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Organização:

Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto

ARGUMENTAÇÃO À LUZ
DA RACIONALIDADE
E DA EMOÇÃO

Coleção
Coleção contradiscursos
contradiscursos
Grácio
Organização:
Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto

ARGUMENTAÇÃO À LUZ
DA RACIONALIDADE
E DA EMOÇÃO
Ficha técnica

Título:
Argumentação à luz da racionalidade e da emoção

Organização:
Giovanni Damele (IFILNOVA/FCSH)
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Rosalice Pinto (CEDIS/CLUNL)

Comissão editorial:
Acir Mário Karwoski (UFTM)
Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL)
Fabrizio Macagno (IFILNOVA/FCSH)
Giovanni Damele (IFILNOVA/FCSH)
João Gomes da Silva Neto (UFRN)
Luis Passeggi (UFRN)
Maria Aldina Marques (Universidade do Minho)
Maria Inês Batista Campos (USP)
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Rosalice Pinto (CEDIS/CLUNL)
Sueli Cristina Marquesi (PUCSP)
Zilda Aquino (USP)

Comissão de avaliação:
Adriano Lopes Gomes (UFRN)
Alexandro Teixeira Gomes (UFRN)
Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL)
Eliete Queiroz (UFRN)
Fabrizio Macagno (IFILNOVA/FCSH)
Ivone Ferreira (FCSH/UNL)
Maria Aldina Marques (Universidade do Minho)
Maria Eduarda Giering (UNISINOS)
Micheline Mattedi Tomazi (UFES)
Sueli Cristina Marquesi (PUC/SP)

Revisão técnica:
Célia Maria de Medeiros (UFRN)
Karla Geane de Oliveira (UFRN)

Capa:
Grácio Editor

Coordenação editorial:
Mafalda Lalanda

Design gráfico:
Grácio Editor

1ª edição: setembro de 2018 (formato digital)


ISBN: 978-989-54215-0-3

© Grácio Editor
Travessa da Vila União, 16, 7.º drt
3030-217 Coimbra, Portugal
Telef.: 239 084 370
e-mail: editor@ruigracio.com
sítio: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos


Índice

APRESENTAÇÃO .................................................................................7

A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO


DE POSTURAS ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS
DE PEDIDO DE FALÊNCIA ..................................................................11
Anderson Souza da Silva Lanzillo — UFRN

RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA
E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO ....................27
Célia Maria de Medeiros — UFRN

A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA


NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA ........................43
Nouraide Fernandes Rocha de Queiroz — UFRN

AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS
COM VALOR ARGUMENTATIVO E OS TERMOS DE EMOÇÃO
NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE JOSÉ DIRCEU
NA OPERAÇÃO LAVA JATO ..................................................................57
Fernanda Isabela Oliveira Freitas — UFRN

ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:


UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA
NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL ..........................................75
Hális Alves do Nascimento França — UFRN

ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:


OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA ............97
Emiliana Souza Soares — IFRN

A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA


SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA ................................................129
Alba Valéria Saboia Teixeira Lopes — UFRN
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO .....................................141


Maria de Fátima Silva dos Santos — UFRPE/UAST

REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO


EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA .......................157
Flávia Elizabeth de Oliveira Gomes — UFRN

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ:


UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS, MUITOS ARGUMENTOS
E VARIADAS REPRESENTAÇÕES ........................................................167
Francisco Geonilson Cunha Fonseca — UFRN

O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:


A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF ....181
José Iranilson da Silva — UFRN

A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO


NA CONSTRUÇÃO ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER ..................................................195
Isabel Romena Calixta Ferreira — UFRN
Apresentação

O grupo de Pesquisa em Análise Textual dos Discursos (ATD) da Uni-


versidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), registrado no Dire-
tório Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), no endereço
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/9758120954557832, liderado pela
Professora Maria das Graças Soares Rodrigues, vem desenvolvendo, há
anos, estudos sobre as interfaces que podem ser estabelecidas entre os
estudos discursivos e a prática jurídica. Desses, resultaram dissertações
de Mestrado (9 defendidas e 4 em andamento), teses de doutorado (07 de-
fendidas e 11 em curso) e a supervisão concluída de 02 pós-doutorados,
05 em andamento, livros e artigos publicados, além de várias comunica-
ções em congressos nacionais e internacionais sobre essa temática, no
Brasil, na Europa, América do Norte e na América do Sul.
No que tange especialmente aos estudos sobre a argumentação, numa
perspectiva interdisciplinar, estabeleceram-se desde 2015 parcerias com
pesquisadores/docentes de instituições internacionais, nomeadamente,
Rosalice Pinto (Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa e
Centro de Investigação & Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade) e
Giovanni Damele (Instituto de Filosofia da Linguagem da Universidade
Nova de Lisboa). Estes ministraram cursos específicos, de acordo com en-
foques teóricos distintos (mas complementares): o primeiro, centrando-se
em perspectivas textuais/discursivas, e o segundo, seguindo uma aborda-
gem teórica de cunho filosófica. Tais parcerias tiveram como resultado a
publicação, por esta editora, em 2016, do livro Textos e Discursos no Di-
reito e na Política: Análises e Perspectivas Interdisciplinares, resultado
dos trabalhos finais dos alunos inscritos na disciplina “Argumentação em
textos jurídicos, políticos e midiáticos”, ministrada no 2o semestre de 2015
por Rosalice Pinto; e o livro que aqui se apresenta, oriundo da disciplina
ministrada pelos Professores Maria das Graças Soares Rodrigues e por
Giovanni Damele em 2017, centrada fundamentalmente nos Estudos
sobre a Argumentação e a Emoção nos Discursos Jurídicos.
Evidentemente, é importante ressaltar que para uma visão aprofun-
dada da complexidade da argumentação contemporânea, não podemos dei-
xar de mostrar as suas origens, mostrando a importância da retórica
clássica para a sua fundamentação teórica e prática, salientando que esta
última nasceu e se desenvolveu nos tribunais da Antiguidade. De fato, os

7
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

retóricos clássicos, gregos e latinos, sempre consideraram os gêneros dis-


cursivos do domínio judicial como o discurso retórico par excellence. E
quando as instituições democráticas da polis grega e da republica romana
desapareceram, foi nos tribunais que a prática e a teoria do discurso per-
suasivo continuaram se desenvolvendo. Também deste ponto de vista, a
obra Tratado da Argumentação a Nova Retórica, de Chaïm Perelman e
Lucie Olbrechts-Tyteca, representou a interpretação contemporânea desta
relação entre Retórica e Direito. Pai da contemporânea teoria da argu-
mentação, que enxertou no tronco da retórica aristotélica, Perelman, em
especial, era também jurista e aplicou a “nova retórica” ao discurso jurí-
dico, considerando-o o “caso paradigmático” do discurso prático em geral.
Desde então, a relação entre Teoria da Argumentação e Direito tor-
nou-se ainda mais estrita e pode-se dizer que hoje os estudos de Teoria
da Argumentação Jurídica apresentem, talvez, a ‘fatia’ mais relevante da
produção científica na área da argumentação em geral.
Isto também porque a Teoria da Argumentação Jurídica desenvolve-
se no cruzamento entre muitas e diferentes disciplinas, caracterizada por
uma natural vocação interdisciplinar. A Teoria do Direito encontra a Teo-
ria da Argumentação em sentido próprio, as seculares tradições da retó-
rica e da tópica jurídica – esta última reavivada sobretudo por Theodor
Viehweg – a Linguística (e, em particular, a rica tradição da Linguística
Forense), a Lógica (com o desenvolvimento da lógica deóntica de Von
Wright), até os estudos, a partir dos anos 60/70, da “juscibernética” e,
hoje, da Artificial Intelligence & Law.
Dessa forma, em um contexto teórico cada vez mais complexo, é ine-
vitável que os estudos sobre o discurso jurídico, no seu conjunto, sejam,
cada vez mais, caracterizados por uma especialização crescente. Justa-
mente por esta razão, parece ser fundamental manter laços entre os di-
ferentes âmbitos de estudo e fomentar uma abordagem quanto mais
possível abrangente à análise do discurso jurídico. É o que um número
siginificativo de professores pesquisadores vem se tentando fazer no con-
texto do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte (PPgEL/UFRN), na área de
concentração “Linguística Teórica e Descritiva”, na Linha de Pesquisa
“Estudos Linguísticos do Texto”.
Este livro é um dos últimos resultados da parceria estabelecida entre
pesquisadores/docentes do PPGEL, do IFL-UNL e do CLUNL/CEDIS-
UNL cujo intuito é o de favorecer inter-relações entre os estudos da lin-
guística textual/discursiva (com ênfase na prática jurídica) e os da Teoria
da Argumentação Jurídica, em um diálogo constante entre juristas, lin-
guistas e teóricos da argumentação.

8
APRESENTAÇÃO

Os diferentes capítulos refletem muito bem este programa. Não fal-


tam textos da cariz mais geral, introdutórios ao tema da Teoria da Argu-
mentação em âmbito jurídico (A Argumentação no Discurso Jurídico, de
Maria de Fátima Silva dos Santos) ou que abordam tópicos na fronteira
entre discurso jurídico e discurso político (O Plano de Texto e a Orientação
Argumentativa: A Denúncia de Impeachment da Presidenta Dilma Rous-
seff, de José Iranilson da Silva), mas também, em certa medida, Análise
Textual dos Discursos: Uma Proposta de Análise de Força Argumentativa
no Discurso Jurídico Internacional de Hális Alves do Nascimento
França). Em geral, os textos têm como ponto de partida ou como objetivo
uma análise empírica e, em particular, uma análise da práticas argumen-
tativas ordinárias, ou até, poder-se-ia dizer, cotidianas dos tribunais. Um
aspecto, este último, que merece destaque. Mais do que os casos excep-
cionais ou, talvez, os casos mais mediatizados, é a construção de um con-
junto de práticas argumentativas “normais” que releva sobretudo na
relação entre o “sistema jurídico” (no seu complexo) e o cidadão. Deste
ponto de vista, a análise destas práticas representa uma tarefa funda-
mental, não só para descrever e reconstruir a linguagem e o discurso ju-
rídico em contextos reais, mas também para encontrar soluções para uma
alheação crescente entre o cidadão destinatário dessas práticas – leigo,
frequentemente pouco instruído – e um “poder” que, amiúde, recorre a
um linguajar técnico-especializado para, talvez, “excluir” o ‘outro’. Em
um estado de direito, em que o controle democrático sobre os poderes es-
taduais é fundamental, uma vez que é o instrumento por excelência para
a garantia dos direitos individuais, cabe às instituições encontrar solu-
ções para favorecer a inclusão destes mesmos cidadãos. E a linguagem
representa, assim, um instrumento privilegiado para que esta possa exis-
tir. Abre-se, assim, um espaço fundamental para uma função social da
análise teórica: não sendo uma mera descrição de um estado de coisas,
mas também um instrumento de progresso e civilização.
Esses trabalhos, que publicamos, devem, portanto, ser considerados
como promessas de desenvolvimentos futuros. Alguns podem ter um teor
mais introdutório, outros são mais ‘maduros’, todos representam um de-
safio. Tentam desenvolver, do ponto de vista interno, um confronto entre
Linguística e Teoria da Argumentação e, do ponto de vista externo, entre
teorias e práticas. Em ambos os casos, essa tentativa pode ajudar os “dis-
centes” (mestrandos, doutorandos, alunos doutorados do curso) a evitar
os riscos de um discurso autorreferencial. Riscos bem presentes em con-
textos teórico-académicos. Riscos que são ainda mais sérios no âmbito ju-
rídico, onde um discurso autorreferencial, como fim em si mesmo e não
como instrumento, representa uma das patologias mais graves. Lembre-

9
mos que todos os “operadores jurídicos” podem transformar-se no advo-
gado satirizado por Honoré Daumier que, à sua cliente, viúva desespe-
rada com um filho, responde: «Vous avez perdu votre procès, c’est vrai...
mais vous avez dû éprouver bien du plaisir à m’entendre plaider!».

Os Organizadores:
Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto

10
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE
AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS
JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
Anderson Souza da Silva Lanzillo — UFRN

Introdução
O uso de argumentos baseados na autoridade é um recurso muito
constante em sentenças judiciais. A autoridade da lei, da jurisprudência
e da doutrina é invocada, muitas vezes, como fundamento que autoriza o
juiz a estabelecer a sua conclusão, materializada na decisão com força ob-
rigatória para as partes do processo. Em trabalho anterior1, exploramos
o uso da autoridade para a coconstrução do Ponto de Vista — PDV do juiz
sobre o direito discutido na sentença judicial e as funções do argumento
da autoridade nesse gênero discursivo/textual.
No presente trabalho, analisamos os mecanismos enunciativos pelo
qual o juiz constrói o argumento de autoridade por meio de posturas enun-
ciativas (RABATEL, 2008a, 2013, 2016). Discutimos o conceito de argu-
mentação e argumentação jurídica (PERELMAN; TYTECA, 2005;
ATIENZA, 2005) e de argumento de autoridade (WALTON; KOSZOWY,
2014; PERELMAN; TYTECA, 2005; FERRAZ JR., 2003). A teoria do Ponto
de Vista — PDV de Rabatel (2008a, 2013, 2016) foi adotada para tratar
dos mecanismos enunciativos presentes nas sentenças judiciais, os quais
se manifestam por diversas marcas linguísticas. Discutimos as categorias
relacionadas ao Ponto de Vista — PDV na concepção de Rabatel (2008a,
2013, 2016) com vistas à abordagem das posturas enunciativas.
Fizemos análise de corpus, o qual é composto de sentenças judiciais
de pedido de falência. Tratamos a autoridade como enunciador segundo
(e2), cujo PDV se manifestou de diversas formas linguísticas nas sentenças
analisadas. O juiz, enquanto locutor/enunciador primário (L1/E1), realiza
operações de coenunciação na coconstrução do seu PDV pela mobilização
das autoridades como fundamento das sentenças prolatadas.
A coconstrução foi entendida como a realização de posturas enuncia-
tivas, as quais são tratadas por Rabatel (2008a, 2013, 2016) em três ca-
tegorias: subenunciação, coenunciação e sobre-enunciação. As diversas
posturas enunciativas encontradas no corpus apontaram os mecanismos
1
Lanzillo (2016b).

11
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

enunciativos pelos quais a construção do argumento por autoridade ma-


nifesta-se textualmente, levando em conta vários modos de realização de
um PDV comum e compartilhado com o juiz.

1. Argumentação jurídica e argumento de autoridade


A argumentação jurídica é estudada tanto como uma das formas da
realização da argumentação em geral (TOULMIN, 2003) quanto como
uma expressão de uma prática/atividade textual-discursiva relacionada
a um grupo/situação social (PINTO, 2010). Diante disso, delineamos, em
linhas teóricas gerais, em que lugar situamos a argumentação, bem como
a argumentação jurídica, com o fim de compreendermos o argumento de
autoridade no interior da problemática posta pelo nosso estudo.
O conceito de argumentação é utilizado para descrever práticas que
muitas vezes se sobrepõem a outras para explicar os processos de
produção/recepção/ação de sentidos, tais como retórica, persuasão ou mesmo
interpretação. Conceituar a argumentação, portanto, é uma tarefa de cir-
cunscrever a que campo de processos de geração de sentidos nos referimos.
Perelman e Tyteca (2005) definem seu conceito de argumentação em
comparação com a demonstração e a lógica formal. Para os autores, a de-
monstração não depende de características contingentes, mas de um sistema
de regras formais calcadas na lógica e na matemática. A argumentação, por
sua vez, tem como objetivo, à semelhança da demonstração, partir de pre-
missas para chegar a uma conclusão, mas os mecanismos que são postos em
movimento dependem de fatores individuais, psicológicos e sociais, variáveis
conforme o auditório imaginado pelo orador (auditório universal/auditório
particular). A argumentação teria por objetivo, segundo essa visão, a adesão
realizada por um auditório a uma tese defendida por um orador, modificando
uma situação anteriormente existente.
Toulmin (2003) não define a argumentação em comparação ou oposi-
ção à demonstração e à lógica. Na verdade, o autor desenvolve uma crítica
aos estudos da lógica tradicional e propõe no seu livro Uses of Argument
o desenvolvimento de uma “lógica ampliada” em que a argumentação é
um caso geral da explicação de diversos problemas lógicos a partir de um
modelo em analogia ao pensamento legal (jurisprudence). Nessa concep-
ção, estudar os argumentos é analisar os procedimentos racionais pelos
quais se sustenta uma tese (claim).
Considerando as observações de Pinto (2010), podemos concluir que
em ambos autores, apesar de suas diferenças, a argumentação está rela-
cionada ao conteúdo racional do discurso, valendo-se de meios para que se
convença alguém das conclusões a partir das teses postas pelo orador.

12
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

Desde Aristóteles, a prática e o discurso jurídico são vistos como um


dos campos de realização específica da argumentação. Como observa
Atienza (2005, p. 01),

Ninguém duvida que a prática do direito consista, de maneira muito


fundamental, em argumentar e todos costumamos concordar que a
qualidade que melhor define o que se entende por bom jurista
talvez seja a capacidade para imaginar e manejar argumentos com
habilidade.2

Por essa razão, Atienza (2005) salienta que se desenvolveram várias


teorias da argumentação jurídica, seja de caráter descritivo ou prescritivo
desse discurso/prática. Igualmente, observa que se pode falar em três cam-
pos da argumentação jurídica: a) produção de normas jurídicas; b) aplicação
das normas jurídicas para a solução de casos concretos (o tipo de teoria/es-
tudo mais comum em Direito); c) a argumentação na dogmática jurídica.
No âmbito do Direito, Atienza (2005) explica que argumentação de-
senvolve um papel mais de justificação das conclusões a que se chega do
que de sua explicação. Devido a esses aspectos, as teorias da argumenta-
ção jurídica têm por objeto ou descrever esses procedimentos de justifi-
cação ou prescrever regras de como devem ser feitas as operações de
justificação realizadas.
Ferraz Jr. (2003) trata a argumentação jurídica no campo mais vasto
da teoria da decisão. A partir dessa concepção teórica, a argumentação
faz parte dos elementos de comunicação que envolvem a decisão jurídica,
especialmente o elemento racional (fundamentação) tendo em vistas a
complexidade gerada por alternativas disponíveis para a resolução de um
conflito institucionalizado pelo direito.
Na argumentação jurídica podemos encontrar variados tipos de ar-
gumentos que são listados na literatura sobre o tema. Mas, como ressal-
tamos no início, o argumento de autoridade é entre eles um dos mais
comuns, tendo em vista as características sociais/institucionais que en-
volvem o discurso jurídico.
Walton e Koszowy (2014) relatam que os estudos no campo da argumen-
tação tradicionalmente classificam o argumento de autoridade como uma fa-
lácia informal, mas que esses mesmos estudos têm revisto essa posição,
recentemente. Reconhece-se que o argumento de autoridade pode ser legí-
timo, embora seja necessário distinguir os casos falaciosos dos não falaciosos.
2
“Nadie duda de que la práctica del derecho consiste, de manera muy fundamental, en argu-
mentar, y todos solemos convenir en que la cualidad que mejor define lo que se entiende por
un buen jurista tal vez sea la capacidad para idear y manejar argumentos con habilidad.”

13
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Walton e Koszowy (2014) diferenciam dois tipos de autoridade: a) au-


toridade epistêmica (especialista num campo de um saber); b) autoridade
administrativa (pessoa dotada de poder decisão/comando). Segundo esses
autores, as falácias envolvendo o argumento de autoridade derivariam da
confusão da própria noção de autoridade, uma vez que não distingue au-
toridade epistêmica de autoridade administrativa. Cada tipo de autoridade
implicaria em formas de raciocínios diferentes. Os raciocínios envolvendo
autoridade administrativa abrangem escolhas e não estão muito abertos a
questionamentos enquanto os raciocínios relativos à autoridade epistêmica
não fogem do campo da verdade/falsidade, fazendo com que sejam raciocínios
derrotáveis por outras razões (WALTON; KOSZOWY, 2014).
Segundo Perelman e Tyteca (2005), o argumento de autoridade está
relacionado ao prestígio e à honra que certas pessoas inspiram em socie-
dade. A palavra dada por essas pessoas funciona como uma garantia à
argumentação. Uma vez que se apoia em características do indivíduo con-
vocado, o argumento de autoridade foi bastante atacado, dado que colo-
caria a autoridade conclamada no campo da infalibilidade. Apesar de
atacável, Perelman e Tyteca (2005) consideram que o argumento de au-
toridade possui importância no campo da argumentação, especialmente
em áreas como o Direito, em que os problemas não poderiam ser reduzi-
dos à questão da busca pela verdade, uma vez que são cercados de ques-
tões voltadas à justiça e à paz social. A argumentação jurídica tem na
tradição — por meio da jurisprudência — valor de raciocínio válido, o que
confere ao argumento de autoridade legitimidade própria nesse campo.
Mesmo fora do Direito, pode ser observada a função desempenhada pelo
argumento de autoridade.
Complementam Perelman e Tyteca (2005) com a observação de que
o argumento de autoridade pode ser do tipo maioria numérica, bem como
salientam que o argumento em questão depende de acordos sobre o valor
da autoridade, o que pode gerar conflitos entre autoridades.
Ferraz Jr. (2003) considera que o argumento de autoridade pode ser
topos de qualidade (quando fundado no prestígio da pessoa) ou topos de quan-
tidade (número de opiniões favoráveis/desfavoráveis a uma tese). Na argu-
mentação jurídica, o argumento de autoridade faz-se presente tanto como
topos de qualidade como de quantidade, podendo ambos ser combinados.
Ainda segundo esse autor, a argumentação jurídica é fundamental-
mente estruturada em torno do argumento de autoridade. A doutrina e a
jurisprudência exercem papel de determinação de um campo de raciocí-
nios e argumentos válidos não somente pela “lógica” em que estão reves-
tidos, mas principalmente pela tradição que carregam. O argumento de
autoridade, seguindo a concepção teórica desse autor acerca da ciência

14
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIAARTIGO

jurídica como a criação de possibilidades para uma decisão institucional,


confere sentido próprio à argumentação jurídica, diferenciando e apar-
tando de outros campos de atividade argumentativa, bem como explica o
caráter dogmático do Direito Moderno. A presença e sentido dado pelo ar-
gumento de autoridade no Direito, contudo, não significaria para Ferraz
Jr (2003) a ausência de conflitos, mas o seu contrário: no Direito são es-
tabelecidas hierarquias entre autoridades que mudam no tempo e no es-
paço e são essas hierarquias que permitem decisões institucionais como
forma de controle da comunicação e comportamento humano.
Concluímos, assim, que o argumento de autoridade, apesar de suas
restrições de validade no campo de práticas discursivas, onde o valor de
verdade possui importância maior, é reconhecido como estrutura de ra-
ciocínio válido e importante no campo do discurso jurídico.

2. Teoria do Ponto de Vista — PDV e posturas


enunciativas
Rabatel (2008, 2016) propõe uma análise das posturas enunciativas a
partir da sua Teoria do Ponto de Vista — PDV. Por essa razão, descrevemos
de forma breve a Teoria do PDV em Rabatel, de modo a compreender como
esse autor aborda a questão das posturas enunciativas.
O PDV é uma problemática de análise no âmbito das práticas dis-
cursivas que cruza dois campos de estudos: a enunciação e a referencia-
ção. O PDV é recuperável a partir do conteúdo proposicional, com a
identificação da fonte enunciativa, da forma de atribuição de referentes
e do agenciamento de frases em textos (RABATEL, 2008, 2016).
A análise do PDV implica na separação entre locutor e enunciador.
Essa análise de Rabatel (2008, 2016), inspirada em Ducrot, permite en-
xergar o desdobramento enunciativo ainda que em situações que não
sejam da enunciação pessoal. As marcas da enunciação, portanto, não são
exclusivas de suas formas embreadas (enunciação pessoal), mas também
aparecem em formas não embreadas (teórica e histórica), já que o PDV
não se manifesta apenas por marcas explícitas da subjetividade.
Nesses termos, Rabatel define o PDV da seguinte forma:

Em sua forma mais geral, o PDV define-se pelos meios linguísticos


pelos quais um sujeito considera um objeto, em todos os sentidos
do termo considerar, quer o sujeito seja singular ou coletivo. Quanto
ao objeto, ele pode corresponder a um objeto concreto, certamente,
mas também a uma personagem, uma situação, uma noção ou um
acontecimento, porque, em todos os casos, trata-se de objetos de
discurso. O sujeito, responsável pela referenciação do objeto,

15
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

exprime seu PDV, tanto diretamente, por comentários explícitos,


como indiretamente, pela referenciação, isto é, pelas escolhas de se-
leção, de combinação, de atualização do material linguístico. Con-
trariamente a uma ideia muito disseminada, essas escolhas sinali-
zam-se apenas explicitamente, por marcas de subjetividade,
estampadas como tais. São identificadas, ainda, por intermédio das
escolhas mais objetivantes e/ou implícitas. (RABATEL, 2016, p. 30).

Rabatel (2013, p. 160) assevera que as posturas enunciativas en-


volvem instâncias e operações que têm a ver com a organização da “[...]
coprodução dialógica, cognitiva e interacional dos enunciados”. As pos-
turas enunciativas sucedem pelo fato da responsabilidade enunciativa
ocorrer tanto em razão ao discurso, feita pelo locutor/enunciador primá-
rio, quanto relativa às instâncias internas de validação, feita pelos
enunciadores segundos.
Rabatel (2013) define as posturas enunciativas como aquelas que:

[...] correspondem às relações entre os enunciadores na coconstrução


linguística de um ‘mesmo’ PDV, considerando que as formulações
não alteram significativamente o PDV inicial. Nos planos sintático e
discursivo, a coconstrução repousa de forma central sobre as marcas
da retomada, citação, menção, reformulação, recontextualização: den-
tro desse quadro, todas as marcas que entram na coconstrução dos
PDV (modo de atribuição referencial, escolha de predicação, progres-
são temática, tipos de argumento, procedimentos retóricos, etc.) con-
tribuem para a expressão de posturas de co-, sobre- e subenunciação
(RABATEL, 2008b, 2010b, 2011a, b). (RABATEL, 2013, p. 173).

A postura de coenunciação ocorre quando dois locutores/enunciadores


produzem e partilham um PDV comum. Na postura de sobre-enunciação,
há uma coprodução de um PDV, mas o locutor/enunciador primeiro refor-
mula o PDV para seus propósitos argumentativos, ainda que pareça que
diga a mesma coisa que o enunciador segundo mobilizado. A postura de
subenunciação é o caso da coprodução de um PDV dominado, uma vez
que L1/E1 toma com distância um PDV de uma fonte segunda com status
predominante (LANZILLO, 2016a).
As posturas enunciativas são uma forma mais refinada de analisar
a concordância enunciativa, permitindo visualizar graus de concordân-
cia/discordância na coprodução do PDV. Dessa forma, a articulação de
posturas enunciativas em textos permite realizar, a partir do jogo da
enunciação, uma orientação argumentativa que sirva ao propósito dos
textos em que está inserida.

16
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

3. Argumento de autoridade e posturas enunciati-


vas em sentenças de pedido de falência — análise
de corpus
Nossa análise de corpus foi embasada em três sentenças judiciais de pe-
dido de falência3, representativas de nossas pesquisas no campo da respon-
sabilidade enunciativa em texto/discurso jurídico (LANZILLO, 2016a). Para
tanto, empreendemos os seguintes passos: 1 — elaborar quadros referentes
às posturas enunciativas realizadas pela coordenação de diversos argumentos
de autoridade; 2 — análise da construção linguística/textual/discursiva das
posturas enunciativas encontradas de modo a verificar as relações de sentido
frente aos argumentos de autoridade mobilizados.
A construção dos quadros levou em consideração as questões teóricas
levantadas preliminarmente no nosso trabalho. Assim, apesar de não es-
tabelecermos a identidade que Toulmin (2003) realiza entre argumentação
e lógica, usamos no nosso quadro sua proposta em relação ao raciocínio
argumentativo. Destacamos a tese sustentada e a seguir listamos as au-
toridades/argumentos de autoridade que sustentam a tese proposta.
Ao apontar os argumentos de autoridade, separamos as autoridades
mobilizadas enquanto enunciadores (e2) em autoridades epistêmicas e
autoridades administrativas, conforme proposta de Walton e Koszowy
(2014). Listamos as autoridades e depois indicamos os segmentos textuais
nos quais elas ocorrem (ver quadros 01, 02 e 03 nas páginas seguintes).
Observamos, em primeiro lugar, que a forma pela qual o
locutor/enunciador primário (L1/E1, o juiz) demarca seu PDV e introduz
as autoridades (enunciadores segundos, e2) não estão em geral no plano
das formas de enunciação pessoal. Dessa forma, não predomina o uso de
formas subjetivantes (como as modalidades e índice de pessoas) para de-
marcar o PDV de L1/E1 como podemos observar no quadro 01 (“O pedido
de falência não caracteriza qualquer abuso de direito”; “é opção do cre-
dor”), no quadro 02 (“[...] considerado eficiente à elisão da falência”) e no
quadro 03 (“[...] revela-se imperativo.”). Nos três casos, L1/E1 produz um
PDV de caráter objetivante, tendendo a um PDV anônimo sem fonte
enunciativa jurídica específica, embora identificável com L1/E1 em razão
da referenciação utilizada com relação aos objetos de discurso e do
texto/gênero sentença judicial.
3
MACAPÁ. Processo 002520325.2008.8.03.0001. 1ª VARA CÍVEL E DE FAZENDA PÚBLICA
DE MACAPÁ. PEDIDO DE FALÊNCIA — AÇÃO DE FALÊNCIA, 2010; SÃO PAULO. Pro-
cesso 0029369-16.2012.8.26.0100. 1ª VARA DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS.
Falência de Empresários, Sociedades Empresariais, Microempresas e Empresas de Pequeno
Porte — Inadimplemento. 2013; TUBARÃO. Processo 075.07.004762-0. 2ª VARA CÍVEL
DA COMARCA DE TUBARÃO. FALÊNCIA/ AUTOFALÊNCIA/LEI ESPECIAL, 2008.

17
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Quadro 01 — Postura enunciativa e argumento de autoridade (01)

POSTURA Postura de coenunciação


ENUNCIATIVA
TESE “O pedido de falência não caracteriza qualquer abuso de direito,
SUSTENTADA e, estando presentes os requisitos do art. 94, I, da Lei n. 11.101/05,
é opção do credor formular o pedido de falência ou promover ação
de execução comum”

ARGUMENTOS 1. Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Comarca de Ba-


DE AUTORIDADE rueri (autoridade administrativa)
2. Súmula 42 do TJSP (autoridade administrativa)
3. Desembargador Dr. SÉRGIO SEIJI SHIMURA (autoridade ad-
ministrativa)
1. “O pedido de falência não caracteriza qualquer abuso de direito,
e, estando presentes os requisitos do art. 94, I, da Lei n.
11.101/05, é opção do credor formular o pedido de falência ou
promover ação de execução comum.”

“Nesse sentido:”

“Apelação. Falência com base na impontualidade derivada do não


pagamento de duplicatas mercantis, transferidas à empresa de
fomento mercantil. Extinção do processo, sem julgamento de mé-
rito, sob o argumento de que a falência não pode ser manejada
com escopo de cobrança e exige pluralidade de credores. Legiti-
midade de empresa de factoring, na condição de endossatária de
duplicatas pedir a falência da sacada/aceitante. Desnecessidade
de pluralidade de credores para o pedido de quebra. O credor de
empresário impontual tem a faculdade de eleger a via judicial
adequada para satisfação de sua pretensão de cobrança: execução
individual ou falência. Extinção do processo, sem julgamento de
mérito, afastada, ordenando-se o regular processamento da ação
de falência. Apelo provido. (0118180-97.2008.8.26.0000
Apelação/Recuperação judicial e Falência, Rel. Des. Pereira Cal-
ças, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, Comarca de
Barueri, Dj.: 04/05/2010.”

2. “Nesse mesmo sentido, a Súmula 42 do TJSP dispõe que: ‘a


possibilidade de execução singular do título executivo não im-
pede a opção do credor pelo pedido de falência’.”

3. “O eminente desembargador Dr. SÉRGIO SEIJI SHIMURA,


quando trata especificamente da questão suscitada pela agra-
vante no Agravo de Instrumento n° 494.605.4/5, afirma que:
‘De outro lado, quanto ao uso da via falimentar, cabe destacar
que credor tem ao seu dispor tanto a ação de execução indivi-
dual, como a de falência. Não há como lhe obstar tais canais,
sob pena de se negar o direito de acesso à Justiça, à luz do art.
5o, XXXV, CF. Basta que atenda aos respectivos pressupostos
específicos a cada veículo processual’.”

Fonte: Elaboração própria

18
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

Quadro 02 — Postura enunciativa e argumento de autoridade (02)

POSTURA Postura de sobre-enunciação combinada com postura de coenunciação


ENUNCIATIVA
TESE “[...] considerado eficiente à elisão da falência o depósito em magni-
SUSTENTADA tude tal a, não sendo suficiente à satisfação do crédito exigido pelo
pedido formulado através do procedimento falimentar, acusar dife-
rença não superior a quarenta salários-mínimos.”
ARGUMENTOS 1. Lei Federal nº 11.101, de 09.02.2005 (autoridade administrativa)2.
DE AUTORIDADE Doutrina (autoridade técnica)3. Jurisprudência (autoridade admi-
nistrativa)1. “O parágrafo único do art. 98 da Lei Federal nº 11.101,
de 09.02.2005, contempla a hipótese da realização do depósito do
valor correspondente ao crédito cobrado pela via do procedimento fa-
limentar, atribuindo a tal depósito natureza elisiva da falência, de-
vendo, em princípio, o depósito ser em valor suficiente à satisfação
do referido crédito.”2. 3. “Tem, todavia, a doutrina e a jurisprudência
marcadas vezes, em interpretação ao preceito contido no inciso I do
art. 94 da referida Lei considerado eficiente à elisão da falência o de-
pósito em magnitude tal a, não sendo suficiente à satisfação do crédito
exigido pelo pedido formulado através do procedimento falimentar,
acusar diferença não superior a quarenta salários-mínimos. Afinal,
é o próprio art. 94 que emite o comando de decretação da falência
quando o devedor, sem relevante razão de direito, não paga, no ven-
cimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos execu-
tivos protestados cuja soma não seja superior àquele montante.”

Fonte: Elaboração própria

Quadro 03 — Postura enunciativa e argumento de autoridade (03)


POSTURA Postura de coenunciação
ENUNCIATIVA
TESE “Via de consequência, não havendo resistência específica ao pedido con-
SUSTENTADA tido na inicial, o julgamento antecipado da lide, nos termos do art. 330,
inciso I, do CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, revela-se imperativo.”
ARGUMENTOS 1. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (autoridade administrativa)2. NEL-
DE AUTORIDADE SON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (auto-
ridade técnica)3. CARLOS ANTÔNIO DE ARAÚJO CINTRA, ADA
PELLEGRINI GRINOVER e ANDIDO RANGEL DINAMARCO
(autoridade técnica)4. CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA
MARTINS (autoridade técnica)5. JOSÉ ROBERTO SANTOS BE-
DAQUE (autoridade técnica)1. “Via de consequência, não havendo
resistência específica ao pedido contido na inicial, o julgamento an-
tecipado da lide, nos termos do art. 330, inciso I, do CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL, revela-se imperativo.”2. “Acerca do assunto,
NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY
lecionam que “o dispositivo sob análise autoriza o juiz a julgar o
mérito de forma antecipada, quando a matéria for unicamente de di-
reito, ou seja, quando não houver necessidade de fazer-se prova em
audiência. Mesmo quando a matéria objeto da causa for de fato, o
julgamento antecipado é permitido se o fato for daqueles que não

19
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(Continuação)
ARGUMENTOS 1. precisam ser provados em audiência, como, por exemplo, os notórios,
DE AUTORIDADE os incontrovertidos etc. (CPC 334)”. (Código de processo civil comen-
tado e legislação processual civil em vigor. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 607).”1. “O aludido art. 330, do
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, determina expressamente que ‘o
juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I — quando
a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e
de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência;’
[...].”3. “CARLOS ANTÔNIO DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLE-
GRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO, prelecio-
nam que a jurisdição “é uma das funções do Estado, mediante a qual
se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcial-
mente, buscar atuação da vontade do direito objetivo que rege a lide
que lhe é apresentada em concreto para ser solucionada; e o Estado
desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressado
autoritativamente o preceito (através de uma sentença de mérito),
seja realizado no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através
da execução forçada)” (CINTRA, Carlos Antonio de Araujo; GRINO-
VER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria geral
do processo. 6. ed. São Paulo: RT. p. 83).”4. “CELSO RIBEIRO BAS-
TOS e IVES GANDRA MARTINS, de forma brilhante ensinam que
“a função jurisdicional só se independentizou das demais no século
XVIII com a prevalência da Teoria de Montesquieu consistente já
agora na clássica separação do poder.” [...] “Ao lado da função de le-
gislar e administrar, o Estado exerce a função jurisdicional. Coinci-
dindo com o próprio evoluir da organização estatal, foi ele absorvendo
o papel de dirimir as controvérsias que surgiam quando da aplicação
das leis”. [...] “À função jurisdicional cabe este importante papel de
fazer valer o ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez em que
o seu cumprimento não se dê sem resistência. Ao próprio particular
(ou até mesmo às pessoas jurídicas de direito público), o Estado sub-
traiu a faculdade de exercício de seus direitos pelas próprias mãos. O
lesado tem de comparecer diante do Poder Judiciário, o qual, tomando
conhecimento da controvérsia, se substitui à própria vontade das par-
tes que foram impotentes para se comporem. O Estado, através de
um de seus Poderes dita, assim de forma substitutiva à vontade das
próprias partes, qual o direito que estas têm de cumprir.” (BASTOS,
Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição
do Brasil. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 1, 11-13).”5. “Magnânimo
raciocínio é expresso por JOSÉ ROBERTO SANTOS BEDAQUE,
para quem “tanto quanto as partes, tem o juiz interesse em que a ati-
vidade por ele desenvolvida atinja determinados objetivos, consistentes
nos escopos da jurisdição” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Ga-
rantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999).”

Fonte: Elaboração própria

De forma excepcional, podemos identificar momentos em que L1/E1


demarca de forma mais explícita seu PDV (uso de negação como no quadro
01 e o uso de modalizadores no trecho “Magnânimo raciocínio é expresso
por JOSÉ ROBERTO SANTOS BEDAQUE [...]” no quadro 03).

20
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

A construção textual de forma objetivada do PDV de L1/ E1 é refor-


çada pela maneira que as autoridades invocadas são introduzidas por mar-
cadores de responsabilidade enunciativa. Os PDVs imputados a essas
autoridades em coconstrução com o PDV do próprio L1/E1 são introduzidos
por quadros mediativos pelos quais se realizam diversas formas de repre-
sentação da fala, principalmente pela citação direta, reforçada por recur-
sos textuais como aspas, dois pontos e indicação de referência/fonte (1.
“Nesse mesmo sentido, a Súmula 42 do TJSP dispõe que: “a possibilidade
de [...]”; 2. “Acerca do assunto, NELSON NERY JÚNIOR e ROSA MARIA
DE ANDRADE NERY lecionam que “o dispositivo sob análise [...]”).
Essa forma objetivada de demarcação do PDV na invocação dos ar-
gumentos de autoridade nos faz remeter à distinção encontrada em Koch
(1983) (Argumentação e autoridade polifônica), a qual, baseada em Du-
crot, diferencia duas formas de argumento de autoridade: autoridade po-
lifônica e raciocínio por autoridade.
A autoridade polifônica é, conforme Koch (1983), realizada por formas
inscritas na língua e possui as seguintes características: a) não é autoritá-
rio; b) não apresenta formas de contestação; c) é introduzido como mos-
trado, por meio de um outro enunciador (nos termos atuais, seguindo
Guentcheva (2011, 2014)), podemos falar em emprego de formas mediati-
vas); c) não assunção de responsabilidade pelo dizer introduzido na apre-
sentação da autoridade, uma vez que a responsabilidade é imputada ao
enunciador segundo introduzido. Por sua vez, o raciocínio de autoridade
invoca a autoridade por meios explícitos de argumentação, em que ficam
mais patentes os esquemas da argumentação (premissa — consequências).
Assim, nos trechos presentes no quadro 03, percebemos a presença
significativa do argumento de autoridade como autoridade polifônica, pelo
qual L1/E1 apenas introduz o PDV das autoridades invocadas, sem rea-
lizar explicitamente avaliações ou demarcar conclusões próprias.
Quanto às posturas enunciativas, nos quadros 01 e 03, verificamos a
postura de coenunciação. L1/E1 apresenta seu PDV numa forma objeti-
vada, buscando nas autoridades mostrar que seu PDV não decorre de
uma escolha/visão pessoal, mas de uma comunidade em que está inserido.
Contudo, notamos que no quadro 01 e no quadro 03 L1/E1 não se satisfaz
somente em buscar autoridades que repitam o mesmo PDV, mas que, de
maneira sutil, incrementem a validade do PDV de L1/E1 por meio de ex-
pansão do campo do argumento.
No quadro 01, observamos isso ao invocar a autoridade do desembar-
gador para dizer que a opção pelo pedido de falência é a solução constitu-
cionalmente viável (“Não há como lhe obstar tais canais, sob pena de se
negar o direito de acesso à Justiça, à luz do art. 5o, XXXV, CF.”) e no quadro

21
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

03 a invocação das autoridades para argumentar que a antecipação da lide


é forma de realizar a função jurisdicional (“À função jurisdicional cabe este
importante papel de fazer valer o ordenamento jurídico, de forma coativa,
toda vez em que o seu cumprimento não se dê sem resistência. Ao próprio
particular (ou até mesmo às pessoas jurídicas de direito público), o Estado
subtraiu a faculdade de exercício de seus direitos pelas próprias mãos.”).
Esses dois exemplos não podem ser colocados seja na sobre-enuncia-
ção, seja na subenunciação, e mostram que a concordância enunciativa
pela postura de coenunciação não implica reiterar exatamente o mesmo
PDV, mas pode significar valer-se de identidades para expandir o PDV
inicial e conferir maior valor argumentativo (no quadro 01, ao invocar a
Constituição Brasileira por meio de autoridade, indiretamente expressa
o PDV de que o pedido de falência como opção não é só interpretação le-
gislativa, mas garantia constitucional, o que dá mais peso ao argumento
tendo em vista a hierarquia das autoridades legislativas).
A construção da postura enunciativa no quadro 02 é mais complexa,
pois L1/E1 não enuncia o mesmo PDV da lei com relação aos requisitos
do depósito elisivo (enunciação legal: depósito do valor do crédito X PDV
de L1/E1 sobre a lei: depósito suficiente até restar valor menor que qua-
renta salários-mínimos). Entretanto, L1/E1 não assume de forma exclu-
siva a postura de sobre-enunciação sobre o PDV da lei. Para realizar a
sobre-enunciação, L1/E1 convoca duas autoridades em sua forma comu-
nitária, que são a doutrina e a jurisprudência, para de forma coenuncia-
tiva (o PDV de L1/E1 é o mesmo de quem interpreta pelo estudo e pela
aplicação a lei) realizar a sobre-enunciação sobre o PDV legal acerca do
depósito efetivo (“Tem, todavia, a doutrina e a jurisprudência marcadas
vezes, em interpretação ao preceito contido no inciso I do art. 94 da refe-
rida Lei, considerado eficiente à elisão da falência o depósito em magni-
tude tal a, não sendo suficiente à satisfação do crédito exigido pelo pedido
formulado através do procedimento falimentar, acusar diferença não su-
perior a quarenta salários-mínimos.”).
O quadro 02, em análise, mostra que a realização de posturas enun-
ciativas pode ser combinada para se buscar os efeitos argumentativos de-
sejados, especialmente em uma situação que aponta conflitos entre
autoridades, demandando estratégias enunciativas/argumentativas que
restaurem uma “harmonia” frente ao conflito inicial.
A análise da construção das posturas enunciativas nos três quadros
não mostra estratégias linguísticas/textuais/discursivas que coloquem em
planos diferentes as formas de raciocínio provenientes de autoridades téc-
nicas (doutrina) da de autoridades administrativas (jurisprudência).
Tanto as formas de marcação da responsabilidade enunciativa quanto as

22
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

das posturas não apresentaram diferenças, o que faz com que essas au-
toridades invocadas como enunciadores segundos sejam colocadas no
mesmo plano argumentativo. Salientamos que no Brasil não é raro que
uma pessoa exerça as duas funções de autoridade (pessoa como juiz e
como doutrinador).

Considerações finais
O estudo realizado mostrou que os argumentos de autoridade são
mobilizados enquanto enunciadores segundos para realizar diversas pos-
turas enunciativas na coconstrução do PDV introduzido por L1/E1. Essa
coconstrução colabora com a orientação argumentativa e com os efeitos
de sentido pretendidos pelo juiz no gênero textual/discursivo em que se
manifesta (sentença judicial).
Nos limites de nosso corpus, podemos dizer que a articulação de ar-
gumentos de autoridade para a realização de posturas enunciativas con-
cretiza diversas funções/efeitos de sentido considerando a prática
discursiva subjacente. Um primeiro efeito de sentido é o da objetificação
do PDV de L1/E1. Mostramos que o PDV de L1/E1 não é em geral mar-
cado por subjetivemas, tendendo sua expressão ao PDV anônimo. A arti-
culação dos argumentos de autoridade junto a essa forma de expressão
do PDV de L1/E1 reforça esse efeito de objetividade, uma vez mostraria
que o PDV não é uma expressão pessoal, mas decorre da racionalidade
jurídica.
O segundo efeito de sentido, que pode ser verificado, é de que o uso de
argumento de autoridade em posturas enunciativas produz um efeito co-
munitário, ou seja, passa a ideia de que o juiz não está isolado proferindo
sua interpretação/aplicação da legislação, mas está inserto numa comu-
nidade jurídica que compartilha de seu modo de enxergar o Direito apli-
cável ao caso concreto. Disso decorre um terceiro efeito de sentido: as
posturas enunciativas a partir de argumento de autoridade intentam con-
vencer de que o juiz expressa, acima de tudo, o próprio Direito, do qual
ele seria um mediador (o uso de quadros mediativos imprime esse sentido
do ponto de vista linguístico). De fato, a abundância no uso de argumentos
de autoridade faz com que concordemos com Atienza (2012) quando de-
signa o Direito como “prática de autoridade”, uma “prática autoritativa”,
uma vez que o Direito é reconhecido como oriundo de atos de autoridades.
Um último efeito de sentido que indicamos neste estudo é o da reso-
lução de conflito entre autoridades. Como vimos no quadro 02, e foi tratado
segundo Ferraz Jr. (2003) e Perelman e Tyteca (2005), a invocação de au-
toridades não significa apenas a postura enunciativa de coenunciação,

23
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

embora essa seja a estratégia enunciativa preferencial, uma vez que as


próprias autoridades podem estar em conflito. Nesse caso, as posturas
enunciativas como a subenunciação/sobre-enunciação podem ser utiliza-
das como forma de estabelecer hierarquia entre autoridades sem chegar
a negar a própria força da autoridade invocada, o que torna o texto/dis-
curso mais convincente/persuasivo.
De um ponto de vista estrito dos estudos do texto/discurso e da enun-
ciação, as formas de demarcação e coconstrução do PDV na invocação de
autoridades apontam perspectivas de pesquisa futuras, de modo a se in-
vestigar se as formas aqui encontradas são restritas ao corpus utilizado,
havendo variações em razão de outros fatores (ex.: tema, locutores/enun-
ciadores envolvidos, contexto da enunciação) ou se são gerais ao gênero
sentença judicial.

Referências
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rídica. México UNIVERSIDAD NACIONAL AUTÓNOMA DE MÉXICO,
2005.
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<https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/3964/2307
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FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, de-
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. 6 — Argumentação e autoridade polifônica.
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LANZILLO, Anderson Souza da Silva. Ponto de vista e responsabilidade
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LANZILLO, Anderson Souza da Silva. Responsabilidade enunciativa e construção
do ponto de vista do juiz no uso de argumento de autoridade em sen-
tenças judiciais. In: PINTO, Rosalice; RODRIGUES, Maria das Graças.

24
A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA

(Orgs.). Textos e discursos no direito e na política: análises e pers-


pectivas interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, 2016b.
PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumenta-
ção. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica
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RABATEL, Alain. Homo Narrans, pour une analyse énonciative et inte-
ractionnelle du récit. Limoges: Lambert-Lucas, 2008a.
RABATEL, Alain. Positions, positionnements et postures de l’énonciateur. Linha
D’Água, v. 26, n. 2, p. 159-183, dez. 2013. Disponível em: <http://www.re-
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RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacio-
nista da narrativa — pontos de vista e lógica da narração — teoria e
análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi,
João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1
TOULMIN, Stephen E. The uses of argument. New York: Cambridge University
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WALTON, Douglas; KOSZOWY, Marcin. Two Kinds of Arguments from Aut-
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Disponível em: <http://www.dougwalton.ca/papers%20in%20pdf/14IS-
SAv08.pdf>. Acesso em: 01 jan. 2016

25
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E
PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO
CONTESTAÇÃO
Célia Maria de Medeiros — UFRN

Considerações introdutórias
O capítulo objetiva descrever, analisar e interpretar os pontos de vista
assumidos pelo locutor enunciador primeiro (L1/E1) e pelos enunciadores
segundos (e2) no que concerne à responsabilidade enunciativa no gênero
jurídico Contestação, gênero discursivo textual produzido no domínio do
Direito. Para tanto, examinaremos uma Contestação da esfera civil, com
tema sobre o direito do consumidor, referente ao ano de 2014. Nesse texto,
o locutor enunciador primeiro, o advogado e produtor do texto, que repre-
senta a parte ré, constrói sua argumentação ora assumindo o dito, ora im-
putando a outras vozes, a partir de marcas linguísticas.
Para cumprir os objetivos do trabalho, inicialmente apresentamos
uma discussão teórica sobre a responsabilidade enunciativa e o ponto de
vista, numa perspectiva rabateliana. Em seguida, definimos o gênero ju-
rídico Contestação. Na continuidade, realizamos a análise a partir de ex-
certos retirados das seções denominadas “Das preliminares” e “Do
mérito”, que compreendem as defesas no plano processual e material do
referido gênero. Por fim, ainda fazem parte deste estudo, as considerações
finais e a lista de referências.

1. Responsabilidade enunciativa e ponto de vista


A responsabilidade enunciativa (RE) constitui-se como uma das prin-
cipais noções e categorias da análise textual dos discursos (ATD), situa-
se na dimensão enunciativa e refere-se ao enunciado elementar do texto
que expressa um ponto de vista (ADAM, 2011). Neste trabalho, adotamos
a discussão do fenômeno da responsabilidade enunciativa em uma pers-
pectiva rabatelina.
Rabatel (2008a, p. 21) postula a seguinte definição para responsabi-
lidade enunciativa: “[...] o sujeito responsável pela referenciação do objeto
exprime seu ponto de vista (PDV) tanto diretamente, por comentários ex-
plícitos, como indiretamente, pela referenciação [...]”. Sobre a relação de
responsabilidade enunciativa e responsabilidade, o autor explicita:

27
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Há um elo entre assunção da responsabilidade enunciativa e res-


ponsabilidade, mas essas noções não se recobrem: é possível assumir
discursos não responsáveis, ser julgado responsável (no sentido ha-
bitual em que se faz de responsável um sinônimo de quem assume a
responsabilidade, o que não é o meu caso) por discursos que a gente
não assumiu a responsabilidade enunciativa, de não ser considerado
como responsável por discursos que, apesar de tudo, foram assumidos
[...] mas desde que haja vários locutores, vários pontos de vista, a as-
sunção da responsabilidade só concerne aos PDV de L1/E1 ou aqueles
dos l2/e2 ou e2 com os quais L1/E1 concorda. L1/E1 não poderia ser
considerado responsável por todos os outros PDV que ele evoca em
seu discurso. Mas ele sempre pode ser interrogado sobre suas esco-
lhas, sobre a gestão de seu discurso. (RABATEL, 2015, p. 339-340,
[Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues]).1

Rabatel (2008a, p. 59) evidencia que todos os enunciadores, enquanto


fontes de conteúdos proposicionais, não se equivalem, isso ocorre “[...] se-
gundo seu grau de atualização no discurso, segundo a natureza dos fenô-
menos de responsabilidade enunciativa e segundo a reação dos
interlocutores”. Nesse sentido, o autor define o que seria o enunciador
primário e segundo:

[...] o enunciador primário, aquele que assume a responsabilidade


dos PDV aos quais ele adere, aquele a quem se atribui um grande
número de PDV, redutíveis a um PDV geral e a uma posição argu-
mentativa global supõe corresponder a sua posição sobre a questão.
Nomearemos principal o enunciador em sincretismo com o locutor
porque este último exprime um PDV a um triplo título [...] (RABA-
TEL, 2008a, p. 59).

[...] os enunciadores segundos, internos no enunciado que corres-


pondem, no caso da narração, a personagens, e que são verdadeiros
centros de perspectiva em que eles agregam em torno deles um
certo número de conteúdos proposicionais que indicam o PDV do
enunciador intradiscursivo sobre tal acontecimento, tal estado,
tal noção, etc. (RABATEL, 2008a, p. 59).

1
“Il y a bien un lien entre PEC et responsabilité, mais sans recouvrement des notions: il
est possible de prendre en charge des propos irresponsables, d’être jugé «responsable» (au
sens hélas habituel où l’on fait de responsable un synonyme de qui prend en charge, qui
assume, ce qui n’est pas mon cas) de propos que l’on n’a pas pris en charge, de ne pas être
tenu pour responsable des propos pourtant pris en charge, etc. [...] Mais dès qu’il y a plu-
sieurs locuteurs, plusieurs points de vue, la prise en charge ne concerne que les PDV de
L1/E1 dit son accord. L1/E1 ne saurait être tenu pour responsable de tous les autres PDV
qu’il évoque dans son discours.”

28
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

Rabatel (2008a) explica que, com relação ao enunciador primário, o


locutor exprime seu PDV enquanto locutor, através do seu papel na
enunciação (esse seria o locutor defendido por Ducrot), enquanto ser do
mundo e enquanto sujeito que fala, aquele a quem se pede satisfações
pelo que ele diz.
Rabatel (2009, p. 71)2 explicita que “todo enunciado pressupõe uma
iminência que se responsabiliza pelo que é dito, seguindo os quadros de
referência, o dictum, o sintagma, o conteúdo proposicional, a predicação,
conforme o esquema minimal da enunciação ‘EU DIGO’ (‘o que é dito’)”.
Para o autor, os diferentes modos de marcar um ponto de vista (PDV)
são verificados através das relações ocorridas entre locutor e enunciador.
As relações são oriundas do modo como o locutor e o enunciador, en-
quanto produtores do texto, posicionam-se a respeito do PDV de outros
enunciadores, ou seja, que posição sustentam no tocante ao discurso de
outrem que eles expõem em seus textos.
Para Rabatel (2008a), analisar o ponto de vista em um texto consiste
em, de um lado, determinar o aspecto de seu conteúdo proposicional e,
de outro, investigar sua origem enunciativa a partir da determinação de
seus referentes e das escolhas das frases que constituem o texto, inclu-
sive quando o ponto de vista estiver implícito.
Rabatel (2008a) distingue os PDV entre: point de vue représentés,
racontés e assertés (representados, narrados e assertados). Em seguida,
subtopicalizamos esses pontos de vista, os quais serão utilizados em
nossa análise.

1.1. Ponto de vista representado


O ponto de vista “representado” recebe essa denominação porque a
percepção de determinado objeto apresenta-se representada no enun-
ciado. Ele é apreendido a partir das relações sintáticas e semânticas entre
um sujeito que percebe (focalizador ou enunciador), um processo de per-
cepção e entre um objeto percebido (o focalizado) (cf. RABATEL, 2008a).
Nesse sentido, o PDV representado garante “[...] às percepções pes-
soais (e aos pensamentos associados) o modo objetivante das descrições
aparentemente objetivas, uma vez que o leitor encontra-se diante das ‘fra-
ses sem fala’ [...]”. (RABATEL, 2016, p. 165).

2
“Tout énoncé présuppose une instance qui prend en charge ce qui est appelé, suivant les
cadres de référence, le dictum, la lexie, le contenu propositionnel, la prédication, selon le
schème minimal d’énonciation « JE DIS ("ce qui est dit").”

29
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

1.2. Ponto de vista narrado


No ponto de vista narrado, a ênfase recai sobre determinado perso-
nagem, passando os fatos a serem narrados sob sua perspectiva, mais
precisamente, o ponto de vista narrado é útil para a análise de textos es-
critos segundo a perspectiva de uma personagem, sem que essa persona-
gem seja um autêntico focalizador, ou seja, sem que o texto recorra a uma
debreagem enunciativa (RABATEL, 2008a).
Segundo Rabatel (2004, p. 34), o ponto de vista “[...] relata aconteci-
mentos após a perspectiva do ator do enunciado, sem ir até a paralisação
enunciativa com as percepções representadas, uma vez que não há, nele,
segundo plano”. O autor enfatiza que o PDV “narrado” visa ao “[...] de-
senrolar dos fatos a partir da perspectiva de um dos atores do enunciado,
sem dar a esse ator do enunciado um espaço enunciativo particular”.
Desse modo, o ponto de vista narrado mascara as falas por trás de uma
narração também objetiva, pois, “[...] ocultando igualmente, as falas pes-
soais, mascarando estas últimas por trás de uma narração tão objetiva
quanto possível: ‘isto se passou assim, não sou a favor de nada disso’. (em
3ª. pessoa)”. (RABATEL, 2016, p. 165).

1.3. Ponto de vista assertado


O ponto de vista assertado assemelha-se à noção de opinião manifes-
tada ou de tese, pois não aparece somente em textos argumentativos, mo-
nológicos ou dialógicos, mas também em textos narrativos, sendo
representado pelas falas das personagens ou pelos julgamentos do nar-
rador (RABATEL, 2008a).
No PDV assertado, o locutor é a origem da percepção, ocorrendo de-
breagem enunciativa em grau máximo, porque as falas, os pensamentos e
os juízos de valor se dão de forma explícita. Nesse tipo de PDV, enunciador
e locutor coincidem, havendo predominância dessa ocorrência em textos
argumentativos. Portanto, segundo Rabatel (2016, p. 166), o PDV assertado
“[...] se apoia, explicitamente, em atos de fala, em julgamentos mais ou
menos construídos que remetem, explicitamente, a uma origem identificá-
vel”. Por fim, o ponto de vista assertado repercute explicitamente a origem
enunciativa, pois é construído a partir dos atos de falas e dos julgamentos.

2. O gênero jurídico Contestação


Compreendemos que a Contestação é um gênero discursivo textual
por apresentar os elementos formadores apontados por Bakhtin (2003

30
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

[1992]), quais sejam: estilo, estrutura composicional e tema, além de ser


um evento comunicativo vinculado a uma prática social institucionali-
zada. Lourenço (2008), baseando-se em Bakhtin (Ibid.), enfatiza que a
propriedade de o autor deixar marcas de sua individualidade é menos
propícia em gêneros do discurso que requerem uma forma padronizada,
como alguns documentos oficiais, ordens militares, entre outros.
A Contestação situa-se entre os gêneros secundários e apresenta uma
estrutura composicional relativamente padronizada e estável, porque
segue, em geral, um conjunto de normas, de certo modo, rígidas e válidas
por determinado tempo. Tem a escrita convencionalmente no domínio ju-
rídico, tendo em vista a tradicionalidade, pois é um gênero que se repete.
O seu propósito comunicativo é responsivo porque responde os argumen-
tos da Petição Inicial, requerendo, portanto, a impugnação dos pedidos,
constituindo-se como o principal gênero de defesa do réu.
Ressaltamos, portanto, o que Bakhtin (2003, p. 297) afirma sobre o
caráter responsivo: “Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como
uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo: ela
os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como co-
nhecidos, de certo modo os leva em conta”. Essa assertiva concerne aos
propósitos do gênero Contestação.
Nesse sentido, a palavra Contestação, que advém do latim contesta-
tio, segundo Parizatto (1991), é a peça processual de defesa mais impor-
tante no processo civil, porque exprime o ato escrito pelo qual o réu nega,
contradiz-se e defende-se das alegações do autor despendidas em pedido
inicial, fazendo argumentações para descaracterizar a ação contra si ajui-
zada, com alegações de fato e de direito sobre a matéria ventilada.
Assim como a Petição Inicial, a Contestação está prevista no Código de
Processo Civil Brasileiro, nos artigos 336 e 337, como sendo o principal meio
de defesa do réu, competindo a este alegar as razões de fato e de direito com
que impugna o pedido na inicial. Vejamos abaixo os artigos citados:

Art. 336. Incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de


defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o
pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.

Art. 337. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar:


I — inexistência ou nulidade da citação;
II — incompetência absoluta e relativa;
III — incorreção do valor da causa;
IV — inépcia da petição inicial;
V — perempção;
VI — litispendência;

31
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

VII — coisa julgada;


VIII — conexão;
IX — incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de
autorização;
X — convenção de arbitragem;
XI — ausência de legitimidade ou de interesse processual;
XII — falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como
preliminar;
XIII — indevida concessão do benefício de gratuidade de justiça.

Desse modo, os fatos não impugnados na Contestação presumem-se


verdadeiros, salvo determinados casos previstos na lei.
A Contestação é peça processual de crítica e ataque contra a preten-
são do autor. A esse respeito, Palaia (2010, p. 35) descreve:

O autor, imbuído da ideia de ter razão, decidiu que deveria ingressar


em juízo; elegeu o juízo competente, segundo seu melhor entendi-
mento; elegeu as partes, que acredita serem titulares da relação
em conflito, para participarem do processo; escolheu a ação cuja
natureza jurídica supõe ser adequada; escolheu o procedimento que
melhor lhe pareceu; narrou os fatos e fundamentos jurídicos ou
causa petendi; chamou o réu a juízo, pela forma que entendeu cor-
reta; fez o pedido, que segundo pensa é o adequado para prestação
jurisdicional que lhe convém; protestou por provas, seguindo seu
melhor critério; deu valor à causa, de acordo com o que julga ser
valor correto; e juntou com a inicial os documentos que reputa
serem os necessários.

Diante desse contexto, Palaia (2010, p. 36) ressalta que “[...] todas
essas atitudes tomadas pelo autor devem ser objeto de análise e crítica
por parte do réu. A manifestação dessa crítica terá lugar na Contestação
que, todavia, não poderá ser um amontoado de censuras e ataques desco-
nexos, descoordenados e incoerentes”.
A existência da Contestação significa que o processo já foi instaurado.
Com ela, faculta-se ao réu/requerido (por meio do enunciador advogado)
apresentar ao Juiz (coenunciador/1º destinatário ou receptor) sua réplica
aos fatos apresentados na inicial. Dessa maneira, qualquer afirmação
presente na Petição Inicial, e que não seja respondida, será considerada
verdadeira. Também, diversamente da Petição Inicial, a Contestação não
exibe níveis diversos de interação, pois não é endereçada aos autores-re-
querentes, mas sim à ação proposta (TULLIO, 2012).

32
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

Nesse sentido, segundo Lourenço (2017, p. 58),

[...] o Processo judicial é uma atividade triangular na qual o juiz


ocupa um dos vértices, como seu presidente, e as partes litigantes
ocupam os dois outros vértices. Especialmente, em razão do princí-
pio constitucional do contraditório, a atividade das partes é emi-
nentemente dialógica, pois, sempre que uma parte se manifesta, é
garantido à parte contrária responder. Cada parte, portanto, busca,
por meio de peças processuais (gêneros discursivos), convencer o
juiz da veracidade e validade de suas alegações e de que o acata-
mento de sua tese é o que melhor corresponde ao ideal de justiça,
positivado no Direito.

Em face do exposto por Lourenço (2017), ilustramos, a seguir, o pro-


cesso judicial a partir do ponto de vista da Contestação.

Figura 10 — Partes do processo judicial


Juíz

Autor Réu

Fonte: Adaptado de Lourenço (2017, p. 58)

Considerando a figura, podemos observar que a Contestação tem


como parte principal o réu, localizado no vértice do lado direito. Sobre
essa relação entre as partes, Cabral e Guaranha (2014, p. 161) postulam
a respeito do Processo Civil, no campo do contraditório, que:

A dinâmica dos autos determina que, na construção do discurso do


Processo, autor e réu se confrontam, o segundo negando as afirma-
ções do primeiro e vice-versa, concretizando o princípio do contradi-
tório, marcado pela oposição entre as duas partes. Há sempre uma
parte que afirma e outra que nega e, nesse contexto de antagonismo,
é o conteúdo do discurso de uma das partes que fornece os elementos
para a elaboração do discurso da outra. Assim é que a contestação
nega a inicial e a réplica a reafirma, contradizendo a contestação.

33
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Os autores continuam e concluem:

A partir dessas considerações, podemos afirmar que a argumentação


nos autos, pelo discurso dos advogados, procura atingir dois alvos:
o primeiro é o juiz, a quem se deseja convencer da razão a seu
favor; o segundo é a parte contrária, cujos argumentos são negados,
na busca de destruí-los. Nesse contexto, os elementos que permitem
evidenciar a aproximação ou o distanciamento, como as intercala-
ções, por exemplo, ocupam lugar de destaque. (CABRAL; GUARA-
NHA, 2014, p. 161).

Do ponto de vista enunciativo, Cabral (2007, p. 9) esclarece que,

[...] embora cada uma das partes se dirija ao juiz, o verdadeiro des-
tinatário da parte é, reciprocamente, a parte contrária, uma vez
que a enunciação de cada uma das partes tem como alvo a parte
contrária, na medida em que o texto de cada uma das partes cons-
titui a refutação do conteúdo da enunciação da parte contrária, an-
tecedente à sua. As partes se dirigem diretamente ao juiz apenas
no início do pronunciamento, no encaminhamento, e no final, na
formulação do pedido ao juiz; raramente o invocam no desenrolar
da peça e, quando o fazem, fazem-no para chamar a sua atenção.

Nesse sentido, compreendemos que o juiz também se torna uma pos-


tura enunciativa na Contestação, pois o advogado, ao produzir as seções
“Das preliminares” e “Do mérito”, evoca a voz do juiz, nomeando-o de Ex-
celência, Douto Juízo, entre outras denominações, com certa frequência.
Sabemos, ainda, que na Contestação o réu poderá se manifestar sobre
aspectos formais e materiais. Os argumentos de origem formal se relacio-
nam com a ausência de alguma formalidade processual exigida e que não
fora cumprida pelo autor em sua peça inicial. Esses argumentos, depen-
dendo da gravidade, podem ocasionar o fim do processo antes mesmo de o
magistrado apreciar o conteúdo do direito pretendido. A imperfeição apon-
tada pelo réu retiraria do autor a possibilidade de seguir adiante ou re-
tardaria o procedimento até que fosse sanada a imperfeição. Essa é a
chamada defesa indireta, mais especificamente, as Preliminares.
Já os aspectos materiais, se relacionam com o conteúdo do direito que
o autor reivindica e correspondem ao mérito da causa. É a chamada defesa
direta ou de mérito, na qual o réu ataca o fato gerador do direito do autor
ou as consequências jurídicas que o autor tem como pretensão.
A seguir, ilustramos as análises apresentadas com excertos extraídos
das seções “Das preliminares” e “Do mérito”, do gênero jurídico Contestação,

34
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

as quais constam no nosso corpus de pesquisa doutoral3. No que se refere


à sequência dos excertos, estes são representados numericamente, a
saber: [1], [2],[3],[4].... e assim por diante. Sobre a retirada dos excertos
da Contestação, mantivemos a tipografia do texto original em PDF, pre-
servando as marcas de itálico, negrito, aspas, maiúsculas, minúsculas e
sublinhas. Por esse motivo, os aspectos linguísticos e discursivos dos frag-
mentos são evidenciados através de comentários durante as análises, des-
tacados entre aspas.

3. Análise
A Contestação delimitada para esta análise apresenta a defesa de
uma loja de móveis acusada de responsabilidade pela venda de um
guarda-roupa que apresentou defeito. A Petição Inicial pede a restituição
do valor do produto e a indenização por danos morais, uma vez que rea-
lizou audiência no PROCON sem solução conciliatória.
A defesa inicia a Contestação alegando que a carência da ação, por
falta de interesse de agir alegada pela demandante, não tem fundamento
em face de que o reembolso fora autorizado. Entretanto, para a restituição
do valor pago pelo produto ser efetuada, seria necessário que a segura-
dora tivesse recebido os documentos enviados pela segurada. Fato este
não aceito pela demandante, que logo impetrou ação junto ao PROCON.
Por isso, não haveria no que se falar em devolução do prêmio pago.
Quanto à solicitação de reparação por danos morais, a demandante,
de acordo com o texto da Contestação, não faz jus, uma vez que o ocorrido
dizia respeito a aborrecimentos que atualmente são confundidos com
danos morais e dão origem à vulgarização desse instituto.
Ao encerrar a argumentação sobre a Petição Inicial, o documento con-
testatório pediu que a decisão da lide fosse considerada improcedente
ante a ausência de dever de restituir o valor do prêmio.

Excertos da Seção Das preliminares da Contestação

[1] Portanto, não foi possível proceder com a devolução do valor


pago, tendo em vista que a autora não enviou os documentos neces-
sários para o reembolso do valor. Assim, como se vê, em nenhum
momento houve negativa de cobertura securitária por parte
desta seguradora, logo, ausente a negativa em indenizar,
ausente pretensão resistida. Não havendo qualquer preten-
são resistida, inexiste lide.

3
Medeiros (2016).

35
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

[2] Para que seja possível a instauração do processo e a obtenção


da tutela jurisdicional é indispensável que exista lide a ser dirimida.
Ausente lide, não existe necessidade de exercício do direito de ação
por falta de interesse processual. O interesse processual nasce
quando para alcançar o resultado pretendido seja necessária a in-
tervenção Estatal.

[3] No caso dos autos, não existe esta necessidade em face da au-
sência de negativa da parte demandada. Em conclusão, temos que
a autora é carecedora do direito de ação, por lhes faltar interesse
de agir, posto que a mesma tinha ciência dos procedimentos a serem
tomados, entretanto não procedeu com os mesmos.

[4] O interesse processual, como é sabido, pressupõe, para sua exis-


tência, do preenchimento do binômio necessidade-utilidade. Isso
significa que o interesse processual só está presente quando a parte
efetivamente necessitar recorrer ao Judiciário para satisfazer a
sua pretensão, obtendo o resultado prático desejado.

[5] A seguradora NÃO negou cumprimento ao contrato, es-


tava aguardando a autora enviar os documentos necessá-
rios. A lide deve ser anterior à ação, cabendo a esta a solução da-
quela. Somente com a lide formada, ainda que precariamente, pode
representar o dano ou perigo de dano ao bem e ensejar o exercício
de direito de ação.

[6] Exige-se, portanto, que haja uma pretensão resistida, de modo


que a parte demandada exerça um óbice real ao pedido das autoras.
Não havendo pretensão resistida, não existirá conflito de interesses
que justifique a intervenção do órgão jurisdicional, por não se poder
falar em necessidade e utilidade de buscar essa via.

Os excertos [1], [2], [3], [4], [5] e [6] apresentam um mesmo posicio-
namento enunciativo, pois expõem envolvimento pelos conteúdos propo-
sicionais através de estratégias linguísticas reveladoras de engajamento
por parte de L1/E1. Tais marcas dizem respeito às expressões epistêmicas
(“não foi possível”, “não enviou”, “Assim”, “como se vê”, “Não havendo”,
“não existe”, “tinha ciência”, “como é sabido”, “NÃO negou”) e deônticas
(“seja necessária”, “temos”, “deve ser”, “Exige-se”, “exerça”), reveladoras
de atitudes sobre a verdade dos fatos, bem como da obrigatoriedade ou
possibilidade explicitada nos enunciados. Dessa maneira, verificamos as-
sunção total da responsabilidade enunciativa por parte de L1/E1, pois
todas as asserções encaminham a orientação argumentativa de que “Não
havendo pretensão resistida, não existirá conflito de interesses que jus-
tifique a intervenção do órgão jurisdicional”.

36
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

[7] No mesmo sentido, ensina o festejado Celso Barbi em seu Co-


mentário ao Código de Processo Civil, volume I: [...]

[8] Note-se que o Superior Tribunal de Justiça em reiteradas análises


específicas dos contratos de seguro, destacou a importância na ne-
gativa do pagamento da indenização para exame da existência do
direito de ação do segurado em face das empresas seguradoras: [...]

Os excertos [7] e [8] são representativos de coenunciação de L1/E1


com a voz de e2 (Celso Barbi, Superior Tribunal de Justiça), marcados
por verbos dicendi, como “ensina” e “note-se”. Portanto, L1/E1 assume a
responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional e esse engaja-
mento é revelado também pela adjetivação referente ao enunciador se-
gundo: “festejado” (Celso Barbi).

[9] Por todas estas razões expostas, vemos que inexiste inte-
resse processual da autora, configurando-se ser a mesma
carecedora do direito de ação, razão pela qual deve o pre-
sente processo ser extinto sem o julgamento do mérito, o
que desde logo se requer.

Em [9], identificamos que L1/E1 é a fonte do dizer, ou seja, o produtor


do texto faz uso da forma verbal na 1ª. pessoa do plural, desenvolvendo,
assim, um engajamento percebido, principalmente, pela negativa “ine-
xiste” e pelas expressões deônticas “deve [...] ser” e “se requer”. Desse
modo, verificamos PDV assertado com assunção da RE.

Excertos da Seção Do mérito da Contestação

[10] O seguro de garantia estendida tem como objetivo fornecer ao


segurado a extensão e/ou complementação da garantia original de
fábrica, estabelecida no contrato de compra e venda de bens, me-
diante o pagamento de prêmio.

[11] Pela extensão de garantia a vigência do contrato de seguro ini-


cia-se após o término da garantia original de fábrica, e pode con-
templar a mesma cobertura oferecida pela garantia original de fá-
brica, tais garantias ampliadas ou mesmo diferenciadas, durante a
vigência do contrato de seguro.

Nos excertos [10] e [11], observamos PDV assertado, pois L1/E1 coe-
nuncia partilhando do conteúdo proposicional, portanto, assume a res-
ponsabilidade enunciativa pelo dito, assinalada por expressões modais,

37
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

a saber: “tem” (epistêmica) e “pode contemplar” (deôntica). Assim, L1/E1


valida seu envolvimento no dito.

[12] A autora relata, em sua peça inaugural, que o bem apresentou


defeito e este tentou solucionar o problema, entretanto, não logrou
êxito.

[13] Portanto, de fato foi celebrado um contrato de seguro entre a


demandante e esta seguradora, contrato este de garantia estendida,
que possui dentre as coberturas, a de reparo, troca do produto ou
devolução de valores, caso apresente defeitos irreparáveis.

[14] A segurada realizou o aviso de sinistro e o produto fora


verificado. Como o reparo não era viável foi autorizado o
reembolso do produto e aberto pendência para contatar a
consumidora.

[15] Neste sentido, foi realizado o aviso do sinistro e esta se-


guradora se prontificou a realizar o pagamento do valor do
produto, sendo a autora informada sobre pendência em re-
lação à documentação necessária.

Os excertos [12], [13], [14] e [15] reunidos apresentam PDV narrado,


uma vez que o narrador-advogado (L1/E1), nesse contexto, marca a forma
de agir dos enunciadores segundos (e2) (autora, seguradora, segurada),
revelada através das ações verbais “apresentou”, “tentou solucionar”,
“não logrou”, “foi celebrado”, “realizou”, “fora verificado”, “foi autorizado”,
“foi realizado” e “prontificou”. Observamos que as ações verbais no pre-
térito perfeito conduzem ao engajamento do conteúdo proposicional por
L1/E1, pois os acontecimentos sinalizam a veracidade dos fatos ocorridos.

[16] Conforme já demonstrado, a seguradora autorizou a devolução


do valor do bem, solicitando, para tanto, os documentos pertinentes
para o procedimento, entretanto, os documentos não foram recep-
cionados. Desta forma, resta clara a tentativa de induzir o MM.
Juízo ao erro e enriquecer ilicitamente, posto que sequer demonstra
fato gerador de qualquer tipo de dano.

Em [16], a forma de mediatividade “conforme” anuncia imputação de


conteúdo proposicional mencionado anteriormente. Em seguida, L1/E1
coenuncia com a seguradora, constituindo-se em PDV assertado, desta-

38
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

cando-se o operador contra-argumentativo “entretanto” objetivando des-


qualificar a atitude da parte autora, quando afirma que os “documentos
não foram recepcionados”. Ainda, com vistas a complementar a argumen-
tação, L1/E1 utiliza o organizador textual “Desta forma” e confere credi-
bilidade à asserção com a modalidade epistêmica “resta clara”.

[17] Outrossim, ainda que tivesse havido inadimplemento contra-


tual por parte da XXXXX, o que se admite apenas para argu-
mentar, tal fato não teria o condão de causar ao autor dano moral
indenizável, senão vejamos a pacífica jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça: [...]

[18] Na mesma esteira do entendimento firmado pelo Superior Tri-


bunal de Justiça, é o posicionamento adotado pelos Nobres Desem-
bargadores do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Pernam-
buco, assim como os Doutos Juízes componentes do 1º Colégio
Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Estado de Pernambuco:
[...]

[19] Destarte, não há que se falar em devolução do prêmio pago.


Acerca do prêmio, cumpre destacar o que dispõe Código Civil: [...]

Em [17], [18] e [19], L1/E1 faz uso dos organizadores textuais “Ou-
trossim”, “Na mesma esteira” e “Destarte” para dar continuidade ao con-
teúdo proposicional e, dessa maneira, em postura de coenunciação,
concorda com os enunciadores segundos (e2) Tribunal de Justiça e Código
Civil, imputando a estes os posicionamentos dos Nobres Desembargado-
res do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco e os Doutos
Juízes componentes do 1º Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis
do Estado de Pernambuco.

Considerações finais
A Contestação se constitui na relação polêmica de negação e desqua-
lificação da Petição Inicial. Com o objetivo de refutar “restituição do valor
pago pelo produto (guarda-roupa) e prêmio, bem como indenização a tí-
tulo de danos morais”, o texto analisado neste capítulo apresentou, atra-
vés de estratégias linguísticas que direcionam a orientação
argumentativa do locutor enunciador primeiro e dos enunciadores segun-
dos, os pontos de vista assumidos por essas instâncias enunciativas, evi-
denciados nos excertos das seções “Das preliminares” e “Do mérito”.
Observamos que a representação dos pontos de vistas de L1/E1 na

39
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

seção “Das preliminares” é verificada por estratégias linguísticas expres-


sadas através das modalidades epistêmicas e deônticas, assinalando o
comportamento de L1/E1 em relação ao dito do conteúdo proposicional
do PDV imputado ao enunciador segundo. Isso é demonstrado quando o
produtor do texto, seja assumindo por si próprio ou coconstruindo a orien-
tação argumentativa com os enunciadores segundos, compromete-se com
a verdade ou contra-argumenta, refutando o conteúdo proposicional. Ade-
mais, por ser a Contestação um gênero de negação ao que a parte autora
prolatou na Petição Inicial, é comum a enunciação ser dirigida por afir-
mações que desqualificam o processo, bem como de pedidos de extinção
sem resolução de mérito.
Destacamos a predominância, nos excertos, de PDV assertado, pois,
na medida em que L1/E1 faz referência a outros enunciadores que par-
tilham do mesmo ponto de vista, temos uma postura de coenunciação a
serviço da orientação argumentativa defendida por L1/E1 (Rabatel
2008a, 2015, 2016) e, portanto, o conteúdo proposicional é assumido
integralmente.
Observamos também, nos excertos, PDV representado, quando L1/E1
utiliza-se de verbos ou lexemas de percepção em prol da orientação argu-
mentativa pretendida. Dessa maneira, o advogado, ao defender a parte
ré, distancia-se do dito, imputando-o, principalmente, à voz do legislador,
objetivando desqualificar o processo da parte autora.
No que concerne ao sentido jurídico da seção “Do mérito”, por se cons-
tituir como o lugar de ataque aos fatos alegados pelo autor na Petição Ini-
cial, o réu, representado pelo advogado, contra-argumenta utilizando-se
de diversas estratégias linguísticas. Destacamos o uso de marcas que re-
velam envolvimento pelo dito, como lexemas avaliativos, modalidades
epistêmicas e deônticas, operadores argumentativos e contra-argumen-
tativos, além de marcadores de escopo de uma responsabilidade enuncia-
tiva, permitindo identificar as fontes que são veiculadas nas
proposições-enunciados.
A análise nos revelou que o advogado, produtor da Contestação, uti-
lizou-se, predominantemente, de PDV assertado, em postura de coenun-
ciação com outros enunciadores, pois essa estratégia influencia e
estabelece a orientação argumentativa do texto. Foi possível, também,
observar a presença de PDV representado, visto que, em alguns excertos,
L1/E1 representa o dictum por meio de percepções que tem dos enuncia-
dores segundos.
Constatamos que a ocorrência significativa de PDV assertado deve-se
ao fato do gênero jurídico Contestação focalizar, necessariamente, na re-
futação dos fatos, o que incide na utilização de expressões de valor modal

40
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO

epistêmico e deôntico. Portanto, ora L1/E1 afirma em postura de coenun-


ciação com as fontes do Direito, ora nega imputando o conteúdo proposi-
cional a outras vozes. Com isso, L1/E1 assume a responsabilidade
enunciativa em conformidade com a visada argumentativa pretendida.
Compreendemos que a responsabilidade enunciativa depende essen-
cialmente do PDV. Um locutor enunciador primeiro assume a responsa-
bilidade enunciativa quando assume o conteúdo proposicional de um
enunciado. No caso das Contestações, o advogado/produtor do texto,
L1/E1, utiliza-se de marcas linguísticas confirmando o engajamento pelo
dito ou coenunciando com outros enunciadores que legitimam a visada
argumentativa, entre eles, as fontes do Direito.

Referências
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discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
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RABATEL, Alain. Argumenter en racontant: (re) lire et (ré) écrire les textes
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41
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

RABATEL, Alain. Homo narrans: pour une analyse énonciative et interaction-


nelle du récit. Le point de vue et la logique de la narration. Limoges:
Lambert-Lucas, 2008a. (Tomo 1)
RABATEL, Alain. Homo narrans: pour une analyse énonciative et interaction-
nelle du récit. Dialogisme e polyphonie dans le récit. Limoges: Lam-
bert-Lucas, 2008b. (Tomo 2)
RABATEL, Alain. Prise en charge et imputation, ou la prise en charge à la res-
ponsabilité limitée. Langue Française, Paris, n. 162, p. 71-87, 2009.
RABATEL, Alain. Retour sur un parcours en énonciation. In. CARCASSONNE,
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bert-Lucas, 2015a. p. 327-355.
RABATEL, Alain. Homo Narrans: por uma abordagem enunciativa e interacio-
nista da narrativa — pontos de vista e lógica da narração — teoria e
análise. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, Luis Passeggi,
João Gomes da Silva Neto. São Paulo: Cortez, 2016. v.1
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PALAIA, Nelson. Técnica da contestação. 8. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,
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TULLIO, Cláudia Maris. Gêneros textuais jurídicos petição inicial, con-
testação e sentença: um olhar sobre o léxico forense. Tese (Doutorado
em Estudos da Linguagem) — Universidade Estadual de Londrina,
Londrina, 2012. Disponível em:<http://www.bibliotecadigital.uel.br/do-
cument/?code=vtls000179521>. Acesso em: 20 jan. 2014.

42
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO
EM TERMOS DE AUDIÊNCIA NA ÁREA DE
DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
Nouraide Fernandes Rocha de Queiroz — UFRN

Para a teoria retórica, é impossível estudar a ar-


gumentação negligenciando as emoções que estão
vinculadas às situações argumentativas de base,
o debate político e as disputas judiciais. (PLAN-
TIN, 2008, p. 120).

Considerações iniciais
Este estudo analisa as emoções como argumento, de que modo elas
podem ser atribuídas ou inferidas em texto de Termo de Audiência (TA)
— gênero que faz parte do domínio do discurso jurídico. Nessa perspec-
tiva, tomamos como embasamento o quadro teórico da Análise Textual
dos Discursos (ATD), pautando-se numa teoria da “[...] produção co(n)tex-
tual do sentido que deve fundar-se na análise de textos concretos”, con-
forme Adam (2011, p. 13), dando, assim, relevo à articulação texto e
discurso.
São referências também os estudos desenvolvidos por Plantin (2008);
Micheli (2008, 2010; 2014); Kerbrat-Orecchioni (2006), Rabatel, Monte e
Rodrigues (2015); Amossy (2016); Rodrigues et al. (2017), mais especifi-
camente no que concerne às emoções, bem como aos ensinamentos sobre
ponto de vista, e a responsabilidade enunciativa, observando as instân-
cias de enunciação na perspectiva rabateliana.
Inicialmente tratamos acerca das emoções como argumento, dos seus
modos de semiotização, para então discorrermos sobre o nosso objeto de
observação: o Termo de Audiência, passando a analisá-lo na sequência.
Traçamos seu plano de texto para, em seguida, fazermos a nossa investi-
gação pautada na hipótese de que podemos inferir emoções, considerando
a esquematização, no discurso, de uma situação que lhe é associada por
convenção, de acordo com padrões socioculturais que lhe supõem a ga-
rantia da legitimidade, como nos assevera Micheli (2014).
Ademais, observamos o ponto de vista, a responsabilidade enuncia-
tiva e suas instâncias de enunciação na construção argumentativa por
meio da emoção.

43
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

1. Emoção como argumento


Historicamente, a argumentação pura foi “[...] definida pela rejeição
dos afetos e do comprometimento da pessoa com o próprio discurso”
(PLANTIN, 2008, p. 111), o qual deveria ser, consequentemente, imparcial
e impessoal. No entanto, estudos recentes consideram que as relações
entre razão e emoção são bem mais complexas. Ainda, segundo Plantin
(2008, p. 111), “A correta consideração das dimensões do ethos e do pathos
implica o desenvolvimento de uma teoria dos afetos no discurso”. A propó-
sito, não devemos deixar de observar que Aristóteles já considerava o ethos
como a mais eficaz das formas de tornar válida uma opinião diante de um
auditório concreto, pois aciona recursos que despertam a empatia, a iden-
tificação e a transferência, instigando a adesão do interlocutor ao discurso,
favorecendo, assim, a argumentação para convencer, para persuadir.
Nesse sentido, são destacados elementos extradiscursivos e intradis-
cursivos, que constituem o ethos do locutor. Aqueles dizem respeito à re-
putação, ao carisma, ao prestígio do locutor; e estes (os intradiscursivos)
referem-se aos efeitos do próprio discurso; à voz, às escolhas lexicais; à
sintaxe (PLANTIN, 2008). Tais elementos constituem-se estratégias dis-
cursivas para suscitar, no auditório, o conjunto de emoções — pathos.
Desse modo, em conformidade com Micheli (2008, p. 127), “[...] os locuto-
res procuram ‘argumentar uma emoção’ ou, em outros termos, fundamen-
tar a legitimidade de uma disposição emocional” (Tradução nossa),1 isto
é, o homem articula sua fala e seu agir em prol da defesa de suas ideias,
de suas emoções, para o outro.
Assim, interessante se faz destacarmos o que nos ensina Amossy
(2016), ao asseverar que é essencial analisar a paixão, o sentimento, em
um quadro de interação argumentativa. Nessa linha de pensamento, des-
tacamos que a emoção parte de uma relação entre o “eu” e o “tu” com de-
terminado propósito.
Retomando os estudos de Plantin (2008), verificamos, ainda, que ele
trata da supremacia dos afetos, e nessa direção, cita Cícero, (Do Orador,
II, p. 78) por meio do orador Antônio, em cujo discurso dá relevo ao papel
das emoções para estabelecer um elo com seu auditório a fim de que a
paixão seja o sentimento a dominar esse auditório em detrimento da
razão: “Com efeito, nada é mais importante para o orador [...] do que ga-
nhar o beneplácito daquele que escuta, sobretudo, excitar nele emoções
tais que, em vez de seguir o juízo e a razão, ele cede ao domínio da paixão
e à perturbação de sua alma”. (PLANTIN, 2008, p. 119).
1
“Les locuteurs peuvent chercher à ‘argumenter une émotion’ ou, en d’outrestermes, à
fonder la legitimité d’une disposition affective.”

44
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

O orador, em função de seu auditório — quer seja universal, quer


seja particular —, deve adaptar-se e desenvolver estratégias que sejam
eficazes em sua argumentação, a qual assume diferentes formas diante
de auditórios diversos, de situações diversas. Nessa perspectiva, as emo-
ções adquirem relevo na condução de uma visada argumentativa exitosa.
Para nos auxiliar a compreender melhor a emoção por meio da lingua-
gem, destacamos o estudo proposto por Micheli (2014), em que esse autor
trabalha com a elaboração de um modelo de análise da linguagem emocio-
nal, e ele o representa sob a forma de um esquema de árvore (Figura 1).
Verificamos, nesse modelo, a “Emoção” que se ramifica em duas partes: ex-
perimentar e semiotizar, havendo entre elas a expressão e a comunicação.
E quanto à semiotização, destacamos que ele nos mostra uma tripartição
em: emoção dita; emoção mostrada e emoção fundamentada (sustentada).

Figura 01 — Esquema de árvore


ÉMOTION

éprouver sémiotiser
[exprimer]
[communiquer]
Trois modes de sémiotisatiom

{
dire montrer étayer
Matériau
sémiotique
L’émotion est désignée L’émotion est inférée dans L’émotion est inférée a par-
Verbal au moyen du lexique. un ensemble de caractéristi- tir de la représentatiton,
Ele se trouve mise en ques de l’énoncé : celles-ci dans le discours, d’un type
[Coverbal rapport, sur le plan sont interprétés comme des de situation qui lui est
(voco-prosodique syntatique, avec un être indices du fait que l’énontia- conventionnellement asso-
mimo-posturo- qui l’éprouve et, éven- tion est cooccurrent avec le cié sur le plan socio-cultu-
gestuel)] tuaellment, avec ce sur ressenti d’une emótion par rel et qui est donc supposé
quoi elle porte le locuteur lui servir de fondement

Fonte: (MICHELI, 2014, p. 17)2

Nessa perspectiva, o autor nos revela que:

na emoção dita — [...] o locutor faz uso de uma palavra, associando


uma forma significante e um conteúdo de significação, pertencente

2
Imagem disponível em:
<https://www.google.com.br/search?biw=1242&bih=602&tbm=isch&sa=1&ei=iQuXWqafGo-
jAzgLqi56QDQ&q=micheli+sch%C3%A9ma+en+arbre+d%27%C3%A9motion+&oq=mi-
cheli+sch%C3%A9ma+en+arbre+d%27%C3%A9motion+&gs_l=psy-
ab.3...53430.87687.0.88514.14.14.0.0.0.0.299.3074.2-13.13.0....0...1c.1.64.psy-ab..1.0.0....0.ud_l
xIw6sR4#imgrc=LxUjsUb_uzbwbM:>.Acessoem: 22 jan. 2018.

45
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

ao sistema de uma língua dada e que designa, convencionalmente,


um referente de natureza emocional (um estado, um processo, uma
qualidade etc., segundo a categoria de palavra concernente. (Tra-
dução nossa);3

a emoção mostrada — pode ser percebida [...] nas características


de um enunciado que são passíveis de uma interpretação inicial e
que, portanto, são consideradas capazes de mostrar a emoção que
se desprende por sua extrema heterogeneidade: envolvem unidades
que elevam potencialmente todo tipo de material semiótico (tanto
verbal quanto coverbal), e no que se refere ao material verbal — de
todo nível de organização linguística. (Tradução nossa);4

na emoção fundamentada (sustentada) — a hipótese é que [...] uma


emoção pode ser inferida a partir da esquematização, no discurso,
de uma situação que lhe é convencionalmente associada, segundo
um conjunto de normas socioculturais e que assim é suposição de
garantia da legitimidade. (Tradução nossa).5

Faz-se pertinente, então, evocarmos o que afirma Kerbrat-Orecchioni


(2006), para quem as emoções contêm uma dimensão intrinsecamente ar-
gumentável, possível de se observar na materialidade do discurso. Nesse
sentido, também consideramos o que nos ensinam Rodrigues et al. (2017,
p. 34) ao discorrer sobre a emoção como dispositivo enunciativo, textual
e discursivo: “A emoção, [...] está presente na linguagem de todos, nas
mais variadas situações enunciativas, na expressão subjetiva de senti-
mentos e atitudes os mais variados, como o amor, o ódio, o desespero, a
alegria, a felicitação, os pêsames, a acusação etc.”.
Ainda conforme esses autores, ao tratarem sobre a subjetividade na
língua e citando Kerbrat-Orecchioni, em publicação de 2006, ressaltamos o
papel que exercem, nas línguas naturais, adjetivos afetivos, que, ao serem
enunciados, concomitantemente, expressam “uma propriedade do objeto de
avaliação e uma reação emocional do enunciador em relação a esse objeto.”
3
“[...] le locuteur fait usage d’un mot, associan une forme signifiante et un contenu de sig-
nification, appartenant un systèmed’une langue donné et qui désigne convencionnellement
un réferent de nature émotionnelle (un état, un processus, unequalité, etc., selon la caté-
gorie de mots concernée).” (MICHELI, 2014, p. 22).
4
“[...] les caractéristiques d’un énoncé qui sontpassiblesd’une interprétation indicielle et
qui, dèslors, sont réputés pouvoir montrer l’émotionfrappent par leurextrême hétérogé-
néité :ellesengagent des unités qui relèvent potentiellement de tout type de matéria usé-
miotique (aussibien verbal que co-verbal) et — pour ce qui est du matériau verbal — de
tout niveaud’organisation linguistique.” (MICHELI, 2014, p. 22).
5
“[...] une émotion peutêtre inférée à partir de la schématisation, dans le discours, d’une
situation qui luiest conventionnellement associéeselon un ensemble de normes socio-cul-
turelles et qui estain sisu pposéeen garantir la légitimité.” (MICHELI, 2014, p. 22).

46
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

(RODRIGUES et al., 2017, p. 35). Desse modo, asseveram esses pesquisa-


dores que tal “[...] movimento cognitivo e discursivo é, por excelência, uma
alternativa para a construção linguística do ponto de vista”. (Ibid., p. 35).
Em nossa análise, faz-se essencial considerarmos também o que le-
ciona Adam (2011) para quem o ponto de vista (PdV)6 é delimitado por ele-
mentos linguísticos, os quais ele especificou em categorias de análise. Entre
elas, interessa-nos, especificamente, em virtude do recorte metodológico,
as listadas a seguir: modalidades do tipo subjetivas (querer, pensar, espe-
rar...); tipos de representação da fala das pessoas ou dos personagens (dis-
curso direto, discurso indireto e indireto livre); modalização por um tempo
verbal (parece) e escolha de um verbo de atribuição de fala (afirmam); e o
fenômeno de modalização autonímica, a exemplo da presença de aspas.
A observação das categorias dá sustentação aos indícios, no proces-
samento da argumentação, uma vez que fazem emergir o ponto de vista
presente nos enunciados, revelando-nos a sua influência na orientação
argumentativa do texto.
Vale salientarmos que, para Rabatel (2003, p. 3), “[...] PDV é tudo
que, na referenciação dos objetos (do discurso), revele, de um ponto de
vista cognitivo, uma fonte enunciativa singular e denote, direta ou indi-
retamente, seus julgamentos sobre os referentes”.
Assim, destacamos que, concernente ao ponto de vista, Plantin (2008,
p. 124) distingue como um dos tratamentos da emoção em argumentação
a tese da indiscernibilidade, segundo a qual: “É impossível construir um
ponto de vista, um interesse, sem a eles associar um afeto, dado que as
regras de construção e de justificação dos afetos não são diferentes das
regras de construção e de justificativa do ponto de vista”.
Nessa linha de pensamento, levando em conta que a argumentação
deve ser estudada em textos empíricos, “[...] inseridos em determinado
discurso/actividade de linguagem/esfera de comunicação e que são cons-
truídos a partir da mobilização de recurso lexicais e sintáticos de uma
língua natural” (PINTO, 2010, p. 15), passemos, a seguir, a discorrer
sobre o Termo de Audiência.

2. O Termo de Audiência
O Temo de Audiência (TA) em análise, como explica Queiroz (2016), é
um texto elaborado no âmbito extrajudicial, constituindo-se da transcrição
de audiência, ensejada a partir de procedimentos anteriores iniciados com
6
Utilizamos para designar “ponto de vista” as formas PdV e PDV, ao discorrermos sobre a
perspectiva dos teóricos Adam e Rabatel, respectivamente, uma vez que se trata da grafia
por eles adotada.

47
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

uma denúncia7 que fora realizada, no Ministério Público do Estado do Rio


Grande do Norte (MPRN) — Brasil, em uma das Promotorias de Justiça
de defesa de direitos da pessoa idosa. Vale destacar que a esse Órgão pú-
blico é imputada a responsabilidade da verificação dos fatos denunciados,
para a sua confirmação ou não, tendo todas as etapas registradas em autos
processuais; o processo caminha na busca de um consenso a fim de garantir
os direitos das pessoas idosas, para as quais eles estejam sendo violados.

2.1. O plano de texto em análise


Para melhor analisarmos o TA, consideramos, inicialmente, os ensi-
namentos de Adam (2011, p. 256), para quem “[...] o reconhecimento de
um texto como um todo, passa pela percepção de um plano de texto com
suas partes constituídas, ou não, por sequências identificáveis” e que o
plano de texto constitui “[...] o principal fato unificador da estrutura com-
posicional”. Assim, ele define dois tipos de planos de texto: o fixo e o oca-
sional. Aquele é “[...] fixado pelo estado histórico de um gênero (coerções)
ou subgênero do discurso” diferentemente deste — o ocasional —, que se
apresenta deslocado, no tocante ao gênero (ADAM, 2011, p. 258).
Uma vez que, de acordo com Adam (2011), os planos de texto desem-
penham um papel fundamental na composição macrotextual do sentido,
na medida em que englobam blocos de texto cujas sequências, por eles
formadas, organizam textos característicos de um gênero, entendemos
que se faz pertinente observarmos os aspectos composicionais do TA, mo-
tivo pelo qual aqui o sistematizamos no Quadro 1.
Reafirmamos, ainda, em consonância com Adam (2011, p. 263), que
“A (re)construção de partes ou segmentos que correspondem ou ultrapas-
sam os níveis do período e da sequência é uma atividade cognitiva fun-
damental que permite a compreensão de um texto e, para isso, mobiliza
todas as informações linguísticas de superfície disponíveis [...]”.
Faz-se pertinente ressaltarmos que, em decorrência de questões éti-
cas, é necessário que seja preservado o anonimato das partes envolvidas
nos processos, motivo pelo qual suas identificações sofrem apagamentos,
sendo seus nomes substituídos por letras do nosso alfabeto. O Termo de
Audiência, designado “TA”, segue sem a numeração do procedimento ao
qual ele pertence e que o identifica.
7
“O vocábulo ‘denúncia’ está aqui utilizado na sua acepção de ato verbal pelo qual foi levado
ao conhecimento da instituição Ministério Público uma notícia de fato contrário à lei, que se
entenda passível de reclamação na busca de uma solução mediada por essa Instituição. De-
núncia, essa, que se configura por meio de um procedimento inicial, no momento do registro
de um ‘Atendimento’ ou de uma ‘Notícia de Fato’, que ocorre em Promotoria de Justiça, e
que implica uma investigação acerca do fato narrado”, conforme Queiroz (2016, p. 153).

48
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

Quadro 1 — Plano de texto do TA


ELEMENTOS DA DIVISÃO DAS PARTES IDENTIFICAÇÃO
ESTRUTURA FORMAL ESTRUTURAIS
DO TEXTO
Cabeçalho(plano fixo) [Logo da Instituição]XXª Promo- Identificação= local de onde se
toria de Justiça de [nome da co- fala:Instituição, Órgão; endereço,
marca]Rua Xxxxxxx, XXXX, X° telefone, e-mail
andar, [Bairro], [Cidade]-[UF] —
CEP: X Telefone: XE-mail: promoto-
riasxxxxx@xxxx.br
Tipificação do docu- PP — Procedimento Preparatório Identificação do tipo de proce-
mento(plano fixo) nº XX dimento: fase processual em que se
encontra vinculada o TA.
Título(plano fixo) Termo de Audiência Identificação do gênero textual/
discursivo: nome da peça processual.
1º parágrafo —introdu- (a) No dia 08 de setembro de 2014, Quadro enunciativo que marca
tório(plano fixo) às 09h:30, (b) na sala da XXª Promo- a abertura do Termo, respon-
toria de Justiça da Comarca de [ci- dendo as questões:(a) quando;(b)
dade], (c) na presença da Dra. “A”, onde; e (c) quem.Apresenta os refe-
Promotora de Justiça Substituta, rentes da cena de enunciação.
compareceu a Sra. “T” (tel. X), filha
idosa de “MCC”, conhecida como “Tt”.
2º parágrafo(plano Inicialmente, foi indagado a Sra. “T” Situa o início da audiência, nesse
fixo) o motivo da ausência do seu irmão, TA, com o pedido de explicação sobre
tendo ela informado que ele não a ausência de um dos envolvidos no
pode vir, porque está cuidando da caso e sobre as condições de vida da
sua genitora. Questionada a res- idosa, cujo direito se encontra no
peito das condições atuais de vida cerne da questão pleiteada. Também
da sua mãe, a Sra. “T” declarou: sinaliza o início da narração dos fatos.
3º parágrafo(plano oca- “Que a sua mãe quebrou o pé [...]; Narração, na 3ª pessoa verbal, do
sional) Que a sua mãe, antes mesmo da depoimento da filha da idosa, em
queda, [...]; Que após a queda a sua que se encontram as marcas de uma
mãe [...] Que gostaria que ela fi- visada argumentativa, no sentido
zesse fisioterapia, mas até agora de que os cuidados com a idosa não
não conseguiu; [...]” estão sendo negligenciados.
4º Parágrafo(plano Ao final da audiência, a Sra. “T” foi Deliberações complementares
fixo) orientada a fazer a inscrição da sua às ações que já são realizadas vi-
genitora na UNICAT para tentar re- sando à intensificação dos cuidados
ceber gratuitamente os medicamen- que propiciarão melhorias na situa-
tos de que ela precisa, bem como a ção de vida da idosa.
procurar o CEASI, na Ribeira, para
obter informações sobre sessões de
fisioterapia. Por fim, a Sra. “T” foi
orientada a informar a seus tios que
eles deveriam providenciar a contra-
tação de uma pessoa para dormir em
companhia da Sra. “MCC” no prazo
de 30 dias, apresentando a devida
comprovação a esta Promotoria.
Fechamento do Termo Nada mais havendo a tratar, o pre- Parte formal da estrutura do
de Audiência(plano sente termo de audiência por todos documento, plano fixo do TA que
fixo) lido, achado conforme e assinado, foi configura o seu encerramento.
encerrado.
Assinaturas(plano fixo) Parte essencial para a produção
dos efeitos jurídicos entre as par-
tes envolvidas.
* Unidade Central de Agentes Terapêuticos (nota da autora desta pesquisa)
** Centro Especializado de Atenção a Saúde do Idoso (nota da autora desta pesquisa)

Fonte: Quadro elaborado pela autora desta pesquisa, especificamente, para este estudo

49
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

De acordo com as indicações constantes no Quadro 1, referentes ao


TA (cf. Anexo) — e em virtude da análise realizada nos demais Termos
de Audiência que foram utilizados para a formação do corpus desta pes-
quisa, os quais não puderam ser, obviamente, aqui explicitados, em de-
corrência da limitação de páginas determinadas para esta escritura —,
constatamos, na composição dos planos de texto, a recorrência da sequên-
cia: planos fixos, inicialmente; plano(s) ocasional(is), sempre em posição
intermediária; e o retorno aos planos fixos, nos dois últimos parágrafos e
no encerramento do TA.
Desse modo, temos, inicialmente, um plano de texto fixo, constituído
do cabeçalho que contém o endereçamento, no qual se identifica a insti-
tuição Ministério Público e seu Órgão, a Promotoria de Justiça. Em se-
guida, encontra-se a indicação do tipo de procedimento e sua respectiva
numeração: “PP — Procedimento Preparatório n° X”; do título “Termo de
Audiência”, e de um parágrafo inicial, que delimita a abertura do Termo.
Em seguida, o 2º parágrafo, o qual situa o início da audiência. No caso do
TA em análise, começa com o pedido de explicação sobre a ausência de
um dos envolvidos no caso e sobre a atual condição em que vive a idosa,
cujo direito se encontra no cerne da questão pleiteada. Esses podem ser
considerados os marcos iniciais constantes da abertura do TA.
No 3º parágrafo, observamos o plano ocasional, lembrando que o seu
conteúdo varia em conformidade com o caso que se apresente, com a
quantidade de participantes da audiência, com o objeto da lide, com as
percepções e os objetivos das partes envolvidas no processo.
Em continuidade, a partir do 4º parágrafo, novamente, retoma-se um
plano fixo, em que se encontram as deliberações quanto às ações a serem
realizadas visando à intensificação dos cuidados que propiciarão melho-
rias na situação de vida da idosa. Na sequência, constam os parágrafos
finais contendo o fechamento do TA, seguido das devidas assinaturas, en-
cerrando o documento.

2.2. Semiotização da emoção fundamentada e a argu-


mentação em análise
Compartilhamos com Adam (2011) a ideia de que é necessária, na
busca pelo sentido, a visita a elementos intrínsecos e extrínsecos ao texto.
Nessa perspectiva, vejamos que, no contexto situacional em questão, a
declarante encontra-se em uma Promotoria de Justiça do Ministério Pú-
blico do Estado (MPE), com atuação na área de defesa dos direitos da pes-
soa idosa, em decorrência de denúncia a qual alega que as condições de

50
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

vida de sua mãe não lhes são favoráveis, motivo pelo qual os direitos dela,
na qualidade de pessoa idosa, estão sendo reivindicados.8
Nessa perspectiva, ocorre a audiência da filha da idosa, citada nos
autos processuais, que é ouvida pelo(a) Promotor(a) de Justiça, o qual ela-
bora o Termo de Audiência, que é finalizado com a assinatura da decla-
rante e desse(a) representante ministerial, como vimos no Quadro 1, do
plano de texto. Quadro, esse, que também nos apresenta a instituciona-
lização do texto, a uniformização da sequência dos dados da audiência,
transcritos numa determinada ordem, cuja estrutura, como verificamos,
é inerente a essa peça processual.
A fim de facilitar a compreensão da análise, destacamos os enuncia-
dos de acordo com os parágrafos e as linhas em que aparecem no texto
integral, do qual fizemos o nosso recorte.
Inferimos, já inicialmente, a ancoragem de uma fundamentação de
emoções positivas, como o carinho e a afetividade, evocadas por meio do
“cuidado”, explicitado logo no 2º parágrafo. Nesse parágrafo, há a justi-
ficativa da ausência de um dos intimados a comparecerem à audiência
exatamente pelo fato de “estar cuidando de sua genitora” (linha 2):

Inicialmente, foi indagado a Sra. “T” o motivo da ausência


Linhas 1 e 2 do seu irmão, tendo ela informado que ele não pode vir, por-
que está cuidando da sua genitora.

No 3º parágrafo, observamos um evento comunicativo que já se


inicia sugerindo a semiotização da emoção fundamentada dentro de um
contexto situacional em que uma pessoa idosa sofreu uma queda, que-
brou o pé, ficou internada por 20 dias e ainda ficou sem andar. Desse
modo, evocando a emoção através da piedade que pode ser inferida diante
desse contexto:

“Que a sua mãe quebrou o pé [...] chegando a ficar 20 dias


Linhas 1 a 4 internada [...] Que após a queda a sua mãe ficou sem
andar [...]”

Em seguida, ainda nesse parágrafo, no qual, por excelência, encon-


tra-se a sequência narrativa em função da argumentação por meio da
emoção, verificamos que, segundo a declarante, os cuidados com a sua
mãe não estão sendo negligenciados, pois ela está recebendo assistência
da família. No trecho em questão, percebemos, mais uma vez, que se
8
Destacamos que o TA em análise trata da situação de duas idosas — mãe e filha —, res-
pectivamente, avó e mãe da declarante. Contudo nos detemos a analisar apenas a parte
que se refere à mãe da declarante.

51
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

evoca a emoção positiva, desta feita, apreendida pelos termos e enuncia-


dos que nos permitem inferir uma adjetivação afetiva que sugere “cui-
dado”, “carinho”: a exemplo de “assistência” (linhas 4 e 5); “só sair da casa
da idosa após lhe dar a última medicação, já que seu irmão não sabe ler”
(linhas 7 a 9); o cuidado médico recebido semanalmente (linha 9); o acom-
panhamento psiquiátrico (linha 12):

“[...] vem recebendo assistência da declarante e do irmão


Linha 4
[...]”
Linha 5 “[...] tem [o irmão] prestado assistência à genitora [...]”
“[...] [a declarante] fica na casa da sua genitora, só a dei-
Linhas 7 a 9 xando no horário de dormir, [...], após dar a última me-
dicação, porque seu irmão não sabe ler [...]”
“[...] Que a sua mãe recebe a visita semanalmente de uma
Linha 9
médica [...]”
“[...] Que a sua mãe continua fazendo acompanhamento
Linhas 12 e 13
psiquiátrico [...]”

Na continuidade, a expressão “até agora” nos sugere uma espera, a


qual podemos inferir a emoção positiva através da esperança, que é con-
siderada uma das acepções do verbo esperar, ora implícito:

“[...] Que gostaria que ela fizesse fisioterapia, mas


Linhas 13 e 14 até agora não conseguiu [...]”

Podemos entender que na utilização da expressão “até agora”, há


uma “esperança” de conseguir a fisioterapia em tempo futuro — reforçada
pelo desejo expresso em “gostaria” —, cuja expectativa pode se transfor-
mar em realidade, em consonância com a orientação dada ao final da au-
diência, que consta transcrita no 4º parágrafo

“Ao final da audiência, a Sra. “T” foi orientada a fazer


a inscrição da sua genitora na UNICAT* para tentar
Linhas 22 a 24 receber gratuitamente os medicamentos de que elpre-
cisa, bem como a procurar o CEASI** na Ribeira, para
obter informações sobre sessões de fisioterapia. [...]”

* Unidade Central de Agentes Terapêuticos


** Centro Especializado de Atenção a Saúde do Idoso

52
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

Vale salientar que, a partir dos recortes ora mostrados, nosso estudo
depreende do texto a existência do “cuidado” para com a idosa — numa
clara argumentação de que seus direitos não estavam sendo negligen-
ciados. Cuidado, esse, como algo contínuo, que podemos inferir pela pre-
dominância das locuções verbais em que temos verbos conjugados no
tempo presente ou na forma nominal de infinitivo + verbo na forma no-
minal de gerúndio. Desse modo, consideramos que a recorrência do ge-
rúndio reforça a inferência das ações em curso.
Diante da análise ora realizada, observarmos, ainda, as instâncias
enunciativas no processo de enunciação, em consonância com Rabatel
(2009), considerando o locutor como o produtor do enunciado e o enuncia-
dor como instância de responsabilização.
Nesse sentido, ressaltamos que em nossa investigação apresenta-se
um enunciado no qual o locutor 1 (L1) já se utiliza do discurso indireto,
imputando a responsabilidade do dito a outro enunciador, logo, marcando
seu distanciamento da responsabilidade enunciativa.
Apreendemos o apelo a emoções positivas na justificativa, na expli-
cação dada pela declarante, inferidas por meio da imputação de um PDV
representado, a partir da utilização de modalizadores: verbal (3ª pessoa),
do discurso reportado; pelo uso do “QUE”, repetidamente, e, ainda, refor-
çado pela utilização das aspas, numa clara modalização autonímica.
Assim, podemos inferir que há pontos de vista (PDV) atribuídos por
L1/E1 (Locutor 1 e Enunciador 1) — conforme conceitua Rabatel (2009)
— a enunciadores segundos, com isso, não sendo assumidos integral-
mente por L1/E1. Vimos que os ditos no texto/discurso podem ser assu-
midos pelo locutor/enunciador primeiro (L1/E1), o qual é encarregado de
gerenciar os dizeres, ou a Responsabilidade Enunciativa pode ser atri-
buída pelo L1/E1 a outros enunciadores. Com isso, observamos a impu-
tação da Responsabilidade Enunciativa a um outro enunciador, no caso,
a declarante, da carga semântica das emoções inferidas nos enunciados
numa visada argumentativa para provar que os cuidados com a idosa,
sua genitora, não foram, nem estão sendo negligenciados. Assertiva au-
torizada pelos aspectos co(n)textuais que nos permitiram inferir tais sen-
tidos ao texto analisado.

Considerações finais
Destacamos, em consonância com o nosso aparato teórico, que a fala
e o agir do homem se ocorrem em função de defender suas ideias, suas
emoções, para o outro, e entendemos, de acordo com Kerbrat-Orecchioni
(2006), que podemos observar, imbricada na materialidade do discurso,
uma dimensão argumentável.

53
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Nesse sentido, foi delineada uma trajetória de análise, destacando


aspectos linguísticos e co(n)textuais responsáveis pela apreensão da se-
miotização da emoção fundamentada/sustentada, conforme vimos no es-
quema de árvore de Micheli (2014), que é parte integrante do quadro
teórico que fundamentou a nossa investigação.
Em um primeiro momento, vimos o plano de texto, que nos apresen-
tou a institucionalização do documento, a uniformização da sequência dos
dados da audiência, transcritos numa determinada ordem; como também
um parágrafo em que se encontra a narrativa da declarante, no qual de-
duzimos a concentração das marcas linguísticas que nos permitiram in-
ferir as emoções, conforme apreendidas na análise. Parágrafo em que
verificamos, também, a construção narrativa na 3ª pessoa verbal, confi-
gurando o PDV representado, elaborado pelo de L1, construído a partir
dos verbos de dizer, com a utilização do “QUE”, inclusive de aspas ini-
ciando e finalizando todo o 3º parágrafo, reforçando o seu distanciamento
através da modalização autonímica.
Faz-se pertinente apreendermos, por meio de designações linguísti-
cas, as emoções, quer sejam explicitadas ou passíveis de serem inferidas,
destacando que mesmo não estando o texto permeado por adjetivos afeti-
vos, esses puderam ser apreendidos por meio dos enunciados, das escolhas
lexicais, como também do contexto situacional da enunciação. Assim, ob-
servamos, ainda, a representação do ponto de vista, analisando também
os verbos de dizer e percepção, que nos permitiram observar a perspectiva
de si e do outro no discurso, orientando-o argumentativamente.
Por fim, entendemos que a articulação do discurso feita entre a ar-
gumentação e a emoção, neste estudo, embora não apresente adjetivos
afetivos, evoca-os por meio da construção de um discurso em que se en-
contra a semiotização da emoção fundamentada/sustentada num dado
contexto sociocultural e situacional.

Referências
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discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 2.
ed. 3. reimp. São Paulo: Contexto, 2016.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L’Énonciation: de la subjectivité dans le
langage. 4. ed. Paris: Armand Colin, 2006.
MICHELI, R. La construction argumentative des émotions: pitié et indigna-
tion dans le débat parlementaire de 1908 sur l’abolition de la peine de

54
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA

mort. In: MICHAELI, R. Émotion set discours: l’usage des passions dans
la langue. France: Press Universitaires de Rennes, 2008, p. 127-140.
MICHELI, R. L’émotion argumentée: l’abolition de la peine de mort dans le
débat parlementaire français. Paris: Les Editions du CERF, 2010.
MICHELI, R. Les émotions dans les discours: modele d’analyse, perspectives
empiriques. Paris, 2014.
PLANTIN, Cristian. A argumentação: história, teorias, perspectivas. Tradução
Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. (Na ponta da
língua; 21)
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica,
jornalística. Lisboa: Quid Juris Sociedade Editora, 2010.
QUEIROZ, Nouraide Fernandes Rocha de. A argumentação em texto jurídico: um
termo de audiência. In: PINTO, Rosalice; RODRIGUES, Maria das Graças
Soraes. Textos e discursos no Direito e na política: análises e pers-
pectivas interdisciplinares. Coimbra: Grácio Editor, 2016. p. 149-160.
RABATEL, Alain. La narratologie, aujourd'hui: pour une narratologie énonciative ou
pour une approche énonciative de la narration ? Vox Poetica, 2003. Dispo-
nível em: <www.vox-poetica.org/t/lna/rabatel.htm> Acesso em: 15 dez. 2011.
RABATEL, Alain. Prise en charge et imputation, ou la prise en charge à la res-
ponsabilité limitée. Langue Française, Paris, n. 162, p. 71-87, 2009.
RODRIGUES, Maria das Graças et al. Ateliê de escrita: a emoção como fonte
motivadora. In: MARQUESI, Sueli Cristina; PAULIUKONIS, Aparecida
Lino; Elias, Vanda Maria (Orgs.). Linguística Textual e Ensino. São
Paulo: Contexto, 2017.p. 33-47.

ANEXO — TERMO DE AUDIÊNCIA


[Logo da Instituição]
XXª Promotoria de Justiça de [nome da comarca]
RuaXxxxxxx, XXXX, X° andar, [Bairro], [Cidade]-[UF] — CEP: XXXXXX
Telefone: XXXX-XXXX
E-mail: promotoriasxxxxx@xxxx.br

PP — Procedimento Preparatório nº XXXX

Termo de Audiência

No dia 08 de setembro de 2014, às 09h30, na sala da XXª Promotoria de Justiça da


Comarca de [cidade], na presença da Dra. “A”, Promotora de Justiça Substituta, compa-
receu a Sra. “T” (tel. xxxxxxxx), filha idosa de “MCC”, conhecida como “Tt”.

[2º parágrafo]

Inicialmente, foi indagado a Sra. “T” o motivo da ausência do seu irmão, tendo ela [2]informado
que ele não pode vir, porque está cuidando da sua genitora. Questionada a respeito das con-
dições atuais de vida da sua mãe, a Sra. “T” declarou:

55
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

[3º parágrafo]

[1] “Que a sua mãe quebrou o pé no dia 01 [sic] de maio de 2014, chegando a ficar 20 dias
[2] internada no Hospital [nome do hospital]; Que a sua mãe, antes mesmo da queda, já
havia saído da [3] residência da sua genitora e passado a morar na própria casa; Que
após a queda a sua mãe ficou [4] sem andar e vem recebendo assistência da declarante e
do irmão “A”; Que “A” está morando na [5] casa com a genitora e, como é autônomo, tem
prestado assistência à genitora; Que a declarante [6] trabalha como auxiliar de crianças
em um transporte escolar nos horários de 06h às 07h30 e 10h40 [7] às 14h:00; Que,
quando não esta [sic] trabalhando, fica na casa da sua genitora, só a deixando no [8]
horário de dormir, por volta das 21h30, após dar a última medicação, porque seu irmão
não sabe [9] ler; Que a sua mãe recebe a visita semanalmente de uma médica e tem rece-
bido desconto de 50% [10] para comprar fraldas; Que a sua mãe recebe uma ajuda de R$
700,00 mensalmente do filho “F” [11] residente em São Paulo; Que a receita da idosa só
não é suficiente para tudo, porque os [12] medicamentos para depressão são caros; Que a
sua mãe continua fazendo acompanhamento [13] psiquiátrico no [nome do hospital] com
Dr. [nome do médico]; Que gostaria que ela fizesse [14] fisioterapia, mas até agora não
conseguiu; Que em relação à situação da sua avó, “MCC”, tem a dizer que ela continua in-
dependente, mas dorme sozinha; Que a sua avó possui seis filhos vivos, mas um deles
mora em São Paulo e a mãe da declarante não tem condições de prestar assistência; Que
residem em Natal “ML” (tel. xxxxx), “Ma”, “Na” e “JE” (tel. xxxxx); Que a esposa de “JE”,
“E”, vai à casa da idosa três vezes por semana para fazer as refeições da semana inteira;
Que nos demais dias a idosa esquenta a própria comida e toma os cuidados básicos; Que
a sua avó também só recebe um salário mínimo que é administrado pela filha “ML”; Que
os filhos a ajudam financeiramente e estão tentando conseguir uma pessoa para fazer
companhia a [sic] idosa;”
[22] Ao final da audiência, a Sra. “T” foi orientada a fazer a inscrição da sua genitora na
[23] UNICAT para tentar receber gratuitamente os medicamentos de que ela precisa,
bem como a [24] procurar o CEASI, na Ribeira, para obter informações sobre sessões de
fisioterapia. Por fim, a Sra. “T” foi orientada a informar a seus tios que eles deveriam
providenciar a contratação de uma pessoa para dormir em companhia da Sra. “MCC” no
prazo de 30 dias, apresentando a devida comprovação a esta Promotoria.
Nada mais havendo a tratar, o presente termo de audiência por todos lido, achado conforme
e assinado, foi encerrado.

Assinatura
(Declarante)

Assinatura
(Promotor(a) de Justiça Substituto(a))

56
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-
-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO
DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Fernanda Isabela Oliveira Freitas — UFRN

Introdução
A visão aristotélica evidencia o discurso ou a argumentação a partir
de três componentes: o logos diz respeito à argumentação racional pro-
priamente dita; o pathos, por sua vez, corresponde ao envolvimento e ao
convencimento do interlocutor; finalmente, o ethos, que se refere ao as-
pecto ético ou moral que o enunciador deixa entrever em seu discurso a
fim de garantir o sucesso da oratória. Retomando dois pólos da retórica
clássica dos estudos da argumentação, Amossy (2011) ressalta o ethos —
a construção da imagem de si que o orador projeta em seu discurso — e
o pathos — a construção discursiva da emoção que ele quer suscitar em
seu auditório e que também deve ser construída discursivamente.
No contexto jurídico, as emoções nos levam a entender que o embate
discursivo do direito envolve, além do ethos, que seria não só SER, mas tem
que PARECER; o logos, a razão, que seria o mais sublime, alvo de todo ju-
rista; e o Pathos, não emoções psicológicas, humores, mas signos transpor-
tadores de sentidos reconhecidos pelo outro sujeito da comunicação/relação.
Acreditamos, ainda, que “[...] todo texto constrói, com menor ou maior
explicitação, uma representação discursiva do seu enunciador, de seu ou-
vinte ou leitor e dos temas ou assuntos que são tratados” (RODRIGUES;
PASSEGGI; SILVA NETO, 2010, p. 173). A representação discursiva do
enunciador é a representação de si, nos seus diferentes níveis; a repre-
sentação discursiva do(s) ouvinte(s) consiste na representação do inter-
locutor ou dos interlocutores; já a representação discursiva dos temas
tratados ancora-se dos diferentes temas ou tópicos abordados. Essa Re-
presentação Textual-Discursiva (Rdt) está vinculada a uma argumenta-
ção onipresente, que nas palavras de Grize (1990), são operações de
textualização que as esquematizações (representações discursivas) pro-
duzem, como plenamente argumentativas.
Essa perspectiva teórica da Rtd com valor argumentativo nos insti-
gou a propor uma articulação entre a Rtd e as emoções, relacionando

57
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

elementos do discurso, do texto e da argumentação, que compõem tanto


a Rtd com valor argumentativo, como as emoções no discurso jurídico.
A partir da relação entre as emoções, a Rtd e o discurso jurídico no
viés da argumentação, dispomos a compreender e relacionar esses fenô-
menos materializados no Acórdão do pedido de soltura de José Dirceu na
Operação Lava Jato. Com isso, o objetivo geral deste estudo foi analisar
as Representações textuais-discursivas (Rtd) com valor argumentativo e
a sua articulação com os termos de emoções. Para isso, examinamos a re-
lação entre o módulo argumentativo e o módulo semântico, observando o
valor argumentativo deste último, quanto à noção central de Rtd. Ade-
mais, caracterizamos o gênero Acórdão como ação social e verificamos o
funcionamento textual do valor argumentativo da Rtd a partir dos termos
de emoção no Acórdão do pedido de habeas corpus (TRF da 4ª Região) de
José Dirceu na Operação Lava Jato.
Para tanto, realizamos uma pesquisa descritiva quanto aos objetivos,
por descrever as características de determinados fenômenos (GIL, 2010).
E documental quanto aos procedimentos, por utilizar materiais que ca-
recem de tratamento analítico ou os que podem ser revisitados para aten-
der aos objetos da pesquisa a partir de técnicas, etapas e procedimentos
apropriados, considerando serem fontes primárias (dado original),
(LAMY, 2011). Em vista disso, a abordagem foi qualitativa e de natureza
interpretativista através do método indutivo definido como “[...] uma fer-
ramenta que conduz o pesquisador(a) a observar a realidade para fazer
seus experimentos e tirar suas conclusões” (OLIVEIRA, 2013, p. 50-51).

1. As representações textuais-discursivas com valor


argumentativo
A Análise Textual dos Discursos constitui uma abordagem teórica e
descritiva de estudos linguísticos do texto, pautada, “[...] na perspectiva
de um posicionamento teórico e metodológico que [...] situa decididamente
a linguística textual no quadro mais amplo da análise do discurso”
(ADAM, 2011, p. 24).
A partir dessa correlação, Adam (2011, p. 63) propõe uma Análise Tex-
tual dos Discursos que visa a “[...] teorizar e descrever os encadeamentos
de enunciados elementares no âmbito da unidade de grande complexidade
que constitui um texto”. Nesses termos, recorrendo a elementos da análise
de discurso e da linguística de texto, Adam (2011) propõe à Análise Textual
dos Discursos o papel de descrever, definir e analisar diferentes unidades
ou operações textuais, inclusive aquelas de níveis mais complexos, que são
realizadas sobre os enunciados. Esses níveis de análise (níveis ou planos

58
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

de análise de discurso e análise textual — linguística textual) são apre-


sentados por Adam (2011) na figura 1, a seguir:

Figura 1 — Esquema 04

NÍVEIS OU PLANOS DA ANÁLISE DO DISCURSO

FORMAÇÃO INTERAÇÃO AÇÃO VISADA


SOCIODISCURSIVA (N3) SOCIAL (N2) OBJETIVOS (N1)

INTERDISCURSO
Língua(s)
Gêneros

TEXTO

Enunciação
Textura Estrutura Semântica Atos de Discurso
(Responsabili-
(proposições Composicional (Representação (ilocucionário) &
dade Enunciaiva)
enunciadas & (sequência e pla- Discursiva) Orientação argu-
& Coesão Polifô-
períodos) (N4) nos de textos) (N5) (N6) mentativa (N8)
nica (N7)
NÍVEIS OU PLANOS DE ANÁLISE TEXTUAL

Fonte: Adam (2011, p. 61)

Nessa perspectiva, Passeggi (2016, p. 2886) adapta os níveis de aná-


lise textual propostos por Adam (2011), redistribuindo seus conteúdos em
um conjunto de módulos que compreende principalmente, mas não ex-
clusivamente os citados, sucintamente caracterizados, a seguir:

– Módulo Sequencial-composicional (enunciados, períodos, sequências,


planos de texto);
– Módulo Enunciativo (responsabilidade enunciativa, pontos de vista);
– Módulo Semântico (representações discursivas, papéis semânticos,
anáforas, isotopias, colocações);
– Módulo Argumentativo (atos ilocucionários, orientação argumentativa).

Esses módulos se organizariam conforme ligações textuais em três


níveis, quais sejam: ligações microtextuais — conexidade; ligações meso-
textuais — coesão, “[...] sentimento de totalidade local e global, das partes
em si mesmas e das partes em relação ao todo textual” (ADAM, 2015, p.
45) e ligações macrotextuais — “[...] sentimento de adequação dos enun-
ciados em relação a uma situação sociodiscursiva e em relação a um gê-
nero de discurso” (Ibid., p. 46).

59
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Vale salientar que Passeggi (2016, p. 2887) assevera concebermos


“[...] os módulos como distintos, mas não encapsulados, posto que devem
interagir”. Isto porque, a articulação entre ambos os níveis, sempre deve
ser levada em conta no momento da análise, conforme sugerem as setas
presentes no Esquema 4 (Figura 1).
A partir desse contexto, as categorias que utilizamos para analisar
as Rtd do réu na Operação Lava Jato foram: a referenciação, que con-
siste na designação dos referentes do texto, com especial atenção para os
processos de redesignação e para as cadeias de referenciação assim cons-
tituídas. A segunda foi a predicação, que remete tanto à operação de se-
leção dos predicados, isto é, à designação dos processos, no sentido amplo
(ações, estado, mudanças de estado), como ao estabelecimento da relação
predicativa do enunciado, sendo responsável por atribuir sentidos a ele-
mentos constantes no enunciado (RODRIGUES et al. 2010, p. 17). Por
fim, a modificação, que é definida por Queiroz (2013, p. 67) como cate-
goria que apresenta as propriedades ou qualidades tanto dos referentes
como das predicações, desempenhando função atributiva e qualificadora,
contribuindo para a construção do objeto referenciado.
Em nossa pesquisa, focalizamos o nível semântico e o argumentativo
da análise textual. Considerando que a própria Rtd é argumentação a
partir dos postulados de Grize (1990, 1996), ao afirmar que a esquemati-
zação é, na verdade, uma organização do material verbal em uso numa
dada comunicação, visando a uma construção de sentidos que atinja um
produto — discursivo — esperado.
Para entender melhor a representação discursiva, Rodrigues, Pas-
seggi e Silva Neto (2010, p. 174) ressaltam que uma das noções que estão
na base — na ATD — da elaboração da representação discursiva é a es-
quematização de J-B. Grize (1990, 1996). Para esse autor, todo texto pro-
põe uma “esquematização”, realizada a partir de operações sobre os objetos
de discurso e o sujeito, considerando-se o interlocutor na interação.
Passeggi (2001, p. 249) afirma que “[...] toda esquematização contém
imagens que, na terminologia de Grize, são os elementos visíveis no texto
para um observador, ressalvadas as interpretações possíveis”. Com isso,
entendemos que A constrói (esquematiza), por meio de enunciados, uma
representação discursiva através de objetos de discurso que são postos
em jogo com base nos pré-construídos e no propósito comunicativo que
ele intenciona. Por sua vez, cabe ao interlocutor (B) — um sujeito ou um
auditório — reconstruir os sentidos provenientes dos objetos construídos
por A. Para isso, B terá de interpretar o conteúdo referencial com base
nos seus próprios pré-construídos culturais e sociais, bem como em seu
propósito comunicativo.

60
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Para Adam (apud Amossy, 2011, p. 113), uma representação discur-


siva é “[...] a expressão de um ponto de vista [PdV]”. Portanto, para in-
terpretá-la, devemos atentar para a representação que é construída pelo
conteúdo proposicional. Em vista disso, percebe-se que a Rtd é argumen-
tação e se manifesta no texto (ANT — argumentação no texto) como as-
severa Pinto (2010, p. 85) ao afirmar que:

Dessa forma, a argumentação, no sentido mais amplo preconizado


por Adam, tanto pode envolver os diversos tipos de sequência não
apenas a argumentativa, como também poderá estar relacionada
às imagens do enunciador construídas textualmente.

Nesse sentido, Passeggi (2012, p. 232) ressalta que as representações


discursivas “[...] são de natureza linguística, manifestadas nos/pelos tex-
tos”. Desse modo, a representação enquanto referência do enunciador, do
leitor ou dos assuntos tratados só pode ser percebida na/pela produção
co(n)textual de sentidos, o que implica uma (re)construção do sentido por
parte do interpretante. Sobre isso, Adam (2011, p. 114) afirma que:

É o interpretante que constrói a Rd a partir dos enunciados (esque-


matização), em função de suas próprias finalidades (objetivos, in-
tenções) e de suas representações psicossociais da situação, do
enunciador e do mundo do texto, assim como de seus pressupostos
culturais.

Assim, ao construir uma Rtd em um dado texto, recai sobre o


leitor/interpretante o papel de (re)construí-la com base em suas repre-
sentações (psíquicas, sociais, culturais etc.), a fim de obter os resultados
semânticos ali atribuídos e atendendo a um propósito argumentativo.
Não significa dizer que o interpretante deverá agir simetricamente ao lo-
cutor, mas ele é solicitado a desenvolver uma atividade semelhante de
(re)construção do sentido (ADAM, 2011).
Santos (2016) evidencia que apesar de não mencionarem o termo “re-
presentação discursiva”, entende que a ideia de auditório desenvolvida
por Perelman e Tyteca refere-se às imagens e ou representações discursi-
vas que o orador constrói de seu ouvinte/leitor, de acordo com suas inten-
ções e propósitos. Para Perelman e Tyteca (1999, p. 189), a argumentação
é um ato persuasivo, já que tenta investigar a força argumentativa dos
enunciados com o objetivo de conseguir a adesão do auditório. O ouvinte
é o conjunto daqueles sobre os quais o orador quer influir, pela sua argu-
mentação, é necessário considerar que esse conjunto é uma imagem ou re-
presentação que o orador cria, segundo seus objetivos e intenções.

61
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Nessa perspectiva, Damele (2014) afirma que o auditório imediato


de um juiz será constituído pelas partes envolvidas no processo. De um
modo geral, esse auditório será formado por todos os operadores jurídicos,
ou por aqueles a quem possa interessar o caso em questão: “[...] os juízes
das instâncias superiores, os advogados ou os juízes dos casos futuros
chamados a confrontar-se com os precedentes, e a jurisprudência, os ju-
ristas” (DAMELE, 2014, p. 225). Finalmente, esse auditório também po-
derá vir a ser constituído, em um nível máximo de generalização, por toda
a opinião pública, ou pelo menos, por todos aqueles interessados em ques-
tões jurídicas lato sensu: “[...] não só os juristas, mas também os políticos,
os jornalistas, mais ou menos especializados, e os possíveis comentadores.
[...] o auditório do juiz será, portanto, necessariamente, social e histori-
camente contextualizado” (DAMELE, 2014 p. 225).
Desse modo, o processo de construção das Rtd com valor argumenta-
tivo leva em conta as finalidades, as intenções, os objetivos e os pressu-
postos históricos e culturais do interpretante. Assim, ela é
semanticamente construída pelo falante, que realiza um trabalho inter-
pretativo e coerente que permite as interligações das unidades textuais.

2. Caracterização do gênero Acórdão como ação


social
Os textos por serem também produtos de normas e convenções deter-
minadas pelas práticas sociais, as formas de interação, reprodução e alte-
ração social dos gêneros constituem “ações sociais, no sentido de que se
gênero representa ação, deve envolver situações e motivação, porque ações
humanas, simbólicas ou de outro tipo, são interpretadas somente num con-
texto de situação e pela atribulação de motivação” (MILLER, 2012, p. 39).
Nesse sentido, os gêneros enfatizam a ação social, visto que ele pode
representar uma ação retórica triplicada, que requer ações próprias de
uma comunidade em que nós aprendemos a agir retoricamente através
do uso de tipos de discurso socialmente adequados aos vários contextos e
circunstâncias da vida.
Bazerman (2005) define gênero como fato social ao afirmar que iden-
tificar gênero historicamente conduz o conceito de gênero de um fato es-
sencial que reside nos textos a um fato social, real, na medida em que as
pessoas o tomam como real e em que essa realidade sociopsicológica influi
na sua compreensão e no seu comportamento, dentro da situação como
elas a percebem.
Em vista disso, defende a ideia de que os indivíduos avançam em seus
interesses, moldam suas significações no interior de complexos sistemas

62
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

sociais, atribuem valores e avaliam consequências de interações verbais


ao utilizarem diferentes gêneros. Tal fato ocorre com os gêneros jurídicos
em que a organização social e as relações de poder se relacionam em um
contexto sociorretórico a fim de compreender o funcionamento social e his-
tórico do direito em ações sociais.
Isso ocorre com o gênero forense “Acórdão”, definido por lei, apresenta,
em geral, um aspecto formulaico1 e é produzido a partir de fatos sociais, per-
tencente a uma comunidade discursiva jurídica. Conforme o art. 204, do
Código de Processo Civil Brasileiro, recebe a denominação de AC o julga-
mento colegiado (seção, câmara, plenário, turma etc) proferido pelos tribu-
nais. É resultado das manifestações individuais dos membros do colegiado,
que manifestam seu sentir por meio dos votos (DONIZETTI, 2017).
Esse gênero contempla a data de publicação e página do Diário Ofi-
cial, é o ato pelo qual se torna pública a decisão por meio de um órgão pú-
blico responsável pelas publicações do Poder Judiciário. Os Órgãos
julgadores são as Turmas dos tribunais; o Relator é o desembargador/mi-
nistro que apresenta competência de ordenar e dirige os processos que
lhe sejam distribuídos, até a redação do AC; o Revisor é um Desembarga-
dor/ministro que participa, também, do julgamento e, geralmente, inicia
a votação, seguindo-se o voto do Revisor e dos demais desembar-
gadores/ministros, pela ordem de antiguidade. O(s) recorrente(s) e recor-
rido(s) são as partes que litigam.
Podem ser reclamante/exequente (autor) ou o reclamado/executado
(réu). A Ementa é o resumo que se faz dos princípios expostos no AC. O
relatório contém os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do
réu, registra-se as principais ocorrências havidas no andamento do pro-
cesso. Serve de base para o julgamento.
No que tange ao voto, a fundamentação é a posição individual do De-
sembargador manifestada no julgamento do processo. É nessa ocasião
que serão analisadas as questões de fato e de direito formuladas pelas
partes. Analisa-se o Juízo de Conhecimento — a análise dos pressupostos
objetivos e subjetivos de uma ação. É nessa ocasião que se observa a ade-
quação do recurso, ou seja, se é cabível ou não. Já os pressupostos subje-
tivos dizem respeito à legitimidade e ao interesse recursal. E o Juízo de
Mérito, consiste na perquirição acerca da presença do defeito da decisão
suscitada pelo recorrente na peça recursal. É a ocasião em que analisa a
razão do inconformismo.

1
O termo formulaico é utilizado por Marcuschi (2008, p. 37) para se referir a gêneros que
possuem uma estrutura retórica preestabelecida, onde quase não há espaço para o estilo
do autor, como os gêneros jurídicos, por exemplo.

63
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Por fim, a Conclusão, que é a parte final do AC em que será declarada


a vontade concreta do julgador. É nesse momento que o relator-produtor
resolve as questões que as partes lhe submeteram. A Data é a certificação
do dia do julgamento que vem seguida da assinatura do seu relator. É a
partir da data da publicação do AC que inicia um novo prazo para inter-
posição de outro recurso, se for o caso.
Vale salientar que cada voto do desembargador segue a ordem legal
disposta no art. 489 do Código de Processo Civil que enumera os elementos
essenciais da sentença: o relatório, os fundamentos e o dispositivo.
Desse modo, o gênero Acórdão como ação social não é concebido como
modelo estanque ou como estruturas rígidas, devido ser forma retórica
dinâmica que se modifica constantemente de acordo com as necessidades
sociocognitivas dos usuários da língua.

3. O valor argumentativo das representações textuais-


-discursivas do réu e os termos de emoção no
Acórdão do pedido de soltura de José Dirceu na
Operação Lava Jato
Plantin (2010) assegura que é possível argumentar emoções, isto é,
fundar no interlocutor um “dever-sentir”, a partir de enunciados que são
orientados em direção a uma determinada emoção. A análise de como se
dá essa argumentação parece extremamente relevante. O autor também
afirma que as figuras retóricas devem ser tratadas não como ornamento,
mas “[...] como instrumentos destinados a suscitar a emoção no interlo-
cutor, os princípios geradores da emoção” (PLANTIN, 2010, p. 65).
No entanto, o direito se distanciaria do dever-sentir por estar ba-
seado no campo de uma racionalidade strictu sensu, não lhe sendo admi-
tida a intromissão de qualquer elemento exógeno. Nussbaum (1996)
assevera que uma possível reação em face da tentativa de introduzir ele-
mentos emotivos no âmbito jurídico seria alegar a sua completa irracio-
nalidade e, por isso, a impossibilidade de levá-los em consideração: “existe
um famoso lugar-comum no sentido de que o direito é baseado na razão
e não na paixão” (NUSSBAUM, 1996, p. 25). É possível chamar a tradição
legal que compreende as emoções como estranhas ao direito de proposta
“não emotiva”. Porém, um tal posicionamento simplesmente desqualifica
o debate teórico e prático acerca do direito: “[...] em primeiro lugar, o di-
reito sem apelo à emoção é virtualmente impensável” (Ibid., p. 25).
Para amostragem, selecionamos o Acórdão referente ao (habeas cor-
pus — processo nº 5034542-82.2015.4.04.0000/PR), da Egrégia 8ª Turma
do Tribunal Regional Federal da 4 ª Região, publicado em 14 de outubro

64
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

de 20152 . Trata-se de julgamento de pedido de habeas corpus da prisão


preventiva de José Dirceu, ex-ministro chefe da casa civil na gestão do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja pretensão era o pedido de li-
berdade provisória do paciente (réu). A ação foi julgada improcedente, ou
seja, em desfavor do réu, por ser reincidente e está respondendo a outros
processos no Supremo Tribunal Federal por corrupção ativa e passiva
(Mensalão, Dossiê, bingos e Operação Lava Jato).
Para a análise linguística das emoções no Acórdão recorremos a Plan-
tin (2011), que propõe uma categoria de termos, os termos de emoção,
que formam o núcleo dos enunciados de emoção, cuja forma semântica é
a seguinte: [Lugar psicológico (= Experimentador) + Termo de emo-
ção + Fonte da emoção]. Rodrigues e Passeggi (2016) ressaltam que os
termos de emoção são uma das realizações linguísticas para a designação
de uma determinada emoção, que poderia ser expressa por outros termos.
É relevante descrever a emoção, em moldes linguísticos (termo de
emoção), fundamentada na argumentação. Conforme prescreve Plantin
(2010), esses termos de emoção são designados de forma direta ou indi-
reta. No corpus selecionado, elegemos a designação direta dos termos de
emoção a partir de substantivos de emoção. Vejamos agora como os ter-
mos de emoção contribuem para a Rtd do réu no Acórdão analisado:
Quadro 1 — Termos de emoção
O nível de corrupção que está sendo descoberto na Petrobras, envolvendo
políticos, empresários e servidores públicos, é estarrecedor.

'O que é Isso? Em que país vivemos? Os bandidos perderam a noção das coi-
sas! Como podem se apropriar desse montante?', questionou incrédulo o desem-
bargador convocado Walter de Almeida Guilherme.

O Desembarcador Newton Trisotto, relator de inúmeros habeas corpus rela-


cionados à investigação, chegou a afirmar que 'poucos momentos na história
brasileira exigiram tanta coragem do juiz como esse que vivemos nos últimos
anos. Coragem para punir ospolíticos e os economicamente fortes, coragem para
absotvê-Ios quando não houver nos autos elementos para sustentar um decreto
condenatório'.

Havendo fundada razão diante das circunstâncias concretas, mostra-se ine-


vitável a adoção de medidas amargas que cessem a cadeia delitiva e sirvam de
referência aos que tratam com desprezo às instituições públicas, sempre acredi-
tando na impunidade.

ministro Jorge Mussi, também manifestou sua indignação reproduzindo


frase do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, 'levando-se
em consideração o volume de recursos envolvidos na operação Lava Jato, o
mensalão deveria ter sido julgado no juizado de pequenas causas'.
Fonte: Dados da pesquisa
2
Disponível em:https://www.conjur.com.br/dl/trf-mantem-prisao-dirceu-dominio-fato.pdf

65
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Os elementos lexicais assinalados no Acórdão, gênero jurídico recur-


sal, apresentam termos de emoção que embasam a representação textual
do réu como mentor de uma organização criminosa ao demonstrar a pe-
riculosidade dele. Isso se dá através dos lexemas de emoção “estarrece-
dor”, “incrédulo”, “coragem”, “amargas”, “desprezo” e “indignação”.
Rodrigues et al. (2017) afirmam que um lexema pode variar em função
de uma gama de possibilidades de uso, conforme os valores a que esteja
associado, nas várias situações enunciativas em que possa vir a ser em-
pregado pelo falante.
Percebe-se que os termos de emoção apresentados no Acórdão au-
mentam sentimentos de percepção de risco de conceder o habeas corpus
ao réu (José Dirceu) e gera demanda por novos mecanismos de segurança,
promovendo significativas alterações jurídicas. Isto porque, o medo torna
os indivíduos mais propensos a apoiar medidas de segurança em detri-
mento de outras liberdades importantes.
Plantin (2011) enfatiza que estados emocionais internos, manifesta-
dos físico ou psiquicamente, só interessam aqueles que são formatados
pela linguagem: “as emoções são o que significamos que elas são” (Ibid.,
p. 187). Ainda, há outro aspecto que o autor destaca:

Abordar as emoções sob o ângulo da argumentação é extremamente


produtivo. A realidade discursiva das emoções aparece de forma
particularmente evidente quando a emoção está não somente no
debate — ela sempre está — mas em debate. A argumentação tem
necessidade das emoções e as emoções têm necessidade da argu-
mentação, pois é pela argumentação que elas são produzidas em
geral, e sustentadas em certos casos. (PLANTIN, 2011, p. 187).

É nesse sentido que o autor explicita a construção argumentativa das


emoções. O enfoque de Plantin (2010, 2011) é particularmente importante
no caso do discurso jurídico, pois permite delinear a relação entre emoções
e argumentação. Com efeito, os termos de emoção acima descritos de-
monstram que a relação entre o direito e as emoções é muito mais pro-
funda do que se pode, a princípio, imaginar.
Os termos de emoção descritos, no acórdão em análise, evidenciam a
onipresença da argumentação no quadro explicativo abaixo da esquemati-
zação de Grize (1990), a partir da imagem do alocutário (réu — José Dirceu
— mentor de uma organização criminosa) sem estruturas argumentativas.
Vejamos o quadro 2 a seguir:

66
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Quadro 2 — Esquematização
GRIZE ADAM DEFINIÇÃO
Tambem chamada de ethos, refere-se
à imagem que o locutor constrói de si
mesmo pelas palavras que evoca em
seu texto/discurso. Com base em
Adam (2011b, p. 107), podemos en-
Representação tender que a Rd de si está associada
Imagem do
discursiva a "função (lugar) e o(s) papel(éis) que
locutor: im(A)
de si [orador] assume, com seus fins pró-
prios, seus pré-construídos culturais
e representações da situação de
enunciação, do objeto do discurso, de
seu auditório (B) e as representações
psicossociais de si mesmo".

Associada a Rd que o locutor faz do


alocutário (B),essa representação é
percebida pela dialogicidadeda inte-
ração comunicativa. Nesse sentido,
Amossy(2011, p. 124) afirma que "o
bom andamento datroca exige que à
Imagem do Representação
imagem do auditório corresponda
alocutário: discursiva do
uma imagem do orador". Assim, por
im(B) alocutário
ser o alocutário um coconstrutor da
representação presente no texto/dis-
curso, a constante troca de experiên-
cias singulares se presentifica nos
enunciados, revelando a imagem do
alocutário (GRlZE 1996: PASSEGGI
2001).

Constituem o que Passeggi (2001, p.


249-250) chama de "conteúdos do ma-
nifesto da esquematízação e remetem
diretamente às operações lógico-dis-
cursivas de sua construção". As ope-
Imagem do Representação rações a que o autor se refere, con-
tema discursiva do cernem à escolha e o arranjo das
tratado: im(T) tema tratado palavras que os interlocutores fazem,
permitindo a construção e a recons-
trução das representações discursi-
vas dos conteúdos referencias eviden-
ciados no e pelo texto (ADAM., 2011;
QUEIROZ, 2013).

Fonte: (AQUINO, 2015, p. 63)

67
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Nessa perspectiva, a esquematização é uma específica forma de or-


ganizar a realidade, fazê-la compreensível e, assim, transmitir, linguis-
ticamente, as emoções. Com isso, esse trabalho caracteriza a Rtd do réu
com valor argumentativo a partir dos termos de emoção, com base nas
categorias semânticas de referenciação, predicação e modificação.
As categorias sintático-semânticas da construção das Rtd consti-
tuem-se de elementos linguísticos que aparecem materializados no texto
através de substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, pronomes, articu-
lando-se entre si e formando um todo significativo, conforme ilustradas
no quadro 3 a seguir:

Quadro 2 — Exemplificação da Representação Textual-Discursiva

CATEGORIAS REPRESENTAÇÃO TEXTUAL-DISCURSIVA

Referenciação • Indicado Investigado Paciente Réu

• demonstra não só sua indiferença perante o direito,


mas também a sua intenção de continuar praticando
crimes, revelando maior à prdem pública e anecessidade
de cessar a atividade criminosa.
• encontra-se justificada na periculosidade social
• resultaram vultosos prejuízos à sociedade de economia
Predicação mista e, na mesma proporção, em seu enriquecimento
ilícito e de terceiros
• justifica-se a decretação da prisão preventiva, para a ga-
rantia da ordem pública e do risco de reiteração criminosa.
• interferir na colheita de provas,
• encontrava-se cumprindo pena imposta na Ação
Penal/STF nº 470

• com posição de preponderância no grupo


• como controlador e beneficiário
Modificação • Representante das empresas envolvidas em organização
criminosa
• Menor de organização criminosa

Fonte: Dados da pesquisa

A primeira categoria, a referenciação do réu, é tematizada através


da periculosidade dele por ser mentor de uma organização criminosa.
Além da reincidência em práticas criminosas e de se encontrar como réu
em outros processos na instância máxima da corte brasileira, o STF, em
escândalos de corrupção e contra a administração pública. Essas desig-
nações reforçam a necessidade da prisão preventiva em virtude do réu
ter praticado atos ilícitos em um curto espaço de tempo.

68
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Nesse sentido, constata-se que as expressões referenciais contribuem


mais estreitamente para a construção da representação textual-discur-
siva do réu no texto forense. Considerando que a escolha do material lin-
guístico empregado durante a produção textual reflete, antes de tudo,
àquilo que o locutor quer passar ao seu interlocutor, ou seja, suas inten-
ções, seus objetivos. Os operadores do direito tem a preocupação de, atra-
vés dos fatos apresentados, da legislação e da jurisprudência, apresentar
ao seu leitor, argumentos consistentes e fundamentados de modo a não
restarem dúvidas sobre a decisão tomada no documento.
Vale ressaltar que o discurso jurídico apresenta uma variedade de
termos técnicos utilizados em contextos comunicativos específicos. Por
isso, Santos, Pinto e Cabral (2016, p. 169) afirmam que é importante ve-
rificar como os processos referenciais exigem o acionamento de conheci-
mentos prévios, compartilhados pelo entorno sociocognitivo e cultural,
para reconstruir os objetos do discurso e, assim, construir sentidos. Os
gêneros jurídicos visam à adesão de terminada tese por destinatários/in-
terlocutores da prática jurídica, as estratégias referenciais utilizadas que
podem vir a ter.
Dessa forma, observamos uma diversidade de expressões próprias do
léxico jurídico para designar o objeto de discurso em análise, como: “indi-
ciado”, “investigado”, “paciente” e “réu”. Há um critério de organização
no texto forense para a utilização de cada termo, que não pode ser com-
parado ou confundido, ou seja, os termos “indiciado” ou “réu” não se con-
fundem, pois, apesar de fazerem referência ao mesmo sujeito, são
utilizados em situações distintas.
Quanto à predicação, os verbos conjugados no presente (“justifica”,
“demonstra” e “encontra”) e a locução verbal (“encontrava-se cumprindo”)
marcam as primeiras ações do réu. Já o uso da locução verbal indica um
processo não acabado, que expressa um continuum ou uma constância
das ações. A escolha dos predicados focalizou o estado de ação do reú em
praticar atos ilícitos mesmo estando preso, uma vez que foi condenado na
Ação Penal 470 (pena de 7 anos e 11 meses de prisão).
Observamos que em todas as ocorrências citadas a Rtd do réu se
construiu elencando aspectos de periculosidade acentuada por ser mentor
de uma organização criminosa. Identificamos em todas as ocorrências que
as designações utilizadas pelo desembargador-relator contribuiram para
a construção das Rtd do réu no texto jurídico, realçando aspectos negati-
vos desse objeto no discurso.
Como podemos observar no Quadro 4, a Rtd do referente foi cons-
truída a partir de seus modificadores que desempenharam nos enuncia-
dos função atributiva (“preponderância no grupo”, “controlador e

69
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

beneficiário criminoso”, “representante das empresas envolvidas em


organizações criminosas” e “mentor de organização criminosa”). Esses mo-
dificadores contribuem para a construção de sentido do referente e permitem
ao leitor visualizar a imagem do objeto que o enunciador quer evidenciar.
Com isso, o objeto de discurso recebe como seus modificadores adje-
tivos modalizadores asseverativos, ou seja, cada expressão utilizada no
enunciado veicula e atribui um valor de verdade às propriedades do ob-
jeto. Essas expressões qualificadoras que têm como objetivo agregar valor
ao referente e reforçar o posicionamento do enunciador. Essa estratégia,
além de incorporar ao objeto traços valorativos, intenciona induzir o leitor
sobre a veracidade imputada no enunciado.
Destarte, a sucinta análise do Acórdão nos evidencia que é através
das escolhas linguísticas empregadas no texto que o enunciador revela
seus verdadeiros objetivos e posicionamentos. No entanto, essas escolhas
não são aleatórias, mas estratégias importantes para o valor argumen-
tativo da Rtd do réu e a influência dos termos de emoção neste processo
de construção do sentido no contexto forense.

Considerações finais
Considerando o objetivo geral do nosso estudo de analisar as repre-
sentações textuais-discursivas com valor argumentativo e a sua articulação
com os termos de emoções, percebemos que além do material linguistica-
mente utilizado na construção do texto desse gênero como ação social, o
valor argumentativo das Rtd se faz presente em virtude do propósito dessa
ação de linguagem no contexto jurídico ser pautada em fatos sociais.
Para a investigação do processo de construção da Rtd do réu no Acór-
dão, utilizamos as categorias semânticas das Rtd. Essas categorias mate-
rializam-se no texto através dos substantivos, adjetivos, verbos, advérbios,
que corresponderam aos elementos linguístico-discursivos. Entendemos
que os objetos do discurso são construídos a partir de um posicionamento
do enunciador frente às razões que o motivaram. Nesse sentido, constata-
mos que é a partir da construção desses objetos que o enunciador funda-
menta sua tese de modo a persuadir e convencer seu auditório/leitor.
Tal constatação “abre caminho” para que diversas formas e procedi-
mentos sejam reconhecidos como argumentativos, uma vez que os objetos
são construídos a partir de um posicionamento do enunciador frente às
razões que o motivaram, utilizando as imagens como a própria argumen-
tação. Assim elas não desempenham apenas funções discursivas que au-
xiliam na interpretação.

70
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO

Ademais, ao contrário do que poderia aparentar à primeira vista, os


termos de emoções participam em vários níveis da constituição do direito
e de sua prática, de modo que uma abordagem que também privilegie o
seu estudo permitirá uma melhor compreensão da dinâmica do fenômeno
jurídico, possibilitando, proveitosamente, novas formas de crítica teórica
à maneira pela qual o direito é estruturado.
Diante do exposto e da importância social do discurso jurídico e, em
especial, do Acórdão e da Operação Lava Jato na vida dos cidadãos bra-
sileiros, percebemos a relevância em desenvolver pesquisas interdiscipli-
nares entre direito e letras. Nesse contexto, conforme Lourenço (2017, p.
55), diz respeito a contribuição que os trabalhos desenvolvidos por lin-
guistas podem dar ao aprimoramento da compreensão do texto jurídico,
ao ensino de língua portuguesa durante a graduação aos futuros opera-
dores do direito, auxiliando-os na produção de seus próprios textos, no
que diz respeito a atribuir maior eficácia do poder de persuasão.

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72
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
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73
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA
ARGUMENTATIVA NO DISCURSO
JURÍDICO INTERNACIONAL

Hális Alves do Nascimento França — UFRN

Introdução
Este capítulo apresenta uma proposta de análise linguística da Con-
venção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992), a
partir da Análise Textual dos Discursos (ATD), tendo a orientação argu-
mentativa como plano de análise e a semântica argumentativa como prin-
cipal ponto de partida teórico. Essa proposta, embora ainda muito simples
em sua estruturação, faz parte de investigações maiores focadas na aná-
lise textual e discursiva da força ilocucionária-argumentativa de textos
normativos, articulando aportes teóricos da pragmática linguística, como
o texto, a enunciação e o discurso, as teorias dos atos de fala e de discurso,
e a teoria da argumentação.
Enquanto proposta, este capítulo apresenta em caráter eminente-
mente exploratório uma abordagem de análise da argumentação em tex-
tos normativos que ainda está em desenvolvimento. Por isso, o recorte
aqui feito é reduzido, limitando-se a um fragmento do texto normativo
selecionado para análise. Apesar disso, esse recorte é de trecho funda-
mental para o propósito de nossa investigação, uma vez que trata de pro-
posições-enunciados que exigem comprometimento do enunciatário.
Nesse movimento argumentativo, o texto normativo deixa transparecer
seu caráter deôntico e imperativo, atributo essencial para a caracteriza-
ção do texto normativo enquanto gênero textual e discursivo de relevân-
cia. Esses e outros aspectos, que logo mais buscaremos observar,
evidenciam pistas para a reconstrução argumentativa que neste trabalho
se traduz em uma abordagem semântico-argumentativa dos vestígios sin-
táticos e léxico-gramaticais.
É dentro desse panorama introdutório que esperamos poder contri-
buir com uma nova compreensão a respeito do uso da argumentação em
textos normativos, a fim de identificar como os argumentos se organizam
e se estruturam por meio de determinados enunciados, para obter uma
orientação argumentativa que comande maior ou menor comprometi-
mento do enunciatário em relação ao conteúdo proposicional de uma de-
terminada proposição-enunciado. Acreditamos que esse objetivo poderá

75
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

ser alcançado se consolidarmos uma proposta que, através da ATD e da


semântica argumentativa, evidencie marcas que indiquem sua força ar-
gumentativa e esclareça como os argumentos podem ser mais ou menos
fortes do ponto de vista do comprometimento do enunciatário a um nível
eminentemente enunciativo.
A investigação proposta se realiza através de metodologia de pes-
quisa descritiva e interpretativa, baseando-se primariamente na aplica-
ção de técnicas documentais, isto é, na apreensão, categorização e arranjo
sistemático dos objetos selecionados, para que possibilite o tratamento
teórico-metodológico da categoria de análise. O dado sob investigação é
texto original em língua inglesa da Convenção-Quadro das Nações Uni-
das para Mudança do Clima, tal como disponibilizado pela Organização
das Nações Unidas (ONU) em seus sites oficiais. Sendo de natureza qua-
litativa, ao menos nesse estágio de pesquisa, concentra-se por ora na aná-
lise e interpretação do objeto de estudo em evidência, em um segundo
momento importando-se com a organização dos dados tendo como centro
a força argumentativa enquanto categoria de análise.
Este capítulo encontra-se dividido em duas partes principais: a seção
1, que faz comentários gerais a respeito das teorias que embasam a pro-
posta de análise, e a seção 2, que apresenta um exercício analítico demons-
trativo dessa proposta, destacando seus procedimentos metodológicos e
sugerindo uma breve discussão a respeito da constituição de força argu-
mentativa enquanto categoria de análise relevante e das plataformas teó-
rico-metodológicas adotadas no curso dessa investigação.

1. Da força argumentativa: perspectivas teóricas


O processo de descrição linguística recorre a uma qualidade das ciên-
cias linguísticas que se refere à sua função descritiva, isto é, sua preocu-
pação com a descrição da língua enquanto sistema e fenômeno natural.
Dentro de uma diversidade de paradigmas linguísticos, esta proposta de
análise se filia a uma perspectiva eminentemente pragmática. Ela se
situa principalmente no nível do texto, do discurso e da enunciação, e de
teorias linguísticas da argumentação. Contudo, em face das especificida-
des do objeto de análise, esta proposta recorre também a algumas discus-
sões provenientes de estudos em direito internacional para melhor
informar nossas proposições.
Tendo em mente uma articulação macro das teorias mencionadas,
compreende-se o texto enquanto unidade de discurso para além do cará-
ter transfrástico, devendo ser considerado objeto de estudo das linguísti-
cas do texto, enunciação e análise do discurso. Atualmente, são diversas

76
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

as intersecções teóricas, estando entre elas a proposição de Adam (2011,


2015), da Análise Textual dos Discursos, que faz convergir metodologias
de todas essas três áreas. Trata-se, pois, do ponto de partida de descrição
e análise adotado nesta investigação.

1.1. Da Análise Textual dos Discursos


A proposta de análise textual de Adam (2011, 2015) estabelece um
meio de descrição linguística textual-discursiva que categoriza essa aná-
lise em níveis ou planos. Temos, em ordem de esquematização, a ação de
linguagem (N1), a formação sócio-discursiva (N2) e o interdiscurso (so-
cioletos e intertextos, N3), seguidos dos gêneros: textura (proposições
enunciadas e períodos, N4), estrutura composicional (sequências e planos
de textos, N5), semântica (representação discursiva, N6), enunciação (res-
ponsabilidade enunciativa e coesão polifônica, N7), e, por fim, atos de dis-
cursos (ilocucionários) e orientação argumentativa (N8). Enquanto as
categorias de N1 a N3 remetem a planos mais abrangentes, os gêneros
se revelam por meios de manifestações estáveis, constituídas em cinco
outros níveis que se incluem no interdiscurso.
Mais detalhadamente, podemos observar que os níveis N4 e N5 são
aqueles mais estabelecidos pela linguística textual tradicional, posto que
tratam de proposições e períodos do texto, onde se analisam as unidades
proposicionais e sua localização interna, cuidando, inclusive, de sua es-
trutura enquanto no estudo sequencial das proposições. É nesses níveis,
por exemplo, que se avaliam os tipos de sequências, como as argumenta-
tivas e dialogais.
Em outro momento, a ferramenta analítica idealizada por Adam
(2011, 2015) se debruça sobre níveis que são mais comumente objeto da
análise da semântica, do discurso, da linguística enunciativa e da prag-
mática, quando continua explicando os demais níveis, de N6 a N8. A re-
presentação discursiva (N6), como mencionado, atua em um nível
semântico, remetendo-se à construção de uma imagem de discurso, de
ideias e de sentidos que são estabelecidos no texto enquanto unidade de-
rivada da interação social; a responsabilidade enunciativa e a coesão po-
lifônica (N7), por outro lado, estão no nível da enunciação com os conceitos
de ponto de vista, de mediatização discursiva e de evidenciação do sujeito.
Por fim, Adam (2011) estabelece o nível dos atos do discurso e orientação
argumentativa (N8), dentro do qual se delimita este estudo.
Nesse nível de análise discursiva, tem-se a esfera da argumentação
enquanto objeto de descrição, o que leva à consideração não apenas de
modalidades argumentativas, dentro do presente contexto analítico, mas

77
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

também das estruturas que constituem a forma do argumento e seu uso


estabelecido dentro do escopo do texto. Enquanto que Adam (2011, 2015)
nos oferece uma diretriz adequada dentro de seu modelo metodológico,
consideramo-la, no entanto, porta de acesso para teorias que desenvolvem
com mais profundidade certos aspectos específicos, e, entre elas, a teoria
da argumentação.

1.2. Da teoria da argumentação


As abordagens da teoria da argumentação remetem a estudos orien-
tados para a natureza, estrutura e uso dos argumentos, retomando assim
ferramentas da lógica, da retórica e da dialética (Cf. BLAIR, 2012; PE-
RELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005; TOULMIN, 2006; EEMEREN;
GROOTENDORST, 2009; EEMEREN et al., 1996, 2014;WALTON, 2008,
2013; WALTON; REEDS; MACAGNO, 2008; WOODS; IRVINE; WAL-
TON, 2003) e da linguística (Cf. AMOSSY, 2012; ANSCOMBRE; DU-
CROT, 1989, 1997; BERMEJO-LUQUE, 2011; DUCROT, 1972, 1980,
1987, 1995, 2009; KOCH, 2005, 2011) para o tratamento da argumenta-
ção. No curso das crescentes investigações desse acervo teórico, já bas-
tante consagrado, nossas pesquisas têm se encaminhado para a
determinação de dois níveis analíticos principais de orientação argumen-
tativa, níveis esses que se propõem dentro da Análise Textual dos Dis-
cursos e que se realizam enquanto extensão teórico-metodológica do
modelo de Adam.
Primeiro, temos um nível macro, de viés sobretudo discursivo, em
que buscamos observar as peculiaridades do discurso argumentativo sob
a perspectiva dos estudos impulsionados pela Nova Retórica de Perelman
e Olbrechts-Tyteca, e Toulmin, e seguidos por van Eemeren, Walton,
Woods, Jacobs e outros teóricos (EEMEREN et al., 1996). Nesse nível,
consideramos a argumentação inserida em um contexto específico de re-
tórica e dialética, e não em um ambiente puramente racional no sentido
das investigações da lógica formal, ainda que muitas vezes esteja por ela
informada.
Em segundo lugar, temos também um nível micro, de viés sobretudo
semântico, em que buscamos observar as peculiaridades da Teoria da Ar-
gumentação na Língua (TAL) e da teoria dos topoi, tendo como ponto de
partida essencial, como não poderia deixar de ser, os estudos desenvolvi-
dos por Anscombre e Ducrot (1989, 1997) no campo da semântica argu-
mentativa, além do próprio Ducrot, em obras de autoria singular
(DUCROT, 1972, 1980, 1987, 1995, 2009). Nesse nível, consideramos a
argumentação inserida em um contexto linguístico de tal maneira que

78
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

suas manifestações estruturais evidenciam marcas de um valor argumen-


tativo fundamentalmente integrado à própria língua. Adotamos aqui a
posição de argumentatividade radical expressa por Anscombre e Ducrot
para nossa proposta de análise, em que esse valor argumentativo não se
expressa apenas em determinados operadores argumentativos, mas por
toda manifestação linguística: falar é acima de tudo exercer uma influên-
cia em outrem. Dessa forma, pensamos que a língua se organiza estrutu-
ralmente de acordo com a intenção comunicativa do falante, de modo que
as escolhas linguísticas que o falante realiza evidenciam seu posiciona-
mento em relação a uma determinada conclusão. As pistas desse posicio-
namento na língua, portanto, constituem um aspecto importante do que
chamamos de valores argumentativos. Ainda que não sejam argumentos
completamente construídos, os valores argumentativos preenchem a lín-
gua e a denotam de argumentatividade plena.
Fica claro, então, que nossa escolha pelo amparo teórico de Ducrot e
Anscombre não ocorre por acaso: a semântica argumentativa proporciona
um olhar sobre a argumentação na língua que permite classificar e hie-
rarquizar os valores argumentativos dos enunciados de modo a categori-
zar escolhas lexicais tendo em vista um propósito, uma intenção
comunicativa. Essa prerrogativa nos permite estruturar com melhor en-
vergadura a categoria de análise que por ora sugerimos como item rele-
vante de descrição dentro das teorias e métodos das ciências da
linguagem, como veremos na próxima seção.
Apesar da articulação entre esses dois níveis, o macro e o micro, ser
especialmente proveitosa para investigação, tal como de fato vem sendo
construída no âmbito de nossas pesquisas, por ora, e para os fins deste
capítulo, optamos por limitar nossa proposta de análise de orientação ar-
gumentativa ao nível semântico, a fim de explorar com um pouco mais
de atenção o uso das lentes da argumentação na língua voltado para o
discurso jurídico internacional, um tratamento linguístico ainda muito
pouco explorado na literatura, pelo que temos observado. Em especial,
dedicamos este breve comentário também a esboçar fundamentos para
uma categoria de análise que muito nos ocupa e nos interessa: a força ar-
gumentativa. Essas colocações teóricas servirão de embasamento para
nossa proposta de análise logo mais.

1.2.1. Do conceito de força argumentativa


O que é, afinal, força argumentativa? Como se manifesta, e qual a
diferença (se há alguma) entre força argumentativa, força retórica e força
persuasiva? São questões relevantes a que podemos aderir agora, mas

79
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

que a princípio não poderemos responder satisfatoriamente. A nosso ver,


pouca atenção tem sido dada à força argumentativa/retórica/persuasiva
enquanto categoria de análise linguística, embora abaixo observemos al-
gumas colocações de grande relevância para nossa investigação. De ma-
neira geral, compreendemos que é uma categoria difícil, que deve levar
em consideração, por exemplo, aspectos extremamente categóricos que
não parecem aplicáveis a circunstâncias fortemente ligadas à contextua-
lidade. Portanto, cabe a pergunta: é sequer possível determinar esse tipo
de categoria?
Logo na abertura do Argumentation dans la langue, Ascombre Du-
crot e evocam:

[...] o sentido de um enunciado comporta como parte integrante,


constitutiva, essa forma de influência que chamamos de força ar-
gumentativa. Significar, para um enunciado, é orientar. É assim
que a língua, na medida em que contribui em primeiro lugar na de-
terminação do sentido dos enunciados, é um dos espaços privilegia-
dos onde se elabora a argumentação.1 (ANSCOMBRE; DUCROT,
1997, p. 5, Tradução nossa).

Essa consideração inicial a respeito da força argumentativa serve de


fundação para as reflexões subsequentes dos autores na obra, sendo um
conceito evidentemente relevante para a TAL e ligada à noção de argu-
mentatividade. De outro modo, vemos também menção à força argumen-
tativa em Perelman e Olbrechts-Tyteca, quando expressam:

Para guiar-se em seu empenho argumentativo, o orador utiliza


uma noção confusa, mas ao que parece indispensável: a de força
argumentativa. Esta é certamente vinculada, de um lado, à inten-
sidade de adesão do ouvinte às premissas, inclusive às ligações uti-
lizadas, de outro, à relevância dos argumentos no debate em curso.
Mas a intensidade de adesão e, também, a relevância, estão à mercê
de uma argumentação que viria combatê-las. Por isso a força de
um argumento se manifesta tanto pela dificuldade que haveria
para refutá-lo como por suas qualidades próprias. (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 524).

Mais à frente, Perelman e Obrechts-Tyteca ainda expressam que “a


força dos argumentos variará, pois, conforme os auditórios e conforme o
1
“[…] lesens d’unénoncé comporte, comme partie intégrante, constitutive, cette forme d’in-
fluence que l’on appelle la force argumentative. Signifier, pour un énoncé, c’estorienter.
De sorte que la langue, dans la mesure où elle contribueen première place à déterminer
les ensdesénoncés, est undes lieux privilégiés oùs’élaborel’argumentation.”

80
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

objetivo da argumentação” (PERELMAN, OLBRECHTS-TYTECA, 2005,


p. 524). Embora os autores coloquem grande importância no auditório e
na finalidade do argumento, é relativamente a esse vínculo estabelecido
entre o argumento e o outro no contexto de sua eficácia que se trata a
força argumentativa no teor desta análise, e a partir da qual se constrói
seus fundamentos metodológicos.2
Vemos, então, que a força argumentativa tem algum espaço na lite-
ratura. Todavia, ainda resta assegurar qual a diferença entre força argu-
mentativa, retórica e persuasiva, ou se tratam do mesmo tipo de
categoria. A princípio, compreendemos que sua diferenciação seria inócua,
pois, independente da nomenclatura, parece ser sempre vinculada à força
de um argumento ou valor argumentativo. Isso parece se referir igual-
mente tanto à robustez de seu raciocínio quanto ao seu potencial de con-
vencimento, tendo em vista um auditório em particular. Assim,
parece-nos razoável, pelo menos por enquanto, estabelecer como concep-
ção de força argumentativa a força ou capacidade de um determinado ar-
gumento ou valor argumentativo de convencer ou persuadir o ouvinte
dentro de um contexto específico de comunicação verbal.
Seguindo adiante, cabe aqui também questionar: como classificar ar-
gumentos ou valores argumentativos de mais fortes ou mais fracos? É
possível falar de níveis de intensidade de força argumentativa? Enten-
demos que, do ponto de vista da TAL e da teoria dos topoi, sim. A TAL já
se encarrega de lidar com algumas questões referentes à escalaridade se-
mântica e argumentativa, tanto na obra L’argumentation dans la langue
(ANSCOMBRE; DUCROT, 1997) quanto em Les échelles argumentatives
(DUCROT, 1980). Já na teoria dos topoi, temos que o topos apresenta três
propriedades que para nós serão bastante relevantes: em primeiro plano,
temos que o topos é geral, isto é, aplicável em situações comunicativas di-
versas; em segundo, que o topos é representado como uma crença com-
partilhada, propriedade que dá o argumento sua força restritiva; e em
terceiro plano, temos que o topos tem uma natureza escalar (DUCROT,
2009, p. 64-77). Esses elementos, além de dialogarem de perto com a TAL,
ainda oferecem um aporte teórico bastante compatível com a nossa pro-
posta de análise da força argumentativa, uma vez que podem ajudar a
responder adequadamente às questões que ao longo deste capítulo fomos
formulando.
É dentro dessas perspectivas que consideramos evidente que essa
força argumentativa seja identificada através de marcas linguísticas no
2
Ainda tratando de nossa pedra de toque, van Eemeren e Grootendorst (2009) falam de
“força persuasiva”, enquanto que Toulmin (2006, p. 43-51) elabora um pouco sobre a noção
de força modal, que mais tarde poderá ser importante para nossa investigação.

81
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

curso da análise textual-discursiva. A expressividade dessa força pode se


dar por meio de relações de modalidades (KOCH, 2011, p. 71-85), e, no
caso de nosso objeto, mais predominantemente no eixo das condutas, fo-
calizando a sua atividade argumentativa nas modalidades deônticas.
Koch (2011, p. 84) apresenta uma lista de lexicalizações possíveis de mo-
dalidades, entre os quais se verá mais adiante a presença mais aparente
de auxiliares modais (dever, poder etc.), advérbios ou locuções adverbiais
modalizadoras (na medida do possível etc.), formas verbais perifrásticas
(dever, poder etc. + infinitivo) e modos e tempos verbais (futuro, caracte-
rístico de textos normativos etc.). São essas as abordagens linguísticas
para a argumentação que buscaremos acompanhar em nossa proposta de
análise da força argumentativa, de modo que poderemos seguir adiante
para o aporte teórico da percepção do corpus investigado.

1.3. Do discurso jurídico internacional: a obrigatorie-


dade de comprometimento como topos
Entendemos que é muito difícil encontrar um argumento que seja
igualmente forte em vários contextos de argumentação devido à diversi-
dade de variáveis: a força do argumento vai depender não somente do
tipo de audiência a que o falante se dirige, mas também da robustez de
sua construção racional, de quem é o falante e de como ele se dirige, e
isso se nos restringirmos apenas a algumas questões referentes à tríplice
aristotélica do logos, ethos e pathos. Mas a verdade é que há inúmeras
outras variáveis mais que tornam tal empreendimento bastante árduo.
Por isso, o que podemos fazer, pelo menos para estabelecer a força ar-
gumentativa como categoria de análise plausível, e, o que é mais impor-
tante, minimamente factível, é delimitar de maneira relativamente
restrita o escopo discursivo da argumentação, isto é, reduzir instâncias
discursivas até chegar a uma que permita esse tipo de movimento teórico-
metodológico. Precisávamos de gêneros discursivos que fossem o mais ge-
nericamente estáveis possíveis, chegando à conclusão de que o discurso
jurídico nos apresenta com textos que assim o são, tanto por natureza
quanto por necessidade. Entretanto, ainda que bastante formulaico em
sua caracterização, precisávamos de algo ainda mais estável. Quais se-
riam os textos mais estáveis dentro do universo discursivo do direito?
Chegamos, assim, às leis. E principalmente, chegamos às leis inter-
nacionais, que nos oferecem uma perspectiva mais global do discurso ju-
rídico, e não apenas circunscrito a um âmbito doméstico, como ao Brasil
ou a qualquer outro país individualmente. Essa característica textual-
discursiva nos é muito importante, pois assim reduzimos o impacto

82
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

sociocultural do falante sobre a língua uma vez que, na negociação de leis


internacionais, os países precisam encontrar um denominador cultural, po-
lítico e jurídico em comum para que elas possam contemplar a todos os sig-
natários. Some-se a isso uma elaboração textual coletiva e rigorosa, sensível
às inclinações dos países e aos objetivos da negociação, e temos um corpus
esculpido rigorosamente para que o denominador comum encontrado pelos
diplomatas seja comunicado da maneira mais fiel possível. Foi com esse ra-
ciocínio que chegamos ao discurso normativo internacional como objeto de
importância para uma proposta de análise da força argumentativa.
Em se tratando de textos normativos, a força argumentativa indica o
grau de comprometimento exigido pelo enunciador em relação a determi-
nado conteúdo proposicional. Isso corresponde ao modo como os enuncia-
dos em textos normativos representam pontos dentro de um contínuo
hierarquizado, estabelecendo diferentes escalas de intensidade dessa força
argumentativa e, logo, diferentes graus de comprometimento exigidos pelo
enunciador. Quanto maior a força argumentativa do enunciado, maior a
obrigatoriedade do comprometimento a ser assumido pelo enunciatário.
A obrigatoriedade de comprometimento, tal como se estabelece aqui,
é considerada como termo correlato de enforcement enquanto conceito de
nosso interesse, uma vez que se constitui um topos importante nos argu-
mentos ou valores argumentativos estabelecidos no discurso normativo
internacional, servindo de garantia de validade ou legitimidade para o
avanço das conclusões avançadas em seus argumentos e valores argu-
mentativos posto que autorizada pelo contexto discursivo da argumenta-
ção (Cf. DUCROT, 2009, p. 64). De acordo com o Black’s Law Dictionary,
o conceito de enforcement consiste no “[...] ato ou processo de obrigar a
conformidade com a lei, mandato, comando, decreto ou acordo” (GAR-
NER, 2010, Tradução nossa). Embora seja um entendimento relativa-
mente discutido na literatura jurídica contemporânea, o termo costuma
adquirir contornos mais específicos junto ao direito internacional e en-
volver noções de autoridade, sanção e conformidade – compliance– (Cf.
DELBRÜCK, 1994; MORRISON, 1995; CHAYES; CHAYES, 1998; WEL-
LENS, 2009; WHITE; ABASS, 2011; STEIN, 2010; TAMS, 2010). Esta
proposta de análise por ora se limita à definição básica de Garner (2010),
remetendo discussões mais prolongadas à França (2014) quanto à natu-
reza jurídica internacional do enforcement.
Aqui definimos provisoriamente enforcement sob o direito interna-
cional como ato de obrigar comprometimento em relação a normas inter-
nacionais, podendo estar elas contidas em tratados/convenções, em
costumes ou em decisões de cortes e tribunais internacionais. Como ve-
remos, o grau de obrigatoriedade de comprometimento estará direta-

83
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

mente relacionado à força argumentativa dos enunciados, considerando


as marcas linguísticas apontadas por esta proposta.

2. Orientação argumentativa na Convenção-Qua-


dro das Nações Unidas sobre Mudança do
Clima: uma proposta de análise da força argu-
mentativa no discurso jurídico internacional

2.1. Análise de características globais do texto


Nossa proposta de análise toma como objeto ilustrativo de investiga-
ção a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima
(1992), doravante referida apenas como Convenção. A Convenção é um
tratado internacional ambiental negociado e assinado no âmbito da Con-
ferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento
em 1992 no Rio de Janeiro, também conhecida como Eco-92. A Conferên-
cia foi o ponto de partida para a discussão de diversas questões ambien-
tais e culminou com a elaboração de vários documentos internacionais,
entre eles, a própria Convenção. Ela entrou em vigor em 1994 e possui
165 Estados signatários e 197 Estados partes. O objetivo da Convenção é
estabilizar a emissão de gases do efeito estufa e controlar sua concentra-
ção na atmosfera de modo que não provoque interferências negativas no
clima do planeta.
A Convenção constitui-se um texto pertencente ao discurso normativo
internacional e do gênero textual acordo multilateral ambiental3. Ela traz
para a análise elementos complexos, como diversidade de enunciados de
pertinência argumentativa, caráter normativo e pretensão universal,
todos elementos que, de maneira geral, refletem seu processo de elabora-
ção multilateral e o foro político-jurídico de realização. O texto da Con-
venção possui 26 páginas e está escrito na língua inglesa, um dos idiomas
oficiais das Nações Unidas e reconhecido como idioma autêntico quanto
à sua originalidade, sendo assim justificada a não utilização do mesmo
texto em língua portuguesa, ainda que possua tradução oficial autorizada
pelo Ministério de Relações Exteriores da República Federativa do Brasil,
o MRE (Cf. BRASIL, 1998).
O escopo deste trabalho pretende sistematizar a Convenção dentro
da organização textual-discursiva de Adam (2011), localizando-a primei-
3
Acordos, tratados e convenções são algumas das diversas nomenclaturas dadas a instru-
mentos jurídicos do tipo, embora não tendam a diferir em essência. O acordo multilateral
ambiental, contudo, se diferencia por ser multilateral (em oposição a acordos bilaterais) e
ambiental, que especifica seu tema.

84
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

ramente sob uma estruturação sequencial composicional. Nesse âmbito,


estabelece-se a Convenção em um plano de texto do tipo convencional,
constituído, por sua vez, de sequências predominantemente descritivas
e argumentativas. De outro modo, contudo, o texto apresenta caracterís-
ticas que remetem a uma estruturação reticular do texto, orientada a par-
tir da trama lexical voltada para os enunciados com sentido de obrigação;
e, do mesmo modo, apresenta características que remetem à estruturação
configuracional do texto, em sua macroestrutura semântica, que se rea-
liza no agrupamento dos artigos a partir de tópicos ou temas. E, ainda
seguindo as orientações analíticas de Adam (2011), em seu Esquema 30,
temos que a Convenção pode se configurar enquanto macroato de discurso
a partir de suas intenções e interesses, que se constituem na vontade ex-
pressa da implementação de medidas para contenção da mudança climá-
tica (exposição feita detalhadamente em seu preâmbulo).

2.2. Estabelecimento do plano de texto


Uma vez que se considere o conteúdo da capa enquanto elemento pe-
ritextual, o plano de texto pode ser sistematizado da seguinte forma:
preâmbulo, contextualização (Artigos 1 a 3), obrigações (Artigos 4 a 6 e 12),
estabelecimento de órgãos (Artigos 7 a 11), resolução de questões (13 e 14),
alteração do texto (15 e 16), administração do tratado e seus protocolos (17
a 26) e anexos. Essas seções apresentam-se assim caracterizadas:

a) Preâmbulo (§1 a §26): contém contexto de elaboração do tra-


tado, bem como as intenções das Partes e objetivos do texto. Os pa-
rágrafos em sua integralidade tem início com verbos na forma de
gerúndio e em itálico. Esses verbos são selecionados a partir de
uma lista pré-definida comumente utilizada na elaboração de tra-
tados.

b) Contextualização (§27 a §50): dispõe das definições de pala-


vras-chave (Artigo 1), objetivos (Artigo 2) e princípios da Convenção
(Artigo 3).

c) Obrigações (§51 a §109, §171 a §187): dispõe de compromissos


(Artigo 4), pesquisa e observação sistemática (Artigo 5), educação,
treinamento e conscientização pública (Artigo 6), e comunicação de
informação relacionada à implementação (Artigo 12).

d) Estabelecimento de órgãos (110§ a §170): dispõe sobre a Con-


ferência das Partes (Artigo 7), secretariado (Artigo 8), órgão subsi-

85
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

diário para consultoria científica e tecnológica (Artigo 9), órgão


subsidiário para implementação (Artigo 10), mecanismo financeiro
(Artigo 11).

e) Resolução de questões (§188 a §203): dispõe sobre a resolução


de questões a respeito da implementação da Convenção (Artigo 13)
e da resolução de disputas (Artigo 14).

f) Alteração e revisão do texto (§204 a §218): emendas à Con-


venção (Artigo 15) e adoção e emenda de seus anexos (Artigo 16).

g) Administração do tratado e seus protocolos (§219 a §263):


dispõe sobre protocolos (Artigo 17), direito ao voto (Artigo 18), de-
positário (Artigo 19), assinatura (Artigo 20), organização interina
(Artigo 21), ratificação, aceitação, aprovação e acessão (Artigo 22),
entrada em vigor (Artigo 23), reservas (Artigo 24), renúncia (Artigo
25), textos autênticos (Artigo 26).

h) Anexos (§264 a §270): contém as duas listas de Estados Partes,


o Anexo I (§264-§267) e o Anexo II (§268-§270).

Esta proposta de análise limitará sua investigação à seção (c) Obri-


gações, uma vez que é o foco central de enunciados com potencial para
maior força argumentativa, e (b) Contextualização, a fim de apresentar
um contraste de forças. A seção (c) concentra as disposições que tendem
a obrigar o comprometimento dos Estados Partes, razão pela qual cons-
titui o foco principal deste capítulo. Ao centrar a análise sobre a estrutura
dos enunciados de maior força argumentativa, pretendemos construir um
referencial de máxima em relação à quais enunciados com força inferior
podem se relacionar na futura estruturação de uma escala de força.

2.3. A força argumentativa na Convenção-Quadro:


uma análise exploratória
A proposta de análise de força argumentativa sugerida neste capítulo
é feita de maneira não exaustiva, de caráter eminentemente exploratório.
Queremos aqui apresentar uma possibilidade de investigação da força
normativa e avançar sua viabilidade a partir de enunciados localizados
em fragmentos da Convenção, objetivando melhor representar as mani-
festações de força identificadas. Dessa forma, selecionamos apenas aque-
les enunciados em que constam como objeto da obrigação as Partes
(Parties), deixando-se de lado aqueles que se referem à Conferência das
Partes (Conference of the Parties) e demais instituições que não os Esta-

86
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

dos Partes propriamente ditos. Nesse contexto, os enunciadores dos enun-


ciados são os Estados Partes, sendo também seus enunciatários, isto é, o
destino comunicacional da enunciação. Dessa forma, constituem-se de
enunciadores-enunciatários nessa função.
A fim de melhor retratar os movimentos textuais-discursivos em cada
enunciado, utilizamos, no decorrer da análise, termos que foram estabe-
lecidos para destacar certas marcas relevantes. Enunciados-matriz (E-
M) são aqueles que encabeçam os Artigos, enquanto que os pertencentes
são suas ramificações. Limitações (L) são advérbios ou locuções adver-
biais que indicam uma exigência mais restrita ou fechada, especificando
com detalhes as ações requeridas e representando menor liberdade de ação
ao enunciatário. Já as permissões (P) são advérbios ou locuções adver-
biais que indicam uma exigência mais difusa ou aberta, permitindo maior
liberdade de ação ao enunciatário. Imediatismo (marcado por colchetes)
e mediatismo (M) são características incidentais das limitações e per-
missões que indicam sua maior ou menor proximidade sintática ao verbo
ou locução verbal, o que pode caracterizar maior ou menor saliência em
relação à força argumentativa de alguma ação. Via de regra, marcas mais
distantes sintaticamente da ação podem vir a reduzir sua força.
Os enunciados da seção (c) Obrigações, parte (1) (§53-§63), ilustrados
a seguir, apresentam as limitações imediatas (LI), destacadas por colche-
tes; as limitações mediatas (LM), subscritas, caso existam. Já os objetos
dos verbos ou locuções verbais estarão descritos após o símbolo de =. Os
enunciados pertencentes estão marcados com uma indentação mais à di-
reita que os dos enunciados-matrizes.
Agora, portanto, passemos ao exame desses fragmentos.

§53 (E-M) All Parties [taking into account their common but dif-
ferentiated responsibilities and their specific national and
regional development priorities, objectives and circumstan-
ces] shall ...

Após esse enunciado-matriz, seguem-se verbos que se transformam


em locuções verbais juntamente com o verbo modal da língua inglesa shall
para comunicar a ideia de dever deôntico. Em português, por exemplo, a
locução shall develop, primeira ocorrência, traduz-se em deve desenvolver.
Observe-se que os objetos foram extraídos naquilo que se acredita
ser de importância da análise, isto é, os verbos ou locuções verbais, ad-
vérbios ou locuções adverbiais, objeto desses verbos ou locuções verbais e
complementos mais diretamente relacionados ao conteúdo proposicional
das ações representadas nesses verbos. Percebemos aqui, no entanto, a
especial relevância dos verbos modais em língua inglesa e seus desdobra-

87
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

mentos lógicos, em particular naquilo em que se categorizam enquanto


modais deônticos, relacionados à obrigações e permissões (PALMER,
2001, p. 9-10). Nessa condição, Palmer explica que os modais deônticos
fazem parte de modalidades eventuais, isto é, aquelas que se referem a
eventos em potencial (PALMER, 2001, p. 70). Os modais deônticos podem
partir tanto de leis específicas quanto do próprio locutor, que dá permis-
são ou impõe uma obrigação ao interlocutor (PALMER, 2001, p. 10)4, de
modo que modais comissivos também se encaixam nessa categoria, como
é o caso de shall (PALMER, 2001, p. 70, 73).
Diante disso, compreendemos que, no contexto do discurso normativo
internacional, a presença do verbo modal shall no enunciado-matriz evi-
dencia um comando que se realizará no verbo ou locução verbal principal
que vem a segui-lo. Portanto, a força argumentativa de toda a proposição
se tornará maior e influenciará na intensidade que, afinal, construirá os
sentidos de obrigatoriedade de comprometimento do enunciatário. É o
que Ducrot (1995) considera como modificador realizante, palavras ou ex-
pressões que conferem maior ou menor força argumentativa ao enun-
ciado. As ocorrências pertencentes a essa matriz estão listadas a seguir:

§54 Develop, [periodically] update, publish, make available


= national inventories
LI: (1) {periodically}
LM: (2){in accordance with Article 12}; (3){using comparable
methodologies to be agreed upon by the Conference of the
Parties}

§55 Formulate, implement, publish, [regularly] update = national


and regional programmes
LI: (1) {regularly}
PM: (2) {where appropriate}

§56 Promote, cooperate = in the development, application and


diffusion … of technologies, practices and processes
LM: (1){including transfer…}(2){including the energy …}

§57 (a) Promote = sustainable management


(b) Promote, cooperate = in the conservation and enhance-
ment of sinks and reservoirs
PM: (1) {as appropriate}
LM: (2) {including biomass …}

4
“[…] although Deontic modality stems from some kind of external authoritysuch as rule-
sorthelaw, typicallyand frequently the authority is theactual speaker, who gives permission
o, orlaysano bligationon, theaddressee.” (PALMER, 2001, p. 10)

88
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

§58 (a) Cooperate = in preparing for adaptation

(b) Develop, elaborate = integrated plan


LM: (1) {particularly in Africa}

§59 (a) Take … into account = climate change considerations


PM: (1) {to the extent feasible}

(b) Employ = appropriate measures


LM: (1) {with a view to minimizing adverse effects}

§60 Promote, cooperate = in … research & systematic observation


and development of data archives

§61 Promote, cooperate [in the full] = open and prompt exchange
LI: (1) {in the full}

§62 (a) Promote, cooperate = in education, training and public


awareness

(b) Encourage = [the widest] participation


LI: (1) {the widest}
LM: (2) {including that of non-governmental organizations}

§63 Communicate = information


LM: (1) {in accordance with Article 12}

Apresentada essa esquematização, vemos que alguns enunciados car-


regam consigo a ação (verbo ou locução verbal) de maneira livre, mais di-
reta, sem a presença de limitações. Por outro lado, outros se associam a
limitações ao enunciador que aprofundam a obrigatoriedade de compro-
metimento em relação a essa ação.
Assim, os enunciados em §57a, §60 e §62a não apresentam limita-
ções. Isso significa que a força argumentativa de sua proposição não re-
cebe influência relevante do enunciado em sua análise além do conteúdo
proposicional do próprio verbo ou locução verbal. Os verbos topromote e
tocooperate são os verbos principais nos três casos: enquanto isolados pos-
suem força argumentativa menos forte, mas ao serem fortalecidos pelo
verbo modal shall do enunciado-matriz, adquirem um valor argumenta-
tivo mais forte.
Porém, observemos os demais enunciados. A maioria possui algum
tipo de limitação ao enunciador-enunciatário, que aprofunda a obrigato-
riedade de comprometimento em relação ao conteúdo proposicional. Em

89
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

§54, por exemplo, há a limitação imediata [periodically], que especifica


no tempo o conteúdo proposicional de update, publishe makeavailable;
no campo das limitações mediatas, vemos que o enunciador-enunciatário
deve realizar a ação conforme o Artigo 12 e que deve empregar metodo-
logias comparáveis a serem adotadas pela Conferência das Partes. A força
argumentativa em §54, portanto, pode ser considerada maior que a dos
enunciados em §57a, §60 e §62a. Este movimento ocorre com frequência
e está configurado nos enunciados §54, §55, §56, §57b(1), §58b(1), §59b(1),
§61, §62b(1) e §63(1).
Por outro lado, podemos encontrar também algumas permissões. É
o caso de §55(1), em que temos where appropriate (conforme o caso) para
designar uma maior liberdade ao enunciatário na realização da ação con-
tida no conteúdo proposicional do enunciado. O enunciador atribui ao
enunciatário o poder de decisão para julgar a situação mais adequada
para essa ação, isto é, formular, implementar, publicar e atualizar regu-
larmente, de modo que a força argumentativa do enunciado é reduzida
em face de uma obrigatoriedade de comprometimento mais flexível, oca-
sionando um modificador desrealizante (DUCROT, 1995), atenuador da
força argumentativa. O mesmo corre em §57(1) as appropriate (conforme
o caso5) e §59(1) to the extent feasible (na medida do possível).
Ademais, observemos os enunciados um pouco mais anteriores per-
tinentes ao item b) Contextualização, mais especificamente no conteúdo
do Artigo 3, que trata de princípios da Convenção (§43 a §50).

§45 [E-M] ... The Parties shall be guided ... by the following = in
their actions to achieve the objective of the Convention and
to implement its provisions

§46 (a) The Parties should protect = the climate system


LM: (1) {on the basis of equity}, (2) {in accordance with their
common but differentiated responsibilities and respective
capabilities}

(b) Parties should take = the lead


LM: (1) {Accordingly => LM (2)}

§47 ... should be given [full] consideration = the specific needs


and special circumstances
LI: (1) {full}

§48 (a) The Parties should take = measures

5
A tradução do MRE é a mesma para where appropriate e as appropriate.

90
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

(b) ... should not be used = lack of full scientific certainty


LM: (1) {where there are threats of serious or irreversible
damage}

(c) ... may be carried out [cooperatively] by interested Parties


= Efforts to address climate change
LI: (1){cooperatively}

§49 [E-M] The parties have a right to/ should


(1) promote = sustainable development

§50 [E-M] The Parties should


(a) cooperate to promote = a supportive and open interna-
tional economic system

Em um primeiro momento, observamos com clareza a predominância


do verbo modal should nos princípios do Artigo 3, em comparação com o
shall das obrigações do Artigo 4, o que indica uma menor força argumen-
tativa em face de um valor argumentativo que exige menos comprometi-
mento, em contraste do outro, que exige mais. Daí temos que, ainda que
os verbos posteriores fossem de alta intensidade quanto à sua força ar-
gumentativa, teriam-na, no entanto, reduzida por serem parte de uma
locução verbal que possui o verbo modal should como componente. Da
mesma forma, o contrário também seria possível, podendo haver um
enunciado-matriz que contivesse o modal shall que determinasse uma
maior força argumentativa nos enunciados que nele tivessem sua origem.
É o caso dos enunciados que já vimos no contexto do Artigo 4, da seção (c)
Obrigações.
No caso dos enunciados do Artigo 3, esquematizados há pouco, temos
que o enunciado-matriz, ainda que possua o modal shall, na verdade o
estabelece em um conteúdo proposicional mais abrangente quando enun-
cia que the Parties shall be guided (as Partes se guiarão), em que o verbo
principal toguide (guiar, orientar) tem uma força argumentativa seman-
ticamente mais enfraquecida dentro de um panorama de escolhas lexicais
do topos, como poderia ser o exemplo de the Parties shall follow (as Partes
devem seguir).
Nesse sentido, a voz passiva do verbo principal também parece indi-
car um papel indireto de enfraquecimento. Os enunciados que pertencem
a esse enunciado-matriz apresentam, de maneira geral, movimentos si-
milares àqueles do Artigo 4. Contudo, alguns entre eles apresentam es-
truturas diferentes: é o caso de §47, §48b e §48c, verbos organizados na
voz passiva. Em nossa análise, presumimos que a voz passiva em should

91
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

begiven ... consideration (§47) e should be used (§48b) exerce uma força
argumentativa mais enfraquecida que a ativa em decorrência de um
maior distanciamento do enunciador em relação àquele comando que se
enuncia. No caso de may be carried out ainda inclui o modal may, ainda
menos restrito que should quanto ao vínculo de obrigatoriedade do enun-
ciador-enunciatário, o que juntamente com a organização da voz passiva
contribuiria para uma conjunção de fator para uma força argumentativa
ainda mais reduzida.
Dessa forma, depreende-se que os enunciados no Artigo 3 parecem
ser mais flexíveis e amplos, qualidades características de disposições de
princípios dentro de sistemas jurídicos. Os princípios, em uma hierarquia
normativa, são os elementos norteadores desse sistema e mais duradou-
ros, embora mais maleáveis, posto que devem se adaptar às transforma-
ções sociais uma vez que a elas conferem propósito e objetivo. Como tal,
as disposições do Artigo 3 se posicionam abaixo daquelas da parte (1), Ar-
tigo 4 da seção c) Obrigações exposta acima, uma vez que se considere
uma hierarquia de argumentos que tenha como referencial a intensidade
de sua força argumentativa.
Considerando essa breve proposta de análise, vemos que é viável in-
vestigar a força argumentativa enquanto categoria de análise textual e
discursiva em textos normativos internacionais, seguindo uma perspec-
tiva que tem como ponto de partida a semântica argumentativa. No cor-
pus por ora examinado, percebemos, nessa perspectiva, que há forças
argumentativas de diferentes intensidades diretamente representadas
pela maior ou menor exigência de comprometimento por parte do enun-
ciador, tendo inclusive como principal evidência linguística o papel de-
sempenhado pelos verbos modais da língua inglesa, como shall e should.
De fato, observamos que sua relevância tem implicação direta na repre-
sentação das forças argumentativas dentro do contexto e do topos de ob-
rigatoriedade de comprometimento marcado nos enunciados.
Assim, acreditamos que é possível entender a força argumentativa
como uma perspectiva viável de compreensão linguístico-argumentativa,
levando em consideração a estrutura sintática, semântica e enunciativa de
um dado texto, com especial interesse nas categorias léxico-gramaticais
para identificação de marcas que representem um dado valor argumenta-
tivo. Evidentemente, conseguimos trazer apenas uma fração das possibili-
dades dessa perspectiva, mas esperamos sobretudo que seja possível, daqui
para frente, refiná-la o tanto quando necessário, a fim de que possamos
construir um modelo de análise textual do discurso normativo elaborado
especificamente para aplicação nesse contexto discursivo e que sirva como
sugestão de extensão teórica adequada da ATD de Jean-Michel Adam.

92
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL

Considerações finais
A proposta de análise apresentada neste capítulo ainda retrata de
modo bastante superficial os aspectos que poderiam ser evidenciados pela
Análise Textual dos Discursos, dentro de uma perspectiva linguística de
uma orientação argumentativa informada pela Teoria da Argumentação
na Língua e da teoria dos topoi. Como elemento focal, procuramos avan-
çar a relevância da força argumentativa enquanto categoria de análise,
considerando-a a partir de marcas estruturais na língua de cunho lexical,
sintático e semântico contextualizadas na pragmática do discurso nor-
mativo internacional.
Ainda, subsidiamo-nos em alguns aspectos referentes ao direito in-
ternacional, como o conceito de obrigatoriedade para poder identificar em
um primeiro momento a obrigatoriedade de comprometimento com o seu
topos principal. Objetivamos fazer um percurso metodológico de heurís-
tica própria, encorajada pelos estudos de Anscombre e Ducrot, que evi-
denciasse os enunciados a partir de um enunciado-matriz, enunciados
pertencentes, limitações e permissões, visando, especialmente, o sentido
textual e contextual dos verbos modais de língua inglesa, utilizados no
recorte analítico, e sua relação com demais componentes enunciativos.
O resultado parcial dessa proposta de análise levou a considerações
a respeito da equivalência entre a força argumentativa do enunciado e a
obrigatoriedade de comprometimento do enunciador-enunciatário, indi-
cando que essa força pode ser maior ou menor, a depender do viés semân-
tico-lexical do verbo modal e do verbo principal, das limitações e
permissões implicadas neste enunciado e da contraposição desses enun-
ciados em relação a outros enunciados de mesma hierarquia, embora de
forças diferentes. Dessa forma, esta proposta de análise, seguindo a me-
todologia descritiva proposta neste capítulo, sugere que a ATD pode ser
uma ferramenta relevante de investigação de textos, não apenas jurídicos
em geral, mas também especificamente normativos, em especial se con-
seguirmos refinar com mais qualidade a articulação junto à TAL, à teoria
dos topoi e a uma heurística metodológica particular.
Entretanto, as limitações deste trabalho ainda são inúmeras. É ex-
tremamente necessário, ainda, explorar com mais profundidade não ape-
nas os estudos de Anscombre e Ducrot e as técnicas que utilizam para
análise semântico-argumentativa, mas também outras obras de aborda-
gem linguística da argumentação, para que possamos estabelecer com
mais rigor o nível micro de análise que nos ocupa. Ao mesmo tempo, é
também necessário conseguir articular esse nível de análise com o macro,
isto é, que dialoga com a teoria da argumentação geral, de modo que é do
nosso interesse aprofundar-nos nos estudos de Walton sobre métodos e

93
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

esquemas argumentativos, além daqueles que lidam com argumentação


jurídica (legal reasoning) propriamente dita, que por sua vez constitui
toda uma área de relevância que deverá informar nossas considerações
mais para frente. Além do mais, o nível macro também precisará de uma
determinação específica do que seja força argumentativa nessa instância
de análise, visto que caminhamos aqui quase que estritamente dentro de
um panorama estrutural linguístico. Discussões como as de Apostel
(1979), por exemplo, poderão configurar importantes deliberações nesse
sentido.
Além disso, é de nosso intuito buscar complementar esse viés quali-
tativo de investigação com um viés quantitativo, a partir do uso de ferra-
mentas computacionais de análise textual adequadas para o tratamento
de dados linguísticos, observando, por exemplo, o número de ocorrência
de modais e mapeamento lexical. Nesse âmbito, já estamos explorando
softwares possíveis, entre eles, em particular, o Sketch Engine como meio
de identificação de categorias linguísticas que poderá nos auxiliar nesse
aspecto da pesquisa. É a partir dessa e de outras implementações neces-
sárias que esperamos que seja possível aperfeiçoar esta proposta de aná-
lise, a ponto de possibilitar a sugestão de um modelo teórico e descritivo
aplicável ao discurso normativo, gênero discursivo ainda pouco estudado
na literatura, e assim contribuir positivamente para o repertório de es-
tudos voltados para a sistematização linguístico-argumentativa do dis-
curso jurídico.

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96
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA
DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA
SENTENÇA CONDENATÓRIA

Emiliana Souza Soares — IFRN

Considerações iniciais
Neste capítulo, apresentamos uma análise linguística do discurso ju-
rídico fundamentada na perspectiva textual-enunciativa. Nosso intuito é
descrever, analisar e interpretar como se apresentam marcados linguis-
ticamente, no gênero sentença judicial condenatória de crime contra a
dignidade sexual, os modos de assumir ou não a responsabilidade enun-
ciativa (RE), bem como a mobilização de PDV (ponto de vista) de enun-
ciadores segundos, em conformidade com os propósitos comunicativos do
jurista locutor-enunciador 1 (LI/E1) atrelados à orientação argumenta-
tiva, a partir da análise de marcas linguísticas por meio de categorias
textuais e enunciativas.
Trata-se de um estudo de cunho metodológico interpretativista e qua-
litativo dos dispositivos enunciativos1 concernentes à orientação argu-
mentativa e à responsabilidade enunciativa na sentença judicial
condenatória de crime hediondo, especificamente de crime contra a dig-
nidade sexual infantojuvenil.
Assumimos neste capítulo que as marcas linguísticas expressam a ma-
terialidade textual da RE, bem como evidenciam os diversos mecanismos
enunciativo-argumentativos relacionados ao gerenciamento de PDV, aos
tipos de PDV, às posturas e aos posicionamentos enunciativos de L1/E1.
Acreditamos que há uma diversidade de estratégias para demarcar,
no nível linguístico, a RE, por isso a gestão de vozes realizada por L1/E1
(o juiz) desencadeia níveis hierárquicos de posturas enunciativas, bem
como as escolhas linguísticas, no plano textual-enunciativo, configura-se,
na dinâmica textual, como estratégia argumentativa, motivada por um
1
Em linhas gerais, os dispositivos enunciativos estão interligados aos mecanismos linguís-
ticos no nível da dimensão enunciativa materializados textualmente. Seguimos Rodrigues
(2016) que considera três dispositivos enunciativos inter-relacionados: o ponto de vista
(PDV), a responsabilidade enunciativa e a visada argumentativa. Além disso, ratificamos,
no sentido amplo, que a abordagem enunciativa [...] não se limita a um determinado nível
da língua, mas atravessa todo o estudo da língua, isto é, a enunciação está presente em
todos os níveis da análise linguística.

97
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

projeto de dizer voltado à persuasão e à produção de efeitos de sentido.


A nossa reflexão insere-se fundamentalmente no quadro teórico dos
postulados da Análise Textual dos Discursos — ATD (ADAM, 2011), em
diálogo com teorias linguístico-enunciativas (GUENTCHÉVA, 1994, 2014)
e com as contribuições teóricas e analíticas do campo linguístico-discursivo
e enunciativo da argumentação (RABATEL, 2005, 2009, 2013, 2015a,
2016; PINTO, 2010; KOCH, 2011; CORTEZ; KOCH, 2013), entre outros.
O capítulo foi organizado em 4 (quatro) partes: a primeira, com as
noções basilares e diálogos possíveis no âmbito da perspectiva da análise
textual-enunciativa; a segunda, com breves questões metodológicas; na
terceira, exemplificamos a análise e, por fim, na quarta parte apresenta-
mos as considerações finais.

1. Perspectivas da análise textual-enunciativa:


diálogos teóricos e acepções basilares
Nos tópicos seguintes deste capítulo, delineamos os aspectos da pro-
posta teórico-metodológica de análise de textos, elaborada por Adam
(2011). Ademais, apresentamos as filiações teóricas dessa abordagem com
a Linguística da Enunciação e as acepções teóricas que dialogam e se re-
lacionam com a responsabilidade enunciativa e seus principais conceitos
e categorias de análises (PDV, tipos de PDV, posicionamentos enunciati-
vos e marcas linguísticas).
Consideramos como base de nosso referencial teórico-metodológico
para procedermos a análise textual-enunciativa os pressupostos (da) aná-
lise textual dos discursos (ADAM, 2011) que considera 8 (oito) categorias
para a análise de textos. E entre elas elencamos dois níveis de análise
textual: 7 e 8 (RE e OrArg).
A ATD assume uma perspectiva de “posição construtivista” no sen-
tido em que “[...] ela define e explicita um número mínimo de operações
enunciativas fundamentais que permitem passar das noções e dos esque-
mas abstratos da língua para as unidades observáveis nos textos”
(ADAM, 2011, p. 65). Para analisar as unidades observáveis nos textos,
adota uma abordagem teórica de conjunto com o recurso a empréstimos
eventuais de conceitos de diferentes áreas das ciências da linguagem para
a construção dos procedimentos metodológicos e constitutivos da Análise
Textual dos Discursos.
Para Adam (2011), a descrição de textos é algo complexo e por isso
justifica a necessidade de uma teoria que, em diálogo com outras pers-
pectivas, apresente um dispositivo teórico-metodológico que dê conta da
complexidade desse objeto e de suas relações com o domínio mais vasto
do discurso em geral.

98
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Na ATD, o texto é seu objeto de análise e não pode ser compreendido


como um simples conjunto limitado de elementos léxico-lógico-gramati-
cais, pelo fato de ser um objeto complexo e multifacetado, plurissemiótico,
constituído por aspectos linguísticos e discursivos múltiplos.
Concordamos com o pensamento de Adam, de que o texto é,

[...] certamente, um objeto empírico tão complexo que sua descrição


poderia justificar o recurso a diferentes teorias, mas é de uma
teoria desse objeto e de suas relações com o domínio mais vasto do
discurso em geral que temos necessidade, para dar aos empréstimos
eventuais de conceitos das diferentes ciências da linguagem, um
novo quadro e uma indispensável coerência. (ADAM, 2011, p. 25).

Em diálogo com os estudos adamianos, ressaltamos que, no âmbito


dos estudos discursivo-textuais, “[...] a argumentação não pode ser estu-
dada em textos abstratos, objeto teórico das gramáticas de textos tradi-
cionais [...] mas em textos empíricos”. (PINTO, 2010, p. 15). Textos
inseridos em determinado discurso/atividade de linguagem/esfera de co-
municação e que “são construídos a partir da mobilização de recursos le-
xicais e sintáticos de uma língua natural”. (Ibid., p. 15).
Desde seu surgimento, no âmbito dos estudos da Linguística no Bra-
sil, várias concepções foram articuladas no interior do campo teórico da
ATD. Ressaltamos que muitas delas foram oriundas de enfoques distin-
tos, mas que em alguns momentos se cruzam, conforme observamos nos
pressupostos sobre a Responsabilidade Enunciativa, a Polifonia, a cons-
trução textual do Ponto de Vista e a Orientação Argumentativa.
Nessa direção, os estudos da análise enunciativa sobre o ponto de
vista e a responsabilidade enunciativa desenvolvidos por Rabatel
(2015a, 2016) se mostram de fundamental importância para o nosso tra-
balho, uma vez que assumimos a perspectiva desse autor para analisar
os posicionamentos enunciativos e laços de (des)responsabilização, mos-
trando a dinamicidade da entrada das vozes de outrem no âmbito do
discurso jurídico. Nesse contexto, revelando que o estudo do ponto de
vista (PDV) não aponta simplesmente para o modo como o produtor do
texto concebe determinado objeto de discurso, mas como ele organiza
seu texto em relação ao gerenciamento de vozes, assumindo ou não a
responsabilidade pelos conteúdos proposicionais veiculados. Eviden-
ciando também as estratégias linguísticas do jogo enunciativo de hie-
rarquização de PDV, de imputação a outras instâncias e a assunção pelo
enunciador das informações expressas, de forma mediada ou não, nos
enunciados, a serviço da orientação argumentativa do discurso jurídico
na sentença condenatória penal.

99
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Ademais, destacamos dos estudos postulados por Guentchéva (1994,


2014) a categoria gramatical do mediativo (MED) como mecanismo lin-
guístico que permite o enunciador marcar uma atitude de posicionamento
enunciativo de distanciamento e/ou desengajamento em relação aos con-
teúdos proposicionais expressos de (e2), bem como mediados e evocados
por L1/E1 no texto jurídico em análise.
Reconhecemos que antes de iniciarmos nossas análises, algumas
questões merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, acreditamos que
os estudos de Rabatel (2015a, 2015b, 2016)2 se concentram numa pers-
pectiva compartimentada, com foco em aspectos enunciativo-argumenta-
tivos da construção do PDV, baseados em uma abordagem enunciativa e
interacionista dos pontos de vista e da narração. Em segundo lugar, res-
salvamos que Adam (2011) propõe a análise da dimensão enunciativa,
com destaque para as questões de categorias linguístico-textuais “discri-
minadas minimamente” (ADAM, 2011, p. 117), conciliando aos aspectos
discursivos, a partir da análise textual dos discursos.
Nessa direção, constatamos a existência de um ponto comum na
abordagem dos dois autores supracitados. Ambos baseiam-se nas teorias
bakhtinianas, retomando a perspectiva dialógica da linguagem e apon-
tam caminhos para a análise da materialização linguística.
Nessa direção, baseamo-nos na proposta de Cortez (2011) que amplia
e reorienta a visão do campo conceitual do PDV concebendo-o como um
mecanismo enunciativo que atua no processamento textual, na constru-
ção da coerência e na orientação argumentativa.
Além disso, com base nas reflexões de Passeggi (2016), ampliamos e
complementamos o foco da análise das categorias propostas por Rabatel
(2009, 2013, 2015a, 2016) e Adam (2011). Em decorrência disso, para a
análise do gênero discursivo/textual sentença condenatória cujo conteúdo
trata de estupro de vulnerável, estabelecemos que, para a análise enun-
ciativa, devemos nos apoiar nas marcas linguísticas para procedermos com
a análise textual da dimensão enunciativa articulada ao direcionamento
argumentativo. Tudo em conformidade com o gerenciamento de L1/E1 em
relação aos PDV imputados aos enunciadores segundos, no nível linguís-
tico da sentença, considerando os elementos suscitados durante o trato
teórico-metodológico delineado. Assim, buscamos conciliar, em nossas aná-
lises, o nível da análise enunciativa numa perspectiva linguístico-textual.
2
No que tange à denominação de análise textual-enunciativa, assumimos as reflexões de Pas-
seggi (2016) durante a conferência intitulada: “Abordagens linguísticas, textuais, discursivas
e interacionais” proferida no I Ciclo Internacional de Trabalhos Acadêmico-científicos: enun-
ciação, emoção, pragmática e discurso jurídico, realizado de 19 a 21 de setembro de 2016, na
UFRN/CCHLA. Disponível em:
<https://www.youtube.com/channel/UCToWmelCozZ4IH_7WJZCs0w>. Acesso em 13 out. 2016.

100
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Centramos nosso olhar nos componentes dos organizadores linguís-


ticos do plano textual-enunciativo relacionados à orientação argumenta-
tiva e à RE, apresentando essa inter-relação da dinâmica textual do texto
jurídico. Dessa forma, acreditamos que nossa análise não se restringe
meramente a aspectos enunciativos oriundos de uma teoria enunciativa,
mas nos baseamos nos aspectos dos dispositivos enunciativos no âmbito
de uma perspectiva de análise linguístico-textual.
No intuito de procedermos à construção e definição dos elementos
para desencadear a proposta teórico-metodológica da análise textual-
enunciativa, buscamos acepções e estabelecemos diálogos teóricos de
acepções basilares definidas por Rabatel (2013, 2015a, 2016) e Adam
(2011). Em seguida, articularmos e complementamos as abordagens com
os estudos de Guentchéva (1994, 2014), Bernardino (2015), Pinto (2010)
e Passeggi et al. (2010) . De forma sumária, pontuamos tal articulação,
conforme apresentaremos nos quadros e esquemas, a seguir, os quais bus-
cam reproduzir, sucintamente, a visão das categorias e marcas linguísti-
cas evocadas para a análise textual-enunciativa que trilhamos.

Quadro 1 — Síntese de marcas linguísticas e categorias de (não)


assunção da RE

Marcas linguísticas de não assunção da RE e das posturas

• índices de pessoas;- fenômenos de modalização autonímica;


• indicações de quadro mediadores/marcadores de discurso reportado, a exemplo
de segundo, de acordo com, para etc.;
• expressões verbais;
• verbos dicendi (verbos de atribuição da fala como afirmam, dizem, consideram
etc.);
• indicações de um suporte de percepções e de pensamentos relatados, desde
que não acompanhados por índices de primeira pessoa e nem de marcas de
subjetividade;
• conectores;
• elementos tipográficos (negrito, itálico, sublinhado);
• sinal gráfico (aspas);
• elementos linguísticos que demarcam a fronteira entre o discurso citante e
discurso citado.

Categorias de não assunção da RE


e das posturas enunciativas de desengajamento com o dito
• mediativo ou não assunção de responsabilidade enunciativa (imputação a e2
sem acordo e sem coenunciação);
• neutralidade/Apagamento enunciativo/Pseudoneutralidade;
• desacordo entre o PDV de e2, L1/E1;

101
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(Continuação)

Marcas linguísticas de assunção da RE e das posturas enun-


ciativas de acordo, hierarquização de PDV, coenunciação
• modalidades/elementos modalizadores: lexemas avaliativos, advérbios
de opinião e marcadores de subjetividade;
• marcas de asserção, quando referidas a primeira pessoa;
• índices de pessoas;- expressões verbais;
• elementos tipográficos (negrito, sublinhado).

Categorias de assunção da RE e das posturas enunciativas de


• hierarquização de PDV;- acordo/coenunciação/compartilhamento de
PDV;

Fonte: Elaboração própria baseada em Adam (2011), Passeggi et al (2010), Bernardino


(2015), Pinto (2010), Lourenço (2015) e Rabatel (2005, 2009, 2013, 2015a, 2016)

Em resumo, podemos articular as categorias da dimensão enuncia-


tiva, numa perspectiva textual, propostas por Adam com as categorias
linguístico-enunciativas de Rabatel (2015a; 2016), de Cortez e Koch
(2013), de Guentchéva (2014), de Passeggi et al. (2010), Bernardino (2015)
e de Pinto (2010). Em síntese, o esquema e o quadro a seguir buscam re-
produzir a proposta da análise linguístico-textual e enunciativa, bem
como sintetiza as categorias e marcas que devem ser evocadas:

Esquema 1 — Categorias de análise textual-enunciativa

Análise textual-enunciativa
do PDV e da RE

Categorias linguístico-
textuais da dimensão Categorias enunciativas
enunciativa

Instâncias enunciativas: locutor e


Índices de pessoas enunciador
Diéticos Posicionamentos enunciativos: (não)
Tempos verbais assume, (des) acordo, (des)engaja-
mento, distanciamento, pseudoneu-
Modalidades Elementos linguísticos tralidade, apagamento enunciativo e
Diferentes tipos de indicadores de quadro hierarquização
representação de fala mediativo e fonte do Movimentos da dimensão enuncia-
Fenômenos de modalização saber (conectores, sinais tiva: assunção/responsabilização e im-
automática gráficos, expressões putação; mediativo e evidencialidade
Indicação de um suporte de verbais)
Tipos de PDV: contado, afirmado e re-
percepção e pensamentos
presentado
relatados
Laço de (des)responsabilização
Conectores/Operadores
argumentativos Posturas enunciativas: Co-enuncia,
Sobre-enuncia e Sub-enuncia

Fonte: Elaboração própria

102
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Em suma, o quadro a seguir reproduz e retoma as categorias:

Quadro 2 — Categorias de análise linguístico-textual e enunciativa


do PDV e da (não) assunção da RE

Categorias de Análise linguístico-textual e enunciativa do PDV


e da (não assunção da) RE
Adam Rabatel Guentchéva
(2011) (2008, 2009, 2013, 2015a, 2016) (1994, 2014)

Índices de pessoas Movimentos enunciativos (assun- Mediativo


Dêiticos ção da RE e imputação) Evidencialidade
Tempos verbais Posturas enunciativas e posicio-
Modalidades/elementos namentos
modalizadores Tipos de PDVInstâncias enuncia-
Discurso reportado/Dis- tivas
curso relatado/Diferentes
tipos de representação de
fala
Fenômenos de modaliza-
ção autonímica
Indicação de um suporte
de percepção e pensamen-
tos relatados
Conectores/Operadores
argumentativos

Fonte: Elaboração própria

De maneira ampla, no quadro a seguir, apresentamos e, em se-


guida, detalhamos, as categorias textuais e marcas linguísticas selecio-
nadas as quais serão destacadas em nossa análise no nível linguístico:

Quadro 3 — Categorias textuais e marcas linguísticas selecionadas para


as análises
Categoria Marca linguística

Expressões verbais e verbos com in- Verbos em primeira pessoa do singular, ex-
dicações de um suporte de percep- pressões verbais na terceira pessoa do sin-
ções e de pensamentos relatados. gular seguidas do pronome se, entre outras
observadas no contexto linguístico;
Expressões verbais com valor semântico de
percepção e pensamento relatado;
Verbos dicendi.

Índices de pessoas. Pronomes e marcadores de pessoa.

103
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(Continuação)

Modalidades (sintático-semânti- Lexemas afetivos e avaliativos, expressões


cas)/ elementos modalizadores. adjetivadas, advérbios e expressões de jul-
gamento de valor.
Discurso reportado: Elementos linguísticos introdutores do dis-
Discurso relatado (tipos de repre- curso alheio: Verbos dicendi, conectores de
sentação da fala/ discurso direto, relação semântica de conformidade, sinal
discurso indireto) gráfico (aspas), travessões, dois pontos (:).
Modalização em discurso segundo.

Indicadores do quadro mediativo. Conjunções adverbiais: segundo, de acordo


com, para, conforme, entre outros com o
mesmo valor semântico de conformidade,
dependendo do contexto linguístico; moda-
lização verbal, expressões verbais, elemen-
tos gráficos.
Elementos tipográficos. Negrito, itálico, sublinhado.
Conectores/Operadores argumenta- Conectores /operadores com valor semân-
tivos. tico: de adversidade, conclusão, bem como
anafóricos de retomada, entre outros.
Fonte: Elaboração própria baseada em Adam (2011), Passeggi et al (2010), Bernardino
(2015), Pinto (2010) , Maingueneau (2004) e Lourenço (2015)

Com base nesses pressupostos teóricos, delineamos a seleção das ca-


tegorias e as marcas linguísticas para a análise dos dispositivos da di-
mensão enunciativa, em uma perspectiva linguístico-textual, articulando
principalmente os pressupostos rabatelianos e adamianos.

1.1. Acepções da análise enunciativa: ponto de vista,


posturas enunciativas, responsabilidade e orien-
tação argumentativa
Rabatel (2013, 2015a, 2016) tem se dedicado ao estudo do ponto de
vista e da Responsabilidade Enunciativa. Esse autor define que o sujeito,
responsável pela referenciação do objeto, exprime seu PDV tanto direta-
mente, por comentários explícitos, como indiretamente, pela referencia-
ção, ou seja, através de seleção, combinação, atualização do material
linguístico. Para tal autor, o PDV tem natureza dialógica e dimensão ar-
gumentativa, uma vez que se constitui, necessariamente, no cruzamento
de perspectivas e com imputações e posicionamentos de (des)acordo e neu-
tralidade com “visada argumentativa” (RABATEL, 2016, p. 97).
Outra noção que se articula diretamente com o fenômeno linguístico
responsabilidade enunciativa é a de PDV (ponto de vista). Rabatel (2015a,

104
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

2016), em vários trabalhos, discute sobre o conceito de ponto de vista


(abreviado PDV) e de responsabilidade enunciativa. As reflexões teóricas
rabatelianas se situam no âmbito de uma perspectiva enunciativa e prag-
mática, fazendo inter-relações com os pressupostos bakhtinianos, com
foco nos conceitos de polifonia e do dialogismo (AUTHIER REVUZ, 1990;
BAKHTIN, 1988), visando dar conta da dimensão dialógico-argumenta-
tiva e interacionista dos enunciados.
Cortez e Koch (2013, p. 9) evidenciam a dimensão dialógica do enun-
ciado e asseveram que a construção do ponto de vista tem papel impor-
tante na orientação argumentativa do texto, bem como põe em destaque
fenômenos de heterogeneidade discursiva, na medida em que “[...] o lo-
cutor/enunciador coloca em cena uma multiplicidade de pontos de vista e
os faz dialogar entre eles”.
Nessa ótica, Cortez e Koch (2013) ratificam que, no jogo enunciativo,
as escolhas linguísticas são reveladoras do ponto de vista do enunciador
e estão diretamente ligadas aos modos de posicionamento linguístico da
subjetividade. As autoras atestam também que se faz necessário diferen-
ciar aquele que assume o conteúdo da percepção, o locutor/enunciador
primeiro (L1/E1), daquele a quem determinado conteúdo é imputado, o
enunciador segundo (e2). As autoras consideram que L1/E1 pode afirma-
se pela incorporação do PDV de outros enunciadores em consonância ou
dissonância, que ele pode tomar para si ou imputar.
No âmbito das abordagens enunciativa e interacionista, o PDV é uma
categoria transversal (RABATEL, 2016) e remete a um conteúdo propo-
sicional, à referenciação dos objetos do discurso, a uma fonte enunciativa,
às opiniões, às posições de posturas enunciativas (subjetivas ou objetivas)
e a julgamentos de valor, sob uma dimensão enunciativo-argumentativa
e pragmática. O termo se define também a partir de meios linguísticos
através dos quais um sujeito visa um objeto, em todos os sentidos do verbo
visar, seja esse sujeito singular ou coletivo. No que concerne ao objeto,
ele pode corresponder a um objeto concreto, mas também a um persona-
gem, a uma situação, a uma noção ou a um acontecimento, uma vez que
em todos os casos se trata de objeto do discurso (RABATEL, 2013, 2015a,
2016). O sujeito responsável pela referenciação do objeto exprime seu
PDV tanto diretamente, explicitamente, como indiretamente. Nesse en-
tendimento, linguisticamente, o locutor-enunciador pode revelar objeti-
vidade e distanciamento para com seu dito.
De modo geral, nessa discussão, Rabatel (2013, 2015a, 2016) concebe
o PDV por natureza dialógica, tendo o foco dos seus trabalhos no âmbito
dos estudos narrativos e da abordagem enunciativa da argumentação. Esse
autor define e caracteriza três tipos de PDV, a saber: PDV embrionário/-

105
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

contado/narrado (fatos narrados), PDV afirmado/assertado (discursos ou


fala) e PDV representado (percepção e pensamentos)1.

1.1.1. Instâncias, posicionamentos, posturas, dimensões e


movimentos enunciativos
Sabemos que o estudo da entrada da voz de outrem direciona nosso
olhar para as instâncias enunciativas, conforme ratifica Lourenço (2015).
Desse modo, acompanhamos as definições rabatelianas acerca do par lo-
cutor/enunciador. Tendo em vista a abordagem desse autor, apresenta-
mos, de forma sumária, o esquema do entendimento no que tange às
instâncias enunciativas no âmbito da Responsabilidade Enunciativa:

Figura 1 — Instâncias enunciativas

INSTÂNCIAS
ENUNCIATIVAS

LOCUTOR E
ENUNVIADOR

Locutor: é a primeira Enunciador: é a instân-


instância que produz mate- cia que se posiciona em rela-
rialmente os enunciados; pro- ção aos objetos do discurso aos
dutor físico do enunciado, que
quais ele se refere; o enuncia-
é o sujeito que fala; locutor
dor está na origem de um
profere o enunciado.
PDV; é quem assume ou leva
em consideração o enunciado
/ o conteúdo proposicional.

Fonte: Elaboração própria baseada em Rabatel (2013, 2015a, 2016)

Nessa direção, conceituamos e destacamos os movimentos enuncia-


tivos: assunção da responsabilidade e imputação, considerando os pres-
supostos rabatelianos (RABATEL, 2016, p. 88):

Assunção é quando o L1/E1 assume por conta própria os conteúdos


proposicionais porque os julga verdadeiros. Só há assunção se o lo-
cutor estiver na fonte, se as palavras forem dele.

106
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Imputação se dá quando ele, o L1/E1, atribui os conteúdos propo-


sicionais a um enunciador segundo (e2), podendo também repre-
sentar uma Quase-RE.

Nesse direcionamento, Rabatel (2013, 2015a, 2016) afirma que a ma-


neira como L1/E1 escolhe formular o PDV é significativa no plano enun-
ciativo. Em virtude disso, o referido autor destaca que as posturas
enunciativas “[...] repousam sobre a distinção do locutor (instância de pro-
dução fônica ou gráfica do enunciado) e do enunciador (instância da as-
sunção da responsabilização pelos conteúdos das proposições, à fonte das
atualizações dêitica e modal)” (RABATEL, 2015a, p. 127). Esse autor con-
sidera três tipos de “posturas” que estão relacionados ao plano enuncia-
tivo do texto e de acordo com objetivos enunciativo-argumentativos, a
saber: 1) a coenunciação; 2) a subenunciação; e 3) a sobre-enunciação.2

1.2. Orientação argumentativa


Neste capítulo, a orientação argumentativa3 consiste em direcionar
a atividade verbal a serviço dos propósitos comunicativos do sujeito pro-
dutor do texto, isto é, um ato linguístico que se utiliza de estratégias para
a elaboração do discurso argumentativo e envolve fundamentalmente as
intenções do sujeito produtor.
Por esse ângulo, destacamos ainda que:

[...] o Direito, mais que qualquer outro saber, é servo da linguagem.


Como Direito posto é linguagem, sendo em nossos dias de evidência
palmar constituir-se de quanto editado e comunicado, mediante a
linguagem escrita, por quem com poderes para tanto. Também lin-
guagem é o Direito aplicado ao caso concreto, sob a forma de decisão
judicial ou administrativa. Dissociar o Direito da Linguagem será
privá-lo de sua própria existência, porque, ontologicamente, ele é
linguagem e somente linguagem. (CALMON DE PASSOS, 2001,
p.63-64).

Ademais, na direção desse entendimento, de acordo com Koch (2011,


p.17), acreditamos que:

[...] a interação social por meio da língua caracteriza-se fundamen-


talmente, pela argumentatividade. Como ser dotado de razão e von-
tade, o homem, constantemente, avalia, julga, critica, isto é, forma
juízos de valor. Por outro lado, por meio do discurso — a ação verbal
dotada de intencionalidade — tenta influir sobre o comportamento

107
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

do outro ou fazer com que compartilhe determinadas de suas opi-


niões. É por esta razão que se pode afirmar que o ato de argumentar,
isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer dis-
curso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do termo. A
neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende neutro,
ingênuo, contém também uma ideologia — a da sua própria objeti-
vidade.

No tocante aos propósitos da construção argumentativa, corrobo-


rando a visão de argumentação que assumimos, vale dizer que,

[...] a intenção argumentativa se sustenta em grande medida nas


palavras distantes (nas vozes de distintos enunciadores, seja para
negá-las, como argumento antiorientado, ou para apoiar nelas o
próprio ponto de vista, como argumento coorientado), com o que se
consegue legitimar o próprio critério e dirigir a opinião do receptor
para determinadas conclusões que se mostram, desta maneira,
como válidas e verdadeiras. (ESCRIBANO, 2009, p. 47-48).

Com base em Pinto (2010, p. 200), ratificamos que, em sentido amplo,


“[...] a argumentação linguística corresponde às escolhas perpetradas pelo
agente produtor do texto na produção de determinado gênero [...]”, bem
como aos diversos encadeamentos argumentativos inferidos textualmente
e relacionados à organização do texto. Desse ponto de vista, ratificamos
também que a argumentação linguística é um modo de organização lin-
guístico-textual e argumentativo a qual revela o percurso planejado, de
acordo com as intenções de dizer do produtor na defesa de um ponto de
vista. No processo de produção, na tessitura textual, o produtor faz usos
de estratégias que orientam o eixo argumentativo na defesa da tese e,
consequentemente, a compreensão textual.
Nesse percurso, o discurso argumentativo propõe persuadir o inter-
locutor, ou seja, conseguir adesão, por meio da organização textual, mar-
cando os direcionamentos argumentativos por meio de escolhas
linguísticas evocadas no fio textual-discursivo, entre elas: marcadores
textuais de subjetividades, conectivos argumentativos e contra-argumen-
tativos que orientam a arquitetura textual-argumentativa em favor da
pretensão do autor, ou seja, uma visada discursiva marcada na constru-
ção textual pelas atitudes enunciativas e uma (co)enunciação intencional
que é marcada pelo efeito que ela é suscetível produzir.

108
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

2. Questões metodológicas
Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo,
qualitativo e interpretativo. Para análise, selecionamos uma sentença judicial
condenatória4 oriunda de nosso corpus de tese de Doutorado (SOARES, 2016).
No que tange ao gênero em análise, destacamos que seguimos as
questões e características delineadas em Soares (2016), bem como no Có-
digo Penal Brasileiro, no Estatuto da criança e do Adolescente, em Soto
(2001) e Bittar (2015).
Seguimos Bittar (2015, p. 304) quando afirma que a sentença é um ato
decisório (a decisão), ou seja, um ato performativo de linguagem que resulta
de uma enunciação contextual própria pela qual se manifesta a autoridade
decisória do juiz. Esse autor considera ainda que a sentença judicial apre-
senta um valor material concreto, socialmente engajado e sustentado ins-
titucionalmente, constituindo, desconstituindo, declarando e condenando.
Nessa linha de pensamento, Soto (2001, p. 26-27) define a sentença
condenatória como:

Todas aquelas que impõem o cumprimento de uma prestação, sendo


este cumprimento tanto em sentido positivo como negativo (fazer
ou não fazer). [...] Requisito necessário para existência da sentença
condenatória é um dano a ser reparado que, não sendo constatado,
não há o que indenizar e, consequentemente, não haverá um con-
teúdo que caracterize a sentença como condenatória ou até mesmo
que justifique a sua existência.

Soto (2001, p. 42) ainda postula que:

Tem-se que a causa da sentença é a demanda fundamentada na


pretensão que, por sua vez, busca seu motivo no interesse. Este
deve estar respaldado no binômio utilidade e necessidade, pois o
interesse processual é condição genérica de ação. Surge, assim, o
principal efeito da sentença: a satisfação de interesses. A sentença
tem como objetivo a imposição da norma ao concreto, substituindo,
desta forma, tanto a vontade das partes nas ações de conhecimento,
quanto a sua própria atividade nas ações executivas. [...] O efeito
da sentença é, como dito, atuar na realidade, na relação material,
impondo a ordem jurídica de forma concreta na garantia dos bens
econômicos e morais.

Assim, entendemos a sentença condenatória como um ato performativo,


de um discurso de poder dotado de autoridade que pode modificar a realidade
dos sujeitos envolvidos no conflito da lide a ser julgada pelo magistrado.

109
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Em síntese, adotamos os seguintes procedimentos para o tratamento


dos dados:
1 — Nos excertos analisados, suprimimos alguns fragmentos da
descrição e narração dos atos libidinosos praticados pelo réu, como
também suprimimos as “expressões-tabus”. Marcamos tal procedi-
mento com colchetes e reticências [...] e
2 — Leitura, identificação e destaques de elementos linguísticos
com marcação cinza, bem como descrição e análise de fragmentos
textuais e marcas linguísticas, tendo em vista o núcleo metodoló-
gico-descritivo da pesquisa para fins dos aspectos da análise textual
enunciativa com foco nas diferentes vozes (enunciadores segundos)
presentes, tipos de PDV (PDV: representado, assertado e narrado
ou embrionário), posturas enunciativas e hierarquização das vozes
em favor da orientação argumentativa.

3. Análise dos dados

Excertos da SJCEV3
Fragmento 1 [SJCEV3PTR]
A denúncia foi recebida em 5 de dezembro de 2012, em face da observância
dos seus requisitos legais, ocasião em que foi determinada a citação do denun-
ciado (decisão de fl. 63).
Foi apresentada defesa prévia em favor do réu (fls. 86/89).
Após requerimento ministerial, foi decretada a prisão preventiva do réu, visando
à garantia da ordem pública e por conveniência da instrução criminal (fls. 114/117).
[...]
Foi realizada audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas
as testemunhas e declarantes arrolados pelo Ministério Público e Defesa, bem
como foi realizado interrogatório do réu, todos através de registro audiovisual
coletados em CD, que encontra-se na contra-capa dos autos (fls. 167/170). Na
mesma audiência, o Ministério Público apresentou suas alegações finais orais,
bem como foi concedido prazo à Defesa para apresentação das alegações finais
por escrito, através de memoriais (fl. 170).
O Representante do Ministério Público manteve integralmente os termos
da denúncia, requerendo a condenação do acusado como incurso nas sanções do
art. 217-A c/c art. 226, II, do Código Penal, em concurso material com o mesmo
crime do artigo 217-A c/c arts. 71 e 226, II, todos do Código Penal, em razão do
tempo da primeira conduta para as duas últimas ter sido superior a trinta dias.
A Defesa, por sua vez, pediu a absolvição do denunciado, alegando, em
suma, que não há provas suficientes para a condenação do acusado, invocando
o princípio do in dubio pro reo (fls. 172/182).
É o relatório. Passo a decidir.

O fragmento 1 da SJCEV3 está situado na parte do plano de texto


do relatório da sentença que discorre sobre a dialética do trâmite proces-

110
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

sual, expondo de forma sucinta o PDV da defesa e da acusação, bem como


apresentando o resumo dos incidentes processuais. Constatamos um
PDV narrado proferido por L1/E1 com base nos PDV representados e im-
putados aos contextos enunciativos processuais da denúncia, da legisla-
ção, da defesa e do requerimento ministerial.
A expressão “após requerimento ministerial” marca um distancia-
mento de L1/E1 em relação ao PDV imputado ao Ministério Público.
L1/E1 através dessa expressão atribui a responsabilidade ao Ministério
Público, relatando que a prisão preventiva foi baseada no pedido do par-
quet ministerial.
Destacamos ainda o PDV narrado de L1/E1 que conta os fatos pro-
cessuais a partir dos PDV relatados imputados aos seguintes enunciado-
res segundos: denúncia, defesa e Ministério Público.
A forma linguística “em face da observância dos requisitos legais” é
uma expressão indicadora do quadro mediativo que introduz um PDV re-
latado baseado na percepção de L1/E1 (“observância dos seus [...]”), bem
como salientando a fonte do saber epistêmica: “requisitos legais”. Tal ex-
pressão atesta ainda que o julgador examinou o processo e constatou que
os trâmites legais foram seguidos.
O exemplo em análise mostra ainda a lide processual. Vemos o con-
flito litigioso argumentativo, marcado pelo conector “por sua vez”.
Ainda em (1), constatamos o PDV imputado ao Ministério Público em
dissonância com o PDV atribuído à defesa do réu, conforme atestamos no
seguinte fragmento: “O Representante do Ministério Público manteve in-
tegralmente os termos da denúncia, requerendo a condenação do acusado
como incurso nas sanções do art. 217-A c/c art. 226, II, do Código Penal,
[...]. A Defesa, por sua vez, pediu a absolvição do denunciado, alegando, em
suma, que não há provas suficientes para a condenação do acusado, [...]”.

Fragmento 2 [SJCEV3PTF]
Neste contexto, inserem-se as declarações prestadas pelo denunciado em
seu interrogatório judicial, ou seja, suas versões dos fatos sub judice. É patente
a negativa de autoria apresentada pelo denunciado.
Contudo, a vítima, sua mãe e sua irmã sustentam, em seus depoimentos em
juízo (CD na contra-capa dos autos), de forma convincente, que o réu abusou sexual-
mente da vítima, tendo, inclusive, a genitora presenciado o fato delituoso em análise.
Tem-se, pois, mais narrativas que harmoniosamente retratam os fatos
sub judice, formando, até este momento, um todo coerente, indicativo de fortes
provas da autoria delitiva do réu.
Assim, ao final deste exame, o que se vislumbra é a afirmação da autoria
delitiva, uma vez que existem elementos seguros e direcionados para a confir-
mação de que o denunciado, de fato, perpetrou o delito capitulado no art. 217-
A, do Código Penal, tendo como vítima sua enteada.

111
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Ressaltamos que alguns trechos destacados em realce no excerto 21,


inicialmente, evidenciam marcas de impessoalidade no dizer, em prol da
neutralidade e anonimato. Quando L1/E1 enuncia que “inserem-se as de-
clarações prestadas pelo enunciado” e “tem-se”, acreditamos que tal ob-
jetividade é “ilusória” e “provisória” (BERNARDINO, 2015), mesmo que
o campo do discurso jurídico imponha condições de produção e forças re-
guladoras dos atos enunciativos de L1/E1 durante a produção do gênero
discursivo/textual sentença condenatória, “[...] exigindo a objetividade, o
não engajamento subjetivo” (BERNARDINO, 2015, p. 199).
Nessa direção, confirmamos, de acordo com Rabatel (2009) e Bernar-
dino (2015), que a situação de neutralidade, embora teoricamente possível,
não é duradoura, uma vez que “[..] o funcionamento da linguagem reverte
essa ‘ilusão’ e faz intervir, no fio textual/discursivo” (BERNARDINO, 2015,
p. 199), as marcas de posicionamentos subjetivos, conforme constatamos
quando L1/E1 se expressa por meio de verbo dicendi (sustenta) carregado
de valor apreciativo em relação ao conteúdo proposicional proferido e im-
putado aos e2 (vítima, mãe e irmã), bem como por meio de lexemas ava-
liativos, entre eles: “de forma convincente”, “harmoniosamente”, “um todo
coerente”, “indicativo forte”, “elementos seguros e direcionados”.
Como recurso linguístico estratégico, destacamos o uso do conector
“inclusive” para introduzir um forte argumento na orientação argumen-
tativa de L1/E1, pois adiciona a informação de uma testemunha ocular
que tem força argumentativa no discurso de L1/E1. Atestamos ser uma
escolha linguística eficaz para conferir peso na argumentação, pois acres-
centa argumento forte no sentido da conclusão defendida pelo juiz.
A análise desse recorte textual mostra que L1 /E1 exprime juízo de
valor, marcando linguisticamente a sua postura enunciativa de coenuncia-
ção em relação aos PDV narrados e imputados à vítima, à mãe, à tia, as-
sumindo a RE através do elemento modalizadores avaliativos supracitados.
Como outro recurso estratégico na argumentação, apontamos ainda
a presença dos conectores que imprimem e revelam a orientação argumen-
tativa de L1/E1. Vale ressaltar a expressão “neste contexto” que exerce
função de articulador textual-argumentativo, introduzindo o PDV impu-
tado ao réu. Vale considerar que, em seguida, no fio textual, L1/E1 coloca
em dissimetria argumentativa e postura de subenunciação o PDV do réu,
ou seja, em desacordo com o PDV imputado à vítima, à mãe e à irmã.
Cumpre mencionar que L1/E1 atesta sua refutação ao PDV do réu
por meio do operador argumentativo “contudo” que expressa relação se-
mântica de contraponto. Identificamos ainda os conectores “assim” e
“uma vez que” que direcionam à conclusão em prol da confirmação da au-
toria delitiva cometida pelo réu. Isso implica dizer que o gerenciamento

112
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

das vozes sob a influência de L1/E1 direciona o eixo argumentativo e que


o PDV de L1/E1 sofre influência dos pontos de vista dos demais enuncia-
dores segundos na organização do seu projeto de dizer argumentativa-
mente orientado.

Fragmento 3 [SJCEV3PTF]
Há nos autos laudo de exame de conjunção carnal (fls. 77/78), que não foi
capaz de detectar a ocorrência do ato sexual, uma vez que restou constatado o
hímen complacente da vítima, [...] sem romper-se. Logo, para que a materiali-
dade delitiva reste devidamente comprovada, recorrer-se-á à prova testemunhal
contida nos autos que, por sua vez, se prestará a evidenciar a conduta do de-
nunciado.[...]
A mãe da vítima afirmou, em juízo, que viu, pelo buraco [...], o réu abusando
sexualmente da vítima, estando os dois [...]. Revelou que o réu lhe ameaçou de
morte se fosse preso e que já sofreu agressões dele. Relatou que sua outra filha
também lhe contou ter sido abusada sexualmente pelo réu.
A irmã da vítima confirmou, em juízo, que a vítima foi abusada sexual-
mente pelo réu. Revelou que o réu também lhe abusou sexualmente, por várias
vezes, quando tinha treze anos, e que foi ameaçada de morte pelo réu para não
contar os fatos.
A testemunha de defesa se resumiu em falar da boa conduta do réu.

No trecho 3, observamos que o encadeamento simétrico dos PDV im-


putados aos e2 realizado por L1/E1, constitui a fundamentação da sen-
tença. Tal encadeamento é marcado pelo sincretismo de acordo entre os
PDV que exerce papel fundamental na construção textual do sentido da
orientação argumentativa defendida por L1/E1. Evidenciamos que, lin-
guisticamente, L1/E1 atua, de modo explícito, na construção do roteiro
do seu projeto textual enunciativo-argumentativo, mobilizando recursos
linguísticos que atuam na formulação e afirmação de seu ponto de vista.
Dessa maneira, constatamos que existe uma relação intrínseca entre a
construção linguístico-textual dos PDV, os PDV evocados e imputados a
e2 com a orientação argumentativa da sentença.
No fragmento, observamos expressões linguísticas representativas
do discurso indireto, entre elas: os verbos dicendi (“afirmou que”, “revelou
que”, “relatou que”, “confirmou que” e “resumiu que”). Tais expressões si-
nalizam o PDV do outro, bem como evidenciam o PDV afirmado de L1/E1
por coenunciação do PDV narrado imputado aos enunciadores segundos
(mãe da vítima, irmã da vítima e testemunhas de defesa).
Em 3, o acordo de L1/E1 em postura de coenunciaçao pode ser justi-
ficado pela seguinte asserção de L1/E1: “recorrer-se-á à prova testemunhal
contida nos autos que, por sua vez, se prestará a evidenciar a conduta do

113
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

denunciado [...]”. Esse trecho indica que os PDV que serão elencados por
L1/E1 estarão em sincronia, coconstruindo, reforçando e guiando a orien-
tação argumentativa em prol da condenação do réu, ou seja, para concluir
e evidenciar a comprovação da conduta delituosa do réu.
Destacamos que, nesse exemplo, identificamos o conector argumen-
tativo “por sua vez”, que expressa contraponto em relação ao PDV impu-
tado ao perito do exame de conjunção carnal, que não contribuiu para
evidenciar a confirmação do crime.
Constatamos que PDV representado de e2 imputado ao laudo do exame
é captado pelas expressões linguísticas de asserção (“há nos autos”, “não foi
capaz de detectar”, “restou constatado”, “recorrer-se-á” e “se prestará a evi-
denciar”) que indicam a percepção/pensamento sob ótica de L1/E1.
Portanto, consideramos que o PDV é um fenômeno dialógico. Então
podemos afirmar que, ao atuarem na construção e direcionamento da
orientação argumentativa, a argumentação é polifônica/dialógica. Desse
modo, ratificamos os postulados rabatelianos que a polifonia é argumen-
tativa, pois constatamos o sincretismo dos PDV no plano enunciativo-ar-
gumentativo e organização textual.

Fragmento 4 [SJCEV3PTF]
Por fim, há de se sobrelevar as próprias declarações da vítima, as quais
mostraram-se totalmente coerentes, tanto em sede inquisitorial, quanto em
juízo, as quais atestam não só a materialidade do crime, como também apontam
o acusado como o autor da conduta delituosa em relevo, senão vejamos trechos
do seu depoimento em juízo:

“quando eu voltei pra casa meu padrasto (réu) tentou me abusar;


(...) ele tentou; [...] tentando; (...) ele dizia que o que ele fazia não era
pra contar pra ninguém, senão ele matava eu, meu tio, que ele dizia
que era meu tio que fazia isso, minha irmã mais velha e minha
mãe; (...) perguntada quantos anos tinha na primeira vez que o réu
a abusou sexualmente, respondeu: tava com doze; (...) [...] (...) per-
guntada se foram quatro vezes que o réu a abusou, respondeu: é;
(...) até hoje ele diz que foi meu tio, ele é inocente; ele diz que o
culpado disso tudo é meu tio, só que meu tio é inocente, meu tio nem
lá foi; (...) ele dizia que o que ele dissesse era pra mim confirmar;”

Desse modo, em consonância com a jurisprudência pátria, é de suma impor-


tância os esclarecimentos dos fatos prestados pelas vítimas, senão vejamos:

“Em tema de crimes contra os costumes, que geralmente ocorrem às


escondidas, as declarações da vítima constituem prova de
grande importância, bastando, por si só, para alicerçar o de

114
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Fragmento 4 [SJCEV3PTF]
[continuação]
creto condenatório, mormente se tais declarações mostram-se plau-
síveis, coerentes e equilibradas, e com o apoio em indícios e circuns-
tâncias recolhidas no processo.” (TJSC — JCAT 76/639). (grifei)
[...]

É mister destacar que a pior das violências é aquela praticada pelo indivíduo
que goza de confiança da vítima e deveria protege-la. Sobre o assunto, a revista
Veja, de circulação nacional, trouxe uma matéria especial de capa, onde informa
o seguinte: "A família e a própria casa são a maior proteção que uma criança
pode ter contra os perigos do mundo. É nesse ninho de amor, atenção e resguardo
que ela ganha confiança para lançar-se sozinha, na idade adulta, à grande
aventura da vida. Mas nem todas as crianças com família e quatro paredes só-
lidas em seu redor são felizes. Em vez de contarem com o amor de adultos res-
ponsáveis, elas sofrem estupros e carícias obscenas. Em lugar do cuidado que a
sua fragilidade física e emocional requer, elas são confrontadas com surras e
violência psicológica para que fiquem caladas e continuem a ser violadas por
seus algozes impunes. No vasto cardápio de vilezas que um ser humano é capaz
de perpetrar contra um semelhante, o abuso sexual de meninas e meninos é dos
mais abjetos — em especial quando é cometido por familiares. Para nosso horror,
essa é uma situação mais comum do que a imaginação ousa conceber. Estima-
se que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes sejam vítimas
de abuso sexual. A esmagadora maioria deles, dentro de seus lares."
(grifei) (Edição nº 2.105, de 25/03/09, pág. 82)
A mesma reportagem da revista Veja menciona, às fls. 86, o depoimento
de uma adolescente da cidade de Vitória/ES, abusada pelo padrasto dos 9 aos
13 anos de idade, onde se verifica o estrago que a violência sexual é capaz de
fazer na alma de uma pessoa.
Nesse excerto [4 SJCEV3PTF], visualizarmos um encadeamento de
PDV imputados a e2 em postura de sobre-enunciação, em um plano argu-
mentativo hierarquizado, sob a gestão de L1/E1. Trata-se de uma postura
enunciativa com relações assimétricas postas na construção textual do
PDV, pois constatamos a sobre-enunciação do PDV da vítima, ratificada
por meio do PDV imputado à jurisprudência em favor da OrArg de L1/E1.
É possível depreendermos, no contexto linguístico, o PDV da vítima
subordinado ao PDV da jurisprudência, pois L1/E1 valora, no escopo do
livre convencimento jurídico, na tessitura linguística, o dito da vítima a
partir da validação e da credibilização da jurisprudência que emite juízo
de valor sobre a asserção da informação do relato da vítima (da voz da ví-
tima), tendo como fonte do conteúdo proposicional o Tribunal de Justiça. A
asserção e a assunção da responsabilidade enunciativa foram sinalizadas
por meio de recursos linguísticos indicadores de hierarquização de PDV
realizada por L1/E1. Tal mecanismo é relevante na construção textual-ar-
gumentativa da sentença, pois revela que o PDV de L1/E1 é afirmado,

115
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

coenunciado e coconstruído a partir dos PDV imputados aos enunciadores


segundos que ora podem estar em postura de sobre-enunciação ou de su-
benunciação na tessitura enunciativo-argumentativa.
A recorrência do movimento de imputação e posicionamento de acordo
revela um propósito argumentativo, pois verificamos que L1/E1 argumenta
evocando os enunciadores segundos em sincretismo com seu PDV, visando
dar autoridade, credibilidade e sustentação à argumentação, por isso hie-
rarquiza determinados enunciadores segundos em favor de sua OrArg.
Cumpre notar que através das expressões linguísticas visualizamos
o acordo de L1/E1 com os PDV imputados aos enunciadores segundos mo-
bilizados e imbricados, conforme evidenciamos por meio das marcas de
modalização “Há de sobrelevar”, “é de suma importância” e “é mister des-
tacar”. Também visualizamos o PDV afirmado de L1/E1 em relação ao
PDV narrado da vítima (e2), conforme ratificamos com a recorrência das
formas verbais de representação do pensamento e percepção de L1/E1:
“apontam”, “mostraram-se”, “atestam” e “vejamos”.
Desse modo, assinalamos que o locutor-enunciador primeiro assume
integralmente os PDV enunciados pelos e2 imputados à vítima, à juris-
prudência (Tribunal de Justiça) e ao discurso jornalístico da Veja. L1/E1
revela engajamento com o dito dos enunciadores segundos supracitados.
Assim, acreditamos que o PDV defendido por L1/E1 encontra-se sob a in-
fluência explícita dos enunciadores segundos com os quais coenuncia.
Neste caso, indica a relação do discurso de outrem (e2) como suporte ao
PDV afirmado de L1/E1. Em outras palavras, evidencia o sincretismo ar-
gumentativo entre os pontos de vista, assim como a construção dialógica
do PDV afirmado de L1/E1 que recebe influência dos PDV de enunciado-
res segundos em sintonia e simetria argumentativa. Tal influência indica
que o PDV afirmado é coenunciado e imbricado ao PDV de e2, já que os
enunciadores estão em postura enunciativa de coenunciação, dando cre-
dibilidade e enriquecendo a força persuasiva da orientação argumenta-
tiva de L1/E1. É nesse sentido que podemos ver que L1/E1 concorda com
o dito das informações relatadas por e2, evidenciando o seu engajamento
e a consistência de sua argumentação, utilizando as estratégias de impu-
tação para dar autoridade na sustentação do seu próprio dizer.
No exemplo (23), ainda observamos um desacordo explícito entre o
PDV da vítima e o PDV do réu, em defesa da inocência do tio (considerado
pela vítima inocente).
O fragmento em questão revela o PDV narrado da vítima, introduzido
por meio de trechos literais de seu depoimento e demarcados com marcas ti-
pográficas (itálico, aspas, dois pontos). Consta ainda, no recorte textual, que a
vítima apresenta e narra o PDV do réu de forma representada e sob sua ótica.

116
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Esse fragmento em análise é um exemplo também do modo como


L1/E1 se posiciona e justifica sua decisão, orientando argumentativa-
mente o texto, gerenciando e dirigindo a interpretação a partir do que de-
fende e julga ser verdadeiro, bem como dando credibilidade ao seu dito
em prol do efeito de sentido pretendido na arquitetura argumentativa.
Ressaltamos ainda que o julgador revela linguisticamente seus princípios
e posicionamentos ideológicos, morais e sociais, quando apresenta sua intui-
ção moral de que é mais grave a ofensa de um familiar de laço de sangue.

Fragmento 5 [SJCEV3PTF]
A avaliação psicológica da vítima foi conclusiva no sentido de que a
vítima foi abusada sexualmente pelo réu (fls. 161/163), senão vejamos
trechos da conclusão dos peritos:

"pode-se dizer que os dados levantados, principalmente os discursos


das vítimas, mostram-se com boa credibilidade, sugerindo que os
fatos possam ter ocorrido assim como foram descritos. Os dados de
observação clínica das periciadas, suas histórias e dados de testa-
gem compõem indicadores sugestivos de que as mesmas foram ví-
timas de violência física e sexual."

Desta forma, restam incontestes a autoria e materialidade do delito


objeto da denúncia.

No exemplo 5 [SJCEV3PTF], assinalamos a “representação do dis-


curso de outrem”, neste caso dos peritos que emitiram a avaliação psico-
lógica da vítima. O dito dos peritos foi introduzido pelo verbo “vejamos”,
sinal gráfico dois pontos (:), as aspas e o itálico. O conteúdo perceptivo do
PDV afirmado de L1/E1 foi imputado aos peritos. L1/E1 evoca o parecer
dos especialistas, mas compartilha, toma para si o dizer, assumindo tam-
bém a co-responsabilidade enunciativa pelo dito em sua orientação argu-
mentativa, marcada pelo operador argumentativo “Desta forma”. Através
desse recurso linguístico, o PDV dos peritos entra na construção argu-
mentativa sob a ótica de L1/E1.
L1/E1 direciona seu PDV subordinado ao PDV dos peritos, pois é a
avaliação psicológica que credibiliza e valida o conteúdo proposicional. O
PDV afirmado de L1/E1 é representado a partir do julgamento e apreen-
são perceptiva da informação com base no PDV dos especialistas da área
de psicologia (e2).
Cumpre dizer que L1/E1 cria sincretismo e simetria em relação ao
PDV de e2, ou seja, tanto o PDV de L1/E1 quanto o de e2 estão em con-
sonância na argumentação, porque L1/E1 partilha do PDV dos peritos,
marcando que chegou à conclusão de que ocorreu a materialidade do

117
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

delito, pois o parecer concluiu que a vítima foi abusada sexualmente.


Assim, L1/E1 assinala PDV imputado a um enunciador segundo (e2) que
atua como coenunciador na coconstrução da orientação argumentativa de
um PDV em comum. Desse modo, L1/E1 e e2 estão em postura de coe-
nunciação pela construção de um PDV que direciona a conclusão que o
réu será condenado, já que “restam incontestes a autoria e materialidade
do delito”, ou seja, não é possível contestar a veracidade. L1/E1 reforça
seu dito com base no parecer dos peritos.

Fragmento 6 [SJCEV3PTD]
III — DISPOSITIVO
Ante o exposto, julgo procedente a pretensão punitiva do Estado,
materializada na denúncia ofertada pelo Ministério Público, em face do
que CONDENO, nos termos do artigo 387 e seguintes do Código de
Processo Penal, o acusado XXXX., nos autos qualificado,como incurso
nas penas do artigo 217-A c/c arts. 71 e 226, II, todos do Código Penal.
É oportuno esclarecer que, ao contrário do Ministério Público, entendo
ter o réu cometido um só crime, sendo continuado, mesmo tendo a pri-
meira conduta acontecido mais de trinta dias antes das demais condutas,
eis que ocorreram todas da mesma forma, no mesmo local, da mesma
maneira de execução e outras semelhanças.

Esse trecho textual sinaliza a presença da primeira pessoa desinencial


do verbo julgar e condenar (“julgo” e “condeno”) em um fragmento textual
assertivo no presente do indicativo. Constatamos que L1/E1 assume a res-
ponsabilidade pelo enunciado, marca sua inserção, enquanto fonte do con-
teúdo proposicional, atestando sua decisão, respaldada pelos PDV atribuídos
aos enunciadores segundos que estão em postura de coenunciação.
Nesse fragmento, L1/E1 assume o ponto de vista do conteúdo proposi-
cional através da expressão “condeno”. Constatamos que a utilização de tal
marca linguística corrobora para assinalar a orientação argumentativa pre-
tendida pelo juiz (L1/E1). O exemplo evidencia ato de discurso ilocucionário
performativo do juiz, pois, consoante Rodrigues (2016, p. 137), “ele [...] ins-
taura, assim, uma nova realidade para o réu, uma vez que o condena à in-
terdição da liberdade”. Nessa direção, vale retomar as palavras de Bittar
(2015, p. 288), quando considera que o discurso decisório estrutura-se a par-
tir de uma diversidade de discursos de naturezas diferentes e experiências
humanas de sentido jurídico trazidos aos olhos da autoridade decisória por
meio da linguagem escrita e marcada pela valoração de posicionamento.
Além disso, corroborando com tal visão, vale ressaltar que o discurso
decisório, uma das espécies do discurso jurídico, é “[...] uma prática textual
de cunho performativo”, sendo “[...] capaz de modificar a situação jurídica

118
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

de um sujeito” (BITTAR, 2015, p. 289), ou seja, é “capaz de criar uma nova


realidade de linguagem dentro do universo jurídico e de exercer uma ação
jurídica” (Ibid., p. 289) (criando, modificando, extinguindo direitos etc.),
pelo fato de sua enunciação ter um poder discursivo de elocução que deriva
do discurso normativo cujos fundamentos são extraídos para sustentar o
dispositivo da decisão, por meio de uma linguagem “técnica, abstrata e ob-
jetiva” (BITTAR, 2015, p. 300). Portanto, o ato decisório (dispositivo) é um
ato performativo de linguagem que resulta de uma enunciação contextual
própria pela qual se manifesta a autoridade decisória do juiz.
Identificamos a fonte enunciativa do PDV L1/E1 (o jurista), que, logo
no início da seção do Dispositivo, anuncia o julgamento favorável à con-
denação do réu, fazendo isso por meio das formas verbais em primeira
pessoa “julgo” e “condeno”. Percebemos que L1/E1, o juiz, assume a res-
ponsabilidade pelo dizer e faz valer o poder que lhe é conferido institu-
cionalmente, enunciando atos performativos de linguagem.
No exemplo, observamos ainda a ocorrência de posicionamento de
acordo parcial entre L1/E1 e o PDV do Ministério Público, pois, inicial-
mente, L1/E1 coenuncia afirmando que seu julgamento se encontra am-
parado na denúncia ofertada pelo Ministério Público, como também no
Código Penal. Mas, em (25), posteriormente, vemos o fragmento textual
“É oportuno esclarecer que, ao contrário do Ministério Público, en-
tendo[...]”. Tal recorte revela um desacordo de L1/E1 com o PDV do Mi-
nistério Público, atestado pelas expressões “ao contrário” e “entendo”. A
expressão “ao contrário” marca linguisticamente o desacordo. Há uma
dissimetria na argumentação de L1/E1, ou seja, rejeita parcialmente o
PDV do MP na orientação argumentativa.
Nesse trecho, vemos as posições de L1/E1 materializadas no
texto/discurso, em que ele refuta PDV e defende os que lhe parecem ade-
quados, sendo isso em função de um argumento central assumido na sen-
tença em prol da condenação do réu.
Com isso, o juiz revela seu acordo com o PDV da instância Código
Penal, como também compartilha PDV de enunciadores segundos (Código
Penal e Ministério Público) e emite posicionamento de acordo parcial com
o PDV do Ministério Público. Assim, sinalizamos a ocorrência de coenun-
ciação, uma vez que o juiz concorda com o dito dessas instâncias e reforça
sua argumentação.
Nesse caso, constatamos também o mecanismo do mediativo
(GUENTCHÉVA, 2014) introduzido pela modalização em discurso se-
gundo, assinalada pela marca linguística: “como incurso no artigo [...] do
Código Penal”. Tendo em vista as marcas linguísticas destacadas, obser-
vamos, nesse recorte, que o juiz não é a fonte do PDV. Nesse fragmento,
há a presença da heterogeneidade marcada da linguagem e verificamos
a ocorrência da mediação epistêmica, quando observamos que a respon-

119
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

sabilidade enunciativa do conteúdo posto foi atribuída a outras fontes


(Código Penal). Neste ponto, percebemos e descrevemos, no fio textual,
as estratégias da heterogeneidade marcada, a negociação de L1/E1 com
o outro que, constitutivamente, perpassa o seu dito. L1/E1, no ato enun-
ciativo, marca linguisticamente dando indícios de posicionamento em
favor do direcionamento argumentativo no contexto de imputação a e2.
Constatamos que L1/E1 assume a responsabilidade pelo conteúdo pro-
posicional, bem como revela o seu acordo com as demais instâncias enun-
ciativas, fontes do dizer, entre elas, o Ministério Público e a legislação
(Código Penal) (e2). Ou seja, através de dispositivos enunciativos e/ou lin-
guísticos de acordo/coenunciação, bem como de sobre-enunciação no âmbito
do fenômeno da assunção da responsabilidade enunciativa, o juiz demarca
seu PDV e ancora sua decisão também nos ditos imputados à l2/e2 e e2
(enunciadores da narrativa e da denúncia), respaldando-se na norma jurí-
dica para sustentar seu dito institucionalmente, visando condenar.
Vimos que L1/E1 ancora o seu dito no discurso legal, pois se vale da
norma para validar seu discurso, como também assume a RE, ao mesmo
tempo em que se distancia de alguns l2/e2 e dos PDV imputados a eles, no
caso, as testemunhas de defesa do réu e da defesa.
Portanto, esse fragmento coloca em evidência a função argumentativa
do gerenciamento das vozes e dos posicionamentos enunciativos de L1/E1
frente ao dito de outrem, locutores/enunciadores segundos (l2/e2).
A seguir, reproduzimos as figuras que demonstram esquematicamente
como se processou a demonstração da manifestação do acordo por L1/E1,
bem como a hierarquização das vozes e a sincronia na organização textual-
enunciativa da sentença em análise, em favor da construção argumentativa.

Figura 1 — A hierarquização das vozes e o acordo na orientação


argumentativa da SJCEV3

VOZ DO JUIZ

VOZ DA LEGISLAÇÃO

(CP E LEI 8.072/90)


VOZ DA VÍTIMA

VOZ DA JURISPRUDÊNCIA

(TJ/SC/SP/RJ)
VOZ DO MINISTÉRIO PÚBLICO

+ VOZ DO INQUÉRITO POLICIAL


VOZ DO PARECER ESPECIALIZADO DA PSICÓLOGA

VOZ DA TESEMUNHA DE ACUSAÇÃO (MÃE/TESTEMUNHA OCULAR)

+ VOZ DA TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO (IRMÃ)


VOZ DA REVISTA VEJA

Fonte: Elaboração própria baseada nos dados da pesquisa

120
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

A seguir, a figura que construção do (des)acordo dos PDV na OrArg


da sentença, considerando o gerenciamento, sincronia e posicionamentos
enunciativo-argumentativos dos PDV.

Figura 2 — O gerenciamento e os posicionamentos entre as vozes na SJCEV3

ORARG = L1/E1 + E2 =
CONDENAÇÃO DO RÉU

Voz da vítima
Voz do MP + Inquérito Policial
Voz do Código Penal
Voz da Lei 8.072/90
Voz da jurisprudência (TJ/SC/SP)
Voz do parecer psicológico
Voz da testemunha de acusação (testemunha ocular/mãe)
Vozes das testemunhas de acusação (irmã)
Voz da Revista Veja
(e2/12)

Acordo parcial e2
entre L1/E1 e a +
voz do MP (e2) L1/E1
Desacordo Desacordo
entre entre
Voz do juiz
e2 L1/E1 e2
(Gerenciador dos PDV
de e2)

Desacordo en- Desacordo


tre L1/E! e entre
voz do reú e Acordo parcial L1/E!
exame de con-
com a voz das
junção carnal
não compro- testemunhas
vou (e2) de defesa (boa
conduta do Voz do advogado
Voz do réu réu) de defesa do réu

Acordo entre e2

Fonte: Elaboração própria baseada nos dados da pesquisa

Na figura ilustrada, constatamos o gerenciamento, o sincretismo po-


lifônico e os posicionamentos de acordo de L1/E1 frente aos conteúdos im-
putados aos enunciadores segundos no plano textual, enunciativo e
argumentativo da sentença analisada.
Assinalamos também a presença de vozes dissentes na tessitura da
construção do plano argumentativo, revelando os desacordos de L1/E1 no
que diz respeito ao direcionamento da argumentação em prol da conclusão
de sua tese.

121
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Verificamos que o juiz, que no plano enunciativo é L1/E1, exerce


papel de relevo máximo no contexto argumentativo processual, pois tem
o poder institucional de ser o gerenciador dos autos, bem como tem a fun-
ção de solucionar a lide e por meio de atos performativos de linguagem
tem o poder de transformar os estados do mundo externo, no caso, ga-
rante, na dialética processual, ser o réu condenado, preso, decretando a
prisão e lançando o nome do réu no rol de culpados.
Em linhas gerais, percebemos que as pistas textuais e os posiciona-
mentos enunciativos orientam o mapa e o percurso da arquitetura argu-
mentativa de L1/E1 o qual constrói os argumentos por meio de
estratégias linguísticas da construção textual do PDV destinadas à per-
suasão, utilizando mecanismos jurídicos, mas valorizando e fortalecendo,
no seu plano argumentativo, as vozes favoráveis à tese que defende no
plano de seu convencimento.
Assim, concebemos o gerenciamento dos PDV como uma produ-
tiva estratégia argumentativa, ou seja, um mecanismo linguístico de pro-
dução e tessitura do sujeito argumentante na sentença: o juiz, pois ele
evoca as vozes, os PDV, como argumentos que direcionam a sua conclusão,
isto é, transforma as vozes em argumentos.
Sobre o gerenciamento, trata-se de uma forma de L1/E1 defender sua
tese com um percurso argumentativo eficiente, pois as vozes selecionadas
e mobilizadas no seu projeto de dizer é o meio de fortalecer o raciocínio
jurídico-argumentativo. Portanto, acreditamos que o conhecimento sobre
as maneiras de tecer a textualidade, principalmente a coesão polifônica
orientada em favor da argumentação jurídica, é estratégia fundamental
para os operadores do Direito.
Pela figura 1, compreendemos que o juiz (L1/E1) gerencia os PDV e
cria uma sincronia no âmbito do sincretismo polifônico entre as vozes a
serviço da arquitetura argumentativa, direcionando o seu acordo que
emerge de uma coconstrução enunciativa de pontos de vista compartilha-
dos que ele adere e assimila, no processo de coenunciação com os demais
enunciadores em favor da condenação do réu.
A figura 2 ilustra o posicionamento enunciativo de L1/E1, o juiz, em
relação aos conteúdos proposicionais dos PDV de enunciadores segundos
(e2) mobilizados na tessitura textual e argumentativa, entre eles, a voz
da vítima, a voz do MP, a voz da jurisprudência, a voz da legislação, a voz
das psicólogas, parecer do exame de conjunção carnal, testemunhas etc.
Podemos considerar que, no campo do ordenamento jurídico, bem
como no âmbito do livre convencimento jurídico do juiz, L1/E1, em prol
da construção argumentativa para a condenação do réu, gerencia, evoca
e se ancora nas vozes elencadas para condenar o réu, conforme exposto
nas Figuras 1 e 2 e em nossas análises.

122
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

Consideramos que através do livre convencimento L1/E1, o juiz, mo-


biliza e hierarquiza o PDV, conforme a orientação argumentativa e a força
persuasiva do conteúdo proposicional dos PDV dos enunciadores segun-
dos, marcando tal direcionamento linguisticamente, principalmente por
meio de expressões modalizadoras apreciativas.
Desse modo, considerando o ordenamento do arcabouço jurídico, bem
como o livre convencimento do juiz no que tange à valoração, à apreciação
e à hierarquização das provas dos PDV imputados aos enunciadores se-
gundos em prol da OrArg de L1/E1, asseveramos que para os princípios
da legislação brasileira, não pode ter crime e nem pena sem previsão de
lei, isto é, a lei penal afirma que não há crime sem lei anterior que o de-
fina, por isso entendemos o Código penal e a Lei 8.072/90 como argumen-
tos relevantes na construção argumentativa, do mesmo modo que a
hierarquização da voz da vítima e da jurisprudência. Essas conclusões
são marcadas linguisticamente.
Verificamos ainda que L1/E1 mobiliza as vozes, na dialética proces-
sual, para direcionar a formação de seu convencimento e de sua defesa
de tese, apresentando seu convencimento, prolatando a condenação do
réu, enquanto julgador, mostrando que a conduta delituosa é reprovada
socialmente, visando assegurar através do dispositivo jurídico a digni-
dade da pessoa humana de crianças e adolescentes: a dignidade sexual.

Considerações finais
Os resultados da análise evidenciam que o gerenciamento das vozes
e a hierarquização dos PDV são mecanismos argumentativos marcados
na construção textual, ou seja, a seleção dos PDV imputados a e2 (enun-
ciadores segundos) realizada por L1/E1 (juiz) orienta a interpretação e a
construção argumentativa em favor da condenação do réu.
Observamos indícios da hierarquização de PDV em favor da orienta-
ção argumentativa. Assim, diagnosticamos, com base nas análises, um
conjunto significativo de diversas estratégias linguísticas que contribuem
para a construção dos PDV de L1/E1. A análise textual dos mecanismos
enunciativo-argumentativos revela um jogo dialógico de pontos de vista
de diversas instâncias enunciativas, ou seja, de diferentes PDV e que a
(não) assunção da responsabilidade enunciativa (a assunção, o engaja-
mento com o dito, (des)acordo ou o distanciamento do ponto de vista) são
estratégias linguístico-textuais fundamentais para a orientação argu-
mentativa do texto.
Em decorrência disso, podemos dizer que são mecanismos enuncia-
tivo-argumentativos em favor dos propósitos do jurista na decisão prola-

123
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

tada. Desse modo, notamos que as marcas linguísticas desempenham um


papel fundamental para a sinalização da orientação argumentativa es-
colhida por L1/E1.
Na análise, constatamos que os PDV entram na tessitura da arqui-
tetura argumentativa sob a ótica de L1/E1 que evocam os enunciadores
segundos (e2) para instaurar sua posição argumentativa, podendo, estra-
tegicamente, marcar ou não distanciamento em relação ao dito dos de-
mais enunciadores segundos. Desse modo, L1/E1 é o gerenciador do plano
textual enunciativo-argumentativo, o PDV principal e os PDV coenun-
ciados entram em consonância com sua orientação argumentativa.
Observamos que L1/E1, o juiz, dirige o gerenciamento da apresenta-
ção dos objetos de discurso, a seleção dos argumentos e das informações
e a hierarquização dos enunciadores em simetria ou em relações dissi-
métricas que entram em jogo na construção textual-enunciativa dos PDV
em prol das visadas argumentativas. Tais relações marcam o posiciona-
mento de L1/E1 (juiz) frente ao conteúdo proposicional mobilizado e im-
putado a e2 e são desencadeadas a partir das posturas enunciativas.
Constatamos que as marcas linguísticas expressam a materialidade
textual da RE, bem como evidenciam os diversos mecanismos enuncia-
tivo-argumentativos relacionados ao gerenciamento de PDV, aos tipos de
PDV, às posturas e aos posicionamentos enunciativos de L1/E1. Os resul-
tados obtidos sinalizam que há uma diversidade de estratégias para de-
marcar, no nível linguístico, a RE.
Portanto, a gestão de vozes realizada por L1/E1 desencadeia níveis
hierárquicos de posturas enunciativas, bem como as escolhas linguísticas,
no plano textual-enunciativo, configura-se, na dinâmica textual, como es-
tratégia argumentativa, motivada por um projeto de dizer voltado à per-
suasão e à produção de efeitos de sentido.
Ademais, consideramos que os resultados apresentados, em nossas
análises, nos convocam a refletir sobre a produção textual em contextos ju-
rídicos, especialmente nos cursos de graduação de Direito. Assim, acredi-
tamos que o conceito de responsabilidade enunciativa pode ser muito útil
ao professor, com foco no ensino de gêneros jurídicos, numa perspectiva
que ajude o aluno a dominar as diversas estratégias textuais/discursivas
necessárias para demarcar o diálogo com os discursos alheios — advindos
das variadas fontes do Direito — em prol da construção argumentativa no
texto jurídico, marcando seus posicionamentos a favor ou refutando teses
apresentadas nas lides, petições e contestações, entre outros.

124
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

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126
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

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127
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA
SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Alba Valéria Saboia Teixeira Lopes1 — UFRN

Introdução
Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa de mestrado
que teve como objetivo analisar como as representações discursivas da
vítima foram construídas a partir de pontos de vista de enunciadores dis-
tintos. Focalizada na dimensão semântica do texto, “[...] a noção de re-
presentação discursiva supõe que todo texto constrói, de forma mais ou
menos explícita, ‘imagens’ — i.e, representações — do seu enunciador ou
de seus enunciadores, do seu destinatário ou dos seus destinatários,
assim como dos temas tratados” (RODRIGUES; PASSEGGI; SILVA
NETO, 2014, p. 250). O estudo fundamenta-se no quadro teórico geral da
linguística textual e, mais especificamente, nos pressupostos da análise
textual dos discursos (ATD), teoria desenvolvida por Jean-Michel Adam
(2011). A análise é complementada com outras noções teóricas da linguís-
tica do texto vinculadas aos estudos do gênero e do discurso jurídico.
Em termos metodológicos, é uma pesquisa documental que se orienta
pelo método do raciocínio indutivo, apresentando um caráter qualitativo
e interpretativo. De modo a contribuir e evidenciar a construção da repre-
sentação discursiva da vítima no texto jurídico, nossas análises lançaram
mão de algumas categorias semânticas de análise da representação dis-
cursiva (Rd), entre elas, a referenciação (designações do referente), a mo-
dificação (dos referentes e das predicações) e a predicação (de ação, de
estado, de mudança de estado). Para a análise do corpus, selecionamos
uma sentença judicial coletada do portal de serviços do Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP) — Poder Judiciário, em Consulta de Julgados de 1°
Grau2, com a temática da violência contra a mulher.
O texto está dividido em três seções: na primeira, apresentamos na
fundamentação teórica, a análise textual dos discursos (ATD), e a repre-
sentação discursiva; na segunda, apresentamos a análise do corpus, a dis-
cussão dos resultados e, por fim, tecemos algumas considerações.

1
Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN.
2
Site disponível — www.esaj.tjsp.jus.br/cjpg/

129
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

1. A ATD e a representação discursiva


A Análise Textual dos Discursos (ATD), elaborada pelo linguista fran-
cês Jean Michel-Adam (2011), constitui-se em uma abordagem teórica e
descritiva no campo da linguística textual, com o objetivo de pensar o texto
e o discurso em novas categorias. (Cf. RODRIGUES et al., 2010, p. 152). É
nesse contexto que o autor, visando uma aproximação entre texto e dis-
curso, por considerá-los elementos necessários e complementares da ativi-
dade enunciativa, propõe uma nova teoria “desvencilhada da gramática de
texto e uma análise de discurso emancipada da análise de discurso francesa
(ADF)”. Desse modo, considerada como um subdomínio da linguística tex-
tual, a ATD propõe “[...] uma definição da textualidade como conjunto de
operações que levam o sujeito a considerar, na produção e/ou na leitura/au-
dição, que uma sucessão de enunciados forma um todo significante” (Cf.
ADAM, 2011, p. 25). Trata-se de uma proposta teórica que postula, “[...] ao
mesmo tempo, uma separação e uma complementaridade das tarefas e dos
objetos da linguística textual e da análise de discurso” (Ibid., p. 43). Dentro
dessa perspectiva, Adam (2011) representa, na figura a seguir, como se dis-
tribuem os fenômenos linguísticos, objetos de análise da LT e da AD.

Figura 1 — Esquema 3: Determinações textuais “ascendentes”


e “descendentes”

Análise dos discursos

DESCONTINUIDADE
OPERAÇÕES DE SEGMENTAÇÃO

GÊNEROS & Períodos


LÍNGUA(S) em Plano Palavras
INTER- PERITEXTO e/ou Proposições
uma de texto
DISCURSO sequências
INTERAÇÃO

OPERAÇÕES DE LIGAÇÃO
Formações CONTINUIDADE
sociodiscur-
sivas LINGUÍSTICA TEXTUAL

Fonte: Adam (2011, p. 43)

Segundo o autor, o esquema configura os elementos linguístico-dis-


cursivos. De um lado, estão os encadeamentos de proposições que consti-
tuem o texto (regulações ascendentes) e, de outro, os elementos
responsáveis por situar o texto no contexto das formações sociodiscursi-
vas, ou seja, “[...] nos lugares sociais, nas línguas e nos gêneros [...]” (Ibid.,

130
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

p. 44). A ATD é, portanto, o resultado da ligação entre os dois planos, des-


crita como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido [...]” (Cf.
ADAM, 2011). Dessa forma, a análise textual dos discursos “pretende res-
ponder à demanda de propostas concretas para a análise de textos [...]”
(Ibid., p. 25). Assim, a ATD pressupõe a análise e a reflexão da materia-
lidade textual, levando em conta os aspectos sociais e culturais em que
um texto é construído e adquire sentido.
Nesse sentido, Adam (2011) explica que “todo texto é uma proposição
de mundo que solicita do interpretante uma atividade [...] de (re) cons-
trução dessa proposição de (pequeno) mundo ou Rd”. (Ibid., p. 114). A par-
tir desse movimento recíproco, o leitor é convidado a construir e
(re)construir um trabalho interpretativo e coerente que permite as inter-
ligações das unidades textuais. Para o autor, a construção das represen-
tações discursivas só é possível quando o falante ativa, nesse processo,
seu conhecimento de mundo, bem como suas competências cognitivas.
Em conformidade com o autor, Dubois e Mondada (2003, p. 17) explicam
que a construção ou a representação dos objetos de discurso pelo sujeito
é uma atividade marcada pela “instabilidade constitutiva e observável
através de operações cognitivas ancoradas nas práticas, nas atividades
verbais e não-verbais, nas negociações dentro da interação”. Portanto, so-
mente a partir da comunhão desses elementos, o indivíduo é capaz de
construir uma representação que leva em conta também a expressão do
seu ponto de vista.
Segundo Passeggi et al. (2010), a Rd, além de expressar um PdV, é
responsável também pela construção das imagens do locutor, do auditório
e dos participantes no texto. Nesse sentido, para a construção ou (re)cons-
trução dos objetos do mundo ou objetos de discurso o interpretante/ana-
lista deve ter como suporte as categorias semânticas para a análise dos
textos. Assim, Adam (2011, p. 110) define “todo ato de referência como
uma construção operada no e pelo discurso de um locutor e como uma
(re)construção por um interpretante”, processo que se encontra resumido
no esquema da página seguinte.
De acordo com o autor, essas três dimensões encontram-se articula-
das e em sintonia, o que significa dizer que não existe um enunciado iso-
lado ou independente do outro. Dessa forma,

toda representação discursiva [Rd] é a expressão de um ponto de


vista [PdV] (relação [A] — [B]) e que o valor ilocucionário derivado
da orientação argumentativa é inseparável do vínculo entre o sen-
tido de um enunciado e uma atividade enunciativa significante (re-
lação [C1]-[B]). Enfim, o valor descritivo de um enunciado [A] só
assume sentido na relação com o valor argumentativo desse enun-

131
ciado [C1]. O sentido de um enunciado (o dito) é inseparável de um
dizer, isto é, de uma atividade enunciativa significante que o texto
convida a (re)construir. (ADAM, 2011, p. 113).

Figura 2 — Esquema 10: Responsabilidade enunciativa

Responsabilidade enunciativa
da proposição
Ponto de vista [PdV]
B (N7)

Ligação com um
cotexto anterior Ligação com um
(dito ou implí- cotexto posterior
cito) ou um in- (dito ou implí-
Proposição-
tertexto cito)
-enunciado
(N4-N5) (N5-N4)

A (N6) C (N8)
Referência como represen- Valor ilocucionário [F-C2]
tação discursiva [Rd] cons- resulktante das potenciali-
truída pelo conteúdo propo- dades argumentativas dos
sicional [p] enunciados [OR-arg-C1]

Fonte: Adam (2011, p. 111)

Esse processo de construção somente é possível quando se estabelece


uma relação entre os dados linguísticos expressos no texto e as informa-
ções, os conhecimentos prévios que o produtor ou o leitor traz para o con-
texto. Nesse aspecto, convém destacar ainda que para a ATD o contexto
assume um papel fundamental na atividade interpretativa. De acordo
com Maingueneau (2002), o contexto não é um dado preestabelecido e es-
tável, mas é construído, reformulado, transformado, a partir das relações
sociais, culturais e históricas em que um texto é produzido.
Na seção seguinte, pretendemos exemplificar, através da análise rea-
lizada na amostra, como as categorias semânticas da Rd, a referenciação,
a modificação e a predicação, colaboram e evidenciam a construção da re-
presentação discursiva da vítima no gênero sentença judicial. A constru-
ção dessa representação será focalizada sob o ponto de vista de
enunciadores distintos que no texto sinalizaremos como E1 (enunciador
1) que representa o PdV do juiz e E2 (enunciador 2) representado pelo
PdV do réu.

132
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Para este momento e, de acordo com nossos objetivos, selecionamos


no texto expressões que contribuíram, de modo mais específico, para a
construção das representações da vítima no texto em estudo. É relevante
esclarecer que, para a análise dos enunciados, este item e os seguintes,
foram agrupados em blocos de acordo com suas proximidades semânticas.
A estratégia dessa organicidade auxilia o interpretante/analista, o que
torna o texto um produto analisável.

2. Análise do corpus
Nesta seção pretendemos exemplificar, através da investigação rea-
lizada na amostra, como as categorias de análise da Rd, a saber, a refe-
renciação, a modificação e a predicação, colaboram na construção da
representação discursiva da vítima no gênero sentença judicial. Conforme
salientamos, essa construção foi feita a partir de duas perspectivas ou
pontos de vista de enunciadores distintos.

2.1. A representação discursiva da “vítima” sob o PdV


do enunciador 1(E1) juiz
a) “assustada”, “aflita”, “alarmada”, “constrangida”, “acuada”, “indignada”

Quadro 1 — Representação discursiva da vítima sob o PdV do E1


Modif. do Refe-
N N . Exemplo
rente “vítima”
(E’1) “A vítima, assustada, pediu para que o acu-
01 “assustada”
sado abrisse a porta, [...].”
(E’2) “[...] a vítima apresentou-se um tanto aflita
02 “aflita”
ao depor, o que fez na ausência do acusado.”
(E’3) “[...] Ficou mais alarmada, quando sentiu que
03 “alarmada”
ele desceu as mãos.”
(E’5) “Ficou bastante constrangida com toda aquela
04 “constrangida”
situação, [...]”
(E6’) “[...] a vítima, encontrando-se à sós com o acu-
05 “acuada”
sado, viu-se por ele acuada.
(E7’) “A vítima se mostrava indignada e dizia ter
06 “indignada”
tido problemas com o padre da Vila Maria [...].”

A representação discursiva de “vítima” sob o PdV do E1 foi construída


a partir de alguns modificadores que desempenharam, nos enunciados,

133
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

função atributiva e qualificadora. Esses operadores contribuem para a


construção de sentido do referente e permite ao leitor visualizar a imagem
do objeto que o enunciador quer evidenciar.
Nesse sentido, observamos que os adjetivos selecionados pelo E1
mantêm uma estreita relação de contiguidade semântica, ou seja, os ter-
mos, “assustada” > “aflita” > “acuada” > “indignada” descrevem o estado
emocional da vítima, além de ajudar na construção do cenário/espaço no
qual ela está inserida. Nos enunciados (E’2), “um tanto aflita”, (E’3) “mais
alarmada” e (E’5) “bastante constrangida”, foram utilizados operadores
discursivos intensificadores que interferem e modificam as propriedades
dos adjetivos predicados “aflita”, “alarmada” e “constrangida”, objeti-
vando ressaltar essas características no objeto.

b) “firmeza”, “sinceridade”, “convincente”


Quadro 2 — Representação discursiva da vítima sob o PdV do E1
Modif. do Refe-
N N . Exemplos
rente “vítima”
(E’9) “É o que ocorre nos autos, onde se evidencia a fir- “firmeza” e
01
meza e sinceridade de relato feito pela vítima [...]” sinceridade”
(E’10) “[...] descreveu os fatos de forma convin-
02 “convincente”
cente, apontando o acusado como autor do delito.”

O objeto “vítima” é redesignado pelos termos “relato” e “fatos”, a par-


tir de um processo associativo que passa a fazer parte constitutiva do re-
ferente, contribuindo para a construção de sua imagem. Assim, por
analogia, são atribuídas à imagem da “vítima” as expressões “firme”, “sin-
cera” e “convincente”, traçando um novo perfil para o sujeito, ou seja, o
de ser uma pessoa autêntica e verdadeira, referindo-se à lisura de seus
atos. Os modificadores empregados adquirem função qualitativa e asse-
verativa, atribuindo um sentido de valor a cada termo.

c) “firme”, “segura”, “coesa”, “coerente”, “verossímil”


Quadro 3 — Representação discursiva da vítima sob o PdV do E1

N N . Exemplos Modif. do Refe-


(E’15) “Em crimes de natureza sexual, rotineiramente
praticado às escondidas, presentes apenas os agentes “firme”
ativo e passivo da infração, a palavra da vítima as- “segura”
01 sume preponderante importância, por ser a principal, “coesa”
senão a única prova de que se dispõe. Quando firme, “coerente”
segura, coesa, coerente e verossímil, deve prevalecer “verossímil”
sobre a inadmissão de responsabilidade do réu.”

134
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Os termos “firme”, “segura”, “coesa”, “coerente” e “verossímil”, rela-


cionados à expressão “palavra da vítima” ligam-se ao referente vítima
por analogia. Nesse sentido, o objeto de discurso recebe como seus modi-
ficadores, adjetivos modalizadores asseverativos. Dessa forma, ao anali-
sarmos cada modificador separadamente, observamos que existe uma
relação de gradação entre os elementos, “firme” > “segura” > “coesa” >
“coerente” > “verossímil”. São expressões qualificadoras que tem como ob-
jetivo agregar valor ao referente e reforçar o PdV do enunciador. Essa es-
tratégia, além de incorporar ao objeto de discurso traços valorativos,
intenciona induzir o leitor sobre a veracidade imputada ao enunciado.

d) "solteira", "casada", "viúva", "uma vestal inatacável", "meretriz de


baixa formação moral", "senhora do seu corpo", "pessoa de comporta-
mento duvidoso"

Quadro 4 — Representação discursiva da vítima sob o PdV do E1

Modif. do ref.
N. Exemplo
"vítima"
“solteira”“casada”“v
(E'14) “Não importa seja a vítima solteira, casada iúva”“uma vestal
01 ou viúva, umavestal inatacável ou uma meretriz de inatacável”“uma
baixa formação moral.” meretriz de baixa
formação moral”
(E'14) “Em qualquer hipótese, é ela senhora de seu
“senhora de seu
02 corpo e só se entregará livremente, como, quando,
corpo”
onde e a quem for de seu agrado.”
(E'14) “Protege-se a liberdade sexual da mulher,
sem nenhuma distinção ou exigência, não colhendo “pessoa de compor-
03
a tentativa de se demonstrar ser a vítima pessoa tamento duvidoso”
de comportamento duvidoso.”

Em (E’14), os modificadores do referente, “solteira”, “casada” ou


“viúva” apresentam função predicativa, distribuindo-se gradativamente
no enunciado, sinalizando, de acordo com o contexto, para uma condição
social do referente. Em seguida, o enunciador utiliza o termo “uma vestal
inatacável” que, semanticamente, tomado em conjunto com as expressões
anteriores, incide sobre o objeto de discurso um sentido respeitoso, apre-
ciativo, reforçando a representação discursiva da vítima, uma vez que
está situado no campo da construção de uma imagem positiva dessa fi-
gura. No entanto, observamos que o enunciado se encerra com uma ex-
pressão depreciativa e negativa, “uma meretriz de baixa formação moral”.
O jogo das expressões antagônicas é utilizado intencionalmente pelo

135
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

enunciador para reforçar o sentido de "vítima" que, de acordo com o con-


texto, não deve ser construído a partir de fatores sociais, pessoais ou mo-
rais, mas das situações ou fatores externos à sua vontade, que podem
torná-la uma vítima.
A expressão “senhora de seu corpo” explicita um valor de posse, de
domínio atribuído ao referente, a qual, inserida no contexto, ressalta uma
avaliação pessoal do enunciador, conforme orientação argumentativa que
ele pretende imprimir em seu texto, ou seja, “[...] é ela senhora de seu
corpo e só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem for de
seu agrado”. A expressão “pessoa de comportamento duvidoso” recupera
as informações constantes no parágrafo anterior e fecha um ciclo de sig-
nificações sobre a construção da imagem do objeto, ou seja, a vítima >
“solteira” > “casada” > “viúva” > “uma vestal inatacável” > “uma meretriz
de baixa formação moral” > “uma pessoa de comportamento duvidoso” é
ela > “senhora do seu corpo”.
Sobre a cadeia referencial construída, vejamos o quadro 5, que segue.

Quadro 5 — cadeia referencial


“solteira”
"casada"
Estado
"viúva"
"ofendida"
"firme"
"segura"
"vítima" "coesa" Atitudes
"coerente" positivas
"verossímil"
"uma vestal inatacável"
"uma meretriz de baixa formação moral"
Atitudes
"pessoa de comportamento duvidoso
negativas
"senhora de seu corpo"} Ind. Poss

2.2. A representação discursiva da “vítima” sob o PdV


do E2 ("réu")
Neste subtópico, a representação discursiva da vítima é apresentada
a partir de outro PdV, ou seja, conforme o olhar de um segundo enunciador
[E2], que no texto é caracterizado pela figura do réu. O quadro 5 apresenta
a construção dessa representação nos enunciados que seguem. Anterior à
análise, é oportuno ressaltar que fragmentamos didaticamente o enunciado
(E’14) em três partes sucessivas para sua melhor descrição e compreensão.
a) "promíscua", "frequentava baladas", "não cuidava do filho"

136
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Quadro 6 — Representação discursiva da vítima sob o PdV do E2


N. Exemplo Modif. do ref. “vítima”
01 (E'14) “M” era promíscua [...]”. “promíscua”
02 (E'14) “[...] frequentava baladas [...]”. “frequentava baladas”
03 (E'14) “[...] e não cuidava do filho”. “não cuidava do filho”

Observamos que no (E’14) o enunciador retematiza o objeto de dis-


curso “vítima”, utilizando a designação “M.”3 e o pronome pessoal "ela".
Essa estratégia é um recurso intencional do enunciador que, ao realizar
a mudança de um lexema para outro, muda também a estrutura semân-
tica do referente que anteriormente havia sido construída, ou seja, apaga-
se a figura da “vítima” e agora se evidencia outro objeto de discurso que
não se confunde com o anteriormente analisado. Notamos que, ao utilizar
essa estratégia linguística, o enunciador cria um distanciamento entre
os dois referentes tornando-os objetos opostos semanticamente.
Em (E’14), a expressão “promíscua” apresenta-se como um modificador
com função aspectualizante. Nesse contexto, o termo selecionado insere no
referente um atributo que produz um efeito de sentido negativo e deprecia-
tivo. As expressões “frequentava baladas” e “não cuidava do filho”, com base
nos verbos “frequentava” e “cuidava”, formam um bloco de significações que
são construídas em decorrência das ações verbais do referente. O verbo “cui-
dava” vem antecedido do advérbio de negação “não” intensificando de forma
negativa as ações do referente. Assim, é possível inferir, levando-se em conta
as atitudes de “M.”, que ela pode ser caracterizada como uma mãe relapsa
e negligente em relação aos cuidados e educação de seu filho. Os elementos
utilizados como modificadores do referente tiveram como função, além da
construção negativa da imagem do objeto referenciado, apresentar ao in-
terpretante o contexto situacional no qual o objeto está inserido, ou seja,
“M.” é promíscua > frequentava baladas > não cuidava do filho.

b) "carregada", "possessão"

Quadro 7 — Representação discursiva da vítima o PdV do E2


Modif. do ref.
N. Exemplo
"vítima"
(E'11) “[...] ela estava muito carregada, bem como para
01 “carregada”
que não acreditasse em tudo que ela viesse a falar.”
(E'19) “Sentiu que ela tinha uma possessão e o corpo
02 “possessão”
dela balançou”.

3
De acordo com os procedimentos metodológicos, “M” é a codificação do nome da vítima.

137
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Em (E’11), o elemento “carregada”, particípio com valor de adjetivo,


recebeu como modificador o advérbio “muito”, que gramaticalmente fun-
ciona como intensificador do adjetivo, alterando, assim, suas proprieda-
des semânticas. A expressão “carregada” foi utilizada no texto no sentido
conotativo. A metáfora utilizada para o termo impõe e requer do inter-
pretante a ativação de seu conhecimento de mundo e cultural, ou seja, o
contexto no qual a expressão está inserida remete a um termo bastante
utilizado pelas religiões/seitas, significando “aquele que possui sobre si
espíritos malignos” (Cf. Wikipédia)4. A expressão é complementada com
o termo (E’19) “possessão”, que significa, de acordo com o contexto, “al-
guém que está sob o efeito de forças sobre-humanas, sob o domínio do
mal” (Cf. Dicionário Aurélio)5.
A relação paradigmática construída a partir do PdV do segundo
enunciador para representar discursivamente o objeto “vítima”, aqui re-
tematizado pelo elemento “M.” e pelo pronome “ela”, baseou-se em dois
aspectos distintos e ao mesmo tempo equivalentes. Nesse sentido, a re-
presentação discursiva do referente é evidenciada pela atitude “promís-
cua”, seu estado, “muito carregada”, “possessão” e por suas ações,
“frequentava baladas”, “não cuidava do filho”. Dessa forma, a cadeia re-
ferencial construída é descrita no quadro 8, que segue.

Quadro 8 — Cadeia referencial


"promíscua" Atitude

"M" "muito carregada"


Estado
"possessão"

"frequentava baladas"
"ela" Ações
"não cuidava do filho"

Portanto, a escolha dos elementos destacados pelo enunciador con-


tribuiu para a caracterização da imagem negativa do objeto e, intencio-
nalmente, objetivou desqualificar e lançar dúvidas sobre a figura da
vítima construída no contexto anterior.

4
WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em:
08 jun. 2014
5
Dicionário do Aurélio, disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. Acesso em:
07 jun. 2014.

138
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA

Considerações finais
Em nosso trabalho, buscamos analisar as representações discursivas
da vítima construídas na sentença judicial a partir dos pontos de vista
de enunciadores distintos. Para auxiliar nossas análises, lançamos mão
de três categorias semânticas da Rd, a referenciação, a predicação e seus
modificadores.
A polifonia ou os diferentes PdV presentes no texto apontam para
sentidos distintos do termo “vítima”, que podem aproximar-se ou distan-
ciar-se de acordo com a orientação argumentativa do texto. A análise de-
monstrou que o processo de construção de uma imagem é complexa e
depende das escolhas feitas pelo locutor/enunciador e dos objetivos que
se quer alcançar com seu texto. Nesse sentido, observamos que a repre-
sentação de uma pessoa é muito mais evidente em alguns de seus aspec-
tos, saberes, intenções e valores que essa figura traduz.
Diante da importância social do texto forense e, em especial, da sen-
tença judicial na vida dos cidadãos, percebemos a relevância em desen-
volver pesquisas que abordem o estudo da dimensão semântica do texto,
principalmente na construção das representações dos objetos de discurso,
pois esses elementos são essenciais no processo argumentativo. Acredi-
tamos que nossas reflexões contribuirão para o desenvolvimento de novas
pesquisas na área da ATD e, notadamente, nos textos de caráter jurídico.

Referências
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discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
DUBOIS, Danièle & MONDADA, Lorenza. Construção dos objetos de discurso e
categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CA-
VALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES, Bernadete Biasi;
CIULLA, Alena (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003, p.
17-52.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução
Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002.
PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da pro-
dução co(n)textual dos sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q.
(Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama
das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p.262-312.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João
Gomes. Planos de texto e representações discursivas: a seção de abertura

139
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

em processos-crime. In: BASTOS, Neusa Barbosa. Língua portuguesa


e lusofonia. São Paulo: EDUC, 2014. p. 240-255.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João
Gomes. “Voltarei. O povo me absolverá...”: a construção de um discurso
político de renúncia. In: (Orgs.). ______. Análises textuais e discur-
sivas: metodologias e aplicações. São Paulo: Cortez, 2010. p. 150-195.

140
A ARGUMENTAÇÃO
NO DISCURSO JURÍDICO
Maria de Fátima Silva dos Santos — UFRPE/UAST

Introdução
Este texto é um recorte de uma pesquisa sobre as representações dis-
cursivas de vítima e agressor em textos de inquéritos policiais. A repre-
sentação discursiva é responsável pela união, descrição e caracterização
de elementos imprescindíveis no constructo textual, quais sejam, o locu-
tor/enunciador, o interlocutor/ouvinte-leitor e os temas abordados, num
contexto concreto de uso da linguagem. (cf. ADAM, 2011). Seguindo prin-
cípios da pesquisa documental, de base qualitativa, o corpus foi consti-
tuído por um conjunto de textos de nove inquéritos policiais relacionados
a crimes de violência praticados contra a mulher. Nossa hipótese é que
as escolhas linguísticas utilizadas para construir uma determinada ima-
gem, no caso, a imagem de vítima, são feitas em função de um determi-
nado propósito argumentativo, de acordo com as intenções do enunciador
(sua visada discursiva) — defender(-se) e/ou acusar, incriminar.
Como os textos que compõem o corpus pertencem à esfera jurídica,
apresentamos, neste capítulo, uma abordagem, ainda que sumária, sobre
a argumentação no campo jurídico, com uma discussão sobre a racionali-
dade do discurso jurídico e os argumentos que o compõem. Para tanto,
subsidiamos a discussão em autores como Damele (2014), Grácio (1993),
Perelman (1996) e Toledo (2005). Na sequência, apresentamos alguns ex-
certos com resultados da análise das representações discursivas de vítima
em uma amostragem de textos de inquérito policial.

1. A argumentação no discurso jurídico


O analista [...] é responsável por atualizar a ar-
madura em que se sustenta a argumentação, o es-
queleto escondido sob a carne das palavras.
(AMOSSY, 2011b, p. 132).

A argumentação é parte constitutiva do funcionamento discursivo.


Como ser dotado de razão e de vontade, o homem, constantemente, forma
juízos de valor, avalia, critica, julga. Do mesmo modo, através do discurso,
tenta influenciar o comportamento do outro a fim de compartilhar deter-

141
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

minadas opiniões. É por essa razão que se pode afirmar que “[...] o ato
de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determina-
das conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e
qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do
termo” (KOCH, 2011, p. 17, grifos da autora).
Nesse sentido, o discurso constitui uma unidade pragmática, ativi-
dade capaz de produzir efeitos e reações. Isso significa que ao produzir um
discurso, o sujeito se apropria da língua não apenas com a finalidade de
veicular mensagem ou de transmitir informações, mas, principalmente,
com a intenção de influenciar as ideias, opiniões, enfim, atuar sobre o
outro. Logo, o homem se apropria da linguagem para interagir social-
mente, “[...] instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como
interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU, por
meio do jogo de representações e de imagens recíprocas que entre eles se
estabelecem” (KOCH, 2011, p. 19). Nessa perspectiva, delineia-se uma
concepção mais ampla do termo argumentação, no sentido de modificar,
de reorientar, ou simplesmente, de reforçar, por meio da linguagem, a re-
presentação das coisas, dos diferentes modos de ver, de sentir.
O estudo da argumentação jurídica relaciona-se diretamente com a
teoria do discurso. Tem por finalidade questionar e demonstrar a possi-
bilidade e a validade de uma fundamentação racional do discurso jurídico,
estipulando-lhe algumas regras e formas. Para Perelman (1996), o dis-
curso jurídico se apresenta como uma argumentação regulamentada,
cujos aspectos podem variar conforme as épocas, os sistemas de direito e
as áreas de aplicação.
Uma questão de primacial relevância para a cientificidade do Direito é
a possibilidade de justificação racional do discurso jurídico, a qual é, de
acordo com Toledo (2005, p. 48), “[...] imprescindível para a solidez de um
Estado Democrático de Direito”. Para a autora, caracterizam-se como con-
sensos racionais (e, dentro deles, o jurídico), apenas aqueles passíveis de uma
justificação discursiva, segundo regras de argumentação. Por esse motivo,

[...] as decisões tanto políticas quanto jurídicas nesse tipo de Estado


expressam o acordo que melhor satisfaz racionalmente os interesses
dos participantes do discurso, com a formação comum do juízo me-
diante a ponderação daqueles interesses expressos em argumentos,
respeitando-se a autonomia do Outro. (TOLEDO, 2005, p. 48, grifos
da autora).

De acordo com Toledo (2005, p. 48), “A racionalidade que, nas ciências


da natureza, apresenta-se sob a forma da verdade de suas proposições, é,
no Direito, como ciência normativa, evidenciada pela correção de suas as-

142
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

sertivas”. A autora salienta, ainda, que esta correção deve estar presente
“[...] tanto na teoria quanto na prática jurídica, pois ambas, para ultrapas-
sarem o âmbito da mera doxa, carecem de demonstração racional de suas
afirmações”. Com isso, entendemos que as decisões jurídicas não podem ser
puramente arbitrárias, antes exigem razões ou motivos que as justifiquem,
as tornem razoáveis ou lhes confiram, pelo menos, uma certa razoabilidade.
A esse respeito, Grácio (1993) esclarece que a necessidade de justifi-
cação racional não implica uma tarefa de fundamentação última nem o
estabelecimento de, ou o recurso a, critérios incontestáveis e infalíveis
que garantam, definitivamente, a sua validade. Para o autor, a raciona-
lidade do empreendimento justificativo refere-se à forma como se articula,
sem rupturas absolutas com o pré-existente, o tradicional e o novo, à ma-
neira pela qual se consegue assegurar uma continuidade entre o passado
ou o atualmente estabelecido e aquilo que pretende estabelecer-se.

Por isso, a perspectiva perelmaniana duma racionalidade que rejeita


a seriedade de uma dúvida universal, a oposição da razão e da von-
tade ou a nítida separação destas duas faculdades, tende a sublinhar
que se o dado constitui um elemento do qual é impossível prescindir,
isso não é, contudo, impeditivo — é, pelo contrário, solidário — de
uma atitude pluralista que permite, dentro do razoável, configura-
ções interpretativas e contextualizações de sentido diversas. Pois
que, a não ser que nos guiemos pelo critério da evidência, nada é
pura, simplesmente e sem mais, dado de tal forma que a avaliação
dos dados ficasse excluída. (GRÁCIO, 1993, p. 53, grifos do autor).

Ainda segundo o autor supracitado, se, da mesma forma como acon-


tece nos sistemas jurídicos, os pontos de partidas não são nem arbitrários
nem necessários, mas comportam sempre ambiguidades, então, o que
existe é um jogo que através de raciocínios e de valores “[...] articula, or-
ganiza e hierarquiza os dados pré-existentes em função de uma coerência
posta em manifesto nas ligações estabelecidas entre aquilo de que se
parte, a interpretação que disso se faz e a apresentação dos novos pontos
a que se chega” (GRÁCIO, 1993, p. 53). Assim, a racionalidade no discurso
jurídico situa-se, precisamente, ao nível da justificação desta passagem
para o novo, ou seja, da elaboração raciocinada de uma continuidade que
apresenta uma situação nova como síntese de transição.
Nesta perspectiva, a ruptura com o que se aceita só é racional se se
apresentarem as razões pelas quais se mostra a insuficiência do que se
rejeita e os motivos que justificam uma nova tomada de posição. A racio-
nalidade, tal como ela se apresenta no direito, é sempre uma forma de
continuidade: conformidade a regras anteriores ou justificação do novo

143
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

através de valores antigos. O que não tem qualquer ligação com o passado
só pode impor-se pela força, não pela razão. Isso significa que para os ju-
ristas toda a racionalidade é continuidade. Assim, a racionalidade apre-
senta-se, no quadro da jurisprudência, como adaptação àquilo que já é
admitido (Cf. PERELMAN, 1996).
Com efeito, admitir a possibilidade de uma justificação racional sig-
nifica admitir ao mesmo tempo um uso prático da razão, não limitando
esta à faculdade de discernir relações necessárias, nem sequer relações
referentes ao verdadeiro ou ao falso. Isso porque toda justificação racional
supõe que raciocinar não é somente demonstrar e calcular, é também de-
liberar, criticar e refutar. Ou seja, é apresentar razões pró e contra, é,
portanto, argumentar. Desse modo, pode-se afirmar que a ordem jurídica
é, essencialmente, uma ordem adaptativa e que a sua racionalidade re-
side na fidelidade a regras, a começar pelo princípio que “[...] se manifesta
pela regra de justiça e, mais particularmente, pela conformidade com os
precedentes, que assegura a continuidade e a coerência de nosso pensa-
mento e de nossa ação” (PERELMAN, 1996, p. 367). A esse respeito, Grá-
cio (1993, p. 54-55) comenta que na ordem jurídica vemos, assim, “[...]
trabalhar uma dialética entre formalismo — fidelidade entre as regras e
a tradição — e pragmatismo — que exige que sejam tomadas em consi-
deração as consequências que, num ou noutro sentido, advêm da inter-
pretação dos textos e da aplicação da lei”.
Perelman (1996, p. 371) ressalta que em direito, toda nova regra se
inspira em alguns princípios mais gerais que ela precisa e estrutura, ou
seja, toda decisão é fundamentada em alguma regra que a justifica: “[...]
assistimos a uma dialética constante entre a razão e a vontade, entre as
estruturas que fixam os âmbitos de uma ação e as decisões que precisam,
adaptam e até modificam esses âmbitos, se forem incompatíveis com regras
mais bem assentes”. Desse modo, para ele, a razão e a vontade não se apre-
sentam como uma dualidade irredutível, não tendo qualquer valia para a
elaboração da outra, mas se acham, efetivamente, em constante interação.
No que diz respeito à interpretação jurídica, bem como ao papel que
o juiz exerce na aplicação do direito, Perelman (1996, p. 472) afirma que
“O juiz, em todas as legislações modernas, é obrigado a julgar e a motivar
suas sentenças”. Assim, obrigado a julgar e a motivar, o juiz deve tratar
o direito que é encarregado de aplicar como “[...] um sistema a um só
tempo coerente e completo”. Isso significa que, ao juiz compete interpretar
o direito de modo a remover, de um lado, as incompatibilidades e contra-
dições que poderiam, à primeira vista, ocorrer e, de outro lado, completar
as lacunas que porventura o legislador venha a deixar.
Assim, para Perelman (1996), quanto mais precisa for a ordem jurídica

144
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

determinada pelo legislador, mais ela corresponderá, efetivamente, à ordem


política e social à qual deve aplicar-se, mais reduzido será o papel do juiz
na aplicação do texto e menor sua parte na elaboração do direito. Porém,
conforme observa o autor, se os textos não forem redigidos com precisão, ou
se deixarem de corresponder à ordem política e social ambiente, assistire-
mos ao primado do pragmatismo, ao triunfo do espírito sobre a letra.
Perelman (1996, p. 472) explica que esse modo de proceder do juiz
deve ser motivado relacionando suas conclusões com textos legais. “Essa
motivação não é coerciva, pois não resulta de um raciocínio puramente de-
monstrativo, mas de uma argumentação”. Note-se que o papel de relevo
dado à argumentação, diferentemente dos raciocínios demonstrativos dos
matemáticos, aponta, justamente, para a construção de uma racionalidade
argumentativa vinculada à prática, isto é, ao raciocínio prático jurídico.
Para o autor, é porque essa argumentação não é mero cálculo, e sim
apreciação da força deste ou daquele raciocínio, que a liberdade e a inde-
pendência do juiz constituem um elemento essencial na administração
da justiça. “Não se trata de corromper, nem de apiedar, nem de intimidar
uma máquina de calcular, mas o juiz, por sua vez, tem um poder de deci-
dir e, portanto, uma responsabilidade correlativa, que pode exercer com
ou sem discernimento” (PERELMAN, 1996, p. 472-473). Com efeito, o que
neste modelo está em causa não são raciocínios de tipo analítico em que
se passa, linearmente, e num único sentido, de premissas para conclu-
sões, mas de raciocínios dialéticos que supõem que o percurso que conduz
à aplicação de uma lei ou à decisão do juiz depende, quer de interpreta-
ções possíveis e, por vezes, mesmo controversas da lei a aplicar, quer da
apreciação das consequências que, em cada caso concreto, resultam da
aplicação da lei.
A vida dos operadores do direito desenvolve-se, quase sempre, nas
atividades argumentativas, nas suas articulações e com as suas diferen-
ças. A esse respeito, Damele (2014) informa que as argumentações parti-
dárias dos advogados diferem daquelas através das quais os juízes
lançam mão para fundamentar as suas decisões nas motivações das sen-
tenças, como também diferem das argumentações que os juristas recor-
rem para justificar um determinado entendimento perante a comunidade
dos operadores jurídicos.

Nuns casos, trata-se de persuadir, noutros, de motivar; e noutros


ainda, trata-se de propor: ainda que estas atividades não sejam
claramente cindíveis entre si e esteja presente em medidas dife-
rentes em cada tipo de discurso jurídico, é óbvio que, em certos
casos, será fácil prever a prevalência de uma sobre a outra. (DA-
MELE, 2014, p. 226).

145
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

O autor comenta que Perelman, ao dedicar quase vinte anos depois


do Tratado a um estudo sistemático da argumentação jurídica, em vista
disso, é preciso, pois que se considere a consolidação dessa tradição. Assim,
para além das considerações sobre o auditório dos “[...] ‘operadores jurídi-
cos’ e sobre os topoi ou loci jurídicos, entre os quais enumerava os ‘princí-
pios gerais’ do direito, Perelman retomava um repertório de argumentos
jurídicos já sistematizados num catálogo essencial e coerente por Giovanni
Tarello”. Dessa forma, Damele (Idem) explica que os argumentos jurídicos
classificados por Tarello podem ser concebidos não como “[...] ‘esquemas
de inferências’, mas como ‘esquemas de persuasão’, utilizados para ‘propor
a decisão de um significado’, ou ‘esquemas de justificação’, usados para
‘motivar a decisão de um significado’”. Desse modo, os argumentos jurídi-
cos eram tratados, portanto, como “esquemas persuasivos gerais”, deno-
minados por Tarello de “argumentos persuasivos” ou, simplesmente, de
“argumentos retóricos” (TARELLO1, 1980 apud DAMELE, 2014, p. 226).
Segundo Damele (2014), os argumentos jurídicos descritos por Ta-
rello tinham uma função eminentemente descritiva, ao passo que a nova
retórica perelmaniana parecia afastar-se dessa direção, ao insistir na ca-
racterização de um modelo normativo, ainda que imperfeito e ambíguo,
como era o auditório universal. De fato, “Justificar uma decisão significa,
também, persuadir um auditório, um auditório concreto, através do uso
‘estratégico’ dos argumentos jurídicos” (Idem, p. 227). Isso significa que
a eficácia dos argumentos jurídicos está intrinsecamente relacionada aos
aspectos retóricos e persuasivos inerentes aos discursos jurídicos reais.
Para Damele (2014, p. 227-228), o problema da eficácia dos argumen-
tos empregados pelos operadores jurídicos relaciona-se, decisivamente,
“[...] com o ‘contexto’ sócio-cultural, mas, sobretudo, com a identificação
de técnicas argumentativas e interpretativas setoriais, típicas do discurso
jurídico”. Isso porque um texto, para que lhe seja atribuído um significado
deve, antes, ser interpretado e, essa interpretação, em âmbito jurídico,
deve ser justificada. Por isso mesmo, deverão existir algumas técnicas
que presidam a essa interpretação. “No caso dos textos jurídicos e das
motivações judiciais, os ‘argumentos jurídicos’ constituem ‘tipos ideais’
destas mesmas técnicas”, ressalta o autor.
Para Tarello2 (1974 apud DAMELE, 2014, p. 229), a influência social
e jurídica sobre “as decisões, as motivações e as propostas” que objetivam
atribuir significados a documentos que regulam as normas da vida social,
deveria ser um controle referente ao “[...] procedimento intelectual que
1
TARELLO, Giovanni. L’interpretazione della legge. Milano: Giuffré, 1980.
2
TARELLO, Giovanni. Diritto, enunciati, usi. Studi di teoria e metateoria del diritto. Bo-
logna: Il Mulino, 1974.

146
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

conduz à decisão sobre os significados, que se revelam habitualmente na


motivação, ou [que] conduz a uma proposta de decisão sobre os significa-
dos, que se revelam habitualmente na argumentação”. A esse respeito, e
de modo mais preciso sobre os significados que se revelam na motivação,
Damele (Ibid., p. 229) ressalta a função justificatória dos argumentos ju-
rídicos, cujo papel seria “[...] o de revelar (na motivação e/ou na argumen-
tação) o ‘procedimento intelectual’ que conduz à decisão (ou a uma
proposta de decisão) sobre os significados”. Desse modo, o autor defende
que os argumentos jurídicos são retóricos, visto que estes são calibrados
pelas orientações prevalecentes num dado auditório, ou seja, num dado
contexto jurídico e cultural.
Em suma, Damele (2014) observa que a caracterização dos esquemas
de argumentação ou de raciocínio jurídico apresentada por Tarello apre-
senta duas particularidades:

a primeira, é a contraposição ao modelo de uma teoria geral (e nor-


mativa) da argumentação, em favor de uma abordagem descritiva
de um fenômeno particular (o da argumentação jurídica e, mais em
particular, judicial); a segunda, é a interpretação dos ‘esquemas
argumentativos’, não como argumentos especificamente jurídicos,
mas como ‘esquemas persuasivos gerais’. (DAMELE, 2014, p. 231).

Contudo, o autor ressalta que essas duas características, aparente-


mente, se contradizem. Isso porque, por um lado, Tarello parecia ter a in-
tenção de limitar as técnicas interpretativas (esquemas de argumentação)
ao âmbito judicial. Por outro lado, ao definir esses argumentos como “ar-
gumentos retóricos gerais”, significa que estes podem ser utilizados nos
mais diversos discursos disciplinares.
Tarello (1980) citado por Damele (2014) identifica a estrutura e os
usos de treze tipos de argumentos jurídicos (alguns autossuficientes ou
principais e outros auxiliares ou complementares). Para tanto, ele consi-
derou um processo de síntese de uma longa tradição de argumentos uti-
lizados pelos juízes, juristas e advogados para sustentar uma
interpretação, contra-argumentar, excluir ou incluir uma dada interpre-
tação, bem como, apresentar razões para justificar uma dada decisão. No
Quadro 1, a seguir, apresentamos uma síntese desses argumentos, deli-
neados por Tarello3.

3
A seção do sitio (http://www.dircost.unito.it/SentNet1.01/def/sn_index.shtml) é dedicada
à análise das técnicas interpretativas da Corte Constitucional italiana, baseada em uma
versão atualizada dos argumentos de Tarello (1980).

147
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Quadro 1: Os argumentos jurídicos interpretativos

Argumento Este argumento consiste na investigação da vontade


psicológico do legislador, recorrendo ao exame dos trabalhos pre-
(ou recurso à vontade do paratórios à promulgação da lei. Tais investigações
legislador concreto) permitem precisar a razão da lei, reconstruir a intenção
do legislador, bem como pensar nos problemas concre-
tos que ele deveria resolver e em suas intenções.
Argumento histórico É o argumento pelo qual supõe que o legislador é
(ou presunção de conti- conservador e que, por esse motivo, permanece fiel
nuidade-suposições con- ao regulamento do texto normativo. Pressupõe o con-
servadoras do legislador) servadorismo, sendo resistente a mudanças e inova-
ções na lei.
Argumento É o argumento pelo qual, quando há uma norma de-
a contrário terminada que prega quaisquer regras de qualifica-
ção normativa (um poder, uma obrigação, um status)
de um sujeito ou de uma classe de sujeitos, na au-
sência de uma norma expressa deve-se excluir a va-
lidade de uma norma diferente que predique a
mesma qualificação normativa para qualquer outro
sujeito ou classe de sujeitos. É o argumento pela
oposição, apela para o fato de que, se uma situação
é vista de determinada maneira, a situação oposta
deve ser considerada de maneira diversa.É expresso
pela máxima: voluit lex ubi, dixit; ubi noluit, tacuit.

Argumento literal Este argumento serve para atribuir aos enunciados


(considerações de ordem normativos, ou às palavras e aos termos neles ex-
sintática ou gramatical) pressos, o significado que assumem na conversação
ordinária e/ou no linguajar técnico-jurídico, bem
como na relação sintática entre eles.

Argumento É o argumento pelo qual, em presença de duas nor-


a coherentia mas que respectivamente predicam duas qualifica-
(ou da coerência da dis- ções normativas incompatíveis entre si, deve-se con-
ciplina jurídica) cluir que, pelo menos uma das duas normas não seja
válida, não exista ou não seja aplicável no caso em
questão. Intenta a propositura de uma regra para a
solução de eventual antinomia.
• Horizontal — coerência entre leis;
• Vertical — interpretação adequada à constituição
e às normas supranacionais e internacionais.
Argumento O argumento a completudine ou da completude do
a completudine sistema jurídico é o argumento que se fundamenta
na ideia de que todo sistema jurídico é completo e,
portanto, deve conter uma regra concernente a todos
os casos que não são regulamentados por disposições
particulares.

148
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

(Continuação)

Argumento O argumento econômico ou “hipótese do legislador


conômico não redundante” é aquele que descarta uma nova
interpretação caso esta se limite a repetir as deter-
minações de um texto legal anterior, evitando, assim,
que ela se torne supérflua, redundante, sem razão
de existir.
Argumento É o argumento pelo qual se deve excluir a interpre-
ab absurdo tação de um enunciado normativo que comporte con-
sequências absurdas. Ajuda a identificar uma con-
clusão inaceitável independentemente da
plausibilidade do conteúdo das premissas, já que o
argumento em questão é internamente defeituoso.
Em síntese, estabelece-se um silogismo ao demons-
trar que a conclusão do oponente é inconsistente com
as premissas.Trata-se de um argumento débil e equí-
voco, uma vez que a noção de absurdo é relativa,
mutável e, sobretudo, subjetiva.
Argumento O argumento sistemático atribui ao direito a ideia
sistemático de ordem e encadeamento normativos, devendo as
(ou hipótese do direito teses jurídicas serem construídas de modo a abarcar
ordenado) toda a normatividade.
• Argumento topográfico ou da sedes materiae
• Argumento da constância terminológica
• Argumento conceptualista ou dogmático
Argumento Este argumento não surge como argumento inter-
naturalista pretativo, mas como argumento produtivo. Enquanto
(ou da natureza das coi- tal, fundamenta-se em concepções do direito segundo
sas ou hipótese do legis- as quais as relações sociais são disciplinadas pela
lador impotente, refe- natureza em geral, ou pela natureza dos homens, ou
rência ao commonsense) pela “natureza das coisas”. Esse argumento conclui
que, em dada situação, um texto da lei é inaplicável,
porque a natureza das coisas se opõe a isso.
Argumento a simili No argumento a simili ou por analogia, sendo dada
(analogia legis) uma proposição jurídica que afirma uma obrigação,
a mesma obrigação existe a respeito de qualquer ou-
tro sujeito ou classe de sujeitos. Aqui, deve existir
uma analogia suficiente para que a razão que deter-
minou a regra ao primeiro sujeito seja válida também
aos demais.Esse argumento tem um forte poder per-
suasivo, pois, nele, utiliza-se o que é conhecido para
entender o que não se conhece, transpõe-se o que é
válido num domínio para outro (a está para b, assim
como c está para d). Apresenta uma similaridade ou
“analogia” assumida como relevante numa relação
de identidade na disciplina jurídica.

149
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(Continuação)

Argumento a partir Trata-se de um argumento produtivo, quando utili-


dos princípios gerais zado para preencher lacunas do direito, e de um ar-
(analogia iuris) gumento interpretativo, quando utilizado para atri-
buir, ou para motivar a atribuição, ou para propor a
atribuição de significados a enunciados normativos.

Argumento teleológico O argumento teleológico refere-se à finalidade ou ao


(ou hipótese do legislador espírito da lei, que neste caso não são reconstituídos
dotado de finalidades) a partir do estudo concreto dos trabalhos preparató-
rios, mas a partir de considerações sobre o próprio
texto da lei. Isto é, remete aos fins almejados pelo sis-
tema jurídico, a partir de considerações normativas.

Argumento É um procedimento discursivo pelo qual, dada uma


a fortiori proposição normativa que afirma uma obrigação ou
(por causa de uma razão qualificação normativa de um sujeito ou de uma
mais forte) classe de sujeitos, conclui-se que, com maior razão,
essa afirmação se aplicaria a uma prescrição nor-
mativa que abrangeria a primeira. Dividem-se em
duas formas:
a) Argumentum a minori ad maius (do menor para
o maior) aplica-se a uma prescrição negativa.
b) Argumentum a maiore ad minus (do maior para o
menor) aplica-se a uma prescrição positiva.
No primeiro caso, colocam-se em paralelo duas or-
dens de grandeza: se se admite a menor, com muito
mais razão tem que se aceitar a maior. É usado para
fazer uma aplicação mais extensa da lei, englobando
aqueles casos de que a norma jurídica não trata ex-
pressamente. Nesse caso, aquilo que é proibido numa
situação menos significativa, com muito mais razão
o será numa situação mais significativa.No segundo
caso, fazem-se inferências a partir de prescrições po-
sitivas: se a lei permite aquilo que é mais significa-
tivo, então, por inferência, pode-se concluir que ela
permite o menos. Nesse caso, o que é válido para o
mais extenso, também o é para o menos extenso.

Argumento Permite interpretar a lei segundo os precedentes,


de autoridade conforme uma decisão geralmente aceita.
(Argumento a) Referência à opinio doctorum
ab exemplo) b) Referência aos precedentes judiciais
c) Referência explícita ao “direito vigente”
d) Referencia à aplicação administrativa
e) Referencia aos próprios precedentes
f) Referência a outros ordenamentos

150
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

(Continuação)

Argumento equitativoA equidade serve para determinar, entre diferentes


(princípios de justiça uti-
interpretações possíveis e culturalmente toleráveis,
lizados para selecionar
aquela que está em menor conflito face às ideias que
os significados das dis-
o juiz compartilha com a sociedade, sobre o “bom” re-
posições) sultado da aplicação do direito em um dado caso. As-
sim, o argumento equitativo serve para evitar inter-
pretações e aplicações consideradas como “iníquas”.
Argumento apagógico O argumento apagógico ou de redução ao absurdo é
um procedimento discursivo que indica a sensatez
do legislador, apontando para decisões razoáveis.
Preocupa-se com as consequências de uma decisão
judicial, no sentido de ela ser justa ou injusta.

Fonte: Adaptado de Damele (2014)

Conforme vimos, a abordagem dos argumentos jurídicos de Tarello


(1980) volta-se para a dimensão persuasiva dos argumentos, por um lado
e, para a descrição das práticas dos operadores jurídicos, por outro. Ainda
de acordo com Damele (2014, p.235), em âmbito jurídico, os estudiosos
que podem ser enquadrados na corrente pragma-dialética direcionaram,
recentemente, o olhar para a dimensão “[...] ‘estratégica’ da argumenta-
ção, analisando o modo como as partes envolvidas num conflito de opi-
niões se orientam estrategicamente para realizar, simultaneamente, os
seus fins ‘dialéticos’ e ‘retóricos’”. Assim, ele enfatiza que os sujeitos en-
volvidos e ou empenhados numa discussão argumentativa procuram ser
persuasivos, no sentido de alcançar a aceitação das suas posições iniciais,
e, nessas circunstâncias, observam (ou devem observar) os standards crí-
ticos do discurso argumentativo, de modo que a cada nível da discussão
crítica está, assim, associado um objetivo retórico e um objetivo dialético.

2. As representações discursivas de vítima


Nesta seção, apresentamos a análise das representações discursivas
de vítima realizadas em textos de um dos documentos que compõem um
inquérito policial: o Boletim de ocorrência. A indicação das ocorrências no
texto será feita pela indicação da categoria teórica (referenciação, predi-
cação e modificação), pela referência ao número do inquérito (IP01, IP02,
IP03...) e ao número do enunciado (En1, En2, En3...).
Para a análise das representações discursivas de vítima foram sele-
cionados os enunciados com as expressões lexicais que referenciam a mu-
lher na condição de vítima. Nessa atividade, foram destacados os
modificadores (adjetivos e expressões equivalentes) que atribuem quali-

151
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

dades ou características ao referente “vítima”. O referente foi identificado


por meio de sintagmas nominais que assumem ora a função de sujeito da
proposição-enunciada, ora a função de complemento verbal. Observem-
se os exemplos seguintes.

• A referenciação
a) “A pessoa acima qualificada”, “sua pessoa”, “ela”, “a vítima”,
“a queixosa”

P07 Exemplos A referenciação

En1 “A pessoa acima qualificada compareceu a esta “A pessoa acima


DEAM para noticiar os seguintes fatos: Que por qualificada”
cerca de 08 (oito) anos manteve uma relação estável
com o Sr. Paulo Ricardo dos Santos1, que durante “sua pessoa”
este período se mostrou uma pessoa muito agres-
siva e por motivo de ciúmes dava início a discus-
sões, agredindo sua pessoa com empurrões, além
de apertar seus braços, fatos estes que se deram
por várias vezes”;

En6 “Que dia 25/08/2012, encontrava-se na praia de “beijá-la”


Areia Preta, quando foi abordada pelo autor, que
primeiro a agrediu com tapa, atingindo sua mão
para que não ligasse para a polícia e, em seguida,
passou a beijá-la à força e ainda passou a mão nas
suas partes íntimas”;

En11 “Que na data de 19/04/2012 foi deferida MPU em “a vítima”“a


favor da vítima, na qual o autor ficou proibido de queixosa”
manter qualquer tipo de contato com a queixosa”.

Observamos, neste movimento de introdução e retomada do refe-


rente, que as formas nominais (“A pessoa acima qualificada”, “da vítima”,
“a queixosa”), os pronomes oblíquos e a elipse pronominal ([ela]) vão
orientando argumentativamente o leitor para a construção da imagem
de “vítima”. Desse modo, o emprego de expressões nominais na retomada
do referente discursivo opera a “transformação” desse objeto de discurso,
de modo que, ao longo do texto, vai sendo (re)construído de determinada

1
Por se tratar de documentos sigilosos e, sobretudo, por questões éticas, foram apagadas
quaisquer informações sobre os envolvidos nos inquéritos em análise. Esse apagamento
foi feito pela substituição dos nomes verdadeiros dos sujeitos (vítima, agressor) por nomes
fictícios e pela sequência “xxx” para substituir outros dados (data de nascimento, números
de documentos, endereços, telefone) que possam identificá-los.

152
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

maneira, atendendo aos propósitos comunicativos do enunciador: cons-


truir, em seu discurso de acusação, a imagem da mulher vítima de agres-
sões e violências.

• A predicação
Nos enunciados a seguir, observamos que em seu papel temático o
referente “vítima” é designado como paciente das ações descritas nos
eventos expressos pelos verbos:

IP01 Exemplos Predicação


En1 “A vítima relata que foi agredida pelo sogro de “foi agredida”
nome Arnaldo, sogra de nome Tereza e a cunhada
de nome Paula, que residem praticamente no “agrediram”
mesmo imóvel, que todos os autores do fato lhe
agrediram todos juntos”.

En2 “A vítima informa que foi agredida e ameaçada de “foi agredida e


morte pelo seu cunhado, sem que houvesse motivo”. ameaçada”

Como podemos observar, nos enunciados (En1) e (En2), a imagem do


referente “vítima” foi construída a partir das estruturas predicativas “foi
agredida” e “foi agredida e ameaçada de morte”. O uso dessas predicações
no texto do histórico funciona estrategicamente para construir a imagem
de vítima: “agredida”, “agredida e ameaçada”. Observe-se que essa ima-
gem é ampliada pela estrutura “todos os autores do fato lhe agrediram
todos juntos”, em que a ocorrência do pronome “todos” antes do SN “os
autores do fato” dá a ideia de totalidade e após o SV “agrediram”, a ideia
de simultaneidade temporal.

IP01 Exemplos Predicação

En2 “A vítima informa que foi agredida e ameaçada de “sem que hou-
morte pelo seu cunhado, sem que houvesse mo- vesse motivo”
tivo”.

En3 “Informa também que o mesmo a chamou de rapa- “iria lhe que-
riga e de cachorra e que iria lhe quebrar a cara. brar”
Nada mais disse”.

É interessante observar que a partícula “sem” antes da construção


verbal “houvesse motivo” funciona no sentido de uma negação, a vítima
foi agredida pelo cunhado “sem que houvesse motivo”. Aqui, parece que o

153
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

enunciador, em seu discurso, apresenta uma visão “instrumental” da vio-


lência, em que a prática desta se constitui como um meio punitivo de com-
portamentos tidos como desviantes e ou rebeldes.
Muitas das vezes, em uma relação conjugal, a mulher encontra-se
subordinada aos ditames e desejos do marido/companheiro. Isso significa
que as ações da mulher se revelam à sombra das decisões do compa-
nheiro, pois, geralmente, quando age de forma autônoma sofre a reação
do marido, quando este se sente desafiado ou ameaçado em sua autori-
dade e domínio. É o que se observa nos enunciados (En1, En2), a seguir,
em que a mulher, por se recusar a satisfazer o desejo sexual de seu com-
panheiro, passa a sofrer violência física.

IP02 Exemplos Predicação


En1 “A vítima compareceu nesta Especializada para re- “falou”
gistrar que na data acima citada encontrava-se em “iria dormir”
casa quando falou para seu companheiro que iria
dormir (deitar-se), pois estava cansada”.

En2 “Que ele então disse que queria ter relação se- “queria ter”
xual: Que a vítima não aceitou e em razão disso “não aceitou”
ele iniciou uma discussão passando a agredi-la “iniciou uma
[...]”. discussão”

Como se observa, o uso dos verbos no pretérito imperfeito do modo in-


dicativo “encontrava-se”, pretérito perfeito “falou”, futuro do pretérito “iria”
e pretérito imperfeito “estava” é um recurso gramatical utilizado pelo pro-
dutor do texto para expor os fatos que deram origem ao conflito. A repre-
sentação do conflito é esquematizada no enunciado (En2) quando o agressor
manifesta o desejo de “ter relações sexuais” com a vítima. Esta, alegando
sentir-se cansada, recusa satisfazer-lhe o desejo sexual, ocasionando,
assim, o início de uma discussão. A proposição citada estabelece uma rela-
ção de Causa e Consequência: “Que a vítima não aceitou e em razão disso
ele iniciou uma discussão passando a agredi-la”. A forma verbal no pretérito
perfeito “iniciou” e a forma no gerúndio “passando” é utilizada pelo produ-
tor do texto para marcar o início e o percurso do conflito, com o acréscimo
de outras ações atentadas contra a vítima “torcendo seu braço, apertando-
o, puxando seus cabelos, em seguida jogou-a no chão e tentou enforcá-la”.
Assim, o enunciador se configura como paciente dos processos verbais ex-
pressos nas formas de gerúndio “torcendo”, “apertando-o”, “puxando” e do
pretérito perfeito “jogou-a”, “tentou enforcá-la”, representando-se a si
mesmo na condição de vítima, agredida pelo próprio companheiro.

154
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO

Observem-se os modificadores das predicações verbais nos exemplos,


a seguir.

Circunstâncias
IP02 Exemplos
que expressam
En1 “A vítima compareceu nesta Especializada para re-
gistrar que na data acima citada encontrava-se em Tempo
casa quando falou para seu companheiro que iria
dormir (deitar-se), pois estava cansada”.

En2 “Que ele então disse que queria ter relação sexual:
Que a vítima não aceitou e em razão disso ele Negação
iniciou uma discussão passando a agredi-la [...]”.

En3 “Acrescenta a comunicante que já sofreu outras


agressões, mas que nunca registrou nenhum fato Negação
nesta Delegacia e em nenhuma outra”.

Conforme podemos observar, nos enunciados (En1-2), os termos


“quando” e “não” modificam os verbos “falou” e “aceitou” indicando-lhes
circunstâncias de tempo e de negação. Além disso, contribuem para re-
presentar a figura da mulher percebida como objeto sexual, associada à
ideia de posse, de vontade e de desejo do seu companheiro.
No enunciado (En3), em que a vítima informa que “já sofreu outras
agressões, mas que nunca registrou nenhuma denúncia nesta Delegacia
e em nenhuma outra”, o uso dos advérbios “nunca” e “nenhuma” contri-
bui para representar discursivamente a imagem da mulher vítima de
agressões constantes, marcada por um cotidiano de agressões físicas, ver-
bais e psicológicas, a chamada rotinização/banalização da violência.

Conclusões
Conforme apresentado neste capítulo, uma reflexão sobre o discurso
jurídico mostra que as razões do legislador e do juiz, ainda que não sejam
apenas de natureza dedutiva ou indutiva, nem por isso são motivações
puramente psicológicas: são argumentos a favor de uma tal ou tal tomada
de posição e uma refutação de argumentos a favor de posições opostas.
Assim, o modelo jurídico apresenta, pois, a possibilidade de uma racio-
nalidade indissociável da intervenção e da tomada de posição humana.
Nessa perspectiva, raciocinar não é calcular, mas ajuizar e decidir, consi-
derando as diferentes representações construídas a partir da percepção
de quem enuncia, bem como, apresentando as razões que melhor justifi-
quem a opção por determinada escolha linguística.

155
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Os resultados apresentados confirmam a hipótese da pesquisa, de


que as escolhas linguísticas (as expressões referenciais, os verbos, as ex-
pressões circunstanciais, entre outros) estão atreladas ao propósito da
enunciação, aos interesses dos participantes no jogo interacional, de modo
a revelar a tendência argumentativa do enunciador, orientando para a
construção dos sentidos pretendidos. Desse modo, a partir do que é dito
nos textos analisados, as representações de “vítima” podem ser conside-
radas, enunciativamente, como o efeito de estratégias argumentativas,
no sentido de promover ações discursivas próprias da formação sociodis-
cursiva jurídico-policial.

Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
DAMELE, Giovanni. Notas sobre o papel da retórica nas teorias da argumentação
jurídica. Revista Brasileira de Filosofia, Instituto Brasileiro de Fi-
losofia, São Paulo: Marcial Pons Editora do Brasil Ltda, ano 62, v. 240,
p. 222-239, 2014.
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa. Porto: Asa Editora,
1993.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G.
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
TARELLO, Giovanni. L’interpretazione della legge. Milano: Giuffré, 1980.
TOLEDO, Claudia. Teoria da argumentação jurídica, Veredas do Direito, Belo
Horizonte, v. 2, n. 3, p. 47-65, jan./jun. 2005.

156
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS
E ARGUMENTAÇÃO EM TERMO DE
ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
Flávia Elizabeth de Oliveira Gomes — UFRN1

Introdução
O objetivo deste capítulo é investigar os procedimentos de construção
das representações textuais-discursivas e a argumentação no discurso ju-
rídico. Para tanto, analisamos um Termo de Acordo de Colaboração Pre-
miada, cujo colaborador é o ex-senador da República Federativa do Brasil
Delcídio do Amaral Gomez, para a Operação Lava Jato2.
Nessa direção, no âmbito da linguística do texto e, mais especifica-
mente, na abordagem da Análise Textual dos Discursos (ATD) (ADAM,
2011), interessa-nos a noção teórica e analítica da representação textual-
discursiva, uma categoria central da dimensão semântica do texto, ba-
seada na noção de esquematização de Grize (1990, 1996).
Assim concebida, esta análise se apresenta como possibilidade de
contribuir com as pesquisas interdisciplinares entre a Linguística e o Di-
reito, considerando a realização de estudos que comportem manifestações
linguísticas situadas, produzidas por indivíduos em situações concretas.

1. A noção de Representação Textual-Discursiva


A dimensão semântica de análise textual-discursiva, para a ATD, diz
respeito às representações discursivas dos enunciados. Conforme Adam
(2011, p. 113), “a atividade discursiva de referência constrói, semantica-
mente, uma representação, um objeto de discurso comunicável”.
A dimensão referencial de uma proposição ou de um enunciado apre-
senta ou constrói uma imagem do(s) referente(s) discursivo(s) (cf. PAS-
SEGGI et al., 2010). Desse modo, o referente pode ser categorizado de
diferentes formas em um enunciado e em diferentes partes deste enun-
ciado, porque cada proposição constitui um microuniverso semântico —
nos termos de Adam (2011) — que constrói uma representação discursiva
mínima do(s) referente(s).

1
Doutoranda em Linguística Teórica e Descritiva pelo Programa de Pós-graduação em Es-
tudos da Linguagem (PPgEL) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
2
Este capítulo retoma, com algumas modificações, a nossa pesquisa de Doutorado vinculada
ao grupo de estudo Análise Textual dos Discursos- ATD (PPgEL — UFRN), na área de lin-
guagens que focaliza o discurso jurídico.

157
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Nesse sentido, Rodrigues, Passeggi & Silva Neto (2010, p. 173) apon-
tam que “todo texto constrói, com menor ou maior explicitação, uma re-
presentação discursiva do seu enunciador, de seu ouvinte ou leitor e dos
temas ou assuntos que são tratados”.
Outrossim, a representação textual-discursiva (ADAM, 2011) rela-
ciona-se aos estudos da lógica natural de Grize (1996), para quem a re-
presentação deve ser compreendida a partir da noção de esquematização.
Essa perspectiva teórica, segundo sugerem Passeggi et al. (2010), é
primordial para a ATD, de maneira que suas operações lógico-discursivas
constituem noções basilares para os estudos semânticos dos textos. Por-
tanto, no capítulo ora apresentado, a abordagem teórico-metodológica da
Análise Textual dos Discursos será complementada com categorias pro-
postas por Grize (1996).
Para Grize (1996, p. 50), “uma esquematização tem por função fazer
alguém ver alguma coisa, mais precisamente, é uma representação dis-
cursiva orientada para um destinatário sobre como seu autor concebe ou
imagina uma determinada realidade”.
Nessa direção, é possível dizer que a esquematização é concebida com
valor argumentativo, estando inserida em um quadro interativo e dialó-
gico das representações textuais-discursivas, pois, se a argumentativi-
dade faz parte da organização interna da língua, logo as palavras são
instrumentos do ato de argumentar.
Trata-se, neste caso, da argumentação como lógica estabelecida pela
linguagem, uma vez que o ato de argumentar deve ser descrito tanto do
ponto de vista linguístico quanto retórico, como também deve estar rela-
cionado às diversas práticas sociais (PINTO, 2010).
Em vista disso, a relação intrínseca entre a representação textual-
discursiva e a argumentação é percebida por operações do pensamento
que constroem um universo discursivo de explicação, o qual depende de
esquematizações coletivas.

2. Procedimentos Metodológicos
O corpus da presente pesquisa é constituído por um Termo de Cola-
boração Premiada, texto pertencente ao discurso jurídico, cujo colabora-
dor é o ex-senador da República Federativa do Brasil Delcídio do Amaral
Gomez, detido no dia 25 de novembro de 2015 pela Polícia Federal, sob a
acusação de tentar dificultar as investigações da Operação Lava Jato3.
3
Desenvolvida a partir de março de 2014, a operação Lava Jato é a maior investigação de
corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. São investigados funcionários da
Petrobras, empreiteiras, agentes políticos e operadores financeiros. Disponível em http://la-
vajato.mpf.mp.br/lavajato/. Acesso em 28/02/2017.

158
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

O referido corpus é composto por um conjunto de 21 (vinte e uma) de-


clarações do colaborador, textos documentados mediante registro audiovi-
sual contido em mídia digital, acrescidos de 29 (vinte e nove) anexos,
pertencentes ao referido Termo. Esses depoimentos foram colhidos entre
os dias 11 e 14 defevereiro de 2016, em Brasília, por membros do Ministério
Público da União e estão disponíveis online em sítios de domínio público4.
Dados os objetivos e o objeto de estudo desta investigação, quanto à
sua configuração metodológica, caracteriza-se como descritiva e explica-
tiva; e quanto aos procedimentos técnicos, é uma pesquisa bibliográfica
e documental (GIL, 2008). Quanto à abordagem, trata-se de uma pesquisa
de natureza qualitativa e quantitativa, com caráter interdisciplinar, ar-
ticulando a área da Linguística com a área do Direito.
Para fins de análise no presente capítulo, selecionamos uma decla-
ração pertencente ao corpus (Termo n° 03), o qual versa sobre A partici-
pação de Lula e Palocci na compra do silêncio de Marcos Valério no
Mensalão5. Para tanto, a análise centra-se nas principais personagens
mencionadas nessa declaração, a saber: o colaborador Delcídio do Amaral,
Lula, Palocci e Marcos Valério.
Dentre as vinte e uma declarações que compõem o documento do
Termo de Colaboração Premiada em estudo, a seleção por essa declaração
em questão, especificamente, justifica-se pelo interesse social sobre o caso
e pela sua repercussão midiática em razão das figuras públicas envolvidas.
As categorias consideradas para a presente análise são a referencia-
ção, aqui entendida como a designação dos referentes (coisas, objetos, su-
jeitos de ações, processo), ou seja, aquela que nomeia os participantes da
ação verbal; e a predicação, restrita aqui à predicação verbal: remete à
operação de seleção dos predicados, i.é, à designação dos processos, no
sentido amplo (ações, estados, mudanças de estado, etc.), assim como ao
estabelecimento da relação predicativa no enunciado (ADAM, 2011).

4
No caso do corpus em questão, tal acordo foi firmado com a finalidade de obtenção de ele-
mentos de provas para o desvelamento dos agentes e partícipes responsáveis, estrutura
hierárquica, divisão de tarefas e crimes praticados pela organização criminosa, no âmbito
do Palácio do Planalto, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, do Ministério de
Minas e Energia e da companhia Petróleo Brasileiro S/A, entre outras.
5
Mensalão é o nome dado ao escândalo de corrupção política mediante compra de votos de
parlamentares no Congresso Nacional do Brasil, que ocorreu entre 2005 e 2006. Disponível
em https://pt.wikipedia.org/. Acesso em 28/02/2017.

159
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

3. Análise do Corpus
Nesta seção, exemplificamos, através de excertos extraídos do corpus6,
de que forma os processos referencial e predicativo ocorrem no texto e
como colaboram na construção das representações textuais-discursivas
(RTD) e na construção da argumentação.

A) Referenciação

Excerto 1:
(Pág. 129)
QUE mesmo como presidente da CPI7, o depoente sempre conversava
comtodas as pessoas, mesmo pessoas investigadas; [...]
(Pág. 132)
QUE o depoente disse a LULA: "Quando se assume um compromisso,
este tem que ser cumpridoou negociado"; [...]

Excerto 2:
(Pág. 132)
QUE LULA — e nunca o depoente esquece disso, pois era um final
de tarde bonito — não falou nada, ficou constrangido e"branco";
QUE o depoente percebeu que LULA ficou "mal" quando ouviu
aquilo, mas não comentou nada; QUE PALOCCI disse: "O presidente
ficou 'puto da vida' com o que você disse para ele"[...]

Excerto 3:
(Pág. 133)
QUE PALOCCI era Ministro da Fazenda e o "homem forte" do go-
verno; [...]

Excerto 4:
(Pág. 130)
QUE isto mostrava que tinha um "trânsito violento" era "avalizado"
pelo Governo, ou seja, detinha muita influência; QUE para ter tanto
conhecimento, MARCOS VALÉRIO tinha contato com altos líderes
do PT [...]
QUE chegou um momento em que MARCOS VALÉRIO disse: "Se
estas coisas não forem resolvidas, se a situação está ruim, vai ficar
pior ainda; [...]

6
A gravação e a respectiva degravação (registro escrito) das declarações do Termo de Cola-
boração Premiada em estudo foram autorizadas pelo colaborador Delcídio do Amaral Go-
mez, nos termos do §13° do art. 4° da Lei n° 12.850/2013, custodiados pelos representantes
do Ministério Público. (Domínio público)
7
Todos os destaques, como o uso de maiúsculas, aspas simples e/ou duplas são do texto original.

160
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

B) Predicação

Excerto 1:
(Pág. 131)
"O grande erro de vocês foi que nuncatinham comentado isso co-
migo"; QUE o depoente acabouchegando aos fatos naturalmente,
em razão dos trabalhos da CPIDOS CORREIOS; [...]
QUE questionado por qual razão ninguém do PT revelou os detalhes do
esquema operado por MARCOS VALÉRIO ao depoente, respondeu que
eles não confiavam no depoente e que o depoente era um novato no Partido;
QUE o PT contava com a inexperiência do depoente e com a participação
ativa destes parlamentares para que a CPI não desse em nada [...]

Excerto 2:
(Pág. 132)
Que quando o depoente chegou, já tinham percebido o tamanho do
problema e por isso foi recebido imediatamente; QUE o depoente disse
a LULA que tinha ido passar uma mensagem bem sucinta; QUE
então o depoente disse que havia conversado com MARCOS VALÉRIO
e que tinha acabado de sair do gabinete do interlocutor que LULA
havia enviado a Belo Horizonte para falar com MARCOS VALÉRIO;
QUE, embora não tenha dito expressamente, estava se referindo a
PAULO OKAMOTO, o que foi compreendido por LULA; [...]

Excerto 3:
(Pág. 133)
QUE PALOCCI disse ainda para o depoente ficar fora disso, pois
ele (PALOCCI) iria resolver pessoalmente aquilo; QUE PALOCCI
ligou para dar recado e para que o depoente saísse de cena; QUE
este assunto, em seguida, sumiu do "radar" do depoente; [...]

Excerto 4:
(Pág. 129)
QUE MARCOS VALÉRIO disse que estava sofrendo muito, que a
situação familiar era muito complicada, que a mulher teria tentado
se matar e os filhos estavam fora da escola; QUE MARCOS VALÉ-
RIO disse que precisava resolver aquilo e disse que queria apenas
que o PT ressarcisse o que devia a ele; [...]

No que tange à referenciação, inicialmente, o excerto 1 faz uso das desig-


nações “presidente da CPI”; “depoente”; “pessoas investigadas”. Salienta-se que
em todos as declarações do Termo de Colaboração, Delcídio do Amaral é nomeado
e referido como depoente, ou seja, “pessoa que presta depoimento em juízo”.8
8
http://www.jurisite.com.br/dicionarios/dicionario-juridico/

161
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Em seu relato, Delcídio esclarece sua pretérita condição de “presi-


dente da CPI” e, por essa razão, sua autonomia de relacionamento com
pessoas ditas “investigadas”. Essas designações parecem indicar, argu-
mentativamente, a importância da sua livre circulação no meio político.
Ainda nesse excerto, vê-se a designação de “compromisso cumprido e ne-
gociado”. Portanto, as representações textuais-discursivas presentes
nesse trecho, acima destacadas, revelam o tom de naturalidade com que
eram tratadas as negociatas em delação.
No excerto 2, destacam-se “constrangido e branco”, “mal”; “puto da
vida”, referentes ao ex presidente Lula, no contexto de ter sido pressio-
nado a atender aos apelos de suborno de Marcos Valério, por intermédio
do depoente Delcídio. Essas referenciações acima assinalam a represen-
tação textual-discursiva do ex- presidente, usadas, durante a narrativa
do excerto em análise, para pontuar a hierarquia nos esquemas de cor-
rupção nos quais as personagens estavam envolvidas. Nesse contexto,
uma designação de autoridade é confirmada pela RTD de Palocci, carac-
terizado como “O homem forte do governo”.
No último excerto da referenciação, “trânsito violento"; "avalizado”;
situação está “ruim”, vai ficar “pior” remetem à trama de influência e su-
borno acerca da figura de Marcos Valério. Na presente delação, observa-
se que a referenciação de cunho negativo do Marcos Valério vai ao
encontro do seu perfil fortemente evidenciado pela mídia, ou seja, um
agenciador da corrupção política em tela.
Considerando que o valor argumentativo das RTD está inserido nas
escolhas linguísticas, observa-se nos excertos da categoria da referencia-
ção que a argumentação se integra a uma prática social, sendo influen-
ciada por questões situacionais. Quer dizer, o contexto de delação no qual
se encontrava o referido depoente foi determinante para marcar suas es-
tratégias argumentativas de distanciamento das práticas supostamente
ilegais do processo judicial em andamento.
Na predicação, o excerto 1 aponta para o posicionamento do depoente
frente às questões delatadas, quanto à sua própria imagem que pretende
salientar, isto é, de pessoa de confiança, quando afirma desconhecer, a
priori, os detalhes das negociatas. Essa ideia é ratificada nas ações ver-
bais decorrentes da sua prática, como vemos em “acabou chegando aos
fatos”; ninguém do PT revelou os detalhes; respondeu que eles não con-
fiavam no depoente; o PT contava com a inexperiência do depoente”.
Temos, assim, através das ações verbais da predicação do excerto 1,
a representação textual-discursiva ligada a uma suposta ingenuidade do
depoente, por se julgar alheio a outras operações escusas das quais de-
clarou não estar envolvido ou não ter maiores conhecimentos.

162
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

Nesse enquadramento, De Sanctis (2016) valida o exposto acima


quando afirma que

o delator deve dizer o que sabe sem limites, o que o distancia da


testemunha comum, daí porque ele é considerado uma testemunha
sui generis. Por essa razão, o delatado preserva sua condição de
presumidamente inocente, e as palavras do delator hão de ser con-
firmadas com outras provas (p. 02).

A temática do excerto 2 versa sobre o breve encontro entre o depoente


e o ex-presidente Lula, em que aquele tenta interceder por Marcos Valério
e, concomitantemente, alertar ao seu interlocutor acerca dos perigos imi-
nentes que circundavam o entrecho. Nesse excerto, destacam-se as pre-
dicações “chegou; disse; havia conversado; não tenha dito”. Essas ações
marcam a RTD do influxo ocorrido com o intento do depoente denotar a
imagem de comprometido com a resolução de problemas.
As predicações presentes no excerto 3: “Que Palocci disse ainda para
o depoente ficar fora disso”; “ele (PALOCCI) iria resolver”; “QUE PA-
LOCCI ligou para dar recado” anunciam a representação textual-discur-
siva da figura em questão totalmente contrária à do depoente — poderoso
e influente nos fenômenos delituosos.
No excerto 4, as predicações sinalizam para RTD de sentido patê-
mico9, pelo viés da argumentação, na qual traduz a implicação do de-
poente: “MARCOS VALÉRIO disse que estava sofrendo muito”; “QUE
MARCOS VALÉRIO disse que precisava resolver aquilo”.
Por conseguinte, Charaudeau (2007) afirma que todo ato de lingua-
gem se origina de um sujeito instaurando uma relação com o outro (prin-
cípio da alteridade) de maneira a influenciá-lo (princípio de influência)
e, concomitantemente, a produzir uma relação na qual o interlocutor tem
seu próprio projeto de influência (princípio de regulação).
Nesse sentido, as ações de linguagem do depoente, descritas nos ex-
certos acima, comportam uma dimensão argumentativa com vistas a uma
intenção consciente de persuasão. Nisso reside a construção de RTD que
validam a argumentação em curso no momento da delação, pois conforme
percebe-se na narrativa dos excertos em estudo, há uma organização ar-
gumentativa para servir ao propósito comunicativo do depoente.

9
Termo originado na Retórica de Aristóteles, sendo uma das três fontes de que procedem
as premissas dos argumentos (ethos, pathos e logos), e que imprimem confiança subjetiva
ao raciocínio. O filósofo defende que “as emoções [paixões, π ά θ η ) são as causas que fazem
alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas
comportam dor e prazer” (ARISTÓTELES, 2005, p. 160).

163
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Palavras finais
As discussões preliminares aqui realizadas evidenciaram que as re-
presentações textuais-discursivas das principais personagens menciona-
das na declaração nº 3 do Termo de Colaboração Premiada — Delcídio,
Lula, Palocci e Marcos Valério — são argumentativamente construídas
no texto, através das referenciações e, sobretudo, das predicações, pois a
narrativa dos fatos auxilia na compreensão dos procedimentos da orga-
nização, da divisão interna de tarefas, a fim de chegar aos líderes e men-
tores de uma suposta associação criminosa.
O enfrentamento do fenômeno criminal econômico-financeiro sofis-
ticado — a Operação Lava Jato — gera amplo interesse na sociedade, em
que o gênero Termo de Colaboração/Delação Premiada aparece com des-
taque nesse quadro atual, merecendo atenção e relevância no campo das
pesquisas científicas da linguagem, em especial, na ATD.
Nesse contexto, sugerimos que nossas reflexões sinalizam de que
forma as categorias de referenciação e predicação salientam o papel das
representações textuais-discursivas no quadro de orientação argumenta-
tiva. Os enunciados (esquematização) do depoente, nos quais o interpre-
tante constrói as RTD das demais figuras envolvidas, organizam-se em
função dos objetivos, representações psicossociais e pressupostos cultu-
rais, conforme assinala Grize (2004).

Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
CHARAUDEAU, Patrick. Pathos e discurso político. In: Machado, Ida Lúcia et
alli (Orgs.). As emoções no discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007,
p. 240-251.
DE SANCTIS, Fausto Martin. Delação Premiada. 2016. Disponível em: <
http://observatorio3setor.org.br/colunas/fausto-martin-de-sanctis-ver-
dade-e-justica/delacao-premiada/>. Acesso em: 05 jun. 2017.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.
GRIZE, Jean-Blaise. Logique et language. Paris: Ophrys, 1990.
GRIZE, Jean-Blaise. Argumentation et logique naturelle. In: ADAM, J-M; GRIZE,
J-B; ALI BOUACHA, M. (orgs). Text et discours; catégories pour
l analyse. Dijon: Éditions Universitaires de Dijon, 2004, p. 23-27.

164
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

PASSEGGI, Luis, et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da pro-
dução co(n)textual dos sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q.
(Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama
das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010, p. 262-312.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a
nova retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica
e jornalística. Lisboa: Quid Juris Sociedade Editora, 2010.

165
166
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ:
UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS
E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
Francisco Geonilson Cunha Fonseca — UFRN

Introdução
Discutimos, neste capítulo, a argumentação em uma denúncia feita
pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte ao Excelentís-
simo Senhor Doutor Juiz de Direito da 5ª Vara Criminal da Comarca de
Natal / RN (Brasil). Investigamos a argumentação com foco na dimensão
semântica — representação discursiva — Rd — e na influência dessa di-
mensão para a orientação argumentativa do texto e do discurso.
Para subsidiar teoricamente a análise que empreendemos, evocamos
Adam (2011), Pinto (2010), Rodrigues; Silva Neto; Passeggi (2010), Mar-
quesi (2004), Aristóteles (1969 [384 — 322 a.c.]), Perelman e Olbrechts-
Tyteca (1996), Plantin (2008) e Koch (2010).
Situamos nossa análise nos pressupostos teóricos da Linguística Tex-
tual, mais especificamente, pelo viés da Análise Textual dos Discursos —
ATD1-, cujo modelo de análise de texto adotado considera a Linguística
Textual como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que deve
fundar-se na análise de textos concretos” (ADAM, 2011, p. 23). É esse pro-
cedimento que adotamos para analisar a denúncia usada como corpus
desta pesquisa.
Para dar sequência ao nosso trabalho, buscamos responder às se-
guintes questões norteadoras: como as representações discursivas — as
imagens — contribuem com a eficácia persuasiva da argumentação? Que
escolhas linguísticas e discursivas o enunciador usou para destacar os ar-
gumentos e persuadir?
De modo metodológico, desenvolvemos a análise da denúncia consi-
derando o texto conforme estabelecido no Art. 41 do Decreto Lei número
3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Diz o Art. 41
do CPP2 que:
1
A Análise Textual dos Discursos — ATD — foi elaborada pelo linguista francês Jean-
Michel Adam. Segundo Adam (2011), pelo modelo teórico e metodológico da ATD, é possível
distinguir linguisticamente dois níveis ou planos para análise do texto e do discurso.
Para visualizar o desenho / esquema com os dois níveis, ver Adam (2011, p. 61).
2
CPP — Código de Processo Penal.

167
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso,


com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou escla-
recimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime
e, quando necessário, o rol das testemunhas (DECRETO..., 1941).

Por questões didáticas, bem como para facilitar a nossa leitura e com-
preensão, dividimos o presente capítulo, além de introdução e considera-
ções finais, em dois momentos: aporte teórico e análise do texto. No aporte
teórico, apresentamos noções teóricas relevantes sobre argumentação e
representação discursiva. Já na análise do texto, explicamos os procedi-
mentos de análise, situamos e analisamos o texto da denúncia para res-
ponder as duas questões que nortearam este estudo.

1. A argumentação como prática social, textual e


discursiva
Diz Aristóteles (1969, livro I, p. 29) que todos os homens “se empe-
nham dentro de certos limites em submeter a exame ou defender uma
tese, em apresentar uma defesa ou acusação” para fazer valer o seu ponto
de vista sobre os outros apresentados e para direcionar o outro à aceitação
de determinada conclusão.
Para isso, a tese defendida ou refutada necessita ser amparada por
razões, argumentos que sustentem um ponto de vista e defendam uma
conclusão. O convencimento do outro, a persuasão, nada mais é do que
“a busca da competência na argumentação, da compreensão das razões
próprias e dos outros nas tomadas de posição diante dos acontecimentos,
[...]” (MACHADO; CUNHA, 2008, p. 14), pois, quem tem (ou teve) a ca-
pacidade de conseguir o deslocamento do ponto de vista do outro, com a
devida aceitação, apenas com o uso da língua, por meio do discurso, é efi-
caz no ato de persuadir.
A tomada de posição, por parte daquele ou daqueles para os quais os
argumentos são destinados, depende da forma como o discurso é apre-
sentado. Conforme Aristóteles (1969), o discurso fornece três espécies de
provas: uma centrada no orador e diz respeito ao seu caráter moral (o
éthos); outra relacionada às paixões e emoções despertadas pelo discurso
no auditório (o páthos) e, outra, na forma como o discurso é apresentado:
a lógica das proposições e premissas (o logus).
Diante disso,

Obtém-se a persuasão por efeito do caráter moral, quando o discurso


procede de maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de
confiança [...]. Obtém-se a persuasão nos ouvintes, quando o discurso

168
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

os leva a sentir uma paixão, porque os juízos que proferimos variam,


consoante experimentamos aflição ou alegria, amizade ou ódio [...]. Enfim,
é pelo discurso que persuadimos, sempre que demonstramos a verdade
ou o que parece ser a verdade, de acordo com que, sobre cada assunto, é
suscetível de persuadir. (ARISTÓTELES, 1969, livro I, p. 34 — 35).

Nesse sentido, quer seja pela razão, paixão, caráter ou, ainda, pela
relação complementar desses três tipos de provas, possíveis de serem im-
putadas pelo discurso, o objetivo da argumentação é persuadir e conven-
cer. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 50),

o objetivo de toda argumentação [...] é provocar ou aumentar a adesão


dos espíritos às teses que se apresentam a seu assentimento: uma
argumentação eficaz é a que consegue aumentar essa intensidade
de adesão, de forma que se desencadeie nos ouvintes a ação preten-
dida (ação positiva ou abstenção) ou, pelo menos, crie neles uma dis-
posição para a ação, que se manifestará no momento oportuno.

Com efeito, argumentar pode ser entendido como uma prática social,
textual e discursiva que visa a mudança ou assunção de um (novo)3 ponto
de vista. É uma prática que pode manifestar-se com maior intensidade nos

géneros persuasivos [que] são práticas sociodiscursivas que estão


inseridas nas diversas atividades de linguagem/formações sociodis-
cursivas/esferas da comunicação [com] importância do aspecto per-
suasivo associado à questão funcional que lhes caracteriza e a espe-
cificidade da argumentação nestes géneros, uma vez que englobará
tanto aspectos linguísticos verbaise/ou não-verbais, quanto retóricos,
em constante interação. (PINTO, 2010, p. 199, grifos do autor).

Cabe, ainda, salientar que argumentar é uma prática social porque


ocorre em uma dada situação de comunicação; é textual, porque, neces-
sariamente, se realiza por meio de um texto, materializado em um gê-
nero; e, é discursiva, porque objetiva influenciar e persuadir o outro.
Como dizem Passeggi et al. (2010, p. 266), “uma determinada intencio-
nalidade ou objetivo [...] realiza-se numa interação social e numa forma-
ção discursiva dadas, [...] utilizando um socioleto (dialeto social) dessa
3
“Novo” está destacado entre parênteses, porque mesmo que seja assumido,na conclusão,
o ponto de vista da tese inicial, trata-se de uma nova premissa ou proposição que já
passou pelo filtro individual do enunciador e coenunciadores, além disso, conforme mostra
Adam (2011, p. 234), no esquema 22, à tese inicial (P.arg. 0) são acrescidos dados/fatos
(P.arg. 1) e sustentados e ou restringidos por outras proposições —(P.arg. 2) e (P.arg. 4) —
, dando origem a uma nova tese, ou seja, a conclusão que é, na verdade, um novo ponto de
vista sobre o ponto de vista (tese) colocado em discussão / polemizado.

169
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

formação e no seio de um interdiscurso, com mediação de um gênero”.


De acordo com Plantin (2008, p. 63), “[...] a atividade argumentativa é
desencadeada quando se põe em dúvida um ponto de vista” acerca de uma
determinada assertiva. Diante disso, somos autorizados a dizer que a pró-
pria atividade de argumentar pressupõe o contradiscurso, o polêmico e, por-
tanto, a possibilidade de refutação e a (pré)existência de teses e antíteses.
Com efeito, a assunção de um ou de outro ponto de vista é um exer-
cício de reconstrução do real e, reconstruir o real, é uma atividade de re-
ferenciação textual e discursiva que dá origem a novos objetos de
discurso, ou seja, novas representações — imagens — discursivas (Rd).
Koch (2010), ao citar Apothéloz & Reicher-Béguelin (1995), deixa
claro que os objetos-de-discurso (representações discursivas) são conce-
bidos como resultado de práticas sociais, textuais e discursivas, pois re-
construímos o mundo, principalmente, pela forma que “interagimos com
ele. Interpretamos e construímos nossos mundos na interação com o en-
torno físico, social e cultural”. (KOCH, 2010, p. 34).

2. Contribuições teóricas sobre representações


discursivas
Partimos do pressuposto de que o “campo da argumentação é o do ve-
rossímil, do plausível, do provável” (PERELMAN; OLBRECHTS-TY-
TECA, 1996, p. 1). Por esse princípio, a (re)construção do mundo real
através de representações discursivas (Rd), objetos-de-discurso comuni-
cáveis, significáveis e portadores de sentidos, exercem papel relevante
para a atividade argumentativa-persuasiva.
Dessa forma, as escolhas linguísticas e discursivas do enunciador,
dispostas no texto, favorecem a sua pretensão acerca de uma conclusão,
de uma assertiva, de um ponto de vista, orientando, assim, argumenta-
tivamente, através de Rd, os coenunciadores. Isso “significa [dizer, tam-
bém,] que as escolhas lexicais e sintáticas propiciam um discurso
marcado mais ou menos subjetivamente e argumentativamente orien-
tado”. (SANTOS; PINTO; CABRAL, 2016, p. 173).
As representações discursivas (ou objetos-de-discurso), colocadas a
serviço da argumentação pela atividade de referenciação4, são construí-
das em um processo conjunto que envolve enunciador e coenunciador, pois
para o sucesso da persuasão a “adesão dos espíritos às teses” (PEREL-
4
Koch (2010), ao citar Mondada (2001), traz citações e explicações que contribuem para o
esclarecimento da diferença entre referência e referenciação, além de comentários sobre
o conceito de objetos-de-discurso como entidades produzidas discursivamente e enuncia-
tivamente.

170
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

MAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4) apresentadas é condição


necessária, uma vez que “é em função de um auditório que qualquer ar-
gumentação se desenvolve” (Ibid., p. 6, grifos do autor).
Consoante Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2010, p. 173),

Todo texto constrói, com maior ou menor explicitação, uma repre-


sentação discursiva do seu enunciador, do seu ouvinte ou leitor e
dos temas ou assuntos que são tratados. [...] Assim, toda proposição,
na condição de ‘microuniverso semântico’, constitui uma represen-
tação discursiva mínima. A dimensão referencial da proposição [...]
apresenta certa ‘imagem’ do(s) referente(s) discursivo(s), posto que
cada expressão utilizada categoriza ou perspectiva o referente de
uma certa maneira (grifos do autor).

Por isso, é possível a afirmação de que a representação discursiva e a


orientação argumentativa possuem uma relação de complemento. Esta
assertiva é confirmada, também, porque ambas compõem duas das três
dimensões da proposição-enunciado, demonstradas na leitura da figura 1,
que deve ser feita imaginando-se um movimento circular de união e com-
plemento entre as três dimensões. Pelo desenho da figura (1), a dimensão
A é a do ato ilocucionário (OR-arg.), a dimensão B, da responsabilidade
enunciativa (RE) e a dimensão C, da representação discursiva (Rd).

Figura 1 — Movimento circular das dimensões


da proposição-enunciado

Fonte: elaborado a partir dos dados da pesquisa

171
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Pelo que mostra a figura (1), a interseção das três dimensões resulta
no ato de discurso (ou proposição-enunciado), cuja orientação argumen-
tativa passa a ser construída pelo resultado das representações discursi-
vas — imagens — formadas no e pelo texto e no e pelo discurso, em sua
enunciação. São inseparáveis, embora, por questões metodológicas, nosso
foco se dará nas dimensões A (OR-arg.) e C (Rd). Certamente que, para
descrever e explicar a argumentação com foco na dimensão semântica,
poderemos ter que retomar, em algum momento, a dimensão B (RE).
Nessa concepção, as escolhas textuais e discursivas do locutor-enuncia-
dor realizam-se a partir de um querer-dizer, de um planejamento estratégico
dotado de intenção, argumentação e persuasão, na medida em que visa ao
convencimento do outro pela categorização e recategorização do referente.
A categorização e recategorização dos referentes

implica sempre uma escolha entre uma multiplicidade de formas


de caracterizar o referente, escolha esta que será feita, em cada
contexto, segundo a proposta de sentido do produtor do texto. Trata-
se, em geral, da ativação, dentre os conhecimentos culturalmente
pressupostos [...], de características ou traços do referente que de-
vem levar o interlocutor a construir dele determinada imagem, isto
é, a vê-lo sob um determinado prisma, o que lhe permite extrair do
texto informações importantes sobre opiniões, crenças e atitudes
do seu produtor, de modo a auxiliá-lo na construção do sentido.
(KOCH, 2010, p. 35-36).

Em outras palavras, as representações discursivas — as imagens —


podem ser entendidas como comentários explícitos ou implícitos que,
através de processos de referenciação, exprimem e são pensadas sob de-
terminado ponto de vista pelo locutor-enunciador. Além disso, fazem parte
de um grupo de estratégias linguísticas e discursivas que objetivam de-
monstrar-justificar uma tese própria ou refutar uma tese ou argumentos
adversos pela (re)construção, combinação e atualização das imagens do
objeto-de-discurso polemizado.

3. Orientação argumentativa e representação


discursiva na denúncia
Esta seção, em conformidade com o que foi anunciado na introdução,
é dedicada à identificação, descrição, interpretação e análise da argumen-
tação no texto da denúncia transcrita a seguir.
Para facilitar a análise, o texto foi todo enumerado por linhas. Con-

172
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

tudo, mantivemos a integridade total, sem alterar nenhuma palavra ou


pontuação, salvo o timbre e assinaturas que não pudemos transcrevê-los.
Outra informação importante é que, por questões éticas, preferimos abre-
viar os nomes das pessoas envolvidas e não informar seus respectivos en-
dereços, pois o texto é, para nós, apenas material didático, corpus para
pesquisa e estudo.
I. RIO GRANDE DO NORTE
II. MINISTÉRIO PÚBLICO
III.79ª PROMOTORIA DE INVESTIGAÇÕES CRIMINAIS E
IV. CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL DA COMARCA
DE NATAL

V. EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A)


DE DIREITO DA 5ª VARA
VI. CRIMINAL DA COMARCA DE NATAL — FÓRUM CEN-
TRAL
VII. Processo nª XXXXXXX-XX-XXXX.X.20.0001

1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, por seu Promotor de


2. Justiça signatário, no exercício de suas atribuições legais, com fulcro no
art. 129, inc. I, da
3. Constituição Federal e art. 24, do Código de Processo Penal, e com supe-
dâneo probatório no
4. incluso inquérito policial, vem oferecer DENÚNCIA contra:

5. W. B. C. (1º denunciado), brasileiro, em união


6. estável, auxiliar de soldador, natural de São Gonçalo do
7. Amarante/RN, nascido aos 22.04.1993, com 20 anos de idade à época
8. dos fatos, filho G. C. V. e M. A. C., residente na
9. Rua XXXXX, S/N, Mãe Luíza, Natal/Rn, atualmente preso à
10. disposição da Justiça;

11. D. D. DE O. (2º denunciado),


12. brasileiro, solteiro, ajudante de pedreiro, natural de Natal/RN,
13. nascido aos 03.02.1994, com 19 anos de idade à época dos fatos, filho
14. de F. N. de O. e J. dos S. D.,
15. residente na Rua XXXXX, 40, Bairro Igapó, Natal/RN;

16. Pela prática da conduta antijurídica que a seguir é descrita:

17. No dia 11 de janeiro de 2014, por volta das 19h00min, nas proximida-
des do
18. “Mercado de Petrópolis, na Avenida Hermes da Fonseca, no interior
do ônibus da Empresa
19. Santa Maria que realiza o trajeto da Linha 33-A, os denunciados W. B. C. e
20. D. D. DE O., em comunhão de vontades e unidades de
21. desígnios, mediante grave ameaça pelo uso de um revólver não apreendido,
subtraíram para
22. si diversos telefones e a quantia de R$ 54,00 (cinquenta e quatro reais),
pertencentes
23. às vítimas que estavam dentro do transporte coletivo em comento.

173
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

24. Consta dos autos de inquérito que na data do fato os denunciados, que já
25. estavam dentro do coletivo, anunciaram o assalto, apontando a arma
de fogo para os
26. passageiros e exigindo que lhes fossem entregues todo o material de
valor que possuíssem
27. naquele momento, obrigando uma das vítimas a recolher a res furtiva.

28. Em seguida, os criminosos determinaram que o motorista parasse o veículo e


29. se evadiram em direção ao Bairro de Mão Luíza.

30. Ocorre que, o crime foi de imediato comunicado às autoridades policiais que
31. de pronto iniciaram as diligências, sendo visualizado e preso o primeiro
denunciado, ainda
32. de posse dos produtos subtraídos, consistente em 04(quatro) aparelhos
celulares, além da
33. quantia de R$ 54,00(cinquenta e quatro reais) em espécie.

34. Ao ser ouvido por ocasião da lavratura de prisão em flagrante, o primeiro


35. denunciado confirmou que o crime fora praticado com a participação
do segundo
36. denunciado, pessoa que estaria armada no momento da abordagem às
vítimas.

37. As testemunhas reconheceram os denunciados como autores do crime de


38. roubo com dupla causa de aumento.

39. Autoria e materialidade comprovadas.

40. Isto posto, o Ministério Público vem propor a presente ação penal contra
41. W. B. C. e D. D. DE O., já qualificados,
42. pela prática do delito tipificado no artigo 157, § 2º, incisos I e II,
c/c os artigos 70 e 29, todos
43. do CP, esperando que seja a presente denúncia recebida, citando-se
os acusados para
44. apresentação de defesa preliminar e para os demais atos do processo-
crime, até sentença
45. final condenatória.

46. Requer, ainda, a intimação das testemunhas abaixo arroladas, na forma e sob
47. as condições legais, para que prestem informações sobre os fatos.

Natal, 28 de janeiro de 2014

L. E. M. C.
Promotor de Justiça

174
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

Retomando Pinto (2010), destacamos que estamos trabalhando (ana-


lisando) um gênero persuasivo, ou seja, a finalidade do gênero apresenta
aspectos persuasivos associados a ele, pois é elaborado para fazer com
que o outro (no caso o juiz) tome partido em relação ao pleito: aceitação
da denúncia e condenação dos denunciados.
As primeiras representações discursivas (Rd) são formadas por as-
pectos verbais e não-verbais estampados por variadas partes do texto. As
linhas i, ii, iii, iv, v, vi, estão em negrito e caixa alta, destacando-se de
todas, pelo tamanho das letras, o nome “MINISTÉRIO PÚBLICO” —
linha ii —. O conjunto das linhas i a vi ajudam a formar a imagem (um
éthos) dos órgãos do Estado, em especial do “MINISTÉRIO PÚBLICO”,
enquanto instituição jurídica.
A orientação argumentativa desse(s) éthos dos entes estatais pro-
cessa-se pela interpretação de informações já armazenadas na memória
discursiva (KOCH, 2010) e, por inferência nossa, o misto verbal/não-ver-
bal assume valor de argumentos que influenciam pelo prestígio de um
enunciador, pela palavra de honra, pela asserção que assume valor de
prova. Seria uma espécie de argumento de (por) autoridade (PEREL-
MAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996).
Como confirmação de nossa assertiva anterior, a linha v. é composta por
três pronomes de tratamento usados como forma de reconhecimento de au-
toridade e ou respeito: “EXCELENTÍSSIMO(A)”, “SENHOR(A)” e “DOU-
TOR(A)”. Estes pronomes estão associados à imagem (Rd / éthos) de outra
autoridade judiciária, o “JUIZ(A) DE DIREITO”. Nesse sentido, os aspectos
caixa alta, negrito, destaque pelo tamanho da fonte, localização nas primei-
ras linhas do texto, assumem um valor retórico na orientação argumentativa
do texto e, em consequência, no discurso, uma vez que ajudam e requerem a
formação de representações discursivas com forte valor persuasivo.
A decisão do Ministério Público, “por seu Promotor”, linha 1, em ofe-
recer a denúncia, é amparada pelo “art. 129, inc. I, da Constituição Fe-
deral e art. 24 do Código de Processo Penal”, linhas 2 e 3. Além disso, a
decisão está embasada em provas que, do ponto de vista jurídico, seriam
(ou deveriam ser) irrefutáveis: “e com supedâneo probatório no incluso
inquérito policial”, linhas 3 e 4.
Esse tipo de prova está, segundo Aristóteles (1969 [384–322 a.c.]),
para o necessário, como argumento irrefutável que somente se admite
uma asserção, o que realmente ele (o objeto) é, e, sobre esta asserção, não
se admite outra afirmação porque há um acordo completo. Seria como um
objeto da ciência.
Por esse entendimento, a expressão lexical “supedâneo probatório” é
carregada de argumentatividade e, pela tradição, constrangimentos e ra-

175
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

cionalidade do próprio discurso jurídico, associa a denúncia em destaque


a um logus e a um éthos, respectivamente, a uma prova do discurso racio-
nal e à credibilidade do enunciador. Portanto, é uma expressão que orienta
para uma conclusão determinada e exerce, assim, função persuasiva.
A orientação argumentativa pela influência da representação discur-
siva está por todo o texto. Nas linhas 5 e 11, os acusados são designados
com seus nomes próprios de registro, mas, em, praticamente, todo o res-
tante do texto são recategorizados, salvo, na linha 41 em que seus nomes
próprios são retomados, todavia, são encapsulados por uma anáfora que
resume e dá por certo toda a descrição feita anteriormente dos referentes:
“já qualificados”. Essa anáfora encapsuladora contribui com o projeto
argumentativo-persuasivo das escolhas lexicais do enunciador. A expres-
são “já qualificados” — que, inclusive, está em negrito e sublinhado no
texto da denúncia, denota um certo compartilhamento de crenças: enun-
ciador e coenunciador compartilham os mesmos saberes sobre o mesmo
objeto-de-discurso, há, de acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996)
uma adesão dos espíritos.
A recategorização dos referentes, como em “1º denunciado”, linha 5,
“2º denunciado”, linha 11, “os denunciados”, linhas 19, 24 e 37, “os crimi-
nosos”, linha 28, “primeiro denunciado”, linhas 31, 34 e 35, “segundo de-
nunciado”, linhas 35 e 36, e “autores do crime”, linha 37, promove o
movimento de associação (assimilação) às propriedades semânticas da fi-
gura que exercita a “prática da conduta antijurídica”, linha 16. É uma
estratégia argumentativa que associa certas expressões (escolhas) lexi-
cais à imagem negativa do crime.
Nas linhas 5 e 11, os referentes são apenas “1º denunciado” e “2º denun-
ciado”, mas, na linha 37 são “autores do crime”. Constrói-se, lexicalmente, a
gradação de um campo semântico negativo com a presença de palavras ou
expressões que remetem a crime. Diante desse entendimento, as Rd estão a
serviço da argumentatividade do texto e do discurso persuasivo.
Fato também relevante e que participa do processo de construção das
Rd e, por isso, contribuem com a orientação argumentativa do texto, é a
descrição vista nas linhas de 5 a 15. São propriedades supostamente des-
conhecidas dos coenunciadores. Dados como profissão, bairro onde mora,
faixa etária, estado civil, dizem muito sobre a imagem de alguém.
Toda a descrição contribui com a recategorização dos objetos-de-dis-
curso e com a forma como tais objetos vão sendo (re)construídos na pro-
gressão do texto. Por exemplo, das linhas 17 a 23 é (re)construída a
situação e cena enunciativa e situado o fato e data do evento, colocando
o coenunciador (ou, no caso, o juiz) na relação tempo-espaço dos aconte-
cimentos enunciados. E para que? Para gerar engajamento e experien-

176
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

ciação. É o páthos aristotélico que diz que os juízos são proferidos me-
diante se experimenta amizade, ódio, alegria ou aflição (ARISTÓTELES,
1969). Dito de outro modo, é o engajamento que gera paixão e a paixão —
no sentido aristotélico — tem função persuasiva. Quanto mais verossí-
meis forem os fatos descritos, mais se aproximam da verdade ou do que
parece ser a verdade.
As expressões “em comunhão de vontades”, linha 20, “unidade de de-
sígnios”, linhas 20 e 21, trazem a certeza de que o ato antijurídico foi feito
por vontade própria e premeditado. O campo semântico negativo é acen-
tuado com as expressões “grave ameaça” e “uso de um revolver”.
Por fim, embora ainda se possa estressar esta análise, três outras
expressões evidenciam a certeza de culpa dos denunciados a ser compar-
tilhada com o juiz: “Autoria e materialidade comprovadas”, linha 39, “que
seja a presente denúncia recebida”, linha 43, e “até sentença final conde-
natória”, linhas 44 e 45. Não resta dúvida que todos os argumentos levam
à conclusão de culpa e condenação.

Considerações finais
No início deste capítulo, dissemos que nosso objetivo era investigar
a argumentação com foco na sua dimensão semântica e na influência
dessa dimensão para a orientação argumentativa do texto e do discurso.
Partimos também de duas questões norteadoras: como as representações
discursivas — as imagens — contribuem com a eficácia persuasiva da ar-
gumentação? Que escolhas linguísticas e discursivas o enunciador usou
para destacar os argumentos e persuadir?
Pudemos, durante a análise, responder com ênfase de detalhes a im-
portância das representações discursivas — das imagens — para a eficácia
persuasiva da argumentação, bem como, detalhamos as diversas escolhas
linguísticas e discursivas, inclusive verbais e não-verbais, que foram usadas
pelo enunciador como estratégia para destacar os argumentos e persuadir.
Entretanto, ainda nos cabe os seguintes comentários: as imagens
construídas por intermédio das representações discursivas (Rd) orientam
argumentativamente o texto para construção dos sentidos de acordo com
a visada argumentativa-persuasiva do enunciador. Além disso, os proces-
sos descritivos de (re)construção dos ambientes espaço-temporal e de re-
categorização dos referentes, podem influenciar a orientação
argumentativa do texto e o compartilhamento de crenças entre enuncia-
dor e coenunciador.
Resumidamente, mostramos no gráfico a seguir (figura 2) a gradação
semântica que as representações discursivas — as imagens — ganharam

177
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

ao longo do texto em função de um querer-dizer do enunciador e, por isso,


mostraram-se fundamentais para a argumentação e para a função argu-
mentativa-persuasiva do discurso.

Figura 2 — Movimento de gradação das representações discursivas

Fonte: elaborado a partir dos dados da pesquisa

Pelo exposto, observamos que os campos semânticos das representa-


ções discursivas dos denunciados alargam-se a tal ponto que o denunciado
é dado como condenado, no último degrau, pela “sentença final condena-
tória”. Isso confirma que as representações discursivas influenciam a per-
suasão na argumentação.

Referências
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discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
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DECRETO lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 1941. Disponível em:

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MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES

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179
180
O PLANO DE TEXTO E
A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA
PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

José Iranilson da Silva — UFRN

Introdução
Neste trabalho, apresentamos um recorte da pesquisa de doutorado
que investiga o plano de texto e a orientação argumentativa na “denúncia
de impeachment da presidenta Dilma Rousseff”, gênero discursivo textual
circunscrito aos domínios jurídico e político. Nossa pesquisa está vincu-
lada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL)
da Universidade Federal do Rio Grande o Norte (UFRN) e integra o grupo
de pesquisa da Análise Textual dos Discursos (ATD). Metodologicamente,
trata-se de um estudo que se insere quanto à sua natureza e objetivo no
paradigma qualitativo, com uma investigação explicativa e descritiva.
Para tanto, utilizamos o método indutivo-dedutivo de caráter interpreta-
tivista, com procedimentos técnicos que caracterizam o tipo de pesquisa
documental e bibliográfica.
Tomamos como motivações iniciais e principais investigar como se
dá a visada argumentativa a partir do plano de texto na denúncia; e, que
mecanismos linguísticos são utilizados para a construção da orientação
argumentativa. De certa forma, inauguramos os estudos linguísticos em
textos da recente história social e política do Brasil, uma vez que a inter-
net tem possibilitado o acesso a textos que circulam nas esferas jurídica
e política, sendo bastante contundentes na atualidade. O gênero denúncia
está inserido em ambientes institucionalizados e possui várias potencia-
lidades genéricas. Consideramos um exercício fundamental e inicial de
análise trabalhar com o plano de texto, visto que temos focado nossas pes-
quisas nesse sentido.
Nossa ancoragem teórica situa-se na abordagem da Análise Textual
dos Discursos, doravante ATD, enfoque desenvolvido por Jean-Michel
Adam (2011). O quadro teórico-metodológico aborda os avanços na con-
cepção da relação texto/discurso, propondo uma abordagem em que ambos
são pensados de forma articulada e, ao mesmo tempo, em categorias para
a análise de uma variedade de gêneros nos diferentes domínios discursi-
vos. Quanto aos níveis ou planos de análise textual propostos por Adam

181
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(2011) em seu esquema 4, transitaremos nos níveis 5 e 8, mais especifi-


camente nos níveis do plano de texto e da orientação argumentativa.
A análise com base nestas duas categorias, que apresentam total pos-
sibilidade de articulação, norteia a fase inicial do estudo. Para Adam
(2011), o limite entre os aspectos discursivos e textuais está na noção de
gênero(s). Nesse sentido, as esferas discursivas jurídica e política têm
sido terreno promissor para investigações pautadas no quadro metodoló-
gico da ATD, subsidiando a junção de categorias do ponto de vista teórico
e analítico.
O presente texto estrutura-se da seguinte forma: na primeira seção,
apresentamos o documento através do estabelecimento do texto, resumi-
damente caracterizamos o gênero denúncia e situamos as esferas discur-
sivas; na segunda seção, tecemos considerações sobre o plano de texto; o
corpus é apresentado na terceira seção e na seção seguinte destacamos a
parte analisada do corpus; e, por último, as considerações finais quando
apresentamos conclusões possíveis nesta etapa da pesquisa.

1. Estabelecimento do texto, gênero e esferas dis-


cursivas
Iniciamos esta seção explicitando de forma resumida o contexto do
documento cujo texto é analisado. Reeleita nas eleições de 2014, Dilma
Vana Rousseff, do Partido do Trabalhadores (PT), sofreu um processo de
impeachment cujos trâmites duraram de 17 de abril a 31 de agosto do ano
de 2016. Como resultado do processo, a presidenta Dilma foi destituída
do cargo de presidente, permanecendo, contudo, com seus direitos políti-
cos preservados. Em 2015, foram protocolados na Câmara dos Deputados
50 pedidos de impeachment contra Dilma Rousseff. Foi acolhido pelo
então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o pedido
elaborado pelos juristas Miguel Reale Jr., Janaína Conceição Paschoal e
Hélio Bicudo, protocolado no dia 15 de outubro de 2015 e acolhido por
Cunha no dia 2 de dezembro do mesmo ano. Subscreveram oficialmente
o pedido: Carla Zambelli Salgado (Movimento Contra a Corrupção), Kim
Patroca Kataguiri (Movimento Brasil Livre) e Rogério Chequer (Vem Pra
Rua). É a segunda vez que tal fato ocorreu no país sendo a primeiro no
dia 29 de dezembro de 1992, quando Fernando Collor, então presidente
foi julgado no Senado Federal, após formação de uma CPI (Comissão Par-
lamentar de Inquérito) para investigar as acusações de corrupção contra
o presidente. Collor foi deposto de seu mandato e destituído de seus di-
reitos políticos, sendo obrigado a ficar oito anos sem concorrer a qualquer
tipo de eleição para um cargo político público. O vice-presidente Itamar

182
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Franco assumiu a Presidência. Foi o primeiro presidente vítima de im-


peachment no Brasil. Até hoje, diversos pedidos de impeachment contra
diversos chefes de Estados (Governadores, Prefeitos etc) foram protoco-
lados e nunca chegaram sequer à votação.
O documento suscita muitas motivações políticas e jurídicas para
analisá-lo, porém, nossa motivação para a análise linguística desse texto
se deu em função da necessidade de discutir esse gênero, que é peça in-
trodutória em um processo, bem como sua estrutura composicional, posto
que, para Adam (2011), o limite entre os aspectos discursivos e textuais
está na noção de gênero(s).
A denúncia é um gênero textual redigido pelos operadores do Direito
em que o fato criminoso é exposto com todas as suas circunstâncias. Nela,
encontramos também a qualificação do acusado e da vítima ou esclareci-
mentos pelos quais se possam identificar o acusado, a classificação do
crime e o rol das testemunhas. De modo geral, no juízo criminal, este gê-
nero funciona como petição inicial que contém a acusação contra o agente
do fato criminoso. Uma das principais características do gênero é a apre-
sentação em conjunto dos tipos textuais narrativo, descritivo, injuntivo e
argumentativo, este último com a intenção clara de convencer de que o
agente criminoso dever ser punido por seus atos. Para que uma denúncia
não seja considerada inepta e, consequentemente, rejeitada, deverá con-
ter a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qua-
lificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo,
a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas. Deve
conter também o pedido de condenação, mas não precisa ser expresso,
basta que tal pedido esteja implícito.
Partindo da ideia de Bakhtin (1992, p. 279), quando indica que os gê-
neros se definem como “[...] tipos relativamente estáveis de enunciados”
e utilizando a nomenclatura “gêneros discursivos”, devemos considerar a
história da sociedade e da linguagem para tratarmos os gêneros discur-
sivos a partir de uma perspectiva bakhtiniana. Assim, eles são marcados
por fatores sociais, históricos e culturais e estão diretamente relacionados
às diferentes situações de uso da linguagem.
Ainda quanto ao gênero, Bronckart (1999) define como formas comu-
nicativas historicamente construídas por diversas formações sociais, em
função de seus interesses e de seus objetivos próprios.
Marcuschi (2002, p. 19) também afirma que a expressão gênero tex-
tual é usada como “uma noção propositalmente vaga para referir os textos
materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam
características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades
funcionais, estilo e composição característica”.

183
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

O referido autor ainda esclarece que “[...] os gêneros contribuem para


ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia”, caracteri-
zando-se “[...] como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plás-
ticos”, modificando-se e adaptando-se ao meio. (MARCUSCHI, 2002, p. 19).
Para Koch e Elias (2006), os gêneros textuais são classificados quanto
à sua composição, conteúdo, estilo, intergenericidade e heterogenericidade.
Para as autoras, ao nos depararmos com um texto ou até mesmo construí-
lo, devemos levar em consideração a forma como ele está sendo escrito,
sua estrutura e em que situação ele está sendo usado. São vários os gêne-
ros textuais: cartas, e-mails, anúncios, artigos, poesias, piadas, contos etc.
Dessa forma, é muito difícil para os estudiosos da linguagem classi-
ficam todos os gêneros textuais, uma vez que dependem de origens socio-
comunicativas e estão constantemente sofrendo variações, além de, em
alguns casos, estarem mesclados de outros gêneros.
Nesse sentido, o discurso jurídico possui seus gêneros específicos,
assim como o discurso político. Estes se utilizam de linguagem e formatos
técnicos e jurídicos, onde existe um discurso baseado na legislação, no
caso do jurídico, e no político baseado também em legislação, mas também
na produção de efeitos retóricos através da linguagem. O jurídico especi-
ficamente é construído com enunciados performativos e normativos.
Ambos também são fundamentados em fatos do mundo social que moti-
vam seus pronunciamentos.
Adam cita Todorov (1978 apud ADAM, 2011, p. 44) para chamar a
atenção de que os gêneros de discurso se inscrevem em um “espaço socio-
discursivo de um determinado lugar social”. Para Adam (2011, p. 45), o
conceito de discurso, tendo em vista “uma estabilização pública e norma-
tiva, é a possibilidade de um status institucional”, sendo estabelecidos
pela história, pela cultura, pela sociedade.
Contribuindo com o entendimento sobre o discurso político, Queiroz
(2013, p. 77) afirma:

O discurso político, enquanto gênero, apresenta seu estilo próprio


de uso da linguagem, pois o seu objetivo maior é mascarar, conven-
cer, justificar uma determinada ação ou o pensamento do sujeito-
locutor, para conseguir a adesão do outro, à posição socioideológica
determinada pelo público ou pela comunidade específica.

Dessa forma, podemos entender que os gêneros provenientes do dis-


curso jurídico trazem marcas próprias e são carregados de intencionali-
dade. No caso da denúncia analisada, essa traz como intenção apresentar
argumentos capazes de convencer sobre a possibilidade do impeachment
da presidenta Dilma Rousseff.

184
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

2. O plano de texto
Iniciamos esta seção apresentando o esquema 4, destacando as cate-
gorias utilizadas na pesquisa.

Figura 1: Níveis ou planos da análise de discurso


Esquema 4
NÍVEL OU PLANOS DA ANÁLISE DE DISCURSO

FORMAÇÃO INTERAÇÃO AÇÃO DE


SOCIODISCURSIVA SOCIAL LINGUAGEM
(VISADA,
OBJETIVOS)
(N2) (N1)

(N3)
INTERDISCURSO
Socioletos
Intertextos
GÉNERO(S)

TEXTO

Textura
(proposições Atos de
enunciadas e Estrtutura discurso
Enunciação
períodos) composicional Semântica (responsabilidade (ilocucionários)
(N4) (sequências e (representação enunciativa) e orientação
planos de textos) discursiva) argumentativa
e coesão
(N5) (N6) (N8)
polifônica
(N7)
NÍVEIS OU PLANOS DA ANÁLISE TEXTUAL

Fonte: Esquema 4 (ADAM, 2011, p. 61)

A ATD, conforme Adam (2011, p. 257), apresenta uma estrutura com-


posicional global dos textos, que é ordenada por um plano de texto, o que
permite “construir (na produção) e reconstruir (na leitura ou na escuta)
a organização global de um texto, prescrita por um gênero”, considerando
que as unidades textuais organizam-se em níveis crescentes de comple-
xidade e que sua configuração permite unir as proposições em macropro-
posições e em feixes de proposições que formam os períodos, as sequências
e as partes que compõem um plano de texto.
Ainda de acordo com Adam (2004, p. 377), os planos de texto “desem-
penham um papel capital na composição macrotextual do sentido”, uma

185
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

vez que os planos de texto abarcam blocos de texto formados pelas se-
quências e estabelecem a organização global prescrita por um gênero. Os
planos de texto são, dessa forma, “o principal fato unificador da estrutura
composicional”. (ADAM, 2011, p. 258).
Segundo Adam (2011), existem planos de texto fixos, que correspon-
dem às constantes composicionais de gêneros discursivos como, por exem-
plo, artigos acadêmicos, verbetes de dicionário, receitas culinárias. Mais
recorrentemente, porém, ocorrem os planos de texto ocasionais, desloca-
dos em relação aos gêneros de discurso e, por isso, dependentes em maior
grau de decisões do produtor textual no momento da escrita. Adam (2004,
p. 378) lembra que “o plano é inventado e descoberto durante o evento”.
De acordo com o autor, “a (re)construção de partes ou segmentos que cor-
respondem ou ultrapassam os níveis de período e da sequência é uma ati-
vidade cognitiva fundamental que permite a compreensão de um texto e,
para isso, mobiliza todas as informações linguísticas de superfície dispo-
níveis”(ADAM, 2011, p.263).

3. Corpus e análise
Partimos agora para a apresentação da denúncia analisada com os
primeiros tratamentos metodológicos no que se refere ao plano de texto.
Salientamos que o corpus utilizado para análise neste trabalho é a “de-
núncia”, documento de caráter público, elaborada pelos juristas Miguel
Reale Jr, Janaína Paschoal e Hélio Bicudo, datado de 15 de outubro de
2015, disponível em http://veja.abril.com.br/complemento/pdf/SE-
GUNDO-PEDIDO-DE-IMPEACHMENT.pdf (versão com formatação ori-
ginal) e que ficou conhecido como o pedido de impeachment, constituído
de sessenta e cinco páginas, devidamente numeradas. A seguir, apresen-
tamos o plano de texto com a indicação de divisão de seções como proce-
dimento de análise. Vejamos:

Quadro 1 — Plano de texto da “denúncia de impeachment


da Presidenta

PLANO DE TEXTO PÁGINAS

Destinatário

Epígrafe
pág. 01 e 02
Dados dos locutores/enunciadores
Fundamentação legal e apresentação da Denúncia

186
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

(Continuação)

PLANO DE TEXTO PÁGINAS

SEÇÃO 1 1- Dos fatos: pág. 02 a 12

2- Dos crimes de responsabilidade:2.1.- Dos Decre-


tos Ilegais. Crime do art. 10, itens 4 e 6 da Lei Pág. 12 a 22
1.079/50, de 10 de abril de 1950

2.2.- Das Práticas Ilegais de Desinformações Con-


pág. 22 a 36
SEÇÃO 2 tábeis e Fiscais- As chamadas pedaladas fiscais

2.3.- Do não registro de Valores no Rol de Passivos


da Dívida Líquida do Setor Público-Crime de Res-
pág. 36 a 39
ponsabilidade capitulado no artigo 9º. Da Lei
1.079/50;

3.- Da responsabilidade da denunciada3.1.- Da Na-


pág. 39 a 43
tureza Jurídica do processo de Impeachment

SEÇÃO 3 3.2.- Da Omissão Dolosa pág. 43 a 51

3.3- Possibilidade de responder por crime praticado


pág. 51 a 61
em mandato anterior

4. Do pedido: pág. 61 a 65
SEÇÃO 4
Local, data e assinaturas pág. 65

Temos um plano de texto fixo, que obedece a uma estrutura do gênero


estabelecida juridicamente, ou seja, podemos identificar: i) é de autoria
de operadores do Direito; ii) aponta fato criminoso e suas circunstâncias
na concepção de seus autores; iii) apresenta qualificação da acusada; iv)
aponta testemunhas; e, v) o pedido de condenação explícito. Mas que
apresenta também flexibilizações em sua estrutura, o que o torna tam-
bém ocasional.
Linguisticamente, o texto apresenta uma das principais caracterís-
ticas do gênero: possuir os tipos textuais narrativo e descritivo, verificado
principalmente na seção “Dos fatos”, apontados na próxima seção, injun-
tivo e, primordialmente, o argumentativo, visto em toda a sua estrutura,
desde a epígrafe em que cita Santo Tomas de Aquino e Rui Barbosa, às sen-
tenças argumentativas, especificamente, com a utilização de diversas vozes
e intertextos, até o último parágrafo quando apela à emoção parafraseando
o Hino Nacional Brasileiro, como ilustramos no quadro a seguir:

187
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Quadro 2 — Abertura e encerramento do texto da “denúncia de im-


peachment da Presidenta Dilma Rousseff”

“O princípio geral a se observar é que ‘[...] não se deve


proceder contra a perversidade do tirano pro iniciativa
privada, mas sim pela autoridade pública’, disto isto,
reitera-se a tese de que, cabendo à multidão prover-se
de um rei, cabe-lhe também depô-lo, caso se torne ti-
EPÍGRAFE
rano...”(Santo Tomas de Aquino. Escritos Políticos. Pe-
trópolis: Vozes, 2011. p.25).“Em todo país civilizado, há
duas necessidades fundamentais: que o poder legisla-
tivo represente o povo, isto é que a eleição não seja fal-
sificada, e que o povo influa efetivamente sobre os seus
Por derradeiro, cumpre lembrar frase central em
nosso Hino Nacional: VERÁS QUE UM FILHO TEU
ÚLTIMO PARÁ-
NÃO FOGE A LUTA! Munidos da Constituição Fede-
GRAFO DO TEXTO
ral, estes filhos do Brasil vêm pedir ao Congresso Na-
cional que tenha a CORAGEM necessária para fazer

3.1. A seção “Dos fatos”


Selecionamos para análise neste artigo a seção 1 “Dos fatos”. Esta-
belecemos a contagem dos parágrafos que a constitui, sendo cinquenta e
um, com um total de duzentas e oitenta e uma linhas. No quadro a seguir
apontamos duas colunas, a primeira destacando a numeração ordinária
crescente dos parágrafos e a segunda com os excertos textuais demons-
trados através de uma síntese de cada parágrafo e escolhas lexicais, que
determinam uma orientação argumentativa destacadas em negrito. Este
último procedimento subsidiará a pesquisa em suas etapas posteriores e
aprofundará a relação do plano de texto com a orientação argumentativa.

Quadro 3 — Plano de texto da seção “Dos fatos” da “denúncia de im-


peachment da Presidenta Dilma Rousseff”

1º O Brasil está mergulhado em profunda crise.


O Governo Federal também tenta fazer crer que tal crise pode se tor-
2º nar institucional, sugere que [...] não há que se falar em crise institu-
cional.

O Tribunal Superior Eleitoral, [...], tem apurado inúmeras fraudes,


3º verdadeiros estelionatos, encetados para garantir a reeleição da
Presidente da República, [...].
[...] o Tribunal Superior Eleitoral decidiu reabrir o julgamento sobre

as contas de campanha da Presidente da República.

188
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

[...], o Tribunal de Contas da União (TCU) assinalou flagrantes viola-



ções à Lei de Responsabilidade Fiscal, [...].
[...] houve uma maquiagem deliberadamente orientada a passar para
a nação (e também aos investidores internacionais) a sensação de
6º que o Brasil estaria economicamente saudável e, portanto, teria con-
dições de manter os programas em favor das classes mais vulnerá-
veis. [...]

[...], Ministro do TCU noticiou à BBC que alertara a Presidente


acerca das irregularidades em torno das chamadas pedaladas fiscais.

E [...], o mesmo Tribunal, em decisão histórica, inegavelmente téc-
nica, rejeitou as contas do Governo Dilma, relativamente a 2014.
Na esteira do histórico processo do Mensalão, [...] foi deflagrada a
Operação Lava Jato, que em cada uma de suas várias fases colhe

pessoas próximas à Presidente, desconstruindo a aura de profissional
competente e ilibada, criada por marqueteiros muito bem pagos.
[...] episódio envolvendo a compra da Refinaria em Pasadena pela Pe-

trobrás [...]
[...] era presidente do Conselho da Estatal e deu como desculpa um
10º
equívoco relativo a uma cláusula contratual. [...]

[...] as obras e realizações propaladas como grandes conquistas do Go-


11º verno Dilma não passavam de meio para sangrar a promissora estatal
[...].

[...] Paulo Roberto Costa era pessoa muito próxima á Presidente da


12º
República, [...] convidado para o casamento da filha da Presidente [...].

[...] algumas empresas foram escolhidas para serem promovidas inter-


13º nacionalmente e, a partir de então, participando de irreais licitações
[...]

[...] Alberto Youssef asseverou que, dentre outras autoridades, a Presidente


14º
da República tinha ciência do que acontecia na Petrobrás [...].
[...]foram presos [...] pessoas que a Presidente fazia questão de reve-
15º
renciar, até que negar os descalabros ficasse impossível.

[...] a denunciada negou que a situação da Petrobrás, seja sob o ponto


16º
de vista moral, seja sob o ponto de vista econômico, era muito grave.

[...] a denunciada insistiu na estapafúrdia tese de que as denúncias


17º
seriam uma espécie de golpe, [...].
[...] Operação Lava jato jogou luz sobre a promíscua relação havida
18º entre o ex- Presidente Lula e a maior empreiteira envolvida no escân-
dalo, [...].

189
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

[...], o Ministério Público Federal do Distrito Federal, [...], iniciou in-


19º vestigação pela suposta prática de tráfico de influência, por parte do
ex-presidente Lula, a fim de apurar favorecimento ao grupo Ode-
[...] o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, por meio de
acórdão protelado pelo Desembargador Federal João Pedro Gebran
Neto, nos autos do Habeas Corpus de número
20º
503125866.2015.4.04.0000/PR, impetrado em benefício do presidente
da Odebrecht, denegou a ordem, aduzindo que os fatos envolvendo a
Petrobrás são notórios. [...]
[...] Lula é muito mais do que um ex-Presidente, mas alguém que, se-
21º
gundo a própria denunciada, lhe é indissociável e NUNCA SAIU DO
[...] a atual Presidente respondeu que ele (Lula) não iria voltar por-
22º
que nunca havia saído, frisando que ambos seriam indissociáveis.
[...] se a Presidente era (e é) indissociável de Lula, muito provavelmente,
sabia que ele estava viajando o mundo por conta da Construtora Ode-
23º brecht, [...] não se podem desconsiderar as fortes acusações feitas pelos
empresários gaúchos, [...] no sentido de que Dilma teria sido imposta
a Lula por referido grupo empresarial.
[...] houve o vazamento de um relatório do COAF, dando conta de que
24º o ex-Presidente Lula teria recebido quase TRINTA MILHÕES DE
REAIS[...]
[...] cumpre ressaltar a constante defesa que a denunciada faz da figura
25º
do ex-presidente Lula. [...]

[...]sendo fato notório que o Presidente Lula lhe prestava assessoria


nos contratos firmados e mantidos com o Poder Público, não seria caso,
26º
no mínimo, de a Presidente Dilma Rousseff afastar-se, ao menos ins-
titucionalmente, de seu antecessor?

[...] os montantes enviados para Cuba e Angola receberam a chancela


27º
de sigilosos. [...]
Durante muitos anos, todos os brasileiros foram iludidos com o discurso de
28º que o ex- Presidente Lula seria um verdadeiro promotor do Brasil, no
exterior, [...]

[...] A Presidente da República faz parte desse plano de poder. E os Po-


29º
deres constituídos precisam, nos termos da Constituição Federal, agir.
[...] tinha como seu braço forte a ex-ministra Erenice Guerra, que sem-
30º
pre se encontra em situações questionáveis, [...]
[...]a Presidente agiu como se nada soubesse, como se nada tivesse
31º
ocorrido [...]
[...]Edinho Silva, tesoureiro da campanha da Presidente, apontado
32º como receptor de quase quatorze milhões de reais, é mantido no Go-
verno [...]

33º [...]a tese do suposto desconhecimento se mostra insustentável. [...]

190
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

[...]Pasadena foi apenas mais um episódio e a estratégia de "não sei,


34º
não vi" se revela modus operandi.
[...] a governante máxima teria sido apenas negligente ao não respon-
35º
sabilizar seus subalternos.
36º [...] tudo indica ter a denunciada agido com dolo, [...].
Reforça o entendimento de que a Presidente da República agiu com
37º dolo o fato de ela sempre se mostrar muito consciente de todas as
questões afetas ao setor de energia, bem como aquelas relacionadas à
[...] Golpe será permitir que o estado de coisas vigente se perpetue.
38º
[...].
[...] o Governo Federal já está movendo seus tentáculos com o fim de
39º
mitigar a Lei Anticorrupção, [...].
40º [...] governo Federal ter tentado constranger o TCU, [...]
Parte dos fatos objeto do presente feito pode constituir, além de crimes
41º
de responsabilidade, crimes comuns. [...]
[...] a existência de crimes comuns apenas reforça a necessidade de se
42º
punir a irresponsabilidade [...]
Centenas de juristas reunidos em tradicional comemoração do dia "XI de
43º Agosto" externaram sua indignação ao apoiar manifesto da lavra do Emi-
nente Jurisconsulto Flávio Flores da Cunha Bierrenbach.
44º [...] a população foi maciçamente às ruas, [...]
[...] vídeo [...] evidencia que, de há muito, estamos vivendo em uma
45º
falsa Democracia, [...].
[...] a conduta omissa da denunciada, relativa aos desmandos na Pe-
46º trobrás, restou mais do que comprovada, implicando a prática de crime
de responsabilidade [...]
[...] os crimes de responsabilidade da denunciada .não se limitam àque-
les atentatórios à probidade na administração, [...] sérias ao orçamento
foram perpetradas, seja pela edição de decretos não numerados abrindo
47º
crédito suplementar, sem autorização do Congresso Nacional; seja pela
prática das chamadas pedaladas fiscais, com inequívoca maquiagem
das contas públicas.
[...] 63% (sessenta e três por cento) da população brasileira quer o _
48º
Impeachment de Dilma Rousseff [...]

49º [...] o único golpe que se praticou foi a reeleição da Presidente; [...].

Os crimes de responsabilidade de Dilma Vana Rousseff exigem urna


50º resposta firme do Congresso Nacional, em uma única direção, a do im-
pedimento.

[...] a rejeição das contas do Governo pelo Tribunal de Contas da União,


51º bem como a constatação de que as pedaladas invadiram o segundo
mandato, caracterizando inafastável continuidade delitiva.

191
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Para análise e reflexão neste trabalho, destacamos, nesta seção, dois


aspectos que despertam nossa atenção na relação plano de texto e orien-
tação argumentativa: i) podemos observar que do primeiro ao sétimo pa-
rágrafo temos um bloco semântico com sequências textuais que focalizam
principalmente “crise, fraudes, violações, maquiagem e irregularidades”;
e, ii) do vigésimo primeiro ao vigésimo oitavo a focalização é direcionada
para o ex-presidente Lula e sua influência na gestão da então presidenta
Dilma Rousseff.
Por fim, também verificamos aspectos linguísticos do gênero no que
se refere aos tipos textuais característicos da denúncia, além de perce-
bermos ausência de uma focalização temática mais direcionada à apre-
sentação dos fatos que caracterizam esta seção no referido gênero.

Considerações finais
A análise inicial do texto da denúncia, que culminou com o impeach-
ment da presidenta Dilma Rousseff, a partir da categoria do plano de
texto, nos conduz a estabelecer uma relação com a orientação argumen-
tativa do texto em seus aspectos composicionais e textuais. A intenção ar-
gumentativa se manifesta desde a disposição das seções até a estrutura
interna destas. Embora estejamos em fase inicial da pesquisa, alguns as-
pectos chamaram nossa atenção quanto aos dados, como a identificação
de uma densidade textual limitada na estruturação dos parágrafos e
pouca articulação entre estes com a utilização mínima de elementos co-
nectivos a serem analisados em etapas posteriores da análise.
A construção do plano de texto do documento estabelece uma orien-
tação argumentativa, constituindo, assim, uma entidade empírica que
possui aspectos peculiares em sua organização e composição, sobretudo
em sua estrutura interna.
A segmentação, os títulos das seções, os temas e/ou subtemas, as mu-
danças e reformulações de tópicos, a articulação dos organizadores tex-
tuais, dentre outros, podem sinalizar o estabelecimento do plano de texto,
permitindo unir, reunir, retomar, estabelecer movimentos internos no
texto que garantem em maior ou menor grau a homogeneidade semân-
tica, como também a orientação argumentativa, objeto de investigação
na continuidade da nossa pesquisa.
Essa configuração do plano de texto reforça o fato de estarmos diante
de um texto instituído por uma prática normatizada, cognitivamente e
socialmente instituída, podendo conter variações, com elementos fixos e
com uma visada argumentativa explícita em seus níveis textuais e trans-
textuais.

192
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF

Referências
ADAM, Jean-Michel. Une approche textuelle de l’argumentation; schema, se-
quence et phrase périodique. In. DOURY, Marianne; MOIRAND, Sophie
(Orgs.). L’argumentation aujourd’hui. Paris: Presses Universataires
de la Sorbonne, 2004, p. 77-102.
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BRASIL. Código Civil e Constituição Federal — Tradicional. 65. ed. São
Paulo: Saraiva, 2014.
BRONCKART, Jean-Paul. Os textos e seu estatuto: considerações teóricas,
metodológicas e didáticas. In:______. Atividade de linguagem, textos e
discurso. São Paulo: EDUC.1999.
KOCH, Ingedore G. Villaça. ; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os
sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
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DIONÍSIO, A.P; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros
textuais e ensino. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2002.
QUEIROZ, Maria Eliete. Representações discursivas no discurso político.
“Não me fiz sigla e legenda por acaso”: o discurso de renúncia do senador
Antônio Carlos Magalhães (30/05/2001). Tese de Doutorado. Programa
de Pós-graduação em estudos da Linguagem. Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Natal, 2013.
A denúncia de impeachment é um documento que por si só chama a atenção uma
vez que é de autoria de advogados, ou seja, de operadores do direito
para o poder legislativo julgar procedente ou não uma vez que os crimes
apontados dizem respeito a autoridades políticas.
Qualquer cidadão pode oferecer uma denúncia contra presidentes da República
por crimes de responsabilidade (contra a existência da União, a probi-
dade administrativa, entre outros) à Câmara dos Deputados. A denúncia
deve ser assina... — Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ul-
timas-noticias/2015/02/12/voce-sabia-que-qualquer-cidadao-pode-pedir-
impeachment-de-presidente-entenda.htm?cmpid=copiaecola

193
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

194
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ
DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO ARGUMENTA-
TIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE
HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
Isabel Romena Calixta Ferreira — UFRN

Nosso objetivo neste capítulo consiste em investigar a responsabili-


dade enunciativa (RE) como mecanismo enunciativo para a construção
de argumentos de cunho emotivo na sentença judicial condenatória. O
fato de o caso em questão ter tido repercussão na mídia nacional, per-
mite-nos fazer alguns questionamentos a respeito da emoção que se
transmitiu na sentença. Para tanto, elaboramos os seguintes questiona-
mentos: De que modo a responsabilidade enunciativa pode atuar como
mecanismo enunciativo na construção de argumentos de cunho emotivo?
Quais marcas da RE o juiz utiliza para transmitir a emoção? E como essas
marcas influenciam na argumentação?
A emoção é um recurso utilizado de forma intencional para transmi-
tir uma situação seja ela qual for. Segundo Plantin (2012, p. 2), “a emoção
é um produto cognitivo-linguageiro, não é uma realidade que expressa-
mos, mas uma realidade que produzimos”. Para Rabatel (2013), a emoção
é pessoal e pode ser tomada nas formas de empatia e de simpatia. A pri-
meira caracteriza-se em se colocar no lugar do outro, sem necessaria-
mente experimentar suas emoções; a segunda tem efeito contrário, tendo
em vista que se caracteriza em experimentar as emoções do outro por
meio do momento que este outro vive, através do movimento de identifi-
cação. De acordo com a proposta da ATD, deve ser privilegiado o processo
da empatia para o estudo das emoções. Em consonância com o exposto,
evocamos Fonseca (2014, p. 37), que discorre o seguinte:

A emoção está relacionada à ordem do sensível. Em si ela não é re-


futada, porém, quando inserida em um discurso, ela pode ser nego-
ciada e subjetiva, como o próprio discurso. É com esse entendimento
de que a racionalidade é um constituinte da emoção, e que, assim
como a linguagem, ela é intencional e pode ser negociada, que as
emoções inserem-se no processo argumentativo da linguagem.

No que se refere à responsabilidade enunciativa, Adam (2011, p. 117)


postula que “o grau de responsabilidade enunciativa de uma proposição é
suscetível de ser marcado por um grande número de unidades da língua”.

195
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

Para Adam (2011), a Responsabilidade Enunciativa (RE) ou prise en


charge (PEC), enquanto categoria correlacionada ao Ponto de vista
(PdV)1, pode ser assinalada por diversas marcas linguísticas que viabili-
zam a explicitação de diferentes pontos de vista presentes nos textos e o
movimento de identificação da voz do locutor com um ou outro PdV.
De acordo com Rodrigues (2010, p. 5), a responsabilidade enunciativa
pode ser individual “quando um produtor físico (locutor–narrador-enun-
ciador) assume o(s) enunciado(s)” e coletiva “quando um indivíduo ou
um grupo de indivíduos assume, por exemplo, os problemas de uma co-
munidade”.
No trabalho de Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2016, p. 101), sobre
a RE coletiva, os autores evocam Adam e Lugrin (2006) para explicar de
que maneira a responsabilidade enunciativa é definida:

é uma noção ética e jurídica que, se redefinida enunciativamente,


pode ser linguisticamente abordada a partir de seu núcleo consti-
tutivo: (a) a construção de uma representação discursiva (doravante
Rd), (b) a assunção da responsabilidade enunciativa dessa Rd ou
ponto de vista (doravante PdV) e (c) o valor ilocutório dos atos de
discurso, inseparável da orientação argumentativa dos enunciados.
(ADAM; LUGRIN, 2006, p. 1).

Nesse sentido, Rodrigues, Passeggi e Silva Neto (2016, p. 104) foca-


lizam a noção de ponto de vista (PDV) para tratar da responsabilidade
enunciativa coletiva, atentando para a posição que o locutor enunciador
primeiro “assume em relação a um(a) determinado(a) tema, situação, pes-
soa, etc., ou seja, trata-se de uma avaliação de L1/E1 acerca de um objeto
alvo da apreciação”. No caso da sentença condenatória, o juiz, por natu-
reza, é o locutor. Nesse sentido, cabe a nós, saber se ele é, também, o
enunciador responsável pelo dito.
De acordo com Adam (2011), sobre os aspectos que toda proposição-
enunciado porta, três dimensões podem ser descritas: enunciativa, refe-
rencial e argumentativa — que, por vezes, são articuladas entre si, e se
complementam de forma dinâmica. O autor estabelece para a compreen-
são da proposição-enunciado:

Temos necessidade, metalinguisticamente, de uma unidade textual


mínima que marque a natureza do produto de uma enunciação
(enunciado) e de acrescentar a isso a designação de uma microuni-

1
É necessário destacar que há uma flutuação na maneira como a sigla PdV, referente à ex-
pressão “Ponto de vista” é grafada. Para Adam (2011) é PdV, para Rabatel (1997, 2004,
2005, 2008a, 2009) é PDV e para Nølke; Fløttum; Norén (2004) é pdv.

196
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

dade sintático-semântica (a que o conceito de proposição atende, fi-


nalmente, bastante bem). Ao escolher falar de proposição-enunciado,
não definimos uma unidade tão virtual como a proposição dos lógicos
ou a dos gramáticos, mas uma unidade textual de base, efetiva-
mente realizada e produzida por um ato e enunciação, portanto,
como um enunciado mínimo. (ADAM, 2011, p. 106).

Assim, consideramos o esquema a seguir para exemplificar em que con-


siste a função mais básica da proposição-enunciado, conforme Adam (2011).

Esquema 1: Função da proposição-enunciado

Proposição-enunciado Unidade enunciativa e textual (produto)

Ato de enunciação

Enunciada pelo enunciador + coenunciador

Fonte: Ferreira (2016, p. 18)

Dessa forma, uma proposição-enunciado é tida como uma unidade


mínima enunciativa e textual que é o produto resultante de um ato enun-
ciativo, cujo foco principal consiste na relação que se estabelece entre
enunciador e coenunciador.
Para complementarmos nossa fundamentação sobre os estudos
acerca da RE, introduzimos a posição teórica assumida por Rabatel (2009,
p. 77), que diz que “[...] todo enunciado pressupõe uma iminência que se
responsabiliza pelo que é aspirado, seguindo os quadros de referência, o
dictum, o sintagma, o conteúdo proposicional, a predicação, conforme o
esquema minimal da enunciação ‘EU DIGO’ (o que é dito)”.
Nesse caso, a responsabilidade relaciona-se diretamente com o Ponto
de vista (PDV) e com um primeiro locutor-enunciador (L1/E1), que é a
iminência que se responsabiliza pelo conteúdo proposicional, podendo im-
putar a RE a segundos enunciadores (e2) e, em seguida, emitir um posi-
cionamento (de acordo, desacordo ou portar-se de forma neutra).
Em consonância com o até agora exposto, trazemos os postulados de
Guentchéva (1994, 1996, 2011) para nos dar suporte no que se refere às
marcas de não assunção da responsabilidade enunciativa. Situados nos
campos semântico e enunciativo, seus estudos trazem à tona que cada
enunciado constrói uma referência no tempo e no espaço, na qual a rela-

197
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

ção predicativa — subjacente a um enunciado — é marcada por um jogo


de coordenadas enunciativas (GUENTCHÉVA, 1994). Assim, o referencial
tem uma origem cujo centro está em torno do sujeito enunciador.
Aliada ao conceito de mediativo está “a noção de responsabilidade
que se encontra aplicada a fenômenos de natureza diferentes e dentro de
sistemas gramaticais particulares”, apresentada por Guentchéva (2011,
p. 117). Segundo a autora, é a partir desse modo que se recorre com fre-
quência à noção de responsabilidade, com o objetivo de analisar a noção
de quadro mediativo e, portanto, está engendrada como a manifestação
da “não-responsabilidade” do conteúdo apresentado a partir de um enun-
ciado por um enunciador (Ibid., p. 117).
A noção de mediativo de Guentchéva (1994, 1996, 2011) consiste na
presença de um morfema na forma verbal que permite ao interlocutor
saber se o enunciador é ou não responsável pelo conteúdo proposicional
enunciado. Igualmente, permite ao enunciador revelar os diferentes
graus de distância que ele toma com respeito às situações descritas, já
que ele as distinguiu de maneira mediada.

1. A responsabilidade enunciativa a serviço da


emoção
Propomo-nos a analisar o fenômeno da responsabilidade enunciativa
em cada parte da narrativa da sentença de acordo com o que foi proposto
por Adam (2011, p. 226), em relação ao esquema da sequência narrativa,
contendo Situação Inicial (Pn1), Nó (Pn2), Re (Ação) ou Avaliação
(Pn3), Desenlace (Pn4) e Situação Final (Pn5), que representam as
macroproposições da narrativa. Segundo ele, na narrativa está contida
uma trama apresentada como estrutura hierárquica constituída de cinco
macroproposições narrativas de base (Pn) correspondentes aos cinco mo-
mentos (m) do aspecto, citados acima.

SITUAÇÃO INICIAL (Pn1)

Vistos.

Dispensado o relatório, nos termos do art. 492 do CPP.

Submetido a julgamento, o Conselho de Sentença reconheceu a materialidade,


atribuindo-lhe a autoria delitiva e afirmando as três qualificadoras descritas
nos autos.

198
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

Em Pn1, o locutor-narrador-enunciador inicia a narrativa com o


termo “Vistos”, o qual remete que o processo cumpriu todos os trâmites
necessários, ou seja, foram examinados, implicando que a responsabili-
dade lhe é imputada. O locutor-narrador-enunciador continua relatando
a dispensa do relatório, atribuindo essa ação à instância representada
pelos “termos do art. 492 do CPP”. Em seguida, verificamos o fato de o
réu ter sido “submetido a julgamento”, onde o locutor-narrador mostra o
PDV imputado à segunda instância (e2) “o Conselho de Sentença” ter re-
conhecido “reconheceu” (tempo verbal pretérito perfeito) a materialidade
do crime e, por consequência, o locutor-narrador afirma que o e2 (Conse-
lho) atribuiu ao réu a autoria dos delitos. Esse movimento enunciativo
assinala a não assunção da responsabilidade, quando o locutor a imputa
ao e2.

NÓ (Pn2)
A culpabilidade está comprovada e afere-se gravíssima. A censurabilidade da
conduta do acusado é acentuada e altamente reprovável, uma vez que, além de
ser advogado, é policial militar reformado, sendo de todo exigível se comportasse
de maneira diversa. Maior de 18 anos e mentalmente apto, o réu sabia, ou de-
veria saber da ilicitude de sua conduta. Com efeito, demonstrou absoluta in-
sensibilidade para com a vida humana, valorando-a para menos que seu prazer
possessivo, totalmente descabido. A conduta desprezível arquitetada pelo agente
exsurge altamente repugnante e supera os limites do tolerável (+ 1 ano).

Na espécie, a análise dos fatos demonstra que o agente possui uma personali-
dade agressiva, covarde e irresponsável, além de ter demonstrado frieza em
sua empreitada, patenteando intensa violência na prática delitiva. Não bas-
tassem os tiros, a vítima foi jogada ainda viva numa represa, talvez desacordada,
sendo certo que não sabia nadar. Em outras palavras, o resultado morte era
mais do que esperado. Tem personalidade egoística voltada à satisfação de seus
instintos mais básicos, sendo-lhe indiferente as consequências infaustas de
seus atos sobre seus semelhantes.

Em Pn2, temos a origem do crime introduzida pelo L1/E1 que traz o


fato de o “acusado” (nome qualificador) ser “advogado” e “policial militar
reformado” é “altamente reprovável” (modalidades advérbio de opinião e
lexema avaliativo), que sua conduta fosse diferente de uma pessoa da lei,
mostrando um PDV assertado e assumindo a RE. Os tempos verbais re-
lacionados ao réu “demonstrou”, “sabia”, “deveria”, no pretérito perfeito,
no pretérito imperfeito e no futuro do pretérito todos no indicativo, res-
pectivamente, revelam o PDV do L1/E1. Esse último tempo verbal “po-
deria” também indica um quadro mediador, tendo em vista que o locutor
assevera seu PDV, porém imputa a RE ao e2 (réu). Com os termos a se-
guir, veremos que o L1/E1 marca seu PDV, assumindo a responsabilidade

199
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

enunciativa determinada pelos termos “absoluta”, “prazer possessivo”,


“descabido”, “desprezível”, “repugnante”, “supera os limites do tolerável”
(lexemas avaliativos), “totalmente”, “altamente” (advérbios de opinião
que se referem às modalidades), os quais expressam emocionalmente
a indignação do L1/E1 a respeito do caso. Todas as escolhas lexicais que
o L1/E1 assumiu refletem seu posicionamento em desfavor ao réu. Assim
como pode ser retratado pelo trecho a seguir:

Exemplo 01:
“Na espécie, a análise dos fatos demonstra que o agente possui
uma personalidade agressiva, covarde e irresponsável, além de ter
demonstrado frieza em sua empreitada, patenteando intensa vio-
lência na prática delitiva. [...] Tem personalidade egoística voltada
à satisfação de seus instintos mais básicos, sendo-lhe indiferente
as consequências infaustas de seus atos sobre seus semelhantes.”

O tipo de representação da fala refletido pelo discurso narrativizado


com o verbo “foi”, no pretérito perfeito do indicativo, é remetido à vítima,
o dêitico espacial “numa represa”, o advérbio de opinião “talvez”, a mo-
dalidade tética de negação “sendo certo que não sabia nadar”, a reformu-
lação que indica um quadro mediador “Em outras palavras”, “o resultado
da morte era mais do que esperado” demonstram que o locutor-narrador-
enunciador assume a responsabilidade pelo conteúdo proposicional dessa
parte da macroposição Pn2.

NÓ (PRE(AÇÃO) OU AVALIAÇÃO (Pn3)

O motivo do crime foi torpe, consistente no rompimento do relacionamento amo-


roso. Muitos crimes são cometidos em nome do amor. Mas que tipo de amor é
esse que se transforma em obsessão; pois o que se quer, no fundo, é subjugar a
pessoa, que se diz amar. O amor é a palavra usada como desculpa para se co-
meter atrocidades com a pessoa amada. Quando é amor o que se sente, não há
o mínimo desejo de se livrar da pessoa amada. O que se denota claramente, no
caso concreto, é a força, poder e o domínio que se quer ter sobre a vítima de um
crime passional. Não confundas o amor com o delírio de posse, que acarreta os
piores sofrimentos como depressão, sintomas psicossomáticos, ansiedade e
baixa autoestima, entre outros. Porque, contrariamente à opinião comum, o
sentimento amor não faz sofrer. O instinto de propriedade, que é contrário do
amor, esse é que faz sofrer. O amor verdadeiro começa lá onde não se espera
mais nada em troca. Resumindo, os gestos de amor são humildes, e jamais
podem levar à morte da pessoa amada. É imperioso punir de forma mais gra-
vosa àquele que submete mulher a violência, como aqui (+ 1 ano)

200
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

NÓ (PRE(AÇÃO) OU AVALIAÇÃO (Pn3)


.Já as circunstâncias evidenciam dolo intenso, eis que exorbitaram o que é ine-
rente ao tipo, na medida em que o acusado agiu premeditadamente, aprovei-
tando-se do fato de a vítima ser sua ex-namorada, a qual foi atraída
ardilosamente para uma cilada, consumando o crime em lugar ermo para difi-
cultar a descoberta e garantir a impunidade, tanto que o corpo permaneceu por
longo tempo imerso nas águas de uma represa situada no Município de Nazaré
Paulista/SP, sendo encontrado em avançado estado de decomposição. Tais cir-
cunstâncias demonstram que o fato em questão não constituiu um episódio aci-
dental na vida do réu, identificando um verdadeiro desvio de caráter a exigir
uma maior reprovabilidade (+ 1 ano).

As consequências, como ensina Guilherme Nucci, são “o mal causado pelo crime,
que transcende ao resultado típico” (Código penal comentado. 10. ed. São Paulo:
RT, 2010, p. 407). “In casu”, foram graves, pois a vida de uma jovem de 28 anos
foi ceifada subitamente, provocando danos psicológicos incomensuráveis e irre-
paráveis aos familiares. O sentimento que toma conta da família em uma perda
ultrajante, desumana e diabólica é intangível. A saudade inextinguível os acom-
panhará enquanto viverem. Nesse mesmo contexto, também deve ser levado em
conta a comoção social, o sentimento de revolta e agressão à sociedade ordeira. A
repercussão social ultrapassou as fronteiras deste município, mercê da divulgação
e da crítica jornalística salutar. A insurgência da sociedade, que não se cansa de
implorar pela paz, também foi marcante no episódio dos autos. A violência que
encampa todos os níveis da sociedade brasileira já sensibilizou os nossos legisla-
dores que os levou a elaborar um regramento procedimental mais célere e rígido,
inclusive quanto aos prazos processuais. Realmente, já não era sem tempo, mais
em minha modesta opinião, ainda há espaço para novos avanços (+ 1 ano).

No início da macroproposição Pn3, podemos perceber o PDV do L1/E1


(Juiz) quando ele discorre sobre o que é o amor, dando opinião própria e,
consequentemente, evidenciando/transmitindo sua emoção. Nesse exem-
plo, há ocorrência de um PDV representado nos termos de Rabatel
(2008a) quando as percepções e pensamentos são detalhados e/ou vistos
a partir do interior de uma subjetividade em um segundo plano, onde o
L1/E1 assume a responsabilidade sobre o que é dito, explicitando seu
PDV e seu engajamento, verificado em:

Exemplo 02:
“Muitos crimes são cometidos em nome do amor. Mas que tipo de
amor é esse que se transforma em obsessão; pois o que se quer, no
fundo, é subjugar a pessoa, que se diz amar. O amor é a palavra
usada como desculpa para se cometer atrocidades com a pessoa
amada. Quando é amor o que se sente, não há o mínimo desejo de
se livrar da pessoa amada.”

201
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

O enunciado em itálico equivale a uma pergunta que constitui a mo-


dalidade sintático-semântica intersubjetiva. As modalidades téticas de
negação podem assim ser exemplificadas abaixo com os termos em itálico.
Ainda nesse excerto, o primeiro termo em destaque constitui uma “inte-
ração” entre o L1/E1 com o interlocutor:

Exemplo 03:
“Não confundas o amor com o delírio de posse, que acarreta os
piores sofrimentos como depressão, sintomas psicossomáticos, an-
siedade e baixa autoestima, entre outros. Porque, contrariamente
à opinião comum, o sentimento amor não faz sofrer. O instinto de
propriedade, que é contrário do amor, esse é que faz sofrer. O amor
verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.”

Verificamos uma incidência das categorias propostas por Adam


(2011). Vemos que o L1/E1 (Juiz) traz em sua enunciação os fatos ocorri-
dos no dia do crime, utilizando-se de diversos recursos como formas de
manifestação da responsabilidade enunciativa, identificados em: os índi-
ces de pessoas da vítima “ex-namorada” e do réu “acusado”; os dêiticos
espaciais do crime “uma cilada”, “lugar ermo” e do local do crime “no Mu-
nicípio de Nazaré Paulista/SP”, “nas águas de uma represa”, e temporais
“longo tempo imerso”; os tempos verbais “exorbitaram agiu, foi, perma-
neceu, constituiu” referentes ao réu, à vítima e ao crime; as modalidades
objetivas, como em: “[...] a exigir uma maior reprovabilidade”) e os dife-
rentes tipos de representação da fala (Discurso narrativizado). Dessa
forma, vemos que o PDV do locutor-enunciador primeiro e os elementos
que marcam a responsabilidade enunciativa fazem-se presentes no dizer
do juiz quando ele narra os fatos que antecederam e sucederam o crime.
Em Pn3, podemos verificar que há, na visada argumentativa, uma
posição de acordo, por parte do locutor, ao se referir à personalidade do
réu, evocando a voz de um jurista para fundamentar sua decisão, confi-
gurando assim, uma não assunção da responsabilidade enunciativa e en-
gajamento do locutor pelo dito.

Exemplo 04:
“As consequências, como ensina Guilherme Nucci, são “o mal cau-
sado pelo crime, que transcende ao resultado típico” (Código penal
comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 407).”

Os tempos verbais no pretérito perfeito “foram, foi, ultrapassou, sen-


sibilizou, levou”, correspondem, respectivamente, ao crime, à vítima, à
repercussão social, à violência. As modalidades representadas pelos

202
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

advérbios de opinião “subitamente”, “inclusive”, “realmente”; pelos lexe-


mas avaliativos “incomensuráveis e irreparáveis”, “ultrajante, desumana
e diabólica”, “inextinguível”, “célere e rígido”; pelas modalidades objetivas
“deve ser”, Os dêiticos espaciais “In casu”, “Nesse mesmo contexto, “as
fronteiras deste município”, “no episódio dos autos” que situam o pro-
cesso, o sentimento de revolta, a repercussão e o crime. No trecho:

Exemplo 05:
“Realmente, já não era sem tempo, mais em minha modesta opinião,
ainda há espaço para novos avanços.”

O PDV apresentado é assertado, que passa pelas falas e comentários,


evidenciando o posicionamento do L1/E1 sobre os avanços na legislação.

DESENLACE (Pn4)
Em face da decisão resultante da vontade soberana dos senhores jurados, julgo
PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal, notadamente para CONDENAR
o réu MIZAEL BISPO DE SOUZA, qualificado nos autos, como incurso nas
penas do art. 121, § 2°, I, III e IV, do Código Penal.

Em Pn4, a decisão apresentada pelo L1/E1 é imputada ao e2 vontade


soberana dos senhores jurados. O L1/E1 apresenta seu posicionamento
diante da decisão dos jurados e julga “PROCEDENTE a pretensão pu-
nitiva do estatal” para condenar o réu, seguindo os artigos que embasam
as punições pelas quais o mesmo foi julgado, impostas pelo Código Penal,
e assumindo uma posição em favor do PDV do enunciador segundo. Aqui,
encontramos dêiticos espaciais “a pretensão punitiva estatal”, “autos”,
“art. 121 do CP” e advérbio de opinião “notadamente”.

SITUAÇÃO FINAL (Pn5)

Fixo, pois, a pena-base em 19 (dezenove) anos de reclusão.

Conforme mencionado alhures, reconheço a qualificadora do recurso que difi-


cultou ou impossibilitou a defesa da vítima como circunstância agravante (art.
61, II, “c”, do CP), passando a reprimenda ao patamar de 20 (vinte) anos de
reclusão.

Transitada em julgado esta sentença, lance-se o nome do réu no rol dos culpados.
Em seguida, providencie a serventia a expedição de guia ao Juízo das Execuções
Criminais, para cumprimento da pena imposta, arquivando-se os autos, obser-
vadas as cautelas de estilo.

203
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

(Continuação)

SITUAÇÃO FINAL (Pn5)

Condeno o réu ao pagamento de 100 (cem) UFESP’s, inteligência do art. 4°, §


9°, “a”, da Lei nº 11.608/03.

Lida a presente sentença em plenário, dá-se por publicada e intimadas as


partes. Registre-se e comunique-se.

Guarulhos, 14 de março de 2013, às 17h35.

LEANDRO JORGE BITTENCOURT CANO

Juiz de Direito

Em Pn5, o L1/E1 assume a responsabilidade marcada através dos


verbos “fixo”, “reconheço”, “condeno” que correspondem ao poder que lhe
é atribuído como juiz. Ainda há remissão ao recurso que “dificultou ou
impossibilitou a defesa da vítima”, representado pelo discurso indireto.
Por fim, temos o desfecho na narrativa assinalado pelas modalidades
intersubjetivas representadas por verbos no modo imperativo que indi-
cam a autoridade do L1/E1 (juiz) acerca do proferimento e dos próximos
passos a serem dados após a sentença e a decisão soberana do Tribunal
do Júri, bem como as localizações espacial “Sala de Sessões do Tribunal
do Júri”, “Comarca de Contagem”, e temporal “08 de março de 2013”,
lugar e dia em que ocorreu o julgamento.

Considerações finais
A emoção é um recurso (racional ou irracional) que o locutor-produtor
faz para tentar transmitir um determinado acontecimento dentro de sua
produção, a fim de persuadir o seu interlocutor de que seus argumentos
são mais convincentes que outros. Vimos que as maiores ocorrências, no
que se refere aos argumentos de cunho emotivo transmitidos através da
RE, estão concentradas nas partes Nó (Pn2) e Re(ação) ou avaliação
(Pn3) da narrativa, (por meio, principalmente, das categorias tais como
os lexemas avaliativos e os advérbios), onde o L1/E1/ (juiz) é convocado a
dar seu ponto de vista sobre as sequências que sucederam o crime, utili-
zando-se de um léxico o qual expressa emoção a quem lê.
Os argumentos de cunho emotivo produzidos pelo juiz ao proferir a
sentença atingem, desde a plateia, que se faz presente na audiência, até

204
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

ao leitor comum ao ter em mãos a sentença final. Por ter sido um crime
com grande repercussão no país, o juiz pode ter se sentido “forçado” a ter
feito escolhas lexicais que o mostram como sendo mais próximo da vítima,
conhecedor da dor dos familiares e da revolta da sociedade.
Já função da narrativa na sentença é primordial para a orientação
argumentativa na construção do texto que veicula a decisão do juiz sobre
o réu. Consiste numa recapitulação dos acontecimentos que envolveram
os crimes a fim de se alcançar uma percepção dos eventos decorrentes,
servindo de fundamentação em proveito da aplicação da condenação.
Os resultados mostraram que os pontos de vista dos L1/E1 e dos e2,
elementos que constituem a responsabilidade enunciativa, fazem-se pre-
sentes nos discursos dos juízes, cuja enunciação se constrói por funda-
mentos com o objetivo de respaldar suas decisões acerca dos crimes
cometidos pelos réus. A análise do corpus revelou que a construção dos
pontos de vista pelo juiz é realizada por mecanismos linguísticos, os quais
revelam que a responsabilidade enunciativa tanto é atribuída pelo L1/E1,
assumindo a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional
ou tomando para si os PDV alheios, como é imputada a outros enuncia-
dores, entre eles, réu, vítima e Tribunal do Júri.
Além disso, podemos verificar a ocorrência do uso de quadros media-
dores através dos quais o juiz não assume a responsabilidade enunciativa
pelo conteúdo proposicional dos enunciados, assim, evocando outras vozes
para embasar sua decisão e imputando-a (RE) a outros enunciadores.
Esses fenômenos de assunção e de não assunção ocorreram nas duas se-
ções que dividem a sentença: “Vistos”, que equivale ao relatório e “Passo
à dosimetria da pena”, que equivale à fundamentação e ao dispositivo.
Com relação às partes que ocorrem esses fenômenos, verificamos que a
assunção da RE é mais utilizada na macroproposição Pn3 “Re (ação) ou
Avaliação” da narrativa pelo fato de L1/E1 utilizar lexemas avaliativos
que denotam uma subjetividade, em que o narrador avalia as ações das
personagens da trama, principalmente as ações do réu, enquanto que a
não assunção da RE (marcada pelo mediativo) ocorre na macroproposição
Pn1 “Situação final”, pois o locutor-narrador faz uso de outras vozes para
atribuir, possivelmente, autoridade ao seu discurso.
Nesse sentido, entendemos a narrativa como sendo uma espécie de
recapitulação dos acontecimentos que envolveram os personagens de uma
trama, sendo, portanto, necessária à sentença por esse motivo e por ex-
plicitar que o locutor/narrador (juiz) tem conhecimento do caso. O que
pode, também, ser considerada como sendo portadora de um certo poder
persuasivo implicado no uso que dela se faz — a narrativa — na sen-
tença, tendo em vista que ela conduz a incriminação do acusado. No que

205
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO

se refere ao discurso jurídico, Brito e Panichi (2013, p. 11) afirmam que


ele “[...] reveste-se de uma tipologia própria, que é a do poder e da per-
suasão, permeado pelo elemento ideológico. É essencialmente persuasivo,
pois instaura sempre como destinatário direto ou indireto um alguém
que, supostamente, tenha infringido o ordenamento”.
A narrativa nas sentenças serve, então, como argumento e como fun-
damentação para condenar o réu, surgindo, assim, como critério signifi-
cativo na sentença para a construção de uma sequência (temporal) da
sucessão de eventos e ações presentes nas histórias dos casos. Ressalta-
mos que elegemos a sentença condenatória como objeto de estudo para
esta pesquisa pelo fato de ser um gênero que finaliza um processo e por
ser considerada uma das mais relevantes no meio judicial, visto que ela
apresenta “uma variedade de discursos em seu interior [...]” (GOMES,
2014. p. 14), o que nos confere elementos suficientes para o estudo da res-
ponsabilidade enunciativa através de marcas da língua.
A narrativa das sentenças, como anteriormente anunciado, exerce
papel crucial para o encaminhamento do sentido do texto. O sucesso da
compreensão do conteúdo da sentença está ligado a uma progressão tex-
tual que se apresenta no corpo da narrativa. Para isso, o narrador deve
ter conhecimento de todo o processo/trama que se deu desde o inicio da
história. Dessa forma, a função da narrativa parece-nos indissociável às
sentenças pelo fato de que nela — narrativa — está centrado o núcleo do
processo constitutivo do gênero em questão, e, portanto, é de caráter ob-
rigatório para se compreender a sentença e sua finalidade.

Referências
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206
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER

FONSECA, Angélica Ferreira da. A relação responsabilidade


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207
O presente livro resulta da parceria estabelecida entre
pesquisadores/docentes do PPGEL, do IFL-UNL e do
CLUNL/CEDIS-UNL cujo intuito é o de favorecer inter-
relações entre os estudos da linguística textual/discur-
siva (com ênfase na prática jurídica) e os da Teoria da
Argumentação Jurídica, em um diálogo constante entre
juristas, linguistas e teóricos da argumentação.
Importa salientar que, de uma forma geral, os textos
que compõem o presente volume têm como ponto de par-
tida ou como objetivo uma análise empírica e, em parti-
cular, uma análise da práticas argumentativas
ordinárias, ou até, poder-se-ia dizer, cotidianas, dos tri-
bunais. Mais do que os casos excepcionais ou, talvez, os
casos mais mediatizados, é a construção de um conjunto
de práticas argumentativas “normais” que releva sobre-
tudo na relação entre o “sistema jurídico” (no seu com-
plexo) e o cidadão.
Deste ponto de vista, a análise destas práticas repre-
senta uma tarefa fundamental, não só para descrever e
reconstruir a linguagem e o discurso jurídico em contex-
tos reais, mas também para encontrar soluções para
uma alheação crescente entre o cidadão destinatário
dessas práticas – leigo, frequentemente pouco instruído
– e um “poder” que, amiúde, recorre a um linguajar téc-
nico-especializado para, talvez, “excluir” o ‘outro’. Em
um estado de direito, em que o controle democrático
sobre os poderes estaduais é fundamental, uma vez que
é o instrumento por excelência para a garantia dos di-
reitos individuais, cabe às instituições encontrar solu-
ções para favorecer a inclusão destes mesmos cidadãos.
E a linguagem representa, assim, um instrumento pri-
vilegiado para que esta possa existir. Abre-se, assim, um
espaço fundamental para uma função social da análise
teórica: não sendo uma mera descrição de um estado de
coisas, ela representa, também, um instrumento de pro-
gresso e civilização.

www.ruigracio.com

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