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Eliane Cantarino Quilombos e Fronteiras - VF
Eliane Cantarino Quilombos e Fronteiras - VF
titulada (como reza o artigo 68 do ADCT). Assim, qualquer invocação ao passado, deve
corresponder a uma forma atual de existência, que pode realizar-se a partir de outros
sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social determinado.
Tal aspecto presencial, focalizado pela legislação, e o fato de o pressuposto legal
estar referido a um conjunto possível de indivíduos ou atores sociais organizados em
conformidade com sua situação atual permite conceituá-los, sob uma perspectiva
antropológica mais recente, como grupos étnicos, que existem ou persistem ao longo da
história como um “tipo organizacional” segundo processos de exclusão e inclusão que
permitem definir os limites entre os considerados de dentro e de fora (Barth, 2000: 31.).
Isso, sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que
possam ser facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente
produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou social através do
tempo.
A constituição de limites à definição de unidades étnicas proposta por Barth, não
constitui propriamente uma novidade; contudo, ela difere da proposição tradicional, que
considera uma raça = uma cultura = uma linhagem e que define uma sociedade como uma
unidade que rechaça e discrimina as outras. O que sugere, como diz igualmente Wolf
(1987), um mundo de povos separados em suas respectivas sociedades e culturas, podendo
ser isolados como se fossem uma ilha, para efeito de descrição etnográfica. Nessa
perspectiva, a questão da continuidade das unidades étnicas no tempo deixaria de ser
considerada problemática, sendo suas diferenças explicadas pela condição de isolamento e
separabilidade entre elas. Nesse sentido, poder-se-ia conceber que comunidades originárias
de quilombos mantivessem propriedades sociais e culturais herdadas, de modo
praticamente contínuo, tanto no tempo, como no espaço, e as variações, passíveis de serem
descritas a partir de situações de contato.
Tal perspectiva tem o efeito prático de produzir um tipo de conhecimento que, ao
determinar a indivíduos e grupos seu lugar no universo social, pretende revelar suas
identidades, até por eles próprios “desconhecidas”. Todavia, há algum tempo os
antropólogos têm abdicado dessa postulação, que produz uma visão explicativa sobre a
totalidade impossível de ser apreendida pelos chamados “nativos”.
A partir de Barth (1969), a persistência dos limites entre os grupos deixa de ser
colocada em termos dos conteúdos culturais que encerram e definem suas diferenças. Na
introdução ao livro “Grupos Étnicos e suas Fronteiras” (1969), o problema da
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os fatos serem percebidos a partir de uma outra dimensão que venha a incorporar o ponto
de vista dos grupos sociais que pretendem, em suas ações, a vigência do direito atribuído
pela Constituição Federal. Para tanto usaram os materiais de pesquisa etnográfica e as
reflexões antropológicas sobre etnicidade, grupos étnicos e a construção das diferenças
culturais como temas de debate nesse campo de aplicação dos direitos constitucionais.
As definições podem servir de instrumento de legitimação das posições assumidas
no campo propriamente político, mas como numa via de mão-dupla, a emergência de uma
identidade étnica “remanescente de quilombo”, referida a uma origem comum presumida
de grupos que orientam suas ações pela aplicação do preceito constitucional (artigo 68 do
ADCT), tem igualmente fomentado debates de natureza teórica e metodológica no campo
da antropologia praticada não apenas no Brasil. Da perspectiva dos antropólogos reunidos
na Associação Brasileira de Antropologia - ABA, a etnicidade refere-se aos aspectos das
relações entre grupos que consideram a si próprios como distintos. Do ponto de vista da
interação, o processo de identificação étnica se constrói de modo contrastivo, isto é, pela
“afirmação do nós diante dos outros” (Cardoso de Oliveira, 1976: 5).
Assim, a partir de Barth (1969), as diferenças culturais adquirem um elemento
étnico não como modo de vida exclusivo e tipicamente característico de um grupo, mas
quando as diferenças culturais são percebidas como importantes e socialmente relevantes
para os próprios atores sociais. No caso das chamadas comunidades negras rurais no
Brasil, tais diferenças culturais costumam ser comunicadas ainda por meio de estereótipos,
que por sua vez podem ser relacionados com racismo e discriminação. Usado
analiticamente pela antropologia, o conceito de estereótipo se refere à criação e aplicação
de noções padronizadas de distintividade cultural de um grupo e também diferenças de
poder (Eriksen, 1991: 66).
que sua ‘continuidade’ enquanto comunidades date apenas da segunda metade do século
passado” (Price, 2000: 257). Por conseguinte, mesmo nessas “comunidades de quilombo”
da fronteira amazônica, definidas como formadas por escravos fugidos de acordo com a
documentação histórica disponível, “as semelhanças principais – em tudo, da organização
religiosa à social – com outras comunidades rurais brasileiras”, são então explicadas por
uma ausência de continuidade, de longa duração, do tipo de passado quilombola vivido
pelos Saramaka do Suriname. O autor se declara ainda chocado com a falta de tradições
orais profundas, como no caso do “quilombo” Rio das Rãs (Bahia), e faz referência a uma
vasta gama de continuidades culturais com outras comunidades rurais brasileiras, o que
contrasta com os exemplos de quilombos que sustentam sua “diferença” em relação às
comunidades não quilombolas como no Suriname. Enfim, essa visão aponta para pouca
contrastividade cultural e “continuidade” no tempo das comunidades de quilombo no
Brasil.
Deste modo, no Suriname é evidente uma notável “diferença” cultural, social e
política até mesmo para o olhar mais desavisado. Desta perspectiva, poucos dos afro-
brasileiros classificados como “remanescentes de quilombos” seriam vistos como
quilombolas, como é o caso dos Saramaka, Ndyuka, Aluku do Suriname, Mooretown e
Accompong na Jamaica, Palenqueros de San Basílio da Colômbia.
Tal visão sobre a pouca contrastividade cultural e continuidade no tempo dos
quilombos no Brasil em contraposição a América Latina, pode ser relacionado ao
paradigma africano das etnias. Contudo, também no caso do continente africano os
pesquisadores têm demonstrado que a definição clássica de etnia como universos fechados,
igual à concepção historiográfica e de continuidade cultural dos quilombos, não pode se
aplicar a vários povos, como no caso dos Somba do norte de Benin. Deste modo, também
no caso africano, ao contrário de conceber as etnias como universos fechados, situados uns
ao lado dos outros (como bolas em uma mesa de bilhar), os sistemas políticos pré-coloniais
como entidades claramente separadas, as concepções religiosas como mundos bem
delimitados, novas pesquisas têm enfocado as inter-relações e os entrelaçamentos,
acentuando as relações e a fronteira enquanto matriz das formações políticas africanas. “Se
as populações anteriormente sem Estado responderam favoravelmente a imagem que os
colonizadores tinham delas é sem dúvida porque tais populações já se inscreviam em um
quadro de relações que incluem o Estado como um dos seus elementos próximo ou
distante. O denominador comum de todas essas definições de etnia na África,
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contexto. Pois não é só pela procedência comum, o uso da terra, dos recursos ambientais e
a ancianidade da ocupação de um território comum, que as comunidades negras rurais
“remanescentes de quilombo”, diferenciam-se e invocam seus direitos constitucionais. Na
chamada “região interior” deste universo social, o domínio que exercem sobre o território é
simbolizado através dos relatos sobre os dois mais famosos e reconhecidos curadores, ou
"sacacas", conforme o termo que usam, ambos do rio Erepecuru: o primeiro de nome
Balduino, viveu até os anos setenta, e o segundo, Chico Melo, que o sucedeu nesses
últimos vinte anos, também já é falecido.
Balduino é citado por seus feitos notáveis, relatos de cura, de possessão e previsões
desconcertantes sobre o futuro, como o surgimento de uma grande cidade iluminada dentro
da floresta, que é hoje Porto Trombetas, cidade industrial construída pela Mineração Rio
do Norte – MRN – empresa de extração mineral da bauxita. Tinha também o dom da
onipresença, sendo visto por eles e até pelas suas crianças nos locais mais distantes: dentro
das matas, no fundo dos rios, sentando em cima de uma sucurijú, como se fora um trono
onde passava dias sem aparecer na superfície. Dizem que ele se apresentava na Serrinha –
comunidade onde vivia, situada no início do curso do Erepecuru – e no Lago do Encantado
– localizado atrás da comunidade do Jauarí, quilômetros acima – ao mesmo tempo.
Os “sacacas” aprenderam a curar com a natureza, as ervas, que conheciam, durante
dias e dias que passavam , como que desorientados, embrenhados na floresta, e nas viagens
ao fundo dos rios. Chico Melo contou a sua mulher que foi levado ao fundo do rio, para
conhecer um hospital onde os peixes o ensinaram a prescrever remédios, sem ajuda dos
doutores brancos da cidade. Dizia para a mulher: “Maria, o outro mundo é muito bonito.
Só que a gente não pode ficar lá, só se criar guelra”. Assim, consideram que Chico Melo
aprendeu remédios para lepra, para o câncer e uma série de doenças. Era famoso também
por descobrir o paradeiro das pessoas e agir para que mudassem seus destinos e voltassem
para o convívio das famílias.
Desse modo, este “imbricado complexo de terras e direitos” (Revel, 1989: 103), é
simbolicamente construído como um território unificado sob o controle de uma população,
por meio dos seus “sacacas”. Pode-se dizer, que esse tipo de conhecimento deles do
território, dos seus bens e seres naturais, atribuídos pelos membros dos grupos
“remanescentes de quilombo”, assim como os grandes deslocamentos espaciais dos
“sacacas” (Balduíno era visto crivando os pés nas águas do rio na velocidade atual das
chamadas lanchas “voadeiras”) e sua prática itinerante, permite ao mesmo tempo a
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caboclos ou dos terreiros de minas, segundo ele de influência sobretudo africana que se
espalham pela zona rural, e são igualmente influenciados pelos pajés sacacas, originários
da zona rural, que migram e mantêm network com as cidades de Belém, Santarém e
Manaus.
A situação etnográfica da pesquisa que desenvolvo nas chamadas comunidades
negras rurais remanescentes de quilombo de Oriximiná (Pará), em tudo comparável aos
dados e argumentos do estudo citado sobre a vida religiosa de uma comunidade amazônica
(Galvão, 1976), não permite por meio da religiosidade compartilhada por esses grupos
sociais, qualquer análise antropológica que aponte as diferenças religiosas, que foram
durante a pesquisa de campo invocadas na construção do território comum e das fronteiras
étnicas dos remanescentes de quilombo dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá, como
uma característica diferencial que faz toda diferença, isto é, uma especificidade cultural
desses grupos.
África no Brasil?
Tal visão sobre a pouca contrastividade cultural e continuidade no tempo dos
quilombos no Brasil em contraposição a América Latina, pode estar referida ao paradigma
africano das etnias, como vimos, e também da herança de culturas negras originárias no
Novo Mundo, representada pelos “africanismos sobreviventes no Brasil” (Ramos, 2005:
15-16). Do ponto de vista dos estudos empreendidos por Nina Rodrigues e Roger Bastide,
a persistência das culturas africanas no Brasil, no caso das chamadas comunidades negras
rurais, tem sido contestada, inclusive no domínio religioso, pois, segundo esses autores,
“os quilombos não apresentavam qualquer elemento sócio-cultural que evocasse as
sociedades africanas, nem mesmo um eco dos seus sistemas religiosos, diferentemente do
que era observado nos cultos de possessão” (Boyer, 2002: 101). Assim, enquanto “os
membros de cultos de possessão urbanos ditos afro-brasileiros tendem a reivindicar uma
continuidade simbólica e espiritual com os sistemas religiosos africanos, os grupos de
descendentes de quilombos, (...) se afirmam como herdeiros da resistência ao sistema
escravagista” (idem: 162).
Neste artigo sob o título “Quilombolas e Evangélicos: uma incompatibilidade
identitária?”, Boyer ao se referir a etnicidade das comunidades negras rurais, constata que
as análises contemporâneas de antropólogos e historiadores brasileiros têm se mostrado
“incapazes de estabelecer as bases da especificidade sócio-cultural das populações negras
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rurais” (idem: 164). Essa questão é levantada pela autora para enfocar o domínio da
religiosidade das “comunidades negras no médio Amazonas”, como no caso de Silêncio do
Mata, no município de Óbidos, que sustenta uma ação política e constrói uma identidade
positiva de “quilombola”, informada pelo discurso militante, valendo-se da tradição
católica do culto dos santos, como São Benedito, santo negro patrono do lugar, cuja festa
em homenagem é também “designada pelo vocábulo Aiuê, evocando para alguns uma
origem africana” (idem: 170). Alguns membros dessa comunidade rompendo com a
tradição católica convertem-se ao movimento evangélico e deixam de participar das
reuniões da associação quilombola do Silêncio do Mata. De acordo com o artigo citado “a
existência de uma congregação evangélica, ao introduzir novas crenças e criar novas
fidelidades, constitui assim o tendão de Aquiles de um grupo que deve se afirmar como
comunidade negra rural, uma categoria essencial do discurso político (...) referindo-se aos
interesses coletivos a defender” (Boyer, 2002: 172-173). Deste modo, “o exemplo do
Silêncio mostra como pessoas têm recorrido a um sistema religioso exterior (dos
evangélicos) para exprimir seu desacordo com uma ação política que toma de empréstimo,
ela também, elementos de uma religião (o catolicismo) para construir sua legitimidade”
(idem: 173). Na continuação do argumento a antropóloga passa a constatar que tal
incompatibilidade, que parece no momento insuperável, não representa uma recusa dos
crentes de ser quilombolas. “Simplesmente eles não aceitam as modalidades de sua atual
definição” (idem).
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Oficialmente, o governo brasileiro tem mapeado 743 comunidades remanescentes de quilombos, segundo
dados de 2003. Atualmente dizem que são mais de duas mil. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões
de hectares, com uma população estimada em 2 milhões de pessoas, sendo que em quinze anos apenas 71
dessas áreas foram tituladas (Almeida, 2005: 17).
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Considerações Finais
Por fim, gostaríamos de sugerir que essa busca pelas diferenças que fazem toda
diferença pode estar relacionada ao próprio campo de constituição da disciplina
antropologia, herdeira de significados que precederam sua formalização, como aquele do
savage slot, temática constitutiva do próprio ocidente, segundo Trouillot (1991), que deve
ser recusada pela prática antropológica de hoje.
Assim, o destino rebelde dos Saramaka do Suriname, dos Palenques da Colômbia e
por quê não dos quilombolas no Brasil pode contribuir para a construção de uma
“antropologia do presente, uma antropologia do mundo em mudança e suas histórias
irredutíveis”, afastada de qualquer pressuposto dos quilombos como o lugar de uma “fenda
selvagem”, que termina por negar a especificidade da diversidade.
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Referências Bibliográficas