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Rio de Janeiro
2007
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE
Av. Franklin Roosevelt, 166 - Centro - 20021-120 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil
ISBN 978-85-240-3940-9
© IBGE. 2007
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
INSTITUTO BRASILEIRO
DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA - IBGE
Presidente
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Diretor-Executivo
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Diretoria de Pesquisas
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Diretoria de Geociências
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Diretoria de Informática
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UNIDADE RESPONSÁVEL
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Coleção Gilberto Chateaubriand
Presidente do IBGE
Livro
Sumário
Eduardo Pereira Nunes
presidente IBGE
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editor/superintendente do Centro de Documentação e Disseminação de Informações - CDDI
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coordenação
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organização
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pesquisa iconográfica e roteiro de imagens
Aldo Victorio Filho
Marcos Balster Fiore Correia
gerência de criação
Ana Claudia Sodré
capa e abertura
Helga Szpiz
projeto gráfico
Gisela Ávila
Lecy Delfim
revisão de arte
Andreas Valentin
Fernando Mendonça
Marcelo Thadeu Rodrigues
Maria José Salles Manteiro
Mauro Emílio Araújo
Mônica Vieira Pantoja
Renato José Aguiar
Ronaldo Bainha
Ubiratã Oliveira dos Santos
diagramação e tratamento de imagem
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gerência editorial
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Cristina Ramos Carlos de Carvalho
José Luís Nicola
Kátia Domingos Vieira
Sueli Alves de Amorim
copidesque e revisão
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Sônia Gonçalves Rocha
diagramação e estruturação tabular
Lúcia Regina Dias Guimarães
gerência de promoção e publicidade
Aglaia Tavares
Marcelo Mendonça de Sá
Rose Barros
assessoria da coordenação
Sônia Regina Allevato
gerência de documentação
Pesquisa
OS AUTORES
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Paulo e no sul do País. A história dos alemães é parecida, embora mais apegada
às colônias agrícolas relativamente autônomas do sul e menos “abrasileiradas”
do que a dos imigrantes italianos. Uns e outros passaram pelas agruras da II
Guerra, depois de muitos deles terem aderido de coração ao nazi-fascismo em
país que custou a se decidir de que lado ficaria no conflito mundial.
Entre os imigrantes árabes predominaram, não os muçulmanos, como
alguns supõem, mas cristãos, parte ortodoxa, parte católica. Imigração não
estimulada por políticas colonizatórias, como no caso germânico ou italiano, e
que se dirigiu sobretudo para as cidades, notadamente São Paulo. Dela saíram
“mascates”, depois empresários de porte, finalmente políticos de peso. É, como
diz o título do artigo, “um certo oriente” no Brasil: um “oriente” que já veio
meio “ocidentalizado”, em vários aspectos, sem perder a marca “árabe” de
nação, por mais que se diga o contrário.
O autêntico extremo-oriente exemplificamos com os japoneses, que
para o Brasil vieram no limiar do Século XX no esteio das políticas imigratórias.
É migração que reproduz, em parte, a história dos colonos da cafeicultura,
como em Gaijin. Frustraram-se muito, por décadas, integrando-se ao País
com o tempo, sem perder, porém, suas identidades de “nação”. Vivenciaram,
também, os dilemas da II Guerra e brigaram entre si, depois de 1945, porque
uns aceitavam a derrota, mas outros não podiam crer na capitulação do Império
nipônico, ainda que Hiroshima e Nagasaki estivessem sob a poeira atômica da
bomba nuclear. Ultimamente acalentam, alguns, o sonho de retornar à terra
do verdadeiro “sol nascente”, de que o Brasil chegou a ser edênica miragem.
Fizemos, pois, algumas escolhas e, portanto, diversas renúncias.
Renunciamos aos “eslavos”, e com isto à enormidade de russos, poloneses,
lituanos e outros que, cada um com sua bagagem cultural, língua e mores,
vieram para o Brasil. Ortodoxos, uns, como os russos, que no Rio de Janeiro,
por exemplo, mantêm suas igrejas e patriarcas. Católicos, outros, como os
poloneses, muito fortes no Paraná, por exemplo, onde apesar de “abrasileirados”,
reproduzem rivalidades históricas com os alemães, herança de tempos idos,
dos conflitos do “corredor polonês”, da disputa por Dantzig. Renunciamos
aos chineses, os da China continental e os de Formosa, grupos rivais, ambos
numerosos no Rio e, sobretudo, em São Paulo. Renunciamos aos turcos, por
vezes erroneamente confundidos com os “árabes”. Renunciamos, enfim, a
muitas “nações”.
Mas, entre escolhas e renúncias, vale dizer que todos os grupos
examinados se tornaram brasileiros, sem perder sua marca original. Procuramos
mostrar neste livro, entre textos e imagens, as oscilações de identidade: de um
lado, a brasilidade; de outro, a Deutschtum e a italianità, as africanidades dos
santos e orixás, a nostalgia galega, a cultura nissei, a sírio-libanesa, o mundo
das sinagogas brasileiras, os portugueses que nos legaram a “língua pátria”,
os indígenas - que viraram pouquíssimos, mas juntamente com os africanos,
moldaram, há séculos, o que viria a ser o Brasil.
De todo modo, é caso de insistir: são todos brasileiros, neutralizando
a autêntica “Babel cultural” que caracterizou a formação histórica do Brasil,
em termos de línguas, costumes e crenças. E nisto o Brasil se diferencia
muito dos Estados Unidos, país em que as minorias e microminorias têm
suas identidades e direitos reconhecidos em grande parte porque o modelo
anglo-saxão e protestante buscou desde cedo impor sua hegemonia. No Brasil,
sociedade “amolengada”, como diria Freyre, ou “cordial”, como dela disse
Sérgio Buarque, as coisas se passaram de outro modo. Conflitos, massacres
e chacinas nunca faltaram à nossa história, é certo, mas a “Babel cultural”
cedeu lugar - não resta dúvida - ao abrasileiramento. Abrasileiramento com
frágil consciência de “nação” e formado por múltiplas nações. Um “mistério do
próspero” no espelho, cuja decifração desafia o próximo milênio.
Ronaldo Vainfas
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Cenário do
encontro de povos
a construção do território
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Cenário do
encontro de povos
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a construção do território
A vasta dimensão territorial imaginário do maravilhoso medieval com as
novidades técnicas náuticas que impulsionaram
do Brasil e a fertilidade de seu a aventura da expansão marítima. O próprio
solo são sempre tratadas nome Brasil, apesar de resultante de nossa
primeira mercadoria comercializada com os
como sinais da potencialidade da riqueza europeus – o pau-brasil – foi objeto de
nacional, ainda em grande parte inexplorada. especulações, pois pensava-se que os
Essa potencialidade é ainda mais enfatizada portugueses poderiam ter chegado à fantástica
quando se pretende aludir às características “ilha Brazil”, antiga ilha de São Brandão, monge
naturais que há muito tornaram o Brasil “o País irlandês do Século VI que navegara em busca do
do futuro”, com terra farta e rica, clima ameno Paraíso Terreal. Para o historiador Jaime
e povo “cordial”, ingredientes raros e tão bem Cortesão, a concepção da “ilha Brazil” para os
contemplados pela natureza. Mas, apesar de portugueses foi uma espécie de “mito
a extensão continental do Brasil ser há muito geopolítico” ao qual se agregou a força do apelo
considerada um dado “natural”, a conformação comercial da madeira de cor abrasada que
territorial que hoje conhecemos foi antes uma terminou por cunhar o nome do novo território
lenta, longa e difícil construção, tecida ao longo alcançado pelos portugueses.
de cinco séculos de história.
A legitimidade do domínio português sobre
Essa construção deu-se, fundamentalmente, as terras encontradas por Pedro Álvares Cabral
através de duas estratégias diferentes, mas fora estabelecida pelo célebre Tratado de
complementares: a conquista territorial e as Tordesilhas, de 1494. Mas, apesar da
negociações diplomáticas. Esses dois aspectos da proximidade das datas, o que permitiu que se
tomada de posse e ocupação do território do que especulasse que Portugal já sabia da existência
viria a ser o Brasil podem ser observados desde o das terras brasílicas antes mesmo da expedição
momento inaugural da chegada dos portugueses cabralina, o direito de posse de Portugal sobre
a nossa costa, no alvorecer do Século XVI, a faixa de terra onde se encontrava o Brasil foi
quando as viagens ultramarinas conjugavam o produto das crescentes rivalidades entre
Portugal e Espanha pelas novas terras
conquistadas no Novo Mundo, desde a segunda
metade do Século XV. A supremacia portuguesa
Pierre Descelliers
Parte americana do planisfério feito em nessa disputa fora posta em causa pela bula
Arques (França) - 1546 Inter coeterea, de 1493, que concedia à Espanha
Mapoteca do Itamaraty a posse das terras “descobertas ou por
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atlântico de suas terras americanas e assim experiências portuguesas na África e na Ásia, e No caso do Brasil, segundo Capistrano de Abreu,
foram doadas 14 donatarias, com 50 ou 100 lé- que procurava afirmar a presença de Portugal, a União Ibérica, nome pelo qual a
guas de costa cada uma, entre 1534 e 1536, para contendo os ataques que vinham do mar e, anexação de Portugal foi chamada pelos
promover a ocupação do Brasil. sobretudo, as alianças dos que passaram a ser espanhóis, cumpriu o importante papel de diluir
Os donatários das primeiras capitanias considerados “invasores” com os que já as fronteiras estabelecidas pelo Tratado de
pertenciam, majoritariamente, a uma nobreza de habitavam as terras ocupadas - no caso do Brasil, Tordesilhas, expandindo, na prática, os limites
funções que se destacara no serviço da os franceses e os nativos, respectivamente. territoriais tanto ao norte, com a conquista
Coroa, seja como funcionários, seja nas As feitorias eram verdadeiros enclaves litorâneos, efetiva do Maranhão, como ao sul, alargando a
navegações e atividades militares. Mas, apesar que cumpriam funções comerciais, militares e até fronteira na região P latina.
de hereditárias, as capitanias não eram diplomáticas. Mas, ao contrário da Espanha, que
Data também do período filipino o início
propriedade absoluta dos donatários, já que a estruturou a ocupação e colonização de sua parte
da expansão territorial para o interior, datando
legítima propriedade das terras era atributo do na América a partir de cidades planejadas, os
de 1580 a organização das primeiras expedições
Estado. Hereditário era sobretudo o poder do portugueses, como já apontou Sérgio Buarque de
dos bandeirantes em São Paulo. Essa frente de
donatário de administrar a capitania como Holanda, ficaram na costa, dando um caráter de expansão territorial para os “sertões” – palavra
conquista ultramarina do Estado português. improviso aos primeiros momentos da então usada para aludir ao interior, às matas
Além de receber terras em benefício próprio, ao história colonial. indômitas, ao hinterland, enfim – prolongou-se
donatário era permitida a concessão de por todo o período da dominação espanhola.
Com o estabelecimento do primeiro
sesmarias aos que quisessem se estabelecer e Data de 1585 a primeira grande bandeira para
Governo Geral, em 1549, confiado a Tomé de
cultivar a terra, havendo um prazo para o captura e escravização de índios no sertão dos
Sousa, teve início o esboço de uma organização
cumprimento do compromisso de torná-la Carijós, comandada por Jerônimo Leitão, luta
administrativa mais centralizada no Brasil,
produtiva. A adoção desse regime longe esteve que levaria à ocupação gradativa do interior do
ano em que foi fundada a cidade de Salvador e
de solucionar a questão da ocupação e Brasil e ao alargamento da faixa litorânea
chegaram os primeiros padres da Companhia
colonização do Brasil, pois não foram poucas as ocupada pelos portugueses no início do Século
de Jesus, que cumpririam importante papel
capitanias que fracassaram diante dos assaltos XVI. Dessa conjuntura foram, dentre outras, a
no apaziguamento das resistências indígenas à
indígenas e da falta de proteção aos ataques conquista da Paraíba, em 1584; as guerras
colonização portuguesa.
estrangeiros. Mas não há dúvida de que foi travadas contra os índios no norte da Bahia,
através desse sistema de capitanias que os Pode-se dizer que nosso primeiro século se atual Sergipe, em 1589; a bandeira a Goiás, em
primeiros núcleos de ocupação e colonização caracterizou pela efetiva conquista portuguesa 1592; as primeiras incursões dos bandeirantes
portuguesa do Brasil foram estabelecidos, a da costa brasílica, sobretudo diante dos franceses paulistas à região de Minas Gerais, em 1596;
exemplo de São Vicente, concedida a Martim que, embora freqüentassem a costa desde 1504, e a bandeira apresadora de índios na região
Afonso de Sousa, em 1532, e de Pernambuco, ano da expedição de Palmier de Gonneville a do baixo Paraná, em 1604. A metrópole, agora
base da economia açucareira então iniciada, Santa Catarina, por exemplo, tiveram sua mais dirigida pelos espanhóis e apoiando o patrocínio
concedida a Duarte Coelho, em 1534. estruturada investida em fins de 1555. Liderados particular às incursões exploratórias de novos
por Nicolau Durand de Villegaignon, fundaram territórios e rios, alargava as fronteiras e
A confirmar o caráter de conquista
uma colônia na Ilha da Guanabara, no Rio de invadia o interior da colônia brasileira,
presente nos primeiros tempos da colonização,
Janeiro, dando corpo ao projeto da “França redesenhando os limites que separavam os dois
deve-se mencionar o estilo feitorial de ocupa-
Antártica”, com forte apoio dos índios Tamoio, países ibéricos.
ção do Brasil, “estilo” aliás herdado de outras
destruído pela reação militar luso-tupiniquim
Mas, se a união das duas Coroas levou à
ordenada por Mem de Sá, em 1560.
adoção de um padrão hispânico de
O período da dominação espanhola em administração colonial, mais interiorizado e
Portugal (1580-1640) deu nova feição ao estilo mesmo planejado, a presença dos espanhóis no
Pierre Descelliers
A América do Sul no planisfério de colonização, conferindo característica mais comando do reino português tornou seus
feito em Arques (França) - 1550 hispânica que propriamente portuguesa à espaços coloniais mais vulneráveis aos ataques
Mapoteca do Itamaraty administração dos espaços do ultramar. dos inimigos do projeto imperial de Espanha.
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o sertão do Espírito Santo (1664), o Piauí, efetiva da Coroa na região de Minas Gerais, que Em 1704, os espanhóis voltaram a atacar a
Tocantins, Amazonas e Belém (1673). separou Minas da capitania do Rio de Janeiro e Colônia do Sacramento, que se manteve
O território do Brasil espalhava-se ao Norte e a criou a capitania de São Paulo, em substituição ocupada, apesar de o Tratado de Utrech, de
Centro-Oeste, aumentando ainda o à de São Vicente. A fase da mineração destacou- 1715, ter restituído a Portugal a posse sobre
conhecimento sobre os rios e o relevo das se ainda pela compra, por parte da Coroa, de o território. Em 1717, a questão da Colônia
regiões conquistadas. A divisão do Brasil em várias capitanias, como a de São Vicente (1710),
de Sacramento foi retomada, mas só resolvida
dois estados seria abolida em 1652, mas Pernambuco (1716) e Espírito Santo (1718),
pelo Tratado de Madrid, de 1750. Este tratado
restaurada dois anos depois com a criação do dando nova feição à administração portuguesa
redefiniu as fronteiras entre as Américas
Estado do Maranhão e Grão-Pará. na colônia, mais presente, mais burocratizada
Portuguesa e Espanhola, alteradas dessa vez
e interiorizada. A necessidade crescente de
O fim das guerras de Restauração, em abastecimento na região das Minas, provocada por via diplomática, revogando o estabelecido
1668, não deu fim às hostilidades entre os dois pelo afluxo de população em busca de riquezas, no Tratado de Tordesilhas. Para essa
países ibéricos. A abolição, na prática, dos contribuiu ainda para a expansão do Brasil em redefinição foi decisiva a participação de
limites estabelecidos em Tordesilhas, durante direção ao Rio Grande, fomentando a criação de Alexandre de Gusmão, acadêmico e diplomata
o período da dominação espanhola, tornar-se-ia gado e rebanhos de todo tipo. da corte de D. João V, que inovou nos métodos
um problema a partir da segunda metade do
Século XVII. Em 1679 os castelhanos atacaram
o sul da colônia, às margens do rio da Prata,
futura Colônia do Sacramento, capitania real
criada em 1680. No ano seguinte tropas
espanholas destruíram a Colônia, território
português reconhecido pelo Tratado de Lisboa,
em 1681, incorporado ao Estado do Brasil em
1682. As relações diplomáticas ganhavam peso e
passavam a redefinir os novos limites
territoriais brasileiros.
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mudanças nas relações entre a colônia e a até que, em 1815, o Brasil foi elevado à Com a independência, proclamada em 1822,
Metrópole, mudanças que acabariam dando corpo categoria de Reino Unido a Portugal e Algarves, o território brasileiro manteve-se integrado,
à independência do Brasil, pouco tempo depois. sede tropical do império português. apesar das revoltas locais que agitaram os
primeiros tempos de nossa autonomia política.
Para a agudização desse processo, Foi em meio a essa conjuntura que se
Mantinha-se ainda, no entanto, um enorme
reprimido no final do Século XVIII e mantido iniciaram as negociações diplomáticas com as
desconhecimento do verdadeiro tamanho do
o território colonial íntegro, foi fundamental a Províncias Unidas do Rio da Prata pelos limites
território brasileiro, de suas riquezas e de sua
transferência da família real portuguesa para territoriais do sul do Brasil. A região em questão
história. Com o objetivo de dar sustentação ao
o Brasil, em 1808, no contexto da expansão era a Banda Oriental, futura Província
projeto de construção do novo Estado que se
napoleônica na Europa. A mudança da Corte Cisplatina, invadida pelos portugueses em 1816-
formava, foi criado o Instituto Histórico e
para o Brasil aprofundou o que Maria Odila 1817 e incorporada ao Reino do Brasil, em 1821,
Geográfico Brasileiro - IHGB -, em 1838.
Silva Dias chamou de “interiorização da até se tornar província independente, em 1828,
O IHGB tinha, dentre as temáticas pesquisadas,
metrópole”, pois com a chegada do príncipe fazendo fronteira com o Rio Grande do Sul.
uma dedicada às viagens e explorações científicas
regente D. João VI toda a estrutura da No extremo norte o Brasil perdeu a Guiana
pelo Brasil, com a finalidade de definir com
administração colonial foi alterada. Francesa, dominada pelas tropas luso-brasileiras
precisão os contornos físicos do novo País,
Transferiram-se para o Brasil as instituições em 1809, mas restituída à França por acordo,
elencar riquezas e potencialidades naturais,
que até então organizavam o Estado português, em 1817.
esquadrinhando os rios e a topografia das
regiões, concentrando-se, sobretudo, nas regiões
de fronteira, tendo em vista as integrações
econômica e política do novo Estado.
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desde meados do século e seria o principal os 26 estados que hoje formam o território
cenário do processo de industrialização do País. brasileiro.
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Referências Bibliográficas
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Mas a verdade é que a classificação tupi/ Quanto à origem desses povos, no período
tapuia não deixou de aproximar o colonizador Colonial foi assunto de total desconcerto e
português das lógicas nativas de nominação de polêmica, havendo desde quem os visse como
identidades culturais, permitindo-lhe divisar descendentes das tribos perdidas de Israel até
diferenças, contrastes entre grupos, esboçando-se os que duvidavam que fossem humanos.
uma espécie de proto-etnografia. Uma proto- Convencidos da humanidade integral dos
etnografia subordinada aos interesses da índios - proclamada, aliás, pelo papa Paulo III
colonização, porém, essencial para o futuro na Bula Veritas Ipsa, de 1537 -, os jesuítas
conhecimento das populações indígenas no Brasil. chegaram mesmo a especular se eles não
Sem a crônica colonial de portugueses, franceses e teriam sido outrora catequisados pelo Apóstolo
outros europeus, sem a correspondência jesuítica, Tomé, donde se originou o mito cristianizado
sem as gramáticas da “língua geral” e de outras de Sumé, resultado da confusão entre o Sumé
línguas, quase nada se poderia saber sobre os da mitologia heróica tupinambá e os anseios Gravura do livro de
nativos, suas culturas, sua história. apostólicos inacianos. Até rastrear as pegadas Claude Abbeville
Histoire de la mission des
Sistemas de classificação mais minuciosos do Sumé apóstolo, os jesuítas rastrearam, peres Capucins - 1614
surgiram, portanto, no próprio período Colonial, liderados por Manuel Nóbrega. Mas tudo isto Biblioteca Nacional
elaborados pelos que, de um modo ou de outro, pertence a um tempo em que a intuição
estavam empenhados em subjugar os índios. etnográfica, se assim podemos chamá-la, se
Subjugá-los por meio da guerra ou, mesclava com a militância religiosa e o
culturalmente, por meio da catequese, oscilando imaginário maravilhoso. Um tempo em que
o cativeiro entre esses dois pólos. Neste esforço eram tênues os limites entre o real e o
classificatório, os nativos foram identificados fantasioso, entre a história e a mirabilia.
como pertencentes a múltiplas “castas”,
Avançou-se muito, evidentemente, no
“gerações” e sobretudo nações, sendo nação
conhecimento sobre as origens do povoamento
palavra que, na época, era utilizada para
da América e sobre as correntes migratórias
designar o estrangeiro, o que se diferenciava pela
indígenas no que viria a ser o Brasil. Da
língua, costumes ou religião. Palavra que, até
pelo menos o Século XVIII, demarcava antes origem dos povos ameríndios, sabe-se hoje que
alteridades que identidades. Assim, os povos que foi proveniente da Ásia, entre 14 mil e 12 mil
falavam a “língua geral”, foram denominados, anos atrás, sendo corrente a hipótese de se ter
com diferentes grafias, de tupinambás, processado por via terrestre através de um
tupiniquins, potiguares, caetés, tamoios, “subcontinente” chamado Beríngia, na região
temiminós, etc. Em oposição ou à diferença deles, do estreito de Bhering, no extremo nordeste da
os “tapuias” também foram identificados como Ásia. Tratar-se-ia de uma extensa faixa de terra
aymorés, goitacazes, guaianás, kariris, etc. emergente após a última glaciação, a
Houve, decerto, muito engano e equívoco em qual, fazendo descer o nível do mar uns 50
várias dessas nominações, sobretudo em relação metros abaixo do atual, teria criado o espaço
aos ditos “tapuias”, o que a etnologia e a para a passagem a pé entre os dois
antropologia contemporâneas procuraram continentes. Não se descartam, porém,
corrigir. Mas a base para a identificação de hipóteses de travessia marítima através do
diferenças cultural e lingüística entre os povos próprio estreito de Bhering, bem como de
que habitavam o Brasil reside no que deles migrações oceânicas no Pacífico, originárias
registrou a documentação colonial, em da Polinésia, essas bem mais tardias
especial a missionária. e muito discutíveis.
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durante o Século XVII. No extremo sul, entre a fortes desta presença tupinambá no Maranhão,
Lagoa dos Patos e Cananéia, predominavam os Pará e médio Amazonas ao longo do Século
Carijó, na verdade uma ramificação guarani; XVII, mas trata-se, neste caso, de nova leva de
daí até Bertioga, no litoral paulista, migrações no sentido leste-oeste, já no contexto
incluindo o planalto de Piratininga, de colonização avançada.
predominavam os Tupiniquim; do
Os chamados “tapuias” são de muito mais
norte de São Paulo até Cabo Frio,
difícil identificação no período Colonial,
a terra era dos Tupinambá
pertencendo boa parte deles ao tronco
propriamente ditos, chamados de
lingüístico Jê ou a famílias lingüísticas
Tamoio nessa região, espalhados
independentes, além de menos controlados
ainda por boa parte do Vale do
pelos portugueses. Alguns deles se
Paraíba; os Temimino habitavam a
notabilizaram, no entanto, pela resistência aos
baía de Guanabara; entre o
portugueses, como foi o caso dos Aymoré,
Espírito Santo e o sul da Bahia
habitavam os Tupiniquim, e com posteriormente chamados de Botocudos, grupo
eles se encontrou a Armada de nômade que resistiu tenazmente à dominação
Cabral, em 1500; mais ao norte, portuguesa na Bahia, e somente ali foi
predominando no recôncavo derrotado no início do Século XVII. Foi também
baiano e estendendo-se até a foz o caso dos Goitacá ou Waitacá, baluarte da
do rio São Francisco, novamente resistência indígena no norte fluminense, atual
os Tupinambá, embora os “Campos dos Goitacazes”. Foi igualmente o
“sertões” do São Francisco fossem caso dos Janduí (grupo cuja nominação é bem
terras habitadas pelos Tupinaé; da incerta), “tapuias” que lutaram ao lado dos
Bahia à Paraíba predominavam os holandeses nas guerras pernambucanas do
Kaeté ou Potiguar, espalhados do Século XVII. Foi, enfim, o caso dos Kariri ou Ki-
extremo nordeste da costa até o riri, grupo disperso pelo sertão nordestino que,
Ceará, embora ali houvesse também entre outros feitos, enfrentou os
os Tabajara. Ainda no Século portugueses juntamente com outros “tapuias”,
XVI, há indícios da presença de na famosa “Guerra dos Bárbaros”, travada nas
nativos tupinambás na região partes do Ceará e Maranhão, entre fins do
Amazônica, a confiarmos em Século XVII e inícios do XVIII.
certo relato do dominicano
Se os costumes dos tapuias foram menos
Carvajal, capelão da expedição de
registrados no período Colonial, sendo eles
Orellana ao “País da Canela”, em
tratados como o exemplo máximo da barbárie
1540. Os indícios tornam-se mais
e selvageria dos “brasis”, o mesmo não ocorreu
com os Tupi ou Tupinambá, utilizando-se, aqui,
o etnônimo mais usual na bibliografia
especializada. Não que o epíteto de “bárbaro”
não fosse utilizado pelos colonizadores para
qualificá-los, sobretudo por conta do
Índios Tupinambás Guerreiros
Gravura do livro de Jean de Léry canibalismo e nas ocasiões em que se rebelavam
Histoire d’une voyage... contra os portugueses - e foram muitas.
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No entanto, foi entre os Tupinambá que pôde
Biblioteca Nacional
prosperar a catequese com maior vigor; foi
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dentre eles que se forjaram as principais portanto, uma certa “gerontocracia” quanto tupinambás - malocas cujo número oscilava
alianças luso-indígenas; e eram eles, afinal, que à posse das mulheres, fortalecendo a posição entre 6 a 8 por “tribo” e cuja população de
predominavam no litoral em 1500, desdobrados dos guerreiros mais velhos e experientes. habitantes, em cada uma delas, girava em
em várias “castas” ou “nações”, vitoriosos que Eram eles que costumavam chefiar as torno de 200 indivíduos, mas podia atingir até
foram nas lutas contra os diversos grupos malocas, os “lares políginos” de que se 600, como observou o francês Jean de Léry,
“tapuias”, os antigos senhores do litoral. compunham os grupos locais ou “tribos” no Século XVI.
Os Tupinambá, por tudo isso, foram melhor
descritos na documentação colonial e assim são
Glauco Rodrigues
mais conhecidos. Domingo de Pascoela, 26 de Abril de 1500 - 1971
Tinta acrílica sobre tela colada sobre madeira - 81 x 100cm
Os Tupinambá viviam da caça, coleta,
Coleção Gilberto Chateaubriand - MAM-RJ
pesca e praticavam a agricultura, sobretudo de
tubérculos, como a mandioca, e a horticultura.
Havia divisão de trabalho por sexo, cabendo aos
homens as primeiras atividades e às mulheres o
trabalho agrícola, exceto a abertura das
clareiras para plantar, feita à base da
“queimada”, tarefa essencialmente masculina.
O plantio e a colheita, o preparo das comidas e o
artesanato (confecção de vasos de argila, redes,
etc.) era trabalho feminino. Instrumentos de
guerra - arcos e flechas, maças, lanças - faziam-
nos os homens. Os artefatos de guerra ou de
trabalho eram de madeira e pedra, e desta
última eram inclusive os machados com que
cortavam madeira para vários fins.
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durante as primeiras décadas do Século XVI, Para este autêntico desastre demográfico
tempo em que prevaleceu o escambo do pau- contribuíram decerto a exacerbação das guerras
brasil por diversas mercadorias européias. e do cativeiro. Mas a própria catequese jogou
Em troca de cortar e carregar as toras da ma- papel decisivo no “despovoamento tupinambá”
deira tintorial que tanto interessavam aos do litoral, e não apenas porque buscava
portugueses e franceses, os nativos recebiam erradicar a identidade cultural dos nativos por
não apenas quinquilharias, miçangas coloridas meio do catolicismo, mas sobretudo em função de
e espelhos, mas instrumentos de ferro, a serem os aldeamentos erigidos nas cercanias
exemplo de machados, espadas, facões e até dos engenhos e vilas coloniais. As missões jesuí-
armas de fogo. No plano da cultura material, ticas se tornaram, muitas vezes, um
algumas modificações sensíveis se fizeram preâmbulo da escravização e um viveiro de
notar, portanto, quer no tocante à epidemias. Principalmente a varíola, em ondas
produtividade do trabalho no corte das sucessivas a partir da década de 1560, dizimou
árvores, quer no tocante ao instrumental
bélico. Os nativos ficariam cada vez mais
dependentes desses artefatos, sobretudo os de
guerra, mas conservaram no geral sua
identidade, tradições e costumes.
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Biblioteca Nacional
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Ronaldo Vainfas
Índio Iuri
Atlas zur Reise in
Brasilien von Dr. V. Spix
und Dr. V. Martius
IBGE
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História indígena: 500 anos de despovoamento
Males, morada dos ancestrais, terra de nas umbandas e macumbas cariocas, por
abundância e imortalidade no imaginário desta exemplo. As culturas indígenas foram, assim,
cultura nativa, afastando-se do litoral no rumo decisivas na formação da cultura brasileira, não
dos “sertões” - invertendo, assim, o sentido da apenas em certos aspectos da religiosidade, mas
migração que outrora caracterizara o em vários outros destacados por Gilberto
povoamento Tupi nas terras brasílicas. Tratou- Freyre no clássico Casa-Grande e Senzala
se, neste caso, de movimentos migratórios de (1933): a cunhã, mulher e mãe tupinambá; a
forte base religiosa, com nítidos traços higiene pessoal; o milho, o caju e vários hábitos
milenaristas ou messiânicos, e não raro dotados alimentares; o óleo de coco para o cabelo, a
de morfologia híbrida, meio-católica, meio- rede... A toponímia brasileira é, em boa parte,
indígena, uma vez que várias lideranças nativas indígena, em diversas regiões, e foram mesmo
desses movimentos haviam já passado pela os índios os principais responsáveis pelo
catequese ou tinham mesmo nascido nos alargamento das fronteiras territoriais da
aldeamentos jesuíticos. Os portugueses América Portuguesa. Foram-no, senão
chamariam tais movimentos de “santidades”, diretamente, nas hostes de “frecheiros” que
deixando delas inúmeros registros valiosos. seguiam os bandeirantes, com certeza na figura
dos mamelucos. Filhos de índia com português
A mais importante delas ocorreu na
ou “mazombo”, eram eles homens de lealdades
década de 1580, nos sertões de Jaguaripe, ao sul
oscilantes, que ora viviam entre os índios, nus,
do recôncavo baiano, e sua grande originalidade
pintados e guerreiros, ora se bandeavam para o
residiu na forte mescla entre as crenças e ritos
colonialismo, transmutados em bandeirantes a
indígena e católico, além de ter caído na
cativar nativos.
armadilha de um senhor de engenho local que,
prometendo aos índios “liberdade religiosa” em Mamelucos à parte, o fato é que, por maior
suas terras, atraiu os nativos para o engenho que tenha sido o flagelo indígena no período
de Jaguaripe. O líder desta Santidade, um índio Colonial e tenaz sua resistência em várias
batizado Antônio pelos jesuítas, fugira de um frentes, seria enorme simplismo “vitimizar” os
aldeamento inaciano para se proclamar o indígenas com complacência ou de “heroificá-los”
próprio ancestral Tamandaré, ao mesmo tempo com idealismo ingênuo, sob risco de distorcer a
em que dizia ser o verdadeiro Papa. Nomeava história e ocultar a cadeia de cumplicidades que
bispos e santos, entre os principais do marcou a colonização portuguesa. É vastíssima a
movimento, a exemplo de São Paulo e São Luís, lista de lideranças indígenas que conduziram
e sua principal esposa era uma índia intitulada seus grupos a alianças com os colonizadores,
Santa Maria Mãe de Deus. Caindo na armadilha escoltando-os nos “sertões” com flecheiros,
do senhor de engenho de Jaguaripe, esta combatendo “nações” rebeldes ou hostis aos
“Santidade” seria destruída em 1585, por ordens portugueses, guerreando contra os rivais
do governador geral. europeus da colonização lusitana.
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História indígena: 500 anos de despovoamento
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Ronaldo Vainfas
por reformas significativas dirigidas pelo minis- estatutos de “limpeza de sangue” portugueses
tro Marquês de Pombal. Reformas que faziam pesar sobre a descendência indígena,
previam, em grande medida, a secularização do entre outras.
Estado e da administração pública, inclusive
Mas na prática, os índios convertidos à
nas colônias. Foi neste contexto que os jesuítas
“civilização” não encontraram e nem tiveram a
foram expulsos da América Portuguesa e que se
vida facilitada, concebidos como mão-de-obra e
instituiu o Diretório, a nova política indígena
súditos de segunda classe. A reforma enfatizava
que, não obstante as mudanças que iria sofrer
o objetivo de transformar as comunidades
no Século XIX, marcaria profundamente a
indígenas em exército de trabalhadores. Com a
relação do Estado com as populações indígenas
implementação dessas diretrizes, acelerou-se o
após a independência.
processo de perda de identidade cultural e de
Em 1755, D. José I aprovou o Directorio, população, acelerada por inúmeras epidemias
que se deve observar nas povoações dos índios na Amazônia, entre fins do Século XVIII e
do Pará e Maranhão, efetivado em 1757 e inícios do XIX. O Diretório seria abolido,
estendido para toda a América Portuguesa em em 1798, mas seu espírito integrador do índio
1758. Proibia definitivamente a escravidão através do trabalho e da “civilização”
indígena, abolia a tutela das ordens religiosas conservaria sua força na legislação do Império
das aldeias e proclamava os nativos vassalos brasileiro.
livres da Coroa portuguesa. Por meio dele, a
As populações indígenas do Brasil iriam
Coroa planejava, com o auxílio dos novos
adentrar o Século XIX em condições
vassalos, preservar as fronteiras, incrementar e
lamentáveis. Demograficamente depauperadas,
diversificar a agricultura e converter os índios
exploradas sob várias formas de servidão,
em mão-de-obra disciplinada para as frentes de
embora a escravidão fosse legalmente proibida.
expansão colonial, sobretudo na região
Ora concentradas em aldeamentos, que
Amazônica. Cada povoação teria o seu diretor,
abrigavam grupos e etnias distintos, ora
nomeado pelo governador e capitão-geral do
conservando alguma identidade nos refúgios de
Estado. A língua portuguesa tornava-se
florestas indômitas. Vítimas, por vezes, de
obrigatória, os ritos e crenças indígenas
guerras de tipo colonial, como a desencadeada
consideradas práticas condenáveis, a bigamia
por D. João, Príncipe Regente, que mal chegado
perseguida e os casamentos mistos
ao Brasil, em 1808, moveu guerra contra os
incentivados. Os índios seriam incluídos na
ditos “Botocudos”, no vale do rio Doce, no
“civilização” por intermédio da agricultura,
Espírito Santo, e nos campos de Garapuava, no
comercialização de produtos agrícolas e
Paraná. Avançou, por esta época, uma Índios botocudos
pagamento de tributos. Complementarmente, o
nomenclatura mais simplificada que a dos Foto de Walter Garbe - 1909
Alvará de 4 de abril de 1755 estabeleceu que os
séculos anteriores para designar as populações Biblioteca Nacional
portugueses que se casassem com índias não
nativas: indíos mansos, isto é, controlados, e
perderiam seus privilégios, nem cairiam em
índios bravos, a saber, hostis ou “imersos no
infâmia, antes seriam preferidos nas terras
estado de barbárie”.
onde se estabelecessem com a família. Aboliu-se,
assim, juridicamente, a distinção entre Após a independência, a política imperial
brancos e índios, possibilitando aos últimos iria, em vários aspectos, retomar o Diretório
atuarem como juizes ordinários, vereadores e pombalino, sobretudo quanto à integração dos
ocupar outros postos honoríficos, o que índios no mercado de trabalho e à adoção de
implicou a supressão da “nódoa” que os “políticas civilizatórias”. Dentre os primeiros
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Anita Malfatti
Índia - 1917
Pastel - 37 x 18cm
Museu de Arte Moderna - RJ
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História indígena: 500 anos de despovoamento
Rubens Gerchman
Gnosis - 1973
Técnica mista - 69 x 52cm
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coronel Cândido Rondon, militar de carreira Trata-se de assunto controvertido, que não
que servira sob as ordens de Hermes da excluiu a tutela militar sobre a “reserva”,
Fonseca. A tutela militar dos índios pelo apesar de contar com o trabalho de Orlando
Estado se afirmaria, então, por meio do ideal do Villas-Boas, gestor do Parque. Implantou-se,
“soldado-cidadão”, em especial o engenheiro- porém, com o Parque do Xingu, um novo
militar, como o agente indicado para demarcar modelo em que considerável extensão de terras
os territórios indígenas e “civilizar os que seria atribuída aos grupos indígenas a partir de
estivessem à margem da Nação”. “direitos imemoriais” passíveis de
reconhecimento legal e demarcação física.
Com a Revolução de 1930, o SPI,
originalmente subordinado ao Ministério da O SPI seria extinto em 1967, sendo
Agricultura, Indústria e Comércio, acabaria substituído pela Fundação Nacional do Índio, a
transferido para o recém-criado Ministério do FUNAI, que manteve a tutela estatal sobre as
Trabalho, Indústria e Comércio, e pouco depois populações indígenas, transferindo suas terras
para o Ministério da Guerra. No Regulamento para o Estado. Avançou, porém, o sistema de
aprovado em 1936, afirmava-se a preocupação demarcação de terras de alguma forma
com a “nacionalização dos silvícolas” e a articulada ao conceito de etnias, resultado dos
intenção de integrá-los à Nação como “guardas maiores conhecimentos antropológicos
de fronteira”, reiterando-se a educação física, adquiridos sobre os índios nas décadas de 1950
agrícola, moral e cívica como a via indicada em diante. Os trabalhos dos Villas-Boas, de
para a mencionada “integração”. O Estado Claude Levi-Strauss, de Darcy Ribeiro e tantos
Novo, instaurado em 1937, iria acentuar tais outros jogaram papel decisivo na repercussão
propósitos, com ênfase na transformação do política de conceitos mais ligados à “etnicidade”
índio em trabalhador rural, tudo nos quadros dos grupos indígenas, superando-se pouco a
da “Marcha para o Oeste” propagandeada pelo pouco a noção genérica de índio, via de regra
Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP. estereotipada. Inúmeros processos de
Pertence a este contexto a ação articulada entre legalização e demarcação de terras indígenas
o SPI e a Fundação Brasil Central, que depois foram levados a cabo, no norte, nordeste,
se vincularia à Expedição Roncador-Xingu centro-oeste, sobretudo a partir do final da
- encarregada de “colonizar” vastas porções década de 1970. A Constituição de 1988
do território brasileiro no Mato Grosso, Goiás, reconheceu a organização social, as crenças,
Maranhão e partes de Minas. Muitos quadros línguas e tradições dos grupos indígenas,
da FBC, como os irmãos Villas-Boas, passariam garantindo-lhes a posse das terras
para o SPI realizando trabalho notável do ponto tradicionalmente ocupadas. Pode-se dizer que
de vista político e antropológico. triunfaram, politicamente, os conceitos ligados
à “etnicidade” e o reconhecimento das
A grande transformação ocorrida em finais
alteridades sobre as noções de “aculturação” ou
dos anos de 1940 e inícios dos de 1950 residiria
“civilização” - que pressupunham, na ação
na mudança no padrão de territorialidade relati-
política, a eliminação dos índios, ao menos do
va aos grupos indígenas. Se até então prevalecia
ponto de vista cultural.
um padrão fundiário implicitamente baseado na
atribuição de pequenas porções de terra em que Desnecessário lembrar as limitações deste
os índios, assentados como famílias nucleares, triunfo ou do reconhecimento das alteridades.
extrairiam sua subsistência básica, o quadro Inúmeros casos de conflitos de terra no interior
mudaria com o projeto do Parque do Xingu. do Brasil guardam relação com o problema
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Índios Ipaíma
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Referências bibliográficas
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Presença portuguesa
de colonizadores a imigrantes
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Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes
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As pesquisas a respeito do
processo migratório português
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indivíduos por ano. No ápice desse novo fluxo, Primeira Guerra Mundial, em que essa cifra
situado entre 1901 e 1930, a média de alcançou o astronômico índice de 76 mil
imigrantes ultrapassou a barreira dos 25 mil imigrantes anuais. A última etapa desse
por ano. Esse número, com algumas variações, processo, a de declínio, é ilustrada com dados
permaneceu elevado até os anos de 1960, referentes aos anos de 1981-1991, quando então
quando então – salvo no período do milagre identificamos médias inferiores a 500
econômico – é dado início a uma progressiva imigrantes por ano.
diminuição dos fluxos migratórios
No intuito de compreendermos as razões
internacionais para o Brasil.
dessas mudanças, é necessário levarmos em
Perante esse conjunto de informações e conta as transformações ocorridas em Portugal e
dados numéricos, podemos afirmar que, no no vasto império colonial lusitano. Na primeira
período de imigração restrita, o número médio fase, as crises cíclicas de subsistência, aliadas às
de portugueses que vieram anualmente para o constantes epidemias, faziam com que a
Brasil variou de 500 a 5 mil. No período população portuguesa – como a dos demais
denominado de transição, esse índice alcançou a reinos europeus da época – crescesse em ritmo
casa dos 10 mil, mas em seguida, declinou. bastante lento ou mesmo, em alguns períodos,
Já no período de imigração de massa, foram diminuísse em termos numéricos. Tal situação,
comuns médias superiores a 15 mil imigrantes, certamente, não estimulava o processo
havendo épocas, como ocorreu às vésperas da migratório. Além disso, nos Séculos XVI e XVII,
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Igreja do Carmo
Ouro Preto - MG
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Carlos Julião
Oficial de Cavalaria da Guarda dos Vice-Reis
Riscos Iluminados...
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Ao longo da fase de transição também é do reino. Assim, em 1801, enquanto em meia; eram minhotos que para sobreviver
observado um significativo aumento do Portugal era registrado um número médio dormiam na rua e procuravam ajuda de
número de imigrantes provenientes do norte de 33 habitantes por km2, no Minho havia instituições de caridade. A marca de sua pobreza
de Portugal. De acordo com Fernando de Souza 96 habitantes por km2. também podia ser percebida através do pequeno
e Jorge Fernando Alves (1997) e João Pedro número de pertences que traziam, geralmente
O noroeste português tornou-se, dessa
Ferro (1995), essa tendência decorria da desembarcavam dos navios com um pau às
maneira, uma fonte quase inesgotável de braços
revolução agrícola que ocorreu na região do costas, duas réstia de cebolas, e outras tantas de
para o trabalho, a maioria deles expulsa de sua
Minho durante o Século XVIII. Tal revolução alhos... e ... uma trouxinha de pano de linho
teve por base a generalização do cultivo do terra natal devido ao fato do sistema econômico
debaixo do braço.
milho, produto responsável, em fins do não conseguir absorvê-los. A época de transição
referido século, por 80% da produção local de é, portanto, aquela que convive com um número Contudo, se tivermos em mente os dados da
cereais, e cuja produtividade era três vezes crescente de imigrantes minhotos e pobres. Tabela 1, podemos suspeitar da exclusividade
superior à do trigo. Dessa maneira, pôde-se Raimundo da Cunha Mattos, na época da desse grupo nesta fase. Mesmo nos anos em que
obter uma substancial melhoria na dieta da po- Independência, traça um perfil um tanto o número de imigrantes foi elevado, não parece
pulação local, com resultados bastante positivos caricatural, mas nem por isso pouco revelador, ter havido predomínio de pobres. Tal situação,
nos índices de expectativa de vida. Melhor ali- desse grupo. Segundo o referido autor, o diga-se de passagem, tinha importantes
mentada e apresentando taxas de mortalidade português pobre, ao desembarcar nos portos implicações. Uma delas diz respeito ao fato de o
em declínio, a população minhota setecentista brasileiros, era imediatamente reconhecido por noroeste português ser constituído por pequenas
se reproduziu num ritmo mais elevado sua polaina de saragoça, igual de vestia e calção, propriedades que desconheciam o trabalho
do que as médias comuns ao conjunto colete de baetão encarnado com seus corações e escravo. Para os ricos emigrantes dessa região, a
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Ora, em vários países, o processo de direitos camponeses herdados da época feudal. importantes: as mulheres que, de acordo com
industrialização permitiu que essa população Esse conjunto de medidas leva a uma Russell-Wood (op. cit.), no início da colonização
excedente fosse absorvida no meio urbano. progressiva diminuição dos padrões de vida dos constituíam 1 a 2% dos emigrantes, passam a
Isso, porém, sabidamente, não ocorreu em pequenos proprietários rurais, gerando assim representar fatias cada vez maiores dos grupos
Portugal. Para complicar ainda mais a novos candidatos à imigração. O aumento que atravessavam o Atlântico. Ao mesmo
situação, várias áreas do meio rural português dessa população foi de tal ordem que permitiu tempo, crianças menores de 14 anos pobres,
sofreram, na década de 1850, um processo de um significativo fluxo rumo aos Estados órfãs ou abandonadas, chegam a representar
modernização capitalista. Por essa época Unidos e, posteriormente, em direção à África. 20% do total de imigrados.
ocorre a mecanização de algumas atividades Durante esse período, o perfil do imigrante A comparação desse período com os
agrícolas, e, na década seguinte, com a sofre uma radical transformação, predominando anteriores também contribui para a
restrição ao livre uso de pastos e terrenos agora o de origem pobre. Nessa mesma época compreensão de certos aspectos socioculturais
baldios, são abolidos os últimos vestígios de observam-se outras modificações igualmente cruciais. Assim, podemos indagar em que
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medida a emigração, até meados do Século nova imagem do antigo colonizador, uma
XIX, teria contribuído, em Portugal, para a imagem negativa que, de maneira
manutenção de modelos culturais preconceituosa, estigmatizava o português
conservadores. Uma vez que, nos primeiros enquanto um indivíduo intelectualmente pouco
tempos, a sociedade metropolitana furtava-se qualificado. Quanto a isso, não deixa de ser
de um capital cultural fundamental, aquele dos sintomático o fato de que, na segunda metade
alfabetizados. Outro efeito perverso da do Século XIX, começam a ser registrados livros
emigração, conforme sublinhou Mírian de anedotas, como o de Júlio Campina, que
Halpern Pereira (1981), foi a diminuição do ní- equiparavam os portugueses aos iletrados
vel de conflitos sociais, contribuindo para que o caboclos, operando, assim, uma sutil crítica à
poder permanecesse nas mãos de grupos agrário herança colonial.
e comerciail tradicionais. Além disso, através
Foi somente na década de 1930 que
das remessas monetárias dos
começam a ser registrados os primeiros sinais
Joaquim José Codina imigrantes, e da conseqüente importação de
de declínio do secular fluxo migratório lusitano
Cachoeira e Arraial do rio Ixiê produtos do estrangeiro, acentuou-se a
Alexandre Rodrigues Ferreira para o Brasil. Sem dúvida, contribuiu para isso
desnacionalização da economia e dependência
Viagem Filosófica (1783-1792) a crise econômica internacional, e a
Biblioteca Nacional
externa por parte de Portugal.
conseqüente política brasileira de proteger o
No Brasil, a imigração, com certeza, mercado de trabalho nacional que, entre 1929 e
também teve efeitos importantes. Um deles, 1931, levou o número de imigrantes
ainda muito pouco estudado, diz respeito a sua portugueses a declinar de 38 779 para 8 152.
relação com o processo de formação da Durante a Segunda Guerra Mundial outras
identidade nacional. É bastante conhecido o circunstâncias negativas colaboraram ainda
fato de que, em meados do Século XIX, o debate mais para a diminuição da imigração.
intelectual brasileiro foi dominado por questões A suspensão de viagens atlânticas foi uma delas.
referentes à nacionalidade. Ora, o surgimento, No ano de 1943, por exemplo, foram registrados
nas principais cidades, de uma camada de apenas 146 imigrantes. Na década de 1950,
portugueses pobres, em grande parte porém, observamos o ressurgimento de breve
analfabetos, provenientes do meio rural, deve fluxo de imigração portuguesa, cujo declínio se
ter contribuído para a cristalização de uma deu nos anos de 1960.
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Nesse período, Portugal já apresentava um Contudo, o processo de declínio dos fluxos 25 mil portugueses, média semelhante, ou supe-
desenvolvimento industrial capaz de absorver migratórios em direção ao Brasil esteve longe rior, a do período de migração de massa.
parte do contingente populacional não de ser linear. Em fins da década de 1960 e início
Apesar desses números serem impressio-
empregado na agricultura ou no comércio. da de 1970, as guerras de descolonização na nantes, é importante sublinhar que o novo gru-
Em segundo lugar, cabe lembrar que, em razão África e os conflitos políticos internos a po de estrangeiros não criou raízes. A natureza
da difusão de técnicas de controle da natalidade, Portugal, associados às perspectivas abertas ilusória do milagre econômico ganha visibilidade
observou-se um progressivo envelhecimento pelo “milagre econômico” brasileiro, quando se compara o índice de retorno desse
demográfico da população portuguesa. alimentaram uma retomada dos movimentos último período com os anteriores. As cifras de
Por último, a expansão do mercado de trabalho migratórios. No referido período, a comunidade retornados, ao longo do Século XIX, oscilavam
europeu, principalmente na França, alterou os lusitana local aumentou de 247 mil para 410 entre 30 e 40%, já nos anos de 1970 do Século XX
planos da grande maioria dos emigrantes mil indivíduos, e, somente no segundo semestre atingiram percentuais elevadíssimos, da
portugueses dos anos de 1960. de 1975, desembarcaram nas cidades brasileiras ordem de 90%.
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Referências Bibliográficas
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Presença negra
conflitos e encontros
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Presença negra: conflitos e encontros
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Carlos Julião
Tipos Populares. Riscos Illuminados...
Biblioteca Nacional
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Conforme Maria Inês Oliveira (1997) bem mos, songo; ou o “moçambique” de que era na
explica, a grande maioria daqueles termos verdade macúa. A este respeito, temos o
étnicos, todavia, não eram autodesignações dos testemunho do próprio africano. Alguns dos
próprios escravos ou nomes de formações envolvidos na rebelião de 1835 na Bahia,
políticas existentes na própria África. quando interrogados, declararam-se “nagô-ba”,
Com poucas exceções, como os haussás e “nagô-jabu”, nagô-jexá”, “nagô-oió”,
bornus, tratava-se de identidades adquiridas no significando que eram naturais dos reinos
circuito do tráfico, mas que com freqüência aca- iorubanos de Egba (ou talvez Yagba), Ijebu,
baram adotadas e reconstruídas no Brasil pelos Ilesha, Oyo, ou seja, se adotavam a identidade
escravos mesmos. Tornaram-se, por assim dizer, nagô para relacionar-se com africanos de outras
etnicidades africanas descobertas no Brasil, macro regiões, além dos negros, mestiços e
como sugeriu o historiador Robert Slenes brancos da terra, no seio da comunidade nagô
(1991-1992). Este mesmo historiador propõe cada um sabia que “tinha sua terra”, como
que os escravos da África Centro-Ocidental que declarou um deles.
povoaram as fazendas e cidades do Centro-sul
Esses africanos também declaravam saber
do Brasil teriam aqui desenvolvido uma
que viviam em “terra de branco”, onde as
“proto-nação bantu”, a partir de características
chances de escapar pacificamente da escravidão,
culturais convergentes, sobretudo lingüísticas,
embora existissem, eram poucas. Daí a
ou seja, as línguas e outros elementos culturais
resistência escrava, que assumiu diversas
próprios daquela área geográfica africana
formas. Os escravos, principalmente os nascidos
teriam um substrato bantu que facilitou a
na África, revoltaram-se com muita freqüência,
formação de uma identidade comum no Brasil,
em movimentos grande e pequeno, ora
a identidade bantu.
longamente planejados e visando à abolição
Cabe também mencionar que muitas vezes geral, ora por meio de golpes mais modestos que
as identidades, além de mudarem entre a África previam punir um senhor ou feitor mais tirano.
e o Brasil, variavam dentro do mesmo Brasil. As fugas representaram um estilo mais
Os nagôs, jejes, haussás e outros grupos da constante de rebeldia, tanto por aqueles que as
chamada Costa dos Escravos — embarcados empreenderam como aventura individual,
principalmente nos portos do antigo Daomé misturando-se à massa negro-mestiça livre,
(Jaquin, Ajudá, Popo e Apá), e mais tarde Onim como pelos que se juntaram para formar
(Lagos)— eram identificados como minas no quilombos, os quais floresceram em grande
Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Rio número, em cada lugar onde a escravidão fincou
Grande do Sul. Mesmo na Bahia, para onde raízes, fosse no mato, na montanha ou nas vizi-
vieram em maior número, eram chamados nhanças de fazendas e vilas, pequenas e grandes
principalmente minas até o final do Século cidades. Ainda mais freqüente seria a chamada
XVIII, a partir de quando se tornariam resistência cotidiana, caracterizada pelo fin-
conhecidos através daquelas identidades mais gimento de doenças, o trabalho mal-feito, as
específicas acima mencionadas. Mas na estratégias de negociação para extrair pequenas
verdade, para os próprios africanos, as vantagens, materiais e outras, dos senhores.
identidades podiam ser ainda mais específicas, Nesta modalidade de resistência brilharam os
mais concretamente referenciadas a escravos nascidos no Brasil, mais familiariza-
experiências vividas na África. O escravo dos do que os africanos com os meios e modos
“angola” trazido como adulto para o Rio de senhoriais, mais envolvidos pelo estilo paterna-
Janeiro não devia esquecer-se de que era, diga- lista de dominação escravocrata,
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João José Reis
Albino Velho, com 100 annos de edade. João Mina Africano, com 100 annos de edade.
Solteiro, africano, analphabeto, natural de Angola. Solteiro, africano, sabendo lêr e escrever.
“Os Centenários”
Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto Federal)
Realizado em 20 de setembro de 1906
Officina da Estatística - 1907
IBGE
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Carlos Julião
Negras Vendedoras. Riscos Illuminados...
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Capoeira
Pelourinho, Salvador - BA
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reprimir. Muitos aceitaram os batuques Foi sob esse clima que aconteceu a abolição
religiosos e profanos por conveniência política, no Brasil, num momento em que, subsidiando
acreditando serem um antídoto à rebelião; decisões políticas, muitos de nossos intelectuais
alguns poucos chegaram a entender que os divulgavam ideologias européias raciais,
escravos tivessem direito a suas manifestações do travestidas de ciência, que pontificavam sobre
sagrado e, em geral, a desfrutar seus a inferioridade do negro e a degenerescência do
momentos de lazer de acordo com suas mestiço. Os mais otimistas chegaram a
tradições. Mas a repressão, sobretudo nas vilas discordar dos mestres europeus de que o
e cidades, constituíram um lado importante do mestiço fosse um completo degenerado, vendo-
cotidiano dos que se arriscavam a desobedecer os como uma solução mais do que um problema
ordens régias, posturas municipais e leis
eclesiásticas proibitivas daquelas e outras
manifestações do espírito. Os argumentos
Artur Timóteo da Costa
predominantes é que mudavam com o tempo. Auto Retrato - 1919
Durante a colônia, a religião negra era vista Óleo sobre tela - 86,1 x 79cm
como arte do diabo, no Império como desordem Museu Nacional de Belas Artes - RJ
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Presença negra: conflitos e encontros
racial: a miscigenação, argumentavam letrados trabalho, no acesso a logradouros públicos, nas Muitos brancos, no entanto, nessa época ou
como Silvio Romero e mais tarde Oliveira instituições políticas, além das representações pouco antes, já faziam a viagem contrária.
Vianna, levaria no longo prazo ao mentais. Não causa por isso surpresa que se Intelectuais e/ou boêmios da classe média e da
branqueamento da população, devido ao estabelecesse em São Paulo com mais vigor uma elite tida por branca, desde os anos de 1920, e
predomínio dos caracteres genéticos da raça imprensa, uma rede de organizações sociais e sobretudo na década seguinte, se aproximaram
superior. Pela razão inversa, os negros puros um movimento político voltados para a defesa da cultura negra no Rio de Janeiro, em busca
tenderiam ao desaparecimento. O plano parecia dos direitos civis e políticos da população afro- de manifestações “genuinamente” nacionais.
perfeito. Há autores, como Sidney Chalhoub brasileira. Eram jornais como A Voz da Raça, Talentosos sambistas negros, antes segregados
(1996), que chegam a sugerir tratar-se de uma O Clarim da Alvorada, clubes sociais negros e, em suas comunidades, como a chamada
estratégia racista a ênfase dada pelos governos em especial, a Frente Negra Brasileira. Pequena África carioca, ou ativos sobretudo em
imperial e republicano ao combate de certas A Frente se espalhou pelo País, mas sua força festas populares, como as da Penha e o carnaval
doenças que afetavam mais as populações maior estava em São Paulo; foi a única dos cordões, foram sendo aos poucos
européias, como a febre amarela, em organização caracteristicamente étnica a “descobertos” e promovidos por uma elite
detrimento de outras — a tuberculose, por tornar-se um partido político no Brasil; letrada que apostava num projeto nacional
exemplo — que vitimavam sistematicamente as também para a cultura, num desdobramento
funcionou entre 1931 e 1937, tendo sido
camadas mais pobres e negras da população. do movimento modernista. Hermano Vianna
fechada pelo Estado Novo juntamente com
Os negros, é óbvio, sobreviveram e se (1995) sugere que intelectuais como Sérgio
outras agremiações à direita e à esquerda do
multiplicaram. Com mais força ainda se Buarque de Holanda, Afonso Arinos, Gilberto
espectro ideológico brasileito. Seus dirigentes
multiplicaram também os mestiços, sem que Freyre, o poeta francês Blaise Cendras, entre
embarcaram no projeto nacionalista de Getúlio
se alcançasse o branqueamento dos brasileiros outros, teriam funcionado como espécie de
Vargas, sendo por este cortejados no rastro da
previsto pelos ideólogos do arianismo. Mas um mediadores entre culturas popular e erudita,
valorização que o regime por ele inaugurado fez
ambiente favorável à negação dos negros contribuindo para transformar o samba em
dificultou enormemente a sua integração no do trabalhador nacional. A estratégia daquela símbolo de identidade nacional.
Brasil republicano. Estudos clássicos, como o organização era a integração do negro na
sociedade brasileira e, para isso, seus dirigentes Mas os próprios núcleos de cultura negra
de Florestan Fernandes (1965), e mais recentes
procuraram renegar tradições que lembravam se movimentaram para ganhar espaço no
como o de George Reid Andrews (1991),
mais diretamente o passado africano da projeto de nação aberto pela revolução de 30.
demonstram convincentemente as dificuldades
A criação das escolas de samba no final dos anos
por eles enfrentadas em São Paulo, a região população que desejavam representar,
de 1920 já representara um passo importante
economicamente mais dinâmica do Brasil, e que particularmente a religião e os folguedos afro-
nessa direção. Elas que durante a República
mais imigrantes europeus recebeu no período. brasileiros. Tratava-se, por assim dizer, de um
Velha foram sistematicamente afastadas de
O racismo manisfestava-se no ambiente de projeto de integração no mundo dos brancos.
participação do desfile oficial do carnaval
carioca, dominado pelas grandes sociedades
carnavalescas, terminaram sendo plenamente
aceitas posteriormente. A antropóloga Monique
Augras, inclusive, demonstra que a proposta
de que as escolas tematizassem apenas coisas
nacionais, antes vista como uma imposição do
regime de Vargas, na verdade teria partido dos
próprios sambistas como uma espécie de moeda
de negociação no mercado da legitimação social.
No rastro do samba, a capoeira e as religiões
afro-brasileiras também ganharam terreno.
Antes considerada atividade de capadócios e
marginais, a capoeira seria alçada a autêntico
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João José Reis
esporte nacional, para o que muito contribuiu Na frente religiosa, também houve algum o Rio de Janeiro desde a segunda metade do Sé-
a atuação do baiano Mestre Bimba, criador da progresso. Na Bahia, com o concurso de gente culo XIX, florescendo na Pequena África da Tia
chamada capoeira regional. Tal como os branca e mestiça mais tolerante e mesmo Ciata, e já no início do século seguinte da Mãe
sambistas alojaram o samba em “escolas”, adepta dessa fé, diminuiu a perseguição aos Aninha, que estabelecera filial de seu Axé do
Bimba abrigaria a capoeira em “academias”, candomblés, que fora intensa durante a década Opó Afonjá na capital da República, conseguiria
de 1920. Do II Congresso Afro-Brasileiro, junto a Getúlio maior espaço de respiração para
que aos poucos passaram a ser freqüentadas
realizado em Salvador em 1937 por Edison sua religião. Paralelamente, acontecia o
pelos filhos da classe média baiana, inclusive
Carneiro — ele próprio um mestiço de esquerda crescimento vertiginoso da umbanda, uma
muitos estudantes universitários.
—, participaram com as honras devidas figuras invenção carioca que combinava tradições
Entre escolas e academias, a cultura negra de expoentes da comunidade de terreiros. africanas, kardecismo e catolicismo, e que se
certa forma foi domesticada, mas, sob um outro Dois anos antes, tinha acontecido o I Congresso,
expandiria entre brancos e mestiços com muito
ponto de vista, seria esta a estratégia possível, organizado em Recife por Gilberto Freyre, onde
mais sucesso do que o candomblé.
negociada, de sua afirmação numa sociedade no entanto ficariam de fora os intelectuais
em que o negro permanecia ocupando lugar de orgânicos da cultura negra pernambucana. Não se deve esquecer que a década de 1930
cidadão de segunda categoria. Da Bahia, o candomblé havia sido levado para foi também marcada pela obra seminal de
Preparo da Madeira
Mazagão - AP
IBGE
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Gilberto Freyre, que em Casa Grande & operação não é suficiente para descaracterizar
Senzala (1933) iria enaltecer a mestiçagem racial a indigência parda, além de confirmar o
e cultural através de uma interpretação estigma negativo que carregam aqueles que
controvertida da escravidão. Ele não foi o têm alguma descendência africana.
primeiro a fazer o elogio da contribuição negra
O racismo, então, permanece um
à formação da sociedade brasileira — vide, por
fenômeno arraigado na sociedade brasileira.
Manuel da Cunha exemplo, Manoel Bonfim(1905) na virada do
E não se trata de fenômeno episódico — como
Nossa Senhora da Conceição - 1780 / 1800 século—, mas foi o mais bem sucedido, melhor
Óleo sobre tela - 108 x 69cm seriam os escândalos de discriminação hoje
aceito, constituindo escola, em grande parte
prontamente denunciados na imprensa — mas
Museu Nacional de Belas Artes - RJ graças ao clima nacionalista da época em que
estrutural, por se poder traduzi-lo por meio
escreveu aquele livro. Considerado pai da
dos números que medem o padrão de vida e o
ideologia da democracia racial, ele na verdade
tratamento recebido dos poderes públicos (ver,
apenas começava na época a propor, ainda por exemplo, o perfil racial das vítimas da
modestamente, que ideais já antigos de violência policial). Nós não temos segregação
igualdade racial fariam parte das relações so- legal nem linchamentos organizados, como
ciais concretas no Brasil. Contemporânea sua, acontecia em outros países multirraciais — o
a Frente Negra lutava precisamente para que nosso racismo já foi até chamado de “cordial”
aqueles ideais fossem concretizados. pelo DataFolha (Racismo Cordial, 1995) —,
Quem estaria com a razão, Freyre ou a Frente? mas o resultado final não é menos perverso.
Até que ponto a sociedade brasileira havia con- A imensa maioria negra permanece “em seu
seguido integrar seus filhos descendentes lugar”. São raros os rostos negros nos altos
de escravos? escalões do poder político e econômico. Mesmo
Os estudos sobre a história do negro no estados densamente negros como a Bahia e o
Século XX são escassos, mas bastam para dar Maranhão não conseguem formar bancadas
uma resposta, se não inteiramente, pelo menos expressivamente negras, quer no congresso
bastante negativa a esta última questão. nacional, quer nas assembléias estaduais e
Se o Brasil aprendeu a não ter vergonha do lado câmaras municipais. Nos poderes executivos,
negro de sua cultura, se o samba virou símbolo a situação é ainda mais crítica. A festejada
formação de uma “classe média negra” — leia-
de identidade nacional, não aconteceu, em
se pretos e pardos —é um fenômeno ainda
paralelo, um esforço do País em promover social
tímido numericamente, envolvendo entre cinco
e economicamente seus cidadãos negros e
e oito milhões, num universo estimado em
mestiços. Repetidas avaliações dos indicadores
perto de 80 milhões de afro-brasileiros. Estes
sociais demonstram que pretos e pardos — as
são todos dados bastante conhecidos, mas não
categorias que o censo identifica como afro-
custa relembrá-los num momento em que se
descendentes — estão defasados em relação aos
faz um balanço deste tipo.
brancos nos índices de distribuição de renda,
emprego, educação e saúde. As estatísticas Não é que não tenhamos experimentado
também demonstram que os pardos não progresso. O problema é que os negros têm
representam exatamente um ponto progredido menos. Têm hoje mais escolaridade
intermediário no regime de desigualdade, pois do que há 30 anos, mas continuam tendo
estão sistematicamente bem mais próximos dos menos que os brancos. Alcançaram posições
pretos do que dos brancos nesses índices. mais altas na estrutura de trabalho, mas
Mesmo considerando que muitos pardos claros ganham menos do que os brancos em
e mais afluentes se declarem brancos, essa ocupações semelhantes.
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Lavagem do Bonfim - RJ
Foto de Lélia Coelho Frota
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Referências Bibliográficas
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Sonhos galegos
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Maranhão, Pará e Amapá, chegando mesmo ao longo dos anos de 1530, expedições que se
Amazonas, em torno de 1499, num tempo em desdobraram pela região platina, muitos
que, sediados nas Antilhas descobertas por castelhanos seguiam ao lado dos portugueses, Manoel Pacheco de Cristo
entre a marujada e a soldadesca. Muitos Mappa da demarcação (rios Uruguay,
Colombo, os castelhanos faziam inúmeras
Pipiry, Santo Antonio, Yguaçú e
viagens de reconhecimento no continente então portugueses e espanhóis viviam juntos, entre os Paraná) - 1760
vislumbrado. Mas seria imenso exagero dizer náufragos e desterrados que acabaram se Mapoteca do Itamaraty
que, por causa dessas viagens, foram os “indianizando” nas partes de Cananéia,
espanhóis que descobriram o Brasil. Piratininga e litoral de São Paulo, alguns dos
Já Capistrano de Abreu desmistificava o assun- quais foram encontrados por Martim Afonso de
to, no texto clássico O descobrimento do Brasil Souza em 1531-1532.
(1883), ao dizer que, “sociologicamente falando,
Por outro lado, se avançamos rumo ao sul
os descobridores do Brasil foram os da América Portuguesa, veremos que mal se
portugueses”, dado que foi deles o esforço de pode divisar o perfil lusitano ou castelhano dos
colonização, enquanto os espanhóis mal que efetivamente colonizavam a região.
deixaram rastro de sua viagem de 1499. Área de fronteira territorial entre os domínios
Capistrano exagerou, no entanto, ao dizer espanhol e português, segundo o Tratado de
que os espanhóis não tiveram nenhuma Tordesilhas (1494), a Região Sul seria ainda
importância na formação histórica brasileira, ou uma fronteira cultural, coabitando castelhanos
a tiveram menos que os franceses, por exemplo. e portugueses, boa parte deles “mamelucos” ou
Se é certo que os franceses disputaram com os “gaúchos”, na verdade, desde o Século XVII.
lusitanos durante todo o Século XVI o litoral Coabitavam e guerreavam na ilha de Santa
atlântico da “América Portuguesa”, traficando Catarina, na Colônia do Sacramento e nos Sete
pau-brasil com os índios; se fundaram a Povos das Missões, área que então abrangia
“França Antártica” na baía de Guanabara em boa parte do atual Rio Grande do Sul.
1550 ou a chamada “França Equinocial” no A presença espanhola teve ali peso histórico
Maranhão, em 1612; se erigiram inúmeras considerável e densidade demográfica
fortalezas e fustigaram os portos luso- expressiva, apesar da ausência de dados
brasileiros até bem entrado o Século XVIII, estatísticos confiáveis para esse período.
foram esses atos meramente episódicos. De todo modo, não seria exagero dizer que o
Neste sentido, as experiências “colonizatórias” perfil de boa parte da região sulina no período
francesas no Brasil parecem bem mais Colonial fosse luso-castelhano-indígena,
modestas que a dos holandeses, por exemplo, considerando a mestiçagem que ali teve lugar,
que dominaram Pernambuco, Paraíba, antes de ser portuguesa ou luso-indígena.
Itamaracá, Rio Grande do Norte e outras partes A marca espanhola se fez sentir, ainda, em
do Nordeste, entre 1630 e 1654, erigindo um certos personagens centrais do período Colonial,
autêntico “Brasil holandês” com características a exemplo de José de Anchieta que, apesar de
muito distintas, em vários aspectos, do Brasil
formado em Coimbra, era natural do Tenerife,
português ou ibérico.
nas Canárias espanholas, e tinha no castelhano
A importância dos espanhóis no Brasil sua língua materna. Durante a chamada “União
colonial foi, sem dúvida, menos espetacular, Ibérica”, entre 1580 e 1640, a presença
talvez mais silenciosa, porém importante e espanhola no Brasil foi absolutamente
duradoura. Nas viagens portuguesas de corriqueira, como era de se esperar. Capistrano
reconhecimento e exploração vicentina, ao de Abreu chegou mesmo a dizer, nos Capítulos
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Sonhos galegos: os espanhóis no Brasil
Mapoteca do Itamaraty
de História Colonial (1934), que o domínio em homenagem à dinastia filipina reinante fazendo eco às disputas da Península e dando
espanhol sobre Portugal foi, inicialmente, muito em Portugal. mostra do ressentimento português com a perda
favorável para o alargamento territorial do de sua soberania para o arqui-rival castelhano.
No Século XVII, foi a armada
Brasil em função das estratégias expansionistas
comandada pelo castelhano D. Fradique de O balanço da presença espanhola no Brasil
mais sistemáticas da liderança hispânica. Com Toledo que pôs cerco aos holandeses na Bahia, Colonial sugere, pois, importância bem maior do
efeito, não raro se montaram expedições com em 1625, expulsando-os da capital um ano que o suposto. Foi histórica e demograficamente
duplo comando, português e castelhano, contra depois de ali se terem estabelecido os densa no extremo-sul do futuro Brasil.
os franceses e seus aliados índios, a exemplo da flamengos. As alianças luso-castelhanas na Foi estratégica e importante entre fins do
expedição de Diogo Flores Valdez e Frutuoso Colônia não inibiram, porém, durante este Século XVI e meados do XVII. Foi permanente
Barbosa, em 1583-1585, na Paraíba. Expul- período de dominação filipina, a surda em todo o período Colonial através das influên-
saram os franceses do lugar e fundaram um rivalidade entre portugueses e espanhóis. cias recíprocas entre a cultura e as instituições
povoado a que o português chamou de Felipéia No dia-a-dia da Colônia, muitas vezes se lusitana e espanhola, intercâmbio herdado
(futura cidade da Paraíba, hoje João Pessoa) insultavam e se desafiavam mutuamente, da própria Península. Mas tratou-se de uma
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Modesto Brocos
Engenho de Mandioca - 1892
óleo sobre tela - 59 x 75,5cm
Museu Nacional de Belas Artes - RJ
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presença sobretudo castelhana, quer cultural ou ano se dirigia ao hemisfério sul nos meses de
institucionalmente, quer do ponto de vista outubro e novembro, com o objetivo de
populacional, pois eram castelhanos os participar sucessivamente das colheitas de trigo
“espanhóis” que mais atuaram na América e frutas na região do rio da Prata, e de café, em
nesse período – e não catalães, bascos ou São Paulo, voltando em seguida, para a Europa
galegos. Assim ocorreria também na América nos meses de maio/junho.
Espanhola, antes de tudo castelhana, apesar de
O Instituto Espanhol de Emigração estima
para ali terem se dirigido outros povos de
que entre 1890 e 1940 aproximadamente 3,5
Espanha, sobretudo no Século XVIII.
milhões de pessoas deixaram o Reino em
O quadro mudaria de perfil nos Séculos direção ao Brasil. Já os levantamentos do
XIX e XX. O espanhol continuaria a vir para o conhecido demógrafo Paul Hugon, baseados na
Brasil, mas de colonizador passaria a ser documentação do governo brasileiro, apontam
imigrante, do mesmo modo aliás que o para uma ordem de grandeza bem mais
português. E seria, então, principalmente o modesta. Segundo seus cálculos, naquele
galego, não mais o castelhano, o espanhol mesmo espaço de tempo, cerca de 600 mil
imigrante. Não por acaso acabaria confundido hispânicos deram entrada legalmente no País.
com o português que, por sua vez, seria Apesar da discrepância entre os números das
chamado com freqüência de galego no cotidiano duas fontes, no gráfico abaixo percebe-se que
das grandes cidades brasileiras, como no Rio de ambas refletem uma única tendência.
Janeiro, desde o Século XIX.
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percentual de 2% sobre o número total dos cerca de dois terços da população espanhola
respectivos nacionais estabelecidos no Brasil vivia direta ou indiretamente do cultivo da
durante os últimos cinqüenta anos. Proibiu, terra. No entanto, à medida que a taxa de
também, a concentração de estrangeiros da natalidade elevou-se nas áreas rurais,
mesma nacionalidade em qualquer ponto do retraíram-se os investimentos no campo.
território da União. Essa política de imigração Agravando a pressão demográfica, perduravam
perdurou durante toda a chamada “era Vargas”. certas práticas senhoriais. Na Galícia, um dos
Do lado de lá do Atlântico, a vertigem imi- maiores focos da imigração espanhola para o
gratória começou a se intensificar nos Brasil, tornou-se impossível para uma família
últimos anos do Século XIX, provocada não só sobreviver dos rendimentos da lavoura.
pelo desenvolvimento industrial tardio da Minifúndios paupérrimos continuavam subme-
Espanha, mas também pelos problemas tidos ao pagamento de pesados impostos.
econômicos decorrentes da manutenção de uma Pequeno e médio proprietários viam-se obriga- Sociedade de Beneficência Espanhola
estrutura fundiária arcaica. Até o ano de 1900, dos a abandonar povoados e vilas São Paulo - década de 1930
Memorial do Imigrante / Museu da Imigração
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Sonhos galegos: os espanhóis no Brasil
interioranas, ao lado de lavradores, que América” significava a perspectiva de acesso à A par disso, não se deve esquecer que a
dispunham apenas da sua força de trabalho. propriedade da terra, às oportunidades de emigração constituía uma válvula de escape
trabalho e à fortuna fácil. As agências de para jovens camponeses que não dispunham de
Do campo migravam para centros urbanos,
emigração ajudavam a alimentar o sonho, recursos para se desobrigar do engajamento
na expectativa de emprego na indústria ou no
valendo-se muitas vezes de propaganda compulsório no exército colonial espanhol.
comércio. A via crucis ainda não estava
completa. Analfabetos, na sua grande maioria, enganosa e falsas promessas. Circulavam Esse panorama sombrio não sofreu
carentes de qualificação para o trabalho fabril, a notícias, em Madrid, de que um desses grandes alterações até o final dos anos de 1920,
cidade os rejeitava. O passo seguinte consistia estabelecimentos arregimentava mão-de-obra apesar das sucessivas legislações, que
em tomar o caminho do porto mais próximo e com destino ao Brasil oferecendo passagens procuravam pôr um freio no fluxo de saídas.
tentar o embarque no primeiro buque que zar- gratuitas, 20 libras esterlinas por pessoa e ter- Aliás, paradoxalmente, o maior número de
passe em direção ao Novo Mundo. “Fazer a renos para a fundação de colônias! entradas no porto do Rio de Janeiro
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Lucia Maria Paschoal Guimarães e Ronaldo Vainfas
corresponde ao ano de 1912, justo quando foi Presume-se que a chamada indústria das
proibida a emigração para o Brasil (Decreto “cartas de contrato” teve um papel muito ativo
Real, de 5 de janeiro de 1912). Na prática, nesse processo, já que a lei brasileira vedava o
porém, as autoridades faziam vista grossa nos ingresso de estrangeiros no País sem a prévia
portos de saída. Sabe-se, hoje em dia, que a autorização dos órgãos do poder público.
partir de 1890, os recursos remetidos pelos
As cidades de Santos, do Rio de Janeiro e de
imigrantes foram decisivos no processo da
Salvador foram os principais centros de recepção
industrialização espanhola.
dos braceros no Brasil. Em Salvador, porém, o
No período de 1931-1940, os índices movimento de entrada seria bem peculiar.
experimentaram uma baixa irreversível. Os espanhóis que se dirigiram para a capital
Apesar de fraco, o movimento em direção à costa baiana não participavam dos programas de
brasileira continuaria. Porém, não se tratava imigração. Chegavam com emprego garantido,
mais de uma emigração de larga escala. chamados por patrícios e parentes ali estabeleci-
Os espanhóis fugiam da repressão e dos problemas dos, proprietários bem-sucedidos de pequenos
políticos, que culminaram com a Guerra Civil. estabelecimentos comerciais, bares e hotéis.
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Segundo as fontes oficiais, o perfil do Mal chegavam à “terra prometida”, economia agrícola dominada por latifúndios.
imigrante espanhol típico era adulto, jovem, enfrentavam os mesmos problemas que haviam Decepcionados, largavam o campo.
do sexo masculino e costumava viajar deixado para trás. Veja-se o caso dos espanhóis Aventuravam-se pelas vilas mais próximas.
desacompanhado mesmo quando casado e que se dirigiram para o Estado de São Paulo. Ou, então, transferiam-se para a capital, onde
oriundo das zonas rurais. Este último traço, no Pouco se conhece a respeito do seu paradeiro, se incorporavam ao proletariado urbano.
entanto, deve ser observado com um certo após a passagem pelas hospedarias do governo.
Por outro lado, há indícios concretos de
cuidado. Há fortes indícios de que para fazer jus Tomavam os rumos mais diversos, à exceção
que uma parcela significativa daqueles
às passagens subvencionadas, os candidatos ao daqueles que vinham cumprir acordos de
forasteiros nem chegou a pisar no interior
subsídio costumavam declarar-se agricultores, trabalho previamente negociados, a exemplo de paulista. Aliás, é importante frisar que no
contando com a conivência dos agentes e das uma centena de operários procedentes de Vigo, Brasil a imigração espanhola teve um caráter
companhias de navegação. A esse respeito, que desembarcou em 1905, no porto de Santos, predominantemente urbano. A cidade de Santos
o testemunho do Comissário de Emigração do contratados para prestar serviços na construção desde o início do Século XX ganhara o apelido
Brasil no Reino da Espanha, Enrique de Sastré, da Estrada de Ferro Araraquara. de “Barcelona Brasileira”, não só porque
é bastante esclarecedor. Numa correspondência
Existem informações de que houve grupos abrigava uma numerosa colônia espanhola, que
remetida ao Deputado Federal Antão de Faria,
de lavradores de origem hispânica que se se espraiava nas cercanias da zona portuária,
em 1891, o Comissário alertava para a
deslocaram para o interior do estado. As pistas mas também porque se tornara um centro de
necessidade de uma fiscalização mais efetiva
indicam que substituíram os italianos no agitação e organização operárias, dominado
dos consulados da República, nos portos de
trabalho de abertura e limpeza de áreas virgens pelos imigrantes ibéricos.
embarque do litoral noroeste da Espanha e do
norte de Portugal. Naquelas localidades o para o plantio do café. O certo é que a sua
recrutamento de imigrantes vinha sendo feito permanência nas fazendas do oeste paulista foi
de modo indiscriminado, por pessoas muito breve. Na verdade, esses indivíduos
inescrupulosas, que visavam apenas à comissão ambicionavam tornar-se proprietários rurais.
das 25 pesetas que recebiam por passagem No entanto, logo descobriam que dificilmente
conseguiriam realizar essa aspiração, numa Estação da Luz
vendida ao governo brasileiro.
São Paulo - c. 1907
Guilherme Gaensly
Arquivo de Negativos
DIM / DPH / SMC / PMSP
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Rafael Galvez
Canindé - 1946
Óleo sobre papelão - 34 x 46cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo
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partilhando com seu compatriota Venâncio as Brasil durante a década de 1920. Com dez anos de
frustrações e os sonhos de “fazer a América”. idade esteve na Galícia, onde permaneceu por dois
América que, no caso, era o Brasil, País que mal anos, vivência essencial para a futura escritora,
conhecia, “exceto que, após a queda da Monarquia, estimulada que foi, desde a infância, no hábito da
instalara-se no País uma República de molde leitura. Formou-se em jornalismo, exerceu o
plebeu”, não lhes havendo sobrado sequer um rei e magistério, tornou-se contista e romancista
uma rainha. Madruga nada conhecia, realmente, renomada, com livros traduzidos em vários países.
do Brasil. Livros escritos com maestria em português, sua
língua materna. Ingressou na Academia Brasileira
Mas o jovem progrediu, chegando a desposar de Letras em 1989, sucedendo ninguém menos que
filha de uma família galega com ares de nobreza. Aurélio Buarque de Holanda. Foi a primeira
Mas D. Miguel, seu futuro sogro, era menos nobre mulher a assumir a presidência da veneranda ABL,
do que desejava: pequena ou presumida nobreza da em 1996, cargo que ocupou por dois anos. Em sua
então paupérrima Galiza, terra meio espanhola e obra, sobretudo nessa República dos Sonhos -
meio portuguesa da margem direita do Minho. sonhos um tanto frustrados, Nélida Pinõn fala
O romance empreende uma recriação completa da muito de sua vida através dos personagens
história da família formada por Madruga no Brasil, ficcionais, e o jovem e velho Madruga pode ser lido,
e nele encontramos os ritos domésticos, os valores a um só tempo, como personagem individual na
morais, as sociabilidades mantidas no interior da literatura e personagem coletivo da história: a
comunidade galega e em relação aos brasileiros. história dos galegos no Brasil durante o longo
É livro de forte conteúdo histórico, pois Nélida Século XX.
acompanha a trajetória da família durante décadas,
Neste ocaso de milênio não parece haver
fazendo contraponto com a história do Brasil, o
mais lugar para as “histórias de Madrugas”.
tempo de Getúlio Vargas, sua queda, a crise dos Os descendentes dos espanhóis, que são
anos de 1960. Madruga é desses imigrantes que sobretudo galegos, ambicionam emigrar do
prosperaram, tornando-se grande capitalista, Brasil, voltar a uma Espanha inserida na
alçando-se às esferas do poder, como ocorreu com Comunidade Européia, para o que se valem de
vários imigrantes endinheirados no Brasil. legislação altamente favorável.
Procurou manter, de todo modo, sem grande êxito, O fenômeno migratório atual dos galegos é bem
as tradições de sua terra natal, as hierarquias, seu esse: do Brasil para a Península, para a
poder de patriarca, sobretudo com seus Espanha próspera e hoje livre do franquismo.
descendentes e agregados. Nélida nos conta sobre Por outro lado, os bem-sucedidos capitalis-
o conflito de gerações e examina “por dentro” o tas galegos, dentre os poucos que lograram
refazer da cultura galega no Brasil com o passar do atingir tal posição da escala social, não
tempo. Conta-nos uma história em vários aspectos respondem pelo principal dos investimentos
trágica, apesar do sucesso de Madruga, espanhóis no Brasil. Atuam sim, seus
personagem central da trama. descendentes, em variados setores de serviços
e comércio por atacado, à semelhança, aliás, do
A romancista é, aliás, a autora ideal para a empresariado de origem portuguesa em várias
reconstituição da saga galega no Brasil. Além de cidades brasileiras. Mas o capital espanhol
dotada de forte sensibilidade histórica, exemplifica no Brasil é hoje o capital impessoal e “invisí-
a trajetória desses imigrantes. Carioca de Vila vel” dos grandes conglomerados, como a
Isabel, nascida em 3 de maio de 1937, Nélida Telefônica, protagonista das privatizações na
Cuiñas Piñon é filha de Lino Piñon Muiños e área de telecomunicações aceleradas no fim
Olívia Cuiñas Piñon, cuja família radicou-se no da década de 1990.
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Lucia Maria Paschoal Guimarães e Ronaldo Vainfas
Referências Bibliográficas
121
Sonhos galegos: os espanhóis no Brasil
122
Keila Grinberg
Keila Grinberg
123
Nova língua interior: os judeus no Brasil
Lasar Segall
“Navio de Emigrantes” –1939/41
Oil with sand on canvas – 230 X 275 cm
Lasar Segall Museum - São Paulo
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Keila Grinberg
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Nova língua interior: os judeus no Brasil
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Keila Grinberg
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Nova língua interior: os judeus no Brasil
Frans Post
Classius Navium
Ilustração do livro Rerum per Octennium
1647
Biblioteca Nacional
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Keila Grinberg
Perguntas como estas não merecem congregação Zur Israel, a primeira das Américas
respostas simples; provavelmente, ambas as – estima-se que tenha chegado a um número
situações ocorreram, com importantes variações máximo de 1450 habitantes, cerca de metade da
temporais: mais famílias de cristãos-novos população civil branca, em 1645, decrescendo
judaizavam no Século XVI, quando ainda viviam posteriormente. Dedicados a diversas atividades
os conversos de 1497, seus filhos e netos, do que urbanas, estes judeus destacaram-se
no Século XVIII, numa época em que já várias principalmente pelo envolvimento no comércio
gerações separavam os cristãos-novos de seus de açúcar e escravos e pela aquisição do direito
ascendentes judeus. Ao mesmo tempo, cabe de arrecadação de impostos, exercendo funções
perguntar se a manutenção de certos rituais semelhantes às praticadas há séculos na Europa.
judaicos significava efetivamente a prática do
Motivados pela chegada destes judeus,
judaísmo; muitas vezes um denunciado só
muitos cristãos-novos vivendo nas redondezas
aprendia na prisão que seguir o costume
decidiram declarar abertamente seu judaísmo
familiar de fazer pão ou limpar a casa às
– opção nada fácil, pois implicava a circuncisão
sextas-feiras era parte da tradição judaica.
e a adoção de costumes para eles desconhecidos,
Mesmo assim, é fato que, depois de tantos anos
pois nem sempre as práticas da religião judaica
vivendo no catolicismo, a imensa maioria dos
se coadunavam com aquelas realizadas pelos
cristãos-novos acabou realmente por perder os
criptojudeus –, enquanto outros tantos optaram daquelas terras em Nova Amsterdam, conhecida
laços com a religião judaica, tornando-se
por não fazê-lo, fosse por medo de uma hoje como Nova York. Mas ao contrário destes,
católicos de fato e de direito.
reviravolta política, fosse por não mais se entretanto, alguns que haviam adotado o
A questão torna-se mais intrigante quando identificarem com o judaísmo. Mas é possível que judaísmo resolveram voltar a ser cristãos,
analisamos o período da ocupação holandesa nas nenhuma destas escolhas eliminasse o preferindo permanecer no Brasil, o que
regiões de Recife, Itamaracá e Paraíba, ocorrida desconforto implícito na condição de cristão- demonstra a inexistência de regras absolutas que
entre 1630 e 1654. Muitos membros da novo, já que, como disse Anita Novinsky, não determinassem o comportamento dos cristãos-
comunidade judaica da Holanda, de origem eram nem cristãos para os cristãos, nem judeus novos, mesmo quando a prática do judaísmo era
portuguesa e espanhola, estabeleceram-se em para os judeus. Depois da expulsão dos oficialmente permitida.
Pernambuco neste período, quando foi instituída holandeses, a maioria dos cristãos-novos emigrou
a tolerância religiosa para os seguidores da fé para a Holanda e também para o Caribe e a
judaica. Embora não se saiba exatamente América do Norte, onde 23 judeus do Brasil
quantas pessoas formaram esta comunidade – a fundaram a primeira comunidade judaica T’Recif de Pernambuco
Gravura do livro de Joannis de Laet
Historia ou Annaes dos feitos da Companhia
Privilegiada das Índias Ocidentais
Leiden - 1664 - Holanda
Biblioteca Nacional
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Nova língua interior: os judeus no Brasil
Esta situação veio a ser modificada a partir E seus efeitos não tardaram a aparecer:
da segunda metade do Século XVIII, quando o ainda nas primeiras décadas do Século XIX,
Marquês de Pombal começou a colocar em comerciantes judeus inglês e francês mudaram-
prática sua política de modernização do Estado se para o Rio de Janeiro. O mais conhecido
português, o que incluía a eliminação da deles, o francês Bernard Wallerstein, dono de
participação dos jesuítas nos projetos de uma casa de moda feminina que também vendia
colonização e o alijamento de parte da nobreza calçados, charutos, jóias e vinhos, era o maior
do poder. Estes foram substituídos por grupos fornecedor da Casa Imperial, figurando nas
de comerciantes, muitos deles cristãos-novos, a memórias de Joaquim Manuel de Macedo como
quem Pombal havia concedido monopólios e o “Carlos Magno da rua do Ouvidor”.
privilégios. Neste quadro está inserida a Mais para o fim do século, a este grupo vieram
reformulação da Inquisição, que agora passava a se juntar judeus da região da Alsácia-Lorena,
ser tribunal subordinado à Coroa, e a extinção à época disputada em guerras entre França e
da diferenciação formal entre cristãos-novos e Alemanha.
velhos, realizada definitivamente com a
Carta-Lei de 1773. A nova regra é de extrema Este não foi, no entanto, o mais importante
importância: ao extinguir para sempre a marca movimento migratório de judeus para o Brasil
de sangue, ela caracteriza o fim da primeira fase deste período. Nesta ocasião, judeus
da história dos judeus no Brasil, marcada pela marroquinos começaram a cruzar o oceano
proibição – à exceção do período de dominação Atlântico, em busca de melhores condições de
holandesa – da prática do judaísmo ao mesmo
tempo em que inaugura, ainda que lentamente,
a era de tolerância religiosa que os tempos
vindouros viriam confirmar.
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Keila Grinberg
vida e da liberdade religiosa de que não ocorrido em Cametá já em 1901, quando lojas encontrado: “Havia gente morena, gente clara;
dispunham em seu país de origem. A seu favor, foram atacadas no episódio conhecido como mulheres vestidas à moda hebraica de túnica e
tinham o conhecimento do espanhol e do “Mata-Judeu”. Só mais tarde, com o alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus
português, por serem descendentes diretos das enriquecimento das gerações seguintes, é que enterrados na cabeça, caras femininas de lenço
comunidades expulsas da Península Ibérica. estas pessoas transferiram-se para Belém ou amarrado na testa e crianças lindas.”
Alguns destes marroquinos dirigiram-se para Manaus. Porto de chegada da maioria dos
Exatamente nesta época, nova onda
Pernambuco e para Bahia, como fez Isaac imigrantes do Marrocos, não é à toa que a
imigratória, totalmente distinta das anteriores,
Amzalak, comerciante que sentou praça em primeira cidade foi palco da organização da
começou a ocorrer. Fugindo dos ataques anti-
Salvador, e cuja filha foi tema de platônicos primeira comunidade judaica do Brasil
semitas que sobrevieram ao assassinato do czar
versos do vizinho Castro Alves, que a ela se independente, com o estabelecimento da
russo em 1881, judeus pobres do Leste Europeu
dirigia como “linda, sedutora Hebréia.../ Pálida sinagoga Eschel Abraham em 1824.
começaram a buscar refúgio em outras regiões.
rosa da infeliz Judéia”. Mas a grande maioria foi Como resultado das vagas migratórias do Foi por isso que, ainda na década de 1890, grupos
mesmo para a Amazônia. Embora não existam Século XIX, os judeus passaram a adquirir certa de judeus da Europa Ocidental começaram a
dados demográficos sobre o assunto, visibilidade na sociedade brasileira, tanto que o buscar meios e locais para facilitar a transferência
sabe-se que estes judeus chegavam às centenas, próprio João do Rio os descreveu em uma de suas de judeus russos para colônias agrícolas na
estabelecendo-se no início nos confins da selva crônicas de 1904, citando as duas sinagogas América; neste contexto, foi fundada a Yidishe
amazônica ou em cidades ribeirinhas. Acabariam existentes no Rio de Janeiro, a Associação Kolonizatsye Gezelshaft (Associação da Colonização
se dedicando, ali, ao comércio local, onde Israelita Universal dos alsacianos e a Shel Judaica, ou ICA), primeiro na Argentina, depois no
enfrentaram por vezes a concorrência e a Guemilut Hassadim dos marroquinos, e Rio Grande do Sul, que tentava atrair o interesse
animosidade de outros negociantes, como espantando-se com a diversidade que havia dos governos locais para a imigração judaica e
encorajar investimentos.
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Grupo judaico em frente ao prédio do Porto
Década de 20
Coleção Malamud/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
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Keila Grinberg
estas mulheres acabaram vivendo à margem portas abertas nos Estados Unidos, que havia Oliveira Vianna defendiam a limitação da
das comunidades judaicas; mesmo assim, adotado leis restritivas à imigração, nem nos entrada no País àqueles imigrantes desejáveis,
mantiveram fortes as ligações com a religião, muitos outros países que haviam feito o mesmo. que pudessem contribuir positivamente para a
fundando suas próprias sinagogas, associações Estava criado o drama dos refugiados, que se nacionalidade brasileira, trabalhando a terra ou
beneficentes e cemitérios. tornava mais grave à medida que países como a trazendo capitais, e assimilando-se ao resto da
Itália endossavam as medidas anti-semitas população. Para eles, os judeus não faziam nem
A década de 1930, no entanto, veio
tomadas pelos nazistas e o início da II Guerra uma coisa, nem outra: moravam nas grandes
modificar substancialmente um cenário já
Mundial se aproximava. cidades e dedicavam-se ao comércio,
pouco favorável aos judeus europeus. Com a
ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha, No Brasil, as mudanças ocorridas a partir mantinham seus idiomas de origem e neles
em 1933, e a subseqüente promulgação das Leis da Revolução de 1930 provocaram alterações educavam seus filhos. Mesmo com o grande
de Nuremberg, teve início um grande êxodo de importantes no discurso sobre a importância número de judeus alemães, austríacos e italianos
judeus alemães. Mas estes já não encontrariam da imigração. Intelectuais nacionalistas como que passaram a procurar vistos
Restaurante Schnaider
Coleção Malamud/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
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Nova língua interior: os judeus no Brasil
Imprensa Israelita
Coleção Malamud / Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
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Keila Grinberg
Lasar Segall
Pogrom - 1937
Óleo com areia sobre tela - 184 x 150 cm
Museu Lasar Segall
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Nova língua interior: os judeus no Brasil
Rubens Gerchman
Brazilian Dreams - 1992
Díptico, técnica mista sobre tela - 196 x 130 cm
Banco Bozano Simonsen
imigrações de judeus para o Brasil foram nacionais, e seus membros passaram a O estabelecimento do regime militar em
marcadas por eventos bastante específicos, participar, como quaisquer outros, do processo 1964, no entanto, trouxe novos desafios para os
como a crise egípcia do Suez e a invasão da político por que passava o país. Não por acaso, judeus; enquanto setores da comunidade davam
foi neste momento que a presença de judeus na suporte ao regime, muitos faziam parte da
Hungria pelas tropas soviéticas em 1956.
indústria, no comércio e na produção editorial e oposição, integrando por vezes movimentos de
Na realidade, a partir da década de 1950, a
intelectual começaram a se fazer sentir com mais luta armada. Com o AI-5 e a institucionalização
situação dos judeus no Brasil alterou-se força: este é o caso da fábrica de brinquedos da repressão, vários migraram para o Estado
substancialmente. Agora já pertencentes, em Estrela, da loja Casas Bahia, das editoras de Israel, movimento em geral não muito
grande parte, à classe média, as comunidades Perspectiva e Nobel, e da livraria Cultura, comum entre os brasileiros, menos apegados à
começaram a voltar-se mais para questões entre outros. doutrina sionista que seus vizinhos argentinos.
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Keila Grinberg
A grande maioria, no entanto, nesta época Brasil contribuiu para que os laços étnicos
Clarice Lispector
fincou definitivas raízes no País: por trazerem judaicos, antes definidos pela religião, cultura,
Museu Judaico - RJ
em sua bagagem grande experiência como língua e filiação política, fossem aos poucos
comerciantes, financistas e profissões liberais sendo substituídos por uma identificação geral
em geral, a integração da segunda geração de com a classe média, que não destruiu, no
judeus na sociedade urbano-industrial em que o entanto, os muitos vínculos que ainda ligam a
Brasil se transformava foi bastante facilitada. comunidade judaica brasileira. Contando hoje
Foram, sobretudo, beneficiados pelo importante com uma população de cerca de 100 000
papel dado por seus pais à educação formal habitantes, pode-se dizer que os judeus, ao
– em 1968, todos os judeus de São Paulo em longo de sua permanência no Brasil,
idade escolar frequentavam o segundo grau; redefiniram as bases de sua identidade, a ponto
dez anos depois, 20,4% deste grupo tinha curso de não poderem mais ser dissociados do País
superior, contra 1,4% do total dos habitantes onde nasceram ou para o qual imigraram. São,
do estado. A importância dada pelos judeus em em sua grande maioria, como Clarice Lispector,
geral à educação e ao ensino superior, aliás, ucraniana de origem judaica, a maior de todas
já vinha sendo aproveitada há um bom tempo as escritoras brasileiras, que uma vez declarou:
pelas universidades brasileiras, que empregavam “Fiz da língua portuguesa minha vida interior”.
vários cientistas e intelectuais a década de 1930,
quando estes começaram a chegar em maior
número e aquelas instituições estavam sendo
formadas. Este foi o caso, por exemplo, dos
químicos Heinrich Rheinboldt e Fritz Feigl,
Referências Bibliográficas
do físico Hans Stammreich, do biólogo Ernst
Marcus e dos intelectuais Jacó Guinsburg e LESSER, Jeffrey H. O Brasil e a questão
Anatol Rosenfeld. judaica : imigração, diplomacia e
preconceito. Rio de Janeiro ; Imago, 1995.
Familiarizados com a sociedade e os
costumes do País, estes judeus brasileiros, 371 p.
assim como já haviam feito os descendentes dos
imigrantes sefaradim no início do século, MELLO, José Antonio Gonsalves de. Gente da
passaram a participar de todas as esferas da nação : cristãos-novos e judeus em
vida brasileira. Isto acontecia principalmente Pernambuco, 1524-1654. Recife :
na área cultural, em que judeus como os Fundação Joaquim Nabuco : Editora
artistas Lasar Segall e Frans Kracjberg, e o Massangana, 1989. 552 p.
escritor Moacyr Scliar, abordavam temas de
interesse geral, mesmo quanto a temática NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São
judaica estava presente, e dirigiam suas obras
Paulo : Perspectiva, 1970. 239 p.
para o grande público. Também por conta do
mesmo movimento, principalmente a partir da
SCLIAR, Moacyr et al. Do éden ao divã : humor
década de 1970, casamentos entre judeus e
judaico. São Paulo : Shalon, 1990. 209 p.
não-judeus tornaram-se fenômeno comum em
todas as grandes cidades brasileiras.
SORJ, Bila (Ed.). Identidades judaicas no Brasil
A inexistência de movimentos anti-semitas Contemporâneo. Rio de Janeiro : Imago,
ou práticas discriminatórias significativos no 1997. 152 p.
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Valdir Gregory
Imigração alemã
formação de uma comunidade
teuto-brasileira
Valdir Gregory
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
Wolf Reuther
Sol sobre Bahia - s/d
Óleo sobre tela - 100 x 100cm
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
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Valdir Gregory
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
Joseph Brüggemann
Vista de Desterro (Florianópolis) - 1867
Óleo sobre tela - 125 x 165cm
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand
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Valdir Gregory
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
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Valdir Gregory
facilidades de mercantilização de terras junto com outros grupos. Além disso, o poder público espaço social onde se constituiu um modo de ser
aos núcleos mais homogêneos. Os povoados preocupava-se com o perigo da formação de singular do colono migrante.
formados dentro dos núcleos coloniais, “quistos étnicos” no Brasil. A resistência
Os imigrantes que se fixaram, enquanto
denominados de “linhas”, tendiam a receber cultural e a busca de integração à nação
camponeses, nas colônias da Região Sul do
colonos de origens étnica e religiosa brasileira geravam tensões, que variavam em
Brasil, não se destacaram numericamente.
semelhantes, formando comunidades mais intensidade e gravidade de acordo com
Mas, se se considerar a época da fundação das
homogêneas. situações (geo)políticas nacional e
colônias, principalmente as de alemães, que
internacional.
O interesse do poder público nas colônias chegaram durante cinco décadas antes que os
mistas se justificava duplamente: por um lado, De qualquer forma, é importante lembrar outros grupos étnicos começassem a colonizar
pelas razões de natureza econômica, como já que os colonos migrantes (alemães, italianos, as terras florestais desta região do País, e se
foi apontado anteriormente, e, por outro lado, poloneses, ucranianos, entre outros) se considerar o número de descendentes,
razões de cunho ideológico relacionadas ao ideal adaptaram-se ao seu país de destino, sem o significado de sua presença cresce
de branqueamento da “raça brasileira”, o que abdicar de valores, de culturas e de estilos de consideravelmente. Os alemães tiveram
se daria por meio da mestiçagem de alemães vida, sendo construído, a partir deles, um novo proporcionalmente mais descendentes nascidos
Pedro Weingärtner
Ceifa - 1903
Óleo sobre tela - 50 x 100cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
Casa de negócio
Arquivo Nacional
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Valdir Gregory
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
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Valdir Gregory
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
Entretanto, foram freqüentes às vezes em Paraná. O grupo familiar poderia, também, ser
que os laços familiares, o desejo de ampliado e/ou substituído pelos laços de
permanecerem próximos aos parentes e vizinhança e da comunidade. Nas antigas
conhecidos, após a constituição de novas colônias, os que ficavam se empenhavam em
famílias, contribuíram para que grupos adquirir os lotes de terra dos colonos que
familiares adquirissem lotes coloniais nas novas partiam, com o objetivo de manter seus filhos e
frentes de colonização para se deslocarem em netos próximos.
conjunto. Isto ocorreu, principalmente, nas
Tanto os imigrantes quanto os
colônias do nordeste do Rio Grande do Sul, do
descendentes de imigrantes, em geral,
oeste de Santa Catarina e no sudoeste do
mantiveram alguma ligação com a cultura e a
sociedade de origem, por maiores que fossem
as pressões no sentido da assimilação. Giralda
Seyferth (1990, p. 79) afirma que guardam
sempre alguma forma de identificação étnica,
Fiéis católicos indo para a missa
por mais que os laços com seus países de origem
IBGE
estejam diluídos. Assim, os fenômenos
chamados pelos especialistas de “absorção”,
“assimilação” e “aculturação” não impedem a
persistência do componente étnico da
identidade social dos descendentes de
imigrantes, por mais que estes estejam
integrados à nova sociedade.
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Valdir Gregory
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Valdir Gregory
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Valdir Gregory
passou a ser feita na língua portuguesa. podendo-se destacar certos hábitos alimentares, alfabetização e de difusão do hábito de leitura.
Em certos meios, ser alemão assumia uma encenações teatrais típicas, corais de igrejas, A formação de um campesinato típico, com
conotação inferior, de negação, de exclusão. bandas de música, e assim por diante. Exemplo forte herança da Europa Central e significativa
No entanto, a memória, que não pode ser expressa característico é a Oktoberfest, que, a princípio, contribuição na agricultura familiar no Brasil,
publicamente, não deixou de se manifestar, até surgiu como uma forma de manifestação contra é responsável pela criação de determinados
na clandestinidade, e continuou rememorada e as atitudes tomadas pelo Estado Novo em animais e pelo cultivo de produtos agrícolas,
transmitida de uma geração para outra. proibir atividades culturais que idenficassem a a exemplo da suinocultura e da triticultura, e
De forma geral, a imigração e a colonização germanidade. Hoje, ela é uma festa que pela estruturação de uma forte agroindústria
alemã no Brasil teve um importante papel no simboliza a alegria alemã, tendo incorporado, cooperativa e privada.
processo de diversificação da agricultura, com adaptações e modificações, a gastronomia,
urbanização das cidades, industrialização e a música e a língua alemãs.
cultura, ou seja, em grande parte, acabaram A contribuição alemã na colonização e na
preenchendo os espaços não-preenchidos na formação da sociedade brasileira é exemplar em
estrutura ocupacional brasileira tradicional. alguns aspectos. Foi a que iniciou primeiro e
Na esfera da religião, muitos pastores, padres e predominou até a década de 1970 do século
Referências Bibliográficas
religiosos são descendentes de alemães. Várias passado. As questões que envolvem a língua
igrejas luteranas foram implantadas com a (não-latina), a escola e a religião revelam GREGORY, Valdir. Os euro-brasileiros e o espaço
chegada dos imigrantes e o próprio ritual forte resistência e marca da diferença, uma vez colonial : a dinâmica da colonização no oeste
católico adquiriu certas especificidades nas que o alemão continua sendo falado, a religião do Paraná nas décadas de 1940 a 1970.
comunidades alemãs. A vida cultural dos protestante está presente em grande parte do Niterói, 1977. Tese (Doutorado) – Universi-
imigrantes também influenciou, por meio de território brasileiro e a escola e a imprensa dade Federal Fluminense, 1997. 360 p.
diversas formas, a sociedade brasileira, alemã contribuíram nos índices de
KREUTZ, Lucio. Magistério e imigração alemã : o
Vista aérea de Aratiba - RS professor paroquial católico teuto-brasilei-
IBGE ro do Rio Grande do Sul no movimento da
restauração. São Paulo, 1985. Tese (Douto-
rado) – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 1985.
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Imigração alemã: formação de uma comunidade teuto-brasileira
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Angela de Castro Gomes
Imigrantes italianos
entre a italianità e a brasilidade
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
Antonio Rocco
Os emigrantes - c. 1910
Óleo sobre tela - 202 x 131 cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo
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Angela de Castro Gomes
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
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Angela de Castro Gomes
Cândido Portinari
Descobrimento - 1941
Pintura mural à têmpera - 3,16 x 3,16m
João Cândido Portinari
Cromo cedido pelo Museu de Arte Moderna - RJ
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
de absorver tão amplo número de pessoas, uma que os imigrantes dessa época aprendiam que economia e eram chamados de braccianti.
vez que o desenvolvimento industrial apenas eram ou deviam tornar-se “italianos”. Mas em qualquer dos casos, neste período,
começava. Assim, é bom ficar claro que esta não dava-se preferência à imigração de famílias e
Por este conjunto de condições, é possível
era uma Itália “dividida” entre um norte rico não de indivíduos isolados: famílias numerosas,
entender porque a Itália estimulava a emigração,
e industrial e um sul pobre e agrário, como nos de cerca de uma dúzia de pessoas, e integradas
desfazendo-se de cerca de 20 milhões de pessoas
acostumamos freqüentemente a visualizá-la. por homens, mulheres e crianças de mais de
no período compreendido entre 1860 a 1940,
O recém fundado Estado italiano era, no geral, uma geração.
sendo que 85% deste volume concentrado entre
ainda fundamentalmente agrário, e a maioria da
1860 e 1920. Tratava-se de um mecanismo há Este tipo de imigrante “coletivo” estava
população se compunha de homens e mulheres associado à forma de imigração então
muito conhecido e praticado na Europa, que
que se vinculavam a suas regiões e aldeias; implementada – a subvencionada – uma vez que
aliviava um país de pressões socioeconômicas,
que se comunicavam por dialetos variados; que se articulava à definição de seus dois destinos
além de alimentá-lo com um fluxo de renda vindo
festejavam santos locais e que tinham costumes básicos: uma parte mais numerosa devia ser
do exterior, em nada desprezível, pois era comum
bem diferenciados. Por isso, não se reconheciam levada às fazendas de café paulistas para
enviar economias para os parentes que haviam
como “italianos”, como a política imigratória os substituir o braço escravo, e uma outra dirigia-se
ficado. Mas, para os que emigravam, tratava-se
designava, e como iriam ser identificados pelos aos núcleos de colonização, fundamentalmente
primeiramente de sobreviver e, não menos
brasileiros e pelos demais imigrantes ao desem- oficiais, localizados no Rio Grande do Sul, Santa
importante, de sonhar com a chance de
barcarem em nosso País. Ou seja, era no Brasil Catarina, Paraná e Espírito Santo.
enriquecer e até possuir um pedaço de terra,
quem sabe voltando à aldeia natal como um vi-
torioso que soube resgatar a dignidade e honra
de toda a família. Assim, vale ressaltar, desde
logo, que o fenômeno da imigração também se
caracterizou por um fluxo de retornos muito
considerável, ao menos no exemplo dos italia-
nos. Sempre houve casos de imigrantes que via-
jaram mais de uma vez para o Brasil e casos de
imigantes que, por serem bem ou malsucedidos,
decidiram voltar a viver na Itália. De qualquer
modo, houve sempre uma sistemática renovação
de imigrantes, tanto no campo, como na cidade.
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Angela de Castro Gomes
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
Colheita de uva
IBGE
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Angela de Castro Gomes
Uma terceira parte de imigrantes, de início muito necessidade de qualquer tipo de indenização. uma certa quantia em dinheiro. No período da
menor, mas que cresceu com o passar do tempo, Por isso mesmo, também sem ela, seria pratica- safra, a família ficava responsável, por sorteio, por
localizava-se nas cidades, como o Rio de Ja- mente impossível “libertar” o imigrante do jugo do uma parte do cafezal, recebendo pagamento
neiro e São Paulo, adensada por indivíduos que fazendeiro que financiava sua viagem (passagem proporcional ao café colhido. Além disso, tinha
abandonavam o campo, reemigravam de outros e alojamento) e seu trabalho inicial na lavoura, direito à casa e quintal, onde podia criar animais
países ou mesmo burlavam a vigilância, não uma vez que toda essa despesa devia ser paga, bem e fazer horta. Podia igualmente plantar milho e
seguindo para o interior. como as compras empreendidas nas “vendas” das feijão entre as fileiras do cafezal que estivessem
fazendas. Tal processo de endividamento, aliado a seu cuidado, garantindo sua subsistência e
Tais famílias, portanto, decidiam emigrar em
a uma mentalidade escravista, gerou conflitos e também a da própria fazenda, embora raramente
grande parte porque eram arregimentadas por
tensões em graus muito variados entre colonos e podendo dispor de excedente para comercializar.
agenciadores contratados por fazendeiros ou pelo
proprietários, ainda não habituados ao trato com
governo brasileiro, tanto imperial quanto republica- Tratava-se, assim, de um regime de trabalho
homens livres e convencidos de que o imigrante
no. Neste sentido, é importante registrar que, que combinava características diversas, sendo
deveria trabalhar alguns anos antes de poder
em 1871, logo após a Lei do Ventre Livre, o muito conveniente ao fazendeiro que, como já se
comprar sua terra ou abandonar a fazenda.
governo imperial aprovou uma lei que sancionava a ressaltou, criava uma verdadeira dependência dos
De toda forma, se a dependência e as difíceis
emissão de apólices de até 600 contos, visando colonos para com a fazenda, limitando sua mobili-
condições de vida e trabalho não desapareceram,
ao pagamento de passagens de imigrantes e, no dade geográfica e até pessoal. Entretanto, a
foram minimizadas com o subsídio governamen-
mesmo ano, foi criada a Associação Auxiliadora de aceitação pelos imigrantes italianos dessas condi-
tal à imigração absolutamente essencial, sobre-
Colonização e Imigração. No caso de São Paulo, ções de trabalho deve ser entendida não apenas
tudo em estados como São Paulo. Finalmente,
por sua importância para o fluxo de italianos, vale em função das dificuldades que viviam em sua
pode-se também afirmar que teria sido muito
ressaltar que, em 1884, o presidente de província terra natal, caso dos braccianti, como igualmente
mais difícil o estabelecimento de um fluxo de
foi legalmente autorizado a dispor de 200 contos pelo fato de corresponderem a uma experiência
imigração espontânea, sem que essa experiência
para criar núcleos coloniais e de 400 contos para que, de certa forma, conheciam como
de recrutamento inicial tivesse sido aplainada
subsidiar passagens de imigrantes que poderiam arrendatários ou meeiros. De toda forma, é
por uma incisiva e definitiva intervenção oficial.
se dirigir quer aos núcleos, quer às fazendas de evidente que a grande massa de italianos que se
café. Ou seja, se o processo de imigração subsidiada No caso dos italianos, este é um ponto vital tornava colono ou empregado de uma fazenda de
teve, em seu início, participação direta de para a compreensão das condições de sua viagem café trabalhava em condições muito duras, tendo
fazendeiros, ele foi sendo transferido cada vez mais e estabelecimento no Brasil, pois foram eles os pequenas oportunidades de acumular capital.
para os governos provincial e estadual. imigrantes que se tornaram, por excelência, os Eram proporcionalmente poucos os que
Após 1887, foi o poder provincial que arcou com as “colonos” das fazendas de café. Desta maneira, realizavam o sonho da compra de uma pequena
passagens dos imigrantes junto às Companhias de tanto peninsulares do norte quanto do sul, propriedade e quando o faziam, não se tratava de
Navegação, o que tornou este negócio muito vinham atraídos por uma propaganda que lhes porção de tamanho ou valor muito significativo.
rentável e explica o enorme volume de imigrantes garantia passagem, alojamento e deslocamento
gratuitos até à localidade de destino, acenando Mas havia aqueles que já vinham para o
arregimentado. Foi por isso que, em 1888, ano da
ainda com a promessa de “fazer a América”, quer Brasil com a promessa de se transformarem em
Abolição da Escravatura, o número de imigrantes
dizer, enriquecer e comprar um pedaço de terra. proprietários, recebendo um lote em núcleo de
italianos trazidos para São Paulo e para as fazendas
Para tanto, os imigrantes se comprometiam com colonização oficial. Entretanto, a despeito da
de café já era capaz de tranqüilizar os fazendeiros
contratos que estabeleciam não só o local para enorme diversidade que separa as duas experi-
quanto as suas necessidades mais imediatas de
onde se dirigiriam, como igualmente as condições ências, as condições de vida enfrentadas por esse
mão-de-obra, sendo que em 1890, primeiro ano
de trabalho a que se submeteriam. É bom frisar, segundo tipo de colono também não foram fáceis.
da República, a quantidade de entradas de
por conseguinte, que o colonato não era uma rela- Isto porque, sobretudo no caso dos italianos, os
italianos foi ainda maior.
ção de trabalho assalariado, estando fundado em quais chegaram ao sul do País após os alemães, os
A centralidade de uma política de imigração regime de trabalho familiar, do qual todos, núcleos coloniais para os quais foram encaminha-
subvencionada para o decurso do processo inclusive mulheres e crianças, deviam participar. dos estavam mais distantes das regiões já habita-
abolicionista é, portanto, muito clara, uma vez Por meio dele, cada família cuidava de um das, situando-se em áreas pouco férteis e desprovi-
que o imigrante era “entregue” ao fazendeiro sem número de pés de café, recebendo por cada mil pés das de meios de comunicação que permitissem
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
escoamento de produtos ou maior integração Era impossível, para tais colonos, manter-se
com a sociedade brasileira. Assim, muitas vezes sem uma proteção governamental inicial, que
após meses de espera, chegavam a regiões geralmente durava dois anos, sendo exercida por
cobertas por florestas, algumas em fronteira com um administrador que dirigia o núcleo e
povos indígenas, onde deviam, por dever intermediava os contatos com as autoridades pú-
contratual, construir casas e realizar plantações, blicas. Nesse período, garantia-se uma diária aos
ignorando as características do solo, as técnicas moradores, além de se permitir seu trabalho em
agrícolas adequadas e a forma de usar as semen- obras públicas, como a construção de estradas de
tes de que dispunham. Nestas tarefas, embora ferro e a limpeza de rios. Após os dois anos,
fossem os “brancos civilizadores”, foram em muito a colônia ficava emancipada, devendo o colono
ajudados por negros e caboclos que atuaram como começar a pagar o seu lote e outros financiamen-
Família italiana no núcleo tos, o que geralmente só conseguia realizar após
colonial Jorge Tibiriçá, atual agentes transmissores de um saber vital para a
cidade de Corumbataí - 1911 sobrevivência em nosso “paraíso” tropical. dez anos. Como se percebe, nessa situação, o
Instituto Agronômico de Campinas - SP projeto original de formar uma camada de peque-
nos proprietários dedicados à produção de alimen-
tos que abastecesse o mercado interno, ficava
muito prejudicado. A produtividade do solo era
baixa, o escoamento difícil e a vida duríssima,
não havendo qualquer tipo de assistência médica,
religiosa, etc. As famílias que partiam para os
núcleos coloniais tinham mais chances de pros-
perar quando dispunham de alguma economia
inicial e quando numerosas, possuindo muitos
braços para mobilizar na lavoura. Mas não era
incomum casos de abandono do lote e de morado-
res que, após mais de dez anos, quase nada
possuíam e ainda deviam ao governo e a comer-
ciantes do local. Havia assim uma diferenciação
ocupacional no interior da colônia, exemplos de
razoável ascensão e graus diversos de pobreza.
Tudo isso, naturalmente, dependendo do lugar e
momento de sua constituição.
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Angela de Castro Gomes
Adolpho Fonzari
Praça Ramos de Azevedo - 1915
Óleo sobre papelão - 18 x 26,8cm
Pinacoteca do Estado de São Paulo
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Edifício Martinelli
Arquivo Nacional
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dia, o que não chegava a ser razão de desânimo, como a maioria dos poucos italianos que enrique-
uma vez que o ethos do trabalho caracterizava ceram muito no Brasil, provinha de uma família
fortemente o imigrante, incluindo o italiano. de classe média e chegou ao Brasil trazendo
Esta é, aliás, uma das características mobilizadas alguns recursos e uma clara idéia do negócio que
para a constituição de uma identidade étnica em desejava estabelecer: uma fábrica de banha.
distinção aos brasileiros, considerados, por Posteriormente, com o apoio de banqueiros
definição, menos instruídos, mais preguiçosos e ingleses e atuando ele mesmo como banqueiro
“malandros”, além de “menos brancos”. que se encarregava das remessas das economia de
Neste sentido, os imigrantes italianos reiteravam seus conterrâneos para a Itália, deslanchou seus
o discurso que os arregimentou em seu país de negócios e construiu uma imagem também
origem, e que lhes atribuía uma capacidade de vinculada aos esportes, pois foi quem doou o
trabalho e de aprendizagem superior aos terreno para a construção do estádio do Palestra
nacionais. Idéia que tem desdobramentos com- Itália, transformado, em 1942 – e por causa da
plexos, reproduzindo-se entre grupos de etnias II Guerra – na Sociedade Esportiva Palmeiras.
diversas e dificultando a constituição de uma Matarazzo é bem um mito, uma mistura de rea-
solidariedade de classe no interior das associações lidade e ficção, ilustrando a fábula do imigrante
operárias. Assim, as relações entre operários modesto que, exclusivamente com seu trabalho,
italianos, espanhóis e portugueses não eram boas, dera início ao processo de industrialização pau-
como também não o eram as estabelecidas entre lista. Outra idéia que, a rigor, não corresponde
colonos alemães e italianos. Se trabalhar nunca propriamente aos fatos, uma vez que os negócios
foi o maior problema para os imigrantes, e bancários e industriais já se encontravam em
também para os brasileiros, que igualmente desenvolvimento quando imigrantes italianos
acreditavam que este era um caminho viável para aqui aportaram. Justamente por isso,
o enriquecimento, para os primeiros, a ascensão constituíram-se em alternativas que puderam
por meio do trabalho árduo vinha reforçada pelos ser exploradas por vários deles e suas famílias,
exemplos que circulavam sobre patrícios que sendo bem mais acessíveis que a grande
haviam se tornado grandes banqueiros e propriedade de terras, especialmente em
industriais, começando “do nada”. São Paulo.
aos operários de seu complexo industrial, que ele, o estereótipo de carcamano, ou seja, a imagem do
por sinal, jamais corrigiu. Entretanto, Matarazzo, italiano inferior, por sua ignorância, rusticidade e
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Imigrantes italianos: entre a italianità e a brasilidade
mesmo falta de honradez: aquele que roubava no presença de crianças de menos de 12 anos em nos anos de 1920 e 1930, passando a desencade-
peso ao calcar a mão na balança. A luta por uma fábricas, como relatórios, fotografias e jornais ar uma política que buscava resgatar um
identidade italiana foi, portanto, mais uma bata- operários demonstram fartamente. sentimento de orgulho “de ser italiano” fora da
lha travada em terras brasileiras pelos imigran- Os imigrantes italianos não dispunham, assim, Itália. O próprio processo migratório passa a
tes chegados durante a “grande imigração”, bem de muitas condições de valorizar a educação ser tutelado pelo governo, que cria uma série de
como por seus descendentes. Seus resultados formal, no que não diferiam muito da população instituições – consulados, jornais, associações e
necessariamente não puderam ser os mesmos pobre de brasileiros, o que fica registrado no escolas –, destinadas a divulgar a doutrina
daqueles obtidos pelos italianos “que se fizeram” dito popular: “mais vale a prática que a fascista e a tornar o imigrante, até então
na Itália. Nesta permanente luta, muitas gramática”. Apesar dessa dificuldade, não ignorado por sua pátria natal, “um italiano no
instituições tiveram papel chave, dentre as quais foram poucos os esforços dos imigrantes para exterior”. Este foi um período em que a questão
a escola, a igreja, as associações beneficentes, estabelecer escolas para seus filhos e assim lhes da italianità ganhou novos contornos e só
profissionais, recreativas e, também, a imprensa. permitir outras oportunidades no novo País. nesse contexto se pode compreender a adesão de
Em grande parte eram iniciativas efêmeras, muitos imigrantes e descendentes ao fascismo,
No caso dos italianos, a Igreja Católica,
custeadas pelo grupo imigrante, que podia se uma vez que se percebiam, pela primeira vez,
através de um clero italiano e de todo seu
responsabilizar integralmente ou, em parte, amparados e valorizados por serem italianos.
poderio no interior da sociedade brasileira, foi
pelas despesas com prédio, professor e livros. Entretanto, pela mesma razão, foi um período
fundamental. Os laços entre catolicidade e
Por isso, nessas “escolas étnicas”, o ensino de confrontos no interior da população de
italianità são estreitos, desdobrando-se nos
podia se fazer apenas em italiano, ou podia imigrantes, pois eram numerosos e ativos os
espaços de ensino e lazer, onde as escolas
haver um professor que ensinava em português;
religiosas e as festas dos santos padroeiros das partidários do antifascismo, socialistas em
aldeias sempre foram o grande destaque, como elas podiam igualmente contar com auxílio do
grande parte, engajados na luta internacional
São Vito Mártir demonstra, mas não esgota. governo brasileiro, mas raramente tiveram
contra o nazi-fascismo e, no Brasil, contra o
A língua foi outro ponto crucial e complexo, pois ajuda vinda da Itália.
integralismo. É também nesse mesmo contexto
o falar italiano era instrumento estratégico de Esta situação só mudaria de forma subs- que se pode entender, especialmente durante
união étnica, sendo os dialetos considerados tantiva depois que Mussolini chegou ao poder, o Estado Novo e após a declaração de guerra
indícios de rusticidade que deviam ser
abandonados ou, como ocorreu, mantidos no
espaço mais privado do lar. Para tanto, a escola
era fundamental, sendo igualmente um lugar Alunos e professora na escola do Núcleo Colonial Campos Salles
“Ela (a professora) devia entender alguma coisa de português
para se aprender corretamente o português, e nós tínhamos o livro de leitura bilíngüe, página dividida,
língua que permitia uma locomoção mais fácil italiano-português, porém impresso na Itália para os filhos
dos imigrantes no Brasil. Acontece que nós não sabíamos nem
na sociedade brasileira e que, em muitos casos,
o italiano nem o português, porque nossa língua é outra
foi conhecida antes do italiano. Mas ter escolas chamada vêneto.”
(Depoimento de Benedito Zorzi, brasileiro, nascido em 1908 em Caxias do Sul,
não era fácil, seja porque não havia oferta do Rio Grande do Sul; citado em DE BONNI, 1990, vol. II, p.570)
governo, seja porque a demanda dos imigrantes
Instituto Agronômico de Campinas - SP
também não era grande. Isto ocorria, porque a
maioria dos imigrantes italianos, embora
analfabeta ou de parca instrução, dirigia-se
para as fazendas de café e para os núcleos
coloniais, onde todos deviam trabalhar no
campo, restando pouca possibilidade para o
encaminhamento de crianças à escola.
Nas maiores cidades, a situação era distinta,
uma vez que havia mais chances de acesso a
uma escola, mas não diferia tanto no que se
referia ao trabalho infantil, já que era comum a
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Angela de Castro Gomes
aos países do Eixo, a “campanha de nacionali- perseguições. Desta forma, são numerosíssimos técnicos e executivos de empresas italianas que
zação” lançada por Vargas, que incidiria sobre os italianos naturalizados e descendentes que se abrem filiais no Brasil. A Itália tornou-se um
japoneses, alemães e italianos, nesta hierarquia sentiram atingidos como cidadãos brasileiros, dos países mais modernos e ricos da Europa,
de virulência. Não era, contudo, a primeira vez uma vez que não viam como traição amar suas sendo a terra de canções e de massas saborosas,
que a imagem de um “perigo italiano” estava origens culturais e amar o Brasil como sua mas sendo também a terra da arte clássica e da
sendo mobilizada. Algo similar já havia ocorri- pátria política. ciência e tecnologia de ponta. Quando, nos anos
do quando do primeiro conflito mundial, além de 1970, são comemorados os 100 anos de
do que, a preocupação com “quistos” raciais Após a II Guerra, abriu-se uma nova fase do imigração italiana, é esta Itália multifacetada
datava ainda do período imperial, tempo em que fenômeno migratório, fundada na que é festejada no Brasil, onde um número cada
o “abrasileiramento” já consistia preocupação imigração espontânea e preocupada em superar vez maior de jovens descendentes deseja sua
sistemática de nossa política imigratória. Mas o os “equívocos” do período anterior: a Itália dupla cidadania. Uma “Itália” que só existe no
período da II Guerra foi momento muito espe- havia se tornado país aliado e a Força Brasil, em que como forma de manter os
cial, em que bens de italianos foram bloqueados Expedicionária Brasileira recebera o carinho vínculos com a terra natal, hábitos alimentares
e várias associações e escolas fechadas. da população peninsular. Além disso, tratava-se e muitos outros costumes se perpetuaram, por
A imprensa, que sempre contou com muitos igualmente de sepultar a imagem negativa de via de guardiões da tradição familiar e de
títulos, dentre os quais o famoso Fanfulla, de um italiano pobre e ignorante, útil basicamente aldeia. Uma Itália do fettuccine, da tarantella
São Paulo, recebeu um golpe mortal. como mão-de-obra braçal. Os novos imigrantes, e da Fiat que simboliza, em sua diversidade e
Há inúmeros casos de mudanças de nomes de desde os anos de 1950 e 1960, seriam sobretu- complementariedade entre tradição e progresso,
estabelecimentos e até de famílias, por temor a do trabalhadores industriais e crescentemente o que é ser italiano no Brasil.
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navegação. Afinal, explicavam, tudo era assados. Desse modo, não é de estranhar que
América. A imigração para os Estados Unidos Knowlton (1960) tenha apontado para casos
começou na mesma época, a década de 1980 do de fuga de trabalhadores árabes do campo
século passado, acreditando-se que atualmente para a cidade.
haja entre 1 e 2 milhões de americanos de
O grosso da imigração dirigiu-se para São
origem árabe vivendo naquele país.
Paulo e Rio de Janeiro, localizando-se núcleos
Desembarcados no Rio ou em Santos, a menores em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
opção de trabalho das primeiras levas dirigiu-se Bahia. Até 1920, mais de 58 mil imigrantes
ao comércio. O objetivo da maioria dos jovens tinham entrado no Brasil, sendo que o Estado
solteiros era fazer algum capital para poder de São Paulo recebeu 40% do total.
voltar à aldeia natal. Embora pobres e, em
geral, afeitos ao trabalho agrícola, o sistema da
grande propriedade era um entrave para o
estabelecimento no campo. Poucos foram os
árabes que após o desembarque dirigiram-se
para a agricultura, havendo histórias de
famílias nas quais isso ocorreu após formarem
um pequeno capital no comércio, facilitando a
compra de fazendas. Além do mais, as condições
de trabalho na lavoura tinham horrorizado
a muitos. A miséria da população rural e o
sistema de compra vinculado ao proprietário da
terra fizeram com que muitos repelissem a
possibilidade de se ocuparem na agricultura.
Zuleika Alvim, citando P. Colbacchini, lembrou
o desapontamento de muitos imigrantes
italianos com as condições de vida na grande
propriedade cafeeira: “Distante da casa do
fazendeiro se estende uma fileira de casinhas,
Segundo Truzzi (1992), na cidade de São
normalmente construídas com barro e cobertas
Paulo, em 1934, eles se concentravam nos
de palha, minúsculas para o número de pessoas
Distritos da Sé e Santa Ifigênia, ou seja, entre as
que devem abrigar e com portas assinaladas por
ruas 25 de Março, da Cantareira e Avenida do
números progressivos, porque, de agora em
Estado; no Rio de Janeiro, um processo
diante, cada família, mais do que pelo
semelhante ocorreu com um número
sobrenome, devia se reconhecer pelo número da
significativo de comerciantes instalados nas ruas
casa onde mora [...]” (Colbacchini apud Alvim,
da Alfândega, José Maurício e Buenos Aires.
1998, p. 252). Os japoneses, ainda segundo esta
mesma autora, chegando “[...] às fazendas, A eleição da rua 25 de Março como pólo de
ficavam à mercê dos donos das vendas” (Alvim, atração é melhor conhecida. Em 1893 já há
op. cit. p. 254), onde tinham que comprar referências a casas de comércio, sendo que 90%
mantimentos com os quais era difícil recriar o dos mascates eram sírios e libaneses. Em 1901,
universo alimentar a que estavam acostumados. já eram mais de 500 casas comerciais na região.
Compravam carne-seca e bacalhau que, na falta Seis anos depois, um levantamento indicou que
de quem os ensinasse o preparo, eram comidos de 315 firmas de sírios e libaneses, 80% eram
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lojas de tecidos a varejo e armarinhos. A eclosão O trabalho de mascate pelo qual muitos Para as populações interioranas,
da I Guerra Mundial aumentou os lucros começaram no comércio já era exercido principalmente nas fazendas onde vigorava o
do comércio e da indústria com a interrupção da anteriormente por imigrantes portugueses e sistema de compra vinculado ao proprietário,
importação dos produtos europeus. italianos, tanto em São Paulo como no Rio. os mascates eram bem-vindos por fornecerem
Mas a mascateação, que se tornaria uma uma alternativa vantajosa em termos de
No Rio de Janeiro, o processo de instalação
marca registrada da imigração árabe, foi qualidade e preço. Conforme acumulavam os
do comércio árabe na área atualmente
completamente alterada pelos recém-chegados. ganhos, os mascates podiam contratar um
conhecida como “Saara” vem sendo pesquisado
Knowlton (op. cit.) faz menção ao trabalho ajudante ou comprar uma carroça. O passo
por Paula Ribeiro (1997). Com a abertura da
inicial com miudezas e bijuterias (terços e jóias), seguinte era o estabelecimento de uma casa
avenida Presidente Vargas na década de 1940,
expandida com o tempo e o acúmulo de capital comercial urbana que podia permanecer no
muitos comerciantes foram obrigados a
para tecidos, armarinhos, lençóis, roupas varejo ou evoluir para o atacado. O último
abandonar o quadrilátero próximo à praça da
prontas, artigos que pudessem ser vendidos em grande passo era a indústria.
República, mudando-se para a Tijuca. Como na
rua 25 de Março, em São Paulo, o comércio da lugares isolados ou nos vilarejos, sendo Truzzi (op. cit.) destacou o sucesso do
rua da Alfândega é conhecido pelo caráter transportados dentro de uma mala ou em baús. comércio da colônia sírio-libanesa como
popular. Em 1962, foi fundada a Sociedade de O ideal era que cada mascate levasse nas viagens baseada no relacionamento dos agentes
Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega – o máximo de artigos que pudesse carregar, envolvidos nos negócios. Os elos eram montados
SAARA, cuja sigla serviu como uma luva para o citando-se casos em que alguns chegaram a levar dentro de uma cadeia que começava na
tipo de comerciante ali estabelecido. 80 quilos de mercadorias. chamada e recepção de novos imigrantes,
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passando por mecanismos de concessão de considerando-os inclusive como criadores do Era formado pela Universidade Americana de
crédito e mercadorias, acompanhamento dos “comércio popular” no Brasil. Enquanto os Beirute, tendo trabalhado por dez anos
negócios, até o assentamento do mascate como mascates portugueses eram muito rígidos nos como professor. Publicou em 1886 um livro
varejista, atacadista ou industrial, dentro de seus negócios, os italianos foram sobre matemática. A saída do Líbano deveu-se a
uma linha de complementaridade de paulatinamente sendo expulsos pelas novidades uma discussão filosófica e religiosa sobre a tese
interesses. Entre os decênios de 1940 e de 1950 trazidas pela concorrência. As inovações darwinista da evolução das espécies. Com todos
notou-se que no Estado de São Paulo, embora o apresentadas pelos árabes na mascateação e no esses predicados, percebe-se que Nami Jafet não
número de comerciantes varejistas tivesse comércio varejista encontravam-se na era um imigrante comum, embora Truzzi
caído, o atacado tinha quase dobrado e, os redefinição das condições de lucro, alta afirme que os irmãos não tinham o mesmo nível
industriais, quintuplicado, mostrando a rotatividade e alta quantidade de mercadorias intelectual, e por isso foram trabalhar na
pujança do capital acumulado, passando vendidas, promoções e liquidações e o interesse mascateação. Em 1897, abriu uma firma
do pequeno comércio para posições mais pelo consumidor. comercial que estava sediada, em 1903, na rua
vantajosas na produção e circulação Florêncio de Abreu, tradicional rua atacadista
O sucesso mais ostensivo, porém, estava da área central de São Paulo. A fábrica de
de mercadorias.
localizado na indústria, principalmente nas tecidos, a Fiação, Tecelagem e Estamparia Jafet
Esse mesmo autor, ao contrário de muitos duas primeiras décadas do Século XX, quando S.A., foi instalada em 1907. Ao contrário dos
outros que passam com amargor pelo termo deslanchou o processo de substituição das industriais italianos como Matarazzo, Crespi
pejorativo do “turco da prestação” surgido com o importações através da industrialização do País. ou Sicialino, Jafet construiu sua mansão nas
mascate, destacou a revolução nas práticas Um caso significativo é o da família Jafet. Nami proximidades da fábrica, no bairro do Ipiranga,
comerciais implantadas pelos sírios e libaneses, Jafet imigrou em 1893 já com a idade de 33 anos. sendo seguido pelos irmãos, desviando-se do
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tentaram judicialmente colocar o nome do país. A escolaridade sempre foi incentivada seguintes mostram como o Brasil perdeu
Na impossibilidade, fundaram o Clube Atlético entre os sírios e libaneses, sendo que em 1897 já atração para outros países como o Canadá e os
Monte Líbano. O Hospital Sírio-Libanês havia uma Escola Sírio-Francesa (Maronita) em Estados Unidos, tradicional destinatário da
começou como Hospital Sírio. Contudo as São Paulo. Nos anos seguintes foram fundados corrente migratória árabe.
diferenças entre os grupos étnicos fez com que na capital paulista o Ginásio Oriental (1912),
Nas últimas décadas, a contribuição
os sírios se retirassem da Sociedade Beneficente o Colégio Sírio-Brasileiro (1917), o Colégio
cultural dos árabes tem sido mais lembrada pela
de Damas Pró-Hospital Sírio-Libanês, partindo Moderno Sírio (1919) e o Liceu São Miguel
culinária, embora haja outros campos em
para a fundação do Hospital do Tórax, atual (1922). No Rio de Janeiro, a Escola Cedro do
que sua presença tem sido marcante.
Hospital do Coração. Líbano (1935); e em Campos, a Escola Árabe.
O aumento das cadeias de fast-food nos grandes
Quanto aos níveis de escolaridade superior,
Em outros campos as diferenças também centros urbanos aproximou a população do
Truzzi diz que embora numericamente
se fizeram presentes. Entre 1895 e 1971, foram quibe, da esfiha, do tabule e da coalhada seca,
inferiores, os árabes conseguiram atingir
publicados cerca de 160 periódicos dirigidos à antes circunscritos aos restaurantes típicos.
percentuais próximos aos das colônias mais
colônia. Em 1941, ano em que o Departamento A popularização, sobretudo do quibe e da esfiha,
numerosas nos campos das profissões liberais
de Imprensa e Propaganda – DIP proibiu a fez com que fossem incorporados a outros locais
como advocacia, medicina e engenharia (entre
circulação de qualquer publicação em língua de alimentação, como as tradicionais pastelarias
1884 e 1943 os turco-árabes representavam
estrangeira, foram suspensos dois diários, chinesas, e mesmo bares e padarias de
2,5% do total dos imigrantes no Brasil contra
quatro jornais que eram publicados duas vezes portugueses e brasileiros.
33,7% dos italianos, 29,2% dos portugueses e
por semana, um semanário, quatro
13,9% dos espanhóis). O investimento familiar A inserção dos imigrantes árabes na
quinzenários e quatro mensários. Não se sabe o
na escolaridade agia tanto sobre os homens política guarda algumas características
número dos que voltaram a ser publicados em
quanto sobre as mulheres. A diferenciação particulares. Segundo Oswaldo Truzzi (op. cit.),
português. Em 1971, havia em São Paulo um
surgia no ensino superior. Enquanto os homens estudando o caso de São Paulo, ela é recente,
jornal publicado duas vezes por semana, três
eram privilegiados, relatando-se casos de tendo começado depois do Estado Novo (1937-
semanários e três mensários. Dentro destes
família em que o sacrifício para a formação de 45), centrada em membros da colônia
números, Truzzi (op. cit.) destacou a perda de
“doutores” foi muito grande, as mulheres eram pertencentes às camadas médias ou à elite
importâncias cultural e informativa dos
instadas a não se profissionalizarem, limitando- econômica, com expressiva participação de
periódicos, muitos deles dedicados a retratar
se na maioria dos casos à obtenção do diploma. candidatos com carreiras iniciadas em cidades
acontecimentos social e mundano.
Uma livraria especializada estava aberta em A imigração árabe vem decaindo desde os do interior e uma representação parlamentar ou
1902. Jorge Safady destacou a existência de anos de 1920. Embora não tenha havido Censo em cargos dirigentes numericamente superior
14 tipografias especializadas em 1971. Demográfico em 1930, os dados para as décadas ao conjunto dos imigrantes e descendentes,
fenômeno que se repetiu em outros estados da
federação, levando a uma sobre-representação
da colônia. Com essas características não é de
se estranhar que nos vários níveis legislativos
os árabes e seus descendentes tenham
localizado a sua base parlamentar em partidos
conservadores ou ligados ao populismo.
Tendo começado pelas mãos de políticos como
Adhemar de Barros, Getúlio Vargas ou Jânio
Quadros, e em períodos mais recentes através
da Arena ou do PDS, os representantes de
origem sírilibanesa contaram com nomes
como Emílio Carlos, Ibrahim Abi-Ackel ou
Paulo Maluf. O último, inclusive, chegou a se
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Imigração árabe: um certo oriente no Brasil
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Imigração árabe: um certo oriente no Brasil
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Referências Bibliográficas
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O sol nascente do Brasil
um balanço da imigração japonesa
Kaori Kodama
O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
198
Kaori Kodama
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O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
favorecer a entrada de imigrantes europeus e Do lado japonês, desde a Restauração Os fluxos migratórios em direção ao Brasil,
dificultar a vinda de trabalhadores asiáticos. Meiji, o crescimento populacional, a escassez desta forma, se intensificariam justamente
E, se a necessidade de suprir a carência de de terras e o endividamento dos trabalhadores quando o governo norte-americano vetava a
mão-de-obra nas zonas cafeicultoras não rurais, devido à modernização econômica e à imigração dos japoneses em seu território.
restringia, a princípio, os candidatos à monetarização do sistema tributário, levaram o É a partir deste momento que o Brasil passaria
imigração, a questão da raça manteve-se ainda governo a incentivar uma política de emigração, a exercer um papel estratégico como saída para
polêmica por muito tempo, uma vez que as enviando trabalhadores para outros países, e os interesses do Japão e sua política imigratória.
elites buscavam, através da política também para outras regiões dentro do seu De pontos diferentes do Japão vinham eles: em
imigratória, definir o perfil da nação em próprio território, como foi o caso da ilha mais sua maioria, da ilha de Okinawa, de Kagoshima,
construção nos moldes europeus. Em meados ao norte do Japão, Hokkaido. Data, assim, desta Fukushima, Hiroshima e Kumamoto, com
do Século XIX, a discussão sobre a entrada de época a saída dos primeiros emigrantes em projetos parecidos e decepções compartilhadas.
chineses, considerados indolentes, na Câmara direção ao Ocidente, que se dirigiam
de deputados, acabava em um veto. Já no principalmente para o Havaí e os Estados
início da República, o Decreto de 28 de junho Unidos. Parte da população migrou para a
de 1890 restringia a entrada de imigrantes Coréia e Manchúria, com a ocupação japonesa.
asiáticos ou africanos no Brasil. A saída, entretanto, previa sempre um retorno
da população para o seu país.
Não era, pois, de se estranhar a
recorrência das discussões a respeito da
imigração nas relações diplomáticas entre
Brasil e Japão. A tentativa de trazer
trabalhadores para a lavoura cafeeira já
ocorrera em 1894, por iniciativa de uma
companhia japonesa, mas sem sucesso.
O Tratado de Amizade firmado em 1895 com
o Brasil representava alguns passos no sentido
de efetivar o projeto migratório. Conforme um
artigo do Japan Times de 23/12/1897,
o diplomata da Legação Brasileira em Tóquio Imigrante japonês com seu passaporte
discursava para o governo japonês sobre Memorial do Imigrante / Museu da Imigração
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Kaori Kodama
A chegada dos primeiros japoneses no País confrontado com a dura realidade do trabalho Dizia uma canção das colônias, retratando
desencadeou a dolorosa relação dos imigrantes na lavoura, ia se mostrando de difícil realização. as decepções sentidas: “Mentiu quem disse que
com o sentimento de desilusão, experimentado As companhias de imigração que instalaram o Brasil era bom, mentiu a companhia de
desde o instante que aportava o Kasato Maru, atividades variadas também procuravam fixar emigração; no lado oposto da Terra cheguei,
em Santos. Tomoo Handa (1987) em sua os imigrantes na terra, afastando deles o projeto fiado no Paraíso, para ver o Inferno” (Handa,
memória da imigração japonesa relata da festa de conseguir um montante de renda para apud Sakurai, 1993, p. 46). As adversidades
que acontecia na cidade, quando o navio voltarem ao Japão. Aos poucos, muitos foram se encontradas eram muitas. Mas também foram
atracava, por ocasião das festas juninas, e que apercebendo das dificuldades de retornar e elas parte do caminho que se abriu para uma
imaginavam os imigrantes serem os foguetórios abandonando seus planos originais. nova integração dos imigrantes à sociedade
em sua homenagem, celebrando sua vinda. Percebiam também que o Estado japonês brasileira e para as mudanças de suas condições
Para os japoneses, migrar para o Brasil não tinha intenções de promover a volta dos de vida. Costuma-se dizer que, embora recente,
representava a possibilidade de conseguir trabalhadores. Viam-se, assim, postos diante da a imigração japonesa é bem-sucedida, quando se
melhores condições de vida para retornar necessidade de desbravar outros caminhos para verifica a mobilidade social de seus
à terra natal. Este projeto, entretanto, uma ascensão econômica. descendentes e sua presença em setores
variados, principalmente no meio urbano.
Notória, também, é a passagem rápida destes
imigrantes do colonato para arrendatário ou
proprietário rural, ou ainda o deslocamento
para o comércio nas zonas urbanas.
Entretenimento de imigrantes em
navio japonês - década de 1930
Museu Histórico da Imigração Japonesa
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O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
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Kaori Kodama
Tomoo Handa
Colheita de café - 1958
Óleo sobre tela - 90 x 70 cm
Museu Histórico da Imigração Japonesa
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O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
Tomoo Handa
Entardecer no cafezal - s/d
Óleo sobre tela - 61 x 50 cm
Museu Histórico da Imigração Japonesa
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alimentos de sua terra com os produtos que cá por serem tidos como inassimiláveis.
encontravam, como a conserva salgada feita Um momento de grande tensão e o mais duro
com mamão, ao invés do nabo. Fabricavam o nas relações entre a comunidade nipo-brasileira
missô, pasta de soja fermentada, tornando mais e o poder público foi durante o Estado Novo.
familiares suas refeições com os ingredientes Desde 1938, não era mais permitido o ensino
brasileiros. Mas também adaptavam-se ao gosto em língua estrangeira e todos os livros
do feijão e da mandioca, alimentos básicos de utilizados pelas escolas japonesas ficaram
que nenhum imigrante, fosse qual fosse a proibidos. Para os imigrantes e descendentes
nacionalidade, podia prescindir para enfrentar o japoneses, a manutenção de sua identidade
trabalho na lavoura. estava na observação rigorosa da educação e
de suas tradições. Tradições estas muitas já
Uma questão que marca a presença do
não comuns na sociedade japonesa de então,
imigrante japonês no Brasil reside certamente
que vivia uma dinâmica interna complexa.
nas reações causadas pela sua diferença cultural
O Japão que os imigrantes haviam deixado era
e étnica, em relação aos imigrantes europeus.
o Japão da era Meiji.
Dos debates a favor e contra sua entrada, os
argumentos oscilavam de um lado por serem Enquanto diferentes física e culturalmente, No Japão destruído pela guerra, na década de 1950,
famílias inteiras decidiram emigrar para o Brasil.
considerados um povo trabalhador, e, por outro, eram tidos no discurso oficial como não-assimi Muitas delas vieram através da Cooperativa Agrícola
de Cotia e se fixaram no interior do Estado de São
Paulo, como esta reunida para o jantar.
Museu Histórico da Imigração Japonesa
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O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
láveis, e então sobre eles toda vigilância era notícias veiculadas, e desconfiavam até mesmo dos primeiros imigrantes, os nisseis (segunda
necessária. Esta pelo menos foi a política da autenticidade das transmissões de rádio geração), sanseis (terceira geração) e yonseis
estado-novista em relação à comunidade nipo- noticiando a derrota, ou do discurso do (quarta geração) variaram em sua maneira
brasileira durante o período que se estende até imperador assumindo publicamente a vitória de trafegar pela cultura de seus pais, avós e
o pós-guerra. As desconfianças e preconceitos norte-americana. O fim da guerra maculava bisavós, lidando duplamente com a tradição
em relação aos nikkeis (a comunidade de ainda, como aponta Célia Sakurai, a imagem nipônica familiar e com a cultura do País em
descendentes de japoneses) podem ser do Japão imperial, calcado na ancestralidade que nasceram. Os sanseis e yonseis, menos
apreendidos em discursos como o do ministro divina do imperador, tido como invencível imersos nas tradições mantidas pelas colônias,
da Justiça Francisco Campos em 1941, que, (Sakurai, 1993, p. 82). Entre as notícias que mostram-se mais integrados à cultura
defendendo a proibição da entrada de 400 pareciam inverossímeis, a comunidade japonesa brasileira que a geração de seus pais e avós.
japoneses em São Paulo, alegou pertencerem no Brasil sofreu, após a guerra, uma grande Grande parte das novas gerações não falam o
aqueles a uma raça e a uma religião dissensão entre os Kachigumi e os Makegumi. japonês. Raramente, entretanto, deixa-se de
absolutamente diversas. Segundo suas palavras: Os primeiros – o grupo dos vitoristas – eram os notar entre os descendentes a presença forte
“seu padrão de vida desprezível representa uma que criam que o Japão havia vencido a guerra, de alguns valores tradicionais que marcaram
concorrência brutal com o trabalhador do País; e os segundos – grupo dos derrotistas –, que seu processo de ascensão social: o esforço e a
seu egoísmo, sua má-fé, seu caráter refratário, criam ser melhor aceitar a derrota japonesa.
capacidade de agüentar as dificuldades, o
fazem deles um enorme quisto étnico e cultural É entre os Kachigumi que surgiria a “Liga do
espírito do bushidô, do guerreiro que possui
localizado na mais rica das regiões do Brasil” Caminho dos Súditos”, a Shindô Renmei, com
sobre si o autocontrole. São ensinamentos
(Campos, apud Duarte, 1997, p. 135). o objetivo de perseguir e de eliminar os
passados pelos imigrantes criados na era Meiji,
Após o término da II Guerra, o clima de derrotistas. Claramente, o radicalismo deste
que orientaram a conduta das gerações de
desconfiança em relação aos imigrantes e movimento foi gerado pelo isolamento e pelo
descendentes ante o trabalho e a família, e
descendentes ainda perduraria, tanto pelo fato inconformismo com a derrota, ao se darem
que, de certa forma, contribuíram para criar a
de serem estes tomados por “inimigos” do País conta da impossibilidade de retornar ao Japão,
imagem dos descendentes de japoneses como
que habitavam, quanto pelas reações advindas sonho acalentado por muitos que sofriam
“estudiosos”, “inteligentes” e “disciplinados”.
da própria comunidade nipônica ante à derrota diretamente a discriminação e exclusão,
do Japão, como foi o caso do movimento acompanhados por vezes da violência, Nos últimos anos, o movimento migratório
Shindô Renmei. como foi o caso de alguns presos no governo de nisseis e sanseis para o Japão é um medidor
estado-novista. desta vivência cultural dos japoneses e seus
Como forma de manutenção de sua descendentes no Brasil: são o verso e reverso da
Inconformismo por um lado,
identidade cultural, a comunidade nipônica no história da imigração japonesa, nas suas
incompreensão do outro e dificuldades no
Brasil manteve-se fiel ao Shindô, que é a contradições e na afirmação identitária dos
processo de assimilação cultural e de inserção
incorporação da tradição religiosa japonesa nikkeis como brasileiros.
dentro da sociedade brasileira não faltaram aos
ligada ao mito de origem imperial do Japão.
nikkeis. Mesmo nos períodos posteriores, com A migração no sentido inverso da corrente
A retaliação e exclusão sofridas durante o
outras características, os sonhos, os projetos e o que trouxe seus antepassados começou na
Estado Novo foram compensadas pela colônia
confronto com o mundo que cercava o imigrante década de 1980. Os dekasseguis, como são
japonesa através da fidelidade não só aos
seriam parte de uma reconstrução permanente chamados esses descendentes, cujos traços
costumes, mas, no que fazia parte de um
daqueles projetos, de choque continuado entre físicos revelam os vínculos com o País para o
conjunto mais amplo do patriotismo, ao
culturas, cuja distância poderia equivaler à qual se direcionam em busca de trabalho,
sentimento de pertencimento ao império do
distância geográfica entre os dois países. confrontam-se com uma sociedade muito
Japão, entendendo-se como súditos do
imperador de origem divina, o descendente da Mas o certo é que nenhum confronto distinta da qual cresceram, como brasileiros.
deusa Amaterasu. Desta feita, a derrota resistiu às mudanças nas relações no tempo, e Embora em parte estejam ligados à cultura
japonesa e o bombardeio de Hiroshima e às trocas cultural e social entre a comunidade japonesa, através das tradições de seus
Nagasaki tiveram sobre a comunidade efeitos de imigrantes e a sociedade mais ampla que os antepassados, são diferenças marcadas também
traumáticos. Muitos ficaram sem acreditar nas acolheu. As gerações sucessivas de descendentes pelo tempo que despontam.
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Kaori Kodama
Yoshya Takaoka
Morro do Pinto - 1938
Óleo sobre tela - 60 x 73 cm
Museu Nacional de Belas Artes - RJ
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O sol nascente do Brasil: um balanço da imigração japonesa
Tadashi Kaminagai
Casario - s/d
0,65 x 0,54 m
Banco Bozzano Simonsen
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Kaori Kodama
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Os Autores
Angela de Castro Gomes Lucia Maria Paschoal Guimarães
Doutora em Ciência Política pelo Institutlo Universitário de Pesquisas do Rio Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo - USP.
de Janeiro - IUPERJ, Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas e Pesquisadora do CNPq e Professora Titular de Historiografia na Universi-
do CNPq e Professora Titular de História do Brasil da Universidade Federal dade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Defendeu Dissertação de Mestrado
Fluminense - UFF. Publicou, dentre outros, A invenção do trabalhismo (Rio intitulada Espanhóis no Rio de Janeiro: contribuição à historiografia da imi-
de Janeiro : Relume Dumará, 1994. 2ª ed.); História e historiadores: política gração. Publicou “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial,
cultural no Estado Novo (Rio de Janeiro : FGV. 1996); Histórias de família: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889)” (Rio de Janeiro :
entre a Itália e o Brasil (Niterói : Muiraquitã. 1999). Revista do IHGB. 1997).
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Apêndice
Estatísticas de 500 anos
de povoamento de Brasil
TABELAS E QUADROS
Tabela 1.1 - População brasileira estimada e recenseada - 1550/1996 Tabela 4.1 - Imigração no Brasil - 1820-1975
Quadro 2.2 - População estimada, no Século XVI, de grupos indígenas Tabela 4.5 - Imigração no Brasil, por nacionalidade, segundo a
selecionados, já extintos instrução - 1945/1975
Tabela 2.1 - População das terras indígenas estimada, segundo as Tabela 4.6 - Imigração no Brasil, por nacionalidade, segundo a
Unidades da Federação - 2000/2006 profissão - 1945/1970
Tabela 2.2 - População residente autodeclarada indígena, por situação de Tabela 4.7 - Naturalizações concedidas, por nacionalidade - períodos de
domicílio, segundo as Unidades da Federação - 2000 1889-1899 a 1970-1977
Tabela 3.2 - Desembarque estimado de africanos no Brasil, por local de Tabela 5.1 - População presente segundo a nacionalidade - períodos de
desembarque - quinqüênios de 1781-1785 a 1851-1855 01.08.1872 a 01.08.1996
219
Apêndice
220
Estatísticas de 500 anos de povoamento
221
Apêndice
2 - População indígena
222
Estatísticas de 500 anos de povoamento
3 - Tráfico de escravos
223
Apêndice
224
Estatísticas de 500 anos de povoamento
4 - Imigrantes
225
Apêndice
226
Estatísticas de 500 anos de povoamento
227
Apêndice
228
Estatísticas de 500 anos de povoamento
229
Apêndice
230
Estatísticas de 500 anos de povoamento
5 - Estrangeiros no Brasil
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Imagens Capa
PIERRE DESCELLIERS
Parte americana do planisfério feito em Arques
(França), 1546.
Mapoteca do Itamaraty.
PIERRE DESCELLIERS
A América do Sul no planisfério feito em Arques
(França), 1550.
Mapoteca do Itamaraty.