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Carlos Saura (1932-2023), um dos realizadores mais importantes da cinematografia

espanhola dos últimos anos, atravessou vários períodos da história do país, não
deixando de a espelhar indirectamente nas suas obras. Ao mesmo tempo,
experimentava estilos e abordagens ao cinema (do realismo, ao modernismo, ao
documentário focado na música), que tiveram como um dos pontos altos a vitória do
Urso de Prata no Festival Internacional de Berlim, em 1966, com “A Caça”.

Um resumo do filme pode apelar ao famoso “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir: quatro
homens de classe média decidem, numa tarde de canícula, ir caçar coelhos para a
propriedade de um deles; e aí revelam-se conflitos do passado que continuam a minar
o presente. Porém, a obra de Saura é mais do que isso. “A Caça” tem ainda outra
coincidência: o mesmo título da belíssima curta-metragem que Manoel de Oliveira
realizou em 1974. Em Oliveira, apesar de termos dois finais diferentes (aquele que a
censura quis e o do realizador), a entreajuda é a força motriz perante a violência do
pântano e da caçada. Na longa-metragem de Carlos Saura, por trás da acção violenta
de caçar coelhos está também a crítica social.

A crítica social por trás da caçada

Começamos por perceber que na propriedade vive Juan um homem coxo que recebe
ordens de José, o proprietário. Consigo vivem a mãe moribunda e uma sobrinha. José
parece ter nojo da condição do que trabalha para ele. Juan é um mero criado de quem
este espera que lhe empreste os furões para ajudar na caça, de quem espera que
monte a tenda para refrescar a tarde dos caçadores e lhe faça almoço de paella. Juan a
tudo obedece com diligência. Os quatro desprezam-nos: chegam mesmo a dizer que a
pior coisa que lhes podia acontecer era serem cochos ou manetas, e um deles nos seus
pensamentos diz que Juan tem cara de furão. Juan tem o rosto cansado, o corpo de um
trabalhador e homem sofrido. E, a certa altura, humildemente, pergunta ao patrão
José se lhe pode adiantar parte do salário para conseguir levar a mãe para um
sanatório. O outro recusa. “Até hoje nunca lhe pedi nada”, é a resposta, sem insistência
de Juan. A doença (está frequentemente a tomar comprimidos para um mal sem cura)
e a decadência económica deste proprietário justificam a sua frieza? Os seus amigos
são também austeros: Paco sente ciúmes de Luís, Luís desdenha dos outros e da
pontaria aos coelhos. Não quer caçar, é melhor atirador que eles e prefere ficar a ler
um livro de ficção científica. Entretanto, já Juan desabafou dizendo que parte daquela
propriedade podia ser aproveitada para cultivo, já vimos o jovem Enrique o mais novo
dos caçadores a aproximar-se de Carmen a miúda e única presença feminina do filme,
tirando-lhe uma fotografia coisa invulgar para ela, que ajuda no que pode o tio. Vimos
ainda Juan mostrar a Paco como se fosse um segredo de boa monta o cadáver de um
militar que esconde numa das grutas perdidas do terreno.
A Caça é um filme em que o calor parece agudizar o mal-estar das personagens, ao
ponto de deixarem de ter pruridos, relevando o que pensam umas das outras, e agindo
nesse sentido com actos extremos. A violência está na caça aos pobres coelhos, muitos
deles até estão doentes; no modo como Carlos Saura filma a fúria dos furões a atacar
os coelhos para depois os homens os matarem. A violência está no incêndio gratuito
que Enrique começa, espécie de presságio da matança final. Fica a imagem de
desespero de Enrique a subir aqueles montes áridos, em busca do único que manteve
sempre serenidade e o pode ajudar: Juan. É uma obra dura, nesse sentido da
alucinação que toma conta das personagens quase ao ponto surrealista, para nos fazer
lembrar que existem acções que podem ser de todo vazias e sem propósito. E, quando
tal sucede, resta essa violência e degradação moral, mesmo dos que nada mais têm
para fazer numa tarde estival que ir caçar coelhos e beber. Um filme a rever.

15 Junho 2023

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