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Huberto-Rohden Evangelho de Tomé
Huberto-Rohden Evangelho de Tomé
UNIVERSALISMO
Índice
Advertência
Orientando
Pode-se provar a existência de Deus?
Que é Deus?
Por que esse anonimato?
Nos rastros do eterno
Estrelas matutinas
Tão poderoso és tu
Na extrema periferia do ser
O grande paradoxo
Transcendente – imanente
Minha luminosa escuridão
Superpersonal
Tua justiça – e a justiça do universo
Por que dizem ignorar-te
O teu reino não é deste mundo
Quero viver-te, Senhor
O teu arco-íris sobre meu dilúvio
Conscientemente bom
Minha querida ex-deusa natura
Como te revelas, Senhor
Amplitude das tuas revelações
Em busca do teu reino
Meu crudelíssimo amor
Do ego periférico para o eu central
Bandeirante do infinito
Meu grande centro dinâmico
Minha vacuidade – e tua plenitude
Sempre fiel a mim mesmo
Porque eu odiava a humanidade
Creio na grande harmonia
Por que, Senhor?
Minha inefável poesia
À luz das tuas estrelas, Senhor
Amém
Advertência
conclusão decorraesse
disposto a adorar comDeus
umaexcessivamente
precisão cronométrica.
claro... Confesso que não estou
O homem que teve o seu encontro pessoal com o grande Anônimo de mil
nomes não deixa de o procurar incessantemente, em ínvias florestas e vastos
desertos e, quanto mais o possui, tanto mais o procura, clamando
angustiosamente pelo grande amor de sua alma, sempre presente e sempre
ausente, não menos imanente que transcendente, tão deliciosamente
propínquo e tão dolorosamente longínquo. É que a distância que medeia entre
a finitude do homem e a infinitude de Deus é sempre infinita – e dentro do
silencioso deserto desse infinito ecoam, sem cessar, os clamores do humano
viajor...
Se o próprio Cristo teve os seus eclipses, embora momentâneos, nesse mundo
da consciência divina, ao ponto de gemer por entre as sombras noturnas do
Getsêmane “Meu Pai, se possível, passe de mim este cálice!” e de bradar por
entre os ardores do Gólgota “Meu Deus, meu Deus, por que me
desamparaste?” – que admira que um discípulo do Cristo se veja cercado de
trevas e rasgado de angústias?...
Cuidado com aqueles que não sofrem o problema “Deus”!... É possível que
tenham ultrapassado as extremas fronteiras da evolução espiritual e atingido o
zênite da montanha sagrada – mas é possível também que ainda se achem no
nadir da profanidade e nem tenham dado ainda o primeiro passo nessa árdua
jornada ascensional...
Lê, pois, ignoto companheiro de viagem, os capítulos deste livro que te derem
luz e força, por serem os ecos explícitos da implícita interrogação da tua
própria alma – e omite os que não te falarem a linguagem das tuas
experiências pessoais.
Dia virá, para as almas sinceras, em que o grande Anônimo terá um nome.
Em que a esfinge sairá do seu grande mistério.
Em que as dolorosas perguntas de teu coração terão resposta cabal.
Em que os teus brados encontrarão eco.
Por ora, é verdade, “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano o que Deus preparou àqueles que o amam” –
mas o amor sabe que, um dia, verá face a face, com meridiana clareza, o que
ontem ignorava como que envolto em trevas noturnas, e o que hoje apenas crê
por entre a semi luz crepuscular de espelhos e enigmas...
E esta certeza que o amor garante enche de indefectível coragem e exaltante
alegria os bandeirantes de Deus...
Pode-se provar a existência de Deus?
Não existe no universo Ser algum que tantos nomes tenha como tu, meu
grande Anônimo, meu Ser inominável...
E é natural que assim aconteça, porque nenhum desses nomes diz o que tu és
na realidade. Todas essas denominações são simples tentativas do impossível,
vãos tentames de frágeis pigmeus de escalar a torre altíssima da tua
intangibilidade.
Todos os nomes que os homens te dão dizem de ti algo que tu és realmente,
mas nenhum diz o que és plenamente. Nenhum nome exaure a plenitude do
teu Ser, nenhum atinge a essência íntima da tua natureza. São como
microscópicas gotinhas de orvalho que refletem uma fração infinitesimal do sol,
mas nenhuma dessas gotas abrange o grande astro em sua estupenda
realidade cósmica.
Dizem os homens que tu és Deus, Divus, Zeus, isto é, um ser luminoso,
brilhante – e têm razão, porque não há nada mais fulgurante do que tu.
Dizem que és God, Gott, Gut, isto é, um ser bom, bondoso, benévolo – e
também eles têm razão, porque tu és a essência de toda a bondade.
Dizem que és o grande El, Alá, Ilu, quer dizer, o Senhor, o Chefe – e proferem
uma grande verdade, porque tu és o Rei dos reis, Senhor dos senhores.
Dizem os homens que tu és o grande Ptá, o “pai”; que és o Chang-ti o “senhor
do céu”; que és o Brahman, o “ser ilimitado” – e todos eles proclamam grandes
verdades.
Chegaram os homens ao ponto de chamar-te Yahveh, Tao, isto é, o “Ser” – e
quem teria mais direito ao nome de “Ser” do que tu, que és o único Ser que
realmente “É”, ao lado de outros seres que apenas “existem”? Com esta
designação atingiram os homens o mais alto cume da realidade, o mais
profundo abismo da verdade. Nós, em face de ti, quase que inexistimos,
pseudo-existimos – tu é que ÉS plenamente. Nós somos uma feliz exceção do
nada – tu és a infinita afirmação do TUDO.
Entretanto, nem mesmo essa feliz denominação de Yahveh, Tao, exaure a tua
grande realidade, nem designa adequadamente a tua natureza, meu eterno
Anônimo. Ficará sempre, entre o nome e o nominado, uma distância infinita,
um vácuo sem limites, uma noite sem alvorada...
E, uma vez que és para nós o Anônimo por excelência, tanto mais o homem se
aproxima de ti quanto mais anônimo se torna para si mesmo e para o mundo.
O homem, “nominado” pela individualização, tem de se “desnominar” pela
divinização, pela integração no mar imenso do teu divino cosmos. Essa
aparente extinção do Eu personal é, de fato, a mais intensa realização do
nosso indivíduo, porque é o regresso para a sua primeira fonte e srcem.
Ninguém é tão “homem” como quem se des-homifica para se divinizar, porque
só assim é que se super-homifica, ou melhor, só assim de pseudo ou semi-
homem se torna pleni-homem genuíno.
Por isto, Senhor, nos momentos mais divinos da minha vida, eu me sinto como
um não-ego, como um ser desegoficado, cosmificado, deificado...
E quando a minha prece atinge o mais alto zênite da intensidade, expira em
completo silêncio, num mutismo anônimo, numa quietude universal...
Como é bom falar contigo – sem dizer nada!...
Adorar-te – em completo anonimato!...
Amar-te – no vastíssimo deserto do silêncio...
Como é bom ser um pequeno anônimo diante de ti – o grande Anônimo!...
Ser uma gotinha finita – no teu oceano infinito!...
Ser um nada – totalizado pelo teu Tudo!...
Meu grande Anônimo – de mil nomes!...
Nos rastros do eterno
“Deus é eterno” – disse-me alguém. Desde então ecoam estas palavras pela
vasta solidão de minh’alma, como um trovão que sempre renasce do seu
próprio eco.
E, neste quase século de minha existência terrestre, não diminuiu ainda, por
um átomo sequer, o veemente e interminável estampido deste pensamento,
“Deus é eterno”.
E quanto mais escuto este bramido metafísico da tua eternidade, ó Ser Infinito,
tanto mais ele se avoluma e intensifica, abafando completamente as vozes da
Natureza em derredor...
Pouco me empolga a idéia de um ser eterno “para o futuro” – o que me enche
de estupefação e assombro é o conceito dum ser eterno “para o passado”.
Compreendo mais ou menos que um ser que hoje existe possa existir amanhã
e depois, porque tudo o que tem existência real e consciente pede existência
sem fim, todo ser que uma vez chegou à consciência do Eu traz dentro do seio
o germe da imortalidade. Não voltará jamais à noite do não-existir o que foi
iluminado pelo dia do ser eterno. É, pois, perfeitamente crível que exista para
sempre o que hoje possui realidade.
Entretanto, o que leva ao ápice a minha estupefação é que possa haver um ser
tão intensamente real que nunca tenha sido irreal, por mais que recuemos o
termo do seu início; que exista um ser tão pleno e potente que nada tenha de
não-ser, nem no passado nem no futuro; que seja um “sim” absoluto e integral
e desconheça a mais ligeira sombra do “não”... Isto é que é espantoso!
Um ser sem princípio é um ser sem causa, um pleni-ser, um proto-ser, um
auto-ser.
Posso imaginar um existir eterno que desde toda a eternidade deva sua
existência a outro ser; um ser creado ab aeterno, um ser eternamente alo-
existente – mas um ser auto-existente, absolutamente autônomo e
independente de qualquer fator alheio – este pensamento paralisa todas as
minhas faculdades intelectivas e imaginativas, esta idéia me leva à extrema
periferia da possibilidade...
Vejo, meu Deus, que a tua eternidade não é senão um corolário da tua auto-
existência.
Dentre todos os seres alo-existentes és tu o único ser auto-existente.
Nós semi-existimos, e tão precária é esta nossa semi-existência que não faltou
quem a apelidasse de pseudo-existência – tu, porém, pleni-existes, porque és.
O teu passado e o teu futuro são presentes. Tu não eras nem serás, tu és
simplesmente, ontem, hoje, amanhã, desde sempre e para sempre.
Tu, propriamente, nem existes – tu simplesmente ÉS.
Tu não foste produzido nem te produziste, pois seria absurdo admitir que o
nada pudesse agir antes de existir – a tua eterna essência a tal ponto coincide
com a tua existência que as duas se identificam plena e cabalmente em uma
única, indivisa e indivisível, auto-realidade.
O meu ser poderia não existir. A minha existência, hoje real, era ontem irreal e
meramente possível. Passei da zona noturna da simples potencialidade para a
zona diurna da positiva atualidade.
Entre
eterno,o emeu
para“possível”
milhares edeo seres
meu “real”
é, demedeia um abismo,
fato, eterno que bem
esse abismo pudera ser
do não-existir,
em cuja profundezas inexistem seres eternamente possíveis e potenciais, mas
não atuais.
O meu “possível” foi transformado em “real” – por quem? Naturalmente por
alguém que era real, quando eu ainda era irreal.
Só um ser real pode realizar o irreal. E esse ser real deve possuir em si e por si
mesmo toda a plenitude da realidade – deve ser pleni-real, auto-real.
Eu sou algo de irreal realizado – tu, porém, meu Deus, és o único ser real que
***
Meu Deus eterno e auto-real!
Quanto mais penso em ti mais me esqueço de mim. Quanto mais me aproximo
da imensa plenitude de teu ser necessário e autônomo, tanto mais me divorcio
de mim, desta frágil e mesquinha vacuidade que tem o meu nome... E, por fim,
não vejo mais nada de mim... Perco de vista, nas brumas do horizonte, o
microscópico pontinho do Eu – e diante de mim se ergue a gigantesca e única
realidade – Deus.
Emigrei de mim e imigrei para dentro de ti, ó ser Infinito...
***
Oh! estupenda descoberta que fiz depois da grande convalescença de mim
mesmo! Descobri que, quanto mais me distancio de mim mesmo e vou em
demanda de Deus, tanto mais me encontro a mim mesmo... Descobri que o
meu pleni-Eu está situado na zona via-Deus...
Os extremos tocam-se...
Evadi-me do nadir da minha pequenina realidade e subi ao zênite da tua
grande Realidade, meu Deus eterno e infinito – e que vejo?
Vejo que a mais profunda raiz do meu Eu humano está no teu Tu divino...
Encontrei-me em ti, meu Deus...
Quanto mais longe eu me julgava de mim mesmo, tanto mais perto estava de
mim – em ti...
Lancei a minha nau para o extremo ocidente, fugindo de mim – e eis que me
descubro nos litorais do oriente, do teu oriente, meu grande Mistério Solar...
Coincidiu o ocaso do meu eu com a alvorada do teu Tu – e à luz virgem dessa
inesperada aurora descortino as praias matutinas do meu verdadeiro ser...
Procurando-me – perdi-me...
Fugindo de mim – encontrei-me...
Como é tão paradoxal a tua matemática, meu Deus...
Como é tão absurda a tua sabedoria, meu indefinível Anônimo!...
A ânsia de me possuir me fez doente – o desejo de me perder em ti me fez
convalescer...
A desposse do eu e a posse de Deus deram plena saúde ao pobre lázaro de
minh’alma chagada e agonizante...
Compreendo agora o que quis dizer o teu Messias com as palavras
paradoxalmente sublimes:
“É necessário perder – para possuir...
É necessário morrer – para viver...”
Deus eterno, infinito, auto-real!
Não permitas que eu torne a afastar-me de ti – para que possa ficar comigo,
em ti...
“Deus creou tudo do nada” – estas palavras soaram muito tempo aos meus
ouvidos como insuportável dissonância e como um desafio à lógica. Doíam-me
na alma porque não harmonizavam com o resto que eu sabia de ti, meu Deus,
ou julgava saber.
Duas incongruências haviam, para mim nesta frase protocolar: 1) se tu és o
Tudo, como é que ainda havia um nada? 2) produzir “algo” do “nada” não era
um absurdo? uma negação do princípio da causalidade?...
Tu és o Tudo e, por isto mesmo, não existe nem jamais existiu um nada fora de
ti. Nem existe um vácuo, nem espaço algum, pequeno ou grande, onde não
haja realidade, porque tu, ó Deus onipresente, és a imensa e infinita Realidade,
que com sua universal e inexorável presença atinge, penetra e enche todos os
espaços e todos os tempos.
Ora, uma vez que existe a tua onipresente Realidade, já não há margem para o
nada, para o vácuo, para o irreal.
Se, pois, creaste algo, creaste-o da tua infinita Realidade – e não da infinita
vacuidade, que só poderia existir se, em alguma parte, tu não existisses.
Quando digo que creaste do nada todas as coisas, quero dizer que deste
existência real às essências meramente possíveis; transferiste a simples
possibilidade ideal dos seres ao plano da realidade atual. Encheste com o
conteúdo dum fator positivo a nulidade do zero.
Manifestaste em “existires” múltiplos o teu único “Ser”.
O teu divino “crear” não dá apenas forma, como o “criar humano”, senão
também a matéria-prima – e isto é estupendo e assombroso...
Eu, quando produzo algo, não produzo a matéria do meu artefato, mas dou tal
ou tal forma a um punhado de matéria preexistente, matéria que continua a
existir depois que o meu artefato perdeu a forma específica que eu lhe dera.1
1. Precisando melhor este pensamento, avisamos ao leitor que, na creação divina, o “algo” da
existência sai do “Tudo” da essência; o “fenômeno” sai do “Número”, e o “efeito” sai da “Causa”
– ao passo que, nas criações humanas, não há transcrição da “essência” para a “existência”,
mas apenas uma transformação de uma determinada “forma existencial” para outra “forma
existencial”, de um “indivíduo” em outro “indivíduo”.
Não está em meu poder crear um só átomo, como, por outro lado, também não
sou capaz de aniquilar a mais insignificante parcela de matéria. A srcem e o
fim de todas as coisas escapam à alçada do meu poder, subtraem-se
inteiramente à minha potência e jurisdição. Não lhes dou existência nem
inexistência. Todo o meu poder é um simples criar, uma transformação, uma
incessante modificação da mesma argila plasmável, processo que não atinge
nem o berço nem o túmulo das coisas. Nada posso crear.
Tu, porém, meu Deus, dás srcem ao nada e podes dar fim ao algo. Podes dar
existência ao inexistente e aniquilar o existente. Podes tirar do nada e podes
reduzir ao nada o que quiseres. A transferência do “0” para o “1” existencial
exige um poder infinito, o mesmo poder infinito que requer a redução do “1” ao
“0”. Do nada ao algo vai distância infinita. Por isto, só tu é que podes crear e
aniquilar.
Creaste todas as coisas do nada da existência, tirando-as do Tudo da essência
– e podes reduzi-las ao estado de seu nada existencial.
Tu,
mesmoporém,
o Tudocausa
podeeficiente
fazer dodesse
nada algo, não Se
um algo. és oum nada,
nada tu és o oTudo.
produzisse algo, Só
se
do “0” de ontem nascesse o “1” de hoje sem o concurso do “∞” (infinito),
teríamos um efeito sem causa – uma flagrante contradição. Nunca pode um
fator positivo estar contido num fato negativo, nem jamais pode o causado ser
maior que o causador. O zero do nada é eternamente estéril. Nunca gerará o
algo, por mais que se adicione e multiplique, aumente e intensifique – será
sempre o vácuo absoluto, a impotência integral do zero.
Tu, porém, meu Deus és um fator positivo, infinitamente positivo, o zênite de
toda a positividade. E por isto mesmo podes, do mais profundo nadir da
negatividade, do vácuo existencial, tirar valores positivos, não porque esses
valores estivessem contidos, em forma latente, no zero, mas sim porque a
ofensiva do teu infinito poder é superior a toda defensiva das nulidades finitas e
derrota todas as potências adversas, transpondo os abismos do nada e
fazendo do inexistente o existente.
Desde que és Deus, és Deus-Creador, isto é, ab aeterno, desde sempre.
Nunca foste um Deus inerte, inativo, não-operante. Foste sempre um actus
purus, uma puríssima e veementíssima atividade, não só ad intra, senão
também ad extra. Eterno é o teu ato creador, ainda que temporários sejam, na
sua longa sucessão, muitos dos efeitos dessa tua eterna causalidade creadora.
***
Tu és o Deus da variedade, e não da monotonia. Amas a perfeição da unidade
no poema duma imensa multiplicidade. Por isto não creaste no teu universo
dois seres iguais, porém milhões e miríades de entes, cada um diferente do
outro.
Cada um dos seres que creaste é obra srcinal, inédita, um mundo por si, que
nunca existiu nem jamais existirá igual. Não te repetes em nenhuma das tuas
obras, meu supremo Artífice. Não és amigo de seres em série, como os
diretores das nossas fábricas. Perdoa-se à humana impotência a produção de
mercadorias em série, mas não se perdoaria à tua divina onipotência. Se
fosses obrigado a repetir uma só das tuas obras, deixarias de ser Deus, porque
revelarias falta de sabedoria, não podendo conceber novo modelo inédito, ou
darias sinal de fraqueza creadora, não podendo realizar, no plano concreto, o
teu novo ideal inédito.
Tu, porém, és infinitamente sábio e de poder ilimitado. Tu és o supremo Artífice
que, desde toda a eternidade, produz seres sempre novos, e para todo o
sempre produzirá creaturas srcinais e inéditas.
Os teus mundos são duma infinita variedade. São como uma epopéia de
círculos concêntricos
mais chegados que circundam
ao centro o trono
da tua divina do teu eterno
espiritualidade e único
tanto mais Ser. Quantoe
espirituais
divinos são esses seres; quanto mais distantes e periféricos, tanto menos
divinos e espirituais são eles.
Quase nada sabemos da tua atividade creadora. Dizem os teus videntes e o
teu Messias que as primícias da tua potência creadora eram puros espíritos.
Seres de tão intensa espiritualidade que só não são divindades porque não
participam da tua independência e infinita autonomia. São seres dependentes
de ti, subordinados ao teu supremo e único poder.
Tão grande é a perfeição dessas estrelas matutinas do teu universo espiritual,
tão vasta a sua liberdade, tão luminosa a sua inteligência, que muitas delas
creram mais na sua autonomia que na sua heteronomia. A tais alturas chegou
o grau de individualização desses seres pleniconscientes de si mesmos, que a
consciência cósmica que os vinculava ao grande centro divino empalideceu ao
fulgor da consciência individual. E quando a cosmo-consciência sucumbiu à
ofensiva da ego-consciência – veio a grande catástrofe...
Caíram, quais gigantescos meteoros, milhares de estrelas matutinas da
creação...
De raios solares que eram, pretenderam ser sóis...
Não admira
órbitas que que
lhessóis e planetas tracem
prescreveste, uma vezcomque
absoluta fidelidade
não podem e precisão ao
desobedecer as
império da tua vontade; são máquinas e autômatos do teu irrestrito poder. O
que admira, o que me enche de pasmo e assombro é que tu possas fazer com
que seres racionais e livres cumpram os teus planos, quando eles têm plena
potência e liberdade para não os cumprir... Que tu possas fazer com que estes
seres te sirvam sem lhes ofender a liberdade... Que nenhum ser possa frustrar
um átomo sequer dos teus planos eternos, embora não o impeças de se
frustrar a si mesmo – isto, meu Deus, é a mais estupenda revelação do teu
poder e da tua sabedoria...
A hostilidade luciferina existe, certamente, entre anjos e homens, mas existe
dentro do vasto plano evolutivo que preside a todos os eventos do teu universo,
ó supremo Artífice. O que nós, vaga-lumes humanos, enxergamos do teu plano
é apenas um recorte infinitesimal, é uma pincelada escura no gigantesco
quadro multicor do teu mundo, é um som isolado no meio da imensa sinfonia
do teu cosmos. Percebemos apenas o movimento centrífugo de poderosos
astros e pequeninos satélites do teu universo total, e não percebemos a força
centrípeta que os prende à tua Divindade. O resultado dessas duas forças,
aparentemente antagônicas, é a grandiosa harmonia da tua obra, harmonia
que só podia resultar da síntese de antíteses, do equilíbrio do “sim” e do “não”,
do consórcio da atração e da repulsão.
***
Mais ainda. Infundiste à matéria algo que não é matéria nem material. Que é
esse algo? espírito? alma? inteligência? razão?... Não sei...
Não sei como definir esse indefinível quê, esse misterioso algo que faz a
matéria evolver, que a faz progredir, que procura subir de perfeição em
perfeição, ela, que não possui propriamente espírito, nem alma, nem
inteligência, nem razão...
Não, não é a matéria que faz isto – és tu, meu Deus, dentro da matéria, tu, que
és onipresente, oni-imanente – e onde estás presente também és agente, és
ativo, dinâmico, realizador.
Não quiseste um mundo em estado definitivo e estático – quiseste um mundo
em estado evolutivo e dinâmico, meu grande Artista e adorável Esteta!
Se não fosse tão adulterada a palavra “poeta”, chamar-te-ia o “Poeta
Supremo”, tu, que creaste esse poema imenso do cosmos em perene
evolução... Poder, sabedoria, bondade, amor, poesia, beleza, felicidade – este
o teu verdadeiro ser – e é também este o clima que reina por toda a parte onde
te manifestas. Bem disseram os pensadores de Hélade que o teu mundo era
um “cosmos”, isto é, um “ornato”, porque tudo quanto fazes é ornado de arte e
harmonia, de poesia e estética...
É bem estranho que os homens te tenham ideado um dia como o “descanso
eterno”, como algo inerte, imóvel, ou amigo de coisas inertes e imóveis –
quando tu és a mais categórica negação da inércia e da estática, e a suprema
afirmação da atividade e da dinâmica. Tu, que és actus purus, puríssima
atividade, não podias evidentemente crear um mundo que não fosse o reflexo
da tua dinâmica atividade, um mundo em incessante progresso, em contínua
metamorfose, em perene evolução ascensional.
Se creasses um mundo em estado definitivo, admiraria eu a tua divina potência
– mas agora, que creaste um mundo em estado evolutivo, admiro a tua
potência e sabedoria, adoro o teu supremo poder através da tua imensa
poesia, através do teu senso artístico, através da tua estupenda genialidade...
O grande paradoxo
Tu, meu Deus, que és espírito, creaste um mundo espiritual – e eu adoro a tua
potência.
Tu, que não és matéria, creaste um mundo material – e eu admiro a tua
audácia.
Que outros mundos podiam ainda brotar das tuas mãos creadoras? Seria
possível que maiores maravilhas e mais arrojadas epopéias partissem de ti, ó
eterna Divindade? Obras que ultrapassem a luminosa plenitude das
inteligências angélicas e a tenebrosa vacuidade da inércia material?...
Entretanto, onde parecia terminar o teu poder creador, ali precisamente
começou o mais estranho poema da tua potência e sabedoria. Resolveste dar
existência a um mundo espiritual-material.
Fundiste numa incompreensível unidade a luz e as trevas...
Amalgamaste o fogo e a água...
Harmonizaste o “sim” e o “não”...
Casaste o zênite com o nadir...
Fizeste do espírito
céu e a terra. e da
Pousam os matéria uma
pés desse serunidade
sobre asintegral, que
baixadas colocaste
telúricas, entre oo
e aponta
seu vértice as alturas cósmicas – traço de união que não consegue unir tão
grandes antíteses, ponte que não vale ligar os litorais do aquém com as praias
do além – o homem.
Que admira que esse ser paradoxal viva em perpétua inquietude?... que oscile
sempre entre as alturas e as profundezas... que seja semi-anjo e semi-
animal?... um satânico serafim e um seráfico satã?...
Quando foi que o fogo fez as pazes com a água?...
Ecce homo...
O homem-chaga...
O homem-tormento...
O homem-agonia...
O homem-homem...
Crucificado, como todos os homens humanos...
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É este, Senhor, o maior dos paradoxos que já saiu das tuas mãos creadoras.
É esta a mais dinâmica tensão que existe no teu universo.
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É esta a mais insatisfeita nostalgia que clama e soluça nos vastos desertos do
teu cosmos...
O homem – esse paradoxo...
Dilacerado pelas harpias de Sodoma e pelos demônios de Babel...
Coroado de espinhos...
Ardendo em febre...
Consumido de sede...
Sempre vivo e sempre moribundo...
O teu Ecce homo, meu Deus, o teu estranho paradoxo...
Transcendente – imanente
Disseram-me que tu, Ser Transcendente, habitavas para além das nuvens do
firmamento – do firmamento sideral e do firmamento pessoal.
Disseram-me que o teu céu é nas alturas – e o teu inferno nas profundezas.
Disseram-me que o supremo destino do homem consiste na eterna visão da
tua face, após a morte corporal.
Disseram-me que havias fundado aqui na terra um reino no qual entrava o
homem por meio de certos ritos e fórmulas sacras.
Bem
adoramo dissera teu Messias:
o Pai devem adorá-lo“Oem
reino de Deus
espírito e emestá dentro de
verdade...” Masvós... Os que
eu ignorava
estas palavras brevíssimas e imensas, e quando cheguei a conhecê-las,
interpretei-as à luz das minhas idéias errôneas, e não as compreendi.
Estudar-te, crer em ti, é certamente um passo preliminar para encontrar-te –
mas não é ainda o encontro real contigo. Só se encontra realmente o que se
vive e sofre – e é esta a única ciência que não se pode ensinar nem aprender
em livros e com mestres. A mais profunda, sublime e trágica experiência da
vida deve o homem fazê-la a sós. Nem pai, nem mãe, nem filho, nem filha, nem
esposo, nem esposa, nem amigo, nem mestre – ninguém me pode
acompanhar a essa imensa solidão, a esse cume altíssimo, a essa tenebrosa
profundeza do encontro pessoal contigo, meu grande Anônimo...
Quem não te vive e sofre não te conhece, não tem idéia do que Jesus quis
dizer com as palavras “reino de Deus”.
A ciência te estuda – a consciência te revela...
Viver-te no mistério da consciência é sofrer-te na vida presente. Quem te vive
sofre-te. Sofre por ti a sua própria insuficiência e fere a sua grande
espiritualidade nas barreiras do finito...
Para encontrar-te dentro de mim foi necessário descobrir primeiro o meu
verdadeiro Eu dentro do meu pseudo-eu. Tive de romper por essa gigantesca
selva tropical do meu ruidoso ego periférico que circunda o silencioso Eu
central. Quase sucumbi nessa luta titânica, porque o ego periférico, que o
mundo chama minha “personalidade”, é uma camada duríssima, um rijo
baluarte de erros e de hábitos, que me vedava o acesso ao centro divino de
mim mesmo. Mas, uma vez transpostas todas as zonas periféricas do meu
pseudo-eu, descobri o meu centro, o meu verdadeiro eu – e lá estavas tu, meu
grande Anônimo...
“Eu te procurava lá fora – e eis que tu estavas dentro de mim!” (Santo
Agostinho).
Tu, que és infinitamente transcendente, és também infinitamente imanente. E
eu só cheguei a conhecer a tua transcendência depois de viver a tua
imanência.
Agora sinto-me calmo e seguro diante de tudo e de todos, diante de ti – e até
diante de mim mesmo. O sol da tua presença, quando apenas transcendente e
não imanente, torna tão espessas as sombras do ego que quase não consigo
subsistir diante de mim mesmo, em face de ti. Tenho a impressão de que algo
infinitamente positivo provoca em mim algo infinitamente negativo... Em face do
teu gigantesco “sim” divino reduz-se o meu “não” humano a tão extrema
pequenez que o solo parece abrir-se sob os meus pés e afundar-me no abismo
do vácuo e do nada.
E somente nesta vasta planície desegoficada e neutralizada do meu pseudo-eu
periférico é que o meu verdadeiro Eu central pode nascer e proclamar a vitória
do teu reino divino dentro do homem.
***
Depois de feita a inefável descoberta de que o teu reino está dentro de mim,
sucederam-se outras descobertas, cada qual mais feliz. Desde esse dia
encontrei o teu reino em toda a parte, mesmo lá onde ninguém lhe suspeitaria
a existência.
Encontrei o teu reino em homens poluídos e almas profanas, em publicanos e
pecadores – se lá não estivesse ao menos um germe divino, como poderiam
nascer tão viçosas plantas de espiritualidade?
Encontrei o teu reino até no mundo irracional, em pedras e metais, na flora e na
fauna, no zumbir do inseto e no rugir das feras...
Outrora, não podia eu compreender como é que uma planta ou um vil
animalejo, seres sem intelecto, pudessem agir tão inteligentemente como
agem, escolher com infalível acerto os meios mais adequados para a
consecução de certos fins por eles mesmos ignorados. Arquitetei teorias,
elaborei hipóteses, repeti o que outros me haviam dito – mas todos os meus
tentames de solução esbarravam sempre num “ponto morto”, onde o maior
descrente das minhas teorias era eu mesmo. E dessa noite absoluta da
inteligência não havia saída para parte alguma. Uma vez que tu habitavas para
além das nuvens, como é que podias estar dentro de um cristal? nas células
duma planta? no corpo primitivo dum protozoário? Não era isto indigno da tua
grandeza e majestade?...
Para salvar do iminente naufrágio o meu querido teísmo, repetia eu o que tinha
ouvido dizer: que tuas leis estavam dentro dos seres, dirigindo-os para certos
fins. Não podia eu, nesse tempo, crer que tu mesmo estivesses dentro de tudo
que o que é real, que eras o Uno Infinito e todo o verso finito do universo; que
todas as coisas, desde as mais simples até as mais perfeitas, estão dentro de ti
porque tu estás dentro delas, e as penetras inteiramente com a tua onipresente
Divindade.
Quando me convenci da tua absoluta onipresença e oni-imanência, comecei a
compreender o mundo e a mim mesmo. O meu monoteísmo culminou em
monismo.
Cheguei a compreender também que o teu céu não é algum lugar longínquo
para onde deva a alma viajar após a sua separação do corpo – mas que o teu
céu é um estado espiritual dessa mesma alma liberta, uma atmosfera divina
creada dentro da alma na vida presente e revelada na vida futura.
Ninguém pode estar dentro do reino de Deus se esse reino não estiver dentro
dele. Tudo o que é grande, bom, verdadeiro, sincero, belo, justo, puro, tudo isto
é o teu reino, não só no mundo futuro, senão também na vida presente.
Não é a morte que me introduz no teu reino, e sim a vida. Também, como
poderia a não-vida fazer de mim o que a vida não fez?...
Tu, o mais transcendente de quantos seres existem, és de todos os seres o
mais imanente – o único ser plena, profunda e integralmente imanente...
Exultei de júbilo ao descobrir esta grande realidade. A luz é tão bela, tão
ardente, tão pura... A luz é fonte de vida e alegria – e tu, meu Deus, eras para
mim a claridade imensa que iluminava as noites da minha existência.
De tão encantado da tua luz, cantei a apoteose da tua grandeza, ó excelsa
Divindade...
Hoje... és para mim a grande escuridão...
A escuridão?... Não, não és a escuridão – és a síntese e quintessência de
todas as trevas do universo e de todas as noites de minha vida...
A escuridão duma noite terrestre é luz em comparação com o profundo negror
da tua natureza, minha gigantesca Noite Metafísica...2
2. Não se esqueça o leitor, em face dessa estranha afirmação, de que a jornada ascensional da
alma rumo à luz definitiva vai através de luzes e trevas intermitentes. Lembre-se da “noite
tenebrosa da alma” de São João da Cruz, e de todos místicos.
Desconfio dum “deus” que não seja assim como tu és... um “deus” não
misterioso nem doloroso me encheria de desconfiança de ser um pseudo-
deus, um não-deus...
Na vida presente, quero-te noturno, doloroso, enigmático – um “deus
desconhecido”...
Quero-te assim como és, infinitamente amargo. Esse amargor – não sei por
que estranhas leis de contraste ou polaridade – tem para mim maior doçura
que todas as doçuras do universo...
Amo essa tua escuridão, meu Deus, não por ser escuridão – mas por ser “tua”
escuridão.
Tempo houve em que eu era muito mais “sábio” do que hoje – e até mais
“religioso”, como dizem os homens. Naquele tempo sabia eu provar com
impecáveis silogismos a tua existência e os teus atributos. Quase uma dúzia de
“argumentos”, todos eles infalíveis, estavam nitidamente exarados nos meus
alentados cadernos apologéticos. Naquele tempo sabia eu expor aos meus
semelhantes todos os secretos desígnios da tua providência. Arvorava-me
afoitamente em advogado e defensor do teu governo e julgava de meu dever
justificar cada uma das tuas obras. Provava, com precisão quase eletrônica,
que tudo de
milímetro quanto acontecia
diferença para atinha de nem
direita acontecer
para ajustamente
esquerda –assim,
e que sem um
era tolo
quem isto não compreendesse...
Como vês, meu Deus, eu era nesse tempo ótimo advogado da tua providência
e funcionário ideal do teu reino.
Hoje, creio mais na minha ignorância do que na minha sapiência...
Hoje, convencem-me mais os teus mistérios e paradoxos do que as tuas
claridades meridianas...
Sei que existes – mas sei também que o teu existir não é assim como eu penso
e creio. A idéia que faço do teu existir e do teu agir é, a bem dizer, a minha
própria existência e atividade projetadas ao infinito. Conheço-te, não assim
como és – mas assim como eu sou. Vejo-te através dos óculos coloridos da
minha individualidade e do meu caráter pessoal. Tu és assim como eu
compreendo que possas ser, ou como desejaria que fosses.
És inteligente – para minha sede intelectual...
És amoroso – para meu coração faminto de amor...
És poderoso – para minha vida tão frágil...
Eu sou o que sou livre e espontaneamente e o que desejo ser, ainda que de
fato não o consiga ser – isto sou eu na verdade. Sei que entre o meu “querer” e
o meu “poder” medeia distância quase infinita, mas não é essa distância a
bitola do meu verdadeiro ser; o que vale e decide é o meu sincero querer, e
não o meu impotente poder. Sei que os meus ideais são montanhas
longínquas, cumes excelsos imersos em luz divinal – e sei também que as
minhas realidades são prosaicas e cinzentas planícies, areais monótonos, que
talvez nunca atinjam sequer o sopé dos meus longínquos Tabores...
Mas tu sabes, meu Deus, que eu não sou este esfarrapado e exausto viajor
que se arrasta pela prosaica planície da sua humana fraqueza – eu sou aquele
saudoso peregrino do Infinito que, em pleno areal desta terra finita, crava os
olhos famintos nos luminosos cumes dos seus grandes ideais...
E é por isto mesmo que não desmaio na longa jornada... O único que tenho de
meu é meu sincero querer – e é por este querer que tu me julgas, e não pelo
poder ou não-poder, como os homens insensatos.
Por isto, minha luminosa Escuridão, eu me julgo mais perto de ti no meio das
minhas trevas de hoje do que na minha claridade de ontem...
O sofrimento por ti me aproximou de ti, distanciando-me de mim...
Distanciando-me de mim?...
Assim pensava eu, por muito tempo. Tinha a impressão de que o sofrimento
me afastava do Eu, à medida que me aproximava de Deus; deslocava-me do
centro humano em direção à periferia divina...
Vejo hoje que não é bem assim... De fato, o sofrimento por ti me aproxima de ti
e, em certo sentido, me distancia de mim, do meu ego estreito – mas não me
distancia do meu verdadeiro e autêntico Eu, desse Eu largo e livre, desse Eu
eterno que está oculto sob a grossa camada com que o meu ego efêmero e
profano encobriu aquele verdadeiro e eterno Eu.
Fiz esta grande descoberta: que o único caminho certo para o verdadeiro Eu é
via Deus. Quem não vai via Deus encontra sempre um pseudo-eu, e ficará
eternamente alheio ao verdadeiro Eu do seu ser...
Foi necessário desegoficar-me, divinizando-me em ti, a fim de me encontrar
integralmente em mim...
É esta a estranha matemática, filosofia e astronomia do teu reino, ó minha
luminosa Escuridão...
E é por isto que eu quero, amo e adoro essa tua luminosa Escuridão, ó Deus
eterno...
Superpersonal
Chegaram mesmocortina
correram enorme ao ponto de atribuir-te
de fumaça personalidade
por diante da tua divinatríplice – e com isto
natureza.
Tu não és “pessoa” no sentido comum desta palavra, nem mesmo por simples
analogia. Se “pessoa” é um ser vivo, consciente, dotado de inteligência e
vontade, talvez possas ser assim apelidado – mas, neste caso, o teu ser-
pessoa é tão diferente do nosso ser-pessoa como o fogo real diverge do fogo
pintado, como a luz solar se distingue das lanternas fosfóreas dum vaga-lume,
como a vida dum serafim é diferente da vida dum molusco ou protozoário...
Tu és um ser consciente, pleniconsciente, superconsciente, oniconsciente,
infinitoconsciente...
Tu és inteligência sem limites.
Tu és vontade sem barreiras.
Tu és poder irrestrito...
Tu és saber imenso...
Tu és amor universal...
Tu és bondade panorâmica e absoluta...
Vezes sem conta, Senhor, tenho ouvido falar em homens ateus e antiteus,
homens que te negam e homens que te odeiam. Entretanto, não me convenci
até hoje da existência de semelhantes homens. Pois como poderia alguém
negar, de consciência tranquila, precisamente aquilo que é a quintessência da
Realidade? Como poderia odiar o que é a infinita plenitude de toda a Bondade?
O que tenho encontrado, nos caminhos da minha peregrinação terrestre, são
homens ateístas, isto é, homens que se dizem ateus ou antiteus e que desta
sua atitude paradoxal fazem até uma filosofia e um credo – tão imensa é a
babel de certas almas...
Tenho encontrado ateístas aristocráticos – e antiteístas demagógicos. Uns,
serenos e calmos, como linda tarde de inverno – outros, inquietos e agressivos,
como tempestade de verão.
E nenhum deles era realmente ateu nem antiteu...
Assim como o ódio não é, muitas vezes, senão a manifestação dum grande
amor incompreendido ou atraiçoado – assim é também o chamado ateísmo
desses homens um profundo e descompreendido teísmo, uma espécie de
“escrita especular”, que, invertida, deve ser lida no espelho, reinvertida, a fim
de dar sentido...
Esses homens dizem não te conhecer – porque se desconhecem a si mesmos,
e através do seu falso Eu enxergam falso o seu Deus... Pois, afinal de contas,
ninguém vê as coisas como elas são em si, mas assim como ele é ou julga
ser...
Há muitos ateus à flor dos lábios – não há ateu no fundo da alma...
Se um chamado ateu estivesse intimamente convencido da não-existência de
Deus, deixaria de guerrear esse Deus ou esse não-deus – porque ninguém
hostiliza o que não existe. Só se agride o que é agressível por ser real. O
espalhafatoso ateísmo do ateu é prova do seu teísmo. Só um teísta pode fazer
praça do ateísmo. Um verdadeiro ateu, se existisse, faria do seu ateísmo
silêncio absoluto e sobranceiro desdém, sem perder uma palavra na agressão
de um inimigo inexistente.
Se ateus houvesse, seria o diabo o rei dos ateus – quando ele é, de fato, um
decidido teísta. Tão grande teísta é ele que procura revoltar todos os seres
contra a infinita Realidade, Deus. Ah! se Satã pudesse ser ateu!... Se pudesse
convencer-se da não-existência de Deus!... Seria o fim do seu inferno e o início
do seu paraíso... O ocaso do seu tormento e a alvorada da sua beatitude... Por
ora, continua a grande noite... Mas Satã é por demais inteligente e realista para
ser ateu, para negar a mais inegável das realidades... Ele é o teísta número um
dentre todos os inimigos de Deus. O teísmo é o fundamento de seu feroz
satanismo. Estar convencido da suprema Realidade, e não querer adorar essa
Realidade, atingi-la só com a inteligência glacial e não com os ardores do
coração – que horroroso tormento deve ser!... que agonia metafísica esse
eterno conflito entre o “entender” e o “querer”... Ser teísta da inteligência e
ateísta do coração – eis o inferno dos infernos!... Desejar a inexistência da
suprema Realidade, e estar convencido da sua eterna e indefectível existência
– como tolerar esse dualismo atroz dentro do próprio Eu?...
Um diabo ateísta e ateu deixaria de ser diabo, e deixaria de sofrer no seu
inferno...
Homem que fosse realmente ateu devia ser mais satânico que Satã, devia ser
um supersatã, um ultradiabo – suposto que tivesse suficiente inteligência para
esse ateísmo satânico e esse satanismo ateu...
***
Mas... por que há tantos homens que se dizem ateus?... Serão mentirosos
todos eles?... Quererão todos eles enganar a humanidade com o seu pretenso
ateísmo?
Não, eles não são, por via de regra, enganadores – porém enganados, auto-
iludidos. Iludidos pelas penumbras do próprio ego, pela eterna esfinge do seu
subconsciente.
O homem, esse “desconhecido”...
E essa ilusão radicada no próprio ego encontra, não raro, abundante alimento e
adubo no ambiente social e religioso em que vivemos.
O deus que esses ateus negam é um pseudo-deus, um não-deus, um fantasma
criado pelo ego e nutrido pela sugestão do ambiente. Engendram um deus à
sua imagem e semelhança, e guerreiam esse aborto da sua filosofia, e
investem contra essa caricatura da divindade com o mesmo furor grotesco com
que certo cavaleiro medieval arremetia contra um batalhão noturno de inimigos
– que não eram senão moinhos-de-vento...
O deus do ateu é sempre um “deus moinho-de-vento”, um “deus-caricatura”,
um “deus-fantasma”, um pseudodeus moldado pela inteligência e pelo coração
de seu autor...
O Deus real e verdadeiro não pode ser objeto de negação e de ódio da parte
do homem, uma vez que esse Deus é a afirmação da Suprema Verdade e do
Bem absoluto – objetos necessariamente afirmáveis pela inteligência e pela
vontade. Não é possível que a inteligência, no seu estado normal, negue a
Verdade conhecida como tal, nem é possível que a vontade não adulterada
odeie o Bem que, como tal, se lhe apresente.
A inteligência só pode rejeitar a não-verdade, assim como a vontade só pode
recusar o não-bem.
O que o chamado ateu nega é o deus da sua filosofia e do seu ambiente
religioso. Esse deus cruel, mesquinho, vingativo, fraco, antropomorfo, choroso,
amargurado, sem sorte nas suas obras, derrotado por seu inimigo, como
inúmeras vezes aparece nas páginas da nossa literatura religiosa – esse deus
não pode, porque
divindade, naturalmente, ser afirmado
esse deus nemnoamado
nem existe mundoporreal,
um senão
sinceroapenas
cultor da
na
imaginação doentia dos seus infelizes autores... E bom é que não exista esse
pseudodeus... Se existisse, devia todo homem sincero ser ateu...
***
Muitos são os homens “religiosos” – poucos são os homens “bons”.
É tão fácil ser “religioso”, no sentido comum da palavra – e é tão difícil ser
“bom”, na verdadeira acepção do termo...
Para ser “religioso” basta praticar determinados atos cultuais que as religiões
prescrevem a seus adeptos como necessários ou convenientes. Quem os
pratica é considerado “religioso”, quem não os pratica é chamado homem sem
religião, herege, ateu...
Mas, para ser bom, requer-se mais, muito mais. Ninguém é bom pelo fato de
fazer isto ou aquilo – bom só é o homem pelo fato de estar em harmonia com o
Infinito. Só uma atitude interna, um hábito permanente, um determinado modo
de ser do Eu central é que faz o homem bom, e nunca um simples complexo de
atos externos.
Pode um homem ser “religioso”, no sentido comum da palavra, e não ser bom –
Se fosse tão grande o número dos homens bons como o dos homens
“religiosos”, talvez não houvesse quem se dissesse ateu. O homem “religioso”
acha suficiente entender-se com Deus, ser bom diante dele – ao passo que o
homem realmente bom tem de entender-se também com os homens, o que é
muito mais difícil do que o entendimento com Deus. Para se entender com
Deus, infinita Retitude, basta ser reto e bem-intencionado, traçar o seu pensar
e agir como linha paralela à grande paralela da vontade de Deus. Mas para não
entrar em conflito com as mil e uma linhas tortas dos homens, e isto sem
entortar a própria consciência, requer-se uma geometria tão engenhosa e uma
ginástica tão heróica que só mesmo um homem intimamente bom a consegue
realizar sofrivelmente. E assim, dominados pela lei da inércia e do menor
esforço, milhares de homens preferem ser “religiosos” a serem bons, porque
isto é difícil, e aquilo relativamente fácil. Muitos chegam ao ponto de se
sentirem como que dispensados de serem bons pelo fato de serem “religiosos”.
Capitalistas da “religiosidade”, tornam-se verdadeiros indigentes da bondade –
e abrem falência diante de Deus... Mas como são considerados, oficialmente,
homens “religiosos”, levam ao chamado ateísmo muitos daqueles que
quiseram ver homens cuja religiosidade culminasse em pura, perfeita e sincera
bondade.
O homem “religioso” julga desobrigar-se diante de Deus, cultuando-o, segundo
certos ritos e em determinados períodos, nas alturas de Garizim ou no templo
de Jerusalém – ao passo que o homem bom se julga obrigado a cultuar a
Divindade, sempre e por toda a parte, “em espírito e verdade”, sobre a ara
duma benevolência perene e universal. É tão fácil subir, de vez em quando, ao
monte Garizim, ou entrar no templo de Jerusalém – mas é imensamente difícil
levantar dentro do próprio Eu um altar em que arda, perenemente, o fogo
sagrado da bondade sincera amparado por mãos de solícita Vestal...
O chamado ateu bem quisera ser teísta se visse nos teístas protocolares uma
religiosidade tão pura e grande que culminasse em sincera bondade... Quisera
ver-lhes o credo explodir numa deslumbrante floração de ética... Quisera ver a
estática rigidez dos dogmas eclesiásticos vibrar na elasticidade dinâmica duma
luminosa benevolência... Quisera ver a árvore divina da fé coberta da viridente
fronde de humana solidariedade... Quisera, numa palavra, ver nos teístas um
indissolúvel consórcio entre o ser-religioso e o ser-bom...
Mas como o deus de milhares de homens “religiosos” é incompatível com o
Deus do homem bom, afastam-se muitos bandeirantes da Divindade desse
deus arbitrário e convencional dos homens “religiosos” e vão em busca dum
Deus no qual não possam apenas crer, mas que possam também amar
sinceramente...
E dizem-se ateus...
É natural e óbvio que esses peregrinos do Absoluto e esses insatisfeitos
cultores dum Ideal longínquo sejam, não raro, detestados como hereges e
tachados de ateus pelos confessores da religiosidade oficial e protocolar. E, por
fim, acabam eles mesmos por considerar-se ateus, eles que no seu insatisfeito
teísmo sofrem mais dolorosamente a nostalgia de Deus e o tormento do Infinito
do que os clássicos cultores da religiosidade. Afastam-se, não raro, dessa
religiosidade burocrática e põem-se a bater ínvias florestas e vastas solitudes,
em demanda do “Deus desconhecido”... Esses “ateus”...
“Não estás longe do reino de Deus” – disse Jesus a um desses bandeirantes
do espírito. E a respeito de outro, afirmou: “Não encontrei tão grande fé em
Israel...”
É triste o estado do homem falto de bondade – tristíssimo o estado do homem
saturado de “religiosidade” e vazio de bondade. É que o homem “religioso”
dificilmente se convence da sua indigência ética, em face da sua abundância
dogmática; sendo milionário de atos cultuais, não acredita na sua mendicidade
ética... Acumulou, através de anos e decênios, enorme capital de atos
religiosos, verdadeiras montanhas de valores dogmáticos-litúrgicos, a ponto de
se sentir como credor de Deus. Experimenta em si tão forte plenitude cultual
que se julga pouco ou nada obrigado a praticar, ainda por cima, atos de
benevolência.
Tipo clássico desse homem saturado de religiosidade e vazio de ética eram
aqueles dois funcionários eclesiásticos que o divino Mestre delineou na
parábola do “bom samaritano”. Vinham do tempo de Jerusalém, onde, por
espaço duma semana, tinham praticado abundância de liturgia e cerimônias
cultuais, e julgavam, assim, supérfluo praticarem ainda um ato de caridade
para com o malferido viajor à beira da estrada de Jericó – e passaram de largo,
na complacente convicção da sua religiosidade – ao passo que o samaritano,
herege do credo, não se sentiu tão seguro capitalista espiritual e credor diante
de Deus, e, impelido pela consciência da sua vacuidade, praticou sincera
benevolência para com um homem desconhecido.
E esse herege é apontado por Jesus como modelo do homem espiritual, ao
passo que como
condenados os dois irrepreensíveis
homens cultores da religiosidade oficial são
sem espiritualidade.
O teu reino não é deste mundo
Não é possível
dos ídolos a reconstrução
da política do etempo
penumbrista divino da
dos pérfidos paz senão sobre
aproveitadores as ruínas
da Igreja.
Enquanto os degraus do altar servirem de trampolim aos Pilatos, Herodes,
Caifás e Constantinos do presente século é impossível o triunfo definitivo do
Evangelho do teu Messias, Senhor.
Por que é que milhares de espíritos sinceros, depois de lutas ingentes, depois
de trágicas odisséias repletas de angústias e saudades de ti, Senhor, por que é
que esses nautas não arribam enfim ao porto tranquilo da tua igreja?... Deixou,
porventura, o cristianismo de ser o que foi?... Teriam contra ele prevalecido as
portas do inferno?...
Não, o teu reino é eternamente o reino da verdade e da vida, do amor e da
graça, da caridade e da glória – mas os sacrílegos exploradores da tua igreja
repelem de ti milhares de almas sinceras que te procuram...
Uma sede imensa de redenção empolga a humanidade do presente século.
Nunca creu o homem tão firmemente no seu pecado, na sua impureza, na sua
imensa necessidade de redenção como hoje. Exaustos e malferidos viajores
jazem à beira da estrada de Jericó, interrogando com olhares famintos os
horizontes em derredor... Não faltam sacerdotes e levitas, impecáveis
funcionários eclesiásticos – faltam bons samaritanos, faltam apóstolos, faltam
discípulos do Cristo e arautos da Divindade...
As igrejas degeneraram, muitas delas, em sectarismo político – e o homem dos
nossos dias tem horror a todos os fetiches, a todas as jaulas do corpo e da
alma...
O homem do nosso século é essencialmente inclusivista e afasta-se de todo e
qualquer gênero de exclusivismo...
A “alma naturalmente cristã” volta-se, com irresistível avidez, para o Sol, para o
Cristo, para ti, Senhor – e foge de todos os lampiões e de todas as lanternas
multicores com que os homens pretendem substituir o sol do teu Evangelho...
Onde está, no cristianismo de hoje, aquela força titânica dos primeiros séculos?
aquele jubiloso entusiasmo dos verdadeiros discípulos do Nazareno? aquela
irresistível magia, aquela poesia virgem, aquela alvorada inédita, aquela
arrasadora tempestade de Pentecostes, aquele onipotente ciclone que
arrebatava as almas a alturas de infinita amplitude?...
Vejo igrejas, vejo almas piedosas que as frequentam, que crêem nos dogmas
do seu credo e vivem a sua vida medíocre, burguesmente honesta e sofrível –
mas onde estão os heróis do Cristianismo?...
Vejo lagos plácidos de águas estagnadas, águas mansas, mornas, inofensivas
– mas onde estão as cataratas do amor e do heroísmo?...
Durante três séculos ratificaram os Césares do império romano a sentença de
morte que Pôncio Pilatos, seu mandatário na Judéia, fulminou contra Jesus o
“Cristo”; três horas esteve o Nazareno crucificado no Calvário, em pessoa; três
séculos esteve ele crucificado por toda parte, na forma da sua igreja e,
enquanto estava suspenso na cruz, como predissera, “atraía tudo a si”; tão
irresistível era a atração do Crucificado que todas as legiões de César se
provaram inermes e impotentes em face dele.
Sucedeu, então, à benéfica inimizade dos Pilatos a maléfica amizade dos
Constantinos, que desceram da cruz a igreja do Nazareno, arrancaram-lhe das
mãos os cravos e deram-lhe o cetro do poder mundano; substituíram a coroa
de espinhos por uma coroa de ouro e pedras preciosas; em vez da púrpura
sagrada do seu sangue redentor cobriram-no com a púrpura profana de Roma,
e mandaram o Cristo sentar-se no trono da política e dos interesses mundanos,
em vez de doutrinar os povos da cátedra divina da cruz.
E o teu reino, Senhor, que deste mundo não é, mundanizou-se nas mãos de
homens que são deste mundo. Ficou-lhe, sim, pura e inalterada a alma –
porque nenhuma potência do inferno pode adulterar a alma do teu reino – mas
a tal ponto se mundanizou o corpo da tua igreja que dificilmente se pode
descobrir-lhe a alma divina através desse corpo profano...
“Quando o Filho do homem voltar, será que encontrará fé sobre a terra?” –
assim disse, um dia, o teu Messias. E esta dolorosa pergunta está esperando
por uma resposta.
E esta resposta, qual será? Um jubiloso “sim”?... um horroroso “não”?...
Se os cristãos continuarem na sua infeliz tentativa de intoxicar o teu reino com
a peçonha da política profana e dos compromissos interesseiros, teu Messias,
quando voltar, não encontrará fé entre os homens...
Nós, todavia, esperamos por uma nova tempestade de Pentecostes – ainda
que essa tempestade varra da face da terra a tua igreja e a lance novamente à
silenciosa noite das catacumbas...
O que importa é que essa igreja seja tua...
Que o teu reino não seja deste mundo...
Que encontres fé entre os homens...
Quero viver-te, senhor
Depois daquele grande dilúvio, fui jogado pelas tuas tormentas, Senhor, a uma
praia solitária e tranquila, onde amanheceu a luz da compreensão, não um
meio-dia de luz integral – reservado a outros mundos – mas ao menos um
tolerável crepúsculo matutino de serenidade interior e de conciliação contigo e
com o teu mundo tão enigmático e paradoxal...
Fiz a grande e dolorosa viagem do meu ego periférico para o meu Eu central –
e encontrei-te nesse centro, onde sempre estavas, mas onde eu não estava
ainda. É este, aliás, o único ponto certo onde o homem te pode encontrar, uma
vez que “o reino de Deus está dentro do homem”. Fácil seria uma viagem daqui
ao Himalaia, ao Pólo Norte ou Sul, ou à estratosfera – difícil, porém,
imensamente difícil, é esta viagem da periferia ao centro do nosso ser; porque
tudo o que chamamos nosso ego pessoal e histórico – sentidos, afeições e
inteligência – nos obriga a andar na superfície das coisas e nos impede de
descobrir o nosso verdadeiro Eu central. Esse Eu central é como o ponto
matemático de um eixo, fulcro que tudo move, mas que é imóvel em si mesmo
– um movente imóvel – quase como tu mesmo, Senhor, o eterno movente
imóvel de todos os fenômenos transitórios.
Nesse meu centro imóvel aprendi um pouco desse capítulo noturno da dor.
E esse pouco foi o suficiente para me dar algum sossego diante de ti – e diante
de mim mesmo... Impediu que caísse das alturas o arco-íris da minha fé e
morresse, fragmentado, numa poça de água suja... Consegui crer num Deus
amável... Fiz do amor a alma da minha fé e, como o amor é imortal, deu ele
imortalidade à minha fé, enquanto essa mesma fé não se transforme em amor,
fundindo-se com ele numa suprema e eterna unidade...
Enquanto a fé não for integralmente absorvida pelo amor, enquanto a luz
meridiana da visão não suplantar a semiluz crepuscular da fé, é inevitável o
sofrimento...
Tudo o que oscila entre o zero e o infinito tem de sofrer.
Entre o nadir do Nada absoluto e o zênite do Tudo integral estende-se o reino
da dor, porque é o reino da evolução universal.
Continua o grande dilúvio das nossas lágrimas – à luz do teu excelso arco-íris,
meu Deus...
Conscientemente bom
Vai um grande mistério, meu Deus, naquilo que teu servo Moisés escreveu
sobre a “árvore do conhecimento do bem e do mal” que, a princípio, plantaste
no Éden.
Por que plantaste no meio do paraíso do bem a árvore do bem e do mal?... Se
querias que o homem fosse bom, por que lhe puseste antes os olhos a perene
tentação do mal?...
Não, tu não querias que o homem fosse bom, e, menos ainda, que fosse mau,
querias que ele fosse conscientemente bom. Seres bons existiam aos milhares,
aos milhões, nos vastos domínios do teu universo. Todos os astros do cosmos
são bons, porque obedientíssimos servidores da tua vontade, traçando as
órbitas que lhes prescreveste e não aberrando sequer por um triz dos
gigantescos roteiros que lhes marcaste. As tuas estrelas não falham, não
prevaricam, não cometem pecado contra a tua soberana vontade – são seres
“bons”, inconscientemente bons, porque lhes falta a “ciência do bem e do mal”.
O que os astros praticam de “bom”, é bom porque é teu – e o mal não existe
em ti.
Bom é também o mundo orgânico, a flora, a fauna, todos os domínios da vida
vegetativa e sensitiva. Não há organismo, por mais primitivo, que transgrida o
menor dos teus mandamentos. Todos eles são “bons”, inconscientemente
bons. Tu mesmo o dizes. Depois de terminares a obra da creação material,
referem os livros sacros, vias que “tudo era bom”.
Depois disto, porém, creaste um ser inédito e inaudito – tu, que és amigo das
coisas srcinais e inéditas e não costumas repetir nenhuma das tuas obras.
Creaste um ser estranho, diferente de todos os outros. Um ser que, como os
astros do céu e os organismos da terra, não era apenas “bom”, mas “muito
bom”, como diz o Gênesis.
Esse ser novo era efetivamente bom, e muito bom – mas era possivelmente
mau, e muito mau... Esse ser estranho tinha em si a possibilidade de ser bom
ou mau. E precisamente por não ser apenas efetivamente bom, como os outros
seres, mas possivelmente mau, como os outros não podiam ser, esse ser novo
era “muito bom”.
Melhor é a teus olhos um ser bom que tem em si a possibilidade de ser mau do
que um ser simplesmente bom sem a possibilidade de ser mau. Assim és tu.
Uma creatura necessariamente boa é um ser limitado – uma creatura
livremente boa é um ser ilimitado. E eu sei que tu és amigo de tudo o que é
ilimitado, tu, que és a infinita ilimitação, a suprema Negação de todas as
barreiras reais e imagináveis.
Fizeste o homem à “tua imagem e semelhança” – porque o fizeste ilimitado,
rumo ao dia e rumo à noite, em direção às alturas e em direção ao abismo...
Os outros seres que creaste são seres de “planície” – o homem é ser de “altura
e profundidade”...
Os seres incapazes do conhecimento do bem e do mal são autômatos da tua
vontade – o ser dotado da ciência do bem e do mal é filho teu e cumpridor livre
do teu infinito querer...
Colocaste o homem no início da grande encruzilhada, no ponto de partida
duma linha reta e duma linha curva – a reta da inocência e a curva da culpa...
Deste ao homem a larga possibilidade de escolher um dos dois caminhos, a
faculdade de ser inconscientemente bom ignorando o mal – e a faculdade de
ser conscientemente bom conhecendo o mal.
Estava o homem em face dum grande dilema. Podia ser o “filho mais velho”
que nunca deixou a casa paterna – e podia ser também o “filho mais novo”, o
“filho pródigo”, que livremente deixou a casa do pai e livremente a ela voltou,
depois de conhecer as “terras estranhas” da culpa...
Muito mais querido foi ao pai o filho regresso ao lar do que o filho nunca
egresso da casa paterna. Por quê? Porque este era inconscientemente bom, e
aquele era conscientemente bom.
Podia a humanidade ser como o filho mais velho – mas é como o filho mais
novo... E não é o homem o filho mais novo do Pai celeste? obra novíssima da
Divindade creadora? produzida pela tua Onipotência, meu Deus, depois de
todas as demais maravilhas do teu poder e da tua sabedoria?...
O homem é o benjamim de Deus, e tão querido do Pai eterno que lhe foi dado
o poder de ser bom ou mau...
Oh! quão grande, meu Deus, é a confiança que tens no teu benjamim! ao ponto
de lhe dares a faculdade de ser bom ou mau! ... Todos os astros do céu e todos
os organismos da terra invejam a excelsa prerrogativa do homem ao pé de cujo
berço foi plantada a “árvore do conhecimento do bem e do mal!”...
Permite, meu Deus, que eu te faça uma pergunta, talvez indiscreta: terias tu
plantado no Éden essa árvore da ciência do bem e do mal se previsses que a
humanidade fosse apenas filho pródigo, e não também filho controvertido?...
que o homem, no meio dos porcos de seu despótico senhor e desejoso de
fartar-se com repasto imundo, não sentisse, um dia, as saudades da casa
paterna e resolvesse lançar-se, contrito, aos braços de seu paternal amigo?...
Se previste uma culpa sem conversão, por que creaste o homem?... Por que
deste ao “filho mais novo” do teu amor a permissão tácita de deixar a casa
paterna da tua vontade e ir em demanda da terra estranha do seu querer
individual?... Por que não vedaste a teu benjamim o acesso à árvore do
conhecimento do bem e do mal?... Por que não lhe impossibilitaste a colheita
do pomo fatídico, assim como o puseste fora do alcance de todos os outros
seres?...
Não, não posso crer, meu Deus, que tu sejas tão cruel e insensato que
creasses um ser destinado a ser infeliz, que chamasses à existência uma
humanidade fadada a perecer longe de ti, em terra estranha, faminta, no meio
de animais imundos.
Creio no teu poder...
Creio na tua sabedoria...
Creio no teu amor...
E estes teus atributos dizem-me que creaste o gênero humano para a
felicidade, que teu benjamim, ainda agora “filho pródigo”, será, um dia, o mais
querido dos teus filhos, em cujos pés descalços de escravo porás o calçado
dos filhos livres de tua casa, em cujo dedo brilhará a aliança da tua amizade
paternal... Sentar-se-á à mesa do teu grande banquete e ouvirá músicas e
coros do teu reino, esse benjamim que andava perdido e foi encontrado, que
estava morto e reviveu...
Também, como poderia o homem ser “encontrado” se não se perdera?... Como
poderia “reviver” se primeiro não morrera?...
E como seriam possíveis esse reencontro e essa ressurreição da humanidade
se não lhe fosse dada a possibilidade do extravio e da morte?...
Se o homem escolhesse a linha reta da inocência e, qual criança ingênua e
dócil, andasse sempre na luminosa estrada diurna dos teus mandamentos,
sem jamais trilhar as vias noturnas do mal – daria ele, certamente, glória a ti,
seu Creador, assim como o resto do cosmos. Glória muito maior, porém, te dá
um ser que, depois de conhecer todas as noites do afastamento de Deus,
todas as terras estranhas do pecado, todos os prazeres da liberdade pessoal,
Quando em mim despertou o primeiro amor da minha vida ainda não vivida,
verifiquei que esse amor era impessoal, intransitivo, sem determinado objeto
externo.
Nenhum impulso de fora acendera em mim essa ignota centelha, nascera ela
do meu próprio Eu, do íntimo quê da minha natureza.
“Geração espontânea”, esse amor, gerado simplesmente pelo Eu, sem o
concurso de um Tu...
Para a gênese do amor concorrem, geralmente, três fatores: o sujeito, o ato e o
objeto. No meu primeiro amor só havia sujeito e ato. Amava intensamente, com
todo o dinamismo próprio da zona elementar da minha meninice em transição à
adolescência.
Entretanto, não podia esse amor ficar, por muito tempo, assim, intransitivo.
Encontrei um objeto.
Quando relembro aqueles tempos, verifico com estranheza que esse primeiro
objeto do meu amor adolescente não era um ser humano determinado e
conhecido como tal – mas era a Natureza, ou algo que dentro dela me
fascinasse.
Por queque
aquela não me deu
infância nãoao menos um simulacro de infância, para compensar
fora?...
Naquele tempo sofri imenso com essa atitude repulsiva da natureza em face
das minhas declarações de amor.
Hoje, após alguns decênios de experiências externas e internas, agradeço-lhe
a recusa. Se, naquele tempo, me tivesse a Natureza compreendido e feito a
vontade – não teria eu acabado por me despersonalizar e diluir em seus
misteriosos fluidos? não teria desaparecido, qual frágil onda, no oceano
cósmico da Natureza impessoal?
Quem sabe se essas potências sinistras que regem os ínferos da zona noturna
do mundo subconsciente não chegariam a descristalizar o cristal da minha
personalidade consciente?
Se eu, ainda em princípios de minha evolução, sorvesse em cheio o dulcíssimo
veneno da Natureza, sucumbiria, talvez, à sua vasta e profunda tragicidade... A
Natureza é como o olhar da serpente: paralisa com seus eflúvios mágicos a
resistência de quem ouse fitar-lhe temerariamente as negras pupilas...
Mais tarde, muito mais tarde, depois de atravessar oceanos de dores e
decepções, voltei aos meus primeiros amores de adolescente; regressei ao
seio da Natureza – e ela me recebeu de braços abertos... Desvendou-me
espontaneamente
de Ísis... os seus segredos... Convidou-me para entrar no santuário
Eu a amava, e amo-a ainda, como naquele tempo; mas, agora, amo-a como
ciente e iniciado. E ela me corresponde, porque sabe que, na qualidade de
ciente e iniciado, as minhas auras sintonizam com as pulsações do seu
coração e vibram com as vibrações das suas artérias.
A vida, de insciente, me fez ciente...
A dor, de profano, me fez sagrado...
O amor, de cego, me fez vidente...
Por isto, reina entre nós uma grande e sincera amizade, uma profunda e
silenciosa compreensão, uma afeição mútua que tem a serenidade outonal da
amizade e a veemência primaveril do amor...
Um amor amigo...
Uma amizade amorosa...
***
E, para que tudo acontecesse assim como aconteceu, foi necessário, meu
Deus, que eu naufragasse ao furor de grandes tempestades e fosse pelas
ondas bravias dos teus mares, arrojado às praias tranquilas da tua grande
paz...
A Natureza que me fizera enfermo – me fez convalescer.
O veneno mortal se me tornou medicina vivificante...
Estendeu-se o arco-íris do teu sorriso sobre o dilúvio das minhas lágrimas...
Amanheceu nas nuvens sanguíneas do meu ocidente a serena alvorada do teu
oriente...
Tangeram os teus sinos divinos sobre os meus vastos campos de batalha...
Cantaram os anjos de Belém em todos os Gólgotas da minha vida...
Após o grande naufrágio – arribei a Cosmorama...
Descobri que habitas nessa mística e silenciosa catedral da Natureza, onde a
tua presença é intensa e dinâmica, querida e íntima...
Todas as coisas grandes são taciturnas e anônimas – e como podia o teu
habitáculo deixar de ser a mansão do silêncio anônimo?...
O silêncio da Natureza é um reflexo e símbolo da tua infinita quietude, ó
dinâmica Divindade!... Sob as frondes dormentes das árvores sinto a afinidade
que há entre este silêncio e o teu eterno mutismo.
Parece-me, por vezes, que entre estas duas quietudes, a tua, meu Deus, e a
da tua Natureza, existe apenas um véu muito tênue... Se meus sentidos
conseguissem romper essa gaze sutil – que aconteceria? Ver-te-ia eu face a
face? atingir-te-ia com as potências específicas do meu Eu humano?...
Os ruídos profanos do mundo são espessa muralha que se ergue entre mim e
ti – o silêncio na Natureza é uma delgada cortina que se move ao mais ligeiro
sopro...
Por isto era o teu Messias tão amigo da solidão do ermo e do silêncio das
montanhas...
Por isto haurem os teus arautos forças sobre-humanas na larga quietude que
passam a sós contigo...
Nessa discreta osmose recebe o vácuo humano algo da divina plenitude...
Nessa diatermia celeste regeneram-se, à luz ultravioleta do Sol divino, as
células depauperadas do meu organismo espiritual.
Muitas vezes tenho lido e ouvido que tu, meu Deus invisível e sempre
silencioso, aparecias e falavas aos teus arautos, que lhes revelavas grandes
realidades que por si sós não descobririam jamais.
Aparecias-lhes nos cumes dos montes e na solidão do ermo, em sonhos e
horas de êxtase, no bramir da procela e no sussurro da viração, no negror da
noite e no fulgor de misteriosas labaredas.
Cuidava eu, nesse tempo, que essa tua presença fosse veiculada para dentro
da alma do vidente pelas ondas luminosas ou sonoras de algum objeto externo,
através da pupila, da retina, do nervo ótico; através do tímpano, do labirinto e
do nervo auditivo; através de papilas sensitivas, dos gânglios e do cérebro, e
assim chegasse tua revelação à consciência do arauto das tuas mensagens.
Ignorava eu, nesse tempo, que “o teu reino está dentro do homem”, não
apenas dentro desta estreita faixa luminosa que a ciência chama “consciente”,
mas também nessa vastíssima zona que se apelida de “inconsciente”.
Hoje sei – sei? entre-sei, pressinto, adivinho – que o que há de inconsciente,
ou cosmo-consciente, dentro de mim é infinitamente grande, vasto, profundo,
uma gigantesca treva ou penumbra que se alarga até os mais longínquos
horizontes da minha realidade individual. Compreendi ou adivinhei que os
As tuas palavras, Senhor, não são como as nossas, que têm princípio e fim,
que são como pequenas linhas destacadas, finitas, limitadas à esquerda e à
direita, embaixo e em cima.
Não, as tuas palavras são essencialmente infinitas, linhas sem princípio nem
fim, ilimitadas na horizontal e na vertical, em todos os sentidos.
Por isto, nunca poderá homem algum exaurir o sentido total das tuas
revelações. Por mais que as aprofunde, estará sempre no início da sua
profundeza...
Nunca poderá o nosso finito beber o teu Infinito em toda a sua plenitude...
Também, como caberia o ilimitado do teu oceano divino nessas conchas de
molusco que jazem esparsas pelas praias da humana sapiência?...
Nesse mar imenso das tuas revelações cada homem submerge segundo a
medida da sua capacidade, uns mais, outros menos profundamente... Alguns
colhem apenas as gotinhas que saltam à praia... Outros apanham quantidades
maiores das tuas águas divinas... Mas quem teria a presunção de afirmar: eu
colhi na minha inteligência toda a vastidão do oceano! não ficou fora do meu
amplexo mental uma só onda, uma gotinha sequer da revelação de Deus!?...
Como poderia
ultravioleta, umo raio
como luminoso
de alta de baixa frequência produzir luz violeta ou
frequência?...
Compreende cada qual conforme a sua capacidade compreensiva.
Por isto, ó Deus, ninguém te compreende cabalmente assim como tu és – mas
antes assim como ele é. Quem te compreendesse cabalmente assim como tu
és, seria igual a ti – seria Deus.
Todo homem tira das tuas revelações o que seu espírito apreende e de que ele
tem mister. O conteúdo das tuas palavras é infinito, mas o homem absorve só a
parcela finita que é por ele absorvível. Da infinitude do teu oceano haure cada
Por algum tempo estava a minha inteligência satisfeita com o seu hábil trabalho
de engenharia filosófica, e cuidava poder repousar sobre os louros colhidos.
Mas... não há repouso nem querência para o espírito bandeirante enquanto
restar uma floresta a devassar, uma montanha a escalar, um precipício a
transpor – e quando poderia alguém atingir o extremo litoral dos teus mares, ó
vasta e longínqua Divindade?... Quando poderia o espírito lançar âncora no
porto do teu ocidente, tu, que és sempre oriente, por mais que lancemos a
nossa nau rumo ao ocaso?... tu, cujos arrebóis vespertinos se confundem
sempre com auroras matinais?... tu, cujo ômega se transforma sempre em
alfa?... tu, indecifrável esfinge cujos olhos hirtos fitam o infinito e cujo
semblante
cujo centro parece
está emsorrir
toda enigmaticamente de não
parte e cuja periferia todos osem
está nossos
parteesforços?...
alguma?... tu,
Verifiquei que a luz que minha inteligência derramava em torno de si era uma
luz fria, um fantástico luar sobre vastos campos de neve... Contraiu-se o meu
íntimo ser à frialdade da minha ciência, e o coração tiritava ao contato com a
atmosfera polar que minha filosofia criara em derredor...
Quase que morri congelado por entre os esplêndidos glaciares da minha
inteligência...
Abandonei o clima glacial do meu estreito intelectualismo, ergui os olhos – e fui
em demanda
pleno equador,das regiões tropicais
e derreteu-se do coração.
aos ardores Levantei
do solo meu a minha
grande tenda
bloco de gelo.em
Ao degelo primaveril brotou-me na alma uma grande floração de fé e amor...
Convalesci aos poucos da minha filosofia intelectualista...
Cessou a ruidosa ofensiva do meu lúcifer mental...
Respirei, aliviado...
Tive algum sossego de mim mesmo...
...............................................................................................................................
Mas ai de mim, inquieto bandeirante!...
Nem as regiões tropicais da fé valeram dar-me quietação definitiva...
Por algum tempo pensei em voltar ao clima polar do meu intelectualismo
filosófico, mas tive medo dum congelamento total, depois de habituar o meu
organismo aos ardores tropicais do coração...
Pensei em estabelecer-me em zonas temperadas, entre os trópicos e os
glaciares. Comecei a intelectualizar a minha fé, a cristianizar a minha ciência –
mas verifiquei em breve que essa tentativa não passava duma formosa
miragem no deserto. Intelectualizar a fé, cristianizar a ciência – palavras
magníficas, não há dúvida – para faquires, e hipnotizadores da vida... Seria o
mesmo que tentar aguar o fogo ou incendiar a água... Sei que existe uma
literatura imensa sobre o intelectualismo da fé e sobre a ciência cristã –
entretanto, a fé, por mais razoável que ela seja, não é intelectualizável; e a
ciência, por mais espiritual, nunca aceitará as águas lustrais do batismo cristão.
São dois hemisférios do mesmo globo, sim, mas que nunca se fundirão em
uma só realidade, nunca se unirão num amplexo íntimo de perfeita
fraternidade. Inclusivismo recíproco, talvez o haja nas regiões “periféricas” da
ciência e da fé – mas na zona “central” reinará sempre um grande
exclusivismo...
O que a fé nos diz dos mundos intangíveis nunca será desvendado pela ciência
da vida presente. À entrada da universidade da fé jaz a ciência, analfabeta, e,
por mais que peça, rogue e suplique, não conseguirá nunca matricular-se
nessa excelsa academia das supremas realidades do universo. Por outro lado,
por que ia a fé sentar-se nos bancos toscos do jardim d’infância da nossa
filosofia intelectualista? Por que aprender os sinais macabros com que a nossa
enfatuada inteligência soletra e balbucia aquilo que julga saber?...
Que valor teriam para o peregrino do Absoluto e o viajor de mundos espirituais
os precipitados ou licores que o químico ou o alquimista encontram no fundo
dos seus cadinhos ou nos tubos dos seus alambiques?...
Amém...
Meu crudelíssimo amor
Há quase meio século que minh’alma anda rondando, qual cão faminto, os
castelos de tua opulência, meu divino Senhor e Rei.
Rondando, rondando, com os olhos nas muralhas altíssimas...
E até hoje não me atiraste um osso sequer com que iludir pudesse a fome
atroz que me devora as entranhas...
Assim és tu, meu crudelíssimo Amor...
Não deste à minha alma uma migalha sequer de compreensão...4
4 Não se escandalize o delicado leitor com a rudeza destas palavras blasfemas, aqui
reproduzidas. Leia antes a tremenda maldição que o grande e santo sofredor Job deixou
imortalizada nas páginas das Sagradas Escrituras.
Que é que eu sei de ti, Senhor, que não soubesse decênios atrás?... A tua
noite é absoluta... As tuas torres, altíssimas... As muralhas do teu castelo,
eternamente inescaláveis...
Quando li a história da “mulher cananéia” e vi o cachorrinho debaixo da mesa
do rico a catar migalhas de pão, tive inveja do feliz canino e propus-lhe trocar o
seu destino com o de minh’alma – mas ele se recusou, porque comia as
migalhas que caíam da mesa de seu dono, e minh’alma não apanhou jamais
um átomo que caísse da mesa da tua opulência, meu onipotente Senhor e
Rei...
Não sei nada de ti...
Não compreendo nada do teu ser, nem do teu mundo... Estou em perfeito
jejum...
Tudo me é noite e zero, negação e vacuidade...
Quantas vezes – ai quantas! – tenho tentado escalar, num ímpeto de audácia e
temeridade, as torres altíssimas que habitas!... E sempre me escorregavam as
Quando me disseram, Senhor, que o teu reino estava dentro de mim, julguei
perceber a coisa mais absurda e a maior blasfêmia que dizer se pudesse. É
que era falsíssima a idéia que eu formava de ti, do teu reino – e até de mim
mesmo. Pensava que teu reino viesse de fora, das alturas do céu sideral, do
mistério de horizontes longínquos, do seio ignoto do universo. Não podia, de
forma alguma, imaginar que o teu reino surgisse das silenciosas e vácuas
profundezas do próprio Eu, porque eu só conhecia o meu ego periférico,
profano e vazio, e ignorava a plenitude do meu Eu central.
Hoje sei que o meu verdadeiro Eu é um traço de união entre o finito e o Infinito,
que é ajamais
entrará única porta abertadas
no mundo para o cosmos
supremas das grandes
maravilhas realidades,
quem não abrir ea que
portanão
do
Eu, invisível mago do meu verdadeiro ser.
Receava eu também, consciente ou inconscientemente, que essa intensa
introspecção, esse perene e exclusivo procurar-te dentro-do-Eu acabasse por
me levar a uma tal ou qual hipertrofia da própria personalidade, a um estreito
egocentrismo incompatível com o teu vasto teocentrismo.
Hoje sei que acontece precisamente o contrário do que eu receava. Hoje,
depois de te encontrar dentro de mim, sou menos egocêntrico do que antes.
Desegofiquei-me em grande escala, despersonalizei-me em extremo; hoje sou
mais cósmico do que personal. Tenho a certeza de que o processo de
personalização é um fenômeno intermediário, transitório, um elemento
evolutivo, algo de provisório, mas não um estado definitivo. O estado definitivo
do Eu é essencialmente cósmico, vastamente universal, porque é uma cosmo-
consciência da infinita Realidade, um largo Panorama do Ser total – que, em
última análise, és tu, ó Suprema Realidade.
Encontrei-me, Senhor, unicamente porque te encontrei em mim. Se não te
encontrasse em mim, nunca me encontraria a mim – porque só no teu grande
Tu pode o homem encontrar o seu pequeno Eu...
Homem, se não quiseres ser para ti e para os outros eterna esfinge e ominoso
pesadelo, procura, antes de tudo, descobrir o teu verdadeiro e autêntico Eu
central, através dessas espessas camadas do pseudo-eu periférico.
Esse teu ego personal e histórico não és tu. Esse teu ego periférico é de ontem
ou anteontem – mas o teu verdadeiro Eu central é eterno.
Aquele é unilateral – este é onilateral.
Corpo e mente são a sede e fonte das sensações, das afeições e dos
pensamentos, que em ininterrupta carreira se sucedem, como as águas duma
torrente, como as catadupas duma cachoeira – mas esse estardalhaço de
sensações, afeições e pensamentos não és tu, não é a verdadeira essência do
meu ser.
O meu verdadeiro e autêntico Eu cósmico é como um lago plácido que espelha
o azul do céu e reflete o semblante do Sol. Recebe de todos os lados torrentes
inquietas, mas ele mesmo, esse lago, é eterna e imperturbável quietude.
Quietude não negativa e estática, mas quietude positiva e dinâmica.
O meu lago interno é tranquilo e imóvel, não por vacuidade, mas por plenitude;
não por deficiência, sim por abundância.
Esse lago dinamicamente tranquilo é minha alma.
O meu Eu personal e histórico é como a extensa periferia duma gigantesca
roda em contínuo movimento de rotação. Milhares e milhares de pontos giram
em torno do eixo, mas este eixo, no seu centro matemático, é imóvel. É um
movente imóvel, um motor não movido. É um centro do qual irradiam todas as
potências motrizes rumo à periferia, mas que não recebe da periferia o menor
movimento. Dá sem receber, esse motor imóvel, porque é de inesgotável
plenitude.
Quanto mais distantes do centro tanto mais móveis são os pontos
circunjacentes; quanto mais perto do centro tanto menor é seu movimento – até
expirarem em não-movimento, em quietação absoluta, no centro dinâmico do
eixo.
Assim é, assim deve ser o meu verdadeiro Eu, a essência cósmica do meu ser:
centro imóvel que tudo move, foco dinâmico do qual irradiam todas as energias
da minha vida, lago plácido que absorve todas as torrentes e reflete na sua
perene quietude o azul do céu e o sol da Divindade.
Por via de regra, anda o homem nas camadas periféricas do seu ego, mais ou
menos distante do Eu central. Poucos são os que conseguem penetrar até
esse misterioso centro, porque árdua luta e intensa introspecção espiritual
exige a ruptura dessas espessas camadas do nosso ser. Sensações físicas,
afeições psíquicas e pensamentos intelectuais, habituados à tépida superfície
diurna do nosso ego periférico, recusam-se a submergir na silenciosa
profundidade noturna do Eu central; parece-lhes uma noite polar, uma zona
gelada e mortífera, e por isto fogem sempre em sentido contrário, rumo à
superfície.
Como obrigar os rebeldes a empreenderem a grande expedição rumo às
regiões profundas do Eu central?
Obrigá-los? Não, não os devemos obrigar à força para empreenderem essa
expedição ao interior, porque toda faculdade, quando compelida a fazer algo,
revolta-se e procura fazer precisamente o contrário. “Não resistais ao
malévolo!”
A única coisa que podemos fazer com as nossas potências físicas, psíquicas e
intelectuais é polarizá-las, dar-lhes uma atitude centrípeta e deixá-las depois
atuarem, suave e espontaneamente, por si mesmas, neste sentido. Essa
constante e persistente polaridade via centro acabará por lhes neutralizar a
primitiva centrofobia e lhes quebrará paulatinamente toda a vontade e todo o
poder de oposição e rebeldia. Mais ainda, essa constante e suave perspectiva
polarizadora chegará ao ponto de converter as nossas potências periféricas em
veículos e dóceis aliados centrófilos, que nos levarão, quando menos, até as
muralhas externas do grande santuário central do nosso Eu cósmico e
espiritual. Chegados à entrada desse silencioso santuário, esses servidores
psico-físico-mentais montarão guarda e se quedarão, qual silenciosa e vigilante
sentinela, a proteger o palácio do grande rei.
É este o triunfo máximo do espírito: fazer dos tumultuosos elementos
periféricos dóceis aliados e espontâneos servidores do silencioso Eu central.
Quando o homem chega a subordinar todas as potências periféricas do seu ser
à grande potência central, verifica que possui completo domínio, não somente
sobre o microcosmo do seu Eu, mas também sobre o macracosmo
circunjacente.
O homem, chegado a esta centralização espiritual, é, ipso facto, um
taumaturgo. É que o ponto imóvel desse centro é também o eixo dinâmico que
move os elementos do cosmos, porquanto os elementos cósmicos, extra-
individuais, estão em ligação direta e permanente com os elementos cósmicos
intra-individuais. Estes dois elementos são até idênticos em sua raiz e essência
íntima; aparecem diversos apenas na forma externa.
Toda taumaturgia consiste num completo domínio sobre as potências
periféricas, numa vitória integral do Eu central.
Árdua é a luta, porém certa a vitória.
O homem que harmonizou com o seu Eu espiritual todas as potências do seu
ego psico-físíco-mental entra num mundo de imperturbável paz e tranquilidade,
goza duma paz positiva, duma tranquilidade dinâmica, porque nascidas da
consciência da sua força interior e da sua absoluta intangibilidade.
E desta paz e tranquilidade nasce então uma felicidade tão grande, uma
beatitude tão inefável que não se compara com satisfação alguma que o
homem possa experimentar fora desta zona.
Se esse homem ouvisse falar em ateísmo, ficaria sem compreender coisa
alguma, porque ele vive Deus dentro de si.
Creio, Senhor, que estas duas palavras dizem tudo o que dizer se pode de ti e
das tuas relações com o homem.
Creio que estas duas palavras antitéticas sintetizam todas as teses e hipóteses
que sobre ti se hão excogitado, no decorrer dos séculos e milênios.
Minha vacuidade – e tua plenitude...
A mais profunda, sublime e sagrada aspiração de todo homem plenamente
humano está em querer possuir-te, não somente pelo conhecimento e pelo
amor, mas efetivamente, plena, integral, panoramicamente, com todas as
potências do seu ser.
Possuir-te – que coisa deliciosa e estupenda deve ser!...
Possuir-te – o que no mundo presente é o mais vasto drama e a mais intensa
tragédia da alma humana, deve ser, no mundo futuro, a mais excelsa epopéia e
a mais pura mística do espírito creado...
Fundir-se em ti, integrar a gotinha do meu Eu humano no oceano imenso do
teu Tu divino...
Identificar-se, por assim dizer, contigo...
Divinizar-se...
Que é toda a poesia do amor terreno e toda a luz da ciência humana em face
dessa suprema e única realidade da tua posse integral, eterna, infinita?...
Possuir-te – mas como?...
Pela inteligência? Pela força mental? Pela ciência especulativa?...
Assim pensava eu, a princípio. Pensava como certos filósofos de Atenas, que
tanto mais espiritual e divino seria o homem quanto mais aguçada fosse a
cúspide da sua inteligência, quanto mais elevado o pináculo da sua torre
Desiludido
não estavasdonointelectualismo, comecei
zênite da afirmação do ameu
desconfiar também nem
ego intelectual, da ascese...
no nadir Se
da
minha negação personal – onde estavas tu, meu grande Mistério?...
Procurei, por algum tempo, apoderar-me de ti quase de contrabando – pela
magia, pelo cabalismo irracional; procurei conjurar-te por meio de ritos e
fórmulas ocultistas, a ver se estas potências sinistras lançariam uma ponte
fantástica entre o aquém onde eu estava e o além onde tu habitas, ou onde eu
te supunha.
Falhou também esta tentativa em sentido horizontal, e mais tristemente falhou
que as outras, em direção vertical, para o alto e para o fundo...
***
Vi-me, então num vasto campo coberto de ruínas...
Abriu-se dentro de mim um grande vácuo...
Encontrei-me no caireI do abismo...
Em derredor e dentro de mim, um deserto imenso, de angustiante monotonia,
de vastidão mortífera...
Convenci-me de que era impossível possuir-te...
Mas... como poderia eu viver sem te possuir – se tu és a vida de todos os
vivos?
Como ficaria eu em mim, se não ficasse em ti? Se tu és o único sol em torno do
qual gravitam todos os planetas e satélites do universo?... Se tu és o único
centro de atração de todas as pedras do cosmos?... Se és o único luzeiro do
mundo para onde se voltam sempre todas as potências heliotrópicas das
plantas sedentas de luz e calor?... Se és o único Norte que chama a si, com
suave veemência, a agulha magnética de todos os seres pensantes?...
Era necessário que eu te possuísse, sob pena de me despossuir a mim mesmo
e voltar ao nada...
Depois de muito pensar e sofrer, depois de muito lutar e errar, compreendi que
o homem não pode possuir-te indo ao teu encontro rumo às alturas, mas que
só tu podes possuir o homem demandando-o rumo às profundezas...
A única possibilidade de possuir-te é deixar-me possuir por ti. Só depois desta
tomada de posse, divino-humana, é que é possível a tomada de posse
humano-divina...
O homem só pode possuir-te depois de ser por ti possuído...
Não pode subir a ti se tu não baixares a ele...
E foi por isto que “o Verbo se fez carne e habita em nós”...
Humanizou-se para que nós nos pudéssemos divinizar...
Veio, Senhor, a tua plenitude para encher a nossa vacuidade...
...............................................................................................................................
Mas para que o homem enxergasse estas estrelas longínquas do teu céu, era
necessário que se apagasse primeiro o sol do seu orgulho...
E como se apagaria o vasto incêndio do nosso orgulho se não com um oceano
de lágrimas e de sangue, com um mar de sofrimentos?...
Compreendi a loucura da minha sapiência – e compreendi a sabedoria da tua
“loucura”, Senhor...
A “loucura” da tua descida à terra, da tua homificação...
Abri mão de todas as minhas teses e hipóteses e sintetizei toda a minha
sabedoria nestas palavras: minha vacuidade – e tua plenitude...
Abri um livro inspirado e li: “Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos
humildes”.
Compreendi que tanto mais poderosa é a tua atração quanto mais vácuo o meu
ser, uma vez que o teu Tu é sempre infinita plenitude.
Compreendi que o meu ego tem de ser como um pólo totalmente negativo para
que possa atuar o pólo do teu Tu sempre infinitamente positivo...
Vacuidade e humildade...
Vacuidade e verdade...
Vacuidade e fé...
Vacuidade e o silencioso clamor de minha alma...
É um erguer de antenas na amplidão do espaço...
É um olhar faminto para os castelos da tua opulência...
É uma soluçante saudade do finito para o Infinito...
É uma nostalgia anônima, ardente, atroz, para algo de grande, de longínquo,
de eterno...
E para que venha a mim esse teu reino, nada posso fazer da minha parte
senão estabelecer dentro de mim esse grande vácuo, porque tu não enches o
que está cheio, só enches o que está vazio...
Divinamente amável é a humanidade, porque é amada por um ser divino, por ti,
meu Deus.
E por que não poderia eu amar humanamente o que tu amas divinamente?
Que superdeus seria eu para odiar o que tu amas? Superdeus? Não, antes um
infra-hornem... De fato, nada me rebaixa tanto a infra-homem como o meu
orgulho de super-homem.
Todo o meu desamor aos homens procedia dum pseudo-amor a mim mesmo,
que também é desamor. Quando faço o que é desumano, pseudo-humano, o
que meu Eu central e divino reprova, mas que meu ego periférico e antidivino
quisera ver aprovado – então me irrito, me torno nervoso, aborrecido, mal-
humorado. Mas, em vez de descarregar sobre mim mesmo a pesada carga
elétrica do meu descontentamento, descarrego-a em algum pára-raio, sobre
alguma das outras unidades do gênero humano.
Falo então do desvalor dos homens, da mesquinhez da humana sociedade, da
perversidade de meus semelhantes, e caio em negro pessimismo.
Se este ego, e outros egos, cada um por sua vez, se reformassem a si
mesmos, individualmente, então seria a humanidade de amanhã notavelmente
melhor que a humanidade de hoje...
O homem só deixa de ser amável quando deixa de ser ele mesmo, quando se
adultera no íntimo quê do seu ser, quando se torna um pseudo-homem quando
se divorcia da fonte eterna da sua retidão. O que é natural é divino e amável –
o que é desnatural é antidivino e desamorável.
Dizem que a verdade é austera, crua e sem poesia. Mas assim só é a verdade
quando contemplada de fora, como um vitral olhado de fora para dentro é, por
isto mesmo, sem arte nem beleza. A verdade contemplada de dentro para fora,
contra a claridade da tua luz, Senhor, esta verdade é mais poética que toda a
poesia, porque a verdade integral é poesia infinita.
Se alguém me perguntasse: que preferes, a verdade ou a poesia? Eu diria: eu
quero a poesia da verdade, porque esta é a única poesia de verdade – a única
verdade poética...
Disse Mahatma Gandhi: “A verdade é dura como diamante – mas é delicada
como flor de pessegueiro”.
Só depois de muito sofrimento e depois de deixar após si os mares do
intelectualismo unilateral, é que o homem chega, enfim, às praias serenas
desta intuição. E esta intuição não é fruto do nosso esforço pessoal, nem de
estudos intelectuais, mas é como um fruto maduro que se desprende da
árvore, e nos cai no regaço, não se sabe como nem por quê... Esta intuição é
algo de cósmico,
silenciosos dons dopanorâmico,
céu basta como a luz ee fazer
abrir portas o ar...vácuos...
Para receber esses
Nada vale a
espalhafatosa atividade dos profanos – só vale a taciturna passividade dos
iniciados, dos contemplativos, dos místicos. E esta passividade, que parece
estática e inerte, é mais forte e dinâmica que todos os estampidos e todas as
explosões dos arautos da força bruta...
“Graças te dou, meu Pai – dizia o mais forte dos chamados fracos – porque
ocultaste estas coisas aos entendidos e as revelaste aos pequeninos, porque
assim foi do teu agrado”.
Para entrar neste “reino dos céus”, é necessário que o homem se faça
criança... é necessário que simplifique a sua complexidade...Que desadultere
as falsificações da sua natureza... Que retifique as mil e uma tortuosidades da
sua vida... Que desintelectualize o seu estreito intelectualismo... Que
desobstrua com um sopro de liberdade cósmica os canais do seu ego –
hipertrofiado...
Só o homem assim divinizado é que é integralmente humano...
E se for integralmente humano, amará a humanidade.
E quem ama a humanidade lhe faz bem, mesmo que não tenha nenhum
contato físico com essa humanidade. Para as grandes forças cósmicas não há
distância... As auras benéficas dum Eu genuíno e autêntico atuam ao infinito,
sem veículo algum, sem ruído, sem estardalhaço, atuam pela força intrínseca
da sua natureza divina...
Em última análise, para fazer bem basta ser bom...
Para fazer bem não se requer nem é suficiente que se “faça” alguma coisa –
mas é indispensável que se “seja” algo ou alguém...
E só é algo ou alguém o homem que está em contato permanente com Aquele
que é um superAlgo, um superAlguém – que é o Tudo e o Todo.
Creio na grande harmonia
E, por da
reflexo fim,tua
desceu ao nosso planeta o teu Messias, o mais vasto e intenso
Divindade.
Mas os homens perseguiram os teus emissários...
Os homens crucificaram o teu Cristo – e continuaram a crucificá-lo, dia a dia,
através dos séculos...
Crucificaram o teu Cristo em nome da religião: “Nós temos uma lei, e segundo
a lei ele deve morrer, porque se fez filho de Deus”...
Na Judéia crucificaram os homens o corpo de Jesus – e no mundo inteiro
crucificam sem cessar o espírito do Cristo.
Há dois mil anos que o teu Messias agoniza no Getsêmane e sobe ao
Gólgota...
Querem os homens que o teu reino seja deste mundo – quando o teu Cristo
negou solenemente que deste mundo era o teu reino: “O meu reino não é deste
mundo”.
Querem os homens que o teu reino venha com aparato exterior, à semelhança
dos reinos da política mundana – como, se o teu Cristo dissera explicitamente:
“O reino de Deus não vem com aparato exterior, nem se pode dizer: ei-lo aqui,
ei-lo acolá! o reino de Deus está dentro de vós”.
Uma e mil vezes perguntaram os homens onde se deve adorar a Deus, se nas
alturas de Garizim, se no templo de Jerusalém – quando o teu Enviado lhes
disse com absoluta clareza que o teu culto não é uma questão de lugar, mas
sim de disposição interior: “Deus é espírito, e os que o adoram, em espírito e
em verdade o devem adorar”.
Querem os homens fazer da religião uma tal ou qual magia ritual, um complexo
de fórmulas cabalísticas – quando o teu Messias lhes disse que os teus
cultores deviam cultuar-te no santuário da verdade e da justiça, no templo da
sinceridade e da pureza, na ara da bondade e da fraternidade universal.
Por que, Senhor, são tantos os homens religiosos – e tão poucos os homens
bons?
Tão numerosos os apologistas do credo – e tão escassos os cumpridores do
decálogo?
Por que trucidam os cristãos a alma do Cristo no louco afã de salvar o corpo do
Cristo, ou o sepulcro vazio desse corpo?...
Por que defendem eles tão fanaticamente as chamadas verdades do dogma –
ao mesmo tempo que matam o espírito do teu Evangelho?
Por que se desunem os homens por causa dos seus pequenos símbolos
religiosos – quando podiam unir-se por amor ao grande simbolizado da
Religião?
Por que é a humanidade um imenso caos de religiões desencontradas e hostis
– quando podia ser uma esplêndida harmonia de espiritualidade?
Por que não se fundem, enfim, essas dolorosas antíteses seculares numa
jubilosa síntese – na grande tese do Sermão da Montanha?
Por que não se torna realidade o que teu Messias, em vésperas de sua morte,
te suplicou
como com tamanha
nós somos um?” insistência: “Rogo-te, Pai, que todos sejam um, assim
Por que permites que essa pulcritude do teu retrato apareça na horripilante
caricatura do nosso caos religioso?...
Tu, que podes compelir a ti as nossas vontades rebeldes, sem lhes ofender o
apanágio da liberdade – por que permites que almas sinceras e espíritos
sedentos de ti não te encontrem? Por que não destróis essa selva tropical de
sargas com que as religiões nos ocultam a Religião?...
Há entre nós tantos Nicodemos que buscam o teu reino, em plena noite...
entanto,
que tudo isto queque
aquilo o homem vive
ele pensa e é,fora
e diz é infinitamente mais digno de ser dito do
dessa zona central...
Pode o homem dizer mil coisas periféricas – mas não pode dizer o seu Eu
central, porque esse Eu é imagem e reflexo teu, ó indizível Anônimo...
Dizíveis são todos esses pequenos e grandes zeros da vida – indizível é o
grande “1” que, anteposto a essas nulidades, lhes daria valor e razão de ser...
Pelo que, Senhor, não me julgues pelos zeros negativos que eu disse – julga-
me pelo “1” positivo que não pude dizer...
Não me julgues pelo que eu sou no cenário histórico da minha vida vivida –
julga-me pelo que eu desejaria ser no plano ideal da minha vida não vivida...
Eu não sou a minha realidade – eu sou o meu ideal...
Eu não sou os meus atos visíveis – eu sou a minha potência invisível...
Tu és o que és, mas eu não sou o que sou – eu sou o que desejaria ser...
Não me julgues, pois, Senhor, pelos ruídos da sociedade em que vivo – julga-
me pelo silêncio da solidão que eu sofro...
Já te disse, Senhor, que eu sou um analfabeto diante de ti e diante de mim.
Nada sei de ti nem de mim. Verdade é que já fui um letrado, um erudito, um
doutor em ciência diante de mim mesmo; mas assim que despontou sobre mim
o sol da tua verdade, derreteu-se como um punhado de neve o meu pretenso
saber.
Desaprendi tudo... Voltei a ser tábua rasa... Analfabeto...
E até o presente dia vivo a soletrar como criança inábil, a ver se decifro
algumas letras do teu nome, meu grande Anônimo...
Quanto mais alargo os olhos pela vastidão dos horizontes, mais se confundem
os contornos das coisas em derredor... No tempo em que eu, na minha miopia
espiritual, percebia as coisas que me ficavam ao alcance dos sentidos e do
intelecto, julgava conhecer com grande nitidez e precisão todos os seres do
universo... Não duvidava de coisa alguma, porque vivia na ridícula e sacrílega
segurança da minha orgulhosa e estúpida sapiência... Sorvera a cocaína falaz
do intelectualismo que me pintava mundo, quiméricos em todas as periferias da
vida...
À medida, porém, que eu voltava a mim dessa estranha embriaguez do
intelecto, alargava-se o raio visual do meu espírito, e tão longe foi o meu saber
intuitivo que expirou em não-saber todo o meu saber intelectivo...
Diluíram-se em hipóteses todas as minhas teses...
Cederam os meus orgulhosos dogmas lugar a humildes problemas...
Acabou o meu afoito “sim” e “não” num modestíssimo “talvez”...
Transformou-se a minha ruidosa intolerância em silenciosa intuição...
Morreram as minhas barulhentas polêmicas no vasto deserto dum grande
silêncio...
Fiz soleníssima profissão de fé na minha ignorância...
De mestre que eu era, tornei-me discípulo de todos os mestres.
Desfez-se em mil fragmentos, qual meteoro noturno, o duro penhasco do meu
titanismo intelectual e da minha rebeldia luciferina... E os fragmentos do meu
meteoro perderam-se no espaço como um pouco de fumo e de poeira
cósmica...
Impus silêncio ao sátiro profano do intelecto, proibido severamente de estuprar
a alma virgem que dormita no fundo de todas as coisas...
Tornei-me diáfano, maleável e bom, para transformar-me em todas as coisas, a
fim de vivê-las assim como elas são, e não para fazê-las assim como eu sou...
Fui em busca dos vestígios de Francisco de Assis...
Tive saudadesuniversal,
compreensão duma simpatia transbordante,risonha
duma benevolência duma que
bondade sincera,
me fizesse dumae
amigo
irmão de tudo o que há de real na vastidão do cosmos...
Vivi todas as coisas – e fiz todas as coisas viverem em mim...
Desegofiguei-me...
Cosmifiquei-me...
Universalizei-me...
Divinizei-me...
E assim entrei em contato com todas as coisas... Porque no seu último centro
todos esses seres periféricos são um só...
Sintonizei-me pela onda cósmica de todas as coisas...
Vivi a vida de todos os seres...
Senti que só pela vidência intuitiva e mística é que o homem pode atingir a
realidade das coisas... É este o único “saber” real, essencial, central, genuíno e
panorâmico que o homem pode conseguir na vida presente...
Recriei, Senhor, o mundo que creaste...
Tudo isto, porém, ocorreu para além das fronteiras deste ego periférico e
histórico que os homens conhecem... Ocorreu nas regiões imensas onde não
vigora a infeliz distinção entre o sujeito e o objeto, entre o Eu e o Tu, entre o
meu e o teu, entre o ontem, o hoje e o amanhã, entre o tempo e a eternidade...
É esta, Senhor, a inefável poesia da vida...
E esta poesia és tu, Senhor...
E o teu reino está dentro do homem...
À luz das tuas estrelas, Senhor...
É certo que muito leitor que teve a audácia de seguir até aqui os clamores da
minha inquietude metafísica te agradecerá, Senhor, do íntimo do coração, por
não ser como eu, circundado de problemas crepusculares, torturas de
perguntas sem respostas, dilacerado de angustiosas desarmonias... Ele, que
vive à luz meridiana de seus dogmas nitidamente definidos; ele, que de nada
duvida nem discorda; ele, que sente na alma o tépido bafejo das auras da paz
e tranquilidade interior – não compreende que um homem que sinceramente te
procura, ó Eterno, possa experimentar-te, viver-te e sofrer-te como uma
luminosa escuridão, como um delicioso tormento, como um Deus ao mesmo
tempo imanente e transcendente...
Não compreende, esse felizardo, que um homem que te possui possa procurar-
te infatigavelmente dia e noite... Que possa chorar por ti... Agonizar por ti...
Alongar o olhar das suas saudades por todos os horizontes do mundo interno e
externo, a ver se encontra um vestígio teu nas areias mortas do deserto...
Não compreende, esse felizardo sem problemas nem problemática, que, para
nós, os Tântalos da vida presente, o único modo de possuir-te é procurar-te
sempre de novo...
Pois tu és um Deus estranho, sempre presente e sempre ausente...
Entretanto, meu Deus, prefiro sofrer neste céu infernal a gozar num limbo sem
contrastes...
Mais me encanta o mistério da noite estrelada do que a claridade dum dia sem
enigmas...
Tu és uma noite imensa...
Tu és um universo sideral...
Minha luminosa Escuridão...
Cheia de tormento – e beatitude...
Amar-te é sofrer-te...
Sofrer-te é gozar-te...
É por isto, Senhor, que todos os impropérios que te lancei à face, nas páginas
deste livro, são outros tantos protestos de amor...
De amor noturno...
De amor doloroso...
Até que amanheça a grande alvorada...
Huberto Rohden
Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).
De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.
Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais
várias foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto;
algumas existem em braile, para institutos de cegos.
Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na
Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafísica e Mística.
Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de
Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo este que exerceu durante cinco anos.
Em 1969,pela
espiritual Huberto Rohden
Palestina, Egito,empreendeu viagens
Índia e Nepal, de estudo
realizando diversaseconferências
experiência
com grupos de iogues na Índia.
Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre
autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.
Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.
Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora
responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.
À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”.
Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de
fé e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX.
Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.
Relação de obras do
Prof. Huberto Rohden
Assim
O dizia
triunfo da ovida
Mestre
sobre a morte
O nosso Mestre
Maravilhas
Alegorias do Universo
Ísis
Por mundos ignotos
Coleção Biografias
Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos
Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua srcem sua natureza e sua finalidade