-as. Isto é, por desconstruir aquilo essas crianças, nessa cultura, e sua contribuição
que por muitos foi identiicado como o cerne, na formação humana. Muitos nem mesmo sa-
o “óbvio”, da docência. Muito ainda precisa ser bem como ela funciona.
feito nas escolas para aprendermos a nomear, a Assim, grande parte dos docentes uni-
partir daquilo que é realizado no dia a dia, quais versitários não tem nem a experiência empíri-
são as práticas e as temáticas pertinentes para a ca da docência com crianças e bebês, nem do-
formação do professor de educação infantil. É, minam as teorias explicativas que contribuem
nesse contexto que levantamos algumas consi- para a relexão sobre a ação pedagógica com
derações sobre o tema trazendo nessas notas, as crianças pequenas na escola.
um começo de conversa, isto é, apresentando A questão do formador dos novos prois-
alguns apontamentos para o diálogo. sionais não ter sido um proissional da educa-
ção infantil, não ter a experiência docente em
escolas que tenham esta oferta educativa, e/
A formação inicial precisa partir da ex- ou não ter investigações com bebês e crianças
periência e de um olhar aprofundado so- pequenas tem sido um fato muito relevante
bre a infância e a educação infantil para a não qualiicação dos novos professores
que se formam no ensino superior com teorias
De acordo com Antônio Nóvoa (2014), e propostas inadequadas para a leitura crítica
a construção de um proissional da educação das realidades onde irão atuar e com ausên-
ocorre tanto na instituição formativa como tam- cia de um repertório teórico e prático para a
construção de proposições inovadoras na área.
bém nas escolas onde esses professores/as se
Alguns acadêmicos, em inal de formação, não
encontram e constroem sua identidade pessoal
possuem informações mínimas sobre a situa-
e a identidade social da proissão no cotidiano.
ção social, econômica e política da infância,não
Nas universidades, locus onde atualmente está
conhecem as grandes questões que envolvem
132
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
o ser criança na sociedade contemporânea, zações nos saberes e fazeres docentes na Edu-
não circulam com intimidade no universo cação Infantil que diicultam de modo relevante
teórico dos estudos do campo da educação o desenvolvimento de práticas com qualidade
infantil e das pedagogias da infância nem mes- social, inovadoras, contextualizadas, criativas na
mo sabem posicionar-se frente as grandes ten- área da pequena infância e mantém, no cam-
sões teóricas da área, desconhecem (e acham po da docência, a contínua repetição, pelas no-
mesmo desnecessário compreender) a legis- vas professoras, das suas experiências pessoais
lação brasileira da Educação Infantil, pois não sem resigniicação, sem aprimoramento, sem
vinculam legislação, políticas públicas em sua rupturas. Um curso de licenciatura que habilita
relação com o dia a dia da escola. para a realização de uma ação pedagógica para
É fundamental reconhecer que o curso a qual não oferece formação é algo de imensa
de licenciatura em Pedagogia tem falhado na irresponsabilidade, pois pressupõe que as alu-
formação dos proissionais da docência em nas cheguem na universidade já qualiicadas,
educação infantil. As crianças de 0 a 3 anos quando isto não é, efetivamente, uma realidade.
estão invisíveis nos currículos, as disciplinas As demais licenciaturas não pressupõem que
metodológicas centram-se em áreas de conhe- os alunos, por terem frequentado a escola, não
cimento acadêmicas nem sempre pertinentes necessitem discutir a didática e a pedagogia,
à creche. A brincadeira e os jogos não tem nem os conhecimentos da disciplina que vão
relevância na formação, pois essas disciplinas ministrar, pois já os estudaram. Ora, na EI os fu-
(jogo, ludicidade, recreação, brincadeira, mú- turos professores tem pouca carga horária para
sica, artes plásticas) quando estão presentes, discutir temas especíicos da docência dos 0 aos
tem caráter complementar, muitas vezes ins- 6 anos, pois a formação que se pretende genera-
trumental, e não são vistos como fundamentos lista acaba por centrar nos temas da gestão e dos
de uma pedagogia especiica; o cuidado não grandes processos educacionais. Por que não na
é tomado como pressuposto teórico e prático gestão da sala? Das relações entre as crianças?
da ação pedagógica na educação infantil; a ali- Entre as proissionais? Entre as famílias?
mentação, o sono, o banho perdem seu caráter Talvez a insistência em realizar a forma-
pedagógico. As culturas infantis não são estu- ção do “dois em um” curso de pedagogia e o
dadas. Essas ausências no Curso de Pedagogia curso normal e/ou magistério, condensado
apontam uma formação inicial extremamente em quatro anos, não seja exatamente a opção
precária para a docência na Educação Infantil. adequada para a formação de bons proissio-
A desconsideração pelas crianças de 0 a 3 nais docentes, licenciados, isto é, professores
anos nos cursos de Pedagogia geram desvalori-
133
Maria Carmen Silveira Barbosa
que atuam junto às crianças1. A questão da re- sas práticas, inadequada para um proissional
lação entre bacharelado e licenciatura se im- que escolhe como tarefa proissional ser pro-
põe também para a pedagogia, pois até pouco fessor ou pedagogo.
tempo não se colocava, já que o pedagogo era Esta proissão tem um caráter híbrido:
um bacharel, e a formação para a docência com relexivo e ativista. Um professor de crianças
crianças estava centrada no curso Normal ou pequenas tem uma relação forte com a ação,
Magistério. É preciso uma relexão contextualiza- com um corpo que se movimenta junto com
da na realidade do nosso país, no que estamos as crianças, com a artesania de um saber que se
vivendo e observando nas escolas. São muitos produz em contexto, com a técnica que se quer
os países que formam dois proissionais da edu- apurada, a elaboração de materiais, com mo-
cação: o professor e o pedagogo, o licenciado e dos de registro das práticas, de organização de
o bacharel, o pedagogo social e o professor. processos sociais, com temas teóricos e práticas
Cada vez temos mais conhecimento so- pouco desenvolvidas na formação inicial. Mudar
bre a Educação Infantil: pesquisas, teses, dis- os modos como a formação inicial é realizada é
sertações, TCCs, que não são conhecidos e que um passo necessário para fundar a experiência
se fossem estudados, divulgados certamente de outra possibilidade de aprender e de ensinar,
fariam avançar o campo da formação. Mas não isto é, mudar a relação com o conhecimento.
há tempo. Fica para a formação continuada. Conteúdo novo em forma antiga desmerece a
Como selecionamos o que é o inicial e o que possibilidade da aprendizagem radical.
cabe a formação continuada?
Além, é claro, que não podemos esque- Uma atividade proissional que implica
cer da nossa tradição escolástica de formação a pesquisa e a militância
proissional, vinda dos seminários e dos cursos
de Filosoia e Teologia, com grande base em Ana Lucia G. de Faria sempre airma,
leituras, escritas e relexões, certamente muito utilizando os autores italianos, que ser profes-
importante na formação de padres, pastores e sor de Educação Infantil implica em tornar-se
ilósofos, mas, talvez, se centrada apenas nes- um Criancista e também um Criançólogo. Am-
pliando e situando em nosso contexto as pala-
vras da autora, seria possível dizer que ser um
1 A Lei LDBEN 9394/96, com seus encaminhamentos foi vi-
sta pelos autores do campo da formação como uma forma de criancista é colocar-se como ator social (peda-
aligeiramento na formação de professores e gestores no Brasil gogo) que analisa a infância no que se refere
e via de subordinação para as politicas neoliberais. Até hoje as
discussões sobre uma base comum na formação do pedagogo e
a sua inserção na sociedade. Estar informado
a docência como base da identidade proissional do pedagogo para compreender o contexto no qual vivem
ainda não encontraram solução (ERNS & p.2).
134
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
as crianças, os produtos culturais que lhes são Reivindicar condições de trabalho, qua-
oferecidos, as situações de vida das crianças no lidade no trabalho, legislações democráticas,
país, seus direitos legais, a precariedade que a igualdade social entre as crianças através do
muitas vezes atinge suas vidas, isto é, apren- direito de todas as vagas na Educação Infantil
der a analisar a criança em contexto e a tomar assumindo o compromisso com uma ética de
posicionamentos frente a estas situações a responsabilidade frente à criança e à socieda-
de. Hoje, por exemplo, precisamos nos posicio-
partir do lugar onde está inserido: a escola de
nar sobre vários aspectos da vida das crianças,
educação infantil. O que pode a escola frente a
pois as relações econômicas, especialmente o
esta situação? Como ela pode melhorar? Como
neoliberalismo, com o consumo, a competitivi-
pode contribuir para que mais direitos sejam dade, o aceleramento e a produtividade estão
garantidos às crianças? Quais novos direitos modiicando a situação de vida das crianças
podem ser garantidos às crianças podem ter e com isto as demandas ou exigências para a
para que suas infâncias sejam mais desaiantes, educação infantil. Como vamos respondê-las?
alegres, instigantes? Ser um Criançólogo signiica optar por
Esta atitude exige participar de um co- estudar as crianças pequenas e acompanhar
letivo de relexão – escola, sindicato, grupo suas vidas, seus começos, suas primeiras vezes
de estudo e formação – para a construção de ... estar junto com elas como um pedagogo.
ações sociais coletivas que realmente tenham Lembrando que a pedagogia é sempre uma
signiicado social e também para cada criança. maneira de interferir na vida das crianças e que
Um grupo que tenha pontos de vista diversos e esta ação é um ato de grande responsabilida-
de, sendo também um privilégio, pois aponta
possa analisar a complexidade do tema. Eviden-
caminhos, faz escolha, sugere modos de ser e
ciar o quanto as ações, as propostas e os proje-
se colocar no mundo.
tos realizados nas escolas de educação infantil
Um estudioso de bebês e crianças e da
ampliam os mundos das crianças pequenas, Educação Infantil precisa compreender as suti-
oferecendo para elas experiências de vida co- lezas, as minúcias da prática pedagógica, esta
letiva, de aprender a conviver com a diversida- invisível sabedoria da inseparabilidade entre
de social, tendo a comunidade e os pais como ação educativa e de cuidado na escola de edu-
os maiores aliados. Participar da elaboração de cação infantil. Gostar de crianças, ter desejo de
políticas públicas integradas para a infância e estar com elas, conversar, compartilhar tem-
militar pela defesa do direito das crianças - de pos, espaços e aventuras. Sentir-se desaiada a
proteção, provisão e participação – na família, compreendê-las nas suas próprias línguas.
na escola, na vida são tarefas de um criancista!
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Maria Carmen Silveira Barbosa
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TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
fessoras e professores também têm. Precisamos público. Distinguindo crenças e gostos pes-
discutir como essas diversidades pessoais se tra- soais, de conhecimentos e saberes. Não se está
duzem e se concretizam no momento da prática propondo a “higienização” da vida pessoal, ao
pedagógica, pois elas signiicam modos distin- contrário, justamente reivindicando trazê-la a
tos de educar e criar possibilidades pedagógi- tona, para releti-la, e para que as característi-
cas e oportunidades de aprendizagens para as cas pessoais possam também se desenvolver
crianças. Ao negá-las, ou desmerecê-las por não nas novas experiências formativas, nos contex-
serem acadêmicas, elas operam sobre os profes- tos de trabalho, aprofundando as experiências
sores sem mediação, sem conscientização, sem prévias. Se gosto de samba, é possível justiicar
a possibilidade de revisão e transformação. sua presença na escola por inúmeros motivos,
Além disso, na docência o professor/a mas meu gosto pessoal não pode impedir o
leva consigo o seu repertório artístico, cultural, acesso das crianças a outros modos de produ-
cientíico, tecnológico, ambiental que consti- ção musical da população brasileira. Gostar de
tuiu em sua biograia e quando chega frente samba não impede outras escutas.
a um grupo de crianças em uma escola, essa Zeichner (2010), ao apresentar as novas
formação anterior, seus posicionamentos, suas epistemologias sobre a formação de profes-
escolhas (que não são neutras) dependem das sores, mostra que o conhecimento acadêmico
oportunidades que tiveram anteriormente. A não é a única fonte de conhecimento. Outros
universidade tem um profundo compromisso espaços, outras experiências, outras concep-
com esta formação ampliada, especialmente ções podem contribuir para a formação. No
tendo em vista que grande parte dos alunos Brasil, podemos pensar o quanto a educação
de pedagogia, candidatos a professor no Brasil, popular, a educação proposta nos centros cul-
tiveram poucas oportunidades formativas tan- turais, as metodologias dos movimentos so-
to na escolarização formal como nos restritos ciais, as experiências das escolas, os processos
espaços culturais das cidades brasileiras. audiovisuais de ativistas sociais e culturais po-
Os cursos de pedagogia e a formação deriam enriquecer a formação dos professores
continuada na escola necessitam visibilizar que irão trabalhar, em sua maioria, nas escolas
esta experiência de vida de modo relexivo. públicas. Oferecer outros conhecimentos que,
Fazê-los pensar sobre aquilo que consideram como airma o autor, coexistam em plano de
como algo natural, aquilo que tem como cren- igualdade com o conhecimento acadêmico
ça, pois analisando e distinguindo a crença que tradicionalmente se oferecem nos campus
pessoal – no âmbito privado – podem resig- universitários.
niicá-las nas ações pedagógicas no espaço
137
Maria Carmen Silveira Barbosa
Para ser relexivo é preciso aprender a pedagógicas, faça a leitura crítica dos grandes
construir perguntas, não apenas dar respos- pedagogos e não apenas rápida, ilustrativa,
tas. Quando um professor conta uma história como se esta obra fosse algo do passado. Um
bacana, uma poesia que sensibiliza e faz pen- estudo sério e contextualizado da pedagogia.
sar ou então quando se diverte com as coisas É impossível que Freinet, Montessori, Pistrak,
que as crianças produzem na escola, ele tam- Dewey e tantos outros sejam ministradas em
bém aprende na escola, conhece algo novo, uma única aula de história da educação, como
constrói novos desaios proissionais, relete referência, não, eles são os clássicos da peda-
sobre a docência. Quando ele escreve, relete, gogia e suas ideias e práticas podem, ainda
documenta, apresenta, torna público aquilo hoje, fazer pensar sobre a escola.
que realizou se torna mais proissional e enfa- O ensino e a extensão nas escolas através
tiza sua professoralidade. Isto é, dá estatuto ao de projetos como PIBID e outros mostram que
saber da experiência, reconhece a alteridade a relação universidade e escola pode ser muito
dos/as professores, e cria uma docência rele- mais orgânica e com ênfase na compreensão e
xiva. Esta operação precisa ser feita com as/ na produção de novos modos de fazer-docên-
os professoras/es para que elas/es aprendam cia. Por im, a pesquisa sobre a docência, sobre
a pensar na diversidade e não apenas aceitar processos de aprendizagem, sobre as meto-
normas sem compromisso de compreendê-las. dologias, sobre a relação com a comunidade
A concepção equivocada da docência, e a família, sobre as culturas infantis e juvenis,
ainda tão presente nos debates sobre o curso sobre a relação da cultura com a educação, so-
de pedagogia, airma que se o mesmo icasse bre modelos curriculares, a revisão dos conhe-
voltado para a docência, seria centrado apenas cimentos aprendidos na escola - que no futuro
em “conteúdos a serem transmitidos”, sendo serão propiciados as novas gerações - amplia a
assim, pouco crítico e centrado em tarefas. É visão de docência e a inventa em sua profundi-
impossível aceitar que pesquisadores possam dade técnica e abrangência política, cientíica,
continuar tendo esta visão que deine a técni- pessoal e cultural. Uma tarefa difícil, complexa,
ca, o como fazer, as escolhas metodológicas, e que esvaziamos de sentido ao acreditar que a
os modos de organização de tempo e espaço formação generalista fosse suiciente.
como temas simples e fáceis que não precisam É fundamental compreender que a
de discussão. A docência com crianças, jovens docência na educação infantil, como já foi dito,
e adultos é um ato político e técnico de grande seja compreendida como uma construção so-
complexidade. Exige uma formação onde o en- cial e geracional, que está sendo pensada e
sino aprofunde a relexão sobre as experiências produzida hoje, por todas nós, disputando ou
138
TRÊS NOTAS SOBRE FORMAÇÃO INICIAL E DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL
139
7
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Viviane Drumond
A partir das Diretrizes curriculares nacio- las. Conhecimentos que, na maioria das vezes,
nais do curso de Pedagogia (Brasil, 2006), a for- não são abordados no curso de Pedagogia,
mação de professores(as) de Educação Infantil pois este, de modo geral, valoriza a cognição
passou a ser contemplada nos cursos univer- e a aprendizagem de conteúdos, em detrimen-
sitários, com a obrigatoriedade do estágio to do movimento, do corpo, das brincadeiras,
docente em creches e pré-escolas. Assim, os da ludicidade, das invenções, que são próprios
cursos de Pedagogia viram-se diante do desa- das crianças.
io de reformular seus projetos curriculares e Discutir a formação de professor(a) de
propor cursos que formem os(as) estudantes crianças pequenas envolve uma complexidade
para três tipos de docência: a docência para a de conhecimentos. A docência na Educação
creche, para a pré-escola e para os anos iniciais Infantil constitui-se em um campo em constru-
do Ensino Fundamental. ção, com características peculiares, que extra-
Nesse cenário, os cursos de Pedagogia pola o modelo de professor(a) da escola, pois
passaram a discutir a docência e o estágio cur- tem, no binômio educação e cuidado, as mar-
ricular nos anos iniciais do Ensino Fundamental cas da sua especiicidade. Na educação das
e também na Educação Infantil. E isso signiica crianças pequenas são as relações entre os su-
dotar o conteúdo das disciplinas que integram jeitos: adulto-adulto, adulto-criança e criança-
o curso de conhecimentos especíicos sobre -criança que conferem sentido à existência das
as crianças pequenas em espaços coletivos instituições educativas. Ser professor(a) de cre-
de educação, como as creches e as pré-esco- che ou de pré-escola não é o mesmo que ser
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Viviane Drumond
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A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
prolongado, revelou-se uma experiência extre- cadas sob os olhos da crítica. Por im, o terceiro
mamente signiicativa na formação de profes- movimento é assinalado pela força da criança.
sores(as) de crianças pequenas. Assim, o está- A política cognitiva inventiva é indicada como
gio foi entendido e cada vez mais reconhecido abertura para as virtualidades.
como momento central da formação de profes- Assim, a criança lança-se na aventura da
sores(as) de crianças pequenas. criação, da invenção. Não a criança empírica,
mas a criança das formas, ou seja, a criação, a
Como são formados os(as) professo- inventividade, o movimento involutivo que, ao
res(as)? dissolver as formas criadas, abre espaço para a
criação de formas outras. A criança é associa-
Ao tratar da formação de professores(as) da à inocência do devir, que não necessita de
de Educação Infantil, o estudo buscou pro- motores externos – deuses ou leis –; que não
blematizar o que se costuma entender como se move por falta, insuiciência ou penúria, mas
formação de professores(as), ou seja, como al- por efeito da plena positividade de um desejo
guém se torna professor(a)? Como são forma- criador, que se manifesta em um eterno e in-
dos os(as) professores(as)? A partir de relexões cessante jogo de construção e destruição (Fer-
apresentadas por Clareto (2011), Chauí (1980), raz, 2002 apud Clareto, 2011).
Fernandes (1987) entre outros autores(as). A criança é invenção; nesse sentido, a
Na perspectiva de responder tais ques- aprendizagem é compreendida como cultivo,
tionamentos, Clareto (2011, p. 52) lança mão, como inventividade. Aprender como cultivo e
como recurso de escrita, das três metamorfo- não como aquisição de conhecimento. Apren-
ses anunciadas pelo Zaratustra de Nietzsche, der não como resolução de problemas, mas,
que identiica três modos pelos quais pode- antes, como problematização, como invenção
mos olhar a formação do(a) professor(a): “o mo- de problemas. “A invenção não é um aconteci-
do-camelo, o modo-leão e o modo-criança”. O mento espontâneo ou instantâneo, ela precisa
primeiro aponta uma formação conteudista: os ser cultivada: a invenção implica uma duração,
conteúdos, as metas, os objetivos e as avalia- um trabalho com restos, uma preparação que
ções são colocados como verdades que preci- ocorre no avesso do plano das formas” (Kas-
sam ser carregadas e transmitidas. O segundo trup, 1999 apud Clareto, 2011, p. 58).
movimento é marcado pela crítica: os conteú- Desse modo, para Clareto (2011), apren-
dos, as metas, os objetivos e as avaliações são der não signiica sair de um estado no qual não
tratados como verdades que precisam ser colo-
143
Viviane Drumond
se sabe algo, para um estado no qual se passa ao optar pelo humanismo, não criticaríamos
a saber esse algo. Não é o “estado de se saber a ideologia. Por outro lado, aprofundar a ideia
algo”, mas o processo, a passagem, o momen- da educação como conscientização é reavaliar
to. Assim, “aprender vem a ser tão-somente o a questão da conscientização. Uma pedagogia
intermediário entre não-saber e saber, a pas- crítica deveria interrogar esse risco cotidiano:
sagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que de onde vem e por que vem a sedução de tor-
aprender, ainal de contas, é uma tarefa ininita nar-se guru? De onde vem e por que vem em
[...]” (Deleuze, 2006 apud Clareto, 2011, p. 53). nós e nos(as) alunos(as) o desejo de que haja
Também Chaui (1980) problematiza a um mestre, o apelo à igura da autoridade?
formação de professores(as) quando pergun- Buscando responder a esses questio-
ta: o que é formar? O que é ser o(a) profes- namentos, as ideias de Florestan Fernandes
sor(a)? Para a autora, o(a) professor(a) trabalha (1987) nos diz em que a universidade deveria
para suprimir a igura do(a) aluno(a) enquan- tender para a pesquisa, e não para o ensino,
to aluno(a), isto é, o trabalho pedagógico se para não ser uma mera reprodutora de saber,
efetua para fazer com que a igura do(a) estu- sem criatividade e originalidade, para ser ca-
dante desapareça. Para isso, o(a) professor(a) paz de promover a mudança social. Para esse
precisa fazer um esforço cotidiano para que pensador, o(a) professor(a) não pode estar
seu lugar permaneça vazio, pois seu trabalho alheio(a) às mudanças. A mudança, em qual-
é tornar possível o preenchimento desse lugar quer sociedade, é um processo político. E o(a)
por todos aqueles que estão excluídos dele e professor(a) deveria realizá-la nos dois níveis
que aspiram por ele e pelo qual não poderiam – dentro da escola e fora dela, ou seja, tem
aspirar se já estive preenchido por um senhor que fundir seu papel de professor(a) ao seu
e mestre (Chaui, 1980). papel de cidadão(ã).
Para aprofundar essa discussão, a pes- Fernandes (1987) retoma uma antiga re-
quisadora citada estabelece uma oposição lexão de Marx: quem educa o(a) educador(a)?
entre educação como formação e como cons- O(A) professor(a) educa os outros, mas ele(a)
cientização. Na visão humanística que enxer- também é educado(a), ou seja, no processo de
ga o(a) aluno(a) como im, a educação passa educar, se educa, se reeduca. O(A) educador(a)
a ser um instrumento de conhecimento e de está se reeducando, em grande parte, por sua
transformação do real, mas, segundo a auto- ação militante. Nessa situação, o(a) professor(a)
ra, essa não seria uma alternativa viável, pois, se vê obrigado(a) a redeinir sua relação com a
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A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
escola, com o conteúdo da educação, sua rela- geralmente são ministradas teorias prescriti-
ção com o(a) estudante, com os pais e as mães vas, deixando para o inal do curso, no estágio,
dos(as) estudantes e com a comunidade. o momento de colocar em prática os conheci-
Nessa perspectiva, o estágio assume es- mentos. Este estudo sobre o estágio busca en-
paço central na formação de professores(as), frentar as questões dos saberes da prática na
pois permite o contato direto com o contexto formação dos(as) estudantes, ao reconhecer
de educação de crianças pequenas em creches o estágio como campo de produção de saber,
e pré-escolas, o que favorece a pesquisa, a pro- na medida em que articula os conhecimentos
dução de conhecimentos pedagógicos e a ino- teóricos e práticos.
vações no trabalho docente. Freitas (1996) destaca o estágio como
o lócus privilegiado na formação de professo-
O estágio na formação de professo-
res(as). Traz importantes relexões para discutir
res(as) de Educação Infantil
os estágios no curso de Pedagogia; e toma o
trabalho docente como base para a formação
A pesquisa de Silva (2005) sobre os cur-
do pedagogo, enfrentando a suposta dicoto-
sos de Pedagogia e sobre a formação de profes-
mia entre teoria e prática. A autora pontua que
sores(as) para a Educação Infantil sinaliza para
o curso de Pedagogia, em geral, é marcado por
a importância dos estágios como um espaço a
uma estrutura propedêutica, com um acúmulo
mais na construção da Pedagogia da Educação
de disciplinas teóricas que não contemplam o
Infantil. A inclusão dos estágios na Educação
contato do(a) estudante com a realidade das
Infantil possibilita a discussão e a elaboração
escolas públicas. E acabam recaindo sobre os
de um conjunto de conhecimentos, a respei-
estágios, geralmente, no inal do curso, pro-
to das crianças pequenas e da docência nessa
blemas que deveriam ter sido enfrentados du-
etapa educacional, a partir do contato com o
rante todo o curso, principalmente no que diz
cotidiano das creches e das pré-escolas e com
respeito à articulação entre teoria e prática.
práticas educativas de professores(as) que
Segundo a autora, as próprias condições
atuam nessas instituições.
da produção do trabalho do(a) professor(a), his-
Os estudos sobre o estágio (Infantino,
toricamente, contribuíram para a valorização da
2013; Freitas, 1996) apontam para a fragmenta-
teoria, em detrimento da prática, reproduzindo
ção dos conhecimentos teóricos e práticos nos
a divisão entre o trabalho intelectual e o traba-
cursos de formação de professores(as), onde
145
Viviane Drumond
146
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
res(as), no dia a dia das creches e das pré-es- o tema das crianças e da relação entre os(as)
colas, que os(as) estudantes têm sua atenção professores(as) e as crianças, as estagiárias de
despertada para questões que passariam des- Educação Infantil envolvidas na pesquisa es-
percebidas, caso fossem abordadas apenas do creveram:
ponto de vista da teoria, com a leitura de tex-
tos, por exemplo. A respeito dos conhecimen- Percebi que as crianças são ativas, só que elas
não são respeitadas dentro do espaço delas.
tos construídos nos estágios, uma estagiária Tudo é decidido pela professora (E. 6).
fez o seguinte comentário: “Pra mim contribuiu
enormemente, por que tirei muitas provas, con- O que observei é que tem hora que as crian-
ças querem brincar e elas não podem brincar,
segui ver muitas relações entre o que vi na práti- pois, se pegar um brinquedo, são forçadas a
ca com as leituras” (E1. 6). deixar (E. 17).
Então, a partir das falas das estagiárias, é
A minha visão sobre a Educação Infantil mu-
possível inferir que é pelas experiências e vivên- dou a partir desse contato com as crianças.
cias nos espaços da Educação Infantil, e, parale- Antes pensava que as crianças tinham que
sair alfabetizadas, com os estudos aprendi
lamente a esses momentos, pelo contato com
que é uma fase de descobertas, brincadeiras e
leituras e discussões na universidade que os(as) um aprendizado diferenciado (E. 12).
estudantes elaboram seus conhecimentos.
Ao abordar a experiência italiana de for-
A observação permitiu conhecer as mação de professores(as) de Educação Infantil,
crianças Mantovani e Perani (1999, p. 90) observam que,
nos primeiros anos, pela escassez de materiais
Mantovani e Perani (1999) consideram que retratassem experiências de docência em
que, desde os primeiros cursos, as discussões creches e pré-escolas, muitos conhecimentos
sobre a criança e os estágios se mostraram es- precisaram ser construídos na prática. Assim,
senciais para a formação de docentes. O es- desde os primeiros cursos, começou a aparecer
tágio é o momento em que o(a) estagiário(a) com frequência o problema “da observação,
observa a criança, é sua primeira ocasião de como base acessível a todos e como motiva-
contato com os(as) adultos(as) que trabalham ção a aquisição de informações teóricas mais
na instituição e também com as famílias e a complexas”.
comunidade em geral. Especialmente sobre De acordo com estas autoras, no processo
de construção de uma proposta que contribuísse
1 A letra E corresponde a palavra Estagiária.
147
Viviane Drumond
para preparar satisfatoriamente os(as) professo- as crianças pequenas, pois se mostra um ins-
res(as) para atuar nas creches, a observação como trumento útil para conhecer mais sobre elas.
metodologia se tornou o centro do debate sobre A observação é a base para fundamentar as
a pesquisa e sobre a intervenção na primeira in- direções do trabalho educativo com as crian-
fância. Observar foi natural e intuitivo para quem ças e, de qualquer forma, é uma competência
teve que atuar na creche, sem experiência e sem necessária para quem trabalha com as crianças
material à disposição. “Observar em situação na- pequenas. O(A) professor(a) deve saber captar
tural, considerando o contexto ambiental e de todos os sinais comunicativos que a criança
relação, é hoje a principal proposta metodológi- manifesta. A observação determina o tipo de
ca da pesquisa sobre os pequenos” (Mantovani; intervenção a ser realizada e, nesse sentido, re-
Perani, 1999, p. 94). E acrescentam: presenta uma atitude de respeito para com a
criança (Mantovani; Perani, 1999).
Nós acreditamos que, para o educador, apren- Também Infantino (2013), ao discutir os
der a observar a criança, identiicar suas mo-
dalidades comunicativas mais elementares, estágios como momento de interação entre o
instaurar um relacionamento comunicativo saber acadêmico e o saber produzido na práti-
especíico com ela, sejaas bases da preparação
ca, nas instituições de Educação Infantil, abor-
pedagógica. Uma vez que o adulto entende
isto e continua aprendê-lo pela observação, da a observação como metodologia de traba-
quase sempre ele descobrirá qual é o jogo ou o lho. Segundo a autora, a observação durante o
material mais adequado para uma determina-
da criança ou para um determinado grupo em
estágio não inda na elaboração de protocolos
um determinado momento, o que dar à crian- de observação para um simples exercício téc-
ça, o que dizer a ela, como organizar ou intervir. nico, mas é proposta como método:
Quando o adulto aprende a ver a criança, sa-
bendo que ela é um ser ativo, conseguirá mais
facilmente notar como ela se relaciona com o A observação como método implica uma
espaço, com os objetos, com os outros, vai se atitude educativa fundamental, baseada na
dar conta de como acontece a interação com o capacidade de pensar e reletir, enquanto os
grupo (Mantovani; Perani, 1999, p. 93). estagiários se envolvem como atores na ação
em curso; sustenta uma atitude de lúcida
presença proissional descentralizada, para
Mas, mesmo nos dias atuais, em que as propiciar comportamentos e intervenções
educativas que, fundamentados na escuta e
pesquisas avançaram e oferecem informações
na compreensão profunda daquilo que está
e referências sobre as crianças em espaços co- acontecendo no contexto e com as outras
letivos, a observação continua a ser uma exi- pessoas, possam ser realmente um benefício
para as crianças (Infantino, 2013, p. 22).
gência para aqueles(as) que trabalham com
148
A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
to, a ter um progressivo autocontrole e também dentro e de fora da instituição): relações entre
uma atitude sem inferências excessivas em rela- os(as) professores(as) e as famílias, comunida-
ção a criança” (Mantovani; Perani, 1999, p. 94). de; relação adulto-adulto (de dentro da institui-
Assim, na formação inicial do(a) profes- ção): relações entre proissionais docentes que
sor(a) de Educação Infantil, deve ser previsto o atuam nas creches e pré-escolas, considerando
estágio por um período de tempo prolongado, a formação e as relações de poder; relação adul-
pela importância do contato com a prática edu- to-criança (políticas): relação entre os adultos e
cativa, pela necessidade de aprender a observar as crianças, nas políticas públicas, na legislação,
atentamente as crianças nas instituições. Além nos documentos oiciais; relação adulto-crian-
disso, a observação se mostra um método útil ça (pedagogias): relação entre os(as) professo-
para pesquisa e relexão sobre o trabalho reali- res(as) e as crianças, a partir das pedagogias e
zado nas creches e nas pré-escolas. das pesquisas; relação criança-criança: relações
entre as crianças. Além destas cinco categorias
A Pesquisa com o Estágio de Educação principais, outras três, que perpassam as de-
Infantil
2 Estas categorias foram trabalhadas, inicialmente, pela Pro-
fessora Drª Ana Lúcia Goulart de Faria, nos estágios de Educação
A pesquisa foi realizada com o curso de Infantil, no Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da
Unicamp. E, também, são discutidas no livro Culturas infantis em
Pedagogia da Universidade Federal do Tocan- creches e pré-escolas: estágio e pesquisa, com a organização do
Gepedisc – Culturas Infantis (2011).
149
Viviane Drumond
mais, foram consideradas na análise dos dados: das pré-escolas? As proissionais docentes da
o espaço físico, as brincadeiras infantis e as rela- Educação Infantil mantêm relações de colabo-
ções de gênero e étnico-raciais. ração ou de hierarquias entre elas? As práticas
Além dos registros descritivos sobre a pedagógicas têm como eixo norteador as brin-
unidade de Educação Infantil onde o estágio foi cadeiras e as ludicidades ou buscam antecipar
realizado, constam nos cadernos de estágio ela- a escolarização? Como os(as) professores(as)
borados pelas estagiárias: uma legenda com as cuidam das crianças e as educam no dia a dia?
categorias de análise do estágio; a planta baixa A organização dos tempos e dos espaços nas
da unidade de Educação Infantil; fotograias do instituições permite que as crianças produzam
espaço físico, impressas ou gravadas em um CD. as culturas infantis? Como os(as) adultos(as) e
Assim, o estágio na Educação Infantil as crianças convivem com as diferenças e di-
analisa o cotidiano das creches e das pré-es- versidades nas unidades de Educação Infantil?
colas a partir das diversas relações que se es- O tema das políticas públicas de Educa-
tabelecem nesses espaços, que contam com a ção Infantil é discutido no estágio, quando se
presença de crianças e adultos, e não de uma observa a relação adulto-criança, a partir da le-
única relação: professor(a)-criança. Portanto, gislação, dos documentos oiciais e das políti-
observa e analisa as seguintes relações: pro- cas públicas construídas para a primeira etapa
fessores(as)-famílias, professor(a)-professor(a), da Educação Básica e a forma como os direitos
professor(a)-criança e criança-criança. das crianças são ou não garantidos nas políti-
Desse modo, as discussões promovidas cas municipais e no dia a dia das creches e das
nos estágios revelam a compreensão das esta- pré-escolas.
giárias sobre as políticas de Educação Infantil A LDB (Brasil, 1996) deiniu que todos(as)
dos municípios envolvidos nos estágios, bem os(as) professores da Educação Básica devem
como as propostas pedagógicas que vêm sen- ter formação, preferencialmente, em nível su-
do construídas no cotidiano das creches e das perior, sendo admitida a formação em nível
pré-escolas. Alguns questionamentos foram médio, na modalidade Normal, para a Educa-
levantados, a partir dos conhecimentos sobre
ção Infantil e para os anos iniciais do Ensino
a Educação Infantil abordados nos estágios:
Fundamental. Assim, as estagiárias procuraram
a relação entre os três atores da Educação In-
analisar até que ponto a formação das prois-
fantil – professores(as), crianças e pais/mães
sionais que atuam com as crianças atende às
– está ocorrendo nos espaços das creches e
exigências da legislação. Vejamos este relato:
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A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
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Viviane Drumond
é que observou entre elas uma relação de tra- meninos, vai trocar fraldas. E, quando ela che-
ga lá na creche, que falam pra ela: “Você vai
balho de cooperação e parceria, pois são duas dar aula aqui”, ela se depara com um monte
proissionais que fazem o mesmo trabalho, ape- de criancinhas que ela vai ter que dar banho,
nas dividem as tarefas entre elas. O signiicado vai ter que tirar fralda de cocô, e às vezes ela
fala: “Mas eu não estudei pra isso, né?” (E. 4).
de relações de poder e hierarquia entre as pro-
issionais da Educação Infantil foi um dos assun-
O trabalho com os estágios buscou
tos debatidos nos encontros com as estagiárias,
observar as crianças, as relações que se esta-
que inicialmente não percebiam as disputas e as
belecem entre elas como grupo. O registro das
hierarquias nas relações docentes, pois, aparen-
observações evidencia o protagonismo infantil
temente, a convivência entre elas mostrava-se
no dia a dia das creches e das pré-escolas. As
“harmoniosa”. Mas, aos poucos, foi sendo cons-
estudantes observaram que as crianças fazem
truindo um entendimento com as estudantes,
coisas inusitadas, surpreendendo a professora,
de modo que percebessem as disputas, os con-
mas, em outros momentos, se comportam exa-
litos e as divergências que permeiam as rela-
tamente como os adultos querem, reprodu-
ções de trabalho no espaço educativo.
zindo comportamentos. As crianças inventam
A relação entre o educar e o cuidar, como
muitas maneiras para se expressar, para esta-
processos indissociáveis (Sayão, 2010), foi pro-
belecer laços e comunicação com as outras:
blematizada nos estágios. As estagiárias dis-
uma criança belisca a outra, uma abraça outra
cutiram a importância da formação inicial das
repentinamente, crianças maiores cuidam das
docentes, questionando até que ponto os(as)
menores, meninos e meninas constroem re-
professores(as) estão sendo preparados(as) para
lações de amizade. Há criança solidária e cari-
atuar com as crianças pequenas nas creches e
nhosa, crianças que gostam de brincar juntas,
nas pré-escolas, considerando a especiicidade
criança que quer icar sozinha, sem fazer nada.
dessas instituições. Os relatos a seguir abordam
o educar e o cuidar na Educação Infantil e reve- A cultura que as crianças já estão produzindo,
lam que, para muitos(as) estudantes do curso já considerada por Florestan Fernandes, a cul-
de Pedagogia, ainda não está claro qual é a fun- tura infantil, aquela que se expressa por pen-
samentos e sentimentos que chegam até nós,
ção do(a)docente de crianças pequenas: não só verbalmente, mas por meio de ima-
gens e impressões que emergem do conjunto
A professora da creche que fez o magistério, a da dinâmica social, reconhecida nos espaços
pedagogia, em momento nenhum a gente es- das brincadeiras e permeada pela cultura
tudou dizendo que a professora vai banhar os adulta, não se constitui somente em obras
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A CENTRALIDADE DO ESTÁGIO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS) DE EDUCAÇÃO INFANTIL
materiais, mas na capacidade de as crianças descritivo dos espaços, planta baixa da unida-
transformarem a natureza e, no interior das
de (desenhada pela estagiária ou cópia) e fo-
relações sociais, de estabelecer múltiplas re-
lações com seus pares, com crianças de outras tograias. Também nos seminários em que dis-
idades e com adultos, criando e inventando cutimos os estágios, a organização do tempo
novas brincadeiras e novos signiicados (Pra-
do, 2005, p. 101). e do espaço das creches e das pré-escolas foi
apresentada em fotograias ou vídeos, produ-
As crianças são ativas, constroem rela- zidos pelas estagiárias. Elas foram orientadas
ções muito peculiares de coniança, de respei- a observarem a estrutura física das unidades
to e de amizade, durante as brincadeiras. Estar e cada um dos espaços internos e externos: as
juntas e fazer as coisas em pares ou grupos, salas, os banheiros, o refeitório, os corredores,
confrontar-se, compor brincadeiras coletivas, o pátio, o parque, a brinquedoteca, a cozinha,
cuidar dos amigos e das amigas menores e a lavanderia, a sala de professores(as), a sala
zelar por eles, reproduzir e também inventar a da direção, etc., pois a organização do espaço
partir da observação dos maiores ou dos me- relete a intencionalidade pedagógica dos(as)
nores, associar o prazer da brincadeira às par- professore(as), como observa Faria (1999, p. 69-70):
cerias e amizades são comportamentos relata- Uma pedagogia da educação infantil que ga-
dos com constância nos cadernos de campo: ranta o direito à infância e o direito a melho-
res condições de vida para todas as crianças
Encontrei as crianças sentadas conversando (pobres e ricas, brancas, negras e indígenas,
entre elas, enquanto mais crianças iam che- meninos e meninas, estrangeiras e brasileiras,
gando (C.1). portadoras de necessidades especiais etc.)
deve, necessariamente, mediante nossa di-
Dois irmãos icavam o tempo todo juntos, não versidade cultural e, portanto, a organização
se separavam por nada. E uma monitora falou do espaço, contemplar a gama de interesses
que não conseguia separá-los por nada (C.3). da sociedade, das famílias e prioritariamente
das crianças, atendendo às especiicidades de
Uma menina e um menino que aparentam ter cada demanda a im de possibilitar identida-
uma relação carinhosa sentaram próximos e de cultural e sentimento de pertencimento.
icaram conversando (C. 20). [...] Cada grupo de proissionais de uma de-
terminada instituição organizará o espaço de
acordo com seus objetivos pedagógicos, de
Outra categoria abordada nos estágios modo a superar os modelos rígidos de escola,
é o espaço físico das unidades de Educação de casa e de hospital.
Infantil, que foi observado e registrado, nos
cadernos de campo, de várias formas: registro
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR
DA POSSIBILIDADE
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
pedagógico às redes e sistemas de ensino na im- cada pólo, e atividades dentro das unidades que
plementação do PROINFÂNCIA em municípios estavam recebendo acompanhamento in loco.
da região centro, noroeste e norte do Estado do Tais atividades consistiam em: realização
Rio Grande do Sul - NDI/UFSM, junto ao Curso de de visitas técnicas a oito unidades, que visa-
Especialização em Docência na Educação Infan- vam o acompanhamento da organização da
til/NDI/UFSM, e ao Curso de Aperfeiçoamento estrutura e do funcionamento das instituições;
em Docência na Educação Infantil/UEIIA, que momentos de devolutivas dessas visitas, nos
se tratam de projetos inanciados pelo governo
quais a equipe dialogava com a direção, coor-
federal, que integram a Política de Formação de
denação e com o grupo de professores das
Professores MEC/SEB/COEDI/UFSM.
escolas visitadas com o objetivo de promover
A UEIIA e o Proinfância relexões acerca de aspectos observados na
Unidade que comprometiam a efetivação de
Ao longo dos dois anos de vigência do uma educação de qualidade para as crianças
Projeto de assessoramento e acompanhamen- pequenas; formações em contexto3, as quais
to pedagógico às redes e sistemas de ensino na aconteciam com as equipes das instituições
implementação do PROINFÂNCIA em municí- visitadas, dentro da unidade, durante as quais
pios da região centro, noroeste e norte do Esta- se discutiam os aspectos pontuados nos mo-
do do Rio Grande do Sul, diferentes atividades mentos de devolutivas; ações de formação
foram desenvolvidas pela equipe (coordenado- continuada com professores e gestores (Ci-
res, supervisores, professores pesquisadores e clos Formativos) dos municípios de cada polo,
assistentes de pesquisa) nessas três regiões do no município polo, nos municípios referências;
Estado. Em cada uma dessas regiões, as ações
e ações de formação continuada com os pro-
do projeto envolveram, em alguns momentos,
fessores e gestores de todos os municípios
atividades com todos os municípios no municí-
envolvidos no projeto, em um dos pólos.
pio pólo da região1 - ou em apenas um dos pó-
los, para todos os municípios envolvidos no pro- Ao longo de todo esse processo a Unida-
jeto - atividades nos municípios referência2 de de de Educação Infantil Ipê Amarelo foi tornan-
1 Em cada região havia um município pólo que centralizava 3 Formação em contexto (Oliveira-Formosinho, 1998; Olivei-
as principais ações do projeto; o município pólo da região cen- ra-Formosinho & Formosinho, 2001; Oliveira-Formosinho & Kishi-
tral era Santa Maria; da região norte era Passo Fundo, e da região moto, 2002) uma forma emergente de formação de professores
noroeste era o município de Ijuí. que se situa numa visão do mundo democrática e participativa,
2 Cada pólo tinha 4 municípios referência para a realização na investigação praxiológica (Oliveira-Formosinho & Formosi-
dos ciclos formativos. nho, 2012).
162
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
do-se uma referência para os municípios envol- a equipe do projeto apresentou as práticas da
vidos nas ações formativas desenvolvidas e, ao UEIIA como um modelo a ser seguido, pois acre-
longo do processo relexivo que vinha desenca- ditamos que cada contexto é único e carrega
deando-se, ela despontava como um “lugar de consigo seus desaios e suas possibilidades.
possibilidade”, que desaiava esses proissionais As práticas pedagógicas da UEIIA foram,
à busca e realização de outras e novas possibili- no nosso entendimento, um desaio para os
dades de práticas para a qualiicação do traba- municípios, já que se trata de uma escola pú-
lho pedagógico desenvolvido nas unidades. blica que também enfrenta diiculdades em re-
A UEIIA enquanto uma referência para es- lação ao quadro de docentes e ao orçamento,
ses municípios foi constituindo-se ao longo de entre outros, mas que nem por isso deixa de
todos esses momentos formativos nas unidades enfrentá-los no coletivo a im de superá-los.
e nos municípios, momentos nos quais professo- Diante da resposta dos municípios em
res, gestores e demais proissionais que atuavam relação às nossas práticas, optamos em socia-
nas escolas (re)conheciam determinados aspec- lizar brevemente neste artigo algumas das prá-
tos que comprometiam a efetivação de uma ticas que vivenciamos em algumas unidades e
educação de qualidade que respeitasse o tem- que na UEIIA foram superadas com processos
po, o espaço e as especiicidades das crianças e formativos constantes, momentos de planeja-
sentiam a necessidade de superação das práti- mentos e registros e com a produção e sociali-
cas que não articulavam-se com esse objetivo. zação do conhecimento, e principalmente com
Era nesses momentos que a UEIIA apare- a escuta sensível às crianças.
cia como o “lugar da possibilidade”, pois à me-
dida que pontuávamos os aspectos compro- Escutar as crianças: o princípio de tudo
metedores da qualidade, apresentávamos – em
contraponto – práticas desenvolvidas hoje na Bom amigo Malaguzzi,
Menino eterno, pede-me, antes de eu retor-
nossa unidade e o processo de superação das nar ao Brasil, que escreva algumas palavras
antigas práticas. A partir disso, muitos profes- dedicadas às meninas e aos meninos italia-
nos. Não sei se saberia dizer algo de novo a
sores e gestores demonstraram interesse em
um tal pedido. O que poderia dizer ainda aos
conhecer a nossa unidade e passaram a orga- meninos e às meninas deste inal de século?
nizar visitas para conhecer o espaço e as ações Primeira coisa, aquilo que posso dizer em fun-
ção de minha longa experiência nesse mun-
pedagógicas nela desenvolvidas. Nesse senti- do, é que devemos fazê-lo sempre mais boni-
do, cabe salientar que em nenhum momento to. E baseando-me em minha experiência que
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
torno a dizer, não deixemos morrer a voz dos Direitos das Crianças (1989), no artigo 12, está
meninos e das meninas que estão crescendo. claro que “A criança tem o direito de expressar
Paulo Freire, abril, 1990 (Faria; Silva; [s.d.]).
sua opinião e de ser ouvida toda a vez que se
tomam decisões que lhe dizem respeito”, e esse
Esta carta foi escrita por Freire, no ano de precisa ser ponto de partida para a efetivação
1990, após um grande e importante Congres- de uma prática pedagógica que garanta os di-
so Internacional que ocorreu em Reggio Emi- reitos das infâncias e das crianças.
lia. Na ocasião, Loris Malaguzzi pediu a Paulo Garantir esse direito é desconstruir uma
Freire que lhe escrevesse uma carta dedicada compreensão de docência assentada numa
às meninas e aos meninos italianos (Faria; Silva, perspectiva de ensino, de “dar aula”, de a priori
[s.d.]). determinar, numa visão adultocêntrica, o que a
Quando Paulo Freire defende que é pre- criança deseja e necessita, propondo uma ati-
ciso “não deixar morrer a voz dos meninos e vidade única para todas as crianças e exigindo
das meninas que estão crescendo”, ele nos fala delas aceitação e imobilidade, desconsideran-
da importância de escutar a criança; escutar a do assim suas cem, cem e cem formas de se ex-
pressar (Edwards; Gandini; Forman, 1999).
criança é dar a ela a oportunidade de expres-
sar-se em suas diferentes formas e construir re- Poderia argumentar que é conveniente, e
lações com seus pares na perspectiva da cria- até muito escolar, decidir, planejar, toda uma
ção de uma cultura da infância. Para Malaguzzi, série de atividades importantes para mim e
adequar toda a atividade do grupo a elas. De-
escutar a criança é uma forma ética de estar e terminaria uma situação em que amiúde e du-
relacionar-se com ela (Edwards; Gandini; For- rante a maior parte do tempo comum, todos
man, 1999). E essa escuta, segundo Rinaldi e todas vêem todos e todas fazerem algo (isto
é, a mesma coisa) sob minha ordem; e em que
(2012, p.124), não é aquela que se dá apenas os indivíduos e seus corpos estão, por assim
com os ouvidos: “Escuta, portanto, como metá- dizer, protegidos da sua própria aglomeração
ao serem colocados em movimentos preci-
fora para a abertura e a sensibilidade de ouvir e
sos em momentos precisos (simpliicando,
ser ouvido – ouvir não somente com as orelhas, se todos e todas fazem a mesma coisa – me-
mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, lhor ainda se sentados – é mais difícil que se
choquem, briguem, disputem um brinquedo,
olfato, paladar, audição e também direção)”. errem...) (Russo, 208, p. 152-153).
Essa escuta, que é algo aceito e que se
massiica no discurso dos docentes, não se per-
Neste trecho, Russo (2008) nos desaia,
cebe em grande parte das práticas com meni-
a partir de sua prática na educação infantil, a
nos e meninas; no entanto, na Convenção dos
164
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
reletir sobre o quanto determinadas práticas cebidas e nem compreendidas pelos adultos.
diretivas podem nos acomodar e impedir uma Escutar os bebês, por isso mesmo, tal-
escuta atenta e sensível, e o quanto ela ainda vez seja uma das mais difíceis tarefas quando
é negada, seja por falta de compreensão ou nos propomos pensar uma pedagogia para as
por falta de vontade dos professores. Uma das crianças e para as infâncias. No entanto, nossas
questões que agravam a compreensão da im- vivências ao longo do projeto de assessora-
portância da escuta é o fato de que os proces- mento nos mostraram o quanto escutar todas
sos formativos vão numa outra direção, prin- as crianças, de todas as idades, ainda cons-
cipalmente quando a formação é magistério, titui-se um desaio à docência. Resultado de
e ao longo do projeto nós vivenciamos nas um processo formativo que se esquece de nos
visitas técnicas realizadas o relexo dessas for- contar e de nos sensibilizar para o fato de que
mações. Observamos uma preocupação exces- as crianças são vivas, ativas, curiosas, capazes
siva em propor algo, construído pelo professor e muito competentes, e não “alunos” à espera
para as crianças - como, por exemplo, jogos, de orientações sobre o que e como fazer. Re-
cartazes, folhas mimeografadas, fotocopiadas sultado de um trabalho diário calcado em uma
- e não em organizar espaços tempos e ma- rotina estabelecida e engessada, que nos per-
teriais para que elas tivessem a possibilidade mite apenas olhar para o relógio, e não para as
de construir, criar, inventar, sendo autores das crianças, para seus desejos e necessidades.
suas construções. Quando compreendemos que um traba-
Além disso, a escuta também não é algo lho pedagógico de qualidade na educação in-
fácil porque demanda conhecimento em várias fantil que respeite os direitos das crianças tem
áreas, como antropologia, psicologia, pedago- como base o processo de escuta da criança,
gia, sociologia, ilosoia... que nos remetem à compreendemos a necessidade de repensar to-
compreensão conceitual e epistemológica do das as ações do nosso cotidiano, a im de que es-
ser criança e das infâncias. Nesse sentido, sa- tas partam desse princípio. Para Rinaldi (2012),
lientamos que a escuta dos bebês é ainda algo a pedagogia da escuta compreende uma escuta
extremamente complexo, que exige sensibi- como tempo de ouvir, escuta como curiosidade,
lidade, abertura para observação e escuta do desejo, dúvida, interesse, emoção, escuta das
corpo que se expressa, deseja, aprende, silen- cem, mil linguagens, de um tempo cheio de si-
cia, que se comunica com os iguais das mais lêncios, de longas pausas, um tempo interior, de
variadas formas, expressões essas que não per- nós mesmos. Uma pedagogia que se abre para
165
Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
as diferenças, que reconhece o valor do ponto so que o mundo conclama, que a vida dessas
crianças espera para que possam explorar o
de vista e da interpretação dos outros. Escutar
mundo assim como quem explora a diversida-
os outros e escutar o que os outros têm de nós. de das cores ao observar a beleza do arco-íris,
Uma pedagogia que não produz resposta, mas o colorido das lores e das borboletas em todos
os momentos do cotidiano. E isso não apenas
que formula questões, dúvidas, incertezas, e
porque as crianças “serão os adultos do futuro”,
que está permanentemente aberta a mudanças. mas porque as crianças são hoje, e são o que
temos de melhor: a sabedoria, a alegria, a es-
Uma interlocução com o vivido na UEIIA pontaneidade, a curiosidade, as perguntas, a
sinceridade, a amizade, o desaio. São elas que
a cada dia nos desaiam com suas formas de
Muito do vivido na educação infantil ser e estar no mundo, são elas que nos cobram
revela práticas sem conhecimento das impli- o compromisso que temos. E elas merecem, e
lhes é de direito, que esse compromisso seja
cações da responsabilidade da tarefa docente, assumido por todos nós.
haja vista que se trata da educação de crianças
pequenas, da formação de seres humanos, o Assumir esse compromisso exige de
que exige uma racionalidade ética. Muitas das
cada um, das unidades a construção de uma
crianças que em outros tempos viviam suas
proposta de educação infantil que ofereça ex-
infâncias numa socialização com suas famílias,
periências signiicativas e qualiicadas para as
atualmente se inserem numa socialização em
crianças, com clareza de seus objetivos, a partir
ambientes coletivos e com isso, às vezes, pas-
do que deinem as diretrizes nacionais. Desse
sam mais tempo com os docentes, nas unida-
modo, a construção/reconstrução de um pro-
des, do que em casa com suas famílias, o que
jeto político-pedagógico requer compreender
requer um projeto político-pedagógico e um
trabalho docente qualiicado. Nesse sentido, a qual im se dirige a educação infantil nas
Goelzer (2014, p. 185) lembra da nossa respon- unidades, qual ação político-pedagógica e
sabilidade e compromisso com as crianças: qual agir. Portanto, um projeto que se funda-
mente não somente na racionalidade técnica,
Pensar a educação das crianças pequenas é instrumental, mas acima de tudo numa racio-
uma tarefa que nos tem desaiado constante- nalidade ética. Que seja relexo da construção
mente. Isso porque educar crianças é, com cer-
teza, a tarefa mais importante que podemos coletiva de todos os envolvidos e expressão da
receber e, digo aos professores, que podemos prática. Um processo no qual os educadores
escolher. Nós, pedagogos, que escolhemos es-
tem consciência, clareza teórico-conceitual,
tar ali, precisamos nos colocar e assumir este
lugar com a responsabilidade e o compromis- um aprofundamento teórico consubstanciado
das práticas (Cancian, 2003).
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
para os meses do ano e suas datas comemo- to anual organizado pelo coletivo de professores
rativas, planejamento esse que propõe que as antes mesmo da chegada das crianças, cabe o
crianças passem semanas e meses, durante lon- questionamento: onde icam guardadas, ao lon-
gas horas ensaiando para apresentar aos adul- go de todo o ano, as perguntas, as demandas, os
tos músicas e histórias que são apenas reprodu- interesses das crianças? O que fazemos diante
zidas, muitas vezes sem sentido e signiicado. de suas necessidades? Onde escondemos suas
Isso revela as necessidades e desejos dos adul- especiicidades, a singularidade daquilo que
tos sobrepondo-se às das crianças, que deixam é próprio dos bebês e das crianças pequenas?
de ser a centralidade e os sujeitos do processo, Onde aparece no planejamento a possibilidade
sem qualquer questionamento político e social da criança ser criança e viver a sua infância de
do que perpassa essas datas comemorativas. forma criativa e autônoma? Que dimensão ocu-
Durante o assessoramento às escolas, pa o brincar e as interações crianças-crianças-a-
essa discussão em torno do planejamento dultos no planejamento?
se fez muito presente a todo momento. As Não encontramos respostas para essas
paredes das salas das crianças e da sala dos perguntas diante de planejamentos expostos
professores evidenciavam, já desde a nossa nas paredes que dirigem o trabalho durante
chegada, um planejamento exatamente as- todo dia num engessamento do tempo, com
sim: uma lista com os meses do ano, as datas rotinas que dissociam o cuidar e educar, com-
comemorativas e as propostas que deveriam preendendo como pedagógico apenas uma
ser organizadas às crianças considerando-se atividade dirigida no dia, marcada pelo compro-
essas datas. “Projetos” únicos para todas as misso do turno com professor.
turmas da escola e o mesmo material para to- Talvez isso se justiique muitos profes-
das as crianças - crianças de 0 a 5 anos. sores acreditarem que para as crianças peque-
Uma proposta de trabalho que toma as nas “qualquer coisa serve”, que “elas gostam
datas comemorativas como eixo do trabalho de tudo” ou porque para as crianças pequenas
e que, para além disso, ainda prevê as mesmas basta organizar tarefas que dêem conta de pre-
propostas para todas as crianças, é uma propos- pará-las para o processo de alfabetização, numa
ta que desconsidera completamente as histó- perspectiva de aprendizagem escolar, “quando
rias, trajetórias, curiosidades e necessidades das pensa-se na leitura como decodiicação e na
crianças. Diante de um calendário pré-determi- escrita como cópia repetitiva de sinais gráicos”
nado desde o início do ano, de um planejamen- (Ferreiro, 2007, p.56), numa perspectiva reducio-
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
nista da cultura escrita, que as crianças, desde ensino fundamental de nove anos, que prima
muito pequenas, são obrigadas a enfrentar. pela garantia da infância em sua singularidade.
Tais práticas foram discutidas nas forma- Nesse sentido, Kramer (2007, p. 19-20)
ções em contexto, pois em muitas de nossas nos lembra que:
visitas às unidades, ao entrar nas salas de pré-
Entender que as pessoas são sujeitos da
-escola encontrávamos os ambientes decora- história e da cultura, além de serem por
dos com alfabetos recortados de cartilhas, com elas produzidas, e considerar os milhões de
estudantes brasileiros de 0 a 10 anos como
alfabetos de EVA no alto das paredes, que ga-
crianças e não só estudantes, implica ver o
rantiam somente o alcance do olhar dos adultos pedagógico na sua dimensão cultural, como
e não das crianças. Em algumas dessas situa- conhecimento, arte e vida, e não só como
algo instrucional, que visa a ensinar coisas.
ções, ao indagarmos o objetivo de tais propo- Essa relexão vale para a Educação Infantil e
sições, as respostas revelavam professores con- o Ensino Fundamental.
cursados para atuar nos anos iniciais do ensino
fundamental sendo professores da educação Na UEIIA, nosso estudo acerca do signiicado
infantil, sem compreensão da especiicidade da de escutar a criança nos possibilitou compreender
prática pedagógica com crianças de 0 a 5 anos, que valorizá-la como alguém que tem necessida-
sem a compreensão de que a cultura escrita é des, interesses e capacidades requer um planeja-
mais que o conhecimento e reprodução de le- mento que seja organizado a partir dela e do que
tras e números. Na fala clara e espontânea de ela tem a nos dizer. Isso exigiu de nós, professores,
uma atenção muito maior aos seus movimentos,
uma das professoras, tais práticas justiicam-se
bem como a compreensão de que a centralidade
porque “eu só sei fazer isso”. Essas práticas apa-
do processo são elas, as crianças, e não nós, adultos.
recem sempre com essa justiicativa, ou de que
elas acontecem porque os pais querem. Estou com eles, sou “professor” deles de uma
Nesse momento, pontuamos a necessida- outra maneira; procuro lançar sobre eles e fa-
de de que professores do ensino fundamental zer com que sintam um olhar diferente do de
quem realiza incumbências semelhantes. E ao
precisam estar no ensino fundamental, e que guiar – como eu também faço, e muito – suas
precisam aprender com a educação infantil e atividades, procuro não colocar em prática,
não o inverso, e de que a falta de conhecimen- nunca, a exigência de que se devam produzir
to na área muitas vezes é camulada, justiicada testes de resultado, pior ainda se disfarçados,
que só servem para mim (Russo, 2008, p. 157).
pelas demandas externas de pessoas que não
são da área, que não conhecem as orientações
normativas para a educação infantil e para o
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
Para tanto, muitos foram e são os desa- nejarmos enfrentando o desaio da superação.
ios para todos os docentes e acadêmicos que Somos cada vez mais desaiados a pensar um
atuam na UEIIA, pois isso exige desconstruir a planejamento não de atividades, mas sim um
ideia de professor que dá aula, direciona, outra planejamento que organiza espaços, tempos e
compreensão de docência na educação infan- materiais para que as crianças assumam o lugar
til, num planejamento em que reconhecemos de sujeitos do processo. É importante salientar
a criança como inteligente, criativa, crítica, que esses desaios serão sempre constantes, pois
capaz e como produtora de cultura. Ao com- à medida que percebemos a complexidade dos
preender o planejamento a partir da escuta saberes e conhecimentos, maiores são as nossas
das crianças muitas são as surpresas e desaios, exigências de respeito aos direitos das crianças.
pois a todo o momento eles nos mostram que
a forma com leem o mundo é diferente da dos Escuta que nos permite respeitar os
adultos, o que só conseguimos compreender tempos das crianças
se estivermos sensíveis.
Também são grandes os desaios que se Na UEIIA, a escuta dos bebês nos mostrou
colocam para a UEIIA nos momentos em que a importância de respeitar os diferentes tempos
recebemos alunos de diferentes cursos para in- de cada menino e menina, principalmente na
serções e estágios, e nos deparamos com a di- hora do sono, pois quando estão com sono, dor-
iculdade de superar a racionalidade presente mem inesperadamente, em cima do prato, de
ainda nos planejamentos que perpassa a ideia pé, no meio dos brinquedos e brincadeiras. Isso
de aplicabilidade, sem conhecer e considerar nos fez compreender que não é necessário escu-
as crianças nesse processo, e o quanto seus recer o ambiente, colocar músicas de ninar, em-
tempos são diferentes dos tempos dos adultos. balar crianças até dormir. Cabe ressaltar que esse
Ser um espaço que produz e socializa conheci- processo não foi algo fácil de desconstruir, pois
mentos nos permitiu superar um planejamen- muitos dos docentes viveram em suas próprias
to voltado para as datas comemorativas e a infâncias o tempo determinado da hora do sono,
proposições fechadas, e hoje nos desaia cons- tempo de embalar e legitimar uma rotina dada
tantemente a rever o que fazemos e superar a e instituída nas unidades. Uma prática cultural-
todo momento a força do tempo, que muitas mente construída, que perpassa a visão assis-
vezes nos aprisiona e que não percebemos. tencialista e que se justiica nos discursos como
Esse afastamento e a racionalização do tempo de descanso, necessário para as crianças.
vivido nas práticas, com base nos registros, nos Após muitos estudos e discussões que
permitem a todo momento avaliarmos e repla- sempre trazem a criança como centralidade
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
nos processos pedagógicos, reairmamos que icarem ansiosas perante a exigência de dormir
as crianças na UEIIA só dormem quando tem mesmo que sem desejo desenvolviam alguns
sono. Faz alguns anos que nossas crianças dor- mecanismos de escape como a masturbação,
mem a qualquer hora do dia, quando sentem e outras que aguardavam nas salas sentadas
o desejo e a necessidade de dormir, descansar. em tapetes, em silêncio, sem poder brincar até
Cada criança traz para a escola seu “kit sono”, que todos acordassem. Isso tudo sem falar do
e quando quer dormir já vai buscando-o e
espaço que as camas ocupam nas salas e que
organizando num colchonete a sua cama, na
impossibilitam a organização de um maior es-
própria sala. Dorme e, ao acordar, volta para
paço para o brincar...
junto do grupo, que nem por isso “fez silêncio”
ou deixou de participar da organização do tra- Ao discutir essas questões tivemos de-
balho pedagógico na turma. Sendo assim, em poimentos de muitos adultos que se inco-
vários momentos do dia se observa na unida- modam com essa “hora do sono”, muitos dos
de crianças nas salas dormindo e acordando de quais traumatizados dos seus tempos de in-
forma natural e espontânea. fância, depoimentos das equipes das Secre-
Essa perspectiva de acabar com o horário tarias Municipais de Educação que recebem
do sono após o almoço, instituído na rotina das relatos de pais que airmam esses momentos
unidades de educação infantil, gerou no projeto como traumáticos para as crianças. Uma das
de assessoramento muitos conlitos, pois ques- justiicativas para essa rotina seguir instituída
tionava toda uma organização das unidades em é de que não há docentes para esse tempo, e
que o foco não era o tempo das crianças, mas sim estagiários e monitores; ainda, é o tempo
sim o tempo e as necessidades dos adultos. Du-
do professor fazer seu intervalo. Mostrávamos
rante as visitas técnicas encontramos cartazes já
os riscos de deixar bebês e crianças com bol-
na entrada das unidades indicando o horário do
sistas, com contratos CIEE4 com alunos do en-
sono de todas as crianças e solicitando que nes-
se horário se izesse silêncio. sino médio, sem compreensão das suas fun-
Ao acompanhar a organização dessa ro- ções e do trabalho com crianças pequenas na
tina, acompanhamos longos períodos de espe- educação infantil.
ra das crianças que não dormem por aquelas Em um grande número de unidades,
que dormem. Outros que eram obrigados dei- essas questões estruturais também são justii-
tar, muitas vezes na mesma cama, ou no mes- cativas para a falta de respeito com o tempo
da criança em outros momentos do cotidiano,
mo colchonete. Crianças que permaneciam até
três horas no tempo do sono, outras que por
4 Centro Integração Empresa Escola
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
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Viviane Ache Cancian e Juliana Goelzer
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
turma. Compreende-se que o trabalho com possível e enriquecedora para eles, muito embo-
turmas multi-idades desacomoda o docente e ra a ideia da turma multi-idade ainda fosse vista
faz com que suas práticas sejam reconstruídas, como uma realidade muito distante.
haja vista os desaios que se colocam diaria- Assim, para que fosse possível (re)pensar
mente de respeito às diferenças. a organização dos tempos na educação in-
Tal experiência foi muitas vezes discu- fantil, desaiando os professores a avançarem
tida nas formações ao longo do projeto, pois nessa compreensão, apresentar nossa organi-
era comum os professores das unidades bus- zação na UEIIA nesse momento foi importante
carem as justiicativas mais diversas para que para que os docentes dessas instituições per-
nem mesmo nas áreas externas as crianças de cebessem que também com relação aos tem-
diferentes idades se encontrassem. Em muitas pos é possível - e mais do que isso, necessário
dessas escolas, encontramos muros que impe- - encontrar outras possibilidades de atuação
diam as crianças de diferentes idades de inte- que respeitem a criança na sua singularidade.
ragirem umas com as outras, com a justiicati- Marcar a UEEIA como lugar de possibilidade foi
va de que “os maiores machucam os menores”, fundamental para que esses professores per-
ou de que “os bebês atrapalham os maiores”. cebessem que outra docência - marcada pela
Em outras escolas, mesmo que não houvesse escuta às crianças - fosse possível e necessária.
muros concretos, estes eram colocados pelos
docentes de um modo ou de outro. Cada crian-
ça em sua turma; juntas, apenas as crianças da Concluindo: a escuta que nos permitiu
mesma idade. estar neste lugar de possibilidades
Ao mostrar que a integração entre as
crianças de diferentes idades era não apenas Ao buscarmos retomar o vivido, marca-
uma prática habitual, mas uma forma de organi- do pelo lugar da impossibilidade nas unidades
zação da nossa escola, ao mesmo tempo em que e os desaios postos para o lugar da possibilida-
éramos alvo de muitos olhares duvidosos e por de, fomos tendo a clareza de que esse proces-
vezes de muitas críticas, fomos muito lentamen- so é lento e que muitas unidades, encorajadas
te marcando esse outro lugar de possibilidade. por práticas de superação, aos poucos busca-
À medida que voltávamos às escolas após essas ram assumir enfrentamentos e desaios junto
discussões, fomos observando portas entre os aos seus pares que não aceitavam mudanças,
muros e a retirada das “cercas” do espaço desti- e que não estavam abertos a escuta dos iguais,
nado para os bebês. Fomos aos poucos ouvindo seus pares e das crianças.
os relatos de que essa era uma prática realmente
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DO LUGAR DA IMPOSSIBILIDADE AO LUGAR DA POSSIBILIDADE
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9
A ARTE E AS CRIANÇAS: CAMINHOS A EXPLORAR,
LINGUAGENS A EXPERIMENTAR E UM MUNDO
TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
Agnese Infantino
Franca Zuccoli
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Agnese Infantino e Franca Zuccoli
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A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
infantil, sempre começando a partir de um mo- pergunta do que queremos dizer por arte neste
mento livre de descoberta e de brincadeira, ob- artigo. Trata-se de uma questão complexa para
servados de perto pelos educadores, para, em a qual não é possível dar uma única explicação,
seguida, estruturar percursos realmente sig- mas nos impulsiona a buscar nas palavras de crí-
niicativos e os momentos de “lambuzeira” do ticos e artistas algumas interpretações possíveis.
físico David Hawkins (1979)2, que também aos A primeira airmação é a do ilósofo e crítico de
jovens do ensino médio ou universitário pro- arte Dino Formaggio que redeine o conceito de
punha uma primeira fase de experimentação arte, elaborando esta tautologia simples: “A arte
com materiais relacionados às leis da física que é tudo o que os homens chamam de arte” (Arte -
deveriam ser aprendidas, para que este conhe- Enciclopédia ilosóica, Milão, ISEDI, 1973). Com
cimento se enraizasse realmente no patrimô- isto, ressalta o peso que a história humana teve
nio cultural dos jovens. Encorajar e enriquecer ao escolher algumas formas de expressão, cata-
podem ser, então, dois verbos adequados para logando-as como artísticas, em relação a outras.
os movimentos do adulto, aliados aos movi- Um vaso grego foi inicialmente talvez um boni-
mentos das crianças, em uma espécie de dan- to recipiente decorado de uma forma elegante,
ça realizada simultaneamente, em vez de uma mas depois tornou-se um símbolo e uma das
ação que vem do alto e não reconhece a rique- representações mais completas daquele pas-
za de conhecimento já desenvolvido de forma sado. A escolha humana de identiicar formas
independente pelas crianças, que desde pe- particularmente signiicativas para representar
quenininhas, são exploradoras competentes. momentos de pesquisa pode ser um passo que
facilita a compreensão. Mas essa deinição não
Educação à arte: uma experiência trans- é suiciente e nos leva a procurar frases e ideias
formadora propostas pelos próprios artistas, como as pala-
vras de Picasso, que airmava “Eu nunca iz uma
Após este primeiro passo que resgata pintura como uma obra de arte, é tudo pesqui-
o trabalho artístico como uma prática natural sa” ou Georges Braque, que escreveu em seus
e reinada das crianças, surge naturalmente a Cahiers “A arte é uma forma de representação”
(Braque, 2002, p.13) ou Jackson Pollock, que se
2 O físico David Hawkins percebeu, depois de muitos anos de detinha no aspecto mais material:
ensino, como os jovens do ensino médio, que tinham brincado pou-
co com materiais diferentes quando pequenos, tivessem extrema
difuculdade em compreender as leis da física Esses alunos conse- Em minha opinião, a técnica se desenvolve
guiam memorizar apenas por períodos curtos essas informações, naturalmente a partir de uma necessidade, e a
porém sem obter uma competência real. Para superar este proble- partir desta necessidade o artista extrai novas
ma estabeleceu um ambiente estruturado em suas aulas divididas maneiras de expressar o mundo ao seu redor.
por momentos. O primeiro passo era dedicado à “lambuzeira”.
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Agnese Infantino e Franca Zuccoli
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A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
de vista, às vezes opostos, outras vezes simila- mada igurativa ou plástica: a teoria que apre-
sentarei engloba todas as formas de expressão
res. Sua abordagem foi extremamente signiica-
do “eu”, literário e poético (verbal) e também
tiva, porque conseguiu evidenciar quantos pon- musical ou auditivo, e constitui uma tomada
tos em comum existem entre arte e educação, de contato integral com a realidade a ponto de
ser capaz de chamar-se educação estética, ou
interessando-se pelo que fazer, além de como a educação dos sentidos, em que se baseiam
fazê-lo, valorizando uma perspectiva quase à a consciência e, em última análise, a inteligên-
beira da capacidade artesanal e explorativa. Tal- cia e o julgamento do indivíduo humano. So-
mente quando os sentidos são levados a uma
vez a igura de Herbert Read (1893 - 1968), que harmoniosa e constante relação com o mundo
movendo-se a partir das teorias de John Dewey, exterior será possível constituir uma personali-
possa nos intessar mais neste artigo porque nos dade “integrada” (Read, 1954, p.26).
propõe a ideia de uma educação que pode se
Algumas páginas mais adiante, retoma
realizar justamente através da utilização da arte.
essas reivindicações, chegando a declarar:
Seu texto “Education through art” (Read,
1954) é a formalização da hipótese teórica de A educação pode, portanto, ser deinida
que a arte pode se tornar a base da educação. como um processo que visa cultivar as formas
Ele observa a relação entre arte e educação atra- de expressão, ensinando crianças e adultos
como produzir sons, imagens, movimentos,
vés de duas teses contrastantes: a primeira, de instrumentos e ferramentas. [...] Todas as fa-
uma educação diretiva, que faz o homem trans- culdades de relexão, lógica, memória, sensi-
formar-se naquilo que ele não é, e a segunda, bilidade e intelecto estão envolvidas nesses
processos e abrangem todos os aspectos da
inspirada nos princípios de liberdade que per- educação. E todos esses processos abrangem
mite tornar-se o que se é, abraçando totalmente a arte [...] (Read, 1954, p.30).
esta segunda ideia. Aqui suas referências vão
desde Platão até Rousseau, de Pestalozzi a Mon- Como pudemos ver, embora de uma for-
tessori, chegando a Dewey e Holmes. Desde o ma muito fragmentada e não exaustiva, a his-
início de seu tratado ele se afasta de uma con- tória da educação para a arte, especialmente
cepção de educação artística limitada a uma vi- para as crianças maiores, é uma história com
são exclusivamente disciplinar, dado que se re- um grande passado, com iguras brilhantes de
fere a uma ideia de realidade como experiência referência que ao longo do tempo estabelece-
orgânica total, e, de fato, assim escreve: ram pontos essenciais. O trabalho do educador
pressupõe que estes pontos possam ser uma
Que seja claro desde o início que não me reiro base de confronto, veriicando-se com quais
apenas a uma “educação artística” como tal, o estamos de acordo ou não, redescobrindo, na
que poderia ser mais apropriadamente cha-
183
Agnese Infantino e Franca Zuccoli
prática, uma trama viva de referências teóri- feitas, inserindo uma atenção especíica para
cas. Uma posição central para nossa discussão as ações de descoberta, brincadeiras e conhe-
pode ser talvez a de Herbert Read, que nos fala cimento que mesmo crianças muito pequenas
de uma educação que é feita por meio da arte podem desenvolver. Das diretrizes observare-
e não uma visão disciplinar e exclusivamente mos apenas a proposta dedicada à arte, desta-
de conteúdo. Talvez este ponto pode ser o mais cando algumas especiicações. A primeira é ter
signiicativo também em nossas análises que compreendido o potencial do termo campo de
tratam de crianças muito pequenas. experiência, indicado nas Diretrizes Nacionais
em: “Campos de experiência”:
Um confronto com as Diretrizes Nacio-
nais Italianas (2012) Os professores aceitam, valorizando e ex-
pandindo, as curiosidades, as explorações,
e as propostas das crianças, e criam oportu-
Esta panorâmica ligada a uma visão da nidades de aprendizagem para facilitar a or-
arte e da educação nos permite entrar em uma ganização do que as crianças descobrem. A
análise detalhada das Diretrizes Nacionais de experiência direta, a brincadeira, o procedi-
mento por tentativa e erro, permitem que a
2012, para compreender como também as re- criança, devidamente orientada, aprimore e
ferências legislativas podem ser signiicativas sistematize os aprendizados. Cada campo de
quando lidam com estas questões. As Diretri- experiência fornece um conjunto de objetos,
zes se tornaram os novos pontos de referência situações, imagens e linguagens, referimen-
tos aos sistemas simbólicos da nossa cultura,
legislativa para o primeiro ciclo da escola italia- capazes de evocar, estimular e acompanhar
na, entendendo com este termo a pré-escola e aprendizagens progressivamente mais segu-
o ensino fundamental. Um percurso que come- ras (Diretrizes Nacionais, 2012, p.18).
ça aos três anos e termina aos quatorze. Pela
primeira vez em escolas italianas já não se fala No contexto especíico da arte, a pro-
mais de programas prescritivos, mas de diretri- posta feita retoma a perspectiva traçada no
zes, delineando uma série de sugestões e hipó- primeiro parágrafo:
teses que as escolas, em sua especiicidade, de-
Imagens sons, cores. As crianças expressam
vem tornar viável. Especial atenção é dedicada
pensamentos e sentimentos com imaginação
também à arte e à imagem. Devemos lembrar e criatividade: a arte dirige esta propensão,
que em um passado não muito distante (1800 educando ao prazer da beleza e da qualidade
continuando até o inal do século XX) a arte se estética. A exploração dos materiais disponí-
veis permite viver as primeiras experiências
destinava apenas ao treino motório visando artísticas, que são capazes de estimular a cria-
a graia correta e agradável da escrita e orto- tividade e contagiar outras aprendizagens.
graia. Desde então, muitas mudanças foram
184
A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
(...) O encontro das crianças com a arte é uma por um lado e, por outro lado, as dinâmicas
oportunidade para ver o mundo em torno de- que compõem o planejamento pedagógico e
las com olhos diferentes. Os materiais explo-
rados pelos sentidos, as técnicas experimen- organizacional da creche e, em geral, das estru-
tadas e compartilhadas no atelier da escola, turas educativas, exigem o esclarecimento de
as observações de lugares (praças, jardins, algumas coordenadas de base. Trata-se de ex-
paisagens) e obras (pinturas, museus, arqui-
plicitar mais detalhadamente o signiicado das
tetura) ajudarão a melhorar as habilidades
de percepção, cultivar o prazer da utilização propostas artísticas destinadas a crianças mui-
da produção e da invenção para aproximar à to pequenas, juntamente com os princípios e
cultura e ao patrimônio (Diretrizes Nacionais, opções que no planejamento, tanto do ponto
2012 p.20).
de vista pedagógico quanto ao organizacional,
que são realizadas pelo grupo de educadores
Este modo de brincar, observar e olhar, dentro do ambiente da creche ou de outra es-
experimentar diferentes materiais, torna-se en- trutura de educação infantil. Estes dois níveis
tão uma oportunidade de descoberta e expe- (conceitos, ideias de infância e processos de
riência, e a arte em si não se coloca mais em um planejamento pedagógico-organizacionais)
pedestal distante e inatingível (Zuccoli, 2010, estão interligados mais do que nunca, à luz do
2014), mas torna-se parte de uma exploração atual debate na Itália, e em geral na Europa, so-
(Smith, 2008) que permite desenvolver um bre a organização composta pela oferta peda-
olhar e um pensamento diferentes, mais ricos gógica para a infância (dirige-se cada vez mais
e estimulantes. claramente em direção a um cenário que supera
as deinições tradicionais de estruturas educati-
Creche, crianças, processos de conheci- vas para a infância de zero a três anos, em segui-
mento da, de três a seis anos para pensar nas estruturas
educativas para zero a seis anos) e políticas de
Se, como mostrado nos parágrafos an- desenvolvimento das estruturas garantindo os
teriores, compreendemos a arte não tanto princípios de acesso e sustentabilidade.
como uma área “disciplinar”, mas como uma A relexão sobre as formas e a possibi-
dimensão de experiência, e portanto também lidade de ativar propostas artísticas voltadas
de conhecimento, compartilhados por adultos a crianças pequenas e crianças muito peque-
e crianças, lancemos as premissas para rele- nas não pode ser alheia às linhas gerais deste
tir sobre as propostas artísticas voltadas para debate, tornando-se uma contribuição para
crianças muito pequenas, na idade da creche. tematizar de uma forma novas possibilidades
A delicadeza, mas também o enorme poten- da educação infantil. Em alguns aspectos, o
cial de desenvolvimento desta fase da vida, tema da arte na creche abre a possibilidade
185
Agnese Infantino e Franca Zuccoli
de tematizar e problematizar a própria identi- ção no grupo socioafetivo e cultural de que fa-
dade da creche em relação a outras estruturas zem parte. As crianças crescem e aprendem de
educativas, solicitando encontrar linhas para forma tanto mais signiicativa e segura, quanto
um pensamento educacional próprias da pe- mais o contexto de vida e os relacionamentos
dagogia da creche e que, embora envolva as com pessoas que lhes são familiares que cui-
peculiaridades que caracterizam a vida e o dam delas são estáveis, consistentes, reconhe-
desenvolvimento de crianças muito peque- cíveis, carinhosamente incentivantes e favore-
nas, não se fecham em si mesmas, mas sabem cedoras, sem ansiedade ou restrições, o normal
articular projetos educativos conjuntos, tendo estímulo ao crescimento e ao conhecimento.
em vista o crescimento das crianças em sua Trata-se de processos de aprendizagem por
evolução ao longo dos anos além da creche, participação direta, mencionados por Rogof,
e desenvolvimentos pedagógicos viáveis para que se solidiicam mediante a peculiaridades
outras estruturas e para a escola. Esta possibi- da relação entre adultos (especialistas) e crian-
lidade de abertura apoia-se na capacidade de ças que fornecem modelos e oportunidades de
focalizar as especiicidades das dinâmicas de exercício prático, mediante a dinâmica especí-
desenvolvimento, aprendizagem e construção ica do aprendizado dirigido. Estes processos
do conhecimento que em crianças pequenas, de aprendizagem que podemos observar nas
com idade inferior a três anos, acontecem de sequências da vida cotidiana, em família e em
forma predominantemente espontânea e na- geral no contexto de vida das crianças, ocor-
tural graças à participação ativa nos contextos rem em formas muito semelhantes também
sociocultural da vida em família e no contexto nas estruturas educativas, em particular na cre-
social mais amplo, nas estruturas educativas. che, estrutura educativa realmente especial,
As pesquisas sobre o desenvolvimento porque é núcleo de pluralidade de saberes sem
realizadas na área sócio-construtivista e da psi- ensino. Neste panorama, brevemente apresen-
cologia cultural, que se baseiam na natureza tado, é possível contextualizar e conceituar
dos processos educativos e do desenvolvimen- também propostas artísticas que podem se
to, assinalam como as crianças muito peque- tornar uma oportunidade pedagógica para as
nas, em idade muito precoce, sejam capazes de crianças, mesmo as muito pequenas, se de fato
conhecer, aprender esponteamente e, gradual- oferecidas, juntamente com outras linguagens
mente, dominar de uma forma original o con- e oportunidades de conhecimento, como ex-
junto das regras, dos ritmos, das coordenadas pressão signiicativa da cultura a que os educa-
culturais que regem a organização do espaço, dores se referem com coerência e continuida-
dos tempos e dos rituais do dia e das condutas de nas práticas pedagógicas implementadas
familiares substancialmente graças à participa- cotidianamente. Se assumimos o pressuposto
186
A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
de que as crianças pequenininhas são capazes cessário para deinir um primeiro nível estético
de selecionar e reelaborar de forma autônoma fundamental que expressa o mundo artístico a
elementos de conhecimento relevados cultu- que as professsoras se referem além das oca-
ralmente porque vivem de forma espontânea siões especíicas de arte que podem ser con-
e natural um contexto caracterizado por arte- iguradas intencionalmente para as crianças. E
fatos, símbolos, valores e regras, então tam- este é o primeiro e básico nível artístico, que
bém as linguagens artísticas, como qualquer permeia o contexto da vida das crianças, cuja
outra linguagem, poderão ser oferecidas para atenção é fundamental, porque esta é a sede
crianças como oportunidades autenticamente do aprendizado espontâneo das crianças. Esta-
enriquecedoras e signiicativas, desde que não mos apoiando, assim, o princípio de que a arte
sejam concebidas e organizadas como conteú- e as linguagens artísticas para a creche não
do asséptico e artiicialmente construído para coincidem com o tempo dedicado ao desenho,
este im, mas como elementos constitutivos à pintura, ou à modelagem, mas envolvem
da cultura e do mundo dos educadores. Esta como possibilidade de expressão plena todo o
forma de pensar as oportunidades de conhe- dia de educadores e crianças e também dizem
cimento na creche, torna-se signiicativa a qua- respeito às formas e às maneiras pelas quais
lidade artística que caracteriza os contextos e poderão inluenciar os relacionamentos.
espaços materiais e simbólicos que envolvem
educadores e crianças: a atenção com as cores Crianças, arte e linguagens
(das paredes, dos móveis, do material disponí-
vel para crianças etc ...), a graça e a harmonia Nessa idade não se trata de entrar em
com a qual estão dispostos os espaços, a mo- contato com as dimensões nem instrumen-
bília e os objetos, o gosto estético que pode tais nem conceituais das linguagens artísti-
ser capturado pelo olhar observando os canti- cas, mas se trata de reinar o olhar, adquirir e
nhos de interesse em particular (bonecas por construir categorias de base para ser capaz de
exemplo, cuidadosamente dispostas, vestidas, compreender as dimensões da sensibilidade
penteadas e não jogadas despidas em grandes artística do cotidiano, deixar vestígios e sinais
cestos), mas também as ações das professoras que expressam uma sensibilidade artística na
na organização de objetos no espaço (uma ces- escolha de cores, formas, na intensidade e na
ta de frutas de material de qualidade, não de força das linhas, na busca do equilíbrio e da
plástico grosseiro e colorido vistoso, a atenção proporção nas tantas criações e trabalhos que
com que se colocam os lápis de cor, giz de cera têm como protagonistas as crianças, ao longo
e canetinhas em cestas escolhidas e adequa- dos diferentes momentos do dia na creche, em
das para este im bem organizadas), tudo o ne- muitos contextos diferentes, enquanto brin-
187
Agnese Infantino e Franca Zuccoli
cam no jardim, à mesa, quando estão lidan- A professora oferece às crianças a cola dispos-
ta em pratos, os grupos se sentam em torno
do com jogos de construção. Se observamos de mesas cobertas com plástico. A observa-
atentamente o agir das crianças, percebemos ção se concentra em três meninas de 30 me-
que não é possível separar com uma linha ní- ses. A professora, depois de colocar a cola nos
pratos, pergunta o que querem fazer com a
tida as suas experiências “artísticas” das outras cola. As meninas respondem, rindo, que que-
experiências de exploração e descoberta. De rem colar pedaços de papel. A professora per-
fato, muitas vezes o que torna únicas as mo- gunda porque estão rindo. Respondem que a
cola parece o creme que a mãe usa! A profes-
dalidades de conhecimento do mundo pelas sora propõe que toquem a cola. Gaia: Eu pos-
crianças é justamente sua inter-relação profun- so tocar apenas com um dedo? Professora:
como você quiser. Inicialmente, as meninas
da e física entre linguagens e diferentes abor-
traçam sinais com um dedo, em seguida, co-
dagens que só encontram um lugar nas áreas meçar a usar ambas as mãos em movimentos
especíicas e separadas. para o mundo adulto, circulares. Ilaria: Eu faço um sol. Gaia: Eu uma
tartaruga. Uma das meninas mergulha a mão
e nos anos seguintes, gradualmente, também inteira na cola, as outras a imitam: é macia. Pa-
para as crianças em contato com a aprendiza- rece um creme ... Gaia: minhas mãos estão pe-
gem estruturada quando uma criança de 30 gajosas, podem atrair insetos? A professora a
tranquiliza e pergunta por que pensou nisso.
meses traça linhas em uma folha, ativa simul- Gaia diz que uma vez suas mãos estavam pe-
taneamente diferentes dimensões do conheci- gajosas, sujas de mel, e vieram as moscas. Ila-
mento, pensamento, imaginação... a folha, em ria: mel é bom, eu como com cereal. Gaia: eu
também como cereais na xícara. As meninas
contato com os dedos, comunica sensações falam sobre seu café da manhã e, enquanto
(áspero, liso....), a cor do papel (branco, pre- isso, traçam linhas circulares com a cola. Ilaria:
parece um quadro!! A professora diz que vai
to...) e seu tamanho evoca emoções, evocando
pendurá-lo quando secar.
memórias, provocam movimentos tímidos ou
impetuosos (muitas linhas próximas umas das É importante que esta integração das
outras, ou longas ilas que escapam da folha linguagens e experiências, surgidas de uma
colorindo a mesa ....) e estas diferentes dimen- proposta pensada para a expressão artística, a
sões se integram às dimensões sociais relacio- partir da qual se origina um luxo de conheci-
nadas às interações com outras crianças. mentos que poderíamos chamar de holístico
Neste exemplo extraído de uma estru- (e talvez alguns poderão deinir como desor-
tura educativa, este aspecto emerge muito denado ou caótico) não seja interrompida pe-
las professoras, mas, ao contrário, encontrem
claramente:
espaço para se desdobrar em processos que
se auto alimentam de estímulos e solicitações
188
A ARTE E AS CRIANÇAS CAMINHOS A EXPLORAR, LINGUAGENS A EXPERIMENTAR
E UM MUNDO TODO À ESPERA DE SER DESCOBERTO
que têm relevância e signiicado para as me- citações, informações e desaios que incitem a
ninas envolvidas. Não faz sentido deinir qual curiosidade das crianças.
linguagem deve ser predominante (a de ex- Este exemplo ajuda a deslocar o proble-
pressão artística? a verbal? a simbólica?), uma ma da arte do nível dos conteúdos (o que ofe-
vez que a evolução deste fazer criativo espon- recer como conteúdo artístico especíico para
tâneo (não dirigido para produto predeinido crianças?) para o do contexto (qual realidade
pela professora que, contudo, está presente e diária para professoras e crianças?) e faz com
envolvida pelas meninas) permite que se de- que se torne prioritário o critério de coerência
senvolvam mais dimensões simultaneamente. ao nível educacional e organizacional como ten-
É importante permitir, as crianças desta idade são que exige um investimento constante de
em que se fundamentam as bases da identida- responsabilidade por parte de todos os prota-
de pessoal, vivenciar em liberdade esta riqueza gonistas envolvidos no sistema de ensino. Nesta
e pluralidade expressiva. Meninas comparam perspectiva, perde relevância a decisão de con-
categorias (creme, cola, mel) e buscam um iar o desenvolvimento de linguagens artísticas
projeto criativo que chega a um produto inal aos especialistas em arte ou atelieristas com
(parece um quadro!), participando de um pro- habilidades artísticas especíicas e, pelo contrá-
cesso que realmente tem signiicado para elas rio, é reavaliado o papel e o valor da professora
e que, portanto, justamente por isso, pode ge- que, na troca de experiências durante o plane-
rar conhecimento. A professora, com base na jamento de seu grupo de trabalho, desenvolve
experiência vivida pelas crianças e valorizando uma proposta educacional em que linguagens
os passos que a caracterizaram, terá à sua dis- diferentes, no luxo diário, podem ser oferecidas
posição, nos dias seguintes, a possibilidade de como oportunidade, pretexto ou desaio para
retomar e revitalizar alguns pontos para enri- as crianças. Pensamos que apoiar nas crianças a
quecer ainda mais a exploração das meninas, abertura, a curiosidade, o interesse pelas lingua-
expandindo o plano das oportunidades e pos- gens artísticas na visão holística que estamos in-
sibilidades, partindo seja do ponto de vista da dicando, ou seja, o entrelaçamento vital com ou-
expressão artística, por exemplo, ampliando a tras formas de expressão e conhecimento, seja a
variedade de materiais e objetos disponíveis), atitude fundamental e a sensibilidade de base
seja partindo do ponto de vista dos proces- das professoras, mais do que a competência ar-
sos de descoberta e de construção do conhe- tística especíica, entendida como um conjunto
cimento (as moscas são atraídas pelo mel, a de habilidades técnicas e artísticas em sentido
cola parece creme...). As crianças abrem trilhas literal. Pode, sem dúvida, ser interessante para
de conhecimento que as professoras devem as crianças conhecer artistas na creche, visitar
manter vivas, mas também ampliar com soli- instalações de arte e ver a arte ao vivo, mas o
189
Agnese Infantino e Franca Zuccoli
que realmente alimenta e orienta o desenvolvi- J., Understanding art education. Engaging re-
mento da sensibilidade artística nos pequenos lexively with practice. Routledge, Oxon, 2010.
é a cultura e o zelo pela qualidade cultural e ar- BRAQUE, G., Cahier 1917-1955 (ed. or. Cahier de
tística geral que se vive e se respira nos contex- Georges Braque, 1994), Abscondita, Milano, 2002.
tos da vida diária na creche, com as professoras CAGGIO, F., Abbatinali R. (a cura di). “... Quasi
que cuidam delas regularmente e que, com seu arte...” manufatti di bambini impegnati. Edi-
comportamento, podem ter um papel mais ou zioni Junior, Azzano San Paolo, 2004.
menos favorável para o desenvolvimento do CANNONI, E.. Il disegno dei bambini. Carocci,
potencial criativo das crianças. Pensamos por- Roma, 2012.
tanto em iguras de professoras cultas e artisti- DEWEY, J.. Arte come esperienza e altri scrit-
camente preparadas, capazes de atribuir valor ti (ed. orig. Art as Experience), Firenze, La Nuova
e signiicado artístico às experiências e criações Italia, 1995.
espontâneas das crianças mas não rigidamente DEWEY, J.. Scuola e società (éd. orig. The School
orientadas para captar nos gestos e traços de and society,1899), Firenze, La Nuova Italia, 1985.
cor das crianças somente as expressões artísti- EDWARDS, C., GANDINI, L., FORMAN, G. (org.). I
cas, mas também evoca outras linguagens, em Cento linguaggi dei bambini. L’approccio di
uma trama heurística para apreender e valorizar. Reggio Emilia all’educazione dell’infanzia.
Este trabalho, nada fácil e óbvio, não pode ser Edizioni Junior, Azzano San Paolo, 1995.
realizado isoladamente, mas em profundo acor- FREINET, C.. L’apprendimento del disegno.
do e sinergia com o todo o grupo de trabalho (ed. or. La méthode naturelle L’apprentissage
compartilhando passo a passo a evolução e as du dessin, 1975), Editori Riuniti, 1980.
modiicações ao longo do ano. Cabe ao grupo GOLOMB, C.. L’arte dei bambini: contesti cul-
de trabalho tornar viáveis essas experiências turali e teorie psicologiche. (ed. or. Child Art
de exploração e pesquisa das crianças, deinir in Context: A Cultural and Comparative Per-
as condições estruturais para o trabalho diário spective, 2002), Cortina, Milano, 2004
da creche, escolhendo critérios organizacionais INFANTINO, A. “Estágio e formação na práti-
coerentes: privilegiar a organização de peque- ca pedagógica em creches públicas italianas”.
nos grupos de crianças, lexibilizar a extensão Olh@res: Revista do Departamento de Edu-
dos ritmos do dia, disponibilizar objetos e mate- cação da Universidade Federal de São Pau-
riais ao alcance das crianças. lo. Unifesp, Dossiê Temático: Estágios curricu-
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191
10
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA
DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
193
Sandra Richter
de”2 como condição do agir na convivência e olhar de outro modo as primeiras experiências
a potência transformativa de iniciar uma ação de riscar e rabiscar – além e aquém das teorias
no mundo, este ensaio aborda educação, arte e do “desenvolvimento gráico” – para reter o fe-
infância desde a íntima relação entre imagina- nômeno da potência3 dos bem pequenos agir
ção, jogo e desenho. Aproximar infância, arte e e iniciar um gesto no mundo no ato mesmo de
educação é estabelecer interlocução entre três aprender pelo disegno4 – desenho e desígnio
campos de estudos que apontam para a radical
– “a composição de diferentes acessos e expe-
experiência de começar. Como airma o poeta,
riências com e a partir do desenho –, projetan-
arte é infância. Arte signiica não saber que do percursos inusitados para uma linguagem,
o mundo já é, e fazer um. Não destruir nada tão antiga e tão permanente, em contínua re-
que se encontra, mas simplesmente não achar
nada pronto. Nada mais que possibilidades. solução” (Derdyk, 2007, p. 17).
Nada mais que desejos. E, de repente, ser reali-
zação, ser verão, ter sol. Sem que se fale disso,
involuntariamente. Nunca ter terminado. Nun-
ca ter o sétimo dia. Nunca ver que tudo é bom.
Insatisfação é juventude (Rilke, 2007, p. 192).
194
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
em seu modo direto de interpretar e estabele- quenas na Educação Básica coloca ao pensa-
cer interações e signiicações com os outros e mento pedagógico a necessidade de reletir
consigo mesmas, subvertem crenças e pressu- suas concepções tanto da experiência da crian-
postos conceituais dos adultos ao mostrarem a ça pequena com a ação de desenhar quanto da
complexidade de viver um corpo “fenomênico relação entre educação e arte, pois a complexi-
indiviso”, ou seja, ao estarem “no social e no seu dade que tece a docência na Educação Infantil
corpo, nos dois meios ao mesmo tempo sem exige substituir as explicações e informações
nenhuma diiculdade” (Merleau-Ponty, 2006, das coisas e do mundo pela experiência do
p. 476 e 479). Nesse sentido, a fenomenologia corpo com as coisas no mundo. Supõe com-
emerge como potente condição para interrogar preender, com Gadamer (2005, p. 465), que “ex-
e abordar projetos pedagógicos voltados para periência contém sempre a referência a novas
a valorização dos riscos e rabiscos das crianças experiências. Nesse sentido, a pessoa a quem
pequenas ao favorecer a consideração do corpo chamamos experimentada não é somente al-
vivo em movimento no mundo: corpo que sen- guém que se tornou o que é através das expe-
te, que não é corpo em si, mas corpo em situa- riências, mas também alguém que está aberto
ção. Ou seja, em sua existência mundana. a experiências”.
Educar diz respeito ao acontecimento Nessa compreensão, torna-se importan-
que emerge dos encontros entre os adultos e as te a intencionalidade pedagógica de voltar-se
crianças, ou seja, entre modos de sentir e de pen- para a ação das crianças pequenas traçarem li-
sar em tempos diferentes. Aqui, acontecimento nhas como um fazer intimamente comprome-
não é o que se produz em um mundo, mas aber- tido com a tensão dos ensaios, das tentativas,
tura de um mundo. Por isso, Bárcena (2012, p. 67) dos desvios, das explorações, dos acasos e re-
airma ser a experiência da diferença entre tem- petições ocorridos no tempo do percurso para
pos, a descontinuidade temporal entre gerações, alcançá-las, pois tais tensões fazem parte dos
aquilo que especiica e possibilita a transmissão processos de igurar que a imagem plástica
pedagógica. A necessária inscrição no tempo e torna visíveis (Pohlmann, Richter, 2010).
na linguagem é o que nos torna educáveis, pois O ato de traçar linhas emerge na infân-
tanto a experiência do tempo quanto da lingua- cia como brincadeira, acolhendo e se nutrin-
gem diz respeito à potência transformativa do do da variedade de gestos que engendram
corpo em movimento no mundo. espaços de linguagem conigurados pela ínti-
A entrada dos bebês e das crianças pe- ma relação entre a tensão do jogo e a diversão
195
Sandra Richter
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TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Obstáculo aos rabiscos das crianças pe- “lições da teoria”, entre saber manual e saber
quenas: primado do realismo intelectual, desconsideram o fundo cultural e
social tecido pelo poder auto-criador do hu-
A intenção de deter-se no fenômeno da mano agir e não-agir, de produzir e refazer o
potência da ação de riscar e rabiscar das crian- mundo no ato de interpretar e transigurá-lo
ças pequenas tende a apresentar uma série de em sentidos e signiicados no coletivo. A frag-
diiculdades aos parâmetros e distinções do mentação se desdobra nas concepções de
olhar adulto e a instalar paradoxos que sub- realidade a partir da polarização entre razão e
vertem quadros pedagógicos de referências, imaginação, entre teoria e prática, e instala o
dados por premissas educacionais insistente- esquecimento da ludicidade, a eliminação do
mente preservadas. Premissas que dizem res- prazer da atenção estética implicada em toda
peito às concepções de ludicidade, de imagi- ação que promove a integração entre sensível
nação e de desenho enraizadas na redutora e inteligível. Esse esquecimento do prazer lú-
oposição entre um “dentro” (subjetividade) e dico advém de uma “clareza analítica” que pro-
um “fora” (objetividade). A polarização entre jeta objetivos orientados pelos imperativos da
sujeito e objeto impõe a hierarquia da razão produtividade que outorgam à ação um papel
sobre a imaginação e engendra tanto a hege- de meio instrumental.
monia da palavra e da nomeação quanto le- Porém, quando a expectativa é pelos re-
gitima o processo analítico da imagem como sultados da ação, o que se nega é o processo da
semelhança e identiicação. O postulado da experiência (Gadamer, 2005, p. 461). A conse-
representação mantém a imaginação no plano quência imediata é a separação entre “pensar”
da psicologia como entidade mental, privada e e “fazer”, ou seja, a fragmentação simpliicadora
inobservável, no plano da ilosoia popular da nos modos de agir e estar em linguagem pela
criatividade como decalque, uma cópia, uma desconsideração à experiência linguageira do
segunda coisa e no plano da pedagogia como corpo sensível que age no mundo para inaugu-
livre representação da fantasia5. rar sentidos e tornar inteligível a convivência.
As teorias que sustentam o pensamento A cisão entre razão e imaginação emer-
pedagógico, historicamente demarcadas pela ge, no pensamento ocidental, da visão como
polarização entre a “sabedoria da prática” e as metáfora privilegiada do conhecimento deini-
do pela operação intelectual capaz de separar
5 Herança tanto da teoria empirista do conhecimento quan- a sombra (trevas e erros) da luz sobre as coi-
to da psicologia de inspiração behaviorista.
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TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
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tendem a unir as coisas às ações que estas soli- do, ele é o seu próprio signiicado” e, por isso,
citam (Galimberti, 2006), os desígnios do traço pode jogar com sentidos e signiicados, com
redimensionam nossa relação com o mundo as coisas e com as pessoas. Como diz Gadamer
em seu poder de colocar sob os olhos aquilo (2005, p. 160), “todo jogar é um ser-jogado. O
que não vemos ou não podemos ver. Isto é, po- atrativo do jogo, a fascinação que exerce, resi-
dem ampliicar o real tanto no plano técnico8 de justamente no fato de que o jogo se asse-
e cientíico como no artístico ao permitirem nhora do jogador”.
passar do plano oculto ou intangível ao plano É o que nos diz Merleau-Ponty (2002)
disto que é mostrado, tornado visível (Richter, quando destaca que o desenho da criança,
2005). Essa é a complexidade da ação de dese- assim como do adulto, não pretende mostrar
nhar desde as primeiras experiências de riscar um sinal de identiicação “objetivo” do que vê
e rabiscar em algum suporte que receba a ins-
para comunicar-se com quem o olhará já que
crição de um gesto. Pelos devaneios da mão, o
sua inalidade é marcar no papel um traço de
traço designa
sua relação com as coisas. Aqui, não é o olhar
a transitividade do desenho que percorre os que domina, mas aquilo que desperta no
domínios da arte, da técnica e da ciência, cos- corpo e o instala no mundo, aquilo que fez
turando percepções e conceitos, dinamizan-
vibrar o olhar da criança – ou do adulto – e
do a inteligibilidade e a sensibilidade de pen-
samentos e ações engatados nas linhas que se virtualmente seu tato, seus ouvidos, seu senti-
projetam no espaço do mundo, provocando mento do acaso. Trata-se de dar um testemu-
tessituras de signiicados sempre emergentes
e em trânsito (Derdyk, 2007, p. 24). nho e não de fornecer informações (Merleau-
-Ponty, 2002, p. 186).
Podemos então pensar, com Leminski As produções igurativas – as igurações
(2009, p. 324), que desenhar “é uma ação vol- – por não serem espelhos idealizados, repre-
tada para o traço como materialidade, a linha sentação de uma ausência, mas “a exibição
como coisa do mundo. Um desenho – uma i- real de uma presença simulada” (Lichtenstein,
guração – propriamente não tem um signiica- 1994, p. 180), tornam a abordagem dos riscos
e rabiscos das crianças um imenso desaio à
pretensão de submetê-las ao domínio da ade-
8 Para Galimberti (2006, p. 87), o pacto original entre corpo quação entre palavra e mundo. Esse o desaio
e mundo que o gesto evidencia, é a condição de onde parte o
agir técnico, que permite ao humano, de per si inapto para o pedagógico. Diante da hegemonia da palavra,
mundo, constituir um mundo possível.
201
Sandra Richter
do tudo dizer e nomear, explicar e analisar, di- já conhecido no corpo adulto, ou seja, o que
icilmente encontramos no tempo e espaço da o adulto apresenta para a criança como expe-
Educação Infantil adultos dispostos ou dispo- riência cultural acumulada e o que a criança
níveis para brincarem com linhas, com as crian- projeta para o adulto como tempo ingênuo de
ças compartilharem a experiência lúdica de uma arte e de uma ciência adiante, ser aquilo
desenhar e inventar percursos ao olhar. que permite constituir repertórios para o devir,
Cabe advertir que não se trata nem de um repertório para atualização futura.
desenhar para a criança nem como uma crian- Porém, paralisados pela ideia de “be-
ça, muito menos “ensinar” a desenhar como la-imagem” – desenho “certo” ou “bem-feito”
adulto, mas desenhar com a criança como adul- – muitos adultos esquecem que tanto a arte
to capaz também de brincar com suas possibi- como a técnica e a ciência recorrem aos mes-
lidades de igurar e conigurar sentidos através mos meios em sua investigação do universo:
de traços e linhas. Como diz Deleuze (2003, p. com alguns traços e linhas podem contrair a
21), “nunca se aprende fazendo como alguém, imensidão do mundo não apenas para tra-
mas fazendo com alguém”. Assim como pode- duzir sua profundidade como para alcançar a
mos brincar com palavras e poetizar o vivido e riqueza da multiplicidade de horizontes que
o possível de ser vivido com as crianças, pode- ampliicam e favorecem sua aproximação
mos brincar ao desenhar, cantar, falar e dançar através de uma apropriação: a instauração de
com as crianças e não “para” elas. Não se trata uma inteligibilidade.
de ensinar uma “atividade” – o que fazer – mas
de viver com as crianças a ludicidade dos en- Riscos e rabiscos: linhas brincantes
saios do fazer, de efetuar a interlocução cultu-
ral entre o que adultos sabem fazer e o que as Lançar um olhar fenomenológico para
crianças podem ensaiar fazer. os primeiros traços das crianças pequenas no
Encontros entre adultos e crianças con- cotidiano da educação infantil é promover
iguram movimento inindável – ou existencial abertura à surpresa que emerge do interesse
pela experiência lúdica de traçar linhas – pelo
– de aprendizagens no qual ambos sempre
tempo da ação do gesto jogar com a ação de
aprendem. Implica compreender com Michel
fazer aparecer linhas em alguma superfície – e
Serres (1993) a airmação de ser a mistura en-
não apenas pelos resultados visuais alcança-
tre o não saber ainda do corpo da criança e o
dos ou esperados. Ação implica iniciativa do
202
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
corpo, signiica considerar o ponto de vista de é o que determina seu aparecer no processo
quem a realiza, de quem toma a decisão de ini- mesmo de sua produção. A repetição instrui ao
ciar um gesto que dá outro rumo às coisas. ensinar a realizar escolhas (Bachelard, 2000).
Riscar e rabiscar diz respeito à expe- Repetição não supõe a redutora com-
riência lúdica de tornar visível a ação do cor- preensão de “fazer igual” – o mesmo – mas
po traçar linhas que não delimitam objetos ou realimentação que implica a continua reela-
iguras, mas propõem e instauram percursos boração do que aconteceu antes. Experiên-
que se inscrevem no tempo: uma linha renun- cias não apenas imediatamente agradáveis,
cia; uma linha repousa ao se deter. Uma linha mas realimentadoras de experiências por vir.
se fecha; outra se arrendonda; outra alonga o Benjamin (1994) destaca o equívoco adulto de
olhar. Fios partem ainda, lenta ou bruscamen- observar a brincadeira da criança sob o ponto
te, forjando uma escritura temporal que anun- de vista da imitação enquanto cópia ou trans-
cia a passagem da linha ao signo. Movimento crição passiva. Brincando e jogando com linhas
intenso que expõe a qualidade expressiva da a criança explora seu poder criador-inventivo
linha profundamente comprometida com os ao exercer e exercitar a liberdade de repetir e
ritmos do corpo. A linha emerge da “pontinha re-iniciar movimentos no mundo.
da mão” como um sismógrafo muito sensível Para Cattani (2004), a repetição é a trans-
do que ocorre no corpo9. gressão, é o modo – o procedimento – de per-
A linha “– estrutura óssea do desenho seguir uma questão plástica (uma linha, um
– capta, delineia, designa, atrai, arrasta, puxa, modo de traçar). É experimentação, investiga-
traceja, lança, planeja, projeta como vetores ção, interrogação, envolve o jogo, o acaso, as
de ação que se estendem dos traços do pen- lógicas combinatórias (Cattani, 2004, p. 80).
samento” (Derdyk, 2007, p. 18). Na iniciativa de Ações que não são privilégio das crianças, mas
realizar o gesto de traçar o importante é tentar que com elas e nelas começam. A repetição é
fazer, é ensaiar gestos sem saber de antemão o o cerne da brincadeira: a criança recria a expe-
que se “deve fazer” e “como fazer”, mas apren- riência, começa sempre tudo de novo, desde o
der a fazer como um perfazer que acontece no início. Nada dá mais prazer que “brincar outra
processo mesmo de equacionar o acaso que o vez” para saborear repetidamente, de modo
produziu. Por isso, a historicidade do percurso mais intenso, os mesmos êxitos e triunfos (Ben-
9 Citação anotada a partir da escuta de Edith Derdyk no Se-
jamin, 1994, p. 253). A fascinação, o poder de
minário Linguagens e Infância, evento ocorrido na Faculdade de envolvimento dados pelo encanto, pela excita-
Educação da Universidade de São Paulo - USP, em 2011.
203
Sandra Richter
ção, pela tensão da expectativa, pela alegria da partir de mudanças de direção que acontecem
repetição, pela distensão após o esforço, fazem durante o percurso do gesto sobre o suporte.
do divertimento uma abertura existencial ao O gesto enlaça o movimento em seu futuro, o
mundo capaz de nos impregnar de uma ale- signiicado do gesto, da iguração, que há de
gria de viver elementar. Uma alegria que é mais desenhar-se. O gesto plástico é movimento
que o prazer que dão as coisas sérias, úteis e valorativo: vamos fazendo e vamos avaliando.
agradáveis. Essa alegria emerge do transbor- É ato de estar presente, fazer-se real, viver que
damento da vida, de uma ampliação do viver remete ao futuro, constante reformulação de
capaz de promover a necessária suspensão suas próprias intenções. Os traços mostram-
temporária das ações no cotidiano. Essa ultra- -se sempre inacabados, sempre atuais em suas
passagem dos limites da realidade física, pro- repetições. Cada marca contém a gestação de
movida pelo divertimento, deine por excelên- outra, o germe de outra marca, engendrando
cia o lúdico como dimensão primal da vida. O
um encadeamento.
divertimento resiste a toda análise e interpre-
Pela repetição, o gesto e sua marca for-
tação lógicas porque se ancora na dinâmica de
jam e inventam percursos para o olhar (que é
valorar e signiicar o vivido no ato mesmo de
diferente do olho conduzir a ação do gesto).
revivê-lo pela imaginação (Bachelard, 1990).
Tentar é jogar com possibilidades. Tentar é ta-
Os primeiros traços são marcados pelo
tear, é projetar movimentos, é brincar, é imagi-
acaso. Exigem da criança disponibilidade para
nar e, por isso, a tentativa joga com seu tempo,
a investigação, para a ação de perseguir gestos
com seu ritmo, com seu valor, pois “o movi-
que não sabem como terminará. Nesse movi-
mento de exploração lúdica dos traços, mão mento que é jogo não possui nenhum alvo em
e linha são inseparáveis: ensaiam, buscam, que termine, mas renova-se em constante re-
fazem e refazem, alternadamente sonham e petição” (Gadamer, 2005, p. 156). Por isso, as-
pensam no jogo das aparências. Da repetição sim como “o luxo contínuo do rio de Heráclito,
emerge o vínculo que especiica a brincadeira, nunca se desenha o mesmo desenho, nunca o
termo cuja origem deriva de brinco, do latim traço da linha será igual. Em permanente mu-
vincùlum – liame, laço, atadura. tação, a natureza do desenho é sempre a mes-
A repetição dos traços vincula-se à va- ma e sempre outra!” (Derdyk, 2007, p. 17).
lores rítmicos nos quais as linhas são vetores, As linhas rabiscadas arrebatam a visão
direções, intervalos. Um espaço plasmado a pela espontaneidade do movimento que en-
204
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
frenta o não formado ainda. Ao invés de uma No percurso da ação de desenhar não há
visão já conigurada, uma forma pré-vista, viabi- subjetividade nem objetividade, mas evento,
lizam um mundo em formação, em tentativa de pois nesse fazer não há comando – domínio da
formar-se a partir de lacunas e supressões. Essa ação – mas a surpresa que emerge da impre-
supressão é mais importante para a eiciência visibilidade dos tateios e dos acasos da ação
da visão que a nitidez das igurações deinidas exploratória dos traços sempre inacabados,
em todos os seus detalhes. A clareza de deta- sempre outros. Movimento aberto ao devir, ao
lhes não exige nada do olhar, nenhum esforço inusitado que é iniciar a coexistência do gesto
para colocar outras imagens na imagem, de es- impulsivo e o traço intencionado, tão diferente
tabelecer correspondências e relações igurati- do gesto e do traço ensinados. Implica com-
vas. Há mais para projetar pela imaginação no preender com Merleau-Ponty (1991, p.79), que
vago e no impreciso, do que no já visualizado os traços “saem de mim como os meus gestos,
pela percepção. Há mais coisas para ver no que são-me arrancados pelo que quero dizer como
se oculta do que naquilo que se mostra. A aten- os meus gestos pelo que quero fazer”. Meu cor-
ção ampliica-se investida pelo poder de ver a po pode signiicar para além de sua existência,
intimidade do avesso das coisas, sua imensidão ou seja, pode começar, anunciar ou recomeçar
oculta. Essa imensidão está em nós e não nas e implantar um sentido naquilo que não tinha.
coisas, no eco que reverbera em nós. Nesse sentido, o ato de riscar e rabiscar
Nos percursos dos rabiscos, a visão adul- não supõe um repertório de gestos ou de ima-
ta é exigida a voltar-se para os sentidos em pro- gens, mas certo modo de agir e ser surpreen-
cesso de constituição formal de um sentido. Os dido pelo que aparece, pois não traduz, na
começos, as iniciativas das crianças riscarem e criança que traça e desenha, um pensamento já
rabiscarem para brincar com linhas subvertem feito, mas o consuma. O espaço é ocupado an-
petriicadas convenções de reconhecimento tes por acontecimentos do que por percepções
adulto ao expor o princípio poético do proces- ou formas formadas, pois se trata de um espaço
so de artifício plástico da forma. As sutis trans- de afetos e não de propriedades observáveis.
formações surgem como um passeio por ter- O que aí vigora são valorações e não medidas.
ritórios desconhecidos no qual a linha assume Ou seja, vigora uma percepção háptica10 e não
uma via de acesso ao compromisso vital com
10 Sob sugestão de Merleau-Ponty (2011), opto por háptico –
o mundo de retirar desse encontro sentidos a em oposição ao óptico – pelo termo não opor visão e tato, suge-
partir da expressividade do gesto. rindo que o olho pode tocar assim como o tato pode engendrar
visões.
205
Sandra Richter
óptica. O espaço é ocupado por intensidades comerá os mesmos alimentos que a lagarta.
A única coisa que se mantém é o sistema ner-
rítmicas, qualidades tácteis, forças e ruídos, in- voso. Assim é que a lagarta se destrói como
tervalos e silêncios. Um espaço de linguagem tal para poder constituir-se como borboleta
esquadrinhando percursos no qual a criança (Morin, 1996, p. 286).
não está “diante” dele, tampouco está “dentro”:
ela está nele, participando do devir linguageiro A metamorfose, em Bachelard (1995), é
do acontecimento plástico. Torna-se, aqui, im- meio de concretizar de imediato um ato vigo-
portante compreender com Gadamer (2005) roso: a conquista de outro movimento, outro
que o humano não tem linguagem, ele é lingua- tempo. As primeiras aprendizagens diferem de
gem; que compreensões não ocorrem com, mas todas as demais porque não podem tornar a
na linguagem, ou seja, ao estar em linguagem. serem vividas. A primeira vez é insubstituível
em seu acontecimento corporal único e sin-
Entre o sensível e o inteligível: as meta- gular, pois não podem voltar a serem apren-
morfoses do gesto e da linha didas, apenas repetidas (Richter, 2005). Supõe
compreender, com Bachelard (1995) e com
O enigma do humano está em sua po- Morin (1996, p. 286), que a ação de aprender
tência transformativa – suas metamorfoses – a emerge como ação de nos metamorfosear, ou
partir das primeiras experiências de aprendiza- seja, como transformação radical daquilo que
gem no e com o mundo. Transformações ocor- em nós permanece. Permanece em nós por-
rem quando algo passa a acontecer de outro que o corpo “lembra de tudo, sem qualquer
modo e não quando desaparecem. No que foi diiculdade ou impedimento. (...) a inteligência
transformado sempre permanece aquilo mes- humana se distingue da artiicial apenas pelo
mo que possibilitou a sua transformação (San- corpo” (Serres, 2004, p. 18) e, por isso, para
tos, 2003, p. 26). O processo da metamorfose é Bachelard (1995, p. 106), “na inteligência não
delicado, pois implica mudança radical: todo o há nada que não tenha estado primeiro nos
ser transforma-se mantendo-se. músculos”. Aqui, o corpo em movimento não
apenas se desloca no mundo, mas é capaz, nas
Para que a lagarta se converta em borboleta, palavras de Serres (2004, p. 139), “de todas as
deve encerrar-se numa crisálida. O que ocor-
re no interior da lagarta é muito interessante; metamorfoses possíveis; se ele não as execu-
seu sistema imunológico começa a destruir ta de maneira perfeita, ele sabe, pelo menos,
tudo o que corresponde à lagarta, incluindo simulá-las ou imitá-las”. Portanto, não é trivial
o sistema digestivo, já que a borboleta não
206
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
o modo como podem acontecer interações lú- basta recordação: têm que serem transmuta-
dicas entre adultos e crianças pequenas com a dos, reinventados, recontados, refeitos, desde
ação de riscar e rabiscar na Educação Infantil. os últimos aos atuais, em um movimento que
Contra a crença geral, os primeiros tra- é tanto de conservação como de renovação.
ços, os riscos e rabiscos, não terminam, não Para aprender não basta explorar, manipular,
constituem mera “etapa inicial do desenvolvi- falar sobre, há que refazer, recontar, rearranjar
mento” – seja do humano seja do graismo – os próprios movimentos.
pois permanecem, tem continuidade, se trans- Os riscos e rabiscos, na repetição inven-
formam e duram em suas metamorfoses ao tam-se, recomeçam, retomam, reinventam-se,
nos mostrarem que o fazer é sempre produzir11 complexiicam-se em atualizações que vão en-
o mesmo de modos diferentes. Pela repetição gendrando movimentos transigurativos que
– que o corpo e a memória permitem – os ris- nos faz aprender a ver – e agir – de outros modos,
cos e rabiscos se complexiicam em relações porque espaços de linguagem se alteraram e já
possíveis para constituir o que permanece em não é possível ver e ter as mesmas visões. Não
nós não tanto como “aquilo” ou “o que” apren- são gestos superados. Coniguram ritmos, duram
demos, mas o modo como aprendermos a fa- em suas descontinuidades. Por serem descontí-
zer-pensar “aquilo”. Os primeiros gestos que o nuos podem ser re-arranjados, podem começar e
corpo aprende são possibilidades para trans- recomeçar “outra vez” para inaugurar outros ges-
formar – atualizar – outras aprendizagens. tos e outras marcas. Não somos imóveis, o corpo
Para que os primeiros riscos e rabis- se movimenta, desloca-se, sedimenta gestos e
cos – as primeiras marcas – permaneçam não marcas no corpo. A recursividade do gesto tem-
poraliza-se na repetição mesma.
11 O verbo produzir é aqui compreendido no sentido pleno e Nessa abordagem, prévias concepções
diverso que Morin (2002, p.199-201) restitui ao sentido do termo:
“Produzir signiica, no sentido principal para nós aqui, conduzir de “arte” e suas adjetivações em contemporâ-
ao ser ou à existência (...) a partir de materiais brutos. A geração nea, moderna ou outra, não permitem pensar
de um ser por um outro é a forma biológica inal da poesia”. As-
sim, Morin utiliza o termo poiesis para devolver ao termo produ- a potência das crianças pequenas começarem
ção sua conotação criadora – seu caráter genésico de interações um gesto no mundo ao trazerem a condição de
criadoras – diante da conotação tecnoeconômica que o aprisio-
nou à noção de fabricação repetitiva de bens materiais contraria, um olhar já determinado por sua nomeação,
portanto, à ideia de criação: “é preciso notar que a ideia de cria-
ção está longe de ser contrária à de produção: toda produção
ou seja, por prévias classiicações e discursos.
não é necessariamente criação, mas toda criação é necessaria- Prévias expectativas que impedem compreen-
mente produção”.
207
Sandra Richter
der que “arte não se sabe, se faz para saber” Em Bachelard (1988), a qualidade das in-
(Derdyk, 2010, 34). terações não provem dos aspectos observáveis
Acolher a tendência, no campo educa- e conhecidos do mundo, mas do envolvimen-
cional, de considerar a linguagem do desenho to com os valores que emerge desta interação.
como “tradicional” diante das produções ar- Os sentidos produzem sentidos pela vontade
tísticas contemporâneas, torna-se no mínimo de olhar para o interior das coisas, tornando a
complicada quando o assunto é educação de visão aguçada, penetrante, para além do pano-
crianças pequenas. O que se poderia dizer tra- rama oferecido à visão.
dicional são os critérios ou discursos em torno Já não se trata de uma curiosidade con-
da ação de desenhar pautados na redutora templativa e passiva, mas de uma curiosidade
concepção – tão datada quanto localizada – de agressiva porque inspetora, investigativa, pro-
vocando naquela criança curiosa que penetra
arte como relexo ou identiicação de um “real”
na mundanidade do mundo a constituição em
ditado pela nomeação de uma racionalidade
si mesma de planos diferenciados de profun-
simpliicadora. O discurso sobre arte é que é
didade que a conduz ao extremo da sensibili-
datado, histórico. Porém, como potência de
dade, aquela que promove a fusão entre corpo
pensamento e experiência de linguagem dese-
e mundo. A complexidade está em considerar
nhar e pintar não são “tradicionais” porque não
com Bachelard (1989) o limiar entre o medo e
são categorias! Desenhar (assim como pintar,
a curiosidade que acompanha toda ação inicial
modelar, esculpir) é gesto no mundo. Esquecer
da criança sobre o mundo, pois
o caráter experimental e operativo da arte é
desconsiderar o corpo que age no mundo e o o medo trava a curiosidade (...) Gostaríamos
transigura como modo de torná-lo inteligível. de ver e temos medo de ver. Eis o limiar sen-
sível de todo conhecimento. Nesse limiar o
O encontro com “as coisas da arte” (Rilke,
interesse ondula, perturba-se, volta. (...) Não
2007) é sempre contemporâneo à experiência raro revela-se aí estranhas sutilezas. Como au-
sensível que só pode emergir em presença – mentam as ondulações de medo e curiosida-
de quando a realidade não está presente para
o inquietante perdura, permanece presente,
moderá-las, quando se imagina! (...) imagens
nos instala no presente – no aqui e agora do efetivamente imaginadas, realmente dese-
encontro do corpo sensível, portanto transfor- nhadas (...) estamos em presença do ato au-
mentativo pelo qual a imaginação ultrapassa
mador, com a produção artística. Porém, cada
a realidade (Bachelard, 1989, p. 122).
vez menos o corpo é solicitado. Permanece a
análise, a abstração, a explicação.
208
TRAÇAR, RISCAR E RABISCAR: EXPERIÊNCIA DE DESENHAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Para Bachelard (1988, p. 113), implica in- ção Infantil como tempo e lugar de aprender
verter ou substituir a percepção pela admira- a encantar-se com o ato lúdico de estar em
ção para acolher os valores daquilo que se per- linguagem, como espaço formativo de tem-
cebe, pois é essa capacidade de ultrapassar o poralização de um corpo que tem que apren-
percebido que faz a imaginação reencontrar e der a alternadamente pensar e sonhar, idear e
prolongar as forças que estão no mundo. devanear. Complexiicar interações no e com o
Acompanhar o tempo do aparecer dos mundo pelo ato de narrar, recontar e refazer o
traços das crianças pequenas supõe adentrar vivido: aprender a magicar e a imaginar.
no movimento de seus riscos e rabiscos e com
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211
11
PARA ALÉM DOS ACALANTOS:
A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
213
Aruna Noal Correa
música. Foi nessa direção, que a tese, a qual este [...] a criança é percebida como um outro, como
um diferente, mas não como adulto incom-
artigo está conectada, se desenvolveu.
pleto, impotente, mudo ou gago. É percebida
Muito disto, em contrapartida a uma como ser competente, em sua inteireza, capaz
visão de bebê considerado como um sujeito de soisticadas formas de comunicação, mes-
mo quando bebê, estabelecendo trocas sociais
pequeno e frágil, que vive o entremeio entre a
com coetâneos e adultos, através de uma rede
ênfase que socialmente relegamos ao momen- complexa de vínculos afetivos (p. 213).
to do parto, e as potencialidades do vir a ser, de
alcançar determinadas capacidades. Gottlieb Este bebê potente entra em contato com
(2009), em expressivo texto acerca de onde fo- uma nova gama de relações e experiências
ram parar os bebês que conhecemos, sugere quando passa a frequentar a creche. A creche,
que a atenção despendida pelos pesquisado- que no Brasil abrange a faixa etária de zero a
res para com os bebês é quase inexistente, “em
cinco anos, na Itália corresponde ao nido, no
quase toda a literatura antropológica bebês são
qual frequentam as crianças bem pequenas até
frequentemente negligenciados, como se esti-
os três anos de idade. O berçário dos bebês bra-
vessem fora do escopo tanto do conceito de cul-
sileiros, na Itália corresponde a um espaço no
tura quanto dos métodos da disciplina” (p. 313).
interior do nido denominado lactário, no qual
Acrescentando que o bebê é percebi-
os bebês, que também identiico como crianças
do pela clara dependência conectada ao sexo
bem pequenas, ocupam com maior frequên-
feminino, a aparente ausência de memória
quando adulto acerca desta época da vida e in- cia. O que não inviabiliza que os bebês ocupem
capacidade de comunicação, com ínimo grau suas demais dependências.
de racionalidade, dentre outros fatores men- A creche italiana não é assistencialis-
cionados pela autora. Expondo que “uma ava- ta, não identiica a criança como “aluno” “[...]
liação intercultural adequada dos bebês pode apesar de incluir, em seu ideário, a garantia da
também nos ajudar a superar nossas próprias continuidade com a pré-escola e a escola; por-
convicções acerca da natureza da natureza e tanto, apesar de ser uma instituição educativa,
da natureza da cultura” (Gottlieb, 2009, p. 327). diferencia-se da escola” (p. 213), e ainda, não
A compreensão que enfatizo, está vin- objetiva preponderantemente a preparação
culada à concepção de criança e bebê italiano. do futuro adulto. A creche propicia “[...] que a
Para tanto, tomo como base o trecho extraído criança seja hoje alguém com muita imagina-
de Faria (1998), no qual a autora expõe: ção para, quando adulta, ser capaz de cons-
truir uma sociedade diferente, onde convivam
214
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
crianças e adultos diferentes dos atualmente sob muitas origens. Suponho que essa concep-
existentes” (Faria, 1998, p. 213). ção, acerca dos bebês explorarem o cotidiano
Para além dos acalantos, este capítulo de maneira sonoro-musical, possibilitará, de
traz arraigada, uma vertente permeada pela certo modo, a eles, construir referências musi-
perspectiva de ver os bebês a desenvolver o cais particulares.
seu potencial sonoro-musical, como crian- Principalmente, porque ao pensarmos na
ças ativas, protagonistas da ação de explorar música dos bebês, “[...] quase sempre remete-
musicalmente o contexto que os cerca. Foi mos às canções de ninar ou acalantos [...], [e] é
durante o processo do doutorado e do aden- interessante notar que relatos do uso de música
tramento nas relexões acerca da pedagogia com bebês e crianças pequenas existem desde
da creche italiana, e da sociologia da infância, a antiguidade [...]” (Ilari, 2006, p. 271). Época em
que acreditei que poderia discorrer acerca das que se compreendia a música a partir da pers-
potencialidades sonoro-musicais dos que dei- pectiva da epistemologia da palavra acalanto
xaram a muito tempo, de serem considerados
(Huizinga, 2000, p. 118), sem observar que a mú-
meros receptores de conhecimento (Redin,
sica também pode originar-se com os bebês. O
2005), e de serem ouvintes passivos e pouco
que deixa transparecer, que não trato em minha
soisticados (Ilari, 2002, p. 84). Concepções
pesquisa de doutorado de uma novidade, e sim
que icaram em um tempo no qual todos os
de tema que envolve crescente relexão.
conhecimentos eram um pouco mais limita-
dos.
Considerações acerca de conceitos que
Ainal, como já dizia Margaret Mead, crianças nos fazem compreender a música pelo
existem em toda parte, e por isso podemos viés dos bebês
estudá-las comparando suas experiências e
vivencias; mas essas experiências e vivencias
são diferentes para cada lugar, e por isso te- Antecipadamente, podemos pensar
mos que entendê-las em seu contexto socio- num processo formativo precoce com o uso
cultural (Cohn, 2005, p. 26).
da música (questões que envolvem a formação
pensando no futuro da criança) ou, em um pro-
As crianças são diferentes também em
cesso conectado a estimulação de diferentes
seus tempos, em épocas, e vivem infâncias
áreas do cérebro (neurocientiicamente falan-
totalmente diferentes; o que permite que ob-
do), e que certamente é uma verdade. Entre-
servemos o quanto a educação musical para
tanto, viso com a investigação, compreender
bebês pode ser múltipla, abarcando vivências
215
Aruna Noal Correa
216
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
que se entrelaçam: o espaço físico para explorar, infantil sem cantar com as crianças.
o entorno humano e o contexto deste entorno E assim o é, mas como algo naturalizado,
(Malaguzzi apud Hoyuelos, 2004, p. 134). marcadamente corriqueiro aos bebês. Ou seja,
Nessa conjunção, ica clara a aposta ita- neste sentido a música e o canto, mais espe-
liana, que engloba também, a dimensão da fan- ciicamente, são incorporados por valores do
tasia, do envolvimento da imaginação dos bem adulto, do espaço/tempo em que é desenca-
pequenos. São chaves, folhas, sementes, objetos deada, e do bebê que está envolvido naquela
que corriqueiramente não entrariam na sala de ação. É permeada pelo sentido do acalanto,
berçário, mas que potencialmente são investidos que ofereci no início deste capítulo.
nestes espaços na esperança de que a imagina- Dewey (2010, p. 97) sugere que:
ção da criança pequena permitirá a construção
de processos exploratórios variados. Em geral, há uma reação hostil à concepção
da arte que a liga às atividades da criatura viva
O que nos remete a compreender que os em seu ambiente. A hostilidade à associação
espaços de berçário podem ser enriquecidos das belas-artes com os processos normais do
também no que se relaciona a área de música. viver é um comentário patético ou até trágico
sobre a vida, tal como comumente vivida. É
Características simples agregadas ao cotidiano
somente pelo fato de a vida ser usualmente
dos bebês torna instigante a exploração sonoro- muito mirrada, abortada, embotada ou car-
-musical dos pequenos. Desse modo, “o desen- regada que se alimenta a ideia de haver um
volvimento cognitivo-musical deve-se à progres- antagonismo intrínseco entre o processo da
vida normal e a criação e apreciação de obras
siva diferenciação e reorganização dos esquemas da arte estética.
musicais, que se tornam mais reinados em fun-
ção da estimulação do ambiente” (p. 115) expõe Pois advém, em grande parte, da cultura
Cecília França, em artigo publicado em 2008. musical que o adulto construiu anteriormente.
Ao pensarmos sobre a organização do Trata-se de uma música que cantamos porque
cotidiano dos bebês na creche, observamos temos vontade. O que aqui é proposto, é que
que “[...] a música tem um papel importante no necessariamente não será uma rotina voltada
desenvolvimento e na rotina da criança pré-ver- à música que permeará essas descobertas, mas
bal” (Ilari, 2006, p. 296). Assim como na escrita de
inicialmente, as possibilidades oferecidas pelo
minha dissertação (Correa, 2008), quando pude
contexto de berçário que trará essa construção
reletir acerca de uma das narrativas mais mar-
sonoro-musical à tona.
cantes das professoras de educação infantil en-
Como menciona Spitzer (2007), em ci-
trevistadas, quando uma delas mencionou que
tação anterior, os bebês precisam de seus
não há como entrar em uma sala de educação
217
Aruna Noal Correa
tempos e espaços para construir um conheci- menciona que as relações que construímos no
mento signiicativo. E as experiências, acima decorrer dos dias são “[...] sempre contamina-
de tudo precisam fazer sentido para o bebê, das pelas experiências que trazemos conosco”5.
dentro daquilo que já se viveu. A experiência, Complementarmente, expõe que “[...] as crian-
diria Dewey (2010), “[...] ocorre continuamente, ças não são moldadas pela experiência, mas dão
porque a interação do ser vivo com as condi- forma à experiência” (Malaguzzi, 1999, p. 98).
ções ambientais está envolvida no próprio pro- O mais importante, será sempre, que:
cesso de viver” (p. 109). Devo ressaltar apenas,
que para que a vivência torne-se experiência [...] a qualidade da informação a que somos
ela deve ser considerada singular. expostos e a quantidade de informação que
adquirimos [, que] têm efeitos sobre a estrutu-
O que signiica que: ra cerebral ao longo de toda a nossa vida. Pro-
vavelmente, esse processo não é a única ma-
[...] todas as culturas do mundo têm canções neira pela qual a informação é armazenada no
especiais para bebês e crianças pequenas. E, cérebro, mas é de grande importância para a
mesmo que o bebê não entenda quem é Tutu compreensão de como as pessoas aprendem
Marambá, ou o que exatamente quer dizer a (Bransford; Brown; Cocking, 2007, p. 160).
letra da canção, ele já está pronto para com-
preender as mensagens afetivas implícitas na
voz e no gestual daquele que canta. Mais do Nesta perspectiva, relito sobre a dimen-
que isso, experiências musicais afetivas como são da educação musical dos bebês, no que se
essa ajudam não apenas na modulação do refere às preocupações aparentes com conteú-
comportamento e do humor do bebê, mas
também aparentam constituir parte da base dos e estruturas. Resgato, aqui, uma citação de
do pensamento musical humano no decorrer Ilari (2006), que fornece subsídios para enfatizar
da vida (Ilari, 2006, p. 296). que o bebê “[...] dispõe de diversas competên-
cias musicais, algumas que têm início ainda no
Pelo viés da neurociência, os bebês nas- útero materno”, complementando, que “ao que
cem com uma bagagem de conhecimento. tudo indica, essas competências são inluencia-
Cerebralmente, o bebê já possui todos os neu- das e desenvolvidas ora pela maturação normal
rônios necessários para as conexões do saber do ser humano ora pelas interações do bebê
(Bransford; Brown; Cocking, 2007). O que as com sua família e cultura” (Ilari, 2006, p. 294).
modulam, segundo estes autores, são espe- Ao abranger aqui também, os adultos, que per-
ciicamente as experiências, que simples ou meiam as relações cotidianas com o bebê.
complexas, levarão à maturação do desenvolvi-
mento do bebê. Malaguzzi (1993, p. 2) também 5 Tradução da autora da pesquisa, do original: “[...] always
contaminated with the experiences that we bring with us”.
218
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
Retomo, agora na linha de raciocínio de pela nova visão musical que apresentava ao
Malaguzzi, à concepção de criança/bebê incor- mundo. Nessa direção, Cage (apud Schafer,
porada pela pesquisa de doutorado, o qual a 1992, p. 120) sugere que “Música é sons, sons à
considera “[...] um ser dotado de altas capaci- nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de
dades desde o nascimento. Em potência, con- salas de concerto”.
tém todas as capacidades humanas e todas E a música dos bebês, poderia ser ob-
as suas linguagens expressivas” (Hoyuelos, servada com esta mesma deinição? Sugiro
2004, p. 72). E acrescenta que “a imaturidade que sim e que, além de ritmo, melodia, harmo-
da criança não é impotência, mas a possibili- nia, dentre outras características, a música dos
dade e potencial de crescer” (Malaguzzi apud bebês seja considerada experimentação dos
Hoyuelos, 2004, p. 75). sons, baseada nos processos exploratórios que
Ambas as perspectivas de criança são realizam no mundo que o cerca, por meio dos
entrelaçadas ao compreender que elas pos- sons produzidos por si, por instrumentos, obje-
suem muito além de cem capacidades, cem tos e materiais diversos, pelo corpo em contato
formas de ver o mundo, cem, aqui compreen- com outras superfícies e o que mais a imagina-
didas na concepção de Malaguzzi. Esta possibi- ção permitir.
lidade, acrescentaria, é ainda permeada pelas Além das experimentações sonoras pro-
conexões que o bebê estabelece antes mesmo tagonizadas pelos bebês, o que emerge do co-
do nascer. O som está na vida do ser humano tidiano do berçário, são algumas interferências
desde o útero materno (Klaus; Klaus, 2007; To- construídas pelos adultos, em relação ao con-
matis, 1999; Trevarthen, 2002). tato com um repertório vasto, vinculado aos
Para Murray Schafer (1992, p. 25), a dis- diferentes gêneros musicais e culturais, a pro-
cussão que envolve um conceito acerca da mú- posta de um espaço rico sensorialmente, o ofe-
sica deve ser realista e em relação ao cenário recimento de instrumentos musicais originais,
musical da atualidade, ou seja, a música muda para que os bebês passem a ter a curiosidade
de acordo com o momento histórico e com a musical a respeito das diferentes formas e so-
cultura, e todos merecem “[...] uma deinição noridades tímbricas, entre outros.
de música que seja útil e ‘viva’”. Ceppi e Zini (2011), acerca das palavras-
Ao considerar insuiciente sua deinição -chave para uma pedagogia da creche italiana,
de música (mencionada em “O compositor na mencionam a polisensorialidade, palavra que
sala de aula”), Schafer (1992) questiona John deine aquilo que a pesquisa incorpora como
Cage acerca de sua concepção, justamente questão fundamental para que o berçário da
219
Aruna Noal Correa
creche brasileira permita a organização desse É o sujeito que decide, escolhe se e quando
aprender. Aprender é, portanto, essencial-
processo de exploração musical de forma cor-
mente uma escolha livre e de liberdade de
riqueira6, cotidiana. submeter-se. O contexto, deinido e deter-
Estes autores expõem ainda, que: minado pelas relações e interações com os
outros e, em seguida, também pelos espaços,
móveis, cor, iluminação, ruído, determina as
A qualidade de um ambiente é resultado de
possibilidades e qualidade dos processos de
uma multiplicidade de fatores: tem inluên-
auto-aprendizagem que cada um escolhe a
cia a forma do espaço, a organização fun-
produzir nesse contexto e graças a esse con-
cional, o conjunto de percepções sensoriais
texto (Ceppi; Zini, 2011, p. 17).
(luz, cor, sistema acústico e microclimático,
sugestões táteis). A lógica que regula tal per-
cepção não é unívoca. [...] o ambiente deve É o bebê, em constante relação de
ser assim concebido como um espaço po-
lisensorial, não tanto no sentido de ser rico exploração com o ambiente, que escolhe quais
de estimulação, quanto no sentido que deve conhecimentos construir e no seu tempo.
ser equipado com diferentes valores senso- Portanto, cabe aos adultos a organização das
riais para que todos possam se sintonizar
segundo a própria característica de recepção possibilidades sonoro-musicais, com os quais
individual. Não podendo conceber que as os bebês entrarão em contato no universo do
soluções sejam um padrão único para todos
berçário.
(Ceppi; Zini, 2011, p. 16).
220
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
221
Aruna Noal Correa
Dentre outras propostas, as histórias cionar a exploração dos sons que a envolvem,
musicadas também são relevantes meios de como clavas8 ritmadas ao chão sugerindo o
exploração sonoro-musical. No qual os adultos caminhar de um animal, sopros de intensida-
se valem dos elementos que compõem as his- des diversas, sugerindo o som característico do
tórias escolhidas. vento, a apreciação de ritmos variados e acom-
panhamento de um brincar-musical a partir de
pandeiros, maracas ou chocalhos, a exploração
das superfícies da sala e dos sons proporciona-
dos por estes, a apreciação e exploração dos
sons que circundam o berçário.
Os sons que permearam o “passeio”: uma história sobre o trem.
Enfatizo que a função primordial está em:
Ao inal, destaco que é relevante que se [...] assumir como legítimas as suas formas
tenha como principal preocupação o enrique- de comunicação e relação, mesmo que os
signiicados que as crianças atribuem às suas
cimento das propostas e planejamentos, no experiências possam não ser aqueles que os
sentido de oportunizar, com intencionalidade adultos que convivem com elas lhes atribuem
pedagógica, espaços, tempos, materiais, das (Ferreira, 2009, p. 147).
222
PARA ALÉM DOS ACALANTOS: A PROPOSTA PEDAGÓGICO-MUSICAL COM BEBÊS
223
Aruna Noal Correa
Paulo Monteiro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São
2000. Paulo: UNESP, 1992.
224
12
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE
VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS
LINGUAGENS INFANTIS
Juliana Goelzer
Daliana Löler
No decorrer do caminho para a casa da Vovó, dado na escolha das cores, tamanhos, formas
Chapeuzinho Vermelho foi coletando lores para
e aromas que vieram compondo o nosso ra-
entregar-lhe, sendo cuidadosa na escolha das
cores, dos aromas e da perfeição das pétalas de malhete, expressando assim a sutileza do que
cada uma delas. vivemos com as crianças e professores nas es-
colas pelas quais passamos.
Assim como Chapeuzinho Vermelho, Compartilhamos aqui esse ramalhete,
nós também, ao longo da caminhada no Pro- mostrando e valorizando o que as unidades
jeto de Assessoramento e Acompanhamento visitadas ao longo do projeto foram desen-
Pedagógico às Redes e Sistemas de Ensino na volvendo com as crianças com o objetivo de
Implementação do Proinfância em Municípios promover uma educação infantil de qualidade,
da Região Central e do Noroeste do Estado do que atenda e respeite os interesses e necessi-
Rio Grande do Sul, atuando como Assistentes dades das crianças com as quais trabalham. A
de Pesquisa1, fomos compondo o nosso rama- escrita que segue tem o objetivo de mostrar
lhete com estudos, rodas de conversa, visitas, experiências potencializadoras das linguagens
encontros formativos, formações em contexto das crianças, as quais foram desenvolvidas pe-
e diálogos com as crianças. Tivemos muito cui- las escolas de educação infantil que receberam
as Visitas Técnicas2 ao longo do Projeto de As-
1 Nossa função enquanto Assistentes de Pesquisa consistia
sessoramento referido acima.
em: apoiar o trabalho dos professores/pesquisadores na coleta,
tratamento e análise dos dados; participar das visitas técnicas 2 Uma das etapas da pesquisa consistia na realização dessas
nos municípios; organizar material de apoio para a pesquisa; visitas para acompanhar a organização da estrutura e o funcio-
acompanhar as reuniões das equipes. namento das instituições de educação infantil.
227
Juliana Goelzer e Daliana Löler
228
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
solução de problemas. É um ser que interage rentes linguagens, desenvolvendo práticas pe-
intensamente com outras crianças, com adul- dagógicas que garantam experiências que fa-
tos e com o meio. Dito d´outro modo, a criança voreçam a imersão das crianças nas diferentes
é vista como um ser com capacidade de agên- linguagens e o progressivo domínio por elas
cia, que tem potencial para fazer agora, e não de vários gêneros e formas de expressão.
somente como alguém que um dia virá a ser. Nesse contexto cabe aos professores, em
Na perspectiva de uma Pedagogia da consonância com a proposta pedagógica, atuar
Participação, entende-se que a criança desde a como observadores das práticas infantis e de-
mais tenra idade comunica-se com o mundo de senvolver o que Rinaldi (2014) deine como uma
diferentes formas: através do choro, dos olha- Pedagogia da Escuta. Para a autora, a escuta das
res, movimentos, falas, silêncios, entre outros, crianças se dá não somente a partir dos ouvidos,
as quais coniguram-se como diferentes lingua- mas em todos os sentidos (tato, olfato...), o que
gens. De acordo com Salles; Faria (2012) a lin- implica em estar aberto para também interpre-
guagem é a capacidade que o ser humano tem tar as mensagens que são comunicadas através
de compartilhar signiicados, o que se estrutura das diferentes linguagens. Escutar signiica prin-
através de múltiplas formas, como por exemplo, cipalmente valorizar as crianças e os seus sabe-
através da linguagem oral, gestual, plástica, mu- res, os quais são expressos nos momentos de
sical entre outras. Neste sentido, as várias formas interações e brincadeiras.
de linguagem são ao mesmo tempo mediadoras De acordo com Gobbi (2010), as crian-
das relações estabelecidas entre as crianças e os ças, ao brincar
outros e com o meio, e necessitam ser pensadas
[...] experimentam e descobrem a vida que
e trabalhadas intencionalmente nas propostas pulsa em diferentes ritmos a partir das lingua-
pedagógicas das instituições como objeto de gens com as quais aprendem a relacionar-se
conhecimento (Salles; Faria, 2012). com os outros: trata-se da extraordinária ca-
pacidade de provar a vida de modo intenso,
As Diretrizes Curriculares Nacionais para com tudo o que isso envolve [...]. Capazes que
a Educação Infantil (Brasil, 2010) orientam que as crianças são de materializar suas ideias,
ainda que tantas vezes incompreensíveis aos
as propostas pedagógicas das instituições que
adultos, os pequenos exibem amplo interesse
atendem as crianças de 0 a 6 anos tenham sobre todas as coisas, estendendo um amplo
como objetivo garantir a elas o acesso a pro- espectro que vai das questões sobre a nature-
za humana àquelas voltadas para os demais
cessos de apropriação, renovação e articulação aspectos da vida (Gobbi, 2010, p.1).
de conhecimentos e aprendizagens de dife-
229
Juliana Goelzer e Daliana Löler
Diante disso e a partir desse processo de Assim como foi para muitos de nós, ain-
escuta, cabe ao professor potencializar as lin- da hoje, para muitas crianças, é retirada a pos-
guagens das crianças de modo ético e sensível, sibilidade de expressão da sua imaginação e
possibilitando a elas “experimentar e descobrir criatividade, uma vez que são condicionadas à
a vida”, bem como criar espaços no cotidiano reprodução de modelos e padrões. Condicio-
das instituições nos quais “as manifestações namos as crianças a moldarem-se aos padrões
infantis estejam presentes sendo compreen- citados anteriormente quando lhes entrega-
didas na sua inteireza” (Gobbi, 2010, p.2). As mos uma folha com um desenho a ser colori-
linguagens são as ferramentas para a com- do, quando todos devem colar a mesma forma
preensão e a comunicação das crianças com o geométrica na mesma posição para fazer o
mundo e nós, professores, somos responsáveis chapéu do palhaço, ou quando simplesmente
não podem misturar as cores das tintas.
por viabilizar ou não processos que permitam
Situações como essas foram presencia-
as crianças fazer uso dessas ferramentas.
das em algumas unidades visitadas, dentre as
No meio da loresta, a Chapeuzinho admirava quais, uma das que havia adotado o sistema
o colorido exuberante das árvores, pois elas não
eram do mesmo tom esverdeado, ou sequer eram
de apostilamento enquanto metodologia de
verdes, como um dia lhe disseram. – Por que me trabalho com as crianças. Em uma dessas oca-
disseram que elas eram todas iguais? siões, observamos um grupo de crianças dei-
xando a marca da sua mão com tinta em uma
Ao indagar-se sobre o “falso mundo” que das folhas da apostila. Para que o “carimbo”
um dia tentaram lhe convencer que existia, fosse realizado de forma “correta”, a professora
Chapeuzinho nos desaia a buscar respostas pintava a mão da criança com o pincel e a po-
para a sua indagação. Quantas vezes menos- sicionava sobre o espaço destinado ao carim-
prezamos os saberes das crianças e tentamos bo. Em outras situações, em unidades que não
convencer-lhes a ver e a expressar a sua com- faziam uso da apostila, frequentemente, eram
preensão de mundo com as lentes de quem se utilizadas folhas com desenhos prontos para
limita a vê-lo de uma única forma. A quem um que as crianças apenas pintassem ou tivesse
dia não tentaram convencer de que toda a casa a sua disposição apenas um tipo de material
tem uma chaminé com fumaça e telhado trian- para fazer colagens. Para além dessas situações
gular, que as nuvens são sempre azuis e que o observadas, em muitas escolas os trabalhos ex-
sol nasce sempre atrás das montanhas? postos nas paredes evidenciavam uma partici-
230
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
pação acentuada dos adultos em detrimento tos sistematizados que legitimam as ações
da participação das crianças, o que era revela- sobre as crianças. Com foco no produto inal
do pela extrema semelhança de formas, cores, e no enchimento de pastas com trabalhos das
traços e tamanhos, além de que, as crianças crianças, onde icam as sensações e emoções
não demonstravam propriedade ao construir que as crianças vivem ao longo dos dias em
narrativas sobre os trabalhos expostos, denun- que permanecem nas escolas?
ciando que, algumas vezes, sequer haviam par- Por apostarmos e acreditarmos em uma
ticipado dos processos de construção. Pedagogia da Infância que compreende a
A centralidade que o adulto tem ocu- criança enquanto um sujeito global, de muitas
pado nas relações estabelecidas nas institui- linguagens e que se constitui nas relações de
ções de educação infantil é uma dimensão educação e cuidado consigo, com o espaço e
que vem sendo superada muito lentamente. É com os outros, defendemos que as subjetivi-
fato que estamos aprendendo a ser docentes dades e a liberdade nos processos das crianças
de crianças pequenas, pois se olharmos para a são tão mais importantes na sua constituição
história da educação, pensar a especiicidade enquanto ser humano do que saber identiicar
das crianças pequenas é algo extremamente os números e associá-los às suas respectivas
novo e, na ânsia de construir um modo de ser quantidades, ou ainda, muito mais signiicati-
proissional, muitas vezes, nos perdemos pela vos do que deixar uma marca em uma folha em
falta de clareza do peril proissional desejado branco para cumprir a tarefa do dia.
e/ou partimos de referenciais já existentes, nos Não defendemos aqui a ideia de que as
colocando, como airma Kishimoto (2011), “ao crianças sejam isoladas do que foi sendo pro-
reboque das séries iniciais do ensino funda- duzido historicamente, mas que a apropriação
mental”, sendo este um padrão de referência desses elementos da cultura aconteça respei-
equivocado, que vem cristalizando práticas tando as suas formas de ação e interação com o
conhecidas como de “escolarização” na educa- mundo, através das linguagens. Nesse aspecto,
ção infantil, nas quais as relações estabelecidas cabe uma discussão sobre o uso de apostilas
ocorrem numa lógica impositiva do professor ou cartilhas pedagógicas na educação infantil.
para o aluno. Acompanhamos, ao longo do projeto,
Nessa perspectiva, as escolas adquirem algumas tentativas de implementação desses
um caráter de garantia de escolaridade, acú- materiais nas unidades de educação infantil,
mulo de hábitos, experiências e conhecimen- eram materiais desconexos das realidades das
231
Juliana Goelzer e Daliana Löler
crianças e com alto custo inanceiro para os vés da pintura não só nas folhas, mas também
municípios. O que leva um grupo de pessoas nos muros, nas calçadas e nos azulejos, respon-
a priorizar o investimento numa concepção de dendo a isso com euforia e encantamento ao
educação infantil tarefeira em detrimento da deixar as marcas da sua expressão com traços
construção de espaços que valorizam a ação e irmes e coloridos.
criação infantil? Por que comprar apostilas ao in- Logo, as apostilas também passaram a
vés de apostar em brinquedos, livros, fantoches, ser vistas como limitadoras do potencial cria-
argilas, espaços para a exploração com água? tivo das crianças e das professoras, que de
Isso revela determinadas concepções de criança certa forma também estavam condicionadas
e trabalho pedagógico na educação infantil. a esta perspectiva de educação. Salles; Faria
Ao longo desse projeto, a superação (2012. p. 56) apontam para a importância de
desses modelos de padronização e reprodução “os proissionais da educação infantil se colo-
aconteceram à medida que os professores das carem como sujeitos sensíveis e abertos para
Unidades passaram a compreender a criança a construção de laços afetivos, falando com as
como capaz das mais variadas e criativas pro- crianças, aconchegando-as, tocando-as, trans-
duções, como alguém competente em esco- mitindo-lhes segurança e carinho”, dimensões
lher para compor as suas produções. Conforme do trabalho docente que não se efetivam no
Salles; Faria (2012, p.56), isso é compreender a momento que o trabalho é regido por um
criança como sujeito, pois, principio de reprodução mecânica de modelos
prontos. Afetividade que não está presente no
as relações sempre têm dois lados – de um momento em que negamos o potencial das
lado o adulto e do outro a criança. São, por-
tanto, relações dialógicas – entre o adulto e crianças, direcionando as suas ações e até mes-
a criança que possibilitam a constituição da mo fazendo por elas e não com elas.
subjetividade da criança, como também con-
Aos poucos, os interesses e as necessida-
tribuem para a contínua constituição do adul-
to sujeito. des das crianças foram ganhando espaço no pro-
cesso educativo, promovendo uma educação
A partir dessa compreensão, os adultos infantil que tem a criança como centralidade do
aos poucos destituíram-se do lugar de cen- processo, assegurando a ela o direito de expres-
tralidade do processo educativo e as crianças sar-se em suas diferentes linguagens.
passaram a ter a possibilidade de explorar a Em outro momento, vivenciamos a efe-
tinta com todo o corpo, e a expressar-se atra- tivação desse direito quando encontramos
232
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
um grupo de crianças reunidas no saguão de Imagine como seria difícil seguir o ca-
uma escola. Fazia pouco que haviam assistido minho se, de repente, a Chapeuzinho en-
a uma peça de teatro organizada pelas profes- contrasse um riacho sem uma ponte que lhe
soras, e logo elas tiveram a oportunidade de, desse passagem, ou, se houvesse uma árvore
com o microfone, cantar, declamar versos ou caída no caminho, obstruindo a passagem.
contar histórias, de uma forma espontânea. Esses são alguns dos obstáculos – muitas
Os sentimentos de alegria, euforia e orgulho vezes intransponíveis – que os bebês e as
permeavam aquele espaço, demonstrando o crianças pequenas enfrentam nas escolas
encantamento das crianças com a oportunida- quando o espaço é pensado na lógica do
de de serem ouvidas pelos colegas e (principal- adulto, desconsiderando as necessidades e os
mente?) pelas professoras. interesses das crianças.
Acreditar nas capacidades criadoras e Inúmeras foram as vezes que acompa-
expressivas das crianças, escutá-las e poten- nhamos as crianças das escolas visitadas na di-
cializar as suas diferentes linguagens é o papel fícil tarefa de tocar - quiçá de explorar - os brin-
do professor na educação infantil. Apostamos quedos, os livros, os móbiles, ou até mesmo de
na importância de ampliar os repertórios das visualizar suas fotos e produções que estavam
crianças, apresentando a elas o mundo em expostas nas paredes, pois geralmente estes
suas diferentes composições. Contudo, impor estavam somente ao alcance dos adultos. Nes-
algo como modelo, como padrão a ser segui- ses momentos, percebíamos nas crianças o
do, como a árvore que não pode ser cor-de-ro- mesmo desejo que nós, adultos, por vezes te-
sa porque deve ser verde, não cabe quando de- mos de tocar as estrelas. Um sonho impossível?
fendemos uma educação infantil que acredite Assim como a disposição dos elementos
na criança capaz, ativa e competente e que, da natureza deiniu o trajeto de Chapeuzinho,
por isso mesmo, pretende ser potencializadora também a forma como organizamos os espa-
das múltiplas linguagens. ços nas instituições de educação infantil deine
as interações, as explorações, as possibilidades
Ao chegar à casa da Vovó com seu ramalhete de aprendizagem. Esse espaço revela nossas
lindo e perfumado, Chapeuzinho olha para trás
e dá-se conta do quanto ela desconhecia as be- concepções de criança e de trabalho peda-
lezas e os segredos escondidos na loresta. Ela gógico. Horn (2004) corrobora essa airmação
percebe que o modo como os elementos da na-
quando destaca que
tureza estavam organizados, foi o que deiniu o
seu percurso.
233
Juliana Goelzer e Daliana Löler
234
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
durar trabalhos e mochilas. [...] os professores Nesse sentido, destacamos que essa
parecem ignorar que o ato de brincar/jogar
forma de organização do espaço, a qual con-
é algo muito sério para a criança, e que ela
pode aprender interagindo com objetos, ex- templa várias propostas acontecendo simul-
plorando e descobrindo o mundo. taneamente, permitem a descentralização do
adulto, que deixa de ser aquele que, com o pla-
Esse cenário muitas vezes foi retratado nejamento de uma única proposta, diz onde,
em nossas visitas, mas ao longo do projeto, à quando e como as crianças devem se organi-
medida que os professores foram sendo de- zar. Pelo contrário, essa organização permite,
saiados a reverem suas concepções sobre as ao mesmo tempo em que desaia a criança a
crianças e seu processo de desenvolvimento - escolher o cenário, os brinquedos e materiais,
o que foi lentamente tornando possível outra e os seus parceiros na brincadeira. Para tanto, o
compreensão acerca da importância da orga- professor exerce um papel fundamental nesse
nização do espaço no desenvolvimento das processo, que é o de organizador do tempo, do
crianças, o quanto ele potencializa ou não o espaço e das intervenções que realizará ao lon-
desenvolvimento das linguagens - os brinque- go das brincadeiras.
dos, os livros, os móbiles, as fotos e as produ- Outras unidades apostaram, na maioria
ções tornaram-se mais acessíveis às crianças, e das vezes com o auxílio das famílias, na qua-
as “barreiras intransponíveis” foram dando lu- liicação dos espaços externos, construindo
gar a caminhos cheios de possibilidades. brinquedos e objetos interativos com material
Exemplo disso foram as propostas orga- reciclado, casinhas de alvenaria e parques com
nizadas por algumas unidades que, para além brinquedos diversos, como elementos que
de tornar os brinquedos acessíveis, apostaram podem promover as interações e brincadeiras
na organização diária de cantinhos temáticos, enquanto eixos norteadores do trabalho peda-
espaço no qual as crianças circulavam tendo a gógico na educação infantil.
oportunidade de realizar escolhas para a cons- Com relação ao espaço organizado para
trução das suas brincadeiras. Dentre esses can- os bebês, os espelhos que antes icavam es-
tinhos, estavam o cantinho da fantasia, do mer- condidos atrás das poltronas, ou de cartazes,
cado, da casinha, do salão de beleza, da oicina, em momento posterior já estavam bem à vista
do teatro, da música, dos jogos, propiciando às das crianças, em um local central da sala, pois
crianças a liberdade de escolha dentro de es- os professores compreenderam a importância
paços intencionalmente planejados para o de- dessa exploração para o desenvolvimento das
senvolvimento de suas linguagens. crianças.
235
Juliana Goelzer e Daliana Löler
236
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
tal a realização de práticas pedagógicas que pro- O envolvimento das crianças em proje-
movam a interação das crianças com a natureza tos como este reforça a compreensão que veio
visando o conhecimento, o cuidado e a preser- sendo construída com os professores de que a
vação, defendendo uma postura de responsabi- criança é capaz de participar ativamente dos
lidade com esse espaço, consigo mesmo e com mais variados processos de organização dos
os outros, uma vez que somos uma entre várias espaços, sejam eles abertos ou fechados, o
espécies, conforme destacado pelas autoras. que permite experiências múltiplas, o desen-
Garantir essas experiências implica ir além volvimento das suas linguagens expressivas e
de plantar sementes de feijão em copinhos plás- possibilitam a interação (Barbosa; Horn, 2001).
ticos dentro da sala ou disponibilizar uma caixa O processo que vivenciamos ao longo
com terra para as crianças brincarem. Mas im- deste Projeto de Assessoramento revelou o
plica acima de tudo problematizar com elas si- quanto a falta de um espaço organizado e pen-
tuações do cotidiano que tem revelado a degra- sado para/com a criança deixa de ser potencia-
dação ambiental e exigido de nós uma postura lizador das múltiplas linguagens.
sustentável frente à degradação dos recursos na-
turais. Nesse sentido, a construção da horta es- Após ter presenteado a sua querida Vovó com
o lindo ramalhete, elas decidem seguir juntas
colar possibilitou às crianças vivências para além por caminhos até então desconhecidos para
de acompanhar o crescimento dos vegetais, mas compartilhar as flores e seguir novos cami-
nhos...
as relações de cuidado e respeito necessárias en-
tre os seres humanos (cuidado de si e dos outros)
e o mundo natural (todas as formas de vida do As crianças são seres intensos, que co-
planeta). Um trabalho de consciência planetária. tidianamente revelam, nas instituições de
Em algumas dessas experiências nas es- educação infantil, o quanto são desejosas e
colas observamos que houve apenas o envolvi- curiosas por descobrirem o mundo e as pos-
mento dos adultos no processo de construção e sibilidades de interação e construção que este
cuidado da horta, cabendo às crianças apenas a lhes oferece. Nesse caminho de descoberta, elas
tarefa de colher o que foi plantado. Já em outras, demonstram toda a sua capacidade criativa, o
tivemos a certeza da participação das crianças que fazem, por exemplo, quando transformam
em todo o processo ao ouvir delas a narrativa de a pequena pedra do caminho em uma grande
como foi a construção e os cuidados necessários montanha que guarda um tesouro misterioso.
para o crescimento das plantas, e o quanto esse Reconhecer essa criança não é uma tarefa sim-
conjunto de vivências lhes foi signiicativo.
237
Juliana Goelzer e Daliana Löler
ples e nem para qualquer adulto; há que se ter tadores desse processo de desenvolvimento, a
preservado a sensibilidade de escutar. saber: a padronização e a reprodução de mo-
Em se tratado de escolas de educação in- delos e a organização dos espaços.
fantil, é preciso que as dimensões de saber es- Para superar essas limitações e “construir
cutar e amar estejam entrelaçadas à dimensão pontes” que possam nos levar a outros cami-
da competência e responsabilidade proissio- nhos, defendemos que escutar a criança para
nal, o que requer um processo formativo que promover de fato a sua participação no coti-
nos possibilita entender quem é essa criança e diano da escola coniguram-se como meios
do que ela precisa para se constituir um ser hu- para potencializar o desenvolvimento das lin-
mano feliz, criativo, critico e responsável. guagens infantis.
Ao indar a composição deste ramalhete, Gobbi (2010, p. 2) enfatiza:
olhamos para trás e reconhecemos professores
que desde o início da nossa caminhada realiza- As manifestações linguageiras das crianças e
dos artistas convidam a reorganizar o mundo
vam um trabalho de escuta e de promoção da e experimentá-lo em outras versões, media-
participação das crianças, e que foram sensíveis dos pelos corpos que se mexem, que nem
sempre falam com palavras e letras, mas que
e acolhedoras ao processo formativo que se ini-
tanto dizem, provocando a conhecer o desco-
ciava. Mas reconhecemos de um modo especial nhecido ao mesmo tempo em que se cons-
aqueles professores que, assim como nós, foram troem outros lugares de experiências, estra-
nhando e conhecendo a todo instante.
compondo o seu ramalhete ao longo do Projeto
de Assessoramento, permitindo-se e desaiando-
As possibilidades da escuta e da partici-
-se a conhecer essa criança da qual falamos, es-
pação das crianças que defendemos nesse texto
cutá-la e junto dela redescobrir a amorosidade e
também nos provocam a conhecer o desconhe-
a responsabilidade necessária para a prática edu-
cido e construir com e para as crianças outros
cativa com as crianças, o que veio possibilitando
lugares de experiências. A partir de agora, as
outras e novas experiências com elas.
experiências que estão sendo vivenciadas pelo
A discussão que aqui propomos teve
grupo de professores que nos acompanhou
como centralidade o modo como os profes-
nessa trajetória, bem como as experiências que
sores tem potencializado, em suas ações pe-
nós estamos vivenciando a partir do que nos
dagógicas, o desenvolvimento das linguagens
provocou, remetem ao caminho percorrido pela
das crianças. Ao propor essa relexão, apresen-
Chapeuzinho à casa da Vovó; porém, agora com
tamos dois elementos que consideramos limi-
o ramalhete em mãos, seguiremos por outros
238
E SE O CHAPÉU DA CHAPEUZINHO NÃO FOSSE VERMELHO? UM OLHAR SOBRE AS LINGUAGENS INFANTIS
239
PARTE 2
A pessoa ponderada parece esquecer tudo da lados nas práticas da educação infantil, pois
criança que foi e que se acreditava eterna
aparece nas práticas rotineiras, acabam en-
(Edgar Alan Poe).
contrando respaldo em uma lógica discursiva
e no encadeamento das justiicações sobre as
Esse texto trata de pensamentos resul-
práticas escolares. Há que se cuidar com aquilo
tantes das afecções de leituras, discurso se
que nos ensina Foucault, que numa sociedade
práticas formativas que tenho vivenciado, seja
capitalista nos encontramos numa situação
a partir dos relatos dos que trabalham com a
onde o esforço social é para “transformar o cor-
educação infantil, sejam da literatura e suas
po em força de trabalho e o tempo em tempo
ideias sobre as crianças e as infâncias. Dessas
de trabalho” (1996, p.119) e isso caracteriza a
vivências destacam-se duas questões interes-
pessoa inserida nessa sociedade, a saber, “o su-
santes. A primeira é que boa parte dos sujeitos
jeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos,
expressam em suas falas aquilo que as institui-
regras, ordens” (1999, p.106). O nosso contexto
ções pretendem constituir a partir das políticas
educacional contemporâneo não está imune a
das infâncias, a saber, formas disciplinares de
esse trato disciplinar, olhando cuidadosamen-
vigilância e controle. A segunda, como conse-
te se faz notar que as experimentações infantis
quência da primeira, que essas formas acabam
e sua importância para a vida das crianças qua-
produzindo as vivências das crianças no con-
se sempre acabam sendo reféns dessas práti-
texto da educação infantil.
cas disciplinares e controladoras. Perdendo,
Um dos pontos mais intrigantes é que o
assim, uma dimensão importante da infância
disciplinamento e o controle, mesmo que ve-
243
Simone Freitas da Silva Gallina
que se refere à singularidade das crianças. Essa Como se pode observar, para enfrentar a
perda acaba criando problemas, à medida que questão da naturalização, precisamos bem mais
a potência de experimentar é capturada por do que propor uma prática educativa, também
práticas que tentam conciliar o princípio do é preciso propor uma ordem discursiva que
cuidado com as práticas educativas. possibilite desconstruir a noção equivocada de
Neste sentido, a desaparição das infâncias educação, especialmente do cuidado das crian-
tem como um dos pontos de apoio a perda da ças pequenas a partir da lógica higienista.
experimentação que é engendrada na prática No entanto, essa ideia da constituição de
pela naturalização da infância ou pela aceitação uma prática discursiva deve ser tomada com cau-
tácita de uma espécie de natureza infantil: tela. Pois devemos considerar o quanto Foucault
falou das práticas discursivas e não discursivas,
A intensidade e importância que noções acentuando algo que nos escapa, algo que gera
como desenvolvimento, crescimento e inte- um campo de força capaz de se retroalimentar,
resse alcançaram nos discursos pedagógicos
principalmente quando as tencionamos: “ga-
atuais expressam a naturalização e ampla
aceitação da ideia acerca da existência de cer- nham corpo em conjuntos teóricos, em institui-
ta natureza infantil, de uma condição própria ções, em esquemas de comportamento, em
das crianças que reconhecemos e atribuímos
tipos de transmissão e de difusão, em formas
a meninos e meninas que parece estar pre-
sente neles ainda antes de nascerem. [...] De- pedagógicas, que ao mesmo tempo as impõem
senvolvimento e crescimento aparecem com e as mantêm” (Foucault, 1977, p. 12). A cautela
frequência para descrever tanto os propósitos em relação a prática discursiva se deve ao fato de
e ins educativos com crianças quanto os re-
sultados e avaliações dos próprios processos que a mesma está estritamente relacionada com
escolares. [...] O reconhecimento de uma for- o desenvolvimento de técnicas e dispositivos de
ma de imaturidade mental e física na infân- controle social dos indivíduos. O cuidado precisa
cia é o assinalamento de um estado de sub-
desenvolvimento e a ixação de uma forma ser redobrado, ainal, o problema maior é quan-
de distribuição e organização etária da vida. do as mesmas acompanham ou são acompanha-
Assim, a dupla desenvolvimento-crescimento das por processos de automatismo, nos quais os
serve para explicar o comportamento “natu-
ral” e “normal” dos indivíduos da espécie hu- sujeitos acreditam em um dado que os transcen-
mana; com ele, inscreve-se a vida do sujeito de e que os determinam.
humano na naturalidade de um processo, de
uma ação ou de um efeito de “se” desenvolver [...] O fato de considerar que o sujeito huma-
para produzir ou aumentar uma capacidade no por si mesmo não consegue desenvolver
ou uma potência presente como germe na as suas potências e que também não são
criança (Marín-Díaz, 2010, p.97-98). suicientes os cuidados físicos (de proteção
244
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS
e alimentação, por exemplo) é usado como educacional. Por isso pensamos que com essa
argumento para assinalar a necessidade e
questão da desaparição, que esperamos ainda
importância do processo educativo. Assim o
reconhecimento da infância como uma fase da elucidar adiante, tratamos de problematizar o
vida foi também a construção de uma suposta tema das infâncias na contemporaneidade.
homogeneidade nas experiências das crianças
e a produção de um conjunto de noções domi-
Ao substituirmos as potencialidades pela
nantes para modelar e regular, de forma per- ideia lógica de um ainda-não-mais-possível, a
manente e continua, nosso olhar e nossas prá- ideia de que existe uma essência ou algo pronto
ticas adultas com aqueles sujeitos infantis. Do
lado daquela natureza infantil a ser cuidada, esperando para se tornar presente, perdemos a
ajudada e protegida, assinala-se o processo oportunidade de identiicar no processo educa-
educativo – o ensino, a instrução, a formação, tivo a invenção de outras vivências a partir das
a disciplina, o governo pedagógico – para ga-
rantir o desenvolvimento e/ou a superação experimentações infantis. Por essa razão, torna-
das condições naturais das crianças (Marín- -se pertinente perceber no contexto da escola
-Díaz, 2010, p.97-98, grifo meu).
quais variáveis potencializam a ideia de que as
crianças pequenas estão, a partir de seu direito
Aqui vemos que o afastamento da ideia
ao brincar, construindo regras de aparição-nas-
do cuidado não é suiciente para afastar a ideia
cimento em um mundo que, ao mesmo tempo,
da “natureza infantil” como crença básica que
deve ser visto como dado e novidade.
inluencia sobremaneira o modo de educar as
crianças. Em resumo, ao invés do educar ser [...]“Crianza” é também a crença que indica
um processo complexo e aberto a novidades, as coisas que se acreditam pela tradição [...]
“Crianza” em napolitano é aquilo que se toma
a ideia de um germe ou de uma regularidade
cuidado de preservar; são as provisões, as
natural acaba minando a ideia da educação coisas que sustentarão o futuro. A criança é a
como um processo crítico e criativo. Como se provisão da humanidade. “ter crianza” é deixar
a quem vem agora, às crianças, o mundo edu-
o que procurássemos seria o melhor modo de cado para contar o próprio presente. A criança
atualizar aquilo que já se encontra naturalmen- é necessária e frágil. Não se pode perdê-la sem
te na criança. Essa teleologia natural acaba se perder a vida. A verdade do educar é passar
sem perder a vida. Educar dando vida ao mun-
incrustando nas concepções e práticas educa- do e mundo à vida (Ferraro, 2010, p. 220).
cionais e acaba tirando-as do domínio da novi-
dade e da imprevisibilidade. Claro que não es- Interessante observar que na trajetória
tamos advogando contra a regularidade, antes histórica e política as crianças, no que classi-
tentando argumentar que por si só essa ideia camente intitulamos de dimensão da esfera
é demasiadamente nociva para o processo
245
Simone Freitas da Silva Gallina
246
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS
como sendo uma espécie de etapa de pré-co- O exemplo dado por Matthews é vul-
nhecimento. gar, como ele mesmo airma, mas que nos faz
Essa suposta etapa de que fala Come- pensar sobre certas deinições que acabaram
nius caracteriza-se pelo domínio de algumas sendo incontestes para a tradição. Trata-se da
noções comuns aos diversos âmbitos da vida descrição e comentário do comportamento de
cotidiana, posteriormente, serão trocadas por Michael, um bebê de quinze meses que, ao bri-
noções mais especíicas das diversas áreas do gar com Paul, por causa de um brinquedo, vê
conhecimento cientíico, conforme ele mesmo que o mesmo se põe a chorar. Num primeiro
sugere pelos nomes apresentados. Mas, qual momento, Michael entrega o brinquedo ao ou-
é de fato o problema com essa concepção da tro bebê, para que ele pudesse brincar. Como
infância? Vou tentar mostrar esse aspecto pro- o choro continuou, Michael deu seu ursinho,
blemático a partir de um exemplo tirado da mas isso também não adiantou. Segundo o re-
moral. lato, Michael teria hesitado e logo depois corri-
Gareth Matthews mostra, em seu livro “A do ao quarto de Paul e trouxe-lhe o cobertor, o
ilosoia da infância”, que a ideia de desenvolvi- que teria feito com que o choro parasse.
mento moral, uma ideia aparentemente tran- O que interessa para Matthews nesse
quila de como se adquire o domínio de noções exemplo é uma possibilidade interpretativa so-
que irão possibilitar a moralidade, acaba sendo bre o comportamento de Michael. Fica claro é
contraditória com as vivências infantis. Mais que, ao falhar na entrega do brinquedo, Michael
que isso, Matthews nos mostra que essa ideia teria tido a possibilidade de considerar outras
acaba sendo responsável pela deinição da in- alternativas. Contudo, não icava claro o que se
fância como uma etapa pré-moral, ao menos passou com ele quando trouxe o cobertor e con-
seguiu acalmar o amigo. Duas possibilidades
como igura na teoria contemporânea do de-
disponíveis foram descartadas por Matthews.
senvolvimento moral de Lawrence Kohlberg.
A primeira seria a de que Michael teria
Essa etapa pré-moral é caracterizada por dois
se lembrado de que o cobertor confortara o
níveis pré-convencionais, a saber, o nível orien-
tado por castigo-obediência e o nível orienta-
do por benefício-satisfação.2 do castigo”, um “quartinho escuro” e tantos outros recursos utili-
zados para dar conta das crianças que não se comportam “ade-
quadamente”. Essas diferentes formas de lidar com o compor-
2 Aliás, essas noções centrais na concepção do desenvolvi- tamento infantil possuem por referência o mesmo tratamento
mento moral iguram de forma mais ou menos velada no ideário pré-moral que igura na base da concepção de desenvolvimento
da educação infantil. Quantas vezes nos deparamos com o fato moral de Lawrence Kohlberg, a saber, o nível orientado por cas-
de que em certas escolas há a “cadeirinha de pensar”, o “cantinho tigo-obediência.
247
Simone Freitas da Silva Gallina
amigo em outra oportunidade e, simplesmen- de que a ação que executam é algo de bom,
te, teria imitado uma ação eicaz no passado. pois, digamos, que poderia ajudar ou consolar
Essa possibilidade foi descartada pelo parecer alguém e não apenas ser uma forma de evitar
dos pais de que Michael não tivera essa opor- um castigo ou uma forma de ser recompensa-
tunidade no passado. Também não se torna do” (Matthews, 1997, p. 96).
atraente a possibilidade de que a ação de Mi- Independente do apoio teórico utilizado
chael tivesse por base a lembrança de que uma por Matthews, para fazer tal inferência, convém
outra criança foi acalmada com um cobertor. notar que na sua posição podemos perceber
Essa reação complexa foi descartada por várias algumas questões que podem nos estimular
razões, entre elas igura o fato de que o cober- a repensar as vivências infantis. Em especial a
tor de Paul estava fora do campo perceptivo de questão de que não devemos aceitar tranqui-
Michael e, estar fora do campo perceptivo nes- lamente o encorajamento de que, para termos
sa idade, já conigura em um bom motivo para uma boa avaliação moral do comportamento
abandonar essa possibilidade de explicação. das crianças, devemos nos distanciar delas. O
Mas há uma possibilidade que Matthews que icou manifesto no exemplo e na inter-
considera como muito signiicativa, a saber, de pretação dada, mesmo não tendo espaço aqui
que Michael teria raciocinado por analogia para mostrar como Matthews mostra e resolve
que seu amigo Paul se sentiria consolado por os problemas da concepção de Kohlberg, foi o
algo que amava, da mesma maneira como ele fato de que a infância se constitui de inúmeras
amava o seu ursinho. O que interessa nesse dimensões em relação ao desenvolvimento da
exemplo dado Matthews é que na interpreta- moralidade. Ficando explícita a possibilidade
ção mais plausível do comportamento de Mi- dessas dimensões no exemplo da dimensão da
chael, a da analogia, o seu comportamento só “imaginação moral”.
faz sentido se presumimos que ele julgou que Essa dimensão seria aquela na qual algu-
devia consolar Paul. mas crianças conseguem “compreender” a ali-
Por que essa possibilidade se torna in- ção de alguém e são capazes de encontrar uma
teressante? Porque esse exemplo mostra que alternativa para aliviar ou fazer ela desaparecer.
“algumas crianças muito pequenas por vezes Aliás, segundo Matthews, não só essa dimensão
se comportam de maneiras genuinamente desconsiderada por Kohlberg é possível, mas
morais e não apenas pré-morais. Isto signiica outras também, como a dimensão distributiva
que agem com algum tipo de compreensão que muitos de nós às vezes aplicamos à prática
248
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS
infantil da “divisão igualitária dos biscoitos”, que ordem de uma brincadeira com o (des)conhe-
continua sendo até hoje “um paradigma da jus- cido, algo que é da ordem da sua descober-
tiça distributiva” fundamental para a vida moral ta sobre/do mundo, algo que é da ordem do
(Matthews, 1997, p. 108). elaborar os sentidos sobre suas descobertas.
Que precisamos estar atentos para evi- Podemos perceber isso, como mostra Virilio,
tar que as nossas práticas pedagógicas este- quando uma “a criança pequena que, após um
jam orientadas por concepções das infâncias despertar particularmente difícil, ausenta-se
como mundos diferentes dos nossos. O pro- sem saber a cada manhã e vira involuntaria-
blema com elas é que nos induzem a pensar mente sua xícara é tratada como desastrada,
as crianças como sendo aqueles que irão na- recebe uma repreensão e acaba sendo punida”
turalmente evoluir em nossa direção. Não so- (Virilio, 2015, p.21). Essa cena bem comum nas
mente perdemos uma noção interessante de nossas vidas não só mostra que a sociedade
criança como agente moral, mas, sobretudo, contemporânea não tem sido suicientemen-
perdemos a oportunidade de que em muitas te cuidadosa com a necessidade de conceder
ocasiões podemos aprender com elas sobre a às infâncias certas vivências onde as crianças
própria moralidade. efetivamente são respeitadas. Mostra também
Primeiramente, convém observar que que constantemente perdemos a oportunida-
ao não percebermos e não lidarmos com essas de de experienciar com a criança e vivenciar
dimensões abertas e criativa da infância, acaba- com ela as suas potencialidades. Essa talvez
mos fazendo-as desaparecer. O que estou air- seja a ausência que produz a desaparição.
mando aqui, seguindo Paul Virilio em sua Esté- O que falar dos regramentos? Das exaus-
tica da Desaparição, que o que desaparece são tivas ordenações no tempo e no espaço do con-
as infâncias, enquanto potencialidades. Mesmo texto escolar? Talvez aqui o problema resida
num primeiro momento complexa, essa ques- justamente no fato que para muitos as regras
tão é muito importante para pensar a ausência são intocáveis, pois são pensadas do ponto de
como algo que nos acontece, e acontece, princi- vista de sua capacidade pedagógica de disci-
palmente, às crianças, pois elas são as que mais plinar docilmente os corpos infantis. Regras e
vivenciam tais momentos de ausência. atividades regradas, as conhecidas “horas de...”.
Muitas vezes o adulto atribui à criança Nesse sentido, é interessante observar que tais
a condição de ser uma desajustada ou uma rotinas não são um capítulo à parte na peda-
desastrada, por não reconhecer algo que é da gogia da infância. Há muitas produções que
249
Simone Freitas da Silva Gallina
defendem a gestão das rotinas como sendo característicos, alguns seixos ou ossinhos... O
essencial da brincadeira distribui-se entre os
um elemento imprescindível nos planejamen- polos extremos do visto e do não visto; por isso
tos e planiicações das ações docentes. Não se sua construção e a unanimidade que impele
trata aqui de sermos contra o planejamento, a as crianças a aceitar espontaneamente suas
regras levam-nas à experiência picnoléptica
questão que podemos nos colocar é de saber (Virilio, 2015, p.23).
o quanto esse disciplinamento a partir das ro-
tinas da escola, que também ocorre no âmbito Mas o que propriamente aprenderíamos
social, propicia a desaparição das infâncias. se brincássemos mais com as crianças? Talvez
Ora, o que Virilio nos chama a atenção aprenderíamos que, assim como elas, esta-
em seu texto é que precisamos criar experiên- mos submetidos à picnolepsia, uma estranha
cias de cultura sobre as crianças. Experiências situação temporal na qual, com frequência, o
em que as crianças nos ensinariam o que não tempo passa e nada acontece. Ora, essa situa-
aprendemos quando as submetemos a rigo- ção picnoléptica na qual também nós, adultos,
rosas rotinas de disciplinamento e controle. estamos acometidos faz com que, sem que
Quem sabe ao realizar tais experiências de vi- desconiamos, um pouco da nossa duração
vência poderíamos ser capazes de compreen- quando estamos com as crianças nos escapa
der coisas que são importantes serem com- e, com ela, escapam coisas que deixamos de
preendidas sobre as crianças e suas infâncias. compreender. Talvez por estarmos muito preo-
O problema é que ao tentar compreendê-las a cupados em educar e não em brincar com as
partir de uma estrutura prévia, seja ela a do in- crianças, escapa-nos a possibilidade de com-
fante do pré-conhecimento de Comenius, ou da preender e aprender que na nossa vivência
criança da pré-moralidade de Kohlberg, talvez com as crianças pode estar nos escapando as
perdemos a possibilidade de compreender e vivências e as experiências delas. Essas coisas
aprender brincando com as crianças coisas que que podem estar nos escapando a todo mo-
ainda não temos no âmbito epistêmico e moral. mento, como tentei mostrar a partir do caso
de Michael apresentado por Gareth Matthews,
A brincadeira não é ingênua nem engraçada,
iniciada por cada um desde o nascimento; a revelam aquilo que estou chamando proviso-
própria austeridade de seus instrumentos, riamente, por tomar de empréstimo de Paul
de suas regras e representações desencadeia
Virilio, a desaparição das infâncias.
na criança,paradoxalmente, o prazer e até
a paixão: umas linhas ou sinais traçados de
maneira efêmera, um punhado de números
250
AS CRIANÇAS E A DESAPARIÇÃO DAS INFÂNCIAS
251
14
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS:
POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA
A EDUÇÃO INFANTIL
Alex Barreiro
Ana Lúcia Goulart de Faria
253
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
O escravismo, neste sentido da palavra, reduz usos da pedagogia como instrumento de colo-
o outro ao nível de objeto, o que se manifesta
nização das diferenças e formação educativa. E
particularmente em todos os comportamen-
tos em que os índios são tratados como me- é justamente na hierarquização dos valores cul-
nos de que os homens: sua carne é utilizada turais e de organização social que as investidas
para alimentar os índios que restam, ou até
mesmos os cães; matam-nos para usar sua
pedagógicas eurocêntricas - em torno dos ideais
gordura, que supõe-se, curam os ferimen- de civilização e modernidade – promoveram
tos dos espanhóis: e assim são considerados um genocídio cultural e dos diversos habitantes
como animais de corte: cortam-se todas as
extremidades, nariz, mãos, seios, língua, sexo, de nosso continente, massiicando as diferenças
transformando-os em aleijões, como se cor- étnicas e impondo as bases epistemológicas da
tam árvores; propõe-se utilizar-lhes o sangue produção do conhecimento.
para regar o jardim, como se fosse água de rio
(Todorov, p.256, 2003). A elaboração intelectual do processo de moder-
nidade produziu uma perspectiva de conheci-
Desta forma, reduzir a população que mento e um modo de produzir conhecimento
que demonstram o caráter do padrão mundial
habitava do outro lado do atlântico à condição de poder: colonial/moderno, capitalista e euro-
de objeto, considerando-os desprovidos de centrado. Essa perspectiva e modo concreto de
produzir conhecimento se reconhecem como
alma, não era uma medida interessante e viá-
eurocentrismo (Quijano, 2005, p.115).
vel economicamente, politicamente e religio-
samente, portanto, “a eicácia do colonialismo é A “pedagogia colonizadora” buscou na
superior à do escravismo, ou pelo menos é isto noção de “modernidade” europeia os funda-
que podemos constatar atualmente” (Todorov, mentos para a constituição de suas práticas
2003, p.257). As medidas colonialistas possibi- educacionais, conhecimentos e saberes cien-
litavam, ao contrário do escravismo, submeter tíicos, atendendo as exigências de formação
os indígenas à cultura do homem europeu, deste novo homem, sem abandonar as neces-
permitindo que eles aprendessem o idioma
sidades da construção de um pertencimen-
e a religião, perdendo muitos de seus referen-
to religioso, marcado pelos valores, história e
ciais culturais, como “os sacrifícios humanos, o
dogmas do cristianismo, em especial, católico.
canibalismo, a poligamia, o homossexualismo”,
Edward Said, no prefácio de sua obra
trazendo à tona o “cristianismo, as roupas euro-
“Orientalismo” (2003), descreveu que as socie-
peias, animais domésticos, utensílios” (Todorov,
dades contemporâneas árabes e muçulmanas
2003, p.259). Mas, para alcançar os interesses do
sofrerem um maciço ataque em razão de seu
projeto colonialista, foi necessário requerer aos
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DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
255
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
preendereis que cada criança é um indivíduo compreendermos que nenhuma suposta con-
diverso, com sua herança diversa, com um pas-
cepção de natureza, como o sexo, o desejo, o
sado diverso. Descobrireis, em cada uma, essas
tendências sexuais e só lhes negam os que não gênero e a sexualidade encontra-se isenta das
querem ver; esses impulsos informes, nebulo- contaminações culturais.
sos, que a idade não permite tenham a aplica-
ção desejada e que exteriorizam em traços de
caráter, em mudanças de humor, em travessu- As pedagogias descolonizadoras
ra, em displicência, em mentira, em todos esses
sete pecados mortais, que se resumem num só [...] de nós izeste monstros, vosso humanis-
deles (Porto-Carrero, 1934, p. 28). mo nos supõe universais e vossas práticas
racistas nos particularizam (Sarte, 1968, p.04).
Uma das questões levantadas por Barrei-
ro é com relação à ressonância desses discur- O trecho do ilósofo Jean Paul Sartre nos
sos no tempo histórico e seus dispositivos1 de permite reletir sobre o legado colonial aqui
disciplinamento (Foucault, 2010), se referindo deixado, possibilitando, inclusive, analisar os
aos efeitos que eles provocaram na educação efeitos da racialização e das políticas heternor-
sexual das crianças e de que forma essas leituras mativas construídas na educação da infância
e interpretações da psicanálise inluenciaram a brasileira ao longo da história.
formação dos docentes (creches, pré-escolas e Como destacou Faria (2011, p.XIV), as
ensino fundamental) no Brasil, ressaltando que: crianças vivenciam dentro e fora das escolas uma:
Desde o inal do século XIX passamos por um [...] educação reprodutora que didatiza o lúdi-
processo neocolonizador, este não neces- co, patologiza a infância e reduz a educação ao
sariamente marcado por características de ensino. E como pretexto da democratização do
dependências político-administrativas e eco- conhecimento ensina-se um conteúdo confor-
nômicas, e sim pela formação de uma rede mista, sexista, racista, classista, adultocêntrico,
discursiva e cientíica sobre a vida, produzida homofóbico, dito neutro, para todas as crian-
a partir dos saberes e da cultura europeia, ten- ças, sejam elas da elite, das camadas populares,
do o corpo, o sexo, os desejos e a sexualidade negras, indígenas, brancas, trabalhadoras [...].
como territórios biopolíticos coloniais (Barrei-
ro, 2015, p. 42).
Em pesquisa de inspiração etnográica
“Meu cabelo é assim, igualzinho o da Bruxa...
Portanto, é preciso estar atento para
todo armado”, Santiago (2014) descreve o pro-
cesso racializador enfrentado pelas crianças
1 Discursos institucionais, como a família, a psiquiatria, a psi- pequenininhas negras que cotidianamente
canálise, o religioso, etc.
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DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
257
Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
do, da emancipação humana. Mas, ainal, em diversidades e diferenças também estejam re-
que consiste essas práticas descolonizadoras? presentadas, dando visibilidade a todas as pes-
Como evitar que as crianças sejam condenadas soas e legitimando outras possibilidades de ser
a um sistema que extirpe, “o mais cedo possí- e viver em sociedade.
vel, sua capacidade especíica de expressão” e Para que essas transformações na edu-
cação colonial e colonizadora aconteçam,
tente “adaptá-la, o mais cedo possível, aos va-
mencionamos algumas medidas, como: o re-
lores, signiicações e comportamentos domi-
conhecimento das diferentes organizações
nantes”? (Guattari, 1987, p. 53). familiares; a descolonização das linguagens e
práticas racistas; a representação da mulher e
do gênero feminino em paridade ao homem e
ao gênero masculino e a possibilidade da criança
tornar-se protagonista da construção da própria
identidade.
Essas medidas estão diretamente relacio-
nadas à organização, ao ensino, à decoração e
Charge feita pela (o) cartunista Laerte Coutinho. As crianças
enquanto brincam são abordadas por um adulto que reconhe-
arquitetura do espaço educacional, uma vez que
cendo a transgressão quer eliminá-la e sugere que assistam TV. em muitas creches e pré-escolas a representa-
ção em imagens de mulheres, homens e famílias
Apesar de parecer estranho reunir as pa- negras, indígenas e outras não brancas estão au-
lavras “pedagogia”, “educação” e “subjetividade” sentes, e desta forma também encontram-se as
no mesmo texto, de fato este encontro é pos- histórias e gravuras dos livros de literatura infan-
sível. A pedagogia como sabemos, foi histori- til encomendados, as danças e músicas que são
camente constituída como uma ferramenta de ensinadas para as crianças, em suma, as práticas
disciplinamento, de imposição das normas so- pedagógicas não levam em consideração as di-
ciais e de sutura do sujeito às normas. Contudo, versidades étnicas do nosso país, os diferentes
é na contramão dessa operacionalidade peda- arranjos familiares, contemplando majoritaria-
gógica que as pedagogias descolonizadoras de- mente o tradicional modelo de família nuclear
sempenham suas funções. burguesa e a cultura caucasiana.
Destacaremos aqui algumas relexões Entretanto, é interessante que professo-
que, na nossa opinião, contribuem para que o res e professoras possam, junto com as crianças,
espaço institucional das creches e pré-escolas construir diferentes representações acerca do
ofereçam às crianças um ambiente em que as conceito “raça” e “família”, produzindo esculturas,
desenhos, vídeos, pinturas, imagens, utilização
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DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
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Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
quedos e cores, onde o azul, os carrinhos, bolas gênero, fundamentando suas críticas em uma
e espadas permanecem distantes do rosa, das suposta ideia de natureza estática que pré deter-
bonecas, casinhas e utensílios domésticos, in- mina a infância e a vida a partir da genitalidade.
dicando o lugar especíico em que cada grupo As discussões e pedagogias visando a
de crianças deve brincar e desenvolver suas ati- paridade de gênero que poderiam emancipar
vidades a partir do critério sexual anatômico. a infância, dando as crianças alternativas para
Está instaurada nesta dinâmica a naturalização viver distintas experiências foram vetadas nos
dos gêneros, provenientes de nossa herança plenários municipais, retirando do PNE (Plano
colonial europeia, e qualquer ação transgres- Nacional de Educação) a palavra “gênero”, o
sora por parte das crianças fará com que os do- que provocou forte reação por partes de pro-
centes e colegas percebam com estranheza as fessores/as, ativistas e grupos envolvidos com
a causa4, como a ANPED, o Fórum Paulista de
razões que levaram esse sujeito a identiicação
Educação Infantil- FPEI 5, entre outros pelo Brasil.
com outras possibilidades de brincar. O olhar
É também no campo das relações de
de estranhamento recairá sobre a sexualidade
gênero que podemos apresentar para as
infantil, pois ao associar o sexo a respectivas e
crianças a paridade e equidade de direitos entre
determinadas práticas sociais, a transgressão
os diferentes sexos e gêneros, permitindo que
simboliza justamente a passagem da mascu-
meninas por meio da imaginação e brincadeiras
linidade para a feminilidade e vice-versa. E é
de “faz de contas” realize atividades e funções
contra esta percepção denominada por hete-
das quais hoje estão, majoritariamente, sendo
ronormatividade que devemos empreender ocupadas por homens. E também com que
esforços no campo educacional, desconstruin- meninos desenvolvam as funções relacionadas
do as fronteiras de masculinidades e feminili- ao cuidado dos ilhos, a limpeza da casa,
dades para possibilitar às crianças outras for- etc. atividades até então atribuídas ao sexo
mas de subjetivação no exterior da estrutura. feminino. Ao desconstruirmos as demarcações
No entanto, o que vivemos hoje no Brasil é
justamente o oposto, uma crescente “onda” mo- 4 Disponível em: http://www.anped.org.br/news/entidades-
-reagem-a-tentativa-de-exclusao-de-questoes-que-abordam-
bilizada por discursos fundamentalistas cristãos -genero-e-sexualidade-nos-planos-de-educacao. Acessado em:
ocupam o cenário político e em nome da moral 26/06/2015.
5 Disponível em: http://fpeicrianca.blogspot.com.br/. Aces-
e dos bons costumes, interpelam toda a literatu- sado em 27/06/2015. Ver em anexo o manifesto indignado II do
ra cientíica produzida no campo das relações de FPEI a respeito do tema.
260
DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
Charge feita pelo cartunista italiano Frato. Meninas subvertendo É contrário a este modelo pedagógico
as questões de performances de gênero.
colonial e capitalista que as pedagogias desco-
Portanto, as pedagogias descolonizado-
lonizadoras operam, exaltando as diferenças e
ras ou anti-colonialistas podem colocar o mun-
as diversidades culturais, permitindo com que
do de ponta cabeça, e:
as crianças explorem suas múltiplas possibilida-
assim, contribuem para os estudos das crian- des de existir e expressar-se. Para isso buscamos
ças e das culturas infantis, dando maior visi- pensar as crianças e as infâncias nas suas dife-
bilidade às crianças como protagonistas de renças, na singularidade e também no seu pro-
uma sociedade adultocêntrica, podendo des-
sa forma romper com as inluências de uma tagonismo, como sujeitos produtores de cultu-
ciência androcêntrica e adultocêntrica. Ofere- ras, e não unicamente como um meio passivo
cem também elementos para a desconiança
sobre o qual se inscreve signiicados culturais.
dos discursos que pretendem construir verda-
des absolutas sobre as infâncias (Faria; Finco,
2011, p.04).
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Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
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DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
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Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
ção e a sedimentação dos preconceitos, que, está dentro de nós, talvez porque tenhamos
no limite, sustentam a intolerância e a violência boas intenções”. Finalizamos este manifesto
contra uma parte considerável, e ainda excluída, com as charges de Laerte (2015) e, reiterando o
da sociedade brasileira. quanto esse processo de exclusão de gênero, da
Para a efetiva construção de uma educa- sexualidade e da diversidade, somente reforça
ção emancipatória, plural, e, de fato, inclusiva, o jogo da subordinação e das hierarquias, po-
desde a creche até o ensino superior, é funda- dendo vir a alimentar a intolerância e a violência
mental a problematização destes temas, essen- contra uma parte signiicativa, e ainda excluída,
ciais na construção de nossas identidades, para da sociedade brasileira.
que todos possam ter criticamente a capacida-
de de compreender a maneira pela qual ocor-
re o processo de individuação e socialização.
Esta é, aliás, a orientação do Plano Nacional de
Educação em Diretios Humanos, publicado em
2009, para a Educação Básica, segundo a qual é
necessário “fomentar a inclusão, no currículo es-
colar, das temáticas relativas a gênero, identida-
de de gênero, raça e etnia, religião, orientação
sexual, pessoas com deicência, entre outros,
bem como todas as formas de discriminação e
violações de diretos, assegurando a formação
continuada dos(as) trabalhadores(as) da educa-
ção para lidar criticamente com esses temas.”
Portanto, esse debate deve estar presen-
te desde a creche, na educação das crianças
pequenininhas, para que elas possam reconhe-
cer as origens das desigualdades e construir as
ferramentas teóricas necessárias para a luta, se
assim se engajarem, por uma sociedade plural
e mais justa. Como airma Chauí (1980, p.40), “a
ideologia não está fora de nós como um poder
perverso que falseia nossas boas intenções: ela
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DESCOLONIZANDO NOSSOS PENSAMENTOS: POR UMA PEDAGOGIA DESCOLONIZADA PARA A EDUÇÃO INFANTIL
Referências bibliográicas
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Alex Barreiro e Ana Lúcia Goulart de Faria
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A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA
DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PRO-
FESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMI-
CA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
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Noeli Valentina Weschenfelder
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A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
zação inicial e cinema: narrativas, experiências e dez por cento é mentira - A desbiograia oicial de
cuidado de si 3. Este espaço de investigação e re- Manoel de Barros; Língua de Mariposas; Crianças
lexão tem permitido examinar a formação de invisíveis, entre outros. Acadêmicas e proissio-
professores/as e a infância em suas interfaces nais que atuam em espaços educativos trouxe-
com o cinema. O exercício de problematização ram suas memórias de infância e de ser criança,
está concentrado nas relações, enredos, signi- em um contexto de trocas signiicativas, sendo
icados, experiências e práticas dos docentes a experiência de apreciar cinema algo novo na
com o cinema, tomadas a partir de memórias vida de muitos destes sujeitos.
autobiográicas. Consideramos a temática rele- A partir do ano de 2013 esta pesquisa
vante e necessária à formação docente, ao Cur- iniciou uma aproximação e um diálogo com
so de Pedagogia, como também à formação o Projeto de Assessoramento4, proporcionando
continuada. Assim, as memórias de infância e uma ampliação do grupo de participantes e,
tempos de ser criança permitem problemati- por consequência, uma ampliação signiicati-
zar, na relação docente, as interações que adul- va da abrangência. Esta pesquisa contou com
tos e sujeitos infantis estabelecem entre si em a participação de Acadêmicas de Pedagogia
meio a saberes e fazeres cotidianos. que atuavam como Bolsistas de Iniciação à
Esta interlocução entre a pesquisa e o en- Pesquisa do CNPq e FAPERGS. As atividades
sino favoreceu a construção de uma trama de de pesquisa junto ao projeto de assessora-
possibilidades enriquecedoras. Neste cenário, mento consistiram de visitas em campo, junto
algumas estratégias tomaram uma dimensão a escolas de Educação Infantil de alguns mu-
e um caráter institucional, como o Ciclo de Ci- nicípios referenciados, com a realização de
nema desenvolvido junto à UNIJUÍ. Esta estra- observação participante e entrevistas, com a
tégia, apoiada em uma cultura de socialização posterior socialização de materiais teóricos e
entre os pares, favoreceu oportunidades de outros subsídios linguageiros, para utilização
sensibilização e problematização no território tanto nos processos de formação continuada
de encontro entre a Pedagogia e a Antropolo- das equipes das escolas, quanto nas práticas
gia, na exibição e discussão de ilmes como Só pedagógicas com as crianças. Além das ativi-
dades em campo, as pesquisadoras tiveram a
3 Esta pesquisa representa uma interlocução entre a UNIJUÍ,
a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tendo como re- 4 Projeto de Assessoramento e Acompanhamento Peda-
ferência a Profa. Dra. Valeska Fortes de Oliveira, e a Universidade gógico às Redes e Sistemas de Ensino na Implementação do
Federal de Minas Gerais (UFGM), tendo como referência a Profa. Proinfância em Municípios da Região Central, Norte e Noroeste
Dra. Inês Teixeira de Castro. do Estado do Rio Grande do Sul - MEC/UFSM.
271
Noeli Valentina Weschenfelder
oportunidade de acompanhar vários encon- para os diferentes grupos sociais que compõe
tros de formação regionais e encontros locais as escolas. Observamos e problematizamos, de
de formação em contexto5, realizados ao longo modo especial, os signiicados atribuídos ao es-
dos anos de 2013 e 2014 no âmbito do projeto tar em interação, ao planejar, conviver, partilhar
de assessoramento. processos formativos, construir currículos, reco-
Tais atividades foram sistematizadas nhecendo, sobretudo, que estes constituem ter-
posteriormente em relatórios de pesquisa. O ritórios de produção de saberes e poderes.
cenário de análise e discussão deste estudo, A investigação permitiu examinar a for-
por sua vez, tinha como proposta a organiza- mação docente na Educação Infantil e a infân-
ção em dois eixos signiicativos. No primeiro cia, buscando ampliar a interface com a cul-
eixo, estavam enfatizados o viver cotidiano, tura, através do cinema em especial, e outras
as memórias autobiográicas de infância e as artes linguageiras, como a poesia, a música e a
relações com as crianças em espaço-tempo literatura infantil. Neste sentido, as dimensões
da escola infantil: O cinema de cada um/uma, estéticas, políticas e culturais da formação do-
a poesia, a literatura infantil e a música infantil. cente foram tomadas em consonância com os
Por outro lado, no segundo eixo, estava enfa- desaios colocados pelas Diretrizes Nacionais
tizado o cinema, a poesia, a literatura infantil Curriculares para a Educação Infantil (2009).
e a música infantil, sendo tomados como uma A aproximação em questão parte do pres-
potência no cotidiano dos espaços educativos, suposto teórico-analítico de que as professoras
com vistas ao desmantelamento de um senti- são sujeitos socioculturais (Castro, 1996), que
do único para o fazer pedagógico, bem como a se diferenciam dos demais grupos, categorias
infância como dispositivo de poder/saber. e segmentos de trabalhadores, a partir de sua
Ao longo do percurso foi reiterada a impor- condição docente de articulação teórico-práti-
tância de considerar, nos processos formativos ca, na constituição de uma práxis. De tal modo,
e educativos, o sentido das práticas instituídas tem-se caracterizado e analisado as relações e
vivências dos participantes da pesquisa com as
5 Os encontros de formação regionais consistiam de ativi- suas memórias autobiográicas. Esta análise in-
dades formativas em micropolos geográicos no território de
abrangência do Polo Ijuí, compreendido por 46 municípios. Os
cide também sobre as suas relações e vivências
encontros de formação em contexto consistiam de atividades com o cinema, a literatura, a poesia e a música
formativas e assessoramento realizado in loco, junto às escolas
integrantes da amostra do Polo Ijuí, compreendida esta amostra
infantil, buscando compreender o lugar destas
por 08 municípios. Ambas as atividades eram integrantes da me- linguagens em suas vidas. A análise desenvol-
todologia de trabalho do projeto de assessoramento.
272
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
vida com os sujeitos reconhece trajetórias pes- Trabalhamos com o pressuposto de que
soais e proissionais marcadas por experiências deslocamentos nas concepções de criança e
muito restritas e pouco diversiicadas, que im- de infâncias exercem efeitos signiicativos na
plicam em certa medida num estreitamento das cultura proissional das professoras, nas práti-
práticas pedagógicas com as crianças. cas pedagógicas com as crianças e nas relações
Interessa, então, a partir destes recortes, construídas com as famílias.
compreender imagens, visões e concepções de Nesse sentido, interessa reletir nos espa-
criança e infância, ampliando a análise sobre os ços de formação acadêmica sobre as concep-
saberes e fazeres docentes em suas vidas, em ções que estão presentes e que se revelam nas
seus processos formativos e em seu trabalho práticas pedagógicas de adultos com crianças
no cotidiano da escola infantil, bem como os pequenas. Os campos da Sociologia da Infância
signiicados e sentimentos que se inscrevem e da Antropologia da Criança contribuem de for-
em seus encontros com as crianças.
ma particular no que se refere às diversas manei-
ras de entender a socialização, gostos, tempos,
Universidade e interculturalidade
espaços, brincadeiras, culturas, modos infantis
de ver, estar e interagir com o mundo, frequentar
No campo pedagógico, vivemos as últi-
a escola, enim, seu universo simbólico.
mas décadas com muitas inquietações e mu-
danças no modo de conceber a infância e as Esta proposta de trabalho relete sobre
formas de socialização destes pequenos su- a formação docente e insere-se no campo da
jeitos, especialmente nas instituições de edu- Educação Intercultural, problematizando refe-
cação infantil. As concepções presentes nas renciais epistemológicos, teóricos e pedagó-
DNCEI (2009) assumem uma perspectiva ge- gicos relativos às práticas educativas escolares
nerosa com a criança e com o currículo, reco- com crianças, com vistas à descolonização de
nhecendo a possibilidade de encontro entre as saberes e poderes. A interculturalidade traz uma
experiências e os saberes das crianças com o perspectiva de alteridade na relação com o ou-
patrimônio acumulado pela humanidade nos tro, estando pressuposto um respeito à diferen-
âmbitos cultural, artístico, ambiental, cientíico ça, onde esta possui uma dimensão de diversi-
e tecnológico. Trata-se de uma ideia de currí- dade, não implicando práticas sociais desiguais.
culo cultural, estando as professoras em uma Pressupõe o saber do outro e o bem viver, em
posição de mediação. um espaço que gera relações outras de saber e
273
Noeli Valentina Weschenfelder
poder, onde o professor não é mais a centralida- mael Palamidessi6 (2000), quando enfatiza que a
de do processo. A interculturalidade assume-se problematização emerge quando um aspecto da
então como um caminho possível neste proces- realidade se conforma por efeito da atenção e da
so de descolonização de saberes e poderes so- interrogação a que é submetida por um grupo ou
bre a infância. Produz deslocamentos. setor da sociedade (p. 213). Uma problematiza-
Estas mudanças passam necessariamen- ção funcionaria quando se propõe que algo seja
te pela revisão dos percursos de formação melhorado, modiicado ou reletido. A identiica-
acadêmica e proissionais, para além das di- ção de uma problematização seria possível quan-
mensões técnicas e teóricas, assegurando um do, ao redor de certo objeto, tema ou questão, são
espaço de relexão e vivência em um campo produzidos e circulam valores, imperativos, exi-
ético e político. Neste sentido, a mudança na gências, regras, enim, discursos (p. 214).
A convergência para este campo de de-
cultura proissional encontra uma posição de
bate traz muitos questionamentos. Podería-
centralidade no debate, representando a bus-
mos nos interrogar sobre o modo como con-
ca deste espaço onde os diferentes modos de
cebemos as crianças que hoje estão na escola
ser e de viver a infância, em seus diferentes
infantil. Sobre como concebemos a infância
contextos socioculturais, sejam acolhidos.
na contemporaneidade. Que relações são pos-
A aproximação entre a pesquisa acadê-
síveis estabelecer com outras infâncias, com
mica e o projeto de assessoramento, como já
memórias e lembranças de nosso tempo de
foi colocado, foi construída a partir de diversas
criança? Quais expressões culturais da infância
práticas voltadas à formação inicial de profes- poderiam ser observadas na escola infantil? O
sores/as no Curso de Pedagogia e nos processos que sabemos sobre o universo simbólico das
de formação continuada junto à rede pública crianças que estão na escola infantil? Como vi-
de ensino. Estas vivências convergem para o vem seus cotidianos? Como as crianças vivem
objetivo comum de ampliar referenciais episte- sua experiência de infância? Como signiicam
mológicos, teóricos e pedagógicos, relativos às estar na escola infantil? O que e como apren-
práticas educativas com crianças na perspectiva dem com seus pares? Como brincam e intera-
intercultural, com vistas à descolonização de sa- gem? Como reconhecem a professora, as ativi-
beres e poderes acerca da infância.
Ao problematizar esta temática de estu- 6 O pesquisador vale-se do conceito de problematização de-
dos, lançamos mão das palavras de Mariano Is- senvolvido por Foucault (1998, 1999 e 1996), utilizado também
por Jorge Larrosa (1998).
274
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
dades, os espaços? Como percebem os tempos xões que trazem pressuposto um imperativo
vividos na escola? Como nós adultos nos rela- de investigação sobre o universo das crianças
cionamos com as crianças? e sobre como estas vivem os seus cotidianos,
Interrogar sobre o modo como pro- e os próprios signiicados construídos sobre a
fessore/as e familiares se relacionam com as vivência de estar na escola infantil.
crianças em seus processos de socialização, As atividades acadêmicas propostas em
permitiria desmantelar signiicados universais disciplinas do currículo no Curso de Pedagogia
de conhecimento sobre a infância e as crian- realizam um movimento de problematização
ças. Em uma busca por outras racionalidades, sobre as contribuições da educação intercultu-
outras possibilidades que possam recusar mo- ral. As trajetórias de formação inicial exercem
delos que uniicam sentidos, estéticas, lingua- um papel determinante na constituição da do-
gens e fazeres pedagógicos. cência, ainda que a noção mais ampla dos pro-
Assistimos uma reconceitualização da cessos de formação circule por um conjunto de
infância na contemporaneidade, contribuindo vivências em diferentes tempos e espaços. De
para o reconhecimento das vantagens sociais, acordo com Nóvoa (1995, p.25):
culturais e pedagógicas da participação das
crianças em seus processos de aprendizagens A formação não se constrói por acumulação
(de cursos, de conhecimentos ou de técnicas),
(Tomás, 2007 e 2011), recusando a ideia de ne- mas sim através de um trabalho de relexivi-
gatividade e promovendo a ideia de alterida- dade crítica sobre as práticas e de (re) constru-
ção permanente de uma identidade pessoal.
de. Levantando o questionamento e a relexão
Por isso é tão importante investir a pessoa e
sobre quem é esse outro infantil para as pro- dar um estatuto ao saber da experiência.
fessoras e como estas se relacionam cotidiana-
mente com estes sujeitos. Nas pesquisas realizadas nos últimos anos
Ao direcionarmos nosso olhar para es- temos tomado a infância e a docência como ele-
tas questões, necessariamente vamos estar mentos fundamentais do processo educativo. A
atentos também às vozes das crianças e aos partir delas problematizamos concepções como
elementos presentes em seus discursos, bus- participação e protagonismo, vozes e narrativas,
cando reconhecer as imagens que estas cons- imaginário infantil e linguagens, subjetividades
troem sobre as professoras, sem descuidar e identidades docentes e infantis, mediante es-
das expressões culturais da infância que estão tudos pautados em diversos campos do conhe-
presentes nos espaços educativos. São rele- cimento no diálogo com a Pedagogia.
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A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
277
Noeli Valentina Weschenfelder
ser considerada neutra ou desprovida de inten- Eda. O imaginário e a formação do professor. In.
cionalidade. Estas vivências produzem efeitos. AZEVEDO, Nyrma (Org.). Imaginário e educa-
Espera-se efetivamente que estes efeitos sejam ção. Campinas, SP: Alínea. 2006.
instituintes de novos sentidos, em um ângulo de LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e
interculturalidade, onde os deslocamentos pro- o saber de experiência. Revista Brasileira de
duzidos abram a possibilidade de uma descolo- Educação. Tradução de João Vanderlei Geraldi.
nização de saberes e poderes acerca da infância, Jan/Fev/Mar/Abr, n.19. 2002.
desconstruindo a ideia de um sentido único para
NÓVOA, Antonio. Vidas de professores. Por-
os processos de formação docente.
tugal, Porto Editora, 1995
278
A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES E PODERES ACERCA DA INFÂNCIA NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE
PROFESSORAS: UM DIÁLOGO ENTRE A PESQUISA ACADÊMICA E O ASSESSORAMENTO PEDAGÓGICO
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A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA,
BRINQUEDO E BRINCADEIRA
Tânia de Vasconcellos
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que é memória, é patrimônio; a infância dos Até o Fim. Os versos de Torquato dizem: “quan-
processos sociais; a infância das instituições; a do eu nasci/ um anjo louco muito louco/ veio
infância da cultura, das ideias; a infância como ler a minha mão [...] eis que esse anjo me disse/
surgimento do novo, do inaugural; a infância apertando minha mão/ com um sorriso entre
como parte do que nos constitui humanos. dentes/ vai bicho desainar/ o coro dos conten-
Quando minha sobrinha Sarah nasceu, tes”. O anjo de Chico também prenuncia des-
escrevi o poema que serve de epígrafe a este graças “Quando nasci veio um anjo safado/ o
artigo e traduz parte dessas inquietações. Ter chato do querubim/ e decretou que eu estava
um bebê no colo, olhar nos seus olhos não é ta- predestinado/ a ser errado assim. Já de saída
refa fácil. Há na profundidade do olhar do bebê a minha estrada entortou,/ mas vou até o im”.
algo de misterioso e secreto. É a própria vida Se os poetas estão aqui logo à entrada
que lhe indaga e comunica a partir desse olhar. do texto, é porque é preciso pensar sobre a for-
O poema em questão bebeu diretamen- ça profética que a educação tem ao vaticinar
te do poema Com Licença Poética, de Adélia sobre as crianças. Ao dizer-lhes o que devem e
Prado, que airma: “Quando nasci um anjo es- o que podem ser. Ao prescrever, ao julgar. Ao
belto,/ desses que tocam trombeta, anunciou:/ reduzir – em sua vocação fundante por norma-
vai carregar bandeira./ Cargo muito pesado pra lizar, normatizar. E ao mesmo tempo porque é
mulher” (Prado, 1993, p.11). O texto de Adélia, fundamental ter em conta a capacidade poéti-
por sua vez, tomou por ponto de partida o Poe- ca das crianças de irem “até o im”, a despeito
ma de Sete Faces, do Drummond, de 1930, que dessas profecias, muitas vezes contrariando
diz “Quando nasci, um anjo torto/ desses que essas profecias. A capacidade que as crianças
vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gau- têm de teimosamente resistirem em sua força
che na vida” (Drummond, 2013, p.11). Também infantil e no gesto brincante que cria novos
Manoel de Barros, em seu poema Desobjeto, se mundos, novas relações, novas realidades.
assume gauche, um sujeito esquerdo, desen- Os poetas também foram chamados
caixado: “O menino que era esquerdo e tinha aqui para nos lembrar a necessidade de mirar
cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o diferente, pois talvez só possamos enxergar a
pente naquele estado terminal” (Barros, 2003, criança com olhos capazes de desver e transver
poema III). Os versos de Drummond se multi- – olhos de poeta. Isso implica que, na impossi-
plicaram na cena poética e musical – o tema do bilidade de se (re)tornarem crianças, cabe aos
anjo torto foi retomado por Torquato Neto em professores se inventarem poetas. Dito de ou-
Let’s Play That e depois por Chico Buarque em tra forma, a formação docente é antes de tudo
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formação estética. Não de aquisição de um dis- velho sábio. Ferreira Gullar colocou a questão:
curso sobre a estética, mas de experiência esté- “Traduzir-se uma parte na outra parte – que
tica capaz de sustentar a produção intencional é uma questão de vida ou morte – será arte?”
de uma nova condição infantil: um novo cor- (Gullar, 2004). Sim. Eu penso que sim.
po, um novo gesto, um novo olhar, uma nova
atitude. Encontramos em Pablo Picasso um Construir olhos de ver: Uma criança que
exemplo dessa intencionalidade. Ele airma- brinca
va que aos 15 anos já sabia desenhar como o
pintor Raphael, mestre lorentino da Renascen- Observar. Aprender a ver.
ça, mas que precisou de uma vida inteira para É impressionante o tanto que nos
aprender a desenhar como as crianças. escapa daquilo que acreditamos ter visto.
Tenho defendido em meus escritos que Caminhe com outra pessoa, lado a lado, e
um professor é sempre muito mais velho que tente reproduzir posteriormente a memória
sua idade. Há nele, concentrado, todo o tempo do que foi visto. Como é difícil encontrar
do mundo: A experiência da humanidade da pontos de correspondência, particularmente
qual ele é representante e é a sua tarefa conec- se vamos aos detalhes. Se repetir o mesmo
tá-la à criança – sua legítima herdeira. Ao mes- trajeto com uma criança, daí serão diferenças
mo tempo em que há no professor esse sábio abismais. Caminhamos pelas mesmas ruas
ancião, sua comunicação com a criança depen- e becos, mas não passamos pelos mesmos
de de uma linguagem que só outra criança é lugares. Atravessamos o espaço por diferentes
capaz. É necessário, portanto, acessar a criança corredores topológicos. Cada um vê o que o
que o habita e da qual ele se distanciou. Pro- seu olhar procura e, via de regra, não temos
vavelmente, como todas as crianças, Pablo Pi- tanto controle objetivo sobre o buscamos
casso, quando criança, sabia desenhar como as ver quanto acreditamos possuir. A primeira
crianças desenham. Mas só a intencionalidade questão que coloco a mim mesma ou a
de uma formação estética que ele construiu alguém a quem eu esteja orientando é: Por
para si pôde devolver-lhe a experiência do de- que enxerguei isso, dentre tantas coisas que
senho infantil. Do mesmo modo, a formação estavam acontecendo? Por exemplo, quem
do professor não se basta nos saberes acadê- já viu crianças numa praça pública ou em
micos. É necessária a experiência sensível ca- um pátio da escola durante o recreio sabe
paz de reunir suas duas partes: o infante e o da multiplicidade de acontecimentos que se
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oferecem aos olhos do observador. Então me A vivência é uma unidade na qual, por um
lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que
pergunto, por que, dentre tantas, essa cena se vivencia, está representado – a vivência
me chama a atenção? Costumo dizer aos sempre se liga àquilo que está localizado fora
professores e aos meus estudantes: “Coniem da pessoa – e, por outro lado, está represen-
tado como eu vivencio isso, ou seja, todas as
no seu olhar!”. Ninguém pesquisa longe de si. particularidades da personalidade e todas as
As questões que interessam estão de algum particularidades do meio são apresentadas na
modo inscritas no sujeito. Nem por isso são vivência, tanto aquilo que é retirado do meio,
todos os elementos que possuem relação
questões individuais, uma vez que todo o com dada personalidade, como aquilo que é
processo de constituição desse sujeito também retirado da personalidade, todos os traços de
seu caráter, traços constitutivos que possuem
é fruto de processos coletivos, sociais.
relação com dado acontecimento. Dessa for-
Há na obra de Vigotski um conceito ao ma, na vivência, nós sempre lidamos com a
qual a academia vem dando especial atenção, união indivisível das particularidades da per-
sonalidade e das particularidades da situação
particularmente no que tange à compreensão representada na vivência. Por isso, parece
dos processos de desenvolvimento da criança. apropriado conduzir de maneira sistemática a
Esse conceito recebeu em russo o nome de pe- análise do papel do meio no desenvolvimen-
to da criança, conduzi-la do ponto de vista
rejivánie. No texto de Vigotski Quarta Aula: A das vivências da criança, porque na vivência,
questão do meio na pedologia (Vigotski, 2010), como já coloquei, são levadas em conta todas
a tradutora lança mão do Dicionário de Psicolo- as particularidades que participaram da de-
terminação de sua atitude frente a uma dada
gia Clínica de Tvorogov para explicar as razões situação (Vigotski, 2010, p.686/687).
de sua escolha. O vocábulo aparece deinido
como “condição mental, evocada por fortes A vivência vem sendo postulada como
sensações e impressões. Perejivánie não é ape- unidade de análise e pesquisadores têm se
nas uma realidade direta à consciência, de seus dedicado a pensar instrumentos capazes de
conteúdos e de suas condições, não é apenas capturá-la. Cito como exemplo os Mapas Vi-
algo experimentado, mas também um traba- venciais, recurso desenvolvido pelo professor
lho interior, um trabalho mental”. Diante disso, Jader Janer em pesquisas com crianças. O tra-
a tradutora elegeu a palavra vivência como a balho de Reinaldo José de Lima, por ele orien-
que mais claramente pode expressar essa ideia tado, é uma dessas contribuições (Lima, 2014).
na língua portuguesa. Essa referência não é fortuita. A análise do tra-
Nas palavras de Vigotski, balho de Lima que tive a oportunidade de fazer,
quando o mesmo ainda estava em processo de
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escrita e, depois, na sua forma inal, me levou a menina arrastando a caixa com rodinhas pela
alça – parece que ela conduz um carrinho de
pensar a vivência como uma categoria funda- feira feito às suas dimensões. Na mão leva
mental para reletir sobre a categoria trabalho uma fraldinha de pano. Movimentando-se
e suas múltiplas relações, mais especiicamen- entre este espaço e o quintal ela organiza a/as
brincadeira/s. Primeiro enrola a batata na fral-
te o trabalho docente, o trabalho do professor, da e a nina, embalando nos bracinhos. Depois
o trabalho do professor-pesquisador. rola a batata numa direção e noutra. Gira a
Argumento uma possibilidade outra, batata e bate palmas. Puxa a batata arrastada
na fraldinha de pano. É uma batata-boneca,
uma mudança de direção no sentido da consi- batata-bola, batata-pião, batata-carrinho. E
deração das vivências. Que a vivência não seja segue assim até a avó aparecer para coniscar
as batatas, pois batata não é brinquedo e há
apenas apreciada como condutor das questões
tanto com que se brincar (Observação do co-
em que a colocamos para o que é observado tidiano familiar).
– as vivências das crianças –, mas também no
sentido de compreender a própria ação do Observar não é fortuito. Exige prepa-
pesquisador. Tenho pensado a vivência como ração, exige estar em consonância com uma
uma categoria que se dirige ao pesquisador, forma especial de relexividade que seja ela
ao professor, ao adulto que observa. Tenho me mesma um método capaz de guiar. A pesqui-
perguntado sobre as vivências do professor. sa etnográica que tem inspirado a Educação
Tenho me perguntado sobre o que conduz o também tem apontado alguns parâmetros
meu olhar para a cena. E como compreender a em relação a isso. A observação deve ser fru-
direção do meu olhar pode me ajudar a com- to de um contínuo debruçar sobre o cenário
preender o que eu vejo. observado. Não basta tomar uma cena isolada.
Para compreender o seu signiicado é preciso
A menina agora tem menos de dois anos. Ela
brinca na casa da avó sobre o olhar distraído constância na observação. Uma permanência.
dos adultos. O espaço é uma área coberta Além da permanência, é preciso atenção. Aten-
entre a cozinha e o quintal que serve ao lazer ção aos pormenores, aos grandes e pequenos
dos adultos com mesa e sofás e que também
abriga os cestos de brinquedos das crianças. acontecimentos. Atenção aos contextos. Mas
Desprezando os brinquedos industrializados não basta olhar o que fazem. É preciso atentar
a menina volta a sua atenção a uma caixa de para como interpretam o que fazem. E, estan-
plástico com alça e rodinhas – cuja função
original é guardar os blocos de montar – e, do de posse desses registros, conseguir pro-
aproveitando a condição contígua da cozi- duzir um relato que seja digno do que foi vi-
nha, ela se esgueira e reaparece trazendo na
vido. Que faça jus à experiência do grupo e do
caixa algumas batatas. Olhando a cena – a
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observador. E depois, debruçar-se sobre todo tam? Essas são perguntas que a humanidade
esse universo relatado e buscar compreendê- se faz há muito tempo. Autor de um dos pri-
-lo. Construir essa compreensão no coletivo. meiros estudos que tomam o jogo na dimen-
Compartilhar o que foi aprendido com e entre são da cultura, publicado originalmente em
as crianças em diferentes níveis: com as pró- 1938, Johan Huizinga chega a dizer que o jogo
prias crianças, entre os colegas, entre os pais e é mais antigo que esta (Huizinga, 2000).
outros parceiros. O conhecimento partilhado Em estudos mais recentes, Jean-Marie
torna a todos mais potentes. Llôte desenvolveu uma análise do simbolismo
Princípios como esses podem ser encon- dos jogos e criou quatro categorias gerais sob
trados no trabalho de Manuel Sarmento (Sar- as quais organizou as diferentes estruturas de
mento, 2003) ou em manuais como o de Bog- jogos: Os jogos de sociedade, aos quais organi-
dan e Biklen (1994). E, da mesma forma que é zou sob o lema “o prazer de estar junto”; os jo-
importante que a formação do professor con- gos de território, cujo lema é “A ordem do mun-
temple a pesquisa, também é saber que a pes- do”; os jogos de sorte, obviamente “A sorte ou
quisa excita o pensamento e, por isso, nunca revés”; e os brinquedos, aos quais deu por lema
se sabe aonde se pode chegar. Se a função da “A magia dos objetos”. A cada um deles atribuiu
pesquisa é provocar o pensamento, tal como a um antijogo – aquela conduta que põe tudo a
brincadeira, ela é imprevisível. perder e acaba com a brincadeira. Nos jogos de
Observar Sarah bebê brincando me fez sociedade: as caretas; nos de território: o caos;
mais uma vez investigar o simbolismo dos nos de sorte: as trapaças. Quanto aos brinque-
objetos que dão suporte às brincadeiras: Os dos... bem, podemos falar disso mais adiante.
brinquedos. Antes de falar do que despotencializa os
brinquedos, é melhor retomar o sentido brin-
A boneca, a bola, o pião, o carrinho: cante da criança que torna brinquedo qualquer
Quantos símbolos cabem numa batata? objeto – até uma batata. E transforma a batata
em toda coisa existente. A magia dos objetos
O estudo do jogo, brinquedo e brinca- de que falou Lhôte depende, primeiramente,
deira é muito antigo. Existem obras que re- da capacidade de encantar que é própria da
montam a muitos séculos. Quais são os jogos e brincadeira e dos demais ritos sagrados.
brinquedos que existem e como são apropria- A função primeira que Sarah confere à
dos nas diferentes culturas? O que represen- batata é a de uma boneca-bebê.
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Uma das questões que Lhôte se coloca A bola encontra diferentes simbolismos.
é sobre em que medida as bonecas destina- Mas em muitas culturas a ela é identiicada com
das às crianças pequenas são iguras mágicas os astros em movimento. Na brincadeira de Sa-
de proteção contra qualquer suposto mal, ou rah a beleza e a expectativa estão no percurso
são fruto das criações das próprias crianças. Eu que faz a batata-bola de um ponto a outro. Ela
me pergunto se é possível fazer tão claramente a lança e a acompanha com o olhar. Depois, se
essa distinção. Há no gesto de Sarah uma atitu- desloca e a lança outra vez desenhando um
de de cuidado. Uma memória de uma conduta novo percurso. A brincadeira lembra um diálo-
de bebê que ela aos poucos deixa para trás e, go sem palavras. Um diálogo consigo própria.
ao mesmo tempo, a invenção de uma compa- Ela lança a bola, ela mesma a recebe e a lança
nhia, de um outro, de uma relação que não é novamente. A bola é, em diferentes culturas, um
pré-existente. Ela embala a batata e, embora símbolo associado à trajetória da lua ou do sol.
ainda não fale, murmura. Como quem canta.
Esse simbolismo ligado aos astros aparece de
As bonecas são uma companhia e ao mes-
forma um pouco modiicado nas narrativas que
mo tempo um duplo. Essa boneca-batata se do-
acompanham o pião. O pião é associado simbo-
bra mais aos desígnios brincantes de Sarah que
licamente ao movimento de rotação dos astros.
as demais – que não precisaram de encantamen-
Aos ciclos da vida. Seja pela diiculdade de se
to para tornar-se bonecas. Que exibem desde
fazer girar a batata-pião, seja pela excitação que
a fábrica seus cabelos louros, suas tranças, suas
produz quando inalmente o consegue. O fato
roupinhas. A boneca-batata não, ela teve que
é que Sarah celebra o movimento: Bate palmas!
ser concebida desde o princípio. Como os ídolos
primitivos que foram talhados na natureza – na A batata apoiada na fralda se converte
madeira e na pedra –, ela guarda a singularidade em carrinho que Sarah puxa pelo quintal. Um
de ser encanto para quem a encantou. modelo reduzido e improvisado. A apropria-
Freud, em seu texto Escritores Criativos e ção do mundo em modelos reduzidos fascina
Devaneio, airma que toda criança brinca de ser as crianças e os adultos. Os modelos reduzidos
grande. Eu penso que toda criança brinca de ser para uns são brinquedos, para outros, bibelôs.
Deus. Como o Deus do Gênesis, ela cria mundos A diferença entre brinquedos e bibelôs é que
e sopra vida ao pó. E do mesmo modo desfaz o uns se prestam à atividade brincante e outros
encanto e transforma tudo em outra coisa. Nes- apenas à contemplação. O problema é que
se caso, de batata a boneca, de boneca a bola. essa diferença só é visível para os adultos.
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A chegada da avó e o conisco das bata- de ser pensada na sua dimensão sagrada. Isso
tas interrompem a brincadeira. Como explicar é interessante, pois compartilho a ideia de que
aos adultos a potência brincante das batatas toda brincadeira é, simultaneamente, sagrada
frente ao mundo produzido pelos fabricantes e profana. No seu exercício divino, a criança
de brinquedos? brincante criando mundos sopra vida ao seu
Para Lhôte, a categoria que abarca os redor. A brincadeira é, no meu entender, uma
brinquedos, e que ele chamou de “A Magia dos forma de epifania que revela o divino em nós.
Objetos”, se divide em quatro estações: As igu- Agora podemos falar sobre a categoria
ras humanas; as imagens do mundo; os mode- que Lhôte classiicou como antijogos, na relação
los reduzidos; e, inalmente, as formas litúrgi- com os brinquedos: Os jogos educativos. Nosso
cas. É curioso perceber que na brincadeira, que exercício de pensar a batata como brinquedo –
não durou tanto tempo assim, Sarah percor- e experimentar por meio da ação brincante de
reu quase todas as categorias descritas. Criou Sarah a liberdade e multiplicidade de possibili-
uma boneca – uma representação da igura dades que podemos encontrar nesse objeto tão
humana. Criou uma bola e um pião – que são cotidiano, tão prosaico, tão à mercê da imagina-
exemplos de imagens do mundo. Criou mode- ção infantil – pode nos ajudar a pensar o cami-
los reduzidos quando investiu sua batata em nho oposto. Imaginar um objeto que se disfarça
carrinho. Sem nenhum brinquedo em mãos, de brinquedo para comunicar conteúdos, para
Sarah percorreu todo um leque de categorias. inculcar condutas, para promover a produção
A única categoria que parece não ter sido con- de algo para além da brincadeira.
templada foi a de Formas Litúrgicas. Nela, o
autor enumera os chocalhos, os balanços, as Brinquedos Enganosos: É preciso agora, ao
término deste capítulo consagrado aos brin-
pipas... Brinquedos capazes de religar os ho- quedos evocar os antijogos correspondentes.
mens às divindades e que foram usados para A trapaça é o antijogo dos jogos de sorte/
azar, as caretas dos jogos de sociedade, os
uma comunicação com o céu, como as pipas;
jogos educativos são as caretas e as trapaças
para o sacrifício humano e dádivas aos deuses, dos brinquedos. Certamente, todos os jogos
como os balanços; ou para espantar ou atrair são educativos em si mesmos, até certo pon-
to. Eles se tornam nocivos quando a vontade
espíritos, como os chocalhos. É verdade, Sarah de inculcar um ensinamento qualquer se so-
não brincou com nada disso... No entanto, li- brepõe ao desejo de liberdade e de lorescer
turgia é uma palavra que tem na sua origem da criança. Eu lembro que a palavra “inculcar”
signiica “pisar com os calcanhares”. Um jogo
um sentido profano – o serviço ao povo, antes deliberadamente educativo e que tem a in-
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consciência de admitir isso como tal, este “pi- Recentemente, tem se ouvido falar mui-
sar com os calcanhares” o coração e a alma da
to em ócio criativo, numa tentativa de reabi-
criança pequena – pelo menos até a idade em
que aprende a ler, porque então os pobres te- litar o ócio e distingui-lo dos temas da vadia-
rão outras oportunidades para serem educa- gem, marginalidade, e outros com os quais o
dos. Na sua forma mais hedionda o brinquedo
capital o identiicou, dentre outros, a ociosi-
educativo impõe uma propaganda política ou
religiosa e, portanto, tende a implicar o ódio dade burguesa – a ostentação do não traba-
em uma consciência (Lhôte, 2010, p.207). lho por parte dos que vivem da exploração
do trabalho alheio. O conceito de ócio criativo
Ao contrário de promover um ataque coloca-o entre as categorias que a Educação,
aos ditos “brinquedos educativos”, o que está por exemplo, pode tomar a sério. No entanto,
proposto aqui é uma distinção: Por princípio, independentemente de reconhecer que a ati-
os brinquedos educativos não são brinquedos. vidade contemplativa e o enriquecimento do
Podem ser boas ferramentas didáticas, podem mundo interior são bases para a criação, atrelar
ser bons recursos pedagógicos. Mas não são à ideia de ócio a obrigatoriedade de produção
brinquedos, não são do campo da brincadeira. de algo, de criação é um paradoxo.
A brincadeira se inscreve entre as ativida- Mas isso não signiica que brincar não
des que têm um im em si mesmas. Elas estão seja sério. Brincar é muito sério.
fora do campo das atividades que geram algo
Acaso não poderíamos dizer que ao brincar
para além delas mesmas – as ditas atividades toda criança se comporta como um escritor
produtivas. Esse é o universo do ócio. A nobre criativo, pois cria um mundo próprio, ou me-
lhor, reajusta os elementos de seu mundo de
categoria do ócio – tão desprezada numa socie-
uma nova forma que lhe agrade? Seria errado
dade que só pretendeu produzir, tão deslocada supor que a criança não leva esse mundo a sé-
numa sociedade que só pretende consumir. rio: ao contrário, leva muito a sério a sua brin-
cadeira e despende na mesma muita emoção.
Essa categoria inapreensível a que Marx cha- A antítese de brincar não é o que é sério, mas
mou “Tempo Livre” – que está para além das ne- o que é real (Freud, 1976, p.149).
cessidades e que é tempo inindo de invenção
do si mesmo. Filosoia, por exemplo, se encontra Se aproximarmos essa airmação de
entre as atividades que têm im em si mesmas Freud do conceito de vivência em Vigotski,
e, portanto, não são produtivas. A produção do podemos nos perguntar: Mas, ainal, o que é o
pensamento serve ao próprio pensamento. Se real, se a vivência de cada um produz um sen-
ele tem outro Senhor, já não é livre para pensar. tido único e irrepetível? Uma coniguração que
está lá fora e cá dentro. Que constitui a própria
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personalidade e dela não mais se aparta. Brin- de ser um observador privilegiado, de ver cres-
car é, acima de tudo, brincar com o próprio cerem crianças, acompanhar diferentes etapas
sentido do real. Onde está o real? Na aparência e processos vividos por sujeitos e instituições.
do cotidiano ou na vitalidade da brincadeira? A formação na pesquisa qualitativa me
ensinou a importância do meu corpo na pes-
Construir uma escrita no corpo: Extratos de quisa. A observação, a participação, a presença.
memória O pesquisador é ele mesmo, o principal instru-
mento de apreensão do campo. O registro no
Como muitos professores, eu comecei caderno de campo, no diário de campo, as dife-
a trabalhar com crianças pequenas antes de rentes formas de notação são expressão de uma
completar 18 anos. A juventude e um sentido inscrição que se dá primeiro no corpo. A conti-
de trabalho ainda em construção e não burocra- nuidade da experiência de pesquisa consolidou
tizado me ajudaram muito a me aproximar do a certeza de que no meu corpo estavam inscri-
universo das crianças. Em muitos sentidos, eu tos muitos mais dados de campo do que eu ha-
ainda me sentia infante. Estava em formação. E, via registrado. O que foi vivenciado pela menina
embora considere que esse processo não esteja professora que fui podia se oferecer agora às mi-
concluído, que ele não se conclui, a verdade é nhas relexões desta professora adulta. Podiam
que passados quase quarenta anos, posso com- ser olhadas em uma outra perspectiva. A matu-
preender hoje bem mais do que compreendia ridade me autorizou a lançar mão dessas ins-
em meados da década de 1970, quando come- crições e trazê-las à tona na minha escrita e no
cei a trabalhar com crianças pequenas. meu trabalho de formação inicial e continuada
Enquanto trabalhava com os pequenos, de professores. Para identiicá-las tenho usado o
aprendia muito com eles e, sobre eles, apren- termo “extratos de memória”.
dia com mestres diretos e autores. De modo Todos os professores têm memórias de
que quando cheguei à universidade, ou seja, sua trajetória. São crianças emblemáticas em
quando a minha formação ganhou contornos questões não respondidas que são vívidas na
institucionais, eu já trazia um monte de inquie- lembrança, situações que podem ser narradas
tações tatuadas em mim. Ainda que eu não com detalhes minuciosos... Ninguém esquece
pudesse compreender completamente o que o que o inquieta. O pensamento não comporta
vivia, ou tinha vivido, guardei, como tantas e não respeita as linearidades do tempo cro-
professoras, memórias de situações que atra- nológico. Ademais, para além da vida de pro-
vessei, de cenas observadas, da oportunidade fessor estão também as inscrições da infância.
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As memórias da escola, o aluno que fomos um Frente às batatas da pequena Sarah, a louça in-
dia. A criança que fomos, e que continuamos glesa de outra Sara – desta vez minha avó – se
sendo. Um estudante de medicina ou enge- presta de brinquedo:
nharia pode chegar à universidade sabendo
muito pouco sobre o contexto proissional que Depois da escola pela manhã, as tardes eu
as passava em casa, na companhia de minha
viverá depois. Na educação é diferente. Todo avó Sara. Quando ela não estava envolvida
professor começou uma formação docente em suas tarefas, me contava histórias, casos
nas suas primeiras experiências na escola. A do seu tempo de menina, cantava canções
em iídiche, seu dialeto: canções folclóricas,
formação proissional do professor está o tem- de criança, de ninar. Brincávamos de boneca,
po todo negociando – consciente ou incons- desenhávamos e, sobretudo, tomávamos chá.
Havia na casa um aparelho de chá de louça in-
cientemente – com essas memórias. Acessar
glesa na cor salmão com frisos dourados que
esse material – pessoal e coletivo – e colocá-lo só saía do armário em dias de festa ou para
à disposição da formação inicial e continuada receber um convidado importante. Nos dias
em que “tomávamos chá” era essa louça de
de professores tem sido uma prática constante. luxo que vinha para a mesa arrumada com a
Qual o valor e o sentido dessas inscrições toalha branca na sala. As torradas que no dia a
para a pesquisa? Como lançar mão de algo tão dia icavam na lata eram colocadas em cestos;
geleia, manteiga, queijo, tudo saía de seu uso
impreciso como a memória? Não estariam esses habitual e se apresentava em bandejas, com-
dados contaminados pelo tempo, pela imagi- poteiras, pratos de porcelana. E assim, com
nação, pela interpretação? Em resposta a essas este requinte ingido, tomávamos chá. Na ver-
dade, brincávamos de “tomar chá” (Extrato de
questões tenho me lançado outra pergunta: E Memória).
quando toda produção de conhecimento não
foi interpretação? Nunca. Mesmo quando olho Olhar novamente, produção de lem-
agora esse dado novo que me traz essa criança brança e produção de sentido. O passado nun-
que salta à minha frente também estou inter- ca é ixo. Ele se move a cada vez que o olhamos.
pretando. Também o meu olhar se move impul- Ele muda conosco.
sionado por inscrições anteriores. Todo pesqui- Essa narrativa me lembra um texto de
sador tem suas próprias demandas. É preciso
Vigotski (2009), onde ele se pergunta por que
bom senso, mas nada melhor do que a vida para
duas irmãs brincam de ser irmãs? A pergunta se-
viviicar a produção de pensamento.
ria: De que brincam duas irmãs quando brincam
Nesse movimento, memórias também
de ser irmãs? Talvez pudéssemos compreen-
me ajudam a colocar questões em diálogo.
der se entendermos que todas as brincadeiras
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Tânia de Vasconcellos
guardam embutida alguma forma, mesmo que clichê. Mas a instauração da brincadeira exige a
rudimentar, de regra. Ou algo a que podemos integralidade da presença. Na brincadeira, mais
chamar de estatuto da brincadeira. Brincar de que tudo, é preciso estar por inteiro.
ser irmãs é um modo de explicitar aquilo que
se entende por “ser irmãs”. O fato de as meninas Brincar e realidade: infância e ilosoia
serem irmãs não implica, necessariamente, uma
forma particular de conduta. Mas ao brincarem Em 2008, Jorge Larrosa nos brindou com
de irmãs, elas evocam aquilo que acreditam que um texto intrigante em um seminário sobre In-
deva ser o universo das irmãs. Problematizam a fância e Filosoia. Nele, o autor interroga o pró-
questão. Colocam-na em discussão. Pensam so- prio estatuto do real. Ele nos fala de desejo de
bre o papel social das irmãs. realidade e, a rigor, só podemos desejar aquilo
de que carecemos. Sentimos falta do que não
É o mesmo caso do “brincar de tomar chá”.
temos. Na opinião de Larrosa, então, estamos
A brincadeira de tomar chá nada tem a ver com
em busca de um real que se dissipou. Nas pa-
o lanche da tarde – usual, ordinário, comum. A
lavras do autor, “o real está difícil”. Chamo o i-
brincadeira remete a pensar em si a partir de
lósofo para a conversa porque quero dar peso
uma outra possibilidade de si mesmo. A exercer-
a um conceito que para mim é muito caro: a
se nessa outra condição. Não é um “faz de conta
ideia de experiência. Walter Benjamin (2012)
que” está mais próximo de um “e se”.
tomou a si a discussão da experiência e da sua
Nos dois casos – as batatas e a louça in-
expropriação. Larrosa retoma o tema.
glesa –, os brinquedos surgem por dentro das
brincadeiras. Ou seja, eles se colocam na provo- A experiência não é outra coisa senão a nossa
cação de um uso brincante do objeto cotidiano. relação com o mundo, com os outros e com
nós mesmos. Uma relação em algo que nos
Porque não são, a rigor, brinquedos, não ativam passa, nos acontece. Então o desejo de reali-
padrões esperados de conduta lúdica. Ao con- dade está ligado à experiência, no sentido de
que o real só acontece se experimentado: o
trário, desaiam. A brincadeira só pode se ins- real é o que nos passa, nos acontece na expe-
taurar porque uma atitude brincante a impõe. A riência. Portanto, a experiência é esse modo
atitude frente à atividade, e não tão somente a de relação com o mundo, com os outros e
com nós mesmos em que o que chamamos
atividade, deine a condição brincante. Isso por- de realidade adquire a validade, a força, a pre-
que é possível estar envolvido burocraticamen- sença, a intensidade e o brilho aos quais me
referi. O desejo de realidade não é muito di-
te em uma atividade repetindo uma conduta ferente do desejo de experiência. Mas de uma
experiência que não esteja ditada pelas re-
292
A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA
gras do saber objetivante ou crítico, ou pelas explica, não se captura em um discurso, não se
regras da intencionalidade técnica ou prática
sabe... Esse caminho não será dado pela razão.
(Larrosa, 2008, p. 186-187).
293
Tânia de Vasconcellos
tar tomou o lugar dos homens e em seu nome Fazer da poesia morada. Desaiar o coro
se exerce cidadão. Estamos mudos, como dis- dos contentes: Carregar bandeira, ser gauche
se Benjamin sobre os homens retornados da na vida, um esquerdo que inventa desobjetos
guerra: cada vez mais pobres em experiências com seu cacoete de poeta e seu alicate cre-
comunicáveis. As ações da experiência conti- moso. Saber que, a despeito de vaticínios, va-
nuam em baixa. Valem cada vez menos. mos até o im!
Na perspectiva da lógica racionalista que No dia 6 de setembro deste ano, em
objetiva, classiica, separa, distingue, discrimina, visita à exposição Picasso e a modernidade es-
é compreensível que em meio à crise de refu- panhola, no Centro Cultural Banco do Brasil,
giados que toma a Europa alguém pergunte a no Rio de Janeiro, me deparei com os esboços
um menino de quatro anos se havia estrangei- de Picasso para o que seria depois a Guernica.
ros em seu Jardim de Infância. E é luminoso sa- Espantou-me a atualidade das imagens irma-
ber que o pequeno Niklas respondeu: “Não. Lá das nos anos 1930. Em particular as gravuras
só tem crianças” (WDR Lokalzeit aus Aachen, sobre o tema do Minotauro – símbolo de vio-
2015). Deixando claro que, em contrapartida a lência e poder. Em quatro delas o pintor ofe-
uma lógica excludente, está a amorosidade da rece uma redenção ao personagem. Na mais
lógica infantil. tocante ele apresenta o Minotauro cego guia-
do por uma menina na noite (Picasso, 2015). Eu
À guisa de conclusão estava me aproximando e afastando das telas
para tentar ver em perspectiva quando uma
Disse Larrosa em citação anterior que menina de uns oito anos, vendo aquele vai e
“talvez ainda tenhamos de explorar as formas vem, interpretou-o como desorientação. Ela
de relação com o mundo, com os outros e com me interpelou, perguntando: “Quer que eu te
nós mesmos, que façam justiça ao aconteci- mostre a saída?”. Olhei seus olhos profundos
mento, à presença, à proximidade, à airmação, e bebi na sua presença e sorriso. “Oh, sim!”,
à surpresa”. Não é à toa que nos voltamos aos pensei mentalmente. Se houver saída, só uma
pequenos. Há muito que se aprender com eles. criança poderá apontá-la. Sorri e agradeci
Na ação brincante da pequena Sarah en- pela oportunidade do encontro.
xergo presença, força transformadora, lumino-
sa, uma airmação de vida que me faz pensar
que, longe de imitar o real, a brincadeira dá
realidade ao real, o viviica. A brincadeira como
caminho – de resistência, de superação, de air-
mação de novas possibilidades.
294
A MENINA E AS BATATAS: INFÂNCIA, FILOSOFIA, BRINQUEDO E BRINCADEIRA
295
17
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO
DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS
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Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler
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CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS
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Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler
Atividade autônoma e movimento livre Então, para que a criança tenha con-
iança em si mesma, aqueles que a acompa-
Entende-se por atividade autônoma nham precisam também coniar em suas ca-
toda e qualquer atividade livre e espontânea pacidades. Coniar não é desejar que a criança
“escolhida e realizada pela criança – atividade chegue em algum lugar determinado pelo
originada de seu próprio desejo” (Tardos; Szan-
adulto ou que ela faça algo já previsto anteci-
to-Feder, 2011, p.52).
padamente. Mas, estar disponível para que os
Na experiência de Lóczy, Pikler nos dire-
ciona ao conceito de movimento livre. Através meninos e meninas possam ir descobrindo as
do movimento livre, a criança atinge o completo possibilidades do seu corpo e os mecanismos
conhecimento do seu corpo e de suas capacida- para alcançar seus desejos. Neste sentido, a
des, conhece seus limites e assim consegue con- construção da autonomia da criança indepen-
iar em si mesma. Nesta perspectiva, as crianças de da estimulação do adulto.
movimentam-se livremente, brincam com tran- Sabemos que existe uma preocupação
quilidade, aproveitando os espaços e os mate- dos pais e educadores sobre a necessidade de
riais, descobrindo a si mesmas e aos demais.
“ajudar” ou “exercitar” as crianças para que se
Segundo Tardos e Szanto-Feder (2011, p.48),
desenvolvam integralmente. Porém, podemos
Para a criança, a liberdade de movimentos sig- airmar a partir dos estudos da pediatra hún-
niica a possibilidade, nas condições materiais gara que não existe essa necessidade. Emmi
adequadas, de descobrir, de experimentar, de
aperfeiçoar e de viver, a cada fase de seu de- Pikler acreditava que o espaço, o material e o
senvolvimento, suas posturas e movimentos. olhar da cuidadora, era o necessário para “esti-
mular” o desenvolvimento da criança, pois não
O adulto cria as condições externas ne-
se trata apenas desenvolvimento motor, mas
cessárias para a criança realizar suas aventuras
sim, em pensar a criança na sua inteireza.
e desventuras da vida. Dá presença, respeitan-
do a criança com afetividade e tranquilidade,
As atividades de atenção pessoal
permanecendo no campo de visão dela para
que ela se sinta segura, garantindo o apoio
Os pressupostos postulados por Emmi
para as suas experiências e conquistas, além
Pikler airmam que a criança é um ser único,
de encorajá-la ao movimento livre, de forma
singular e que por isso precisa de cuidados e
autônoma, sem intervenção direta.
300
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS
atenção. É preciso encará-la como uma pessoa de a ideia de cooperar com a criança” (Hevesi,
com necessidades, expectativas, sentimentos. 2011, p. 86).
Um dos temas desenvolvidos pela autora é a Tomando como exemplo o momen-
respeito das atividades de atenção pessoal (Da- to da alimentação. Ao realizar este ato com
vid, Appel, 2010; Fochi, 2015a; Fochi 2015b). criança em um espaço de vida coletiva, o
Estas atividades são aquelas relaciona- adulto precisa estar consciente de que suas
das ao comer, ao descansar, à higiene. São, ações devem ir no sentido de contribuir para
como próprio nome diz, atividades pessoais que a criança tome consciência sobre o que
dos bebês. Portanto, momento importante e está acontecendo, estabeleçam relações com
de grande aprendizagem para estes que re- a materialidade envolvida, de modo que ela
cém estão chegando na cena humana. possa ir gradativamente conseguindo execu-
A partir disto, Pikler destaca sobre o cui- tar por si própria. Para que isso ocorra, é ne-
dado, desde a forma de segurar o bebê até a cessário observar três elementos importan-
maneira com que o alimento é dado a criança, tes: (i) enquanto for necessário que o adulto
chamando atenção para a necessidade dos auxilie a criança na alimentação, deverá anun-
gestos amorosos e carinhosos, da calma e da ciar as suas ações de modo a antecipar para
paciência com que se cuida e educa o bebê. a criança o que está por acontecer. Também
Tardos (1992, p. 19) nos convoca para o valor (ii) é importante que um adulto torne-se re-
educativo da forma como a educadora toca o ferência para um pequeno grupo de criança,
bebê, pois “a mão do adulto é para a criança de forma a criar códigos reconhecíveis pelos
uma fonte importante de experiência”. meninos e meninas dos momentos que estão
Além de um toque cuidadoso, outro por vir e, (iii) respeitar o ritmo de cada criança
elemento a ser considerado é a participação sem antecipar etapas.
das crianças no cuidado do seu corpo. O grau A partir destes elementos, constrói-se
de participação é diretamente inluenciado então uma verdadeira relação pessoal, tor-
pelo tipo de relacionamento entre educador e nando o cuidar um momento único, íntimo e
o bebê, ou seja, os educadores devem “tratar pleno de comunicação.
a criança não como um objeto, mas como um
ser humano vivo e aceitam como possibilida-
301
Paulo Sergio Fochi, Carina Cavalheiro e Claudia F. Bergamo Drechsler
O brincar dos bebês na creche noções básicas acerca de si mesmos, dos outros
e do mundo, aprendendo a dominar e conhecer
“O primeiro brinquedo do bebê é o cor- as partes do nosso corpo e suas funções, a nos
po do adulto que cuida dele” (Goldschmied; Ja- orientarmos no espaço e no tempo, a manipu-
ckson, 2006, p.113), seja ele seu pai, sua mãe ou larmos, construirmos e estabelecermos relações
o cuidador. Brooker, Woodhead (2013, p.17) nos com os outros.
explica que “os bebês aprendem a conhecer a si No entanto, os adultos precisam permitir
mesmos e o mundo em que vivem mediante as que os bebês e crianças bem pequenas possam
interações lúdicas com seus primeiros cuidado- ter momentos em que brinquem sozinhos, onde
res”. Ao mamar, por exemplo, o bebê através da possam aprender por sua própria iniciativa. Ao
sucção no seio de sua mãe experimenta o sugar adulto, compete criar as condições necessárias
mais forte, a pausa. Busca pegar adereços como para que a brincadeira se concretize e tenha uma
brincos, colares, óculos, entrelaça seus dedos nos observação atenta para com o bebê. As crianças
cabelos. Todas essas interações e experimenta- que não brincam sozinhas, muitas vezes, costu-
ções representam maneiras iniciais de brincar. mam apresentar essa diiculdade em decorrên-
Também a mão compõe uma das primei- cia da conduta intervencionista do adulto, onde
ras descobertas da criança. Ela dedica grande as tornam passivas e sem iniciativas.
parte do seu tempo a observá-la, acompanhá-la Cabe aqui, salientar que a atividade autô-
com sua cabeça e seus olhos. Chokler (2014, p. noma permite à criança seguir seu próprio ritmo,
3) descreve que “o descobrimento, primeiro, e a sua curiosidade, explorar e experimentar a auto-
utilização depois, de suas próprias mãos como nomia. Fabrés (2011, p.56) lembra que um dos
objeto de exploração e de brincar, constitui um principais objetivos da educação dos pequenos
rito fundamental no desenvolvimento infantil”. é “favorecer, facilitar a progressiva aquisição de
O brincar é uma necessidade humana. Ele sua autonomia, para que chegue a ser autônomo
ocupa o lugar central do aprendizado das crian- como pessoa, que possa ser, fazer e decidir por
ças desde o nascimento, isto é, quando estão si mesmo”. Considerando esta perspectiva que
brincando, as crianças estão construindo as “ba- reforça o dever da educação em tornar os peque-
ses” de toda a sua futura aprendizagem. O brin- nos seres autônomos, “é necessário que comece-
car é a maneira como as crianças se comunicam, mos por respeitar a sua atividade autônoma, sua
indispensável e fundamental para a nossa forma- liberdade de movimentos, seu processo evoluti-
ção em todas as etapas de nossa vida. Desde pe- vo, partindo claramente da ideia de uma criança
quenos, através do brincar, vamos incorporando competente desde o nascimento” (Fabrés, 2011,
p. 56).
302
CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS
A autora nos mostra que temos de ter um pontaneamente. Será esse chão rígido que vai
profundo respeito pelo bebê, sendo ele um su- auxiliá-la a encontrar a posição mais confortável
jeito de ação, um sujeito capaz, para quem de- e segura, sem “camular” seus movimentos, onde
vemos proporcionar espaços e condições a im os objetos agem de forma real, rolam quando
de que ele possa contemplar a sua atividade são lançados, fazem barulho quando jogados
autônoma e o seu brincar livre para ir progres- contra o solo, o que não seria possível em um
sivamente adquirindo autonomia, favorecendo solo revestido com espuma ou qualquer outra
suas aquisições e sua aprendizagem a partir de superfície fofa (Kálló, 2013).
seus próprios erros e acertos. Esse brincar vai ao Com este espaço estruturado para o brin-
encontro da abordagem Pikler, baseada no res- car livre, somando a conscientização do adulto
peito dos movimentos da criança e uma atitude de sua postura em relação à criança, devemos
não intervencionista do adulto, permitindo seu proporcionar e oferecer objetos para que o brin-
desenvolvimento autônomo. car aconteça. Objetos que permitam a realização
Além da conduta do adulto, é importante das experimentações por parte da criança, que
garantir um espaço adequado para que a crian- façam com que ela, através da sua curiosidade,
ça possa gradualmente construir sua liberdade vá buscar pelo que a cerca.
de movimentos e desenvolver o brincar livre, As autoras Éva Kálló e Györgyi Balog, com-
sendo necessário e essencial que haja uma “área panheiras de trabalho de Emmi Pikler em Lóczy,
do brincar”. Esta área deve ser um local protegi- trazem em seu livro intitulado como “Los Oríge-
do para as crianças que apenas icam de barriga nes del Juego Libre” (2013) um estudo profundo
para cima, outro local para as crianças que já se do brincar livre, desde o descobrimento inicial
deslocam ou engatinham e outra área para as das mãos do bebê, a sua manipulação, a experi-
que já caminham (Kálló, 2013). É imprescindível mentação com objetos e a construção e combi-
que hajam esses espaços separados para garantir nação com os mesmos.
que todas as crianças tenham o seu momento do A partir das relexões de Kálló e Balog
brincar livre sem interferir e nem desconcentrar o (2013), organizamos o quadro a seguir para iden-
brincar do outro, para centrarem-se inteiramente tiicar algumas características de manipulação
na exploração de seus brinquedos/objetos. dos objetos e, por isso, determinadas opções de
O local ideal para que isso ocorra deve materiais. Em hipótese alguma tal resumo tenha
ter um solo rígido, sua consistência é vital para a intenção de apresentar estágios ou períodos
o desenvolvimento da mobilidade da criança, determinantes e universais, mas consideramos
onde ela possa fazer suas próprias escolhas e que são noções importantes para reletir os be-
descobertas, movimentando-se e brincando es- bês e suas experiências primeiras.
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CONTRIBUIÇÕES DE EMMI PIKLER PARA A EDUCAÇÃO DE BEBÊS NOS CONTEXTOS BRASILEIROS
rorientacoes-para-cuidados-com-bebes-par-
te-1> Acesso em 8 nov. 2012.
TARDOS, Anna. La mano de la educadora. In
Revista In-fan-cia. Barcelona: Rosa Sensat,
1992.
TARDOS, Anna. SZANTO-FEDER, Agnes. O que
é autonomia na primeira infância. In. FALK, Ju-
dit (Org.). Educar os três primeiros anos: a
experiência de Lóczy. Araraquara: Junqueira &
Marin, 2011.
307
18
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO
ACERCA DO TEMPO
Sueli Salva
309
Sueli Salva
outra. O tempo da instituição escolar é esse denominaram tempo externo, tempo social.
tempo que está sempre no limiar entre contro- Melucci (2004) também fala de outro tempo,
le e aprendizagem. Sob esses dois argumentos aquele interno, dos afetos, das emoções e vive
(um explicito - aprender e outro implícito-con- no corpo, que dá oportunidade ao indivíduo
trolar) constrói-se a ideia de que na instituição de fugir ao controle do tempo, embora de for-
escolar é tempo de aprender, tempo de inte- ma muito sutil e efêmera. Elias (1984) fala de
ração, tempo do brincar, porém, implicitamen- tempo da experiência que também está rela-
te, também é tempo de controlar o corpo e de cionado ao indivíduo, aquilo que o sujeito vive,
submetê-lo ao tempo, ou seja, também é tem- que constrói ao longo da vida e que também
po de aprender o tempo. foi construído historicamente, passado de ge-
Todos, de algum modo, somos submeti- ração a geração. O tempo da experiência tem
dos ao tempo. A natureza que nos permite nas- por um lado um caráter social, pois se relaciona
cer anuncia nesse mesmo instante que temos ao contexto social no qual o sujeito está em in-
um tempo para viver. Um tempo que nos leva do teração com o outro e, por outro lado, está re-
nascimento à morte. Esse é o tempo da natureza. lacionado ao sujeito e a sua subjetividade. De
No intervalo do nascimento à morte, desse tem- qualquer modo o tempo da experiência é um
po que chamamos tempo da natureza ou pode- tempo vivido e construído socialmente e tem a
mos denominar ciclo da vida, somos submetidos função de coordenação e integração.
a uma variabilidade de tempos, que pouco tem Deste modo, nos interrogamos acerca
relação com a natureza, embora tenha sido cons- do tempo da infância. Como ele é vivido pelas
truído sobre as bases da natureza. Relacionado à crianças nas instituições de educação infantil?
natureza, temos o marco do nascimento à morte, Quais as estratégias utilizadas para ensinar o
porém, esses eventos estão submetidos a outros tempo às crianças e ao mesmo tempo possi-
tantos tempos, que a natureza, a qual nos rege, bilitar que ela tenha espaço para viver o tem-
de forma soberana e não mais absoluta, oferece po das emoções. As instituições possibilitam
margens a outros tempos: O tempo da história, que as crianças possam aprender o tempo de
tempo do indivíduo, tempo da razão, tempo da uma forma humanizadora? Quais as possibili-
emoção, tempo da cultura, tempo da experiên- dades que a criança encontra nas instituições
cia, tempo da máquina - o relógio. de educação infantil para viver o tempo do
O tempo da máquina é aquele que passa corpo, tempo da emoção, dos sentimentos
e pode ser medido, cronometrado e que não e, de forma harmoniosa e integrada também
pode retornar que Melucci (2004) e Elias (1984) viver o tempo social, tempo relógio? Como a
310
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO
instituição de educação infantil possibilita que políticas direcionadas à infância. Esse investi-
a criança organize a vida de acordo com o tem- mento inclui tanto a questões relativas a infraes-
po, possibilitando harmonia entre corporeida- trutura quanto da formação de professores,
de, subjetividade e tempo? através de cursos oferecidos em parceria com
Partindo destas ideias iniciais e destes estados, municípios e IFES. Através do Plano de
questionamentos, pretende-se aprofundar al- Desenvolvimento da Educação (PDE), o Minis-
guns aspectos relativos ao tempo da infância tério da Educação, o Plano de Metas e Compro-
vivido pelas crianças nas instituições de edu- missos Todos Pela Educação possibilita aos es-
cação infantil as quais o grupo acompanhou tados e municípios a criação do Plano de Ações
durante o desenvolvimento do projeto de “As- Articuladas (PAR1), Plano Nacional de Formação
sessoramento e Acompanhamento Pedagógi- dos Professores da educação Básica (PARFOR2),
co de Ensino na Implementação do Proinfância
em Municípios da Região Central e Noroeste 1 O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), apresen-
do estado do Rio Grande do Sul”, mais especi- tado pelo Ministério da Educação em abril de 2007, colocou à
disposição dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, ins-
icamente reletir sobre os modos de apreen- trumentos eicazes de avaliação e implementação de políticas
der, aprender e viver o tempo no interior das de melhoria da qualidade da educação, sobretudo da educação
básica pública. O Plano de Metas Compromisso Todos pela Edu-
instituições. Busca-se pensar quais as possibili- cação, instituído pelo Decreto nº 6.094, de 24 de abril de 2007,
dades que a criança encontra na instituição de inaugurou um novo regime de colaboração, conciliando a atua-
ção dos entes federados sem lhes ferir a autonomia, envolvendo
educação infantil para viver o tempo do cor-
primordialmente a decisão política, a ação técnica e atendimen-
po, tempo da emoção, dos sentimentos e, de to da demanda educacional, visando à melhoria dos indicadores
forma harmoniosa e integrada, também viver educacionais. A partir da adesão ao Plano de Metas, os estados,
os municípios e o Distrito Federal passaram à elaboração de seus
o tempo social, tempo relógio e ao longo do respectivos Planos de Ações Articuladas (PAR). A partir de 2011,
tempo, organizar a vida de acordo com o tem- os entes federados poderão fazer um novo diagnóstico da situa-
ção educacional local e elaborar o planejamento para uma nova
po, possibilitando harmonia entre corporeida- etapa (2011 a 2014), com base no Ideb dos últimos anos (2005,
de, subjetividade e tempo. 2007 e 2009).
(fonte: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_con-
tent&id=159&Itemid=235).
O Tempo nas Instituições de Educação 2 O Parfor, na modalidade presencial é um Programa emer-
Infantil gencial instituído para atender o disposto no artigo 11, inciso III
do Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009 e implantado em
regime de colaboração entre a Capes, os estados, municípios o
A partir de 2005, o Governo Federal, atra- Distrito Federal e as Instituições de Educação Superior – IES. Tem
como objetivo Induzir e fomentar a oferta de educação superior,
vés das políticas desenvolvidas pelo Ministério gratuita e de qualidade, para professores em exercício na rede
da Educação, tem investido na construção de pública de educação básica, para que estes proissionais possam
obter a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
311
Sueli Salva
através da Plataforma Freire, oferecendo aos até de forma ingênua em alguns momentos,
professores da educação básica cursos de EAD, mas que se constituem em formas de agres-
cursos presenciais, entre eles a Especialização e são à criança. Nestes momentos, percebíamos
o Aperfeiçoamento em Docência para a Educa- que a formação é essencial e que deve ser
ção Infantil, programa Proinfância3, etc.. prioridade na educação infantil, uma vez que
Nosso grupo faz parte dessa formação a escola tradicional tem inluenciado de for-
através do projeto “Assessoramento e Acom- ma muito contundente a rotina da instituição
panhamento Pedagógico de Ensino na Imple- de educação infantil. Desse modo, nos propo-
mentação do Proinfância4” em Municípios da mos aqui reletir acerca da categoria tempo,
Região Central, Noroeste e Norte do estado buscando fazer uma relação entre o concei-
do Rio Grande do Sul”. Durante as “formações to e as práticas pedagógicas realizadas com
em contexto”, percebemos que a categoria as crianças pequenas. Compactuamos com
tempo necessita ser aprofundada, visto que, a concepção de Barbosa e Horn (2001) que a
de modo geral, as crianças são submetidas ao organização do tempo na Educação Infantil
tempo social e ao disciplinamento do corpo deve ser feito com base nas necessidades das
através de rotinas rigidas. Tais conclusões tem crianças o que exige que os professores este-
origem nas observações realizadas durante as jam atentos a elas.
visitas técnicas e nas formações em contexto, Partimos de alguns exemplos concretos
bem como provenientes de relatos e vídeos os quais observamos nas escolas que se consti-
que algumas escolas enviaram a coordenação. tuem em momentos que as crianças pequenas
São ações realizadas com as crianças na rotina são submetidas ao tempo da escolarização e
da escola, muitas vezes, de forma inconsciente, do disciplinamento dos corpos. Tempo em que
os bebês devem icar no bebê-conforto ape-
ção Nacional – LDB e contribuam para a melhoria da qualidade nas olhando o que está acontecendo ao seu
da educação básica no País. (fonte: http://www.capes.gov.br/
educacao-basica/parfor). redor sem poder interagir; tempo que as crian-
3 O curso de Especialização em Docência na Educação Infan- ças icam esperando para comer, quer seja no
til é um curso de pós-graduação (lato sensu), ofertado pelas IFES,
de forma presencial aos professores da educação infantil, com refeitório, quer seja na sala; tempo de fazer a
experiência comprovada em docência na educação infantil. A atividade considerada “a mais nobre” da escola,
UFSM está ofertando a segunda edição.
4 O projeto é coordenado pelas professoras Viviane Ache
que em geral é uma atividade de reprodução,
Cancian e Débora Teixeira de Mello respectivamente coordena- própria do processo de escolarização dos anos
dora e vice-coordenadora.
312
EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO
iniciais; tempo que a criança ica realizando “a através dos seus símbolos, marca o tempo que
atividade” na sala, enquanto as outras crianças passou, o tempo que falta, a hora de chegar, a
estão brincando para recuperar a atividade fei- hora de sair. Somos também regidos pelo ca-
ta pelas outras crianças no dia anterior e que lendário criado a partir das estações do ano, ou
esta, por alguma razão, não consegui realizar seja, inspirado em uma natureza cíclica. Sem
no tempo “certo”; e o mais marcante e talvez prescindir dessa necessidade e do que social-
mais traumático para as crianças, ‘o tempo do mente implica viver sob a égide do tempo, nos
sono’, imposto a todas as crianças na mesma perguntamos: Como pensar e compreender o
hora do dia. São diferentes situações nas quais tempo da criança, o tempo que transcorre na
o tempo relógio e o tempo do adulto prevalece sua corporeidade? Haveria algum modo de
sobre o tempo da criança. pensar e construir esse tempo inspirado na
Para compreender o tempo não basta subjetividade infantil?
ter ao nosso alcance o relógio e olhar para os Esse tempo, submetido a uma natureza
seus ponteiros, especialmente, quando esse que faz passar o tempo, a uma máquina que
tempo está relacionado a criança. No nosso co- indica o passar do tempo, mas que ao mesmo
tidiano, o tempo nos cerca, e essa certeza nos tempo reserva um potencial individual indica
impulsiona a nomear e organizar eventos do a multiplicidade de tempos. Esse tempo, que
cotidiano. Da mesma forma nas instituições de é também possibilidade para fugir ao controle
educação infantil. Essa organização é necessá- do tempo, que é denominado tempo interno,
ria e de certa forma nos dá segurança para nos que não pode ser medido, porque está relacio-
movermos entre um evento e outro, entre uma nado a subjetividade, as emoções, aos senti-
atividade e outra. mentos e é próprio de cada individuo também
O problema se constitui quando em indica multiplicidade de tempos. Como então
nome da organização, o tempo do adulto, so- organizar o tempo, respeitando a multiplicida-
cial e contínuo, prevalece sobre o tempo da de e o tempo subjetivo? Como então pensar
criança. Costumamos dizer: temos pouco tem- esse tempo de forma coletiva, sem agredir a
po, nos falta tempo, ainda tem tempo, termi- criança, mas ao mesmo tempo manter uma or-
nou o tempo e para não deixar o tempo esvair- ganização? Será possível conciliar tempo social
-se, organizamos rotinas. Fazemos a rotina com e tempo interno? Respeitamos o tempo que a
base no cadenciar do ponteiro do relógio, que criança precisa para amarrar o tênis? Para ali-
313
Sueli Salva
mentar-se? Respeitamos o tempo das necessi- acontecem tanto as atividades repetitivas, ro-
dades isiológicas das crianças ou impomos o tineiras, triviais, como também é o locus onde
tempo dos adultos? há a possibilidade de encontrar o inesperado,
Durante a história da humanidade mui- onde há margem para a inovação”.
tos pensadores se questionaram sobre o tem- Candido Portinari pintou o tempo da
po e sobre a possibilidade de ser medido. A infância, expressou com os tons da terra ver-
existência do relógio torna concreta a ação de melha o deleite das crianças brincando, sem
medir o tempo. Norbert Elias (1984, p.8) airma pressa e sem controle. A luz do sol apenas
que “os relógios exercem na sociedade a mes- servia como reguladora do tempo de brincar.
ma função que os fenômenos naturais – a de Nenhum relógio, nenhum adulto a espreita.
meios de orientação para homens inseridos Nesse tempo, pode-se dizer que não há rotina,
numa sucessão de processos sociais e físicos”. mas há uma forma de organização do cotidia-
Remetendo essa ideia a instituição de Edu- no que possibilita o “inesperado, a inovação”. O
cação Infantil, entendemos o relógio como o corpo e sua sincronia em interação com outros
meio de orientação para organização da rotina, corpos e outras crianças, de algum modo, re-
estabelecendo o tempo de entrada, de alimen- presenta uma infância menos controlada e me-
tação, higienização, tempo de dormir, tempo nos submetida ao tempo do relógio.
da volta para a casa. Sendo o tempo algo que
pode ser aprendido socialmente e que envolve
tanto a subjetividade (tempo interno) como os
signiicados sociais (tempo social) não deve-
ríamos também respeitar o tempo da criança
para organizar a rotina instituição de educação
infantil? Isso não signiica opor-se à ideia de
rotina. Barbosa (2000, p. 94), em suas relexões
sobre rotina, argumenta que as mesmas “po-
dem ser vistas como produtos culturais cria-
dos, produzidos e reproduzidos no dia-a-dia,
tendo como objetivo a organização da cotidia-
nidade.” Em contraposição a ela, pode-se pen- Portinari. Futebol. Óleo sobre tela, 1935.
sar em formas de ‘organizar o cotidiano’, sendo
esse conceito mais lexível, “pois é nele que
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315
Sueli Salva
vida das crianças nas instituições de educação É o passar dos anos, o movimento do
infantil. Em nome dessa pretensa harmoniza- sol e da lua, o processo de envelhecimento
ção, constrói-se as rotinas as quais as crianças que nos coloca diante da irreversibilidade do
são submetidas constantemente, porém nem tempo. Na tentativa do homem de organizar
sempre essas rotinas respeitam a subjetivida- tais eventos, de qualquer modo, irreversíveis,
de da crianças, ou podemos dizer, nem sempre ele busca organizar o cotidiano a partir do
respeitam o tempo interno das crianças. tempo relógio, assim, tem a ilusão de controlar
O tempo que passou a ser medido, cons- o tempo. Ato consciente, porém, ineiciente.
truído a partir dos movimentos da natureza, O mesmo não ocorre em relação ao processo
precisou ser construído a partir de certa regu- de aprendizagem do tempo (não tempo como
laridade, esse tempo forma uma continuidade objeto – como experiência cotidiana e seus
sucessiva, recorrente, cadenciada, igual, que eventos), pois situar-se em um cotidiano orga-
se constitui como pontos de referência. Esses
nizado exige uma aprendizagem desse proces-
pontos de referência são expressos através da
so, por isso a concepção de que o tempo tam-
linguagem (hora, minutos, segundos) e como
bém requer aprendizagem e compreensão.
tal se tornam símbolos, da mesma forma que
De acordo com Elias (1984), essa sem-
outras tantas expressões relativas ao tempo,
pre foi uma necessidade dos seres humanos,
se constituem como formas simbólicas de ex-
porém, um sujeito, por si só, não tem como
pressões sobre o tempo, como: calendário,
compreender o tempo, ele “vai sendo assimi-
estações do ano, ano, mês, que representam
unidades de tempo. lado pela criança na medida em que cresce
numa sociedade”. Para o autor, o “conceito de
O movimento aparente do Sol, de um ponto a tempo não é objeto de uma aprendizagem, em
outro do horizonte, assim como o movimento sua simples qualidade de instrumento”. É uma
dos ponteiros de um relógio de um ponto do
mostrador a outro, são exemplos de sequên- aprendizagem que ocorre durante o processo
cias recorrentes que podem servir como uni- de crescimento, a partir das experiências vivi-
dades de referência e meios de comparação das pelos sujeitos nos contextos que vive.
para segmentos de processos pertencentes a
uma outra serie e que não, podem ser direta- É durante esse processo que a criança:
mente relacionados, em razão de seu caráter
sucessivo. Em sua qualidade de símbolos re- Vai-se familiarizando com o “tempo” como
guladores e cognitivos, essas unidades de re- símbolo de uma instituição social cujo caráter
ferência adquirem a signiicado de unidades coercitivo ela experimenta desde cedo. Se no
de tempo (Elias, 1984, p. 13). decorrer de seus primeiros dez anos de vida,
ela não aprender a desenvolver um sistema
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Sueli Salva
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EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO
A igura linear do tempo como lecha embebe unindo essas três iguras. Com base no ponto,
as raízes profundas da cultura ocidental e ali-
seguindo a lógica da meta, movemo-nos, con-
menta, ainda hoje a nossa representação do
tempo. Existe uma salvação que não é mais tinuamente, de forma circular, nos conectando
religiosa, uma salvação laicizada que conia à a outros tantos pontos, de uma maneira não
racionalidade técnico-cientíica, ao desenvol- uniforme e em níveis diferentes. Movemo-nos
vimento, ao crescimento econômico, mas que
coloca no futuro o sentido do presente (Me- sobre uma base, mas não nos ixamos nela.
lucci, 2004, p. 15).
A espiral é uma igura fascinante, porque é um
A igura do tempo linear está em declínio. desaio aos dilemas do tempo, uma tentati-
va de dar forma ao desejo mais profundo que
Para explicar a forma em que estamos vivendo nos anima cada vez que encontramos a plu-
o tempo hoje o autor propõe a ideia de pon- ralidade de dimensões e de movimentos que
tos. A igura dos pontos representa o tempo constituem a nossa experiência temporal: no
movimento circular que avança no espaço se
que estamos vivendo na contemporaneidade. expressa o sonho demasiado humano que o
“É a percepção de uma sequência descontínua, luir quer também manter (Melucci, 2004, p.19).
mista, heterogênea, uma sucessão de momen-
tos temporais muitas vezes desconexos entre Esse é o tempo da experiência, que é
si” (Melucci, 2004, p. 20). São as diferentes ex- também representado pelo ciclo, que repre-
periências cotidianas que vivemos com tem- senta os ritos os quais dão sentido ao nosso
pos, muitas vezes, opostos, que nos deslocam viver, que move os indivíduos e que possibilita
em diferentes dimensões de tempo. Imagens viver diferentes dimensões do tempo, inclusive
televisivas, gráicas, introduzem no dia a dia o tempo interno.
uma variabilidade de tempos que nos arrasta
instantaneamente de um tempo a outro, com Aquele que acompanha os afetos, emoções e
vive no corpo [...] possui características opos-
ritmos distintos. tas. É múltiplo e descontínuo. Na experiência
Embora os pontos representem a forma subjetiva, tempos diversos coexistem, suce-
de viver o tempo contemporaneamente, se- dendo-se e sobrepondo-se. Existe um tempo
cíclico, como aquele do mito [...] se manifesta
gundo o autor, nenhuma dessas iguras con- no corpo, nas emoções [...]. Um tempo simul-
segue representar o complexidade da expe- tâneo: muitos tempos existem contempora-
riência do tempo, propondo, assim, a igura da neamente, ontem e amanhã, o meu e o teu,
aqui e em outro lugar (Melucci, 2004, p. 25).
espiral que surge da união das três iguras an-
teriores: O círculo, a lecha e o ponto. No nos-
A dimensão do tempo interno, embora o
so cotidiano, só conseguimos viver o tempo
‘tempo relógio’ seja o mesmo, sua compreen-
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Sueli Salva
são subjetiva é outra, podendo ainda ser di- relação aos eventos, percorrê-los para a frente
ferente de pessoa para pessoa. Essa forma de ou retornar. Com a possibilidade de ir e retornar,
compreensão do tempo é de caráter pessoal, o tempo interno se caracteriza também como
subjetivo. É aquela margem que o sujeito dis- um tempo de memória e, portanto, “reversível”,
põe para fugir ao controle da linearidade do oferecendo-nos, assim, a possibilidade de mo-
ciclo da vida, da velocidade que temos que nos diicar o sentido, até mesmo do nosso passado.
submeter para nos movermos de um ponto ao Para Melucci (2004, p. 23), “o passado
outro e ao mesmo tempo ser partícipe dos ri- contém aquilo que passou e prepara, portan-
tos que dão sentido ao viver. É esse tempo que to, o presente, que, por sua vez, anuncia aquilo
pode ser sentido a partir da subjetividade de que ainda não é e que será”. Nesse movimento,
cada um, portanto, em alguns momentos pode muitas coisas do passado podem retornar ao
parecer muito rápido, ou pode parecer uma presente, através da memória. “A memória é se-
eternidade, vai depender do sujeito e do signi- letiva e reconstrói a história do mundo e a nos-
icado que o sujeito atribui a um evento exter- sa própria a partir do projeto”, que já é um dire-
no. Por exemplo, para uma criança que gosta cionamento ao futuro. É, portanto, a presença
muito de brincar de casinha, inserir-se nessa que pode unir passado, presente e futuro. “É no
brincadeira pode fazer o tempo passar rápido, presente que o passado relete a sua luz e sua
enquanto que para outra, se ela for submetida sombra sobre o futuro e que este ilumina ou
a essa brincadeira e não gosta, esse tempo po- turva aquela porção de nós mesmos na qual
de-lhe parecer uma eternidade. queremos ou podemos nos reconhecer.”
Da mesma forma quando uma criança Como a percepção do tempo varia para
ica impedida de sair no pátio para brincar com cada sujeito, para cada momento através da
os seus colegas porque não realizou a ativida- emoção, do corpo, do Eros, e a máquina não
de dirigida solicitada pela professora. Enquanto respeita essa variabilidade, cria-se o que o au-
para aqueles que estão no pátio o tempo pode tor chama de “oposição” entre tempo externo
parecer curto, para aquela que icou na sala “de (tempo social) “irreversível” e o tempo interno
castigo” o tempo pode parecer muito longo. (das emoções), que é continuamente “reversí-
Essa característica do tempo interno é concei- vel”.O tempo interno é “variável” e, muitas ve-
tuada de “descontinuidade” (Melucci, 2004, p. zes, não cumpre as exigências e cobranças do
25). Outra característica do tempo interno é cha- tempo social. Essa “oposição”, cria uma um ten-
mada de “multidirecional”. Essa característica, são irresolvível, mas que pode ser amenizada
segundo o autor, dá-nos a possibilidade de, em através da cultura que “reduz essa tensão ofe-
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EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO
recendo canais para a expressão simbólica do agressiva. É essa aprendizagem que constitui o
tempo interno, como a arte, o mito, o jogo, a sujeito, inserindo-a no campo social e relacio-
sacralidade.” (Melucci, 2004, p.25). nal. Precisamos dar espaço ao tempo interno,
Depreende-se dessa ideia a importância compreender de que forma a criança signiica
de uma prática pedagógica na Educação Infan- seu tempo, procurando compreender o que a
til permeada pela expressão simbólica do jogo, criança gosta, o que não gosta, ajudando-a a
do brincar, da arte da expressão, da imaginação, construir novos signiicados ao que faz.
contemplando um modo de viver o tempo de
forma mais harmônica. Essa forma de viver o O nosso tempo não é somente o do relógio,
tempo perpassa o corpo enquanto corporeida- nem unicamente da alma, mas também o
tempo que permite o desabrochar das lores,
de. Um tempo da vida que se mostra através da que regula as grandes migrações e que pro-
corporeidade que não se submete à lógica linear, duz a metamorfose que dá vida à borboleta.
que tem o seu próprio tempo, cria novas tessitu- Nesses ritmos da natureza que tecem o tem-
po humano conjugam-se o círculo e a mudan-
ras, passa e faz passar pelo encanto da vida. ça (Melucci, 2004, p. 25).
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Sueli Salva
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EDUCAÇÃO INFANTIL – UMA REFLEXÃO ACERCA DO TEMPO
po como tempo da vida e não como tempo de de si em uma sociedade global. São Leopoldo:
preparação para a vida como nos alertou Rinal- Unisinos, 2004.
di (2012). Priorizar o tempo da vida é privilegiar
MOSKA, Paulinho. Gotas de tempo Puro. CD –
a organização do cotidiano em detrimento das
Olhos de Farol – Ney Matogrosso – Poly Gram,
rotinas rígidas como enfatiza Barbosa (2000);
1999, 2.
é privilegiar o tempo da corporeidade, da ex-
pressividade, do criar; do brincar; da curiosi- MARTINS, Fred. Novamente. CD – Olhos de Fa-
dade; do aprender; do ensinar; da alegria; do rol – Ney Matogrosso, 1999, 4.
fascínio pelo novo. Priorizar o tempo da vida é RINALDI, Carla. Diálogos com ReggioEmilia –
exercitar a tolerância de espera do adulto para escutar, investigar e aprender. São Paulo: Paz e
privilegiar a tempo da criança. Terra, 2012.
Referências bibliográicas
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RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS
DA EDUCAÇÃO INFANTIL
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Patrícia Dias Prado
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RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL
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RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Nas mediações com os outros, que en- airma, demonstra Moragas (2003), os precon-
sinavam, aprendiam e faziam juntas, crianças ceitos etários criam categorias falsas. No caso
maiores e menores construíam seu mundo de da infância, estas categorias (falsas), assenta-
cultura através do estabelecimento de relações das numa visão restritamente evolutiva e cro-
peculiares de coniança, de respeito e de ami- nológica, referem-se à incapacidade das crian-
zade, durante as brincadeiras compartilhadas, ças menores e maiores de brincarem juntas,
assim como observou Cardoso (2004), investi- pois estariam em momentos distintos de seu
gando a construção de agrupamentos multie- crescimento e, por isso, não se entenderiam, se
tários em outra instituição pública de Educa- atrapalhariam ou se machucariam – algo que
ção Infantil paulista. não foi conirmado na pesquisa.
Comprovando e airmando os “Critérios Reairmo, assim, minha hipótese inicial de
para um Atendimento em Creches que respeite que, em contato com um mundo de signiica-
os Direitos Fundamentais das Crianças” (Brasil, ções, em especial, aquelas advindas do convívio
2009), no que diz respeito ao direito de as crian- etário diversiicado, as crianças são capazes de
ças desenvolverem sua curiosidade, imagina- transcender, ir além das aparências das coisas
ção e capacidade de expressão, onde se pode e representá-las de maneira independente da
ler: “bebês e crianças bem pequenas aprovei- singularidade ou da materialidade daquilo que
tam a companhia de crianças maiores para de- percebem, conhecem ou tomam contato.
senvolver novas habilidades e competências” e A construção da infância como uma fase
em seguida: “crianças maiores aprendem muito de dependência e da vida adulta como o inver-
observando e ajudando a cuidar de bebês e de so, de independência e maturidade, alargou ain-
crianças pequenas”, observei que, mais do que da mais a distância, afastou ainda mais crianças
desenvolver habilidades e competências en- e adultos, em especial, na vida moderna (Elias,
tre si, as crianças menores e maiores comparti- 1990). Mas a consequente visão da delimitação
lhavam, negociavam e trocavam experiências, da infância a partir somente de um recorte etá-
construindo juntas novas formas de brincar, de rio, deinido por oposição ao adulto, pela pouca
fazer as coisas do dia a dia (nova ortograia). idade ou pela dita integração social inadequa-
Elas também rompiam com os precon- da, vem sendo contestada por diversos cam-
ceitos e, consequentemente, com falsas cate- pos de conhecimento como a Antropologia e a
gorias teóricas em relação à infância, no que Sociologia, que apontam para a diversidade de
tange às relações de idade, pois, como bem formas de inserção da criança na realidade, no
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Patrícia Dias Prado
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RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL
tante passo para se pensar sobre os períodos gundo o Estatuto da Criança e do Adolescen-
da vida, no caso a infância, como construção te (1999), artigo 2º, por exemplo, considera-se
social e cultural – pois não nascemos crianças, criança a pessoa com 12 anos incompletos. Já
tornamo-nos crianças (Faria, 1994). de acordo com a Convenção dos Direitos da
Estudando a sociedade europeia e a Criança (Sarmento; Pinto 1997, p.15), artigo 1º,
construção das categorias de idade, entre i- “considera-se como criança todo ser humano
nais do século XVIII e princípios do século até os 18 anos”.
XIX, Ariès (1981) já airmava que os períodos Desta forma, também as identidades etá-
em que a vida se desdobra mudam historica- rias, como airma Veiga Neto (2000), são neces-
mente. Mesmo criticado por eleger fontes que sariamente móveis, visto que o critério do tem-
privilegiavam o estudo das crianças da aristo- po vivido é suiciente para que todos percorram
cracia, o mesmo autor tem como contribuição diferentes grupos, esperando-se que cada um
epistemológica e metodológica fundamentais assuma identidades etárias diferentes ao longo
a construção de um sentimento de infância da vida, quais os processos pelos quais apren-
que revela, também, uma construção social do demos e ensinamos a ter determinada idade? A
tempo – um tempo que passa a ser percebido partir de quais critérios? Em função de quê?
como legítimo, um tempo em que se é criança, Lutar contra a cronologia é contrariar o
um tempo de viver numa situação privilegiada, tempo da exploração capitalista e a transfor-
sem grandes obrigações. mação das idades em mercadoria, é ampliar o
A idade como categoria traz em si uma próprio conceito de idade, genérico e dinâmi-
relexão de ordem política, epistemológica e co e que determina as relações sociais, as rela-
metodológica em sua relação com os contextos ções etárias e/ou as relações de idade. Expres-
educativos, pensando aqui, na educação infantil sar e incorporar a noção de experiência, tendo
como espaço de construção de pertencimentos a brincadeira como a materialização deste pro-
etários. Entretanto, a infância como categoria cesso, revela as culturas infantis que as crianças
social marcada pela heterogeneidade não pode estão produzindo, suas transgressões, sociabi-
ser deinida apenas por critérios etários ou para lidades, invenções, regras, prazeres, relações e
diferenciar-se da totalidade de pessoas que ain- linguagens.
da não têm esta ou aquela idade. Além da condição infantil brincante, que
Mesmo por critérios etários, não há con- se difere do conceito de uma natureza infantil,
senso para deinir as idades da infância; se- observei outros elementos fundamentais que
331
Patrícia Dias Prado
podem ser apontados para caracterização des- A mistura entre as crianças de idades
ta mesma condição das crianças, dentre eles, diferentes pode ser tão signiicativa para as
estar juntas e fazendo as coisas junto, confron- crianças, para as proissionais docentes e para
tar-se, compor brincadeiras coletivas, cuidar e a sociedade de forma mais ampla, quanto já
zelar dos amigos e amigas menores, reproduzir é a convivência entre crianças da mesma ida-
e também inventar a partir da observação dos de - experimentando vivências mais e menos
maiores e vice-versa, associar o prazer da brin- conlitivas, mais e menos cooperativas, tendo
cadeira às parcerias e amizades, aos alimen- a oportunidade de conviver com parceiros da
tos e a diversos elementos da natureza (água, mesma idade e também de idades diferentes.
areia, animais, etc.), enim, construir culturas Entretanto, torna-se importante apontar
infantis na diversidade étnica, de classe social, que, no espaço contraditório da instituição pes-
quisada, as professoras também foram observa-
de gênero, de tamanho, de turma e de idade.
das negociando regras de conduta ou das brin-
Propor a mudança de olhares, de luga-
cadeiras com as crianças, mediando conlitos de
res e a mistura de idades, sob esse ponto de
forma democrática e estendendo às crianças a
vista, implica na construção de uma Pedago-
possibilidade de decisões e de escolhas na or-
gia da Educação Infantil que dialogue com as
ganização das atividades, e de algumas brinca-
contribuições de campos diversos do conheci-
deiras - uma relação pedagógica de mão dupla
mento (pensando aqui, no campo das Ciências
na mistura de suas turmas de crianças. Quais os
Sociais), que ouça e observe as crianças para
conhecimentos advindos e revelados pelas pro-
sua elaboração, planejamento e organização. fessoras, para a não priorização de um espaço
Uma pedagogia que leve em consideração a escolarizante e, sim, de experimentações, que
capacidade de as crianças menores e maiores, poderiam ser levadas em consideração para
quando juntas, construírem uma relação de re- relexão sobre o processo de formação prois-
ferência umas para as outras, no sentido de de- sional, pensando ainda mais, na proposta dos
monstrar, disputar, sugerir, negociar, convidar, agrupamentos multietários que promova as re-
trocar e compartilhar experiências e brincadei- lações etárias entre as crianças pequenas?
ras. Nestes momentos, menores e maiores es- As crianças evidenciavam que maiores e
tabelecem relações mais solidárias e coopera- menores viviam experiências diversas e seme-
tivas do que quando estão separadas (somente lhantes, quando estavam no espaço educativo
entre as crianças de sua turma e idade). (e fora dele), ou que aprendiam umas com as
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RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL
333
Patrícia Dias Prado
O espaço pesquisado revela a não prio- tas mesmas ações só as são em um espaço, e
rização da escolarização precoce das crianças, este é o que dá forma às próprias ações (Heide-
uma vez que a alegria da brincadeira não era gger, 1962). O onde é que determina o como
uma exceção circunstancial, um intervalo, um do ser, porque este signiica presença.
recreio, deinindo para as crianças a infância: Assim, a organização institucional dos
“[...] como um período peculiar da vida, de fan- tempos e dos espaços educativos possui ín-
tasia, jogo e brinquedo, de amadurecimento”, tima relação com a construção das experiên-
exatamente oposta a de “Regimar e seus Ami- cias e vivências temporais e espaciais das
gos: a criança na luta pela terra e pela vida” crianças. A noção de temporalidade e espa-
(Martins, 1993, p.67), uma infância como “re- cialidade compartilhada por elas relaciona-se
síduo de um tempo que está acabando”. A in- diretamente com os modos (mais ou menos
fância na instituição investigada tinha tempo e conscientes) como os espaços educativos são
espaço para se realizar. E quais aspectos inte-
geridos pelas proissionais docentes e não do-
retários puderam ser evidenciados e conheci-
centes que têm responsabilidades educativas
dos nestas experiências? Como é possível pen-
(Nigito, 2004).
sar a organização dos tempos e espaços para
Os agrupamentos multietários na Edu-
aproximá-los de uma proposta educativa de
cação Infantil poderiam, assim, negar uma
crianças pequenas de diferentes idades juntas?
proposição central de organizar os tempos e
Que signiicados, sentidos, intencionalidades e
espaços educativos de forma fragmentada e
concepções educativas esta organização dos
pautada na educação das crianças mais velhas
tempos e dos espaços compreende?
na escola, que as reúne e as classiica segundo
É a intencionalidade, especialmente
a lógica da semelhança, aquela que uniformi-
discutida por Santos (2004), não válida somente
za grupos, turmas, conteúdos e métodos de
para rever a produção do conhecimento, que
ensino, acreditando numa padronização das
pressupõe o encontro e o diálogo, a implicação
aprendizagens:
mútua dos sujeitos e dos objetos que consoli-
dam uma noção de presença. Assim, os seres A história do ensino mostra-nos que as socie-
humanos também podem ser deinidos por dades escolarizadas, nos séculos XVI, XVII e
suas intencionalidades que passam, funda- XVIII, criaram a noção de grau e a divisão de
alunos por idade ou capacidade, consagran-
mentalmente, pela compreensão da essência do a noção moderna de homogeneidade no
do espaço e das ações que se convertem em ensino e na aprendizagem (Valiati 2006, p.40).
trajetórias espaço-temporais, uma vez que es-
334
RELAÇÕES ETÁRIAS ENTRE CRIANÇAS PEQUENAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL
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Patrícia Dias Prado
espaços de alegria, medo, proteção, mistérios, nos grupos infantis (Fernandes, 1979), evi-
descobertas, misturas e relações entre crian- denciando a não idade da infância, ou mes-
ças pequenas de diferentes idades. mo, infâncias de muitas idades, estava sendo
A condição infantil, portanto, com- construída no espaço pesquisado e, por isso,
preendida em novos espaços-tempos educa- o caracterizava e o destacava como uma ex-
tivos, concebida para além da idade, através periência pública educativa inovadora com
das experiências compartilhadas, revelava crianças pequenas que pode e deve ser esten-
que a própria infância estava presente tam- dida e renovada, a partir de outras crianças
bém nas professoras e que ela poderia, por- pequenas e suas professoras, sejam paulistas,
tanto, não acabar com a idade - poderia estar sejam sul-rio-grandenses!
em constante construção mesmo quando não
se é mais criança (Katz, 1996).
Desta forma, uma Pedagogia da Edu- Referências bibliográicas
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aprender com as crianças pequenas e bem ARIÈS, Philippe. História social da criança e da
pequenas, inventando, transgredindo, lidan- família. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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uma determinada idade em função de outras os direitos fundamentais das crianças. 2. ed.,
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QVORTRUP, Jens. Generation – an important
category in sociological childhood research.
338
20
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES,
REGISTROS ATENTOS
Catarina Moro
Avaliar crianças na Educação Infantil não uma avaliação padrão, por objetivos, em que re-
constitui um tema novo; entretanto, sempre se gistra se a criança faz, não faz, faz com ajuda; na
constitui em tema controverso. A diversidade de qual não há previsão de registro narrativo para
ideias a respeito se deve a distintos e múltiplos descrever a criança e as propostas educativas
fatores, contudo talvez duas questões estejam realizadas. Nesse caso, a avaliação depõe acerca
na base de todos os outros: a concepção sobre da educação ali realizada e permite uma rele-
criança e acerca da inalidade da educação in- xão acerca da existência ou não de consistência
fantil. Distintos propósitos e formas de avaliação e coerência entre nossos discursos, nossos pro-
efetivadas em muitas instituições de educação pósitos e nossas práticas.
infantil país afora (como gosto de brincar, ‘país É sempre necessário lembrarmos que
adentro’ para lembrarmos que é de dentro e por temos uma sustentação e uma orientação
dentro dos muitos municípios brasileiros que a legal, no campo da Educação, sobre o que são
educação infantil acontece, se realiza e se con- as diretrizes acerca da avaliação na educação
cretiza), revelam o que se permite e o que se infantil; assim como é bom demarcarmos que
espera das crianças nesta etapa da educação. há nos contextos institucionais reais em que
Ainda que tais avaliações não explicitem e até crianças de até 6 anos são cuidadas e educadas
mesmo contrariem o que é divulgado compar- inúmeras práticas avaliativas em desacordo
tilhado pela própria instituição, pelos próprios com o que temos como prerrogativa legal no
professores como o mais adequado às crianças. momento. A considerar também que o que está
Por exemplo, a instituição declara que pretende estabelecido em lei e em diretrizes curriculares
educar crianças autônomas, sujeitos de direitos, se articula com discussões cientíicas que vem
histórica e culturalmente constituídos e utiliza sendo empreendidas no campo, na atualidade.
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Catarina Moro
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REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS
com atenção e cautela para que a avaliação das natário privilegiado, as famílias de cada criança.
crianças na educação infantil não venha a ser É importante que uma cópia ique arquivada na
atrelada exclusivamente ao controle burocráti- instituição para subsidiar as trocas de informa-
co e oicial dos sistemas de ensino. Tal interpre- ções entre os professores que trabalharão com a
tação poderia nos levar ao preenchimento de i- criança nos grupos/turmas subsequentes.
chas e realização de pareceres ou relatórios que A avaliação das crianças na educação in-
se baseiam em um ideal de desenvolvimento e fantil não pode estar a serviço do ensino fun-
aprendizado para as crianças e não nas muitas damental, não pode se orientar pelo currículo
possibilidades das crianças reais. De forma al- do 1º ano. O foco da avaliação na educação in-
guma se pode entender “documento” como um fantil se centra na criança integral, nela como
histórico escolar, ou como um boletim expresso um todo, na sua complexidade e particulari-
em notas ou conceitos e o atestar como um cer- dade e na diversidade das crianças entre elas.
tiicado de aprovação do desempenho infantil, Nesse sentido, não se relaciona exclusivamen-
como um teste de habilidades. te a determinados conteúdos, como a lingua-
gem escrita e a matemática, geralmente áreas
Nesse aspecto é importante destacar dois pon- com maior visibilidade e importância no ensi-
tos: 1) nas DCNEI não aparece o verbo atestar,
no fundamental.
mas sim a expressão “documentação que per-
mita às famílias conhecer...”; 2) a LDB fala em Em 2009, o Conselho Nacional de Edu-
documentação, que é referente a processos, e cação (CNE) atualiza as Diretrizes Curriculares
não a resultados, não se confundindo com no- Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e,
tas ou conceitos. Uma avaliação padronizada
não ajuda aos professores e gestores reletir
em seu Art. 10, inciso I, sobre a avaliação das
sobre a prática educativa realizada e as con- crianças refere que ela implica “a observação
dições de aprendizagem oferecidas e adequar crítica e criativa das atividades, das brincadei-
estas práticas de acordo com as necessidades ras e interações” que elas realizam no cotidia-
das crianças. Com isso, corre-se o risco de se
perder a concepção, ainda em constituição, de no. Como podemos entender essa proposição?
que avaliar as crianças pequenas é enfrentar Primeiro, considerando que se parte da inten-
o desaio de revelar o universo infantil na sua ção de estar-se o tempo todo atento ao que as
singularidade e transformação mediado pe-
crianças fazem, como fazem, com quem fazem,
las experiências educativas a elas oferecidas
(Moro; Oliveira, 2014, p.201). se fazem algo ou contrário, se se esquivam de
realizar determinadas atividades, brincadeiras
É importante ter em conta que a expedi- (quais seriam?), interações (com quem seria?).
ção da referida documentação é responsabilida- Segundo, buscando formas de reletir, a partir
de da instituição educativa que tem como desti- de uma postura crítica, sobre o que foi observa-
343
Catarina Moro
do; de formas distintas e que permitam captar do. Ao avaliá-la, o professor também avalia
o processo e o contexto educativos (Moro,
mais detalhes, outros elementos e que levem
2015, prelo1).
ao registro do que fora observado. O registro é
a estratégia fundamental e complementar para
O inciso IV (Art. 10, BRASIL, 2009a) traz uma
que o professor relita sobre o que vê e enten-
interlocução importante no que se refere a todo
de acerca dos modos como a criança se revela,
o trabalho realizado por uma instituição de edu-
se manifesta e comunica seus saberes. O inciso
cação infantil que deve ser assegurada por um
II, do Art. 10, indica algumas modalidades de
processo avaliativo que traga uma “documenta-
registro referindo a “utilização de múltiplos re-
ção especíica que permita às famílias conhecer
gistros realizados por adultos e crianças (relató-
o trabalho da instituição junto às crianças e os
rios, fotograias, desenhos, álbuns, etc.)”, a im de
processos de desenvolvimento e aprendizagem
documentar sobre as crianças individualmente
da criança na Educação Infantil” (BRASIL, 2009a).
e sobre toda ação educativa (Brasil, 2009a).
Assim, a avaliação tem como destinatárias tam-
Além de coletar materiais, desenhos, fotos e bém as famílias, sendo direito dos pais acompa-
de produzir registros é preciso saber como nhar o que está acontecendo com seus ilhos e
analisá-los e o que fazer com eles. A questão de compreender as práticas desenvolvidas na
é ter clareza sobre o que fazer com os regis- instituição. A avaliação deve, inclusive, permitir
tros. Como a Alice [no país das maravilhas] é
preciso escolher um caminho a seguir. O fun- às próprias crianças acompanharem suas con-
damental em quaisquer das formas de regis- quistas, diiculdades e possibilidades, ao longo
tro escolhidas é que estas permitam captar de seu processo de desenvolvimento e constru-
a singularidade de cada criança, as peculiari-
ção do conhecimento.
dades vividas e seus aspectos inusitados. Os
registros não fornecem apenas elementos Há várias possibilidades de oportunizar às
para a elaboração de relatórios ou pareceres crianças o conhecimento e o entendimento de
individuais sobre as crianças, mas contribuem suas conquistas. Entretanto, o diálogo acerca de
para a relexão sobre o fazer educativo, ou
seja, para uma auto-avaliação acerca do tra- suas participações, produções, no sentido de lhes
balho do professor, incluindo o planejamento dar “escuta”, permitir a elas terem “voz” no cotidia-
da prática educativa tanto na dimensão da no da educação infantil é de extrema relevância.
sala de aula, quanto na dimensão institucio- Propostas como relatórios, pareceres des-
nal. Nesse sentido, temos a evidência de que
as diferentes dimensões da avaliação são in- critivos e portfólios têm sido boas alternativas
terdependentes. Não há como avaliar exclu- para a documentação e o registro do acompa-
sivamente a aprendizagem, desconsiderando
o contexto educacional que se criou para que
tal aprendizagem aconteça. Ao observar a 1 MORO, C. Avaliação em educação infantil: desaios, tran-
criança, se observa também o contexto cria- sformações, perspectivas. Curitiba: Editora UFPR, (no prelo).
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REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS
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REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS
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Catarina Moro
da oferta em âmbito nacional. Contudo, persiste com nosso olhar, escuta e registros atentos;
o desaio para sua implementação, uma vez que que possam nos fazer reletir e propor novas
a portaria que deveria instituir a ANEI ainda re- práticas voltadas à ampliação de conhecimen-
quer a assinatura do atual Ministro da Educação, tos e vivências das crianças.
assim como ter assegurada as condições para
sua efetivação. Essa questão requer posiciona- Referências bibliográicas
mentos e acompanhamento dos pesquisadores
dos movimentos sociais e dos proissionais da BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de
área em geral, para que de fato a educação in- 1996. Estabelece as diretrizes e bases da edu-
fantil assegure que a avaliação nacional a ser ins- cação nacional. Diário Oicial da União, Poder
tituída seja acerca da oferta educativa às crianças Legislativo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível
e não do desempenho individual de cada uma. em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9394.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
Finalizando BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto.
Secretaria de Educação Fundamental. Refe-
Em todos os níveis educacionais e princi-
rencial curricular nacional para a educação
palmente na educação infantil importa muito
infantil. Brasília: MEC; SEF, 1998. 3 v.
mais avaliar o que permite e como se permite
à criança apropriar-se de novos e ampliados BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Na-
conhecimentos, que a enriqueçam como seres cional de Educação. Câmara de Educação Básica.
que produzem cultura e não exclusivamente Resolução n. 5, de 17 de dezembro de 2009.
seus desempenhos individuais. Fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para
Não há uma avaliação modelo que pode a Educação Infantil. Diário Oicial da União, Po-
servir de guia para o nosso compromisso de der Legislativo, Brasília, DF, 18 dez. 2009a.
acompanhar as conquistas e os desaios das BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de
aprendizagens das crianças que cuidados e Educação Básica. Indicadores da qualidade na
educamos na educação infantil, há sim a pos- educação infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009b.
sibilidade de investigarmos sempre outras ex- BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacio-
periências, de estabelecermos intercâmbios nal de Educação. Parecer CNE/CEB n. 20/2009, de
entre nós professores de uma mesma ou de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes
diferentes instituições acerca do que pode ser Curriculares Nacionais para a Educação Infantil.
instigante às crianças no cotidiano educativo. Diário Oicial da União, Poder Legislativo, Brasí-
E proporcionarmos tais situações, seguindo-as lia, DF, 9 dez. 2009c. Seção 1, p. 14.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de
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REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DAS CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: ESCUTAS, OLHARES, REGISTROS ATENTOS
Educação Básica. Política de educação infan- ção dos proissionais da educação e dar outras
til no Brasil: Relatório de avaliação. Brasília: providências. Diário Oicial da União, Poder
MEC; SEB; Unesco, 2009d. Legislativo, Brasília, DF, 5 abr. 2013. Disponível
BRASIL. Constituição (1988). Emenda Cons- em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
titucional n. 59, de 11 de novembro de 2009. ato2011-2014/2013/lei/l12796.htm>. Acesso
Acrescenta § 3º ao art. 76 do Ato das Disposi- em: 19 out. 2014.
ções Constitucionais Transitórias para reduzir, BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014.
anualmente, a partir do exercício de 2009. Diá- Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE
rio Oicial da União, Poder Legislativo, Brasí- e dá outras providências. Diário Oicial da
lia, DF, 12 nov. 2009e. Disponível em: <http:// União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 26 jun.
www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ 2014. Disponível em: <http://www.planalto.
Emendas/Emc/emc59.htm>. Acesso em: 19 gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/
out. 2014. L13005.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
BRASIL. Lei n. 11.274, de 06 de fevereiro de MORO, C. (Desa)Fios da avaliação. Revista Educa-
2006. Altera a redação dos arts. 29, 30, 32 e 87 ção. Número Especial Educação Infantil. Vol. 2. São
da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Paulo, p. 31-43, out. 2011. ISNN: 1415-5486
que estabelece as diretrizes e bases da educa- MORO, C. Avaliação em educação infantil:
ção nacional, dispondo sobre a duração de 9 desaios, transformações, perspectivas. Curiti-
(nove) anos para o ensino fundamental, com ba: Editora UFPR, 2015. No prelo.
matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos
MORO, C.; OLIVEIRA, Z. de M. R. de. Avaliação e
de idade. Disponível em: http://www.planal-
educação infantil: crianças e serviços em foco.
to.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/
Em: FLORES, M. L.; ALBUQUERQUE, S. Imple-
l11274.htm>. Acesso em: 19 out. 2014.
mentação do Proinfância no Rio Grande do
BRASIL. Ministério da Educação. Educação in- Sul: perspectivas políticas e pedagógicas.
fantil: subsídios para construção de uma sis- Porto Alegre: EdiPUCRS, 2014, p. 199-216.
temática de avaliação. Documento produzido
pelo Grupo de Trabalho instituído pela Portaria
número 1.147/2011, do Ministério da Educa-
ção. Brasília: MEC, 2012.
BRASIL. Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de
1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para dispor sobre a forma-
349
21
FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO
DA PEDAGOGIA EM CRECHE: A RELEVÂNCIA PERCEBIDA
DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
351
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho
uma destas perspetivas pedagógicas, a Pe- Este corolário democrático materializa-se sob
dagogia-em-Participação, que defende, en- duas formas: a participação de todos na vida
quanto um dos seus corolários, o direito dos da instituição e na comunidade, e a participa-
proissionais à formação, direito esse que, por ção na co construção da própria aprendizagem
seu turno, é reconhecido enquanto condição e desenvolvimento.
para a garantia de direitos das crianças e das Esta perspectiva considera que a Pe-
famílias. A apresentação contemplará, num dagogia da Infância se organiza em torno do
primeiro momento, aspetos teóricos relativos conhecimento construído na ação situada, ar-
à formação em contexto para, num segundo ticulado com a teoria e com crenças e valores,
momento, dedicar-se à caracterização das numa triangulação interativa (Oliveira-Formo-
percepções de educadoras de infância acerca sinho, 2007). A Pedagogia da Infância tenta
dos conteúdos e processos da formação responder a diferentes níveis de complexida-
com maior relevância na aprendizagem de, direta e indiretamente implicados na ação
proissional e na reconstrução da pedagogia educativa, através deste processo de diálogo
em contexto de creche. interativo entre teoria, práticas e crenças. As-
sume-se, pois, a sua natureza profundamente
Pedagogia-em-participação: a forma- holística e integrada, centrada numa praxis da
ção em contexto para a reconstrução da participação (ibidem).
pedagogia A formação em contexto é concebida
como o processo privilegiado para a recons-
No âmago das crenças, valores e princí- trução da pedagogia, pressupondo uma dialé-
pios da Pedagogia-em-Participação, a perspe- tica entre a formação, a ação e a investigação
tiva educativa da Associação Criança, encon- (Formosinho & Oliveira-Formosinho, 2008). A
tra-se a democracia, à qual se aspira enquanto formação em contexto distancia-se de práticas
im e meio, isto é, aspira-se a que esteja pre- formativas centradas num modelo escolar, em
sente tanto no âmbito das grandes inalidades que a relação entre formadores e formandos
educacionais, como no âmbito do quotidiano é modelada à luz da relação professor-aluno,
vivido por todos os atores, como participação em contextos do tipo sala de aula e com pro-
de crianças e adultos (Oliveira-Formosinho, postas programáticas à margem dos projetos
2007, 2011b; Oliveira-Formosinho & Araú- e situações de trabalho dos professores. Trata-
jo, 2013; Oliveira-Formosinho & Formosinho, -se de um sistema tecnocrático, de formatação
2013; Oliveira-Formosinho & Gambôa, 2011).
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
bancária2, predominantemente teoricista e da formação3, por serem aquelas que mais cen-
desvalorizador dos saberes experienciais dos tralmente se relacionam com as inalidades do
professores (Machado & Formosinho, 2009). trabalho apresentado neste capítulo.
Neste sentido, revela-se um sistema dicoto- No que concerne à dimensão física, a for-
mizador da teoria e da prática, sobrepondo mação em contexto é, tal como a própria de-
uma racionalidade técnica, na qual a prática é signação deixa adivinhar, realizada no terreno,
concebida como a concretização/aplicação da centrando-se nos contextos de trabalho. Assim
teoria e técnicas cientíicas, a uma racionalida- concebida, possibilita o reforço do potencial
de prática em que o professor é reconhecido formativo do ambiente de trabalho (Machado
como um proissional capaz de reletir na e so- & Formosinho, 2009), através da construção de
bre a prática (Schön, 1992) e em que a teoria saberes situados, da aprendizagem-em-ação,
é transformada em hipótese de trabalho capaz de aprendizagem experiencial (Oliveira-For-
de fecundar a prática (Machado & Formosinho, mosinho & Formosinho, 2001). Nesta ótica,
2009). Estas práticas formativas baseadas na ra- permite ultrapassar a dissociação entre espa-
cionalidade técnica têm vindo a ser associadas ços e tempos da formação e espaços e tempos
à instrumentalidade e normatividade da for- do trabalho (Ferreira, 2001; Machado & For-
mação dos professores, à negação das suas di- mosinho, 2009), passando-se para uma lógica
mensões emancipatórias, a constrangimentos e dinâmica de formação que une tempos e
ao desenvolvimento proissional e à mudança lugares da cidadania, do trabalho e da forma-
endógena das instituições (ibidem). ção num processo único e integrado (Ferreira,
A formação em contexto surge como 2001). A formação em contexto relete, então,
resposta alternativa à formação centrada num uma perspetiva ecológica do desenvolvimento
modelo escolar. No sentido de caracterizar esta proissional que reconhece e analisa o proces-
alternativa, tomaremos como referência três so de interação mútua e progressiva entre um
dimensões interligadas: a dimensão física, a di- professor/educador ativo e em crescimento e
mensão psicossocial e a dimensão pedagógica o ambiente em transformação em que ele está
inserido (Oliveira-Formosinho, 2009). Assim, é
um processo formativo que se realiza, numa
2 Numa educação de tipo bancário, cada professor, individual- 3 Baseamo-nos na proposta de Formosinho ao equacionar as
mente, procura “acumular” conhecimentos que “aforra” porque lhe diferentes vertentes da formação centrada na escola: a física, a
dão “créditos” e proventos na carreira, sem, no entanto, precisar se organizacional, a psicossocial, a pedagógica e a político-cívica e/
mobilizar a curto prazo os conhecimentos acumulados (Machado ou político-corporativa (1991, op. cit. Oliveira-Formosinho & For-
& Formosinho, 2009, p. 289). mosinho, 2001).
353
Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho
extensão relevante, dentro das fronteiras fí- com educadoras de infância, que a identiicação
sicas do microssistema, mas que atenta nas dos saberes docentes, numa fase inicial do pro-
inter-relações entre este sistema e outros con- cesso, é fundamental, quer como base relexiva,
textos, mais imediatos ou mais vastos. Como quer como ponto de partida para a mudança e
argumentam Formosinho e Oliveira-Formosi- transformação das práticas.
nho (2008), metade do tempo da formação em A formação em contexto valoriza igual-
contexto é passado fora desse contexto, em mente uma visão relacional e colaborativa da
atividades de estudo e supervisão. Os autores formação. Como sublinhado por Oliveira-For-
consideram, então, quatro componentes deste mosinho, Azevedo e Mateus-Araújo (2009), Na
trabalho formativo: (i) o tempo de contacto nas formação em contexto desenvolve-se, de forma
salas de atividades (com os proissionais, para mediada e em companhia, uma deinição local
proissionais e crianças); (ii) o tempo de contac- e colaborativa dos objetivos para a transforma-
to no contexto, mas fora das salas de ativida- ção praxiológica, isto é, promove-se uma cen-
des (com o líder pedagógico, o líder organiza- tração no quotidiano praxiológico onde colabo-
cional, as famílias); (iii) o tempo de estudo, fora rativamente emergem os focos e propósitos da
do contexto, dedicado à avaliação, relexão e formação (p. 83). Nesta lógica formativa, reco-
planiicação da formação; e (iv) o tempo de su- nhece-se o valor de uma cultura colaborativa
pervisão dedicado à relexão e orientação com do trabalho docente que rompe com a cultura
o supervisor da intervenção. individualista e com o isolamento.
Numa dimensão psicossocial, a formação Apesar da centração nos docentes, é
em contexto conigura uma formação centrada importante ressalvar que não constitui uma
nos docentes, em que estes são considerados formação que se encerre nos docentes ou na
sujeitos, e não objetos, da sua formação (Fer- escola, conotando uma visão umbiguista ou
reira, 2001). Os formadores afastam-se de um corporativa (Oliveira-Formosinho & Formo-
trabalho feito para os docentes, onde estes se sinho, 2001), mas que possibilita o cultivo da
mantêm como recetáculos passivos, para uma abertura, quer a outros microssistemas, quer
cultura de trabalho formativo com os docentes, àqueles a quem serve. De facto, é necessário
participado e em corresponsabilização (Cravei- que a escola interatue com instituições de for-
ro, 2007). A formação em contexto valoriza a ex- mação, especialistas em educação, movimen-
periência e biograia dos professores (Ferreira, tos pedagógicos, associações proissionais de
2001). Craveiro (2007) concluiu, no âmbito do professores, associações sindicais de professo-
seu extenso trabalho de formação em contexto res, redes de escolas, projetos de professores
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
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Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho
ças entre os 24 e os 36 meses (doravante desig- so foi desenvolvido ao longo de nove meses,
nada educadora CR). O estudo envolveu ainda compreendendo 58 encontros de trabalho, e
uma formadora em contexto, concomitante- centrando-se na transformação da qualidade
mente investigadora. através de processos de experimentação en-
A recolha de dados foi realizada através volvendo espirais de ação e relexão, tomando
da adoção de uma abordagem multimetódica, como referência quatro abordagens pedagógi-
combinando três sistemas observacionais, no cas para a creche, de natureza socioconstrutivis-
rasto da proposta de Evertson e Green (1989): ta: a Pedagogia-em-Participação, a abordagem
(i) um sistema observacional narrativo, cons- HighScope, a perspetiva de Reggio Emilia e a
tituído pelas notas de campo da formadora e proposta de Elinor Goldschmied. Numa terceira
entrevistas às educadoras de infância; (ii) um fase, foi conduzida uma avaliação multimetódi-
sistema observacional categorial, correspon- ca do impacto da formação em contexto.
dendo à utilização de instrumentos de obser-
vação da qualidade do programa, do empenha- Conteúdos e processos da formação em
mento do adulto, do bem-estar, envolvimento e contexto na percepção das participan-
experiências de aprendizagem da criança; e (iii) tes
um sistema observacional tecnológico, associa-
do aos registros fotográicos acerca de elemen- A análise indutiva de dados permi-
tos estruturais e processuais. Os dados apresen- tiu identiicar cinco temas émicos caracteri-
tados neste capítulo foram recolhidos através zadores das percepções das educadoras de
do sistema observacional narrativo e sujeitos a infância no que concerne os conteúdos e
análise de conteúdo, de natureza indutiva, re- processos formativos mais relevantes na sua
sultando na identiicação de temas émicos4. aprendizagem proissional, como se elucida
O estudo foi desenvolvido ao longo de seguidamente.
três fases: uma fase de avaliação inicial multime-
tódica da qualidade do contexto; uma segun- A importância do foco em referenciais
da fase, dedicada ao desenvolvimento de um especíicos à ação proissional em cre-
processo de formação em contexto, mediado che
por uma formadora em contexto. Este proces-
A especiicidade dos conteúdos da
4 Utilizamos a distinção traçada por Stake (1999) entre temas formação, orientados para a natureza da edu-
éticos (questões que o investigador traz do exterior) e temas cação e cuidados em contexto de creche, foi
émicos (os temas dos atores que pertencem ao caso).
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
assumida como relevante por todos os ele- que as educadoras veriicavam a existência de
mentos envolvidos. A formação em tais refe- referenciais especíicos para creche, bem como
renciais, quer ao nível da formação inicial, quer a sua complexidade e alcance. No inal do pe-
contínua, havia sido caracterizada pelas educa- ríodo de formação, as impressões muito posi-
doras como muito lacunar. Apesar de a qualii- tivas veiculadas por uma das educadoras dão
cação e competência proissional ser conside- conta dos efeitos da formação na sua identida-
rada, nos contextos de creche, um critério de de de educadora de creche:
qualidade relevante e com impacto no desen-
volvimento da criança (Berthelsen & Brownlee, Eu acho que é assim, neste momento, não me
sinto, de todo, como é que eu hei de dizer, não
2007; Berthelsen, Brownlee & Boulton-Lewis, me sinto inferior nem constrangida se me dis-
2002; Burchinal, Campbell, Bryant, Wasik & serem: Vais trabalhar sempre em creche (…) E
se me disserem Vais icar só em creche, porque
Ramey, 1997; Nicdh Eccrn, 2001), a percep-
acho que é daquelas coisas que eu sinto que
ção destas educadoras conirmava evidências também evoluí, que mudei em relação ao ano
reiteradas por vários autores e estudos passado, eu gosto do trabalho em creche, mas
achava que era muito limitativo e, neste mo-
acerca da realidade portuguesa, os quais têm mento, se me disserem, Vais trabalhar só em
sublinhado as fragilidades da formação inicial creche, não tenho medo. Não tenho medo e, é
e contínua dos educadores de infância para assim, não tenho medo de estagnar proissio-
nalmente, porque acho que tenho aqui ma-
a ação proissional em creche (exs.: Araújo, terial que me vai permitir continuar a evoluir
2011; Carvalho, 2005; Coelho, 2005; ME-DEB, enquanto proissional (entrevista à educado-
2000; Oliveira-Formosinho, 2011a; Portugal, ra SM, julho 2009).
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Sara Barros Araújo e Júlia Oliveira-Formosinho
docente destas educadoras foi ganhando no- textos de creche, às crianças e adultos que aí
vos contornos, partindo de uma identidade e se movem, revelou-se preponderante na re-
proissionalidade deprimidas, que não se en- construção das práticas. Os estudos realizados
contrariam desfasadas do elevado condiciona- por Oliveira-Formosinho e colaboradores têm
mento que representam as imagens presentes sublinhado a ligação signiicativa e capaci-
na matriz socio-histórica. Estas imagens têm tante da aprendizagem e experimentação de
vindo a relegar o educador a trabalhar em cre- propostas pedagógicas explícitas no desen-
che para uma posição subsidiária de agente de volvimento proissional das educadoras de in-
cuidados e não de agente educativo (Araújo, fância em creche (Cardoso, 2011; Lucas, 2006;
2009b), o que tem contribuído para a menor Oliveira-Formosinho & Araújo, 2011). De igual
atenção, investimento e legitimação social des- modo, no presente estudo, esta aprendizagem
te proissional, bem como para a ausência de e experimentação de referenciais pedagógicos
critérios precisos para fundamentar a sua prois- para a ação proissional em creche parece-nos
sionalidade (Bondioli & Mantovani, 1998). Como encontrar-se associada ao robustecimento da
evidenciado pelo estudo de Coelho (2005) identidade proissional das educadoras e ao
acerca das conceptualizações de um grupo de início da reconstrução, de forma situada e re-
educadoras a trabalhar em creche, apesar da lexiva, da sua proissionalidade docente.
assunção por parte destas da natureza especia-
lizada e diferenciada do seu trabalho, a incerteza A equipe de trabalho enquanto elemen-
endémica (Katz, 1998, op. cit. Coelho, 2005) acer- to catalisador da mudança
ca do seu papel coloca-se com maior acuidade
aos educadores a trabalhar nesta valência, refor- O trabalho em equipe, de natureza
çada por sentimentos de desvalorização social, colaborativa, representou uma característica
que emergem no próprio seio da comunidade processual da formação em contexto recorren-
proissional. O estudo de Coelho evidencia, no temente assinalada pelas proissionais como
caso de muitas educadoras, a ausência de um vantajosa no processo de mudança encetado.
referencial suicientemente explícito que as situe De facto, apesar da existência anterior de parti-
e permita deinir a sua proissionalidade sem re- lhas informais entre as educadoras, estas regis-
correrem sistematicamente à comparação com a travam-se a um nível supericial, assistemático
actividade em contexto pré-escolar (p. 351). e ainalístico do ponto de vista pedagógico.
No caso em análise, a experimentação O clima relacional positivo pré-existente
em ciclos de ação e relexão de propostas pe- foi salientado enquanto condição facilitadora,
dagógicas sensíveis às características dos con- servindo como plataforma para o desenvolvi-
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
mento subsequente de novos saberes colabo- tas, todas juntas, foi facilitador para haver
uma interação de todas as educadoras e das
rativos, como surge ilustrado nas palavras de
salas, do que se passava nas salas (Entrevista à
uma das educadoras, na entrevista inal: educadora CR, julho 2009).
Acho que deveriam ser de manter [os en- Este excerto relete benefícios de pro-
contros de trabalho] porque acho que foram
muito importantes, (…) porque tornámo-nos cessos inerentes ao trabalho em equipe, no-
realmente uma equipa, em que, em que nos meadamente o incremento da partilha e do
desaiávamos umas às outras, em que nos
conhecimento acerca das vivências nas restan-
ajudavámos, em que nos compreendíamos e
começamos até a perceber… quero dizer, eu tes salas. Outros benefícios foram igualmente
também estava no ATL, também era diferente, reconhecidos, como a compreensão mútua e a
mas eu sei que também elas aqui em baixo,
que não…muitas vezes não sabiam o que é empatia em momentos de mais difícil gestão
que se passava na sala umas das outras, esta- do ponto de vista emocional, o apoio e encora-
vam muito mais isoladas e eu própria, que es- jamento, bem como o desaio mútuo.
tava lá em cima, também não sabia, de todo,
o que se passava aqui nas salas. Que embora A construção coletiva de saberes, através
haja uma relação de amizade entre nós, que da implicação de todas as educadoras, foi par-
o há, mas falávamos assim muito de circuns- ticularmente salientada enquanto vantagem
tância daquilo que se passava. E também falá-
vamos das diiculdades que sentíamos, ou eu percebida da formação. As educadoras referi-
no ATL, ou elas aqui em baixo e tentávamos ram a maior harmonia e coerência ao nível das
ajudar, mas não foi tão rigoroso, tão bom, tão
práticas (não apenas nas salas de creche, mas
elucidativo, como foi nestes momentos. (…)
Por exemplo, acho se não tivessem havido es- alargando esta análise às salas de atividades do
tes momentos mesmo ao nível do jogo heu- pré-escolar), que outorgaram à partilha de refe-
rístico, se calhar nunca nos tínhamos aperce-
bido que estava a haver o jogo heurístico na renciais teóricos comuns. Uma das educadoras
sala da SM, por exemplo, não é? Se tivesse reconheceu ainda a relevância da construção
sido noutra altura, em que a SM, por ela pró- de uma base de discurso uniforme e coerente, co-
pria, se tivesse documentado o jogo heurísti-
co ou ela própria tivesse feito uma formação mum a todas (Entrevista à educadora SM, julho
sozinha, ou no exterior, e tivesse trazido para 2009), derivada da partilha de referenciais teó-
a sala dela, eu duvido muito…nós íamos sa- ricos e da relexão conjunta. De facto, foram-
ber que a SM estava a fazer o jogo heurístico,
atenção, não é, porque falávamos sobre isso, -se tornando notórios, de forma paulatina, um
mas se calhar não íamos chegar ao ponto de maior rigor, segurança e comunhão ao nível de
entender sequer o que era o jogo heurístico.
referenciais no discurso proissional das edu-
(…) E enquanto que aqui na formação, como
tínhamos essas duas vezes por semana, jun- cadoras, não enquanto relexo, nas palavras
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A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
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A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
práticas, designadamente a avaliação colabo- op. cit. Greig & Taylor, 1999) que deve nortear
rativa da qualidade das salas, a sugestão e in- a investigação ancorada num paradigma inter-
centivo às leituras e à relexão, a apresentação pretativo e participativo.
e relexão em torno de diferentes materiais, Na ótica das proissionais, o ethos da for-
como vídeos ou powerpoints (que reletiam mação fomentou também uma maior proximi-
realidades com que se poderia aprender), o dade entre a teoria e a prática, possibilitando
incentivo à experimentação na prática, o ques- uma tradução mais luída da primeira em pro-
tionamento, o feedback, os confrontos empá- cessos de aprendizagem experiencial das edu-
ticos ou as paragens estratégicas ao longo do cadoras, mais signiicativos para a equipe e,
processo, no sentido da regulação do mesmo. por tal, sustentadores e nutridores dos proces-
Igualmente destacado como elemento sos de aprendizagem proissional. Neste caso,
relevante do papel da formadora foi a atenção a formadora em contexto foi reconhecida en-
às necessidades do grupo para além das neces- quanto elemento que, num primeiro momen-
sidades investigativas. De facto, a atenção às pes- to, convidou as educadoras a ler, reposicionan-
soas surgiu como elemento motivacional para o do a importância dos saberes teóricos e da sua
envolvimento das educadoras no processo, re- atualização e que, num segundo momento, fa-
letindo uma desejável centração nos docentes cilitou a ponte entre a teoria e a prática, encora-
enquanto sujeitos, e não objetos, da formação jando a relexão acerca da teoria à luz das pos-
(Ferreira, 2001; Machado & Formosinho, 2009), sibilidades e constrangimentos contextuais,
bem como, acrescentaríamos, o seu foco huma- procurando uma constante calibração e con-
nista e ético-social. De facto, foi salientado pelas textualização ao nível do processo formativo.
educadoras o valor que atribuíam a uma inves- Estes constituíram processos que, juntamente
tigação que não se cingia à recolha de dados de com o debate em torno de crenças e valores,
um contexto, com pouco ou nulo benefício dos igualmente realizado de forma situada e tangí-
atores locais, mas que criava oportunidades de vel, traduziram o início da construção de uma
aprendizagem e transformação para tais atores. pedagogia participativa nas salas estudadas.
A este propósito, parece-nos oportuno a asso-
ciação desta perspetiva à necessária lógica de
reciprocidade (Lincoln & Guba, 2000), de bene-
fício e de justiça (Beauchamp & Walters, 1989,
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
A RELEVÂNCIA PERCEBIDA DE CONTEÚDOS E PROCESSOS
Oliveira-Formosinho (2008), como uma etapa Parece-nos plausível airmar que a for-
de iniciação, à qual se deveriam suceder etapas mação em contexto, ao elevar o nível de cons-
de avanço, estabilização e consolidação. ciência das educadoras acerca da realidade, e
A equipa demonstrava, no inal desta do seu papel nessa realidade, gerara maior exi-
primeira etapa, condições para a continuidade gência, um locus de controlo mais internaliza-
do processo, como a motivação, a energia e a do e uma maior responsabilização pelo proces-
insatisfação. De facto, evocavam a concomi- so de mudança. Neste caso, parecia-nos estar
tância de sentimentos de bem-estar e de um perante uma situação de angústia generativa,
certo desconforto associado à formação em uma vez que surgia associada à motivação
contexto, como se poderá veriicar no seguinte para a transformação de práticas.
excerto das notas de campo da investigadora:
Considerações inais
A educadora SM reconheceu que, a par do
bem-estar, os encontros de trabalho também
lhe geram alguma angústia. As restantes edu- O presente capítulo dedicou-se à apre-
cadoras concordaram. Pedi que me explicas-
sentação e análise de um processo de recons-
sem melhor o que sentiam e a educadora CG
[sala 3-4 anos] respondeu: Isto também tem a trução da pedagogia em creche, em que a
ver com a angústia do conhecer. A SM conti- formação em contexto se destacou enquanto
nuou: A minha angústia agora é dupla. Porque
se eu não tivesse feito este processo, eu acha- formato privilegiado. Nesta opção, a natureza
va que estava tudo bem na sala. Agora, consi- contextual do processo formativo e investi-
go apontar os pontos críticos e às vezes não
gativo foi reconhecida enquanto condição e
sei como dar a volta. E agora há uma maior
insatisfação. É como o D. Juan do Kierkegaard. meio para a efetivação dos processos de mu-
Pedi à SM um esclarecimento. A educadora, dança. De facto, a imersão no contexto abriu
sorrindo, explicou: O D. Juan icava muito en-
tusiasmado quando conhecia uma mulher, caminho a uma ação orientada por necessi-
mas depois ia icando insatisfeito. Eu agora dades e problemas concretos, sem negligên-
também estou mais insatisfeita. A educadora cia de referenciais explícitos a sustentar essa
CG interveio novamente: E agora não posso
dizer: A culpa é deles, eles é que não apren- ação, altamente valorizados, como explana-
dem, as famílias é que não os apoiam. Agora, do, pelas educadoras de infância. Este equi-
eu questiono-me a mim própria, questiono
as minhas práticas. As restantes educadoras
líbrio construído entre processos indutivos
concordaram, enfaticamente, com as palavras e dedutivos na formação (Formosinho & Oli-
proferidas pela CG (Notas de campo da inves- veira-Formosinho, 2008) possibilitou, por um
tigadora (CNC_101), 11 maio 2009).
lado, o afastamento de potenciais situações
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FORMAÇÃO EM CONTEXTO PARA A RECONSTRUÇÃO DA PEDAGOGIA EM CRECHE:
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