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Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto
ARGUMENTAÇÃO À LUZ
DA RACIONALIDADE
E DA EMOÇÃO
Coleção
Coleção contradiscursos
contradiscursos
Grácio
Organização:
Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto
ARGUMENTAÇÃO À LUZ
DA RACIONALIDADE
E DA EMOÇÃO
Ficha técnica
Título:
Argumentação à luz da racionalidade e da emoção
Organização:
Giovanni Damele (IFILNOVA/FCSH)
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Rosalice Pinto (CEDIS/CLUNL)
Comissão editorial:
Acir Mário Karwoski (UFTM)
Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL)
Fabrizio Macagno (IFILNOVA/FCSH)
Giovanni Damele (IFILNOVA/FCSH)
João Gomes da Silva Neto (UFRN)
Luis Passeggi (UFRN)
Maria Aldina Marques (Universidade do Minho)
Maria Inês Batista Campos (USP)
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Rosalice Pinto (CEDIS/CLUNL)
Sueli Cristina Marquesi (PUCSP)
Zilda Aquino (USP)
Comissão de avaliação:
Adriano Lopes Gomes (UFRN)
Alexandro Teixeira Gomes (UFRN)
Ana Lúcia Tinoco Cabral (UNICSUL)
Eliete Queiroz (UFRN)
Fabrizio Macagno (IFILNOVA/FCSH)
Ivone Ferreira (FCSH/UNL)
Maria Aldina Marques (Universidade do Minho)
Maria Eduarda Giering (UNISINOS)
Micheline Mattedi Tomazi (UFES)
Sueli Cristina Marquesi (PUC/SP)
Revisão técnica:
Célia Maria de Medeiros (UFRN)
Karla Geane de Oliveira (UFRN)
Capa:
Grácio Editor
Coordenação editorial:
Mafalda Lalanda
Design gráfico:
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3030-217 Coimbra, Portugal
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APRESENTAÇÃO .................................................................................7
RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA
E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO ....................27
Célia Maria de Medeiros — UFRN
AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS
COM VALOR ARGUMENTATIVO E OS TERMOS DE EMOÇÃO
NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE JOSÉ DIRCEU
NA OPERAÇÃO LAVA JATO ..................................................................57
Fernanda Isabela Oliveira Freitas — UFRN
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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APRESENTAÇÃO
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mos que todos os “operadores jurídicos” podem transformar-se no advo-
gado satirizado por Honoré Daumier que, à sua cliente, viúva desespe-
rada com um filho, responde: «Vous avez perdu votre procès, c’est vrai...
mais vous avez dû éprouver bien du plaisir à m’entendre plaider!».
Os Organizadores:
Giovanni Damele
Maria das Graças Soares Rodrigues
Rosalice Pinto
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE
AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS
JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
Anderson Souza da Silva Lanzillo — UFRN
Introdução
O uso de argumentos baseados na autoridade é um recurso muito
constante em sentenças judiciais. A autoridade da lei, da jurisprudência
e da doutrina é invocada, muitas vezes, como fundamento que autoriza o
juiz a estabelecer a sua conclusão, materializada na decisão com força ob-
rigatória para as partes do processo. Em trabalho anterior1, exploramos
o uso da autoridade para a coconstrução do Ponto de Vista — PDV do juiz
sobre o direito discutido na sentença judicial e as funções do argumento
da autoridade nesse gênero discursivo/textual.
No presente trabalho, analisamos os mecanismos enunciativos pelo
qual o juiz constrói o argumento de autoridade por meio de posturas enun-
ciativas (RABATEL, 2008a, 2013, 2016). Discutimos o conceito de argu-
mentação e argumentação jurídica (PERELMAN; TYTECA, 2005;
ATIENZA, 2005) e de argumento de autoridade (WALTON; KOSZOWY,
2014; PERELMAN; TYTECA, 2005; FERRAZ JR., 2003). A teoria do Ponto
de Vista — PDV de Rabatel (2008a, 2013, 2016) foi adotada para tratar
dos mecanismos enunciativos presentes nas sentenças judiciais, os quais
se manifestam por diversas marcas linguísticas. Discutimos as categorias
relacionadas ao Ponto de Vista — PDV na concepção de Rabatel (2008a,
2013, 2016) com vistas à abordagem das posturas enunciativas.
Fizemos análise de corpus, o qual é composto de sentenças judiciais
de pedido de falência. Tratamos a autoridade como enunciador segundo
(e2), cujo PDV se manifestou de diversas formas linguísticas nas sentenças
analisadas. O juiz, enquanto locutor/enunciador primário (L1/E1), realiza
operações de coenunciação na coconstrução do seu PDV pela mobilização
das autoridades como fundamento das sentenças prolatadas.
A coconstrução foi entendida como a realização de posturas enuncia-
tivas, as quais são tratadas por Rabatel (2008a, 2013, 2016) em três ca-
tegorias: subenunciação, coenunciação e sobre-enunciação. As diversas
posturas enunciativas encontradas no corpus apontaram os mecanismos
1
Lanzillo (2016b).
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIAARTIGO
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
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“Nesse sentido:”
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
(Continuação)
ARGUMENTOS 1. precisam ser provados em audiência, como, por exemplo, os notórios,
DE AUTORIDADE os incontrovertidos etc. (CPC 334)”. (Código de processo civil comen-
tado e legislação processual civil em vigor. 3. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 607).”1. “O aludido art. 330, do
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, determina expressamente que ‘o
juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I — quando
a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e
de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência;’
[...].”3. “CARLOS ANTÔNIO DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLE-
GRINI GRINOVER e CANDIDO RANGEL DINAMARCO, prelecio-
nam que a jurisdição “é uma das funções do Estado, mediante a qual
se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcial-
mente, buscar atuação da vontade do direito objetivo que rege a lide
que lhe é apresentada em concreto para ser solucionada; e o Estado
desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressado
autoritativamente o preceito (através de uma sentença de mérito),
seja realizado no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através
da execução forçada)” (CINTRA, Carlos Antonio de Araujo; GRINO-
VER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria geral
do processo. 6. ed. São Paulo: RT. p. 83).”4. “CELSO RIBEIRO BAS-
TOS e IVES GANDRA MARTINS, de forma brilhante ensinam que
“a função jurisdicional só se independentizou das demais no século
XVIII com a prevalência da Teoria de Montesquieu consistente já
agora na clássica separação do poder.” [...] “Ao lado da função de le-
gislar e administrar, o Estado exerce a função jurisdicional. Coinci-
dindo com o próprio evoluir da organização estatal, foi ele absorvendo
o papel de dirimir as controvérsias que surgiam quando da aplicação
das leis”. [...] “À função jurisdicional cabe este importante papel de
fazer valer o ordenamento jurídico, de forma coativa, toda vez em que
o seu cumprimento não se dê sem resistência. Ao próprio particular
(ou até mesmo às pessoas jurídicas de direito público), o Estado sub-
traiu a faculdade de exercício de seus direitos pelas próprias mãos. O
lesado tem de comparecer diante do Poder Judiciário, o qual, tomando
conhecimento da controvérsia, se substitui à própria vontade das par-
tes que foram impotentes para se comporem. O Estado, através de
um de seus Poderes dita, assim de forma substitutiva à vontade das
próprias partes, qual o direito que estas têm de cumprir.” (BASTOS,
Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à constituição
do Brasil. v. 4. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 1, 11-13).”5. “Magnânimo
raciocínio é expresso por JOSÉ ROBERTO SANTOS BEDAQUE,
para quem “tanto quanto as partes, tem o juiz interesse em que a ati-
vidade por ele desenvolvida atinja determinados objetivos, consistentes
nos escopos da jurisdição” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Ga-
rantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999).”
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
das posturas não apresentaram diferenças, o que faz com que essas au-
toridades invocadas como enunciadores segundos sejam colocadas no
mesmo plano argumentativo. Salientamos que no Brasil não é raro que
uma pessoa exerça as duas funções de autoridade (pessoa como juiz e
como doutrinador).
Considerações finais
O estudo realizado mostrou que os argumentos de autoridade são
mobilizados enquanto enunciadores segundos para realizar diversas pos-
turas enunciativas na coconstrução do PDV introduzido por L1/E1. Essa
coconstrução colabora com a orientação argumentativa e com os efeitos
de sentido pretendidos pelo juiz no gênero textual/discursivo em que se
manifesta (sentença judicial).
Nos limites de nosso corpus, podemos dizer que a articulação de ar-
gumentos de autoridade para a realização de posturas enunciativas con-
cretiza diversas funções/efeitos de sentido considerando a prática
discursiva subjacente. Um primeiro efeito de sentido é o da objetificação
do PDV de L1/E1. Mostramos que o PDV de L1/E1 não é em geral mar-
cado por subjetivemas, tendendo sua expressão ao PDV anônimo. A arti-
culação dos argumentos de autoridade junto a essa forma de expressão
do PDV de L1/E1 reforça esse efeito de objetividade, uma vez mostraria
que o PDV não é uma expressão pessoal, mas decorre da racionalidade
jurídica.
O segundo efeito de sentido, que pode ser verificado, é de que o uso de
argumento de autoridade em posturas enunciativas produz um efeito co-
munitário, ou seja, passa a ideia de que o juiz não está isolado proferindo
sua interpretação/aplicação da legislação, mas está inserto numa comu-
nidade jurídica que compartilha de seu modo de enxergar o Direito apli-
cável ao caso concreto. Disso decorre um terceiro efeito de sentido: as
posturas enunciativas a partir de argumento de autoridade intentam con-
vencer de que o juiz expressa, acima de tudo, o próprio Direito, do qual
ele seria um mediador (o uso de quadros mediativos imprime esse sentido
do ponto de vista linguístico). De fato, a abundância no uso de argumentos
de autoridade faz com que concordemos com Atienza (2012) quando de-
signa o Direito como “prática de autoridade”, uma “prática autoritativa”,
uma vez que o Direito é reconhecido como oriundo de atos de autoridades.
Um último efeito de sentido que indicamos neste estudo é o da reso-
lução de conflito entre autoridades. Como vimos no quadro 02, e foi tratado
segundo Ferraz Jr. (2003) e Perelman e Tyteca (2005), a invocação de au-
toridades não significa apenas a postura enunciativa de coenunciação,
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
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LANZILLO, Anderson Souza da Silva. Ponto de vista e responsabilidade
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LANZILLO, Anderson Souza da Silva. Responsabilidade enunciativa e construção
do ponto de vista do juiz no uso de argumento de autoridade em sen-
tenças judiciais. In: PINTO, Rosalice; RODRIGUES, Maria das Graças.
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A CONSTRUÇÃO DO ARGUMENTO DE AUTORIDADE POR MEIO DE POSTURAS
ENUNCIATIVAS EM SENTENÇAS JUDICIAIS DE PEDIDO DE FALÊNCIA
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E
PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO
CONTESTAÇÃO
Célia Maria de Medeiros — UFRN
Considerações introdutórias
O capítulo objetiva descrever, analisar e interpretar os pontos de vista
assumidos pelo locutor enunciador primeiro (L1/E1) e pelos enunciadores
segundos (e2) no que concerne à responsabilidade enunciativa no gênero
jurídico Contestação, gênero discursivo textual produzido no domínio do
Direito. Para tanto, examinaremos uma Contestação da esfera civil, com
tema sobre o direito do consumidor, referente ao ano de 2014. Nesse texto,
o locutor enunciador primeiro, o advogado e produtor do texto, que repre-
senta a parte ré, constrói sua argumentação ora assumindo o dito, ora im-
putando a outras vozes, a partir de marcas linguísticas.
Para cumprir os objetivos do trabalho, inicialmente apresentamos
uma discussão teórica sobre a responsabilidade enunciativa e o ponto de
vista, numa perspectiva rabateliana. Em seguida, definimos o gênero ju-
rídico Contestação. Na continuidade, realizamos a análise a partir de ex-
certos retirados das seções denominadas “Das preliminares” e “Do
mérito”, que compreendem as defesas no plano processual e material do
referido gênero. Por fim, ainda fazem parte deste estudo, as considerações
finais e a lista de referências.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
1
“Il y a bien un lien entre PEC et responsabilité, mais sans recouvrement des notions: il
est possible de prendre en charge des propos irresponsables, d’être jugé «responsable» (au
sens hélas habituel où l’on fait de responsable un synonyme de qui prend en charge, qui
assume, ce qui n’est pas mon cas) de propos que l’on n’a pas pris en charge, de ne pas être
tenu pour responsable des propos pourtant pris en charge, etc. [...] Mais dès qu’il y a plu-
sieurs locuteurs, plusieurs points de vue, la prise en charge ne concerne que les PDV de
L1/E1 dit son accord. L1/E1 ne saurait être tenu pour responsable de tous les autres PDV
qu’il évoque dans son discours.”
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
2
“Tout énoncé présuppose une instance qui prend en charge ce qui est appelé, suivant les
cadres de référence, le dictum, la lexie, le contenu propositionnel, la prédication, selon le
schème minimal d’énonciation « JE DIS ("ce qui est dit").”
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Diante desse contexto, Palaia (2010, p. 36) ressalta que “[...] todas
essas atitudes tomadas pelo autor devem ser objeto de análise e crítica
por parte do réu. A manifestação dessa crítica terá lugar na Contestação
que, todavia, não poderá ser um amontoado de censuras e ataques desco-
nexos, descoordenados e incoerentes”.
A existência da Contestação significa que o processo já foi instaurado.
Com ela, faculta-se ao réu/requerido (por meio do enunciador advogado)
apresentar ao Juiz (coenunciador/1º destinatário ou receptor) sua réplica
aos fatos apresentados na inicial. Dessa maneira, qualquer afirmação
presente na Petição Inicial, e que não seja respondida, será considerada
verdadeira. Também, diversamente da Petição Inicial, a Contestação não
exibe níveis diversos de interação, pois não é endereçada aos autores-re-
querentes, mas sim à ação proposta (TULLIO, 2012).
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
Autor Réu
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
[...] embora cada uma das partes se dirija ao juiz, o verdadeiro des-
tinatário da parte é, reciprocamente, a parte contrária, uma vez
que a enunciação de cada uma das partes tem como alvo a parte
contrária, na medida em que o texto de cada uma das partes cons-
titui a refutação do conteúdo da enunciação da parte contrária, an-
tecedente à sua. As partes se dirigem diretamente ao juiz apenas
no início do pronunciamento, no encaminhamento, e no final, na
formulação do pedido ao juiz; raramente o invocam no desenrolar
da peça e, quando o fazem, fazem-no para chamar a sua atenção.
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
3. Análise
A Contestação delimitada para esta análise apresenta a defesa de
uma loja de móveis acusada de responsabilidade pela venda de um
guarda-roupa que apresentou defeito. A Petição Inicial pede a restituição
do valor do produto e a indenização por danos morais, uma vez que rea-
lizou audiência no PROCON sem solução conciliatória.
A defesa inicia a Contestação alegando que a carência da ação, por
falta de interesse de agir alegada pela demandante, não tem fundamento
em face de que o reembolso fora autorizado. Entretanto, para a restituição
do valor pago pelo produto ser efetuada, seria necessário que a segura-
dora tivesse recebido os documentos enviados pela segurada. Fato este
não aceito pela demandante, que logo impetrou ação junto ao PROCON.
Por isso, não haveria no que se falar em devolução do prêmio pago.
Quanto à solicitação de reparação por danos morais, a demandante,
de acordo com o texto da Contestação, não faz jus, uma vez que o ocorrido
dizia respeito a aborrecimentos que atualmente são confundidos com
danos morais e dão origem à vulgarização desse instituto.
Ao encerrar a argumentação sobre a Petição Inicial, o documento con-
testatório pediu que a decisão da lide fosse considerada improcedente
ante a ausência de dever de restituir o valor do prêmio.
3
Medeiros (2016).
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
[3] No caso dos autos, não existe esta necessidade em face da au-
sência de negativa da parte demandada. Em conclusão, temos que
a autora é carecedora do direito de ação, por lhes faltar interesse
de agir, posto que a mesma tinha ciência dos procedimentos a serem
tomados, entretanto não procedeu com os mesmos.
Os excertos [1], [2], [3], [4], [5] e [6] apresentam um mesmo posicio-
namento enunciativo, pois expõem envolvimento pelos conteúdos propo-
sicionais através de estratégias linguísticas reveladoras de engajamento
por parte de L1/E1. Tais marcas dizem respeito às expressões epistêmicas
(“não foi possível”, “não enviou”, “Assim”, “como se vê”, “Não havendo”,
“não existe”, “tinha ciência”, “como é sabido”, “NÃO negou”) e deônticas
(“seja necessária”, “temos”, “deve ser”, “Exige-se”, “exerça”), reveladoras
de atitudes sobre a verdade dos fatos, bem como da obrigatoriedade ou
possibilidade explicitada nos enunciados. Dessa maneira, verificamos as-
sunção total da responsabilidade enunciativa por parte de L1/E1, pois
todas as asserções encaminham a orientação argumentativa de que “Não
havendo pretensão resistida, não existirá conflito de interesses que jus-
tifique a intervenção do órgão jurisdicional”.
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
[9] Por todas estas razões expostas, vemos que inexiste inte-
resse processual da autora, configurando-se ser a mesma
carecedora do direito de ação, razão pela qual deve o pre-
sente processo ser extinto sem o julgamento do mérito, o
que desde logo se requer.
Nos excertos [10] e [11], observamos PDV assertado, pois L1/E1 coe-
nuncia partilhando do conteúdo proposicional, portanto, assume a res-
ponsabilidade enunciativa pelo dito, assinalada por expressões modais,
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
Em [17], [18] e [19], L1/E1 faz uso dos organizadores textuais “Ou-
trossim”, “Na mesma esteira” e “Destarte” para dar continuidade ao con-
teúdo proposicional e, dessa maneira, em postura de coenunciação,
concorda com os enunciadores segundos (e2) Tribunal de Justiça e Código
Civil, imputando a estes os posicionamentos dos Nobres Desembargado-
res do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco e os Doutos
Juízes componentes do 1º Colégio Recursal dos Juizados Especiais Cíveis
do Estado de Pernambuco.
Considerações finais
A Contestação se constitui na relação polêmica de negação e desqua-
lificação da Petição Inicial. Com o objetivo de refutar “restituição do valor
pago pelo produto (guarda-roupa) e prêmio, bem como indenização a tí-
tulo de danos morais”, o texto analisado neste capítulo apresentou, atra-
vés de estratégias linguísticas que direcionam a orientação
argumentativa do locutor enunciador primeiro e dos enunciadores segun-
dos, os pontos de vista assumidos por essas instâncias enunciativas, evi-
denciados nos excertos das seções “Das preliminares” e “Do mérito”.
Observamos que a representação dos pontos de vistas de L1/E1 na
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA E PONTO DE VISTA NO GÊNERO JURÍDICO CONTESTAÇÃO
Referências
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LOURENÇO, Maria das Vitórias Nunes Silva. A argumentação na Petição
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MEDEIROS, Célia Maria de. Responsabilidade enunciativa no gênero ju-
rídico contestação. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal/RN, 2016.
RABATEL, Alain. Argumenter en racontant: (re) lire et (ré) écrire les textes
littéraires. Bruxelles: De Boeck, 2004.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO
EM TERMOS DE AUDIÊNCIA NA ÁREA DE
DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
Nouraide Fernandes Rocha de Queiroz — UFRN
Considerações iniciais
Este estudo analisa as emoções como argumento, de que modo elas
podem ser atribuídas ou inferidas em texto de Termo de Audiência (TA)
— gênero que faz parte do domínio do discurso jurídico. Nessa perspec-
tiva, tomamos como embasamento o quadro teórico da Análise Textual
dos Discursos (ATD), pautando-se numa teoria da “[...] produção co(n)tex-
tual do sentido que deve fundar-se na análise de textos concretos”, con-
forme Adam (2011, p. 13), dando, assim, relevo à articulação texto e
discurso.
São referências também os estudos desenvolvidos por Plantin (2008);
Micheli (2008, 2010; 2014); Kerbrat-Orecchioni (2006), Rabatel, Monte e
Rodrigues (2015); Amossy (2016); Rodrigues et al. (2017), mais especifi-
camente no que concerne às emoções, bem como aos ensinamentos sobre
ponto de vista, e a responsabilidade enunciativa, observando as instân-
cias de enunciação na perspectiva rabateliana.
Inicialmente tratamos acerca das emoções como argumento, dos seus
modos de semiotização, para então discorrermos sobre o nosso objeto de
observação: o Termo de Audiência, passando a analisá-lo na sequência.
Traçamos seu plano de texto para, em seguida, fazermos a nossa investi-
gação pautada na hipótese de que podemos inferir emoções, considerando
a esquematização, no discurso, de uma situação que lhe é associada por
convenção, de acordo com padrões socioculturais que lhe supõem a ga-
rantia da legitimidade, como nos assevera Micheli (2014).
Ademais, observamos o ponto de vista, a responsabilidade enuncia-
tiva e suas instâncias de enunciação na construção argumentativa por
meio da emoção.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
éprouver sémiotiser
[exprimer]
[communiquer]
Trois modes de sémiotisatiom
{
dire montrer étayer
Matériau
sémiotique
L’émotion est désignée L’émotion est inférée dans L’émotion est inférée a par-
Verbal au moyen du lexique. un ensemble de caractéristi- tir de la représentatiton,
Ele se trouve mise en ques de l’énoncé : celles-ci dans le discours, d’un type
[Coverbal rapport, sur le plan sont interprétés comme des de situation qui lui est
(voco-prosodique syntatique, avec un être indices du fait que l’énontia- conventionnellement asso-
mimo-posturo- qui l’éprouve et, éven- tion est cooccurrent avec le cié sur le plan socio-cultu-
gestuel)] tuaellment, avec ce sur ressenti d’une emótion par rel et qui est donc supposé
quoi elle porte le locuteur lui servir de fondement
2
Imagem disponível em:
<https://www.google.com.br/search?biw=1242&bih=602&tbm=isch&sa=1&ei=iQuXWqafGo-
jAzgLqi56QDQ&q=micheli+sch%C3%A9ma+en+arbre+d%27%C3%A9motion+&oq=mi-
cheli+sch%C3%A9ma+en+arbre+d%27%C3%A9motion+&gs_l=psy-
ab.3...53430.87687.0.88514.14.14.0.0.0.0.299.3074.2-13.13.0....0...1c.1.64.psy-ab..1.0.0....0.ud_l
xIw6sR4#imgrc=LxUjsUb_uzbwbM:>.Acessoem: 22 jan. 2018.
45
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
2. O Termo de Audiência
O Temo de Audiência (TA) em análise, como explica Queiroz (2016), é
um texto elaborado no âmbito extrajudicial, constituindo-se da transcrição
de audiência, ensejada a partir de procedimentos anteriores iniciados com
6
Utilizamos para designar “ponto de vista” as formas PdV e PDV, ao discorrermos sobre a
perspectiva dos teóricos Adam e Rabatel, respectivamente, uma vez que se trata da grafia
por eles adotada.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
Fonte: Quadro elaborado pela autora desta pesquisa, especificamente, para este estudo
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
vida de sua mãe não lhes são favoráveis, motivo pelo qual os direitos dela,
na qualidade de pessoa idosa, estão sendo reivindicados.8
Nessa perspectiva, ocorre a audiência da filha da idosa, citada nos
autos processuais, que é ouvida pelo(a) Promotor(a) de Justiça, o qual ela-
bora o Termo de Audiência, que é finalizado com a assinatura da decla-
rante e desse(a) representante ministerial, como vimos no Quadro 1, do
plano de texto. Quadro, esse, que também nos apresenta a instituciona-
lização do texto, a uniformização da sequência dos dados da audiência,
transcritos numa determinada ordem, cuja estrutura, como verificamos,
é inerente a essa peça processual.
A fim de facilitar a compreensão da análise, destacamos os enuncia-
dos de acordo com os parágrafos e as linhas em que aparecem no texto
integral, do qual fizemos o nosso recorte.
Inferimos, já inicialmente, a ancoragem de uma fundamentação de
emoções positivas, como o carinho e a afetividade, evocadas por meio do
“cuidado”, explicitado logo no 2º parágrafo. Nesse parágrafo, há a justi-
ficativa da ausência de um dos intimados a comparecerem à audiência
exatamente pelo fato de “estar cuidando de sua genitora” (linha 2):
51
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
Vale salientar que, a partir dos recortes ora mostrados, nosso estudo
depreende do texto a existência do “cuidado” para com a idosa — numa
clara argumentação de que seus direitos não estavam sendo negligen-
ciados. Cuidado, esse, como algo contínuo, que podemos inferir pela pre-
dominância das locuções verbais em que temos verbos conjugados no
tempo presente ou na forma nominal de infinitivo + verbo na forma no-
minal de gerúndio. Desse modo, consideramos que a recorrência do ge-
rúndio reforça a inferência das ações em curso.
Diante da análise ora realizada, observarmos, ainda, as instâncias
enunciativas no processo de enunciação, em consonância com Rabatel
(2009), considerando o locutor como o produtor do enunciado e o enuncia-
dor como instância de responsabilização.
Nesse sentido, ressaltamos que em nossa investigação apresenta-se
um enunciado no qual o locutor 1 (L1) já se utiliza do discurso indireto,
imputando a responsabilidade do dito a outro enunciador, logo, marcando
seu distanciamento da responsabilidade enunciativa.
Apreendemos o apelo a emoções positivas na justificativa, na expli-
cação dada pela declarante, inferidas por meio da imputação de um PDV
representado, a partir da utilização de modalizadores: verbal (3ª pessoa),
do discurso reportado; pelo uso do “QUE”, repetidamente, e, ainda, refor-
çado pela utilização das aspas, numa clara modalização autonímica.
Assim, podemos inferir que há pontos de vista (PDV) atribuídos por
L1/E1 (Locutor 1 e Enunciador 1) — conforme conceitua Rabatel (2009)
— a enunciadores segundos, com isso, não sendo assumidos integral-
mente por L1/E1. Vimos que os ditos no texto/discurso podem ser assu-
midos pelo locutor/enunciador primeiro (L1/E1), o qual é encarregado de
gerenciar os dizeres, ou a Responsabilidade Enunciativa pode ser atri-
buída pelo L1/E1 a outros enunciadores. Com isso, observamos a impu-
tação da Responsabilidade Enunciativa a um outro enunciador, no caso,
a declarante, da carga semântica das emoções inferidas nos enunciados
numa visada argumentativa para provar que os cuidados com a idosa,
sua genitora, não foram, nem estão sendo negligenciados. Assertiva au-
torizada pelos aspectos co(n)textuais que nos permitiram inferir tais sen-
tidos ao texto analisado.
Considerações finais
Destacamos, em consonância com o nosso aparato teórico, que a fala
e o agir do homem se ocorrem em função de defender suas ideias, suas
emoções, para o outro, e entendemos, de acordo com Kerbrat-Orecchioni
(2006), que podemos observar, imbricada na materialidade do discurso,
uma dimensão argumentável.
53
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
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54
A EMOÇÃO COMO ARGUMENTO EM TERMOS DE AUDIÊNCIA
NA ÁREA DE DEFESA DOS DIREITOS DA PESSOA IDOSA
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Lino; Elias, Vanda Maria (Orgs.). Linguística Textual e Ensino. São
Paulo: Contexto, 2017.p. 33-47.
Termo de Audiência
[2º parágrafo]
Inicialmente, foi indagado a Sra. “T” o motivo da ausência do seu irmão, tendo ela [2]informado
que ele não pode vir, porque está cuidando da sua genitora. Questionada a respeito das con-
dições atuais de vida da sua mãe, a Sra. “T” declarou:
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
[3º parágrafo]
[1] “Que a sua mãe quebrou o pé no dia 01 [sic] de maio de 2014, chegando a ficar 20 dias
[2] internada no Hospital [nome do hospital]; Que a sua mãe, antes mesmo da queda, já
havia saído da [3] residência da sua genitora e passado a morar na própria casa; Que
após a queda a sua mãe ficou [4] sem andar e vem recebendo assistência da declarante e
do irmão “A”; Que “A” está morando na [5] casa com a genitora e, como é autônomo, tem
prestado assistência à genitora; Que a declarante [6] trabalha como auxiliar de crianças
em um transporte escolar nos horários de 06h às 07h30 e 10h40 [7] às 14h:00; Que,
quando não esta [sic] trabalhando, fica na casa da sua genitora, só a deixando no [8]
horário de dormir, por volta das 21h30, após dar a última medicação, porque seu irmão
não sabe [9] ler; Que a sua mãe recebe a visita semanalmente de uma médica e tem rece-
bido desconto de 50% [10] para comprar fraldas; Que a sua mãe recebe uma ajuda de R$
700,00 mensalmente do filho “F” [11] residente em São Paulo; Que a receita da idosa só
não é suficiente para tudo, porque os [12] medicamentos para depressão são caros; Que a
sua mãe continua fazendo acompanhamento [13] psiquiátrico no [nome do hospital] com
Dr. [nome do médico]; Que gostaria que ela fizesse [14] fisioterapia, mas até agora não
conseguiu; Que em relação à situação da sua avó, “MCC”, tem a dizer que ela continua in-
dependente, mas dorme sozinha; Que a sua avó possui seis filhos vivos, mas um deles
mora em São Paulo e a mãe da declarante não tem condições de prestar assistência; Que
residem em Natal “ML” (tel. xxxxx), “Ma”, “Na” e “JE” (tel. xxxxx); Que a esposa de “JE”,
“E”, vai à casa da idosa três vezes por semana para fazer as refeições da semana inteira;
Que nos demais dias a idosa esquenta a própria comida e toma os cuidados básicos; Que
a sua avó também só recebe um salário mínimo que é administrado pela filha “ML”; Que
os filhos a ajudam financeiramente e estão tentando conseguir uma pessoa para fazer
companhia a [sic] idosa;”
[22] Ao final da audiência, a Sra. “T” foi orientada a fazer a inscrição da sua genitora na
[23] UNICAT para tentar receber gratuitamente os medicamentos de que ela precisa,
bem como a [24] procurar o CEASI, na Ribeira, para obter informações sobre sessões de
fisioterapia. Por fim, a Sra. “T” foi orientada a informar a seus tios que eles deveriam
providenciar a contratação de uma pessoa para dormir em companhia da Sra. “MCC” no
prazo de 30 dias, apresentando a devida comprovação a esta Promotoria.
Nada mais havendo a tratar, o presente termo de audiência por todos lido, achado conforme
e assinado, foi encerrado.
Assinatura
(Declarante)
Assinatura
(Promotor(a) de Justiça Substituto(a))
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AS REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-
-DISCURSIVAS COM VALOR ARGUMENTATIVO
E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO
DO PEDIDO DE SOLTURA DE
JOSÉ DIRCEU NA OPERAÇÃO LAVA JATO
Introdução
A visão aristotélica evidencia o discurso ou a argumentação a partir
de três componentes: o logos diz respeito à argumentação racional pro-
priamente dita; o pathos, por sua vez, corresponde ao envolvimento e ao
convencimento do interlocutor; finalmente, o ethos, que se refere ao as-
pecto ético ou moral que o enunciador deixa entrever em seu discurso a
fim de garantir o sucesso da oratória. Retomando dois pólos da retórica
clássica dos estudos da argumentação, Amossy (2011) ressalta o ethos —
a construção da imagem de si que o orador projeta em seu discurso — e
o pathos — a construção discursiva da emoção que ele quer suscitar em
seu auditório e que também deve ser construída discursivamente.
No contexto jurídico, as emoções nos levam a entender que o embate
discursivo do direito envolve, além do ethos, que seria não só SER, mas tem
que PARECER; o logos, a razão, que seria o mais sublime, alvo de todo ju-
rista; e o Pathos, não emoções psicológicas, humores, mas signos transpor-
tadores de sentidos reconhecidos pelo outro sujeito da comunicação/relação.
Acreditamos, ainda, que “[...] todo texto constrói, com menor ou maior
explicitação, uma representação discursiva do seu enunciador, de seu ou-
vinte ou leitor e dos temas ou assuntos que são tratados” (RODRIGUES;
PASSEGGI; SILVA NETO, 2010, p. 173). A representação discursiva do
enunciador é a representação de si, nos seus diferentes níveis; a repre-
sentação discursiva do(s) ouvinte(s) consiste na representação do inter-
locutor ou dos interlocutores; já a representação discursiva dos temas
tratados ancora-se dos diferentes temas ou tópicos abordados. Essa Re-
presentação Textual-Discursiva (Rdt) está vinculada a uma argumenta-
ção onipresente, que nas palavras de Grize (1990), são operações de
textualização que as esquematizações (representações discursivas) pro-
duzem, como plenamente argumentativas.
Essa perspectiva teórica da Rtd com valor argumentativo nos insti-
gou a propor uma articulação entre a Rtd e as emoções, relacionando
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E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
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Figura 1 — Esquema 04
INTERDISCURSO
Língua(s)
Gêneros
TEXTO
Enunciação
Textura Estrutura Semântica Atos de Discurso
(Responsabili-
(proposições Composicional (Representação (ilocucionário) &
dade Enunciaiva)
enunciadas & (sequência e pla- Discursiva) Orientação argu-
& Coesão Polifô-
períodos) (N4) nos de textos) (N5) (N6) mentativa (N8)
nica (N7)
NÍVEIS OU PLANOS DE ANÁLISE TEXTUAL
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1
O termo formulaico é utilizado por Marcuschi (2008, p. 37) para se referir a gêneros que
possuem uma estrutura retórica preestabelecida, onde quase não há espaço para o estilo
do autor, como os gêneros jurídicos, por exemplo.
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'O que é Isso? Em que país vivemos? Os bandidos perderam a noção das coi-
sas! Como podem se apropriar desse montante?', questionou incrédulo o desem-
bargador convocado Walter de Almeida Guilherme.
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E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
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Quadro 2 — Esquematização
GRIZE ADAM DEFINIÇÃO
Tambem chamada de ethos, refere-se
à imagem que o locutor constrói de si
mesmo pelas palavras que evoca em
seu texto/discurso. Com base em
Adam (2011b, p. 107), podemos en-
Representação tender que a Rd de si está associada
Imagem do
discursiva a "função (lugar) e o(s) papel(éis) que
locutor: im(A)
de si [orador] assume, com seus fins pró-
prios, seus pré-construídos culturais
e representações da situação de
enunciação, do objeto do discurso, de
seu auditório (B) e as representações
psicossociais de si mesmo".
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Considerações finais
Considerando o objetivo geral do nosso estudo de analisar as repre-
sentações textuais-discursivas com valor argumentativo e a sua articulação
com os termos de emoções, percebemos que além do material linguistica-
mente utilizado na construção do texto desse gênero como ação social, o
valor argumentativo das Rtd se faz presente em virtude do propósito dessa
ação de linguagem no contexto jurídico ser pautada em fatos sociais.
Para a investigação do processo de construção da Rtd do réu no Acór-
dão, utilizamos as categorias semânticas das Rtd. Essas categorias mate-
rializam-se no texto através dos substantivos, adjetivos, verbos, advérbios,
que corresponderam aos elementos linguístico-discursivos. Entendemos
que os objetos do discurso são construídos a partir de um posicionamento
do enunciador frente às razões que o motivaram. Nesse sentido, constata-
mos que é a partir da construção desses objetos que o enunciador funda-
menta sua tese de modo a persuadir e convencer seu auditório/leitor.
Tal constatação “abre caminho” para que diversas formas e procedi-
mentos sejam reconhecidos como argumentativos, uma vez que os objetos
são construídos a partir de um posicionamento do enunciador frente às
razões que o motivaram, utilizando as imagens como a própria argumen-
tação. Assim elas não desempenham apenas funções discursivas que au-
xiliam na interpretação.
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E OS TERMOS DE EMOÇÃO NO ACÓRDÃO DO PEDIDO DE SOLTURA DE
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Referências
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DAMELE, Giovanni. Notas sobre o papel da retórica nas teorias da argumentação
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DONIZETTI, Elpídio. Novo Código de Processo Civil Comentado. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2017.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA
ARGUMENTATIVA NO DISCURSO
JURÍDICO INTERNACIONAL
Introdução
Este capítulo apresenta uma proposta de análise linguística da Con-
venção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1992), a
partir da Análise Textual dos Discursos (ATD), tendo a orientação argu-
mentativa como plano de análise e a semântica argumentativa como prin-
cipal ponto de partida teórico. Essa proposta, embora ainda muito simples
em sua estruturação, faz parte de investigações maiores focadas na aná-
lise textual e discursiva da força ilocucionária-argumentativa de textos
normativos, articulando aportes teóricos da pragmática linguística, como
o texto, a enunciação e o discurso, as teorias dos atos de fala e de discurso,
e a teoria da argumentação.
Enquanto proposta, este capítulo apresenta em caráter eminente-
mente exploratório uma abordagem de análise da argumentação em tex-
tos normativos que ainda está em desenvolvimento. Por isso, o recorte
aqui feito é reduzido, limitando-se a um fragmento do texto normativo
selecionado para análise. Apesar disso, esse recorte é de trecho funda-
mental para o propósito de nossa investigação, uma vez que trata de pro-
posições-enunciados que exigem comprometimento do enunciatário.
Nesse movimento argumentativo, o texto normativo deixa transparecer
seu caráter deôntico e imperativo, atributo essencial para a caracteriza-
ção do texto normativo enquanto gênero textual e discursivo de relevân-
cia. Esses e outros aspectos, que logo mais buscaremos observar,
evidenciam pistas para a reconstrução argumentativa que neste trabalho
se traduz em uma abordagem semântico-argumentativa dos vestígios sin-
táticos e léxico-gramaticais.
É dentro desse panorama introdutório que esperamos poder contri-
buir com uma nova compreensão a respeito do uso da argumentação em
textos normativos, a fim de identificar como os argumentos se organizam
e se estruturam por meio de determinados enunciados, para obter uma
orientação argumentativa que comande maior ou menor comprometi-
mento do enunciatário em relação ao conteúdo proposicional de uma de-
terminada proposição-enunciado. Acreditamos que esse objetivo poderá
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UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
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UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
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ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
§53 (E-M) All Parties [taking into account their common but dif-
ferentiated responsibilities and their specific national and
regional development priorities, objectives and circumstan-
ces] shall ...
87
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
4
“[…] although Deontic modality stems from some kind of external authoritysuch as rule-
sorthelaw, typicallyand frequently the authority is theactual speaker, who gives permission
o, orlaysano bligationon, theaddressee.” (PALMER, 2001, p. 10)
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ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
§61 Promote, cooperate [in the full] = open and prompt exchange
LI: (1) {in the full}
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
§45 [E-M] ... The Parties shall be guided ... by the following = in
their actions to achieve the objective of the Convention and
to implement its provisions
5
A tradução do MRE é a mesma para where appropriate e as appropriate.
90
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
begiven ... consideration (§47) e should be used (§48b) exerce uma força
argumentativa mais enfraquecida que a ativa em decorrência de um
maior distanciamento do enunciador em relação àquele comando que se
enuncia. No caso de may be carried out ainda inclui o modal may, ainda
menos restrito que should quanto ao vínculo de obrigatoriedade do enun-
ciador-enunciatário, o que juntamente com a organização da voz passiva
contribuiria para uma conjunção de fator para uma força argumentativa
ainda mais reduzida.
Dessa forma, depreende-se que os enunciados no Artigo 3 parecem
ser mais flexíveis e amplos, qualidades características de disposições de
princípios dentro de sistemas jurídicos. Os princípios, em uma hierarquia
normativa, são os elementos norteadores desse sistema e mais duradou-
ros, embora mais maleáveis, posto que devem se adaptar às transforma-
ções sociais uma vez que a elas conferem propósito e objetivo. Como tal,
as disposições do Artigo 3 se posicionam abaixo daquelas da parte (1), Ar-
tigo 4 da seção c) Obrigações exposta acima, uma vez que se considere
uma hierarquia de argumentos que tenha como referencial a intensidade
de sua força argumentativa.
Considerando essa breve proposta de análise, vemos que é viável in-
vestigar a força argumentativa enquanto categoria de análise textual e
discursiva em textos normativos internacionais, seguindo uma perspec-
tiva que tem como ponto de partida a semântica argumentativa. No cor-
pus por ora examinado, percebemos, nessa perspectiva, que há forças
argumentativas de diferentes intensidades diretamente representadas
pela maior ou menor exigência de comprometimento por parte do enun-
ciador, tendo inclusive como principal evidência linguística o papel de-
sempenhado pelos verbos modais da língua inglesa, como shall e should.
De fato, observamos que sua relevância tem implicação direta na repre-
sentação das forças argumentativas dentro do contexto e do topos de ob-
rigatoriedade de comprometimento marcado nos enunciados.
Assim, acreditamos que é possível entender a força argumentativa
como uma perspectiva viável de compreensão linguístico-argumentativa,
levando em consideração a estrutura sintática, semântica e enunciativa de
um dado texto, com especial interesse nas categorias léxico-gramaticais
para identificação de marcas que representem um dado valor argumenta-
tivo. Evidentemente, conseguimos trazer apenas uma fração das possibili-
dades dessa perspectiva, mas esperamos sobretudo que seja possível, daqui
para frente, refiná-la o tanto quando necessário, a fim de que possamos
construir um modelo de análise textual do discurso normativo elaborado
especificamente para aplicação nesse contexto discursivo e que sirva como
sugestão de extensão teórica adequada da ATD de Jean-Michel Adam.
92
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
Considerações finais
A proposta de análise apresentada neste capítulo ainda retrata de
modo bastante superficial os aspectos que poderiam ser evidenciados pela
Análise Textual dos Discursos, dentro de uma perspectiva linguística de
uma orientação argumentativa informada pela Teoria da Argumentação
na Língua e da teoria dos topoi. Como elemento focal, procuramos avan-
çar a relevância da força argumentativa enquanto categoria de análise,
considerando-a a partir de marcas estruturais na língua de cunho lexical,
sintático e semântico contextualizadas na pragmática do discurso nor-
mativo internacional.
Ainda, subsidiamo-nos em alguns aspectos referentes ao direito in-
ternacional, como o conceito de obrigatoriedade para poder identificar em
um primeiro momento a obrigatoriedade de comprometimento com o seu
topos principal. Objetivamos fazer um percurso metodológico de heurís-
tica própria, encorajada pelos estudos de Anscombre e Ducrot, que evi-
denciasse os enunciados a partir de um enunciado-matriz, enunciados
pertencentes, limitações e permissões, visando, especialmente, o sentido
textual e contextual dos verbos modais de língua inglesa, utilizados no
recorte analítico, e sua relação com demais componentes enunciativos.
O resultado parcial dessa proposta de análise levou a considerações
a respeito da equivalência entre a força argumentativa do enunciado e a
obrigatoriedade de comprometimento do enunciador-enunciatário, indi-
cando que essa força pode ser maior ou menor, a depender do viés semân-
tico-lexical do verbo modal e do verbo principal, das limitações e
permissões implicadas neste enunciado e da contraposição desses enun-
ciados em relação a outros enunciados de mesma hierarquia, embora de
forças diferentes. Dessa forma, esta proposta de análise, seguindo a me-
todologia descritiva proposta neste capítulo, sugere que a ATD pode ser
uma ferramenta relevante de investigação de textos, não apenas jurídicos
em geral, mas também especificamente normativos, em especial se con-
seguirmos refinar com mais qualidade a articulação junto à TAL, à teoria
dos topoi e a uma heurística metodológica particular.
Entretanto, as limitações deste trabalho ainda são inúmeras. É ex-
tremamente necessário, ainda, explorar com mais profundidade não ape-
nas os estudos de Anscombre e Ducrot e as técnicas que utilizam para
análise semântico-argumentativa, mas também outras obras de aborda-
gem linguística da argumentação, para que possamos estabelecer com
mais rigor o nível micro de análise que nos ocupa. Ao mesmo tempo, é
também necessário conseguir articular esse nível de análise com o macro,
isto é, que dialoga com a teoria da argumentação geral, de modo que é do
nosso interesse aprofundar-nos nos estudos de Walton sobre métodos e
93
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
ADAM, J-M. A Linguística textual: introdução à análise textual dos discursos.
Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva
Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2. ed. rev. e
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ADAM, J-M. La linguistique textuelle. 3. ed. Malakoff: Armand Colin, 2015.
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Paris, 1997.
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tions. In Revue Internationale de Philosophie, Vol. 33, 1127/128, La
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94
ANÁLISE TEXTUAL DOS DISCURSOS:
UMA PROPOSTA DE ANÁLISE DE FORÇA ARGUMENTATIVA NO DISCURSO JURÍDICO INTERNACIONAL
95
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
96
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA
DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA
SENTENÇA CONDENATÓRIA
Considerações iniciais
Neste capítulo, apresentamos uma análise linguística do discurso ju-
rídico fundamentada na perspectiva textual-enunciativa. Nosso intuito é
descrever, analisar e interpretar como se apresentam marcados linguis-
ticamente, no gênero sentença judicial condenatória de crime contra a
dignidade sexual, os modos de assumir ou não a responsabilidade enun-
ciativa (RE), bem como a mobilização de PDV (ponto de vista) de enun-
ciadores segundos, em conformidade com os propósitos comunicativos do
jurista locutor-enunciador 1 (LI/E1) atrelados à orientação argumenta-
tiva, a partir da análise de marcas linguísticas por meio de categorias
textuais e enunciativas.
Trata-se de um estudo de cunho metodológico interpretativista e qua-
litativo dos dispositivos enunciativos1 concernentes à orientação argu-
mentativa e à responsabilidade enunciativa na sentença judicial
condenatória de crime hediondo, especificamente de crime contra a dig-
nidade sexual infantojuvenil.
Assumimos neste capítulo que as marcas linguísticas expressam a ma-
terialidade textual da RE, bem como evidenciam os diversos mecanismos
enunciativo-argumentativos relacionados ao gerenciamento de PDV, aos
tipos de PDV, às posturas e aos posicionamentos enunciativos de L1/E1.
Acreditamos que há uma diversidade de estratégias para demarcar,
no nível linguístico, a RE, por isso a gestão de vozes realizada por L1/E1
(o juiz) desencadeia níveis hierárquicos de posturas enunciativas, bem
como as escolhas linguísticas, no plano textual-enunciativo, configura-se,
na dinâmica textual, como estratégia argumentativa, motivada por um
1
Em linhas gerais, os dispositivos enunciativos estão interligados aos mecanismos linguís-
ticos no nível da dimensão enunciativa materializados textualmente. Seguimos Rodrigues
(2016) que considera três dispositivos enunciativos inter-relacionados: o ponto de vista
(PDV), a responsabilidade enunciativa e a visada argumentativa. Além disso, ratificamos,
no sentido amplo, que a abordagem enunciativa [...] não se limita a um determinado nível
da língua, mas atravessa todo o estudo da língua, isto é, a enunciação está presente em
todos os níveis da análise linguística.
97
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
(Continuação)
Análise textual-enunciativa
do PDV e da RE
Categorias linguístico-
textuais da dimensão Categorias enunciativas
enunciativa
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Expressões verbais e verbos com in- Verbos em primeira pessoa do singular, ex-
dicações de um suporte de percep- pressões verbais na terceira pessoa do sin-
ções e de pensamentos relatados. gular seguidas do pronome se, entre outras
observadas no contexto linguístico;
Expressões verbais com valor semântico de
percepção e pensamento relatado;
Verbos dicendi.
103
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
(Continuação)
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
105
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
INSTÂNCIAS
ENUNCIATIVAS
LOCUTOR E
ENUNVIADOR
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
2. Questões metodológicas
Em termos metodológicos, trata-se de uma pesquisa de caráter descritivo,
qualitativo e interpretativo. Para análise, selecionamos uma sentença judicial
condenatória4 oriunda de nosso corpus de tese de Doutorado (SOARES, 2016).
No que tange ao gênero em análise, destacamos que seguimos as
questões e características delineadas em Soares (2016), bem como no Có-
digo Penal Brasileiro, no Estatuto da criança e do Adolescente, em Soto
(2001) e Bittar (2015).
Seguimos Bittar (2015, p. 304) quando afirma que a sentença é um ato
decisório (a decisão), ou seja, um ato performativo de linguagem que resulta
de uma enunciação contextual própria pela qual se manifesta a autoridade
decisória do juiz. Esse autor considera ainda que a sentença judicial apre-
senta um valor material concreto, socialmente engajado e sustentado ins-
titucionalmente, constituindo, desconstituindo, declarando e condenando.
Nessa linha de pensamento, Soto (2001, p. 26-27) define a sentença
condenatória como:
109
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Excertos da SJCEV3
Fragmento 1 [SJCEV3PTR]
A denúncia foi recebida em 5 de dezembro de 2012, em face da observância
dos seus requisitos legais, ocasião em que foi determinada a citação do denun-
ciado (decisão de fl. 63).
Foi apresentada defesa prévia em favor do réu (fls. 86/89).
Após requerimento ministerial, foi decretada a prisão preventiva do réu, visando
à garantia da ordem pública e por conveniência da instrução criminal (fls. 114/117).
[...]
Foi realizada audiência de instrução e julgamento, na qual foram ouvidas
as testemunhas e declarantes arrolados pelo Ministério Público e Defesa, bem
como foi realizado interrogatório do réu, todos através de registro audiovisual
coletados em CD, que encontra-se na contra-capa dos autos (fls. 167/170). Na
mesma audiência, o Ministério Público apresentou suas alegações finais orais,
bem como foi concedido prazo à Defesa para apresentação das alegações finais
por escrito, através de memoriais (fl. 170).
O Representante do Ministério Público manteve integralmente os termos
da denúncia, requerendo a condenação do acusado como incurso nas sanções do
art. 217-A c/c art. 226, II, do Código Penal, em concurso material com o mesmo
crime do artigo 217-A c/c arts. 71 e 226, II, todos do Código Penal, em razão do
tempo da primeira conduta para as duas últimas ter sido superior a trinta dias.
A Defesa, por sua vez, pediu a absolvição do denunciado, alegando, em
suma, que não há provas suficientes para a condenação do acusado, invocando
o princípio do in dubio pro reo (fls. 172/182).
É o relatório. Passo a decidir.
110
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Fragmento 2 [SJCEV3PTF]
Neste contexto, inserem-se as declarações prestadas pelo denunciado em
seu interrogatório judicial, ou seja, suas versões dos fatos sub judice. É patente
a negativa de autoria apresentada pelo denunciado.
Contudo, a vítima, sua mãe e sua irmã sustentam, em seus depoimentos em
juízo (CD na contra-capa dos autos), de forma convincente, que o réu abusou sexual-
mente da vítima, tendo, inclusive, a genitora presenciado o fato delituoso em análise.
Tem-se, pois, mais narrativas que harmoniosamente retratam os fatos
sub judice, formando, até este momento, um todo coerente, indicativo de fortes
provas da autoria delitiva do réu.
Assim, ao final deste exame, o que se vislumbra é a afirmação da autoria
delitiva, uma vez que existem elementos seguros e direcionados para a confir-
mação de que o denunciado, de fato, perpetrou o delito capitulado no art. 217-
A, do Código Penal, tendo como vítima sua enteada.
111
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
112
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Fragmento 3 [SJCEV3PTF]
Há nos autos laudo de exame de conjunção carnal (fls. 77/78), que não foi
capaz de detectar a ocorrência do ato sexual, uma vez que restou constatado o
hímen complacente da vítima, [...] sem romper-se. Logo, para que a materiali-
dade delitiva reste devidamente comprovada, recorrer-se-á à prova testemunhal
contida nos autos que, por sua vez, se prestará a evidenciar a conduta do de-
nunciado.[...]
A mãe da vítima afirmou, em juízo, que viu, pelo buraco [...], o réu abusando
sexualmente da vítima, estando os dois [...]. Revelou que o réu lhe ameaçou de
morte se fosse preso e que já sofreu agressões dele. Relatou que sua outra filha
também lhe contou ter sido abusada sexualmente pelo réu.
A irmã da vítima confirmou, em juízo, que a vítima foi abusada sexual-
mente pelo réu. Revelou que o réu também lhe abusou sexualmente, por várias
vezes, quando tinha treze anos, e que foi ameaçada de morte pelo réu para não
contar os fatos.
A testemunha de defesa se resumiu em falar da boa conduta do réu.
113
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
denunciado [...]”. Esse trecho indica que os PDV que serão elencados por
L1/E1 estarão em sincronia, coconstruindo, reforçando e guiando a orien-
tação argumentativa em prol da condenação do réu, ou seja, para concluir
e evidenciar a comprovação da conduta delituosa do réu.
Destacamos que, nesse exemplo, identificamos o conector argumen-
tativo “por sua vez”, que expressa contraponto em relação ao PDV impu-
tado ao perito do exame de conjunção carnal, que não contribuiu para
evidenciar a confirmação do crime.
Constatamos que PDV representado de e2 imputado ao laudo do exame
é captado pelas expressões linguísticas de asserção (“há nos autos”, “não foi
capaz de detectar”, “restou constatado”, “recorrer-se-á” e “se prestará a evi-
denciar”) que indicam a percepção/pensamento sob ótica de L1/E1.
Portanto, consideramos que o PDV é um fenômeno dialógico. Então
podemos afirmar que, ao atuarem na construção e direcionamento da
orientação argumentativa, a argumentação é polifônica/dialógica. Desse
modo, ratificamos os postulados rabatelianos que a polifonia é argumen-
tativa, pois constatamos o sincretismo dos PDV no plano enunciativo-ar-
gumentativo e organização textual.
Fragmento 4 [SJCEV3PTF]
Por fim, há de se sobrelevar as próprias declarações da vítima, as quais
mostraram-se totalmente coerentes, tanto em sede inquisitorial, quanto em
juízo, as quais atestam não só a materialidade do crime, como também apontam
o acusado como o autor da conduta delituosa em relevo, senão vejamos trechos
do seu depoimento em juízo:
114
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Fragmento 4 [SJCEV3PTF]
[continuação]
creto condenatório, mormente se tais declarações mostram-se plau-
síveis, coerentes e equilibradas, e com o apoio em indícios e circuns-
tâncias recolhidas no processo.” (TJSC — JCAT 76/639). (grifei)
[...]
É mister destacar que a pior das violências é aquela praticada pelo indivíduo
que goza de confiança da vítima e deveria protege-la. Sobre o assunto, a revista
Veja, de circulação nacional, trouxe uma matéria especial de capa, onde informa
o seguinte: "A família e a própria casa são a maior proteção que uma criança
pode ter contra os perigos do mundo. É nesse ninho de amor, atenção e resguardo
que ela ganha confiança para lançar-se sozinha, na idade adulta, à grande
aventura da vida. Mas nem todas as crianças com família e quatro paredes só-
lidas em seu redor são felizes. Em vez de contarem com o amor de adultos res-
ponsáveis, elas sofrem estupros e carícias obscenas. Em lugar do cuidado que a
sua fragilidade física e emocional requer, elas são confrontadas com surras e
violência psicológica para que fiquem caladas e continuem a ser violadas por
seus algozes impunes. No vasto cardápio de vilezas que um ser humano é capaz
de perpetrar contra um semelhante, o abuso sexual de meninas e meninos é dos
mais abjetos — em especial quando é cometido por familiares. Para nosso horror,
essa é uma situação mais comum do que a imaginação ousa conceber. Estima-
se que, no Brasil, a cada dia, 165 crianças ou adolescentes sejam vítimas
de abuso sexual. A esmagadora maioria deles, dentro de seus lares."
(grifei) (Edição nº 2.105, de 25/03/09, pág. 82)
A mesma reportagem da revista Veja menciona, às fls. 86, o depoimento
de uma adolescente da cidade de Vitória/ES, abusada pelo padrasto dos 9 aos
13 anos de idade, onde se verifica o estrago que a violência sexual é capaz de
fazer na alma de uma pessoa.
Nesse excerto [4 SJCEV3PTF], visualizarmos um encadeamento de
PDV imputados a e2 em postura de sobre-enunciação, em um plano argu-
mentativo hierarquizado, sob a gestão de L1/E1. Trata-se de uma postura
enunciativa com relações assimétricas postas na construção textual do
PDV, pois constatamos a sobre-enunciação do PDV da vítima, ratificada
por meio do PDV imputado à jurisprudência em favor da OrArg de L1/E1.
É possível depreendermos, no contexto linguístico, o PDV da vítima
subordinado ao PDV da jurisprudência, pois L1/E1 valora, no escopo do
livre convencimento jurídico, na tessitura linguística, o dito da vítima a
partir da validação e da credibilização da jurisprudência que emite juízo
de valor sobre a asserção da informação do relato da vítima (da voz da ví-
tima), tendo como fonte do conteúdo proposicional o Tribunal de Justiça. A
asserção e a assunção da responsabilidade enunciativa foram sinalizadas
por meio de recursos linguísticos indicadores de hierarquização de PDV
realizada por L1/E1. Tal mecanismo é relevante na construção textual-ar-
gumentativa da sentença, pois revela que o PDV de L1/E1 é afirmado,
115
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
116
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Fragmento 5 [SJCEV3PTF]
A avaliação psicológica da vítima foi conclusiva no sentido de que a
vítima foi abusada sexualmente pelo réu (fls. 161/163), senão vejamos
trechos da conclusão dos peritos:
117
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Fragmento 6 [SJCEV3PTD]
III — DISPOSITIVO
Ante o exposto, julgo procedente a pretensão punitiva do Estado,
materializada na denúncia ofertada pelo Ministério Público, em face do
que CONDENO, nos termos do artigo 387 e seguintes do Código de
Processo Penal, o acusado XXXX., nos autos qualificado,como incurso
nas penas do artigo 217-A c/c arts. 71 e 226, II, todos do Código Penal.
É oportuno esclarecer que, ao contrário do Ministério Público, entendo
ter o réu cometido um só crime, sendo continuado, mesmo tendo a pri-
meira conduta acontecido mais de trinta dias antes das demais condutas,
eis que ocorreram todas da mesma forma, no mesmo local, da mesma
maneira de execução e outras semelhanças.
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
119
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
VOZ DO JUIZ
VOZ DA LEGISLAÇÃO
VOZ DA JURISPRUDÊNCIA
(TJ/SC/SP/RJ)
VOZ DO MINISTÉRIO PÚBLICO
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ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
ORARG = L1/E1 + E2 =
CONDENAÇÃO DO RÉU
Voz da vítima
Voz do MP + Inquérito Policial
Voz do Código Penal
Voz da Lei 8.072/90
Voz da jurisprudência (TJ/SC/SP)
Voz do parecer psicológico
Voz da testemunha de acusação (testemunha ocular/mãe)
Vozes das testemunhas de acusação (irmã)
Voz da Revista Veja
(e2/12)
Acordo parcial e2
entre L1/E1 e a +
voz do MP (e2) L1/E1
Desacordo Desacordo
entre entre
Voz do juiz
e2 L1/E1 e2
(Gerenciador dos PDV
de e2)
Acordo entre e2
121
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
122
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Considerações finais
Os resultados da análise evidenciam que o gerenciamento das vozes
e a hierarquização dos PDV são mecanismos argumentativos marcados
na construção textual, ou seja, a seleção dos PDV imputados a e2 (enun-
ciadores segundos) realizada por L1/E1 (juiz) orienta a interpretação e a
construção argumentativa em favor da condenação do réu.
Observamos indícios da hierarquização de PDV em favor da orienta-
ção argumentativa. Assim, diagnosticamos, com base nas análises, um
conjunto significativo de diversas estratégias linguísticas que contribuem
para a construção dos PDV de L1/E1. A análise textual dos mecanismos
enunciativo-argumentativos revela um jogo dialógico de pontos de vista
de diversas instâncias enunciativas, ou seja, de diferentes PDV e que a
(não) assunção da responsabilidade enunciativa (a assunção, o engaja-
mento com o dito, (des)acordo ou o distanciamento do ponto de vista) são
estratégias linguístico-textuais fundamentais para a orientação argu-
mentativa do texto.
Em decorrência disso, podemos dizer que são mecanismos enuncia-
tivo-argumentativos em favor dos propósitos do jurista na decisão prola-
123
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
124
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
Referências
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Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva
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125
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
126
ANÁLISE TEXTUAL-ENUNCIATIVA DO DISCURSO JURÍDICO:
OS DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA
127
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA
SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
Introdução
Este trabalho apresenta resultados de uma pesquisa de mestrado
que teve como objetivo analisar como as representações discursivas da
vítima foram construídas a partir de pontos de vista de enunciadores dis-
tintos. Focalizada na dimensão semântica do texto, “[...] a noção de re-
presentação discursiva supõe que todo texto constrói, de forma mais ou
menos explícita, ‘imagens’ — i.e, representações — do seu enunciador ou
de seus enunciadores, do seu destinatário ou dos seus destinatários,
assim como dos temas tratados” (RODRIGUES; PASSEGGI; SILVA
NETO, 2014, p. 250). O estudo fundamenta-se no quadro teórico geral da
linguística textual e, mais especificamente, nos pressupostos da análise
textual dos discursos (ATD), teoria desenvolvida por Jean-Michel Adam
(2011). A análise é complementada com outras noções teóricas da linguís-
tica do texto vinculadas aos estudos do gênero e do discurso jurídico.
Em termos metodológicos, é uma pesquisa documental que se orienta
pelo método do raciocínio indutivo, apresentando um caráter qualitativo
e interpretativo. De modo a contribuir e evidenciar a construção da repre-
sentação discursiva da vítima no texto jurídico, nossas análises lançaram
mão de algumas categorias semânticas de análise da representação dis-
cursiva (Rd), entre elas, a referenciação (designações do referente), a mo-
dificação (dos referentes e das predicações) e a predicação (de ação, de
estado, de mudança de estado). Para a análise do corpus, selecionamos
uma sentença judicial coletada do portal de serviços do Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP) — Poder Judiciário, em Consulta de Julgados de 1°
Grau2, com a temática da violência contra a mulher.
O texto está dividido em três seções: na primeira, apresentamos na
fundamentação teórica, a análise textual dos discursos (ATD), e a repre-
sentação discursiva; na segunda, apresentamos a análise do corpus, a dis-
cussão dos resultados e, por fim, tecemos algumas considerações.
1
Doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal-RN.
2
Site disponível — www.esaj.tjsp.jus.br/cjpg/
129
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
DESCONTINUIDADE
OPERAÇÕES DE SEGMENTAÇÃO
OPERAÇÕES DE LIGAÇÃO
Formações CONTINUIDADE
sociodiscur-
sivas LINGUÍSTICA TEXTUAL
130
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
131
ciado [C1]. O sentido de um enunciado (o dito) é inseparável de um
dizer, isto é, de uma atividade enunciativa significante que o texto
convida a (re)construir. (ADAM, 2011, p. 113).
Responsabilidade enunciativa
da proposição
Ponto de vista [PdV]
B (N7)
Ligação com um
cotexto anterior Ligação com um
(dito ou implí- cotexto posterior
cito) ou um in- (dito ou implí-
Proposição-
tertexto cito)
-enunciado
(N4-N5) (N5-N4)
A (N6) C (N8)
Referência como represen- Valor ilocucionário [F-C2]
tação discursiva [Rd] cons- resulktante das potenciali-
truída pelo conteúdo propo- dades argumentativas dos
sicional [p] enunciados [OR-arg-C1]
132
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
2. Análise do corpus
Nesta seção pretendemos exemplificar, através da investigação rea-
lizada na amostra, como as categorias de análise da Rd, a saber, a refe-
renciação, a modificação e a predicação, colaboram na construção da
representação discursiva da vítima no gênero sentença judicial. Conforme
salientamos, essa construção foi feita a partir de duas perspectivas ou
pontos de vista de enunciadores distintos.
133
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
134
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
Modif. do ref.
N. Exemplo
"vítima"
“solteira”“casada”“v
(E'14) “Não importa seja a vítima solteira, casada iúva”“uma vestal
01 ou viúva, umavestal inatacável ou uma meretriz de inatacável”“uma
baixa formação moral.” meretriz de baixa
formação moral”
(E'14) “Em qualquer hipótese, é ela senhora de seu
“senhora de seu
02 corpo e só se entregará livremente, como, quando,
corpo”
onde e a quem for de seu agrado.”
(E'14) “Protege-se a liberdade sexual da mulher,
sem nenhuma distinção ou exigência, não colhendo “pessoa de compor-
03
a tentativa de se demonstrar ser a vítima pessoa tamento duvidoso”
de comportamento duvidoso.”
135
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
136
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
b) "carregada", "possessão"
3
De acordo com os procedimentos metodológicos, “M” é a codificação do nome da vítima.
137
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
"frequentava baladas"
"ela" Ações
"não cuidava do filho"
4
WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org>. Acesso em:
08 jun. 2014
5
Dicionário do Aurélio, disponível em <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. Acesso em:
07 jun. 2014.
138
A REPRESENTAÇÃO DISCURSIVA DA VÍTIMA SOB DIFERENTES PONTOS DE VISTA
Considerações finais
Em nosso trabalho, buscamos analisar as representações discursivas
da vítima construídas na sentença judicial a partir dos pontos de vista
de enunciadores distintos. Para auxiliar nossas análises, lançamos mão
de três categorias semânticas da Rd, a referenciação, a predicação e seus
modificadores.
A polifonia ou os diferentes PdV presentes no texto apontam para
sentidos distintos do termo “vítima”, que podem aproximar-se ou distan-
ciar-se de acordo com a orientação argumentativa do texto. A análise de-
monstrou que o processo de construção de uma imagem é complexa e
depende das escolhas feitas pelo locutor/enunciador e dos objetivos que
se quer alcançar com seu texto. Nesse sentido, observamos que a repre-
sentação de uma pessoa é muito mais evidente em alguns de seus aspec-
tos, saberes, intenções e valores que essa figura traduz.
Diante da importância social do texto forense e, em especial, da sen-
tença judicial na vida dos cidadãos, percebemos a relevância em desen-
volver pesquisas que abordem o estudo da dimensão semântica do texto,
principalmente na construção das representações dos objetos de discurso,
pois esses elementos são essenciais no processo argumentativo. Acredi-
tamos que nossas reflexões contribuirão para o desenvolvimento de novas
pesquisas na área da ATD e, notadamente, nos textos de caráter jurídico.
Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
DUBOIS, Danièle & MONDADA, Lorenza. Construção dos objetos de discurso e
categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: CA-
VALCANTE, Mônica Magalhães; RODRIGUES, Bernadete Biasi;
CIULLA, Alena (Orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003, p.
17-52.
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução
Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002.
PASSEGGI, Luis et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da pro-
dução co(n)textual dos sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q.
(Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama
das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010. p.262-312.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João
Gomes. Planos de texto e representações discursivas: a seção de abertura
139
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
140
A ARGUMENTAÇÃO
NO DISCURSO JURÍDICO
Maria de Fátima Silva dos Santos — UFRPE/UAST
Introdução
Este texto é um recorte de uma pesquisa sobre as representações dis-
cursivas de vítima e agressor em textos de inquéritos policiais. A repre-
sentação discursiva é responsável pela união, descrição e caracterização
de elementos imprescindíveis no constructo textual, quais sejam, o locu-
tor/enunciador, o interlocutor/ouvinte-leitor e os temas abordados, num
contexto concreto de uso da linguagem. (cf. ADAM, 2011). Seguindo prin-
cípios da pesquisa documental, de base qualitativa, o corpus foi consti-
tuído por um conjunto de textos de nove inquéritos policiais relacionados
a crimes de violência praticados contra a mulher. Nossa hipótese é que
as escolhas linguísticas utilizadas para construir uma determinada ima-
gem, no caso, a imagem de vítima, são feitas em função de um determi-
nado propósito argumentativo, de acordo com as intenções do enunciador
(sua visada discursiva) — defender(-se) e/ou acusar, incriminar.
Como os textos que compõem o corpus pertencem à esfera jurídica,
apresentamos, neste capítulo, uma abordagem, ainda que sumária, sobre
a argumentação no campo jurídico, com uma discussão sobre a racionali-
dade do discurso jurídico e os argumentos que o compõem. Para tanto,
subsidiamos a discussão em autores como Damele (2014), Grácio (1993),
Perelman (1996) e Toledo (2005). Na sequência, apresentamos alguns ex-
certos com resultados da análise das representações discursivas de vítima
em uma amostragem de textos de inquérito policial.
141
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
minadas opiniões. É por essa razão que se pode afirmar que “[...] o ato
de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determina-
das conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e
qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do
termo” (KOCH, 2011, p. 17, grifos da autora).
Nesse sentido, o discurso constitui uma unidade pragmática, ativi-
dade capaz de produzir efeitos e reações. Isso significa que ao produzir um
discurso, o sujeito se apropria da língua não apenas com a finalidade de
veicular mensagem ou de transmitir informações, mas, principalmente,
com a intenção de influenciar as ideias, opiniões, enfim, atuar sobre o
outro. Logo, o homem se apropria da linguagem para interagir social-
mente, “[...] instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como
interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU, por
meio do jogo de representações e de imagens recíprocas que entre eles se
estabelecem” (KOCH, 2011, p. 19). Nessa perspectiva, delineia-se uma
concepção mais ampla do termo argumentação, no sentido de modificar,
de reorientar, ou simplesmente, de reforçar, por meio da linguagem, a re-
presentação das coisas, dos diferentes modos de ver, de sentir.
O estudo da argumentação jurídica relaciona-se diretamente com a
teoria do discurso. Tem por finalidade questionar e demonstrar a possi-
bilidade e a validade de uma fundamentação racional do discurso jurídico,
estipulando-lhe algumas regras e formas. Para Perelman (1996), o dis-
curso jurídico se apresenta como uma argumentação regulamentada,
cujos aspectos podem variar conforme as épocas, os sistemas de direito e
as áreas de aplicação.
Uma questão de primacial relevância para a cientificidade do Direito é
a possibilidade de justificação racional do discurso jurídico, a qual é, de
acordo com Toledo (2005, p. 48), “[...] imprescindível para a solidez de um
Estado Democrático de Direito”. Para a autora, caracterizam-se como con-
sensos racionais (e, dentro deles, o jurídico), apenas aqueles passíveis de uma
justificação discursiva, segundo regras de argumentação. Por esse motivo,
142
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
sertivas”. A autora salienta, ainda, que esta correção deve estar presente
“[...] tanto na teoria quanto na prática jurídica, pois ambas, para ultrapas-
sarem o âmbito da mera doxa, carecem de demonstração racional de suas
afirmações”. Com isso, entendemos que as decisões jurídicas não podem ser
puramente arbitrárias, antes exigem razões ou motivos que as justifiquem,
as tornem razoáveis ou lhes confiram, pelo menos, uma certa razoabilidade.
A esse respeito, Grácio (1993) esclarece que a necessidade de justifi-
cação racional não implica uma tarefa de fundamentação última nem o
estabelecimento de, ou o recurso a, critérios incontestáveis e infalíveis
que garantam, definitivamente, a sua validade. Para o autor, a raciona-
lidade do empreendimento justificativo refere-se à forma como se articula,
sem rupturas absolutas com o pré-existente, o tradicional e o novo, à ma-
neira pela qual se consegue assegurar uma continuidade entre o passado
ou o atualmente estabelecido e aquilo que pretende estabelecer-se.
143
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
através de valores antigos. O que não tem qualquer ligação com o passado
só pode impor-se pela força, não pela razão. Isso significa que para os ju-
ristas toda a racionalidade é continuidade. Assim, a racionalidade apre-
senta-se, no quadro da jurisprudência, como adaptação àquilo que já é
admitido (Cf. PERELMAN, 1996).
Com efeito, admitir a possibilidade de uma justificação racional sig-
nifica admitir ao mesmo tempo um uso prático da razão, não limitando
esta à faculdade de discernir relações necessárias, nem sequer relações
referentes ao verdadeiro ou ao falso. Isso porque toda justificação racional
supõe que raciocinar não é somente demonstrar e calcular, é também de-
liberar, criticar e refutar. Ou seja, é apresentar razões pró e contra, é,
portanto, argumentar. Desse modo, pode-se afirmar que a ordem jurídica
é, essencialmente, uma ordem adaptativa e que a sua racionalidade re-
side na fidelidade a regras, a começar pelo princípio que “[...] se manifesta
pela regra de justiça e, mais particularmente, pela conformidade com os
precedentes, que assegura a continuidade e a coerência de nosso pensa-
mento e de nossa ação” (PERELMAN, 1996, p. 367). A esse respeito, Grá-
cio (1993, p. 54-55) comenta que na ordem jurídica vemos, assim, “[...]
trabalhar uma dialética entre formalismo — fidelidade entre as regras e
a tradição — e pragmatismo — que exige que sejam tomadas em consi-
deração as consequências que, num ou noutro sentido, advêm da inter-
pretação dos textos e da aplicação da lei”.
Perelman (1996, p. 371) ressalta que em direito, toda nova regra se
inspira em alguns princípios mais gerais que ela precisa e estrutura, ou
seja, toda decisão é fundamentada em alguma regra que a justifica: “[...]
assistimos a uma dialética constante entre a razão e a vontade, entre as
estruturas que fixam os âmbitos de uma ação e as decisões que precisam,
adaptam e até modificam esses âmbitos, se forem incompatíveis com regras
mais bem assentes”. Desse modo, para ele, a razão e a vontade não se apre-
sentam como uma dualidade irredutível, não tendo qualquer valia para a
elaboração da outra, mas se acham, efetivamente, em constante interação.
No que diz respeito à interpretação jurídica, bem como ao papel que
o juiz exerce na aplicação do direito, Perelman (1996, p. 472) afirma que
“O juiz, em todas as legislações modernas, é obrigado a julgar e a motivar
suas sentenças”. Assim, obrigado a julgar e a motivar, o juiz deve tratar
o direito que é encarregado de aplicar como “[...] um sistema a um só
tempo coerente e completo”. Isso significa que, ao juiz compete interpretar
o direito de modo a remover, de um lado, as incompatibilidades e contra-
dições que poderiam, à primeira vista, ocorrer e, de outro lado, completar
as lacunas que porventura o legislador venha a deixar.
Assim, para Perelman (1996), quanto mais precisa for a ordem jurídica
144
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
145
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
146
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
3
A seção do sitio (http://www.dircost.unito.it/SentNet1.01/def/sn_index.shtml) é dedicada
à análise das técnicas interpretativas da Corte Constitucional italiana, baseada em uma
versão atualizada dos argumentos de Tarello (1980).
147
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
148
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
(Continuação)
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
(Continuação)
150
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
(Continuação)
151
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
• A referenciação
a) “A pessoa acima qualificada”, “sua pessoa”, “ela”, “a vítima”,
“a queixosa”
1
Por se tratar de documentos sigilosos e, sobretudo, por questões éticas, foram apagadas
quaisquer informações sobre os envolvidos nos inquéritos em análise. Esse apagamento
foi feito pela substituição dos nomes verdadeiros dos sujeitos (vítima, agressor) por nomes
fictícios e pela sequência “xxx” para substituir outros dados (data de nascimento, números
de documentos, endereços, telefone) que possam identificá-los.
152
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
• A predicação
Nos enunciados a seguir, observamos que em seu papel temático o
referente “vítima” é designado como paciente das ações descritas nos
eventos expressos pelos verbos:
En2 “A vítima informa que foi agredida e ameaçada de “sem que hou-
morte pelo seu cunhado, sem que houvesse mo- vesse motivo”
tivo”.
En3 “Informa também que o mesmo a chamou de rapa- “iria lhe que-
riga e de cachorra e que iria lhe quebrar a cara. brar”
Nada mais disse”.
153
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
En2 “Que ele então disse que queria ter relação se- “queria ter”
xual: Que a vítima não aceitou e em razão disso “não aceitou”
ele iniciou uma discussão passando a agredi-la “iniciou uma
[...]”. discussão”
154
A ARGUMENTAÇÃO NO DISCURSO JURÍDICO
Circunstâncias
IP02 Exemplos
que expressam
En1 “A vítima compareceu nesta Especializada para re-
gistrar que na data acima citada encontrava-se em Tempo
casa quando falou para seu companheiro que iria
dormir (deitar-se), pois estava cansada”.
En2 “Que ele então disse que queria ter relação sexual:
Que a vítima não aceitou e em razão disso ele Negação
iniciou uma discussão passando a agredi-la [...]”.
Conclusões
Conforme apresentado neste capítulo, uma reflexão sobre o discurso
jurídico mostra que as razões do legislador e do juiz, ainda que não sejam
apenas de natureza dedutiva ou indutiva, nem por isso são motivações
puramente psicológicas: são argumentos a favor de uma tal ou tal tomada
de posição e uma refutação de argumentos a favor de posições opostas.
Assim, o modelo jurídico apresenta, pois, a possibilidade de uma racio-
nalidade indissociável da intervenção e da tomada de posição humana.
Nessa perspectiva, raciocinar não é calcular, mas ajuizar e decidir, consi-
derando as diferentes representações construídas a partir da percepção
de quem enuncia, bem como, apresentando as razões que melhor justifi-
quem a opção por determinada escolha linguística.
155
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
DAMELE, Giovanni. Notas sobre o papel da retórica nas teorias da argumentação
jurídica. Revista Brasileira de Filosofia, Instituto Brasileiro de Fi-
losofia, São Paulo: Marcial Pons Editora do Brasil Ltda, ano 62, v. 240,
p. 222-239, 2014.
GRÁCIO, Rui Alexandre. Racionalidade argumentativa. Porto: Asa Editora,
1993.
KOCH, Ingedore G. Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
PERELMAN, Chaim. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina Galvão G.
Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
TARELLO, Giovanni. L’interpretazione della legge. Milano: Giuffré, 1980.
TOLEDO, Claudia. Teoria da argumentação jurídica, Veredas do Direito, Belo
Horizonte, v. 2, n. 3, p. 47-65, jan./jun. 2005.
156
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS
E ARGUMENTAÇÃO EM TERMO DE
ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
Flávia Elizabeth de Oliveira Gomes — UFRN1
Introdução
O objetivo deste capítulo é investigar os procedimentos de construção
das representações textuais-discursivas e a argumentação no discurso ju-
rídico. Para tanto, analisamos um Termo de Acordo de Colaboração Pre-
miada, cujo colaborador é o ex-senador da República Federativa do Brasil
Delcídio do Amaral Gomez, para a Operação Lava Jato2.
Nessa direção, no âmbito da linguística do texto e, mais especifica-
mente, na abordagem da Análise Textual dos Discursos (ATD) (ADAM,
2011), interessa-nos a noção teórica e analítica da representação textual-
discursiva, uma categoria central da dimensão semântica do texto, ba-
seada na noção de esquematização de Grize (1990, 1996).
Assim concebida, esta análise se apresenta como possibilidade de
contribuir com as pesquisas interdisciplinares entre a Linguística e o Di-
reito, considerando a realização de estudos que comportem manifestações
linguísticas situadas, produzidas por indivíduos em situações concretas.
1
Doutoranda em Linguística Teórica e Descritiva pelo Programa de Pós-graduação em Es-
tudos da Linguagem (PPgEL) — Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
2
Este capítulo retoma, com algumas modificações, a nossa pesquisa de Doutorado vinculada
ao grupo de estudo Análise Textual dos Discursos- ATD (PPgEL — UFRN), na área de lin-
guagens que focaliza o discurso jurídico.
157
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Nesse sentido, Rodrigues, Passeggi & Silva Neto (2010, p. 173) apon-
tam que “todo texto constrói, com menor ou maior explicitação, uma re-
presentação discursiva do seu enunciador, de seu ouvinte ou leitor e dos
temas ou assuntos que são tratados”.
Outrossim, a representação textual-discursiva (ADAM, 2011) rela-
ciona-se aos estudos da lógica natural de Grize (1996), para quem a re-
presentação deve ser compreendida a partir da noção de esquematização.
Essa perspectiva teórica, segundo sugerem Passeggi et al. (2010), é
primordial para a ATD, de maneira que suas operações lógico-discursivas
constituem noções basilares para os estudos semânticos dos textos. Por-
tanto, no capítulo ora apresentado, a abordagem teórico-metodológica da
Análise Textual dos Discursos será complementada com categorias pro-
postas por Grize (1996).
Para Grize (1996, p. 50), “uma esquematização tem por função fazer
alguém ver alguma coisa, mais precisamente, é uma representação dis-
cursiva orientada para um destinatário sobre como seu autor concebe ou
imagina uma determinada realidade”.
Nessa direção, é possível dizer que a esquematização é concebida com
valor argumentativo, estando inserida em um quadro interativo e dialó-
gico das representações textuais-discursivas, pois, se a argumentativi-
dade faz parte da organização interna da língua, logo as palavras são
instrumentos do ato de argumentar.
Trata-se, neste caso, da argumentação como lógica estabelecida pela
linguagem, uma vez que o ato de argumentar deve ser descrito tanto do
ponto de vista linguístico quanto retórico, como também deve estar rela-
cionado às diversas práticas sociais (PINTO, 2010).
Em vista disso, a relação intrínseca entre a representação textual-
discursiva e a argumentação é percebida por operações do pensamento
que constroem um universo discursivo de explicação, o qual depende de
esquematizações coletivas.
2. Procedimentos Metodológicos
O corpus da presente pesquisa é constituído por um Termo de Cola-
boração Premiada, texto pertencente ao discurso jurídico, cujo colabora-
dor é o ex-senador da República Federativa do Brasil Delcídio do Amaral
Gomez, detido no dia 25 de novembro de 2015 pela Polícia Federal, sob a
acusação de tentar dificultar as investigações da Operação Lava Jato3.
3
Desenvolvida a partir de março de 2014, a operação Lava Jato é a maior investigação de
corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. São investigados funcionários da
Petrobras, empreiteiras, agentes políticos e operadores financeiros. Disponível em http://la-
vajato.mpf.mp.br/lavajato/. Acesso em 28/02/2017.
158
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
4
No caso do corpus em questão, tal acordo foi firmado com a finalidade de obtenção de ele-
mentos de provas para o desvelamento dos agentes e partícipes responsáveis, estrutura
hierárquica, divisão de tarefas e crimes praticados pela organização criminosa, no âmbito
do Palácio do Planalto, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados, do Ministério de
Minas e Energia e da companhia Petróleo Brasileiro S/A, entre outras.
5
Mensalão é o nome dado ao escândalo de corrupção política mediante compra de votos de
parlamentares no Congresso Nacional do Brasil, que ocorreu entre 2005 e 2006. Disponível
em https://pt.wikipedia.org/. Acesso em 28/02/2017.
159
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
3. Análise do Corpus
Nesta seção, exemplificamos, através de excertos extraídos do corpus6,
de que forma os processos referencial e predicativo ocorrem no texto e
como colaboram na construção das representações textuais-discursivas
(RTD) e na construção da argumentação.
A) Referenciação
Excerto 1:
(Pág. 129)
QUE mesmo como presidente da CPI7, o depoente sempre conversava
comtodas as pessoas, mesmo pessoas investigadas; [...]
(Pág. 132)
QUE o depoente disse a LULA: "Quando se assume um compromisso,
este tem que ser cumpridoou negociado"; [...]
Excerto 2:
(Pág. 132)
QUE LULA — e nunca o depoente esquece disso, pois era um final
de tarde bonito — não falou nada, ficou constrangido e"branco";
QUE o depoente percebeu que LULA ficou "mal" quando ouviu
aquilo, mas não comentou nada; QUE PALOCCI disse: "O presidente
ficou 'puto da vida' com o que você disse para ele"[...]
Excerto 3:
(Pág. 133)
QUE PALOCCI era Ministro da Fazenda e o "homem forte" do go-
verno; [...]
Excerto 4:
(Pág. 130)
QUE isto mostrava que tinha um "trânsito violento" era "avalizado"
pelo Governo, ou seja, detinha muita influência; QUE para ter tanto
conhecimento, MARCOS VALÉRIO tinha contato com altos líderes
do PT [...]
QUE chegou um momento em que MARCOS VALÉRIO disse: "Se
estas coisas não forem resolvidas, se a situação está ruim, vai ficar
pior ainda; [...]
6
A gravação e a respectiva degravação (registro escrito) das declarações do Termo de Cola-
boração Premiada em estudo foram autorizadas pelo colaborador Delcídio do Amaral Go-
mez, nos termos do §13° do art. 4° da Lei n° 12.850/2013, custodiados pelos representantes
do Ministério Público. (Domínio público)
7
Todos os destaques, como o uso de maiúsculas, aspas simples e/ou duplas são do texto original.
160
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
B) Predicação
Excerto 1:
(Pág. 131)
"O grande erro de vocês foi que nuncatinham comentado isso co-
migo"; QUE o depoente acabouchegando aos fatos naturalmente,
em razão dos trabalhos da CPIDOS CORREIOS; [...]
QUE questionado por qual razão ninguém do PT revelou os detalhes do
esquema operado por MARCOS VALÉRIO ao depoente, respondeu que
eles não confiavam no depoente e que o depoente era um novato no Partido;
QUE o PT contava com a inexperiência do depoente e com a participação
ativa destes parlamentares para que a CPI não desse em nada [...]
Excerto 2:
(Pág. 132)
Que quando o depoente chegou, já tinham percebido o tamanho do
problema e por isso foi recebido imediatamente; QUE o depoente disse
a LULA que tinha ido passar uma mensagem bem sucinta; QUE
então o depoente disse que havia conversado com MARCOS VALÉRIO
e que tinha acabado de sair do gabinete do interlocutor que LULA
havia enviado a Belo Horizonte para falar com MARCOS VALÉRIO;
QUE, embora não tenha dito expressamente, estava se referindo a
PAULO OKAMOTO, o que foi compreendido por LULA; [...]
Excerto 3:
(Pág. 133)
QUE PALOCCI disse ainda para o depoente ficar fora disso, pois
ele (PALOCCI) iria resolver pessoalmente aquilo; QUE PALOCCI
ligou para dar recado e para que o depoente saísse de cena; QUE
este assunto, em seguida, sumiu do "radar" do depoente; [...]
Excerto 4:
(Pág. 129)
QUE MARCOS VALÉRIO disse que estava sofrendo muito, que a
situação familiar era muito complicada, que a mulher teria tentado
se matar e os filhos estavam fora da escola; QUE MARCOS VALÉ-
RIO disse que precisava resolver aquilo e disse que queria apenas
que o PT ressarcisse o que devia a ele; [...]
161
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
162
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
9
Termo originado na Retórica de Aristóteles, sendo uma das três fontes de que procedem
as premissas dos argumentos (ethos, pathos e logos), e que imprimem confiança subjetiva
ao raciocínio. O filósofo defende que “as emoções [paixões, π ά θ η ) são as causas que fazem
alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas
comportam dor e prazer” (ARISTÓTELES, 2005, p. 160).
163
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Palavras finais
As discussões preliminares aqui realizadas evidenciaram que as re-
presentações textuais-discursivas das principais personagens menciona-
das na declaração nº 3 do Termo de Colaboração Premiada — Delcídio,
Lula, Palocci e Marcos Valério — são argumentativamente construídas
no texto, através das referenciações e, sobretudo, das predicações, pois a
narrativa dos fatos auxilia na compreensão dos procedimentos da orga-
nização, da divisão interna de tarefas, a fim de chegar aos líderes e men-
tores de uma suposta associação criminosa.
O enfrentamento do fenômeno criminal econômico-financeiro sofis-
ticado — a Operação Lava Jato — gera amplo interesse na sociedade, em
que o gênero Termo de Colaboração/Delação Premiada aparece com des-
taque nesse quadro atual, merecendo atenção e relevância no campo das
pesquisas científicas da linguagem, em especial, na ATD.
Nesse contexto, sugerimos que nossas reflexões sinalizam de que
forma as categorias de referenciação e predicação salientam o papel das
representações textuais-discursivas no quadro de orientação argumenta-
tiva. Os enunciados (esquematização) do depoente, nos quais o interpre-
tante constrói as RTD das demais figuras envolvidas, organizam-se em
função dos objetivos, representações psicossociais e pressupostos cultu-
rais, conforme assinala Grize (2004).
Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
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http://observatorio3setor.org.br/colunas/fausto-martin-de-sanctis-ver-
dade-e-justica/delacao-premiada/>. Acesso em: 05 jun. 2017.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo:
Atlas, 2008.
GRIZE, Jean-Blaise. Logique et language. Paris: Ophrys, 1990.
GRIZE, Jean-Blaise. Argumentation et logique naturelle. In: ADAM, J-M; GRIZE,
J-B; ALI BOUACHA, M. (orgs). Text et discours; catégories pour
l analyse. Dijon: Éditions Universitaires de Dijon, 2004, p. 23-27.
164
REPRESENTAÇÕES TEXTUAIS-DISCURSIVAS E ARGUMENTAÇÃO
EM TERMO DE ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA
PASSEGGI, Luis, et al. A análise textual dos discursos: para uma teoria da pro-
dução co(n)textual dos sentidos. In: BENTES, A. C.; LEITE, M. Q.
(Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama
das pesquisas no Brasil. São Paulo: Cortez, 2010, p. 262-312.
PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a
nova retórica. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2.
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica
e jornalística. Lisboa: Quid Juris Sociedade Editora, 2010.
165
166
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ:
UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS
E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
Francisco Geonilson Cunha Fonseca — UFRN
Introdução
Discutimos, neste capítulo, a argumentação em uma denúncia feita
pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte ao Excelentís-
simo Senhor Doutor Juiz de Direito da 5ª Vara Criminal da Comarca de
Natal / RN (Brasil). Investigamos a argumentação com foco na dimensão
semântica — representação discursiva — Rd — e na influência dessa di-
mensão para a orientação argumentativa do texto e do discurso.
Para subsidiar teoricamente a análise que empreendemos, evocamos
Adam (2011), Pinto (2010), Rodrigues; Silva Neto; Passeggi (2010), Mar-
quesi (2004), Aristóteles (1969 [384 — 322 a.c.]), Perelman e Olbrechts-
Tyteca (1996), Plantin (2008) e Koch (2010).
Situamos nossa análise nos pressupostos teóricos da Linguística Tex-
tual, mais especificamente, pelo viés da Análise Textual dos Discursos —
ATD1-, cujo modelo de análise de texto adotado considera a Linguística
Textual como “uma teoria da produção co(n)textual de sentido, que deve
fundar-se na análise de textos concretos” (ADAM, 2011, p. 23). É esse pro-
cedimento que adotamos para analisar a denúncia usada como corpus
desta pesquisa.
Para dar sequência ao nosso trabalho, buscamos responder às se-
guintes questões norteadoras: como as representações discursivas — as
imagens — contribuem com a eficácia persuasiva da argumentação? Que
escolhas linguísticas e discursivas o enunciador usou para destacar os ar-
gumentos e persuadir?
De modo metodológico, desenvolvemos a análise da denúncia consi-
derando o texto conforme estabelecido no Art. 41 do Decreto Lei número
3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). Diz o Art. 41
do CPP2 que:
1
A Análise Textual dos Discursos — ATD — foi elaborada pelo linguista francês Jean-
Michel Adam. Segundo Adam (2011), pelo modelo teórico e metodológico da ATD, é possível
distinguir linguisticamente dois níveis ou planos para análise do texto e do discurso.
Para visualizar o desenho / esquema com os dois níveis, ver Adam (2011, p. 61).
2
CPP — Código de Processo Penal.
167
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Por questões didáticas, bem como para facilitar a nossa leitura e com-
preensão, dividimos o presente capítulo, além de introdução e considera-
ções finais, em dois momentos: aporte teórico e análise do texto. No aporte
teórico, apresentamos noções teóricas relevantes sobre argumentação e
representação discursiva. Já na análise do texto, explicamos os procedi-
mentos de análise, situamos e analisamos o texto da denúncia para res-
ponder as duas questões que nortearam este estudo.
168
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
Nesse sentido, quer seja pela razão, paixão, caráter ou, ainda, pela
relação complementar desses três tipos de provas, possíveis de serem im-
putadas pelo discurso, o objetivo da argumentação é persuadir e conven-
cer. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 50),
Com efeito, argumentar pode ser entendido como uma prática social,
textual e discursiva que visa a mudança ou assunção de um (novo)3 ponto
de vista. É uma prática que pode manifestar-se com maior intensidade nos
169
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
170
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
171
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Pelo que mostra a figura (1), a interseção das três dimensões resulta
no ato de discurso (ou proposição-enunciado), cuja orientação argumen-
tativa passa a ser construída pelo resultado das representações discursi-
vas — imagens — formadas no e pelo texto e no e pelo discurso, em sua
enunciação. São inseparáveis, embora, por questões metodológicas, nosso
foco se dará nas dimensões A (OR-arg.) e C (Rd). Certamente que, para
descrever e explicar a argumentação com foco na dimensão semântica,
poderemos ter que retomar, em algum momento, a dimensão B (RE).
Nessa concepção, as escolhas textuais e discursivas do locutor-enuncia-
dor realizam-se a partir de um querer-dizer, de um planejamento estratégico
dotado de intenção, argumentação e persuasão, na medida em que visa ao
convencimento do outro pela categorização e recategorização do referente.
A categorização e recategorização dos referentes
172
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
17. No dia 11 de janeiro de 2014, por volta das 19h00min, nas proximida-
des do
18. “Mercado de Petrópolis, na Avenida Hermes da Fonseca, no interior
do ônibus da Empresa
19. Santa Maria que realiza o trajeto da Linha 33-A, os denunciados W. B. C. e
20. D. D. DE O., em comunhão de vontades e unidades de
21. desígnios, mediante grave ameaça pelo uso de um revólver não apreendido,
subtraíram para
22. si diversos telefones e a quantia de R$ 54,00 (cinquenta e quatro reais),
pertencentes
23. às vítimas que estavam dentro do transporte coletivo em comento.
173
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
24. Consta dos autos de inquérito que na data do fato os denunciados, que já
25. estavam dentro do coletivo, anunciaram o assalto, apontando a arma
de fogo para os
26. passageiros e exigindo que lhes fossem entregues todo o material de
valor que possuíssem
27. naquele momento, obrigando uma das vítimas a recolher a res furtiva.
30. Ocorre que, o crime foi de imediato comunicado às autoridades policiais que
31. de pronto iniciaram as diligências, sendo visualizado e preso o primeiro
denunciado, ainda
32. de posse dos produtos subtraídos, consistente em 04(quatro) aparelhos
celulares, além da
33. quantia de R$ 54,00(cinquenta e quatro reais) em espécie.
40. Isto posto, o Ministério Público vem propor a presente ação penal contra
41. W. B. C. e D. D. DE O., já qualificados,
42. pela prática do delito tipificado no artigo 157, § 2º, incisos I e II,
c/c os artigos 70 e 29, todos
43. do CP, esperando que seja a presente denúncia recebida, citando-se
os acusados para
44. apresentação de defesa preliminar e para os demais atos do processo-
crime, até sentença
45. final condenatória.
46. Requer, ainda, a intimação das testemunhas abaixo arroladas, na forma e sob
47. as condições legais, para que prestem informações sobre os fatos.
L. E. M. C.
Promotor de Justiça
174
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
175
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
176
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
ciação. É o páthos aristotélico que diz que os juízos são proferidos me-
diante se experimenta amizade, ódio, alegria ou aflição (ARISTÓTELES,
1969). Dito de outro modo, é o engajamento que gera paixão e a paixão —
no sentido aristotélico — tem função persuasiva. Quanto mais verossí-
meis forem os fatos descritos, mais se aproximam da verdade ou do que
parece ser a verdade.
As expressões “em comunhão de vontades”, linha 20, “unidade de de-
sígnios”, linhas 20 e 21, trazem a certeza de que o ato antijurídico foi feito
por vontade própria e premeditado. O campo semântico negativo é acen-
tuado com as expressões “grave ameaça” e “uso de um revolver”.
Por fim, embora ainda se possa estressar esta análise, três outras
expressões evidenciam a certeza de culpa dos denunciados a ser compar-
tilhada com o juiz: “Autoria e materialidade comprovadas”, linha 39, “que
seja a presente denúncia recebida”, linha 43, e “até sentença final conde-
natória”, linhas 44 e 45. Não resta dúvida que todos os argumentos levam
à conclusão de culpa e condenação.
Considerações finais
No início deste capítulo, dissemos que nosso objetivo era investigar
a argumentação com foco na sua dimensão semântica e na influência
dessa dimensão para a orientação argumentativa do texto e do discurso.
Partimos também de duas questões norteadoras: como as representações
discursivas — as imagens — contribuem com a eficácia persuasiva da ar-
gumentação? Que escolhas linguísticas e discursivas o enunciador usou
para destacar os argumentos e persuadir?
Pudemos, durante a análise, responder com ênfase de detalhes a im-
portância das representações discursivas — das imagens — para a eficácia
persuasiva da argumentação, bem como, detalhamos as diversas escolhas
linguísticas e discursivas, inclusive verbais e não-verbais, que foram usadas
pelo enunciador como estratégia para destacar os argumentos e persuadir.
Entretanto, ainda nos cabe os seguintes comentários: as imagens
construídas por intermédio das representações discursivas (Rd) orientam
argumentativamente o texto para construção dos sentidos de acordo com
a visada argumentativa-persuasiva do enunciador. Além disso, os proces-
sos descritivos de (re)construção dos ambientes espaço-temporal e de re-
categorização dos referentes, podem influenciar a orientação
argumentativa do texto e o compartilhamento de crenças entre enuncia-
dor e coenunciador.
Resumidamente, mostramos no gráfico a seguir (figura 2) a gradação
semântica que as representações discursivas — as imagens — ganharam
177
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
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valho. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969. (384-322 a.c.).
DECRETO lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal.
Rio de Janeiro, 1941. Disponível em:
178
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ: UMA DENÚNCIA, DOIS ACUSADOS,
MUITOS ARGUMENTOS E VARIADAS REPRESENTAÇÕES
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689Compilado.htm.
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Ingedore Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna Christina
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MACHADO, Nilson José; CUNHA, Marisa Ortegoza da. Lógica e linguagem
cotidiana — verdade, coerência, comunicação e argumentação. 2. ed.
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MARQUESI, Sueli Cristina. A organização do texto descritivo em língua
portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.
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(Orgs.). Linguística de texto e análise da conversação: panorama
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PERELMAN, Chaim; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumenta-
ção: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:
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jornalística. Lisboa: Quid Juris, 2010.
PLANTIN, Christian. A argumentação: história, teorias, perspectivas. Tradução
Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
RODRIGUES, Maria das Graças Soares; PASSEGGI, Luis; SILVA NETO, João
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político de renúncia. In: (Orgs.). ______. Análises textuais e discur-
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SANTOS, Leonor Werneck dos; PINTO, Rosalice; CABRAL, Ana Lúcia Tinoco.
Referenciação em textos jurídicos: da argumentação da língua à argu-
mentação no gênero. In: PINTO, Rosalice; CABRAL, Ana Lúcia Tinoco;
RODRIGUES, Maria das Graças Soares (Orgs.). Linguagem e direito:
perspectivas teóricas e práticas. São Paulo: Contexto, 2016, p. 165-178.
179
180
O PLANO DE TEXTO E
A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA
PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
Introdução
Neste trabalho, apresentamos um recorte da pesquisa de doutorado
que investiga o plano de texto e a orientação argumentativa na “denúncia
de impeachment da presidenta Dilma Rousseff”, gênero discursivo textual
circunscrito aos domínios jurídico e político. Nossa pesquisa está vincu-
lada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL)
da Universidade Federal do Rio Grande o Norte (UFRN) e integra o grupo
de pesquisa da Análise Textual dos Discursos (ATD). Metodologicamente,
trata-se de um estudo que se insere quanto à sua natureza e objetivo no
paradigma qualitativo, com uma investigação explicativa e descritiva.
Para tanto, utilizamos o método indutivo-dedutivo de caráter interpreta-
tivista, com procedimentos técnicos que caracterizam o tipo de pesquisa
documental e bibliográfica.
Tomamos como motivações iniciais e principais investigar como se
dá a visada argumentativa a partir do plano de texto na denúncia; e, que
mecanismos linguísticos são utilizados para a construção da orientação
argumentativa. De certa forma, inauguramos os estudos linguísticos em
textos da recente história social e política do Brasil, uma vez que a inter-
net tem possibilitado o acesso a textos que circulam nas esferas jurídica
e política, sendo bastante contundentes na atualidade. O gênero denúncia
está inserido em ambientes institucionalizados e possui várias potencia-
lidades genéricas. Consideramos um exercício fundamental e inicial de
análise trabalhar com o plano de texto, visto que temos focado nossas pes-
quisas nesse sentido.
Nossa ancoragem teórica situa-se na abordagem da Análise Textual
dos Discursos, doravante ATD, enfoque desenvolvido por Jean-Michel
Adam (2011). O quadro teórico-metodológico aborda os avanços na con-
cepção da relação texto/discurso, propondo uma abordagem em que ambos
são pensados de forma articulada e, ao mesmo tempo, em categorias para
a análise de uma variedade de gêneros nos diferentes domínios discursi-
vos. Quanto aos níveis ou planos de análise textual propostos por Adam
181
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
182
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
184
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
2. O plano de texto
Iniciamos esta seção apresentando o esquema 4, destacando as cate-
gorias utilizadas na pesquisa.
(N3)
INTERDISCURSO
Socioletos
Intertextos
GÉNERO(S)
TEXTO
Textura
(proposições Atos de
enunciadas e Estrtutura discurso
Enunciação
períodos) composicional Semântica (responsabilidade (ilocucionários)
(N4) (sequências e (representação enunciativa) e orientação
planos de textos) discursiva) argumentativa
e coesão
(N5) (N6) (N8)
polifônica
(N7)
NÍVEIS OU PLANOS DA ANÁLISE TEXTUAL
185
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
vez que os planos de texto abarcam blocos de texto formados pelas se-
quências e estabelecem a organização global prescrita por um gênero. Os
planos de texto são, dessa forma, “o principal fato unificador da estrutura
composicional”. (ADAM, 2011, p. 258).
Segundo Adam (2011), existem planos de texto fixos, que correspon-
dem às constantes composicionais de gêneros discursivos como, por exem-
plo, artigos acadêmicos, verbetes de dicionário, receitas culinárias. Mais
recorrentemente, porém, ocorrem os planos de texto ocasionais, desloca-
dos em relação aos gêneros de discurso e, por isso, dependentes em maior
grau de decisões do produtor textual no momento da escrita. Adam (2004,
p. 378) lembra que “o plano é inventado e descoberto durante o evento”.
De acordo com o autor, “a (re)construção de partes ou segmentos que cor-
respondem ou ultrapassam os níveis de período e da sequência é uma ati-
vidade cognitiva fundamental que permite a compreensão de um texto e,
para isso, mobiliza todas as informações linguísticas de superfície dispo-
níveis”(ADAM, 2011, p.263).
3. Corpus e análise
Partimos agora para a apresentação da denúncia analisada com os
primeiros tratamentos metodológicos no que se refere ao plano de texto.
Salientamos que o corpus utilizado para análise neste trabalho é a “de-
núncia”, documento de caráter público, elaborada pelos juristas Miguel
Reale Jr, Janaína Paschoal e Hélio Bicudo, datado de 15 de outubro de
2015, disponível em http://veja.abril.com.br/complemento/pdf/SE-
GUNDO-PEDIDO-DE-IMPEACHMENT.pdf (versão com formatação ori-
ginal) e que ficou conhecido como o pedido de impeachment, constituído
de sessenta e cinco páginas, devidamente numeradas. A seguir, apresen-
tamos o plano de texto com a indicação de divisão de seções como proce-
dimento de análise. Vejamos:
Destinatário
Epígrafe
pág. 01 e 02
Dados dos locutores/enunciadores
Fundamentação legal e apresentação da Denúncia
186
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
(Continuação)
4. Do pedido: pág. 61 a 65
SEÇÃO 4
Local, data e assinaturas pág. 65
187
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
188
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
190
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
49º [...] o único golpe que se praticou foi a reeleição da Presidente; [...].
191
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Considerações finais
A análise inicial do texto da denúncia, que culminou com o impeach-
ment da presidenta Dilma Rousseff, a partir da categoria do plano de
texto, nos conduz a estabelecer uma relação com a orientação argumen-
tativa do texto em seus aspectos composicionais e textuais. A intenção ar-
gumentativa se manifesta desde a disposição das seções até a estrutura
interna destas. Embora estejamos em fase inicial da pesquisa, alguns as-
pectos chamaram nossa atenção quanto aos dados, como a identificação
de uma densidade textual limitada na estruturação dos parágrafos e
pouca articulação entre estes com a utilização mínima de elementos co-
nectivos a serem analisados em etapas posteriores da análise.
A construção do plano de texto do documento estabelece uma orien-
tação argumentativa, constituindo, assim, uma entidade empírica que
possui aspectos peculiares em sua organização e composição, sobretudo
em sua estrutura interna.
A segmentação, os títulos das seções, os temas e/ou subtemas, as mu-
danças e reformulações de tópicos, a articulação dos organizadores tex-
tuais, dentre outros, podem sinalizar o estabelecimento do plano de texto,
permitindo unir, reunir, retomar, estabelecer movimentos internos no
texto que garantem em maior ou menor grau a homogeneidade semân-
tica, como também a orientação argumentativa, objeto de investigação
na continuidade da nossa pesquisa.
Essa configuração do plano de texto reforça o fato de estarmos diante
de um texto instituído por uma prática normatizada, cognitivamente e
socialmente instituída, podendo conter variações, com elementos fixos e
com uma visada argumentativa explícita em seus níveis textuais e trans-
textuais.
192
O PLANO DE TEXTO E A ORIENTAÇÃO ARGUMENTATIVA:
A DENÚNCIA DE IMPEACHMENT DA PRESIDENTA DILMA ROUSSEFF
Referências
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quence et phrase périodique. In. DOURY, Marianne; MOIRAND, Sophie
(Orgs.). L’argumentation aujourd’hui. Paris: Presses Universataires
de la Sorbonne, 2004, p. 77-102.
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. 4.
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BRASIL. Código Civil e Constituição Federal — Tradicional. 65. ed. São
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BRONCKART, Jean-Paul. Os textos e seu estatuto: considerações teóricas,
metodológicas e didáticas. In:______. Atividade de linguagem, textos e
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KOCH, Ingedore G. Villaça. ; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os
sentidos do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In:
DIONÍSIO, A.P; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. (Orgs.). Gêneros
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QUEIROZ, Maria Eliete. Representações discursivas no discurso político.
“Não me fiz sigla e legenda por acaso”: o discurso de renúncia do senador
Antônio Carlos Magalhães (30/05/2001). Tese de Doutorado. Programa
de Pós-graduação em estudos da Linguagem. Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Natal, 2013.
A denúncia de impeachment é um documento que por si só chama a atenção uma
vez que é de autoria de advogados, ou seja, de operadores do direito
para o poder legislativo julgar procedente ou não uma vez que os crimes
apontados dizem respeito a autoridades políticas.
Qualquer cidadão pode oferecer uma denúncia contra presidentes da República
por crimes de responsabilidade (contra a existência da União, a probi-
dade administrativa, entre outros) à Câmara dos Deputados. A denúncia
deve ser assina... — Veja mais em https://noticias.uol.com.br/politica/ul-
timas-noticias/2015/02/12/voce-sabia-que-qualquer-cidadao-pode-pedir-
impeachment-de-presidente-entenda.htm?cmpid=copiaecola
193
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
194
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ
DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO ARGUMENTA-
TIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE
HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
Isabel Romena Calixta Ferreira — UFRN
195
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
1
É necessário destacar que há uma flutuação na maneira como a sigla PdV, referente à ex-
pressão “Ponto de vista” é grafada. Para Adam (2011) é PdV, para Rabatel (1997, 2004,
2005, 2008a, 2009) é PDV e para Nølke; Fløttum; Norén (2004) é pdv.
196
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
Ato de enunciação
197
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Vistos.
198
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
NÓ (Pn2)
A culpabilidade está comprovada e afere-se gravíssima. A censurabilidade da
conduta do acusado é acentuada e altamente reprovável, uma vez que, além de
ser advogado, é policial militar reformado, sendo de todo exigível se comportasse
de maneira diversa. Maior de 18 anos e mentalmente apto, o réu sabia, ou de-
veria saber da ilicitude de sua conduta. Com efeito, demonstrou absoluta in-
sensibilidade para com a vida humana, valorando-a para menos que seu prazer
possessivo, totalmente descabido. A conduta desprezível arquitetada pelo agente
exsurge altamente repugnante e supera os limites do tolerável (+ 1 ano).
Na espécie, a análise dos fatos demonstra que o agente possui uma personali-
dade agressiva, covarde e irresponsável, além de ter demonstrado frieza em
sua empreitada, patenteando intensa violência na prática delitiva. Não bas-
tassem os tiros, a vítima foi jogada ainda viva numa represa, talvez desacordada,
sendo certo que não sabia nadar. Em outras palavras, o resultado morte era
mais do que esperado. Tem personalidade egoística voltada à satisfação de seus
instintos mais básicos, sendo-lhe indiferente as consequências infaustas de
seus atos sobre seus semelhantes.
199
ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Exemplo 01:
“Na espécie, a análise dos fatos demonstra que o agente possui
uma personalidade agressiva, covarde e irresponsável, além de ter
demonstrado frieza em sua empreitada, patenteando intensa vio-
lência na prática delitiva. [...] Tem personalidade egoística voltada
à satisfação de seus instintos mais básicos, sendo-lhe indiferente
as consequências infaustas de seus atos sobre seus semelhantes.”
200
A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
As consequências, como ensina Guilherme Nucci, são “o mal causado pelo crime,
que transcende ao resultado típico” (Código penal comentado. 10. ed. São Paulo:
RT, 2010, p. 407). “In casu”, foram graves, pois a vida de uma jovem de 28 anos
foi ceifada subitamente, provocando danos psicológicos incomensuráveis e irre-
paráveis aos familiares. O sentimento que toma conta da família em uma perda
ultrajante, desumana e diabólica é intangível. A saudade inextinguível os acom-
panhará enquanto viverem. Nesse mesmo contexto, também deve ser levado em
conta a comoção social, o sentimento de revolta e agressão à sociedade ordeira. A
repercussão social ultrapassou as fronteiras deste município, mercê da divulgação
e da crítica jornalística salutar. A insurgência da sociedade, que não se cansa de
implorar pela paz, também foi marcante no episódio dos autos. A violência que
encampa todos os níveis da sociedade brasileira já sensibilizou os nossos legisla-
dores que os levou a elaborar um regramento procedimental mais célere e rígido,
inclusive quanto aos prazos processuais. Realmente, já não era sem tempo, mais
em minha modesta opinião, ainda há espaço para novos avanços (+ 1 ano).
Exemplo 02:
“Muitos crimes são cometidos em nome do amor. Mas que tipo de
amor é esse que se transforma em obsessão; pois o que se quer, no
fundo, é subjugar a pessoa, que se diz amar. O amor é a palavra
usada como desculpa para se cometer atrocidades com a pessoa
amada. Quando é amor o que se sente, não há o mínimo desejo de
se livrar da pessoa amada.”
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Exemplo 03:
“Não confundas o amor com o delírio de posse, que acarreta os
piores sofrimentos como depressão, sintomas psicossomáticos, an-
siedade e baixa autoestima, entre outros. Porque, contrariamente
à opinião comum, o sentimento amor não faz sofrer. O instinto de
propriedade, que é contrário do amor, esse é que faz sofrer. O amor
verdadeiro começa lá onde não se espera mais nada em troca.”
Exemplo 04:
“As consequências, como ensina Guilherme Nucci, são “o mal cau-
sado pelo crime, que transcende ao resultado típico” (Código penal
comentado. 10. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 407).”
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A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
Exemplo 05:
“Realmente, já não era sem tempo, mais em minha modesta opinião,
ainda há espaço para novos avanços.”
DESENLACE (Pn4)
Em face da decisão resultante da vontade soberana dos senhores jurados, julgo
PROCEDENTE a pretensão punitiva estatal, notadamente para CONDENAR
o réu MIZAEL BISPO DE SOUZA, qualificado nos autos, como incurso nas
penas do art. 121, § 2°, I, III e IV, do Código Penal.
Transitada em julgado esta sentença, lance-se o nome do réu no rol dos culpados.
Em seguida, providencie a serventia a expedição de guia ao Juízo das Execuções
Criminais, para cumprimento da pena imposta, arquivando-se os autos, obser-
vadas as cautelas de estilo.
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
(Continuação)
Juiz de Direito
Considerações finais
A emoção é um recurso (racional ou irracional) que o locutor-produtor
faz para tentar transmitir um determinado acontecimento dentro de sua
produção, a fim de persuadir o seu interlocutor de que seus argumentos
são mais convincentes que outros. Vimos que as maiores ocorrências, no
que se refere aos argumentos de cunho emotivo transmitidos através da
RE, estão concentradas nas partes Nó (Pn2) e Re(ação) ou avaliação
(Pn3) da narrativa, (por meio, principalmente, das categorias tais como
os lexemas avaliativos e os advérbios), onde o L1/E1/ (juiz) é convocado a
dar seu ponto de vista sobre as sequências que sucederam o crime, utili-
zando-se de um léxico o qual expressa emoção a quem lê.
Os argumentos de cunho emotivo produzidos pelo juiz ao proferir a
sentença atingem, desde a plateia, que se faz presente na audiência, até
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A RESPONSABILIDADE ENUNCIATIVA À LUZ DA EMOÇÃO NA CONSTRUÇÃO
ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
ao leitor comum ao ter em mãos a sentença final. Por ter sido um crime
com grande repercussão no país, o juiz pode ter se sentido “forçado” a ter
feito escolhas lexicais que o mostram como sendo mais próximo da vítima,
conhecedor da dor dos familiares e da revolta da sociedade.
Já função da narrativa na sentença é primordial para a orientação
argumentativa na construção do texto que veicula a decisão do juiz sobre
o réu. Consiste numa recapitulação dos acontecimentos que envolveram
os crimes a fim de se alcançar uma percepção dos eventos decorrentes,
servindo de fundamentação em proveito da aplicação da condenação.
Os resultados mostraram que os pontos de vista dos L1/E1 e dos e2,
elementos que constituem a responsabilidade enunciativa, fazem-se pre-
sentes nos discursos dos juízes, cuja enunciação se constrói por funda-
mentos com o objetivo de respaldar suas decisões acerca dos crimes
cometidos pelos réus. A análise do corpus revelou que a construção dos
pontos de vista pelo juiz é realizada por mecanismos linguísticos, os quais
revelam que a responsabilidade enunciativa tanto é atribuída pelo L1/E1,
assumindo a responsabilidade enunciativa pelo conteúdo proposicional
ou tomando para si os PDV alheios, como é imputada a outros enuncia-
dores, entre eles, réu, vítima e Tribunal do Júri.
Além disso, podemos verificar a ocorrência do uso de quadros media-
dores através dos quais o juiz não assume a responsabilidade enunciativa
pelo conteúdo proposicional dos enunciados, assim, evocando outras vozes
para embasar sua decisão e imputando-a (RE) a outros enunciadores.
Esses fenômenos de assunção e de não assunção ocorreram nas duas se-
ções que dividem a sentença: “Vistos”, que equivale ao relatório e “Passo
à dosimetria da pena”, que equivale à fundamentação e ao dispositivo.
Com relação às partes que ocorrem esses fenômenos, verificamos que a
assunção da RE é mais utilizada na macroproposição Pn3 “Re (ação) ou
Avaliação” da narrativa pelo fato de L1/E1 utilizar lexemas avaliativos
que denotam uma subjetividade, em que o narrador avalia as ações das
personagens da trama, principalmente as ações do réu, enquanto que a
não assunção da RE (marcada pelo mediativo) ocorre na macroproposição
Pn1 “Situação final”, pois o locutor-narrador faz uso de outras vozes para
atribuir, possivelmente, autoridade ao seu discurso.
Nesse sentido, entendemos a narrativa como sendo uma espécie de
recapitulação dos acontecimentos que envolveram os personagens de uma
trama, sendo, portanto, necessária à sentença por esse motivo e por ex-
plicitar que o locutor/narrador (juiz) tem conhecimento do caso. O que
pode, também, ser considerada como sendo portadora de um certo poder
persuasivo implicado no uso que dela se faz — a narrativa — na sen-
tença, tendo em vista que ela conduz a incriminação do acusado. No que
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ARGUMENTAÇÃO À LUZ DA RACIONALIDADE E DA EMOÇÃO
Referências
ADAM, Jean-Michel. A Linguística textual: introdução à análise textual dos
discursos. Tradução Maria das Graças Soares Rodrigues, João Gomes
da Silva Neto, Luis Passeggi e Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin. 2.
ed. rev. e aum. São Paulo: Cortez, 2011.
ADAM, Jean-Michel; LUGRIN, Gilles. Effacement énonciatif et diffraction co-
textuelle de la prise en charge des énoncés dans les hyperstructures
journalistiques. In. Semen, n. 22, 2006, pp. 1-20.
BRITO, Diná Tereza de; PANICHI, Edina. Crimes contra a dignidade sexual:
a memória jurídica pela ótica da estilística léxica. Londrina: Eduel, 2013.
FERREIRA, Isabel Romena Calixta. Responsabilidade enunciativa em nar-
rativas das sentenças condenatórias de crimes contra a mulher.
Dissertação (Mestrado em Linguística) — Programa de Pós-graduação
em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, 2016. Disponível em:<https://repositorio.ufrn.br/jspui/han-
dle/123456789/22366>
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ARGUMENTATIVA DA SENTENÇA CONDENATÓRIA DE HOMICÍDIO CONTRA A MULHER
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O presente livro resulta da parceria estabelecida entre
pesquisadores/docentes do PPGEL, do IFL-UNL e do
CLUNL/CEDIS-UNL cujo intuito é o de favorecer inter-
relações entre os estudos da linguística textual/discur-
siva (com ênfase na prática jurídica) e os da Teoria da
Argumentação Jurídica, em um diálogo constante entre
juristas, linguistas e teóricos da argumentação.
Importa salientar que, de uma forma geral, os textos
que compõem o presente volume têm como ponto de par-
tida ou como objetivo uma análise empírica e, em parti-
cular, uma análise da práticas argumentativas
ordinárias, ou até, poder-se-ia dizer, cotidianas, dos tri-
bunais. Mais do que os casos excepcionais ou, talvez, os
casos mais mediatizados, é a construção de um conjunto
de práticas argumentativas “normais” que releva sobre-
tudo na relação entre o “sistema jurídico” (no seu com-
plexo) e o cidadão.
Deste ponto de vista, a análise destas práticas repre-
senta uma tarefa fundamental, não só para descrever e
reconstruir a linguagem e o discurso jurídico em contex-
tos reais, mas também para encontrar soluções para
uma alheação crescente entre o cidadão destinatário
dessas práticas – leigo, frequentemente pouco instruído
– e um “poder” que, amiúde, recorre a um linguajar téc-
nico-especializado para, talvez, “excluir” o ‘outro’. Em
um estado de direito, em que o controle democrático
sobre os poderes estaduais é fundamental, uma vez que
é o instrumento por excelência para a garantia dos di-
reitos individuais, cabe às instituições encontrar solu-
ções para favorecer a inclusão destes mesmos cidadãos.
E a linguagem representa, assim, um instrumento pri-
vilegiado para que esta possa existir. Abre-se, assim, um
espaço fundamental para uma função social da análise
teórica: não sendo uma mera descrição de um estado de
coisas, ela representa, também, um instrumento de pro-
gresso e civilização.
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