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CINEMA PELO AVESSO

Anna Maria Ribeiro

A arte de contar histórias garantiu, até seus setenta anos, a sobrevivência de


Raimundo Nonato, naquele povoado do interior do Maranhão. Almoço, jantar, café da
manhã, um canto pra dormir e até algum para o cigarro e a pinga, eram dados em troca
de suas fabulações. Personagens os tinha variados empenhados em lutas, amores e
aventuras heróicas, sempre no único cenário do sertão que conhecia desde o
nascimento. Variavam conforme o público. Se mulheres, as deixava lacrimosas pelas
desditas de moça, a quem o dono da fazenda fez mal, lançada no mundo por um pai de
grande crueldade e deixada a mercê da volúpia dos homens, num bordel em São Luiz
ou nas “oropa”, (qualquer espaço geográfico que extrapolasse os limites da capital).
Se mais homens, as emboscadas de matadores se multiplicavam, a mando de coronéis
que se engalfinhavam por posse de terras. Se crianças, os relatos eram povoados
pelos personagens do Bumba meu Boi numa adaptação livre onde o boi estimado via-
se às voltas, ora em tom de comédia, ora em tom de tragédia, com o negro vaqueiro,
sua cabocla e o homem branco aos quais se juntavam, dependendo do tempo
dispunha e da fome que sentia, os vaqueiros, o Pajé, o Padre, o Médico, o Palhaço e a
Burrinha.
Raimundo Nonato anunciava-se, à porta de cada casa, com uma estrofe do
catimbó: Cibilim de ouro, chuva fina não me molha. Se você não me quiser, outros
querem e você chora. Ameaça vã. Todos o queriam. Afinal era a única diversão, o
único momento mágico em que a imaginação tomava asas naquele sertão. Até que...
Salviano, o próspero padeiro, foi a São Luiz e voltou de caminhão com uma
carga misteriosa que arrumou, caixote em cima de caixote, no espaço em frente à
capela, pomposamente chamado de A Praça. Garantido por um gerador claudicante,
estava para ser inaugurado O Cinema! Uma tela velha, roída pelo tempo, subiu
atracada em dois mastros. Outros mastros delimitaram a platéia, cercada de um pano
alto que impedia a vista da tela aos que não adquirissem a entrada, fixada em 20
centavos. Um projetor de 16 milímetros e rolos e mais rolos de antigos westerns
garantiriam o espetáculo. A estréia foi um sucesso. Todo o povoado, e mesmo os vindo
de longe, esgotaram a lotação. Raimundo Nonato apavorou-se: como lutar contra
aquela coisa do maldito? Desconsolado, passou a observar o filme atrás da tela, já que
os 20 centavos não lhe eram fáceis.
Passada a novidade, a platéia começou a duvidar daquilo ser uma real diversão.
As legendas passavam muito rápidas, impedindo a leitura dos pouco letrados e a
maioria era analfabeta mesmo. Vai daí que não entendiam nada. Além disto, não
conseguiam reconhecer, naquelas figuras estranhas, os seus conhecidos personagens.
Só reconheciam mesmo os cavalos e estes não falavam ou conduziam a história. Os
índios eram certo atrativo, mas andavam vestidos. Coisa esquisita! Começaram a
comentar e os comentários chegaram até Raimundo Nonato que continuava a
esquadrinhar a imagem, atrás da tela, buscando inspiração para enfrentar o inimigo
que lhe tirara o sustento. E ela veio! Deus é pai, não é padrasto! Ele esperou o
momento certo e, na primeira noite em que uma razoável quantidade de não
espectadores passou por seu ponto de observação, ele falou alto e dramático, fazendo
às vezes do mocinho que, empunhava dois revólveres apontados na direção ao
bandido: Cabra da peste! Arreia o trabuco. Tô aqui a mando do Coronel Juca. Diz tuas
oração e te aprepara pra morrê. Os passantes pararam para ouvir e se deixaram ficar
até o fim do filme, dublado e animado por Raimundo Nonato. A pequena platéia foi
levada às lágrimas pelo defloramento de Gene Tierney (Rosinha, filha do Coronel
Juca). Cena, que de acordo com a versão de Raimundo Nonato, não poderia ser
mostrada na tela em respeito às famílias, mas foi relatada em palavras comoventes.
Este triste fato levou à matança final, quando Robert Taylor (Cassiano Canindé) vingou
a honra da amada, enfiando uma saraivada de tiros no vilão Dan Dureya (Floriano Mata
Sete). Morte esta muito aplaudida na concordância com a fala final de Cassiano
Canindé: Morre cão danado! Só não te sangro como um porco como tu merecia pra
não sujar minhas mãos. Careço delas limpas pra pedir a mão de Rosinha. No dia
seguinte, num caixote, fazendo às vezes de bilheteria, Raimundo Nonato cobrava
entrada para sua versão do espetáculo. Foi uma enchente. Além de mais barato (10
centavos), juntava-se à fome à vontade de comer: as deliciosas e familiares histórias
de Raimundo Nonato eram agora enriquecidas pela imagem! O cinema atrás da tela
passou a ser a grande atração: índios americanos assumiam lugar das personagens do
bumba meu boi e dançavam catimbó antes da batalha; as moças do cabaré, agora
quengas de respeito, levavam os homens à loucura ao dizer: se achegue, meu nego; a
mocinha era amarrada pelos bandidos e deixada em meio à plantação de macaxeira
brava ou atrás de moitas de araticum-cagão, enquanto o pastor, transvestido em
prefeito da cidade, incitava os meeiros, agregados e alugados a não trabalhar nas
terras do Coronel Quirino, que tinha parte com o demônio. Salviano desesperou-se. Viu
desaparecer sua platéia, do lado direito, enquanto no avesso, as pessoas se
acotovelavam por um lugar perto do narrador. E, não tendo outro jeito, deu sociedade
a Raimundo Nonato que, finalmente, aos setenta anos tornou-se um dos poucos e
bem sucedidos empresários do lugar, próspero sócio do Cinema pelo Avesso.

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