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Já os calabres laterais foram largados, toda a tracção se exerce naquele que abraça a pedra no sentido da

largura, é quanto basta, parece a laje leve, tão facilmente escorrega sobre a plataforma, só quando enfim
descai por inteiro se ouve retumbar o peso, todo o arcaboiço do carro range, se não fosse estar o chão
naturalmente calcetado, calhaus sobre calhaus, enterrar-se-iam as rodas até aos cubos. Foram retirados os
grandes blocos de mármore que 167 serviam de calços, já não há perigo que o carro fuja. Tocara para o
jantar quando os carpinteiros acabaram a tarefa, e o vedor vem dar ordens para se atar a laje ao carro, é
operação que está a cargo dos soldados, talvez por causa da disciplina e da responsabilidade, talvez por
estarem habituados com a artilharia, em menos de meia hora a pedra fica solidamente atada, cordas e mais
cordas, como se fizesse corpo com a plataforma, aonde uma for, vai a outra. Visto de largo, o carro é um
bicho de carapaça, um cágado atarracado, sobre pernas curtas, e como está sujo de barro, parece ter
acabado de sair da terra funda, é ele próprio terra que prolonga a elevação a que ainda está encostado.

Os homens e os bois já estão no seu jantar, depois será a hora da sesta, se a vida não tivesse tão boas coisas
como comer e descansar, não valia a pena construir conventos. Recolhem-se aos carros os petrechos
diversos, que de tudo é preciso dar contas no inventário, verificam-se os nós, faz-se a ligação dos calabres
ao carro, e, à nova voz de Eeeeeeüi-ô, os bois, em desencontrada agitação, começam a puxar, fincam os
cascos no solo irregular da pedreira, as aguilhadas picam os cachaços, e o carro, como se estivesse a ser
arrancado do forno da terra, movese devagar, as rodas trituram os fragmentos de mármore que juncam o
chão, pedra como esta de hoje é que nunca daqui saiu. O vedor e certos seus auxiliares graduados já
montaram nas mulas, outros deles farão o caminho a pé por necessidade da obrigação, são subalternos,
mas todos têm uma parte de ciência e outra de mando, a ciência por causa do mando, o mando por causa
da ciência, não é o caso deste arraial de homens e bois, que são mandados só, uns e outros, e o melhor é
sempre o que mais força for capaz de fazer. Aos homens pede-se, por acrescentamento, algum jeito, não
puxar ao contrário, meter a tempo o calço à roda, dizer as palavras que estimulam os animais, saber juntar
a força à força e multiplicar ambas, o que, enfim, não é despecienda ciência.

O carro já subiu até meio da rampa, cinquenta passos, se tanto, e continua, oscilando duramente nos
ressaltos 168 das pedras, que isto não é coche de alteza nem sege de eclesiástico, esses molejam como
Deus manda. Aqui os eixos são rígidos, as rodas trambolhos, não luzem arreios nas lombeiras dos bois
nem os homens apuram librés nos encontros, é uma tropa-fandanga que não irá aos triunfais cortejos nem
seria admitida na procissão do Corpus Christi. Uma coisa é transportar a pedra para a varanda donde o
patriarca, daqui por uns anos, nos há-de abençoar a todos, outra e melhor seria sermos nós a bênção e o
abençoador, assim como semear pão e comê-lo. Daqui a Mafra, mesmo tendo el-rei mandado consertar as
calçadas, o caminho é custoso, sempre a subir e a descer, ora ladeando os vales, ora empinando-se para as
alturas, ora mergulhando a fundo, quem fez as contas aos quatrocentos bois e aos seiscentos homens, se as
errou, foi na falta, não que estejam de sobra.

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