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Contos de Shakespeare Charles Lamb
Contos de Shakespeare Charles Lamb
Contos de Shakespeare
Tradução
Mario Quintana
Copyright © 1996 Editora Globo S.A.
Copyright das ilustrações © 2013 Weberson Santiago
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de
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dos detentores dos copyrights.
Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de
1995).
ISBN 978-85-250-5588-0
12-10879 CDD-028.5
1ª edição, 1943
8ª edição, 2013
Canção
Ó morte, ó minha morte, vem agora,
Sob o cipreste já me vou deitar;
Precioso alento, deves já cessar,
Que me feriu uma cruel senhora.
A mortalha de teixos entrançada,
Minha mortalha, preparai-a agora,
Pois ninguém, por esse mundo afora,
Mereceu tanto a morte desejada,
Nenhuma flor, nenhuma suave flor,
Acaso esparzam sobre meu caixão.
Nenhum amigo vá chorar de dor,
Onde os meus pobres ossos jazerão.
Para poupar suspiros mil, magoados,
Abri minha cova num lugar
Onde nunca os amantes desgraçados,
Um dia a encontrem, para ali chorar.
Viola notou que as palavras da velha canção, com tão
verdadeira simplicidade, descreviam as penas de um amor não
correspondido. E, por sua fisionomia, bem demonstrou ela o que
aquela canção lhe significava. Orsino observou sua reação e
comentou:
— Aposto minha vida, Cesário, que embora tão jovem, teus
olhos já pousaram num rosto a que ficaram amando. Não é verdade,
rapaz?
— Um pouco — replicou Viola.
— E que espécie de mulher? Que idade ela tem?
— Da vossa idade e com vosso aspecto.
O duque sorriu ao ouvir que o belo moço amava uma mulher
muito mais velha do que ele e ainda parecida com homem. Claro
que, secretamente, Viola referia-se a Orsino e não a uma mulher
parecida com ele.
Em sua segunda visita a Olívia, Viola não teve dificuldade para
ser levada à sua presença. Os criados logo descobrem quando as
amas gostam de conversar com um belo e jovem mensageiro.
Assim que Viola chegou, abriram-se as portas de par em par, e o
pajem do duque foi introduzido com grande respeito nos aposentos
de Olívia. Quando Viola informou que fora mais uma vez advogar a
causa de seu senhor, Olívia respondeu:
— Não quero ouvir falar mais nele. Mas, se vos aventurásseis a
outros galanteios, eu preferia ouvir vossas súplicas a escutar a
música das estrelas.
Claro era o sentido de tais palavras, mas Olívia logo se explicou
mais claramente, confessando abertamente seu amor. Ao ver o
espanto e a contrariedade desenhados nas faces de Viola, ela
disse:
— Oh! Como até o desprezo parece lindo no descontentamento
e cólera dos seus hábitos. Cesário, pelas rosas da primavera, pela
pureza virginal, pela honra e pela verdade, juro que te amo tanto
que, a despeito de teu orgulho, não tenho razão para ocultar minha
paixão.
Em vão a dama se confessou: Viola apressou-se em fugir de sua
presença, ameaçando nunca mais voltar para falar do amor de
Orsino. A única resposta que deu às apaixonadas solicitações de
Olívia foi declarar sua firme resolução de “nunca amar mulher
nenhuma”.
Logo que Viola deixou a casa da dama, porém, fizeram-lhe uma
provocação. Um cavalheiro, pretendente rejeitado de Olívia, que
soubera como a dama favorecia o mensageiro do duque, desafiou-a
para um duelo. Que podia Viola fazer, ela que, embora vestida de
homem, possuía coração de mulher e tinha medo de olhar para a
própria espada?
Ao ver seu temível adversário avançar de espada em punho,
pensou em confessar que era mulher. Mas viu-se ao mesmo tempo
libertada dos seus temores e da vergonha de tal revelação por um
transeunte desconhecido, o qual, como se há muito a conhecesse e
fosse seu mais caro amigo, interferiu na contenda:
— Se este jovem cavalheiro vos fez alguma ofensa, eu me
responsabilizo por sua falta; e, se vós o ofendestes, sou eu que vos
desafio em lugar dele.
Antes que Viola tivesse tempo de agradecer a intervenção, ou
inquirir dos motivos dessa bondosa interferência, seu novo amigo
deparou com o adversário, contra o qual de nada serviu sua
bravura: os oficiais de justiça, chegando naquele exato momento,
prenderam o desconhecido em nome do duque, para responder por
um delito cometido alguns anos antes. E ele disse então a Viola:
— Isto é o resultado de eu vir em tua procura. — E, pedindo-lhe
a bolsa, acrescentou: — Agora a necessidade me obriga a reclamar
minha bolsa. E muito me penaliza que eu não possa fazer por ti
mais do que isso que me está acontecendo. Estás confuso, mas
tranquiliza-te.
Essas palavras confundiram Viola, que protestou não conhecer o
homem, nem dever-lhe dinheiro. Mas, devido à bondade que ele
demonstrara, ofereceu-lhe uma pequena soma, que era quase tudo
o que possuía. Então o desconhecido, cheio de ira, acusou-a de
ingratidão e desumanidade.
— Este jovem que aqui vedes — argumentava ele —, eu o
arranquei às garras da morte. Só por sua causa é que vim à Ilíria e
me vejo nesta situação.
Mas os oficiais pouco se importaram com suas queixas e
levaram-no, dizendo:
— Que temos nós com isso?
Enquanto era levado preso, o desconhecido chamava Viola pelo
nome de Sebastião, censurando-o por renegar um amigo. Ao ouvi-
lo, Viola conjecturou que todo aquele mistério provinha de ter sido
confundida com seu irmão e encheu-se de esperanças de que fosse
o próprio Sebastião o jovem cuja vida aquele homem alegava ter
salvo. Entretanto, ele fora levado muito depressa para que ela
pudesse pedir explicações.
De fato, assim acontecera. O desconhecido, chamado Antônio,
era um capitão. Recolhera Sebastião em seu navio, quando o
jovem, quase morto de fadiga, flutuava à deriva com o mastro a que
se amarrara durante a tempestade. Antônio se tomara de tamanha
amizade por Sebastião que resolvera acompanhá-lo aonde quer que
ele fosse. Quando o jovem manifestou curiosidade de visitar a corte
de Orsino, Antônio, não querendo separar-se dele, viajou à Ilíria,
embora soubesse que, se fosse descoberto, a sua vida corria
perigo, por haver há tempos ferido gravemente um sobrinho do
duque. Por tal motivo é que era levado prisioneiro.
Antônio e Sebastião haviam desembarcado poucas horas antes
de Antônio encontrar-se com Viola. Tinha este emprestado sua
bolsa a Sebastião, dizendo-lhe que dispusesse dela à vontade, caso
desejasse comprar alguma coisa. Ficara à espera na estalagem,
enquanto Sebastião dava uma volta pela cidade. Mas, como
Sebastião não voltara no prazo combinado, Antônio se aventurara a
sair em sua procura. Como Viola estava vestida da mesma forma
que o irmão e sendo idênticas as feições de ambos, Antônio logo
sacara da espada em defesa do jovem a quem salvara. Quando
Sebastião (como ele pensava) dissera desconhecê-lo e lhe negara
sua própria bolsa, não admira que Antônio o acusasse de ingratidão.
Depois que Antônio partiu e temendo um segundo desafio,
Viola correu para casa o mais depressa que pôde. Não passara
muito tempo, quando seu adversário julgou vê-la de volta. Mas era
seu irmão Sebastião, que chegara por acaso àquele mesmo lugar.
— Então torno a te encontrar? — zombou o adversário de
Viola. — Aí tens para ti.
E deu-lhe um murro. Sebastião, que não era nenhum covarde,
devolveu-lhe o murro e puxou da espada.
Uma dama pôs termo a esse duelo. Saindo de casa, Olívia
tomou Sebastião por Cesário e convidou-o a entrar em sua
residência, expressando pesar pela rude agressão que ele sofrera.
Embora surpreso com a amabilidade da dama e a rudeza do
desconhecido atacante, Sebastião entrou de bom grado na casa.
Encantada, Olívia acreditou que Cesário tornava-se mais acessível
às suas atenções. Embora as feições dele permanecessem as
mesmas, nada havia nelas do desprezo e descontentamento que
tanto a haviam magoado quando lhe confessara seu amor.
Sebastião não se mostrou contrário às solicitudes da dama.
Parecia aceitá-las com agrado. Mas não compreendia coisa alguma
daquilo tudo e sentia-se inclinado a achar que Olívia não estivesse
no pleno gozo das suas faculdades mentais. Entretanto, ao perceber
que ela era dona de uma bela vivenda, dava ordens, dirigia
sensatamente sua casa e, a não ser pelo súbito amor por ele,
aparentava o mais perfeito juízo, Sebastião deixou-se cativar por
seus galanteios. Vendo-o em tão excelente disposição e temendo
que ele mudasse de humor, Olívia propôs, visto ter um sacerdote
em casa, que se casassem imediatamente. Sebastião concordou e,
finda a cerimônia, deixou a esposa por um momento, para contar a
seu amigo Antônio a boa sorte que lhe sucedera.
Nesse meio-tempo, veio Orsino visitar Olívia. No momento em
que chegava à casa da dama, os oficiais de justiça trouxeram o
prisioneiro Antônio à sua presença. Em compa- nhia dele, vinha
Viola, como seu pajem. E Antônio, quando a viu, contou ao duque a
maneira como salvara aquele jovem dos perigos do mar. Lembrou o
quanto fora bondoso para Sebastião e terminou suas queixas
dizendo que por três meses, dia e noite, aquele ingrato vivera com
ele.
Eis, então, que a senhora Olívia sai de casa e o duque não
mais prestou ouvidos a Antônio.
— Aí vem a condessa — anunciou ele. — Agora, o Céu
caminha sobre a Terra! Quanto a ti, criatura, tuas palavras não têm
nexo, pois faz três meses que este jovem está a meu serviço.
Assim, ordenou aos guardas que levassem Antônio.
Mas a adorada condessa de Orsino logo deu motivos ao duque
para acusar Cesário de ingratidão, pois tudo que ele ouviu de Olívia
foram palavras de carinho para Cesário. Quando viu que o pajem
obtivera tão alto lugar no coração de Olívia, ele o ameaçou com
todos os terrores da sua justa vingança. Ao se retirar, chamou Viola:
— Vem comigo, rapaz. Meus pensamentos estão maduros para
o mal.
Embora parecesse que, na sua ciumenta cólera, ele fosse dar
morte instantânea a Viola, esta, fortalecida por seu amor, nenhum
temor sentiu. Declarou que sofreria alegremente a morte para trazer
tranquilidade ao seu amo.
Mas Olívia não queria perder o marido e gritou:
— Aonde vai meu Cesário?
— Sigo aquele a quem amei mais do que minha própria vida —
replicou Viola.
Olívia, no entanto, impediu-lhe a partida. Proclamou que
Cesário era seu esposo e mandou chamar o padre, o qual declarou
que mal tinham passado duas horas do momento em que ele casara
Olívia com aquele jovem.
Foi inútil Viola protestar que não se casara com Olívia. O
testemunho da dama e do sacerdote convenceram Orsino de que o
pajem lhe roubara o tesouro que ele prezava acima da própria vida.
Mas, considerando que agora não havia mais remédio, começou a
se despedir de sua infiel senhora e do jovem hipócrita, seu marido
— como ele chamou Viola —, recomendando-lhe que nunca mais
aparecesse à sua vista. De repente, aconteceu um milagre: outro
Cesário chegou e dirigiu-se a Olívia como à sua esposa. O novo
Cesário era Sebastião, o verdadeiro marido de Olívia. E quando
arrefeceu um pouco o espanto de verem duas pessoas com o
mesmo rosto, a mesma voz e a mesma roupa, o irmão e a irmã
começaram a se interrogar um ao outro. Viola mal podia acreditar
que o irmão estivesse vivo, e Sebastião não atinava como a irmã,
que ele supunha afogada, era agora encontrada vestida de homem.
Então, Viola declarou que era, na verdade, sua irmã disfarçada de
pajem.
Quando todos os equívocos ficaram esclarecidos, muito riram
da senhora Olívia pelo divertido engano em que caíra, apaixonando-
se por uma mulher. Olívia não mostrou nenhum desgosto pela troca,
quando viu que casara com o irmão, e não com a irmã.
As esperanças de Orsino estavam agora para sempre mortas
com o casamento de Olívia e, com elas, também pareceu
desvanecer-se seu inútil amor. Todos os seus pensamentos fixaram-
se no fato de o seu favorito, o jovem Cesário, haver-se transformado
numa linda moça. Contemplou Viola com atenção e, lembrando
como sempre achara bonito o jovem Cesário, concluiu que muito
mais bonito pareceria vestido de mulher. Recordou as vezes em que
Viola lhe dissera “que o amava”, coisa que então considerara
apenas como as solícitas expressões de um pajem fiel. Só agora
descobria seu real significado. Assim, todas aquelas lindas frases,
que eram como enigmas para ele, lhe voltaram ao espírito e ele
resolveu fazer de Viola sua esposa:
— Rapaz — disse, pois ainda não se habituara a tratá-la como
mulher —, mil vezes disseste que nunca amarias uma mulher como
amavas a mim. Assim, pelos fiéis serviços que me prestaste, tão
inadequados às tuas delicadas forças, e já que por tanto tempo me
chamaste de senhor, serás agora a senhora de teu senhor e
legítima duquesa de Orsino.
Vendo Orsino oferecer a Viola o coração que ela tanto rejeitara,
Olívia convidou-os a entrar em sua casa e ofereceu-lhes os serviços
do bom padre que a casara pela manhã com Sebastião, para
realizar a mesma cerimônia, no final do dia, com Orsino e Viola.
Assim, os dois irmãos gêmeos casaram no mesmo dia. E a
tempestade e o naufrágio que os separaram serviram também para
elevá-los à mais alta e brilhante situação. Viola agora era esposa de
Orsino, duque da Ilíria; e Sebastião, marido da nobre e opulenta
condessa Olívia.
Timão de Atenas