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A Importância do Cuidado1

Jorge Cândido de Assis, 16 de Agosto de 2018

Dedicado à

Eliane Amadio e

Antônio Carlos Moura

Travessuras
Oswaldo Montenegro

Eu insisto em cantar
Diferente do que ouvi
Seja como for recomeçar
Nada há, mais há de vir
Me disseram que sonhar
Era ingênuo, e daí?

Nossa geração não quer sonhar


Pois que sonhe a que há de vir
Eu preciso é te provar
Que ainda sou o mesmo menino
Que não dorme a planejar travessuras
E fez do som da tua risada um hino
Me disseram que sonhar
Era ingênuo, e daí?
Nossa geração não quer sonhar
Pois que sonhe a que há de vir
Eu preciso é te provar
Que ainda sou o mesmo menino
Que não dorme a planejar travessuras
E fez do som da tua flauta um hino
https://www.youtube.com/watch?v=dg4pbf0kcXk

Queridos Alunos e Alunas:

Os meus amigos na UNIFESP me permitem “estas travessuras” como a aula que eu dei no dia 07
de agosto. No dia 10 de agosto dei a aula sobre Estigma nos Transtornos Mentais em parceria
com a minha querida orientadora, a Ciça (Cecília Villares), o que sempre é um grande prazer que
só os velhos amigos conhecem.

Eu pensei muito para escrever um texto que agregue para vocês na formação como médicos.
Revi criteriosamente o vídeo da aula e do diálogo no final. Começarei contando um pouco sobre
a preparação da aula: em princípio eu preparei uma aula para três horas, mas quando aconteceu
precisei adequar o conteúdo para uma hora. Eu fiquei cinco dias preparando a aula, de maneira

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Vídeo da aula, link: https://www.youtube.com/watch?v=_eXNG6jP7Z8&t=1410s
Vídeo do Dialogo no final da aula: https://www.youtube.com/watch?v=bQw4GRVtAkw&t=11s
que fosse confortável transitar pelo conteúdo e dar a forma que o momento exigisse. Este tipo
de intervenção é hoje uma das minhas especialidades.

Ela é diferente da atuação de um ator, há todo um saber de uma vida que eu estruturo e
reestruturo. Uma analogia possível é com os Sistemas Complexos Adaptativos, estrutura muito
utilizada no estudo da Complexidade. Entretanto sempre é um desafio relacionar ideias e
conceitos com as próprias experiências, que sempre emergem da alma carregas de sentimentos
e afetos. Eu entendo que este é o verdadeiro exercício filosófico.

Uma forma de eu me respeitar foi acontecendo, já no nono minuto da aula, quando falei do
falecimento do meu irmão, emergiu uma situação interior ainda muito difícil. Então soube que
não conseguiria falar de todo o apoio que o meu amigo Bruno Ortiz está me dando, de forma
incondicional, pois seria desestruturante e comprometeria a aula toda. Se posso lhes dar um
conselho prático, exercitem conversar com seus amigos sobre as situações difíceis que a vida
lhes colocar, este hábito permite dar importância para o que é importante. A vida não cabe no
intelecto, por mais sofisticado que seja o seu conhecimento. Gosto de história da ciência e
muitos dos que foram considerados “gênios” pela história tiveram uma vida íntima muito
sofrida, não há reconhecimento que valha este preço.

A proposta da aula era falar para vocês sobre um outro olhar sobre o ambiente do hospital, que
só é possível pelos olhos de quem recebe cuidados em uma situação crítica. Eu conversei com a
Dr. Bianca, uma ex-aluna que estava responsável pelo meu caso no segundo dia de internação,
um sábado, para me deixar ficar do lado de fora algumas vezes no dia, no encontro das rampas.
Expliquei para ela que eu sou uma porta aberta para sentir o sofrimento das outras pessoas, e
vamos concordar o meu caso foi “um probleminha leve” para o ambiente do pronto
atendimento. Ela disse que não era assim, que as pessoas que estavam ali estavam sendo
tratadas e iam melhorar. Ela me entendeu quando lhe disse que esta visão era da escolha de
vida dela e não da minha escolha, e me deixou ficar lá fora. No dia seguinte a Enfermeira chefe
do plantão da minha enfermaria foi me levar lá fora na cadeira de rodas, e fomos conversando,
quando chegamos eu comecei mostrar para ela as flores na árvore em frente e comparar com
as flores da entrada do prédio do outro lado da rua, então ela entendeu o que eu ficava fazendo
ali fora. O prédio da frente é onde está o laboratório do meu orientador, nunca tinha olhado
para aquelas flores desta perspectiva.

Nós os Físicos somos treinados para olhar uma questão e rapidamente eleger as ferramentas
matemáticas para analisa-la. Nós Filósofos somos treinados para olhar ideais e argumentos e ao
mesmo tempo relacionar com toda a história da Filosofia. Nós Poetas temos o hábito de sentir
os sentimentos em palavras. Nós os que adoecemos somos convidados para olhar para a vida.
Percebam, as pessoas que vocês cuidam vivem em outro universo simbólico e não sabem nem
o que é uma célula, o cuidado está no olhar, no acolher, na gentileza com quem está sofrendo.
Só assim estas pessoas vão aprender a confiar em vocês e a se cuidarem. Quando eu falei com
o Dr. Antônio Carlos eu não queria saber sobre as artérias e a circulação, eu entenderia se ele
me explicasse, o que eu queria saber é se sofreria uma amputação, ele teve uma grande
sensibilidade, foi muito acolhedor ao conversar comigo e me deu esperanças.

É muito interessante olhar como cada profissional do hospital sabe intuitivamente sobre a
importância do cuidado, conhecem como as coisas funcionam e facilitam a efetividade dos
atendimentos. Vou usar o exemplo das enfermeiras e enfermeiros com os curativos da minha
ferida. Havia uma grande delicadeza nos gestos, nos toques, na percepção do que eu estava
sentindo, temperado com uma voz acolhedora. Assim como quem faz um carinho em uma
criança, ou tira uma bela melodia de um instrumento. Um outro exemplo, eu estava com muita
dor no primeiro dia de internação e pedi para o Dr. Gabriel um analgésico, ele falou para outro
médico com muita simplicidade: “Faz uma analgesia para ele”. E o outro jovem médico foi me
contando pelo corredor o que colocaria no soro tanto para a analgesia como para evitar enjoo
e explicando que ficaria sem dor por mais de seis horas. Na verdade é outra versão da mesma
atitude da Enfermagem, que eu entendo como a “gentileza do saber”. O Filósofo do século XVIII
David Hume escreve em uma importante obra: “Diz a Natureza ao homem: satisfaz a sua paixão
pela ciência, mas cuida que seja uma ciência humana, com direta relevância para a prática e
para a vida social. Seja um Filósofo, mas em meio à tua Filosofia não deixes de ser um homem”.

Desejo que vocês tenham uma formação médica onde os seus sonhos cresçam fortes e levem
vida para as pessoas que passarem pelos seus caminhos. Existem conteúdos das minhas aulas
que só ganham sentidos na lembrança de vocês ao longo do caminho futuro. Não era preciso,
mas eu trouxe para a aula grandes mestres, e o diálogo no final da aula é o resultado da boa
vontade de todos os presentes. Se a aula fosse uma melodia o tom sempre é a do afeto e da
gentileza dos encontros.

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