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165 Cearam os homens e foram dormir, espalhados por estes campos, debaixo das árvores, ao abrigo dos

blocos de pedra, alvíssimos, que se tornaram fulgurantes quando a lua nasceu. Se algumas fogueiras
ardiam, era apenas para companhia dos homens. Os bois ruminavam, deixando coar o fio de baba que
devolvia à terra os sucos da terra, aquela aonde tudo volta, até as pedras com tanto trabalho alçadas, os
homens que as erguem, as alavancas que as suportam, os calços que as amparam, nem os senhores
imaginam a soma de trabalho que está neste convento. Os homens levantaram-se, enrolaram as mantas, os
boieiros foram jungir os bois, e da casa onde dormira desceu o vedor à pedreira com os seus ajudantes,
mais os olheiros, para saberem estes que ordens haveriam de dar e para quê.

Baltasar estava perto com os seus bois, viu o sangue esguichar, e num repente achou-se em Jerez de los
Caballeros, quinze anos atrás, como o tempo passa. Já não se vê sinal do sangue que ficou no chão,
passaram as rodas da carro, pisaram os pés dos homens, as patas patudas dos bois, a terra sugou e
confundiu o resto, só um calhau que foi arredado para o lado ainda conserva alguma cor. A plataforma
desceu muito devagar, amparada no declive pelos homens que prudentemente iam folgando as cordas, até
finalmente entestar com a parede de terra que os pedreiros tinham alisado. Com grandes pedras foram
calçadas as rodas todas do carro, para que não se afastasse da parede quando a laje fosse puxada de cima
dos troncos e descaísse e deslizasse sobre a plataforma.

Toda a superfície desta foi coberta de barro para reduzir o atrito da pedra contra a madeira, e enfim
começaram a ser passados os calabres, de modo a abraçarem a laje no sentido do comprimento, um de cada
lado, por fora dos troncos, outro que a cingia em toda a sua 166 largura, assim se formando seis pontas que
na dianteira do carro se juntaram e ataram a um rijo madeiro reforçado de cintas de ferro, donde nasciam
dois outros calabres, mais grossos, que eram os tirantes principais, sucessivamente acrescentados com
ramos de menor grossura, a que deviam puxar os bois. Lá no alto, o mestre da manobra vai dar a voz, um
grito que começa arrastado e depois acaba secamente como um tiro de pólvora, sem ecos, Êeeeeeüiô, se os
bois puxarem mais de um lado que do outro, estamos mal aviados, Êeeeeeüi-ô, agora saiu o grito, duzentos
bois agitaram-se, puxaram, primeiro de esticão, depois com uma força contínua, logo interrompida, porque
há os que escorregam, outros inclinam para fora ou para dentro, questão de ciência do boieiro, as cordas
roçam asperamente os costados, enfim, entre clamores, insultos, incitamentos, acertou-se a tracção por
alguns segundos e a laje avançou um palmo, trilhando debaixo de si os troncos. o carro, tumba, a aresta
rugosa mordeu os madeiros e aí se imobilizou a pedra, ter ou não ter estendido ali o barro seria o mesmo
que nada, se não aparecessem outras providências. Subiram homens à plataforma com longas e fortíssimas
alavancas, esforçadamente soergueram a pedra ainda instável, e outros homens introduziram-lhe debaixo
calços com o rasto de ferro, que puderam deslizar sobre ó barro, agora vai ser fácil, Êeeeeeüi-ô, Êeeeeeüi-
ô, Êeeeeeüi-ôô, todo o mundo puxa com entusiasmo, homens e bois, pena é que não esteja D. João V no
alto da subida, não há povo que puxe melhor que este.

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