Você está na página 1de 248

ESPIRITUALIDADE

CRISTÃ

LEONARDO PENA
MARCOS BEJARANO
EXPEDIENTE

Coordenador(a) de Conteúdo Revisão Textual


Roney de Carvalho Luiz Cindy Mayumi Okamoto Luca; Tatiane
Projeto Gráfico e Capa Schmitt Costa
Arthur Cantareli Silva Ilustração
Editoração Andre Luis Azevedo da Silva; Bruno
Isabella Santos Magalhães Cesar Pardinho Figueiredo; Geison
Design Educacional Ferreira da Silva
Amanda Peçanha; Gisele da Silva Porto Fotos
Curadoria Shutterstock e Envato
Cleber Rafael

FICHA CATALOGRÁFICA

U58 Universidade Cesumar - UniCesumar.


Núcleo de Educação a Distância. PENA, Leonardo; BEJARANO,
Marcos.
Espiritualidade Cristã / Leonardo Pena, Marcos Bejarano. -
Florianópolis, SC: Arqué, 2023.

248 p.

ISBN papel 978-65-6083-143-8


ISBN digital 978-65-6083-144-5

1. Espiritualidade 2. Cristã 3. EaD. I. Título.

CDD - 252.58

Bibliotecária: Leila Regina do Nascimento - CRB- 9/1722.

Ficha catalográfica elaborada de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Impresso por:
02511510
RECURSOS DE IMERSÃO

P E N SA N D O JU NTO S APROFU NDANDO

Este item corresponde a uma proposta Utilizado para temas, assuntos ou con-
de reflexão que pode ser apresentada por ceitos avançados, levando ao aprofun-
meio de uma frase, um trecho breve ou damento do que está sendo trabalhado
uma pergunta. naquele momento do texto.

ZOOM NO CONHECIMENTO

PRODUTOS AUDIOVISUAIS Utilizado para desmistificar pontos


Os elementos abaixo possuem recursos que possam gerar confusão sobre o
audiovisuais. Recursos de mídia dispo- tema. Após o texto trazer a explicação,
níveis no conteúdo digital do ambiente essa interlocução pode trazer pontos
virtual de aprendizagem.
adicionais que contribuam para que
o estudante não fique com dúvidas
sobre o tema.

P L AY N O CO NH E C I M E NTO

Professores especialistas e con-


INDICAÇÃO DE FIL ME
vidados, ampliando as discus-
sões sobre os temas por meio de
Uma dose extra de
fantásticos podcasts.
conhecimento é sempre
bem-vinda. Aqui você
terá indicações de filmes
E U I ND I CO
que se conectam com o
Utilizado para agregar um con- tema do conteúdo.
teúdo externo.

INDICAÇÃO DE L IVRO
E M FO CO

Utilizado para aprofundar o Uma dose extra de

conhecimento em conteúdos conhecimento é sempre

relevantes utilizando uma lingua- bem-vinda. Aqui você terá

gem audiovisual. indicações de livros que


agregarão muito na sua
vida profissional.

4
CAMINHOS DE APRENDIZAGEM

7
UNIDADE 1

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

29
UNIDADE 2

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

A ESPIRITUALIDADE DE JESUS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

83
UNIDADE 3

TEOLOGIA DA ESPIRITUALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84

ESPIRITUALIDADE, HISTÓRIA E TRADIÇÃO CRISTÃ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110

139
UNIDADE 4

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ E DISCIPLINAS ESPIRITUAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140

ESPIRITUALIDADES COMPARADAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 164

193
UNIDADE 5

ESPIRITUALIDADE, ARTE E CULTURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194

EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ . . . . . . . . . . . . 222

5
UNIDADE 1
TEMA DE APRENDIZAGEM 1

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

MINHAS METAS

Pensar a Espiritualidade dentro de um contexto cultural.

Analisar criticamente crenças espirituais.

Comparar o efeito de matrizes religiosas diferentes na construção da espiritualidade


e fomentar diálogos pacíficos entre diferentes crenças.

Separar o estudo de uma espiritualidade específica para o estudo da espiritualidade


no sentido geral.

Diferenciar a crença espiritual em si do conceito linguístico “espiritualidade”.

Interpretar o fenômeno espiritual como uma linguagem que dá sentido ao mundo.

Desenvolver uma postura de tolerância a outras crenças e espiritualidades.

8
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Você já tentou definir para alguém o que é “espiritualidade”? Imagine que você seja
convidado a escrever um verbete no “Mais Novo Dicionário da Língua Portuguesa”:
seu verbete é “espiritualidade”. Você simplesmente teria que escrever uma definição
que servisse para cristãos, budistas, hindus, povos nativos, islâmicos, Seicho No
Ie… e mais de 4000 expressões religiosas ao redor do mundo! Parece fácil?
Agora, imagine que você tenha que, não apenas definir, mas conversar sobre
espiritualidade de forma totalmente pacífica com os mais diversos tipos de pes-
soas. O quão desafiador isso seria para você?
Pensar a espiritualidade no mundo contemporâneo é necessariamente con-
siderar um mundo plural. Ao falarmos da “espiritualidade cristã”, por exemplo,
iremos usar a Bíblia como referência doutrinária, mas se formos falar de “espiri-
tualidade” (e ponto), precisamos dar um passo para trás e considerar o que outras
vertentes também chamam de espiritualidade. Ao mesmo tempo que podemos
crer que nossa crença é verdadeira, precisamos também deixar espaço para que
as outras pessoas pensem o mesmo da crença delas, certo?
Você já parou para ouvir o que as pessoas ao seu redor pensam sobre espi-
ritualidade?
Convido você a perguntar a três pessoas o que elas entendem por “espiritua-
lidade”. De preferência, escolha pessoas bem diferentes umas das outras. Colete
as respostas e as compare depois.
Quando conversamos com alguém sobre espiritualidade, o melhor é fazer
algumas perguntas sobre o que a motiva a acreditar assim. Lembre-se de ser
cordial e respeitar o ponto de vista da outra pessoa. Aliás, vamos criar uma re-
gra: não vale contra-argumentar (como se você quisesse convencer a pessoa
de que a sua visão é melhor). O importante é que você saiba a opinião dela, não
necessariamente o contrário. O objetivo é que você treine a sua escuta.

9
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

VAMOS RECORDAR?
Vale relembrar que toda cultura desenvolve algum tipo de espiritualidade, mas
não necessariamente se acredita em seres sobrenaturais, como deuses ou es-
píritos. As religiões, por exemplo, não deixam de ser uma sistematização de
uma espiritualidade. Por isso, diferenciar os modos em que a espiritualidade é
exercida é crucial para a boa convivência em um mundo plural.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

O QUE É AFINAL “ESPIRITUALIDADE”? (1A DEFINIÇÃO)

Quem nunca ouviu uma frase do tipo: “creio em algo superior, mas não sigo nenhu-
ma religião específica”? Ou então o famoso, “creio em Deus, mas não em religião”.
Esse tipo de frase está se tornando cada vez mais comum. Esse “algo su-
perior” não necessariamente precisa se referir a Deus ou a seres sobrenaturais
para ser considerado “espiritual”. Pode ser a crença em dimensões impessoais
que estão além do ser humano de diversos modos, como energias astrais, o Véu
de Maia, o Eu interior etc.
Não existe uma definição formal do conceito, por isso vamos apresentar três
modos de entender “espiritualidade” (no sentido amplo). Ao decorrer do tema,
vamos adicionando as definições progressivamente.
Definição 1: “espiritualidade” é comumente entendido como a relação
com aquilo que não se explica por leis naturais. Por isso, “espiritual” tem
a ver com o misterioso, o místico (palavra que vem do grego e significa “o que
se esconde”), está presente desde os primórdios da humanidade geralmente
ligando-se ao imaterial.

1
1
UN I C ES UMA R

QUAL A DIFERENÇA ENTRE “ESPIRITUALIDADE” E


“RELIGIÃO”?

Vale a pena fazermos uma rápida comparação para a diferenciar os dois conceitos:

ESPIRITUALIDADE

Pode ser praticada sozinha: cultivar a espiritualidade é uma responsabilidade indi-


vidual e intransferível. Por isso, a base da espiritualidade é uma experiência interior.
Pode ser informal: não necessariamente ela cria um corpo de doutrina forte para si.
Pode ser customizada: alguém pode viver uma espiritualidade que junta elemen-
tos de várias tradições religiosas, embora isso não seja uma regra.

RELIGIÃO

Necessariamente coletiva: é direcionada para fora. Por isso, ela tem símbolos comu-
nitários, festas, datas, e diversas expressões que se compartilham coletivamente.
A expressão de pessoas com a mesma espiritualidade: pessoas que compreendem a
espiritualidade de forma parecida tendem a se juntar e compartilhar dessa experiência.
Mais sistematizada: tem doutrinas e entendimentos mais difíceis de serem alterados.
Possui rituais-simbólicos: como o batismo, a ceia (PINHEIRO, 2022).

Nesse rápido comparativo, percebemos alguns paralelos importantes:


■ Espiritualidade e religiosidade se complementam.
■ Espiritualidade é centrada no indivíduo enquanto a religiosidade é cen-
trada no coletivo.
■ A religião costuma ser hierarquizada (vertical): por exemplo, existe
o bispo, que está acima do padre. Existe o pastor, que está acima do
membro, existe o rabino no Judaísmo, o mulá no Islã, a Mãe de Santo
no Candomblé etc.
■ A espiritualidade é entendida de forma não hierárquica (horizontal): a
mentalidade é muito mais “eu tenho a minha espiritualidade, você tem a
sua, e ninguém tenta ser melhor do que ninguém”.

1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

Olhando agora, fica claro que uma pessoa pode praticar uma espirituali-
dade sem ser religiosa. Essa pessoa, por exemplo:
■ É uma pessoa sem tradição religiosa, muitas vezes não conhece o passado
ou a riqueza da memória de nenhuma religião.
■ Geralmente tem suspeitas de autoridades religiosas.
■ Não tem participação regular em cultos, missas ou algo do tipo.
■ Interage com o mundo espiritual sem sentir a necessidade de seguir uma
doutrina específica.
■ É um “crente a seu próprio modo”, por assim dizer.

Esse entendimento de espiritualidade afeta tanto o fenômeno dos “desigrejados”,


movimento de cristãos crescente no Brasil nas últimas décadas, bem como uma
versão de espiritualidade mais oriental, que combina elementos esotéricos em
um mix não sistematizado de crenças (BRENO, 2019).

VOCÊ SABE RESPONDER?


Mas pode alguém ser religioso sem ser espiritual?

Algumas pessoas vão dizer que isso não é possível, porque a religião pressupõe
a espiritualidade das pessoas individualmente. Mas há quem diga que sim, isso é
possível, embora não seja o ideal. Nesse caso, uma pessoa religiosa sem espiritua-
lidade é aquela que pratica os rituais religiosos sem nenhuma vivência interior.
É como alguém que vai à missa, mas nunca reza, ou alguém que usa cristais só
porque “está na moda” e todos na sua família usam.


A religiosidade pode ser uma maneira da espiritualidade se ma-
nifestar, mas não é a única maneira, ou seja, do mesmo modo
que há pessoas de intensa religiosidade e pouca espiritualidade
(GIOVANETTI, 2004, p.11).

1
1
UN I C ES UMA R

A diferença crucial entre espiritualidade e religião é o fator institucionalização. O


aumento da espiritualidade individual tem mais a ver com uma descrença nas
instituições do que uma descrença em Deus ou qualquer sobrenaturalidade.

Em conclusão, podemos dizer com segurança que toda expressão de espirituali-


dade hoje se baseia em alguma religião. Ela pode não mostrar todos os elementos
de uma determinada religião, mas alguma coisa de alguma religião formal tem
ali, afinal, ninguém inventa uma espiritualidade do nada.

AMPLIANDO A DEFINIÇÃO: O QUE NOS TORNA


“ESPIRITUAIS”? (2A DEFINIÇÃO)

Há muitos que acreditam que, para ser “espiritual”, temos que acreditar em Deus,
mantra, cristal etc. Essas pessoas se esquecem que outros conceitos como “amor”,
“beleza”, “democracia”, também são transcendentes. Mas culturalmente ligamos
uns à religião e outros não.

1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

O que define a espiritualidade de alguém não é “em que” ela acredita (Deus, cris-
tais), mas “o que está no centro da sua vida”. É bastante comum vermos pessoas
com uma relação “endeusada” com o dinheiro, por exemplo, ou que trabalham
excessivamente, não tendo tempo para lazer, família e amigos. São pessoas que
fizeram do próprio sucesso uma espécie de deus.
O ser humano está sempre pronto para adorar alguma coisa, nem que seja
ele mesmo. Quando há vazio interior, buscamos nos agarrar em algo para preen-
chê-lo. Existem formas criativas e saudáveis de preencher esse vazio, bem como
formas nocivas como bebidas, consumismo ou quaisquer outras adições.

IN D ICAÇÃO DE FI LM E

Deuses Americanos
Comentário: A série inspirada no livro de Neil Gaiman
(ficção fantástica) mistura mitologia antiga com vida
atual e se pergunta quais são os deuses da nossa so-
ciedade. Novos deuses como mídia, celebridade, dro-
gas, surgem no panteão, justamente mostrando que o
ser humano está sempre adorando alguma coisa. A série
mostra como a espiritualidade se manifesta nos lugares
mais inesperados.

Por isso, aqui apresentamos uma outra forma de entender a espiritualidade. Ela
complementa a definição 1. Definição 2: A espiritualidade significa, nesse
caso, a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma, a capacidade
de explorar sua interioridade. Assim, ela pode dar uma resposta construtiva
a sua existência. Enquanto o vício mostra a fuga, a caridade ou a arte mostram
criatividade e resiliência.
Nessa interpretação, “espiritualidade” e “maturidade” andam de
mãos juntas.


A espiritualidade adulta supõe conhecimento e aceitação dos pró-
prios limites e possibilidades. É uma experiência de despojamento
que se coloca nas antípodas do poder, da autossuficiência, e do ime-
diatismo egocêntrico (VALLE apud BRITO, 2009, p.77).

1
1
UN I C ES UMA R

Na visão de Brito (2009, p. 79):


[...] que sustenta a espiritualidade é a fé. Mas não necessariamente
a fé religiosa. Note que falo de fé, não de crença em dogmas reli-
giosos, em ritos ou em celebrações - a crença pode ser a forma de
substancialização da fé para algumas pessoas, mas ela não é a fé.

Até aqui vimos que a espiritualidade é:


• Diferente para cada matriz religiosa.
• Diferente da religião por não ser necessariamente institucionalizada.
• Coletiva.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Mas quais são as formas de estudá-la?

MÉTODOS: COMO ESTUDAR A ESPIRITUALIDADE?

Quando estudamos o fenômeno espiritual de maneira geral, não podemos tomar


por base apenas uma espiritualidade específica. Podemos fazer, é claro, uma in-
vestigação de como o cristianismo avalia a espiritualidade islâmica, por exemplo.
Mas isso é válido como um estudo cristão, de lentes cristãs. Quando estudamos
academicamente o fenômeno da espiritualidade, precisamos entender quais são
os métodos de investigação.

Do que falamos quando falamos de espiritualidade?

Quando falamos de espiritualidade, será que falamos de algo místico que existe
dentro do ser humano? Ou seria, como dizem alguns, “só psicológico”? Seria o
caso, quem sabe, da espiritualidade existir na realidade “lá fora”, como se a Terra
também fosse dotada de uma espiritualidade (como diz a Hipótese Gaia) ou que
vivêssemos num mundo habitado por demônios?

1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

O fato é que o tema “espiritualidade” pode ser abordada de diversas maneiras,


por exemplo, por outras disciplinas do conhecimento:

FILOSOFIA

Investigando como as religiões influenciam no pensamento humano.

PSICOLOGIA E NEUROCIÊNCIAS

Espiritualidade como um algo que provoca efeitos em nossa mente.

SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

Espiritualidade como uma parte importante da vida social.

TEOLOGIA

Entendimento da manifestação do divino ou do sobrenatural em uma religião


específica (teologia cristã, teologia judaica etc.).

Ciência da Religião ou Teologia?

São olhares diferentes. A Teologia estuda a fundo a Bíblia e a história da Igre-


ja. A Ciência da Religião explora mais temas que são comuns a mais religiões
(SOUZA, 2022).
Temas como “Espiritualidade Cristã”, “o kerigma (anunciação) nos escritos
joaninos” ou “a doutrina da expiação na Reforma Holandesa” são temas mais
próximos da Teologia.
Já um tema que não esteja tão ligado a apenas uma fé costuma ser abordado
pelas Ciência da Religião, por exemplo, o tema da “revelação” ou dos “milagres”.
Um tema poderia ser “Quais são as semelhanças e diferenças da experiência de
Paulo” (Cristianismo), “Maomé” (Islã) e “Joseph Smith Jr” (Mormons)?

1
1
UN I C ES UMA R

Tentando abarcar toda essa complexidade, ainda no século XX, a religião


e a espiritualidade passaram a ser estudadas como um campo autônomo. Ao
invés da espiritualidade ser apenas estudada por outra disciplina (Sociologia,
Psicologia etc.), ela passa a ter, também, um campo próprio: as Ciências das
Religiões. Hoje, as Ciências da Religiões trabalham com uma abordagem que
usa vários campos do conhecimento, o que tem sido particularmente rico para
o campo das religiões comparadas.
Em todos esses casos a espiritualidade é analisada. Diferente de professar
uma crença ou de “pregar” uma determinada doutrina, o objetivo da análise é
entender como funciona e como se relaciona com as demais áreas da vida. E aqui
que, mesmo que o investigador tenha sua crença, ele precisa “dar um passo para
trás” e enxergar sua própria fé em um mundo de muitas fés.

VAMOS RECORDAR?
Como conversar sobre espiritualidade em um mundo que não entende “espiri-
tualidade” como você?

A capacidade de dialogar com o diferente passa a ser uma habilidade, como se diz,
“exigida pelo mercado”. Perde muito espaço quem não aprende essa habilidade.

E U IN D ICO

Acabamos de falar sobre o estudo das várias espiritualidades no mundo, mas


existe algum limite para a tolerância religiosa? O filósofo Luiz Felipe Pondé ex-
plora esse tema neste vídeo:
Intolerância Religiosa - “Oração do amor selvagem” - Luiz Felipe Pondé (6:26).
Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de
aprendizagem.

1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

A GRAMÁTICA COMO ILUSTRAÇÃO (3A DEFINIÇÃO)

Quando pensamos em gramática, a primeira coisa que vem a nossa mente é


aquela (adorada) gramática da Língua Portuguesa. O que é essa gramática do
português? Ela nos ensina a como usar o nosso idioma, certo? Ela aponta as
regras, as possibilidades de uso, ela dá nome aos elementos da língua (“amor” é
substantivo, “amoroso” é adjetivo).
Da mesma forma, toda espiritualidade contém uma espécie de gramática por
trás dela, como se cada espiritualidade fosse uma língua.
Aqui, apresentamos nossa última definição de espiritualidade, definição 3:
“espiritualidade” é justamente que ela se refere à forma como falamos sobre
certos fenômenos. Nem tanto sobre como o mundo é em si, mas em como
nos relacionamos com ele.

DEFINIÇÃO 1

“Espiritualidade” é a relação com aquilo que não se explica por leis naturais.

DEFINIÇÃO 2

A espiritualidade significa a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma,


a capacidade de explorar sua interioridade.

DEFINIÇÃO 3

“Espiritualidade” se refere à forma como falamos sobre certos fenômenos. Nem


tanto sobre como o mundo é em si, mas em como nos relacionamos com ele.

A espiritualidade é uma forma de dar sentido à exis-


tência. Ela põe as coisas em relação. Assim como a A espiritualidade é
gramática do português põe as palavras dentro de uma forma de dar
sentido à existência
um sistema que permite o seu uso, a gramática por
trás da espiritualidade põe nossas experiências den-
tro de um “sistema” de crenças.

1
1
UN I C ES UMA R

Vamos tomar a religião como exemplo:

A gramática por trás da espiritualidade cristã prevê que Deus é um ser pessoal
que ouve nossas orações. Isso está fundamentado num conjunto de experiências e
declarações contidas na Bíblia Sagrada, também entendida como Palavra de Deus.
Nesse sentido, orar não é igual a pensamento positivo, orar é conversar com
alguém. Quando há um Deus pessoal que reina sobre todas as coisas, fica des-
concertante falar de “pensamento positivo”, “sorte”, “karma”. É claro! Mas esses são
elementos de uma outra gramática! Dentro da “gramática” cristã, elas não têm
muito lugar para serem melhor compreendidas, precisamos “trocar a gramática”.
“Trocar a gramática” significa olhar a dinâmica de uma espiritualidade dentro
das regras dessa espiritualidade. Por isso, ouvir o outro com qualidade significa
entender a sua língua, a sua “gramática”.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Por que esse paralelo espiritualidade-gramática é importante?

Porque “espiritualidade” é uma forma de interpretar e dar sentido ao mundo, e


não se interpreta sem regras de interpretação. Espiritualidade como gramática
nos mostra que, assim como a língua, a espiritualidade:
■ Está imersa na cultura.
■ Cria sentidos para o mundo.
■ Tem regras de uso.
■ É coletiva e, ao mesmo tempo, individual.
■ Pode ser moldada pelo indivíduo.
■ Tem regionalidades e uso informal.
■ Cria preconceitos quando não exercidos da forma gramatical.
■ Muda com o tempo.
■ É inescapável, todos usam alguma gramática (para a língua ou para a
espiritualidade).

1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 1

IN D ICAÇÃO DE LI V RO

O que é religião?
Autor: Rubem Alves
Comentário: Uma leitura breve e gostosa que explora
melhor a relação da espiritualidade com a linguagem.
Segundo o autor, “a religião não se liquida com a abs-
tinência de atos sacramentais e a não-frequentação de
lugares sagrados; ela pulsa nas perguntas sobre o senti-
do da vida”. Define bem o que estamos tratando nesta 3ª
definição de espiritualidade.

Mesmo que o mundo contemporâneo tenha suavizado a intensidade das regras e


doutrinas, algum nível de norma e doutrina permanece. É como se o mundo contem-
porâneo transformasse uma mega gramática em pequenos manuais de instruções.

Vimos que a espiritualidade é:


• Diferente para cada matriz religiosa.
• Diferente da religião, por ser menos institucionalizada.
• Estudada por diferentes disciplinas.
• Uma forma de interpretar o mundo.

Dito isso, dá para falar de uma espiritualidade? Cada matriz religiosa apresenta
uma maneira de entender o conceito de “espiritualidade”. O conceito “espiri-
tualidade” não faz sentido sozinho, mas, apenas em conjunto com outros
conceitos. Quais outros conceitos são esses? Isso é o que cada matriz religiosa
vai nos dizer (pode ser “Deus”, “alma”, “ressurreição”, “reencarnação” etc.). O que
define o que é certo e errado na espiritualidade é o próprio contexto em que a
espiritualidade está inserida.

2
2
UN I C ES UMA R

NOVOS DESAFIOS
Então, como pensar e praticar uma espiritualidade para os nossos dias? A respos-
ta é: principalmente através da escuta do outro. Espiritualidade parece estar ligada
a duas aberturas: abertura ao sagrado, ao divino, ao transcendente e abertura ao
outro, as suas diferenças, a sua identidade.
Do ponto de vista de quem busca uma convivência pacífica entre as diferen-
ças, o que chamamos de intolerância religiosa em nosso tempo é justamente a
intolerância diante de uma gramática diferente da nossa. O intolerante diz: “só a
minha gramática está certa, todos os outros estão falando errado”. Ele não tolera
que outras pessoas entendam a espiritualidade de outra maneira.
Dessa maneira, não há debate, não há aprendizado mútuo. Um outro modo de
estabelecer o debate é dizer: “Veja, essa é a forma como a minha gramática funciona.
Ela faz sentido para mim e acho que vai beneficiar a vida daqueles que a adotarem”.

2
2
VAMOS PRATICAR

1. O fato é que o tema “espiritualidade” pode ser abordada de diversas maneiras, por
exemplo, por outras disciplinas do conhecimento:

Filosofia - investigando como as religiões influenciam no pensamento humano.

Psicologia e neurociências - espiritualidade como um algo que provoca efeitos em


nossa mente.

Sociologia e Antropologia- espiritualidade como uma parte importante da vida social.

Teologia - entendimento da manifestação do divino ou do sobrenatural em uma religião


específica (teologia cristã, teologia judaica etc.).

Em todos esses casos, a espiritualidade é analisada. Diferente de professar uma crença


ou de “pregar” uma determinada doutrina, o objetivo da análise é entender como funciona
e como se relaciona com as demais áreas da vida. E aqui que, mesmo que o investigador
tenha sua crença, ele precisa “dar um passo para trás” e enxergar sua própria fé em um
mundo de muitas fés. A maneira mais acadêmica de se estudar a espiritualidade em um
mundo plural é:

a) Ter uma religião e saber o que ela pensa sobre as outras.


b) Não ter crença nenhuma, pois isso atrapalha o estudo.
c) Experimentar todas as espiritualidades possíveis e depois escrever sobre essas experiências.
d) Mostrar como a espiritualidade é apenas uma ilusão.
e) Comparar como as diversas formas de espiritualidade interpretam o mundo.

2. Então como pensar e praticar uma espiritualidade para os nossos dias? A resposta é:
principalmente através da escuta do outro. Espiritualidade parece estar ligada a duas
aberturas: abertura ao sagrado, ao divino, ao transcendente e abertura ao outro, as
suas diferenças, a sua identidade.

Do ponto de vista de quem busca uma convivência pacífica entre as diferenças, o que
chamamos de intolerância religiosa em nosso tempo é justamente a intolerância diante
de uma gramática diferente da nossa. O intolerante diz: “só a minha gramática está certa,
todos os outros estão falando errado”. Ele não tolera que outras pessoas entendam a
espiritualidade de outra maneira.

Dessa maneira, não há debate, não há aprendizado mútuo. Um outro modo de estabelecer
o debate é dizer: “Veja, essa é a forma como a minha gramática funciona. Ela faz sentido
para mim e acho que vai beneficiar a vida daqueles que a adotarem”.

2
2
VAMOS PRATICAR

Leia as afirmativas a seguir e assinale a opção que complete corretamente a sentença


a seguir:

“Do ponto de vista de quem busca uma convivência pacífica entre as diferenças…”

I - “...o ideal é evitar o debate. Assim, vamos evitar os conflitos”.


II - “...o que chamamos de intolerância religiosa em nosso tempo é justamente a intole-
rância diante de uma gramática diferente da nossa”.
III - “...o mais seguro é buscar um modo de converter os diferentes”.
IV - “...um modo de estabelecer um debate é dizer: “veja, essa é a minha gramática. Ela faz
sentido para mim e acho que vai beneficiar a vida daqueles que a adotarem".

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) II e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e III, apenas.
e) I, II, III e IV.

3. Mesmo que o mundo contemporâneo tenha suavizado a intensidade das regras e dou-
trinas, algum nível de norma e doutrina permanece. É como se o mundo contemporâ-
neo transformasse uma mega gramática em pequenos manuais de instruções.

Vimos que a espiritualidade é:

Diferente para cada matriz religiosa.

Diferente da religião por ser menos institucionalizada.

Estudada por diferentes disciplinas.

Uma forma de interpretar o mundo.

Dito isso, dá para falar de uma espiritualidade? Cada matriz religiosa apresenta uma
maneira de entender o conceito de “espiritualidade”. O conceito “espiritualidade” não faz
sentido sozinho, mas, apenas em conjunto com outros conceitos.

Com base nas informações apresentadas, avalie as asserções a seguir e a relação pro-
posta entre elas:

2
2
VAMOS PRATICAR

I - Cada espiritualidade possui uma gramática própria

PORQUE

II - as pessoas precisam de regras rígidas e fixas para desenvolverem sua vida espiritual.

A respeito dessas asserções, assinale a opção correta:

a) As asserções I e II são verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.


b) As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.
c) A asserção I é uma proposição verdadeira e a II é uma proposição falsa.
d) A asserção I é uma proposição falsa e a II é uma proposição verdadeira.
e) As asserções I e II são falsas.

2
2
REFERÊNCIAS

BRENO, V.O sagrado em movimento: tendências da religiosidade hoje. 2019.

Disponível em: https://revistasenso.com.br/religiao/o-sagrado-em-movimento-tendencias-


-da-religiosidade-hoje/. Acesso em: 1 set. 2023.

BRITO, T. Espiritualidade e religiosidade: articulações. Revista de Estudos da Religião. p.


68-83, dez. 2019. Disponível em: https://www.pucsp.br/rever/rv4_2009/t_brito.pdf. Acesso
em: 1 set. 2023.

FILORAMO, G; PRANDI, C. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999.

PINHEIRO, B. O conceito e o vivido: uma distinção entre religião e espiritualidade. 2022.


Disponível em: https://revistasenso.com.br/edicao-24/o-conceito-e-o-vivido-uma-distin-
cao-entre-religiao-e-espiritualidade/. Acesso em: 1 set. 2023.

SOUZA, C. Espiritualidade na perspectiva das Ciências da Religião. 2022. Disponível


em: https://revistasenso.com.br/ciencias-da-religiao/espiritualidade-na-perspectiva-das-
-ciencias-da-religiao/. Acesso em: 1 set. 2023.

2
2
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção E.

Embora não seja um problema saber o que uma religião pensa sobre as outras, essa
alternativa está próxima da postura chamada “fundamentalista radical”, que não aceita
que outras matrizes possam ter voz própria. Não há nenhum problema em ter crenças
pessoais, desde que elas não incorrem no erro do item I acima. Experimentar algo não é o
mesmo que estudá-lo. Além disso, essa pessoa passaria uma vida inteira experimentando
cada uma das espiritualidades possíveis. Embora alguns acadêmicos tentem demonstrar
isso, essa não é reconhecida como a forma mais madura e acadêmica de se aproximar do
assunto. CORRETO. O estudo das religiões comparadas tem sido de ricas contribuições
para o campo das ciências da religião.

2. Opção B.

I. Evitar debates não impedem conflitos, apenas mascaram, postergam e, frequentemente


pioram a situação.
II. Correto, a convivência pacífica é um valor contrário à mentalidade intolerante e busca
ouvir o outro na sua própria gramática.
III. Embora o desejo de converter os outros não esteja errado, nem sempre isso é possível
(ou realista); é preciso algo mais do que eliminar as diferenças para a convivência pacífica.
IV. Esse é um modo não agressivo ou impositivo de apresentar uma espiritualidade em
particular. Esse modo de comunicação contribui com a paz.

3. Opção C.

A afirmação I está correta. A afirmação II está incorreta porque as pessoas não precisam de
regras rígidas e fixas para desenvolverem sua vida espiritual. Cada espiritualidade possui
uma gramática própria PORQUE a espiritualidade é uma linguagem (e por isso precisa de
regras BÁSICAS para funcionar).

2
2
MEU ESPAÇO

2
2
UNIDADE 2
TEMA DE APRENDIZAGEM 2

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

MINHAS METAS

Investigar o que há de específico na espiritualidade cristã.

Entender os guias doutrinários da espiritualidade cristã.

Explorar os sentidos básicos de espiritualidade para o cristianismo.

Identificar o objetivo da vida espiritual.

Interpretar passagens bíblicas que falam sobre espiritualidade.

Pensar a espiritualidade cristã na contemporaneidade.

Identificar momentos importantes na tradição espiritual cristã.

3
3
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Vamos iniciar os nossos estudos com uma reflexão: pesquise o significado do
termo “cristão” em algum dicionário. Você concorda com a definição que en-
controu? Acrescentaria ou retiraria algo? Por quê?
Quando falamos em espiritualidade cristã, não estamos falando de doutrinas
específicas, mas daquilo que fundamenta a vida de todo cristão. Mas o que seria
isso, afinal? É o que vamos investigar.
Diante de tantas vertentes e denominações, podemos nos perguntar: o que
significa ser cristão? Existe algum tipo de “cristão básico”, um “crente standard”
(padrão), com características que estariam presentes em todas as denominações?
Eu te convido a entender os guias doutrinários da espiritualidade cristã, ex-
plorar os sentidos básicos de espiritualidade para o cristianismo e identificar o
objetivo da vida espiritual.

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

Como a Bíblia se tornou a Bíblia? Esse processo chamado “canonização” é um as-


pecto importante para entender a espiritualidade cristã. Ele foi crucial para moldar
toda a espiritualidade cristã posterior. Não foi um processo simples, nem rápido.
Muitos debates, disputas e estudos foram feitos durante o caminho. Você deseja
saber um pouco mais como isso aconteceu? Ouça este podcast. Recursos de mí-
dia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

3
3
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

VAMOS RECORDAR?
Espiritualidade ou religião? Como diferenciar uma da outra? Sabemos que a espi-
ritualidade foca na experiência individual antes de olhar para as crenças comuni-
tárias. Vivemos em um mundo em que a exploração pessoal pela espiritualidade
está ficando mais chamativa que a conhecida religião institucionalizada. Indica-
mos um vídeo para você relembrar ou se atualizar em relação à temática.
Você tem fé? Ed René Kivitz
https://www.youtube.com/watch?v=dXPT_lba6r0

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

O DESENVOLVIMENTO DE UMA TRADIÇÃO ESPIRITUAL

Em toda a diversidade presente na espiritualidade cristã, uma coisa é comum a


todas: todas têm o centro na pessoa e na obra de Jesus. Seja em forma de doutri-
nas ou narrativas, o centro é o Cristo e todo o resto está girando em torno dele.
O primeiro a formular uma espiritualidade cristã em termos de doutrinas
e teologia foi o apóstolo Paulo. Logo no início da igreja, Paulo levantou alguns
conceitos, como a salvação pela fé em Cristo, a participação dos santos em Cristo
(“estar em Cristo”), a reconciliação com Deus a partir da morte e da ressurreição
e a ideia de que Jesus cumpre as promessas dadas a Israel por Deus no Antigo
Testamento (AT) (CAPES; REEVES; RICHARDS, 2017).
Uma grande novidade trazida pelo apóstolo Paulo foi o entendimento de que
o Deus dos judeus buscava uma reconciliação com todos os povos. Isso criou um
anseio por espalhar essa mensagem. Os judeus não tinham tanto uma preocu-
pação “missionária”, tornando-se uma característica mais marcante nos cristãos.

3
3
UN I C ES UMA R

Todas essas questões foram exploradas nos vários séculos que se seguiram.
Temas teológicos foram ampliados, discutidos, repensados e, a cada modifi-
cação, surgia uma tradição nova dentro desse grande guarda-chuva que é a
espiritualidade cristã.

AS REFERÊNCIAS DE FÉ E PRÁTICA: BÍBLIA E IGREJA

A história da espiritualidade cristã está atrelada à história da instituição oficial


dela, a igreja. Isso acontece, porque toda espiritualidade é norteada por algum
corpo de crenças, mesmo que sejam poucas e bastante flexíveis. Logo, algum
grupo de crenças é inevitável para compor uma espiritualidade.

Na tradição cristã, chamamos essas crenças de “doutrinas”, para ser mais exato.
Uma doutrina cristã é uma crença sancionada pela Igreja, diferentemente da he-
resia, que é considerada uma crença errada. Algumas doutrinas são mais impor-
tantes (como a da divindade de Jesus). Outras, talvez, sejam mais secundárias
(como as formas de batismo: imersão, aspersão e efusão), mas elas invariavel-
mente indicam o caminho para a prática da espiritualidade.

Se quem define as doutrinas é a Igreja e a doutrina molda a espiritualidade diária


do fiel, então, a história da Igreja molda a espiritualidade do fiel. Entretanto, a
Igreja não cria, nem define as doutrinas sem algum fundamento: ela mesma tem
uma referência, que é a Bíblia.
A questão é que a Bíblia representa um conjunto de narrativas, poemas, car-
tas etc., ou seja, ela não é um livro sistematizado de teologia. Aliás, essa é uma
das tarefas da teologia: conectar informações do texto bíblico para que façam
sentido na atualidade. A tarefa da teologia, enquanto disciplina de investigação,
é organizar, identificar e explorar os sentidos do texto.
Assim, temos duas referências básicas para a formação da espirituali-
dade cristã: a Bíblia e a Igreja.

3
3
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

VOCÊ SABE RESPONDER?


Contudo, a referência básica não seria Jesus?

A resposta é sim, tendo em vista que Jesus é a referência e autoridade máxima


no cristianismo. Contudo, existe uma questão metodológica envolvida: aquilo
que a fé cristã acredita acerca de Jesus é o que está na Bíblia (que, por sua vez,
foi canonizada pela Igreja). Nesse sentido, para “acessar” o que Jesus disse e vi-
veu, temos que, primeiro, passar pela Bíblia e pela Igreja. Elas se encarregam de
revelar informações que são consideradas sagradas e são consideradas a ponte
entre Jesus e nós.

O ESPÍRITO SANTO E A ESPIRITUALIDADE

Já sabemos que a Bíblia e a tradição cristã servem de base doutrinária para os cris-
tãos, ou seja, elas mostram os conteúdos relevantes de se saber durante a caminha-
da cristã. Todavia, saber não é tudo: é importante colocar em prática o que se sabe.
Um cristão não é feito de conhecimento bíblico ou teológico (existem ateus
que são bons teólogos, inclusive), mas é aquele que acredita nas doutrinas e tenta
viver de acordo com elas. Veremos mais adiante que o propósito da espiritua-
lidade cristã é ser como Cristo. No entanto, agora, queremos enfatizar como
isso é possível. É pensando nisso que vamos falar da presença do Espírito Santo
naqueles que se convertem, segundo o entendimento cristão.
O Espírito Santo ocupa um lugar central e vital na espiritualidade cristã.
Desempenha um papel essencial na compreensão da fé e na vivência dos en-
sinamentos de Jesus Cristo. Em outras palavras, apenas se entende a realidade
espiritual contida na Bíblia com a ajuda do Espírito Santo.

3
3
UN I C ES UMA R

A importância do Espírito Santo é enraizada na própria natureza da Trindade,


que compreende Deus Pai, Deus Filho (Jesus Cristo) e Deus Espírito Santo como
um só Deus. Um Deus manifesto em três pessoas, um paradoxo presente no
cristianismo desde o primeiro século. O Espírito Santo é considerado a presença
ativa de Deus na vida dos crentes, guiando, fortalecendo e os capacitando para
uma vida de piedade e serviço.
A Bíblia atesta várias vezes a relevância do Espírito Santo na espiritualidade
cristã. Em João 14:16-17, por exemplo, Jesus promete aos discípulos que o Espí-
rito Santo virá como um Consolador e um Guia para estar com eles para sempre.
Além disso, no livro de Atos dos Apóstolos, o Espírito Santo desempenha um
papel crucial no início da Igreja Cristã, capacitando os apóstolos a proclamarem
o evangelho com poder e sabedoria.
A tradição teológica cristã também reafirma a importância do Espírito Santo.
Ao longo dos séculos, teólogos têm explorado a natureza do Espírito Santo como
aquele que concede dons espirituais aos crentes, como a sabedoria, o discerni-
mento e a cura (cf. Romanos 12, 1 Coríntios 12).
A terceira fonte que sustenta a importância do Espírito Santo na espirituali-
dade cristã é a experiência pessoal dos fiéis. Muitos cristãos relatam momentos
de profunda conexão espiritual, iluminação e fortalecimento, os quais atribuem
à presença e à atuação do Espírito Santo nas próprias vidas. Essas experiências
individuais alimentam a convicção de que o Espírito Santo não é apenas uma
doutrina abstrata, mas uma realidade tangível e transformadora que molda a
jornada espiritual de cada indivíduo.

3
3
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

É justamente esse terceiro aspecto o mais importante para gerar uma mudança de
caráter segundo o caráter de Jesus. Sem essa “conexão espiritual”, a espiritualidade
cristã corre o sério risco de ser uma curiosidade intelectual. A chamada doutri-
na da santificação, que se refere justamente ao processo de se tornar mais
semelhante a Cristo, é, muitas vezes, associada à obra transformadora do
Espírito Santo na vida do cristão.

O Espírito Santo desempenha um papel fundamental na espiritualidade cristã, as-


sim como é evidenciado pela Bíblia, pela tradição teológica e pelas experiências
pessoais dos crentes. A presença dele como guia, consolador e capacitador susten-
ta a busca dos cristãos por uma vida de fé, santidade e serviço a Deus e ao próximo.

ESPIRITUALIDADE COMO IMAGO DEI

Imago Dei, em latim, significa “à imagem de Deus”. Essa expressão é comum


na espiritualidade cristã desde a Idade Média. Isso, porque a base da espiritua-
lidade cristã pode ser encontrada no Antigo Testamento, quando lemos que a
humanidade foi feita à “imagem e semelhança” de Deus Yahweh (no Brasil, Iavé
ou Jeová). Esses termos são baseados na narrativa da criação em Gênesis 1 e 2,
quando Deus cria o ser humano (cap. 1) ou só Adão (cap. 2) de forma distinta
da criação (WALTON, 2015).
“Adão” é a tradução da palavra hebraica ‘ādām, que significa “homem” tanto no
sentido de gênero masculino quanto no plural, referindo-se à humanidade. Temos
essa mesma dinâmica no português (WALTON, 2015). A noção de que o Deus cria-
dor fez a humanidade de forma única e especial (com o propósito e a capacidade
de adorá-lo) é similar à noção de espiritualidade judaica ou mesmo monoteísta.
O significado do que representa ser “imagem e semelhança” de Deus é alvo de
muito debate há séculos. Quando refletimos sobre o significado dessas palavras,
estamos, ao mesmo tempo, refletindo sobre os possíveis sentidos da nossa espi-
ritualidade. A seguir, são apresentadas algumas das opções mais consideradas.
Ser “imagem e semelhança” significa:

3
3
UN I C ES UMA R

SER MORAL

enquanto o resto da criação apenas obedece aos próprios instintos, o ser hu-
mano é um ser moral. Isso significa que ele sabe o que é certo e errado e tem a
liberdade de agir moralmente. O ser humano é destacado por Deus para praticar
o bem, mas ele tem a liberdade de praticar o mal. Espiritualidade, aqui, está muito
ligada ao discernir o caráter de Deus e desejar reproduzi-lo.

TER ESPIRITUALIDADE (ESSÊNCIA)

essa visão entende que o ser humano é composto por corpo, alma e espírito.
Essa visão sobre a natureza do ser humano se chama tricotomismo (significa
“três partes” ou “três cortes”) e se diferencia do dicotomismo (duas partes, uma
material e uma imaterial) e do monismo (apenas uma parte integral). Por ter espí-
rito, o ser humano é capaz de se relacionar com Deus de forma única e, assim, de
ter espiritualidade. Espiritualidade, aqui, está ligada a ter uma centelha divina em
nossa natureza diferente de qualquer outra criatura.

PAPEL DE LIDERANÇA E CUIDADO

essa visão não aponta para algo que o ser humano tem “dentro de si”, mas para
a função que lhe foi designada. Essa função é de “lavrar o jardim”, como diz a
narrativa (Gênesis 2.15,19-20). Isso é geralmente entendido como “cuidar”, “de-
senvolver de forma consciente”, “produzir cultura de forma harmoniosa com o
meio ambiente”. Nesse sentido, o ser humano é o representante de Deus na Terra
(WALTON, 2015, p. 97-107). Ele é a materialização (ainda que imperfeita e limitada)
de um Deus que é espírito (conferir João 4:24).

Vale lembrar que os “nomes de Deus” no AT indicam alguém que cuida de Israel de
forma especial (“provedor”, “aquele que cura”, “aquele que comigo está” etc.). A espiri-
tualidade significa que o ser humano cuida da criação em cooperação com o criador.

3
3
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

A P RO F UNDA NDO

Os nomes de Deus no Antigo Testamento


São nomes que evidenciam o caráter de Yahweh (Jeová) ou alguma experiência
com ele. Exemplos:
Jeová Jireh: “O Senhor Proverá” (Gênesis 22:14)
Jeová Rafá: “O Senhor que Cura” (Êxodo 15:26)
Jeová Nissi: “O Senhor é Minha Bandeira” (Êxodo 17:15)
Jeová Shalom: “O Senhor é Paz” (Juízes 6:24)
Existem, ainda, outros nomes. Isso mostra que Deus era percebido em experiên-
cias vivas e significativas para os personagens envolvidos. A espiritualidade cristã
é alicerçada na expectativa da intervenção de Deus em situações concretas.

Independentemente do significado, o que fica estabelecido é a diferença do ser


humano em relação ao resto da criação. O ser humano é um ser adorador. Não se
espera de um esquilo que ele preste culto aos sábados ou aos domingos, por exem-
plo. Nesse sentido, a espiritualidade cristã está relacionada ao propósito de existir.

3
3
UN I C ES UMA R

ESPIRITUALIDADE E O PROPÓSITO DE EXISTIR

No livro de Atos dos Apóstolos, Paulo, quando vai à Atenas com a missão de
espalhar a mensagem cristã, encontra, naturalmente, um público não familiari-
zado com a tradição judaica. Eles nunca ouviram falar do jardim do Éden, Adão
e Eva ou dos dez mandamentos. Por isso, Paulo explica o evangelho sem usar
referências hebraicas, de forma a situar aquelas pessoas com o propósito de vida
de toda a humanidade:


O Deus que fez o mundo e tudo que nele há, [...] de um só fez toda
a geração dos homens para habitar sobre toda a face da terra,
determinando os tempos já dantes ordenados e os limites da sua
habitação, para que buscassem ao Senhor, se, porventura, tatean-
do, o pudessem achar, ainda que não está longe de cada um de nós;
porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos (At 17.24,26-28
ARC) (ATOS..., c2023, on-line, grifo nosso).

A carta de Efésios inicia dizendo que “[Deus] faz todas as coisas, segundo o
conselho da sua vontade, com o fim de sermos para louvor da sua glória”
(Efésios 1.11-12, ARC) (EFÉSIOS..., c2023, on-line, grifo nosso).

Isso já nos parece indicar uma visão geral de espiritualidade: desenvolver-se es-
piritualmente significa, ao mesmo tempo, desenvolver o propósito na existência.

A visão do céu que João vê no Apocalipse é repleta de adoração, indicando que


o fim dos tempos também revelará o propósito final da humanidade.

3
3
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2


Olhei e ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono, e dos animais,
e dos anciãos; e era o número deles milhões de milhões e milhares
de milhares, que com grande voz diziam: Digno é o Cordeiro, que
foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e hon-
ra, e glória, e ações de graças. E ouvi a toda criatura que está no céu, e
na terra, e debaixo da terra, e que está no mar, e a todas as coisas que
neles há, dizer: Ao que está assentado sobre o trono e ao Cordeiro
sejam dadas ações de graças, e honra, e glória, e poder para todo
o sempre. E os quatro animais diziam: Amém! E os vinte e quatro
anciãos prostraram-se e adoraram ao que vive para todo o sempre
(Apocalipse 5.11-14 ARC) (APOCALIPSE..., c2023, on-line).

Essa adoração no céu não parece ser algo inteiramente novo, mas uma continuação
daquilo que Deus nos propôs nessa vida. Jesus mesmo parecia estar ciente disso, quan-
do cita Deuteronômio 6.13 em meio à tentação no deserto: “Está escrito: ‘Ao Senhor
teu Deus adorarás e só a Ele darás culto’” (Lucas 4.8 ARC) (LUCAS..., c2023, on-line).
O propósito de existir, no cristianismo, é conhecer e adorar a Deus. Esse é,
nas palavras de Philip Yancey (2005), autor americano, também o propósito da
própria Igreja. Yancey (2005, p. 25) afirma que “a igreja existe, não para oferecer
entretenimento, encorajar vulnerabilidade, melhorar auto-estima ou facilitar
amizades, mas para adorar a Deus. Se falharmos nisso, a igreja fracassa”.
Acima do bom comportamento, da ajuda ao próximo e das reformas sociais,
o relacionamento com Deus é a chave da espiritualidade cristã e do signi-
ficado da vida. Todas as outras coisas (ajuda ao próximo, reformas sociais etc.)
são efeitos desse relacionamento.
A carta de Tiago nos sugere que a relação entre crença (em pensamento,
subjetiva) e obras (em ação, objetivas) é indissociável:


Assim também a fé, se não tiver as obras, é morta em si mesma.Mas
dirá alguém: Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me a tua fé sem
as tuas obras, e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu
crês que há um só Deus? Fazes bem; também os demônios o crêem
e estremecem. Mas, ó homem vão, queres tu saber que a fé sem as
obras é morta? (Tiago 2.17-20 ARC) (TIAGO..., c2023, on-line).

4
4
UN I C ES UMA R

A comprovação de que se crê é agir conforme se crê, e não apenas “da boca para
fora”. No entanto, apenas agir ainda não garante que haja fé interior.

JESUS, O EXEMPLO DE ESPIRITUALIDADE

O cristianismo crê que, no Éden, o ser humano falha no exercício da própria es-
piritualidade. O capítulo 3 de Gênesis conta que uma serpente convence a mulher
Eva a comer o fruto de uma árvore. Esse fruto era o único fruto que havia sido
proibido por Deus de eles comerem e a árvore é chamada de árvore do conheci-
mento do bem e do mal. Ao comer o fruto, o casal é expulso do jardim, um lugar
de delícias, e é condenado a trabalhar na terra para conseguir comer. “Com o suor
do teu rosto comerás o teu pão”, diz Deus a Adão em Gênesis 3.19 (GÊNESIS...,
c2023, on-line), a mulher terá dores de parto e, como trazem algumas traduções,
que “o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (GÊNESIS..., c2023,
on-line). Ao mesmo tempo, a terra, por causa da desobediência do casal, é amal-
diçoada e passa a dar espinhos e ervas daninhas.
Mesmo assim, nesse mesmo capítulo, Deus aponta uma solução. Ao se di-
rigir à serpente, Deus diz: “porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua
descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar” (Gênesis 3.15) (GÊNESIS..., c2023, on-line). Os cristãos interpre-
tam essa afirmação como uma referência a Jesus, o herdeiro da mulher que irá
resgatar a humanidade do pecado.
Jesus é apontado por Paulo como o 2º Adão (Romanos 5.12-21), como aquele
que foi vitorioso no exercício da própria espiritualidade. Jesus é a expressão vi-
toriosa de espiritualidade, porque decidiu ser obediente a Deus, enquanto Adão
escolheu a desobediência.

4
4
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

DIFERENÇAS INTERNAS

As instituições religiosas moldam a nossa espiritualidade e vice-versa. Em tempos


em que as instituições políticas e religiosas eram fortes, a espiritualidade indivi-
dual era muito mais afetada pelas autoridades em questão do que hoje. Diante
disso, cabe olhar de forma panorâmica as grandes manifestações de espirituali-
dade na cristandade, de acordo com os movimentos e instituições.

Igreja Ortodoxa Grega

A primeira grande divisão na Igreja se deu em 1054, entre a Igreja Ocidental e


Oriental, e ficou conhecida como “o grande cisma”, uma divisão entre as igrejas de
Roma e Constantinopla. A divisão se deu por muitos fatores, principalmente pela
rejeição das igrejas orientais ao papado e a discordâncias doutrinárias. A Igreja
Oriental passou a se chamar Igreja Ortodoxa, enquanto a Igreja Ocidental passou
a se chamar Católica Romana. Cerca de 910 anos se passaram até que houve uma
reaproximação oficial, em 1964, por parte das duas igrejas.

“Católica” significa “universal”

Os cristãos sempre entenderam a Igreja como “católica” no sentido de universal.


Se há uma espiritualidade cristã, portanto, deve haver uma Igreja cristã. Contudo,
havia mais de uma Igreja e elas não estavam mais se falando entre si. Quase cinco
séculos depois da primeira grande divisão entre a Igreja Ocidental e a Igreja Orien-
tal, houve uma segunda grande divisão com a Reforma. Para resolver essa tensão
entre a divisão e a desejada unidade da Igreja, o reformador João Calvino cria o
conceito de “Igreja Invisível”. Apenas Deus vê a Igreja Invisível e ela é o conjunto de
todos os cristãos no mundo. Diferentemente, a Igreja Visível é a que nós vemos,
dividida, imperfeita e denominacional.

4
4
UN I C ES UMA R

Místicos

Bastante ligados à tradição dos mosteiros e dos monastérios, os místicos são uma
parte rica da tradição cristã. A palavra grega mystikos significa “o que se oculta”.
Apesar de a palavra ser comumente associada ao esotérico ou ao ocultismo, essa
é uma palavra comum na tradição cristã.
Para os místicos:


A essência do cristianismo é a caridade, a unidade em Cristo. Os
místicos cristãos de todas as épocas buscaram não apenas a unifi-
cação do próprio ser ou a união com Deus, mas também a união
entre si mesmo no Espírito de Deus. Buscar união com Deus que
implicasse separação completa, em espírito e corpo, do resto da
humanidade seria, para um santo cristão, não apenas absurdo, mas
também o oposto da santidade (MERTON, 2004, p. 18-19).

A mística cristã objetiva enxergar o mundo pela fé e nos convida a uma vida
contemplativa
Deus não se vê (é espírito) e a fé e o amor não podem ser vistos, nem tocados.
Uma ação caridosa pode demonstrar amor, mas não é o amor em si. O amor se
revela em uma ação caridosa, mas, ao mesmo tempo, o amor se oculta por trás
da ação caridosa, uma vez que a própria ação não é o amor.
A mística cristã se constrói ao redor da noção de que, em tudo o que Deus se
revela (e ele se revela em tudo), ele também se oculta. Em outras palavras, Deus se
mostra constantemente, mas não se mostra totalmente. Por isso, a mística cristã
é cheia de paradoxos e é uma contemplação que apenas pode ser usufruída pela
fé. Espiritualidade dos místicos e nos monastérios tem a ver com quietude,
contemplação e domínio de si.

4
4
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

IN D ICAÇÃO DE FI LM E

Visão conta a vida de Hildegard de Bingen e as visões místi-


cas dela dentro de um mosteiro. A obra apresenta como a
espiritualidade cristã era praticada naquela época. Você
perceberá o misticismo em um ambiente notadamente rígi-
do. A diretora Margarethe von Trotta escolhe Hildegard como
exemplo de uma forte voz feminina na Idade Média.

Exemplos de místicos na história cristã

HILDEGARD VON BINGEN

Hildegard von Bingen (1098-1179), apelidada de Sibila do Reno, foi uma monja
beneditina, mística, teóloga, pregadora, compositora, naturalista, médica informal,
poetisa, dramaturga e escritora alemã. Foi mestra do Mosteiro de Rupertsberg, em
Bingen am Rhein, na Alemanha. É uma santa e doutora da Igreja Católica.

As composições de Bingen foram executadas por músicos contemporâneos e


podem ser ouvidas na internet.

ECKHART

Eckhart (1260-1328), mais conhecido como Mestre Eckhart em reconhecimento


aos títulos acadêmicos obtidos durante a estadia na Universidade de Paris.
Foi um frade dominicano reconhecido pela obra como teólogo e filósofo e pelo
misticismo. Ele é considerado um dos grandes símbolos do espírito intelectual da
Idade Média.

TERESA DE ÁVILA

Teresa Sánchez de Cepeda y Ahumada foi uma freira carmelita, mística e santa
católica do século XVI. Ávila é importante pelas obras sobre a vida contemplativa
e espiritual. A obra-prima intitulada O Castelo Interior é parte integral da litera-
tura renascentista espanhola e do misticismo cristão. As práticas meditativas de
Ávila estão detalhadas na obra Caminho da Perfeição.

4
4
UN I C ES UMA R

SÃO JOÃO DA CRUZ

Juan de la Cruz (1542-1591) foi um místico, sacerdote e frade carmelita espanhol.


É considerado santo pelos católicos. Também é conhecido pelas próprias obras
literárias. Tanto a poesia quanto as investigações sobre o crescimento da alma
são consideradas o ápice da literatura mística e se destacam entre as grandes
obras da literatura espanhola.

THOMAS MERTON

Thomas Merton (1915-1968) foi um escritor católico do século XX. Monge trapista
da Abadia de Gethsemani, em Kentucky, Merton foi um poeta, ativista social e es-
tudioso de religiões comparadas. Escreveu mais de setenta livros, a maioria sobre
espiritualidade, e foi objeto de várias biografias. Dentre as principais característi-
cas de Thomas Merton, pode-se citar a defesa do pacifismo e do ecumenismo.

Reforma

Tem-se a data de 1517 como o marco da chamada Reforma Protestante. Trata-


-se de uma divisão que ocorre dentro da Igreja Católica e que acaba fundando
um novo braço do cristianismo, o protestantismo,
Tem-se a data
de onde vieram o que chamamos hoje de “evangé-
de 1517 como
licos” no Brasil. Um dos pioneiros da reforma foi
o marco da
Martinho Lutero, que era monge, ao considerar al- chamada Reforma
gumas práticas da Igreja como altamente desviantes Protestante.
do propósito inicial dele.

Dentre as críticas de Lutero, estavam:


■ A venda de salvação e terrenos no céu.
■ Cultos em latim (e não na língua do povo, que eram dialetos do alemão).
■ Falta de instrução bíblica ao público geral e, muitas vezes, ao próprio
clero. De acordo com Lutero, as pessoas sabiam mais os comentários da
tradição do que o próprio texto bíblico.

4
4
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

Por isso, algumas das medidas da Reforma Protestante foram traduzir a Bíblia
para o alemão, investir na alfabetização das pessoas para que elas pudessem ler
a Bíblia por elas mesmas e levar a espiritualidade para fora do monastério e am-
bientes eclesiásticos. Os reformadores passam a entender que construir hospitais
e cuidar da saúde das pessoas, por exemplo, são ações tão espirituais quanto a
função do padre. O nome dessa doutrina é “sacerdócio universal de todos os
crentes”, ou seja, todo crente pode (e deve) servir a criação toda, em qualquer
área. Mais recentemente, no século XX, foi em vozes da Igreja Romana que uma
visão similar ecoou a partir da Teologia da Libertação nascida na América Latina.
Uma grande preocupação da Reforma Protestante foi identificar a fé com a
consciência do cristão, e não com rituais da igreja. Aqui, fé não é tanto o que se
faz, mas o que se crê em sua consciência (sempre de acordo com a Bíblia). A ên-
fase passa a ser: primeiro você crê, apenas depois a sua ação terá valor espiritual.
Isso deixou a espiritualidade cristã cada vez mais do domínio do entendimento
próprio, do “coração”, da intenção. A fé não pode nunca ser realmente compro-
vada ou medida por alguém de fora. Por mais que você suspeite, nunca poderá
dizer que alguém é realmente salvo ou não salvo. Como efeito colateral, a Igreja
não se manteve coesa e várias denominações com entendimentos particulares
começaram a nascer.

4
4
UN I C ES UMA R

A Reforma Protestante foi o berço da nossa mentalidade pós-moderna, algo


como “não julgue, cuide da sua própria espiritualidade”. De fato, foi Lutero
o famoso reformador que, antes de muitos filósofos, contribuiu para inaugurar o
que chamamos hoje de modernidade, um período que vai de cerca de 1500 a 1900.
A espiritualidade protestante em ascendência significa conhecer bem
a Bíblia por si mesmo e viver de forma ética.

IN D ICAÇ ÃO DE FI LM E

De monge à revolucionário, esse filme biográfico retrata o


período da Reforma Protestante que estamos comentando
neste tópico. Mostra a transição radical na vida de Lutero,
um homem que buscava uma espiritualidade que fizesse
sentido para si, e de uma reforma que tomou proporções
diferentes do que ele imaginava.

Movimento carismático

Charis, do grego, significa “graça”, em algumas passagens, assim como ocorre vá-
rias vezes em 1 Coríntios 12, e é traduzida como “dons”. Esse termo é utilizado por
Paulo para se referir aos “dons espirituais”, capacidades dadas pelo Espírito Santo
que incluem cura, profecia, milagres, palavra de conhecimento, dentre outros.
Mais do que uma denominação em específico, o movimento carismático se
espalhou pelos Estados Unidos, na Rua Azusa, Califórnia e, depois, pelo mundo.
A primeira denominação que surgiu desse movimento foi a Assembleia de Deus.
Depois dos anos de 1960, muitas igrejas sem denominação passaram a surgir,
mas com uma teologia parecida.
Os avivamentos e as experiências sobrenaturais já haviam acontecido antes na
história da Igreja, mas o carismatismo trouxe a questão das “línguas estranhas”
(considerada uma língua dos anjos, em uma interpretação de 1 Coríntios 13:1),
predição do futuro e revelações e, ainda, curas sobrenaturais. Um verso muito
usado nesse contexto é Marcos 16.17-18:

4
4
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2


E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome, expulsarão
demônios; falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem
alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e imporão as mãos
sobre os enfermos e os curarão (ARC) (MARCOS..., c2023, on-line).

Espiritualidade, aqui, significa identificar a ação de anjos e demônios e trazer


o “céu para a terra”, ou seja, experimentar o poder de Deus de forma sobre-
natural.

O QUE UNIFICA TODAS ELAS?

Diferenças doutrinárias repercutem invariavelmente na prática de uma espiri-


tualidade, seja ela individual, seja ela coletiva.

VOCÊ SABE RESPONDER?


O que é espiritualidade cristã? Cada período ou cada linha dessa irá responder
algo diferente. O que unifica todos eles?

4
4
UN I C ES UMA R

O primeiro aspecto, poderíamos dizer, é justamente o fato de sermos “imagem e


semelhança” do mesmo Deus, Imago Dei. O segundo e mais crucial é, como já
apontamos no início, a centralidade da figura de Jesus, principalmente a morte
e a ressurreição dele.
Divisão dos períodos da história ocidental e a respectiva espiritualidade:

ANTIGUIDADE CLÁSSICA (~800AC~400DC)

o pensamento dos povos antigos, especialmente Grécia e Roma, que tiveram


maiores impactos na nossa civilização. Israel já cultuava Iavé, mas não tinha uma
mentalidade de “evangelizar” as outras nações. Espiritualidade marcada geral-
mente pelo politeísmo. A espiritualidade cristã ainda não existia.

IDADE MÉDIA (~400~1500)

considerada uma era cristã, em que a Igreja Católica Romana era dominante e
aliada aos reis de cada região. A doutrina cristã era a crença comum na Europa.
Costuma-se dividir esse período em Patrística e Escolástica. A Patrística teve
como principal característica estabelecer e proteger os principais dogmas asso-
ciados ao cristianismo (como a trindade e a humanidade-divindade de Jesus).
Nessa época, refuta-se muitos autores que tinham uma visão não ortodoxa. Já a
Escolástica, mais de dez séculos depois, foi mais filosófica e racionalista. A dou-
trina da Igreja já estava estabelecida e, agora, tentava-se explicar a existência de
Deus, do céu e do inferno, bem como explorar as relações entre o homem, a razão
e a fé. Espiritualidade bastante ligada aos rituais da Igreja, como batismo, eucaris-
tia e práticas do dízimo. Na vida privada: jejum (para os mais devotos) e rezas.

MODERNIDADE (~1500~1900)

a era da razão. Mostra evolução rápida nas ciências e tecnologia. Criação da


indústria. Surge uma nova classe social (burguesia), vários países Europeus nas-
cem, volta da democracia, início e crescimento do capitalismo e do protestantis-
mo. A redescoberta dos textos clássicos do filósofo grego Aristóteles e a entrada
do pensamento do escolástico São Tomás de Aquino, que coloca a racionalidade
humana em evidência e prepara o caminho para a modernidade. Um evento im-
portante na história da Igreja foi a Reforma Protestante. A espiritualidade cristã
se torna mais dependente da Bíblia e menos da autoridade da instituição, como
efeito da Reforma Protestante.

4
4
T E MA D E APRE N D IZAGEM 2

CONTEMPORANEIDADE (1900-HOJE)

considera-se o filósofo Nietzsche um dos precursores do pensamento contem-


porâneo, momento marcado pela descrença na capacidade da razão de solucio-
nar os problemas da humanidade. Alguns consideram a contemporaneidade uma
versão mais radical da modernidade, no sentido de tentar controlar a natureza
nos mínimos detalhes (ver “Hipermodernidade”, em Lipovetsky). A espiritualidade
cristã é altamente individual, emocional e com grande expectativa por experiên-
cias sobrenaturais.

O PROPÓSITO DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

E U IN D ICO

Assista a este vídeo, que faz uma síntese de tudo o que a gente estudou. Além
disso, proporciona algumas provocações interessantes acerca de Deus e da espiri-
tualidade cristã. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente
virtual de aprendizagem.

A espiritualidade cristã não se trata apenas de seguir rituais ou cumprir obriga-


ções religiosas, mas de uma jornada que visa à comunhão com Deus. O cami-
nho para desenvolver essa comunhão envolve a presença do Espírito Santo, o
entendimento dos ensinamentos bíblicos e estar em paz com a Igreja de Cristo.
Essa jornada é movida pela crença de que os seres humanos foram criados
para ter um relacionamento íntimo com Deus (relacionamento restaurado a
partir do sacrifício de Jesus na cruz). A espiritualidade cristã também visa ao
crescimento contínuo no caráter e na semelhança de Cristo. Isso envolve uma
jornada de autodescoberta, humildade e busca por virtudes, tais como amor,
compaixão, perdão e justiça. Ao mergulhar na leitura da Bíblia, na oração, na
meditação e na participação em uma comunidade de fé, os cristãos estão bus-
cando desenvolver um coração alinhado com o de Deus, refletindo o propósito
amoroso e redentor de Cristo na Terra.

5
5
UN I C ES UMA R

Isso significa que o propósito da espiritualidade cristão não é apenas pessoal,


mas transborda da pessoa para o mundo. Receber o amor de Deus e ser trans-
formado por ele implica amar outras pessoas com o amor de Deus. A espiritua-
lidade cristã implica uma missão no mundo, a mesma missão redentora de Jesus
(CAPES; REEVES; RICHARDS, 2017).
A carta de 2 Pedro diz: “ele nos deu as suas grandiosas e preciosas promessas,
para que por elas vocês se tornassem participantes da natureza divina” (1:4) (2
PEDRO..., c2023, on-line). As “grandiosas e preciosas promessas” mencionadas
se referem aos ensinamentos e à salvação proporcionada por Jesus Cristo. O
cumprimento dessas promessas significa um relacionamento tão profundo com
Deus a ponto de “participarmos de sua natureza”.
O objetivo da espiritualidade cristã é uma transformação interior, permitindo
aos crentes fazerem parte da “natureza divina”. Ora, se “Deus é amor”, assim como
diz 1 João 4.8, então, participar da natureza divina significa (dentre outros) amar
com o amor divino: eis o alvo da espiritualidade cristã.

NOVOS DESAFIOS

Como uma pessoa pode se valer da espiritualidade cristã na prática? Ela pode,
primeiramente, levar em consideração as várias formas em que essa espiritua-
lidade pode se apresentar. Isso a torna uma pessoa mais fácil de se relacionar.
Ao contrário de acreditar que existe apenas um modo específico de viver a es-
piritualidade cristã (o jeito dela), ela passa a enxergar aspectos interessantes na
espiritualidade de outras. Pensemos no caso de católicos e evangélicos: um não
precisa deixar de seguir a própria tradição para apreciar aspectos positivos na
outra, por exemplo.
Outra maneira de usar a espiritualidade cristã é pensar como a sua fé pode
contribuir com os desafios atuais da nossa sociedade. Entendemos que cada épo-
ca e cada região desenvolve um jeito de praticar a espiritualidade. Toda prática
espiritual é uma resposta às necessidades do mundo. Qual será a sua?

5
5
VAMOS PRATICAR

1. A história da espiritualidade cristã está atrelada à história da instituição oficial dela, a


igreja. Isso acontece, porque toda espiritualidade é norteada por algum corpo de cren-
ças, mesmo que sejam poucas e bastante flexíveis. Logo, algum grupo de crenças é
inevitável para compor uma espiritualidade. Na tradição cristã, chamamos essas cren-
ças de “doutrinas”, para ser mais exato. Uma doutrina cristã é uma crença sancionada
pela Igreja, diferentemente da heresia, que é considerada uma crença errada. Algumas
doutrinas são mais importantes (como a da divindade de Jesus). Outras, talvez, sejam
mais secundárias (como as formas de batismo: imersão, aspersão e efusão), mas elas
invariavelmente indicam o caminho para a prática da espiritualidade. Se quem define
as doutrinas é a Igreja e a doutrina molda a espiritualidade diária do fiel, então, a his-
tória da Igreja molda a espiritualidade do fiel. Entretanto, a Igreja não cria, nem define
as doutrinas sem algum fundamento: ela mesma tem uma referência, que é a Bíblia.
A questão é que a Bíblia representa um conjunto de narrativas, poemas, cartas etc.,
ou seja, ela não é um livro sistematizado de teologia. Aliás, essa é uma das tarefas da
teologia: conectar informações do texto bíblico para que façam sentido na atualida-
de. A tarefa da teologia, enquanto disciplina de investigação, é organizar, identificar e
explorar os sentidos do texto. Assim, temos duas referências básicas para a formação
da espiritualidade cristã: a Bíblia e a Igreja. Mas a referência básica não seria Jesus?
A resposta é sim, tendo em vista que Jesus é a referência e a autoridade máxima no
cristianismo. Contudo, existe uma questão metodológica envolvida: aquilo que a fé
cristã acredita acerca de Jesus é o que está na Bíblia (que, por sua vez, foi canonizada
pela Igreja). Nesse sentido, para “acessar” o que Jesus disse e viveu, temos que, pri-
meiro, passar pela Bíblia e pela Igreja. Elas se encarregam de revelar informações que
são consideradas sagradas e são consideradas a ponte entre Jesus e nós.

Por que a Bíblia é considerada um guia para a espiritualidade cristã? Assinale a alternativa
correta:

a) Porque ela sistematiza as doutrinas cristãs.


b) Porque a Bíblia tem todas as respostas para a vida de uma pessoa.
c) Porque o que a fé cristã acredita acerca de Jesus é o que está na Bíblia.
d) Porque a Igreja foi quem escreveu a bíblia.
e) Porque é o livro que já era usado pelos judeus.

5
5
VAMOS PRATICAR

2. A tradição teológica cristã também reafirma a importância do Espírito Santo. Ao longo


dos séculos, teólogos têm explorado a natureza do Espírito Santo como aquele que
concede dons espirituais aos crentes, como a sabedoria, o discernimento e a cura (cf.
Romanos 12, 1 Coríntios 12). A terceira fonte que sustenta a importância do Espírito
Santo na espiritualidade cristã é a experiência pessoal dos fiéis. Muitos cristãos relatam
momentos de profunda conexão espiritual, iluminação e fortalecimento, os quais atri-
buem à presença e à atuação do Espírito Santo nas próprias vidas. Essas experiências
individuais alimentam a convicção de que o Espírito Santo não é apenas uma doutrina
abstrata, mas uma realidade tangível e transformadora que molda a jornada espiritual
de cada indivíduo. É justamente esse terceiro aspecto o mais importante para gerar
uma mudança de caráter segundo o caráter de Jesus. Sem essa “conexão espiritual”, a
espiritualidade cristã corre o sério risco de ser uma curiosidade intelectual. A chamada
doutrina da santificação, que se refere justamente ao processo de se tornar mais se-
melhante a Cristo, é, muitas vezes, associada à obra transformadora do Espírito Santo
na vida do cristão.

O que é verdade acerca da ação do Espírito Santo, segundo a espiritualidade cristã?


Assinale a alternativa correta:

a) Desempenha um papel essencial na compreensão da fé e na vivência dos ensina-


mentos de Jesus Cristo.
b) O Espírito Santo é considerado uma força ativa impessoal na vida dos crentes.
c) Ele atuou no entendimento da fé somente enquanto não se havia formado o cânone.
d) Tem uma atuação apenas psicológica ou emocional.
e) Consiste apenas em explicar o conteúdo da bíblia.

3. A mística cristã objetiva enxergar o mundo pela fé e nos convida a uma vida contem-
plativa. Deus não se vê (é espírito) e a fé e o amor não podem ser vistos, nem tocados.
Uma ação caridosa pode demonstrar amor, mas não é o amor em si. O amor se revela em
uma ação caridosa, mas, ao mesmo tempo, o amor se oculta por trás da ação caridosa,
uma vez que a própria ação não é o amor.

A mística cristã se constrói ao redor da noção de que, em tudo o que Deus se revela (e ele
se revela em tudo), ele também se oculta. Em outras palavras, Deus se mostra constan-
temente, mas não se mostra totalmente. Por isso, a mística cristã é cheia de paradoxos e
é uma contemplação que apenas pode ser usufruída pela fé. Espiritualidade dos místicos
e nos monastérios tem a ver com quietude, contemplação e domínio de si.

5
5
VAMOS PRATICAR

Com base nas informações apresentadas, avalie as asserções a seguir e a relação pro-
posta entre elas:

I - Quietude e contemplação (e uma percepção que só pode ser usufruída pela fé) foram
bastante praticadas na espiritualidade cristã

PORQUE

II - os ensinos cristãos condenavam o apego às coisas materiais.

A respeito dessas asserções, assinale a opção correta:

a) As asserções I e II são verdadeiras, e a II é uma justificativa correta da I.


b) As asserções I e II são verdadeiras, mas a II não é uma justificativa correta da I.
c) A asserção I é uma proposição verdadeira e a II é uma proposição falsa.
d) A asserção I é uma proposição falsa e a II é uma proposição verdadeira.
e) As asserções I e II são falsas.

5
5
REFERÊNCIAS

2 PEDRO 1. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bi-


ble/129/2PE.1.NVI. Acesso em: 14 set. 2023.
APOCALIPSE 5. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/
REV.5.ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
ATOS 17. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/ACT.17.
ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
CAPES, D. B.; REEVES, R.; RICHARDS, R. Rediscovering Paul: an introduction to his world,
letters, and theology. Illinois: IPV Academics, 2017.
EFÉSIOS 1. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/
EPH.1.ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
GÊNESIS 3. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/
GEN.3.ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
LUCAS 4. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/1608/LU-
K.4.ARA. Acesso em: 14 set. 2023.
MARCOS 16. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/
MRK.16.ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
MERTON, T. A sabedoria do deserto. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
TIAGO 2. YouVersion, c2023. Disponível em: https://www.bible.com/pt/bible/212/
JAS.2.ARC. Acesso em: 14 set. 2023.
WALTON, J. O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a
leitura de Gênesis. Viçosa: Ultimato, 2015.
YANCEY, P. Igreja: por que me importar? São Paulo: Vida Nova, 2005.

5
5
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção C.
O que de Jesus é pregado na fé cristã chega até nós a partir da Bíblia.

2. Só se entende a realidade espiritual contida na Bíblia com a ajuda do Espírito Santo. Além
disso, ele age guiando, fortalecendo e capacitando para uma vida de piedade e serviço.

3. Opção B.
Quietude e contemplação (e uma percepção que só pode ser usufruída pela fé) foram
bastante praticadas na espiritualidade cristã, porque a mística cristã é cheia de para-
doxos.

5
5
MEU ESPAÇO

5
5
MEU ESPAÇO

5
5
MEU ESPAÇO

5
5
TEMA DE APRENDIZAGEM 3

A ESPIRITUALIDADE DE JESUS

MINHAS METAS

Identificar as características da espiritualidade de Jesus.

Explorar o contexto religioso judaico na época de Jesus.

Diferenciar Jesus dos grupos religiosos de sua época.

Situar Jesus entre pregadores apocalípticos.

Perceber a proximidade de Jesus com os essênios.

Propor o Reino de Deus como chave para a oração de Jesus.

Conceituar dois métodos de investigação em espiritualidade.

Conhecer suas especificidades.

6
6
U N I C ES U M A R

INICIE SUA JORNADA

“O que Jesus faria em seu lugar?” – você já ouviu essa pergunta?


Talvez essa seja uma das perguntas clássicas no meio cristão. Isso é bastante
compreensível, pois a espiritualidade cristã está preocupada em seguir os en-
sinamentos de Jesus e moldar o caráter da pessoa de acordo com o que Jesus
revelou de Deus.
Diante de situações cotidianas ou complexas, essa pergunta nos estimula a ima-
ginar Jesus no nosso próprio contexto. Isso pode ser um exercício um pouco difícil.

Imagine se Jesus estivesse no seu lugar. Como ele iria se comportar? Ele teria redes
sociais? Ele comeria fast food? Ele iria em alguma igreja? (se sim, em qual?) São
tantas questões!

Mas talvez possamos fazer perguntas melhores. Na espiritualidade cristã, Jesus é


o messias de Deus, tem um lugar único na revelação de Deus. Diante da posição
única de Jesus, podemos nos perguntar: se eu sou uma criatura única no universo,
como eu revelo Deus de forma singular, no meu contexto?
A espiritualidade de Jesus nos propõe a ser como Jesus, mas não no sentido
de sermos messias, mas no sentido de copiarmos seu modelo de relacionamen-
to com Deus.
O que Jesus faria no meu lugar? Faria o que eu farei (se eu tenho consciência
de seu caráter e ensinamentos).

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

“Se Jesus vai voltar, por que se importar com esse mundo?”. Muitos cristãos já se
fizeram essa pergunta. Afinal, por que se importar com ecologia, justiça social, a
saúde do corpo e dos relacionamentos? O objetivo do nosso Play no Conhecimen-
to desse tema é mostrar como a espiritualidade de Jesus pode responder a essas
questões. Será que Jesus se importava com essas coisas? Esperamos você lá.

6
6
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

VAMOS RECORDAR?
Existem muitas expressões de espiritualidade. Na contemporaneidade, elas estão cada
vez mais individuais e customizadas. A própria tradição cristã apresenta uma variedade
imensa de expressões espirituais, várias tentativas de contextualizar a fé cristã.
Para dar dois exemplos, os monges cristãos assimilaram aspectos da fé oriental e
desenvolveram uma tradição de contemplação cristã. Já a reforma protestante abriu
portas para o livre exame das escrituras e muitas interpretações diferentes surgiram
a partir dali, isso criou novas expressões de espiritualidade que existem até hoje.
Precisamos entender a fé cristã como algo dinâmico. Ela se adapta e modifica a
cada geração, a cada nova cultura em que é praticada. Não é possível falar de uma
espiritualidade cristã estática, padrão ou definitiva. Não foi assim nem na Bíblia,
nem na história da igreja.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

DOIS MÉTODOS DIFERENTES

Antes de entrar nos detalhes da espiritualidade de Jesus propriamente, gostaria


de pensar com você acerca de como investigar a espiritualidade de Jesus. Como
investigar uma pessoa que viveu há dois milênios? Como saber se ele foi/é Deus?
Se ele ressuscitou, se se casou ou não com Maria Madalena? Ainda mais em se
tratando de Jesus, alguém que dividiu a história.
Existem muitos e muitos métodos. Eu não vou entrar em detalhes nem em
termos técnicos, mas me interessam dois olhares específicos: o olhar histórico
e o olhar teológico.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Você sabe a diferença entre o Jesus dos teólogos e o Jesus dos historiadores?

6
6
U N I C ES U M A R

Eles estudam a mesma pessoa, mas sob ângulos diferentes. Por exemplo, o méto-
do do historiador envolve uma investigação a partir de fontes históricas como:
registros escritos, pinturas, artefatos achados em escavações arqueológicas etc.
Dessa maneira, se você perguntar a um historiador se Jesus ressuscitou, ele vai
dizer que não tem como responder a essa questão, pois não há nada que ele
possa usar como evidência. Mas ele poderá dizer, por exemplo, que os primeiros
cristãos realmente acreditavam que Jesus havia ressuscitado, pois há evidências
seguras apontando que os primeiros cristãos acreditavam nisso.
A ressurreição de Jesus, assim como a sua di-
A ressurreição de
vindade, é do campo da fé. Não há como provar
Jesus, assim como a
sua divindade, é do essas coisas, o que não quer dizer que elas não sejam
campo da fé verdade, apenas que elas são de uma dimensão da
qual não se pode haver prova, por isso dizemos que
são do campo da fé. O teólogo, por sua vez, trabalha tanto com o Jesus histórico
quanto com o Jesus da fé.
Uma investigação teológica, que ocorreu no séc. I, por exemplo, foi sobre a
divindade de Jesus.

6
6
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

P E N SA N D O J UNTO S

O que significa dizer que Jesus é Deus? Que ele é uma parte Deus e outra huma-
na? Ou que ele tem só uma aparência de humanidade, mas ele é somente Deus?

Muito debate aconteceu até que a Igreja definiu a doutrina da “união hipostática”,
ou seja, Jesus é totalmente homem e totalmente Deus, ao mesmo tempo. Sim,
esse é um mistério que não pode ser compreendido pela razão humana, assim
como a natureza da trindade.
Nem sempre o historiador e o teólogo chegam às mesmas conclusões sobre
Jesus, porque eles trabalham sob pressupostos diferentes.

O método histórico

O historiador (mesmo que seja cristão) precisa considerar apenas aquilo que
seu método permite corroborar, ou seja, apenas aquilo do que se tem evidências.
Para essa abordagem, Jesus foi um judeu que nasceu em Nazaré, na Galileia, por
volta de 4 a.C. (impossível dizer com precisão). Ele seguia a tradição judaica, ia à
sinagoga, ia ao templo uma vez ao ano, fazia as orações prescritas. Pelo que lemos
nos evangelhos, suas pregações mostram um discurso do tipo “apocalíptico”, ou
seja, uma pregação que anunciava que o fim estava próximo. De fato, a expressão
“é chegado o Reino de Deus” aparece muitas vezes nos evangelhos.
Essa mensagem “apocalíptica” (que significa “revelação”, ou seja, revelação
dos planos ocultos de Deus) não foi uma invenção de Jesus, mas algo que já
havia começado na tradição judaica cerca de 200 anos antes. Veja João Batista,
por exemplo, que, precedendo Jesus, também anunciava que o Reino de Deus
estava chegando.
Nesse tipo de entendimento, Deus iria intervir na história logo em breve, de
maneira visível e poderosa. Em cerca de quarenta anos (daquela época), haveria
um mover sobrenatural da parte de Deus em Israel. Haveria de se levantar um
messias (há um debate se Jesus se entendia como esse messias ou não) que livraria
Israel da opressão dos romanos.

6
6
U N I C ES U M A R

A P RO F UNDA NDO

Os romanos conquistaram Israel em 37 a.C. e, apesar de deixarem que eles seguis-


sem a própria tradição religiosa, cobravam altíssimos impostos da população, de
forma que ela nunca prosperava. A expectativa de muitos discípulos era de que
Jesus tirasse o povo daquela situação (GOLDBERG; RAYNER, 1989).
Nessa perspectiva, a espiritualidade de Jesus era judaica e apocalíptica. Era uma
espiritualidade de grande expectativa do agir de Deus e libertação de Israel como
povo e nação. Embora a perspectiva histórica acredite que Jesus morreu crucifi-
cado, não há nessa visão nada relacionado à ressurreição ou à divindade de Jesus.

O Jesus divino

O teólogo, por outro lado, considera muitas coisas que o historiador diz, mas
também considera o aspecto da fé e da tradição religiosa que se desenvolveu
depois de Jesus. Nesse caso, Jesus é Deus e se entendia como Deus (algo que está
bastante claro no evangelho de João). Ele foi concebido de forma milagrosa, vi-
sitado pelo Espírito Santo de forma especial na ocasião de seu batismo, e assim
começou seu ministério.
Fez vários milagres que, na cultura dos judeus, indicavam que ele era o mes-
sias esperado. Por fim, ele foi à cruz para morrer uma morte expiatória, ou seja,
uma morte que tira a culpa de alguém. Em teologia, diz-se que foi uma morte
vicária (no lugar de alguém), propiciatória (oferece algo em favor de alguém) e
expiatória (que perdoa alguém).

6
6
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

Sua morte tira a culpa da humanidade e estabelece um recomeço e uma nova


ligação com Deus.

De modo diferente da visão do historiador, a ressurreição de Jesus tem um valor


e um peso importantíssimo para entendermos quem é Jesus. Considerar o pro-
pósito da morte e ressurreição, bem como a divindade de Jesus e sua promessa
de retornar à terra fazem toda diferença para pensarmos sua espiritualidade.

E M FO CO

Gostou do que discutimos até aqui? Tenho mais para conversar com você a respei-
to deste tema, vamos lá?!
O Evangelho de João é o evangelho que mais ressalta a divindade de Jesus. Ali,
ele não é apenas o messias (o que também está claro nos outros evangelhos), mas
o próprio Deus encarnado. Esse vídeo traz um panorama do que o autor do Quarto
Evangelho quer nos contar acerca de Jesus. Vamos ver as imagens, as metáfo-
ras e as referências que foram usadas para caracterizar este que, de outra forma,
poderia ser apenas um judeu de Nazaré.

Nesse estudo, vamos nos ater mais na contextualização do ambiente em que


Jesus viveu para entendermos melhor suas possíveis crenças e espiritualidade.
Buscamos oferecer um pouco de cada olhar (histórico e teológico) para termos
uma melhor compreensão do tema.

E U IN D ICO

Sobre a complementaridade desses olhares, recomendo você dar uma olhada


nessa conversa entre um padre e um jornalista, a teologia e a investigação históri-
ca em diálogo.

6
6
U N I C ES U M A R

A ESPIRITUALIDADE DE JESUS ATRAVÉS DAS DISCIPLINAS


ESPIRITUAIS

Como judeu, Jesus praticava disciplinas espirituais comuns da tradição judais-


ca. Disciplinas espirituais são práticas para crescimento espiritual e criam uma
ocasião para o relacionamento com Deus.
Temos menções bíblicas de Jesus praticando a oração (Lc 5.16), jejum (Lc
4.14), leitura da bíblia hebraica (Velho Testamento), especialmente quando feita
em público, na sinagoga (Lc 6.16).
Contudo, Jesus também é crítico da forma como essas disciplinas eram pra-
ticadas. Elas poderiam facilmente se tornar rituais vazios e se perderem do seu
intento original de mudança interior e crescimento espiritual.
Quando lemos que Jesus respondeu: “O erro de vocês está em não conhece-
rem as Escrituras nem o poder de Deus” (Mc 12.24), sabemos que ele está falando
a um grupo de judeus religiosos. Eles obviamente conheciam as Escrituras, no
sentido literal da palavra (até mesmo a memorizavam), mas Jesus aponta que
eles não entendiam de fato o que liam e, muito menos, estavam sabendo aplicar.

6
6
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

Em outra ocasião Jesus ensina: “Quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas,
que gostam de orar em público nas sinagogas e nas esquinas, onde todos possam
vê-los” (Mt 6.5).

Por ser uma religião que se desdobrou do judaísmo, o cristianismo incorporou as


mesmas disciplinas espirituais judaicas e as ressignificou. Elas são também chama-
das de “meios de graça” (“graça” é um conceito tipicamente cristão, não judaico).

REINTERPRETANDO A ESCRITURA HEBRAICA

Jesus era chamado de “mestre” (“rabi” em hebrai-


co e “raboni” em aramaico) pelos seus discípulos. Jesus era uma
Isso quer dizer que Jesus era uma referência moral referência moral e
e doutrinária. Ele tinha algo a ensinar sobre Deus, doutrinária
por isso muitos o seguiam.
Não há nos evangelhos nada que indique que Jesus estava criando uma nova
religião. Suas críticas ao judaísmo não eram tanto em relação às doutrinas em
si, mas muito mais à corrupção religiosa de seu tempo. Assim, suas críticas
contém uma continuidade entre o que Deus já havia revelado por meio da Lei e
dos Profetas e não uma ruptura com a tradição.
Jesus chega a dizer que nem o menor traço da lei iria perder o seu sentido
enquanto o Reino de Deus não estiver estabelecido na terra (cf.Mt 5.17-18). Essa
fala está no relato mais longo dos ensinos de Jesus, o chamado “sermão do mon-
te” no Evangelho de Mateus. O grande foco desse evangelho é apresentar Jesus
como cumprimento da expectativa judaica messiânica. Logo de início, Jesus é
apresentado como sendo da linhagem de Davi e é o livro que mais dialoga com
as referências do Velho Testamento.
No trecho do “sermão do monte”, Jesus busca reinterpretar alguns ensinos do
antigo testamento (ou pelo menos resgatar o real sentido das Escrituras hebraica).
Existe um padrão de fala que se repete cinco vezes que é: “vocês ouviram…Eu,
porém, digo…”, onde ele substitui uma interpretação por outra, geralmente mais
radical e subjetiva. Veja como isso acontece em Mateus (5:21,22, 27-34, 38-48 ACF):

6
6
U N I C ES U M A R

Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que
matar será réu de juízo.Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem
motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer
que disser a seu irmão: Raca [amaldiçoado], será réu do sinédrio;
e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno [...].

Ouvistes que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, po-
rém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para a cobi-
çar, já em seu coração cometeu adultério com ela.

Portanto, se o teu olho direito te escandalizar [te levar a pecar], ar-


ranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um
dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe
de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que
seja todo o teu corpo lançado no inferno [...].

Também foi dito: Qualquer que deixar sua mulher, dê-lhe carta de
divórcio. Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher,
a não ser por causa de fornicação, faz que ela cometa adultério, e
qualquer que casar com a repudiada comete adultério.
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas
cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de
maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus [...].

Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém,
vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face
direita, oferece-lhe também a outra; E, ao que quiser pleitear con-
tigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; E, se qualquer
te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te
pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes.

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.
Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos
maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltra-

6
6
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

tam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva
desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que
galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo?

Muitos entendem que os ensinamentos de Jesus nessa passagem eram proposi-


tadamente exagerados por Jesus. Esse exagero (hipérbole) poderia servir, por
exemplo, para que o núcleo da mensagem ficasse bem claro. Esse entendimento
parece ser correto pelo menos para algumas partes, como em “arrancar” o braço
ou o olho fora. Trazer a Lei de Moisés para o campo da consciência individual
poderia criar uma espiritualidade mais difícil de viver, mas, ao mesmo tempo,
tirava dos líderes religiosos o poder de regular as pessoas apenas pelas aparências.

A ESPIRITUALIDADE DE JESUS EM MEIO À OUTRAS


PRÁTICAS JUDAICAS

Ao ler o Antigo Testamento (AT), você pode facilmente se dar conta de que os
grupos religiosos judeus mencionados no NT não aparecem (como no caso da Bí-
blia protestante, com 39 livros no AT), ou pelo menos não são tema tão recorrente,
como nos evangelhos (como no caso da Bíblia católica, com 43 livros no AT).
No AT protestante, basicamente não lemos sobre fariseus, saduceus e essê-
nios, pois eles se formaram no chamado período “intertestamentário”. Esse é um
período que esses cristãos entendem ser um silêncio de Deus. Para protestantes
e evangélicos, entre os dois testamentos há um espaço de cerca de 400 anos. Não
que a religião judaica não tenha produzido nada nesse tempo, mas que nada da
parte de Deus foi revelada aos seus profetas. Segundo essa concepção, esse silên-
cio é quebrado quando um anjo aparece ao profeta Zacarias, pai de João Batista,
no Evangelho de Lucas.
Enquanto para evangélicos, fariseus, saduceus e essênios foram expressões
do judaísmo que surgiram entre o AT e o NT. Já na Bíblia católica (43 livros no
AT), podemos ligar esses grupos à revolta dos Macabeus. Os fariseus (que sig-
nifica “separados”) eram pessoas a favor da não mistura da religião judaica com
a cultura grega (a cultura grega floresceu bastante durante o período intertesta-
mentário e ainda alcançava os judeus por meio de Roma, que governava Israel

7
7
U N I C ES U M A R

naquela época). Eram leitores cuidadosos da Lei e foram responsáveis por criar
uma tradição oral de interpretação e formulação de aspectos legais inspirados
na “vontade de Deus” (REINKE, 2021, p. 324).

A P RO F UNDA NDO

O apego à Lei se intensificou nos 200 anos antes de Jesus por causa da dominação
de outros povos sobre Israel. Manter a Lei passou a ser uma questão de identi-
dade; uma preocupação com detalhes e a criação de novas regras passou a fazer
parte de um arsenal legalista e difícil de seguir. Era contra isso que Jesus estava
reagindo em pregação e atos.

Os saduceus eram um grupo de sacerdotes. Eram ricos e possivelmente mora-


vam ao redor de Jerusalém (onde ficava o templo). Como eram influentes, me-
diavam relações entre Israel e Roma. Não reconheciam fontes orais da tradição
judaica como autoritativas, apenas os escritos (principalmente a Lei), e por isso,
não reconheciam a tradição farisaica.

Figura 1 – Parte histórica de Jerusalém, Israel.

Descrição da imagem: a figura se trata de uma fotografia da cidade de Jerusalém, representando sua parte histó-
rica; na figura, é visto ruínas do antigo templo judaico e, ao fundo, a cúpula de uma mesquita, com teto amarelo.
Pessoas estão no centro da imagem, em um pátio, próximo a um grande muro de pedras que fica ao fundo da
imagem. Mais ao fundo, vê-se árvores e telhados de residências. Fim da descrição.

7
7
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

Diferentemente dos fariseus, os saduceus não acreditavam em soberania divina,


juízo final, anjos ou ressurreição dos mortos. Por isso, como Jesus reconhecia a
existência de um mundo sobrenatural, eles se opunham ao seu ensino. Um outro
fator de oposição pode ter sido o comportamento de Jesus no templo (virando
mesas e expulsando mercadores), uma vez que legislar sobre o templo era uma
de suas funções (REINKE, 2021).
Os essênios não são mencionados na Bíblia, mas sua existência e influência
tem sido amplamente estudada desde a descoberta dos manuscritos de Qumran
(ou manuscritos do mar morto), em 1947. Um grupo de devotos que se retiravam
da sociedade e formavam comunidades no deserto. Essas comunidades eram
comunidades monásticas de transmissão de ensinos e formação espiritual. Eles
entendiam que o fim do mundo e o julgamento de Deus estavam próximos, que
Deus iria levantar um messias para governar Israel em um novo Reino.
A pregação de Jesus tem muitas similaridades com os essênios. Há muitas
dúvidas se ele foi de fato um essênio (se conviveu com eles em algum momento
de sua vida), pois ainda não temos um registro que comprove isso. Por isso,
vamos falar de “apocaliticismo” quando falamos de Jesus, e não falamos de um
Jesus estritamente essênio.

IN D ICAÇÃO DE FI LM E

Sinopse: minisérie “Os Caminhos de Jesus” (2022). Disposto a


investigar o poder da mensagem de Jesus, o jornalista e escri-
tor Rodrigo Alvarez viaja pelo mundo atrás de textos sagrados
e descobertas arqueológicas surpreendentes sobre a vida do
messias vindo de Nazaré.
Comentário: minissérie que nos leva a saber mais sobre o con-
texto religioso de Israel e a influência deles na espiritualidade
de Jesus.

7
7
U N I C ES U M A R

APOCALITICISMO

Esse termo é atribuído àqueles judeus que pregavam que o fim do mundo e o
Reino de Deus estava próximo.
Pregadores apocalípticos eram comuns na época de Jesus. João Batista foi
um deles, por exemplo. Eles comumente faziam um voto de celibato. Percebe-
mos isso em João Batista, Jesus e Paulo. Eles não se casaram (talvez Paulo tenha
sido casado em algum momento, mas depois fez o voto de celibato, por viuvez,
divórcio, ou talvez porque nunca tenha sido realmente casado) e pregavam sobre
a vinda do Reino constantemente.
A ideia do celibato é mostrar, através da própria vida aqui na terra, um vis-
lumbre de como será a vida no Reino de Deus. Os judeus criam que os anjos não
se reproduziam nem praticavam sexo, eram, por assim dizer assexuados. Jesus
expressa essa crença quando diz que, no Reino, seremos como anjos, “que não
se casam nem se dão em casamento” (Mc 12.25). Isso também tem a ver com a
urgência de Paulo em 1Coríntios 7: é melhor que não se case e viva intensamente
para o Senhor, porque o fim está (para Paulo) bem próximo.

Um dos aspectos mais importantes do judaísmo para a compreen-


são do Jesus histórico é uma visão de mundo amplamente com-
partilhada por muitos judeus de seu tempo, que os estudiosos cha-
mam de apocalipticismo. Esse termo vem da palavra apocalipse,
que significa “revelação” ou “revelação”. Os apocalipticistas judeus
acreditavam que Deus havia revelado a eles os segredos celestiais
que poderiam dar sentido às realidades terrenas. Em particular,
eles estavam convencidos de que Deus iria intervir muito em breve
neste mundo de dor e sofrimento para derrubar as forças do mal
que estavam no controle desta era e trazer um reino bom onde não
haveria mais miséria ou injustiça. Essa cosmovisão apocalíptica
é bem atestada por fontes judaicas da época de Jesus: é uma visão
proeminente entre os Manuscritos do Mar Morto — uma coleção de
escritos descobertos em 1947, produzidos por judeus por volta da

7
7
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

época de Jesus e não muito longe de onde ele viveu - e entre outros
textos judaicos que não estão na Bíblia; era a visão de João Batista;
era a opinião dos fariseus; era a visão amplamente mantida em todo
o mundo de Jesus (EHRMAN, 2014, s.p.).

A questão de mostrar a dinâmica do Reino vindouro através da própria vida aqui


na terra é importante para entendermos a espiritualidade de Jesus. Para Jesus,
anunciar o Reino era de suma importância. Com isso, ele queria anunciar não
apenas que o Reino estava próximo, mas também anunciar como seria esse Reino,
o que tem nele de diferente do nosso reino presente.

Por isso, tem-se justiça no Reino de Deus, precisamos praticar e anunciar a justiça
aqui, agora. Se há amor no Reino de Deus, precisamos amar aqui e agora; se há
perdão no Reino, então que perdoemos aqui, se há relacionamento com Deus, que
o busquemos aqui.

Na espiritualidade de Jesus, anunciar o Reino é viver o Reino.

O “reino de Deus” na pregação de Jesus não se refere ao destino pós-morte, não


a nossa fuga deste mundo para outro, mas ao governo soberano de Deus vindo
“assim na terra como no céu” (WRIGHT, 2009, s.p., tradução nossa).
As parábolas de Jesus, em sua maioria, falam explicitamente do Reino de
Deus. Encontramos várias vezes a expressão “o Reino de Deus é como…”. Jesus
apresentou a vida e a mentalidade do Reino como algo precioso, uma pedra de
grande valor. Em uma pequena ilustração ele conta:


O Reino dos céus assemelha-se a um tesouro escondido no campo.
Certo homem, tendo-o encontrado, escondeu-o novamente. En-
tão, transbordando de alegria, vai, vende tudo o que tem, e compra
aquele terreno (Mateus, 13.44).

7
7
U N I C ES U M A R

E M FO CO

Muitos dos ensinamentos de Jesus ocorreram em forma de parábolas. Existe al-


gum tema que se repete constantemente? Mesmo que não exista um tema que se
repita em todas as parábolas, existe, sem dúvida, uma repetição marcante acerca
do Reino. Se juntarmos todas as parábolas de Jesus, o que aprendemos sobre o
Reino de Deus?
Vamos saber mais sobre As parábolas de Jesus

Ensino e vida prática andam juntos. Até a forma de orar é impactada por essa
espiritualidade. Observe como Jesus ensina seus discípulos a orar:

Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
[no Reino de Deus, o nome de Deus é reconhecido como santo]
Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu;
[essa frase é a chave para entender a oração de Jesus dentro da perspectiva
apocalíptica]
O pão nosso de cada dia nos dá hoje;
[no céu há fartura de pão, por isso, “dê-nos pão aqui também”]
E perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos
devedores;
[no Reino há perdão, então nós perdoamos as pessoas aqui também]
E não nos conduzas à tentação; mas livra-nos do mal.
[no Reino, amamos tanto a Deus que a tentação não nos apetece; que
aqui também
sejamos livres].

7
7
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 3

O desfecho comum nas traduções evangélicas que diz: [porque teu é o reino,
e o poder, e a glória, para sempre. Amém.] é consensualmente entendida como
uma inserção posterior (Mt 6:9-13).
Jesus cria um espelho entre Reino de Deus e terra quando oferece um mo-
delo de oração. O modelo pode ser entendido como reproduzir, nas orações
pessoais, esse espelhamento entre Reino e Terra. Jesus nos estimula a pensar que
a vida aqui importa para revelar o Reino de Deus.
A própria ressurreição de Jesus estaria conectada a ideia de um novo Reino:

Sem a ressurreição, até a história de Jesus é uma tragédia, certamen-


te em termos judaicos do primeiro século, como bem sabiam os
dois no caminho de Emaús. Mas com a ressurreição há uma nova
maneira de contar toda a história. A ressurreição não é apenas um
final feliz surpresa para uma pessoa; em vez disso, é o ponto de vi-
rada para todo o resto. É o ponto em que todas as velhas promessas
finalmente se tornam realidade: as promessas do reino inabalável
de Davi; as promessas do retorno de Israel do maior exílio de todos;
e por trás disso novamente, bastante explícito em Mateus, Lucas e
João, a promessa de que todas as nações agora serão abençoadas
por meio da semente de Abraão.

Se Jesus não ressuscitou, Lucas está dizendo, tudo o que você tem
são esperanças levantadas e frustradas mais uma vez. Os discípulos
continuariam esperando, sem dúvida, porque eram judeus fiéis, mas
se Jesus não ressuscitou, nada aconteceu para mostrar que suas es-
peranças poderiam, afinal, ser cumpridas. Mas se Jesus ressuscitou,
então é assim que o Antigo Testamento deve ser lido: como uma
história de sofrimento e vindicação, de exílio e restauração, uma
narrativa que atinge seu clímax não em Israel se tornando a nação
líder e derrotando o resto do mundo em seu próprio jogo, mas no
sofrimento e na vindicação, no exílio e na restauração do Messias
- não apenas para si mesmo, mas porque ele carrega as promessas
salvadoras de Deus (WRIGHT, 2009, s.p., tradução nossa).

Fica claro que a espiritualidade de Jesus é necessariamente uma espiritualidade


em missão.

7
7
U N I C ES U M A R

E U IN D ICO

Nesses vídeos, o jornalista Rodrigo Alvarez comenta a relação desafiadora entre o


factual e o teológico ao redor da figura de Jesus. Você vai reparar que a pergunta
da qual ele parte é: o que motiva as diversas narrativas sobre Jesus?

NOVOS DESAFIOS

A espiritualidade de Jesus é engajadora, ela muda tudo. De acordo com ela, o seu
ambiente de trabalho é:

a) Um lugar onde você demonstra como será a vida no Reino de Deus.


Isso significa trabalhar de forma honesta, ser amável, uma pessoa fácil
de lidar.
b) O propósito do seu trabalho é (ou deveria ser) mostrar ao mundo como
será a vida no Reino. Sua empresa/instituição também deve ser hones-
ta, valorizar as pessoas que trabalham nela, ter um olhar humanizado
para com as pessoas que precisam de seus serviços.

Quando se pensa em espiritualidade de Jesus, pensa-se em mudança social e


mudança de comportamento. Não há como dissociar uma coisa da outra.

7
7
VAMOS PRATICAR

1. Quais são as perspectivas discutidas no texto para investigar a espiritualidade de Jesus?

a) Metodológica e investigativa.
b) Teológica e arqueológica.
c) Histórica e teológica.
d) Judaica e cristã.
e) Étnica e cultural.

2. Qual era a importância das disciplinas espirituais para Jesus?

I - Faziam parte de sua cultura judaica.


II - Ajudavam a formar o caráter do adorador, para ser como Deus.
III - Eram um meio de se conectar com Deus e manter firme a fé.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) III, apenas.
c) I e II, apenas.
d) II e III, apenas.
e) I, II e III.

3. Que papel tem a ressurreição de Jesus na perspectiva teológica?

I - De ser apenas um símbolo de vitória contra a opressão romana.


II - A ressurreição de Jesus indica teologicamente que ele era o messias.
III - O papel de provar empiricamente que ele era Deus.
IV - De instaurar uma nova crença. Se ninguém acreditasse que Jesus tivesse ressuscitado,
não haveria cristianismo.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) II e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e III, apenas.
e) I, II, III e IV.

7
7
REFERÊNCIAS

EHRMAN, B. D. How Jesus became God: the exaltation of a Jewish preacher from Galilee.
Harper Collins, 2014.

GOLDBERG, R. Os judeus e o Judaísmo: história e religião. Xenon: Rio de Janeiro, 1989.

REINKE, A. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua atuação no
plano divino. Thomas Nelson: Rio de Janeiro, 2021.

WRIGHT, N.T. Surprise by Hope: rethinking heaven, the resurrection and the mission of the
church. HarperCollins. 2009.

7
7
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção C.

As duas perspectivas usadas são a histórica e teológica.

2. Opção E.

Todas as afirmativas estão corretas. As disciplinas espirituais tinham a função de aproximar


as pessoas de Deus. As três afirmações mostram diferentes aspectos dessa aproximação.

3. Opção B.

I. Embora a ressurreição possa ser entendida por alguns apenas como um símbolo, grande
parte da teologia e da tradição cristã a enxerga também como um fato histórico.
II. A ressurreição de Jesus (pelo próprio Deus Pai) indica que ele era aceito por Deus, inocente
e divino.
III. Não se pode provar empiricamente que Jesus é Deus, pois não há experimentos que possam
ser realizados para medir ou repetir tal evento. A teologia faz parte das ciências humanas, onde
a prova empírica é dificilmente aplicada, pela natureza de seu objeto de estudo.

8
8
MEU ESPAÇO

8
8
UNIDADE 3
TEMA DE APRENDIZAGEM 4

TEOLOGIA DA ESPIRITUALIDADE

MINHAS METAS

Definir o que é Teologia.

Diferenciar Teologia de espiritualidade.

Identificar a importância da Teologia para a espiritualidade.

Conhecer o que livros Bíblicos falaram sobre espiritualidade.

Entender como partes da Bíblia falam sobre espiritualidade de forma diferente.

Entender o impacto que os ascetas e os místicos tiveram na espiritualidade cristã.

Conhecer as limitações da Teologia.

8
8
U N I C ES U M A R

INICIE SUA JORNADA

Por quanto tempo uma espiritualidade consegue resistir sem “criar” uma teolo-
gia? Espiritualidade “livre” é realmente algo muito poético, mas a história nos
diz que, ou ela desenvolve uma teologia para se manter, ou ela evapora e se dilui
(por não ter um corpo sólido).
Espiritualidades tradicionais como o cristianismo, budismo ou islamismo,
sobrevivem, em parte, porque desenvolveram uma “densidade teórica” ao redor
delas. Indo, aparentemente, na direção oposta, sabemos, entretanto, que a espi-
ritualidade, como se entende hoje em dia, tende a ser mais “livre” de doutrinas,
e mais focada na experiência, desinstitucionalizada.
O que veremos é que uma teologia surge como
uma reação natural à prática espiritual. Com o tempo, Uma teologia surge
ela pode acabar realmente sufocando a espiritualida- como uma reação
de com a tradição, mas isso já é um outro problema. natural à prática
Vamos com calma, na verdade a teologia está sempre espiritual
a um passo atrás de qualquer prática espiritual.
Faça o experimento mental de criar uma religião. Mas tem uma regra: não
pode ter doutrina, nem dogma, nem livro sagrado, nem teologia sistematizada,
ok? Quando sentir que está pronto, tente explicar sua nova religião (de mentiri-
nha) para alguém.
Pergunte a essa pessoa se ela entendeu, deixe até que ela faça perguntas sobre
isso… e aí, você conseguiu responder as perguntas?
O objetivo desse exercício é levar você a pensar: como uma espiritualidade
é comunicada e entendida pelas outras pessoas, se ela não tem um mínimo de
sistematicidade?

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

Será que a Teologia realmente impacta a espiritualidade? Ou ela é apenas coisa


de intelectuais e seus livros? Nesse Play no Conhecimento vamos ver como um
termo teológico moldou uma espiritualidade inteira: o conceito de “trindade”. Uma
palavra que não está na Bíblia, mas está na tradição da maioria dos cristãos.

8
8
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

VAMOS RECORDAR?
Vamos lembrar que estamos vindo de uma análise da espiritualidade na
contemporaneidade. Vimos que a vivência espiritual tem se mostrado mais flexível,
com menos dogmas e com menos institucionalidade. É altamente individual e
geralmente está na mira do marketing, que busca entender as especificações do
“produto religioso”.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

O QUE É TEOLOGIA?

Muitos diriam que teologia é aquilo que estuda a espiritualidade. E é verdade, não
deixa de ser, mas, a espiritualidade e a religião são estudadas por diversas disciplinas,
entre elas a teologia. Assim, dizer que teologia é aquilo que estuda a espiritualidade
é correto, mas ainda insuficiente para entender o papel da teologia especificamente.
Para irmos direto ao ponto, vamos falar da teologia cristã (pois existe a teo-
logia judaica, islâmica, hindu etc.). A espiritualidade cristã tem a bíblia como
referência de fé, é centrada na pessoa de Cristo e é movida pelo relacionamento
pessoal com a divindade. De certa forma, essa reflexão sobre a espiritualidade já
é um tipo de fazer teológico. Resta saber melhor o que caracteriza uma teologia
enquanto método de investigação.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Como a teologia estuda a espiritualidade?

8
8
U N I C ES U M A R

A Teologia estuda o relacionamento do ser huma-


Uma análise racional
no com Deus através da interpretação dos textos
e argumentativa
bíblicos (usando outros textos como suporte,
como livros deuterocanônicos ou apócrifos) e uma análise racional e argumen-
tativa (BENTES; CHAMPLIN, 1995). Ou seja, na Teologia não existe espaço
para “revelação”, “palavra profética”, “visões”, essas são práticas da fé, legítimas
enquanto parte da vida pessoal, mas que não servem como argumento teológico.
Essas práticas podem até serem estudadas, é claro, mas não praticadas no fazer
teológico.
Para que você, estudante, entenda melhor, vamos resgatar um conceito dentro
do âmbito dos estudos, que é a narrativa. O que é uma narrativa?
A narrativa tem sido muito estudada por diversas áreas do conhecimento, entre
elas a psicologia cognitiva e as neurociências. Ao que tudo indica, nosso cérebro
é um criador nato de narrativas, além de interpretar fatos e acontecimentos de
acordo com uma narrativa previamente estabelecida. A teologia também tem se
aproximado desse debate, estabelecendo pontes com a literatura e procurando por
narrativas profundas ou norteadoras dentro da Bíblia – a Teologia Narrativa.
Mesmo as cartas do Novo Testamento, aparentemente tão “secas” em termos
de desenvolvimento narrativo, mostram estar dialogando com uma história e não
apenas com doutrinas abstratas. A história que norteia Paulo, por exemplo, seria
narrativa a de Deus Yahweh se tornando humano, morrendo e ressuscitando. A
redenção da humanidade seria uma sequência de eventos com começo, meio e
fim, e suas cartas servem como comentários que explicam a importância desses
eventos para o ouvinte.

8
8
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

A P RO F UNDA NDO

Arte e espiritualidade
Além de texto bíblicos, teologia também pode analisar um período, época, utili-
zando a arte como material de pesquisa.
Como a arte reflete os ideais de cada época. Períodos chave como bizantino,
medieval, renascimento, passando pela arte calvinista e iluminismo refletem di-
ferentes modos de representar a Bíblia. Se pegarmos uma obra de cada período
veremos como o nosso olhar é influenciado pela mão do artista. Mesmo que o
conteúdo seja o mesmo, a forma de representar muda. O que isso quer dizer e
como isso nos impacta? Conteúdo e forma (tema e estética) formam, juntos, uma
narrativa visual da espiritualidade.

TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE

Qual o papel dessas linhas teológicas para a espiritualidade cristã? A resposta


curta é: elas investigam a espiritualidade racionalmente. E talvez aqui esteja uma
diferença irredutível entre teologia e espiritualidade: a espiritualidade pode ser
o nome para uma prática ou experiência espiritual, enquanto teologia será
sempre relacionada a um conhecimento. Mesmo a Teologia Prática é um co-
nhecimento, é uma reflexão racional sobre as práticas cristãs (PINHEIRO, 2022).
A espiritualidade enquanto prática espiritual nasce do desejo existencial de
conhecer o divino, a teologia nasce no desejo racional de sistematizar uma ex-
periência (especialmente de uma experiência coletiva).

8
8
U N I C ES U M A R

Dessa maneira, a espiritualidade é mais abran-


A espiritualidade
gente que a teologia, pois ela engloba a prática. é mais abrangente
Uma espiritualidade pode ter uma teologia, como que a teologia
é o caso do cristianismo, mas não necessariamen-
te (nesse caso, a espiritualidade não tem um nome certo ou dogmas definidos).

BASES PARA UMA TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO

O Antigo Testamento (AT), por exemplo, apresenta um caso dificílimo de sis-


tematização, pela sua variedade de temas, gêneros literários (temos lei, mito,
profecia, apocalipse, poesia, história), diversos períodos históricos (numa faixa
de cerca de 1500 anos), e uma relativa escassez de manuscritos que permitem
reconstruir o texto.
Podemos dizer que os autores do AT vivem e relatam uma espiritualidade.
Uma espiritualidade antiga, de uma cultura e época bem diferentes da nossa,
uma espiritualidade que tem implicações teológicas. A teologia teria, então, uma
tarefa dupla:
1. entender a espiritualidade judaica do AT e;
2. elaborar formas de que essa espiritualidade antiga faça sentido na con-
temporaneidade.

Nem sempre o mesmo teólogo faz as duas coisas, geralmente foca-se em uma
das duas frentes.

8
8
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

Hasel (2021, p.121) diz que a tarefa da teologia do AT “consiste em oferecer explicações
e interpretações sintéticas da forma final dos distintos escritos ou blocos de escritos
[...] que façam com que seus vários temas, motivos e conceitos aflorem e revelem
sua relação mútua”.

Quando Hasel (2021) diz “forma final” e “blocos de escritos” é porque o que
conhecemos com o AT hoje é, na verdade, a edição final de tradições orais e textuais
de Israel. O que lemos não foi escrito por alguém que estava lá na cena, mas um
registro posterior que não tinha a intenção de ser um registro histórico, mas uma
narrativa que ensinasse algo a Israel, sobre seu Deus, seu passado e sua identidade.
Nesses casos, devemos ter em mente que “os relatos bíblicos devem ser pri-
meiro apreciados como narrativas antes de serem usados como fontes histó-
ricas” (PROVAN apud REINKE, 2021, p. 29), afinal, “os autores bíblicos estão
mais interessados no significado do relacionamento de Deus com o seu povo do
que em fornecer detalhes para o interesse dos historiadores contemporâneos”
(LONGMAN III apud REINKE, 2021, p. 28).
Esse é um detalhe importante para entendermos uma teologia para a espi-
ritualidade: quando olhamos textos antigos, sejam eles tidos como sagrados ou
não, os lemos como o relato de uma experiência espiritual antes de os lermos
como fonte histórica ou científica. Hasel (2021) diz que fazer teologia do AT não
é recontar a história ou a tradição de Israel, pois são coisas diferentes.
Retomando o que Hasel (2021) dizia, um modo de oferecer “interpretações
sintéticas”, isto é, concisas, explicações que vão direto ao ponto, é:
1. entender as especificidades de cada livro - considerar as teologias narra-
das, ou seja, as implicações teológicas das espiritualidades de cada livro e,
2. explicar como elas se relacionam entre si.

Além disso, deve-se levar em conta que, para um cristão, a teologia do AT está
conectada com o NT.

9
9
U N I C ES U M A R

DIVISÕES DOS LIVROS E SUA ESPIRITUALIDADE

Tomando a Bíblia como a versão que o povo judeu criou de sua própria história,
vamos examinar as divisões internas que existem no cânone e suas reespctivas
visões de espiritualidade.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Você já ouviu falar de Literatura de Sabedoria ou Literatura Profética? Afinal, de
onde vêm esses nomes?

Esses nomes são dados a tipos de livros na Bíblia. Aqui vamos falar mais preci-
samente do AT. Desde antes do cristianismo surgir, os judeus já dividiam o AT
em sequência menores. Para eles havia:

9
9
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

TORÁ (SIGNIFICA LEI)

que são os livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.

NEVIIM (PROFETAS)

Josué, Juízes, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel,
Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

KETUVIM (ESCRITOS)

Rute, 1 Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios, Eclesias-
tes, Cânticos, Lamentações e Daniel.

Essa divisão foi herdada pelo cristianismo, mas a tradição cristã a modificou
deixando cinco grandes divisões para o AT. São elas:

TORÁ (LEI)

que são os livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.

HISTÓRICOS

Josué, Juízes, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oseias, Joel,
Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

LIVROS DE SABEDORIA

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cânticos.

PROFETAS

(5 maiores) Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel, (12 menores) Oséias, Joel,
Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias.

9
9
U N I C ES U M A R

Tendo em vista essa divisão, podemos perceber que existe um conjunto de livros
no AT que chamamos tradicionalmente de Literatura Sapiencial ou Literatura
de Sabedoria. Esse conjunto é composto dos livros de Jó, Salmos, Provérbios,
Eclesiastes e Cantares. Hoje a igreja católica também considera os livros de Ecle-
siástico e Sabedoria como canônicos e parte desse conjunto.
É esse conjunto e o conjunto dos livros proféticos que queremos olhar com
calma. Veremos que cada um oferece diferentes perspectivas para a espiritualidade.
A literatura de sabedoria carrega esse nome em grande medida por refletir
sobre a espiritualidade como uma forma de alcançar (ou exercer) a sabedoria. É
comum encontrarmos muitos questionamentos sobre a vida: por que as coisas
são assim? Por que o mundo é tal e qual?
Vejamos os exemplos abaixo (BÍBLIA, 2021):
Provérbios - um conjunto de ensinamentos de pai para filho (1-9) e máxi-
mas coletadas de diversos lugares dentro e fora de Israel. São como ditados, que
em poucas palavras apresentam uma verdade geral e de fácil entendimento. Por
serem verdades gerais, não pretendem ser rígidas em suas aplicações.
Eclesiastes - também contém ensinamentos de pai para filho, mas sua estru-
tura não é feita de uma coleção de provérbios e sim de uma reflexão um pouco
mais encadeada sobre a vida.

Esses dois livros são, portanto, didáticos, eles pretendem ensinar uma maneira
correta de viver.

Salmos - são orações e cânticos a Deus. O único livro onde o ouvinte é o próprio Deus
e não apenas o leitor. As descrições de Deus e das aflições humanas que encontramos
ali nos inspiram a desenvolver nossas próprias orações nos dias de hoje. Essa coletâ-
nea de salmos nos estimula a uma espiritualidade honesta e sem barreiras com Deus.
Jó - um grande poema que indaga sobre a presença do mal e o agir de Deus
no mundo, especialmente na vida da pessoa de bem. É uma narrativa de um
personagem (Jó) que chega ao limite do limite, onde a paciência transcende as
palavras. Apesar de tudo, é apenas no final do poema que Jó pode dizer “eu te
conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te vêem” (42.5).

9
9
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

Cantares - é um poema de amor, do amor romântico entre um homem e uma


mulher anônimos. Usa bastante a linguagem figurada, como é comum na litera-
tura de sabedoria e nos estimula a pensar no paralelo entre a união matrimonial
e a união espiritual. Porém o texto não faz pouco caso da união dos corpos, da
sexualidade e do desejo.
A literatura de sabedoria reflete sobre a vida tendo como pressuposto que
Deus existe e sabe de tudo o que se passa. Não é uma busca por explicações
científicas, mas por sentido. Não é como se alguém perguntasse: “por que será
que chove? Vou descobrir a causa disso”. Ao contrário, pergunta-se por outros
“por quês”: “será que vale a pena fazer o bem?”; ou, como muitos brasileiros se
perguntam: “por que o corrupto se dá bem e o trabalhador se dá mal?”.
Diante de tais perguntas, os autores bíblicos então nos provocam de volta:
“será que eles se dão bem mesmo?”, poderíamos ouvir do autor de Provérbios.
Por isso, é uma literatura que instiga o ser humano a pensar sobre o sentido
da própria existência, e não uma literatura de acúmulo de informações e conhe-
cimento. Nessa busca por sentido, Deus é um personagem sempre considerado,
Ele age, interfere, ou pelo menos vê o que se passa.
Existem diferenças entre eles, às vezes, até contradições. Em boa parte de
Eclesiastes, Deus parece mais ausente se comparado com Provérbios. Há mais
dúvida e mais angústia no primeiro e mais certezas no segundo.
Em Provérbios a realidade acha uma resolução, o conflito acaba, por exemplo
em: “Os justos têm a expectativa de uma recompensa, enquanto os perversos só
podem esperar o juízo” (11.23). Em Eclesiastes o conflito fica pendurado na men-
te do autor e do leitor: “Vi perversos serem sepultados com honra; frequentavam
o templo e hoje são elogiados na mesma cidade em que cometeram seus crimes.
Isso também não faz sentido” (8.10).
Veja que, enquanto Provérbios nos deu uma se-
gurança, Eclesiastes nos tira. Apesar dessa tensão, Enquanto
Provérbios nos deu
o próprio livro de Eclesiastes apresenta Deus como
uma segurança,
sustentador de todas as coisas e instrui o jovem: “Faça
Eclesiastes nos tira
tudo o que desejar…Lembre-se, porém, que Deus lhe
pedirá contas de tudo o que fizer” (11.9).

9
9
U N I C ES U M A R

O que a literatura sapiencial parece estar querendo comunicar é que, quanto mais
presente Deus está, mais sentido o mundo tem. Mais justiça, mais esperança.

Para os judeus da antiguidade, toda a sorte de mal advém da ausência de Deus.


Podemos ver essa ideia na Torá (por exemplo em Deuteronômio 28), nos livros
históricos (como o caso do livro de Juízes), nos profetas (o juízo de Deus está
próximo daqueles que vão para longe dele), e, por fim, refletido de forma poética
na literatura sapiencial.
Mesmo Eclesiaste, que parece apresentar um Deus sem reação ou uma vida sem
sentido, o livro termina com a decisiva presença divina. Em Eclesiastes, mesmo
que a realidade não se encaixe dentro da nossa compreensão, existe um jeito de se
viver bem: “lembre-se do seu Criador agora…antes que o fio de prata da vida se
rompa…o pó voltará à terra e o espírito voltará a Deus, que o deu” (12.6-7).
Então a literatura sapiencial se expressa de forma poética? Sim. A poesia era
uma forma muito comum de escrita. Muitos salmos foram escritos em forma
de acrósticos, algo que infelizmente perdemos por causa da tradução, e muitos
foram escritos para serem cantados e não lidos. Jó é um grande poema, Cantares
é poesia com direito a coro, como era comum na poesia da antiguidade.
Considerando a forma como a literatura sapiencial foi escrita, o que significa
embelezar? Embelezar uma história com acrósticos, rimas de ideias (os poemas
hebraicos não rimam as palavras, mas rimam os conceitos), figuras de linguagem.
Alguém pensou em como escrever aquelas reflexões. Não era apenas o conteúdo
que importava, mas a forma como aquele conteúdo iria tomar. Teria de ser uma
forma bela, como belo era o templo de Salomão que deixou a Rainha de Sabá
impressionada (2 Crônicas 9).
Com isso, a literatura sapiencial parece indicar que:
1. Deus é a fonte da Sabedoria.
2. A Sabedoria foi o instrumento de Deus para criar o mundo.
3. Deus embeleza o mundo (com a sua sabedoria).

Com base nisso, o caminho para o bem viver é:


1. Beber da sabedoria divina (temer a Deus, obedecer aos mandamentos).
2. Refletir a sabedoria divina (obedecer aos mandamentos, embelezar
o mundo).

9
9
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

Um Deus que embeleza o mundo só poderia propor uma espiritualidade que


reproduzisse o embelezamento como forma de sabedoria.

LITERATURA PROFÉTICA

A chamada Literatura Profética do Antigo Testamento, ou seja, o conjunto


de livros dos profetas maiores e menores, forma uma outra categoria literária e
teológica dentro da Bíblia.

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

O que significa ser um profeta “maior” ou “menor”?


Apenas o tamanho do livro. Se o livro é grande perto dos outros, como Ezequiel,
trata-se de um profeta “maior”. Neste contexto, livros pequenos fazem do “escritor”
um profeta “menor”.
Não tem nada a ver com o tamanho da importância da mensagem profética ou da
pessoa do profeta. Essa é uma divisão posterior baseada na quantidade de rolos e
pergaminhos que se gastava para escrever o livro.

A literatura profética contém profetas de tempos e geografias variadas.


Há uma continuidade entre os profetas e a literatura de sabedoria. Um tema
bastante presente nos dois, mas que será mais acentuado nos profetas, é a justi-
ça social. Os profetas se destacam pela sua ousadia em falar contra pessoas de
influência em Israel. Alguns profetas são descritos como recebendo visões de
Deus acerca do futuro. Embora esse seja um aspecto importante e chamativo,
nem todos os profetas foram videntes (“vidente” é alguém que recebe uma visão
sobrenatural), como Jonas e João Batista, por exemplo.
A corrupção e a hipocrisia eram constantemente denunciadas. “Escutem,
líderes de Israel”, diz Miquéias (3.9-10). “Vocês odeiam a justiça e distorcem o
que é certo, Constroem Jerusalém sobre um alicerce de homicídio e corrupção”.

9
9
U N I C ES U M A R

Existe uma passagem conhecida sobre Deus recusar o jejum de alimento que
os religiosos faziam enquanto roubavam e agiam perversamente, ou seja, estavam
sendo hipócritas. Deus, através do profeta Isaías, então diz:

⁶ “Este é o tipo de jejum que desejo:


Soltem os que foram presos injustamente,
aliviem as cargas de seus empregados.
Libertem os oprimidos,
removam as correntes que prendem as pessoas.
⁷ Repartam seu alimento com os famintos,
ofereçam abrigo aos que não têm casa.
Dêem roupas aos que precisam,
não se escondam dos que carecem de ajuda.
Isaías 58:6,7

Até mesmo no NT temos esse padrão. Veja a mensagem de João Batista segundo
Lucas (3.10-14):

10 As multidões perguntavam: “O que devemos fazer?”.


11 João respondeu: “Se tiverem duas vestimentas, deem uma a quem
não tem. Se tiverem comida, dividam com quem passa fome”.
12 Cobradores de impostos também vinham para ser batizados e
perguntavam: “Mestre, o que devemos fazer?”.
13 Ele respondeu: “Não cobrem impostos além daquilo que é exigido”.
14 “E nós?”, perguntaram alguns soldados. “O que devemos fazer?”
João respondeu: “Não pratiquem extorsão nem façam acusações
falsas. Contentem-se com seu salário”.

Muitas vezes lemos o termo “justo” e “ímpio” em Provérbios e Eclesiastes sem


muita contextualização. Os profetas nos dão esse contexto ao delatar problemas
sérios no povo ou na cúpula de Israel.

9
9
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

Nem todos os problemas eram exclusivamente de caráter social. Temos de-


núncia de idolatria e abandono dos mandamentos, indicando quebra da alian-
ça. Na linguagem dos profetas do AT, males sociais acontecem como desdobra-
mento natural da quebra da aliança.

Assim, na literatura de sabedoria, a espiritualidade está relacionada ao bem viver. Na


literatura profética, a espiritualidade está relacionada à justiça social.

PRÁTICAS ESPIRITUAIS

A teologia foi usada para fundamentar as práticas espirituais. Todos nós busca-
mos mostrar que nossas práticas fazem sentido, por isso era natural que novas
práticas buscassem formular novas doutrinas teológicas, assim como as doutrinas
estimulassem novas práticas. Como vimos, existem diferentes ênfases na men-
sagem Bíblica, embora elas falem da mesma essência.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Será que ênfases diferentes podem estimular práticas espirituais diferentes?

As práticas ascéticas, por exemplo, enfatizam a renúncia aos prazeres mundanos


e às coisas materiais O objetivo dessa renúncia é a busca de uma maior proxi-
midade com Deus. Os ascetas, aqueles que seguem o caminho do ascetismo,
frequentemente adotam uma vida de simplicidade, abstinência e auto controle
bem rigoroso. Isso pode envolver a renúncia drástica a bens materiais (voto de
pobreza), celibato, jejum, oração intensa e isolamento da vida normal.

9
9
U N I C ES U M A R

O objetivo final desse ascetismo do cristianismo é alcançar uma conexão


espiritual mais profunda com Deus, livrando-se das distrações terrenas que po-
dem obstruir esse relacionamento. Essas práticas ascéticas desempenharam um
papel crucial na formação de ordens monásticas e na espiritualidade de muitos
santos e eremitas ao longo da história cristã.
No entanto, o ascetismo também gerou debates e controvérsias dentro da
tradição cristã. Enquanto alguns o consideravam uma forma elevada de busca
espiritual, outros questionavam se a renúncia completa ao mundo material era
a melhor maneira de seguir os ensinamentos de Cristo. Essa tensão entre o as-
cetismo e uma vida cristã mais “mundana” levou a diferentes interpretações e
práticas ao longo dos séculos.
A tradição reformada, principalmente a partir dos escritos do teólogo Calvi-
no, foi um exemplo de reação aos excessos dos ascetas. Um dos pilares do calvi-
nismo é a noção da soberania de Deus sobre todas as coisas, isso quer dizer que
não existe uma área da vida que seja sagrada e outra secular. Para o cristão, todas
as áreas são sagradas. O cristão é alguém que convida Deus para fazer parte do
seu mundo, seja como médico, professor, construtor, cozinheiro… e onde Deus
está, aquele lugar está santificado.
A tradição calvinista reforça que Deus, como criador de todas as coisas, é,
por direito, dono da prata e do ouro, da arte, da natureza, do conhecimento, e
de tudo o mais. O mal não cria nada, na verdade, o mal deturpa o que foi criado
(essa é uma ideia que Calvino herdou de Santo Agostinho). Por isso, para os
reformadores, o problema não são os bens materiais, o dinheiro, a comida…
nem ser padre significa fazer algo mais sagrado que um vendedor. O problema é
nossa cobiça, nosso excesso, e isso não seria curado com a abstinência, mas com
a presença do Espírito Santo dentro de nós. Seria preciso “enfrentar” o problema,
não se “retirar” dele.
Devemos resistir à tentação de criar entre ascetas e calvinistas uma oposição
rigorosa. No fundo eles defendem a mesma proximidade para com Deus, mas
com ênfases em aspectos diferentes.
Apesar das divergências, o ascetismo continua a ser uma parte importante
da tradição espiritual cristã, lembrando aos fiéis a importância do autocontrole,
da humildade e da busca pela transcendência espiritual em um mundo muitas
vezes dominado por desejos terrenos.

9
9
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

MÍSTICA CRISTÃ

Frequentemente associamos a palavra “místico” a algo esotérico e diferente da


tradição cristã, mas a palavra “mística” (do grego, Mystikos), significa “o que se
esconde”. Essa palavra também é muito associada à tradição cristã, referindo-se
àqueles que enfatizam o aspecto misterioso do agir de Deus.
A fé cristã tem de lidar com aspectos que não são explicáveis pela razão, aspec-
tos teóricos e práticos. Na teoria, temos a incapacidade humana de entender como
um Deus pode ser, ao mesmo tempo, três pessoas, esse seria um mistério divino.
Mas, há também aspectos práticos. Existem experiências místicas como visões,
reações extáticas à presença de Deus, sonhos, emoções fortes com reações corporais
diversas. Os místicos valorizavam e até mesmo buscavam tais experiências.
São experiências mais comumente vistas no meio carismático-petencostal
nos dias de hoje, mas na Idade Média, pessoas que se tornaram famosas seguiram
essa mesma jornada.
A mística cristã é uma face profunda e ao mesmo tempo enigmática da
espiritualidade cristã. Ela se concentra na busca direta e pessoal da experiência
de Deus. Ela se baseia na convicção de que os indivíduos podem ter uma relação
direta e íntima com Deus, transcendendo as limitações da religião instituciona-
lizada e das práticas tradicionais.
Os místicos cristãos frequentemente buscam uma união extática com Deus,
que transcende as palavras e os conceitos humanos. Isso pode ser alcançado por
meio da contemplação, da meditação profunda e de experiências místicas, muitas
vezes descritas como êxtases espirituais.
A mística cristã tem uma longa história que remonta aos primeiros séculos
do cristianismo. Santos e teólogos como Teresa de Ávila, São João da Cruz e Ju-
liana de Norwich são conhecidos por suas experiências místicas e escritos que
descrevem essas vivências.
Essa mística cristã também se relaciona com o conceito de “via negativa”, que
é a ideia de que Deus só pode ser verdadeiramente conhecido através da negação
de todas as concepções e categorias humanas, daí sua proximidade com o asce-
tismo (que nega algo para conhecer Deus).

1
1
1
U N I C ES U M A R

Algo da mística cristã continua a desempenhar um papel vital na espirituali-


dade cristã contemporânea, oferecendo uma perspectiva interessante para pen-
sarmos a espiritualidade contemporânea.

E U IN D ICO

Nesse vídeo, o historiador e teólogo André Reinke comenta sobre a dificuldade


de se fazer uma teologia do AT. Ele mostra como usou a teologia em combinação
com a história para entender melhor a narrativa do AT. Ele propõe uma leitura cro-
nológica do AT, movida pelo tema da “promessa”, como fio condutor. Você vai ver
um exemplo na prática do que estamos estudando.

DOIS TESTAMENTOS, UMA TEOLOGIA

Durante a cristandade e as diversas linhas teológicas,


houve algumas armadilhas muito comuns. Uma A upervalorização
delas é a supervalorização do NT e uma desvalori- do NT e uma
zação do AT. Essa tendência olha para o AT como desvalorização
obsoleto, como um equipamento que um dia foi bom do AT
e top de linha, e hoje está ultrapassado. A reinterpre-
tação que o NT fez da fé foi radical, há uma ruptura entre as duas partes e, querer
estudar o AT em busca de ideias teológicas é querer desvirar uma página que deve
permanecer virada. Seria quase como trair o cristianismo.
O oposto também acontece, supervalorizar o AT e desvalorizar o NT, afi-
nal o AT é culturalmente mais rico que o NT e manifesta muitos mais temas como
política, erotismo, ceticismo e revolta. Isso facilita algumas identificações para
com o texto que podem ficar ofuscadas ao ler o NT. O fato i denterpretar nossa
história atual de uma maneira “deuteronômica”, ou seja, baseada na prosperidade
ou castigo divino, ainda é bastante comum e tentadora. Essa interpretação é um
exemplo de desvalorização do NT, pois existem passagens ali que comprometem
esse ponto de vista, incluindo o crucial conceito da graça.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

É importante conectar os dois testamentos em pé de igualdade. O NT


interpreta o AT e o AT interpreta o NT. Alguns aspectos que os une são:

CONEXÃO HISTÓRICA

o NT se entende como uma continuação histórica (não apenas das ideias) do AT. Existe
uma mesma história se desdobrando, guiada pelo mesmo Deus.

REFERÊNCIA E VOCABULÁRIO

o NT grego de Nestle-Aland indica 257 passagens citando o AT explicitamente. Sem


o referencial do AT, a mensagem de Jesus não teria sentido algum. A maior parte dos
conceitos teológicos vieram do AT.

TEMAS

vários temas se repetem como: “promessa”, “fé”, “fim dos tempos”, “perdão”, “messias”,
“povo de Deus”, entre outros.

E U IN D ICO

O historiador e teólogo André Reinke discute a dificuldade de se falar da unidade


do povo de Deus no AT. A diversidade cultural dentro do judaísmo é tão grande
que ele se pergunta, será que tem algo em comum entre eles? André vai mostrar
como achar unidade na diversidade em relação ao povo hebreu. Um caso difícil de
resolver, mas ele fala de maneira muito didática, vale a pena ver.

1
1
1
U N I C ES U M A R

A ESPIRITUALIDADE QUE SEMPRE ESCAPA

Vimos tentativas de se localizar o núcleo comum no AT e sete tentativas no NT.


E qual a resposta? Nenhuma conclusiva, certo? Apenas possibilidades.
Como vimos, cada tentativa tem seus prós e contras, mas creio que também
ficou evidente o quanto essa é uma tarefa difícil. O debate ainda está em aberto.
Mas não fique desanimado por não achar uma resposta pronta, o debate precisa
estar aberto. Quando alguém diz que já descobriu todos os significados da espi-
ritualidade cristã, então a teologia terá sufocado a espiritualidade.
Como fenômeno vivo e que passa constantemente por transformações, a
espiritualidade está constantemente “escapando” das mãos da teologia. Mas é
isso mesmo, a teologia mostra a espiritualidade sem querer dominá-la!
Por um lado, podemos dizer que o núcleo da
espiritualidade cristã é Jesus. Mas o que realmente O núcleo da
espiritualidade
significa isso (de forma clara)? Quer dizer que ele
cristã é Jesus
é o principal assunto? Será que o núcleo da espi-
ritualidade cristã não seria o relacionamento com o divino? E Jesus é a porta de
acesso. Se Jesus é o caminho para o Pai, e o Espírito é a presença de Deus em nós,
a trindade inteira se move para nos inserir nesse relacionamento.

E M FO CO

Quer saber mais sobre este tema? Confira a aula referente, em seu ambiente virtual.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 4

NOVOS DESAFIOS

Muitos teólogos dizem que o mais importante acerca da teologia é manter a men-
te aberta. Isso é importante para pensarmos inclusive no ambiente de trabalho.
Os departamentos de teologia contam com professores de linhas muito
diferentes, é preciso se dar bem com todos eles (dentro do possível). Frequente-
mente vemos teólogos de linhas contrárias construindo uma amizade de décadas.
A dica para todo aquele que investiga o campo da espiritualidade é:

Nada de ler só aqueles com quem você concorda. Boas ideias poderão vir a você de
todos os lados. Por que limitar a si mesmo?

Obrigado pela sua presença até aqui!

1
1
1
VAMOS PRATICAR

1. Na Teologia não existe espaço para “revelação”, “palavra profética”, “visões”, essas são práti-
cas da fé, legítimas enquanto parte da vida pessoal, mas que não servem como argumento
teológico. Essas práticas podem até serem estudadas, é claro, mas não praticadas no fazer
teológico.O que NÃO faz parte do método teológico?

a) Comparação de conceitos entre os livros da bíblia.


b) Identificação de temas recorrentes.
c) Uso de revelação pessoal, palavras ou sonhos proféticos.
d) Uso de métodos de outras disciplinas como história ou literatura.
e) Investigação da tradição religiosa.

2. Quais as quatro principais subdivisões da teologia?

a) AT, NT, deuterocanônicos ou apócrifos.


b) Dogmática, sistemática, bíblica, ortodoxa.
c) Feminista, negra, queer, ecologica.
d) Bíblica, sistemática, histórica, prática.
e) Evangélica, católica, adventista, mórmom.

3. Hasel (2021, p.121) diz que a tarefa da teologia do AT “consiste em oferecer explicações e
interpretações sintéticas da forma final dos distintos escritos ou blocos de escritos [...] que
façam com que seus vários temas, motivos e conceitos aflorem e revelem sua relação mú-
tua”. Retomando o que Hasel (2021) dizia, um modo de oferecer “interpretações sintéticas”,
isto é, concisas, explicações que vão direto ao ponto, é:

1. entender as especificidades de cada livro - considerar as teologias narradas, ou seja, as


implicações teológicas das espiritualidades de cada livro;

2. explicar como elas se relacionam entre si.

Fonte: HASEL, G. Teologia do Antigo Testamento e Teologia do Novo Testamento. São


Paulo: Efatá, 2021.

Qual passo é fundamental para se fazer teologia?

a) Achar o núcleo temático da bíblia.


b) Crer em Deus.
c) Aderir a métodos contemporâneos.
d) Entender a Trindade.
e) Oferecer explicações sintéticas, entendendo as especificidades de cada livro e explican-
do como elas se relacionam entre si.

1
1
1
REFERÊNCIAS

BENTES, J. M.; CHAMPLIN, R. N. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia, v. 6. São Paulo:


Candeia, 1995.

BÍBLIA DE ESTUDO NVT. São Paulo: Mundo Cristão, 2021.

EHRMAN, B. Can christians study the New Testament honestly? Em “Misquoting Jesus”. Pod-
cast. 2023. Disponível em: https://www.bartehrman.com/podcast/. Acesso em: 25 set. 2023.

GERBEN, H. Practical theology: history, theory, action domains: manual for practical theology.
Wm. B. Eerdmans Publishing, 1999.

GRENZ, GURETZKI, AND NORDLING. Pocket Dictionary of Theological Terms. Downers Grove,
IL: InterVarsity Press, 1999.

HASEL, G. Teologia do Antigo Testamento e Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Efatá, 2021.

PINHEIRO, B. O conceito e o vivido: uma distinção entre religião e espiritualidade. Revista


Senso. 2022. Disponível em: https://revistasenso.com.br/edicao-24/o-conceito-e-o-vivido-u-
ma-distincao-entre-religiao-e-espiritualidade/. Acesso em: 25 set. 2023.

REINKE, A. Aqueles da Bíblia: história, fé e cultura do povo bíblico de Israel e sua atuação no
plano divino. Thomas Nelson: Rio de Janeiro, 2021.

WALTON, MATTHEWS, CHAVALAS. Comentário histórico-cultural da Bíblia: Antigo Testamen-


to. Viçosa: Vida Nova, 2020.

1
1
1
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção C.

Na Teologia não existe espaço para “revelação”, “palavra profética”, “visões”, essas são práti-
cas da fé, legítimas enquanto parte da vida pessoal, mas que não servem como argumento
teológico. Essas práticas podem até serem estudadas, é claro, mas não praticadas no fazer
teológico. Todos os outros métodos indicados fazem parte do fazer teológico.

2. Opção D.

Para começar a falar das diferenças teológicas, existem quatro subdivisões da teologia que
se ocupam de aspectos diferentes do estudo da fé. A Teologia se divide basicamente em
Teologia Bíblica, Teologia Histórica, Teologia, Prática e Teologia Sistemática.

3. Opção E.

A tarefa da teologia do AT consiste em oferecer explicações e interpretações sintéticas da


forma final dos distintos escritos ou blocos de escritos que façam com que seus vários temas,
motivos e conceitos aflorem e revelem sua relação mútua.

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
TEMA DE APRENDIZAGEM 5

ESPIRITUALIDADE, HISTÓRIA
E TRADIÇÃO CRISTÃ

MINHAS METAS

Revisitar momentos importantes da tradição cristã.

Avaliar criticamente a tradição oficial.

Rever a noção de uma tradição oficial.

Avaliar as “heresias” de modo crítico e imparcial.

Situar o papel dos credos e concílios para a tradição.

Entender a formação da tradição no Brasil.

Vincular tradição, cultura e política na pesquisa histórica.

1
1
1
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Tradição é uma palavra que te remete ao passado ou ao futuro?
“Ao passado, óbvio”, você pode responder.
E é verdade, “tradição” diz respeito a algo que está lá (no passado), mas que
está aqui (no presente), pois nos toca. Toda tradição nos toca de alguma maneira,
quer estejamos conscientes disso ou não.
Mas veja que curioso, nós só sabemos para onde vamos se temos um passado que
nos diz de onde viemos e para onde devemos ir. Sem memória, qualquer caminho
serve. Lembro aqui do gato de Alice (No País das Maravilhas), ela pergunta a ele:
“Você poderia me dizer, por favor, qual caminho eu devo seguir a partir daqui?”
“Isso depende muito de para onde você quer ir”, disse o Gato.
“Eu não me importo muito para onde--”, disse Alice.
Então ele diz algo fantástico: “Então não importa qual caminho você segue”
(CARROL, 2020).
Quem não sabe de onde veio é como Alice no País das Maravilhas, que não
sabe como foi parar ali e não sabe qual caminho seria um caminho mais interes-
sante para ela tomar. A espiritualidade contemporânea é, em grande medida,
como Alice: deslumbrada e perdida ao mesmo tempo. Deslumbrada com as mil
possibilidades que ela pode tomar (qualquer caminho serve), mas perdida, e por
isso mesmo ansiosa, justamente pelo mesmo motivo (qualquer caminho serve,
não há referencial algum).
Em um relampeio, em um vislumbre inconsciente, percebemos que a liber-
dade que nos tira do que nos aprisionava (os sistemas dogmáticos religiosos,
que chamamos de opressores, patriarcais etc.) é a mesma liberdade que pode
nos matar (espiritualmente). Temos a sensação de que o mundo de
maravilhas pós-moderno pode ser maravilhosamente mortal.
Essa é a natureza da ansiedade, pode até ser que
não haja perigo na nossa estrada, mas “e se…?”
Você já deve ter percebido que a es-
piritualidade contemporânea quer se
ver livre das amarras das instituições.
Isso tem vantagens e desvantagens.
Os conservadores vão olhar mais para

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

as desvantagens enquanto os progressistas vão olhar mais para as vantagens. Eu


recomendo que tomemos os dois tipos de análise em questão.
O mundo contemporâneo é um mundo ansioso e espera-se que a espi-
ritualidade tenha uma resposta para isso. Talvez não “a” resposta, mas alguma
contribuição. Para isso, eu argumento, é necessário um olhar para a história e
para a tradição. Não para repeti-la cegamente, não para requentar dogmas, mas
para evitar erros, para criar sentidos.
Nesse aspecto, a tradição tem mais a ver com o futuro do que a gente imagina.

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

Sempre tem alguém a quem possa se chamar de herege. O que faz com que o
outro seja o herege e eu seja o ortodoxo (“crença correta”)? No PLAY NO CONHECI-
MENTO desse tema, vamos ver duas heresias condenadas no início do cristianismo,
mas que, apesar disso, deixaram sua influência nas igrejas até hoje.
Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de
aprendizagem.

VAMOS RECORDAR?
Você deve se lembrar que a história da espiritualidade cristã está associada a
suas instituições. Por isso, quando falamos de tradição cristã, estamos no cam-
po de instituições como Igreja Oficial, mosteiros, Corte (uma vez que os países
eram de confissão religiosa), universidades etc.
Além disso, talvez se lembre que a espiritualidade cristã teve vários contornos
ao decorrer dos séculos. Tivemos o período monástico, com ênfase no isola-
mento, tivemos a Reforma Protestante, com uma divisão em relação à Igreja
Católica e, com isso, a abertura de novas denominações. Foi dessas denomina-
ções protestantes (como Presbiterianos, Luteranos, Batistas, Metodistas) que
saiu o fenômeno que chamamos hoje de “evangélico”.
Vimos que o fenômeno carismático varreu boa parte do cristianismo ocidental, tra-
zendo o falar em línguas, curas milagrosas, profetismos e outros carismas (“dons”).
Agora vamos continuar essa jornada, vendo como essa multiplicidade aconte-
ceu no início da igreja e como ela acontece no Brasil.

1
1
1
UN I C ES UMA R

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

DIVERSA DESDE O PRINCÍPIO

Muitas pessoas falam como se houvesse apenas uma tradição cristã, um mesmo
corpo de doutrinas perpassando toda a história da cristandade. Se olharmos o
cenário atual, vamos perceber que a espiritualidade cristã é bastante diversa.

VOCÊ SABE RESPONDER?


Será que existe uma tradição em comum a todas elas?

Dependendo de como se conta a história, dá a impressão de que estava tudo bem


até a Reforma Protestante. Que a Igreja Católica Romana era relativamente unida
e as muitas denominações vieram depois. Não vamos negar que, em boa medida,
foi isso mesmo, o protestantismo deu início a um processo impressionante de
ramificações. Mas, não vamos nos enganar, a tradição cristã sempre foi muito
diversa, mesmo antes da Reforma.
A própria ideia de que a igreja primitiva era unida não goza de muita vera-
cidade. É bem provável que as primeiras décadas da fé cristã tenham sido muito
mais diversificadas e polêmicas do que nosso cenário atual. Muitas coisas que
eles acreditavam seriam um escândalo para nós hoje. Isso porque esse “eles”, são
na verdade grupos de lugares bem diferentes que foram se convertendo à medida
que a fé cristã se espalhava. Vamos ver isso com calma.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

Os primeiros registros de divisões acerca do que deveria ser a fé cristã estão


nas cartas de Paulo e nas cartas gerais (Pedro, aos Hebreus, Tiago). Paulo expli-
citamente lida com isso nas duas cartas de Coríntios e aos Gálatas. Cartas poste-
riores, que têm sua autoria disputada (ou seja, muitos estudiosos acreditam que
não tenham sido escritas por Paulo), como 1 Timóteo e Tito, também abordam o
tema de preservar a sã doutrina, embora nem sempre entrem detalhes do que seja.
Se olharmos a narrativa de Atos, vamos ver o primeiro concílio da Igreja, em
Jerusalém, narrado no capítulo 15. Nele estão Pedro, Tiago e João, como apóstolos
pertencentes ao grupo dos doze que andaram com Jesus; também estão Paulo e
Barnabé. Claro que havia outros, mas os nomes mais notáveis são esses.
Esse primeiro concílio teve um tema bem específico: será que as pessoas que
se convertessem e não fossem judias, precisavam seguir os mandamentos de Deus
para Israel? O resultado não foi um corpo doutrinário básico do que seria uma fé
cristã, mas apenas que se abstivessem de abster-se de comer “alimentos oferecidos
a ídolos, de consumir o sangue ou a carne de animais estrangulados, e de praticar a
imoralidade sexual. Farão muito bem se evitarem essas coisas” (Atos 15.29 NVT).
As principais divisões que surgiram no início da igreja tinham a ver com a
transição do judaísmo para o cristianismo. Na verdade, ainda não havia o “cris-
tianismo”, pois muitos acreditavam que a crença em Jesus como messias era a
continuidade natural do judaísmo. Nesse sentido, não haveria uma ruptura para
uma outra religião, mas uma continuação para uma nova fase. Talvez essa tenha
sido a perspectiva de Paulo (REEVES et al, 2017, p. 340-347).

P E N SA N D O J UNTO S

Para um judeu, era muito difícil entender que Deus estava falando algo “con-
trário” ao que ele havia dito. Coloque-se no lugar de um judeu por um instante,
se Deus falou que é para circuncidar no oitavo dia (Levítico 12,3, cf. Gênesis
17.10, Êxodo 12.44), quem é esse tal de Paulo que diz que não precisa? Se Deus
disse que não é para comer porco (Levítico 11.7), como é que agora pode?

1
1
1
UN I C ES UMA R

Do ponto de vista cristão (que hoje olha para trás e reconhece Paulo e Pedro
como apóstolos), a fala apostólica é inspirada da parte de Deus. No entanto, para
o judeu daquela época, era muito difícil saber se não eram, afinal, um bando de
hereges. Era complicado. A maioria de nós não cresceu em um ambiente judaico,
em que a Torá e suas leis eram memorizadas e praticadas à risca. Por isso, muitas
vezes não entendemos o peso do conflito que a fé cristã trazia. Com o tempo, as
leis da tradição judaica deixaram de ser cobradas dos não judeus (gentios), mas
muitos judeus continuaram a
praticar a lei, mesmo depois
de convertidos.
Para além de questões mais
culturais, o debate se moveu
para questões mais doutriná-
rias e abstratas. Foi apenas no
segundo século, na época dos
pais da igreja, é que surgiram
concílios de caráter doutriná-
rios, que debatiam as crenças
centrais do cristianismo. Entre
esses temas estavam a questão
da divindade de Jesus, e, um
pouco posterior, de quais livros
seriam realmente inspirados
por Deus para servir de base
para a fé (os livros que vieram a se tornar o Novo Testamento).
Havia muitas correntes (o que chamaríamos hoje de “denominações”, mas esse
termo não existia na época). Vamos falar de duas delas que deixaram marcas até
hoje, embora tenham sido consideradas heréticas. Ouça no nosso PLAY NO CO-
NHECIMENTO: interpretações (“heréticas”) que nos impactam até hoje.
A que se sobressaiu, formou a base para o que hoje chamamos de “tradição cristã”.
Até o séc. XX os teólogos acreditavam que as “seitas heréticas” eram apenas
uma divergência teológica da linha oficial. Até então, o material de pesquisa era
quase completamente os registros que a igreja oficial escreveu sobre elas. Hoje, a
maioria não vê o quadro dessa maneira.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

Após a descoberta de importantes manuscritos (principalmente escritos an-


tigos gnósticos), considera-se que várias visões teológicas estavam acontecendo
ao mesmo tempo, e não havia um “cristianismo oficial” desde o início. Havia
uma competição entre doutrinas que resultou, por muitos fatores, em uma linha
vitoriosa. Do ponto de vista do fiel cristão, a linha vitoriosa é a correta (e tinha
de ser) por causa da sua crença na mão de Deus na história.

O cristianismo oficial, que se diz portador da ortodoxia (palavra de origem grega


que significa “crença correta”), diz que um Deus é criador dos céus e da terra, que
Jesus é Deus Filho, ao mesmo tempo divino e humano.

É somente no segundo e terceiro século, quando o cristianismo já havia tomado


conta do império romano, é que se começa a obter registros de um debate
acerca do que significa “ser cristão”. Essa tentativa de dar unidade à fé pode ser
acompanhada através dos credos da igreja. Um dos mais conhecidos é o credo
apostólico (WIKIPEDIA, 2023).
Creio em Deus Pai, todo-poderoso, Criador do céu e da terra;
E em Jesus Cristo, um só seu Filho (seu único Filho), Nosso Senhor,
Que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu de Maria Virgem;
Padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado;
Desceu ao reino dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia;
Subiu ao Céu, está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,
De onde há de vir a julgar os vivos e os mortos.
Creio no Espírito Santo,
Na Santa Igreja Católica, na comunhão dos Santos,
Na remissão dos pecados,
Na ressurreição da carne,
Na vida eterna.
Amém.

Quando se escuta isso hoje, geralmente se diz, claro que isso é cristianismo. Essa
versão final ficou pronta por volta do século VI, mas suas premissas já vinham
sendo trabalhadas anteriormente (MISQUOTING JESUS, 2023).

1
1
1
UN I C ES UMA R

Figura 1 – Estela funerária com inscrição gnóstica do século III d.C.

Descrição da Imagem: foto de fundo claro de uma Estela funerária de cor bege clara, com inscrição gnóstica do
século III d.C., referindo-se claramente ao gnosticismo, uma heresia cristã difundida até o século IV d.C.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

POR QUE O CRISTIANISMO “OFICIAL” SE TORNOU O OFICIAL?

A resposta a essa pergunta é ape-


nas uma hipótese. Entre as hipó-
teses mais consideradas, está a
do teólogo alemão Walter Bauer
(1877-1960) no livro Rechtgläu-
bigkeit und Ketzerei im ältesten
Christentum [Ortodoxia e He-
resia no Cristianismo Primitivo]
(1934). E, ao oficializar o cristia-
nismo, ele naturalmente tomou
por base a visão romana. Por isso
que a igreja romana se tornou
universal. A palavra “católica” sig-
nifica universal, daí o nome Igreja
Católica Romana.
A tese de Bauer diz que,
muito embora a visão que viria
a ser a “oficial” estivesse presente
em vários lugares do império ro-
mano, ela floresceu particular-
mente bem na capital, Roma.
Era de longe a maior cidade, com
mais recursos, melhores adminis-
tradores e maior concentração de
renda. Como essa corrente cris-
tã cresceu ali, foi natural que ela
usasse de todos os seus recursos
para influenciar as outras igrejas
espalhadas pelo império. Ela teria
mais dinheiro e mais qualidade de administração e isso teria sido um primeiro
grande diferencial. Isso não é difícil de imaginar, uma vez que o mundo evangé-

1
1
1
UN I C ES UMA R

lico consome música e estilo de celebração de igrejas cosmopolitas, ricas e bem


administradas do outro lugar do planeta (CHAVES, 2020).
Um segundo fator é que Constantino, o imperador romano que oficializou
a religião cristã como a religião do império, teria se convertido nessa visão cristã.

TRADIÇÃO E ACULTURAMENTO

A bíblia é um livro de narrativas, não é um livro de teologia. Teologia é o que se


faz a partir das narrativas bíblicas. O fato de Paulo não ter deixado uma teologia
pronta, por exemplo, sugere que a fé cristã pode até ter certas bases em comum,
mas ela é adaptável a qualquer cultura.
Vimos que essa “base em comum” já é altamente problemática. Definir o nú-
cleo da fé cristã sem ser tendencioso a alguma tradição é muito difícil, quem sabe
impossível. Mesmo supondo que a tradição oficial nos apresente o núcleo da fé
cristã, ela ainda é insuficiente para formar uma religião. Observe o que vimos no
credo, por exemplo, algo que todo cristão hoje acredita, perceba o tanto de coisa
que ele deixa de fora. Questões éticas, relacionais, políticas… uma série de fatores
que fazem parte da vida do fiel ficam sem uma interpretação teológica.
Por isso, a teologia busca tampar essa falta, propondo respostas que sejam
coerentes com a bíblia e relevantes para os dias atuais. Por isso, uma teologia
nunca estará fora da influência da cultura. Aliás, é até bom que não esteja, pois
uma mensagem que não se adapta à cultura é uma mensagem destinada a morrer.
Adaptar-se à cultura não tem a ver com abrir mão dos princípios da fé, tem
a ver com comunicação eficaz. Estou pensando aqui na fala de Paulo que diz:


[...] sendo livre para com todos, fiz-me servo de todos para ganhar ain-
da mais. E fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar os judeus;
para os que estão debaixo da lei, como se estivesse debaixo da lei, para
ganhar os que estão debaixo da lei. Para os que estão sem lei, como se
estivesse sem lei (não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da
lei de Cristo), para ganhar os que estão sem lei. Fiz-me como fraco para
os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para pôr todos
os meios chegar a salvar alguns (1 Coríntios 9:19-22 ACF).

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

Isso se chama aculturamento. Aculturar-se é deixar que a cultura molde você.


Sem aculturamento, a fé cristã não faz sentido.
Vou dar um exemplo, a forma como tomamos a ceia não faria o menor sen-
tido para Jesus e seus discípulos. Tanto católicos como evangélicos-protestantes,
ficamos em um salão, enfileirados, um de costas para o outro, todos em silêncio.
Alguém fala ritualisticamente, em seguida, faz-se uma fila (ou esperamos senta-
dos), pegamos um pedacinho de pão e um copinho lacrado de suco de uva, que
não dá nem um gole. E é isso, “tomemos do cálice”.
A ceia nos tempos de Jesus acontecia um pouco diferente. Era uma mesa
em forma de “U” onde se servia comida: vinho, pão, um pote de molho de ervas
amargas e outras iguarias como peixe, hortaliças e frutas. Sentava-se no chão, do
lado de fora do “U”, quase deitado, com as pernas esticadas para trás. O formato
em “U” era para que os servos da casa pudessem “entrar” e servir a todos. Comia-
-se como se come uma refeição normal (em termos de quantidade). O pão era
partido na mão, passava de mão em mão e todos iam tirando um pedaço. O cálice
de vinho era compartilhado, tomava-se um gole e passava-se o cálice adiante. To-
dos se olhavam e con-
versavam. Era uma re-
feição em comum.
Você notou algu-
ma diferença? Geral-
mente as pessoas que
torcem o nariz para a
palavra “aculturação”,
por medo de que se
“relativize tudo”, estão
elas mesmas “relativi-
zando” muitas práticas
da sua fé sem saber. Embora certos símbolos e dogmas permaneçam os mesmos,
não dá para esperar que um indiano pratique a fé cristã como um brasileiro.

1
1
1
UN I C ES UMA R

VOCÊ SABE RESPONDER?


Como você já pode estar imaginando, isso levanta sérios questionamentos éti-
cos. Até que ponto é legítimo evangelizar alguém?

TRADIÇÃO CRISTÃ NO BRASIL: O INÍCIO E O AGORA

Queremos agora falar sobre a tradição espiritual cristã no Brasil. Esse é um tema
amplo, por isso vamos falar sobre como tudo começou lá no início e vamos pular para
o cenário atual. Assim, podemos ver como o cenário mudou nestes 500 anos. A ideia
é mostrar o choque de realidades tão diferentes, mas ao mesmo tempo, tão iguais.

Jesuítas e reformadores

A primeira preocupação, se podemos chamar assim, com a evangelização no Bra-


sil, foi na ocasião da “descoberta” da terra pelos portugueses. Pero Vaz de Caminha
indica a Dom Manuel I, que “o melhor fruto que nela [a terra descoberta] se pode
fazer, me parece que será salvar essa gente. E essa deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar” (PEREIRA, 1992, p. 58 apud CESAR, 2018, p. 23).
Assim sendo, quatro portugueses (dois expatriados e dois de péssimas reco-
mendações morais) ficaram a cargo de evangelizar os nativos enquanto um clé-
rigo não chegasse de Portugal. Os quatro portugueses ficaram em solo brasileiro
por um ano e oito meses, e, aparentemente, a semente que lançaram em nome de
Vossa Alteza foi de outra conotação. Trinta e cinco anos depois, Pero de Campos
Tourinho assumiu a capitania de Porto Seguro e achou ali uma comunidade de
mamelucos ou luso-brasileiros, uma mistura de nativos indígenas com português.
A carta de Pero Vaz ficou ignorada. Na verdade, ela ficou perdida por cerca de
300 anos. O que motivou Portugal a investir na catequização não foi a carta, mas a
eclosão da Reforma Protestante na Europa. Isso impulsionou a Reforma Cató-
lica ou a Contrarreforma. A Companhia de Jesus (jesuítas) é fundada em 1540
e, nove anos depois (1549), seis dos seus missionários foram enviados ao Brasil.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

Nessa ocasião, já era necessário fazer a distinção entre missionários católicos e


protestantes. Em 1555, seis anos depois da chegada dos jesuítas, chegam os primei-
ros missionários protestantes. Essa primeira entrada protestante não deu muito
certo. Os missionários chegaram ao Rio de Janeiro e foram expulsos 11 anos depois
por Mem de Sá. Os protestantes só foram ter sucesso missionário no século XIX.
Podemos dizer que os nativos indígenas não foram evangelizados, eles foram
catequizados. O catecismo escrito por José de Anchieta (o “apóstolo do Brasil”)
não menciona a ressurreição de Jesus e busca enfrentar os desafios culturais.
Dois grandes desafios surgiram e nunca foram bem enfrentados, não por má
vontade dos missionários jesuítas, mas pela característica da Corte Portuguesa
em despender o mínimo de dinheiro e tempo possível com a colônia.

a) O aumento da complexidade missionária com a chegada dos afri-


canos que foram forçados a uma condição de escravidão.
Com o tempo, toda uma nova população adentrou o que seria, agora,
território brasileiro. Uma população diversa, pois africanos em trazidos,
para serem escravizados, de territórios diferentes, com dialetos e práticas
religiosas diferentes. Mesmo muito preocupante, a escravidão em si não
era uma preocupação missionária; a falta de batismo, por outro lado, preo-
cupavam os missionários, pois o destino eterno das almas estava em jogo.
b) Sincretização.
Os missionários estavam ficando loucos por não conseguir conter a mis-
tura da fé cristã com as crenças indígenas e africanas. Mas é evidente que
um território sem universidades e sem imprensa por trezentos anos não
iria oferecer qualquer suporte a uma tradição religiosa, qualquer que
seja, pelo contrário.

Da parte nativo-indígena, os portugueses foram descobrindo mais de mil et-


nias. Eles não eram todos iguais de maneira alguma, cada povo indígena tinha
a sua cultura e crença, falavam línguas e dialetos diferentes e tinham costumes
diferentes, assim como percebemos hoje nas etnias indígenas que ainda existem.
Uns eram guerreiros, uns andavam praticamente nus, outros se cobriam. Eram os
aimorés, apinajés, botocudos, caetés, caiapós, canelas, cariris, goitacazes, guaia-

1
1
1
UN I C ES UMA R

nazes, guaranis, tabajaras, timbiras, tupinambás, tupiniquins, tupis, xerentes, e


tantos outros, que, no decorrer da história, foram sendo dizimados.
Quanto aos povos que foram escravizados, havia da costa atlântica, da
costa índica e de toda a África sub-saariana, somando mais de 250 etnias. Eram
ambundos, angolas, balantos, bambas, bantos, bengas, benguelas, benins, cabin-
das, cacimbas, cacondas, cacumbas, congos, dêmbos, egbás, felanis, ganguelas,
heroros, iorubas, jingas, mandingas, nagoya, nagôs, oranges, pepêis, quibandos,
quimbundos, quiçambas, senegâmbios, tongas, zulua, e muitos outros.


[...] eram religiosos, dançavam, cantavam, e submetiam-se aos seus
pajés, que exerciam os ofícios de sacerdote, profeta e médico. Nada
sabiam da unicidade de Deus, nem da sua santidade, soberania,
amor e graça. Nunca ouviram falar sobre Jesus, sua concepção so-
brenatural, seus ensinos, seus milagres, sua morte e ressurreição
(CESAR, 2000, p. 29).

Da época do Brasil colônia até hoje, o tipo de


trabalho missionário mudou bastante. Hoje
existem treinamentos que ensinam sobre
a cultura, sobre a importância de não
aniquilar a cultura alheia, mas respei-
tá-la e preservá-la. Vale ressaltar que
nem a própria igreja católica reco-
nhece mais a prática “catequizante”
do Brasil colônia como modelo.
Assim como a espiritualidade
cristã foi se modificando, as formas de
comunicar essa espiritualidade tam-
bém foram ganhando mais reflexão.
Hoje, existe o campo da missiologia,
uma área de estudo que combina an-
tropologia, linguística e teologia no
intuito de pensar as melhores práticas
de comunicar a espiritualidade cristã.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

A missiologia contribui para nossa reflexão porque ela está constantemente


se perguntando, o que é espiritualidade cristã? Como ela pode interagir com
essa outra cultura? Assim, a espiritualidade cristã é sempre algo a ser repen-
sado (redescoberto) e nunca algo fixo, rígido, parado no tempo, muito menos
algo a se impor a outra cultura. Na missiologia, ocorre sempre um intercâm-
bio, uma via de mão dupla, uma troca cultural que permite um aprendizado
e um enriquecimento das duas partes.

Um olhar para hoje: política, prosperidade e mídia

Dando um salto (um corte seco, como se diz em linguagem cinematográfica),


estamos na terceira década do séc. XXI. O Brasil já deixou de ser colônia, já foi
Império, é uma República democrática de direito e tem sua última Constituição
formulada em 1988, formulada após 25 anos de ditadura militar. Nossa nação
é a mais miscigenada, mistura de nativos indígenas, africanos, latinos, europeus
(depois dos portugueses, ondas de imigrantes chegaram aqui: italianos, alemães,
polacos…), além de japoneses e tantos outros.
Quando se fala em espiritualidade, isso tem de ser um fator levado em conta.
Não se deve estudar espiritualidade cristã no Brasil, como se estuda espirituali-
dade cristã nos EUA, por exemplo. Aqui o caldo engrossa, tem troca cultural em
uma intensidade inigualável. Existem duas formas da espiritualidade cristã sofrer
trocas culturais no Brasil: de livre e espontânea vontade ou naturalmente,
sem que ela planeje.
Com isso, eu quero dizer que a troca cultural é inevitável. Já mencionamos
antes que não existe espiritualidade fora da cultura. Ela é sempre um produto cul-
tural, mesmo que tenha certa autonomia e vida própria. A espiritualidade cristã tem
uma esfera de autonomia, mas não é, de modo algum, independente do meio social.
Quinhentos anos depois do choque cultural que católicos e protestantes tiveram,
observamos uma certa continuidade desses desafios. Católicos e protestante têm, hoje,
(felizmente) uma relação bem melhor entre eles, mas uma certa disputa (talvez hoje
uma disputa mais amigável, mais esportiva, mas é uma disputa) por espaço e influência.
A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), fundada por Edir Macedo,
é um fenômeno que chama a atenção de todo estudioso da religião. Não há nada
que se compare ao “efeito IURD” na história brasileira. Ela não se adequa a ne-

1
1
1
UN I C ES UMA R

nhuma classificação, pois ela não é protestante, católica ou petencostal. Ela tem
algo de petencostal, mas vai muito além, ela é algo novo, um neopentecostal (neo
= novo), mas de um tipo que não se vê em outro lugar.
Macedo, que trabalhou em lotérica (Loteg), apresenta um modelo de espiri-
tualidade diferente de tudo o que já se viu na tradição cristã brasileira, mas, ao
mesmo tempo, parece haver uma continuidade entre ele e modelos anteriores,
como a igreja Deus é Amor (petencostal conservadora de Davi Miranda), ou a
Brasil Para Cristo, de Manoel de Mello. Da IURD surgiu, por divisão, a Igreja
Internacional da Graça, fundada por R.R. Soares (cunhado de Macedo) e Igreja
Mundial do Poder de Deus, de Valdemiro Santiago.
Desde então, existe uma “espiritualidade cristã” “sob efeito IURD”, isto é, in-
fluenciada de algum modo por ela.

A P RO F UNDA NDO

Esse modelo está associado à:


- Entrada do evangelho da prosperidade no Brasil.
Esse evangelho começou nos EUA com o nome de Health and Wealth Gospel
[evangelho da saúde e da opulência] nos anos 1960s. A porta de entrada dessa
teologia foi a IURD.
- Compra de canais de rádio e televisão.
- Uso de elementos tradicionalmente não cristãos em cultos, utilizando-se
desde insights que se dizem umbandistas à objetos judaicos.
- Demonização das religiões afro-brasileiras (um paradoxo em relação ao
item anterior).

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

SIMILARIDADES ENTRE A CATEQUESE DO BRASIL


COLONIAL E HOJE

Não é a mesma coisa, obviamente, mas existem paralelos interessantes entre o


ontem e o hoje. Se fossemos estudar a história da evangelização no Brasil, vamos
perceber que tivemos várias fases. Nem tudo foi igual e não podemos simplificar
demais os fatos para tirarmos conclusões precipitadas.
De maneira geral, o século XIX inaugurou a vinda de missionários pro-
testantes para o Brasil. Tentativas anteriores, a do Rio de Janeiro, em 1555, e a
de Pernambuco, com missionários holandeses, não permaneceram por muito
tempo. Um trabalho permanente aconteceu bem tarde com missionários ingleses
e, principalmente, missionários norte-americanos. Desde do séc. XIX, o meio
evangélico importa as tendências espirituais que acontecem nos EUA.
O século XX é o século do pentecostalismo.
A Assembleia de Deus chegou em peso no Brasil, assim como o movimento
de renovação carismática em 1970 (três anos depois de ter eclodido na igreja
católica americana). O rádio e a televisão colaboraram para que essas mensagens
se espalhassem em larga escala.
O final do séc. XX mostrou um novo tipo igreja: uma igreja altamente estru-
turada em moldes empresariais. Isso se aplica a quase todas as denominações
evangélicas, as mesmas que rejeitam a teologia da prosperidade. Os pastores es-
tavam tendo dificuldades de liderar uma igreja local apenas com conhecimentos
teológicos. Cursos na área de administração e gestão de pessoas passaram a ser
considerados essenciais.
Quando isso é associado à teologia da prosperidade, o fator empresarial se
une a um perfil coronelista (para usar um termo da nossa história brasileira),
em que se chega a proibir leituras de livros que não sejam publicados pela editora
da própria igreja, ou músicas que não sejam do selo da igreja.

Coronelismo foi uma prática política comum durante a República Velha (1889-
1930), na qual os coronéis, donos de terra, coagiam seus subalternos a votarem
em seus candidatos para que eles (coronéis) se mantivessem no poder.

1
1
1
UN I C ES UMA R

O século XXI chega com a expansão desse modelo. O “gospel” se torna segmento
no mercado cultural: música gospel, filme/novela gospel, roupa gospel, livros
gospel etc. Percebe-se um grande comprometimento do fiel com a instituição,
mas sem nenhum conhecimento da tradição cristã. A igreja se tornou uma ins-
tituição forte, mas que não tem passado, algumas vezes lembrando o famoso
livro de George Orwell, “1984”. Não é de se espantar que cursos de publicidade
e propaganda se especializem no mercado evangélico, por verem ali um terreno
ainda fértil para o comércio.
Buscando similaridades, sem querer simplificar demais, podemos notar as
seguintes continuidades entre o Brasil colônia e o meio cristão hoje:

DISPUTA POR MEMBROS

• Não mais entre católicos e protestantes, mas entre pastores neopentecos-


tais.
• Não mais entre igrejas tradicionalmente instituídas (Católica Romana e
denominações protestantes, como Presbiterianas, Anglicanas, Batistas etc.),
mas entre igrejas chamadas “emergentes” (“emergem” sem uma tradição
institucional, mas são uma instituição, seguindo um modelo empresarial). Os
pastores brigam entre si para ver quem ganha mais fiéis (dizimistas).

PLANOS POLÍTICOS ATRELADOS

• No Brasil colônia, a corte portuguesa era oficialmente católica, por isso co-
lonização e evangelismo andavam juntos. As decisões religiosas que fossem
impactar negativamente o rei, eram evidentemente impedidas. Ora a religião
ditava a política, ora a política ditava a religião.
• Na atualidade, vemos a inserção de pastores e aliados no Parlamento, na Câ-
mara, Senado e demais instâncias governamentais. Teoricamente, o Estado
é laico, mas todos buscam controlar sua laicidade, puxando para seu lado. Da
mesma forma, busca-se ditar a política, ao mesmo tempo em que se deixa
ser ditado por ela.
• A IURD, por exemplo, teve seu primeiro deputado eleito em 1986 (PTB) e,
desde então, tem eleito deputados e senadores e feito acordos com políticos
estratégicos (como Maluf e Collor), além de comprado briga com a esquerda.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

AQUISIÇÃO DE TERRAS

• Colonizar e evangelizar andavam juntos no Brasil colônia. Uma das primeiras


construções em um novo local ocupado pelos imigrantes era a igreja. Ali se fazia
a primeira missa como quem finca uma bandeira. O aumento de terras significa-
va riqueza, principalmente na fase de exploração do ouro que veio depois.
• Nos dias de hoje, as igrejas vão criando modos de adquirir “terras”. Não terras
literalmente, mas estádios ou times de futebol, emissoras de rádio, jornal,
televisão, banco, gráficas, construtoras etc. Essas são as formas de adquirir
terra no capitalismo contemporâneo.
• Como exemplos, a IURD comprou a rede de televisão Record, a Renascer
criou o selo musical “Gospel Records”, em 1989. Nos anos 2000, a palavra
“gospel” já se tornou um termo de uso geral mercadológico.

O PATRIMÔNIO VAI PARA A CÚPULA

• Já não é novidade que o ouro brasileiro financiou o Convento de Mafra (140


toneladas de ouro) e outras regalias portuguesas. O ouro arrecadado ia dire-
tamente para a coroa portuguesa.
• No mundo contemporâneo, do dinheiro arrecadado nas igrejas locais (dí-
zimos), parte fica naquela unidade e a outra (maior) parte vai para a sede.
O investimento (e até o fechamento) em uma unidade é influenciado pelo
quando aquela unidade rende. O movimento de arrecadação permanece; a
cúpula não é mais a família real, mas o empresário que é dono da instituição.

DIFICULDADE DE SEPARAR AS MATRIZES RELIGIOSAS

• Assim como os jesuítas tiveram dificuldade de manter seu evangelho sepa-


rado da tradição indígena e africana, vemos uma retomada do sincretismo no
neopentecostalismo brasileiro.
• Durante os últimos dois séculos, tanto a igreja católica quanto a igreja pro-
testante conseguiram criar um corpo doutrinário aqui no Brasil. O sincretis-
mo sempre aconteceu, mas houve o fortalecimento de uma doutrina cristã,
propriamente dita. Isso se deve à vinda da família real, à construção de
seminários e conventos etc. Para que essa separação seja possível, o peso
da tradição deve ser forte. E esse peso não existe no neopentecostalismo.
• Ao mesmo tempo em que se demoniza as práticas de religiões afro-brasi-
leiras, igrejas neopentecostais se valem de uma estética altamente atrativa
à ex-umbandistas e espíritas. Muitos umbandistas percebem similaridades
estruturais em relação a sua própria matriz, mesmo em meio ao discurso
preconceituoso nas igrejas cristãs neopentecostais.

1
1
1
UN I C ES UMA R

Se o sincretismo era considerado um problema para os jesuítas e é considerado


um horror para cristãos contemporâneos, isso não representa a totalidade das
interpretações. O sincretismo pode ser visto como um fenômeno natural e inevi-
tável, afinal, o cristianismo europeu que nós herdamos já era sincrético, e, como
vimos, o cristianismo já nasceu em uma disputa de dogmas.
Para teólogos como Leonardo Boff, nem todo sincretismo é ruim. Basta que
avaliemos o teor dessa mistura, se ela leva ao ódio e à intolerância ou se ela leva
ao amor e à elevação do ser humano. Podemos dizer que o sincretismo sempre
será um fator na construção de uma espiritualidade no Brasil. Pode-se aceitá-lo
ou rejeitá-lo, mas não é possível ignorá-lo.

E M FO CO

Gostou do que discutimos até aqui? Tenho mais para conversar com você a respei-
to deste tema, vamos lá?! Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do
ambiente virtual de aprendizagem.

NOVOS DESAFIOS
Em um ambiente profissional, há pessoas que seguem tradições diferentes. Isso
pode acontecer com religiões diferentes, mas pode acontecer também com
vertentes distintas dentro da mesma matriz religiosa.
Quando pensamos na construção de uma espiritualidade contemporânea, que
se entende mais autônoma, mais individual e customizada, estamos pensando uma
espiritualidade mais aberta ao sincretismo. Isso é evidente porque quem assegura a
não mistura é o peso da instituição religiosa. Se, na espiritualidade contemporânea,
o peso da instituição cai, a tendência ao sincretismo aumenta. Não necessariamente
aumenta-se o sincretismo, mas aumenta-se a chance de que ele ocorra.
Para um estudioso da tradição
religiosa, é importante iden-
tificar com quais
tradições uma
pessoa está

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 5

dialogando. Raramente, as pessoas no nosso cotidiano apresentam uma visão


sistematizada e sofisticada de espiritualidade, geralmente são visões cheias de
contradições e dúvidas. Isso é normal.

Um dos caminhos de um teólogo ou cientista da religião é (respeitando a cren-


ça dessa pessoa) auxiliá-la nas dúvidas, tirá-la, se possível, de um ambiente de
medo, para um ambiente de autoconhecimento e crescimento pessoal.

Essa tarefa pode ser sua também, não precisa ser apenas de pastores, pais-de-santo,
padres, rabinos etc. Em termos de espiritualidade, estamos todos em uma jornada.

1
1
1
VAMOS PRATICAR

1. A própria ideia de que a igreja primitiva era unida não goza de muita veracidade. É bem
provável que as primeiras décadas da fé cristã tenham sido muito mais diversificadas e
polêmicas do que nosso cenário atual. Muitas coisas que eles acreditavam seriam um
escândalo para nós hoje. Isso porque esse “eles”, são, na verdade, grupos de lugares
bem diferentes que foram se convertendo à medida que a fé cristã se espalhava.

Os primeiros registros de divisões acerca do que deveria ser a fé cristã estão nas cartas
de Paulo e nas cartas gerais (Pedro, aos Hebreus, Tiago). Paulo explicitamente lida com
isso nas duas cartas de Coríntios e aos Gálatas. Cartas posteriores, que têm sua autoria
disputada (ou seja, muitos estudiosos acreditam que não tenham sido escritas por Paulo),
como 1 Timóteo e Tito, também abordam o tema de preservar a sã doutrina, embora nem
sempre entrem detalhes do que seja.

Sobre a diversidade na história do cristianismo, assinale a alternativa correta:

a) As primeiras divisões na fé cristã podem ser encontradas nas cartas de Paulo.


b) Não havia diferenças significativas nas crenças dos primeiros convertidos ao cris-
tianismo.
c) Não há relatos de divisão doutrinária no NT.
d) A diversidade na tradição cristã começou com a Reforma Protestante.
e) A espiritualidade cristã é realmente diversa apenas na atualidade, devido ao acúmulo
de tradições.
f) A ideia de que a igreja primitiva era unida não se sustenta. Os primeiros registros de divi-
sões acerca do que deveria ser a fé cristã estão nas cartas de Paulo e nas cartas gerais.

2. As principais divisões que surgiram no início da igreja tinham a ver com a transição
do judaísmo para o cristianismo. Na verdade, ainda não havia o “cristianismo”, pois
muitos acreditavam que a crença em Jesus como messias era a continuidade natural
do judaísmo. Nesse sentido, não haveria uma ruptura para uma outra religião, mas
uma continuação para uma nova fase. Talvez essa tenha sido a perspectiva de Paulo.
Assinale a afirmação correta:

a) Não se pensava que Jesus era uma continuação natural do judaísmo.


b) As divisões iniciais na igreja não tinham relação com o judaísmo.
c) Alguns convertidos judeus continuaram a praticar as leis judaicas após se tornarem
cristãos.
d) Paulo e Pedro compartilhavam exatamente a mesma visão sobre a fé cristã.
e) As principais divisões iniciais na igreja não estavam relacionadas à transição do ju-
daísmo para o cristianismo.

1
1
1
VAMOS PRATICAR

3. Tendo em vista a tese de Bauer como explicação para o florescimento da tradição


oficial, leia as afirmações a seguir:

I - Constantino não teve influência na oficialização do cristianismo.


II - Constantino não teve influência na oficialização do cristianismo.
III - Constantino, o imperador romano, se converteu à visão cristã que se tornou oficial.
IV - A visão que se tornou a “oficial” estava presente em vários lugares do Império Romano,
mas floresceu particularmente bem em Roma.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) II e IV, apenas.
c) III e IV, apenas.
d) I, II e III, apenas.
e) I, II, III e IV.

1
1
1
REFERÊNCIAS

BÍBLIA SAGRADA. Nova versão transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

CARROL, L. Alice no País das Maravilhas. WIKIPÉDIA. Disponível em: https://pt.wikisource.


org/wiki/Alice_no_Pa%C3%ADs_das_Maravilhas/Cap%C3%ADtulo_VI. Acesso: 18 set.
2023.

CESAR, E. História da evangelização do Brasil. Viçosa: Ultimato, 2018.

CHAVES, E. A construção da ortodoxia e a invenção da heresia no Cristianismo primitivo.


Chaves Space. 2020. Disponível em:https://chaves.space/2020/12/15/a-construcao-da-
-heresia-e-a-invencao-da-heresia-no-cristianismo-primitivo/. Acesso em 18 set. 2023.

MISQUOTING JESUS. How wild can it get? The diversity of early Christianity. Entrevistado:
Barth Ehrman. Entrevistadora: Megan Lewis. Ehrman, 2023. Podcast. Disponível em: https://
www.bartehrman.com/podcast/. Acesso em: 18 set. 2023.

REEVES, E. R.; RICHARDS, D. B. Rediscovering Paul: an introduction to his world, letters,


and theology. Illinois: IPV Academics. 2017.

WIKIPEDIA. Credo dos Apóstolos. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Credo_dos_


Ap%C3%B3stolos. Acesso em: 18 set. 2023.

1
1
1
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção A.

A ideia de que a igreja primitiva era unida não se sustenta. Os primeiros registros de divi-
sões acerca do que deveria ser a fé cristã estão nas cartas de Paulo e nas cartas gerais.

2. Opção C.

As principais divisões que surgiram no início da igreja tinham a ver com a transição do
judaísmo para o cristianismo. Na verdade, ainda não havia o “cristianismo”, pois muitos
acreditavam que a crença em Jesus como messias era a continuidade natural do judaísmo.
Nesse sentido, não haveria uma ruptura para uma outra religião, mas uma continuação
para uma nova fase. Talvez essa tenha sido a perspectiva de Paulo.

3. Opção C.

A tese de Bauer diz que, muito embora a visão que viria a ser a “oficial” estivesse presente
em vários lugares do império romano, ela floresceu particularmente bem na capital, Roma.
Um segundo fator é que Constantino, o imperador romano que oficializou a religião cristã
como a religião do império, teria se convertido nessa visão cristã.

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
UNIDADE 4
TEMA DE APRENDIZAGEM 6

ESPIRITUALIDADE CRISTÃ E
DISCIPLINAS ESPIRITUAIS

MINHAS METAS

Aprender o que é uma disciplina espiritual.

Entender o valor e o uso da disciplina espiritual.

Perceber seu uso na Bíblia.

Conhecer quais são as disciplinas usadas na tradição.

Identificar os grupos e funções às quais pertencem.

Compreender a disciplina espiritual com Reino.

Vincular os possíveis usos dessas disciplinas na espiritualidade contemporânea.

1
1
1
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Estudante, relembre um grande alvo que você já se propôs. Você teve que fazer alguma
espécie de sacrifício para poder alcançá-lo? Talvez um investimento financeiro que
requereu que você “segurasse as pontas” na hora de gastar. Talvez deixar de sair em
algumas ocasiões para se preparar para uma apresentação importante. Pense bem,
existe algo realmente valioso para o qual não existe nenhum sacrifício a ser feito?
Talvez seja seguro dizer que, maior é o sacrifício, se maior é o nosso desejo
por alcançar um determinado alvo. Nós vivemos no delicado equilíbrio (nem
sempre tão equilibrado assim) entre sacrifício e recompensa.
Tanto a religião, quanto a espiritualidade independente trazem a jornada
espiritual para dentro dessa lógica. O que a jornada espiritual nos traz (um cresci-
mento espiritual à imagem de Deus), diz o fiel, não pode ser equiparado com nada
nesse mundo terreno. Não é um tipo de ganho do qual se mede com fórmulas e
gráficos. Mas é um tipo de ganho cujos efeitos estarão cada vez mais presentes na
mente e no comportamento daquele que se entrega ao crescimento na fé.
Para isso, fazem-se necessários certos sacrifícios. Calma, não estamos falan-
do de sacrifícios literais (de matar animais), nem de um exagero de chicotear o
próprio corpo. Estou falando de disciplinas simples, não necessariamente fáceis,
que servem para impulsionar a alma do fiel para Deus.
Se você, em algum momento, achar difícil praticar qualquer uma dessas dis-
ciplinas, lembre-se que é somente o desejo de se achegar a Deus que é capaz de
suplantar a resistência que a nossa natureza produz. Foi isso que fez com que
muitos santos na história cristã fizessem as maiores loucuras, a jornada espiritual,
definitivamente, não é coisa desse mundo.

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

“Eu” e “nós”, uma tensão que habita as disciplinas espirituais e a caminhada de con-
templação cristã. Nosso PLAY NO CONHECIMENTO desse tema explora a síntese
das disciplinas espirituais e as situa sob um propósito de autoconhecimento e co-
nhecimento de Deus. Exploramos ali o porquê a espiritualidade cristã nunca é só o
indivíduo, nem só o coletivo. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital
do ambiente virtual de aprendizagem.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

VAMOS RECORDAR?
Durante esse curso, estamos vendo duas frentes da espiritualidade cristã. Um
envolve a frente institucional (que envolve aspectos políticos, sociais, como
campanhas missionárias, movimentos teológicos… coisas que eu vou chamar
de aspectos “macro”. São coisas externas e costumam envolver muitas pes-
soas. A outra frente é o lado interior, subjetivo. Aqui, falamos das emoções,
da busca pela autenticidade, pelo contato com o divino… o que eu chamo de
aspectos “micro” (não por serem menos importantes, mas por serem processos
que acontecem em um universo menor, em termos sociais).
Essas duas dimensões, “macro” e “micro”, complementam-se constantemente
no estudo da espiritualidade. É muita ingenuidade achar que a espiritualidade
só tem a ver com o “micro”, o lado subjetivo, como é imensa falta de sensibili-
dade achar que tudo é uma questão “política”.
Enquanto a “tradição” em temas já estudados fala mais sobre aspectos “macro”,
as disciplinas espirituais falam mais sobre o aspecto “micro”, nossa parte interi-
or. Para muitos, esse é o cerne de uma prática espiritual. O assunto é altamente
prático e não adentra em pormenores teológicos.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

O QUE É UMA DISCIPLINA ESPIRITUAL

“Disciplina” não é uma palavra que inspira grandes motivações em muitas pes-
soas. Ela pode remeter a “castigo” (ser disciplinado por alguma conduta errada),
ou a “rigor de comportamento” (ser disciplinado para acordar cedo). Quando
falamos em “disciplinas espirituais”, estamos pensando no segundo sentido: ser
disciplinado para alcançar algo.

Disciplinado por = culpa (orientado por algo que aconteceu no passado).

Disciplinado para = ter um alvo (orientado para o futuro).

1
1
1
UN I C ES UMA R

As coisas podem ficar um pouco confusas, porque


O poder da culpa
os dois sentidos (culpa e alvo) fazem parte do mun-
é mais paralisador
do da caminhada espiritual. Quantas vezes não ve- do que realmente
mos filmes ou relatos de pessoas se martirizando motivador
porque não foram santas o suficiente. Dentro das
igrejas, existem muitos que vivem dominados pela culpa de não serem os homens
ou as mulheres de Deus que poderiam ser. Tudo isso pode ficar ainda mais pesado
se o padre ou pastor reforçam esse sentimento, enfatizando a mensagem de que as
pessoas têm que ser melhores, mais santas, mais “espirituais” na vida.
Raramente uma caminhada espiritual tem sucesso nesse tipo de abordagem.
Apesar de muitos fiéis secretamente (e paradoxalmente) gostarem de “levar bronca”
do pastor, nem estes têm êxito no progresso espiritual quando motivados pela culpa.
Isso acontece porque a culpa é poderosíssima, mas o poder da culpa é mais
paralisador do que realmente motivador. A culpa faz com que eu pare e me en-
colha, metaforicamente falando, e, às vezes, literalmente falando, pois essa é a
postura do choro, da vergonha, do medo.
Muito disso foi usado na tradição religiosa e ainda é nos dias de hoje. É im-
portante, portanto, deixar essa distinção bem clara, quando falamos de disciplinas
espirituais: essas disciplinas não falam de culpa, mas falam dos exercícios que eu
me proponho para amadurecer espiritualmente. Poderíamos substituir a expres-
são “disciplinas espirituais” por “exercícios espirituais”, só para dar um exemplo e
ajudar a diferenciar o uso das palavras.
Richard Foster, em um livro relativamente recente sobre o assunto (dado que
as práticas mencionadas são milenares), elenca 12 exemplos de disciplinas espi-
rituais e afirma que “as disciplinas espirituais são um meio de nos colocar diante
de Deus para que ele nos transforme” (FOSTER, 1983, p.7).

COLOCANDO UM ALVO

Toda vez que temos um objetivo a longo prazo que queremos alcançar, é sensato
estabelecer as metas a serem alcançadas no meio do caminho, bem como fazer
um cálculo básico daquilo que eu vou precisar para chegar ao meu objetivo. Se

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

eu, por exemplo, sou um atleta maratonista e tenho uma competição importante
em alguns meses, eu vou ter para mim um número de horas diárias de treinos (de
corrida, peso, alongamento), uma dieta específica (terei de cortar ou diminuir
a ida a muitos restaurantes legais), talvez investir em um novo par de tênis de
corrida etc. Cada pessoa tem seu contexto.
O ponto aqui é: quando eu tenho um alvo importante, eu tenho sacrifícios
para alcançá-lo.
Se eu não entender que preciso me exercitar bem (e com rigor), as chances de
ter uma boa colocação na maratona só diminuem. Nesse exemplo, o maratonista é
motivado pelo alvo futuro e não pela culpa. No quesito espiritual, é como se todos
nós fossemos atletas em ascensão. Pessoas que treinam o “espírito” e não o “corpo”.

DISCIPLINAS ESPIRITUAIS PARA CRESCIMENTO ESPIRITUAL

Gosto de pensar sempre as disciplinas espirituais junto com a ideia de crescimen-


to espiritual. Tem-se disciplina para crescer. Quem quer crescer espiritualmente,
estabelece para si algumas disciplinas, simples assim.
Veja que, assim como no exemplo do atleta, é a pessoa que se impõe as dis-
ciplinas. Ela não é passiva, ou como uma criança que é obrigada a “ficar de cas-
tigo”. Mesmo que um atleta tenha um treinador para selecionar os treinos, é ele
quem está perseguindo a vitória na maratona, o treinador é um auxílio. A busca
por crescimento espiritual é sempre pessoal e intransferível, afinal, só você pode

1
1
1
UN I C ES UMA R

crescer espiritualmente por você mesmo, ninguém mais. O fator auto responsabi-
lização é crucial para desbloquear o verdadeiro sentido do crescimento espiritual.
Mas o que significa crescer espiritualmente? Como já exploramos em nossos
estudos, crescer espiritualmente tem a ver com “tornar-se participante da
natureza divina”, isto é, ter o caráter e a vida interior moldada de acordo com o
Ser de Deus. Nós começamos a nos importar com o que Deus importa, chorar
com o que move as lágrimas de Deus e amar como ele ama.
Não seria bom se as pessoas pudessem afirmar com convicção: “eu não con-
sigo evitar o perdão, é algo maior do que eu!”. Se ao invés do rancor ser a força
maior, o amor fosse a força maior. A tradição cristã entende que o amor é reco-
nhecido como essa força maior e que podemos nos transformar por meio dele
constantemente. Para isso, ao longo dos séculos, certas práticas, chamadas disci-
plinas espirituais, foram cultivadas por cristãos de diversas tradições.
Vamos comentar um pouco de 12 disciplinas comuns, algumas delas trazidas
do judaísmo ou do oriente. Dividimos essas disciplinas em 3 grupos: as disciplinas
interiores, disciplinas exteriores e as disciplinas coletivas.

DISCIPLINAS INTERIORES

Meditação

A meditação cristã é herdeira da me-


ditação hebraica, somente depois de
alguns séculos é que a influência orien-
tal ficou mais preponderante. A medi-
tação tem a ver com deixar a alma se
aquietar na presença de Deus. Deixar
seus pensamentos fluírem para os Dele.
É comum a leitura de alguns versos Bí-
blicos, mas não para estudo, mas uma
leitura lenta e pausada, refletida sobre
onde Deus está aqui e agora. Pode-se
cantarolar uma música, ler um poema

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

de um santo, acompanhar o voo de uma borboleta ou o canto de um pássaro. Na


meditação, busca-se Deus nos detalhes e a pessoa se abre a se maravilhar com a
poesia que emana Dele. Hoje temos algo próximo disso na ideia do “devocional”.

Oração

Muitos e muitos livros já foram escritos sobre oração. Sobre como orar, os tipos de
oração, sobre grandes exemplos de oração, etc. Às vezes, muita informação pode
complicar um tema que é simples. Oração é a conversa com Deus (o que incluiria
um momento de fala e de escuta), mas isso se dá com o coração, não com a razão.
Henri Nouwen (2021, p. 75) diz que:


A prece do coração é uma que não permite que limitemos nossa
relação com o Pai a palavras interessantes ou emoções piedosas.
Por sua própria natureza, tal oração transforma todo o nosso ser
em Cristo, precisamente porque abre os olhos da nossa alma para
a verdade sobre nós mesmos, assim como para a verdade em Deus.

O importante é deixar claro que não existe fórmula quanto ao tempo e ao jeito.
As pessoas definem um horário fixo por uma questão de organização pessoal
(uma vez que é uma prática facilmente esquecida). Além disso, existem três tipos
de oração, três jeitos de falar com Deus: pedir algo (para você ou por outros),
agradecer por algo, falar frases de amor e louvor a Deus. A ideia é que não se fique
orando o mesmo tipo de oração (por exemplo, só pedindo, pedindo e pedindo),
mas ter uma rotina de oração que, no geral, tenha um pouco de cada tipo.

1
1
1
UN I C ES UMA R

Jejum

Desconsiderando as recentes polêmicas acerca


O jejum sempre
do jejum para emagrecer ou “resetar” o corpo, o
foi abstinência de
jejum é uma prática antiga e de várias religiões,
alimentos
que têm em vista sensibilizar a alma para Deus.
No judaísmo, fazia-se jejum quando a nação estava em luto, ou quando pedia-se
misericórdia a Deus em casos graves. Era uma prática comum para a piedade
judaica, em que alguém se achegava a Deus. Veja que Jesus jejuou por quarenta
dias no deserto. Com certeza, aquele não havia sido seu primeiro jejum.
No cristianismo contemporâneo, criou-se a ideia de que o jejum mobilizaria
Deus de uma forma especial (como uma compra do favor divino). O jejum, na ver-
dade, é uma forma de se mobilizar em direção a Deus. A lógica é privar o corpo de
algo necessário, por um tempo, como um símbolo da nossa “fome” por Deus. Essa
prática também serviria
para que o lado espiri-
tual se tornasse mais
sensível ao sobrenatu-
ral. O jejum sempre foi
abstinência de alimen-
tos. Paulo dá a entender
uma abstinência sexual
temporária entre os ca-
sados para “achegarem-
se mais a Deus”.

Estudo Bíblico

Geralmente, quando se pensa em estudo, pensa-se em algo “seco”, bastante “hu-


mano”. Mas, para boa parte da tradição cristã, o estudo era visto como uma forma
de amadurecimento espiritual. Deus e sua sabedoria se revelaria através dessa
investigação técnica, metódica e cautelosa do estudo Bíblico.
Portanto, um estudo bíblico é uma atividade de exploração, análise e compreen-
são das Escrituras Sagradas, que são textos considerados sagrados em várias tradições

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

religiosas, como o Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo. Geralmente, um estudo


bíblico envolve a leitura cuidadosa e reflexiva da Bíblia, bem como a discussão e in-
terpretação de seu conteúdo. Aqui estão alguns pontos-chave sobre o estudo bíblico:

1. OBJETIVO:

o objetivo principal de um estudo bíblico é buscar compreender o significado dos


textos bíblicos, aplicá-los à vida cotidiana e fortalecer a fé religiosa.

2. MÉTODOS:

existem várias abordagens para o estudo bíblico, incluindo a análise histórica,


a análise literária, a interpretação teológica e a aplicação prática. muitas vezes,
um estudo bíblico é conduzido em grupo, com participantes discutindo suas
percepções e insights.

3. FERRAMENTAS:

os estudiosos da Bíblia frequentemente usam recursos como dicionários bíblicos,


concordâncias, comentários e estudos acadêmicos para aprofundar sua com-
preensão dos textos.

4. CONTEXTO:

a interpretação correta da Bíblia muitas vezes depende de entender o contexto


histórico, cultural e religioso em que os textos foram escritos. Isso pode envolver a
análise das línguas originais (hebraico, aramaico e grego) e o contexto geográfico.

5. APLICAÇÃO:

um estudo bíblico visa não apenas entender os princípios religiosos, éticos e mo-
rais apresentados na Bíblia, mas também aplicá-los à vida diária. Isso pode incluir
a busca por orientação espiritual, a tomada de decisões éticas e a promoção de
valores religiosos.

1
1
1
UN I C ES UMA R

6. DIVERSIDADE:

existem muitas denominações religiosas e tradições cristãs diferentes, e cada


uma pode abordar o estudo bíblico de maneira ligeiramente diferente. Além disso,
os estudos bíblicos também são realizados em outras religiões, como o Judaísmo
e o Islamismo, com foco em suas respectivas escrituras sagradas.

7. CRESCIMENTO ESPIRITUAL:

para muitas pessoas, o estudo bíblico é uma parte fundamental de seu cresci-
mento espiritual e religioso, ajudando a fortalecer sua fé, fornecer orientação
moral e promover uma compreensão mais profunda de suas crenças religiosas.

Em resumo, um estudo bíblico é uma prática que envolve a exploração e a in-


terpretação das Escrituras Sagradas para promover a compreensão espiritual,
ética e moral, bem como sua aplicação prática na vida diária. É uma atividade
significativa para muitos indivíduos e comunidades religiosas em todo o mundo.

DISCIPLINAS EXTERIORES

Simplicidade

Você já pensou que cultivar uma vida simples pode ser um exercício espiritual?
Em um mundo de consumo, de propaganda a todo instante, às vezes é até difícil
saber o que se tornou essencial ou não. A vida simples se protege de ser domi-
nada por aquilo que é descartável. Tem a ver com não comprar, não cobiçar, não
exagerar, mas também tem a ver com a autenticidade.
Na vida simples, eu tenho amigos porque eu gosto deles e eles gostam de
mim, eu não quero impressionar ninguém, nem ser amigo de ninguém porque
essa pessoa vai me aproximar do CEO, ou vai me fazer parecer importante etc.
Na vida simples, eu não vivo escravo da opinião dos outros. Na vida simples, eu
tenho espaço na minha agenda para cuidar das pessoas que eu amo. Não vivo
corrido e atarefado com aquele monte de coisas que só dizem respeito a mim.
Na vida simples, a simplicidade é poder ser e viver sem embaraços.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

Solitude

Solitude não é solidão. Solidão é algo depressivo, em que nos sentimos sozinhos,
mesmo quando estamos acompanhados. Solidão causa dor e é, geralmente, fruto
de uma dor. A solitude, por outro lado, é um espaço de se aquietar diante de Deus
e de si mesmo. Quem não sabe estar sozinho e curtir a própria companhia (e a
companhia de Deus), ainda está dependendo de outras pessoas e circunstâncias
para se sentir completa. A solitude treina a pessoa para ser inteira. Encaramos a
nós mesmos e perdemos o medo do “vazio”.
A solitude pode ser uma experiência positiva e enriquecedora para muitas
pessoas. Permite um espaço para a reflexão, a criatividade e o recarregamento
emocional. Muitas pessoas acham que períodos de solitude são essenciais para
seu bem-estar mental e emocional, ajudando-as a recuperar o equilíbrio e a cla-
reza mental em um mundo agitado e muitas vezes superconectado.
A busca pela solitude pode assumir várias formas, como passar um tempo em
meditação, fazer caminhadas solitárias na natureza, ler um livro sozinho, praticar um
hobby ou apenas sentar em silêncio. A chave é que a solitude é uma escolha voluntária,
não uma imposição de solidão. É uma oportunidade de se conectar consigo mesmo
e com os próprios pensamentos de uma maneira profunda e significativa.

1
1
1
UN I C ES UMA R

Serviço

Jesus, em certa ocasião, lavou os pés dos seus discípulos (uma função atribuída
ao escravo da casa) e disse que esse era o modelo que ele estava estabelecendo
para seus discípulos: tornarem servos um dos outros. Se Jesus mesmo estabeleceu
esse exemplo ao revelar Deus, então a prática do serviço ao próximo para a ser
item indispensável na “dieta” espiritual do cristão. Buscar ocasiões para servir é
um modo de praticar essa disciplina. Não quer dizer que a pessoa nunca possa
recusar-se a servir a alguém (não precisamos interpretar as disciplinas espirituais
de forma exagerada e sem bom senso), mas que ela não se sente “humilhada” ou
“desrespeitada” por ajudar alguém ou fazer algo “de um nível tão baixo”.

Submissão

Semelhante ao serviço, a submissão reflete o que se diz de Jesus em Filipenses 2: 5-8:

⁵ Tenham a mesma atitude demonstrada por Cristo Jesus.


⁶ Embora sendo Deus,
não considerou que ser igual a Deus
fosse algo a que devesse se apegar.
⁷ Em vez disso, esvaziou a si mesmo;
assumiu a posição de escravo
e nasceu como ser humano.
Quando veio em forma humana,
⁸ humilhou-se e foi obediente
até a morte, e morte de cruz
(NVT).

A submissão aqui é: a) a Deus e a sua vontade e


O oposto da
b) às autoridades dessa terra. Isso não significa
submissão é o
obediência cega e acrítica a toda e qualquer au-
orgulho e a altivez
toridade, antes, significa saber obedecer, mesmo
quando não há concordância. Em casos graves, como corrupção, imoralidade,
cabe a postura de resistência e manter a consciência limpa. Mas, em tantos outros

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

casos (menores), pessoas não submissas causam brigas desnecessárias e mostram


que não sabem fazer nada que não seja do seu jeito.
O oposto da submissão é o orgulho e a altivez, tido como o pecado de Lúcifer.
Dos pecados capitais (“capitais”, porque geram outros pecados), o orgulho é o
pecado capital por excelência, ou seja, dele nascem todos os outros pecados. A
disciplina da submissão é valiosa, portanto, para combater a altivez.
Antes de falar, das disciplinas coletivas, quero destacar que as disciplinas elen-
cadas até aqui continuam fazendo sentido para a espiritualidade contemporânea.
Veja que elas não exigem um compromisso formal, comunitário ou institucio-
nal. Eu faço jejum se eu tiver afim e quando eu estiver a fim. E pode ser jejum
de comida, só de chocolate, de televisão etc. Ou seja, quando eu entender que
preciso de um jejum, eu faço. Se, por um lado, isso revela o alto individualismo
de nosso tempo, por outro, permite também justamente a auto responsabilização
pela própria jornada espiritual.

DISCIPLINAS COLETIVAS

O que veremos a seguir são as disciplinas que, de alguma maneira, requerem a


presença de um outro para acontecerem. Elas ainda podem ser de grande valia
para a espiritualidade contemporânea, pois não requerem uma forte instituição.
É importante deixar claro que espiritualidade contemporânea não é sinônimo
de isolamento ou individualismo. Essa confusão é comum nas práticas espirituais
monásticas. Thomas Merton, um monge trapista contemporâneo escreveu que


até agora, muitos dos textos que citamos sobre o eu interior dão a
falsa impressão de que esta identidade interior e espiritual é recu-
perada apenas pelo isolamento e pela introversão. Isto está longe
de ser correto. O eu interior não é apenas o que resta quando nos
afastamos da realidade exterior. Não é mero vazio ou inconsciência.
Pelo contrário, se imaginarmos que o nosso eu mais íntimo é pura e
simplesmente algo em nós que está completamente fora de contato
com o mundo dos objetos exteriores, estaríamos nos condenando

1
1
1
UN I C ES UMA R

antecipadamente à completa frustração em nossa busca pela cons-


ciência espiritual [...] provavelmente é seguro dizer que nenhum
homem poderia chegar a uma auto-realização interior genuína,
a menos que primeiro se tornasse consciente de si mesmo como
membro de um grupo – como um “eu” confrontado com um “tu”
que completa e preenche o seu próprio (MERTON, 2003, s.p.).

Merton (2003) alerta que o objetivo da solitude e da introspecção é se relacionar


melhor com os outros. Não deve ser confundido com uma fuga ou um fim em si
mesmo. O autoconhecimento que a meditação e a solitude trazem tem o alvo de nos
trazer unidade com outras pessoas. E isso só acontece em relacionamentos profundos.

Confissão

“Confessem seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para que sejam
curados”, disse Tiago em sua carta (5.16 NVT). A confissão a outros membros da
mesma fé é uma prescrição cristã desde o início da igreja. Com o tempo, isso se
tornou uma prática mais regulamentada: confessa-se ao padre. Confessa-se as fa-
lhas de caráter, as dificuldades em ser cristão, os desejos considerados impuros etc.
A ideia é que a igreja seja um ambiente acolhedor às dificuldades do fiel. O
padre, pastor ou cristão ouvinte se vê entre a linha tênue de acolher sem julgar e
relevar sem considerar a seriedade da questão.
O protestantismo sempre apoiou essa prática, mas os fiéis foram deixando
de cultivá-la uma vez que ela não era tão organizada institucionalmente. John
Wesley foi um dos que levou essa disciplina espiritual à sério em seus encontros.
Essa prática, quando olhamos a realidade da vida da igreja, deu margem
para muito abuso de autoridade, reforço de sentimento de culpa e frustrações,
principalmente quando a pessoa que escuta não apresenta uma maturidade ou
cuidado ao tratar as emoções alheias.
A confissão, assim como o serviço na comunidade de fé, muitas vezes está
entre ser uma prática forçada (eu tenho que me confessar) ou uma prática ne-
gligenciada (se eu não preciso, então eu não vou). Os dois casos são ruins, pois
nenhum deles manifesta a auto responsabilização do fiel (eu sei que preciso, por
isso vou, mesmo que ninguém mande).

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6

Celebração comunitária

Também conhecida como “culto”, “missa”, “adora-


A igreja é, na
ção coletiva”. O nome “celebração” vem da ideia de verdade, o
celebrar a ressurreição de Cristo. Na nossa cultura, ajuntamento de
estamos acostumados a celebrar na missa ou no cristãos
culto semanal. Mas independente de ser semanal
ou de acontecer num domingo ou não, a celebração coletiva sempre foi algo
precioso para a espiritualidade cristã.
Muitos entendem que Deus tem algo específico para entregar ao coração do
fiel na adoração comunitária, algo diferente do que é entregue no individual. É
como se as duas coisas se complementassem, o coletivo não flui sem o individual
e o individual não cresce sem o coletivo.
Na igreja primitiva, os cristãos se reuniam nas casas uns dos outros para con-
tar o que Deus havia feito por eles, para cantarem canções sobre a fé e sobre Jesus.
Um pouco mais tarde, quando houve uma perseguição aos cristãos (por
eles não adorarem aos deuses romanos), eles se reuniam em catacumbas
e cemitérios (pois os romanos tinham medo dos cemitérios e não os
frequentavam, muito menos a noite; mas os cristãos não tinham o
mesmo entendimento e se aproveitavam desse tabu). Isso fez com
que os cristãos ganhassem a fama de serem “esquisitos”.
Mas isso mostra o quanto eles se expunham para se reunirem.
Durante toda a tradição cristã, não houve quem desconsiderasse
o encontro dos santos como um projeto divino, nem mesmo os
monges, em sua solitude, deixavam de se encontrar regularmente
com seus irmãos e irmãs em adoração coletiva.
É isso que se chama igreja, apesar
do nome “igreja” ter sido associa-
do ao templo e construções
emblemáticas, a igreja é,
na verdade, o ajunta-
mento de cristãos.
Isso independe de
lugar, dia e hora. O

1
1
1
UN I C ES UMA R

nome grego para igreja é “ekklesia” (se lê ‘eclecía’), um termo usado na juris-
prudência romana que significava “ajuntamento para fora”. A ekklesia era como
um fórum de cidadãos distintos de uma cidade, que se reuniam para deliberar
sobre assuntos públicos, assuntos da cidade, ou seja, assuntos que não eram so-
mente deles, mas eram tomadas para fora, para todos.

Essa ideia foi usada pelos cristãos para dizer que seu ajuntamento era um ajun-
tamento com um propósito de espalhar para fora o “evangelion” (se lê "evangue-
lion”, outro termo da jurisprudência romana, que significa “boas novas” ou seja,
contar as benfeitorias que o império romano estava fazendo na região).
Nouwen (2020, p. 37) diz que o caminho cristão une o caminho do místico e
o caminho do revolucionário, do isolado e do engajado. Eles são como faces da
mesma moeda, sozinhos, são infrutíferos:


Os místicos não podem impedir de se tornarem críticos sociais, já
que na autorreflexão encontrarão as raízes de uma sociedade doen-
te. Da mesma forma, os revolucionários não podem evitar encarar
sua própria condição humana, já que em meio à sua luta por um
mundo novo descobrirão que também estão combatendo seus pró-
prios medos reacionários e falsas ambições.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 6


Tanto místicos como revolucionários precisam se livrar de suas ne-
cessidades egoístas de uma existência segura e protegida e enfrentar
sem medo a condição miserável de si mesmos e de seu mundo. cer-
tamente não é surpresa que os grandes líderes revolucionários e os
grandes contemplativos se encontrem em sua preocupação comum
de libertar aqueles que vivem na idade moderna de sua paralisia
(NOUWEN, 2020, p. 37).

Aqui retomamos nossa ideia do tema que estudamos anteriormente, na qual a es-
piritualidade cristã é uma espiritualidade em missão. A igreja seria um QG (quartel
general). Assim como o imperador romano mandava um embaixador passar pelas
províncias conquistadas anunciando quais mudanças o império estaria implemen-
tando (evangelion), a igreja tinha seus embaixadores (os apóstolos, Paulo mesmo se
chama de embaixador), que iam às províncias conquistadas pelo pecado anuncian-
do as benfeitorias (as boas novas, o evangelho) de um novo Reino, o Reino de Deus.

E U IN D ICO

Estudante, quer saber mais informações a respeito do que discutimos ao longo


deste tema de aprendizagem? Acesse a videoaula que preparamos para você.
Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de
aprendizagem.

NOVOS DESAFIOS
Pessoas fazem sacrifícios pessoais para aquilo que ela considera importante na
sua jornada de vida. Nem sempre o que você está disposto a fazer sacrifícios para
alcançar faz parte da trajetória de outra pessoa.
Num ambiente de trabalho, por exemplo, é importante “pescar” quais são as
prioridades das outras pessoas. Isso evita que eu projete sobre ela a expectativa
de que ela se sacrifique da mesma forma, ou com a mesma intensidade que eu,
para exatamente as mesmas coisas.
Já é difícil vencer as batalhas pessoas e os sacrifícios pessoais que precisamos
fazer na vida, não é verdade? Seria ainda pior se uma outra pessoa estivesse ten-

1
1
1
UN I C ES UMA R

tando me fazer trilhar uma outra jornada que não é a minha. Eu não quero ser
essa pessoa na vida de ninguém (a pessoa que coloca fardos desnecessários na
caminhada alheia). Eu quero ser a pessoa que ajuda a pessoa na jornada que ela
se propôs, mesmo que eu não queira aquela jornada para a minha vida.
Sabe que, talvez, essa seja uma forma de praticar a disciplina espiritual do
serviço no seu ambiente de trabalho, familiar ou qualquer que seja. Vale o tro-
cadilho, quem ama, serve; que não ama, não serve.

1
1
1
VAMOS PRATICAR

1. Quando falamos em “disciplinas espirituais”, estamos pensando no segundo sentido:


ser disciplinado para alcançar algo.

Disciplinado por = culpa (orientado por algo que aconteceu no passado).

Disciplinado para = ter um alvo (orientado para o futuro).

As coisas podem ficar um pouco confusas, porque os dois sentidos (culpa e alvo) fazem
parte do mundo da caminhada espiritual.

Disciplinas espirituais não falam de culpa, mas falam dos exercícios que eu me proponho
para amadurecer espiritualmente, são um meio de nos colocar diante de Deus para que
ele nos transforme. Assim, assinale a alternativa correta:

a) A culpa é altamente motivadora para o crescimento espiritual.


b) Disciplinas espirituais são sempre impostas externamente.
c) Disciplinas espirituais visam colocar as pessoas diante de Deus para transformação.
d) “Disciplina” refere-se a ser disciplinado por ter feito algo errado.
e) As disciplinas espirituais têm por objetivo mover Deus a fazer algo.

2. O fator auto responsabilização é crucial para desbloquear o verdadeiro sentido do cres-


cimento espiritual. Crescer espiritualmente tem a ver com “tornar-se participante da
natureza divina”, isto é, ter o caráter e a vida interior moldada de acordo com o Ser de
Deus. Nós começamos a nos importar com o que Deus importa, chorar com o que move
as lágrimas de Deus e amar como ele ama.

Sobre a natureza das disciplinas espirituais, considere as afirmações:

I - Crescer espiritualmente significa apenas seguir regras religiosas.


II - A auto responsabilização é crucial para o crescimento espiritual.
III - Crescer espiritualmente envolve se importar com o que Deus valoriza.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) III, apenas.
c) I e III, apenas.
d) II e III, apenas.
e) I, II e III.

1
1
1
VAMOS PRATICAR

3. A meditação cristã é herdeira da meditação hebraica, somente depois de alguns sé-


culos é que a influência oriental ficou mais preponderante. A meditação tem a ver com
deixar a alma se aquietar na presença de Deus. Na meditação, busca-se Deus nos
detalhes e a pessoa se abre a se maravilhar com a poesia que emana Dele.

A prece do coração é uma que não permite que limitemos nossa relação com o Pai a
palavras interessantes ou emoções piedosas. Existem três tipos de oração, três jeitos de
falar com Deus: pedir algo (para você ou por outros), agradecer por algo, falar frases de
amor e louvor a Deus.

Geralmente quando se pensa em estudo, pensa-se em algo “seco”, bastante “humano”.


Mas, para boa parte da tradição cristã, o estudo era visto como uma forma de amadure-
cimento espiritual. Deus e sua sabedoria se revelaria através dessa investigação técnica,
metódica e cautelosa do estudo Bíblico.

Sobre a oração e a meditação, identifique a afirmativa correta:

a) Oração pode incluir pedidos, agradecimentos e expressões de amor a Deus.


b) Oração não envolve o coração, apenas a mente.
c) Meditação cristã se concentra apenas na leitura da Bíblia.
d) Meditação cristã é uma prática recente, de origem oriental.
e) Estudo é uma atividade apenas intelectual e não contém valor espiritual.

1
1
1
REFERÊNCIAS

BÍBLIA SAGRADA. Nova versão transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.

FOSTER, R. Celebration of discipline: the path for spiritual growth. New York: HarperCollins,
1983.

MERTON, T. Inner experience. New York: HarperCollins, 2003.

NOUWEN, H. O caminho do coração: a espiritualidade dos padres e madres do deserto.


Petrópolis: Vozes, 2021.

NOUWEN, H. O curador ferido: ministério na sociedade contemporânea. Petrópolis: Vozes,


2020.

1
1
1
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção C.

Disciplinas espirituais não falam de culpa, mas falam dos exercícios que eu me proponho
para amadurecer espiritualmente, são um meio de nos colocar diante de Deus para que
ele nos transforme.

2. Opção D.

O fator auto responsabilização é crucial para desbloquear o verdadeiro sentido do cres-


cimento espiritual. Crescer espiritualmente tem a ver com começarmos a nos importar
com o que Deus importa.

3. Opção A.

A meditação cristã é herdeira da meditação hebraica, somente depois de alguns séculos


é que a influência oriental ficou mais preponderante. A meditação tem a ver com deixar
a alma se aquietar na presença de Deus. Na meditação, busca-se Deus nos detalhes e
a pessoa se abre a se maravilhar com a poesia que emana Dele.
A prece do coração é uma que não permite que limitemos nossa relação com o Pai a
palavras interessantes ou emoções piedosas. Existem três tipos de oração, três jeitos de
falar com Deus: pedir algo (para você ou por outros), agradecer por algo, falar frases de
amor e louvor a Deus.

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
TEMA DE APRENDIZAGEM 7

ESPIRITUALIDADES COMPARADAS

MINHAS METAS

Recordar as raízes cristológicas e eclesiológicas da espiritualidade cristã.

Conhecer a diversidade de caminhos espirituais existente no cristianismo.

Analisar algumas das escolas de espiritualidade mais influentes da história cristã e suas
principais características.

Identificar semelhanças e diferenças entre as escolas analisadas.

Conhecer e valorizar as constantes presentes nas diversas modalidades de vida espiritual.

Compreender a importância do conhecimento da diversidade existente na vida cristã, a


fim de apreciar essa diversidade e colaborar para a construção da unidade.

Possibilitar ao estudante prosseguir seu aprendizado e pesquisar outras escolas de espiri-


tualidade cristã, dando-lhe critérios de discernimento para a avaliação da sua autenticidade.

1
1
1
U N I C ES U M A R

INICIE SUA JORNADA


Na atualidade, participar de uma comunidade de fé não é mais uma obrigação
social, como em outras épocas. As pessoas que buscam trilhar caminhos de es-
piritualidade o fazem, geralmente, quando estão bastante motivadas. Uma das
motivações principais é a busca de um sentido para a vida e de respostas para
as questões existenciais. Assim, quando as comunidades de fé não oferecem um
caminho experiencial concreto, não são capazes de motivar a participação de
seus membros.
O cristianismo, ainda que seja um caminho comum centrado na pessoa de
Jesus Cristo, elaborou, ao longo da sua história, inúmeras escolas de espiritualida-
de. Essa diversidade favorece atender às pessoas pertencentes aos mais diferentes
contextos sociais, políticos e culturais.
Conhecer os recursos espirituais presentes na própria tradição eclesial pode
ser um caminho para ajudar o profissional a cumprir a sua missão. Você já pen-
sou na sua missão de assessorar comunidades religiosas a cultivar e discernir os
elementos que compõem os seus próprios caminhos espirituais?
Convido você, estudante, a revisitar suas memórias e recordar alguém que
tenha vivenciado a jornada de cultivo e discernimento dos elementos que com-
põem seu próprio caminho espiritual. Isso permitirá que você colete informações
e, posteriormente, compare as experiências.

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

Nesse podcast, você verá como a diversidade de caminhos espirituais desenvol-


vido pelo cristianismo é um recurso importante para fazer frente aos desafios da
sociedade atual, plural e globalizada. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo
digital do ambiente virtual de aprendizagem.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

VAMOS RECORDAR?
Antes de iniciarmos a nossa jornada, vamos recordar que a espiritualidade cristã
nada mais é do que o caminho que o cristão realiza na sua busca em corresponder
à proposta divina de uma vida em comunhão com Ele. Assim, a espiritualidade, no
seu sentido estrito, tem como meta a comunhão com Deus. Porém, essa meta é ao
mesmo tempo um caminho de crescimento pessoal, pois, segundo a Revelação
Cristã, o desejo de Deus é que o ser humano se realize plenamente, em todas as
suas potencialidades. Trata-se, concretamente, de um viver no Espírito.
Caso você queira recordar ainda mais profundamente o que é a espiritualidade
cristã antes de prosseguirmos a nossa jornada, recomendamos a leitura do artigo
que se encontra no link a seguir: https://seer.uniacademia.edu.br/index.php/
RHEMA/article/view/2728. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital
do ambiente virtual de aprendizagem.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

A ESPIRITUALIDADE NA VIDA DO SER HUMANO

O primeiro modelo de espiritualidade é o próprio Jesus Cristo. Ninguém viveu


em comunhão tão perfeita com o Pai como Ele. Por isso, a espiritualidade cristã
é e será sempre o caminho de seguimento de Jesus Cristo. Uma vida espiritual é
uma vida de discipulado.
Jesus de Nazaré, o Filho de Deus feito homem, é o primeiro a viver a intimi-
dade com o Pai, seja por natureza, seja por sua atuação histórica. A comunhão
no seio da Trindade é a marca do seu ser e do seu existir. Daí brota a sua atitude
de amor ao próximo até a doação da própria vida na cruz, pois, ao fazê-lo, torna
visível o próprio ser de Deus que é amor.
Por isso, quando dizemos que ele é o modelo de
espiritualidade, não estamos dizendo apenas no sen- Jesus é aquele
tido exemplar. Sendo o Filho de Deus feito homem, que permite ao ser
Jesus é aquele que permite ao ser humano o acesso humano o acesso ao
Pai
ao Pai e, por consequência, a uma existência nova,

1
1
1
U N I C ES U M A R

que seja reflexo da natureza amorosa divina. Como testemunham os textos da


Escritura Sagrada, foi ele mesmo quem disse: “eu sou o Caminho, a Verdade e a
Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14,6).
Porém, embora a decisão por viver uma vida espiritual seja pessoal, a partir
da adesão a Cristo no Espírito, sua realização é sempre comunitária. A comunhão
com Deus nos coloca em comunhão com a humanidade. Deus é Pai de todos e
de todas e, portanto, deseja que vivamos como irmãos e irmãs. A Igreja de Cristo
é entendida como a família dos filhos e filhas de Deus. Sua missão é anunciar e
tornar presente o Evangelho de Cristo não apenas pela pregação, mas também
pelo testemunho e pela vida fraterna. Assim, se nos ativermos ao sentido mais
específico da espiritualidade cristã, ser uma pessoa espiritual significa engajar-se
na comunidade dos crentes e fazer dela um sinal profético para o mundo, por
meio de relações marcadas pela fraternidade. Uma Igreja unida pode ser um sinal
profético para o mundo dividido em contínua discórdia.
Sobre a dimensão comunitária da espiritualidade, é preciso acrescentar ainda
que esta não se esgota no aspecto funcional. Na verdade, ela é essencial para a
espiritualidade, porque a comunidade cristã é o próprio Corpo de Cristo presente
no mundo (1Cor 12,27). É o corpo quem visibiliza o mistério que é a pessoa. Des-
sa forma, quando o apóstolo Paulo diz que a Igreja é o Corpo de Cristo, em última
análise está afirmando que é através dela que a Revelação Divina continua a ecoar
na história e é através da Igreja que o Cristo Ressuscitado prossegue unindo as
pessoas a Deus. Por isso que só há espiritualidade cristã autêntica quando esta
leva ao encontro com Cristo na comunidade de fé, em comunhão com outros
irmãos e irmãs que buscam o mesmo mergulho no mistério da Transcendência
Divina. “A autêntica experiência espiritual é a que manifesta comunhão e não
divisão; é a que supera o isolamento e tende para a koinonia” (GOFFI; SECON-
DINI, 1992, p. 5).

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

Koinonia é uma palavra grega que significa comunhão. Aplicada ao contexto cris-
tão, significa a comunhão dos cristãos em Cristo.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

A DIVERSIDADE DE CAMINHOS ESPIRITUAIS

A partir dessa lógica de uma vida espiritual vivida de modo comunitário, foram
surgindo, na Igreja cristã, ao longo dos tempos, caminhos espirituais diversos
que, por diferentes métodos, favoreceram e favorecem os cristãos e cristãs a tri-
lharem o caminho do seguimento de Jesus Cristo e, portanto, da comunhão com
Deus e com sua criação. Essa diversidade não é um problema, mas uma riqueza.
É nesse sentido que se pode falar em espiritualidades, no plural. Cada pes-
soa cristã pode se identificar com uma delas e se utilizar da mesma no seu ca-
minho de crescimento e de conformação da própria vida à vida de Cristo. Além
disso, essas diferentes escolas de espiritualidade surgem a partir de necessida-
des históricas e culturais.
O importante é que a diversidade de caminhos espirituais aponte sempre para
a unidade cristã, pois a vida espiritual é, em última análise, a vida no Espírito,
o mesmo Espírito Santo que animou a vida de Jesus de Nazaré e que no seio da
Trindade, é o vínculo de amor entre Pai e Filho. Assim, não se pode esquecer que
o coração de toda espiritualidade autêntica é o amor (CATÃO, 2009).


Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo (1Cor 12,4).

Desejamos apresentar a você alguns caminhos espirituais que se desenvol-


veram ao longo de toda a história da Igreja cristã. É impossível abordar todos
esses caminhos, tendo em vista a imensa riqueza compreendida pela história
do cristianismo. Daremos destaque a apenas alguns que foram marcantes nas
diversas épocas do Cristianismo e que, de alguma forma, continuam impactan-
do e influenciando a vida espiritual nas diversas confissões cristãs até os tempos
atuais. A partir desses exemplos, você terá condições de prosseguir a sua própria
pesquisa.

A fuga do mundo

As diversas escolas espirituais têm origem, de um modo geral, em situações histó-


ricas que suscitam novos desafios à fé cristã, que deve corresponder ao chamado
de cada época, para que a mensagem evangélica permaneça credível e compreen-
sível. Do ponto de vista da Teologia Espiritual, afirma-se que é o Espírito Santo,

1
1
1
U N I C ES U M A R

“alma” da Igreja, quem suscita, em cada época, novas formas de vivência do ca-
minho de seguimento de Jesus Cristo.

É o Espírito Santo, «alma» da Igreja, quem suscita, em cada época, novas formas de
vivência do caminho de seguimento de Jesus Cristo.

Partindo dessa perspectiva, podemos compreender o surgimento de um pe-


culiar caminho de seguimento de Jesus no seio da Igreja. Estamos falando do
monaquismo (do grego, monachos, que significa solitário / aquele que vive só)
ou monasticismo. Os primeiros registros históricos desse movimento cristão
remetem ao final do século III. A sua explosão, porém, dá-se ao longo do século
IV. A vida monástica, embora tenha desempenhado papel não só religioso, mas
também social, ao longo da Idade Média, conserva a sua vitalidade e poder de
atração no século XXI, conforme veremos adiante.

Figura 1 - Mosteiro beneditino

Descrição da Imagem: a imagem apresenta uma visão panorâmica interna de um mosteiro beneditino. Cercado
pela construção, ao centro, jardim interno. Ao fundo, vista panorâmica de parte da cidade e montanhas sob céu
azul. Fim da descrição.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

Ao falarmos das origens da vida monástica cristã, não podemos deixar de citar
a figura de Antão (ou Antônio Abade) que, segundo o teólogo presbiteriano
Ronaldo Cavalcante, “é considerado o pai dos eremitas” (CAVALCANTE, 2007,
p. 234). Este iniciou no Egito, no final do século III, um movimento de monges
anacoretas que floresceu e influenciou toda a vida monástica posterior.

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

Eremitas ou anacoretas (do grego anakhoretés, que significa “o que vive retirado”).

Além da vida monástica anacoreta, formou-se também, desde as suas origens,


a modalidade cenobita. Essa palavra diz respeito ao estilo de vida monástica
organizado em torno de comunidades estáveis de monges (koinós: comunhão;
bios: vida). Embora esse estilo de espiritualidade também remonte à passagem
do século III para o século IV, a grande figura que acabou passando para a his-
tória como uma das referências monásticas mais importantes foi a de Bento de
Núrsia (480-547). Isso aconteceu, porque ele foi o grande organizador da vida
monástica no Ocidente cristão e escreveu a regra de vida que passou a ser seguida
pela maioria dos mosteiros. Não se pode compreender a Europa medieval e a
história do Ocidente sem se referir aos mosteiros beneditinos.
Podemos nos perguntar: Por que esse estilo de vida cristão se tornou tão di-
fundido a partir do século IV? A resposta é que o monaquismo se constituiu no
verdadeiro sucessor da espiritualidade do martírio, que predominou na Igreja
nos três séculos em que esta era perseguida pelos poderes políticos e religiosos
(CATÃO, 2009). Com a liberdade religiosa concedida pelo imperador Constan-
tino (313) e, posteriormente, a oficialização do cristianismo como religião do Im-
pério Romano por Teodósio (384), a vida espiritual conheceu evidente declínio
e muitos passaram a ser batizados sem que isso fosse acompanhado com a busca
da conversão. A vida monástica passou a ser vista como uma forma de opção
radical por Cristo dentro da nova realidade da Igreja. Tratava-se, portanto, “não
mais de uma conversão do paganismo ao cristianismo, mas sim da conversão do

1
1
1
U N I C ES U M A R

cristianismo de todos, o mais superficial, ao mais autêntico” (CAVALCANTE,


2007, p. 247), ou seja, a um cristianismo que buscava suas raizes evangélicas.
Dentre as características da vida monástica, como certamente já foi possí-
vel perceber, está a busca intensa da oração como caminho para a comunhão
com Deus. Para isso, favorecem a solidão e o silêncio. Mesmo os monges, que
vivem em comunidades, dedicam várias horas do dia a essas práticas. Trata-se,
porém, de uma oração profundamente alimentada pela meditação das Sagradas
Escrituras (Bíblia). Não à toa, os monges legaram aos cristãos e cristãs de todos
os tempos o método da leitura orante da Bíblia (lectio divina, na consagrada
expressão latina) por meio da qual a Escritura é lida não como quem estuda um
livro qualquer, mas orada, meditada, “ruminada”, até que se torne parte da vida
daquele que realiza esse exercício espiritual.
É importante destacar a leitura da Bíblia, um método já conhecido desde o
século III e sistematicamente elaborado por Guigo, o Cartuxo, no século XII.
Esse método consiste em quatro passos:

1. LEITURA:

procura-se ler pausadamente um trecho da Sagrada Escritura, repetindo quantas vezes


necessárias, detendo-se em seus detalhes.

2. MEDITAÇÃO:

procura-se mergulhar no texto buscando a mensagem do mesmo para a própria vida.

3. ORAÇÃO:

dirigem-se, livremente, palavras a Deus, a partir da inspiração provocada pelo texto.

4. CONTEMPLAÇÃO:

ponto alto da Leitura, atingida por aqueles que se encontram mais treinados no método,
trata-se de um demorar-se silenciosamente na presença de Deus, experimentando a
sua ação amorosa.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

Normalmente, inicia-se a leitura orante com uma invocação ao Espírito Santo e


conclui-se com uma oração de agradecimento.
Outra característica da espiritualidade monástica, porém, diretamente ligada
à primeira, é a ideia de ir ao deserto. Se nos primórdios tratava-se de algo literal,
atualmente pode ser visto menos como um lugar físico do que simbólico, um
espaço de silêncio e privação que permite o encontro com Deus e a purificação
interior. O deserto remete ao Êxodo, o evento narrado no Antigo Testamento
em que o povo hebreu foi conduzido por Deus da
escravidão do Egito para a liberdade da Terra Pro- O deserto remete
metida, tendo como hiato entre esses dois momentos ao Êxodo, o evento
os longos 40 anos de caminhada sob a liderança de narrado no Antigo
Moisés. Para a espiritualidade monástica, o Êxodo é Testamento
a imagem da vida cristã: “o Egito é figura da escra-
vidão do pecado; o deserto corresponde ao itinerário espiritual da conversão; a
terra prometida tem como equivalente o estar em Cristo no tempo presente e no
mundo que virá” (CAVALCANTE, 2007, p. 227).
O deserto representa a ambiguidade da vida cristã. Por um lado, é o lugar
onde é possível silenciar para que Deus possa falar ao coração e educar a pessoa
no seu itinerário espiritual. Por outro, é o lugar da tentação demoníaca. Aqui
se faz referência a outra passagem escriturística: a tentação de Jesus no deserto,
relatado em Mt 4,1-11 e textos paralelos. Colocando-se no deserto, o monge
enfrenta a tentação e a vence por meio das práticas ascéticas, tal como o jejum.
Falando ainda das características da espiritualidade monástica, não se pode
deixar de falar do trabalho metódico e disciplinado. Não é, porém, um trabalho
que visa à acumulação ou ao enriquecimento. Trata-se de trabalho para suprir
as próprias necessidades e para prover as iniciativas de caridade.
Pensando na vida monástica atualmente, engana-se quem pensa que se trata de
uma proposta para poucos. Em torno dos mosteiros, ao lado daqueles que vivem o
estilo de vida na sua radicalidade, existe uma gama bem maior de pessoas que cir-
cula, seja para participar das orações conduzidas pelos monges, como também dos
retiros por eles orientados e dos grupos de pessoas que cultivam a espiritualidade
monástica sem necessariamente morar em um mosteiro. Além disso, em tempos
em que a agitação e o estresse têm desgastado tantas pessoas, uma ampla literatura
de inspiração monástica têm sido divulgada, levando o estilo de vida dos monges,
no seu equilíbrio entre oração e trabalho, para um público bem mais amplo.

1
1
1
U N I C ES U M A R

IN D ICAÇ ÃO DE LI V RO

Anselm Grün é um dos monges mais conhecidos e lidos da


atualidade. Neste livro, ele apresenta a relação dos monges
com o tempo, propondo uma "administração espiritual" dele.
Com isso, foge das propostas correntes de uma administra-
ção produtivista do cotidiano, onde se procura sugar do tempo
tudo aquilo que ele é capaz de produzir, impedindo a sua frui-
ção e sua contemplação.

Engana-se também quem pensa em espiritualidade monástica como exclusivi-


dade da Igreja Católica. A vida monástica é florescente na Igreja Ortodoxa e há
inúmeras comunidades anglicanas, luteranas, bem como ligadas a outras deno-
minações. A experiência mais famosa existente na atualidade é a de Taizé, na
França, fundada em 1940 pelo pastor evangélico Roger Schutz e que acabou por
se transformar em um espaço de diálogo entre cristãos de diversas denominações
por meio da oração e da vida em comum.

Figura 2 – Mosteiro de Taizé


Fonte: https://l1nq.com/xM1i8. Acesso em: 14 set. 2023.

Descrição da Imagem: a imagem apresenta a parte interna do mosteiro ecumênico de Taizé, na França. Ao centro,
monges com túnica branca caminhando para os seus locais de oração, ladeados por pessoas que assistem ao
serviço religioso. Ao fundo, o presbitério iluminado e enfeitado com bandeiras da cor laranja.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

A POBREZA COMO IDEAL

A segunda escola de espiritualidade que desejo apresentar é aquela fundada na


Baixa Idade Média por um jovem chamado Francisco de Assis (1181-1226). Es-
tamos no contexto do auge do poder da Igreja hierárquica, em que a ligação do
papado de Roma com o poder civil se faz sentir por toda a Cristandade.
Nesse contexto, floresce um novo tipo de vida religiosa. Da espiritualidade
monástica, conserva-se a disciplina de oração e a vida comunitária própria do
monaquismo cenobita. Porém, introduz-se a novidade da superação da “fuga do
mundo”. É no seio mesmo deste mundo, com suas contradições, belezas e desa-
fios, que Francisco procura viver na radicalidade o ideal evangélico, tendo como
proposta de vida a pobreza evangélica e a total confiança na Providência de Deus.
Francesco Bernardone nasceu em uma família rica, dedicada ao comércio,
em uma Europa que via surgir os primeiros sinais da vida urbana e mercantil
que futuramente daria origem ao modo capitalista de produção. A distância entre
ricos e pobres era abissal e a estrutura religiosa atuava mais na conservação do
que no questionamento dessa ordem social. Foi nesse contexto que o jovem de
Assis, nascido na parte privilegiada da sociedade, conheceu o sofrimento, pri-
meiro como prisioneiro de guerra, depois como portador de uma terrível doença.
Pouco a pouco fora se criando o quadro que permitiria ao futuro “pobrezinho
de Assis” dar uma guinada em sua vida.
A partir desses eventos, Francisco fora progressivamente se desapegando dos
bens e se apegando a Cristo. Das experiências místicas, ia nascendo um amor
crescente pelos pobres, ao ponto de querer ser um deles. Na degradada igreja de
São Damião, na periferia de Assis, ouve a voz que mudaria o rumo de sua vida:
“Francisco, não vês que minha casa está ameaçando ruir? Corre e trata de repa-
rá-la” (LARRAÑAGA, 2007, p. 59-60).
Interpretando aquela locução como um chamado de Cristo para recuperar as
estruturas da velha capela, Francisco realiza uma venda de tecidos do comércio
do pai a fim de reverter o lucro para a restauração do templo. Furioso, Pietro
Bernardone exige a devolução de seus bens. Diante do bispo e da cidade reunida
na praça, Francisco se despoja de tudo o que possuía - inclusive das roupas - par-
tindo com liberdade interior para a vida que compreendia ser uma resposta ao
chamado que Deus lhe fizera: viver o seguimento de Cristo numa vida de total
identificação com os mais pobres.

1
1
1
U N I C ES U M A R

Imediatamente vai se formando em torno de Francisco uma comunidade de


jovens dispostos a viver o mesmo ideal. Uma comunidade que recebeu a aprova-
ção de Inocêncio III (1198-1216), pontífice que é o ícone maior do poder papal
no período medieval.
Como podemos caracterizar o ideal franciscano que se espalhou como um
rastilho de pólvora, representando uma verdadeira reforma interna da Igreja, em
plena Idade Média, cujos frutos podem ser colhidos até a contemporaneidade?
Em primeiro lugar, uma identificação radical com Cristo. A contemplação do
crucificado na igreja decadente de São Damião nunca deixara de estar na mente
e no coração de Francisco. Um Cristo despojado, que “se fez pobre, embora sendo
rico” (2Cor 2,9) e que, por isso, “não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20).

Tratava-se, não apenas, de uma identificação racional, mas de uma relação que
mobilizava todas as suas energias humanas. Francisco passava horas diárias em
oração contemplativa e os escritos franciscanos relatam suas diversas experiên-
cias místicas. Dentre elas, talvez a mais radical tenha sido a estigmatização: con-
templando profundamente a paixão de Jesus Cristo e, desejando sentir no corpo
a mesma dor de amor que movera o crucificado, Francisco recebeu na própria
pele, milagrosamente, as cinco chagas que feriram a carne de Jesus durante a sua
crucificação. Era o ano de 1224, dois anos antes da sua morte.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

A P RO F UNDA NDO

Estigmas são as marcas das feridas no corpo de Jesus provocadas pelo suplício
da cruz. Ao longo da história, alguns místicos teriam se identificado de tal modo
com o Cristo que chegaram a receber, milagrosamente, em seus corpos, essas
mesmas marcas. Francisco de Assis teria sido o primeiro deles. Independente-
mente da interpretação que se possa a dar a esse fenômeno (científica, filosófica,
teológica), a estigmatização do místico representa a mais alta identificação com
o Cristo, que é um elemento fundamental da busca espiritual do seguimento de
Jesus: “já não sou eu quem vivo, mas é Cristo quem vive em mim” (Gl 2,20).

Da narração feita até o presente momento, fica evidente que outra característica
da espiritualidade franciscana é o desprezo pela riqueza e a total identificação
com os pobres. Essa identificação se dá não só na caridade para com eles, mas na
identificação com uma vida pobre. Tal atitude produz, na pessoa, uma liberdade
interior que o faz desconsiderar aquilo que costuma ser fonte de preocupação
e interesse por parte da maioria das pessoas. Trata-se da atualização do próprio
estilo de vida de Jesus, em uma época em que os líderes religiosos se distinguiam,
em geral, por uma vida de abundância e riqueza.
A liberdade interior provocada pela pobreza voluntária era para Francisco e
seus seguidores fonte daquilo que se chama de perfeita alegria. Nasce, portan-
to, uma espiritualidade que é centrada não em um dolorismo mórbido, mas na
simplicidade que permite a real felicidade. Igualmente é uma espiritualidade da
valorização do mundo criado: a mesma comunhão que Francisco experimen-
tava com os pobres, experimentava também com o conjunto da criação divina.
Chamava a todas as criaturas de suas irmãs e contemplava a presença de Deus
nos elementos da natureza. Não é à toa que os atuais defensores da preservação
ambiental têm em Francisco uma fonte de inspiração.
O poder de atração de um segmento tão radical de Jesus Cristo, sobretudo
vindo de uma época em que o cristianismo se tornara, em seus aspectos exterio-
res, o oposto da vivência pobre e despojada do mestre de Nazaré, cruzou os sécu-
los e chegou até os dias de hoje. Além das ordens religiosas nascidas diretamente
daquele primeiro grupo fundado por Francisco, diversas outras comunidades,

1
1
1
U N I C ES U M A R

não só de consagrados, formaram-se e ainda existem na contemporaneidade. Tal


fenômeno pode ser localizado não só na Igreja Católica, como também na Igreja
Anglicana e na Igreja Luterana.
A influência de Francisco de Assis, porém, não se faz sentir somente no con-
texto religioso. A obra do místico medieval encanta e influencia a literatura, a
arte e até mesmo a pesquisa acadêmica. O renomado jurista Fábio Konder Com-
parato, ao escrever um manual de fôlego dedicado ao estudo da história e dos
fundamentos da Ética Filosófica, coloca Francisco de Assis como um dos grandes
modelos éticos da cultura ocidental: “raramente como em São Francisco de Assis,
o serviço integral à superior dignidade da condição humana aparece de forma
tão estupenda” (COMPARATO, 2006, p. 139).

IN D ICAÇ ÃO DE FI LM E

IRMÃO SOL, IRMÃ LUA


Apesar de antigo, esse filme de Franco Zeffirelli, datado de
1972, permanece uma das mais belas montagens cinemato-
gráficas a respeito da vida do místico de Assis. O filme relata
com delicadeza passagens da vida do "pobrezinho", como ficou
conhecido. Embora não cubra toda a biografia de Francisco, re-
lata algumas das passagens mais significativas da sua trajetó-
ria, culminando no seu encontro com o Papa, no qual recebeu
a aprovação para o seu estilo de vida, tão despojado quanto
questionador.

A RELAÇÃO DIRETA COM DEUS

Embora façamos mais adiante um estudo comparado entre as espiritualidades


apresentadas nessa aula, desde já podemos constatar que os grandes inspiradores
das diferentes escolas de espiritualidade que vão surgindo no cristianismo, são,
de um modo geral, reformadores.
De fato, a Igreja cristã necessita administrar, ao longo da história, uma tensão:
Jesus de Nazaré, considerado pelos cristãos o Filho de Deus encarnado, anunciou
o Reino de Deus e, ao fazê-lo, questionou as rígidas estruturas religiosas do seu

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

tempo, sobretudo aquelas que tinham se desviado do seu intento original. Assim,
a mensagem cristã é, antes de tudo, o evangelho da Graça e da Liberdade, pondo
no centro o ser humano e sua dignidade, verdade esta que está fundamentada
no amor de Deus pela humanidade, anunciado por Jesus com palavras e obras.
Porém, para que essa mesma mensagem perdurasse no tempo, as comunida-
des cristãs herdeiras do legado de Jesus precisaram se institucionalizar, sobre-
tudo à medida que a Igreja ia se expandindo. A questão é que as instituições
tendem a se conservar e até mesmo a se petrificar com o tempo, enquanto a
ação do Espírito Santo é dinâmica e abre novos caminhos a fim de que o Evan-
gelho permaneça sempre uma novidade para cada geração. É a famosa tensão
entre carisma e instituição, tão estudada por numerosos teólogos e pastores.
Se tal fato é verificável em diversos momentos da história, sem dúvida ele se tor-
nou explícito no agitado século XVI, período que dá início à Idade Moderna. É
no início dessa era que ocorre a chamada Reforma Protestante, que tem como
primeiro protagonista a figura do religioso agostiniano Martinho Lutero (1483-
1546). “Lutero era, em primeiro lugar, um místico” (MATTOS, 1997, p. 28). Toda
a revolução religiosa, política e social que se realiza no coração da Europa a partir
da publicação das suas famosas 95 teses contra as indulgências, se dá a partir dos
movimentos internos de sua alma angustiada. Por mais que praticasse exercícios
de piedade, conforme os costumes da época, o religioso não conseguia tranqui-
lizar a sua consciência diante da sua condição pecadora e temia constantemente
por sua salvação. A grande pergunta que movia a busca espiritual de Lutero era a
seguinte: como posso encontrar um Deus misericordioso? Tudo isso teve solução
quando ele fez uma profunda experiência mística ao meditar Rm 1,17: "o justo
viverá da fé" (Rm 1,17).

VOCÊ SABE RESPONDER?


A grande pergunta que movia a busca espiritual de Lutero era a seguinte: como
posso encontrar um Deus misericordioso?

1
1
1
U N I C ES U M A R

Com isso, Lutero conclui que nenhum esforço humano é capaz de alcançar a
salvação: a salvação provém somente pela Graça de Deus. Essa graça atua
somente pela fé, dispensando as mediações humanas para o alcance do Divi-
no. A partir daí, questiona as diversas instâncias de mediação estabelecidas pela
Igreja de sua época para a relação do ser humano com Deus. Volta-se, como já
dito anteriormente, contra as indulgências, doutrina católica que era bastante
explorada a fim de levantar recursos, dentre outras coisas, para a reconstrução
da Basílica de São Pedro, em Roma.
A experiência da Graça se dá única e exclusivamente mediante às Sagra-
das Escrituras. Essas se tornam a única fonte da Revelação Divina. Com isso,
meditar a Palavra de Deus presente nas Escrituras converte-se no coração da
espiritualidade luterana. É por meio delas que se têm acesso ao Cristo, sem a
mediação institucional eclesial, muito menos da Virgem Maria e dos Santos, tão
valorizados na piedade popular católica.

A P RO F UNDA NDO

INDULGÊNCIAS
Segundo a teologia católica, o pecado cometido gera no pecador um vício, um
maior apego às realidades criadas, que mesmo depois de perdoado o pecado,
exige um processo de purificação. É a chamada “pena temporal” do pecado. Esse
processo de purificação pode se dar pelo exercício da virtude e da caridade, por
exemplo. Indulgências são exercícios que a Igreja Católica oferece ao fiel que, ao
fazê-lo, lhe permitem essa purificação. A Igreja de Roma entende ter autoridade
para prescrever as indulgências pela promessa feita por Jesus de que a Igreja teria
poder para “ligar e desligar” (Mt 16,19) e pelo fato de ser o corpo de cuja Cabeça é
Cristo (1Cor 12,12-30).

Com a reforma luterana, revaloriza-se a Sagrada Escritura no culto dominical e


mesmo semanal. Ganha força e espaço a pregação, sendo esta o instrumento para
que a Palavra de Deus possa se tornar viva e eficaz para a comunidade que a ouve.
Também “nas famílias torna-se prática cotidiana o culto doméstico, constituído

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

pela leitura da Bíblia e pela oração. Mesmo os livros devocionais são, em geral,
coleções de textos bíblicos com breves explicações e preces referentes à leitura
feita” (GOFFY; SECONDIN, 1992, p. 107).
A ênfase no acesso direto do fiel à Sagrada Escritura favorece e estimula a
tradução da Bíblia para os diversos idiomas locais e estimula também a formação
de escolas para realizar o letramento da população. Outro aspecto da espiritua-
lidade luterana que teve grande impacto social foi a nova ênfase na liberdade do
indivíduo a partir do Evangelho. “Ela foi a matriz dos direitos humanos cons-
truídos sobre o fundamento da autonomia de cada indivíduo” (COMPARATO,
2006, p. 170).
Apesar da ênfase na salvação pela fé, ressaltando que as obras em nada po-
dem concorrer para a salvação humana, alguns autores ressaltam que tal fato
não significa que as boas obras estejam ausentes da espiritualidade evangélica. A
questão que se enfatiza é que a vida ética não é condição para receber a salvação,
mas sua consequência, pois o cristão, grato pela salvação recebida, pratica os
mandamentos e vive a caridade de Cristo.
Um aspecto contemporâneo da espiritualidade luterana torna possível res-
gatar a intuição mais genuína de Martinho Lutero. Desde que se fomentou, no
século XX, o chamado Movimento Ecumênico, com o objetivo de curar as
feridas das divisões entre os cristãos, aproximando-os e promovendo entre esses
a unidade, luteranos têm se engajado crescentemente neste movimento. Com
isso, atualiza-se a convicção de que o objetivo de Martinho Lutero “era reformar,
não dividir a Igreja” (PONTIFÍCIO, 2015, p. 22). Reforma constante e busca
da unidade cristã, convicções de Lutero, tornam-se elementos primordiais na
vida espiritual dos cristãos de todas as confissões e denominações nessa primeira
metade do século XXI.

1
1
1
U N I C ES U M A R

Figura 3 – Estátua de Martinho Lutero, em Dresden, Alemanha

Descrição da Imagem: estátua de Martinho Lutero sobre um pedestal onde está escrito o seu nome, olhando
para o alto e com a Bíblia nas mãos. Ao fundo, parte da Igreja Luterana de Dresden, na Alemanha, sob o céu
completamente azul.

O discernimento da ação de Deus no cotidiano

Ao mesmo tempo em que os albores da modernidade suscitavam o gênio espiri-


tual de Martinho Lutero, que dera início à Reforma Protestante, do lado da Igreja
que permanecera unida à Roma também pululavam correntes de espiritualidade
reformadoras. Dentre elas podemos citar a que foi iniciada por um ex-comba-
tente espanhol que, ferido, faz o seu encontro com Cristo e cria um verdadeiro
exército de evangelizadores. Estamos falando de Inácio de Loyola (1491-1556)
e da Companhia de Jesus (Jesuítas). Estudar a espiritualidade inaciana torna-se
relevante do ponto de vista histórico, tendo em vista que o papado romano fora
ocupado a partir de 2013, pela primeira vez, por um membro das fileiras do
exército de Inácio: Jorge Mario Bergoglio, o argentino que assumiu a liderança
da Igreja Católica com o nome de Francisco, aliando assim a pobreza da espi-
ritualidade anteriormente estudada por nós com as características da mística
inaciana que veremos a seguir.
Como ocorre na vida de tantos mestres espirituais, Inácio de Loyola experi-
mentou sua conversão à fé cristã a partir de um momento de provações pessoais.
Ao completar 30 anos, ele foi ferido em uma batalha e durante o período de re-

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

cuperação dedicou-se à leitura de obras religiosas. Com isso, fez uma profunda
revisão da sua vida pregressa e sentiu um forte desejo de entregar-se a Jesus Cristo.
Consolado por essa experiência, resolve peregrinar em Jerusalém, onde passa um
bom tempo. Retornando a Europa, completa seus estudos na Universidade de Pa-
ris e, em 1534, reúne um grupo de companheiros com o objetivo de colocarem-se
a serviço da evangelização. Com a aprovação por parte da Igreja romana da nova
experiência religiosa, surge em 1540 a famosa Companhia de Jesus (jesuítas),
ordem missionária que se multiplicou, tornando-se um dos fatores decisivos para
a expansão da fé cristã nas terras distantes recém-descobertas pelos europeus.
Por ter dado início a uma obra missionária, a espiritualidade inaciana é mar-
cada pela chamada contemplação na ação. Uma das principais características
dessa mística é o discernimento dos espíritos, ou seja, o desenvolvimento da
capacidade de perceber a ação de Deus no cotidiano. O simpatizante desse modelo
espiritual entende que Deus está agindo o tempo todo, na vida, na história, nos
acontecimentos, e procura captar essa ação a fim de buscar tomar suas decisões
sempre pautado pela vontade de Deus. Para isso, lança mão de alguns recursos, tais
como a oração pessoal, o exame particular diário, pelo qual o cristão procura estar
atento aos sinais da presença de Deus no seu dia, bem como a prática do acom-
panhamento espiritual, por meio da qual a pessoa compartilha a sua vivência
espiritual com alguém mais experiente que o ajuda no processo de discernimento.
Um recurso fundamental dentro da mistica inaciana são os chamados exer-
cícios espirituais, um método de retiro feito de oração, meditação da vida de
Cristo e de silêncio, com o objetivo de levar o exercitante a confrontar a sua vida
com a vida de Cristo e assim conhecer-se melhor e conhecer o chamado de Deus
na própria vida. Os exercícios espirituais podem ser feitos em formato de retiro
fechado de oito ou trinta dias, adaptados para períodos menores, ou mesmo
realizados no cotidiano, em pequenas pausas diárias, para aqueles que não tem
a possibilidade de fazer a experiência de isolamento total. Em todo o mundo,
existem casas que oferecem os exercícios espirituais a quem desejar, bem como
grupos de cristãos e cristãs de diversas modalidades que se reúnem seguindo o
método inaciano de espiritualidade.
Como se pode perceber, o método espiritual inaciano possui em comum com
a proposta de Martinho Lutero um elemento bastante apreciado pela moderni-
dade: o respeito pela autonomia do indivíduo, que pode ter o seu contato direto
com Deus, sendo treinado para perceber as suas “moções” na própria vida. Outro

1
1
1
U N I C ES U M A R

aspecto a se ressaltar é que Inácio tinha grande preocupação com a adaptação dos
exercícios espirituais à realidade de cada pessoa. Para ele, Deus age na realidade
concreta e a adesão ao caminho de Jesus Cristo vai crescendo ao longo da vida. O
que se propõe é um processo progressivo de amadurecimento na vida cristã, que
nada mais é do que um processo de crescimento rumo à verdadeira liberdade.
Com isso, superam-se os extremos na vida cristã: “tanto a vertente rigorista
que defende uma submissão infantil diante da norma teórica ou de um pronuncia-
mento da autoridade, quanto a vertente laxista que erige o indivíduo como único
critério de seu agir” (MIRANDA, 2017, p. 183). A cada momento a pessoa é ins-
tada a discernir qual é o passo a mais que é possível dar no seu caminho espiritual,
sempre acompanhada por Deus que é misericórdia infinita e que sabe e conhece a
vida concreta da pessoa. Assim, a espiritualidade inaciana é um caminho, ou seja,
um processo que só se encerra com a morte.
Antes de encerrar, porém, é preciso lembrar que esse caminho de cres-
cimento espiritual pelo discernimento da vida à luz da experiência de Jesus
Cristo, por mais que seja pessoal, é sempre feito no
seio da comunidade de fé. O cristão é chamado a O cristão é
chamado a discernir
discernir também o seu papel enquanto missioná-
também o seu
rio, ou seja, enquanto propagador da experiência
papel enquanto
pessoal e transformadora de Jesus Cristo que ele missionário
mesmo foi levado a fazer.

O COMUM E O PARTICULAR

Certamente seria enorme pretensão analisar todas as correntes de espiritualidade


nascidas em vinte séculos de cristianismo, sobretudo, considerando a diversi-
dade de confissões e denominações cristãs. O Espírito Santo, na diversidade de
tempos, lugares e culturas, despertou inúmeros carismas que deram frutos a seu
tempo. A apresentação feita nesse tema de aprendizagem possui apenas caráter
exemplar. Você, a partir do que está sendo estudado nessa jornada, poderá ficar
mais atento às espiritualidades presentes nos espaços eclesiais por onde você cir-
cula, procurando discernir os traços desses caminhos espirituais que favorecem
a comunhão com Deus, no seguimento de Jesus Cristo.

1
1
1
T E MA DE A PRE ND IZAGEM 7

De qualquer forma, as diversas correntes de espiritualidade, embora dando


ênfase a um ou outro aspecto, devem apresentar algumas constantes que as co-
loquem na fidelidade a sua fonte, que é a ação do Espírito Santo que atualiza a
presença de Jesus Cristo na história. Tentemos identificá-las.
Em primeiro lugar, a vida espiritual é a busca de comunhão com Deus que se
faz por meio de Jesus Cristo. A espiritualidade cristã não é um simples apazigua-
mento interior ou a comunhão com um cosmos impessoal. É uma relação entre
pessoas: a pessoa humana e a pessoa humano-divina do Filho que, no Espírito,
nos coloca em comunhão com o Pai, meta última da vida cristã. Por isso, a oração,
mental ou vocal, mas cheia de afeto e intimidade, feita ao Pai, por meio de Jesus,
aparece em todas as correntes estudadas. Para isso, favorece o silêncio, artigo
tão raro atualmente. Vemos isso presente na retirada do mundo por parte dos
monges, no recolhimento próprio de Francisco de Assis, na sede da misericórdia
de Deus identificada em Lutero ou nos exercícios espirituais de Inácio de Loyola.
Além disso, nos caminhos que nós exploramos, vemos uma comum busca
de Deus nas Sagradas Escrituras, por meio das quais é possível ouvir o próprio
Cristo. É possível ver esse princípio radicalizado no sola scriptura de Lutero, mas
não está ausente das outras correntes, como testemunha, por exemplo, o método
da lectio divina (leitura orante da Bíblia) tão caro aos monges e hoje redescoberto
por tantos cristãos.
A comunhão com Deus em Jesus Cristo não passa apenas pelo encontro com
o Ressuscitado glorioso, mas reconhece que este traz em si as marcas da paixão.
Assim, a meditação do Mistério da Encarnação e da vida pública de Jesus leva a
uma especial solidariedade para com os pobres e à assunção de uma vida pobre e
simples, desapegada dos bens para apegar-se ao Senhor dos bens, que é o próprio
Criador. Se em Francisco de Assis vemos esse traço da espiritualidade cristã leva-
do à radicalidade, ele não está ausente das demais escolas espirituais autênticas.
Com isso, questiona-se frontalmente o estilo consumista da sociedade atual, aler-
tando para o perigo das espiritualidades que são elaboradas para justificar esse
estilo de vida, em evidente contradição com o jeito de viver de Jesus de Nazaré.
Por fim, mas sem querer esgotar os traços comuns da espiritualidade cristã al-
cançados por meio desse ensaio de espiritualidade comparada, não podemos dei-
xar de ponderar que a vida comunitária é um aspecto irrenunciável do caminho
cristão. Não existe espiritualidade sem vida fraterna com outros irmãos e irmãs
que trilham o mesmo caminho de seguimento de Jesus. Tal aspecto questiona

1
1
1
U N I C ES U M A R

frontalmente o individualismo da sociedade atual, de cuja tentação o seguidor


de Jesus não está imune.
Assim, se cada corrente espiritual enfatiza um ou outro aspecto da espiri-
tualidade cristã, certamente é para ajudar o conjunto da Igreja a manter-se na
trilha do Mestre de Nazaré, provocando-a para que não negligencie elementos
inegociáveis da vida cristã.

P E N SA N DO J UNTO S

Que características não podem faltar numa espiritualidade específica para que ela
seja considerada autenticamente cristã?

E M FO CO

Preparamos um vídeo para você compreender melhor como construir o sucesso


no dia a dia. Acesse o material e fique por dentro desse tema importante que con-
tribuirá para o seu desenvolvimento. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo
digital do ambiente virtual de aprendizagem.

NOVOS DESAFIOS
Um dos papéis do teológo pode ser o de um orientador espiritual, ou seja, o de
acompanhar pessoas de fé cristã no seu caminho de crescimento na vida espiri-
tual, o que comporta a ajuda para o discernimento do chamado divino em suas
vidas. Conhecer a diversidade de caminhos espirituais suscitados pelo Espírito
Santo na vida e na história da Igreja cristã pode ajudar o acompanhador espiritual
a apoiar os seus orientandos na identificação dos caminhos que lhes permitam
corresponder melhor ao chamado à santidade de vida. Que tal continuar pes-
quisando os caminhos espirituais que se desenvolveram nas diferentes Igrejas?

1
1
1
VAMOS PRATICAR

1. Sabemos que a pedagogia monástica desenvolvida no Ocidente procura alternar equili-


bradamente oração e trabalho (ora et labora). Segundo o monge beneditino Anselm Grún,
“tempo não é dinheiro, mas, mesmo assim, é algo precioso e valioso. É o lugar onde o
céu se abre acima de nós, em que o próprio Deus vem ao nosso encontro e nos isenta do
tempo” (GRUN, 2007, s.p.).

Fonte: GRUN, A. No ritmo dos monges: convivência com o tempo, um bem valioso. São
Paulo: Paulinas, 2007.

A partir disso, percebemos que a sabedoria monástica propõe uma “administração espiritual
do tempo”. Isso significa que:

a) Devemos aprender técnicas para produzir mais em menos tempo, a fim de otimizar o
seu uso, por se tratar de um bem escasso.
b) Devemos fazer pausas durante a nossa rotina de trabalho e afazeres, para que o silêncio,
a meditação e a oração possam dar qualidade espiritual ao uso do tempo.
c) Precisamos encontrar tempo em meio aos afazeres para cumprir com as obrigações
religiosas.
d) Devemos viver o tempo sem preocupações, deixando que ele flua sem qualquer tipo
de pretensões.
e) Precisamos trabalhar exaustivamente durante o tempo da vida produtiva a fim de gozar
de uma aposentadoria confortável.

2. “O elemento distintivo do monaquismo é a separação do mundo para a busca da união com


Deus numa vida de oração e práticas ascéticas” (GOFFI; SECONDIN, 1992, s.p.).

Fonte: GOFFI, T.; SECONDIN, B. Problemas e perspectivas de espiritualidade. São Paulo:


Loyola, 1992. p. 72.

Diante do texto acima e tendo em vista tudo o que foi estudado até o momento, avalie as
seguintes afirmativas:

I - O monaquismo se desenvolve na Igreja quando o martírio se torna mais raro com o fim
das perseguições ao cristianismo.
II - O monaquismo surge como um contraponto ao enfraquecimento da vida espiritual a
partir da virada constantiniana.
III - Antes do desenvolvimento do monaquismo, a busca de uma intensa comunhão com
Deus não era uma preocupação dos cristãos.

1
1
1
VAMOS PRATICAR

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) III, apenas.
c) I e II, apenas.
d) II e III, apenas.
e) I, II e III.

3. Quem não tem nada e nem quer ter, vai preocupar-se com o quê? O Irmão não tinha roupa,
comida, nem teto. Não tinha pai, mãe, irmãos. Não tinha prestígio, estima dos concidadãos,
amigos, vizinhança.

Francisco de Assis havia abraçado a “Senhora Pobreza”, como ele mesmo chamava. O ob-
jetivo dessa atitude era:

a) Desprezar o corpo, visto como ocasião de tentação.


b) Fazer exercícios de mortificação para pagar os próprios pecados.
c) Experimentar a verdadeira liberdade para amar a Deus e aos pobres.
d) Afrontar o seu pai.
e) Rebelar-se contra a Igreja hierárquica.

1
1
1
REFERÊNCIAS

BÍBLIA de Jerusalém. Nova ed. rev. e ampl. 11. imp. São Paulo: Paulus, 2016.

CATÃO, F. Espiritualidade cristã. São Paulo/Valencia: Paulinas/Siquem, 2009.

CAVALCANTE, R. Espiritualidade cristã na história: das origens até Santo Agostinho. São Paulo:
Paulinas, 2007.

COMPARATO, F. Ética: direito, moral e religião no mundo contemporâneo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006.

GOFFI, T.; SECONDIN, B. Problemas e perspectivas de espiritualidade. São Paulo: Loyola, 1992.

LARRAÑAGA, I. O Irmão de Assis. São Paulo: Paulinas, 2007.

MATTOS, H. C. J. História da Igreja: volume 2. 5.ed. Belo Horizonte: O Lutador, 1997.

MIRANDA, M. F. A Reforma de Francisco: fundamentos teológicos. São Paulo: Paulinas, 2017.

PONTIFÍCIO Conselho Para a Promoção da Unidade dos Cristãos e Federação Luterana Mun-
dial. Do conflito à comunhão: comemoração conjunta católico-luterana da Reforma em 2017.
Brasília: Edições CNBB/Editora Sinodal. 2015.

1
1
1
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção B.

As pausas diárias realizadas pelos monges em meio à rotina de trabalho permitem a emergên-
cia da presença de Deus no cotidiano. As respostas A, C e E falam de uma vivência utilitária e
funcionalista do tempo. A resposta D trata o tempo de maneira displicente, desconsiderando
tratar-se de um bem valioso.

2. Opção C.

Não é correto afirmar que a busca da comunhão com Deus estivesse ausente antes do mo-
naquismo. Essa é uma característica de todas as correntes espirituais autênticas, inclusive
da espiritualidade do martírio.

3. Opção C.

Abraçar a pobreza significa não depender de mais nada para viver do que do amor de Deus,
abrindo espaço na vida para amar aqueles a quem ninguém ama.

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
MEU ESPAÇO

1
1
1
UNIDADE 5
TEMA DE APRENDIZAGEM 8

ESPIRITUALIDADE, ARTE E
CULTURA

MINHAS METAS
Reconhecer a cultura como traço característico da experiência humana.

Identificar a arte como uma das expressões privilegiadas da experiência cultural humana.

Perceber como a espiritualidade, enquanto experiência humana, só pode se expressar


mediada pela cultura e pela arte.

Compreender como a cultura e a arte se ligam de maneira intrínseca à espiritualidade, por


serem formas de colaborar com a ação criadora divina mediante o trabalho.

Conhecer a dinâmica de interação entre a linguagem simbólica, a cultura, a arte e a espiritualidade.

Visitar alguns exemplos de interação entre arte e espiritualidade ao longo da história da vida cristã.

Desenvolver a capacidade de aprofundar o conhecimento do patrimônio artístico e cul-


tural colocado a serviço do desenvolvimento da espiritualidade cristã.

1
1
1
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Todos nós apreciamos um bom livro, um filme instigante, uma música relaxante.
Normalmente, nós utilizamos esses recursos para aliviar o estresse do cotidiano e
nos desviarmos um pouco do cansaço provocado pelo trabalho ou pelos estudos.
No entanto, com alguma frequência, nós identificamos essas atividades somente
como diversão ou passatempo, sem perceber o quanto elas são essenciais para
dar significado e profundidade à existência.
O fato é que o ser humano tem necessidade dos recursos artístico-culturais,
porque a beleza faz bem à alma, preenche de alegria os nossos dias e dá sabor à
existência. E já que falamos de trabalho, a própria atividade profissional pode ser
fonte de prazer quando se faz o que se gosta e quando se tem a sensação de que o
seu trabalho é criativo e colabora com o mundo. Portanto, é possível encontrar
beleza no trabalho quando se consegue conciliar a necessidade de sobrevivência
com a busca de sentido.
Justamente por elevar o ser humano da mera necessidade de sobrevivência
para um patamar mais alto de criatividade e sentido é que a arte e a cultura, de
um modo geral, sempre foram vistas como mediações fundamentais para a vi-
vência da espiritualidade.
Estudante, compreender a conexão intrínseca entre cultura, arte e espiri-
tualidade é uma experiência que pode ser vivenciada através da contemplação
das várias manifestações culturais e artísticas que expressam a busca pela trans-
cendência e conexão com o divino. Ao explorar obras de arte, música, dança,
literatura e tradições culturais profundamente enraizadas em valores espirituais,
podemos perceber como essas formas de expressão são meios de colaborar com
a ação criadora divina mediante o trabalho humano. Essas experiências nos per-
mitem apreciar a riqueza da espiritualidade humana e como a cultura e a arte
desempenham um papel vital na busca pelo sagrado e na comunicação de expe-
riências espirituais profundas. É o que veremos nesse Tema de Aprendizagem.
Convido você a iniciarmos essa fascinante jornada.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

Espiritualidade é relação. Relação com Deus e, através e por causa dele, consi-
go mesmo, com o próximo e com a Criação. A riqueza das relações humanas é
que elas são marcadas pela criatividade. Neste podcast, vamos ouvir um pouco
sobre a relação entre a criatividade e a espiritualidade. Recursos de mídia dis-
poníveis no conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

VAMOS RECORDAR?
Jesus comunicou a experiência divina de modo criativo. Para isso, usava uma
linguagem narrativa, cheia de imagens, que nós chamamos de parábolas. Por
isso, elas inspiraram inúmeras obras artísticas, de diversas modalidades. Ouça
e contemple no vídeo abaixo uma música inspirada na chamada Parábola do
Filho Pródigo ou do Pai Misericordioso (Lc 15,11-32), texto que revela como ne-
nhum outro a imagem de Deus que Jesus desejou transmitir, convidando a
humanidade a uma relação pessoal e próxima com a divindade. Recursos de
mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

A ARTE E A CRIATIVIDADE HUMANA

Cultura é um dos conceitos mais amplos e significativos para ajudar o ser hu-
mano a compreender a si mesmo. Muitos de nós associamos o termo cultura
à arte e ao conhecimento. Cultura envolve tudo isso e muito mais. Cultura é
tudo aquilo que é produzido pela criatividade humana. Até onde sabemos, só a
espécie humana é capaz de modificar a natureza, de produzir realidades novas a
partir do ambiente, de transformar o mundo natural em um ambiente humano.
Enquanto as outras espécies de seres vivos dão curso a sua existência a partir dos
seus instintos biológicos, o ser humano, embora tenha também a sua dimensão
biológica, possui como diferencial uma relação de abertura com o mundo, pau-
tada pela autoconsciência, pela imaginação e pela liberdade.

1
1
1
UN I C ES UMA R

Dizendo em outras palavras: todos os outros seres vivos se adaptam ao am-


biente onde vivem para garantir a sua sobrevivência. O ser humano não se con-
tenta em se adaptar ao ambiente. Ele modifica o ambiente e cria novos mundos.
O teólogo Rubem Alves, um dos escritores mais reconhecidos do Brasil, nos
diz que cultura é o "nome que se dá a esses mundos que os homens imaginam e
constroem" (ALVES, 2014, p. 20). De que são feitos esses mundos? É o mesmo
autor que, de maneira poética, nos descreve:

“Os homens se recusaram a ser aquilo que, à semelhança dos animais, o passado
lhes propunha. Tornaram-se inventores de mundos. E plantaram jardins, fizeram
choupanas, casas e palácios, construíram tambores, flautas e harpas, fizeram
poemas, transformaram seus corpos, cobrindo-os de tintas, metais, marcas e te-
cidos, inventaram bandeiras, construíram altares, enterraram seus mortos e os
prepararam para viajar e, na sua ausência, entoaram lamentos pelos dias e pelas
noites” (ALVES, 2014, p. 19).

Com base no que vimos anteriormente, se ainda assim necessitamos de uma


definição, podemos dizer que cultura é “o mundo construído e organizado pelo
esforço humano” (RUBIO, 2001, p. 399). Portanto,
envolve tudo o que é criado a partir da nossa capaci- Cultura é “o mundo
dade operativa: conhecimento, técnica, arte, práticas construído e
religiosas, costumes, leis, regras morais etc. Cada ser organizado pelo
humano vive imerso em um universo cultural her- esforço humano”
dado das gerações passadas e que ele é chamado a as-
sumir e, se for o caso, transformar. Assim, podemos afirmar que “todo o homem
está integrado numa cultura; depende dela, e sobre ela influi. É simultaneamente
filho e pai da cultura onde está inserido” (JOÃO PAULO II, 1998, 71).

P E N SAN DO J UNTO S

Com base no conhecimento adquirido até o momento, é possível dizer que exis-
te ser humano sem cultura?

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

O SER HUMANO COMO SER DE CULTURA

Do ponto de vista das ciências da natureza e mesmo da maioria das ciências hu-
manas, essa “novidade” verificada na espécie humana é fruto do longo processo
evolutivo que permitiu a diversidade e a complexidade da vida na Terra. Biolo-
gicamente, cada indivíduo da espécie humana vem a este mundo frágil, indefe-
so, necessitando de muitos cuidados para sobreviver. Diferentemente de outros
animais que, logo após o nascimento, já alcançam sua autonomia, podendo se
alimentar e buscar a própria sobrevivência, o “animal humano” nasce imaturo,
demandando anos de atenção e cuidado até que se torne autônomo.
Segundo o historiador Harari, tal fato se dá porque o ser humano tomou a
posição ereta. Se por um lado, isso consistiu numa vantagem evolutiva, permi-
tindo liberar as mãos para alcançar mais alimentos e se defender de predadores,
por outro, exigiu o estreitamento do quadril, o que faz com que a criança deva
ser dada à luz ainda sem o crânio formado. Assim, o longo processo de formação
de uma pessoa fora do útero materno exige que o ser humano seja, mais do que
qualquer outro animal, um ser social: “é necessária uma tribo para criar um ser
humano” (HARARI, 2019, p. 18).
E o que foi capaz de motivar tantos seres humanos a trabalharem e viverem
juntos, criando seus filhotes humanos? O fato da nossa espécie possuir imaginação,
criar histórias compartilhadas que, assumidas e transmitidas por grupos bem maio-
res do que aqueles formados pelos bandos de outros primatas, favoreceram a espécie
homo sapiens a dominar o mundo, apesar da sua fragilidade biológica. Enfim, o
que permitiu o ser humano a assumir o topo da cadeia alimentar é a sua capacidade
única de não ser escravo da herança genética. A capacidade de criar cultura.

IN D ICAÇÃO DE LI V RO

Este livro tornou-se um best-seller mundial e transformou o


seu autor, o jovem historiador israelense Yuval Noah Hara-
ri, em um dos intelectuais mais influentes da atualidade. Na
obra, o autor se propõe a fazer uma história de toda a espécie
humana, desde o seu surgimento nas savanas africanas, até
os dias atuais. Tal fato explica o diálogo com tantas ciências,
tais como a biologia, a química, a física e a antropologia, den-
tre outras, num interessante exercício interdisciplinar.

1
1
1
UN I C ES UMA R

Do ponto de vista da espiritualidade cristã, porém, podemos fazer outra leitura


desse fenômeno. O ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn
1,26) e, portanto, é chamado a ser colaborador na obra da criação. Assim como
Deus é “criativo”, pois cria o mundo, o ser humano também o é. A diferença é
que Deus cria o mundo do nada, enquanto o ser humano modifica o mundo,
podendo extrair dele todas as suas potencialidades por meio do trabalho e da
imaginação. Assim, poderíamos afirmar, como o Papa Francisco, que Deus “de
certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo, criando um mundo necessitado de
desenvolvimento, onde muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes
de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a
colaborar com o Criador” (FRANCISCO, 2015, 80).

Figura 1 – “A Criação de Adão”, de Michelangelo

Descrição da Imagem: pintura que apresenta um ancião de barba e cabelos brancos, com o braço esquerdo sobre
os ombros de uma mulher, cercado de anjos e sob um grandioso manto. O braço direito está esticado em direção
a um jovem nu, com a ponta do dedo indicador muito próximo de tocar o mesmo dedo do jovem, só que do braço
esquerdo. Ambos - o ancião e o jovem - encontram-se recostados. Fim da descrição.

1
1
1
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

Ambas as visões – a científica e a teológica – não precisam ser excludentes. Se


durante muito tempo as teorias evolucionistas foram vistas como um desafio à fé
cristã, atualmente esse desafio já foi superado pela teologia. Para isso, basta que se
respeite o escopo de cada área do saber. As ciências da natureza explicam o desen-
volvimento do universo e como chegamos até aqui. Já as narrativas bíblicas que,
segundo a fé cristã, são inspiradas por Deus, falam sobre o sentido do Universo,
sobre o porquê as coisas são como são. A partir disso, a fé cristã vai dizer que o
Universo, não importa de que forma tenha sido formado ou tenha evoluído, não é
obra do acaso, mas é uma bela sinfonia de amor que brota do coração do Criador.
Portanto, nem as ciências da natureza possuem autoridade em questões
religiosas, nem a teologia possui autoridade em questões estritamente físicas,
químicas ou biológicas. Os relatos bíblicos da criação são mitos que explicam
poeticamente a ação criadora de Deus, que faz o universo e o ser humano bro-
tarem do transbordamento do seu amor infinito.
Assim, o conhecimento é melhor construído não com o confronto entre os
saberes, mas através do diálogo e da complementaridade entre eles. A partir dessa
complementaridade, a teologia pode afirmar, sem medo, que o fato da evolução
ter levado ao surgimento de um ser vivo capaz de produzir cultura é fruto da
bondade de Deus que conduziu à criação, ao ponto de, nela, surgir uma criatura
feita a sua imagem e semelhança, ou seja, capaz de relação, de criatividade, de
liberdade e de responsabilidade.

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

MITO: o racionalismo moderno criou preconceito com os mitos, associando-os


a histórias fantasiosas. Assim, só seria verdade aquilo que é estritamente ex-
presso dentro da linguagem científica. Porém, a redescoberta recente da impor-
tância do diálogo entre a ciência e os saberes simbólicos tem levado à tomada
de consciência de que os mitos são narrativas ricas em significado, que trans-
mitem saberes profundos sobre a humanidade e sua existência, o que seria in-
capaz de acontecer pela mera linguagem conceitual. Assim, no mito, a verdade
está no significado da narrativa, mais do que nos detalhes dos elementos que a
compõem. Portanto, chamar os relatos da criação de mitos não é desvalorizáos,
mas, ao contrário, realçar, mesmo na sociedade do conhecimento, o seu pro-
fundo valor humano e religioso.

2
2
2
UN I C ES UMA R

A Cultura e o Trabalho

Se a capacidade de produzir cultura é uma das características mais singulares


da espécie humana, vale a pena perguntar: de que maneira o ser humano o faz?
A atividade por meio da qual o ser humano transforma o mundo natural em
cultura é o trabalho. Assim, de um ponto de vista humanista, o trabalho não é
apenas meio de sobrevivência. Ele é a forma pela qual o ser humano transforma
o mundo e, fazendo-o, transforma a si mesmo. “O trabalho humano será con-
siderado como o meio para o ser humano realizar-se como humano” (RUBIO,
2001, p. 401). Por isso, o trabalho é um dos elementos mais importantes para
assegurar a dignidade da pessoa humana. A atividade por meio da qual o ser
humano transforma o mundo natural em cultura é o trabalho.
A afirmação feita anterior-
mente a respeito da importância
do trabalho não é algo irrelevante
para a espiritualidade cristã. Le-
vando em conta que espirituali-
dade é a busca da comunhão com
Deus em Cristo, ou em outras
palavras, a vivência no mesmo
Espírito de Cristo, então, aquele
ou aquela que busca uma vida es-
piritual verá no seu trabalho uma
forma de colaborar com a obra
do Criador. Assim, se a fé cristã
diz que o ser humano é colabo-
rador na obra da criação, sendo
chamado, inclusive, a desenvol-
ver suas potencialidades, é por
meio do trabalho que ele o faz.
Figura 2 – “O Retorno do Filho Pródigo”, de Rembrandt,
pintor holandês (1606-1669) / Fonte: https://encurtador.com.br/joI29. Acesso em: 21 set. 2023.

Descrição da Imagem: senhor idoso, branco, com barba grande, em vestes nobres, abraçando um jovem de
joelhos, maltrapilho. Em um ambiente de pouca luz, outro homem, de meia-idade, de pé, em vestes nobres como
o idoso, o observa lateralmente. A cena é observada ainda por dois outros homens ao fundo, quase encobertos
pela penumbra. Fim da descrição.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

Desse fato, podem-se tirar várias consequências. A espiritualidade não possui


apenas uma dimensão mística, mas também uma dimensão social. Faz parte
da espiritualidade cristã preocupar-se e atuar por uma sociedade onde todos e
todas tenham acesso ao trabalho. Faz parte também dessa mesma espiritualidade
que cada pessoa cristã pense na sua carreira profissional não apenas de maneira
pragmática, ou seja, visando a própria sobrevivência ou o atendimento de desejos
individuais. É verdade que o trabalho possui uma dimensão objetiva. Mas ele
possui também uma dimensão subjetiva e ambas não podem estar dissociadas. O
cristão ou a cristã enxerga o trabalho como uma forma de realizar a sua vocação
espiritual, empenhando-se para que, através dele, possa ajudar a aperfeiçoar a
sociedade e colaborar para que o mundo seja cada vez mais próximo daquilo que
é o projeto do Criador, que Jesus de Nazaré chamou de Reino de Deus.

AP RO F U N DA NDO

Mística é a busca profunda do encontro e da comunhão com Deus. Compor-


ta uma dimensão importantíssima da espiritualidade, embora não a esgote. A
característica propriamente cristã da mística é que esta é uma experiência de
amor. Trata-se da relação da pessoa humana com a Pessoa Divina a quem se
ama. Portanto, não é um mero mergulho no mistério de uma comunhão universal
impessoal, como propõem outras místicas. Além disso, a mística cristã é sempre
resposta. É a experiência de ter sido amado primeiro. Por isso, a mística cristã
abre para a ética, ou seja, para o amor ao próximo. Portanto, a espiritualidade
comporta todas as dimensões da vida do ser humano e não apenas a religiosa.
Daí podermos falar de cultura e trabalho em um estudo sobre espiritualidade.

Embora o trabalho seja uma forma de colaborar com a obra criadora divina, ele
não esgota, porém, todo o significado da afirmação bíblica de que o ser humano
foi criado à imagem de Deus. O Criador é um “trabalhador” que cria o mundo
não como uma simples tarefa, mas para que este seja o lugar do encontro com
a criatura que ele escolheria para ser o seu especial interlocutor: o ser humano.
Por isso o relato bíblico que fala da criação do mundo fala também de um Deus
que descansa. O ser humano deve trabalhar, mas deve também descansar. Deve
amar à família, aos amigos, a Deus e até mesmo ao próximo desconhecido. Deve,

2
2
2
UN I C ES UMA R

em última análise, viver a gratuidade. A criação divina é gratuita e o ser humano


nunca é tão semelhante a Deus do que quando age na gratuidade.
Por isso, o ser humano não cria com o seu trabalho apenas alimentos, roupas,
meios de transporte, máquinas e equipamentos capazes de sustentar e prolongar
a sua vida sobre a terra. O ser humano cria também artefatos e elementos que, a
princípio, “não servem para nada”, mas servem para expressar a grandeza da sua
alma e a sua imensa capacidade criativa. Elementos que introduzem beleza, que
questionam, que transmitem e modificam a cultura. O ser humano produz arte.

A Cultura e a Arte

Toda a cultura produzida pelo ser humano é fruto da fantástica capacidade que
este tem de imaginação. Essa é outra palavra que, vista sob o preconceito cien-
tificista, pode ser associada à mentira ou à
alucinação. Quando alguém afirma que uma
coisa é imaginação da outra pessoa, normal-
mente, está querendo dizer que tal realida-
de só existe na cabeça dela. Porém, todas
as coisas que envolvem a cultura, existem
porque foram ou são imaginadas por seres
humanos. “Foi necessário que a imaginação
ficasse grávida para que a cultura nascesse”
(ALVES, 2014, p. 31). Assim, qualquer cria-
ção humana, antes de passar pela prancheta
do seu idealizador, passou pela sua cabeça.
Imaginar é uma capacidade humana incrível
sem a qual o ser humano não seria capaz de
criar tantos mundos diversos do mundo na-
tural que nos foi legado pela criação divina.
Figura 3 – Davi, de Michelangelo (1475-1564)
Fonte: https://encurtador.com.br/IMQU3. Acesso em: 28 set. 2023.

Descrição da Imagem: escultura de mármore na cor branca de um homem jovem, completamente nu, corpo
proporcional, cabelos encaracolados. Ao fundo, uma parede em formato de abóbada, com detalhes retangulares.
Fim da descrição.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

A P RO F UNDA NDO

Chamamos de cientificismo a ideologia por meio da qual o conhecimento cien-


tífico é visto como o único critério de verdade, desprezando os outros saberes,
considerados ultrapassados. Sem jamais abrir mão da conquista que a ciência
representa para a humanidade - o que pode ser feito por outro tipo de extre-
mismo - é preciso compreender que a ciência é uma forma de acesso ao real,
com seu método próprio, mas que não esgota o saber. Assim, cada vez mais vai
se tomando consciência da necessidade de um diálogo interdisciplinar, não so-
mente entre as diversas ciências, como entre estas e as outras áreas do saber:
arte, filosofia, tradições e - por que não? - também a espiritualidade. O que se
espera, obviamente, é a reciprocidade no diálogo. No caso da espiritualidade,
um papel fundamental de mediação com a ciência pode ser feito pela teologia.

Podemos afirmar sem medo que a arte é uma das atividades humanas em que a
capacidade criativa humana mais se apresenta. Talvez por isso o senso comum
tenda a reduzir o conceito de cultura ao conceito de arte. Se a arte não esgota a
cultura - como já vimos - sem dúvida ela é uma forma privilegiada de expressá-la,
bem como de eternizá-la. A cultura, como produção coletiva humana, se trans-
mite, sobretudo, pela educação. Porém, transmite-se também e, paralelamente,
pela arte. Por meio da música, da literatura, da pintura, da escultura e de tantas
expressões artísticas, é possível conhecer novas realidades, distantes no tempo
e no espaço. É possível também expressar e compreender melhor o espírito do
próprio tempo. É possível, ainda, ter um primeiro lampejo de experiência do
transcendente, pois por meio da estética e da inovação artísticas é possível in-
tuir a grandeza do espírito humano e a sua capacidade de continuar a criar e a
modificar o mundo.

2
2
2
UN I C ES UMA R

A RELAÇÃO ENTRE CULTURA E ESPIRITUALIDADE

Vimos anteriormente que, do ponto de vista teológico, a cultura é uma das ex-
pressões da afirmação bíblica de que o ser humano foi criado à imagem e seme-
lhança de Deus. O texto bíblico diz que “Deus tomou o homem e o colocou no
jardim do Éden para o cultivar e guardar” (Gn 2,15). A palavra cultivar, presente
na Bíblia, está, justamente, na raiz da palavra cultura. Assim, toda vez que o ser
humano cultiva algo, desenvolvendo os bens presentes na criação, está realizando
a sua vocação divina.
Já que a arte é uma das expressões privilegiadas da produção cultural humana,
podemos intuir a possibilidade de encontrarmos profunda conexão entre esta e
a espiritualidade. É o que veremos a seguir.

A Espiritualidade e a linguagem simbólica

Já tivemos a oportunidade de realçar, ao longo desse Tema de Aprendizagem, a


importância de reconhecer a pluralidade de saberes e o diálogo entre eles. Tal
importância se deve à complexidade do mundo e à limitação da nossa compreen-
são sobre ele. Isaac Newton, um dos expoentes da ciência moderna, não tinha
nada de cientificista. Segundo Rosenblatt e Martins (2021, p. 136), atribui-se a
ele a célebre afirmação:


Fui apenas um menino que brincava na praia e se divertia procurando
uma pedrinha lisa e uma conchinha mais bonita do que as outras, en-
quanto o oceano da verdade se estendia à minha frente, inexplorado.

A essa altura, juntamente com Newton e com tantos outros pesquisadores que
realizaram e realizam a sua investigação utilizando-se do método científico, mas
que ao mesmo tempo percebem que este não esgota o mistério do Universo,
podemos constatar que ao lado da linguagem conceitual que acompanha a pes-
quisa, existe outro tipo de linguagem que apela para outras faculdades humanas.
Esta não se limita a apelar para a razão, mas perscruta realidades que estão no
fundo da consciência humana e que nenhum conceito é capaz de descrever. Uma
linguagem feita de símbolos, O simbólico tem a capacidade de unir realidades
distantes por meio da linguagem do afeto, do sensível e do lúdico. O símbolo

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

abre para uma riqueza de possibilidades e aproximações do saber que o con-


ceito jamais seria capaz de favorecer. A interpretação de um conceito, de uma
equação, de uma teoria, geralmente é unívoca. Já o saber que é transmitido por
meio da linguagem simbólica é sempre novo, sempre atual, é plural e tem sempre
sabor de novidade. Por isso, com Rubio (2001, p. 587), podemos afirmar que "o
símbolo pertence ao domínio do afetivo-volitivo, não ao mundo dos conceitos e
do conhecimento racional. O símbolo nos coloca em contato com as raízes mais
profundas do humano, num domínio ainda pré-conceitual e atemático".

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

A palavra símbolo deriva do grego symbolón, cuja tradução remete a algo como
“lançar junto”. Assim, o símbolo é uma realidade palpável que, porém, remete ou
evoca algo distante, invisível ou de significado diferente daquele original da palavra
ou do objeto que o representa. O símbolo une aquilo que, sem ele, estaria separado.

A linguagem da espiritualidade é simbólica por excelência. Ela fala de uma re-


lação com o invisível, com aquilo que é inexprimível em linguagem racional. A
fé não é, antes de tudo, um conjunto de verdades doutrinais que se pensa e se
expressa em palavras milimetricamente codificadas. A fé é a relação com uma
pessoa. Relação que, por ser da ordem do mistério,
A fé é a relação com sempre será mediada por símbolos. Para quem tem
uma pessoa um olhar de fé sobre o mundo, muitas coisas podem
simbolizar e representar a presença de Deus: a beleza
da natureza, o nascimento de uma criança, uma presença humana cheia de afeto
que ameniza a dor, um ritual que quebra o tédio e o vazio do cotidiano e eleva
os afetos ao contato com o extraordinário. Porém, existe algo para o qual é pre-
ciso prestar atenção: o símbolo, pelo olhar teológico, não é apenas uma criação
humana para expressar o desejo de que a realidade seja algo mais do que aquilo
que se enxerga de modo puramente empírico. O símbolo é performativo, ou seja,
ele torna realmente presente o simbolizado. Assim, a pessoa que tem um olhar
espiritual sobre o mundo, experimenta que realmente sente a presença divina ao

2
2
2
UN I C ES UMA R

contemplar a beleza da criação, ao meditar um texto sagrado ou ao participar de


um culto ou de uma missa.
Todavia, não é só a espiritualidade que é feita de símbolos. A arte é outra
das produções culturais onde a linguagem simbólica possui protagonismo. Essa,
expressão da estética e da sensibilidade, da criatividade e da ludicidade da alma
humana, não poderia jamais ser constituída por uma linguagem do tipo objetivo.
Aquilo que a espiritualidade realiza na vida daqueles que têm fé, por meio da
Graça, de alguma forma a arte antecipa por meio da capacidade natural humana
de autotranscendência. A sensibilidade artística dilata o olhar sobre a realidade
e permite um primeiro vislumbre da amplitude da capacidade humana de con-
templar a vida para além dos parâmetros da funcionalidade e da eficácia. A arte
permite perceber que a vida possui uma dimensão de gratuidade que nenhuma
lógica funcional é capaz de conter. Já deu para perceber que há muitas coisas
em comum entre arte e espiritualidade. Ambas nos arrancam do cotidiano, nos
“salvam” da lógica de uma vida meramente funcional, onde tudo deve estar na
dinâmica da produção, do consumo e do lucro. Ambas se expressam em lingua-
gem simbólica e ambas nos unem a algo que vai além de nós mesmos. A arte no
plano natural. A espiritualidade no plano da Graça. Porém, como o ser humano é
espírito na matéria, ou seja, corpo e alma, ele só pode atingir as coisas espirituais
por meio de realidade palpáveis. Daí podermos perceber que a arte tem sido um
veículo privilegiado, quer para aproximar as pessoas de Deus, quer para expressar
a comunhão com Ele.

IN D ICAÇÃO DE LI V RO

Sendo a sua primeira edição datada de 1970, trata-se de um


clássico no campo da análise da produção cultural do sécu-
lo XX. O autor, cristão protestante e renomado historiador
e crítico de arte, analisa o modo como a arte do século XX,
considerado o século da desconstrução, tentou, de uma cer-
ta forma, superar a tradição cristã e humanista sobre a qual
estava alicerçada a cultura ocidental, gerando um vazio que
até então não se vê preenchido.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

A Arte a serviço da espiritualidade

O impulso para expressar a fé por meio da arte pode ser verificado já no prin-
cípio do cristianismo, no período em que a religião nascente era ainda proibida
e perseguida pelo grande poder político da época, o Império Romano. Muitos
cristãos e cristãs eram presos e até mesmo mortos por causa da fé. Junto às ca-
tacumbas dos mártires, registram-se pinturas que representam a fé em Cristo
e na ressurreição dos mortos. As catacumbas presentes na cidade de Roma são
especialmente importantes por guardarem o testemunho da expressão da fé dos
seguidores e seguidoras de Jesus Cristo desse período anterior ao reconhecimen-
to oficial da religião cristã.
Um dos primeiros símbolos utilizados era o do peixe. Esse símbolo remetia
não apenas às refeições que Jesus fazia com seus discípulos, bem como com os
pecadores e excluídos da sociedade, mas também era um acrônimo, pois a pa-
lavra grega para “peixe” (Ichthus) poderia abrigar as iniciais da expressão “Iēsous
Christos Theou Uios Sōtēr”, ou seja, “Jesus o Messias, o Filho de Deus, Salvador”
(CEDILHO; SOUZA, 2013, p. 607). Assim, o símbolo poderia cumprir a função
de identificar os seguidores e seguidoras da nova religião sem chamar a atenção
das autoridades constituídas. Outros símbolos, como a cruz, por exemplo, em-
bora já utilizados nessa época, o eram de maneira bem mais discreta, justamente
por expressarem de maneira explícita a fé cristã.

2
2
2
UN I C ES UMA R

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

Acrônimo é uma sigla que pode ser lida como uma nova palavra. Exemplos:
UNESCO, SUDAM etc.

Aos poucos, a linguagem simbólica vai se sofisticando e a iconografia, ou seja, a


arte em forma de imagem, vai sendo crescentemente utilizada para expressar a
fé e também para comunicá-la. Vale lembrar que o cânon bíblico só se tornaria
completamente estabelecido e consensual no final do século IV e, além disso, a
maioria da população era analfabeta e, portanto, não poderia ser catequizada por
meio da leitura. Assim, a expressão iconográfica da fé era, desde o princípio, uma
forma popular de evangelização e catequese. Algumas confissões cristãs ainda se
utilizam desse recurso até os dias atuais.

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

A palavra cânon tem origem grega e quer dizer régua, ou em um sentido mais
largo, catálogo. Aplicado à Bíblia, significa a lista de livros catalogados como
inspirados por Deus e, portanto, aptos a servir como meio de ensino e aprofun-
damento da fé.

Uma das imagens difundidas nesse período da arte paleocristã (do antigo cris-
tianismo) é a imagem do Bom Pastor, que remete ao texto do evangelho de João,
capítulo 10. Representado junto ao túmulo dos cristãos e das cristãs e, espe-
cialmente, dos mártires, a imagem do Bom Pastor remetia à figura de Jesus que
carregava em seus ombros as almas dos mortos até ao paraíso destinado aos
que lhe eram fiéis. Assim, a iconografia era colocada a serviço do cultivo da fé
na ressurreição, tão importante em um momento no qual ser cristão ou cristã
comportava constante risco de vida. Ser mártir é dar testemunho de Jesus em
qualquer circunstância, confiando na promessa do Mestre de que “até mesmo os
vossos cabelos foram todos contados” (Mt 10,30). O Bom Pastor cuida dos seus,
mesmo em meio às perseguições do Império e ao medo constante de denúncias
e maus tratos por parte dos inimigos da fé emergente.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

Com o fim das perseguições, o uso da pintura como forma de expressão da fé e


da catequese teve a possibilidade de se sofisticar e ampliar. Aos poucos, as imagens
de Jesus vão se tornando mais majestosas, expressando o ambiente cultural no qual
a fé era vivida. Floresce, por exemplo, a arte bizantina, ligada à Igreja presente na
parte oriental do Império Romano. Nela, emerge a figura do Cristo Todo Poderoso
(em grego: pantokrator), apresentado de
forma majestosa e triunfante.
Assim, estudante, ao desenvolver
sua sensibilidade em relação à manifes-
tação artística da fé, você poderá ajudar
a discernir sobre as produções artísticas
atuais, zelando para que elas não caiam
na armadilha da superficialidade, risco
tão presente nesses tempos em que tudo
é medido pela régua da velocidade, do
sucesso e do retorno financeiro.
Figura 4 – Cristo Pantocrator, igreja Haghia Sophia,
Istambul (Turquia)

Descrição da Imagem: imagem antiga em mosaico de


um homem sentado, com barba e cabelos longos, tú-
nica azulada e com um livro na mão esquerda. A mão
direita está levantada como quem vai ministrar uma
bênção. Sobre a cabeça há uma auréola indicando san-
tidade. No fundo, em dourado, há algumas inscrições
em língua grega. Fim da descrição

P E N SA N D O J UNTO S

Você já percebeu que boa parte das obras artísticas mais famosas da história
possuem inspiração cristã? Existe alguma pintura de temática cristã que você se
lembra que tenha deixado uma marca significativa em nossa cultura ocidental?

2
2
2
UN I C ES UMA R

Ainda no campo das artes plásticas, ou seja, daquelas que se realizam a partir da
manipulação de materiais, não podemos desprezar a arquitetura. Foram vários
os estilos artísticos surgidos a partir da interação entre a espiritualidade e a cons-
trução de templos cristãos. As comunidades cristãs
primitivas não possuíam templos. Elas se reuniam
As comunidades
na casa de seus membros mais eminentes. Com o cristãs primitivas
tempo, residências foram sendo adquiridas para o não possuíam
uso exclusivo do culto cristão. Com o crescimento da templos
Igreja a partir da sua oficialização, grandes constru-
ções foram feitas ou adaptadas para acolher a massa de convertidos à fé que foi
se tornando expressão de unidade do Império. De qualquer forma, na teologia
cristã, nunca se perdeu a compreensão de que a Igreja é a família dos filhos e
filhas de Deus e de que o templo é a casa onde se reúne a comunidade. Por isso, a
preocupação especial com a configuração dos templos para que eles expressem a
dignidade do culto e a ligação da pessoa de fé com Deus e com os irmãos e irmãs.
Como são muitos os estilos arquitetônicos ligados à espiritualidade, não te-
mos como apresentar todos eles nessa aula. Faremos a apresentação de apenas um
deles a título de exemplo. Um dos estilos que mais marcou a paisagem de nossas
cidades e o imaginário cristão é o estilo gótico. Podemos encontrá-lo tanto em
igrejas católicas quanto protestantes. Ele floresce durante a Baixa Idade Média
(séculos XI a XV),
tendo origem na
França, sendo por
isso, durante muito
tempo, conhecida
como “arte francesa”.
Desenvolve-se em
um período históri-
co-cultural onde a fé
cristã representava o
coração da vida e da
organização social
no Ocidente. Por
isso, nas cidades flo-
rescentes, era o estilo

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

das suas catedrais, com suas marcas específicas que apontavam para essa centra-
lidade da fé, recordando que os cidadãos eram apenas peregrinos neste mundo,
tendo a sua pátria definitiva no céu. Por isso, o estilo arquitetônico era marcado
pelos arcos em formato ogival, sempre apontado para o alto; pela sensação de
leveza trazida pelas construções, em relação ao estilo arquitetônico até então
conhecido; pelos magníficos vitrais, que permitiam ao ambiente encher-se de
luz, o que também remete ao Divino.
Declinando a partir do Renascimento, o estilo renasce como neogótico no
século XIX, o que permite a sua observação em diversas construções existentes
em nossas terras. A imagem anteriormente exibida da chamada “Igreja de Pedra”,
na cidade de Canela (RS), é um dos exemplos mais marcantes, sendo parte do
patrimônio não só religioso como também artístico-cultural do nosso país.
Outro exemplo, dentre os nu-
merosos que podemos encontrar
por todo o território do Brasil, é o
da Igreja Luterana de São Paulo.
Inaugurada em 1909, a Igreja Mar-
tin Luther é uma referência arquite-
tônica e espiritual para o movimento
evangélico brasileiro. Em 2018, por
ocasião do incêndio e desabamento
de um edifício vizinho ao templo,
este foi seriamente danificado, o que
demandou uma grande obra de res-
tauração. Graças à união da comuni-
dade e a ajuda de diversos parceiros,
a igreja foi reaberta como local de
culto. O esforço pela reconstrução
do templo demonstra na prática o
quanto o espaço sagrado é impor-
tante para a comunidade de fé fazer
a sua experiência de encontro com
o Divino, além de ser local de forta-
lecimento das relações fraternais, de
memória e de identidade.

2
2
2
UN I C ES UMA R

P E N SA N DO J UNTO S

Você já notou que a casa não é apenas abrigo, mas lugar de afeto e de me-
mória? Que o mesmo vale não apenas para a casa que abriga a família, mas
também para a casa da comunidade cristã que é a igreja? Você tem alguma
memória afetiva associada a algum templo religioso?

Partindo para outras expressões artísticas, não podemos nos esquecer de que a
música e a literatura têm sido, tradicionalmente, a forma pela qual os grandes
místicos acabam por expressar e comunicar a sua experiência do Divino. Por isso,
o místico, justamente por ser uma pessoa sensível, frequentemente é também
poeta ou compositor. A poesia e a música acompanham a história da experiência
judaico-cristã de Deus e de sua expressão. Basta pensarmos nos salmos presentes
no Antigo Testamento e que são musicados e cantados por gerações incontáveis
de cristãos e cristãs. Há também no Novo Testamento diversos hinos e fórmulas
litúrgicas que foram usados pelas primeiras comunidades.
Ainda nesse campo, podemos afirmar que o cristianismo produziu, na sua
bimilenar história, verdadeiras obras de arte que fazem parte do patrimônio não
só religioso, como também cultural de toda a humanidade. Como não pensar no
Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, no poema da Noite Escura da
Alma, de João da Cruz, ou ainda no poema Quem sou eu? do pastor Dietrich
Bonhoeffer, composto quando preso no campo de concentração nazista? Você
conhece esses textos? Que tal pesquisá-los? Conhe-
cer essas jóias da mística cristã, assim como outras, A arte é influenciada
nos permitirá ter um olhar crítico sobre a produção pelo contexto em
artística atual. Como já percebemos, a arte é influen- que ela é feita
ciada pelo contexto em que ela é feita.

E U IN D ICO

Vídeo com o poema “Quem sou eu?”, do teólogo e pastor Dietrich Bonhoeffer,
narrado pelo filósofo e teólogo Jonas Madureira. Recursos de mídia disponíveis
no conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 8

Falando especificamente de música, devemos reco-


nhecer ainda que se trata de uma arte não restrita a
A música é a
poucos, mas de uma linguagem de caráter universal. manifestação mais
Por isso, quando se fala em arte e espiritualidade, não massiva da relação
se pode desconsiderar que a música é a manifestação do ser humano com
mais massiva da relação do ser humano com o divi- o divino
no. Não à toa se tornou um dito popular a expressão
de que “a música é uma forma de oração” (LEÃO, 2007, p. 294).
A música toca todas as dimensões do ser humano, passando pela dimensão
cognitiva, a emocional, bem como a corporal. Tem um caráter integrador, ajudan-
do a superar a fragmentação ou o sem-sentido da vida, o que pode preparar ou
mesmo acompanhar a conexão com Deus, experiência integradora do humano
por excelência. Ela ajuda a despertar experiências profundas e, por isso, torna-se
linguagem privilegiada da evocação da presença do Transcendente no cotidiano.
Por isso, a música é parte essencial das celebrações religiosas, bem como das
experiências pessoais de oração.
A universalidade da sua ação como meio de conexão com o sagrado pode ser
percebida na sua multiplicidade de expressões, desde a clássica obra de J. S. Bach
(1685-1750), que deixava evidente “que para ele só fazia sentido compor música
se fosse para ligá-lo a Deus” (LEÃO, 2007, p. 294), até a moderna música religiosa,
que traz para o ambiente sacro os solos das guitarras e as batidas da percussão,
permitindo que as novas gerações consigam fazer a conexão com Deus em uma
linguagem que lhe é acessível. Em quaisquer circunstâncias, a interpretação da
vida como um Mistério que ultrapassa o meramente empírico é sempre uma ex-
periência feita com e atra-
vés de um “fundo musical”,
razão pela qual o teólogo
não deixará de se dedicar a
refletir sobre a qualidades
das produções, bem como
de captar a presença divi-
na por trás das melodias
produzidas pelos artistas
movidos pela fé.

2
2
2
UN I C ES UMA R

E M FO CO

Preparamos um vídeo para você compreender melhor como construir o suces-


so no dia a dia. Acesse o material e fique por dentro desse tema importante
que contribuirá para o seu desenvolvimento. Recursos de mídia disponíveis no
conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

NOVOS DESAFIOS
Você deve ter percebido que, ao citarmos as produções artísticas concretas que
foram produzidas em nome da espiritualidade cristã, só pudemos nos referir a
algumas modalidades artísticas e, dentro delas, apenas a alguns parcos exemplos.
Uma visão completa da relação entre a fé e a história da arte ultrapassa e muito o
escopo deste nosso curso. O que fizemos aqui foi apenas uma introdução, para
que você possa apreciar a importância desse tema, aguçar a sua sensibilidade em
relação ao mesmo e para que você possa ter um conhecimento geral sobre ele.
Porém, sugiro que você não se sinta preocupado, mas sim desafiado. A formação
acadêmica não termina na graduação. Todavia, estudante, você poderá continuar
seus estudos e se especializar em arte sacra, música litúrgica ou religiosa, além
de poder aprofundar estudos literários, incluindo aqueles voltados para o apro-
fundamento das Sagradas Escrituras. O profissional dessa área poderá assessorar
comunidades de fé no uso da arte a serviço da espiritualidade e da evangelização,
garantindo que a arte sacra possa ter qualidade estética aliada à fidelidade na
transmissão do conteúdo de fé. Ao mesmo tempo, poderá assessorar entidades
que valorizam o patrimônio artístico-religioso, ajudando-as a perceber que tal
patrimônio possui valor não apenas histórico, mas também valor afetivo e es-
piritual para a comunidade que o produziu a partir da sua continuidade com a
tradição dos antepassados.

2
2
2
VAMOS PRATICAR

1. Cultura é “o mundo construído e organizado pelo esforço humano” (RUBIO, 2001, s.p.).

Fonte: RUBIO, A. G. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão


cristãs. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 399.

Assinale a alternativa a seguir que NÃO corresponde ao conceito de cultura apresentado:

a) O trabalho profissional por meio do qual o ser humano se sustenta economicamente


e colabora com o progresso da sociedade.
b) O trabalho voluntário feito em favor da justiça social.
c) O patrimônio genético da espécie homo sapiens.
d) O desmatamento da Amazônia para a criação de gado.
e) As festas religiosas de uma determinada comunidade.

2. “É necessária uma tribo para criar um ser humano” (HARARI, 2019, s.p.).

Fonte: HARARI, Y. Sapiens: uma breve história da humanidade. 42. ed. Porto Alegre:
L&PM, 2019. p. 18.

Diante do texto acima e tendo em vista tudo o que foi estudado até o momento, avalie
as seguintes afirmativas:

I - O ser humano, por ser o mais evoluído de todos os seres vivos, já nasce com a capa-
cidade de sobreviver de maneira autônoma e independente.
II - O ser humano, do ponto de vista físico, é frágil e, portanto, só sobrevive ao nascer se
for cuidado por outras pessoas durante longo tempo, até atingir a maturidade.
III - O instinto não é suficiente para garantir o pleno desenvolvimento do ser humano: ele
precisa também ser inserido na cultura da comunidade.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) III, apenas.
c) I e II, apenas.
d) II e III, apenas.
e) I, II e III.

2
2
2
VAMOS PRATICAR

3. Quem não tem nada e nem quer ter, vai preocupar-se com o quê? O Irmão não tinha
roupa, comida, nem teto. Não tinha pai, mãe, irmãos. Não tinha prestígio, estima dos
concidadãos, amigos, vizinhança.

O trabalho humano será considerado como o meio para o ser humano realizar-se como
humano. Sobre isso, assinale a alternativa correta:

a) O trabalho é o meio para diferenciar seres humanos produtivos dos improdutivos.


b) O trabalho é o meio pelo qual o ser humano colabora com a obra divina, realizando
plenamente a sua vocação de imagem e semelhança de Deus.
c) O trabalho é o meio pelo qual o ser humano pode obter prosperidade e riqueza.
d) O trabalho é um peso que o ser humano deve carregar por causa do pecado.
e) O trabalho é um mal necessário.

2
2
2
REFERÊNCIAS

ALVES, R. O que é religião? 14. ed. São Paulo: Loyola, 2014.


CEDILHO, R. M. B.; SOUSA, A. P. B. Arte paleocristã: espelho da visão de mundo dos primeiros
cristãos. Mirabília, v. 17, p. 602-614, jul./dez. 2013.
FRANCISCO, PP. Carta Encíclica Laudato Si sobre o livro cuidado da Casa Comum. Bra-
sília: Edições CNBB, 2015.
HARARI, Y. Sapiens: uma breve história da humanidade. 42. ed. Porto Alegre: L&PM, 2019.
JOÃO PAULO II, PP. Carta Encíclica Fides et Ratio. Roma, 1998. Disponível em: https://
www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091998_
fides-et-ratio.html. Acesso em: 1 ago. 2023.
LEÃO, E. R. Reflexões sobre música, saúde e espiritualidade. O Mundo da Saúde, n. 31, p.
290-296, abr./jan. 2007.
ROSENBLATT, A.; MARTINS, A. Mediação e transdisciplinaridade. In: ALMEIDA, T.; PELAJO, S.;
JONATHAN, E. (Orgs.). Mediação de conflitos: para iniciantes, praticantes e docentes. 3. ed.
Salvador: Editora Juspodivm, 2021.
RUBIO, A. G. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. São
Paulo: Paulinas, 2001.

2
2
2
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção C.

O patrimônio genético pertence ao mundo da natureza e não ao da cultura, ao passo que


trabalho (remunerado ou não), a modificação da natureza e a religiosidade pertencem à
cultura.

2. Opção D.

O ser humano nasce imaturo biologicamente, daí a necessidade, tanto do apoio da co-
munidade quanto da inserção em sua cultura. O ser humano é um ser social.

3. Opção B.

Do ponto de vista da espiritualidade cristã, o trabalho é o meio de colaborar na criação


divina, transformando o mundo da natureza em cultura. Portanto, é um modo fundamental
de realizar a vocação humana. Assim, mesmo que o estudante considere parte das outras
respostas adequadas, somente uma está correta do ponto de vista teológico.

2
2
2
MEU ESPAÇO

2
2
2
MEU ESPAÇO

2
2
2
TEMA DE APRENDIZAGEM 9

EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS
DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

MINHAS METAS

Identificar os elementos marcantes da cultura que influenciam na configuração da espiri-


tualidade na contemporaneidade.
Discernir, teologicamente, como os desafios da época podem ser, para além dos mo-
vimentos puramente sociológicos, sinais do Espírito Santo que continua a conduzir o
cristianismo pelos caminhos da história.
Oferecer critérios para ajudar a discernir, no meio das novas espiritualidades, elementos
de fidelidade à Revelação cristã em meio às mudanças culturais.
Conhecer as características de algumas das principais escolas de espiritualidade cristã
que têm se difundido na atualidade.
Favorecer o intercâmbio, o diálogo e o enriquecimento mútuo entre diferentes espiritualidades.
Promover as espiritualidades contemporâneas para que estas sejam relevantes no mundo atual.
Discernir elementos que permitam às espiritualidades contemporâneas dar uma contri-
buição positiva para a resolução dos dilemas humanos da atualidade.

2
2
2
UN I C ES UMA R

INICIE SUA JORNADA


Ao longo do século passado, ouviu-se com alguma frequência que o fenômeno
religioso estaria em contínuo enfraquecimento, projetando-se, até mesmo, o seu
definitivo desaparecimento. Tal fato aconteceria por causa do avanço da cultura
moderna, defensora da autonomia dos indivíduos frente às tradições e movida
pela crença de que o progresso tornaria descartável a pergunta pelo Divino.
Recentemente, porém, as ciências humanas foram obrigadas a rever essa
compreensão. Mais do que desaparecer, na contemporaneidade, o que ocorre é
uma transformação do fenômeno religioso. Uma transformação que acompanha
as mudanças sociais. Falando especificamente do cristianismo, verificamos que
o movimento não é diferente. Novas expressões da espiritualidade cristã se apre-
sentam a fim de atender às questões próprias do ser humano moderno, buscando
um equilíbrio, nem sempre fácil, entre a fidelidade à herança da fé e a abertura
aos novos questionamentos da sociedade.
Certamente, muitas pessoas ao redor do mundo têm vivenciado essas novas
expressões da espiritualidade cristã. Aqui está um exemplo de indivíduo notável
(Papa Francisco) que têm buscado esse equilíbrio entre a tradição cristã e os de-
safios contemporâneos como no qual tem sido um defensor de uma igreja mais
inclusiva e socialmente engajada. Ele enfatizou a compaixão, a justiça social e a
responsabilidade ambiental como parte integral da fé cristã.

P L AY N O CO NHEC I M ENTO

A espiritualidade, enquanto experiência existencial vivida no Espírito de Cristo,


é sempre histórica e contextual, posto que é uma experiência humana. Neste
podcast, vamos entender como a adaptação da vida espiritual às circunstâncias
de cada tempo não significa, obrigatoriamente, abandonar ou distorcer a identi-
dade cristã. Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambien-
te virtual de aprendizagem.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

VAMOS RECORDAR?
Antes de prosseguirmos, vamos relembrar o quanto a ciência tem redescoberto
a espiritualidade como recurso aliado da razão para produzir saúde e bem-es-
tar. Para isso, separamos um artigo – Posicionamento da associação mundial
de psiquiatria sobre espiritualidade e religiosidade em saúde – que demons-
tra como a psiquiatria, área tão sensível e importante, tem olhado de manei-
ra positiva para as reflexões interdisciplinares sobre saúde e espiritualidade.
Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de
aprendizagem.

DESENVOLVA SEU POTENCIAL

ESPIRITUALIDADE E CONTEMPORANEIDADE

Alguns autores falam hoje de uma certa “volta do sagrado”, com inúmeras ex-
pressões religiosas novas surgindo na sociedade a todo instante. Tal novidade
dar-se-ia por causa da insatisfação com as promessas não cumpridas pela mo-
dernidade: a filosofia moderna defendeu que, pelo uso da razão e pelo avanço
da ciência, todos os problemas humanos seriam resolvidos. Tal promessa não
se cumpriu e, embora tenhamos avançado em muitas questões, tantas outras
surgiram ou ficaram sem resposta. Do ponto de vista teológico, porém, pode-
mos dizer que a resistência do fenômeno religioso se dá não apenas por motivos
sociológicos. Para a fé cristã, essa resistência no ser humano se dá pelo “fato de
ter sido criado por Deus e chamado a uma comunhão de intimidade com Ele”
(LIBÂNIO, 2011, p. 79).
Vejamos um pouco melhor essa questão antes de abordarmos de modo mais
detalhado algumas das correntes de espiritualidade que têm encontrado espaço
no seio do cristianismo atual.
De fato, tem início no século XVI, na Europa, um movimento filosófico que
vai defendendo progressivamente a autonomia do ser humano frente a quais-
quer autoridades e condicionamentos externos, quer da religião, quer da pró-
pria natureza. Expressão típica desse movimento é o axioma “penso, logo existo”

2
2
2
UN I C ES UMA R

(DESCARTES, 2000, p. 41) do filósofo francês René Descartes, que figura como
parte de uma linha de raciocínio que coloca na razão a essência da dignidade do
ser humano e seu princípio de autonomia. Assim, inicia-se toda uma linha de
pensamento que vai dominando crescentemente a cultura ocidental, por meio
da qual tudo aquilo que não é estritamente racional (incluindo a espiritualidade,
com sua crença em entidades, realidades e manifestações sobrenaturais) deve
ser visto com desconfiança por ser de existência duvidosa. Trata-se de “uma ra-
cionalidade técnica que declara a priori que todos os princípios que não podem
se autossustentar racionalmente não têm sentido” (RAHNER, 1992, p. 365). Tal
fato levou, inclusive, a sociologia da religião a se compreender, em um primeiro
momento, como a sociologia do declínio da religião: “para atestar a legitimidade
científica de seu interesse pela religião, os pesquisadores eram obrigados, de certo
modo, a confirmar seu desaparecimento” (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 20).
Porém, as últimas décadas têm
contrariado essa compreensão a olhos
vistos. Pelas cidades, pululam templos
de todas as naturezas e novas formas
de espiritualidade vão se configurando.
Com isso as próprias ciências humanas
revisam o seu posicionamento inicial e
refazem suas teorias. No mundo mo-
derno e urbano, mais do que desapare-
cer, a dimensão espiritual se transforma. Antes considerado elemento da tradição
cultural, agora o ato de crer se torna objeto de opção pessoal, flexível e mutável,
o que o mostra bem afinado com a valorização da autonomia individual, traço
cultural marcante da cultura contemporânea.


Cada um assume a responsabilidade pessoal de dar forma e referência
à linhagem com a qual se identifica (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 89).

Para além da contribuição sociológica, ou de quaisquer outras ciências, que a teolo-


gia não recusa e, pelo contrário, cada vez mais acolhe e com a qual deseja estabelecer
diálogo, há, porém, para ela, uma dimensão especificamente teológica que não se
reduz e nem se descarta diante do olhar das outras ciências. A teologia recorda
que a Revelação Divina faz a Igreja crer que é o Espírito Santo quem conduz, não

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

somente os indivíduos cristãos ou suas comunidades de fé, mas também todo o


percurso histórico da humanidade, em vista de uma plenitude escatológica. Assim,
por trás das transformações sociais, a razão teológica tenta oferecer aos cristãos e
cristãs instrumentos de discernimento em relação aos fenômenos verificados, a
fim de perceber os sinais da presença do Espírito na história.
O primeiro critério de discernimento é quanto ao conjunto das transforma-
ções sociais em si. A teologia contemporânea, não obstante uma longa história
de briga entre fé e sociedade a partir do momento em que esta se transformou
a partir de paradigmas mais secularizados, vem procurando ter um olhar mais
positivo, de esperança, em relação ao processo social. Em vez de enxergar apenas
catástrofes e perdição no mundo moderno, como se a Igreja fosse uma fortaleza
cercada de inimigos por todos os lados, a teologia tenta perceber o que há de
ação de Deus neste mundo. Assim, o fim da cristandade, o declínio de uma
religiosidade tradicional, o recuo do poder das Igrejas frente a um Estado que
reivindica cada vez mais a sua autonomia em um contexto de laicidade, apela para
uma maior autenticidade do testemunho cristão e para a sua missionariedade.

A P RO F UNDA NDO

Chamamos de Cristandade o longo período em que houve um casamento en-


tre cristianismo, sociedade e cultura, tendo na aliança entre Igreja e Estado a
sua mais evidente característica. Na sociedade de cristandade, ser cristão e
cidadão, era algo conatural. A superação desse longo período da história do
Ocidente leva muitos pesquisadores a chamarem a sociedade de nossa época
de uma sociedade pós-cristã.

O que afirmamos anteriormente sobre o período da cristandade não significa


que um testemunho cristão autêntico não existisse na sociedade. A contempla-
ção de inúmeros rostos de cristãos e cristãs valorosos e exemplares de todos os
séculos nos leva a afirmar, com alegria, a existência de muita santidade em todas
as épocas da história do cristianismo. Porém, nos tempos de uma aliança mais
estreita entre Igrejas e poder político, esses testemunhos valorosos eram man-

2
2
2
UN I C ES UMA R

chados por outros tantos exemplos de debilidade apostólica, de religiosidade por


convenção e até mesmo de práticas violentas em nome da fé. Hoje e no futuro,
onde vislumbra-se cada vez mais o fato de que a fé poderá contar apenas com suas
próprias forças para se fazer propagar, cresce em muitos círculos a consciência de
que é preciso cada vez mais autenticidade, individual e comunitária, na vivência
espiritual. Como dizia um dos grandes teólogos do século XX, o alemão Karl
Rahner: “a própria Igreja, hoje, publicamente, mais do que sustentar a decisão de
fé do indivíduo, é por esta sustentada. Tal coragem singular, no entanto, só pode
subsistir se vive de uma experiência muito pessoal de Deus e do seu Espírito.
Já foi dito que o cristão do futuro ou será um místico ou não existirá de fato”
(RAHNER, 1992, p. 365).
Segundo Karl Rahner (1992), foi afirmado que
o cristão do futuro será, de fato, um místico ou sim- O cristão do futuro
plesmente não existirá. será, de fato,
um místico ou
Tendo dito isso, podemos passar a um segundo
simplesmente não
critério de discernimento. Este diz respeito às rela- existirá
ções entre as espiritualidades específicas e seu diá-
logo com a sociedade. A teologia espiritual acredita que os diversos carismas
que vão surgindo no seio do Povo de Deus não são apenas produções humanas,
mas frutos da ação do Espírito Santo que vai oferecendo à Igreja instrumentos
de resposta aos desafios de cada tempo. Ao mesmo tempo, não são respostas
desencarnadas: elas se revestem das influências culturais e com elas dialogam.
Assim, o discernimento há que estar atento a esse equilíbrio: por um lado, os
caminhos espirituais para serem compreensíveis, devem falar a linguagem do ser
humano atual, vir ao encontro dos seus questionamentos, apresentar propostas
que façam sentido para os homens e mulheres concretos. Por outro lado, devem
estar atentos para não cederem por completo ao “espírito do tempo”, ou seja, a não
se adaptarem por completo à cultura, assimilando, inclusive aqueles elementos
culturais contrários à fé cristã apenas para conseguir adeptos, encher templos e
fazer sucesso em um ambiente onde se estabelece, entre as diversas propostas
religiosas, uma espécie de estratégia concorrencial que copia aquilo que há de
mais problemático no modo capitalista de produção.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

IN D ICAÇÃO DE LI V RO

Inculturação da fé: uma abordagem teológica


Para quem deseja uma reflexão teológica robusta sobre a re-
lação entre evangelização e cultura, o livro “Inculturação da
fé: uma abordagem teológica”, do professor Mario de França
Miranda, é um instrumento valioso. A obra demonstra que
não existe vivência da fé fora da cultura. A espiritualidade
sempre vai se revestir de uma expressão cultural. Por outro
lado, cabe à fé evangelizar a cultura, purificando-a, se neces-
sário, daqueles seus possíveis aspectos desumanizadores.

Considerando essas premissas, vamos agora analisar algumas espiritualidades


contemporâneas, naturalmente sem a pretensão de esgotar a sua variedade.

ALGUMAS ESPIRITUALIDADES CONTEMPORÂNEAS

Procuramos selecionar espiritualidades que possuem impacto “transdenomina-


cionais”, ou seja, cujo impacto influencia na vida da maioria das denominações
cristãs, inclusive, ultrapassando-as, atingindo o conjunto da sociedade. A partir
desse critério, vejamos as seguintes correntes espirituais contemporâneas:
■ pentecostais/carismáticas;
■ sociotransformadoras;
■ desinstitucionalizadas;
■ fundamentalistas e, por fim;
■ integradoras.

Espiritualidades pentecostais/carismáticas

Sem dúvida, um dos fenômenos mais notáveis dos últimos 120 anos em termos
de religião e espiritualidade, em todo o mundo, é o surgimento do movimento
pentecostal. A partir do seu discreto surgimento, no início do século XX, trans-
formou-se rapidamente num movimento de crescimento avassalador, a ponto de,

2
2
2
UN I C ES UMA R

atualmente, já abarcar um quarto dos mais de 2 bilhões de cristãos e cristãs do


mundo. A narrativa fundadora do pentecostalismo aponta para dois episódios
na passagem do século XIX para o século XX. O primeiro deles diz respeito ao
ministério fundado pelo pastor Charles Fox Parham (1873-1929). Charles havia
se afastado do metodismo em busca de liberdade para fazer uma experiência mais
intensa do Espírito Santo. Segundo ele, a organização hierárquica da sua Igreja de
origem, em sua época, impedia os pregadores de serem guiados mais livremente
pelo Espírito de Deus. Na escola bíblica que fundou junto ao seu ministério de
cura, no Kansas (EUA), começou a pregar os dons extraordinários, dentre eles o
dom de línguas como evidência do Batismo no Espírito Santo. Na vigília do
ano novo de 1901, uma das alunas da escola, Agnes Ozman, pede que Charles lhe
imponha as mãos. A partir disso ela fala em línguas, no que teria sido a primeira
manifestação pentecostal registrada em tempos modernos.

A P RO F UNDA NDO

Batismo no Espírito é o nome que pentecostais/carismáticos chamam à expe-


riência pessoal de Deus que, a partir da sua realização, permite ao fiel ter acesso
aos dons carismáticos extraordinários (falar e orar em línguas, curar, fazer pro-
fecias etc.). Normalmente, é uma experiência que marca a passagem de uma
vivência da fé até então vista como formal e rotineira para uma vivência mais
intensa, tanto do ponto de vista do culto quanto da missão.

O segundo episódio ocorreu em 1906, em Los Angeles, também nos Estados


Unidos. Tudo aconteceu por meio de William Seymour, filho de ex-escravizados,
que havia participado da escola de Parham. Segundo o teólogo pentecostal Allan
Anderson, Seymour “recebeu autorização para ouvir as aulas de Parham por
cerca de um mês através de uma porta entreaberta, em estrita observação à se-
gregação dos estados do sul e ao preconceito do próprio Pahram” (ANDERSON,
2019, p. 53-54). Indo para Los Angeles, começa a defender o dom de línguas e
é rejeitado pela igreja onde congregava. Assim, ele aluga um antigo depósito na
rua Azusa, n. 312 e é seguido por um grupo de dissidentes que comungava da
sua pregação. Estava fundada a Missão de Fé Apostólica. Como Charles Parham

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

caíra em descrédito junto à comunidade cristã por suas ligações com movimentos
racistas, além de outras acusações de ordem moral, a rua Azusa acabou ficando
conhecida como o marco fundador do pentecostalismo mundial.
Alguns aspectos devem ser notados. Embora a rua Azusa seja o marco sim-
bólico do movimento pentecostal, relatos
de surgimento de comunidades pentecos-
tais pelo mundo, simultaneamente, são fre-
quentes. Isso permite aos adeptos dessa es-
piritualidade defender o fato de que se trata,
não de um simples fenômeno sociológico,
mas de uma verdadeira manifestação do
Espírito. De fato, o pentecostalismo surge
como reação ao formalismo e racionalismo
das igrejas cristãs históricas. Ainda segundo
o teólogo Anderson (2019), manifestações
extraordinárias pentecostais faziam parte
Figura 1 - William Seymour, pastor, persona-
da vida cristã ordinária, nos primeiros sé-
gem fundamental na origem do movimento culos, mas foram desaparecendo ao longo
pentecostal / Fonte: https://commons.m.wiki-
media.org/wiki/File:William_J._Seymour_(cro- da história como forma de defender a Igreja
pped).jpg. Acesso em: 14 set. 2023. das múltiplas heresias, com as quais, muitas
Descrição da Imagem: foto em preto e
vezes, eram confundidas. Ainda segundo
branco, homem negro, meia idade, barba gri- ele, o catolicismo ainda aceitava manifes-
salha, terno e sapatos pretos, colete e cami-
sa brancas, gravata borboleta e segurando a
tações místicas esporádicas e esparsas, mas
Bíblia com a mão direita na altura do peito. as igrejas oriundas da Reforma nem isso:
“Martinho Lutero (1483-1546) disse que as
línguas foram dadas como um sinal para os judeus e cessaram, e que os cristãos
não precisavam mais de milagres” (ANDERSON, 2019, p. 35).
Some-se a isso o fato de que o movimento pentecostal tenha surgido entre
pessoas periféricas sob o peso da segregação e se percebe a importância histó-
rica desse fenômeno no cristianismo mundial. De fato, uma característica do
movimento pentecostal é a sua adaptabilidade aos diversos contextos culturais,
naquilo que teologicamente costuma-se chamar de inculturação da fé.
Normalmente, o movimento pentecostal, tão diverso e fragmentado, é classi-
ficado em ondas, tanto no Brasil quanto no exterior. A primeira onda seria essa
surgida na primeira década do século XX, caracterizada pela ênfase no dom de

2
2
2
UN I C ES UMA R

línguas como evidência do Batismo no Espírito. No Brasil, elas são representadas


pelas igrejas Assembleia de Deus e Congregação Cristã no Brasil, ambas fundadas
em 1910 por missionários que tiveram contato direto com o movimento surgido
em Los Angeles. Já a segunda, nos anos 1950 e 1960, consistiu, sobretudo, no
surgimento de movimentos carismático/pentecostais no seio das igrejas tradi-
cionais. Praticamente todas as grandes igrejas históricas passaram a contar com
vertentes pentecostais: luteranos, reformados, anglicanos, ortodoxos e católicos.
Desses, de longe o mais numeroso é o movimento pentecostal católico, conhecido
como Renovação Carismática Catolica. Estatísticas do movimento chegaram a
afirmar que ele seria composto por 100 milhões de adeptos ao redor do mundo.
À segunda onda, pertencem ainda o ministério de pastores televangelistas,
famoso no contexto dos Estados Unidos, e as igrejas voltadas para a Cura Divina,
que surgiram no Brasil. Até o advento da segunda onda, Assembleia de Deus e
Congregação Cristã eram praticamente as únicas representantes do pentecosta-
lismo em terras brasileiras.

AP RO F U NDA NDO

A Renovação Carismática Católica, movimento pentecostal presente no cato-


licismo, surge em 1967, na Universidade de Duquesne, na Pennsylvania (EUA).
Jovens universitários e professores católicos que tinham contato com pente-
costais de outras denominações começaram a realizar orações em comum e a
participar em conjunto de algumas reuniões. Segundo os relatos, durante um
retiro, jovens católicos teriam recebido o chamado batismo no Espírito, com
a manifestação dos dons carismáticos. Nascia o movimento que se espalhou
pelo mundo como um rastilho de pólvora e que logo recebeu a aprovação das
autoridades da Igreja Católica.

A terceira onda do movimento pentecostal começa na passagem da década de


1970 para a década de 1980. Ela é marcada pelo surgimento de várias denomi-
nações independentes, sobretudo no continente africano e na América Latina.
No Brasil, essa onda é chamada também de neopentecostal, por apresentar ca-
racterísticas bastante peculiares em relação às anteriores. O neopentecostalismo
é marcado pela Teologia da Batalha Espiritual e da Prosperidade. A Teologia da
Batalha Espiritual é aquela que indica que o mundo é palco da luta entre o Bem

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

e o Mal, Deus e o Diabo, e que a pessoa deve tomar partido nessa luta a favor
de Deus, participando da Igreja. A Teologia da Prosperidade, consequência da
primeira, indica que aquele que é fiel a Deus e fica ao seu lado na luta, recebe
não só a vida eterna, como também a bênção da prosperidade material nessa
vida, já que é Filho de Deus. Um sinal da fidelidade a Deus é a fidelidade ao dí-
zimo, que faz com que os bens da pessoa fiquem protegidos do devorador por
excelência, que é o Diabo. Portanto, na luta, “o modo de se colocar do lado de
Deus é proclamar a Palavra da Fé, tornar-se Seu sócio, renunciando a Satanás e
entregando através da Igreja parte dos seus bens a Deus” (ANDRADE, 2021, p.
158). O parentesco dessas teologias com a ideia de mérito, tão cara ao sistema
econômico atual, através da qual cada um recebe o fruto do seu esforço indivi-
dual, para além de outros fatores, explica, em parte, a atual popularidade dessa
vertente da espiritualidade pentecostal.
Para além das diversas ondas do pentecostalismo, podemos analisar e avaliar os
traços em comum dessa proposta espiritual. Sem dúvida, ela recupera um elemento
fundamental da experiência cristã que é a relação pessoal e espontânea com Deus,
em Jesus Cristo. A longa história das denominações cristãs tradicionais, além da
aliança que algumas delas fizeram com o poder político, acabou por acarretar um
certo formalismo. Muitos dos seus membros o são mais por tradição cultural do
que por opção pessoal. Pentecostais lembram a todos os cristãos e a todas as cristãs
que é preciso “nascer de alto” (Jo 3,3). Assim, mesmo aqueles e aquelas que sejam
cristãos ou cristãs por terem sido educados em um lar religioso, em algum momen-
to da vida precisam tomar uma decisão pessoal pela fé, decisão essa que passa por
um relacionamento íntimo, afetivo e de confiança com a pessoa de Jesus Cristo.
Outro aspecto da espiritualidade pentecostal que não pode ser desprezado é o
fato de empoderar o cristão e a cristã comuns, os que são chamados na linguagem
técnica da teologia de leigos e leigas. As igrejas pentecostais e os movimentos
carismáticos das igrejas tradicionais, embora respeitem bastante a figura dos lí-
deres religiosos - pastores e padres - reconhecem que cada homem ou mulher de
fé possui o dom do Espírito e, portanto, é um missionário. Assim, podem tomar
a palavra no culto (ou no grupo de oração, no caso dos católicos carismáticos),
além de poderem exercer ministérios e testemunhar o Evangelho na própria
vida, no seu cotidiano. Trata-se de um elemento pentecostal autêntico, ou seja,
um elemento que a teologia pode discernir como verdadeiro dom do Espírito,
pois pelo Batismo cada fiel é parte ativa do Povo de Deus e não mero espectador.

2
2
2
UN I C ES UMA R

Alguns aspectos que possam ser olhados com atenção em relação ao movimento
pentecostal discorreremos a seguir. Em primeiro lugar, a crença na intervenção
direta do Espírito Santo pode levar alguns de seus membros a ter uma visão má-
gica da vida e, portanto, desprezar os instrumentos ordinários de transformação
da realidade para que esta se aproxime do projeto de Deus. Assim, sem discutir a
pertinência da crença no milagre, não podemos descuidar do fato de que o Espí-
rito Santo age também através da sabedoria humana, como da pesquisa científica
que se transforma em conhecimento médico ou da luta social que pode servir
para construir realidades mais justas. Nesse sentido, é de extrema esperança para
pensar a contribuição que o movimento pentecostal pode oferecer ao conjunto
da fé e ao bem-estar social, o fato de que há um número crescente de pentecos-
tais se interessando por estudar teologia. Superando-se um certo preconceito
inicial do movimento pentecostal com a teologia, justamente pelo medo de que
uma reflexão racional da fé pudesse levar ao formalismo tão criticado das igrejas
tradicionais, o teólogo pentecostal vai percebendo que é possível aliar o fervor
carismático aos critérios de discernimento que o método teológico oferece, evi-
tando assim extremismos desnecessários.

Espiritualidades sociotransformadoras

Vamos tratar agora de uma corrente espiritual bastante diversa daquela tratada
anteriormente, mas que tem, igualmente, bastante impacto na vivência cristã
das últimas décadas. Para compreendê-la, precisamos abordar um pouco da es-
trutura social recente do nosso país. O processo de industrialização do Brasil,
iniciado nos anos 1930 e acelerado a partir de meados do século XX, fez surgir
a esperança de que o país pudesse atingir o desenvolvimento dos países mais
ricos. É a mentalidade do progresso, tão própria da cultura moderna, que come-
ça a tomar conta da nação, especialmente das classes urbanas. A superação do
subdesenvolvimento, por essa visão, seria uma questão de tempo: integrando-se
à economia capitalista mundial, naturalmente o país iria superar o seu atraso.
Desenvolve-se a seguinte esperança: “vamos desenvolver em poucos anos aquilo
que os países mais adiantados levaram muitas décadas para resolver” (RUBIO,
2001, p. 56). Tal visão não se fez ausente em outros países da América Latina.
Porém, ainda nos anos 1950, uma certa vertente de intelectuais elabora outra
leitura da realidade. Eles defendem que, na verdade, os países periféricos faziam

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

parte de um sistema mundial de dominação neocolonial por meio do qual as na-


ções mais pobres sempre permaneceriam pobres, a fim de sustentar a riqueza dos
países centrais. Assim, a superação da pobreza não se daria por mero desenvolvi-
mento. Seria necessário um projeto de libertação, ou seja, um projeto autônomo de
país que o libertasse da lógica neocolonial. Certamente, essa libertação só poderia
se dar com o despertar da consciência crítica do povo mais pobre, facilitando a este
a participação no processo de tomada de decisão dos destinos da nação.
Dentre os envolvidos nessas discussões, muitos eram cristãos. Assim, surge
entre pessoas de fé, sobretudo oriundas da classe média, porém sensíveis à rea-
lidade dos marginalizados, a compreensão de que o cristianismo, na fidelidade
às opções de Jesus de Nazaré, deveria ser agente dessa transformação tão neces-
sária. A Teologia daí nascida, em um primeiro momento, acompanha e apoia
o trabalho dessas vanguardas pastorais. Porém, em um momento posterior,
descobre que o próprio povo mais pobre pode se organizar em comunidades,
falar uma linguagem própria e conquistar a própria autonomia. Nascem as
chamadas Comunidades Eclesiais de Base e a teologia que lhe dá suporte: a
Teologia da Libertação.
A partir dos anos 1970, no contexto da ditadura militar, é possível encontrar
milhares de cristãos e cristãs que lutam por liberdade, justiça social, democracia e
igualdade, não apesar da sua fé, mas justamente por causa dela. A espiritualidade
que move sua luta é a esperança de que o Reino de Deus pode se tornar concre-
to na promoção da vida dos marginalizados. Essa espiritualidade é alimentada
pela leitura popular da Bíblia em pequenos grupos e comunidades, o cultivo de
relações fraternas e igualitárias, o desenvolvimento de uma pluralidade de minis-
térios nas comunidades eclesiais, promovendo a descentralização das decisões.
A compreensão que se tem de Deus é a de que Ele é o companheiro dos pobres,
caminhando ao seu lado, da mesma forma que o fez ao lado do povo de Israel,
rumo à Terra Prometida.

2
2
2
UN I C ES UMA R

IN D ICAÇ ÃO DE FI LM E

Batismo de Sangue
O filme mostra o envolvimento de um grupo de frades domi-
nicanos que desenvolve relações diretas com grupos organi-
zados que combatiam a ditadura militar. É um dos inúmeros
registros da participação de lideranças cristãs na história po-
lítica recente do Brasil, a partir de uma motivação de fé.

Assim como no caso do movimento pentecostal, também a chamada “igreja


da libertação” passou por cima das fronteiras denominacionais e atraiu pessoas
de diversas confissões. Embora predominante no catolicismo, não foi raro ver
também entre membros de comunidades cristãs reformadas, pessoas engajadas
numa espiritualidade voltada para a transformação social. Embora a própria Teo-
logia da Libertação tenha entre seus membros, teólogos evangélicos, no campo
protestante desenvolveu-se uma linha teológico-espiritual específica, chamada
de Teologia da Missão Integral, cujo cerne é justamente o de superar uma visão
desintegrada do ser humano, lembrando que a salvação não envolve apenas a
alma, mas também o corpo e todas as suas dimensões.
Vale dizer que, por ser uma espiritualidade extremamente comunitária e vol-
tada para as causas sociais, essas espiritualidades sociotransformadoras perderam
um pouco de fôlego nas últimas décadas, sobretudo no período em que avançou
a crise da sociedade moderna e o surgimento de uma cultura ainda mais indivi-
dualista e consumista. Porém, apesar disso, algumas comunidades permanecem
resistentes no caminho de um cristianismo da libertação social.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

ZO O M N O CO NHEC I M ENTO

Os “Mártires das Causas Sociais” são inúmeros os exemplos de pessoas cristãs


que derramaram o seu sangue na luta por um mundo melhor a partir de sua
fé. Além do exemplo de Óscar Romero, anteriormente citado, no Brasil temos a
missionária Dorothy Stang, o Pe. Josimo Tavares, o líder operário Santo Dias e
tantos outros. Porém, essa lista de testemunhas da vida cristã na luta por justi-
ça não é exclusividade da espiritualidade da libertação latino-americana. Trata-
-se de uma lista engrossada por um nuvem de testemunhas de várias épocas e
lugares, como o pastor luterano Dietrich Bonhoeffer (1945), morto no campo de
concentração nazista por se opor ao regime de Adolf Hitler, bem como o pastor
batista Martin Luther King Jr. (1968), líder na luta pelos direitos civis da popula-
ção negra dos Estados Unidos.

Ao fazer a análise da espiritualidade da libertação


que se desenvolveu na América Latina, não po-
demos também deixar de fazer o discernimento
de alguns aspectos importantes. Com alguma
frequência, as pessoas e comunidades que guiam
a sua vida cristã por esse caminho espiritual são
acusadas de esquecer a dimensão mística da fé
em função da militância social. Assim, seria uma
espécie de cristianismo ativista, que poderia fa-
cilmente esquecer que o Reino de Deus é antes
um dom a ser implorado do que algo a ser cons-
Figura 2 – Óscar Romero, bispo de El truído por mãos humanas. É um risco que não
Salvador, na América Central, assassi-
nado em 1980, enquanto celebrava a pode ser desconsiderado por aqueles e aquelas
missa, por sua defesa dos mais pobres que seguem por esse caminho espiritual. O mo-
/ Fonte: https://abrir.link/OlgiL. Acesso
em: 14 set. 2023. tor da esperança cristã de um mundo melhor
Descrição da Imagem: homem
deve sempre ser a experiência pessoal do Deus
branco, cerca de 60 anos, de óculos, que se revelou plenamente naquele que é o ami-
sobrancelhas grossas, cabelos grisa-
go dos pobres por excelência, Jesus de Nazaré.
lhos, vestido como clérigo, com deta-
lhe da batina preta, colarinho branco Alguém que não é um personagem do passado
e solidéu roxo. Atrás do homem, uma
a inspirar uma militância, mas acima de tudo,
porta em madeira escura.
alguém que está vivo e presente na caminhada.

2
2
2
UN I C ES UMA R

Espiritualidades desinstitucionalizadas

Navegando entre as duas grandes propostas acima apresentadas, há um tipo de


espiritualidade extremamente sedutora e que se enquadra perfeitamente nas já
citadas características da cultura atual: extrema valorização da autonomia
do indivíduo e consumismo. há uma inflação de discursos e ofertas de espi-
ritualidade em todos os cantos, incluindo as mídias digitais. Quase sempre são
discursos que dissociam espiritualidade de religião. Esta, vista como a dimensão
institucional da fé, frequentemente é apresentada como engessada, dogmática,
intolerante. Aquela, porém, representaria a dimensão da liberdade da fé, a relação
direta da pessoa com o Divino sem a interferência de comunidades ou autorida-
des religiosas. Espiritualidade seria uma questão importante, uma questão a ser
redescoberta, inclusive em ambientes de onde ela havia sido expulsa: ambiente
hospitalar, mundo corporativo, iniciativas humanas diversas. Porém, essa nova
espiritualidade seria sempre uma espiritualidade difusa e descompromissada.
Embora não se negue que haja uma distinção entre religião e espiritualidade,
do ponto de vista da teologia cristã, separar completamente esses dois elemen-
tos representa uma distorção. As dimensões pessoal
e comunitária da fé não são opostas, mas comple- As dimensões
mentares. A espiritualidade não pode ser vista ape- pessoal e
comunitária da fé
nas do ponto de vista utilitário, como um recurso
não são opostas
para o bem estar pessoal, sem levar a pessoa a en-
contrar dois rostos para amar: “o do Pai e o do irmão”
(FRANCISCO, 2019, p. 61).
Um risco sutil que as comunidades cristãs e seus líderes podem correr é o
de ceder aos aspectos mais problemáticos dessa visão. Numa era do consumo, a
espiritualidade pode ser “vendida” como mais um produto a satisfazer consumi-
dores, embalada em modernas técnicas de marketing. O sistema econômico que
transforma pessoas em meros indivíduos consumidores não influencia apenas
comportamentos: mais do que isso, forma mentalidades, inclusive as nossas.
Esse mesmo sistema, percebendo que a fé é um elemento que não se elimina
tão facilmente da alma humana (como vimos anteriormente), pode cooptá-lo,
manipulá-lo e colocá-lo a serviço dos seus objetivos. Os líderes religiosos, por
sua vez, podem deixar-se seduzir por seus métodos e técnicas. Há o risco de se

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

transformar o discurso da fé em mera mercadoria que visa consolar os feridos e


machucados pelo sistema sociocultural e econômico atual.


A vitalidade do capitalismo reforçou o surto religioso. Nada melhor
do que uma religião que cumpra um duplo papel: anestesia qual-
quer crítica social e abre enorme espaço comercial, fazendo circular
milhões de dólares (LIBANIO, 2011, p. 80).

Nesse caso, apela-se para a emoção e para uma fé de resultados imediatos. O


encontro com Jesus Cristo pode ser transformado em uma mera experiência
emocional e a dimensão espiritual transformada em uma forma de prometer
soluções fáceis para os problemas da vida.
A espiritualidade é bem mais do que isso. É o caminho de seguimento de Jesus
Cristo. Um caminho que traz sim, um novo sentido para a vida, mas que envolve
também gratuidade, doação e serviço. Não dispensa a vida fraterna e comunitária
com outros seguidores de Jesus Cristo, sempre a serviço da humanidade e do
conjunto da Criação.
A relação com Deus não pode ser apresentada como mera relação comercial
de interesses, aos moldes das relações dominantes na atualidade. Tal espiri-
tualidade contemporânea, sutilmente inserida em
A relação com
nossas igrejas, é a negação do Evangelho da Graça e
Deus não pode
do Amor, tão heroicamente defendido por grandes ser apresentada
gênios da história do cristianismo como Paulo de como mera relação
Tarso, Agostinho de Hipona e Martinho Lutero. comercial

P E N SA N D O J UNTO S

Como teólogos e teólogas, de que maneira podemos analisar criticamente os mé-


todos e conteúdos das pregações nas igrejas e na mídia, a fim de evitar que a es-
piritualidade se transforme em mera mercadoria a fim satisfazer “consumidores”?

2
2
2
UN I C ES UMA R

A reflexão que fazemos não visa negar o diálogo com a sensibilidade atual e com
os elementos culturais que marcam a mentalidade hodierna. Trata-se de discernir
o que, de fato, pode ser expressão autêntica do Evangelho e o que é mera cessão
ao “espírito do tempo”. É o teólogo o profissional que tem as condições de ajudar
as igrejas a fazer esse discernimento.
Mais uma vez evocamos o exemplo de Paulo: diante do areópago de Atenas,
ele se dispõe a dialogar de coração com as pessoas que tem sede de transcendên-
cia, em espírito de acolhimento e abertura, mas, ao mesmo tempo, sem perder o
senso crítico do que é o essencial da fé (At 17, 15-34).

Espiritualidades “ fundamentalistas”

Um dos desafios em qualquer aspecto da vida, inclusive, na espiritualidade, está


sempre na busca do equilíbrio, da justa medida. A teologia, enquanto fé que
busca a sua fundamentação racional, tem um papel importante nessa busca. Os
extremismos costumam se tocar e se retroalimentar.
Assim, se alimentada pelo individualismo contem- Os extremismos
porâneo, se desenvolve uma espiritualidade que se costumam se tocar
pretende dissociada da experiência comunitária e do e se retroalimentar
compromisso com o próximo, como reação, crescem
na sociedade e no seio das diversas confissões cristãs formas mais rígidas de vi-
vência da fé, geralmente pouco abertas ao diálogo com outras visões de mundo.
Normalmente se atribui a essas formas de vivência espiritual o nome genérico
de “fundamentalismo”. Historicamente, esse termo foi elaborado nos Estados
Unidos, no início do século XX, no contexto polêmico que a teologia protestante
vivia naquele país. No século anterior, havia se desenvolvido na Europa uma teo-
logia chamada liberal, que procurou estabelecer a aceitação dos princípios mo-
dernos e da lógica do método da ciência positiva no contexto do debate teológico.
Com isso, todos os textos bíblicos que possuíam narrativas sobrenaturais eram
vistos como “mitos”, criações da comunidade cristã primitiva que não tinham
necessariamente nenhuma relação com acontecimentos históricos.
Em reação, o movimento fundamentalista nasceu no seio de alguns semi-
nários estadunidenses, reafirmando a inerrância da Bíblia e advogando a sua
interpretação literal. Esse movimento extrapola o espaço teológico e se torna
movimento político. Em muitas partes do país, campanhas são realizadas para

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

que quaisquer teorias que contrariassem as verdades bíblicas - como a teoria


evolucionista de Darwin - deixassem de ser ensinadas nas escolas. Esses debates
experimentaram uma espécie de reavivamento a partir dos anos 1970 por meio
do ministério de “Jerry Falwell, conhecido pastor conservador batista, que se auto
identificava como cristão fundamentalista e possuía um programa de televisão de
enorme audiência” (ROCHA, 2020, p. 470). Os seus efeitos se fazem sentir até os
dias atuais em diversos campos do debate público, incluindo o mundo da política.

O fato é que o termo “fundamentalismo” acabou ganhando conotações mais


amplas e, na falta de outra terminologia mais precisa, transformou-se em si-
nônimo de todas as espiritualidades pouco dialogadas, aguerridas, radicais e
até mesmo reacionárias. Em um primeiro momento, pode-se compreendê-las
como reação diante do relativismo moral presente em muitas correntes de
pensamento da sociedade atual. Porém, a teologia pode nos ajudar a refletir
sobre a possibilidade de se encontrar um meio-termo dentro dessas infindáveis
polarizações que, se não tratadas, podem chegar ao extremo de promover vio-
lência verbal e não-verbal em nome da fé. Nesse ponto, mais uma vez, a solução
será sempre voltar à pessoa de Jesus de Nazaré conforme nos é apresentado
nos evangelhos. O Mestre era aberto ao diálogo com todas as pessoas e, se
podemos encontrar alguma radicalização no seu discurso, será na sua defesa
do amor ao próximo como resposta ao amor divino. A dignidade da pessoa
humana em todas as suas dimensões, colocando-a acima da Lei, é um elemento
inescapável para qualquer espiritualidade que se pretenda cristã. O olhar de
amor que ele tinha para com todas as pessoas, mesmo aquelas que recusavam
a sua mensagem (Mc 10,21), é o paradigma da espiritualidade cristã que quer
ser uma prática de vida e não apenas uma teoria.

2
2
2
UN I C ES UMA R

E U IN D ICO

Vale a pena conhecer a história do martírio de 21 cristãos da Igreja copta, ocor-


rido no ano de 2015. O radicalismo religioso pode levar à violência, sempre que a
pretensa busca de uma verdade clara e cristalina se torna instrumento de poder
e se dissocia do amor. Embora o exemplo citado seja de uma violência pratica-
da contra cristãos, não se pode esquecer que cristãos de diversas confissões
praticaram e ainda praticam violência - física, psíquica, moral - em nome da fé.
É um fato lamentável que não coaduna com a essência da espiritualidade do
seguimento de Jesus de Nazaré.
Reportagem: Martírio dos 21 cristãos coptas pelo Estado Islâmico.
Recursos de mídia disponíveis no conteúdo digital do ambiente virtual de
aprendizagem.

Espiritualidades integradadoras

Nem tudo na sociedade atual é perdição! Vimos a importância de dialogar com


a sociedade, sem extremismos: nem a “demonização” da cultura e da sociedade,
nem a aceitação acrítica de tudo o que nos é apresen-
tado. A palavra-chave da espiritualidade é discerni- A palavra-chave da
mento. Nisso, podemos aprender da sensibilidade espiritualidade é
discernimento
holística que nasce da crise do racionalismo moder-
no. A palavra “holístico” vem do grego “holos”, que quer dizer, “todo”. Trata-se de
uma nova visão que não enxerga mais o ser humano dividido em partes, nem o
vê o separado da natureza.
Não se trata de negar a existência de diversas dimensões no ser humano (corpo,
mente e espírito) e nas suas relações com o mundo. Trata-se, no entanto, de vê-las
de maneira integrada. Nesse sentido, podemos resgatar uma saudável relação entre
saúde e espiritualidade - como vimos anteriormente, em nosso tema - bem como
compreender a inteligência como um elemento não apenas racional, mas também
emocional e espiritual. Nesse aspecto, podemos encontrar um ponto de contato
entre os esforços da ciência atual, na busca de superar excessos racionalistas do
passado, com uma saudável espiritualidade integrada e integradora.

2
2
2
T E MA D E APRE N D IZAGEM 9

IN D ICAÇÃO DE LI V RO

Inteligência Espiritual
Depois de descobrir, nos últimos anos do século passado,
que a inteligência envolve não apenas a cognição, mas tam-
bém a emoção, agora, a ciência faz as pazes também com a
espiritualidade. Danah Zohar e Ian Marshall nos apresenta a
ideia de que a busca de um propósito de vida mais profundo,
bem como senso de colaboração para com a coletividade,
deve fazer parte do coeficiente de inteligência. Um belo exer-
cício de diálogo entre as diversas áreas do saber humano.

E M FO CO

Preparamos um vídeo para você compreender melhor como construir o sucesso


no dia a dia. Acesse o material e fique por dentro desse tema importante que
contribuirá para o seu desenvolvimento. Recursos de mídia disponíveis no
conteúdo digital do ambiente virtual de aprendizagem.

NOVOS DESAFIOS
Vimos que as espiritualidades contemporâneas, se de fato, são expressões do dom
do Espírito Santo à humanidade no tempo presente, não podem ser individua-
listas e devem estar abertas a produzir frutos comunitários e sociais. Teólogos e
teólogas poderão se aproximar dessas espiritualidades, sem preconceitos, mas ao
mesmo tempo com saudável atitude crítica, a fim de ajudá-las a discernir o que
realmente é fruto do Espírito para os nossos dias e o que são apenas modismos,
ou mesmos experiências manipuladoras que visam atrair público sem a preocu-
pação com a autenticidade da vida cristã. Um teólogo que seja, ao mesmo tempo,
um místico, tem recursos para colaborar no aprofundamento e amadurecimento
da fé de pessoas e comunidades e possui uma grande contribuição a oferecer.

2
2
2
VAMOS PRATICAR

1. Seymour foi o pai espiritual de milhares dos primeiros pentecostais americanos.

Identifique dentre as alternativas abaixo, aquela que melhor corresponde à narrativa


fundadora do movimento pentecostal.

a) O pentecostalismo é um ramo do cristianismo que surgiu diretamente da reforma luterana.


b) Embora tenha surgido quase simultaneamente em várias partes, a narrativa fundadora
está ligada, sobretudo, a uma comunidade surgida em Los Angeles, na Rua Azusa,
pelas mãos de um descendente de escravizados.
c) O movimento pentecostal foi criado na passagem da década de 1970 para a década
de 1980.
d) Movimento pentecostal e movimento carismático são duas realidades completamente
independentes.
e) William Seymour fundou a primeira Igreja pentexcostal no Kansas (EUA).

2. O surto religioso está aí. Complexo, multicolorido: como entender o atual fenômeno
religioso? Como nos posicionar diante dele a partir da fé cristã?

Independente das análises sociológicas, a ciência da fé vai identificar causas teológicas


para a persistência da busca da espiritualidade no mundo contemporâneo. Sobre essas
causas, podemos afirmar que:

I - O ser humano foi criado por Deus e por isso é constantemente atraído para Ele.
II - As ciências sociais sempre erram quando se dispõem a analisar o fenômeno religioso.
III - Na relação entre fé e razão, a fé finalmente provou ser superior e saiu vencedora
na disputa.

É correto o que se afirma em:

a) I, apenas.
b) III, apenas.
c) I e II, apenas.
d) II e III, apenas.
e) I, II e III.

2
2
2
VAMOS PRATICAR

3. A Igreja se autodescobre presente, com vitalidade, na realidade das comunidades dos


pobres e explorados, que se encontram em tal situação devido à sede de poder do
mundo moderno e, recentemente, do mundo da economia globalizada. A seguir, indique
a alternativa correta quanto ao enunciado:

a) São sempre corruptoras da genuína espiritualidade cristã.


b) Esqueceram-se completamente da dimensão mística da fé.
c) Não são verdadeiras espiritualidades, pois não passam de reflexão acadêmica, sem
impacto pastoral ou social.
d) São movidas pela esperança de que o Reino de Deus pode se tornar concreto na
promoção da vida dos marginalizados.
e) São restritas ao campo católico, sem causar nenhum impacto no meio protestante.

2
2
2
REFERÊNCIAS

ANDERSON, A. Uma introdução ao pentecostalismo: cristianismo carismático mundial.


São Paulo: Loyola, 2019.

ANDRADE, P. F. C. Neopentecostalismo, anarcocapitalismo e a teologia da batalha espiritual.


In: LIMA, D. N. L.; ANDRADE, D. A. A.; ANDRADE, P. F. C. Teologia da história e ação trans-
formadora. Rio de Janeiro: Letra Capital/PUC-Rio, 2021. p. 148-167.

DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.

FRANCISCO, PP. Exortação apostólica Gaudete et Exultante sobre o chamado à san-


tidade no mundo atual. 3. ed. Brasília: CNBB, 2019.

LÉGER-HERVIEU, D. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. 2. ed. Petrópolis:


Vozes, 2015.

LIBÂNIO, J. B. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2011.

RAHNER, K. Elementos de espiritualidade na Igreja do futuro. In: GOFFI, T; SECONDINI, T.


(orgs.). Problemas e perspectivas de espiritualidade. São Paulo: Loyola, 1992.

ROCHA, D. Sob o estigma do fundamentalismo: algumas reflexões sobre um conceito con-


troverso. Horizonte, Belo Horizonte, v. 18, n. 56, p. 455-484, mai./ago., 2020.

RUBIO, A. G. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 3. ed.


São Paulo: Paulus, 2001.

2
2
2
CONFIRA SUAS RESPOSTAS

1. Opção B.

2. Opção A.

A afirmativa I é a única de que fundamenta de modo teológico a persistência da fé no


mundo moderno. As outras duas alternativas são falsas pois demonstrariam um julga-
mento depreciativo do conhecimento científico.

3. Opção D.

2
2
2
MEU ESPAÇO

2
2
2
MEU ESPAÇO

2
2
2

Você também pode gostar