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03/10/2023, 00:49 Constituinte também foi palco para a extrema direita | Nexo Jornal

ENSAIO (/ENSAIO/)

Constituinte também foi palco para a extrema

direita

José Bento Camassa


01 de outubro de 2023

Multitudinária, assembleia de 1988 produziu texto valioso, mas não foi espaço imune ao radicalismo. Cons

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Depois de enfrentar quatro anos de grotesca ânsia golpista, a Constituição Federal chega, enfim, ao seu 35º aniversário. Jamais o texto cons
alertado por Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, quando de sua promulgação em 5 de outubro de 1988
(https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/N025.pdf?
_gl=1*oaasj0*_ga*MTgwNzU2MzMxMS4xNjU3OTE5MDUz*_ga_CW3ZH25XMK*MTY5NTgyMTg1NC4zNi4xLjE2OTU4MjIzNDEuMC4w
perfeita. (...) Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da pátria”

No 8 de janeiro de 2023, em meio à destruição generalizada, traidores da pátria furtaram e tentaram rasgar uma réplica da Constituição
(https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/13/replica-da-constituicao-roubada-por-golpistas-e-devolvida-ao-stf.ghtml) presente no S
condizente para quem sequestra e tortura a noção de patriotismo. Nada mais análogo ao que o mentor da turba, Jair Bolsonaro, fez não com
Constitucional brasileiro.

Celebrar e proteger a Constituição nunca foi tão urgente. Porém, é igualmente necessário o exercício de compreensão, em perspectiva histór
dilacerado pela extrema direita, de como um projeto político autoritário e anticonstitucional (https://www.edusp.com.br/wp-content/uploa
brasileiro.pdf) chegou ao poder (e nele só não continuou por um triz). Para essa reflexão, não basta o enaltecimento da “Constituição Cidadã
República, incluindo a própria Constituinte de 1987-1988.

Diferentemente do que o magistral discurso de Ulysses sugere, a Constituinte esteve longe de ser só consenso. O próprio epíteto “Constituiçã
uníssona, mas de um embate, em julho de 1988, entre o presidente José Sarney e a Constituinte. Em rede nacional de rádio e TV, Sarney acu
final de redação, de ser fiscalmente irresponsável, tornando o país “ingovernável”. Guimarães respondeu valorizando as contribuições do pr
federalismo e a cidadania, empregando o apelido que veio a se tornar indissociável da Constituição.

A amplitude dos temas debatidos na Constituinte e a miríade de agentes sociais nela envolvidos levou José Rodrigo Rodriguez
(https://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2019.113.11) a constatar que “praticamente todos os conflitos sociais
constitucional” e a argumentar que o texto de 1988 é uma “constituição sem vencedores”. Os trabalhos de Ozias Paese Neves
(https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/49064/R%20-%20T%20-%20OZIAS%20PAESE%20NEVES.pdf?sequence=1&isAllo
(https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/32497/32497.PDF) , Carlos Michiles e Francisco Whitaker (https://books.google.com/books/about/
_dMAAAAMAAJ) demonstraram a pletora de movimentos sociais que lutaram por direitos e se articularam para disputar a redação do texto

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/10/01/Constituinte-também-foi-palco-para-a-extrema-direita 1/3
03/10/2023, 00:49 Constituinte também foi palco para a extrema direita | Nexo Jornal
emendas populares. Maria Helena Versiani (https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/10842) revelou a imensidão de cartas en
palavra de ordem era participação. Ao mesmo tempo, a Constituinte também esteve sujeita às forças do governo Sarney e de sua composição
que deu certidão de nascimento ao chamado centrão (https://www.scielo.br/j/dados/a/qx3MKmGPKfbWpQYLh6vmQMP/?lang=pt&form

A Constituinte
foi um A CONSTITUINTE PRESENCIOU MAZELAS ATUAIS, COMO RETÓRICA ANTI-INDÍGENA E AMEAÇAS GOLPIST
experimento de MILITARES
alta voltagem
democrática.
De fato, houve várias derrotas sob a ótica progressista em 1988: regressividade tributária (https://www.scielo.br/j/nec/a/TdmkwZRGPn7yb
limitação de direitos a trabalhadoras(es) domésticas(os) (https://repositorio.ufba.br/handle/ri/28405) , ausência de previsão contra discrim
(https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/53536/53536.PDF) , relativa timidez dos mecanismos de reforma agrária (https://periodicos.ufjf.br/
manutenção da estrutura militar das polícias ostensivas (https://revista.forumseguranca.org.br/index.php/rbsp/article/view/597) etc. Esse
sido um congresso constituinte (em vez de uma constituinte exclusiva), não invalidam “o potencial emancipador inscrito na Constituição”, o
Barbosa (https://www.scielo.br/j/nec/a/ztDfDPkgk8wzV9jL3QJczzL/?format=pdf&lang=pt) .

Contudo, considerando a profusão de reivindicações, projetos e setores sociais que se fizeram presentes em sua elaboração, surge uma indag
últimos anos: teria a ultradireita (https://www.scielo.br/j/ln/a/rrbYYQYS4N6dfwqc8Jpmh3R/) também participado da Constituinte, mesm
contexto que o rótulo de direita era evitado (https://repositorio.usp.br/item/000771986) por evocar a ditadura?

A resposta é afirmativa. Se bem examinada a massa amorfa do centrão de 1988, pinçam-se elementos com posicionamentos extremados de
postura foi mais altiva do que geralmente se imagina. O mais estridente foi Fidélis Amaral Netto (https://www.camara.leg.br/deputados/74
lacerdista e íntimo das cúpulas da ditadura militar (https://app.uff.br/riuff/handle/1/14500) , tendo produzido reportagens televisivas no t
(https://journals.openedition.org/terrabrasilis/381) , o jornalista teve atuação quase monotemática nos primeiros anos da Nova República:
Brasil. Apelando para as crescentes preocupações em relação à segurança pública na década de 1980, Amaral Netto foi um dos responsáveis
política do país, da qual nunca mais saiu.

As duas propostas de Amaral Netto (implementação da pena de morte para latrocínio, sequestro e estupro seguidos de morte; ou realização
foram vencidas. A Constituição (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm) proibiu a pena de morte, abrindo exc
prevê seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea a): o de crime de traição cometido durante guerra de agressão sofrida pelo Brasil. A despeito do insu
implementação da pena capital tinham considerável capilaridade. Em pesquisa feita pelo instituto Ibope em 1987
(https://www.cesop.unicamp.br/vw/1IkrBMDM_MDA_7eafb_/TF_00014.pdf) , que perguntou à população suas três prioridades na Const
indicada como primeira opção. Na sociedade civil, foram fundadas associações (https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibli
pena de morte. O fascínio pela pena de morte se inseriu na ascensão de uma nova direita no Brasil entre as décadas de 1980 e 1990, conform
Pierucci (https://novosestudos.com.br/produto/edicao-19/#58dac69876c27) .

Amaral Netto foi uma figura relevante nesse cenário. Após a Constituinte, sua eleição por mais duas legislaturas (até sua morte, em 1995) pa
PP) referendou a existência de uma demanda eleitoral para visões associadas à ultradireita. Mais do que isso, o parlamentar se notabilizou p
Presença constante na mídia, desferia ataques rasteiros (https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:1991;00012
humanos, como a Anistia Internacional e a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, fundada por Dom Paulo Evaristo Arns. O sensacionalism
de direitos humanos como “privilégios de bandidos”, slogan já poderoso na época, conforme evidenciou a antropóloga Teresa Caldeira (http
30/#58dbd825f3874) .

Liguemos os pontos. Quem também foi eleito, a partir dos anos 1990, para várias legislaturas na Câmara dos Deputados pelo mesmo PP flum
a pena de morte e um plebiscito para sua adoção (https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=169088) ?
e grosserias na política brasileira das últimas décadas, mesmo sem ter nada da erudição do ex-repórter? Quem tem destilado mais ódio e me
Menos lembrado do que Enéas Carneiro, Amaral Netto é figura incontornável para compreender a trajetória política de Jair Bolsonaro, seu
(https://www.camara.leg.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?
etapa=5&nuSessao=205.3.51.O&nuQuarto=11&nuOrador=3&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=13:20&sgFaseSessao=PE&Data=17/10/200
RJ&txFaseSessao=Pequeno%20Expediente&txTipoSessao=Ordin%C3%A1ria%20-%20CD&dtHoraQuarto=13:20&txEtapa=) .

O populismo penal não foi a única ideia cara à ultradireita contemporânea que circulou na Constituinte. Amaral Netto e outros encampavam
recentemente, de que os direitos dos povos indígenas seriam um empecilho ao suposto interesse nacional na exploração econômica predatór
de morte, as teorias conspiratórias contrárias aos direitos indígenas ecoaram para além da assembleia. Dizia-se que organizações indigenist
Indígena) integrariam uma conspiração (https://www.scielo.br/j/nec/a/d9Kq7jjTt8GqR8DqBSgQbTK/?format=pdf&lang=pt) para “intern
perspectivas de mineração de cassiterita na terra Yanomami. As fake news chegaram a ser divulgadas em denúncias de primeira página por
da Tarde, cujo editorial, orgulhosamente etnocêntrico, chegou a classificar as culturas indígenas como “invenção”
(https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/128512/Agosto%201987%20-%200119.pdf?sequence=3&isAllowed=y) . Uma CPI f
provas apresentadas (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/132100/out_1987%20-%200311.pdf?sequence=3&isAllowed=
que podem ter sido... inventados).

A Constituinte também trouxe a novidade da maior representação e visibilidade de cristãos evangélicos no Parlamento (passando de 17 depu
em 1987-1991 (https://www.snh2021.anpuh.org/resources/anais/8/snh2021/1627336325_ARQUIVO_33db25bc394e1af13a4d5a3c7a789b
televangelismo. Apesar de ser diverso, reunindo progressistas como Benedita da Silva (PT) e Lysâneas Maciel (PDT), o grupo se alinhou maj
(https://www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/13053) em questões econômicas. Vozes evangélicas (assim como católicas) na assembleia prenun
buscando legitimar a homofobia (https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/aids-chegou-ao-brasil-ha-40-anos-e-trouxe-te
alegações religiosas, opondo-se ao direito ao aborto (https://www.scielo.br/j/rs/a/DDM4Wry4B9Mp93hNnCcRKXr/?lang=pt&format=pdf
(https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/106667/1988_16%20a%2020%20de%20Maio_%20082.pdf?sequence=1&isAllow

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/10/01/Constituinte-também-foi-palco-para-a-extrema-direita 2/3
03/10/2023, 00:49 Constituinte também foi palco para a extrema direita | Nexo Jornal
Outro paralelo entre a Constituinte e a atualidade diz respeito às chantagens militares contra a democracia. Como mostra o historiador Mar
da Nova República, militares herdeiros da chamada linha-dura criaram uma atmosfera de risco de um novo golpe (https://www.teses.usp.b
130100/pt-br.php) , inquietação que foi externada por constituintes. Os temores se avolumavam em situações como a reação do ministro do
do relator Bernardo Cabral que retirava a hipótese de Garantia da Lei e da Ordem das atribuições constitucionais das Forças Armadas. Com
(https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/127695/Setembro%2087%20-%200324.pdf?sequence=1&isAllowed=y) contra a C
receios obrigaram um recuo de Cabral.

Décadas depois, em entrevista ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho (https://www.record.com.br/produto/1988-segredos-da-constituinte-2/


“não deixaria passar” um projeto de Constituição que se abstivesse de atribuir às Forças Armadas a garantia da ordem interna. Ora, trata-se
antidemocrática que vimos em abril de 2018, quando outro comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, ameaçou (/expresso/2021/02/11
militar-no-caso-Lula) o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva.

As pautas da pena de morte e de conservadorismo de costumes, as narrativas anti-indígenas e as chantagens castrenses de 35 anos atrás ilus
extrema direita civil e militar não são apenas de hoje. Possuem antecedentes históricos muito mais recentes do que o integralismo dos anos
1964. Por isso, comemoremos, sim, a Constituição, mas olhemos para o fenômeno da Constituinte como um todo: seja no valioso legado dem
por onde o radicalismo de direita também se anunciava.

José Bento Camassa é bolsista do CNPq, mestre e doutorando em História Social pela USP (Universidade de São Paulo), com pesquisa
a Constituinte colombiana de 1991.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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