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Diante dos últimos fatos que vieram ao debate público — a perda da vaga de dois1 candidatos
autodeclarados pardos após avaliação da comissão de heteroidentificação da USP, a decisão
judicial que ordena que a vaga seja destinada a um deles, o posicionamento do Reitor Carlos
Gilberto Carlotti Júnior à imprensa acerca dos dois anteriores e o ataque aberto à política de
cotas como um todo, expresso em elaborações como o texto do professor Fernando Reinach
no jornal O Estado de S. Paulo — não foram incomuns questionamentos do tipo: por que ainda
adotar cotas? Como dizer quem é negro no Brasil e por que existe uma banca de
heteroidentificação?
Maior da América Latina e referência internacional, a Universidade de São Paulo figura como a
última das grandes universidades públicas do Brasil a adotar o sistema de reserva de vagas
destinadas a pretos, pardos e indígenas. Aprovadas em 2017 para aplicação no vestibular de
2018, as cotas étnico-raciais chegam com um atraso de pelo menos quinze anos em relação ao
Rio de Janeiro (2003), primeiro estado brasileiro a implementar a política, e de cinco anos em
relação à Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012). Na retaguarda da dinâmica geral de maior
democratização do acesso, até 2012 apenas 7% do total de estudantes da USP era de pessoas
pretas e pardas2.
Desde este marco, maior conquista dos movimentos negro estudantil na última década, é
notável que está em curso uma progressiva mudança de composição social e étnico-racial do
quadro discente da Universidade de São Paulo. Entre 2010 e 2019, de acordo com dados
publicados pelo Portal G1, o número de estudantes da graduação autodeclarados pretos,
pardos ou indígenas quadruplicou. E no último ano, 2023, de acordo com dados da própria USP,
houve o vestibular mais inclusivo de sua história: 54,1% das vagas foram destinadas a egressos
de escolas públicas. Deste total, 27,2% foram ocupadas por pretos, pardos ou indígenas (PPI).
Por isso, reafirmamos o papel progressivo das cotas. A mais importante política de
democratização do acesso ao ensino superior público do país não tem sido diferente na
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/03/aluno-processa-usp-apos-perder-vaga-em-direito-por-n
ao-ser-considerado-pardo.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/03/juiz-determina-que-usp-conceda-matricula-a-aluno-que-
nao-foi-considerado-pardo.shtml
2
https://exame.com/brasil/usp-tera-de-quintuplicar-numero-de-negros/
Universidade de São Paulo. Isso é o que demonstra não somente os dados acima, mas
também as visíveis transformações provocadas pela presença de mais jovens negros e
periféricos na graduação, pesquisa e na extensão univeristária.
Como um Núcleo de Consciência Negra na USP, mas conectado aos debates nacionais sobre
desafios posteriores à implementação das cotas, sempre nos posicionamos ao lado dos
coletivos negros estudantis como favoráveis à instalação de comissões de heteroidentificação
na USP. Isso porque infelizmente, junto com esta conquista, foram recorrentes também as
reações — típicas de uma elite que não quer abrir mão de privilégios —, de ataque e
descaracterização desta política através de fraudes.
Seja por ignorância ou por ação intencional, é fato que há erros, houve fraude e há ainda
tentativas. Recebemos relatos e acolhemos o choro de diversas pessoas negras que ficaram
de fora porque o candidato à frente na lista, concorrente como PPI, havia fraudado a política:
ou seja, havia se autodeclarado negro (preto ou pardo), mas quando olhávamos para a pessoa,
indubitavelmente se tratava de uma pessoa branca. Recebemos não um ou dois casos, mas
diversos assim.
Como dizer quem é ou não é negro no Brasil? Diante disso: qual papel de uma banca de
heteroidentificação?
Evidentemente, não ignoramos a complexidade do debate racial no Brasil — país marcado por
mais de três séculos de escravização do maior contingente de pessoas negras da história
mundial, organizado estruturalmente para eliminação física e subjetiva de pessoas negras e
indígenas e, ao mesmo tempo, forjado sob o mito atenuador deste conflito, a falsa noção de
"democracia racial". Consideramos que até hoje pouco se encara de frente as profundas
desigualdades sociais produzidas pelo racismo e por estes artifícios, em especial deste mito,
que produz a ideia distorcida de igualdade, mas também a invisibilização da manifestação do
racismo nas mais diversas formas entre grande contingente negro identificado como pardo.
Por isso também partimos do papel que a autodeclaração cumpriu e ainda cumpre em uma
disputa estratégica por avanços, seja em relação à consciência racial a partir da afirmação de
uma identidade, seja na compreensão das desigualdades a partir de uma intersecção entre
raça e classe. Esta é, portanto, uma conquista do movimento negro brasileiro de outras
gerações, das décadas de setenta e oitenta, que defendemos.
Mas é também verdade que a conquista das cotas, abre um novo paradigma para o movimento
negro: o que queremos de uma banca de heteroidentificação? Como dizer quem deve acessar
uma política destinada, majoritariamente, a pessoas pretas e pardas? Estas foram algumas das
perguntas que tentava-se responder, ao mesmo tempo em que se reivindicava medidas
concretas.
Também por isso, acreditamos que os erros devem ser encarados com a dureza que de fato
carregam. Concretamente, hoje, ao menos dois jovens negros de pele clara, aprovados no
vestibular da Universidade de São Paulo, correm risco de perder suas vagas nos cursos de
Direito e Medicina. Há uma inegável contradição que deve ser respondida, sobretudo, em nome
da defesa do processo de democratização como um todo, desde as cotas no vestibular até o
seu mecanismo de defesa, as comissões de heteroidentificação.
Consideramos um engano estratégico a compreensão de que nestes dois casos não tenha
havido falha por parte das comissões. Graças à repercussão dos rostos e nomes destes dois
rapazes, sabemos que trata-se de dois casos em que há coincidência entre autodeclarações
pardas e aparências negras. A reflexão que queremos propor, no entanto, é: mesmo assim, por
que falhamos? Por que o caráter fenotípico, isolado de contexto sociohistórico, especialmente
no caso brasileiro, é para nós ainda uma armadilha da identidade? Se ser hoje a maioria étnica
do Brasil é uma conquista histórica, com qual régua medir a dúvida sobre ser ou não negro?
Este é um desafio a ser encarado pelo movimento negro no próximo período, novamente, como
condição da defesa da política de cotas globalmente.
Por isso, sobretudo, é necessário que diante da complexidade do tema, seja constante o
diálogo da instituição com as experiências concretas de sua própria realidade, materializadas
em casos particulares como estes, que figuram entre os milhares de analisados sem
contestação. Mas é também preciso, que este “aprimoramento” leve em conta os
conhecimentos adquiridos a partir da experiência concreta de movimentos negros de dentro e
fora, dos que acolhem o choro da injustiça da fraude, mas também se debruçam
cotidianamente sobre a reflexão sobre o que é ser negro no Brasil. Estes atores devem
também ser ouvidos no processo de heteroidentificação, assim como ao longo do processo de
formação dos membros da banca.
É urgente que a USP compense o seu atraso e se empenhe, a cada vestibular, em promover
avanços. Que garanta a efetiva entrada de mais pessoas indígenas, seja no atual modelo ou
com a ampliação para o vestibular indígena, implemente cotas para pessoas trans e as
melhores condições para que o difícil, mas importante trabalho da banca de heteroidentificação
para candidatos PPI, se dê de forma ainda mais meticulosa, a fim de evitar reveses. Após
tantos anos de portas fechadas, garantir que o somatório de pardos e pretos nesta história
seja refletido em matrícula, permanência, pesquisa e diploma para a juventude negra não é
benevolência ou concessão, é obrigação!