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Nos anos 60, Victor Truman Hobie, jovem piloto de

helicópteros de créditos firmados, desaparece em acção no


Vietname. O aparelho que pilotava despenhou-se em
chamas, sem que porém os seus restos mortais fossem
encontrados. Anos mais tarde, num arranha-céus de
Manhattan, um homem com o mesmo nome, que passou
quase toda a vida em fuga, prepara-se para organizar a
maior fraude da sua carreira. Serão o herói de guerra e o
manipulador implacável uma e a mesma pessoa?
PRÓLOGO

Hook Hobie devia toda a sua vida a um segredo de quase trinta anos. A liberdade, o
estatuto social, a riqueza, tudo. E como qualquer tipo cauteloso, estava disposto afazer
o que fosse necessário para proteger o seu segredo. Porque tinha muito a perder. Toda
a sua vida.
A sua protecção estava dependente de duas coisas: detecção e reacção. Fase um,
fase dois. Primeiro detecta-se a ameaça, depois reage-se.
A fase um consistia em duas camadas, como dois fios concêntricos a armadilharem
um engenho explosivo. O primeiro desses fios ficava a dezoito mil quilómetros de casa.
Dava o aviso prévio. Uma chamada de despertar. Dir-lhe-ia que eles estavam a
aproximar-se. O segundo fio encontrava-se oito mil quilómetros mais perto, e uma
chamada de lá informá-lo-ia de que eles estavam muito perto. Dir-lhe-ia que a fase um
terminara e a fase dois estava prestes a iniciar-se.
A fase dois era a reacção. Ele não tinha quaisquer dúvidas sobre a reacção
obrigatória. Passara quase trinta anos a matutar naquilo, mas a única resposta viável
fora sempre a mesma. Fugir. Assim que ouvisse os sons de aviso, tinha de pôr-se a
andar. Porque ninguém podia sobreviver ao que o perseguia. Nem um homem tão duro
e implacável como ele.
O filme passara-lhe pela mente um milhão de vezes. A primeira chamada havia de
surgir com cerca de um mês de antecedência em relação à segunda. Aproveitaria esse
mês para ligar as pontas soltas, fechar o estaminé, sacar o dinheiro, ajustar contas.
Depois, à segunda chamada, punha-se a milhas. De imediato. Era pôr-se ao fresco e
manter-se ao fresco.
Simplesmente, aconteceu que as duas chamadas ocorreram no mesmo dia. E que a
segunda veio antes da primeira. Hook Hobie não fugiu. Deitou às malvas trinta anos de
planeamento cuidadoso e ficou para lutar.
UM

Jack Reacher viu o tipo entrar pela porta. A bem dizer, não havia porta. O tipo
limitou-se a entrar pela abertura da fachada. O bar abria directamente para o passeio. Aí,
havia mesas e cadeiras sob uma velha videira seca que proporcionava uma sombra vaga.
Reacher supunha que tivessem alguma grade de ferro para tapar a abertura quando o bar
fechasse. Se é que fechava. Pelo menos Reacher nunca o vira fechado, e andava com uns
horários bastante radicais.
O tipo parou a menos de um metro da entrada da sala para habituar o olhar à meia-luz
após a quente brancura do sol de Key West. Estava-se em Junho, às 4 em ponto da tarde,
no ponto mais meridional dos Estados Unidos. Reacher deixou-se ficar sentado à mesa,
aguardando.
O bar era uma sala baixa construída com tábuas velhas que pareciam provenientes de
barcos naufragados. Havia tralha náutica pregada pelas paredes. Velhos objectos de latão
e globos de vidro verde. Pedaços de redes rotas. O tipo embrenhou-se mais na meia-luz e
dirigiu-se ao balcão. Devia ter uns sessenta anos, era de altura média e tinha excesso de
peso. Envergava a indumentária típica do cidadão nortenho em visita-relâmpago a um
sítio quente: calças cinzentas leves, casaco creme, fino e amarrotado, camisa branca de
colarinho aberto, meias escuras, sapatos de cidade. Nova Iorque ou Chicago, calculou
Reacher; devia passar o Verão em edifícios ou automóveis com ar condicionado.
0 tipo chegou ao balcão, enfiou a mão no bolso do casaco e extraiu uma carteira,
pequena, velha e sobrecarregada, de bom cabedal preto. O género de carteira que se
molda em torno daquilo que lhe enfiam lá dentro, Reacher viu o tipo abri-la com um
piparote, mostrá-la ao barman e perguntar qualquer coisa. O interpelado desviou o olhar
como se tivesse sido insultado. O tipo resmungou outra coisa qualquer, e o barman foi
buscar uma cerveja a uma arca frigorífica. O velhadas emborcou um bom trago.
Reacher correspondeu-lhe com um grande gole de água. O tipo em melhor forma que
alguma vez conhecera fora um soldado belga que jurava que a chave para uma boa forma
física era beber-se cinco litros de água mineral por dia. Como o belga era um tipo
pequeno e seco, com metade do seu tamanho, Reacher achava melhor aumentar o
consumo para dez litros diários. Dez garrafas grandes. Desde que chegara ao calor das
Keys entrara nesse regime, e estava a resultar. Aos trinta e oito anos, nunca se sentira
melhor. Tinha um metro e noventa e cinco e cento e dez quilos de músculo rijo. O
resultado era espectacular. Profundamente bronzeado pelo sol, ele estava na melhor
forma de toda a sua vida.
O velhote encostara-se ao balcão de lado, agarrando na cerveja, perscrutando a sala.
Reacher era o único outro circunstante, à excepção do barman. O velhote aproximou-se e
acenou com a cerveja num gesto vago de saudação. Reacher indicou com a cabeça a
cadeira à sua frente, e o tipo sentou-se pesadamente.
— Você é Jack Reacher? — perguntou do outro lado da mesa. Não era de Chicago. Tinha de
ser de Nova Iorque. — Jack Reacher?
insistiu.
Visto de perto, tinha olhinhos astutos sob um cenho proemniente. Reacher deu um gole,
fitando-o através da água da garrafa. Pousou-a.
— Não — mentiu, abanando a cabeça.
O velhote baixou ligeiramente os ombros de desapontamento e l’cz menção de se
levantar. No entanto, acabou por se recostar e acenar ao barman com a garrafa vazia de
cerveja, que logo foi substituída.
— Este calor dá cabo de mim — queixou-se.
Reacher correspondeu com um aceno de cabeça e bebeu outo gole de água.
— Conhece algum Jack Reacher por aqui? — indagou o tipo.
Reacher encolheu os ombros.
— Sabe dizer-me como ele é?
O tipo estava a emborcar um grande trago da segunda garrafa. Limpou os lábios com as
costas da mão.
— Não propriamente — confessou. — Só sei que é um tipo grandalhão. Por isso é que lhe
perguntei se era.
— Há por cá muitos tipos grandalhões — esclareceu Reacher. — E quem quer saber?
O outro sorriu e acenou com a cabeça, como que a desculpar-se pelo lapso de boas
maneiras, e apresentou-se:
— Costello, detective particular. Muito prazer.
Reacher correspondeu com novo aceno de cabeça e um soerguer da garrafa.
— Que fez o tal Reacher?
— Nada, tanto quanto sei. Só me foi pedido que o encontrasse.
— E supõe que esteja cá?
— Na semana passada, estava — revelou Costello. — Tem uma conta bancária na Virgínia
para a qual efectua transferências. Todas as semanas de há três meses para cá.
— E então?
— Então, é porque trabalha cá há três meses — concluiu Costello. — Seria de esperar que
alguém o conhecesse.
— E ninguém conhece? — indagou Reacher.
Costello abanou a cabeça.
— O máximo que consegui saber foi num barzeco de topless na Duval Street, onde uma das
raparigas me disse que está cá um tipo grandalhão há exactamente três meses e que todos
os dias às quatro horas bebe vem beber água aqui.
Caiu em silêncio, de olhos fixos em Reacher, como que a desafiá-lo. Reacher bebeu
novo gole de água e correspondeu com um encolher de ombros.
— Coincidência — declarou. — Há por cá muita população de passagem. Está sempre
gente a chegar e a partir.
— Calculo — assentiu Costello baixinho.
— Quem quer falar com ele? — interrogou Reacher.
— A minha cliente — redarguiu o interpelado. — Uma senhora chamada Mrs. Jacob.
Reacher voltou a beber água. O nome nada lhe dizia.
— Está bem, se o vir por aí, informo-o, mas não prometo nada.
— Você trabalha?
Reacher acenou com a cabeça afirmativamente e declarou:
— Escavo fundações para piscinas.
Costello ponderou a informação.
— E operador de retroescavadora?
Reacher sorriu e abanou a cabeça.
— Isso não dá para aqui — comentou. — Escavamos a braço. Os lotes são demasiado
exíguos para maquinaria. As ruas, demasiado estreitas, as árvores, demasiado baixas.
Costello assentiu de cabeça, repentinamente muito satisfeito.
— Então, não deve conhecer o tal Reacher — concluiu. — Era um importantão da Polícia
Militar. Um tipo desses não ia pôr-se para aí a fazer escavações à pazada.
Reacher bebeu um grande trago de água para dissimular a expressão.
Costello levantou-se e tirou da algibeira das calças um maço de notas amarrotadas.
Deixou uma de cinco dólares em cima da mesa e afastou-se.
— Muito gosto em conhecê-lo — despediu-se, sem olhar para trás.
Saiu pela abertura na parede para o brilho intenso da tarde. Reacher acabou a água e
ficou a vê-lo afastar-se.
Passada uma hora, Reacher descia descontraidamente a Duval Street à procura de um
sítio para jantar cedo, interrogando-se sobre a razão de ter mentido a Costello. Concluiu
que mentira por não ter motivo para não o fazer.
Era esta a característica que definia a sua vida, que o transformara naquilo que ele era.
Filho de um oficial dos Fuzileiros no activo, vivera numa interminável sucessão de bases
militares desde o dia em que a mãe saíra com ele da maternidade berlinense. Alistara-se
mais tarde no Exército como investigador da Polícia Militar, vivendo e trabalhando de
novo nessas mesmíssimas bases, até a sua unidade ser desmembrada, e ele, passado à
reserva. Regressara aos Estados Unidos e vagueara por aqui e por ali até dar à costa na
ponta meridional da nação, com as poupanças a esgotarem-se. Aceitara umas semanas de
trabalho de escavação, as semanas tinham-se
transformado em meses e ele continuava ali. Não havia qualquer razão para um detective
particular de Nova Iorque andar à sua procura. Nunca vivera em Nova Iorque. De facto,
nunca vivera em lado algum. Não tinha parentes vivos. Não devia dinheiro. Não tinha
filhos. O seu nome constava no mínimo de documentos possível. E não conhecia ninguém
chamado Jacob, nem Mrs. nem Mr. Portanto, fosse o que fosse que Costello quisesse, ele
não estava interessado.
Dois anos antes, ao sair do Exército, toda a sua vida se virara do avesso. Passara de
tubarão num tanque a zé-ninguém. De estar onde alguém o mandava estar cada minuto de
cada dia a deparar-se com mais de cinco milhões de quilómetros quadrados sem mapa.
Apreciava o anonimato. Gostava do seu secretismo. Fazia-o sentir o calor do conforto e
da segurança. Pagava tudo a dinheiro e viajava por estrada. Nunca aparecia em listas de
passageiros nem em verbetes de cartões de crédito. Não revelava a ninguém o seu nome.
Passeou durante uma hora até sair da Duval Street para um restaurante escondido num
pátio onde o conheciam de vista, tinham a sua marca de água preferida e lhe serviam um
bife a transbordar do prato.
Dois mil e quinhentos quilómetros para norte, em Nova Iorque, um presidente de
empresa desceu dois andares de elevador e dirigiu-se ao gabinete do director financeiro.
Os dois homens entraram juntos no escritório e sentaram-se lado a lado à luxuosa
secretária de pau-rosa. O computador estava ligado e aguardando uma palavra-chave. O
presidente premiu as teclas correspondentes, seguidas de enter, e o monitor apresentou
uma folha de cálculo. Era a única folha onde constava a verdade acerca da firma. Por
isso, estava protegida por código.
— Vamos conseguir? — perguntou o presidente.
Aquele fora o Dia D. D de downsizing, ou seja, reestruturação. O director de recursos
humanos da fábrica em Long Island estivera desde as 8 dessa manhã a pôr cobro ao
ganha-pão de oitenta por cento da mão-de-obra.
O director financeiro copiou grandes números para uma folha de papel. Efectuou uma
subtracção, olhou para um calendário e encolheu os ombros.
— Em teoria, sim. Na prática, não — respondeu.
— Não? — repetiu o presidente.
— É o factor tempo — esclareceu o director financeiro. — Fizemos o que devia ser feito na
fábrica, mas pagamos todos os salários até ao fim do mês que vem. Portanto, o cashflow
ainda vai demorar seis semanas a recuperar.
O presidente suspirou e acenou com a cabeça.
— Então, de quanto precisamos?
O director financeiro accionou o rato e abriu uma janela.
— Um milhão e cem mil dólares — informou. — Durante seis semanas.
— Empréstimo bancário?
— Esqueça — aconselhou o director financeiro. — Ao mais leve cheirinho de que ainda não
estamos de boa saúde, exigem o pagamento dos empréstimos correntes. Num abrir e fechar
de olhos.
O presidente tamborilou com os dedos no pau-rosa e encolheu os ombros.
— Vendo acções — sugeriu.
O director financeiro abanou a cabeça.
— Não pode — declarou pacientemente. — Se despejar acções no mercado, o preço vem por
aí abaixo. Os nossos empréstimos correntes são garantidos por acções, e se elas se
desvalorizarem ainda mais, eles liquidam-nos de imediato.
— Raios! — exclamou o presidente. — Estamos a seis semanas. Não vou perder tudo isto por
uma questão de seis semanas. Tem de haver alguma maneira de obter fundos.
O director financeiro não respondeu, mas permaneceu sentado, como se tivesse mais
alguma coisa em mente.
— O que é? — perguntou o presidente.
— Ouvi falar num esquema. Uma espécie de empréstimos de último recurso. Por seis semanas,
talvez valha a pena.
— Legal?
— Aparentemente — redarguiu o director financeiro. — Tem um ar respeitável. E um grande
escritório no World Trade Center especialista em casos destes.
O presidente deitou um olhar irado ao monitor.
— De quais?
Destes — repetiu o director financeiro. — Em que se está quase a dar a volta, mas
os bancos são demasiado conservadores para o perceber.
O presidente concordou com um aceno de cabeça.
— Muito bem — decidiu. — Vamos a isso.
A noite começou tranquila no bar de nudismo. Um serão a meio de uma semana de
Junho. Talvez uns quarenta clientes ao longo da noite, duas raparigas de serviço ao bar,
três a dançarem. Reacher observava uma mulher chamada Crystal. Era a melhor. Ganhava
muito mais do que Reacher alguma vez conseguira como major na Polícia Militar.
Gastava uma percentagem dos seus rendimentos na manutenção de um velho Porsche
preto.
O bar era uma sala de primeiro andar comprida e estreita, com passerelle e um
pequeno palco. Serpenteando em torno da passerelle e do palco, havia uma fila de
cadeiras. Com espelhos por todo o lado, a sala pulsava e pulava ao som de música alta
que abafava o rugido do ar condicionado.
Reacher estava ao balcão, suficientemente perto da porta para ser visto imediatamente,
suficientemente dentro da sala para a sua presença não ser esquecida. Porque ele estava
lá em serviço. Era segurança. Por cinquenta dólares, passava ali a noite sentado, com
aspecto duro, a beber à borla e a assegurar que as mulheres nuas não fossem molestadas.
Crystal estava mesmo a acabar o seu terceiro número quando Reacher viu dois homens
surgirem no topo da escada. Rondando os trinta anos, possantes, ameaçadores. Tipos
nortenhos, durões, de fatos completos de mil dólares e sapatos de verniz. Pararam na
recepção a regatear o consumo obrigatório de três dólares. A recepcionista relanceou um
olhar ansioso para Reacher, que deslizou do banco e se aproximou.
— Algum problema? — indagou.
Aquelas palavras, pronunciadas por um tipo com cento e dez quilos e um metro e
noventa e cinco, costumavam ser suficientes. Na maior parte dos casos, os outros
acalmavam-se logo. Com estes dois, no entanto, isso não aconteceu.
— Não há problema nenhum, Tarzan — replicou o da esquerda.
Reacher sorriu. Já lhe tinham chamado muita coisa, mas aquela
era nova.
— Três dólares por entrada. Ou então é de graça o regresso escadas abaixo.
— Só queremos falar com uma pessoa — contrapôs o da direita.
Ambos tinham pronúncia nova-iorquina. Reacher encolheu os
ombros.
— Aqui não se fala muito — redarguiu. — A música é demasiado alta.
— Como te chamas? — perguntou o da esquerda.
— Tarzan — respondeu Reacher, voltando a sorrir.
— Procuramos um tipo chamado Jack Reacher. Conhece-lo?
— Nunca ouvi falar — respondeu ele, abanando a cabeça.
— Então, temos de falar com as raparigas — insistiu o tipo. — Pode ser que o conheçam.
— Não conhecem — disse Reacher, abanando de novo a cabeça.
O da direita espreitou sobre o ombro de Reacher para a sala comprida e estreita,
concluindo que ele era o único segurança presente.
— Muito bem, Tarzan, sai da frente — ordenou. — Vamos entrar.
— Sabes ler? — ripostou Reacher. — Palavras complicadas e tudo? — Apontou para um
letreiro pendurado sobre a secretária da recepção que dizia em grandes letras
fluorescentes: a gerência reserva-se o direito de admissão. — A gerência sou eu —
explicou. — Recuso-vos a admissão. — O tipo relanceou o olhar alternadamente para o
letreiro e a cara de Reacher. — Queres que traduza? — insistiu Reacher. — Em palavras
simples? Eu é que mando e vocês não entram.
— Deixa-te de tretas, Tarzan — ripostou o outro.
Reacher deixou-o chegar junto de si, ombro a ombro, para passar. Depois, levantou a
mão e agarrou-o pelo cotovelo. Endireitou a articulação e apertou com os dedos o nervo
na base do tricípite do outro. É o mesmo que apanhar uma descarga eléctrica. O tipo pôs-
se aos saltinhos.
— Lá para baixo — pronunciou Reacher em tom cordato.
O outro tipo começou a descer a escada, e Reacher empurrou-lhe o companheiro atrás.
— Havemos de voltar a encontrar-nos — ameaçou o tipo.
— Tragam os vossos amigos — convidou Reacher. — A entrada é três dólares cada um.
Regressou para o interior da sala. A bailarina chamada Crystal postara-se mesmo atrás
dele.
— Que queriam eles? — perguntou.
— Procuravam uma pessoa — respondeu Reacher com um encolher de ombros.
— Uma pessoa chamada Reacher?
Ele confirmou com um aceno de cabeça.
— É a segunda vez hoje — prosseguiu ela. — Esteve cá antes um velhote. Queres ir atrás
dos tipos? Investigar?
Ele hesitou.
— Vai lá — incitou a dançarina. — Ficamos bem por um bocado. A noite está tranquila.
— Obrigado, Crystal — agradeceu Reacher, encaminhando-se para a escada.
— De nada, Reacher — gritou-lhe ela para as costas.
Key West às 11 da noite está no auge da animação. Duval é a rua principal,
percorrendo o comprimento da ilha de leste para oeste, banhada em luzes e algazarra. A
hipótese de os tipos o esperarem na Duval não preocupava Reacher. Havia gente a mais.
Se estivessem a considerar a vingança, escolhiam uma localização mais isolada. E não
lhes faltava por onde escolher. A povoação é minúscula. Uma curta caminhada era
suficiente para percorrer vinte quarteirões até àquilo que Reacher considerava os
subúrbios, onde escavava fundações para piscinas nos pequenos quintais traseiros das
casinhas.
Bateu as zonas mais tranquilas. Ninguém. Caminhava pelo meio da rua para que alguém
escondido num portal tivesse de percorrer quatro ou cinco metros de espaço aberto. Não
o preocupava a hipótese de ser alvejado. Os tipos não estavam armados. Tinham fatos
demasiado justos para esconderem armas. Os próprios fatos indicavam terem viajado à
pressa para o Sul. De avião. Não é fácil transportar armas dentro de aviões.
Virou à esquerda, junto do muro do cemitério, e regressou ao barulho. Estava um tipo
esparramado no passeio, encostado à vedação de arame. Não era uma visão inédita em
Key West, mas havia qualquer coisa de estranho. Era o braço do tipo. Encontrava-se
preso debaixo do corpo. Os nervos do ombro deviam protestar o suficiente para chegar
ao cérebro, por mais ébrio ou drogado que ele estivesse. Reacher deteve-se ao ver o
brilho pálido de um conhecido casaco creme. Aproximou-se. Agachou-se.
Era Costello. Tinha a cara esmurrada numa polpa informe. Coberta de sangue. Reacher
procurou a pulsação atrás da orelha. Nada. Tocou na pele com as costas da mão. Fresca.
Não havia rigor mortis, mas também estava uma noite quente. O tipo fora morto há talvez
uma hora.
Reacher vasculhou-lhe o interior do casaco. A carteira sobrecarregada desaparecera.
Depois, viu as mãos. As pontas dos dedos tinham sido cortadas. As dez. Cortes rápidos e
eficientes com algo bem afiado. Não um bisturi. A lâmina tinha de ser mais larga. Talvez
uma faca de cortar linóleo.
— A culpa foi minha — disse Reacher.
— Não foste tu que o mataste— contrapôs Crystal, abanando a cabeça, para logo erguer o
olhar com vivacidade. — Pois não?
— Fui a causa da morte dele. Há alguma diferença?
O bar fechara à 1 da manhã e estavam os dois sentados lado a lado junto do palco
vazio. As luzes tinham sido apagadas e não havia música. Não havia qualquer outro som
a não ser o zumbido do ar condicionado a sugar o fumo para o parado ar nocturno das
Keys.
— Devia ter-lhe dito — continuou Reacher. — Devia ter-me limitado a responder: claro, sou
Jack Reacher. Então, ele ter-me-ia contado o que tinha a contar, a esta hora já estava de
regresso a casa e eu podia continuar a mandar aquilo às malvas se me apetecesse. Eu
ficava na mesma e ele ainda estava vivo.
— Porque te preocupas? — insistiu Crystal. Era uma pergunta típica das Keys. Não se tratava
de insensibilidade, apenas de surpresa perante a preocupação de uma pessoa com um
forasteiro.
-y — Sinto-me responsável — redarguiu Reacher, fitando-a.
— Não, sentes-te culpado — contrariou ela. — Quem era o homem?
— Um detective particular — elucidou Reacher — que veio à minha procura.
— Porquê?
— Não faço ideia — confessou ele, abanando a cabeça.
— Os outros tipos vinham com ele?
Reacher voltou a abanar a cabeça.
— Não. Os outros tipos mataram-no.
— Mataram-no? — Ela fitou-o, espantada.
— É o que suponho — explicou Reacher. — Não estavam com ele, isso de certeza. Eram
mais novos e mais ricos. Os fatos ... Não lhes davam aspecto de subordinados dele. Em
qualquer caso, o primeiro tipo deu-me a impressão de ser um solitário. E provável que os
dois tenham recebido instruções para o seguirem, descobrirem que diabo andava a fazer. O
homem deve ter pisado uns calos lá no Norte, causado problemas a alguém. Portanto, foi
seguido até aqui. Apanharam-no, bateram-lhe até o obrigarem a confessar quem procurava.
Depois, vieram eles também à procura.
— Mataram-no para saber o teu nome?
— E o que parece — confirmou ele.
— Vais contar à Polícia?
Outra pergunta das Keys. Meter a Polícia fosse no que fosse implicava uma prolongada
discussão prévia.
— Não — decidiu ele. — Vou à procura de Mrs. Jacob. A cliente. Foi ela quem o mandou
ter comigo. Quero saber o que se passa.
— Muito bem, mas então como?
— Vou ao escritório do tipo. Talvez ele tivesse uma secretária. Pelo menos há-de lá haver
registos. Números de telefone, direcções, contratos com clientes. E provável que a tal
Mrs. Jacob seja o seu caso mais recente. Deve estar no cimo do monte.
— E onde é o escritório?
— Algures em Nova Iorque, pela pronúncia dele. Sei como se chamava. Sei que foi chui...
quase todos os detectives particulares o foram. E estava a par dos meus movimentos
bancários. Não há hipótese de se conseguir isso a não ser por um favor de um ex-colega
ainda no activo. Não deve ser difícil de encontrar.
Crystal sorriu, começando a interessar-se. Aproximou-se mais dele, encostando-lhe a
anca à coxa.
— Como sabes todas essas coisas complicadas?
— Eu próprio fui investigador — confidenciou Reacher. — Da Polícia Militar. Durante
treze anos. Era bastante bom. Não sou apenas uma carinha jeitosa.
— Nem sequer és uma carinha jeitosa — ripostou ela. — Não tenhas ilusões. Quando
começas?
— Imediatamente, acho eu. De certeza que há um voo madrugador a sair de Miami.
Ela voltou a sorrir. Desta vez, de pé atrás.
— E como vais até Miami a estas horas da noite?
Ele correspondeu ao sorriso. Confiante.
— Tu dás-me boleia.
Ela manteve o Porsche acima dos cento e sessenta durante todo o caminho para norte
até Key Largo. Era uma excelente condutora. Delicada, parca em movimentos, engatando
as mudanças com suavidade, mantendo o carro no centro da sua faixa. Quilómetro a
quilómetro, cobria o terreno à velocidade de uma avioneta.
Quando as luzes de Key Largo apareceram um pouco à frente, Crystal desacelerou,
atravessou cuidadosamente a povoação, para logo pisar de novo o acelerador e
prosseguir em grande velocidade em direcção a norte e à escura linha do horizonte. Uma
apertada curva para a esquerda, a travessia da ponte e a entrada no continente americano.
Chegaram às partidas do Aeroporto de Miami pouco antes das 5 da manhã. Ela parou
com suavidade na faixa destinada à saída de passageiros e ficou à espera sem desligar o
motor.
— Bem, obrigado pela boleia — agradeceu Reacher.
— De nada — respondeu ela com um sorriso.
Ele abriu a porta, mas permaneceu sentado, a olhar em frente.
— Pronto —acabou por dizer. — Até à próxima, acho eu.
— Não achas nada — retorquiu Crystal, abanando a cabeça. — Tipos como tu nunca
regressam. — Inclinou-se para ele, passou-lhe um braço por detrás da cabeça e beijou-lhe
a boca com força. — Adeus, Reacher — despediu-se. — Ainda bem que pelo menos
fiquei a saber o teu nome.
Ele correspondeu ao beijo com ímpeto prolongado e só depois se içou para fora do
carro. A dançarina esticou o braço e fechou a porta nas costas do passageiro. Embraiou e
arrancou. Reacher ficou a ver três meses da sua vida esvaírem-se com aquela mulher, tal
como o fumo do escape do Porsche.
Às 5 da manhã, oitenta quilómetros a norte da cidade de Nova Iorque, o presidente
estava deitado na cama, acordadíssimo, a olhar fixamente para o tecto.
Chamava-se Chester Stone. O nome do pai fora Chester Stone, assim como o do avô.
Este fundara o negócio na época remota em que a contabilidade se fazia com livros-razão
manuscritos. Fora um
relojoeiro que detectara cedo a futura atracção que o cinema viria a constituir. Recorrera
à sua habilidade com rodas dentadas e complexos mecanismos em miniatura para
elaborar um projector. Angariara um sócio que conseguia obter grandes lentes de fabrico
alemão. Juntos haviam dominado o mercado e feito fortuna. O sócio morrera novo e sem
herdeiros. O cinema florescera de costa a costa. Centenas de salas. Centenas de
projectores.
Seguira-se a televisão. Cinemas a fecharem, e os que permaneciam abertos a
aproveitarem até ao fim o equipamento que possuíam. O pai, Chester Stone II, assumindo
o comando. Diversificando. Explorando a atracção do cinema caseiro. Projectores de
oito milímetros. Grandes lucros a serem contabilizados lentamente nos cartões perfurados
de um dos primeiros computadores IBM.
A seguir, o regresso dos filmes. A morte do pai e o assumir do comando pelo jovem
Chester Stone III, o aparecimento das salas múltiplas. Quatro projectores, seis, doze,
dezasseis, onde antes havia apenas um. Depois, a estereofonia. Dolby Digital. Riqueza e
êxito. Casamento. A mudança para a mansão. Os carros.
Até que surgira o vídeo. E a concorrência feroz da Alemanha, do Japão e da Coreia,
tirando-lhe de debaixo dos pés o tapete do negócio das salas múltiplas. A explosão dos
microchips sólidos, RAM, consolas de jogos. Lucros astronómicos feitos à base de
coisas que ele não fazia ideia de como fabricar. Grandes perdas a acumularem-se no
software silencioso do seu PC portátil.
A mulher mexeu-se ao seu lado. Pestanejou e virou-se para o marido. Viu-o de olhos
fixos no tecto.
— Não dormes? — perguntou baixinho.
Ele não respondeu. Ela virou-se para o outro lado. Chamava-se Marilyn. Marilyn
Stone. Era há muito casada com Chester. Tempo suficiente para saber. Sabia tudo. Como
podia não saber? Tinha olhos e cérebro. Há muito que não via os produtos fabricados
pelo marido expostos orgulhosamente nas lojas. Há muito que nenhum proprietário de
uma sala múltipla os convidava para jantar em comemoração de uma grande encomenda.
E há muito que Chester não dormia uma noite inteira. Portanto, ela sabia.
Contudo, não estava preocupada. Prometera fidelidade na riqueza e na pobreza, e
fizera-o com consciência. Não que alguma vez viessem a ser pobres, como há quem seja.
Vendendo a casa, acaban-
do com o negócio, ainda ficavam com mais conforto do que ela alguma vez esperara.
Ainda eram novos. Tinham-se um ao outro. Correria tudo bem. Marilyn Stone voltou a
adormecer, enquanto o marido permanecia imóvel a seu lado a olhar para o tecto.
Reacher parou à entrada do terminal para consultar um monitor. Nova Iorque estava no
topo da lista, tal como esperava. O primeiro voo do dia era da Delta para La Guardia,
passando por Atlanta, dentro de meia hora. Dirigiu-se ao balcão da Delta e comprou
bilhete.
— O seu nome? — perguntou a hospedeira de terra.
— Truman — respondeu Reacher. — Como o presidente.
A jovem pareceu não entender. Truman para ela era pré-história. Premiu as teclas da
consola e o nome apareceu no bilhete saído da impressora.
— Porta B6 — informou. — Dei-lhe um lugar à janela.
— Obrigado — agradeceu Reacher.
Encaminhou-se para a porta, e um quarto de hora depois acelerava pela pista com uma
sensação muito semelhante à de estar de regresso ao Porsche de Crystal, só que desta vez
o lugar ao seu lado estava vazio.
Chester Stone barbeou-se e passou o tempo no chuveiro a matutar sobre o que havia de
vestir e em como se comportar. A verdade é que ia abordar aquele tipo praticamente de
joelhos. Um empréstimo de último recurso. A sua última esperança. Alguém que tinha
todo o seu futuro na mão. Como abordar um tipo assim? De joelhos, não. Se se aparenta
precisar de um empréstimo, este é negado. Só é concedido se parecer que não se precisa
dele. Como se se estivesse hesitante quanto a deixar o outro entrar no negócio e partilhar
um pouco dos lucros que espreitam logo ao virar da esquina.
Camisa branca, claro, e uma gravata discreta. No entanto, que fato? Tinha de ter um ar
sério, de quem dispõe de dinheiro suficiente para comprar uma dúzia de Armanis, mas é
de algum modo demasiado sério para o fazer. Demasiado preocupado com assuntos
graves para sequer considerar ir às compras à Madison Avenue. Decidiu que a tradição
era a característica a promover. Tradição de três gerações de êxito nos negócios. Tirou
do armário o fato cinzento de um alfaiate de Savile Row, em Londres. Perfeito. Fazia-o
parecer de
confiança. Escolheu uma gravata com um padrão esbatido e um par de bons sapatos
pretos. Virou-se para a esquerda e para a direita em frente do espelho. Não podia fazer
melhor. Com aquele aspecto, quase confiava em si próprio. Acabou o pequeno-almoço,
saiu para a garagem e às 6.45 estava na auto-estrada.
O World Trade Center é a sexta maior cidade do estado de Nova Iorque. Não chega a
ocupar sete hectares, mas alberga uma população diurna de 130 000 almas. Chester Stone
consultou o relógio e entrou. Apanhou um elevador para o octogésimo oitavo andar e saiu
para um corredor silencioso e deserto. Descobriu a porta certa, espreitou por um óculo de
vidro e tocou à campainha. A tranca foi accionada por um impulso eléctrico, e ele entrou
na recepção. Havia um balcão de latão e carvalho com um recepcionista sentado. Chester
parou, endireitou as costas e retomou o andamento até junto dele.
— Chester Stone — identificou-se em tom firme. — Tenho entrevista marcada para as nove
horas com Mr. Hobie.
Para sua surpresa, foi mandado entrar de imediato. Contara ter de ficar um bocado à
espera na recepção. Seria o que ele próprio teria feito. Se uma pessoa desesperada lhe
fosse pedir um empréstimo de último recurso, fazia-a suar numa espera de pelo menos
vinte minutos.
O escritório interior era vasto e escuro. Uma parede era inteiramente constituída por
janelas, que todavia se encontravam tapadas por estores verticais, apenas parcialmente
abertos. Havia uma secretária grande. Em frente desta, três sofás completavam um
quadrilátero. Havia mesinhas com candeeiros dos dois lados de cada sofá. Uma enorme
mesa de café de latão e vidro ocupava o espaço do meio. Tudo aquilo parecia uma
exposição de móveis de sala numa montra.
Estava um homem sentado à secretária. Stone passou de lado entre os sofás e deu a
volta à mesa de café. Aproximou-se da secretária. Estendeu a mão direita.
— Mr. Hobie? Chester Stone.
O homem à secretária sofrera queimaduras. Tinha tecido cicatricial róseo em todo um
lado da cara. A pele era escamosa como a de um réptil. Não tinha cabelo na parte que
subia até ao couro cabeludo. A face não queimada tinha a pele lisa, embora já um pouco
enrugada, e o cabelo era grisalho. O tipo aparentava entre cinquenta e cinquenta e cinco
anos. Estava ali sentado, com a cadeira quase en-
fiada na abertura da secretária e as mãos no colo. Stone permanecia de pé, recorrendo a
toda a sua força de vontade para não desviar o olhar, com a mão estendida por cima da
secretária.
Parecia idiota manter-se assim de pé, contudo ainda seria pior se retirasse a mão.
Portanto, continuou com ela estendida, à espera. Até que o homem se mexeu. Usou a mão
esquerda para afastar a cadeira da secretária. Levantou a direita ao encontro da de Stone.
No entanto, não era uma mão. Era um gancho em forma de J de aço inoxidável brilhante.
Stone quase o apertava, mas ainda foi a tempo de recuar a sua própria mão e a
imobilizar. O homem esboçou um sorriso generoso com a metade móvel do rosto. Como
se aquilo não o incomodasse nem um bocadinho.
— Chamam-me Hook Hobie — esclareceu.
Stone engoliu em seco e procurou recobrar a compostura.
— Sente-se — convidou Hook Hobie.
Chester ocupou a extremidade do sofá. O anfitrião fitou-o e pousou o braço sobre o
tampo da secretária. O gancho bateu na madeira com um som metálico.
— Pretende um empréstimo — começou Hobie.
Stone sentiu o estômago azedar e baixou os olhos para a mesa de café. Depois, assentiu
de cabeça e passou as palmas das mãos pelos joelhos, sobre as calças, tentando recordar
as falas que ensaiara.
— Preciso de colmatar uma falha — explicou. — Um milhão e cem mil dólares por seis
semanas.
— Banco? — inquiriu o outro.
— Prefiro não lhes pedir— declarou Stone. — Claro que temos um pacote de empréstimos,
mas eu consegui negociar uma taxa de jurp extraordinariamente favorável, com base na
ideia de ser tudo uma prestação fixa, por um prazo fixo. Não quero perturbar esse acordo
por uma quantia tão trivial.
Hobie mexeu o braço direito. O gancho raspou na madeira.
— Tretas, Mr. Stone — comentou em tom cordato. — Andei a investigar. De facto, o senhor
paga ao seu banco à taxa mais elevada, e a resposta deles a qualquer pedido de mais
financiamento será negativa. Todavia, está a fazer um trabalho razoável no sentido de sair
do vermelho. Está quase lá.
— Só faltam seis semanas e um milhão e cem mil dólares — esclareceu o empresário.
— Eu especializei-me em casos como o seu — explicou Hobie. — Firmas fundamentalmente
viáveis, com problemas de capital limitados e de curto prazo. Os meus juros são
razoáveis. Não sou nenhum agiota. Posso adiantar-lhe um milhão e cem mil, digamos, a
seis por cento pelas seis semanas.
Chester voltou a passar as palmas das mãos pelas coxas. Seis por cento por seis
semanas? Equivalente a uma taxa anual de quanto? Quase cinquenta e dois por cento. Não
eram bem as condições de um agiota, mas também não andavam longe. No entanto, ao
menos o tipo prontificava-se a emprestar-lhe o dinheiro.
— E relativamente à garantia? — indagou Stone.
— Fico com uma posição na firma — declarou o outro.
Stone obrigou-se a erguer a cabeça e fitá-lo.
— As acções não valem nada — confessou em tom baixo. — Só voltam a subir depois de
eu lhe ter pago, quando estiver desenrascado.
Hobie acenou com a sua cabeça horrível.
— Então, ganho nessa altura. Não estou a falar de uma transferência temporária. Eu vou
tornar-me accionista e tenciono manter-me como tal.
— Manter-se? — indagou Chester. Não conseguiu evitar que a surpresa lhe transparecesse
na voz. Juros de cinquenta e dois por cento e uma oferta de acções?
— E o que faço sempre — explicou Hobie. — E uma questão de sentimentalismo. Gosto de
deter uma pequena parte de todos os negócios que ajudo.
Stone engoliu em seco, desviando o olhar. Examinou as suas opções e acabou por
encolher os ombros.
— Está bem — concordou. — Acho razoável.
Hobie estendeu o braço esquerdo e abriu uma gaveta de onde tirou um impresso. Fê-lo
deslizar por cima da secretária.
— Preparei isto — disse.
Stone pegou no papel. Era um contrato de empréstimo: um milhão e cem mil dólares,
seis semanas, seis por cento, e um protocolo normal de transferência de acções de uma
parcela que ainda há bem pouco tempo teria valido um milhão de dólares. Pestanejou.
— Não posso fazê-lo de qualquer outro modo — garantiu Hobie.
— Não consegue melhor em sítio algum. Na realidade, não consegue nada em sítio algum.
Chester anuiu com um ligeiríssimo aceno de cabeça e enfiou a mão no bolso do casaco
para de lá tirar a grossa caneta Mont Blanc. Esticou-se para a frente e assinou nos dois
lados sobre o vidro frio e duro da mesa de café. Hobie observava-o.
— O dinheiro estará no seu banco dentro de uma hora.
— Obrigado — agradeceu Stone. Pareceu-lhe apropriado.
— Portanto, agora sou eu que estou a descoberto — comentou o interlocutor. — Seis
semanas, nada de garantias que se vejam. Não é uma sensação muito agradável.
— Não haverá problemas — sossegou-o Chester, de olhos baixos.
—Tenho a certeza de que não — corroborou o outro. Inclinou-se
para a frente e premiu o botão do intercomunicador. — O processo Stone, por favor.
Houve um momento de silêncio até a porta se abrir e o recepcionista se dirigir à
secretária com uma fina pasta verde na mão. Pousou-a em frente do patrão, que recorreu
ao gancho para empurrar a pastinha até à beira da secretária.
— Dê uma olhadela — convidou.
Chester inclinou-se para a frente e pegou-lhe. Abriu-a. Continha duas fotografias.
Grandes, de vinte por vinte e cinco, a preto e branco, brilhantes. A primeira era da sua
casa, tirada de dentro de um carro parado ao fundo do caminho de acesso. A segunda era
da mulher, Marilyn, envergando um roupão de banho, com o cabelo caído, tirada à noite
através da janela do quarto. Stone ficou de olhos fixos nesta. Para a tirar, o fotógrafo
postara-se no seu relvado das traseiras. A vista nublou-se-lhe e os ouvidos zumbiram-lhe
no silêncio. Fechou a pasta e pousou-a de novo lentamente em cima da secretária.
— São essas as minhas garantias, Mr. Stone — declarou Hobie. — Mas, tal como acaba de
me dizer, tenho a certeza de que não vai haver problemas.
Chester Stone não respondeu. Limitou-se a levantar-se e ziguezaguear por entre o
mobiliário a caminho da porta. Atravessou a recepção, percorreu o corredor e entrou no
elevador. Desceu oitenta e oito andares e regressou à rua, onde o sol matinal o atingiu na
cara como um soco.
DOIS
Os dois jovens de fatos de mil dólares amarrotados esperaram até Chester Stone se
afastar bem. Entraram então no escritório interior e postaram-se em silêncio diante da
secretária.
Hobie ergueu o olhar.
— Então? Obtiveram a informação que pedi?
— O tipo andava à procura de um tal Jack Reacher — assentiu o primeiro, acenando com a
cabeça.
— Quem é esse?
Fez-se um breve silêncio.
— Não sabemos — elucidou o segundo.
Hobie assentiu devagarinho com a cabeça.
— Quem era o cliente de Costello?
Novo silêncio.
— Também não sabemos — declarou o primeiro.
— Não se lembraram de fazer essas perguntas básicas?
— Fizemos — disse o segundo, acenando com a cabeça.
— Porém, Costello recusou-se a responder?
— Ia responder — explicou o primeiro —, mas morreu-nos na; mãos. Era velho e gordo.
Foi ataque cardíaco, acho eu.
— Perigo de sermos descobertos?
— Nenhum — garantiu o primeiro. — Não está reconhecível.
Hobie tamborilou ritmicamente no tampo da secretária com a
ponta do gancho. Matutou um pouco e voltou a fazer um aceno de cabeça, decidido.
— Muito bem, não foi culpa vossa, suponho. Se o coração era fraco, que podiam fazer?
O primeiro tipo descontraiu-se. Estavam safos, por ora.
— Precisamos de encontrar o cliente — continuou Hobie no silêncio. — Tragam-me a
secretária de Costello. — Os dois tipos permaneceram onde estavam. — O que é? —
interrogou o patrão.
— O tal Jack Reacher — começou o primeiro. — Parece que é um tipo grandalhão que vive
há três meses nas Keys. Costello disse-nos que as pessoas falavam de um tipo possante
que trabalhava
de noite num bar. Fomos ter com ele, que todavia negou ser Jack Reacher.
— E depois?
— No Aeroporto de Miami — retomou o segundo —, quisemos o avião da United por ser
directo. Mas havia um mais cedo, da Delta, via Atlanta. Vimos o matulão do bar a
caminho da porta de embarque.
Hobie recomeçou a tamborilar com o gancho na secretária, perdido nos seus
pensamentos.
— Muito bem, ele é Reacher — concluiu. — Tem de ser, não é? Costello a fazer perguntas,
depois vocês no mesmo dia, ele assusta-se, põe-se a mexer. Mas porquê? Quem será ele?
— Pensou por um instante e respondeu à sua própria pergunta: — A secretária vai dizer-
me quem é o cliente, certo? — Sorriu. — E o cliente informa-me sobre esse Reacher.
Os dois tipos de fatos caros acenaram com a cabeça, serpentearam por entre as peças
de mobília e saíram do escritório.
Reacher dirigia-se à Biblioteca Pública, na esquina da Rua 42 com a 5.a Avenida,
procurando avaliar as dimensões da tarefa que empreendera. Estava convicto de se
encontrar na cidade certa. A pronúncia dos três era óbvia. Mas era preciso triar uma
população vastíssima. Sete milhões e meio de pessoas espalhadas pelas cinco
circunscrições, e talvez uns dezoito milhões em toda a área metropolitana. Presumia
instintivamente que Costello tivesse base em Manhattan, sendo porém muito possível que
Mrs. Jacob vivesse nos arredores. Uma senhora instalada nos subúrbios que precise de
um detective particular onde vai procurá-lo? De certeza que não é nos arredores do
supermercado ou do clube de vídeo. E também não é no centro comercial, junto das lojas
de roupa. Pega nas Páginas Amarelas da grande cidade mais próxima.
Na biblioteca, encontrou todas as listas telefónicas de que precisava. Muita gente de
apelido Jacob, tanto em Manhattan como nas restantes circunscrições. Reacher ateve-se
aos que se encontravam num raio de uma hora de viagem da cidade. Com o lápis, foi
fazendo tracinhos na sua agenda, e contou cento e vinte e nove candidatas à desejada Mrs.
Jacob.
Teve, todavia, sorte com Costello. Encontrou uma Costello Investigations na
Greenwich Avenue, na Village.
A pessoa seguinte a entrar no escritório de Hobie foi o recepcionista, que trancou a
porta atrás de si. Sentou-se na extremidade do sofá mais perto da secretária e olhou
fixamente para Hobie.
— O que é? — indagou o patrão, embora soubesse muito bem o que era.
— Devia pôr-se a mexer — redarguiu o recepcionista. — Já está a ficar arriscado.
Hobie não respondeu. Limitou-se a segurar o gancho na mão esquerda, passando os
dedos que lhe restavam pela malévola curva metálica.
— Tivemos notícias do Havai, certo? — continuou o empregado. — O seu plano era
desaparecer assim que tivesse notícias do Havai.
— Costello não chegou a ir lá — contrapôs Hobie. — Verificámos isso.
— O que só piora as coisas. Foi outra pessoa ao Havai. Alguém que desconhecemos.
— Rotina — ripostou o patrão. — Teve de ser. Pensa bem: não há qualquer razão para
alguém ir ao Havai enquanto não tivermos notícias do outro lado. É uma sequência,
sabes isso perfeitamente. Temos notícias do outro lado, depois do Havai, fase um, fase
dois, e nessa altura é que tenho de me pirar. Antes, não.
O recepcionista inclinou a cabeça para trás e pôs os olhos no tecto.
— Porque está a fazer isto?
O outro abriu a gaveta e extraiu o processo Stone. Retirou dele o contrato assinado e
inclinou-o para a luz fraca que entrava pela janela.
— Seis semanas — declarou. — Talvez menos. É tudo o que falta para o maior golpe da
minha vida. Stone acaba de me entregar toda a sua empresa. Tudo de bandeja. Sabes
qual é o património dele? Uma grande fábrica em Long Island e uma enorme mansão em
Pound Ridge. Quinhentas casas todas apinhadas em redor da fábrica. Deve ter mais de
mil e duzentos hectares ao todo, tudo bom terreno para construção, no litoral, mesmo a
pedir uma urbanização.
— As casas não são dele — contrariou o outro.
Hobie concordou com um aceno de cabeça.
— Não, está quase tudo hipotecado a um banco de Brooklyn. No entanto, pensa só. Imagina-
me a pôr estas acções no mercado.
— Não valem um chavo — argumentou o recepcionista. — Ter isso ou nada é a mesma
coisa.
— Exacto. Não valem um chavo. Mas os banqueiros dele não sabem. Ele tem andado a
mentir-lhes. Tem escondido os problemas dos credores. Que outra razão teria para vir
ter comigo? Portanto, eu vou pôr-lhes debaixo dos olhos até que ponto as garantias deles
são nulas. E depois?
— Entram em pânico — concluiu o funcionário.
— Nem mais — concordou Hobie. — Entram em pânico. Até aparecer Hook Hobie a
oferecer-se para lhes comprar a dívida de Stone a vinte cêntimos por dólar.
— E quanto às casas?
— A mesma coisa. Eu tenho as acções, tenho a tal fábrica. Fecho a fábrica. Acabam-se não
sei quantos empregos, ficam quinhentas hipotecas por pagar. Isso vai dar um abalo ao
banco de Brooklyn. Compro as hipoteqas a dez cêntimos por dólar, executo-as e ponho
tudo no olho da rua. Contrato uns bulldozers e fico com mil e duzentos hectares de
terrenos de primeira para construção em Long Island. Mais um casarão em Pound Ridge.
Custo total para mim: algures à volta de oito milhões e cem mil dólares. Só a casa vale
uns dois milhões. Resultado: por um empate de seis milhões e cem mil, obtenho um
pacote com o qual posso ganhar cem milhões no mercado.
O recepcionista abanava a cabeça.
— Não vai resultar — comentou. — É uma velha empresa familiar. Stone ainda detém a
maioria das acções. O banco só detém uma parte. Para si, resta apenas o papel de sócio
minoritário. Ele não vai permitir-lhe fazer tudo isso.
— Vai acabar por me vender tudo — assegurou Hobie, abanando por sua vez a cabeça.
Reacher deparou com uma pequena placa de latão mesmo a meio da Greenwich
Avenue, do lado sul, afixada numa ombreira de pedra. A placa era uma de muitas e
situava a costello na Suite 5. A porta estava aberta. Lá dentro, havia um pequeno átrio
com um painel a indicar que o edifício estava subdividido em dez pequenas suites de
escritórios. Ao fundo, encontrava-se uma porta de vidro trancada. Reacher tocou a
campainha para a Suite 5. Não obteve resposta. Carregou no 6. Pelo intercomunicador,
fez-se ouvir uma voz distorcida:
— Quem é?
— Correio expresso — respondeu ele, e a porta de vidro foi aberta com um estalido.
Reacher subiu a escada e encontrou a Suite 5 bem nas traseiras do prédio, com a porta
encafuada por baixo do vão da escada quando esta virava para o andar de cima.
A porta de mogno estava entreaberta. Reacher empurrou-a com a ponta do pé, e ela
girou nas dobradiças, revelando uma pequena área de recepção. Uma secretária em forma
de L com um telefone complicado e um computador moderno. Um móvel de arquivo e um
sofá. Havia outra porta em frente que dava directamente para um gabinete.
Reacher dirigiu-se para essa porta. Embrulhou a mão na fralda da camisa e rodou a
maçaneta. Entrou numa segunda sala de dimensões semelhantes. O gabinete de Costello.
Numa parede à direita da secretária estavam fotografias emolduradas de uma versão mais
jovem e magra do homem que conhecera nas Keys, na companhia de comissários da
Polícia e de políticos locais que Reacher não reconheceu. Atrás da secretária, havia uma
cadeira de cabedal com o estofo marcado pelo peso de um homem gordo. Em frente, duas
cadeiras para clientes bem arrumadas.
Reacher regressou ao gabinete exterior. Havia no ar um cheiro a perfume. Contornou a
secretária e deparou com uma mala de senhora arrumadinha num espaço à esquerda da
cadeira. A aba estava levantada, revelando uma carteira de pelica e um pacote de lenços
de papel. Pegou na sua própria lapiseira e recorreu à borracha para afastar os lenços. Por
baixo destes, encontrou um monte de cosméticos, um molho de chaves e o suave aroma de
uma água-de-colónia cara.
O monitor do computador ostentava um Screensaver às ondas. Reacher usou a
lapiseira para accionar o rato. O monitor iluminou-se, revelando uma carta meio escrita.
A data daquele dia aparecia logo abaixo do cabeçalho. Reacher recordou o corpo de
Costello esparramado no passeio em Key West, relanceou o olhar pela mala da mulher
ausente, a porta aberta e a carta por acabar e sentiu um arrepio.
Utilizou a seguir a lapiseira para sair do processador de texto. Abriu o menu e
consultou a lista de ficheiros. Procurava uma factura. Era nítido pelo aspecto do
escritório que Costello geria um negócio eficiente. Com eficiência suficiente para facturar
um adiantamento antes de partir em busca de Jack Reacher. Porém, quando te-
ria sido iniciada essa busca? Devia ter começado com as instruções de Mrs. Jacob: nada
mais que o seu nome, uma descrição vaga da sua estatura, o facto de ter estado no
Exército. Costello teria então ligado para os registos centrais do Exército, um complexo
muito bem guardado em St. Louis que contém todos e quaisquer papéis referentes a todos
os homens e mulheres que alguma vez envergaram um uniforme. Após uma investigação
paciente, teria descoberto a sua passagem à reserva. Depois, uma pausa intrigada perante
um beco sem saída. A seguir, o tiro no escuro relativamente à conta bancária. Uma
chamada a um antigo colega, pedido de retribuição de favores, um puxar de cordelinhos.
Talvez um extracto de conta meio ilegível enviado da Virgínia por fax. Finalmente, um
voo apressado para sul, investigações pela Duval Street, os dois tipos, a cena de
pancadaria, a faca de cortar linóleo.
Uma sequência razoavelmente curta, embora St. Louis e a Virgínia devessem ter
constituído demoras consideráveis. Reacher calculou que obter informações fidedignas
dos registos centrais deveria exigir uns três dias, eventualmente quatro. Possivelmente, o
banco da Virgínia não teria sido mais rápido. Considerando um total de sete dias de
atrasos burocráticos, separados por um dia de ponderação, mais um dia ao princípio e
outro ao fim, dava um total de dez dias desde que Mrs. Jacob pusera tudo aquilo em
movimento.
Clicou numa pasta chamada facturas. No lado direito do monitor apareceu uma longa
lista de ficheiros. Não havia Jacob nos Js. Eram quase só iniciais, grandes siglas que
talvez correspondessem a sociedades de advogados. Verificou as datas. Nada de há dez
dias exactos. No entanto, encontrou um com nove dias rotulado SGR&T-09. Clicou aí, e
no monitor apareceu um adiantamento de mil dólares para procurar uma pessoa
desaparecida, pago por uma firma da Wall Street denominada Spencer Gutman Ricker &
Talbot.
Saiu do menu e entrou na base de dados. Voltou a procurar SGR&T e surgiu uma
página com o mesmo nome, mas desta vez com números de telefone, fax, telex e correio
electrónico. Inclinou-se para baixo e tirou dois lenços de papel do pacote da secretária.
Enrolou um em torno do auscultador e abriu o outro sobre as teclas. Ligou o número
premindo por cima dele.
— Spencer Gutman. Em que podemos ser-lhe úteis? — atendeu uma voz animada.
— Mrs. Jacob, por favor — pediu Reacher num tom de quem está muito ocupado.
— Só um momento — pediu a voz. Ouviu-se música para entreter, a que se seguiu uma voz
de homem que soava apressada, embora deferente. Talvez fosse secretário.
— Mrs. Jacob, por favor — repetiu Reacher.
O tipo pareceu incomodado.
— Já partiu para Garrison, e lamento não poder dizer-lhe quando regressará ao escritório.
— Tem a morada dela em Garrison?
— Dela? — surpreendeu-se o interlocutor. — Ou dele?
Reacher fez uma pausa e arriscou:
— Dele, quero eu dizer. Creio que o perdi.
— Pois — redarguiu a voz. — Acho que houve um erro de impressão. Hoje já tive de dar o
endereço certo a umas cinquenta pessoas no mínimo. — Recitou-o, aparentemente de
cor. Garrison, estado de Nova Iorque, uma terreola à beira do rio Hudson, cem
quilómetros a montante. — Acho que tem de se apressar — concluiu.
— Sim, com certeza — respondeu Reacher, e desligou, confuso.
Fechou a base de dados e deixou o monitor vazio. Deitou um último olhar à mala
abandonada da secretária desaparecida e voltou a sentir laivos do seu perfume ao sair da
sala.
A secretária morrera cinco minutos depois de ter revelado a identidade de Mrs. Jacob,
o que acontecera cinco minutos depois de Hobie ter começado a trabalhá-la com o
gancho. Encontravam-se na grande casa de banho para executivos incluída na suite de
escritórios do octogésimo oitavo andar. Brilhantes ladrilhos de granito cinzento cobriam
as seis superfícies: paredes, chão e tecto. Tinha um duche com uma cortina de plástico
translúcido pendente de um varão de aço inoxidável. Hobie descobrira que o varão
aguentava o peso de um ser humano inconsciente pendurado pelos pulsos.
Ocasionalmente, pessoas mais pesadas do que a secretária haviam estado ali penduradas
enquanto ele as persuadia da sensatez de determinada atitude.
Agora, Hobie já se sentara à secretária e conversava com o primeiro jovem. O segundo
procedia à limpeza.
— Quero que vão a casa de Mrs. Jacob. É só subir o Hudson.
Numa terra chamada Garrison. Vou saber a direcção. Trazem-ma, entendido?
— Claro — garantiu o subordinado. — E aquela? — Indicou a casa de banho com um
movimento de cabeça.
Hobie seguiu-lhe o olhar.
— Esperem pela noite — instruiu. — Depois, levem-na para o barco e despejem-na na baía
um par de milhas ao largo.
O hábito de viver sem deixar rasto tem vantagens, mas também implica alguns
inconvenientes. A melhor maneira de chegar a Garrison depressa era alugar um
automóvel, mas um tipo que opta por dispensar cartões de crédito e nem sequer tem carta
de condução perde essa possibilidade. Portanto, Reacher ia de táxi a caminho da Grand
Central Station. Tinha quase a certeza de que partiam de lá comboios suburbanos da
Hudson Line. Se não, talvez os grandes Amtraks que seguiam para Albany e o Canadá
parassem em Garrison.
Pagou o táxi e abriu caminho por entre a multidão até ao gigantesco átrio. Ergueu o
olhar para ler o painel onde estavam assinaladas as partidas. Na hora e meia seguinte,
nenhum comboio expresso o levava até Garrison. Tinha de apanhar um que parava em
todas as estações até Croton-on-Hudson e continuar de táxi desde aí.
Fechou bem a tampa de uma embalagem de café comprada na estação e embarcou no
comboio local. Pagara cinco dólares e meio por um bilhete de ida fora das horas de
ponta, e sentou-se num banco, nervoso por excesso de cafeína, encostando a cabeça à
janela e interrogando-se sobre o seu destino e o que faria quando lá chegasse.
O grande Chevy Tahoe preto saiu com um ressalto da rampa da garagem para o dia
soalheiro e embrenhou-se no engarrafamento em redor do World Trade Center. Virou à
direita e seguiu a passo de caracol durante nove quarteirões para norte, voltou à esquerda
na Rua 23, até virar de novo para norte na 12.a Avenida, que desembocava na Auto-
Estrada Miller. O trânsito continuou compacto durante todo o caminho, passando sobre os
muitos hectares abandonados do antigo depósito de material ferroviário. A Miller
passava a Henry Hudson Parkway, que por sua vez daria acesso à Estrada 9 em Croton-
on-Hudson, e daí seguia a direito para norte até Garrison. Uma li-
nha recta, sem quaisquer desvios, mas uma boa hora após a partida os capangas de Hobie
ainda continuavam presos em Manhattan.
Reacher apeou-se do comboio em Croton setenta e um minutos depois de ter
embarcado. Correu para a fila de táxis. Estavam lá quatro, todos eles velhas carrinhas
Caprice, com imitação de madeira nos lados.
— Conhece Garrison? — perguntou Reacher ao primeiro motorista, uma mulheraça.
— Garrison? — espantou-se ela. — Saiba o senhor que são trinta e dois quilómetros. Pode
custar-lhe quarenta dólares.
— Dou-lhe cinquenta — ofereceu ele. — Mas já lá devia estar.
Sentou-se à frente, ao lado da condutora, e esta precipitou-se
para a saída do parque de estacionamento, subindo para a Estrada 9 no sentido norte.
— Sabe dizer-me a direcção? — perguntou a taxista, de olhos fixos na estrada.
Reacher recitou o que o secretário da sociedade de advogados lhe dissera.
— Dá para o rio — comentou a mulher com um aceno de cabeça.
Seguiu em velocidade de cruzeiro durante um quarto de hora,
passou por Peekskill e depois virou à esquerda, para oeste, a caminho do rio. Aí chegada,
entrou numa estrada campestre em direcção a norte. O terreno descia para a esquerda, e
Reacher avistou West Point lá à frente, a um quilómetro e meio, do outro lado do azul da
água.
— Deve ser algures por aqui — declarou a taxista. Era uma estrada municipal estreita com
toscas vedações de madeira. — Ena — fez ela, surpreendida. — Acho que deve ser
isto.
A estrada já era estreita de si, mas ali tornava-se quase intransitável devido à
comprida fila de carros estacionados na berma. Talvez quarenta automóveis, muitos dos
quais pretos ou azul-escuros. A mulher conduziu o táxi para o caminho de acesso.
Encontrava-se mais um grupo de dez ou doze veículos estacionado em frente à garagem.
Dois deles eram carros simples verdes: viaturas militares.
— E isto? — perguntou a mulher.
— Deve ser — aventou Reacher à cautela. Tirou uma nota de cinquenta dólares do seu
maço e entregou-lha. Apeou-se e ficou parado no caminho de acesso, inseguro. Ouviu o
zunido do táxi a afastar-se em marcha atrás. Voltou atrás para espreitar a caixa do
correio, que tinha um nome escrito no cimo em letrinhas de alumínio. garber. Um nome
que ele conhecia tão bem como o seu.
A casa era baixa e comprida, revestida de cedro escurecido, com portadas escuras nas
janelas e uma grande chaminé de pedra. Qualquer coisa entre uma modéstia suburbana e a
confortável casinha de campo. Estava tudo tranquilo.
Aproximou-se e ouviu conversas em surdina do outro lado da residência. Pessoas a
falarem baixo, provavelmente muitas. Deixou-se guiar pelo som e deu a volta à garagem.
Encontrou-se ao cimo de um lanço de escadas de cimento virado para ocidente, de onde
se avistava o rio Hudson, azul e ofuscante, para lá do jardim das traseiras batido pelo
sol. À frente de Reacher estendia-se um relvado plano onde se via uma multidão solene,
constituída por umas cem pessoas. Estava toda a gente de preto, excepto meia dúzia de
oficiais do Exército fardados a rigor. As conversas eram em tom baixo, sóbrio, enquanto
se equilibravam pratos de papel e copos de vinho de uma refeição volante, com a tristeza
a revelar-se no descair dos ombros.
Um funeral. Era «penetra» num funeral.
Ficou ali, desajeitado, com a roupa que envergara na véspera nas Keys: calças de
algodão desbotado, camisa amarelo-clara, amarrotada, sem meias, sapatos gastos. Todos
os presentes fizeram silêncio e voltaram-se, erguendo os olhos para ele, que se
imobilizou. Era fitado inquiridoramente. Até que uma mulher se mexeu. Entregou o prato
de papel e o copo a quem estava mais perto e avançou ao encontro dele.
Era uma jovem, talvez com trinta anos, vestida como as outras, de austero fato preto.
Estava pálida e tensa, mas era extremamente atraente. Esguia, alta, sapatos de salto. Belo
cabelo louro, comprido e liso, olhos azuis, ossos finos. Atravessou com elegância o
relvado e parou ao fundo dos degraus de cimento à espera de que ele descesse.
— Olá, Reacher — cumprimentou baixinho.
Ele fitou-a de cima. E percebeu quem era. Ocorreu-lhe num único olhar, como num
filme que salta quinze anos para diante. Uma adolescente cresceu e desabrochou numa
linda mulher ali mesmo em frente dos seus olhos, tudo numa fracção de segundo. Garber,
o
nome da caixa de correio. Leon Garber, o seu comandante de muitos anos. Recordou o
convívio com ela, o conhecimento mútuo adquirido em churrascos nas noites quentes das
Filipinas. Era uma garota magra, suficientemente mulher aos quinze anos para ser
cativante, embora suficientemente garota para ser proibida. Jodie, a filha de Garber.
Agora, crescida e encantadora.
Reacher relanceou o olhar pela multidão e desceu os degraus até ao relvado.
— Olá, Reacher — repetiu a jovem. A voz era baixa, triste, como tudo o que a rodeava.
— Olá, Jodie — correspondeu ele. Queria perguntar «quem morreu?», mas no entanto não
conseguiu lembrar-se de nenhum modo que não parecesse insensível.
Ela percebeu a atrapalhação.
— O meu pai — informou com simplicidade.
— Quando? — perguntou ele.
— Há cinco dias. Esteve doente nestes últimos meses, mas o fim foi repentino. Uma
surpresa.
O recém-chegado acenou devagar com a cabeça.
— Lamento imenso — disse. Relanceou o olhar para o rio, e a centena de caras à sua
frente transformou-se numa centena de faces de Leon Garber. Homem baixo, atarracado,
rijo. Um grande sorriso omnipresente, quer estivesse feliz, aborrecido ou em perigo.
Homem corajoso, física e mentalmente. Grande dirigente. Honesto a mais não poder,
justo, perspicaz. Mentor e apoiante de Reacher. Fizera tudo o que estivera ao seu
alcance para conseguir promovê-lo num prazo de dezoito meses, o que fizera de
Reacher o major mais novo em tempo de paz de que havia memória. — Lamento
imenso, Jodie — repetiu ele. — Nem consigo acreditar. Vi-o há menos de um ano.
Nessa altura, estava em boa forma. Adoeceu?
— Do coração — explicou a jovem. — Acabou por ser disso que morreu. Lembra-se de
como ele gostava de fingir que não tinha coração?
— Tinha o maior coração que alguma vez existiu — disse Reacher, abanando a cabeça.
— Foi o que eu descobri — assentiu ela. — Depois da morte da minha mãe, fomos os
melhores amigos do Mundo durante dez anos. Eu adorava-o.
— Também eu — confidenciou Reacher. — Como se fosse meu pai, não seu.
A jovem assentiu de cabeça e disse:
— Ele ainda estava sempre a falar de si.
Reacher desviou o olhar, entorpecido. O pai morrera, a mãe morrera, o irmão morrera.
Agora, a pessoa que para ele mais se aproximava de um familiar de substituição morrera
igualmente. Jodie pôs-se ao seu lado e enfiou o braço no dele.
— Sempre foi um tipo bem disposto. Foi melhor para ele partir depressa. Não consigo
imaginá-lo a manter essa disposição numa doença prolongada.
Reacher teve um lampejo mental do velho Garber, pleno de actividade e ímpeto, uma
enérgica bola de fogo, e compreendeu como teria sido desesperante para um homem
assim ficar inválido. Anuiu com um tristonho aceno de cabeça.
— Venha conhecer umas pessoas — convidou ela.
— Não estou vestido para isto — argumentou Reacher. — Não me sinto à vontade. É melhor
ir-me embora.
— Não tem importância — contrariou a jovem. — Acha que o meu pai se importava?
Reacher recordou Garber no seu velho caqui amachucado e boné gasto — o oficial
mais mal vestido do Exército dos EUA — e esboçou um sorriso.
— Acho que não.
Jodie acompanhou-o até ao relvado. No meio da centena de pessoas, ele reconheceu
cerca de meia dúzia. Uns cinco, de fato, eram homens com quem trabalhara, aqui e ali,
noutra vida. Deu-lhes um aperto de mão. Quando as conversas em surdina retomaram o
seu curso, Jodie continuava a segurar-lhe o braço. A mão dela era fresca ao contacto com
a sua pele.
— Ando à procura de uma pessoa. De facto, foi por isso que vim cá — confessou Reacher.
— Eu sei. Mrs. Jacob, não é?
— Está cá?
— Sou eu — informou Jodie.
— Mrs. Jacob?
— Sou, fui — assentiu Jodie Garber com um aceno de cabeça. — Divorciei-me, mas
mantenho o nome profissionalmente.
— Quem era ele?
— Advogado, como eu. Na altura, parecia boa ideia. Conhecemo-nos na faculdade, casámos
quando arranjámos emprego. Eu permaneci na Wall Street, mas ele foi para uma firma de
Washington há dois anos. Ele não tinha vocação para o casamento, portanto a relação
como que se esgotou.
Reacher fitou-a, apercebendo-se de que o perturbava o facto de ela ter sido casada.
Aos quinze anos, era uma miúda magrizela, mas já absolutamente estonteante, cheia de
autoconfiança, embora inocente e um pouco tímida ao mesmo tempo. Agora, passados
quinze anos, era uma mulher feita, bela e segura de si.
— E casado? — perguntou.
— Não — disse Reacher, abanando a cabeça.
— Mas é feliz?
— Sou sempre feliz. Sempre fui, sempre hei-de ser —respondeu
ele.
— A fazer o quê?
— Nada de especial — declarou, encolhendo os ombros. — Ultimamente, estava nas Keys
a escavar fundações de piscinas.
Ela manteve-se impávida.
— Costello encontrou-o lá? — perguntou.
«Não me encontrou para me convidar para um funeral», pensou Reacher e retorquiu:
— Temos de conversar sobre Costello. Mais logo.
— O fulano é bom, não é?
«Não o suficiente», pensou ele. Jodie afastou-se para circular por entre os presentes.
As pessoas esperavam a oportunidade de lhe darem condolências, e o zunzum das
conversas ia subindo de tom e tornava-se mais sentimental. Reacher vagueou até um
terraço onde havia comida sobre uma mesa comprida. Encheu um prato de papel com
frango frio e arroz, sentando-se depois calmamente sozinho numa cadeira de jardim.
Foi observando a multidão enquanto comia. O afecto pelo velho Leon Garber era
palpável. Jodie movimentava-se por entre as pessoas, a acenar com a cabeça, a apertar
mãos, a sorrir tristemente. Movia-se com a serenidade de alguém que amara o pai durante
toda a sua vida e que fora correspondida. Nada havia que tivesse negligenciado contar-
lhe, nada que ele tivesse por sua vez negligenciado
contar à filha. Uma pessoa vive e depois morre, e, desde que faça bem as duas coisas,
não há muito a lamentar.
Os dois tipos do Chevy Tahoe preto fizeram marcha atrás para sair da fila de carros e
de debaixo dos cabos eléctricos, a fim de o telefone do carro funcionar sem
interferências. O condutor ligou um número, e a chamada foi atendida cem quilómetros a
sul, a oitenta e oito andares de altura.
— Há problemas, chefe — explicou o condutor. — Há aqui uma espécie de velório ou funeral,
ou lá o que é. Não temos possibilidade de agarrar a tal Mrs. Jacob. Nem sequer sabemos
quem é.
O auscultador retransmitiu um resmungo de Hobie:
— E?
— O tipo do bar lá das Keys apareceu mesmo agora num táxi. Chegou uns dez minutos depois
de nós e entrou.
No auscultador, ouviu-se um ruído. Não uma resposta que se percebesse.
— Então, que fazemos? — perguntou o condutor.
— Não saiam daí — disse a voz de Hobie. — Talvez seja melhor esconderem o carro e
porem-se algures à coca. Esperarem até toda a gente se ir embora. A casa é dela, tanto
quanto sei. Talvez seja a residência familiar ou um retiro de fim-de-semana. Portanto, as
outras pessoas hão-de ir-se todas embora, e ela há-de ficar. Não me voltem para cá sem
ela, entendido?
— E o matulão?
— Se se for embora, deixem-no ir. Se não for, despachem-no. Mas tragam-me a Jacob.
Reacher subiu os degraus de cimento atrás dos dois últimos convidados. Um deles era
coronel, e o outro, tenente-general, ambos fardados a rigor. Ele já contara com aquilo. Os
soldados são sempre os últimos a sair de qualquer lado onde haja comida e bebida de
graça.
Os militares apertaram formalmente a mão a Jodie e a seguir bateram os calcanhares e
fizeram continência. Movimentos rígidos, como em parada, olhos em frente, como que a
mil metros. Entraram no último automóvel estacionado no asfalto em frente da garagem,
um dos carros verdes sem distintivo que se encontravam mais perto
da casa. Reacher ficou a ver o automóvel verde fazer inversão de marcha e dirigir-se para
a saída, e Jodie voltou a dar-lhe o braço.
— Pronto. Já está — comentou baixinho.
— Temos de conversar sobre Costello — lembrou ele enquanto o ruído da viatura verde
se desvanecia pela estrada fora até deixar de se ouvir.
— Porquê? Ele deu-lhe o recado, não deu? — indagou ela.
— Não. Encontrou-me, mas eu estava desconfiado e disse-lhe que não era Jack Reacher.
— Mas porquê? — perguntou, fitando-o, atónita.
— Por hábito, suponho — disse Reacher, abanando a cabeça. — Não ando por aí à
procura de sarilhos. Não reconheci o nome Jacob, por isso limitei-me a não ligar.
— Se calhar, devia ter usado Garber — reflectiu a jovem. — Afinal, era uma coisa do
meu pai, não minha. Mas como o contratei através do meu escritório, nem pensei nisso.
Bem, não valia a pena preocupar-se. Não era nada de especial.
— Podemos ir lá para dentro? — perguntou Reacher.
Jodie ficou de novo surpreendida.
— Porquê?
— Porque era qualquer coisa muito especial.
Os tipos viram-na levá-lo para dentro pela porta principal. A mulher puxou o guarda-
vento, e o homem segurou-o enquanto ela rodava a maçaneta e abria a porta. Entraram e a
porta fechou-se nas suas costas. Dez segundos depois, viram uma luz fraca por uma janela
muito para a esquerda. Alguma salinha ou escritório, supuseram, tão na sombra das plantas
do exterior que precisava de luz eléctrica mesmo a meio do dia. Deixaram-se ficar
agachados numa depressão húmida perto da propriedade Garber, à espera, escutando com
atenção. Não chegava até eles qualquer som.
Acabaram por se soerguer, correndo para o canto da garagem. Coseram-se com o
revestimento de cedro e foram deslizando até à frente. Atravessaram em direcção à casa.
Enfiaram as mãos nos bolsos dos casacos para puxar das 9 mm. Dirigiram-se um de cada
vez até ao alpendre da frente. Acocoraram-se encostados à casa, um de cada lado da porta
principal, de pistolas em punho. A mulher entrara por ali. Havia de voltar a sair. Era só
uma questão de tempo.
— Mataram-no?! — exclamou Jodie.
— E provavelmente à secretária também — acrescentou Reacher.
— Não acredito — disse ela. — Porquê?
Jodie levara-o por um corredor até um pequeno escritório no canto mais afastado da
casa. Uma janela pequena. Apainelamento de madeira escura e pesado mobiliário de
cabedal castanho tornavam a divisão sombria, pelo que ela acendeu um candeeiro.
— Não sei — respondeu Reacher. — Não sei nada. Nem sequer sei porque é que você o
mandou à minha procura.
— O meu pai queria falar consigo — contou Jodie. — Não chegou a dizer-me porquê. Eu
andava ocupada, tinha um julgamento, uma coisa complexa, que durou meses. Só sei que,
quando adoeceu, ele tinha consultas de cardiologia. Encontrou lá alguém e envolveu-se num
assunto qualquer. Pareceu-me que sentia uma grande obrigação. Até que mais tarde, ao
piorar, percebeu que tinha de deixar o tal assunto e começou a dizer que devia procurá-lo a
si para que desse uma olhadela, pois era a pessoa que talvez pudesse fazer alguma coisa.
Estava a ficar muito agitado, por isso prometi-lhe contratar Costello para o localizar. A
minha sociedade recorre muito a ele.
Fazia algum sentido, mas o primeiro pensamento de Reacher foi: «Porquê eu?» As
Páginas Amarelas de Manhattan estavam cheias de investigadores.
— Quem foi a pessoa que ele encontrou na consulta de cardiologia?
Jodie encolheu os ombros, desgostosa.
— Não sei. Não chegámos a falar sobre isso.
— Çostello veio cá? Discutiu o assunto directamente com ele?
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— Eu telefonei-lhe e disse-lhe que pagávamos um adiantamento através da sociedade, o que
fiz. No entanto, ele tinha de vir cá para se inteirar dos pormenores. Telefonou-me um ou
dois dias depois e contou-me que conversara com o meu pai e que tudo se resumia a
encontrá-lo a si.
— Por isso é que ele me disse que Mrs. Jacob era o cliente — comentou Reacher —, e não
Leon Garber. Portanto, eu não lhe liguei e assim provoquei-lhe a morte.
— O que aconteceu é óbvio, não? — contrapôs ela, abanando a cabeça. — O meu pai contou a
história a Çostello, que deve ter tentado
um atalho qualquer antes de ir à sua procura, perturbando inadvertidamente algum ninho
de víboras, que ficaram alerta. Mataram-no na tentativa de descobrirem quem ele
procurava e porquê. Não fazia qualquer diferença você ter-se identificado. Eles não
deixariam de ir atrás de Costello para lhe perguntar quem o tinha posto na sua peugada.
Portanto, em última análise, quem fez que o matassem fui eu.
Reacher abanou a cabeça.
— Foi Leon. Por intermédio de si.
Mais uma vez, ela abanou a cabeça.
— Foi a pessoa na clínica de cardiologia. Essa pessoa, por intermédio do meu pai, por
meu intermédio.
— Preciso de a descobrir — concluiu ele. — Se Eeon estava preocupado com qualquer
coisa, eu também estou preocupado.
Jodie exprimiu a sua concordância com um aceno de cabeça silencioso, e Reacher
retomou a palavra:
— E há a secretária. Hão-de ter-lhe perguntado quem era o cliente, e ela deve tê-los
informado. Mesmo que não tenha, os tipos descobrem de qualquer maneira. A mim,
bastaram-me trinta segundos e uma chamada telefónica. Portanto, agora hão-de vir à
sua procura. Você não pode ficar aqui. Isto é muito isolado. Tem casa na cidade?
— Claro — respondeu Jodie. — Um último andar na Lower Broadway.
— Veio de carro?
— Está na garagem — assentiu ela. — Mas ia passar cá a noite. Tenho de tratar da
papelada, fechar tudo.
— Faça isso agora — aconselhou Reacher. — O mais depressa possível, e vá-se embora.
Estou a falar a sério, Jodie. Quem quer que esta gente seja, não brinca em serviço.
A expressão de Reacher transmitia mais do que as palavras. Ela apressou-se a
corresponder com um aceno de cabeça e levantou-se.
— Então, vamos à secretária. Você pode ajudar-me.
Leon Garber cumprira quase cinquenta anos de serviço militar em diversas unidades, e
isso era evidente logo ali na sua secretária. As gavetas de cima continham canetas, lápis e
réguas, tudo em filas arrumadinhas. As gavetas inferiores, com o dobro da altura,
continham pastas de arquivo em fole. Cada pasta tinha um rótulo escrito em letra cuidada.
A filha passou os dedos e os olhos por elas, acabando por tirar todas as pastas de cada
uma das gavetas. Reacher encontrou no armário do escritório uma velha mala de cabedal,
e ambos carregaram as pastas directamente lá para dentro. Fecharam a mala com esforço.
— Vou buscar as minhas coisas — declarou ela. — Cinco minutos, está bem?
Ele apagou a luz e levou a mala para fora da divisão. Parou no corredor silencioso e
olhou em redor. A casa era agradável. Parecia evidente ter sofrido uma expansão a certa
altura da sua história. Havia um núcleo central de divisões e depois outras que davam
para o corredor em L onde ele se encontrava. Percorreu-o até à sala. As janelas davam
para o jardim e o rio, com os edifícios de West Point visíveis do ângulo da lareira. A
decoração era sóbria: sobrado neutro, paredes cremes, mobília pesada. Um televisor
antigo. Livros, quadros, fotografias. Nada a condizer. Era uma sala sem intervenção de
decoradores, cómoda, vivida.
— Muito bem, acho que estou pronta — disse Jodie, aparecendo à porta da divisão com uma
mala de viagem de cabedal. Despira o fato preto do funeral e envergava agora um par de
Levi ’s desbotadas e uma sweatshirt azul-clara que lhe captava a cor dos olhos e realçava o
mel-claro da pele. Os últimos quinze anos não lhe tinham feito mal nenhum.
Encaminharam-se para a cozinha, onde trancaram a porta que dava para o jardim.
Regressaram ao vestíbulo e abriram a porta da frente.
TRÊS
Reacher foi o primeiro a sair. Em circunstâncias normais, teria deixado
Jodie passar à frente porque a sua geração ainda albergava os últimos resquícios de boas
maneiras, mas a casa era dela, que teria de a fechar à chave. Portanto, ele foi o primeiro
a sair para o alpendre, e foi a ele que os dois tipos viram primeiro. Hobie dissera-lhes
que despachassem o matulão e levassem Mrs. Jacob. O tipo da esquerda sentiu a porta
principal abrir-se, viu que era o matulão e disparou. O da direita estava em má posição.
O guarda-vento abriu-se mesmo para cima dele. Isso em si não constituía obstáculo, mas
o caixilho da rede bateu-lhe na mão em que empunhava a arma no momento em que a
assestava, o que o fez hesitar uma fracção de segundo. Agarrou no caixilho com a mão
esquerda à frente do corpo, puxou-o para si e contornou-o, erguendo a mão direita.
Entretanto, Reacher entrara instintivamente em acção. Tinha quase trinta e nove anos e as
suas recordações de trinta e cinco desses anos eram quase só de serviço militar: do pai,
dos pais dos amigos, o seu próprio, o dos amigos. Assim, uma porção do seu cérebro
considerava absolutamente razoável transpor uma porta numa tranquila cidade-satélite de
Nova Iorque e avistar dois homens que vira pela última vez a mais de três mil
quilómetros de distância, nas Keys, agachados e a apontarem-lhe pistolas de 9 mm. Não
houve choque, medo paralisante nem pânico. Apenas a reacção instantânea a um
problema. Fez duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, usou toda a força do seu ombro
esquerdo para rodar a pesada mala para a frente e para o lado. Segundo, girou o braço
direito para trás, atingindo Jodie no peito e atirando-a de novo para dentro da casa. Ela
recuou um passo e a mala em movimento aparou a primeira bala. Reacher sentiu o
impacte transmitir-se-lhe à mão, mas não deteve o movimento. Aflorou com a mala a cara
do tipo da esquerda, o que foi suficiente para o derrubar, deixando de momento de
constituir problema. Contudo, Reacher não ficou a assistir, pois o seu olhar já recaía no
outro, que contornava o guarda-vento com a arma a uns quinze graus da posição de tiro.
Reacher aproveitou a inércia da mala em rodopio para se atirar para diante. Deixou-se
arrastar pela pega agarrada pelas pontas dos dedos em gancho, mergulhando pelo
alpendre. A arma girou e bateu-lhe de chapa no peito. Ouviu o disparo e sentiu a
explosão chamuscar-lhe a pele. A bala saída de lado passou-lhe sob o braço esquerdo
erguido e foi perder-se na garagem distante, sensivelmente ao mesmo tempo que o seu
cotovelo direito atingia o tipo na cara. Um cotovelo em movimento impulsionado por
cento e dez quilos de um corpo em mergulho causa grandes danos. Apanhou o tipo no
queixo, e a onda de choque subiu-lhe pela articulação do maxilar. Reacher percebeu pela
queda desarticulada que aquele ia ficar algum tempo sem sentidos. O guarda-vento estava
a fechar-se, impulsionado pela mola. e o tipo da esquerda afastava-se de lado sobre as
tábuas do alpendre a tentar alcançar a Beretta que lhe fugira. Jodie estava no limiar da
porta com as mãos no peito, arquejante. Jodie era o problema. Estava a quase dois
metros e meio de Reacher, e o tipo da esquerda encontrava-se entre eles. Se conseguisse
apanhar a arma e a apontasse à direita, teria Jodie na mira. Reacher empurrou o tipo
inconsciente e atirou-se para a porta. Puxou o guarda-vento e mergulhou para o interior.
Arrastou Jodie um metro para dentro do vestíbulo e bateu com a porta, que vibrou três
vezes quando o tipo disparou atrás dele, fazendo saltar lascas de madeira pelo ar.
Reacher trancou a porta e puxou Jodie na direcção da cozinha.

— Temos maneira de chegar à garagem?


— Há uma passagem interior — arfou ela.
Estava-se em Junho, por isso as portadas contra temporais estavam baixadas e a
passagem não era mais do que um corredor com persianas laterais do chão ao tecto. Ao
fundo, situava-se a porta para a garagem.
— As chaves do carro?
Ela remexeu na carteira para as tirar. Ele pegou-lhes, fechando-as na mão.
— A porta da garagem está fechada à chave?
Jodie fez que sim com a cabeça, ofegante.
— A grená. G de garagem.
Reacher destrancou a porta da cozinha, ajoelhou-se e espreitou cuidadosamente lá para
fora, com a cabeça mais abaixo do que seria de esperar. Relanceou o olhar para um lado
e para o outro. Não havia sinais do tipo à espera lá fora. Seleccionou então a chave
marcada com umã mancha de tinta grená, levantou-se e correu a toda a velocidade.
Deteve-se, enfiou a chave na fechadura, rodou-a e voltou a tirá-la. Só então empurrou a
porta e acenou a Jodie para ir ter com ele. Assim que ela se precipitou para dentro da
garagem, Reacher fechou de imediato a porta. Trancou-a e ficou à escuta; silêncio.
A garagem era um grande espaço às escuras cheio de tralha: ferramentas, corta-relva,
mangueiras e cadeiras de jardim. A porta principal era tipo estore de correr para cima à
mão. Não havia qualquer mecanismo nem abertura eléctrica. O carro de Jodie era um
Oldsmobile Bravada, novo, verde-escuro, com cromados. Estava ali aninhado no escuro,
de frente para a parede do fundo.
— Entre para trás — sussurrou Reacher. — Deite-se no chão, está bem?
Ela entrou de gatas e estendeu-se por cima do veio de transmissão. Reacher atravessou
a garagem até à porta que dava para o jardim, pegando de caminho num martelo pesado.
Abriu a porta e espreitou lá para fora. Nada se movimentou, nem houve qualquer som. Ele
saiu para o jardim e com toda a força atirou o martelo em diagonal por cima da casa para
ir cair nos arbustos que havia em frente desta. Contou até cinco para dar ao outro tipo
tempo de ouvir, reagir e correr naquela direcção de onde quer que estivesse escondido.
Reentrou então de cabeça baixa, postou-se ao lado da porta aberta do automóvel e rodou a
chave na ignição com o braço estendido. O motor pegou de imediato. Reacher foi a correr
levantar a porta da garagem, que subiu ruidosamente nas calhas metálicas. Depois, atirou-
se para o lugar do condutor, engrenou a marcha atrás e carregou no pedal. O veículo
precipitou-se para fora da garagem. Ele vislumbrou o tipo com a Beretta no relvado da
frente a virar-se para eles. Acelerou violentamente em marcha atrás até à rua, onde travou
a fundo e rodou o volante. Engrenou a primeira e arrancou numa nuvem de fumo azul dos
pneus.
Acelerou a fundo por uns cinquenta metros e logo reduziu a velocidade, detendo-se
suavemente a seguir à entrada do caminho de acesso do vizinho do lado. Meteu de novo a
marcha atrás e recuou devagar para dentro do acesso. Atrás dele, Jodie levantou-se,
fitando-o sem compreender.
— Que diabo estamos aqui afazer? — perguntou.
— A espera de que eles se vão embora.
Ela arquejou, entre a indignação e o pasmo.
— Não vamos ficar à espera. Vamos imediatamente à Polícia contar o que se passou.
— Eu não posso ir à Polícia — ripostou Reacher sem sequer se virar para ela. — Podem
desconfiar de mim relativamente a Costello.
— Não foi você quem matou Costello. É tão simples quanto isso.
— Eles podem levar um certo tempo a descobrir um candidato melhor.
Jodie ficou um instante em silêncio. Inclinou-se para a frente.
— Não quer ir à Polícia, pois não? E isso, não é? A verdade é que não quer.
Ele virou-se no lugar do condutor o suficiente para a olhar de frente. Viu os olhos de
Jodie pousarem sobre a sua camisa queimada. As partículas de pólvora tinham tatuado no
algodão a forma alongada de uma lágrima preta. Desabotoou e abriu a camisa. Uma
queimadura na pele com a forma da mesma lágrima já tinha uma bolha a formar-se,
vermelha e inflamada.
— Metem-se comigo, respondem perante mim.
— Você é absolutamente inacreditável, sabe? — disse ela, fitando-o. — É tal e qual o meu
pai. Devíamos ir à Polícia, Reacher.
No entanto, as últimas palavras foram pronunciadas sem grande convicção. Reacher
observou-a de perto. Era advogada, mas também era filha de Leon, e sabia como as
coisas funcionavam no mundo real. Jodie ficou longo tempo calada.
— Quem são aqueles tipos? — acabou por perguntar.
— Os dois que mataram Costello — informou ele.
— Então, para onde vamos? — suspirou ela.
Reacher descontraiu-se, sorrindo de seguida.
— Qual é o último sítio onde eles irão procurar-nos?
— Manhattan? — sugeriu ela, encolhendo os ombros
— A sua casa — contrariou ele. — Viram-nos fugir, não hão-de esperar que regressemos.
Seja como for, precisamos da mala. Talvez Leon tenha tomado notas.
— Você é doido, sabe? — disse Jodie, atónita, abanando a cabeça.
Nesse momento, Reacher ergueu a mão, levando um dedo aos lábios. Ouviu-se o ruído
de um motor a pegar. Talvez um grande V-8, talvez a duzentos metros de distância.
Chegou até eles o rodar de grande^ pneus num empedrado distante. Um borbulhar de
aceleração. Ate que uma forma negra passou-lhes num relâmpago pelo campo de visão.
Um grande jipe preto com jantes de alumínio. Um Chevrolet Tahoe. Dois tipos lá dentro,
de fatos escuros, um a guiar e o outro encostado para trás no assento. Reacher pôs a
cabeça de fora da janela e escutou até o som se desvanecer em silêncio na direcção da
cidade.
Chester Stone esperou no seu gabinete mais de uma hora antes de ligar lá para baixo e
pedir ao director financeiro que entrasse em contacto com o banco para se informar sobre
o estado da conta corrente. Um milhão e cem mil dólares tinham sido creditados a partir
dos escritórios nas ilhas Caymans de uma firma registada nas Baamas.
— Está lá — esclareceu o tipo das finanças. — Conseguiu, chefe.
Stone ficou agarrado ao auscultador, a pensar no que conseguira
afinal.
— Vou descer. Quero verificar os números — acabou por declarar.
— Os números estão bem — elucidou o outro. — Não se preocupe.
— Desço na mesma — insistiu Stone.
O elevador deixou-o dois andares abaixo, onde foi reunir-se ao director financeiro no
seu luxuoso gabinete. Após o código de acesso, convocou a folha de cálculo secreta. O
tipo do departamento financeiro entrou então em acção e inseriu o novo saldo. O programa
fez os cálculos e deu um encontro de contas perfeito seis semanas depois.
— Vê? Bingo — comentou.
— E os juros? — indagou Stone. — Onze mil por semana durante seis semanas é um
bocado forte. Aguentamos?
O outro garantiu que sim com um aceno de cabeça.
— Claro. Devemos setenta e três mil a dois fornecedores. Está tudo pronto a seguir. Se
perdermos as facturas, temos de lhes pedir segundas vias e libertamos esse dinheiro
durante algum tempo. — Apontou no monitor uma provisão para facturas recebidas. —
Setenta e três mil, menos onze mil por semana durante seis semanas, ainda nos deixa
sete mil livres.
Stone fitava o monitor, interrogando-se se esses sete mil chegariam para uma viagem de
Marilyn à Europa. Provavelmente, não. Pelo menos não uma viagem de seis semanas. E
isso podia chamar a atenção dela. De certeza que havia de preocupá-la. Não deixaria de
lhe perguntar a razão de a mandar embora e era suficientemente esperta para lhe arrancar a
verdade. E depois recusava-se a ir para a Europa e acabava por passar, também ela, seis
semanas sem dormir.
A mala ainda lá estava, caída no relvado. Reacher pegou nela e levou-a para junto de
Jodie, que esperava na garagem.
Deixaram o Oldsmobile do lado de fora e entraram na casa pelo mesmo caminho por
onde tinham saído. Fecharam atrás de si a porta da garagem com a chave grená e
encaminharam-se para a cozinha.
Trancaram essa porta depois de entrarem e passaram pela mala da roupa de Jodie, que
ficara abandonada no vestíbuloReacher levou a mala com os processos para a sala. Tinha
mais espaço e luz do que o escritório.
Abriu a mala e tirou as pastas para o chão. Jodie foi ter com ele, ajoelhando-se ao seu
lado no tapete, frente à montanha de documentos. Reacher sentiu o perfume dela, subtil e
intensamente feminino. A sweatshirt era bastante folgada, mas não lhe disfarçava a
figura. As Levi’s estavam apertadas com um cinto, e as pernas deixavam-nas um pouco
vazias. Ela parecia frágil, mas Reacher recordava a força dos seus braços. Esguia, mas
forte. Jodie inclinou-se para ver os processos e o cabelo caiu-lhe para a frente; ele
captou então a suave fragrância a lavado que recordava de há quinze anos.
— De que é que estamos à procura? — inquiriu Jodie.
— Suponho que, quando encontrarmos, perceberemos o que é.
Procuraram com cuidado, mas nada encontraram de significativo. O que havia de mais
recente era o testamento, selado dentro de um envelope escrito com a letra legível,
embora trémula, de alguém acabado de regressar do hospital após um primeiro ataque
cardíaco. Jodie levou-o para o vestíbulo e enfiou-o na bolsa lateral da sua mala da
roupa.
— Há contas por pagar? — perguntou de lá.
Havia uma divisória identificada com pendente. Estava vazia.
— Não vejo nada — respondeu Reacher. No compartimento designado saúde acumulavam-se os
recibos do hospital, da clínica e montes de correspondência com a seguradora. Ele folheou
tudo. — Foge, é isto que custa uma coisa destas?
Jodie regressou e debruçou-se para ver.
— É pois — confirmou. — Não tem seguro?
Ele fitou-a com estranheza, até que encolheu os ombros.
— Sinto-me bem.
— O meu pai também se sentia — comentou Jodie. — Durante sessenta e três anos e meio.
Ajoelhou-se de novo junto dele, que lhe viu os olhos ensombrarem-se. Pousou-lhe com
suavidade a mão no braço e disse:
— Foi um dia tramado, não foi?
— Incrível — assentiu ela, pestanejando. — Enterro o meu pai, sou alvejada a tiro, violo a lei
não participando tantos crimes que já
lhes perdi a conta e acabo de conluio com um doido que quer fazer justiça pelas suas
próprias mãos. Sabe o que o meu pai me teria dito?
— O quê?
Jodie contraiu os lábios e baixou o tom de voz, imitando o resmungo amigável de
Garber:
— É a vida, rapariga, é a vida.
Reacher sorriu-lhe e apertou-lhe o braço. Voltou depois a folhear a papelada médica e
decidiu-se por um cabeçalho.
— Vamos lá à procura desta clínica — propôs.
Dentro do CHEVY, decorria um debate acalorado sobre se deviam ou não regressar.
Fracasso não era uma palavra bem aceite no vocabulário de Hobie. Talvez fosse melhor
desaparecerem sem mais. Porem-se mesmo a mexer. Contudo, tinham quase a certeza de
que Hobie acabaria por encontrá-los mais cedo ou mais tarde. E isso não era uma
perspectiva atraente.
Dedicaram-se, portanto, a tentar limitar os danos. Quando se libertaram do trânsito de
regresso ao extremo meridional de Manhattan, já tinham uma história fabricada.
— Era um caso perdido — afirmou o primeiro tipo. — Estava lá um magote de soldados,
assim a modos que para prestarem honras militares. Mas estavam armados.
— Quantos? — quis Hobie saber.
— Pelo menos uma dúzia — corroborou o segundo tipo. — Talvez mesmo quinze. Devia
ser uma espécie de guarda de honra. Devem tê-la escoltado desde o cemitério e depois
foram com ela para qualquer lado.
— Não se lembraram de os seguir?
— Era impossível — explicou o primeiro tipo. — Iam muito devagar. Não podíamos
entrar assim sem mais nem menos para a cauda de um cortejo fúnebre, pois não?
— E o matulão das Keys?
— Foi-se embora muito cedo. Deixámo-lo. Estávamos de olho em Mrs. Jacob. Entretanto,
já se tornara óbvio qual era ela. Ficou por lá até que se foi embora rodeada pelo grupo
da tropa.
— E o que é que vocês fizeram a seguir?
— Fomos investigar a casa — disse o primeiro. — Estava fechada a sete chaves. Depois,
fomos à povoação e verificámos o título de
propriedade na conservatória. A casa está registada em nome de um tipo chamado Leon
Garber. Perguntámos à funcionária o que sabia, e ela limitou-se a mostrar-nos o jornal da
terra. Na página três, vinha um artigo sobre o homem. Morrera de ataque cardíaco. Era
viúvo, só deixara uma filha, Jodie, Mrs. Jacob pelo casamento, que é advogada na
sociedade Spencer Gutman Ricker & Talbot, da Wall Street.
Hobie tamborilou na secretária com a ponta aguçada do gancho.
— E quem era concretamente esse Leon Garber?
— Polícia militar — elucidou o primeiro interlocutor.
O segundo confirmou com um aceno de cabeça.
— Reformou-se com três estrelas e medalhas que nunca mais acabam, depois de ter estado na
Coreia, no Vietname, em todo o lado.
Hobie parou de tamborilar. A cor esvaiu-se-lhe da cara, deixando-lhe a pele lívida,
excepto no brilhante e róseo tecido cicatricial.
— Polícia militar — repetiu em voz baixa. Ficou longo tempo imóvel, de olhar fixo no nada,
até que levantou o gancho de cima da secretária e o rodou em frente dos olhos,
examinando-lhe lentamente as curvas e contornos. Transferiu o olhar para os dois homens
sentados nos sofás. — Sai — ordenou ao segundo.
Este olhou uma vez de soslaio para o colega, logo obedecendo e fechando a porta com
cuidado atrás de si. Hobie impeliu a cadeira para trás e levantou-se. Afastou-se da
secretária e deteve-se mesmo nas costas do primeiro tipo, que se deixou ficar sentado,
sem se atrever a mexer-se.
Tinha uma medida de colarinho de quarenta e dois, o que correspondia a um diâmetro
de pescoço de nove ou dez centímetros. O diâmetro interior da curva do gancho de Hobie
era de pouco mais de doze centímetros. Num movimento rápido, ele atirou o gancho para
a frente e prendeu a garganta do tipo. Puxou com toda a força. O outro atirou-se para
cima e para trás, tentando com os dedos aliviar a sufocante pressão do metal frio.
— O teu amigo tinha a cara toda esmurrada —murmurou-lhe Hobie junto ao ouvido. — Que
raio se passou?
O tipo arfava, gesticulando freneticamente. Hobie rodou o gancho, aliviando a pressão
na laringe do outro, mas colocando a ponta na zona macia e vulnerável por baixo da
orelha.
— Que raio se passou? — repetiu.
— Eu conto-lhe — arquejou o interpelado. — Eu conto-lhe.
Hobie manteve o gancho em posição, torcendo-o de cada vez que
o tipo hesitava, de modo que a verdadeira história não levou mais de três minutos a contar
do princípio ao fim.
— Vocês não cumpriram — comentou Hobie.
— Pois não — arfou o outro —, mas foi por culpa dele. Atrapalhou-se com o guarda-
vento. Foi um inútil.
— E tu foste o quê? Queres dizer que ele é inútil e tu és útil?
— Foi culpa dele — voltou o tipo a arfar. — Eu ainda tenho utilidade.
— Vais ter de mo provar.
— Como? — arquejou o subordinado. — Por favor, como?
— Traz-me Mrs. Jacob. E não voltes a fazer asneirada.
— Não — arfou o tipo. — Não, não voltamos, prometo.
Hobie retomou os movimentos do gancho por duas vezes ao ritmo das palavras.
— Nós, não. Só tu. Porque ainda me podes prestar um outro serviço.
— O quê? — arquejou o homem.
— Livra-te do teu inútil companheiro — murmurou Hobie.
A recepcionista da clínica de cardiologia em que Leon fora tratado convidou Reacher e
Jodie a esperarem no consultório, uma sala clara e simples com uma marquesa e o
diagrama de um coração humano na parede.
Ao fim de dez minutos, a porta abriu-se e entrou o cardiologista de Leon, não um
velhote simpático de cabelo branco e talvez de ascendência escocesa como Reacher
imaginara, mas uma mulher de cabelo escuro a meio da casa dos trinta, de bata branca e
estetoscópio ao pescoço, qual distintivo.
— Jodie — cumprimentou. — Lamento imenso o que aconteceu a Leon.
Havia laivos de ansiedade no seu tom de voz. «Receia uma acção por negligência»,
pensou Reacher. Jodie também percebeu e acenou com a cabeça num pequeno gesto
tranquilizador.
— Só vim agradece-lher. A doutora foi fantástica durante todo o processo. Ele não podia
ter sido mais bem tratado.
A Dra. McBannerman descontraiu-se. A ligeira preocupação
desvaneceu-se e ela sorriu, fitando Reacher. Este percebeu que ela aguardava uma
apresentação.
— Jack Reacher — apresentou-se. — Um velho amigo de Leon.
A médica acenou com a cabeça com lentidão, como se um enigma tivesse acabado de
ser solucionado.
— O famoso major Reacher. Ele falava muito de si.
— E falava de mais alguma coisa? — interveio Jodie. — Tive a impressão de que alguma coisa
o preocupava.
A médica virou-se para ela, intrigada, como que a pensar: «Bem, todos os meus
doentes andam preocupados com alguma coisa, como a vida e a morte.»
— Que espécie de coisa?
— Não sei ao certo — respondeu Jodie. — Talvez uma coisa em que algum dos outros doentes
o tenha envolvido.
A médica ficou calada, até que a viram recordar-se de qualquer coisa.
— Bem, ele mencionou de facto uma coisa. Contou-me que tinha uma nova missão.
— Disse o que era? Estava relacionada com algum outro doente?
— Na verdade, não sei — respondeu a médica, abanando a cabeça. — E possível que sim. As
pessoas passam muito tempo juntas na sala de espera.
— Quando é que ele se referiu a isso pela primeira vez? — indagou Reacher.
— Março? — aventou a médica. — Abril? Antes de ir ao Havai.
Jodie fitou-a, espantada.
— Ele foi ao Havai? Não sabia. Porque teria lá ido sem me dizer?
— Não sei — confessou a Dra. McBannerman.
— Quando é que ele se tomou doente externo? — inquiriu Reacher.
— No princípio de Março — informou a cardiologista.
— Muito bem — reflectiu ele. — Pode fornecer-nos uma lista dos seus outros doentes dessa
época? Março e Abril? Das pessoas com quem ele possa ter conversado?
— Não, lamento, mas não posso fazer isso — recusou a médica, abanando a cabeça. — E uma
questão de confídencialidade. — Apelou para Jodie com o olhar, médica para advogada,
mulher para mulher.
Jodie anuiu de cabeça com uma expressão compreensiva.
— Talvez possa simplesmente perguntar à sua recepcionista. Sabe como é, informar-se se
ela viu o meu pai a conversar com algum dos outros doentes lá fora. Era apenas
conversa, sem envolver questões de confidencialidade. Pelo menos na minha opinião.
A médica sabia reconhecer um impasse. Tocou no intercomunicador e chamou a
recepcionista. A empregada começou a acenar afirmativamente com a cabeça ainda a
pergunta não tinha sido formulada na totalidade.
— Sim, claro, Mr. Garber estava sempre a conversar com aquele casal de velhotes
simpáticos, a doutora sabe, o senhor que tem um aperto mitral. Mr. Garber estava a
fazer qualquer coisa para os ajudar, tenho a certeza. Fartaram-se de lhe mostrar
fotografias e documentos antigos.
— Os Hobies? — perguntou-lhe McBannerman.
— Nem mais, tornaram-se unha com carne os três: Mr. Garber e os velhotes Mr. e Mrs.
Hobie.
Hook Hobie estava sozinho no seu gabinete interior do octogésimo oitavo andar,
matutando furiosamente, mudando de ideias. Não era um tipo inflexível. Orgulhava-se
disso. Admirava a maneira como sabia modificar-se, adaptar-se, ouvindo e aprendendo.
Sentia isso como uma vantagem.
Fora para o Vietname quase no desconhecimento completo das suas capacidades.
Quase no desconhecimento completo de tudo, pois era demasiado jovem e inexperiente. O
Vietname mudara-o. Podia tê-lo destruído, como acontecera a muitos outros tipos, mesmo
profissionais batidos com anos de tropa. O Vietname abatera-se como um peso em cima
das pessoas. Algumas foram-se abaixo, outras não.
Ele não. Limitara-se a analisar a situação e adaptar-se. Escutara e aprendera. Iniciara-
se como comerciante. Toda a gente queria qualquer coisa. Era de uma facilidade absurda.
Aqui, estava um tipo que fumava, mas não bebia. Ali, estava outro que gostava de
cerveja, mas não fumava. Era só pegar nos cigarros deste e trocá-los pela cerveja do
primeiro. Servir de intermediário. Reservar uma pequena percentagem para si. Era tão
óbvio que ele nem queria acreditar que não o fizessem por si próprios.
Até que deu o grande salto, a mudança conceptual que recordava sempre com um
orgulho tremendo. Foi tudo em reacção a uns problemas que enfrentara. O primeiro fora a
dificuldade do trabalho. Encontrar coisas específicas era por vezes complicado. Arranjar
raparigas saudáveis era quase impossível. Conseguir um abastecimento regular de droga
era arriscado. Outras coisas, como armamento ou até umas botas decentes, levavam todas
muito tempo a obter. O segundo problema era a concorrência. Havia mais tipos a
entrarem em actividade. Florescia o mercado livre.
Modificar e adaptar. Ponderou bem o assunto. Passou um serão sozinho, deitado no
catre estreito, a matutar. Porque havia ele de andar à procura de coisas específicas
difíceis de encontrar? Porque não limitar-se a negociar o bem mais abertamente
disponível em todo o Vietname, os dólares americanos? Tornou-se prestamista. Alguém
queria heroína ou uma virgem de doze anos? Podia ir comprar isso com dinheiro
emprestado por Hobie a uma taxa de juro simpática. A ele bastava-lhe ficar ali como um
aranhão preguiçoso no meio da sua teia. Nada de andar a correr de um lado para o outro.
Nada de chatices.
O primeiro a faltar ao pagamento foi um tipo alto, feroz, bastante íiIrasado da tola.
Hobie sorriu. Perdoou-lhe a dívida e sugeriu que o outro podia corresponder à sua
generosidade assumindo as funções de cobrador para quem lhe seguisse as pisadas. Não
houve mais calotes.
Quando ficou queimado e perdeu o braço, Hobie já era verdadeiramente rico. O golpe
seguinte foi conseguir contrabandear a fortuna inteirinha para casa. Nem toda a gente
teria sido capaz de o fazer, f ora mais uma prova da sua grandeza. Chegara a Nova
Iorque, no lermo de uma viagem complicada, aleijado, desfigurado, e sentirase de
imediato nas suas sete quintas. Manhattan era uma selva, nada dilerente das selvas da
Indochina, portanto não havia razão para mudar de actividade. E agora estava a começar
com uma confortável reserva de capital.
Fora agiota durante anos. Construíra o seu negócio. Tivera de lula r contra os italianos
para manter o seu negócio. Subornara divisões inteiras de polícias e magistrados para
permanecer invisível. Depois, dera o seu segundo grande salto. Semelhante ao primeiro.
A reacção a um problema. O problema era simplesmente a escala louca a que
tudo se passava: tinha milhões na rua, mas tudo em tostões. Milhares de empréstimos em
separado, cem dólares aqui, cento e cinquenta acolá. Montes de papelada, montes de
chatices. Apercebera-se de repente de que menós podia ser mais. Cinco por cento de um
milhão de dólares de uma firma qualquer rendiam mais numa semana do que quinhentos
por cento de uma negociata de rua. A ideia provocara-lhe um frenesim. Congelou todos os
novos empréstimos e exerceu pressões para reaver tudo o que lhe deviam. Alugou um
escritório. De um dia para o outro, passou a emprestar a empresas.
Era um negócio estupendo. Claro que de vez em quando havia problemas, mas tinham
solução. Mudou de tácticas de dissuasão. Os novos devedores, mais civilizados, eram
vulneráveis através das famílias. Mulheres, filhas, filhos. Geralmente, bastava ameaçar.
Por vezes, era necessário passar à acção. Um negócio estupendo. E tudo à custa de uma
capacidade de adaptação permanente. E era por isso que estava ali sozinho no seu
gabinete, no octogésimo oitavo andar, imerso nos seus pensamentos e a mudar de ideias.
A oitenta quilómetros para norte, em Pound Ridge, Marilyn Stone também estava a
mudar de ideias. Era uma mulher inteligente. Sabia que Chester estava com problemas
financeiros. Não podia ser outra coisa. Não se tratava de uma paixoneta. Sabia-o. Há
sinais que os maridos deixam escapar quando têm casos amorosos, e isso não estava a
acontecer com Chester. Portanto, tinham de ser problemas financeiros.
A sua intenção começara por ser limitar-se a aguardar o dia em que ele decidiria que
tinha de confessar e lhe contasse tudo. Nessa altura, ela poderia entrar em acção e
resolver o problema sem o desespero que Chester havia de sentir por o seu ego sair
magoado.
Agora, porém, começava a mudar de ideias. Não podia esperar mais. Chester estava a
matar-se de preocupação, portanto ela tinha de avançar e fazer qualquer coisa. Era inútil
falar com o marido. O instinto dele era esconder os problemas, negar tudo, e isso só
serviria para piorar a situação. Portanto, ela tinha de avançar e agir por si.
O primeiro passo evidente era pôr a casa à venda num mediador imobiliário. Não sabia
se isso bastaria para resolver o problema, mas era óbvio que tinha de começar por aí.
Uma mulher rica como Marilyn, vivendo em Pound Ridge, tem
muitos contactos no ramo imobiliário. Um degrau abaixo dela na escala social, em que as
mulheres vivem bem sem serem ricas, muitas trabalham para mediadores imobiliários.
Fazem-no em part time, tentando dar a impressão de que é um passatempo. Assim de
repente, Marilyn lembrava-se de quatro boas amigas a quem podia telefonar. Escolheu
uma chamada Sheryl, que lhe parecia a mais capaz. Ligou o número.
— Marilyn — atendeu Sheryl. — Como vais? Em que posso ajudar-te?
Marilyn inspirou fundo.
— Talvez tenhamos de vender a casa — confessou.
— E lembraste-te de mim? Obrigada, Marilyn. Mas, se não é indiscrição, porque é que querem
vender? Vão mudar-se para fora do estado?
Marilyn voltou a inspirar fundo.
— Acho que Chester vai abrir falência, e penso que é melhor começarmos a fazer planos de
futuro.
Não houve qualquer pausa. Nem hesitação, nem embaraço.
— Parece-me muito sensato — concordou Sheryl. — A maior parte das pessoas apega-se
demasiado tempo às coisas e depois tem de vender à pressa e perde dinheiro. É melhor
enfrentar a situação e conseguir o valor certo. Estás a agir correctamente.
Marilyn soltou um suspiro e sorriu. Sentia de facto que estava a agir correctamente.
— Vou pô-la de imediato na lista — prosseguiu Sheryl. — Sugiro um preço de dois milhões
menos um dólar, com descida possível até ao milhão e novecentos mil. Deve dar para uma
venda rápida.
— Que espécie de rapidez?
— No mercado actual? — pensou Sheryl em voz alta. — Com a vossa localização? Um mês e
meio? Sim, acho que podemos praticamente garantir uma oferta nas próximas seis semanas.
A Dra. McBannerman continuava bastante relutante por causa da confidencialidade,
por conseguinte, embora desse a direcção de Mr. e Mrs. Hobie, recusou-se a acompanhá-
la do número de telefone. Jodie não via qualquer lógica nisso, mas não discutiu. Limitou-
se a apertar a mão da médica e atravessou apressadamente a zona de recepção a caminho
do carro, com Reacher atrás.
Entraram ao mesmo tempo no Oldsmobile, e ela pegou no telefone do automóvel. Ligou
para as informações. Os Hobies viviam a norte de Garrison, para lá de Brighton. Jodie
anotou o número a lápis num pedaço de papel e fez de imediato a chamada. O telefone
tocou muito tempo, até uma voz feminina acabar por atender.
— Está? — pronunciou, hesitante.
— Mrs. Hobie? — perguntou Jodie. — Chamo-me Jodie Garber, sou filha de Leon
Garber.
— Sim?
— Lamento informá-la, mas ele morreu há cinco dias.
— Sim, eu sei — assentiu a velhota tristemente. — A recepcionista da Dra. McBannerman
disse-nos ontem quando fomos à consulta. Tive muita pena. Era um homem bom.
— Obrigada — agradeceu Jodie. — Ouça, pode contar-me em que é que ele estava a
ajudar-vos?
— Bem, agora já não tem importância. Lamento, mas o seu pai era de facto a nossa última
esperança. — O fim da frase foi pronunciado com uma cadência resignada, quase
trágica, como se ela tivesse desistido de algo que há muito acalentasse.
— Talvez não — contrariou Jodie. — Talvez eu possa ajudar-vos.
— Ora, não me parece. Sabe, precisávamos de alguém relacionado com o Exército. Mas
obrigada por se oferecer.
— Tenho aqui outra pessoa — insistiu Jodie. — Está neste momento comigo. Trabalhou
com o meu pai e está disposta a ajudar-vos. — Fez-se silêncio na linha. Apenas um
ruído de estática e de respiração. A velhota devia estar a pensar. — É o major Reacher
— disse Jodie para o silêncio. — O meu pai mandou chamá-lo quando se apercebeu de
que não podia continuar.
— Mandou chamá-lo? — repetiu a senhora.
— Sim, creio que ele queria passar-lhe a pasta, sabe como é, substituí-lo.
— Não sei bem. — Caiu de novo em silêncio. Respirava perto do bocal. Depois, indagou
de repente: — Ele pode vir cá a casa?
— Vamos os dois — respondeu Jodie. — Quer que vamos já?
Novo silêncio. Respiração, ponderação.
— O meu marido acabou de tomar os remédios. Costuma ficar a dormir toda a noite
depois disso -declarou a velhota. — Até é uma bênção. O amigo do seu pai pode vir
amanhã logo de manhã?
Hobie recorreu à ponta do gancho para premir o botão do intercomunicador que tinha
em cima da secretária e chamar o recepcionista.
— Tony? — chamou. — Precisamos de conversar.
O convocado entrou e contornou a mesa de café para ir sentar-se num sofá.
— Foi Garber quem foi ao Havai — declarou.
— Tens a certeza? — perguntou Hobie.
O outro confirmou com um aceno de cabeça.
— Foi num voo da American de White Plains para Chicago, de Chicago para Honolulu, a 15 de
Abril. Regressou no dia seguinte pela mesma rota. Pagou com cartão Amex. Está tudo no
computador deles.
— Mas o que foi ele lá fazer? — matutou Hobie quase de si para consigo.
— Não sabemos — resmungou Tony. — Mas podemos calcular, não é verdade?
Fez-se um silêncio de mau agoiro no escritório.
— Tive notícias de Hanói — informou Hobie. — Há dez minutos.
— De Hanói? — espantou-se Tony. — Isso é o diabo.
— Trinta anos — comentou o outro. — E agora aconteceu.
Tony levantou-se e passou para trás da secretária. Abriu com os
dedos um espaço entre duas réguas do estore. Uma barra de sol vespertino penetrou na
divisão.
— Portanto, devia pôr-se a andar — comentou. Hobie não replicou. — Era essa a ideia — frisou
o subordinado. — Fase um, fase dois. E foi o que aconteceu. Já passaram as duas fases, por
amor de Deus.
— Ainda vão levar algum tempo — contrariou Hobie. — Não é verdade? Neste momento, ainda
não sabem nada.
— Garber não era parvo. — O recepcionista abanou a cabeça. — Descobriu qualquer coisa.
— E o tal Reacher? — interrogou Hobie. — Mais alguma coisa?
O outro espreitou para o exterior pelo intervalo das réguas.
— Liguei para St. Louis. Também foi polícia militar, esteve treze anos sob as ordens de Garber.
Alguém também perguntou por ele há dez dias. Calculo que fosse Costello.
— Mas afinal porquê? — ponderou Hobie. — A família Garber paga a Costello para encontrar
um velho camarada da tropa ... Porquê? Para que raio?
—•Não faço ideia — respondeu Tony, deixando o estore voltar à posição anterior. —
Porém, devia ir-se embora. Cumprir o planeado desde sempre.
— Mudei de planos. Quero dar a golpada no Stone.
— É demasiado arriscado. Já recebeu as duas chamadas.
— Eu sei — retorquiu Hobie. — Por isso alterei os planos.
Tony suspirou, contornou de novo a secretária e sentou-se num
sofá.
— Seis semanas é demasiado tempo.
— Concordo contigo — assentiu Hobie, acenando com a cabeça. — Temos de cavar antes
das seis semanas, mas não vamos sem os lucros Stone, portanto apressamos as coisas.
— Muito bem, como?
— Pus já hoje as acções na praça — informou o interpelado. — Noventa minutos antes do
fecho da Bolsa. Deve ser o suficiente para passar a mensagem aos bancos. Amanhã de
manhã, Stone há-de vir aí em brasa. Não vou cá estar, por conseguinte vais ser tu a
informá-lo do que queremos e do que faremos se não o obtivermos. Sacamos-lhe tudo
em dois dias. Entretanto, fechas aqui o estaminé. — Hobie relanceou o olhar em torno
do gabinete à meia-luz. — Pomo-nos simplesmente a mexer. Perdemos seis meses de
aluguer, mas que se lixe. Os outros dois idiotas que brincam aos duros não hão-de
constituir problema. Um está encarregado de despachar o outro esta noite, e tu vais
trabalhar com ele até apanharem Mrs. Jacob. Nessa altura, despachas ambos.
Vendemos o barco, os carros, e pronto.
Tony anuiu de cabeça. Inclinou-se para a frente, aliviado perante a perspectiva de
acção.
— E Reacher?
— Tenho um plano especial para ele.
Naquele preciso momento, Reacher era um homem feliz a viver um velho sonho. Muitas
vezes no passado especulara sobre como seria estar tão perto de Jodie quando ela fosse
adulta. No entanto, sempre supusera perder-lhe o rasto e não voltar a vê-la. Supusera
ainda que com o tempo os sentimentos que nutria por ela se desvaneceriam. Mas ali
estava, sentado mesmo ao seu lado, no parque de estacionamento do consultório da Dra.
McBannerman, com o motor em ponto morto, o ar condicionado no máximo para combater
o sol que incidia na tinta verde-escura do Oldsmobile. Sempre supusera que ela havia de
ser bastante engraçada. Agora, sentia-se um pouco culpado por ter subestimado o quão
bonita ela se tornara de facto. Nem em sonhos lhe fizera justiça.
— Há um problema — dizia Jodie. — Não posso lá ir amanhã. Não posso tirar mais tempo.
Estamos com muito trabalho, eu tenho de continuar a facturar. Vai ter de ir sozinho. Pode ser?
— Claro — respondeu ele —, mas não é isso que está em causa aqui. Você tem de se acautelar.
— Não há problema.
— Onde é o seu escritório?
— Na esquina da Wall Street com a Lower Broadway.
— É aí que vive, não é? Na Lower Broadway?
— A treze quarteirões — confirmou ela com um aceno de cabeça. — Costumo ir a pé.
— Amanhã, não — contrariou ele. — Eu levo-a. Em casa, não há problema, mas podem apanhá-
la na rua. E o seu escritório? E seguro?
Jodie voltou a acenar com a cabeça.
— Ninguém entra sem hora marcada.
— Óptimo. Então, vou passar a noite no seu apartamento e levo-a de porta a porta amanhã de
manhã. Depois, vou visitar os Hobies, e você fica no seu gabinete até eu ir buscá-la, certo? —
Ela não respondeu, e Reacher rebobinou as ideias, a ver se tinha dito alguma coisa estranha.
— Quer dizer, você tem quarto de hóspedes, não tem?
— Claro — respondeu Jodie baixinho. — Há quarto de hóspedes.
— Então, e agora? — perguntou Reacher.
Ela virou-se de lado no assento. O ar expelido pelos ventiladores centrais apanhou-lhe
o cabelo e atirou-lho para a cara. Ela alisou-o, passando-o por detrás da orelha enquanto
o mirava de alto a baixo. Até que sorriu.
— Devíamos ir às compras.
— Às compras? De quê?
— De roupa — elucidou Jodie. — Não pode ir visitar os velhotes com aspecto de selvagem,
pois não? — Tocou com a ponta do dedo
na marca que ele tinha na camisa. — E precisamos de ir a uma farmácia. Temos de tratar
dessa queimadura.
— Que diabo anda a fazer? — berrou o director financeiro. Estava à porta do gabinete de
Chester Stone, dois andares acima do seu, agarrado às ombreiras com ambas as mãos,
ofegante de esforço e fúria. Não esperara pelo elevador. Subira a correr pelas escadas.
Stone fitava-o sem perceber. — Idiota! — berrou o outro. — Disse-lhe para não
vender acções.
— E não vendi — replicou Stone. — Não há acções na praça.
— Pois fique a saber que há — ripostou o tipo. — E as pessoas fogem delas como o
Diabo da cruz.
— O quê?
— Tenho os bancos ao telefone. Apareceram acções da Stone há uma hora, e o preço está
a desbobinar mais depressa do que o raio dos computadores conseguem acompanhar.
São invendáveis. A mensagem que fez passar para o banco é a de que está insolvente,
que deve dezasseis milhões de dólares e os seus recursos não valem nem dezasseis
cêntimos.
— Não pus acções na praça — repetiu Stone.
— Então, quem diabo é que pôs? — perguntou o financeiro com um sarcástico aceno de
cabeça. — A fada madrinha?
— Hobie — aventou Stone. — Tem de ser... Mas porquê?
— Hobie? — repetiu o outro. — Deu-lhe acções?
— Teve de ser — redarguiu Stone. — Ele não emprestava de outro modo.
— Merda — exclamou o tipo das finanças. — Vê o que ele está a fazer?
Stone parecia não perceber, até acenar que sim com a cabeça, assustado.
— O que é que nos resta fazer?
O director financeiro deixou cair as mãos das ombreiras da porta e virou costas.
— Esqueça o nos. Já não há nos. Eu demito-me. Vou-me embora. Arranje-se como puder.
— Mas você é que recomendou o tipo! — gritou-lhe Stone.
— Não recomendei que lhe desse acções. Que espécie de homem é você? Um atrasado
mental?
— Espere aí! — continuou Stone. — Preciso da sua ajuda nisto.
— Contra Hobie? — gritou o outro. — Deve estar a sonhar. — E desapareceu.
O telefone tocou, quebrando o silêncio. Stone pegou no auscultador.
— Está? — disse para o bocal. — Fala Chester Stone.
— Mr. Stone? — pronunciou uma voz do outro lado. — Fala do Departamento de Insolvências.
Vou ligar ao director.
Stone fechou os olhos e apertou o telefone na mão.
— Mr. Stone? — perguntou desta vez uma voz profunda. — Fala o director.
— Como está? — cumprimentou Stone. Foi a única coisa que lhe ocorreu.
— Estamos a tomar medidas — retorquiu a voz — para entrarem cm vigor amanhã à abertura.
Vamos vender a dívida. Tenho a certeza de que compreende a nossa posição.
— Vender? — repetiu Stone. — Não entendo.
— Afastou-se muito dos parâmetros que nos satisfazem. Portanto, vendemos.
— A quem? — perguntou Stone, atónito.
— A um banco comercial de crédito das Caymans que fez uma oferta. Portanto, as suas
obrigações para connosco terminaram.
— Então, com quem estou agora em dívida?
— Com o Banco Comercial de Crédito das Caymans — respondeu a voz pacientemente. —
Tenho a certeza de que quem estiver por detrás disto vai contactá-lo muito em breve com
propostas de pagamento.
Jodie conduziu para sul em direcção à cidade de White Plains. keacher revirava-se no
assento, perscrutando a estrada atrás deles. Ninguém os perseguia. Nada de suspeito.
Apenas uma perfeita e dolente tarde de Junho nos subúrbios. Tinha de tocar na bolha sob
a camisa para não se esquecer de que algo sucedera de facto.
Ela dirigiu-se a um grande centro comercial. Desceu uma rampa em curva de acesso a
um parque de estacionamento subterrâneo, estacionou e disse:
— Pronto. Onde vamos primeiro?
— Fui a uma loja em Chicago — contou ele. — Tinha um nome
pequeno. Gate? Gap? Qualquer coisa assim. Tinha coisas que me assentavam bem.
— The Gap — informou Jodie com uma gargalhada. Enfiou o braço no dele. — Há cá uma.
Lá em cima.
Encaminharam-se para o movimentado centro comercial, e ela levou-o para uma
escada rolante. Ele sorriu. Sabia como Jodie se sentia. O próprio Reacher sentira o
mesmo há quinze anos atrás. Jodie acompanhara-o, nervosa e hesitante, numa visita de
rotina a Manila. Território conhecido para Reacher, mas novo e estranho para ela. Fora
divertido mostrar-lhe coisas. Agora, era Jodie que sentia o mesmo. Reacher era o
forasteiro no território dela.
— Que tal esta? — interpelou-o Jodie.
Não era The Gap. Era uma boutique decorada com telhas antigas e traves retiradas de
algum velho celeiro. A roupa estava elegantemente exposta em antigas charretes de
cavalos.
— Parece-me bem — assentiu ele com um encolher de ombros.
Ela pegou-lhe na mão. A sua palma fresca e miúda contra a dele.
Levou-o para dentro da loja e começou a percorrer os expositores, recorrendo a
pequenos gestos dos pulsos para coordenar artigos diferentes. Um par de calças ainda
dobrado posto sobre a metade inferior de uma camisa. Um casaco colocado em viés por
cima das duas coisas. Olhos semicerrados, lábios contraídos. Um abanão de cabeça. Uma
camisa diferente. Um aceno. Compras a sério.
— Que tal? — perguntou ela. Juntara um par de calças de caqui a uma camisa de
quadradinhos verdes e castanhos. O casaco era leve, castanho-escuro, e parecia
condizer bem com o resto.
— Parece-me bem — foi a resposta repetida.
Os preços estavam escritos à mão em pequenas etiquetas presas às peças por fios.
Reacher virou uma com a unha.
— Oh, meu Deus! — exclamou. — Não dá para mim, Jodie. — A camisa custava o dobro
do que ele alguma vez dera por um fato completo.
— Eu pago — disse ela. Reacher ficou parado com a camisa na mão, inseguro, e ela
continuou: — Lembra-se do colar?
Ele respondeu com um aceno de cabeça. Lembrava-se. Jodie apaixonara-se por um
determinado colar numa joalharia de Manila, um cordão simples de ouro entrançado com
reminiscências egípcias. Não era caro, embora estivesse fora do alcance dela. Leon
andava a
educá-la na autodisciplina e não se descoseu. Então, Reacher comprou-lho.
— Fez-me tão feliz — continuou Jodie. — Pensei que ia rebentar. Ainda o tenho, ainda o uso.
Portanto, deixe-me retribuir, está bem?
— Está — aceitou ele, depois de matutar um pouco. — Obrigado, Jodie.
— Precisa de meias e mais coisas, não é?
Escolheram um par de meias verde-seco e um par de boxers brancos. Jodie foi à caixa
e apresentou um cartão dourado. Reacher levou os artigos para um gabinete de provas e
vestiu tudo. Ficavam-Ihe bem ao espelho, a condizer com o seu bronzeado. Voltou a sair.
— Fica bem — assentiu ela. — Segue-se a farmácia.
Reacher comprou uma gilete, uma lata de espuma de barbear,
uma escova de dentes, pasta dentífrica e um tubo de pomada para queimaduras. Pagou ele
próprio tudo isso, que transportou num saco de papel castanho. A caminho da farmácia,
tinham passado por uma zona de restaurantes. Reacher viu um, com costeletas, que
cheirava bem.
— Vamos jantar — sugeriu. — Eu convido.
— Está bem — aceitou Jodie, dando-lhe uma vez mais o braço.
O jantar para dois custou-lhe o preço da camisa nova, o que não
lhe pareceu exagerado. Comeram sobremesa, beberam café, e nessa altura já algumas das
lojas mais pequenas estavam a fechar.
Reencaminharam-se juntos para o Oldsmobile, e ela esgueirouse para o lugar do
condutor. Reacher sentou-se a seu lado.
— Porque caminho iria normalmente para casa?
— Daqui? Pelo Viaduto FDR, acho eu.
— Muito bem — disse Reacher. — Siga para La Guardia e entramos por Brooklyn.
Atravessamos a Ponte de Brooklyn.
— Tem a certeza? — perguntou ela, fitando-o. — Se quiser fazer Iurismo, há sítios melhores do
que Brooklyn e o Bronx.
— Primeira regra — ripostou ele —, a previsibilidade é insegura. Se costuma usar um caminho,
hoje vamos por outro.
— Está a falar a sério?
— Pode crer. O meu modo de vida já foi proteger VIPs.
— Agora, eu sou VIP?
— Pode crer — repetiu ele.
Passado pouco mais de uma hora, Jodie estava a fazer marcha atrás para o seu lugar na
garagem do prédio onde vivia.
— Como se chega lá acima? — indagou Reacher.
— Porta para o átrio — explicou ela, apontando.
Havia um lanço de escadas metálicas de acesso a uma grande porta industrial.
Subiram, ela accionou o mecanismo de abertura e Reacher abriu-a de rompante. O átrio
estava vazio. Havia um único elevador em frente deles.
— Vivo no quarto andar — elucidou Jodie.
Reacher carregou no botão para o quinto.
— Depois, descemos pelas escadas — explicou.
Recorreram às escadas de emergência para regressar ao quarto
andar. Reacher fê-la esperar no patamar enquanto ele próprio espreitava. Corredor
deserto.
— Vamos.
A porta do apartamento era preta e espessa. Óculo de observação ao nível dos olhos,
duas fechaduras. Jodie usou as chaves e entraram. Ela voltou a trancar tudo, incluindo
uma barra metálica articulada que atravessava toda a soleira. Reacher encostou a uma
parede a mala de Jodie, enquanto ela ligava o quadro eléctrico, acendendo as luzes.
Reacher seguiu à frente. Corredor, sala, cozinha, quarto, casa de banho, quarto, casa de
banho, armários. Divisões espaçosas. Vazias. Ele regressou à sala, despiu o casaco novo,
atirou-o para cima de uma cadeira e começou a descontrair-se.
Percebeu, contudo, que Jodie não estava descontraída. Parecia mais tensa do que
durante todo o dia.
— Sente-se bem? — perguntou ele.
Ela sacudiu a cabeça num movimento semicircular, atirando o cabelo para trás dos
ombros.
— Acho que vou tomar um duche e meter-me na cama.
— A que horas tem de sair amanhã?
— Sete e meia dá — respondeu Jodie.
— Está bem — assentiu ele. — Boa noite, Jodie.
Ela despediu-se com um tímido aceno de mão e desapareceu pelo corredor. Ele ouviu
a porta do quarto abrir-se e fechar-se. Sentou-se então no sofá e descalçou os sapatos.
Demasiado irrequieto para ir logo deitar-se, andou a calcorrear de meias pelo
apartamento a inspeccionar tudo.
Não era propriamente um sótão. Situado num edifício antigo, com os tectos muito altos,
talvez tivesse tido em tempos uso industrial. As janelas eram enormes. Predominava o
branco, excepto no soalho, que era de tabuado de ácer claro. A decoração tinha o ar
tranquilo e neutro de uma galeria. A única cor na sala correspondia a uma reprodução em
tamanho natural de um quadro de Mondrian pendurada sobre o sofá.
As janelas davam para a Lower Broadway. Havia um permanente ruído de trânsito,
luzes de faróis de um lado e do outro. Reacher accionou uma varinha de plástico
transparente para mudar a inclinação das ripas do estore e olhou para o passeio lá em
baixo. Viam-se grupos de pessoas por ali, mas nada que o pusesse nervoso. Repôs o
estore na posição, bem fechado, e dirigiu-se ao quarto de hóspedes.
A mobília era branca, como tudo o resto. Despiu-se e dobrou a roupa nova na
prateleira do armário. Puxou a coberta para trás, enliou-se na cama e começou a pensar.
Afinal, o que eram nove anos? Muito, achava ele, quando ela tinha quinze, e ele, vinte
e quatro, mas o que eram naquele momento? listava com trinta e oito e ela com vinte e
nove ou trinta, não sabia uo certo. Qual era o problema? Talvez não fosse a questão da
idade. Talvez fosse Leon. Era filha de Leon, o que dava uma ilusão de ser assim uma
espécie de irmã mais nova ou sobrinha dele. Obviamente, isso provocava-lhe uma
sensação inibidora, mas afinal era apenas ilusão, não era? Ela era familiar de um velho
amigo seu, nada mais. Então, porque raio se sentia tão mal a contemplá-la e a imaginar-se
a arrancar-lhe a sweatshirt e a tirar-lhe o cinto? Porque não estava precisamente afazer
isso? Por que razão estava no quarto de hóspedes, e não do outro lado da parede, na
cama com ela? Como desejara durante inúmeras noites no passado.
Porque era de presumir que ela tivesse o mesmo tipo de ilusões. A irmã mais nova e
sobrinha correspondia irmão mais velho e tio. Tio preferido, claro, pois sabia que ela
gostava dele. Porém, isso só complicava as coisas. Os tios preferidos não se atiram às
sobrinhas. Isso seria uma espécie de traição.
Ela estava do outro lado da parede. Contudo, nada podia fazer quanto a
isso. Obrigou-se a pensar noutras coisas. Os dois tipos, fossem eles quem
fossem, já podiam ter a direcção de Jodie. Havia dúzias de formas de
descobrir onde uma pessoa vivia. Podiam estar naquele preciso momento
no exterior do prédio. Por aquela noite, Reacher sabia que estavam a
salvo. No entanto, a manhã seguinte seria perigosa. Concentrou-se em
gravar na mente os dois tipos até adormecer. O veículo, os fatos, a
constituição deles, as caras.
Naquele instante exacto, porém, já só um dos dois tipos tinha cara. Haviam navegado
juntos, dez milhas para sul de onde Reacher estava deitado, pelas águas negras do porto
de Nova Iorque. Juntos tinham aberto o saco de plástico e deitado para as ondas poluídas
do Atlântico o cadáver já frio da secretária de Costello. Um dos tipos virara-se para o
outro com uma graça espúria nos lábios e levara na cara o tiro de uma Beretta com
silenciador. O corpo escorregou para a água silenciosamente, a menos de vinte metros do
sítio onde a secretária já se afundava.
QUATRO
Jodie acordou cedo nessa manhã. Já estava acordada uma hora antes do
necessário, alerta, com a respiração acelerada, o coração a bater-lhe no peito.
A cama estava colocada de cabeceira para a parede em frente da janela. O quarto de
hóspedes dava costas com costas com o dela, exactamente com a mesma disposição, mas
simétrico. O que significava que a cabeça dele estava a uns quarenta centímetros da sua.
Logo do outro lado da parede.
Amava-o. Sempre o amara desde o princípio. Mas estaria certo amá-lo como amava?
Já antes debatera sofridamente essa questão consigo própria. Passara noites acordada por
causa disso há muitos anos. Tivera vergonha dos seus sentimentos. Uma rapariga de
quinze anos não devia nutrir esses sentimentos por um camarada de armas do seu pai. O
protocolo castrense tornava aquilo praticamente incestuoso. Mas ela amava-o.
O sentimento nunca desaparecera de facto. Ele fora-se embora, ela crescera e fizera a
sua vida, mas o sentimento não se desvanecera, nem quando ele deixara de estar
relacionado com a sua vida do dia-a-dia, tornando-se um sonho do passado.
O dia anterior devia ter sido o pior da sua vida. Enterrara o pai, fora atacada por
homens armados. Devia estar prostrada de sofrimento e choque. Porém, fora o melhor dia
da sua vida. Ele aparecera como uma visão, e o antigo sentimento reocupara o centro da
sua vida, mais forte e intenso do que nunca.
Todavia, era tudo uma perda de tempo, não o ignorava. Tinha de enfrentar a situação.
Ele encarava-a como sobrinha ou irmã mais nova. Como se a diferença de nove anos
ainda contasse para alguma coisa. Talvez ele estivesse apenas demasiado habituado a
considerá-la como filha de Leon. O protocolo castrense cegara-o para a possibilidade de
a ver de outro modo. Portanto, nada ia acontecer.
Espreguiçou-se na cama e levou as mãos acima da cabeça. Pousou as palmas com
suavidade na parede divisória. Pelo menos, ele estava no seu apartamento e, pelo menos,
podia sonhar.
Chester Stone regressara a casa à hora habitual e nada dissera a Marilyn. A rapidez do
colapso deixara-o atarantado. Todo o seu mundo se virara do avesso num único dia.
Planeava esquecer o assunto até à manhã seguinte e ir então falar com Hobie. Bem no seu
íntimo, não acreditava na possibilidade de se salvar. A empresa tinha noventa anos, por
amor de Deus. Tinha demasiado património para desaparecer tudo de um dia para o
outro. Portanto, nada disse.
Marilyn Stone também nada disse a Chester. Era demasiado cedo para o marido saber
que ela assumira o comando. Tratava-se de uma questão de ego. Limitou-se a andar de
um lado para o outro a fazer as coisas normais e depois tentou dormir, enquanto Chester
permanecia acordado ao seu lado a olhar para o tecto.
A
Quando Jodie espalmou as mãos na parede divisória, Reacher estava no duche do
quarto de hóspedes. Tinha uma rotina especial que consistia em tomar um duche, depois
sair para se barbear e a seguir tomar novo duche. Sabia-lhe bem. Encontrou champô e
lavou a cabeça. Esfregou o corpo todo com uma espécie de sabonete amarelo e
enxaguou-se. Molhou o chão todo enquanto fazia a barba no lavatório. Regressou depois
ao chuveiro. Só então se limpou e sacudiu as rugas da roupa nova. Vestiu as calças sem
camisa e vagueou até à cozinha para comer qualquer coisa.
Jodie estava lá. Também ela acabada de sair do duche. Envergava
uma fina T-shirt branca muito larga que lhe acabava dois centímetros e meio acima dos
joelhos. Estava descalça. Era muito esguia, excepto onde não devia ser. Ele susteve a
respiração.
— Bom dia, Reacher.
— Bom dia, Jodie.
— Essa bolha está com pior aspecto — comentou Jodie. Ele baixou o olhar. Ainda tinha
aquele ponto vermelho e inflamado. Um bocadinho inchado. — Pôs a pomada?
— Esqueci-me — confessou ele, abanando a cabeça.
— Vá buscá-la.
Reacher regressou ao quarto e tirou a pomada do saco castanho. Levou-a para a
cozinha. Ela pegou-lhe e tirou a tampa. Espremeu um pouco de remédio para o indicador
e espalhou-o com cuidado sobre a bolha. Reacher olhava rigidamente por cima da cabeça
de Jodie. Ela estava nua por baixo da T-shirt. A esfregar-lhe o peito nu com a ponta do
dedo. Apetecia-lhe tomá-la nos braços, beijá-la com suavidade, a começar pelo pescoço.
Sentia o cheiro da pele dela. Suspirou e fechou as mãos com força. Ela afastou-se.
— Magoei-o?
Reacher viu-lhe o indicador, brilhante de gordura.
— Um pouco — respondeu.
— Desculpe. Mas era preciso.
— Suponho que sim.
A crise passara. Jodie voltou a atarraxar a tampa no tubo, e Reacher afastou-se para
abrir a porta do frigorífico, de onde tirou uma garrafa de água. Descobriu também uma
banana numa fruteira em cima da bancada.
— Vou vestir-me. Temos de ir andando — declarou Jodie.
Tony e o sobrevivente homem de mão de Hobie desceram juntos noventa andares até à
garagem subterrânea. Encaminharam-se para os lugares correspondentes ao escritório de
Hobie.
— É melhor levarmos o Suburban — sugeriu o duro. — É maior.
— Está bem — concordou Tony. Destrancou-o e esgueirou-se para o lugar do condutor. O
outro içou-se para o assento do passageiro. Tony accionou o motor de arranque e não
tardou a arrancar suavemente na direcção da rampa que subia até à rua.
— Então, como vamos fazer? — perguntou.
— É canja — disse o outro com um sorriso. — Ela vai caminhar para sul pela Broadway.
Esperamos ao virar da esquina, uns quarteirões a sul do prédio, até a avistarmos. Vemo-la
atravessar na passadeira, fazemos a curva, encostamos ao passeio e pronto. Certo?
— Errado. Vai ser diferente — respondeu Tony.
— Porquê?
— Porque, se era isso que farias, tem de haver um modo melhor. Deitaste tudo a perder em
Garrison. Farias o mesmo aqui. E provável que ela esteja acompanhada pelo tal Reacher. Ele
venceu-
te lá, também te vencia aqui.
— Então, como vamos fazer?
— Vou explicar-te com todo o cuidado — redarguiu Tony.
Jodie esperava à porta, com um simples vestido de linho sem mangas quase da cor do
seu cabelo, sem meias, sapatos simples. Trazia carteira e uma grande pasta de cabedal
nitidamente pesada.
— Quer que lha leve? — perguntou Reacher.
— Já sou crescidinha — respondeu ela, abanando a cabeça com um sorriso.
Ele assentiu. Ergueu a tranca de ferro dos suportes e deixou-a levantada. Jodie
inclinou-se pela frente dele e rodou as chaves nas fechaduras. O mesmo perfume, subtil e
feminino.
— O que é que leva aí? — interessou-se Reacher, indicando a pasta.
— Direito financeiro — elucidou ela.
Reacher abriu a porta com cuidado e relanceou o olhar para fora. O patamar estava
vazio. Atravessaram-no e chamaram o elevador.
— Trato principalmente de reescalonamento de dívidas — continuou Jodie. — De facto, sou
mais negociadora do que advogada. Uma espécie de mediadora, percebe?
Ele não percebia. Nunca contraíra dívidas. Não por qualquer virlude inata, apenas por
nunca ter precisado. Tudo o que era de primeira necessidade fora-lhe proporcionado
pelo Exército: cama, comida e roupa lavada. Nunca desejara mais.
Chegou o elevador. As portas abriram-se. Entraram.
— É boa nisso?
— Sou do melhor que há — confirmou ela com simplicidade.
Reacher sorriu. Ela era filha de Leon, sem dúvida. O elevador
desceu zunindo, detendo-se com um solavanco. As portas abriram-se para um átrio vazio.
— As chaves do carro? — pediu Reacher. Jodie tinha-as na mão. Um grande molho de
chaves numa argola de latão. — Espere aqui — instruiu ele. — Eu trago o carro às
escadas. É só um minuto.
A porta do átrio para a garagem abria-se de dentro empurrando uma barra. Reacher
transpô-la e desceu os degraus metálicos, perscrutando o espaço em frente à medida que
avançava. Vazio. Encaminhou-se com ar confiante para o carro errado, um grande
Chrysler, a dois espaços do Oldsmobile de Jodie. Atirou-se ao chão e espreitou por
baixo dos veículos próximos. Ninguém escondido no chão. Levantou-se de novo e
esgueirou-se para o espaço entre a traseira do Oldsmobile e a parede. Procurou fios onde
eles não deviam existir. Estava tudo limpo.
Abriu a porta e instalou-se ao volante. Ligou o motor e deslocou com cuidado o
veículo para a faixa, onde fez marcha atrás até ao fundo das escadas, no mesmo instante
em que Jodie surgia do átrio, nas suas costas. Ela desceu rapidamente os degraus e entrou
de imediato no automóvel num único movimento fluido. Reacher arrancou, subiu a rampa
e virou à direita na rua, dirigindo-se para sul. A primeira esquina ficava a menos de trinta
metros. O trânsito era lento. O semáforo apanhou-os com três viaturas à frente. Estavam
na faixa da direita, sem ângulo de visão para a rua transversal, onde o trânsito circulava
da direita para a esquerda. Até que o fluxo de tráfego lateral parou e o verde se acendeu
na Broadway.
Reacher atravessou o cruzamento, virando a cabeça, com a atenção meio na frente,
meio na rua lateral. Nada. Não havia nenhum veículo de quatro portas lá estacionado. O
trânsito arrastava-se, até parar de novo no semáforo seguinte.
Não seria naquela rua. O padrão de tráfego ali não era o certo. Fluía para oeste, da
esquerda para a direita, à sua frente. Ele tinha um bom ângulo de visão para a esquerda.
Nada. Não era ali. Seria na próxima.
O verde acendeu-se. Ele avançou sem sobressaltos. Verificou o espaço livre à sua
frente e rodou o pescoço a fim de espreitar para a direita. A rua transversal era estreita.
Nada estacionado na faixa da direita. Nada à espera. Atravessou devagar toda a largura
do cruzamento. Ninguém. Expirou, descontraindo-se, e olhou em frente.
Houve um enorme estrondo metálico. Um tremendo impacte na traseira, rasgando o metal.
O Oldsmobile foi projectado para diante e espetou-se no veículo que seguia à frente. Os
air bags dispararam. Ele viu Jodie saltar no assento até ser retida pela tensão do cinto,
com o corpo a parar de repente e a cabeça ainda a precipitar-se para a frente. Depois, fez
ricochete no air bag e foi bater no encosto de cabeça.
Reacher obrigou-se a olhar pelo retrovisor e avistou um gigantesco capô preto enfiado
na traseira do Oldsmobile. Uma enorme carrinha de tracção às quatro rodas. Um tipo lá
dentro, visível através do vidro fumado. Nunca o tinha visto. Os outros automóveis
apitavam atrás deles, e o trânsito começava a desviar-se para a esquerda a fim de
contornar a obstrução. As caras viravam-se para ver. O tipo lá atrás estava a sair do
todo-o-terreno. De mãos levantadas num pedido de desculpas, com a preocupação e o
susto estampados no rosto. Aproximava-se da janela de Reacher, olhando de soslaio o
metal contorcido. Uma senhora saía do carro da frente com expressão estonteada e
irritada. Jodie palpava a nuca com os dedos.
— Está bem? — perguntou ele.
— Estou. E você?
— Óptimo — redarguiu Reacher.
Nessa altura, bateram-lhe na janela. O tipo de trás parecia apressado, a gesticular para
que ele abrisse a janela.
— Merda! — berrou Reacher. Carregou no acelerador. O Oldsmobile pulou, empurrando o carro
amolgado da outra senhora.
— Que diabo está a fazer? — gritou Jodie.
O tipo tinha uma das mãos no puxador da porta e a outra enfiada na algibeira.
— Baixe-se — ordenou Reacher.
Engatou a marcha atrás, recuou um metro e embateu no todo-o-terreno. O novo impacte
abriu-lhe uns trinta centímetros de espaço de manobra. Engatou a primeira, rodou o
volante e arrancou para a esquerda. Embateu no quarto traseiro do carro da senhora numa
nova chuva de vidros. Relanceou o olhar para a direita, vendo um dos tipos que conhecia
de Key West e de Garrison à janela desse lado, com uma das mãos na porta de Jodie.
Reacher voltou a recuar, ao mesmo tempo que rodava o volante do Oldsmobile. O tipo
manteve-se agarrado, embora atirado ao chão pelo movimento violento. Reacher embateu
na carrinha preta e ressaltou de novo para a frente, sempre a rodar o volante. O tipo
levantara-se de novo, ainda agarrado ao puxador da porta. Reacher pisou o pedal e saiu
de lado, raspando com o tipo da direita no carro destruído. O pára-choque atingiu-o nos
joelhos e ele deu um salto mortal, batendo com a cabeça no vidro traseiro. Pelo espelho,
Reacher viu uma confusão de braços e pernas a agitarem-se enquanto a inércia o fazia
passar sobre o tejadilho.
— Cuidado! — gritou Jodie.
O condutor da carrinha continuava à janela dele. Reacher estava na faixa de rodagem,
mas o trânsito era lento, permitindo ao tipo correr ao seu lado enquanto se esforçava por
tirar qualquer coisa do bolso. Reacher guinou para a esquerda, atirando o tipo contra o
lado de um camião na outra faixa. Ouviu o baque da cabeça no metal e ele desapareceu.
O camião travou em pânico, e Reacher virou para a esquerda, metendo-se-lhe à frente. A
Broadway estava completamente atravancada de trânsito. Reacher desviou-se ainda mais
para a esquerda, virou e passou numa passagem de peões quando o semáforo estava para
eles, que se desviaram numa balbúrdia. Saía fumo dos interstícios no capô maltratado. O
air bag caíra-lhe para os joelhos. Ele rodou uma vez mais para a esquerda, entrando
numa viela cheia de lixo de um restaurante. Depois de enterrar a frente do Oldsmobile
numa pilha de caixotes de cartão vazios, desligou o motor e tirou as chaves.
Parara demasiado junto da parede para Jodie conseguir sair pelo seu lado. Arrebatou a
pasta e a carteira, que atirou pela sua porta, e virou-se para ela. Agarrou-a pela cintura e
tirou-a lá de dentro. Ela não pesava nada. Reacher pousou-a, deu-lhe a carteira e pegou
ele próprio na pesada pasta. Conduziu-a pela viela de regresso à rua principal.
— Como é que percebeu? — arquejou Jodie que não era um mero acidente?
— Uma questão de estatística, suponho. Quais eram as probabilidades de estarmos
envolvidos num acidente na mesmíssima manhã em que sabíamos andarem uns tipos à
nossa procura? Uma num milhão, na melhor das hipóteses.
— Você foi fantástico — cumprimentou ela.
— Não, fui estúpido que nem uma porta — contrapôs Reacher. — Cometi erros atrás de
erros. Eles mudaram de pessoal. Têm um tipo novo no comando. Nem sequer pensei
nessa hipótese. E, fosse
quem fosse, o tipo não era burro. O plano era bom, quase resultou. Nem os vi. Desculpe
pelo seu carro.
— É em leasing — disse ela, encolhendo os ombros. — Peço outro.
— É melhor apresentar queixa de roubo — aconselhou Reacher. — Ligue para a Polícia e diga
que ele não estava na garagem quando o foi buscar esta manhã.
— Isso é fraude — comentou Jodie.
— Não, é inteligente. Lembre-se de que eu não posso dar-me ao luxo de que os chuis me venham
com perguntas a este respeito. Nem sequer tenho carta de condução.
— Está bem. Ligo do escritório — concordou ela.
— Do escritório? Você não vai ao raio do escritório. Depois do que acaba de suceder, quero-a
onde possa estar de olho em si, Jodie.
— Preciso de trabalhar, Reacher — redarguiu ela. — E use a cabeça: o escritório é tão seguro
agora como era antes.
Ele fitou-a. Queria dizer-lhe: Tudo se alterou. Porque, seja o que for que Leon tenha
começado com um casal de velhotes na clínica de cardiologia, tem agora profissionais
meio competentes à mistura. Queria ainda dizer-lhe: «Amo-te, estás em perigo e não te
quero em sítio nenhum onde não possa ter-te debaixo de olho.» Mas não podia dizer nada
daquilo. Porque se comprometera a mantê-la na ignorância de tudo, tanto do amor como
do perigo. Por conseguinte, disse apenas:
— Devia vir comigo. Ajudar-me com os velhotes. Eles falam melhor consigo por ser filha de
Leon.
— Quer-me consigo por eu ser filha de Leon?
Ele confirmou com um aceno de cabeça. Ela avistou um táxi e mandou-o parar.
— Resposta errada, Reacher — disse baixinho.
Ele bem argumentou, mas Jodie não mudou de ideias. O melhor que conseguiu foi
convencê-la a resolver-lhe o problema imediato de alugar um carro com o seu cartão
dourado e carta de condução. Regressaram à Baixa no Taurus, e Reacher parou em frente
da porta do escritório dela.
— Pronto — disse Jodie. — Vem cá buscar-me por volta das sete?
— Tão tarde?
— Vou começar tarde — redarguiu ela. — Tenho de acabar tarde.
— Não saia do edifício, está bem?
Reacher apeou-se e acompanhou-a até lá dentro. Havia um vasto balcão de recepção
assim que se entrava pela porta giratória, com uma fila de seguranças sentados atrás. Por
detrás deles, havia uma antepara de vidro forte, de parede a parede e do chão ao tecto,
com uma única abertura accionada por uma campainha sob o balcão. Era impossível
entrar sem que os tipos da segurança o permitissem. Parecia suficientemente seguro.
O dia de Chester Stone começou de forma normal. Ele saiu para o trabalho à hora
habitual. Trânsito normal, nem mais nem menos. Estacionou no lugar habitual na garagem
do edifício, e subiu no elevador até ao escritório da sua firma. Então, o dia deixou de ser
normal.
O escritório estava deserto. Era como se a sua empresa tivesse desaparecido de um dia
para o outro. O pessoal desertara todo, por instinto, como ratos a abandonarem um navio
que se afunda. Os computadores estavam todos desligados. Um único telefone tocava
numa secretária distante. Não havia ninguém para o atender. O seu próprio gabinete era
sempre sossegado, mas o silêncio que naquele momento pairava sobre ele era agoirento.
— Merda! — exclamou. Estava irritado. Principalmente com a secretária, que trabalhava
com ele há muito tempo. Era o género de empregada com cuja lealdade ele contara. No
entanto, aos mais pequenos boatos de falência financeira fora para casa.
Chester rodou nos calcanhares e reencaminhou-se à pressa para o elevador. Desceu até
ao nível da rua e saiu para o sol. Virou para oeste e dirigiu-se, furioso, para o enorme
volume cintilante das Torres Gémeas. Atravessou velozmente a praça e entrou até aos
elevadores. Subiu até ao octogésimo oitavo andar. Saiu e seguiu pelo corredor para a
recepção de Hobie. O recepcionista estava sentado atrás do seu balcão. Do outro lado,
saiu de uma kitchenette um homem possante de fato caro com duas canecas de café. Stone
relanceou o olhar de um para o outro. Nenhum deles lhe ligou.
— Quero falar com Hobie — declarou.
O recepcionista inclinou-se para a frente e agarrou na caneca de café.
— Mr. Hobie não vem hoje ao escritório — informou. — O meu nome é Tony, e por ora sou eu
que trato dos assuntos dele. Queira entrar. — Levantou-se e fez um gesto de cabeça ao
gorila, que deslizou para o outro lado do balcão e ocupou o lugar de Tony na cadeira. O
próprio Tony encaminhou-se para a porta interior. Abriu-a e Stone entrou na mesma
penumbra do dia anterior. Tony ultrapassou-o silenciosamente a caminho da secretária,
onde se sentou na cadeira de Hobie. Stone seguiu-o, olhando em redor a interrogar-se sobre
onde havia de sentar-se.
— Vai permanecer de pé enquanto durar a reunião — instruiu Tony.
— O quê? — exclamou Stone, atónito.
— Aqui em frente da secretária. Em sentido. Nada de desleixos.
Falou em tom calmo, factual. Fez-se silêncio. Apenas se ouviam
ligeiros ruídos provenientes de outras zonas do prédio e o bater do coração de Stone. Os
olhos dele estavam a acostumar-se à escuridão, mas o silêncio perturbava-o. Não fazia a
mínima ideia de como reagir àquilo. Era humilhante ficar de pé. Ainda para mais quando
se tratava de uma ordem dada por um raio de um recepcionista. Devia pura e
simplesmente sentar-se mesmo num dos sofás. Ignorar o tipo. Limitar-se a fazer isso.
Porém, as suas pernas recusavam-se a andar. Ele permaneceu em pé, rígido perante o
insulto e a humilhação. E assustado.
— Esse casaco é de Mr. Hobie — retomou Tony. — Queira fazer o favor de o despir.
Stone fitou-o. Baixou depois os olhos para o casaco. Era o fato de Savile Row.
Abanou a cabeça.
— Comprei-o em Londres. Não há qualquer dúvida de que é meu.
Tony sorriu no escuro.
— Não compreende, pois não? — interpelou-o. — Tudo o que tem é agora de Mr. Hobie. —
Stone fitava-o. — Portanto, dispa o casaco de Mr. Hobie — insistiu Tony. — Não lhe
pertence.
A voz era tranquila, embora ameaçadora. A cara de Stone ficara rígida de choque, mas
de repente os braços começaram a mexer-se, como se estivessem fora do seu controle
consciente. Lutou por se desenvencilhar do casaco e segurou-o pela gola.
— Em cima da secretária, por favor — ordenou Tony.
Stone estendeu o casaco sobre a secretária. Tony meteu-lhe as mãos nos bolsos, uns a
seguir aos outros, e reuniu tudo num montinho à sua frente. Atirou o casaco
descontraidamente para o sofá da esquerda.
Pegou na caneta Mont Blanc. Fez uma boquinha de apreço e enfiou-a na sua própria
algibeira. Pegou a seguir no molho de chaves e examinou-as, uma de cada vez.
Seleccionou a do carro e ergueu-a.
— Mercedes?
Stone confirmou com um aceno de cabeça inexpressivo.
— Onde?
— No meu escritório — resmungou ele. — No lugar de estacionamento.
— Depois vamos buscá-lo — decidiu Tony. Abriu uma gaveta e deixou cair as chaves lá
dentro juntamente com a carteira.
— Que querem vocês? — indagou Stone.
— Quero que tire a gravata de Mr. Hobie — retorquiu o outro.
— Não, a sério, o que querem de mim?
— Dezassete milhões e cem mil dólares. É quanto nos deve.
— Eu sei — assentiu Stone, meneando a cabeça. — Eu pago.
— Quando? — insistiu Tony.
— Bem, vou precisar de algum tempo — redarguiu Stone.
— Está bem, tem uma hora.
— Não posso pagar numa hora — protestou Stone, abismado.
— Sei que não — ripostou Tony. — Não pode pagar numa hora, nem num dia, nem numa
semana, nem num mês, nem num ano, porque é um inútil pedaço de merda incapaz de
fazer seja o que for, não é verdade?
Stone encolheu os ombros, de expressão vazia. A porta abriu-se nas suas costas e
entrou o gorila de fato caro, que atravessou a alcatifa sem ruído e foi postar-se de braços
cruzados atrás do ombro esquerdo de Tony.
— Tire a gravata! — gritou Tony.
Stone deu um salto e levantou as mãos. Teve dificuldade em desfazer o nó. Arrancou-a.
Deixou-a cair em cima da secretária, onde ficou num monte emaranhado.
— Obrigado, Mr. Stone — agradeceu Tony em tom cordato. Abriu uma gaveta de onde
tirou uma folha de papel escrita. Era uma lista com um total em algarismos no fundo da
página. — Possuímos
trinta e nove por cento da sua firma — prosseguiu. — Desde esta manhã. O que queremos
é mais doze por cento.
Stone voltou a ficar de olhos fixos no interlocutor. Fez a conta de
cabeça.
— Para ficarem com o poder de decisão?
— Exacto — retorquiu o outro.
— Não podem obrigar-me a dar-vos mais acções — argumentou Stone.
— Acho que podemos. Dispa a camisa.
— Ouça, eu não vou deixar-me intimidar — redarguiu Stone com tanta confiança quanta
conseguiu aparentar. — Preciso de falar com os meus advogados.
— Muito bem, fale.
Chester olhou em redor da sala, desesperado.
— Onde está o telefone?
— Não há aqui telefone — informou o outro. — Mr. Hobie não gosta de telefones. Por
conseguinte, grite bem alto e pode ser que os seus advogados o ouçam.
— O quê?
— Grite — repetiu Tony. — É lento de raciocínio, não é, Mr. Stone? Não há aqui
telefone, não pode sair da sala, quer falar com os advogados, tem de gritar.
Stone limitou-se a olhar para o ar inexpressivamente.
— Dispa a camisa! — berrou o outro.
As mãos de Stone ergueram-se e desabotoaram-na até abaixo. Ele arrancou-a e ficou
com ela na mão, a tremer em camisola interior.
— Por favor, dobre-a bem dobrada — instruiu Tony. — Mr. Hobie gosta das coisas em
condições.
Stone fez o melhor que conseguiu. Abanou-a pelo colarinho, dobrou-a ao meio e depois
outra vez ao meio. Inclinou-se e pousou-a mesmo em cima do casaco.
— Dê-nos os doze por cento — insistiu Tony.
— Não — teimou Stone, cerrando os punhos. — Vou primeiro à falência, que diabo. Não vai
conseguir nada de mim. Nada de nada. É uma questão para cinco anos nos tribunais no
mínimo.
O outro abanou a cabeça pacientemente, como um professor a ouvir a resposta errada
pela centésima vez numa longa carreira.
— Dispa as calças de Mr. Hobie! — gritou.
— Não, não dispo! — ripostou Chester no mesmo tom de voz.
O tipo junto do ombro de Tony levou a mão debaixo do braço.
Ouviu-se um chiar de cabedal e Stone fitou-o, incrédulo. O tipo tirou uma pequena arma
preta. Fez pontaria à altura dos olhos, sem mais, e começou a dar a volta à secretária na
direcção de Stone. Cada vez mais perto. Stone nem chegou a ver a outra mão do tipo
fechar-se em punho. Nem viu o golpe a ser preparado. Foi esmurrado com toda a força na
barriga e caiu como um saco, encolhendo as pernas.
— Dispa as calças! — bradou Tony lá do alto.
O outro tipo deu-lhe um pontapé e Stone bramou, rodando sobre si próprio, de costas,
qual tartaruga, a arfar, arrancando o cinto. Soltou-o. Atarefou-se com os botões e o
colchete. Baixou as calças pelas pernas, tirou-as.
— Levante-se, Mr. Stone — pronunciou Tony em tom tranquilo.
Chester levantou-se a custo e ficou vacilante, inclinado para
diante, de cabeça baixa, a arfar, com as mãos nos joelhos.
— Podíamos fazer-lhe mal — declarou Tony. — Já compreendeu isso, não é verdade?
Ele acenou que sim, a arquejar.
— No entanto, não o fazemos. Não é assim que Mr. Hobie gosta de fazer as coisas.
Stone limpou as lágrimas dos olhos e ergueu a cabeça, esperançado.
— Mr. Hobie prefere fazer mal às mulheres — continuou Tony. — Os resultados são mais
rápidos.
Reacher não teve dificuldade em encontrar a casa dos Hobies. A vivenda baixa, térrea,
estava pintada do mesmo castanho do velho Chevy estacionado a um dos cantos sob um
alpendre para carros. O jardim era um matagal, resultante de quinze anos de primaveras
molhadas e verões ardentes sem ser tratado. Reacher olhou em redor e achou que um
pelotão de infantaria equipado com lança-chamas teria ali mais utilidade do que
jardineiros.
Havia uma maçaneta, mas a ferrugem imobilizara-a, pelo que ele bateu na madeira com
os nós dos dedos. Ficou à espera. Ouviu o soalho estalar dentro de casa. A porta abriu-
se. Reacher avançou
para a sombra do beiral e viu uma velhota dos seus oitenta anos, magra que nem um
palito, de cabelo branco, corcovada, com um vestido às flores desbotado.
— Estávamos à sua espera — afirmou a mulher. Virou-se de lado para lhe dar passagem e
Reacher entrou. — Posso oferecer-lhe bolo? — perguntou ela.
Ele olhou de soslaio para o topo do fogão. Estava lá um prato de porcelana coberto
por um velho naperão de linho. A velhota dera-se ao trabalho de fazer um bolo para ele.
— E café?
Ao lado do fogão, estava uma velha máquina de café, ligada à tomada de parede por
um còrdão isolado com tecido a esfarrapar-se. Reacher aceitou.
— Adoro café e bolo.
A mulher avançou de imediato, ligando a máquina, que já estava cheia e pronta para
trabalhar.
— Venha lá conhecer Mr. Hobie. Ele está ansioso por conhecê-lo a si.
Conduziu-o pelo corredor às escuras para uma salinha das traseiras atulhada de
poltronas, sofás e cristaleiras. Estava um velhote numa das cadeiras. Envergava um fato
de sarja rija azul, gasto e com brilho em certos pontos, pelo menos três tamanhos acima
do que convinha ao seu corpo mirrado. Tinha tubos de plástico transparente a passarem-
lhe por cima das orelhas e a entrarem-lhe pelo nariz. Uma garrafa de oxigénio fora
colocada atrás dele sobre um carrinho de rodas. O homem ergueu o olhar e inspirou o gás
com um ruído prolongado, a fim de ganhar forças para erguer a mão ossuda.
— Major Reacher, muito gosto — cumprimentou.
O visitante avançou, pegou na mão e apertou-a. Era fria, seca e parecia de um
esqueleto, embrulhada em flanela. O velhote fez uma pausa, inspirou mais oxigénio e
retomou a palavra:
— Chamo-me Tom Hobie, major. E esta encantadora senhora é a minha mulher, Mary.
— Tenho muito prazer em conhecer-vos a ambos — declarou Reacher.
Havia uma lareira de pedra, baixa no centro de uma das paredes. A consola estava
apinhada de fotografias em molduras de prata trabalhada. Eram quase só instantâneos a
cores mostrando a mesma
pessoa, um jovem de farda cor de azeitona numa grande variedade de poses e situações.
No meio, uma foto mais antiga de outro homem também fardado, alto, direito, sorridente,
um cabo de outra geração.
— Sou eu — confirmou Hobie, seguindo-lhe o olhar.
— Segunda Guerra Mundial? — indagou Reacher.
O velhote confirmou com a cabeça, uma expressão triste no olhar.
— Não cheguei a embarcar — lamentou. — Apresentei-me como voluntário muito antes da
mobilização, mas já nessa altura o meu coração era fraco. Não me deixaram ir. Portanto,
passei o tempo de serviço numa manutenção em Nova Jérsia.
— Vou buscar o café e o bolo — anunciou a velhota.
— Posso ajudá-la nalguma coisa? — ofereceu-se Reacher.
— Não, eu trato de tudo —respondeu ela, saindo devagar da divisão.
— Sente-se, major, por favor — convidou Tom Hobie.
Reacher anuiu de cabeça e sentou-se. Ouvia o tilintar de porcelana na cozinha.
Pacientes sons domésticos.
— Cá está — disse Mrs. Hobie da porta. Regressava com um carrinho de chá onde se via
um serviço de porcelana a condizer. O naperão de linho fora removido de cima do
prato, revelando um bolo de frutas com cobertura de açúcar. — Como quer o café?
— Sem leite, sem açúcar — pediu Reacher.
A velhota serviu uma xícara de café, com o pulso fino a tremer de esforço. A xícara
tilintou no prato quando ela lhos passou, seguidos de uma grossa fatia de bolo num
pratinho.
— Eu era tipógrafo — disse de repente o velhote. — Tinha a minha própria tipografia, e
Mary trabalhava para um dos meus melhores clientes. Casámos na Primavera de 1947.
O nosso filho nasceu em Junho de 1948. — Percorreu com o olhar a fila de fotografias.
— O nosso filho, Victor Truman Hobie. — Fez-se silêncio na salinha. — Eu acreditava
no dever — retomou o velhote. — Não estive eu próprio erp condições de prestar
serviço activo, mas educámos o nosso filho no amor pela pátria e na disponibilidade
para a servir. Ele apresentou-se como voluntário para o Vietname.
O velho Mr. Hobie inclinou-se para o lado até ao chão, de onde levantou uma pastinha
de cabedal que abriu sobre as pernas no osso. Extraiu uma fotografia que passou a
Reacher.
Era de um sorridente rapaz com os seus vinte anos, de uniforme novo de combate,
posando em frente de um helicóptero do Exército, um Hiller H-23, antigo aparelho de
treino.
— Victor queria ser piloto de helicóptero — informou Hobie. — Era um apaixonado por isso, e
decidiu que o Exército era o melhor sítio para aprender.
Reacher acenou com a cabeça.
— Pilotou helicópteros no Vietname?
— Foi o segundo do curso na Escola do Exército dos EUA — declarou o pai. — Isso não
constituiu surpresa para nós. Ele sempre foi bom aluno até ao fim do secundário. Tinha um
jeito especial para a matemática. Pensei que fósse trabalhar comigo, encarregar-se da
contabilidade. Era um rapaz muito esperto. E muito bom. Muito simpático, de bom coração,
um filho perfeito. O nosso único filho.
— A velhota estava calada. Não comia nem bebia. — O juramento de bandeira foi em Fort
Rucker — prosseguiu Hobie. — No Alabama. Fomos até lá para assistir. — Passou-lhe a
fotografia seguinte. Um rapaz alto fardado, de boné inclinado, com um dos braços em torno
de uma mulher mais velha de vestido estampado. A mulher era magra e bonita. — Aí estão
Victor e Mary — continuou o velhote.
— Ela não mudou nada desde esse dia até hoje, pois não?
— Nem um bocadinho — mentiu Reacher.
— Foi mandado em missão duas semanas depois — interveio a senhora.
— Em Julho de 1968 — completou o pai. — Tinha vinte anos.
— Que sucedeu? — indagou Reacher.
— Cumpriu uma comissão de serviço — respondeu Hobie. — Teve dois louvores. Regressou
com uma medalha. Vi logo que a ideia de ser guarda-livros de uma tipografia era de menos
para ele. Achei que cumpriria o serviço militar e depois arranjaria emprego a pilotar
helicópteros para plataformas petrolíferas. Talvez no Golfo. Nessa altura, pagavam bem aos
ex-pilotos do Exército.
— Contudo, ele regressou ao Vietname — lembrou a mãe.
— Comprometeu-se a uma segunda missão — acrescentou o marido. — Não era obrigado. No
entanto, disse que era esse o seu dever. Disse que era isso o patriotismo.
— E que se passou? — interessou-se Reacher.
O silêncio prolongou-se.
— Não voltou — acabou Hobie por informar.
O silêncio parecia um peso na sala. Algures, um relógio fazia tiquetaque, enchendo o ar
como golpes de martelo.
— Isso deu cabo de mim — confidenciou o velhote em tom baixo. O oxigénio emitia um
silvo a entrar e sair pela sua garganta apertada. — Costumava dizer: «Trocava todo o
resto da minha vida por um único dia a mais com ele.» Olhando para mim agora, não é
grande coisa, pois não? Mas disse-o nessa altura, voltei a dizê-lo todos os dias durante
trinta anos, e Deus é minha testemunha de que sempre o disse com sinceridade.
— Quando é que foi abatido? — inquiriu Reacher baixinho.
— Não foi morto — esclareceu Hobie. — Foi capturado. A princípio, disseram-nos que
tinha desaparecido. Pensámos que estivesse morto, mas sempre mantivemos uma certa
esperança. Nunca recebemos comunicação oficial de que tivesse sido morto.
— Por isso, ficámos à espera — interveio a mãe. — Durante anos e anos. Até que
começámos a fazer perguntas. Contaram-nos que o helicóptero de Victor tinha sido
abatido na selva, mas os destroços nunca foram encontrados.
— Nessa altura, aceitámos a notícia — retomou Hobie. — Muitos rapazes morreram sem
se saber onde ficaram enterrados. Acontece sempre isso em todas as guerras.
— Até que ergueram o monumento — disse a senhora por sua vez. — Já o viu?
— O Muro? — inquiriu Reacher. — Em Washington, DC? Sim, já lá estive. Vi-o. Achei
comovente.
— Recusaram-se a inscrever lá o nome dele — declarou Hobie. — Nós pedimos,
implorámos, mas nunca fomos informados da verdadeira razão. Limitaram-se a dizer
que já não é considerado vítima.
— Então, perguntámos o que é considerado — voltou a senhora a intervir. —
Desaparecido em combate, disseram-nos.
— Só que os outros desaparecidos em combate estão lá representados — lembrou o pai.
— Qual foi o comentário do general Garber quanto a isso? — interrogou Reacher.
— Não compreendia a razão — explicou Hobie. — Não percebia. Ainda estava a
investigar por nós quando morreu.
Fez-se novo silêncio. O oxigénio sibilava, o relógio batia.
— No entanto, agora sabemos o que aconteceu. — Acabou por ser Mrs. Hobie a retomar a
palavra.
— Sabem? — estranhou Reacher. — O que foi?
— Foi feito prisioneiro. Isso é causa de embaraços para o Governo. A verdade é que alguns
dos nossos rapazes nunca foram entregues. Os Vietnamitas mantiveram-nos como reféns
para conseguir empréstimos e reconhecimento comercial depois da guerra. Uma espécie de
chantagem. O Governo resistiu durante anos, apesar de os nossos rapazes ainda lá estarem
prisioneiros. Portanto, não se pode contar a verdade. Antes se esconde.
— Mas agora já temos provas — interveio por sua vez o marido.
Fez deslizar outra fotografia de dentro da pasta. Estendeu-a. Fora
tirada com uma teleobjectiva através de vegetação tropical. Havia arame farpado a ligar
postes de bambu. Uma figura asiática de farda castanha, com um lenço atado na testa e
uma espingarda soviética AK 47 nas mãos. E um branco alto de uns cinquenta anos,
emaciado, muito magro, de uniforme de combate a cair aos bocados.
— É Victor — garantiu Mrs. Hobie. — A fotografia foi tirada no ano passado.
— Passámos trinta anos a perguntar por ele — recordou o marido. — Ninguém nos ajudou,
até encontrarmos um homem que nos falou destes campos secretos. Não há muitos. São
poucos, com um punhado de prisioneiros. Entretanto, a maioria já morreu. Esse homem
chama-se Rutter, foi ao Vietname e verificou por nossa conta. Aproximou-se o suficiente
para tirar esta fotografia. Chegou mesmo a conversar com um dos outros presos através do
arame farpado. Em segredo, à noite. Perguntou o nome do prisioneiro que acabara de
fotografar. Era Vic Hobie, piloto de helicópteros do Primeiro Regimento de Cavalaria.
— Rutter não tinha dinheiro para efectuar o resgate — interveio a mulher. — Já lhe tínhamos
entregado todas as nossas poupanças para a primeira viagem. Nada mais nos restava. Por
isso, quando conhecemos o general Garber no hospital, contámos-lhe a nossa história e
pedimos-lhe que tentasse fazer que fosse o Governo a pagar.
Reacher fitava a fotografia: o homem magro de cara acinzentada.
— Então, que querem que eu faça? — perguntou.
— Só o quero de volta — respondeu o velhote. — Só quero tornar a vê-lo, só mais um dia,
antes de morrer.
Tom Hobie recorreu a ambas as mãos para erguer a pastinha e lha estender. Reacher
inclinou-se para diante e recebeu-a. A princípio, presumiu ser para repor as três
fotografias no lugar, mas depois apercebeu-se de que o testemunho lhe tinha sido passado.
Como numa cerimónia. A busca deles tornara-se a busca de Leon e agora a sua.
A pasta era fina. Continha apenas as cartas pouco frequentes do filho e outras, formais,
do Estado-Maior do Exército. E papelada demonstrativa da liquidação da poupança de
toda uma vida, com a transferência por cheque de dezoito mil dólares para um endereço
no Bronx, a fim de financiar uma missão de reconhecimento ao Vietname liderada pelo
homem chamado Rutter. O acordo deixara-os sem um tostão. Havia uma folha escrita com
letra trémula em que se encontrava a lista das suas necessidades mensais, sucessivamente
cortadas até as despesas equivalerem ao que recebiam da Segurança Social, libertando
assim as suas poupanças. Havia ainda uma carta, datada de três meses após a
transferência bancária, pormenorizando a descoberta do campo remoto, a fotografia
clandestina, a conversa sussurrada de um lado ao outro do arame farpado. Acompanhava-
a o orçamento para uma missão de salvamento planeada em grande pormenor e que
custaria aos Hobies quarenta e cinco mil dólares. Dinheiro que eles não tinham.
— Ajuda-nos? — perguntou a velhota. — Está tudo claro? Há mais alguma coisa que
precise de saber?
Reacher fechou a pastinha e ficou a olhar para o cabedal gasto. Naquele preciso
momento, a única coisa que precisava de saber era: porque raio omitira Leon a verdade
àquelas pessoas?
CINCO

Marilyn Stone era de opinião de que apresentar uma casa com pouca mobília
aumentava a sensação de espaço. Portanto, os primeiros a chegar tinham sido os homens
das mudanças. Mandara-os levar a credência do vestíbulo e depois a poltrona de Chester
da saleta. Não por se tratar de uma peça de má qualidade, mas por estar indiscutivelmente
a mais. Era a cadeira preferida dele, escolhida como os homens escolhem as coisas, por
comodidade e por as reconhecerem, não por terem estilo e serem adequadas. No dia-a-
dia, dava à divisão um aspecto confortável e vivido, transformando-a de interior de
revista de decoração em casa de família. Por isso mesmo, linha de se ir embora.
A florista chegou a seguir com caixas de cartão baixas cheias de botões. Marilyn
mostrou uma revista europeia à rapariga e disse-lhe que copiasse os arranjos. O tipo da
imobiliária para que Sheryl trabalhava entregou o letreiro com vende-se e ela mandou
pô-lo na berma, perto da caixa do correio. Chegou depois o grupo de jardineiros, e a
dona da casa acompanhou o chefe numa volta pelo jardim, explicando o que tinha de ser
feito. De súbito, sentiu-se resplandecer de satisfação com os seus progressos.
Ambos o acompanharam à saída para se despedir, o velhote empurrando devagar o
cilindro à sua frente, usando-o em parte como bengala, em parte impelindo-o como um
carrinho de golfe. A mulher seguia-o. Reacher era o último da fila, com a pastinha de
cabedal debaixo do braço. A velhota manobrou a tranca da porta, e o marido parou,
ofegante, agarrado à pega do carrinho. A porta abriu-se, deixando entrar um doce ar puro.
— Ainda há por aí alguns velhos amigos de Victor? — perguntou Reacher. — Gostava de
conhecer os antecedentes.
Eles pareceram ficar confusos, mas não deixaram de pensar no assunto.
— Ed Steven, suponho, da drogaria — acabou por sugerir Mr. Hobie. — Era unha com carne
com Victor, lá isso era. Todavia, isso foi há trinta e cinco anos. Não vejo que importância
possa ter agora.
Reacher acenou com a cabeça.
— Ligo-vos assim que souber alguma coisa — prometeu. — Obrigado pelo café e pelo bolo. E
lamento imenso a situação em que se encontram.
Eles não responderam. Fora um comentário desajeitado. Trinta anos de sofrimento.
Todas as poupanças gastas a mandarem um tipo ao Vietname para uma reles fotografia. E
ele lamentava imenso a situação em que se encontravam? Virou-se, apertou-lhes as mãos
frágeis e saiu. Regressou ao Taurus e dirigiu-se para Brighton, a sul. A estrada não
tardou a alargar. Apareceram uma bomba de gasolina e um quartel de bombeiros, um
supermercado com ampla zona de estacionamento, um banco, uma fileira de lojecas um
pouco recuadas em relação à rua.
Reacher passou devagar pelo supermercado e avistou um barracão grande isolado:
Drogaria Steven. Dirigiu-se para lá e parou junto de uma zona de armazenagem de
madeiras.
A entrada dava para um labirinto de corredores onde estavam expostas numerosas
coisas que Reacher nunca precisara de comprar: parafusos, pregos, ferramentas, latas de
tinta. O labirinto desembocava num núcleo central onde quatro balcões desenhavam um
quadrado. Lá dentro, encontravam-se um homem e dois rapazes, todos de calças de ganga,
camisas e aventais encarnados de lona. O homem era baixo e magro, rondando os
cinquenta anos, e os rapazes eram nitidamente filhos dele.
— Ed Steven? — perguntou Reacher.
O homem anuiu de cabeça e ergueu as sobrancelhas, com o ar de quem tem trinta anos
de experiência em responder a perguntas.
— Posso perguntar-lhe umas coisas sobre Victor Hobie?
— Nova investigação encomendada pelos pais? — indagou o indivíduo.
Reacher confirmou com um aceno de cabeça.
— Preciso de ter umas luzes sobre que espécie de homem era. Consta que o senhor o
conhecia bastante bem.
— Sim, acho que sim, mas não passávamos de garotos. Andámos sempre juntos na escola,
acabámos o secundário no mesmo dia. Depois, só tornei a vê-lo uma única vez, quando
veio a casa de licença. Passara um ano no Vietname e ia voltar para lá.
— Que género de pessoa era?
— Tenho um certo pejo em dar-lhe a minha opinião — replicou o outro, encolhendo os
ombros.
— Porquê? Alguma coisa desagradável?
— Não, nada disso. Não há nada a esconder. Era bom rapaz. Só que é dar-lhe a opinião
de um miúdo sobre outro, e é uma opinião com trinta e cinco anos, percebe? Pode não
ser correcta.
Reacher assentiu com um aceno de cabeça.
— Sim, compreendo. Vou ter isso em conta.
— Victor era um tipo certinho — prosseguiu o dono da loja —, normalíssimo.
Interessava-se pelas mesmas coisas que todos nós, acho eu: basebol, Elvis, gelados e o
Zorro. O costume.
— O pai disse-me que ele sempre quis ser militar.
— Todos queríamos. Primeiro, eram cowboys e índios, depois, militares.
— Então, você também esteve no Vietname?
— Não — respondeu o outro, abanando a cabeça. — Eu a modos que ultrapassei a fase
militar. Não por ser contra. Tem de compreender que isto se passou muito antes de cá
chegar a moda dos cabelos compridos e dos protestos. Não, simplesmente comecei a
achar uma coisa antiquada, pertencente ao passado, percebe? Eu queria dedicar-me ao
negócio. Pretendia transformar a loja do meu pai num potentado. Parecia-me mais
genuinamente americano do que ir para a tropa.
— Como é que Victor reagiu a isso?
— Bem, eu não era contra a guerra, nem nada que se parecesse, foi apenas uma opção
pessoal. Eu queria avançar com os tempos, Victor queria as forças armadas. Ele queria
cumprir o seu dever. Por aqui, éramos todos muito sérios e antiquados, Victor talvez
um pouco mais do que os restantes.
— Era esperto?
— Saiu-se bem nos estudos, sem propriamente rebentar as escalas.
— Alguma vez teve problemas?
Steven pareceu impacientar-se.
— Problemas? Você não me ouviu bem. Victor era direito como um fuso.
— Que tal lhe pareceu quando o viu pela última vez? Entre as duas comissões de serviço.
Steven matutou.
— Um pouco mais velho, acho eu. Eu crescera um ano, ele aparentava ter crescido cinco.
Organizaram um desfile quando regressou por ter ganho uma medalha. Ficou muito
embaraçado, disse que a medalha não era nada de especial. Depois, voltou a partir. Nunca
mais regressou.
— E quanto ao mistério? Acerca do que lhe sucedeu.
O dono da loja abanou a cabeça, taciturno.
— Não há mistério. Morreu. Eles são apenas dois velhotes que se recusam a aceitar a realidade,
nada mais.
Caiu em silêncio, e Reacher agradeceu-lhe pela conversa e acrescentou:
— Tenho de ir almoçar. Ainda não comi nada.
— Vire para sul. Há um snack-bar logo a seguir à estação dos comboios. Era onde
costumávamos ir tomar batidos às nove e meia da noite de sábado, sentindo-nos
praticamente o Frank Sinatra.
O snack-bar modificara-se desde que Ed e Victor lá tinham bebido os seus batidos
ao sábado à noite. Agora, aparentava um estilo anos 70, baixo e quadrangular, com um
brilho de fim de século sob a forma de elaborados letreiros de néon em todas as montras.
Reacher sentou-se ao balcão e pediu um bife grande. A seguir, abriu a pastinha de
cabedal.
Concentrou-se nas cartas de Victor para os pais. Havia treze dos aquartelamentos de
recruta e catorze do Vietname. Corroboravam tudo o que Reacher ouvira a Ed Steven.
Gramática correcta, ortografia correcta, expressões concisas. Pessoa delicada,
cumpridora, convencional, bem instruída, não sendo no entanto nenhum génio.
A empregada serviu-o, e ele continuou a folhear o processo. A fotografia tirada após o
juramento de bandeira em Rucker era mais difícil de interpretar. A pala do boné punha os
olhos de Victor bem na sombra. Os ombros estavam para trás, e o corpo, tenso. A
rebentar de orgulho ou com vergonha da mãe? Era difícil de perceber. Reacher acabou
por se decidir pelo orgulho por causa da boca. Uma linha direita ligeiramente retorcida
para baixo nos cantos, o tipo de boca que precisa do domínio firme sobre os músculos
faciais para evitar um enorme sorriso de alegria. Era um tipo no seu auge. Todos os
objectivos conseguidos, todos os sonhos realizados. Duas semanas depois, estava no
ultramar.
Reacher pagou a conta, deixando dois dólares de gorjeta à rapariga. Demasiado cedo
para ir directo à Wall Street. Jodie dissera sete horas. Tinha, no mínimo, duas horas para
gastar. Esgueirou-se para dentro do Taurus, abriu o mapa sobre a rígida superfície de
cabedal da pastinha e estudou o caminho até à Auto-Estrada do Rio Bronx, que o levava
directo ao Jardim Botânico, que ele muito desejava visitar.
Marilyn verificou o trabalho da equipa de limpeza antes de a deixar partir, e estava
perfeito. Na alcatifa do vestíbulo fora usado um aparelho de vapor, não devido à
sujidade, mas sim por ser a melhor maneira de tirar as marcas deixadas pelos pés da
credencia.
Tomou um duche prolongado e depois vestiu-se. Envergou o veslido preferido de
Chester, de seda rosa-velho, que lhe chegava quase até ao joelho e sublinhava todos os
sítios certos, como se tivesse sido leito por encomenda. Até fora, embora Chester o
ignorasse. O marido estava convencido de que fora uma sorte no pronto-a-vestir. Marilyn
usava-o quando lhe parecia que Chester precisava de uma recompensa. Ou de distracção.
E esta noite ia precisar de distracção. la chegar a casa e encontrá-la à venda, com a
mulher no comando. I 'osse como fosse que ela encarasse a questão, seria um fim de dia
difícil.
Escolheu os Gucci de salto alto que condiziam com a cor do vestido e faziam as suas
pernas parecerem mais altas. A seguir, desceu para a cozinha, e estava a almoçar (uma
maçã e um quadradinho de queijo magro) quando o telefone tocou. Era Sheryl.
— Marilyn? Seis horas no mercado, e o isco já foi mordido!
— Sim? Por quem? E como?
— É um cavalheiro que vai mudar-se para cá com a família. Andava a passear pela zona a ver se
se adaptaria e viu o letreiro. Veio logo cá informar-se dos pormenores. Posso levá-lo aí?
— Caramba, já? Neste momento? É rápido, não é? Bem, acho que estou a postos. Quem é ele,
Sheryl? Achas que se trata de um comprador a sério?
— Sem dúvida, e só cá está hoje. Tem de voltar hoje à noite para casa.
— Bom, está bem, acho que podes trazê-lo. Fico à espera.
Correu pelo vestíbulo. Na salinha, abriu por completo as persianas para se ver a
piscina. A seguir, inspeccionou todas as divisões, deitando olhares críticos, ajustando
arranjos florais, sacudindo almofadas. Ouviu o carro de Sheryl no saibro ao mesmo
tempo que se olhava ao espelho. Santo Deus! Já estavam a chegar à porta, a tocar à
campainha. Inspirou, sacudiu as ancas para soltar o tecido e atravessou o vestíbulo.
Voltou a inspirar fundo e abriu a porta.
Sheryl fitou-a, radiante, mas Marilyn já estava a olhar para o comprador. Era alto,
rondando os cinquenta e cinco anos, envergava fato escuro e postara-se de lado, a
contemplar a sebe que ladeava o caminho de acesso. A dona da casa trocou com Sheryl
um rápido sorriso conspirador e virou-se para o homem.
—Entrem — convidou, animada, estendendo a mão.
Ele voltou-se, deixando de prestar atenção ao jardim, e fitou-a a direito, franca e
ostensivamente. E Marilyn deu por si a retribuir-lhe o olhar, pois o recém-chegado tinha
terríveis marcas de queimaduras.ETm lado da cabeça não passava de um conjunto de
brilhantes cicatrizes róseas. Ela manteve o sorriso delicado e a mão estendida para o
visitante. Este fez uma pausa e só depois levantou a mão ao encontro da sua. Todavia, não
se tratava de uma mão. Era um gancho de metal brilhante, uma desagradável curva
metálica feita de aço cintilante.
Reacher parou junto ao passeio, à porta do edifício de sessenta andares na Wall Street,
dez minutos antes das 7. Manteve o motor a trabalhar e pesquisou a praceta fronteira à
porta de saída do edifício. Nada que o preocupasse. Ninguém parado, ninguém a
observar, apenas uma torrente de empregados de escritório em saída apressada.
Ela apareceu antes das 7. Atravessou um raio de sol e entrou no carro.
— Olá, Reacher — cumprimentou.
— Olá, Jodie.
Ela sabia qualquer coisa. Percebia-se pela expressão. Tinha grandes notícias para lhe
dar, mas o seu sorriso indicava que não ia revelar-lhas à primeira.
— O que foi? — perguntou ele.
— Você primeiro. — Ela sorriu de novo, abanando a cabeça.
Reacher contou-lhe tudo o que o casal de velhotes lhe dissera. O
sorriso dela desvaneceu-se numa expressão sombria. Depois, Reacher deu-lhe a pastinha
de cabedal e deixou-a examinar o conteúdo enquanto ele conduzia até casa dela.
Entrou directamente na garagem. O automóvel era diferente, e ele achou que, se alguém
estivesse à espera, havia de hesitar o tempo suficiente para lhe proporcionar toda a
vantagem de que precisava. No entanto, a garagem estava tranquila. Estacionou o Taurus
no lugar e subiram os degraus de metal de acesso ao átrio, que estava vazio. Ninguém no
elevador, ninguém no corredor do quarto andar. Jodie abriu a porta e entrou à frente dele.
— Então, é o Governo que anda atrás de nós — comentou. — Estamos a aproximar-nos do
segredo desses campos, e o Governo tenta silenciar-nos. A CIA, ou seja lá quem for.
Reacher foi directamente para a cozinha. Abriu a porta do frigorífico e tirou uma
garrafa de água.
— Estamos em grave perigo — continuou ela. — Você não parece levar o caso muito a sério.
Não acredita?
— Acredito — respondeu Reacher. — Acredito em tudo que eles me contaram.
— E a fotografia prova-o, não é? A existência do lugar é real.
— Sei que existe. Eu estive lá — assentiu Reacher.
— Esteve lá? — perguntou ela, de olhos arregalados. — Quando? Como?
— Há pouco tempo. Cheguei quase tão perto quanto o tal Rutter.
— Por amor de Deus, Reacher — insistiu Jodie. — Devíamos ir à Polícia. Ou aos jornais, talvez.

— Espere aqui por mim, está bem?
Aonde vai?
— Vou comprar uma arma. Depois, compro piza para dois e jantamos aqui.
— Não pode comprar uma arma em Nova Iorque, por amor de Deus. Há leis. Precisa de
identificação, de licença, de uma data de
coisas.
— Posso comprar uma arma em qualquer lado — ripostou Reacher. — Especialmente em Nova
Iorque. Tranque a porta assim que eu sair, está bem? E não a abra senão quando me vir pelo
óculo.
Deixou-a na cozinha, desceu até ao átrio pelas escadas de emergência e deteve-se na
confusão do passeio o tempo suficiente para se orientar. Havia uma loja de pizas no
quarteirão a sul. Entrou e encomendou uma das grandes, metade com anchovas e pickles e
a outra metade com malagueta, para sair dali a meia hora. Depois, atravessou a
Broadway pelo meio do trânsito em direcção a leste.
Ao fim de dez minutos a andar depressa, encontrou o que procurava nas sombras das
proximidades da Ponte de Brooklyn. Era um emaranhado de ruas e um grande bairro de
habitação social. Lojas rascas apinhadas e um campo de basquetebol. Contornou uma
esquina e parou encostado à vedação de arame, com os ruídos do jogo atrás de si e a
assistir à colisão de dois mundos. O fluxo de trânsito era rápido e as pessoas
caminhavam à pressa. Por vezes, um veículo parava e um miúdo precipitava-se para a
janela do condutor. Havia
uma breve conversa, com dinheiro a mudar de mãos, e o miúdo regressava à mesma
velocidade a uma porta por onde desaparecia. Reaparecia pouco depois e corria de novo
para a viatura. O condutor relanceava o olhar para a esquerda e para a direita, aceitava um
pacotinho e reentrava no fluxo de trânsito com uma nuvem de gases de escape e o apitar de
buzinas.
O tráfico realizava-se por vezes a pé, mas o sistema era sempre igual. Os miúdos eram
os intermediários. Transportavam o dinheiro para dentro e os pacotinhos para fora, sendo
todos demasiado novos para poderem ser levados a julgamento. Reacher percebeu que se
dirigiam a três portas em especial, espaçadas nas frontarias do quarteirão. A central era a
que testemunhava mais actividade. Correspondia ao décimo primeiro prédio a contar da
esquina a sul. Reacher desencostou-se e deu a volta até ao estreito beco por detrás dos
edifícios.
Olhava em frente ao caminhar, contando onze escadas de emergência. Baixou o olhar
para o nível do chão e viu um carro preto encafuado no espaço estreito em frente da
décima primeira porta das traseiras. Um jovem com os seus dezanove anos sentara-se no
capô. A sentinela das traseiras.
Reacher entrou no beco. Fingiu ver as horas e depois olhar em frente à distância.
Estugou o passo, quase correndo. No último momento, baixou os olhos para o carro, como
se o obstáculo o tivesse atraído subitamente de volta à realidade. O jovem observava-o.
Reacher desviou-se para a esquerda, onde sabia que o ângulo do carro não lhe permitiria
passar. Parou, exasperado, e virou para a direita, a fumegar com a raiva de alguém
apressado e atrasado por um incómodo. Rodou o braço esquerdo ao mesmo tempo que
dava a volta, atingindo o rapaz em cheio na fronte. O tipo desequilibrou-se e caiu no chão
da viela. Reacher fê-lo rolar e revistou-lhe os bolsos. Encontrou uma arma, mas não das
que queria. Uma .22 chinesa, imitação de uma imitação soviética de uma arma com todas
as probabilidades de já ser inútil à partida. Atirou-a para debaixo do automóvel, fora de
alcance.
Sabia que a porta das traseiras não estaria fechada à chave, facto essencial para quem
trafica ilegalmente menos de cento e cinquenta metros a sul da Police Plaza. Perante um
ataque frontal, é preciso fugir pelas traseiras sem ter de se procurar a chave. Entreabriu a
porta
tom a ponta do pé e habituou a vista à escuridão. Uns dez passos para a direita ficava
uma sala com a luz acesa.
Avançou dez passos, parou à porta e ficou à escuta. Ouviu uma voz baixa dentro da
divisão. Seguiu-se uma resposta. Duas pessoas, no mínimo.
Inspirou e entrou de rompante. A porta oscilou nos gonzos, e ele atravessou a sala em
duas grandes passadas. Dois homens. Pacotes em cima da mesa. Dinheiro. Uma arma.
Atingiu o primeiro tipo na têmpora com um movimento largo. A vítima caiu de lado, e
Reacher passou por ela, com uma joelhada no baixo ventre na reviravolta, para se dirigir
ao segundo homem, que entretanto começara a levanlar-se da cadeira, boquiaberto de
estupefacção. Reacher investiu alto, embatendo com o antebraço na testa do tipo.
Imobilizou-se e escutou para além da porta. Nada. O tipo do beco ficara inconsciente,
e os ruídos da rua distraíam os rapazes de serviço no passeio. Olhou de soslaio para a
mesa e logo desviou o olhar, pois a arma lá pousada era um Colt Detective. Um revólver
.38 de seis balas. Cano grosso e curto de duas polegadas. Inútil. Virou costas à mesa e
agachou-se junto do tipo que atingira na têmpora, começando a revistar-lhe o casaco.
Encontrou precisamente o que queria no bolso interior: uma grande automática preta,
Steyr GB de 9 mm, uma beleza, a preferida de há longa data pelos seus amigos das
Forças Especiais. Pegou-lhe, enfiou-a no cós das calças atrás e sorriu. Acocorando-se
junto do tipo inconsciente, sussurrou:
— Compro a Steyr por um dólar. Basta abanares a cabeça se não concordares, está
bem?
Voltou a sorrir e levantou-se. Arrancou uma nota de dólar do seu maço e deixou-a em
cima da mesa. Refez os dez passos de regresso polo corredor e saiu para a luz. Verificou
os dois lados da viela e encaminhou-se na direcção do carro estacionado. Abriu a porta
do condutor, descobriu a alavanca e escancarou o porta-bagagem. Conlinha um saco de
desportista de nylon preto vazio. Uma caixinha de cartão com balas de 9 mm encontrava-
se sob um emaranhado de cabos eléctricos. Pôs as munições no saco e afastou-se. A piza
aguartlava-o quando regressou à Broadway.
Aconteceu inesperadamente. Assim que entraram e a porta se íechou, o homem atingiu
Sheryl na cara com um golpe terrível do
que quer que tinha dentro da manga vazia. Marilyn ficou paralisada com o choque. Viu a
outra cair para trás, esparramada sobre a alcatifa. Viu a arma descrever uma curva na sua
direcção num movimento simétrico.
— Chegue aqui — ordenou o intruso.
Ela estava paralisada. Tinha as mãos na cara e os olhos tão arregalados que ele achou
que lhe rebentariam a pele do rosto.
— Mais perto — disse o homem.
Ela fitava a amiga, que se esforçava por se erguer nos cotovelos. Escorria-lhe sangue
pelo nariz e o lábio superior começara a inchar. Tinha a respiração entrecortada. Os seus
cotovelos acabaram por ceder, deslizando para a frente, e a cabeça de Sheryl bateu no
chão com um baque.
— Chegue aqui — repetiu o homem.
Marilyn arrastou os pés para diante até a arma lhe tocar no tecido do vestido. Sentiu a
frieza do metal cinzento através da seda fina. Ele levantou o braço direito. O gancho.
Manteve-o erguido em frente dos olhos dela. Era uma simples curva de aço polido
cintilante, com a ponta afiada. Ele encostou-lhe à testa a parte plana da curva. Ela
estremeceu. O intruso fê-lo roçar pela face de Marilyn, descer do queixo pelo pescoço
sob o maxilar até a obrigar a erguer a cabeça com a força exercida pelo ombro. Fitou-a
olhos nos olhos.
— Chamo-me Hobie — declarou.
Marilyn estava em bicos de pés, tentando aliviar o peso do pescoço. Começava a
sentir-se asfixiar.
— Chester falou-lhe de mim?
A cabeça dela estava inclinada para cima, fitando o tecto. Ela abanou a cabeça num
breve movimento aflito.
— Não — arquejou.
— Contou-lhe os problemas dos negócios?
Marilyn pestanejou. Abanou de novo a cabeça.
— Então, é um homem muito metido consigo.
— Acho que sim — arfou a mulher. — Seja como for, eu já tinha percebido.
— Ele tem alguma amante?
Ela voltou a pestanejar. Abanou a cabeça.
— Acho que não precisa de amante. A senhora é uma mulher bonita. — O gancho
abrandou. A linha de visão de Marilyn regressou à
horizontal e os saltos tocaram na alcatifa. — Uma mulher muito bonita. — Deixou cair o
gancho do pescoço da vítima. Tocou-lhe com ele na cintura. Descreveu-lhe a curvatura
da anca. Sheryl mexeu-se no chão. O gancho parou e o horrível olho direito de Hobie
rodou na direcção dela. — Meta a mão no meu bolso — ordenou a Marilyn, i|uc ficou
especada a olhar para ele. — A sua mão esquerda. No meu bolso direito.
Ela teve de se aproximar e baixar a mão entre os braços do intruso. Tacteou o interior
do bolso. Os dedos fecharam-se-lhe em torno de um rolo de fita adesiva larga. Retirou-a.
Hobie afastou-se dela.
— Vá amarrar os pulsos de Sheryl um ao outro com a fita — instruiu. — Vire-a e una-lhe os
cotovelos.
Ela hesitou. O homem levantou um pouco a arma e a seguir o gancho, numa exibição de
armamento superior. Marilyn fez um esgar antes de recorrer a ambas as mãos para deitar
a amiga de borco e lhe unir os cotovelos atrás das costas. Raspou com uma unha na fita e
levantou a ponta, enrolando-a várias vezes em redor dos antebraços de Sheryl, logo
abaixo dos cotovelos.
— Muito bem, sente-a — ordenou Hobie.
Ela arrastou-a para a posição de sentada, com os braços colados atrás. A cara de
Sheryl era uma máscara de sangue com o nariz inchado.
— Tape-lhe a boca com fita — continuou o homem.
Marilyn cortou um comprimento de quinze centímetros com os dentes. Sheryl
pestanejava, tentando focar os olhos. Marilyn dirigiulhe um triste encolher de ombros,
numa espécie de desculpa impolente, e colou-lhe a fita na boca. Era espessa, com reforço
de tecido inserido no revestimento de plástico prateado. Ela passou-lhe os dedos por
cima para a fazer aderir. Os olhos da vítima esbugalharam-se de pânico.
— Meu Deus, ela não consegue respirar — ofegou Marilyn. — Você partiu-lhe o nariz. — Ia
arrancar a fita, mas Hobie deu-lhe uma sapatada na mão e apontou-lhe a arma à cabeça. A meio
metro de distância. — Ela vai morrer — protestou.
— Lá isso vai — ripostou o intruso.
Marilyn fitou-o, horrorizada. O sangue gorgolejava nas vias respiratórias fracturadas
da amiga. Tinha os olhos fixos, em pânico.
— Quer que eu seja simpático? — perguntou o homem a Marilyn.
Ela acenou freneticamente que sim.
Ele inclinou-se e virou o gancho de modo que a ponta roçasse a fita sobre a boca de
Sheryl, que abanava a cabeça. Fez então força e enterrou a ponta na fita. A vítima
imobilizou-se. Hobie mexeu o braço, alargando o buraco. Retirou de novo o gancho. A
fita tinha um buraco irregular por onde o ar assobiava ao entrar e sair. Sheryl arquejava,
ofegante.
— Fui simpático — declarou o intruso. — Portanto, agora está em dívida para comigo,
certo?
Chester Stone encontrava-se sozinho na casa de banho do octogésimo oitavo andar,
para onde Tony o forçara a entrar. Stone caminhara pela alcatifa em camisola interior e
boxers, meias escuras e sapatos de verniz. Depois, Tony fechara-lhe a porta. Passados
poucos minutos, os dois homens deviam ter saído, pois Chester ouviu portas a fecharem-
se e o zunido do elevador nas proximidades. Depois, ficou tudo escuro e em silêncio.
Ele esperou uma hora inteira sentado no chão, de olhos fitos na porta, que não fora
trancada à chave. Estava com frio, cãibras, fome, magoado e assustado. Devagar,
levantou-se, à escuta. Nada. Ficou parado com a mão no puxador da porta. Apurou o
ouvido. Continuava a não se ouvir nada. Abriu a porta. O enorme gabinete estava vazio.
Atravessou-o sem ruído até à recepção. A porta para o corredor fora trancada. Ele
abanou a maçaneta e ficou longo tempo parado a espreitar pelo vidro reforçado com rede
metálica para os botões do elevador, a dez metros de distância.
Elavia um telefone no balcão de recepção, mas quando lhe pegou, o mostrador de
cristais de quartzo anunciou desligado. Premiu o botão que dizia ligar e no pequeno visor
surgiu o pedido de código. Carregou em algarismos ao acaso e no mostrador reapareceu
desligado.
Voltou ao gabinete de Hobie e encaminhou-se para a parede envidraçada. Afastou as
réguas do estore e espreitou lá para fora. Tinha de fazer qualquer coisa. Mas estava a
oitenta e oito andares de altura, sem vizinhos em frente a quem pudesse acenar a pedir
ajuda. Era inútil. Estava numa prisão. Ficou parado, trémulo, de olhos fixos no vazio,
antes de se virar e reencaminhar com lentidão para a casa de banho.
SEIS

Reacher pousou a caixa da piza na bancada da cozinha.


— Trouxe o jantar — anunciou.
Jodie pusera a mesa para dois, com os lugares em frente um do outro. Ele abriu a
caixa.
— Escolha.
Jodie estava mesmo atrás dele, que lhe sentiu a palma da mão tocar nas costas. Ardeu-
lhe. Jodie deixou ficar a mão um segundo parada antes de o empurrar para o lado.
— Vamos dividir — propôs.
Equilibrou a caixa no braço e levou-a para a mesa. Separou as fatias e distribuiu-as
pelos pratos. Sentou-se logo e começou a comer, enrolando o triângulo e atacando-o
vorazmente.
— Não almocei — esclareceu. — Você disse-me para não sair. — Deitou a língua de fora para
apanhar um fio de queijo. Sorriu, envergonhada, ao recolhê-la de novo entre os lábios, que
brilhavam com a gordura. — Anchovas, a minha preferida. Como é que sabia?
O vestido era de manga à cava, e Reacher via-lhe os braços todos do ombro para
baixo. Eram bem torneados, embora magros, e estavam bronzeados. A beleza de Jodie
tirava-lhe a respiração, mas fisicamente ela intrigava-o. Era magra como um fuso, mas
tinha um ar vibrante, firme e forte.
— Não posso cá ficar esta noite — declarou ele.
Jodie fitou-o do outro lado da mesa.
— Porque não? Se tiver alguma coisa para fazer, vou consigo.
— Não. Simplesmente, não posso ficar — insistiu Reacher.
— Porque não? — repetiu ela.
— Porque não, Jodie — disse ele, encolhendo os ombros, embaraçado. — Porque você pensa em
mim como uma espécie de tio ou qualquer coisa do género, mas eu não sou nada disso, pois
não?
Ela fitava-o de olhos esbugalhados.
— O quê?
— Isto não está certo — prosseguiu Reacher baixinho. — Não é minha sobrinha. Isso não passa
de uma ilusão por eu ter estado mui-
to próximo do seu pai. Para mim, você é uma mulher maravilhosa, e não posso cá ficar
sozinho consigo.
— Porque não? — repetiu ela quase sem fôlego.
— Que diabo, Jodie, porque não parece bem, só isso. Você não é minha sobrinha, e eu não
aguento continuar a fingir que é. Está a dar comigo em doido.
Ela estava imóvel. A fitá-lo. Ainda ofegante.
— Há quanto tempo sente isso? — acabou por perguntar.
— Desde sempre, acho eu. Por favor, Jodie, você não era nenhum bebé. Eu estava mais
perto da sua idade do que da de Leon.
Ela permaneceu em silêncio. Reacher susteve a respiração, à espera da indignação, do
trauma, mas ela limitava-se a fitá-lo. Reacher já lamentava ter falado. Devia ter ficado de
boca calada.
— Desculpe — pediu.
O rosto dela estava inexpressivo. Grandes olhos azuis muito abertos para Reacher, que
lhe fitou a cara angustiada e suspirou de desespero. A franqueza era a melhor política?
Balelas!
Até que Jodie fechou os olhos com força.
— Tinha de lhe dizer — continuou ele. — Lamento muito, Jodie.
Depois, viu um sorriso a espalhar-se-lhe por toda a cara. Ela
saltou da cadeira, correu para o outro lado da mesa e atirou-se a ele. Aterrou-lhe no colo e
pôs-lhe os braços à volta da cabeça, beijando-o como se a sua vida dependesse daquilo.
O carro era de Sheryl, mas ele obrigou Marilyn a conduzir. Sentou-se no banco traseiro,
com Sheryl ao lado, de braços presos atrás das costas. Continuava de fita na boca,
dificultando-lhe a respiração.
Tony foi ter com eles à garagem subterrânea. Já passava das horas de expediente, pelo
que estava tudo tranquilo. Subiram os quatro no monta-cargas. Hobie abriu a porta do
corredor e entrou na zona de recepção.
— Para a casa de banho — instruiu.
Tony puxou Sheryl para o gabinete interior e Marilyn seguiu-os. Hobie entrou atrás.
Atravessaram o espaçoso gabinete até à porta da casa de banho.
— Lá para dentro — ordenou o maneta. Viu-os entrar e ficou à porta.
Stone estava esparramado numa cadeira em roupa interior. Marilyn arfou e correu para
o marido, que abria e fechava os olhos como se pudesse apagar a cena passando-lhe um
pano por cima. Depois, fitou Sheryl. A mulher percebeu que Chester não sabia de quem
se tratava.
— Tony vai passar aqui a noite a dormir no sofá. Portanto, não saiam daí — continuou Hobie. —
Aproveitem bem o tempo. Converse com a sua mulher. Amanhã, vamos proceder à
transferência das acções. Será muito melhor para ela se o fizermos num ambiente de consenso.
Está a compreender?
Chester limitou-se a fitá-lo. O olhar de Hobie atardou-se sobre as mulheres antes de
fechar a porta.
O quarto branco de Jodie estava inundado de luz. Durante cinco minutos no final de
todas as tardes de Junho, o Sol, na sua descida para oeste, descobria uma fresta estreita
por entre os altos prédios de Manhattan e atingia em cheio as janelas dela. A persiana
parecia incandescente e as paredes captavam o brilho, reflectindo-o entre si ao ponto de
toda a divisão cintilar com uma suave explosão de branco. Reacher achou que era um
fenómeno inteiramente apropriado à ocasião. Estava deitado de costas, mais feliz do que
se jamais se sentira.
Jodie aninhara-se-lhe na curva do braço. Ele tinha a mão pousada nas costas dela e
afagava-lhe a pele. Jodie estava de olhos fechados e sorria. Reacher percebeu-o por ter
sentido no pescoço o roçar das pestanas dela e estar a sentir no ombro a forma da sua
boca. Jodie sorria.
— Aquilo que me disseste podia eu ter sido eu a dizer-te a ti, palavra por palavra. Quem me dera
tê-lo feito há muito tempo, mas não consegui.
— Eu também não — confessou Reacher. — Parecia-me um segredo pecaminoso.
— Pois — concordou ela. — O meu segredo pecaminoso. — Ergueu-se sobre os cotovelos.
Passou metade do corpo para cima do dele, com os seios a esmagarem-se contra o seu peito. O
sorriso intensificou-se. — Outra vez?
Ele fê-la rodar com suavidade.
— Recuperação do tempo perdido, não é? Todos estes anos.
Jodie anuiu de cabeça. Um movimento mínimo com um sorriso.
Marilyn assumiu ocomando. Sentia que era a mais forte. Chester e Sheryl estavam
compreensivelmente abalados, pois eram os dois que tinham sofrido maus tratos.
Arrancou a fita da boca da amiga e abraçou-a enquanto ela chorava. Depois, libertou-lhe
os braços, dos pulsos até aos cotovelos, procurou um lenço e limpou-lhe o sangue
coagulado da cara. O nariz dela inchara e estava a ficar negro. Marilyn começou a
preocupar-se em arranjar-lhe um médico. Já vira filmes em que são feitos reféns. Há
sempre alguém que se assume como porta-voz e obtém a libertação dos doentes a fim de
serem transportados ao hospital. Mas como o fazem em concreto?
Tirou toalhas dos toalheiros e deu uma a Sheryl e outra a Chester para se sentarem em
cima delas. Segurou-lhes nas mãos e apertou-as com força. O marido correspondeu ao
aperto.
— Lamento — pronunciou ele.
— Quanto devemos? — quis Marilyn saber.
— Mais de dezassete milhões.
— Que quer o homem? — prosseguiu ela.
— Tudo — disse Chester, encolhendo os ombros, desanimado. — Quer a firma por
inteiro.
— E a casa? Ainda é nossa, não? Pu-la à venda. Esta senhora é a mediadora. Diz que
deve vender-se por quase dois milhões.
— A casa pertence à firma — explicou Stone, abanando a cabeça. — Foi uma questão
técnica, para mais fácil financiamento.
Marilyn pôs os olhos no vácuo. A sua direita, Sheryl adormecera sentada. O terror
esgotara-a.
— Dorme tu também — aconselhou. — Vou ver se imagino qualquer coisa.
Ele voltou a apertar a mão da mulher e encostou a cabeça para trás. Fechou os olhos.
— Lamento imenso — repetiu.
Marilyn não respondeu. Limitou-se a ficar de olhos fixos em frente, a matutar.
O Sol desapareceu antes de terminarem pela segunda vez, deixando o quarto imerso na
frescura crepuscular. Ficaram deitados, exaustos, aninhados numa confusão de lençóis.
Até que ela se apoiou num cotovelo e o fitou com o mesmo sorriso travesso que Reacher
lhe vira à saída do escritório.
— Tenho uma coisa para te contar. Na minha função oficial de testamenteira do meu pai. Abri-o
hoje — contou, sempre a sorrir.
— E descobriste o quê? Que o teu pai era um avarento secreto? I lm bilionário disfarçado?
Ela abanou a cabeça.
— Deixou-te a casa — informou. — Onde estivemos, lá em Garrison.
— A casa dele? — perguntou Reacher, atónito. — O que é que eu faço com uma casa daquelas?
— Vais viver para lá, Reacher. Não é para isso que as casas servem?
Ele permaneceu em silêncio, até que abanou a cabeça.
— Eu não posso aceitar, Jodie. A casa é tua. Devia ter ficado para ti.
— Não a quero — redarguiu ela. — O meu pai sabia disso. Eu prefiro a cidade.
— Muito bem, então vende-a. Mas é tua, percebes? Vende-a e fica com o dinheiro.
— A casa era do meu pai — contrapôs Jodie, beijando-o. — Mesmo que eu a quisesse, tínhamos
de respeitar a vontade dele. No entanto, a verdade é que não quero. Ele sabia. Deixou-ta porque
queria que ficasses com ela. Andava preocupado contigo desde que le passaram à
disponibilidade. E eu não tenho qualquer problema com isso, garanto-to. Percebes?
— Claro — assentiu ele. — Percebo, mas é esquisito. De facto, é verdadeiramente esquisito.
— Queres café? — indagou Jodie, deslizando para fora da cama.
— Acho que sim.
— Puro, sem açúcar, não é? — Estava de pé, nua, só com os sapatos calçados. Sapatos de salto
alto. Percebeu que ele estava a imitá-la e explicou: — O chão da cozinha é frio. Nunca ando lá
descalça.
— Esquece o café, está bem?
Dormiram na cama dela toda a noite, muito para além da alvorada. Reacher acordou
primeiro, retirou cuidadosamente o braço de debaixo de Jodie e olhou para o relógio.
Quase 7. Dormira nove horas. O melhor sono da sua vida. Jodie dormia ao seu lado.
Estava
deitada de borco e afastara o lençol durante a noite. Tinha as costas nuas até à cintura.
Reacher beijou-lhe o pescoço. Ela mexeu-se.
— Bom dia, Jodie.
Ela abriu os olhos. Depois, sorriu. Um caloroso sorriso matinal.
— Estava com medo de ter sonhado — comentou.
Ele beijou-a novamente. Com ternura, na face. A seguir, com menos ternura, na boca.
Os braços dela rodearam-no e rolaram ambos. Fizeram amor de novo, pela quarta vez em
quinze anos. Depois, tomaram duche juntos pela primeira vez nas suas vidas. A seguir, o
pequeno-almoço. Comeram como se estivessem a morrer de fome.
— Tenho de ir ao Bronx — declarou Reacher.
— Por causa do tal Rutter? Eu levo-te. Sei mais ou menos onde é.
— Então, e o trabalho? Pensei que tinhas de ir ao escritório.
— Inventei essa — disse ela a sorrir. — Na verdade, até estou bastante adiantada.
Disseram-me que era melhor tirar a semana toda. Vou vestir-me.
Reacher seguiu-a até ao quarto, apanhando as suas roupas do chão. Jodie já estava
meio enfiada no roupeiro a escolher qualquer coisa. Optou por calças de ganga e camisa,
abrilhantadas por um cinto de cabedal e sapatos caros. Ele levou o casaco novo para a
entrada e enfiou a Steyr num bolso. Tirou munições do saco preto de desporto e guardou
vinte balas soltas no bolso oposto. Jodie saiu ao seu encontro com a pastinha de cabedal.
Estava a verificar a direcção de Rutter.
— Pronto? — inquiriu.
— O mais possível — disse ele.
Obrigou-a a esperar em todos os andares enquanto verificava o caminho à sua frente.
Exactamente o mesmo procedimento da véspera. Ontem, a segurança dela parecera-lhe
importante. Hoje, era vital. Porém, estava tudo tranquilo. Instalaram-se no Taurus, e ela
contornou o quarteirão para se dirigir para nordeste.
— Apanha a Auto-Estrada do Rio Bronx para norte — instruiu Reacher. — Temos de ir
ao Jardim Botânico. Quero mostrar-te uma coisa.
A construção da estufa do Jardim Botânico custara uma fortuna em 1902, e o seu restauro,
noventa e cinco anos depois, dez vezes mais. Fora todavia dinheiro bem gasto, pois o
resultado era magnífico. Vasta e ornamentada, a definição absoluta da filantropia urbana
expressa em ferro forjado e vidro leitoso.
Lá dentro, estava quente e húmido. Reacher conduziu Jodie até .10 local que procurara,
aquele em que as plantas exóticas se acumulavam em grandes canteiros delimitados por
muretes. Recuou um pouco, primeiro meio passo, a seguir outro, até ter a certeza.
— Põe-te aqui — pediu. Pegou-lhe nos ombros por trás e deslocou-a para a posição exacta que ele
próprio acabara de ocupar. — Olha em frente e diz-me o que vês.
— Nada — foi a resposta, algo impaciente. — Bem, plantas e coisas.
Ele assentiu com um aceno de cabeça e abriu a pastinha de cabedal. Extraiu a
fotografia do ocidental macilento, cadavérico, a retrair-se perante a espingarda do
guarda. Estendendo o braço, segurou-a em frente de Jodie, que esbugalhou os olhos,
empalidecendo.
— Essa fotografia foi tirada aqui? Aqui mesmo? As plantas são iguaizinhas.
Reacher baixou-se ao nível dela e voltou a verificar. As plantas eram exactamente as
mesmas. Uma palmeira à esquerda, com uns quatro metros e meio de altura, frondes de
fetos à direita. As duas figuras deviam ter-se colocado uns seis metros para o interior do
denso canteiro, sendo fotografadas com teleobjectiva, que comprimia .1 perspectiva e
desfocava a vegetação mais próxima.
— Mas e o arame? As estacas de bambu? Parecem tão reais.
— Cenários de teatro — aventou Reacher. — Três canas, um pedaço de arame farpado. Que
dificuldade há em obter isso? Trouxeram tudo para aqui, talvez de manhã muito cedo. Com isto
ainda fechado. Talvez conheçam alguém que trabalhe cá.
Jodie tinha os olhos fixos na fotografia.
— Então, esse Rutter recebeu dezoito mil dólares por uma fotografia falsificada?
— Pior do que isso. Deu-lhes falsas esperanças.
— Então, que vamos nós fazer?
— Vamos fazer-lhe uma visitinha — respondeu ele.
Listavam de regresso ao Taurus dezasseis minutos depois de o terem deixado. Jodie
enfiou pelo acesso à auto-estrada, a tamborilar com os dedos no volante e a falar muito
depressa:
— Mas tu disseste-me que acreditavas. Disseste que tinhas lá estado não há muito tempo,
praticamente tão perto como Rutter.
— Tudo verdade — confirmou Reacher. — Tinha acabado de chegar do Jardim Botânico.
E estivera tão perto como Rutter. Simplesmente, ontem não sabia até que ponto devia
partilhar as coisas contigo.
Ela acenou com a cabeça.
— Mas como é que conseguiste detectar a fraude?
— Foi o camuflado que do tipo que me chamou a atenção. Reparaste? Um velho
camuflado do Exército. O tipo foi abatido há trinta anos. E completamente impossível
um camuflado resistir trinta anos na selva. Apodrecem em seis semanas.
— E o que é que te fez procurar no Jardim Botânico?
— Que outro sítio tinha ele nas proximidades para encontrar vegetação daquela?
— E o vietnamita?
— É provável que seja algum estudante — aventou Reacher. — Talvez criado num
restaurante chinês. Provavelmente, Rutter pagou-lhe uns vinte dólares pela fotografia. E
capaz de ter quatro amigos a revezarem-se no papel de cativos americanos. Um branco
encorpado, um branco baixote, um negro encorpado, um negro baixote, para cobrir
todas as hipóteses. Pode ter vendido a mesma fotografia uma boa dúzia de vezes.
Depois, faz que as suas vítimas jurem segredo com essa história da conspiração
governamental para que nunca haja comparações posteriores.
— É nojento — comentou Jodie.
— Sem dúvida — assentiu Reacher. — As famílias dos CNR continuam a ser um grande
mercado vulnerável, suponho, e ele alimenta-se aí como um verme.
— CNR? — interrogou Jodie.
— Corpos não recuperados — esclareceu Reacher. — É como lhes chamam. MEA/CNR.
Mortos em acção, corpos não recuperados.
— Mortos? Não acreditas que ainda haja prisioneiros?
— Já não — disse ele, abanando a cabeça. — Soltaram todos os prisioneiros em 1973.
Quando de lá saímos, em 1975, arrebanharam uma última centena de extraviados e
devolveram-nos, o que não joga com a treta de manterem reféns para garantir auxílio
americano. Além disso, queriam desesperadamente que nós desminássemos os seus
portos, portanto não se iam pôr com jogadas parvas.
— Não é um argumento concludente — objectou ela com secura.
— Leon é o argumento concludente. O teu pai e pessoas iguais a cie. Conheço-as.
Corajosas, honradas, Jodie. O Pentágono está cheio de idiotas, eu sei isso tão bem
como toda a gente, mas sempre houve por lá um número suficiente de pessoas como
Leon para os manter na linha. Era impossível um segredo desses nunca ter chegado ao
conhecimento de algum Leon. Uma conspiração gigantesca escondida durante seis
administrações? Esquece. Aí tens uma prova concludente, pelo que me diz respeito,
Jodie.
— Não, isso é fé — ripostou ela.
— Seja o que for, para mim basta.
Jodie ficou a matutar no assunto até que anuiu com a cabeça. No fundo, a fé no seu
próprio pai também lhe bastava.
— Está bem, não há prisioneiros, não há campos — aceitou. — Não há conspiração
governamental. Logo, não foram agentes do Governo que nos atacaram.
Nunca achei que fossem — redarguiu ele. — A maior parte dos agentes
governamentais é muito mais eficiente do que aquilo.
— Então, tem de ser Rutter. Gere uma falcatrua lucrativa e está disposto a protegê-la. Receia que
vamos desmascará-lo, portanto onda à nossa procura. E agora estamos a planear ir nós próprios
ao encontro dele.
— Ora, a vida está cheia de perigos — declarou Reacher, sorrindo.
Marilyn percebeu que devia ter adormecido porque acordou rígida, com frio e a ouvir
vozes do outro lado da porta. A casa de banho não tinha janela, por isso não fazia ideia
da hora. Devia ser manhã, calculou. À sua esquerda, Chester fitava o vazio. A direita,
Sheryl enroscara-se no chão. O seu nariz era um hematoma pegado. Marilyn virou-se e
encostou o ouvido à porta.
Estavam dois homens do outro lado. O som era de duas vozes profundas a falarem
baixo. Ela levantou-se do chão, calçou os sapatos, que lhe tinham caído durante a noite, e
encaminhou-se devagarinho para o lavatório. Penteou-se com os dedos e lavou os olhos.
Depois, regressou para junto da porta e pôs-se de novo à escuta.
Dois homens, mas tinha quase a certeza de que nenhum deles era
Hobie. Era uma conversa de igual para igual, não de ordens e obediência. Inspirou fundo
e abriu a porta. Os homens calaram-se e viraram-se para ela. O que dava pelo nome de
Tony estava sentado de lado no sofá em frente da secretária. O outro, que ela nunca vira,
encontrava-se acocorado junto dele, perto da mesinha do café. Era um homem possante,
não propriamente alto, mas pesado, de fato escuro. Não havia sinais de Hobie.
— Dormiu bem? — perguntou Tony, sorrindo.
Ela não respondeu. Limitou-se a manter uma expressão neutra até o sorriso do outro se
desvanecer. «Um-zero», pensou Marilyn.
— Conversei com o meu marido sobre o assunto — mentiu.
Tony olhou-a na expectativa, mas ela deixou-o ficar à espera.
«Dois-zero.»
— Concordamos com a transferência — acabou por dizer. — Mas vai ser complicado.
Creio que há factores que desconhecem.
— Como, por exemplo?
— Eu falo com Hobie, não falo consigo — contrapôs ela. Fez-se silêncio. Marilyn
concentrou-se na respiração. Inspirar, expirar.
— Muito bem — aceitou Tony.
«Três-zero.»
— Queremos café — declarou ainda. — Três xícaras, com natas e açúcar.
Mais silêncio. Até que Tony acenou com a cabeça e o homem grande se levantou.
Desviou o olhar e saiu do gabinete em direcção à cozinha. «Quatro-zero», pensou
Marilyn.
A morada do remetente da carta que os Hobies tinham recebido correspondia a uma
reles montra à esquerda, entrada ao meio e porta de garagem à direita aberta. Apertado lá
dentro, estava um Lincoln Navigator preto novinho em folha, que com toda a
probabilidade valia mais do que o prédio que o envolvia.
Jodie passou pelo edifício e estacionou dois lugares à frente da montra, para depois ela
e Reacher refazerem o caminho a pé. A montra ostentava uma fraca exposição de
equipamento de refugo do Exército.
A porta tinha uma mola forte, e ao abrir-se accionava uma campainha. A loja estava
deserta. Havia um balcão à direita com uma porta atrás de acesso à garagem. Um
expositor circular cromado exibia roupas, e mais diversa tralha empilhada bem alto numa
única prateleira. A luz era fraca, mas via-se por todo o lado a poeira dos anos.
Reacher entrou à frente de Jodie. Dando dois passos para o interior,
viu um alçapão abrir-se do outro lado do balcão. Viam-se as traves do
chão dentro do buraco, e uma escada estreita descia para uma forte luz
eléctrica.
— Vou já — bradou do buraco uma voz mal-humorada. — Ao nível do chão,
apareceu uma cabeça de homem, seguindo-se-lhe os ombros e o tronco à
medida que ele subia a escada. Era uma figura volumosa e envergava um fato-
macaco cor de azeitona desbotado, ltinha cabelo grisalho gorduroso, barba
grisalha hirsuta, olhos pequenos. — Queriam alguma coisa? — perguntou.
Depois, apareceu atrás dele outra cabeça e ombros. Depois outra.
Mais outra. E mais outra. Quatro homens emergiram da escada da cave.
Todos pararam a mirar Reacher e Jodie antes de se afastarem para uma
fila de cadeiras junto da parede ao fundo. Eram homenzarrões tatuados
de fatos-macaco velhos semelhantes ao do primeiro.
— Queriam alguma coisa? — repetiu ele.
— Rutter? — indagou Reacher. O outro anuiu de cabeça. Não havia
reconhecimento no seu olhar. Reacher olhou de soslaio para a fila de homens
nas cadeiras. Eram uma complicação inesperada. Mudou de plano. Arriscou
adivinhar a verdadeira natureza das transacções da loja: — Quero um
silenciador — informou. — Para uma SteyrGB.
Rutter sorriu, com verdadeiro divertimento nos olhos.
— E ilegal eu vender-lhe um e o senhor ter um.
A forma sincopada como pronunciou aquilo era uma confissão
descarada de que os tinha e os vendia. Não pôs cautelas na voz. Não
desconfiava de que Reacher fosse um chui a tentar montar-lhe uma
armadilha. Nunca ninguém pensava que Reacher fosse polícia. Era
demasiado grande e demasiado brutamontes. Rutter não estava
preocupado com ele. Mas estava preocupado com Jodie. Não sabia o
que da era. Falara para Reacher, mas olhara para ela. Ela aguentou o
olhar dele sem pestanejar e indagou descontraidamente:
— E ilegal para quem?
— Ficam caros — respondeu Rutter, cofiando a barba.
— Em comparação com quê? — insistiu ela.
Reacher sorriu para consigo. Rutter estava inseguro quanto a Jodie, e as intervenções
dela, dúzia e meia de palavras, tinham-no deixado à deriva, pensando que ela tanto podia
ser uma colunável de Manhattan preocupada com alguma ameaça de rapto, como a mulher
de um rotário a pretender garantir a sobrevivência num complicado triângulo amoroso. Ela
fitava-o como pessoa habituada a conseguir o que quer.
— Steyr GB? — indagou Rutter. — Quer uma peça legítima, austríaca?
Reacher acenou que sim. O outro fez estalar os dedos, e um dos pesos-pesados
abandonou a fila de cadeiras e desceu pelo buraco. Reapareceu com um cilindro preto
embrulhado em papel.
— Dois mil dólares — declarou Rutter.
— Deixe-me vê-lo — pediu Reacher, assentindo com a cabeça.
Rutter entregou-lhe o tubo. Reacher puxou da arma e montou-o.
Melhorava o equilíbrio.
— Funciona mesmo bem? — perguntou.
— Claro — respondeu o interlocutor. — É genuíno, de fábrica.
O tipo que o trouxera para cima estava de regresso à sua cadeira.
Quatro tipos, cinco cadeiras. A maneira de neutralizar um gang consiste em eliminar
primeiro o chefe, mas aquela situação ia ser diferente. Rutter era o chefe, mas por
enquanto tinha de permanecer incólume.
— Dois mil dólares — repetiu.
— Experiência — anunciou Reacher. A Steyr GB não tem patilha de segurança. O
primeiro tiro exige uma pressão de seis quilos no gatilho, o que é considerado
suficiente para evitar um disparo acidental no caso de a arma cair. Reacher girou a mão
para a esquerda e exerceu a tal pressão. O tiro saiu e a cadeira vazia estilhaçou-se.
Os quatro tipos ficaram imobilizados, em choque. Tiras de vinilo e o estofo de crina de
cavalo flutuavam no ar. Rutter olhava, imóvel. Reacher esmurrou-o violentamente no
estômago com a mão esquerda e rasteirou-o, derrubando-o. Depois, apontou a Steyr ao
tipo da cadeira junto da que fora destruída.
— Lá para baixo — ordenou. — Todos vocês. Imediatamente, está bem? — Nenhum se
mexeu. Então, Reacher pôs-se a contar em voz alta: — Um, dois ... — Quando chegou
ao três, voltou a disparar, lascando as tábuas do chão aos pés do primeiro tipo. Os
homens
mexeram-se todos ao mesmo tempo, acotovelando-se, apinhados, junto do alçapão.
Passaram aos trambolhões. Reacher fechou o alçapão e arrastou o balcão para cima dele.
Rutter estava de gatas. Reacher pontapeou-o, atirando-o de costas, e continuou a
pontapear até o encurralar contra o balcão deslocado.
Jodie tinha na mão a fotografia falsificada. Acocorou-se e mostrou-lha. O homem
pestanejou e focou o olhar. Reacher agarrou-o pelo pulso esquerdo. Levantou-lhe a mão
e pegou-lhe no dedo mindinho.
— Perguntas — anunciou. — Parto-te um dedo de cada vez que me mentires.
Rutter começou a debater-se, recorrendo a todas as suas forças pura se levantar e fugir.
Reacher esmurrou-o violentamente no estômago, derrubando-o de novo.
— Sabes quem nós somos?
— Não — arquejou o outro.
— Onde foi tirada esta fotografia?
— Num campo secreto — arfou Rutter. — No Vietname.
Reacher torceu-lhe o dedo para o lado e fez estalar a articulação.
O outro berrou de dor. Reacher apoderou-se do dedo seguinte, que linha um anel de ouro.
— Onde?
— No Jardim Botânico — ofegou Rutter.
— Conheces os Hobies? — insistiu Reacher. — De Brighton. — Viu o outro pesquisar um rol
mental, atordoado, até que se tornou óbvio ter-se feito luz no espírito do homem, que se
esforçava por compreender como é que uns velhotes atarantados podiam ter feito cair aquele
terror sobre a sua cabeça. — Onde fica o teu banco?
Rutter hesitou, e Reacher voltou a apertar-lhe o dedo anelar.
— A dez quarteirões — guinchou Rutter.
— O livrete da carrinha?
— Na gaveta.
Reacher acenou a Jodie, que foi atrás do balcão. Abriu as gavetas ruidosamente e
reapareceu com um maço de papéis, que folheou, confirmando a seguir com um gesto de
cabeça.
— Registada em nome dele.
Reacher deixou de apertar o dedo e agarrou no outro pelo pescoço.
— Compro-te a carrinha por um dólar. Depois, levo-te ao banco
— informou. — Na minha carrinha nova. Levantas dezoito mil dólares para eu devolver aos
Hobies.
— Não — interveio Jodie. — Dezanove mil seiscentos e cinquenta. O dinheiro estava aplicado
num fundo. São seis por cento de juros acumulados em ano e meio.
— De acordo. Dezanove mil seiscentos e cinquenta para os Hobies e dezanove mil seiscentos e
cinquenta para nós — assentiu Reacher.
Os olhos de Rutter perscrutavam a expressão de Reacher sem compreender.
— Vigarizaste-os. Disseste-lhes que ias descobrir o que acontecera ao filho deles e nãoi
o fizeste. Portanto, vamos ter de ser nós a fazê-lo. Logo, precisamos de dinheiro para
as despesas, entendido?
— continuou Reacher. — Basta abanares a cabeça se tiveres algum problema em relação
a qualquer destas combinações.
Rutter puxava com força pelo pulso de Reacher, tentando desesperadamente abrandar a
pressão, mas a sua cabeça permaneceu imóvel.
Reacher largou-o de rompante e levantou-se. Passado um quarto de hora, estava no
banco de Rutter, que tinha a mão esquerda enfiada no bolso e assinava um cheque com a
direita. Cinco minutos depois disso, Reacher tinha trinta e nove mil e trezentos dólares
dentro do saco de desporto. Mais um quarto de hora, deixava Rutter num beco por detrás
da loja com duas notas de dólar enfiadas na boca, uma pelo silenciador e a outra pela
carrinha. Depois, foi atrás do Taurus de Jodie até à zona de entregas de viaturas alugadas
da Hertz no Aeroporto de LaGuardia. Finalmente, decorrido novo quarto de hora,
regressavam juntos a Manhattan no Lincoln de Rutter.
SETE
A noite cai em Hanói umas boas doze horas antes de o mesmo acontecer em
Nova Iorque. Por conseguinte, o Sol, que ainda estava alto quando Reacher e Jodie saíram
do Bronx, já se esgueirara por detrás das montanhas do Norte do Laos, trezentos e vinte
quilómetros a ocidente do Aeroporto de Noi Bai. O céu tinha cintilações alaranjadas de
crepúsculo tropical, e os odores da cidade e da selva eram subjugados pelo cheiro a
petróleo.
Um gigantesco C-141 Starlifter, avião de transporte da Força Aérea
dos EUA, encontrava-se estacionado a mais de quilómetro e meio dos
apinhados terminais de passageiros, junto de um hangar .em qualquer
identificação. A rampa de carga na traseira do avião eslava descida, e
os motores trabalhavam a rotações suficientes para fornecer a energia
necessária à iluminação interior.
O hangar era tão grande como um estádio, mas continha apenas .ele
caixões bem alinhados dispostos sobre cavaletes, cada um coberto com
uma bandeira americana passada a ferro.
Encontravam-se nove homens e duas mulheres no hangar. Seis dos
homens estavam lá como guardas de honra, fardados com imaculados
uniformes de gala do Exército. Três dos outros eram vietnamitas, dois
homens e uma mulher, baixos, escuros, impassíveis. Envergavam fardas
de trabalho, de tecido cor de azeitona-escuro, puídas e amarrotadas.
As últimas duas pessoas eram americanas, um homem e uma mulher,
à paisana, mas com o tipo de roupas civis que indicam hierarquia
militar com tanta clareza como qualquer uniforme.
O homem era alto, de cabelo grisalho, rondando os cinquenta e cinco
anos, e envergava roupa tropical de caqui. Esboçou um quase
imperceptível gesto de cabeça para a guarda de honra. O militar mais
graduado deu voz de comando, abafada, e os seis homens formaram
duas filas de três. Avançaram em marcha lenta até ficarem alinhados
com toda a precisão, três de cada lado do primeiro caixão. Baixaram-se
e ergueram-no em ombros num único movimento fluido. O mais
graduado voltou a falar e retomaram a marcha lenta a caminho da porta
do hangar. Uma vez no exterior, descreveram vagarosamente um
semicírculo até ficarem alinhados com a rampa do Starlifter. Subiram-
na com a mesma lentidão, tendo o cuidado de apoiar os pés nos veios
metálicos que lá tinham sido soldados para esse efeito, e internaram-se
no bojo do avião.
Levaram uma hora a embarcar os sete caixões. Depois, o americano
alto e grisalho fez-lhes a continência e apertou as mãos aos três oficiais
vietnamitas. Despedindo-se da americana com um aceno de cabeça,
correu ligeiro pela rampa e entrou no avião. Um motor potente, embora
vagaroso, zuniu ao fechar a rampa nas suas costas. O gigantesco avião
foi destravado e rolou para a pista a fim de partir em direcção a
Hickam Field, a principal base aérea militar no Havai.
O pequeno grupo de pessoas dispersou. Os três oficiais vietnamitas reencaminharam-se
para o seu carro. A mulher conduzia, e os dois homens ocupavam o banco de trás. A
deslocação até ao centro de Hanói era breve. A mulher estacionou num terreno vedado
nas traseiras de um edifício baixo de cimento. Os homens saíram sem uma palavra e
entraram por uma porta não identificada. A mulher trancou o automóvel e contornou o
edifício até outra entrada. Subiu um pequeno lanço de escadas de acesso ao seu gabinete,
onde registou na ordem do dia o envio de carga em segurança. A seguir, pegou no telefone
e ligou para um número a quase dezoito mil quilómetros de distância em Nova Iorque.
Marilyn acordou Sheryl e conseguiu despertar ligeiramente Chester antes de o
homenzarrão entrar na casa de banho com o café em canecas. O tipo alinhou-as na estreita
prateleira de granito por baixo do espelho e voltou a sair, sempre em silêncio.
Marilyn distribuiu as canecas. A primeira a Sheryl, ajudando-a a dar um gole, depois
ao marido, que a aceitou com ar apático.
— Onde estão os certificados das acções? — sussurrou Marilyn.
Ele ergueu os olhos inexpressivamente.
— No banco, no cofre.
Marilyn assentiu com um gesto de cabeça; Ficava a uns três quarteirões de distância.
— Quantas há?
— Mil, a princípio. Usei trezentas como garantia para os empréstimos. Tive de as
entregar ao emprestador a prazo.
— E agora estão na posse de Hobie?
— Ele comprou a dívida — assentiu Stone. — E eu prometi-lhe outras noventa. Ainda
estão no cofre.
— Então, como é que se efectua a transferência?
— Assino a transferência das acções para o nome dele, que regista os certificados na
Bolsa — explicou Chester, fatigado. — Quando tiver quinhentas e uma registadas em
nome dele, passa a sócio maioritário. Deve demorar uns dez minutos, do princípio ao
fim, a ficarmos sem um tostão.
Hobie recebeu a chamada de Hanói em casa. Ouviu o breve relato da vietnamita e
desligou sem proferir uma única palavra. Atravessou depois o apartamento e saiu para o
elevador. Desceu até à garagem.
O seu carro, um Cadillac de último modelo, não estava modificado em nada que o
pudesse ajudar com a deficiência. Usar a chave era complicado, pois tinha de se inclinar
para o lado, enfiá-la e rodá-la com a mão esquerda. Porém, feito isso, não tinha grandes
problemas.
Com a caixa automática, saiu da garagem a conduzir só com uma mão, dirigindo-se
para as Torres Gémeas. Tony estava na recepção quando ele entrou no escritório do
octogésimo oitavo andar.
- Voltaram a ligar de Hanói — disse. — A carga está no ar.
Portanto, devíamos simplesmente esquecer esta coisa dos
Stones — sugeriu Tony.
Ainda vai demorar uns dias, não percebes?
- Uns dias podem não ser suficientes — contrapôs Tony. — Há complicações. A mulher diz que
falou com o marido e que concordaram, mas que há complicações que desconhecemos.
- Agora não me posso dar ao luxo de ter complicações. Acabo de assinar contratos de promessa
de compra e venda dos imóveis, e os negócios separados. Que complicações são essas?
— Ela não me quis dizer — respondeu o outro. — Insiste em falar directamente consigo.
— E quanto a Mrs. Jacob? — inquiriu Hobie.
— Passou a noite toda em casa — contou Tony. — Com o tal Reacher. Esta manhã, saíram pelo
Viaduto FDR. Talvez de volta a Garrison.
— Não preciso dela em Garrison. Preciso dela aqui mesmo. Agora, traz-me Mrs. Stone.
Entrou no seu gabinete, que atravessou até à secretária. Tony encaminhou-se para a
casa de banho, reaparecendo passados instantes a empurrar Marilyn à sua frente. O
vestido de seda parecia ridículo naquele contexto, como se ela tivesse ido a uma festa e
estivesse perdida na cidade na manhã seguinte. Hobie apontou para um sofá.
— Sente-se, Marilyn.
Ela permaneceu de pé. O sofá era demasiado baixo. Demasiado baixo para lhe
proporcionar a vantagem psicológica de que precisava. Contudo, ficar de pé em frente da
secretária também não convinha. Dava um ar de súplica. Dirigiu-se à parede de vidro, o
que o obrigou a rodar a cadeira para a enfrentar.
— Que complicações são essas? — indagou Hobie.
Ela fitou-o e respirou fundo.
— Já lá vamos — declarou. — Primeiro, levamos Sheryl ao hospital.
Fez-se silêncio. Não se ouvia qualquer outro som que não fosse o dos movimentos num
prédio cheio de gente.
— Vai buscar Stone à casa de banho — ordenou Hobie a Tony.
Stone apareceu, trôpego, em roupa interior, empurrado por Tony
até à secretária.
— Que complicações há? — indagou Hobie.
Ele limitou-se a relancear o olhar esgazeado à esquerda e à direita, como se estivesse
demasiado assustado e desorientado para falar.
Hobie esperou. Até que fez um gesto de cabeça.
— Parte-lhe uma perna — ordenou. Virou-se para fitar Marilyn. O silêncio era total.
Ausência de sons, com excepção da respiração entrecortada de Stone e do ligeiro
ressoar do edifício. Hobie manteve os olhos fixos em Marilyn, que lhe retribuiu o
olhar.
— Parta, parta — acabou ela por incentivar. — Quero lá saber! O filho da mãe arruinou-
me a vida. Parta-lhe até as duas pernas se lhe apetecer. No entanto, isso não vai levá-
lo a conseguir mais depressa aquilo que quer. Porque há mesmo complicações. E só lá
vamos depois de Sheryl estar no hospital. A escolha é sua.
Hobie tamborilou com o gancho na secretária. Relanceou o olhar para Tony.
— Leva a cabra ao hospital — instruiu com azedume.
— Chester vai com eles para verificar — exigiu Marilyn. — Ele tem de a ver entrar
sozinha nas urgências. Eu fico cá como garantia.
Hobie fitou-a e sorriu.
— Se ela disser uma palavra ao pessoal do hospital, é o suficiente para você ser uma
mulher morta. Tem consciência disso, não é verdade?
— Ela não diz nada — assegurou Marilyn.
— E melhor rezar para que não diga.
— Não diz — garantiu ela, fitando-o nos olhos.
Hobie passou os dedos da mão esquerda pela curva do gancho.
— Você é uma mulher inteligente — comentou.
«Eu sei», pensou Marilyn. «E essa é a primeira das tuas complicações.»
Rcacher abriu o fecho de correr do saco de desporto e despejou por
cima do sofá branco os maços de notas de cinquenta dólares. I lm total
de trinta e nove mil e trezentos. Dividiu-o ao meio, atirando os maços
alternadamente para a esquerda e para a direita, acumulando-os nas
extremidades opostas do sofá.
Vamos pôr tudo na minha conta — propôs Jodie — e passar aos
Hobies um cheque de dezanove mil seiscentos e cinquenta. Acedemos à
nossa metade por meio do meu cartão dourado, não achas?
Reacher concordou.
— Agora, para sabermos mais sobre Victor Truman Hobie, precisamos de apanhar um avião para
St. Louis, no Missuri, mais estada num hotel. Podemos alojar-nos em sítios decentes e viajar em
executiva.
— É a única maneira de andar de avião — comentou ela. Abraçou-o pela cintura e beijou-o na
boca, sendo correspondida com entusiasmo. — Isto é divertido, não é?
— Para nós, talvez — redarguiu Reacher —, mas não para os Hobies. Mandar um filho para a
guerra já é mau, e depois só ouvir mentiras e ser enganado, é indesculpável. Não devia ter
deixado aquele tipo em acção.
— Desde que ele não volte a fazer a mesma coisa — contemporizou Jodie.
— A lista de alvos está a diminuir — comentou Reacher. — Já uno restam muitas fa mílias de CNR
para caírem na esparrela.
— Mas não foi Rutter quem nos atacou, pois não? — raciocinou ela em voz baixa. — Ele não sabia
quem nós éramos.
— Não. Temos de pensar nisso, Jodie. Dois empregados a tempo inteiro são enviados-às Keys e
depois a Garrison, certo? Dois salários completos, mais armas, transporte aéreo, etc., e andam
de um Indo para o outro num Tahoe, até que aparece um terceiro empregado num Suburban que
pode dar-se ao luxo de mandar para a sucata. I muito dinheiro, e provavelmente não passa da
ponta do icebergue, o que implica algo no valor de milhões de dólares. Rutter não pode ler leito
tanto dinheiro a depenar velhotes.
— Então, que diabo será isto tudo?
Ele limitou-se a encolher os ombros.
Dirigiram-se ao banco, e após depositarem o dinheiro, Jodie
comprou um cheque avulso que passou a Mr. T. e Mrs. H. Hobie pela quantia de dezanove
mil seiscentos e cinquenta dólares. Seguiram depois para a vastidão do Aeroporto JFK.
— Pára no estacionamento de curta duração — instruiu ela.
Reacher teve de deixar a Steyr e o silenciador. Não é fácil passar
a segurança dos aeroportos com grandes armas no bolso. Escondeu as duas coisas sob o
lugar do condutor. Passados cinco minutos, estavam ao balcão da United a comprar dois
bilhetes de ida em classe executiva para St. Louis.
— Nunca viajei em executiva — comentou Reacher ao deslizar para o lugar à janela.
Havia espaço suficiente para estender as pernas e o assento era largo e cómodo. Jodie
ficava a nadar no dela. Tinha espaço para três como ela lado a lado. Ainda nem o
avião começara a rolar pela pista, já a hospedeira estava a levar-lhes sumo. Minutos
depois, estavam no ar, rodando para oeste sobre a ponta meridional de Manhattan.
Demoraram oito minutos a chegar ao Hospital de São Vicente. Tony encostou ao
passeio na 7.a Avenida e premiu o botão que destrancava as portas.
— Fora — ordenou.
Sheryl abriu a porta e deslizou para o passeio. Ficou parada, insegura. Depois, afastou-
se a arrastar os pés, sem olhar para trás. Tony inclinou-se e bateu a porta nas suas costas.
Virou-se no assento para Stone, que estava no banco traseiro.
— Veja lá bem — instruiu.
Era o que Chester já estava a fazer. Ela encaminhou-se para a entrada do hospital sobre
o passeio largo. Chegou à passagem para as ambulâncias. Um par de portas duplas à sua
frente, com um trio de enfermeiras no exterior a gozarem um intervalo para o cigarro.
Sheryl passou pelas enfermeiras, dirigindo-se devagar para as portas, que empurrou,
hesitante, com as duas mãos. Abriram-se e ela entrou.
— Pronto, viu?
— Vi, sim — assentiu Chester. — Entrou.
Tony olhou pelo retrovisor e abriu caminho para a corrente de tráfego. Sheryl esperava
na fila para as urgências, revendo mentalmente, uma e outra vez, o que Marilyn lhe pedira
para fazer.
Desde o Aeroporto de St. Louis até ao edifício do Centro Nacional de Arquivo Militar
é um curto trajecto de táxi em território conhecido de Reacher. Quase todas as suas
visitas em serviço à pátria tinham incluído pelo menos uma pesquisa nos arquivos. Mas
desta vez ia como civil. Nada parecido. Em teoria, o arquivo é público, mas o pessoal
faz os possíveis por manter esse facto bem escondido.
Por conseguinte, depois de pagarem o táxi, fizeram uma pausa ao sol quente do Missuri
a combinar uma estratégia de actuação. Entraram e esperaram defronte da funcionária,
uma mulher de meia-idade graduada de primeiro-sargento, atarefada com o tipo de
trabalho cujo único objectivo é o de obrigar as pessoas a esperarem até estar acabado.
Ao fim de longo tempo, empurrou por cima do balcão dois impressos de pedido de
consulta.
Jodie preencheu o dela com o apelido de Jacob e pediu todas e quaisquer informações
sobre o major Jack Reacher, da Divisão de Investigação Criminal do Exército dos
EUA. Reacher pediu todas e quaisquer informações sobre o general Leon Jerome
Garber. Fez deslizar os dois impressos de novo na direcção da primeiro-sargento, que
lhes deitou um olhar de soslaio, tocou uma campainha ao seu lado e regressou ao
trabalho. A ideia era que um soldado qualquer ouvisse a campainha, viesse buscar os
impressos e a seguir fosse à procura dos processos.
— Quem é hoje o oficial de dia? — perguntou Reacher.
— O major Theodore Conrad — informou ela.
Reacher assentiu com a cabeça. Conrad? Não era nome de que se recordasse.
— Importa-se de lhe dizer que gostávamos de falar com ele sem lhe tirarmos muito tempo? E de
mandar entregar os processos no gabinete dele?
O seu modo de falar situou-se no exacto meio caminho entre um pedido delicado e uma
ordem implícita. Era um tom de voz que sempre achara muito eficaz para primeiros-
sargentos. Ela fez a chamada.
— Ele vai mandar alguém para vos acompanhar ao andar de cima — disse depois.
— Não é preciso — contrapôs Reacher. — Eu sei onde é. Não é a primeira vez que lá vou.
Indicou o caminho a Jodie, subindo uma escada até um gabinete no primeiro andar. O
major Theodore Conrad esperava-os à porta, e um soldado corria pelo corredor na sua
direcção, transportando dois processos nas mãos. Reacher sorriu interiormente. Serviço
de primeira. Conrad recebeu os processos e mandou embora o estafeta.
— Posso ajudar-vos? — perguntou. A pronúncia era lenta e arrastada, como o Mississipi
que lhe dera origem.
— Bem, precisamos da sua melhor colaboração, major — respondeu Reacher. — E temos
esperança de que, se ler esses processos, talvez se sinta disposto a dá-la.
Conrad relanceou o olhar para as pastas que tinha nas mãos e afastou-se para os deixar
entrar no gabinete, uma tranquila divisão apainelada. O anfitrião conduziu-os a um par de
poltronas de cabedal, sentou-se à secretária e abriu o primeiro processo, que era o de
Leon, começando uma leitura em diagonal.
Levou dez minutos a ver o que precisava. Reacher e Jodie permaneceram sentados a
olhar pela janela. Conrad acabou de dar uma vista de olhos aos processos e leu os nomes
nos impressos de pedido de consulta. Depois, ergueu o olhar.
— Dois processos impecáveis — comentou. — E já percebi. O senhor é com toda a
certeza o próprio Jack Reacher, e calculo que aqui Mrs. Jodie Jacob seja a Jodie
Garber referida como filha do general. Certo?
A jovem confirmou com a cabeça e sorriu.
— Bem me quis parecer — prosseguiu Conrad. — E acharam que a relação familiar, por
assim dizer, vos permitiria um acesso melhor e mais rápido ao arquivo?
— Nem tal nos passou pela cabeça — asseverou Reacher, abanando solenemente a
cabeça. — Sabemos que todos os pedidos são tratados com absoluta imparcialidade.
— Excelente — riu-se Conrad. — Joga muito póquer? Devia jogar. Então, como posso
ajudar-vos?
— Precisamos de tudo o que houver sobre um tal Victor Truman Hobie — esclareceu
Reacher.
Conrad pegou no telefone e ligou para o arquivo a pedir o processo de Hobie. O
estafeta chegou com ele passados cinco minutos.
A pasta referente a Victor Hobie tinha uma quadrícula na capa onde eram registados os
pedidos de consulta. Só havia dois.
— Pedidos telefónicos — explicitou Conrad. — Do próprio general Garber, em Março deste ano.
E de uma pessoa de nome Costello, que ligou de Nova Iorque no princípio da semana passada.
Porquê tanto interesse repentino?
— Isso é o que nós esperamos vir a descobrir — redarguiu Reacher.
Um combatente tem um processo extenso, e a papelada respeitante a Victor Hobie era
uma massa compacta com uns cinco centímetros de espessura. Conrad pousou-a, virou-a
sobre a madeira polida da secretária e abriu-a como se estivesse a expor um tesouro raro
a conhecedores interessados.
As instruções de Marilyn tinham sido precisas, e Sheryl seguiuas à letra. O primeiro
passo era obter tratamento. Foi até ao balcão e depois esperou sentada numa cadeira de
plástico duro nas urgências. Foi vista minutos depois por uma jovem médica.
— Como lhe sucedeu isto? — indagou a médica.
— Bati numa porta.
A médica levou-a para um cubículo e sentou-a na marquesa, começando a testar-lhe os
reflexos.
— Uma porta? Tem a certeza absoluta?
Sheryl fez que sim com a cabeça.
— Estava entreaberta. Virei-me e simplesmente não a vi.
A médica não comentou, iluminando o olho esquerdo da paciente com uma lanterna,
passando a seguir ao direito.
— Tem a visão desfocada? — acabou por indagar.
— Um pouco — assentiu Sheryl com um aceno de cabeça.
— Dores de cabeça?
— Nem queira saber.
A médica deteve-se a examinar o impresso de admissão.
— Muito bem, precisamos de radiografias dos ossos faciais, claro, mas também quero uma
radiografia total do crânio e uma TAC. Temos de saber o que lá aconteceu de concreto, não é?
Portanto, precisa de vestir uma bata e deitar-se. Já lhe dou um analgésico para a dor de cabeça.
Sheryl ouviu a voz de Marilyn: «Faz a chamada antes do analgésico, senão ficas
pírulas e esqueces-te.»
— Preciso de fazer um telefonema — disse, preocupada.
— Podemos ligar para o seu marido, se quiser — propôs a médica em tom neutro.
— Não, não sou casada. É para um advogado. Preciso de ligar para o advogado de uma pessoa.
A médica encolheu os ombros.
— Está bem, ao fundo do corredor. Mas não demore muito.
Sheryl dirigiu-se ao telefone em frente da enfermaria. Ligou para
a telefonista e pediu uma chamada a pagar no destino, de acordo com as instruções de
Marilyn. Repetiu o número que decorara. O telefone foi atendido ao segundo toque.
— Forster and Abelstein — anunciou uma voz. — Em que posso ser útil?
— Estou a ligar em nome de Mr. Chester Stone — declarou Sheryl. — Preciso de falar com
Mr. Forster.
— Muito bem. Queira aguardar um momento — pediu a voz.
Enquanto Sheryl ouvia a música para entreter, a médica, a seis
metros de distância, fazia também uma chamada pela linha geral. A sua era para a
Brigada de Violência Doméstica da Polícia de Nova Iorque.
— Fala de São Vicente — dizia. — Tenho outra para vocês. Esta diz que foi de encontro a
uma porta. Nem sequer confessa ser casada, muito menos que ele lhe bate. Podem cá vir
e falar com ela quando quiserem.
O primeiro elemento do processo era o original de Victor Hobie a candidatar-se ao
Exército, escrito com a mesma letrinha de escola que tinham visto nas cartas enviadas
para Brighton. O currículo num resumo das habilitações, o seu desejo de pilotar
helicópteros e pouco mais. Nada fazia prever uma estrela em ascensão.
O item seguinte do processo mostrava que ele ficara apto na inspecção médica, sendo-
lhe entregues guias de marcha e a ordem de se apresentar em Fort Dix dentro de duas
semanas. Em Fort Dix, era dada a recruta de doze semanas. Havia seis avaliações no
processo. Em todas ele classificara-se acima da média.
Seguia-se uma requisição de guias de marcha para Fort Polk e cópia da ordem de
apresentação ali, a fim de receber um mês de formação em infantaria. Havia observações
quanto à sua adaptação a armas. Tinha a classificação de bom, o que em Polk
correspondia a
excelente coordenação entre a vista e a mão, firme domínio muscular, temperamento
calmo. Reacher calculou que os instrutores não tivessem grandes reservas em acabar por
deixá-lo à solta com um helicóptero.
Havia mais guias de marcha, desta vez para Fort Wolters, no Texas, onde se localizava
a Escola de Pilotagem de Helicópteros da I'orça Aérea dos EUA. Era uma permanência
de cinco meses, uma formação a sério: primeiro, um mês de treino prévio para voo com
uma forte carga curricular de física, aeronáutica e navegação. Hobie destacara-se,
acabando em primeiro lugar do curso. A única observação negativa era breve e versava
a sua atitude. Um oficial criticava-o por dar explicações a troco de favores. Hobie
ajudava alguns colegas com dificuldades nas matérias, e em troca eles engraxavamlhe as
botas e limpavam-lhe a arma. Reacher achou que o oficial era um idiota chapado. Hobie
estava a rceber formação para piloto de helicópteros, não para santo.
Nos quatro meses seguintes em Wolters, tivera o seu baptismo de voo, começando com
Hillers H-23. O seu primeiro instrutor fora um tipo chamado Lanark. Na opinião deste,
Hobie talvez tivesse levado mais tempo do que devia a dominar as bases da pilotagem,
mas a partir daí o seu progresso passou de excelente a excepcional. Foi dispensado de
pilotar o Hiller e promovido ao Sikorsky H-19. Tinha um talento natural, e era tanto
melhor quanto mais complicados se tornavam os aparelhos.
Acabou a formação em Wolters em segundo do seu grupo, com a menção de
excepcional e apenas atrás de rnn ás chamado A. A. DeWitt. Mais guias de marcha
mostravam-nos a seguir juntos para Fort Kucker, no Alabama, para mais quatro meses de
treino avançado de voo.
— Não ouvi já falar em DeWitt? — inquiriu Reacher. — O nome diz-me qualquer coisa.
— Deve ser o general DeWitt — aventou Conrad. — Agora, é cie o comandante da Escola de
Helicópteros em Wolters. Parece lógico, não?
Reacher anuiu de cabeça e juntou-se a Jodie trinta anos no passado. Fort Rucker era a
sério, com helicópteros de assalto novinhos em folha a substituírem os de treino: Bell
UH-1 Iroquois, alcunhados de Hueys. Grandes e potentes aparelhos. O jovem Victor
Hobie treinara com um durante dezassete longas semanas pelos céus do Alabama,
terminando com crédito e distinção.
A seguir, Victor Hobie e o seu novo amigo, A. A. DeWitt, apresentaram-se na 3. a
Companhia de Transportes da Primeira Divisão de Cavalaria, em Forte Belvoir, na
Virgínia. Ao fim de duas semanas, o 229.° Batalhão de Helicópteros de Assalto,
Companhia B, zarpou da costa americana, inserido num comboio de dezassete navios que
se dirigia à baía de Long Mai, a dezoito mil quilómetros de distância, trinta quilómetros a
sul de Qui Nhon, no Vietname.
Aqui, era exigido que as cinco primeiras missões de combate fossem cumpridas como
co-piloto, e, se bem-sucedidas, passava-se para o lugar de piloto e recebia-se um co-
piloto. Começava então a actividade a sério. Toda a segunda metade do processo consistia
em relatórios de missões escritos em papel finíssimo pelo escriturário da administração
militar.
As escaramuças eram episódicas. A guerra rodeava Hobie por todos os lados, mas
durante dias e dias seguidos as neblinas e nevoeiros do Vietname tornavam impossível os
voos de helicóptero a baixa altitude sobre os vales selvagens. Depois, o tempo clareava
de repente e havia três, cinco, por vezes sete, missões diárias, enfrentando a furiosa
oposição inimiga em voos de inserção, recolha, abastecimento e reabastecimento das
tropas terrestres.
Os relatórios estavam separados em duas metades por papelada a documentar o fim da
primeira comissão de serviço, a condecoração rotineira, a prolongada licença de regresso
a Nova Iorque, o início da segunda comissão. Depois, mais relatórios de combate. O
mesmo trabalho, o mesmo padrão. A última de todas as folhas do processo referia a 991. a
missão de combate da carreira do tenente Victor Hobie. Fora uma missão especial. As
ordens consistiam em levantar de Pleiku e voar até uma improvisada pista de aterragem
perto do desfiladeiro An Khe, de onde devia evacuar o pessoal que lá o aguardava.
DeWitt dava-lhe protecção. Hobie chegou primeiro. Aterrou no centro da minúscula pista,
sob fogo pesado de metralhadora proveniente da selva. Recebeu a bordo apenas três
homens. Voltou a descolar quase de imediato, com o Huey na mira das metralhadoras.
DeWitt voava em círculos acima deles enquanto Hobie procurava afastar-se. No seu
relatório formal, tal como fora transmitido pelo escriturário, DeWitt asseverara ter visto o
Huey de Hobie ser atingido por uma forte rajada de metralhadora pesada, o rotor parara e
chamas irromperam na área do depósito de combustível. O helicóptero despenhara-se na
selva seis quilómetros a oeste da zona de aterragem. DeWitt relatara um relâmpago verde
visível por entre a folhagem, 0 que normalmente indicava a explosão de um depósito de
combustível no solo da floresta. Fora montada uma operação de busca e salvamento, que
havia sido abortada devido ao mau tempo. Não foram observados fragmentos dos
destroços. Os oito homens que viajavam no Huey haviam sido dados como desaparecidos
em combate.
— Mas porquê? — questionou Jodie. — DeWitt viu 0 aparelho explodir. Porquê dá-los como
desaparecidos? É evidente que morreram todos, não?
— Acho que sim — concordou o major Conrad, encolhendo os ombros —, mas não se podia ter a
certeza. Só diziam «morto em combate» quando tinham a certeza. Alguém tinha de ver isso
acontecer.
— Porquê? — insistiu Jodie. — Por terem medo da imprensa?
— Não — respondeu ele, abanando a cabeça. — Se tinham medo da imprensa, limitavam-se a
contar mentiras. Isto tudo foi por duas razões. Primeiro, não queriam prestar informações
erradas aos parentes mais próximos. Pode crer que aconteceram coisas estranhas. Houve quem
sobrevivesse a condições em que não seriam de esperar sobreviventes. Uns apareceram mais
tarde. Outros foram encontrados. Ainda outros, feitos prisioneiros. E não podia dizer-se às
pessoas que um familiar fora morto para depois ele aparecer vivo. Por isso, mantinham a
versão de «desaparecido» tanto tempo quanto possível. — Fez uma pausa prolongada. —
Segundo, é que, sim, tinham medo, mas não da imprensa. Tinham medo deles próprios. Tinham
medo de do confessar a si próprios que estavam a levar uma coça.
Reacher relanceava o olhar pelo último relatório de missão, fixando o nome do co-
piloto. Era um segundo-tenente chamado F. G. Kaplan.
Pediu para ver o processo de Kaplan, e quando o estafeta o trouxe, virou-o ao
contrário e abriu-o de trás para a frente. Começou pela penúltima folha. O mesmo
relatório de missão, o mesmo testemunho de DeWitt redigido pelo mesmo escriturário.
Porém, a última folha do processo de Kaplan estava datada de precisamente dois anos
após o último relatório de missão. Era uma
declaração formal, emitida pelo Departamento de Defesa, de que F. G. Kaplan morrera
em acção quando o helicóptero de que era co-piloto fora abatido por fogo inimigo. Não
houvera recuperação de qualquer cadáver, mas a morte devia ser considerada efectiva
para efeitos de inserção em memoriais e pagamento de pensões.
— Então, porque é que Victor Hobie não tem uma declaração destas? — perguntou Reacher.
— Não sei — confessou Conrad, abanando a cabeça.
— Quero ir ao Texas — declarou Reacher.
OITO
Tony empurrou Stone para dentro do gabinete de Hobie, escuro como sempre.
Hobie estava à secretária, fitando Marilyn, que se sentara num sofá.
— Então? — perguntou ele. — Missão cumprida?
— Entrou bem — assentiu Stone.
— Em que hospital? — perguntou a mulher.
— São Vicente — respondeu Tony. — Direitinha às urgências.
Stone confirmou com a cabeça, e Marilyn sorriu, aliviada.
— Muito bem — interveio Hobie, interrompendo o silêncio que entretanto se fizera. —
Agora, vamos aos negócios. Que complicações são essas que eu tenho de saber?
— As acções — começou Marilyn. — O meu marido não é dono delas assim sem mais.
— E, sim — argumentou Hobie. — Eu verifiquei na Bolsa.
— Bem, sim, as acções são dele — assentiu Marilyn. — Contudo, não pode dispor delas.
Transferências de acções importantes têm de ser avalizadas por dois administradores dos
fundos. O pai de Chester tomou essas disposições antes de morrer.
Fez-se silêncio. Hobie transferiu o olhar para Chester Stone. Marilyn viu-o enfiar o
barrete, como sabia que iria acontecer, pois confirmava o que ele já pensava saber. A
empresa de Chester estava em derrocada por ele ser mau gestor. E um pai responsável,
compreendendo isso, teria protegido a herança familiar por meio da criação de um fundo.
É incontornável — prosseguiu Marilyn. — Deus sabe quantas vezes
já tentámos.
Hobie assentiu de cabeça. Um simples esboço de movimento.
Marilyn sorriu interiormente. O seu último comentário fora decisivo.
Um fundo era uma coisa que toda a gente tentava impugnar. Tinha de se
lutar contra ele. Logo, as tentativas de o fazer provavam a sua
existência.
— Quem são os administradores? — perguntou ele em tom cordato.
— Eu sou uma — respondeu Marilyn. — O outro é o sócio principal de uma
sociedade de advogados. Um homem chamado David Forster, da Forster and
Abelstein.
— Marque a reunião — ordenou Hobie. — Para amanhã de manhã. Diga-lhe que é
uma questão bastante urgente para si. — Levantou-se. — Vamos fazer a
chamada.
Marilyn tremia por dentro quando se levantou e seguiu Hobie até no
balcão de recepção.
— Marque o nove para obter linha — instruiu ele.
Marilyn colocou-se atrás do balcão e pegou no auscultador. Premiu
nove e ligou o número.
— Forster and Abelstein — atendeu uma voz vibrante. — Em que posso ser útil?
— Fala Marilyn Stone. Eu queria falar com o Dr. Forster — disse ela.
Sentiu a garganta subitamente seca. Houve uns acordes de música
electrónica, até que uma voz profunda anunciou:
— Forster.
— David, fala Marilyn Stone.
O homem ficouum segundo calado. Foi quanto bastou para ela saber
que Sheryl conseguira.
— Estamos a ser ouvidos? — indagou Forster em tom baixo.
— Não, estou bem — respondeu ela com vivacidade.
Hobie ergueu o gancho, com o aço a cintilar em frente dos olhos
dela.
— Temos de chamar a Polícia — sugeriu Forster.
— Não, trata-se apenas de uma reunião de administradores do fundo. Qual é a
próxima data possível?
— A sua amiga disse-me o que quer — continuou o outro. —
Mas a nossa gente não pode ocupar-se disso. Vou ter de arranjar um detective particular.
— Amanhã de manhã era bom para nós — disse Marilyn. — Infelizmente, há um factor de
urgência.
— Deixe-me chamar a Polícia — propôs o interlocutor.
— Não, David, para a semana é demasiado tarde. Temos de agir depressa.
— Mas não sei onde procurar. Nunca recorremos a detectives particulares.
— Espere um momento, David. — Tapou o bocal com a palma da mão e ergueu o olhar
para Hobie. — Se quiser amanhã, tem de ser no escritório deles.
Hobie abanou a cabeça.
— Tem de ser aqui, no meu terreno.
Ela afastou a mão.
— David, e se for depois de amanhã? Lamento, mas tem mesmo de ser aqui. Trata-se de
uma negociação delicada.
— Não quer a Polícia de modo nenhum? Tem a certeza absoluta?
— Óptimo, David — disse ela, e deu a direcção.
— Está bem — anuiu Forster. — Se tem a certeza. As duas da tarde. Depois de amanhã.
Não sei quem vai ser, mas arranjo-lhe alguém capaz. Está tudo bem?
— Depois de amanhã, às duas da tarde — repetiu Marilyn. — Está óptimo. Obrigada,
David. — A mão tremia-lhe ao desligar.
Fez-se um silêncio, durante o qual Hobie acenou com a cabeça.
— Muito bem — acabou por dizer. — Agora, de volta para a casa de banho. Pode sair
outra vez depois de amanhã às duas horas. Se se portarem bem, têm duas refeições por
dia.
Caminharam em silêncio à frente de Tony, que lhes fechou a porta da casa de banho nas
costas, juntando-se de novo a Hobie na recepção.
— Depois de amanhã é um dia demasiado tarde — comentou. — Por amor de Deus, no
Havai vai saber-se hoje. Amanhã, o mais tardar.
— Sim, vai ser apertado — concordou Hobie, assentindo com a cabeça.
— Vai ser apertado como um raio. O melhor era pôr-se já a mexer daqui para fora.
— Não posso, Tony. Dei a minha palavra para o negócio, por isso
preciso das acções. Mas vai correr tudo bem. Depois de amanhã, às duas e meia, as
acções são minhas, ficam registadas até às três, até as cinco está tudo vendido, e piramo-
nos por volta da hora do jantar. Depois de amanhã, fica tudo despachado.
— Mas é de loucos. Envolver um advogado? Não podemos deixar cá entrar um advogado.
— Um advogado — repetiu Hobie devagar, fitando o outro. — Sabes, acho que também devemos
arranjar um.
Contornou o balcão da recepção e extraiu as Páginas Amarelas de uma prateleirinha.
Pegou no telefone e carregou no nove para ter linha. Recorreu então ao topo do gancho
para, em sete pequenos movimentos precisos, marcar o número.
— Spencer Gutman — anunciou uma voz cordial. — Em que posso ser útil?
Sheryl estava deitada numa cama, com uma agulha inserida mima veia da mão
esquerda. A cara deixara de lhe doer. A dor desvanecera-se, deixando-a calma e
sonolenta.
Até que houve um som algures à sua frente. Abriu os olhos, focando-os em duas
pessoas aos pés da cama. Um homem e uma mulher fardados, com as camisas cobertas de
crachás. Eram polícias.
— Podemos sentar-nos? — perguntou a mulher, fitando Sheryl simpaticamente.
Ela acedeu com um aceno de cabeça. A outra arrastou uma cadeira pelo chão e sentou-
se à direita da cama, afastada do suporte do outro. O homem sentou-se logo atrás dela.
Era difícil para Sheryl locar as caras de ambos.
— Sou a agente O’Hallinan — apresentou-se a mulher.
— E eu sou o agente Sark — disse por sua vez o homem.
— Queremos que nos conte o que sucedeu — pediu O’Hallinan.
Sheryl fechou os olhos. Não se lembrava bem do que acontecera.
Sabia que tinha entrado em casa de Marilyn. Lembrava-se do cheiro a produto de
limpeza de alcatifas. Depois, estava repentinamente caída de costas no chão do
vestíbulo, com uma dor lancinante a explodir-lhe no nariz.
— Bati numa porta — murmurou.
— Que porta?
Não sabia. Marilyn não lhe dissera. Entrou em pânico.
— Do escritório — respondeu.
— O seu escritório é aqui na cidade? — indagou O´Hallinan.
Sheryl não respondeu. Limitou-se a dirigir um olhar vazio ao
rosto da outra.
— Do seu seguro dizem que trabalha em Westchester — interveio Sark. — Num mediador
imobiliário de Pound Ridge.
Sheryl confirmou com um aceno de cabeça, cautelosa.
— Então, bateu na porta do seu escritório em Westchester — concluiu O´Hallinan. — E
agora está no hospital a oitenta quilómetros de distância, em Nova Iorque.
— Como se passaram as coisas, Sheryl? — interpelou-a Sark.
Uma vez mais, ela não respondeu. Fez-se silêncio no cubículo.
— Nós podemos ajudar, sabe — retomou O´Hallinan. — Podemos garantir que não volte
a suceder. Contudo, tem de contar-nos como as coisas se passaram. E frequente ele
fazer-lhe isso?
Sheryl fitou-a, confusa. O´Hallinan levantou-se e foi buscar as radiografias à parede
iluminada. Ergueu-as à luz do tecto.
— Isto é o seu nariz — continuou, apontando. — Aqui, as suas maçãs do rosto; aqui, a
testa, e aqui, o queixo. Está a ver? Tem o nariz partido e as maçãs do rosto. No
entanto, o queixo e a fronte estão bem. Portanto, isto foi causado por uma pancada
horizontal, não é verdade? Qualquer coisa como um bastão? A ser desferido de lado?
Sheryl ficou de olhos fixos nas radiografias, cinzentas e leitosas. O analgésico zumbia-
lhe na cabeça, e ela sentia-se fraca e sonolenta.
— Bati numa porta — sussurrou. — Agora, quero dormir.
O´Hallinan acenou pacientemente com a cabeça.
— Deixo-lhe o meu cartão. Portanto, se quiser falar comigo quando acordar, pode ligar-
me, está bem? — Pousou um cartão em cima da mesinha-de-cabeceira. — Não se
esqueça de que podemos ajudá-la — repetiu baixinho.
O´Hallinan e Sark correram a cortina e foram até ao balcão. A médica ergueu o olhar
para eles. A agente abanou a cabeça.
— Negação absoluta — contou.
— Bateu numa porta — completou o colega. — Uma porta que devia estar com uns copos
a mais, pesa uns cem quilos e maneja um taco de basebol.
— Porque será que elas protegem esses filhos da mãe? — matutou a médica, abanando a
cabeça.
Uma enfermeira ergueu o olhar.
— Eu vi-a entrar. Foi mesmo estranho. Eu estava no intervalo a fumar um cigarro,
e ela saiu de um automóvel. Veio pelo seu pé. Estavam dois tipos dentro do
carro, que ficaram a observá-la a percorrer o caminho todo e depois
arrancaram na mecha.
— Que carro era? — interrogou Sark.
— Grande e preto — explicou a enfermeira.
— Lembra-se da matrícula?
— Acha que eu sou o quê? A Miss Memória?
O´Hallinan encolheu os ombros e começou a afastar-se.
— Mas há-de estar no vídeo — lembrou de súbito a enfermeira.
Há uma câmara de segurança por cima das portas.
A hora exacta da chegada de Sheryl estava registada na papelada
preenchida ao balcão, e bastou um minuto para rebobinarem a fita nlé
esse momento. Depois, outro minuto a seguir em reverse a lenta
caminhada dela, como se fosse às arrecuas pelo círculo de entrada de
ambulâncias pelo passeio e chegasse a uma grande viatura preta. O
´Hallinan inclinou a cabeça até junto do monitor.
— Já a tenho — declarou.
Foi Jodie quem escolheu o hotel. Consultou os guias locais
existentes na livraria mais próxima do registo militar até encontrar um
estabelecimento recomendado em três deles. Ligou para lá por
telemóvel.
— Pronto — anunciou ao acabar. — Já temos reserva. É para a suite nupcial.
Cama de dossel. Não é um espanto?
Ele sorriu. A suite nupcial.
— Liga também para o aeroporto — pediu. — Precisamos de sair cedo. O
Aeroporto de Dallas-Fort Worth deve ser o ideal.
Ela ligou do passeio para a companhia de aviação e reservou dois
lugares em classe executiva para o Texas às 8.30 da manhã. Depois,
passearam durante uma hora e meia de braço dado pelas margens do
Mississipi até à parte histórica de St. Louis. Descobriram o hotel, que
era um velho casarão situado numa grande rua tranquila orlada de
castanheiros. A porta era enorme, pintada de negro-brilhante, e o chão,
de carvalho cor de mel. A recepção era uma antiga secretária de mogno
colocada no canto do vestíbulo. Reacher ficou a olhar. Nos sítios a que
estava habituado, a recepção era por detrás de uma
rede de arame ou numa caixa de plexiglas à prova de balas. Uma senhora elegante de
cabelo branco passou o cartão de Jodie pela máquina e a seguir entregou a Reacher uma
chave de bronze.
— Desejo-lhe uma boa estada, Mr. Jacob — disse.
A suite nupcial ocupava todo o sótão. Tinha o mesmo chão de carvalho cor de mel
envernizado a preceito, com tapetes antigos. A cama era gigantesca, de dossel, envolta no
mesmo tecido florido das cortinas. Jodie saltou lá para cima e ficou sentada na borda,
com as mãos debaixo dos joelhos e as pernas a abanarem. Sorria, com o sol a dar na
janela por detrás dela. Reacher pousou a mala no chão e ficou parado a contemplá-la. Ela
trazia uma blusa azul, algures entre o azul de uma centáurea e o dos seus próprios olhos.
Os botões pareciam perolazinhas. Os primeiros dois estavam desabotoados e via-se-lhe a
pele do pescoço, de um tom de mel mais suave do que o do pavimento de carvalho.
— Para onde estás a olhar? — perguntou, travessa.
— Para ti.
Os botões eram mesmo pérolas, tal e qual como as de um colar. Pequenas e
escorregadias sob os seus dedos desajeitados. Ele afastou-lhe a blusa para trás de cima
dos ombros.
Ela inclinou-se para diante, ocupando-se dos botões dele. Tinha mãos esguias, hábeis e
rápidas. Fez deslizar as palmas para cima, sobre o peito chato dele, e abriu a camisa com
os antebraços, puxando-lha depois dos braços. Passou o dedo sobre a queimadura em
forma de lágrima que ele ainda tinha no peito.
— Trouxeste a pomada?
— Não — confessou Reacher.
Ela abraçou-o pela cintura, inclinou a cabeça e beijou a ferida. A seguir, fizeram amor
na cama de dossel, no último andar da velha mansão, enquanto o Sol se punha a ocidente.
Mais tarde, com Jodie nos braços, Reacher pediu:
— Diz-me como te sentes.
Jodie sorriu, tímida.
— Estás a pedir um elogio, Reacher.
— Não, estou só a pensar — disse ele com um sorriso. — Sentes-te segura?
Ela assentiu de cabeça.
— Eu também — confessou Reacher. — Portanto, isso significa
que seja o que for que está a acontecer é em pequena escala —
ponderou. — Uma operação reduzida, com sede em Nova Iorque.
Fomos perseguidos e atacados lá, mas aqui ninguém nos liga peva.
— Tens andado alerta? — inquiriu ela, alarmada.
— Ando sempre alerta — respondeu Reacher. — Passeámos por uf, devagar e bem
às claras, e ninguém nos seguiu.
Jodie concordou com um aceno de cabeça.
— Acho que é Victor Hobie — aventou. — Acho que sobreviveu de algum modo à
guerra, e desde então tem andado escondido em qualquer lado, não querendo
ser descoberto.
— Isso não é psicologicamente consistente — contrapôs ele, abanando a cabeça.
— Leste o processo dele. As cartas que escreveu. Era um miúdo certinho,
Jodie. Sem chama, normal. Não acredilo que deixasse os pais assim
pendurados. Durante trinta anos? Porquê? Não bate certo com o que sabemos
dele.
— Talvez tenha mudado — lembrou a jovem. — O Vietname modificava as
pessoas.
— Ele morreu — disse Reacher, abanando a cabeça. — Seis quilómetros a oeste
de An Khe. Há trinta anos.
— Está em Nova Iorque — insistiu Jodie. — Tentando permanecer escondido.
Às 7 da manhã seguinte, O’Hallinan e Sark estavam na sala da
brigada de Violência Doméstica do DPNI a planearem o turno. Fora
uma noite como tantas outras na cidade de Nova Iorque, o que
correspondia a uma lista de vinte e oito novos casos a exigirem
atenção, pelo que só às 7.50 O´Hallinan conseguiu ligar para a
Direcção-Geral de Viação.
Tinha a matricula do Tahoe rabiscada ao fundo da página do bloco
aberto à sua frente.
— Chevrolet Tahoe preto — informou-a o funcionário. — Registado como
propriedade do Cayman Corporate Trust, com escritório no World Trade
Center.
O´Hallinan tomou nota de tudo. Estava a debater consigo própria se
devia acrescentar aquelas informações ao seu relatório sobre a visita às
urgências de São Vicente quando o funcionário se fez ouvir de novo na
linha:
— Tenho aqui outro veículo — dizia. — Registado pelo mesmo
proprietário, um Chevrolet Suburban preto que foi ontem abandonado na Lower
Broadway. Acidente de trânsito entre três veículos em movimento. A Décima Quinta
Esquadra mandou rebocar os destroços.
O´Hallinan agradeceu e ligou para a 15.a Esquadra. Foi atendida pelo sargento de
serviço.
— Vocês mandaram rebocar um Suburban preto — começou ela. — Esteve envolvido
num acidente na Lower Broadway ontem. Estão a investigar?
Ouviu-se o som do tipo a folhear um monte de papelada.
— Está no parque fechado. Interessa-lhe?
— Temos uma senhora no hospital com o nariz partido que foi para lá levada num Tahoe
propriedade da mesma empresa.
— Talvez fosse ela a conduzir. Estiveram três veículos envolvidos e só temos uma
condutora. Houve o Suburban que provocou o acidente e cujo condutor desapareceu.
Houve também um Oldsmobile Bravada que se escapuliu para um beco, tendo
desaparecido o condutor e a passageira. Pertencia a uma tal Mrs. Jodie Jacob, mas foi
participado o seu furto anterior ao acidente. Não é ela a do nariz partido, não?
— Não, esta é Sheryl qualquer coisa.
— Muito bem, então talvez seja a condutora do Suburban. É baixa?
— Alta não me parece que seja — respondeu O´Hallinan. — Porquê?
— O air bag disparou — explicou o interlocutor. — É possível uma mulher baixa ficar
magoada nessas circunstâncias pelo air bag. Já tem acontecido.
A agente desligou e Sark fitou-a com ar interrogativo.
— Então? Porque havia ela de dizer que bateu numa porta se tivesse estado na realidade
envolvida num acidente?
— Não sei. E porque havia uma mediadora imobiliária de Westchester estar a conduzir a
viatura de uma firma do World Trade Center?
— Então, vamos investigar isso?
— Acho que sim.
Levantaram-se ao mesmo tempo e enfiaram os blocos nas algibeiras das fardas. Foram
pelas escadas, gozando o sol matinal ao atravessarem o pátio a caminho do carro-
patrulha.
0 mesmo sol rolou para oeste e fez que fossem 7 horas em St. Louis, uma hora mais tarde
do que em Nova Iorque. Penetrou numa fresta e os seus raios baixos atingiram a cama de
dossel. Jodie levantara-se primeiro e estava no duche. Reacher encontrava-se sozinho na
cama quente, apercebendo-se de um trinado abafado algures no quarto.
Verificou que não era o telefone da mesa-de-cabeceira. O som continuava, abafado
mas insistente. Reacher rolou sobre si próprio e localizou o som dentro da carteira de
Jodie. Descalço e nu, atravessou o quarto, abriu a carteira e extraiu o telemóvel.
Carregou em atender e o trinado cessou.
— Está?
Houve uma pausa.
— Quem fala? Estou a tentar contactar Mrs. Jacob.
Era uma voz de homem, jovem, atarefada, incomodada. O secretário de Jodie da
sociedade de advogados, o tipo que lhe ditara a morada de Leon.
— Ela está no duche. Pode ligar-lhe depois, ou então eu posso ficar com algum recado. Sou um
amigo dela.
— Não se importa? — aceitou o tipo. — É urgente, sabe.
— Espere só um instante — pediu Reacher. Regressou junto da cama e pegou no bloco e lapiseira
do hotel sobre a mesinha. — Pronto, diga. — O tipo ditou um recado, escolhendo
cuidadosamente as palavras para manter tudo vago. Era evidente que pormenores legais secretos
não podiam ser confiados a amigos. — Peço-lhe que ligue para si se houver dúvidas —
prometeu Reacher.
— Obrigado, e peço desculpa de interromper, bem, seja o que for que esteja a interromper —
respondeu o tipo, e o telefonema foi desligado.
Reacher sorriu, voltou a contemplar o visor e carregou em terminar. Ouviu a água a ser
fechada na casa de banho. A porta abriu-se, e Jodie saiu envolta numa toalha e numa
nuvem de vapor.
— O teu secretário acabou de ligar para o telemóvel. Acho que ficou um pouco chocado quando
atendi.
— Pronto, lá se vai a minha reputação — riu-se ela. — Até à hora do almoço, o escritório inteiro
vai ficar a saber. Que queria ele?
— Tens de voltar a Nova Iorque.
— Porquê? Deu-te pormenores?
— Não — disse Reacher, abanando a cabeça —, foi muito confidencial, muito certinho, como deve
ser um secretário, suponho. No entanto, alguém ligou para a tua firma. Uma empresa financeira
com um assunto a tratar. Pediram para seres tu a encarregares-te do caso. Deve ser porque és
fantástica.
— Ele disse qual é o problema?
— É o costume, suponho — respondeu ele, encolhendo os ombros. — Alguém deve dinheiro a
alguém e parece que andam às turras. Tens de ir a uma reunião amanhã à tarde para tentares
infundir-lhes juízo.
Em linha recta, são novecentos e dez quilómetros de St. Louis a Dallas-Fort Worth, uns
confortáveis noventa minutos de voo. Juntos em classe executiva, Reacher e Jodie iam
bebendo café do melhor por xícaras de porcelana, enquanto ele matutava sobre como
entrar em Fort Wolters e convencer DeWitt a contar o que soubesse.
Foram atingidos por um salto positivo de meia dúzia de graus em temperatura quando
saíram do terminal com ar condicionado para a fila dos táxis. Junho no Texas, pouco
depois das 10 da manhã, e já deviam estar uns trinta e oito graus com humidade.
Jodie encontrou óculos escuros na carteira e pô-los. Com o vestido simples cor de
ferrugem, parecia uma Audrey Flepburn loura. O primeiro táxi foi um Caprice novo, com
o ar condicionado no máximo e artefactos religiosos pendurados no retrovisor. O
motorista conduziu em silêncio durante o trajecto de quarenta minutos.
Fort Wolters era um grande quartel no meio do nada, com edifícios baixos e elegantes e
a paisagem limpa e arrumada, à maneira estéril que só a tropa consegue. Para lá do
gradeamento, estradas interiores serpenteavam entre os edifícios. O táxi descreveu uma
curva, que revelou um campo do tamanho de um estádio onde havia helicópteros muito
bem alinhados.
O motorista deixou-os em frente da guarita da entrada e foi-se embora. Um sargento da
Polícia Militar fez deslizar a janela e fitou-os com ar inquiridor.
— Precisamos de nos encontrar com o general DeWiit — informou Reacher. — Quais são
as hipóteses de conseguirmos, sargento?
O tipo mirou-o de alto a baixo.
— Depende de quem os senhores são, suponho.
Reacher informou-o de quem era, de quem Jodie era e de quem o pai dela fora, e um
minuto depois estavam dentro da guarita, com o sargento da PM a falar ao telefone para o
comando.
— Pronto, já têm entrevista marcada — informou de seguida. — O nosso general está livre
dentro de meia hora.
Reacher sorriu em sinal de agradecimento.
— Como é ele, sargento?
— Saiba o meu major que lhe atribuímos a classificação PVB — respondeu o PM com um
sorriso.
Em código da PM, PVB era «por vezes bronco», e tratava-se de uma classificação
razoavelmente benévola para um sargento atribuir a um general.
Após trinta e dois minutos, um Chevy verde-seco com letras brancas parou do lado de
dentro da barreira, e o sargento acenou-lhes de cabeça na direcção dele. O motorista
esperou até estarem sentados, depois fez inversão de marcha e regressou devagar ao
edifício principal, uma comprida estrutura de tijolo de dois pisos frente à parada.
O Chevy abrandou até parar junto das escadas de acesso ao edifício. Reacher
agradeceu ao motorista e saiu com Jodie para o calor.
Um soldado da PM estava na frescura do átrio, com uma cintilante M-16 atravessada à
vontade em frente do peito.
— Reacher e a filha do general Garber para falarem com o general DeWitt — informou o
próprio Reacher assim que entraram.
O tipo levantou a carabina, o que era simbólico de retirar uma barreira. Reacher
acenou-lhe de cabeça e avançou para a escada. O local era idêntico a dúzias de outros
que ele conhecia. Estava imaculadamente limpo, mas a decoração era institucional e
abrutalhada. Ao cimo das escadas, havia uma secretária e outro sargento da PM.
Reacher voltou a identificar-se e a Jodie. O sargento correspondeu com um aceno de
cabeça e pegou no auscultador:
— As suas visitas, meu general — disse para o telefone.
Ouviu a resposta, levantou-se e abriu a porta, afastando-se para
lhes franquear a entrada. O gabinete era apainelado a carvalho, e DeWitt estava sentado
a uma grande secretária. Devia ter entre cinquenta e cinquenta e cinco anos e usava o
ralo cabelo grisalho muito curto. Viu-os aproximar com uma expressão que Reacher
interprelou como intermédia entre curiosidade e irritação.
— Sentem-se, por favor — convidou.
Havia poltronas de cabedal para as visitas em frente à secretária. As paredes do
gabinete estavam cobertas de recordações de batalhões e divisões, troféus de jogos de
guerra, condecorações, fotografias antigas. Porém, nada estava à vista que pudesse
caracterizar De-Witt. Nem sequer fotografias de família em cima da secretária.
— Em que posso ajudar-vos? — perguntou ele em tom neutro.
— Estamos aqui particulares — começou Reacher.
—Como civis, na realidade — completou DeWitt com lentidão.
Reacher anuiu de cabeça. «Primeira bola fora.»
— Viemos por causa de Victor Hobie. Foi camarada do meu general no Vietname.
DeWitt não deu mostras de reconhecer o nome. Ergueu o sobrolho.
— Sim? — indagou. — Não me lembro.
«Segunda bola fora.» Nada interessado em cooperar.
— Estamos a tentar descobrir o que se passou com ele.
Novo silêncio breve. Até que DeWitt assentiu com a cabeça devagar, divertido.
— Porquê? E um tio vosso desaparecido? Ou compraram a casa onde ele passou a
infância e encontraram-lhe os diários de adolescente escondidos atrás de algum
painel?
«Terceira bola fora.» Agressivo, além de desinteressado em cooperar. Jodie chegou-se
para a frente na poltrona. A sua voz soou suave e baixa no gabinete silencioso:
— Estamos aqui em representação dos pais dele, general. Perderam o filho há trinta anos
e nunca chegaram a saber o que lhe sucedeu. Continuam a sofrer.
— Não me lembro dessa pessoa — disse DeWitt, fitando-a com os olhos cinzentos e
abanando a cabeça. — Lamento muito.
— Treinaram juntos aqui em Wolters — interveio Reacher. — Foram juntos para Rucker
e partiram juntos para Qui Nhon. Fizeram juntos quase duas comissões de serviço a
pilotar Hueys a partir de Pleiku.
— Quando me alistei para pilotar helicópteros, o meu velhote, que pilotou bombardeiros
a partir de East Anglia, em Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial, deu-me uns
conselhos úteis — replicou DeWitt. — Disse-me: «Não faças amizade com outros
pilotos, porque morrem todos e isso só serve para te sentires infeliz.»
Reacher acenou de cabeça a sua compreensão.
— Não se lembra mesmo de Victor Hobie?
DeWitt limitou-se a encolher os ombros.
— Nem para os pais? — inquiriu Jodie. — Parece injusto que nem cheguem a saber o que sucedeu
ao filho, não acha?
Fez-se silêncio. DeWitt fitava Jodie. Até que abriu as mãos pequenas em cima da
secretária e suspirou.
— Bem, acho que talvez o recorde um pouco — contemporizou.
Principalmente dos primeiros tempos. Depois, quando todos começaram a morrer,
levei a peito o conselho do velhote. Como que me fechei na minha concha, se é que me
entendem.
— Então, como era ele? — quis Jodie saber.
— Era voluntário, sabem isso, não é verdade? Havia nessa altura um fosso enorme entre os
voluntários e os mobilizados. Os voluntários eram todos entusiastas, como devem calcular,
alistavam-se por crença. Vic, todavia, não era assim. Apresentou-se como voluntário, mas
passava o tempo calado que nem um rato, não se distinguindo dos mobilizados, mais metidos
consigo. Nada como eu, isso garantovos. Mas pilotava como se tivesse nascido com um rotor na
cabeça.
— Então, era mesmo bom? — insistiu Jodie.
— Melhor do que bom — correspondeu DeWitt. — Nos primeiros lompos, classificou-se só atrás
de mim, o que quer dizer qualquer coisa, pois eu nasci mesmo com um rotor na cabeça. E Vic era
esperto com a parte dos estudos. Nisso, ficava acima de todos os colegas.
— Mas não tinha um problema de atitude também? — interveio Reacher. — De trocar favores por
ajuda?
DeWitt desviou os olhos cinzentos de Jodie para ele.
— Fizeram pesquisa. Estiveram no arquivo.
— Acabámos de chegar do CNAM, em St. Louis — disse Reacher.
— Espero que não tenham lido o meu processo.
— Foi-nos vedado.
O general esboçou um aceno neutro.
— Vic trocava favores — confirmou —, mas foi considerado que o fazia de modo errado. Devia ser
por nos agradar prestar auxílio aos colegas, para bem da unidade. Para Vic, porém, tratava-se
apenas de mais uma equação matemática. Tal como uma quantidade x de sustentação faz descolar
um helicóptero, também uma determinada quantidade de ajuda com tal fórmula complicada
merece uma limpeza de botas. Os oficiais achavam que demonstrava frieza.
— Ele era uma pessoa fria? — indagou Jodie.
— Completamente destituído de emoções — assentiu DeWitt.
— Era estranho, mas isso fazia dele um piloto fantástico.
— Por não ter medo? — interessou-se Reacher.
— Exacto — confirmou DeWitt. — Não era corajoso, porque um tipo corajoso é aquele que tem
medo e o domina. Vic simplesmente nunca sentiu medo. Eu saí de Rucker como primeiro
classificado da incorporação, mas quando começámos a actuar, ele revelou-se melhor na
aprendizagem em acção. Percebem alguma coisa sobre helicópteros na selva?
— Pouco — disse Reacher, abanando a cabeça.
— O primeiro problema importante é o da ZA — explicou o interlocutor. — ZA, zona de aterragem,
entendido? Há algures um grupo desesperado de infantaria, esgotado e debaixo de fogo, que é
preciso evacuar; nós somos contactados via rádio e o nosso oficial de dia diz: «Claro, arranjem-
nos uma ZA e nós vamos imediatamente.» Então, eles usam explosivos, serras e toda a tralha que
tiverem à mão para abrir uma clareira temporária na selva. Mas estão exaustos, apressados,
debaixo de fogo de morteiro cerrado do inimigo, e em geral não preparam uma ZA com
dimensões suficientes. Logo, não conseguimos evacuá-los. Isso aconteceu-nos duas ou três vezes
e é terrível. Até que, certa noite, vejo Vic a estudar o fio da pá do rotor do seu Huey. No dia
seguinte, somos chamados de novo e, claro, a ZA é demasiado pequena. Porém, Vic baixa na
mesma. Fazendo rodar o heli, abre caminho com as pás do rotor como um gigantesco corta-relva
voador. Foi fascinante. Evacua sete ou oito tipos, e nós vamos atrás e sacamos os restantes.
Depois, passou a ser esse o procedimento normal, mas quem o inventou foi ele, porque era frio,
lógico e não tinha medo de experimentar. Essa manobra salvou centenas de vidas ao longo dos
anos. Talvez mesmo milhares.
— Impressionante — comentou Reacher.
— Não tenha dúvidas — ripostou DeWitt.
— Como passava ele o resto do tempo? — perguntou Reacher.
— Os processos referem muitos dias em que era impossível voar.
— Não faço ideia. Estava sempre ocupado, sempre a planear coisas, mas ignoro o quê. Como disse,
eu não queria conviver com os outros pilotos.
— Qual foi a última missão dele?
Os olhos cinzentos esvaziaram-se de súbito, como se ele tivesse baixado umas
persianas.
— Não me lembro.
— Foi abatido — declarou Reacher. — Alvejado no ar, mesmo no seu lado. Não se lembra de qual
era a missão?
— Perdemos oito mil helicópteros no Vietname — contou DeWitt. — Como é que quer que me
lembre de um determinado?
— Qual era a missão? — insistiu Reacher.
— O que é que isso lhe interessa? — interrogou-o por sua vez o general.
— Acho que gostaria de poder dizer aos pais que ele morreu a fazer qualquer coisa útil.
DeWitt sorriu, um sorriso amargo, sardónico.
— Bem, pode ter a certeza de que isso é impossível. Porque nenhuma das nossas missões era útil.
Eram pura perda de tempo. Perda de vidas. Perdemos a guerra, não é verdade?
— Foi uma missão secreta?
Houve uma pausa. Silêncio no grande gabinete.
— Porque havia de ser secreta? — respondeu por fim o general com outra pergunta.
— Ele só tinha três passageiros a bordo. Parece-me qualquer coisa especial.
— Não me lembro — repetiu DeWitt.
— O general Garber ligou para o CNAM por causa de Hobie — continuou Reacher, fitando-o. —
Parece lógico que tenha telefonado depois para o meu general. Não quer dizer-nos o mesmo que
lhe disse a ele?
DeWitt levantou-se devagar e encaminhou-se para a janela. Ficou ao sol, a ver a
aproximação de um helicóptero para aterragem.
— E informação secreta. Não estou autorizado a fazer comentários e não vou fazê-los. Foi o que
disse a Garber. Sem comentários. No entanto, dei-lhe o lamiré de que talvez devesse procurar
mais perto, e é o mesmíssimo conselho que lhe dou a si, Mr. Reacher.
— Mais perto?
— Viu o processo de Kaplan? — perguntou DeWitt, virando cosias à janela.
— O co-piloto?
Reacher confirmou com um aceno de cabeça.
— Leu a penúltima missão dele?
Reacher abanou a cabeça.
— Trabalho desleixado para quem já foi major da PM. Mas não diga a ninguém
que mencionei isso porque eu nego. — O general regressou à secretária e
sentou-se.
— É possível que Victor Hobie ainda esteja vivo? — perguntou Jodie.
O helicóptero distante cortou os motores. Fez-se um silêncio total.
— Não tenho comentários acerca disso — acabou DeWitt por dizer.
— O senhor viu o desastre. É possível que alguém tenha sobrevivido?
— Vi uma explosão no solo da floresta, nada mais.
— Porque é que Kaplan foi dado oficialmente como morto e Hobie não?
— Não tenho comentários a fazer acerca disso.
Jodie anuiu de cabeça. Matutou por instantes e voltou à carga como uma típica
advogada:
— Então, examinemos a questão apenas em termos teóricos. Suponhamos que um
rapaz com a personalidade e antecedentes de Victor Hobie sobrevivia a um
acidente daqueles, certo? É possível que um homem assim nunca tivesse
posteriormente tentado sequer o contacto com os pais?
O general levantou-se, nitidamente perturbado.
— Ms. Garber, eu não sou, nem de perto nem de longe, psiquiatra. Em termos
gerais, porém, acho que consideraria isso muito improvável. Contudo, não se
esqueça de que o Vietname modificava as pessoas. Garanto que me modificou a
mim, por exemplo. Eu dantes era um tipo simpático.
O Sol brilhava, por isso os agentes Sark e O´Hallinan estacionaram o carro-
patrulha junto ao passeio, à sombra da Trinity Church, e seguiram para o World
Trade Center em passo apressado.
— Qual dos edifícios? — perguntou Sark.
— A torre sul, acho eu — respondeu a colega.
Entraram no edifício. Os tipos da segurança no átrio estavam ocupados com um
grupo de estrangeiros de fatos cinzentos, e os dois
ngentes encaminharam-se para a lista de ocupantes do prédio, que consultaram. O
Cayman Corporate Trust constava como tendo escritório no octogésimo oitavo
andar. Entraram para o elevador directo sem que os seguranças tivessem sequer
dado pela sua chegada ao edifício.
No octogésimo oitavo andar, a porta do elevador deslizou, e eles saíram para
um corredor estreito. O Cayman Corporate Trust tinha uma porta moderna de
madeira de carvalho com janelinha e maçaneta de latão. Sark puxou por esta,
dando educadamente passagem a O´Hallinan.
Um homem possante de fato escuro estava sentado a uma secrelária de recepção
pela altura do peito. Sark parou ao centro da divisão, com o cinturão da arma a
realçar a largura das suas ancas, dando-lhe um ar forte e nada para brincadeiras. A
agente O´Hallinan nproximou-se do balcão, a planear a melhor abordagem. Queria
ver se os desconcertava, portanto tentou o tipo de ataque frontal que vira ilar bons
resultados.
— Viemos por causa de Sheryl — declarou.
— Acho que tenho de regressar — disse Jodie.
— Não, vais ao Havai comigo.
Estavam de volta ao terminal de Dallas-Fort Worth.
— Ao Havai? Reacher, eu não posso ir ao Havai. Tenho de estar em Nova Iorque
para uma reunião amanhã. Sabes isso muito bem. f oste tu que atendeste a
chamada.
— Paciência, Jodie. Não voltas para lá sozinha.
— Tenho de ir, Reacher — insistiu ela. — Não posso deixá-los pendurados.
— Liga-lhes, diz que estás doente ou qualquer outra coisa.
— Não posso fazer isso. O meu secretário sabe que não estou doente. Afinal,
porque precisas tu de ir ao Havai?
— Porque é lá que está a resposta — declarou ele.
I)irigiu-se a uma bilheteira para tirar um horário de um pequeno expositor
cromado. Detendo-se sob as frias luzes fluorescentes, folheou-o. Verificou tudo
duas vezes e depois sorriu, aliviado.
— Seja como for, podemos fazer as duas coisas. Há um voo daqui ao meio-dia e
um quarto. A duração de voo, descontando a difennça horária por viajarmos
para oeste, põe-nos em Honolulu às três da tarde. Se sairmos de lá no voo das
sete para Nova Iorque, o tempo de viagem mais a diferença horária do regresso
implica uma chegada a JFK ao meio-dia de amanhã. Por conseguinte, ainda
podes ir à tal reunião.
— Passamos a noite inteira num avião. Vou a uma reunião a seguir a uma noite de
insónia dentro de um raio de um avião.
— Então, vamos em primeira classe. É Rutter que paga, não é? Em primeira
classe, podemos dormir — alvitrou ele.
— Isto é de loucos. Só nos dá quatro horas no Havai.
— Não precisamos de mais.
Tinham um plano bem ensaiado para situações daquelas. O gorila do balcão que
lhe chegava ao peito deslocou casualmente a mão para o lado, premiu um botão
com o indicador e outro com o dedo médio. O primeiro trancava a porta de
carvalho de acesso ao patamar dos elevadores, o segundo acendia uma luzinha
intermitente no intercomunicador sobre a secretária de Hobie.
— Quem? — contemporizou o homenzarrão.
— Sheryl — repetiu O´Hallinan.
— Desculpe — pronunciou o tipo. — Não trabalha cá ninguém com esse nome. De
momento, somos três, e todos homens.
— Têm um Tahoe preto? — perguntou-lhe a agente.
O interpelado confirmou de cabeça.
— Temos um Tahoe preto que faz parte da frota da empresa.
— E um Suburban ?
— Sim, também temos um . E algum problema de trânsito?
Nessa altura, Tony abriu a porta do gabinete interior e deteve-se,
com uma expressão inquiridora.
— Posso ajudar?
Quando Sark e O´Hallinan se viraram e encaminharam para o meio da zona de
recepção, o gorila que se encontrava ao balcão baixou-se e retirou a espingarda do
suporte, mantendo-a escondida.
— E por causa de Sheryl — repetiu O´Hallinan. — A Sheryl com o nariz
amassado e as maçãs do rosto fracturadas. A Sheryl que o vosso Tahoe deixou
à porta das urgências de São Vicente.
— Ah, já percebo — retorquiu Tony. — Não chegámos a saber o nome dela. Nem
conseguia falar por causa dos ferimentos.
— Então, porque ia no vosso carro? — insistiu a agente.
— Tínhamos ido à Grand Central deixar um cliente. Encontrámo-la no passeio, a
modos que perdida. Saíra do comboio de Mount Kisco e vagueava por ali.
Oferecemos-lhe boleia para o hospital por nos parecer o melhor a fazer.
Deixámo-la em São Vicente porque l ica no nosso caminho para aqui.
— E não se interessaram em saber como é que ela se feriu?
— Sim, claro. Perguntámos-lhe, mas ela não conseguia falar devido aos
ferimentos. Por isso não reconhecemos o nome.
O´Hallinan estava parada, interdita. Sark deu um passo em Irente.
— Não conseguia falar?
— Nem uma palavra.
— Então, como sabe que saiu do comboio de Kisco?
Era altura de deixar a defensiva e passar à ofensiva. O gorila engatilhou a
espingarda e fê-la surgir por cima do balcão.
— Quietos! — gritou.
Uma pistola de 9 mm apareceu na mão de Tony. Sark e O´Hallinan fitaram-na e
atiraram os braços para o ar, como se as suas vidas dependessem de tocarem no
tecto falso. O tipo da espingarda encoslou com força o cano às costas do polícia, e
Tony passou para trás da colega e fez o mesmo com a pistola. Surgiu então um
segundo homem do gabinete interior, detendo-se no limiar.
Os agentes fitaram-no em silêncio. Os seus olhares percorreramno desde a cara
até à manga vazia e ao gancho.
— Desapertem os cintos — ordenou Hobie. — Um de cada vez. I í bem depressa.
Sark foi o primeiro a obedecer. Baixou as mãos e lutou com a fivela. O cinto
caiu ao chão com um baque. O agente voltou a esticar os braços para o tecto.
— Agora, você — ordenou Hobie a O´Hallinan, que fez o mesmo. O pesado cinto,
com revólver, rádio, algemas e bastão, caiu com um baque sobre a alcatifa. Ela
esticou de novo as mãos para o ar.
I lobie inclinou-se, passou a ponta do gancho pelas duas fivelas e ergueu os cintos
no ar, na pose de um pescador ao fim de um dia bemsucedido nas margens de um
rio. Estendeu a mão boa para tirar os dois conjuntos de algemas dos seus gastos
estojos de cabedal. — Vilum-se. Eles obedeceram, ficando de frente para as
armas. — Mãos nlrás das costas.
É possível um maneta pôr algemas a uma vítima desde que esta fique imóvel,
com os pulsos juntos. Sark e O´Hallinan ficaram de facto o mais imóveis possível.
Hobie prendeu um pulso de cada vez e depois apertou as quatro algemas nos seus
roquetes até ouvir arquejos de dor.
— Venham — chamou, reentrando no seu gabinete.
Contornou a secretária, sentou-se pesadamente e começou a esvaziar os cintos.
Retirou os revólveres e deitou-os para dentro de uma gaveta. Extraiu os rádios e
remexeu nos botões do volume de som até assobiarem, emitindo ruídos de estática.
Juntou-os numa extremidade da secretária, com as antenas apontadas para a parede
de vidro. Voltou-se então de novo e arrancou os bastões das respectivas argolas
nos cintos. Colocou um em cima da secretária e sopesou o outro na mão esquerda,
examinando-o com atenção. Era moderno, com pega e uma secção telescópica em
baixo. Perscrutou-o, interessado, antes de o juntar aos revólveres dentro da gaveta.
— Que vos contou Sheryl? — inquiriu.
— Disse que tinha batido numa porta — respondeu O´Hallinan.
— Então, porque raio estão a incomodar-me? Como é que vieram aqui parar?
— Porque não acreditámos nela — interveio Sark. — Era óbvio que fora
espancada. Investigámos a matrícula do Tahoe. Parece que nos trouxe ao sítio
certo.
— O mais certo possível — confirmou Elobie. — Nenhuma porta foi chamada ao
caso.
Sark assentiu com um aceno de cabeça. Era um homem razoavelmente corajoso.
Por definição, a Brigada de Violência Doméstica implicava tratar com homens
capazes de violência brutal. E Sark era bom nisso.
— Isto é uma confusão dos diabos — começou, sem se alterar. — Só estamos
interessados no que você fez a Sheryl. Talvez possamos chegar a um
compromisso. Talvez tivesse havido provocação, sabe, algumas circunstâncias
atenuantes. Mas se nos fizer mal, cava um buraco para si próprio. — Calou-se e
ficou cuidadosamente à espera da resposta. Era frequente aquela abordagem
resultar. Porém, de Hobie não houve resposta. Sark tinha a jogada seguinte na
ponta da língua quando os rádios emitiram um som e um operador distante se
fez ouvir.
— Cinco um e cinco dois, por favor, confirmem a vossa posição actual.
Sark estava tão condicionado para responder que a mão se lhe agitou para onde
estivera o cinto. Foi a algema que o deteve.
— Cinco um, cinco dois, preciso da vossa posição actual, por favor.
Sark tinha os olhos postos nos rádios, horrorizado. Hobie seguiu-
lhe o olhar e sorriu.
— Não sabem onde vocês estão — comentou.
Sark abanou a cabeça, raciocinando a toda a velocidade.
— Claro que sabem onde estamos. Estão sempre a verificar se estamos de facto
onde devemos.
— Cinco um, cinco dois — voltaram a cacarejar os rádios —, temos uma urgência
doméstica na esquina da Houston com a Avenida D. Estão nas proximidades?
— Isso fica a mais de três quilómetros daqui — sorriu Hobie. — Não fazem ideia
de onde vocês estão, pois não?
O sorriso tornou-se mais rasgado. O lado esquerdo da cara dobrou-se em linhas
nada habituais, mas à direita o tecido cicatricial permanecia liso como uma
máscara rígida.
NOVE
Pela primeira vez na vida, Reacher sentia-se mesmo a vontade num
avião. Voava desde que nascera, milhões de milhas no total, mas sempre
espartilhado em transportes militares ou encolhido em duros assentos civis. Viajar
em primeira classe num avião comercial era um luxo inaudito.
Jodie descalçara-se e sentara-se em cima dos pés, a ler a revista de bordo
aberta no colo, com uma taça de champanhe ao lado.
— Era capaz de habituar-me a esta vida — declarou Reacher.
— Não com os teus rendimentos — sorriu ela, erguendo o olhar.
Ele assentiu de cabeça. Calculou que um dia de trabalho a escavar piscinas lhe
desse para pagar cinquenta milhas de voo em primeira classe. À velocidade de
cruzeiro, isso devia corresponder a uns cinco minutos de viagem. Dez horas de
trabalho desperdiçadas em cinco minutos.
— Que é que vais fazer quando tudo isto acabar? — indagou Jodie.
— Não sei. — Era uma questão que ele carregava no subconsciente desde que ela
o informara acerca da casa. A casa ocupava-lhe a mente, por vezes benigna, por
vezes ameaçadora, como um quadro feito de maneira a mudar de aspecto
consoante o ângulo da luz. Havia ocasiões em que lhe aparecia iluminada pelo
sol, rodeada pela simpática selva de jardim, e sentia-a como um lar. Noutras
ocasiões, parecia-lhe uma pedra gigantesca atada à roda do pescoço.
— Há muitas coisas que podes fazer. Tens talento. És um investigador nato. O meu
pai costumava dizer que eras o melhor que ele conheceu.
— Isso foi no Exército — replicou ele. — Já acabou.
— As habilitações são portáteis, Reacher. O melhor tem sempre procura. —
Ergueu o olhar, com uma grande ideia a iluminar-lhe a expressão. — Podes
substituir Costello. Estávamos sempre a recorrer a ele.
— Bestial. Primeiro, contribuo para que o tipo seja morto, depois, roubo-lhe o
negócio.
— Não foi culpa tua — contrariou Jodie. — Devias pensar no assunto.
— Talvez — condescendeu Reacher —, mas não necessariamente agora.
Jodie fez um sorriso compreensivo e recaíram em silêncio.
O avião perseguiu o Sol para oeste, mas sempre a perder, e chegou a Honolulu
às 3 da tarde. Os passageiros de primeira classe saíam antes dos das classes
executiva e turística, o que significou que Reacher e Jodie foram os primeiros a
sair do terminal e a dirigirem-se à fila de táxis.
O primeiro da fila era uma réplica do que tinham utilizado em Dallas-Fort
Worth, um Caprice imaculado, com o ar condicionado no máximo. Presa com fita
gomada ao vinil do tablier, havia uma fotografia do que Reacher supôs ser a
família do tipo. Reacher desiludiu o motorista ao pedir o trajecto mais breve que
havia na ilha: os oitocentos metros pela estrada que circundava a Base da Força
Aérea de Hickam até à entrada desta. O tipo olhou de soslaio para a fila de carros
atrás de si, e Reacher viu que ele pensava nas melhores corridas que os outros
teriam.
Pode contar com uma gorjeta de vinte dólares — anunciou.
Vinte dólares? — repetiu o condutor, estupefacto.
— Trinta. Para os seus filhos. Parecem simpáticos.
O tipo sorriu pelo espelho, levou os dedos aos lábios e pousou-os com
suavidade na superfície brilhante da fotografia. Arrancou e cruzou as faixas de
rodagem que levavam à estrada circundante, da qual voltou a sair menos de
oitocentos metros à frente, detendo-se junto titi um portão militar de aspecto
idêntico ao de Fort Wolters. Jodie abriu a porta e saiu para o calor, enquanto
Reacher metia a mão ao bolso e extraía o rolo de notas. Arrancou três e enfiou-as
pela portinhola aberta no plexiglas. O táxi partiu, de regresso ao terminal civil.
Jodie e Reacher encaminharam-se para a guarita e esperaram à justa. Estava lá
dentro um sargento com a mesma farda, o mesmo corte de cabelo, a mesma
expressão desconfiada que tinham visto ao tipo de Wolters. Ele fez deslizar a
janela, e Reacher deu os nomes de ninhos.
— Viemos falar com Nash Newman — anunciou.
O sargento pareceu ficar surpreendido, pegou num bloco rígido e passou
algumas folhas fininhas. Foi ao telefone e ligou um número. Anunciou os visitantes
e ouviu a resposta. Desligou e voltou à janela.
— Ele vem já, portanto podem entrar.
Esgueiraram-se pela estreita abertura entre a guarita e o pesado contrapeso na
extremidade da barreira aos veículos, ficando à espera.
A menos de sessenta metros de distância, erguia-se um edifício de luxo de betão
com uma simples porta de acesso aberta ao fundo da parede lisa. Foi por essa
porta que saiu um homem grisalho, dirigindo se apressadamente à guarita. Usava
bata branca sobre farda tropical do Exército. Reacher avançou ao seu encontro e
Jodie seguiu-o. O tipo grisalho devia ter uns cinquenta e cinco anos e, visto ao
perto, n a alto, de cara simpática e com uma graciosidade atlética.
— General Newman — cumprimentou Reacher. — Esta é Jodie Garber.
Newman relanceou o olhar para Reacher e apertou a mão a Jodie com um
sorriso.
— Muito gosto, general — pronunciou ela.
Então, você é a filha de Leon. O prazer é todo meu. — O seu aperto de mão foi
caloroso. Depois, virou-se para Reacher, a
quem deu um soco amigável no ombro. — Jack Reacher. Que diabo, é bom voltar
a ver-te.
Reacher apertou com força a mão de Newman.
— O general Newman foi meu professor — explicou ele a Jodie.
— Há um milhão de anos, passou algum tempo na academia. Ensinava técnicas
forenses avançadas, e foi com ele que aprendi tudo o que sei.
— Ele era bom aluno — disse Newman. — Pelo menos, prestava atenção, o que é
mais do que fazia a maior parte deles.
Foram caminhando enquanto conversavam, aproximando-se da porta de onde
surgira Newman. Esta abriu-se, e um homem mais novo parou à espera. Era um
tipo anódino, talvez com trinta anos, de bata. Newman acenou com a cabeça na
direcção dele.
— Este é o tenente Simon. E ele quem dirige o laboratório por minha conta.
Houve apertos de mão para todos. Simon era calmo e reservado. Reacher
catalogou-o como o típico funcionário de laboratório, aborrecido por ver
perturbada a rotina do seu trabalho. Newman conduziu-os ao seu gabinete, e Simon
desapareceu em silêncio.
— Sentem-se — convidou o general com um gesto, apontando para as confortáveis
cadeiras de visitas. — Vamos conversar.
— Então, o senhor é uma espécie de patologista? — perguntou-lhe Jodie.
Newman ocupou o seu lugar à secretária e abanou uma das mãos de um lado
para o outro.
— Bem, um patologista é formado em Medicina, enquanto nós, antropólogos
forenses, não somos. O nosso campo é a estrutura física do corpo humano, pura
e simplesmente. Claro que ambos trabalhamos post mortem, mas, em termos
gerais, se o cadáver é relativamente recente, a tarefa é do patologista, e se só
tiver restado um esqueleto, então a tarefa é nossa. Portanto, pode dizer-se que
sou investigador de ossos.
— Viemos cá por uma razão, meu general — interveio Reacher.
— Lamento, mas esta visita não é puramente social.
— Há-de sê-lo o suficiente para deixares de tratar-me por general e começares a
tratar-me por Nash, espero. Conta lá o que tens em mente.
Reacher sorriu.
— Precisamos da sua ajuda, Nash.
— Com as listas de DEC? — perguntou Newman, erguendo o olhar. Depois, virou-
se para Jodie, explicando: — É esse o meu trabalho aqui. Há vinte anos que não
faço outra coisa.
— É sobre um caso específico — disse ela, anuindo de cabeça.
Acabámos por envolver-nos nele.
A luminosidade abandonou os olhos de Newman.
— Sim, era o que eu receava — comentou. — Há cá oitenta e nove mil cento e
vinte casos de DEC, mas aposto que sei qual o que vos interessa.
— Oitenta e nove mil? — repetiu Jodie, espantada.
— Mais cento e vinte. Dois mil e duzentos desaparecidos no Vietname, oito mil
cento e setenta na Coreia e setenta e oito mil selecentos e cinquenta durante a II
Guerra Mundial. Não desistimos em relação a um único, nem vamos desistir.
— Então, é isso que faz aqui? — interessou-se Jodie. — Espera que os esqueletos
sejam descobertos algures e trazidos para cá a fim de serem identificados?
Newman abanou a mão uma vez mais vagamente.
— Bem, não ficamos propriamente à espera. Podendo, vamos nós à procura. E nem
sempre os identificamos, embora lhe garanta que fazemos absolutamente todos
os possíveis. Em termos técnicos, pode ser um grande desafio. Os locais onde
se procede à remoção costumam estar numa desgraça. Por vezes, tudo o que
resta de um soldado americano é um punhado de fragmentos ósseos que cabe
mima caixa de charutos. E o Departamento de Defesa não se pode dar ao luxo
de cometer erros. Exige um grau de certeza elevadíssimo, e há casos em que
não conseguimos atingi-lo.
O gabinete ficou em silêncio enquanto um relógio elegante numa prateleira baixa
anunciava as 3.30 da tarde. Faltavam três horas e meia para o voo de regresso.
— Leon veio cá em Abril — lembrou Reacher.
— Pois, veio visitar-me — confirmou Newman com um aceno dc cabeça. — Foi
um disparate da parte dele, claro, doente como eslava. Mas gostei de o ver. —
Voltou-se para Jodie com a comiseração no rosto. — Era um homem
verdadeiramente fantástico. Devo-
lhe muito.
Ela agradeceu com um aceno de cabeça. Não era a primeira vez que ouvia
coisas daquelas, nem seria a última.
— Queria saber coisas a respeito de Victor Hobie — concluiu Reacher.
Newman voltou a confirmar de cabeça.
— Victor Truman Hobie.
— Que lhe contou?
— Nada. E também não vou contar-vos nada. Sabes como é, Reacher. Eu sou
oficial do Exército dos EUA, que diabo. Não posso revelar informações
secretas.
— Por favor, Nash. Viemos do cu de Judas, e você é a nossa última esperança.
Silêncio.
— Bem, acho que podem fazer-me perguntas — acabou o anfitrião por sugerir. —
Se um antigo aluno meu vem cá e me faz perguntas baseado nas suas próprias
capacidades e observações e eu lhe respondo de modo puramente académico,
não vejo que mal possa vir ao Mundo.
Foi como um raio de sol a abrir caminho entre as nuvens. Jodie olhou de soslaio
para Reacher, que relanceou por sua vez o olhar para o relógio. Faltavam pouco
mais de três horas para a partida.
— Muito bem, Nash, obrigado. Conhece o caso?
— Conheço todos. Esse em particular, desde Abril.
— E é tão secreto que nem Leon podia ter acesso às informações?
— O que implica um nível elevadíssimo de secretismo — sugeriu Newman —, não
é verdade?
Reacher concentrou-se.
— Que queria Leon que você fizesse?
— Queria que encontrássemos o local do acidente.
— Seis quilómetros e meio a oeste do desfiladeiro de An Khe?
Newman confirmou de cabeça.
— Tive pena de Leon. Na verdade, não havia razão para ele não poder ter acesso
às informações, mas eu nada podia fazer para alterar a classificação. No
entanto, devia muito àquele homem, muito mais do que posso confidenciar-vos,
por isso concordei em procurar o local.
— Mas porque não foi encontrado antes? — perguntou Jodie, inclinando-se para
diante. — Parece ser uma informação mais ou menos pública.
— É de uma dificuldade incrível — suspirou Newman. — Nem fazem ideia. A
burocracia. Os Vietnamitas é que ditam as condições, claro. Fazemos um
esforço conjunto de recuperação, mas eles controlam tudo. Obrigam-nos a
alugar os seus próprios helicópteros para nos deslocarmos, milhões e milhões
de dólares por ano para pagarmos viagens em montes de sucata com metade das
capacidades dos nossos aparelhos. A verdade é que estamos a comprar a
devolução das ossadas. Os Estados Unidos pagam mais de três milhões de
dólares por cada uma das identificações que fazemos, e isso irrita-
me solenemente. — Quatro minutos para as 4. Newman suspirou, perdido nos seus
pensamentos.
— Mas encontraram o local? — perguntou Reacher.
— Foi tramado, em termos geográficos — respondeu Newman.
Falámos com DeWitt e ele ajudou-nos a estabelecer a localização.
O sítio mais remoto que alguma vez se viu. Montanhoso e inacessível. Posso
garantir-vos que nenhum ser humano lá tinha posto o pé.
— O que é que lá descobriram? — inquiriu Reacher.
— Um estado de preservação relativamente bom. O Huey estava desfeito e
enferrujado, mas reconhecível. Claro que os corpos encontravam-se reduzidos a
esqueletos. A roupa apodrecera e desaparecera há muito. No entanto, nada mais
faltava. As identificações vão ser uma formalidade porque temos as placas. Só
lamento que Leon não tenha vivido o suficiente para o ver. Teria ficado
descansado.
— Os corpos estão cá?
— Mesmo aqui ao lado.
— Podemos vê-los? — pediu Reacher.
— Não deviam, mas é necessário — anuiu Newman. Ergueu-se e indicou a porta
com um gesto. O tenente Simon ia a passar. — Vamos ao laboratório — avisou
Newman.
— Sim, meu general — correspondeu o subordinado, que se .1 Instou para o seu
próprio cubículo de trabalho enquanto Reacher, Judie e Newman caminhavam
na direcção oposta até uma porta simples numa parede de tijolo burro sem
qualquer ornamento.
Simon viu-os entrar. Quando a porta se fechou nas suas costas, pegou no
telefone e ligou um número de dez algarismos que começava pelo código de zona
da cidade de Nova Iorque.
— Reacher está aqui — sussurrou assim que a ligação foi estabelecida. — Neste
preciso momento, com a filha de Garber. Estão no laboratório. A ver. Que quer
que eu faça?
Fez-se silêncio na linha. Apenas interrompido pelo assobio do satélite de
comunicações. Até que lhe chegou a voz de Hobie, baixa e controlada:
— Pode dar-lhes uma boleia de regresso ao aeroporto. Ela tem uma reunião em
Nova Iorque amanhã à tarde, portanto suponho que tentem apanhar o voo das
sete. Assegure-se de que não o perdem.
O laboratório era uma vasta divisão sem janelas, de uns doze metros por quinze.
Ao fundo, havia um recanto cheio de prateleiras. Nestas, alinhavam-se caixas de
cartão marcadas a preto com números de referência. Talvez umas cem caixas.
— Os não-identificados — comentou Reacher.
Ao seu lado, Newman confirmou com um aceno de cabeça.
Entre eles e o recanto distante, montadas sobre o chão de tijoleira, havia vinte
estreitas mesas de madeira em fila. Seis estavam vazias. Em sete, haviam sido
atravessadas as tampas de sete caixões de alumínio brilhante. As outras sete
sustentavam os próprios caixões de alumínio em alternância perfeita, cada um
adjacente à mesa em que estava disposta a respectiva tampa. Reacher ficou calado,
de cabeça baixa, até se pôr em sentido e fazer uma demorada continência
silenciosa pela primeira vez em mais de dois anos.
— Que horror! — murmurou Jodie.
Reacher acabou a continência e apertou-lhe a mão.
— Então, que é que vês? — interrompeu Newman.
Os olhos do visitante vagueavam pela divisão bem iluminada.
— Vejo sete caixões — respondeu ele em tom baixo. — Onde esperava encontrar
oito. Havia oito pessoas a bordo daquele Huey. Uma tripulação de cinco e
foram buscar três. Está no relatório de DeWitt. Pesquisaram o local? A pente
fino?
— Não — respondeu Newman, abanando a cabeça.
— Porque não?
— Vais ter de descobrir isso por ti.
— Posso? — pediu Reacher, dando um passo em frente.
— A vontade — convidou o general.
Reacher encaminhou-se para o caixão mais próximo e virou-se por forma a
olhá-lo ao comprimento. O caixão continha um caixote
de madeira com um aglomerado de ossos que alguém dispusera em sequência
anatómica quase correcta. Ao cimo, encontrava-se uma caveira amarelecida e
velha com um sorriso grotesco. As vértebras cervicais tinham sido alinhadas com
cuidado, e omoplatas, clavículas e costelas dispostas nos lugares certos sobre a
pelvis. Os ossos dos braços e das pernas amontoavam-se aos lados. Havia uma
quase mutilação de fio metálico a rodear as vértebras cervicais, desaparecendo
debaixo da omoplata esquerda, achatada.
Reacher inclinou-se para dentro e passou o dedo por baixo do fio. Puxou para
fora as placas de identificação e leu o nome gravado:
— Kaplan — disse. — O co-piloto.
— Como morreu? — incentivou-o Newman.
Reacher repôs as placas sobre as costelas esguias e procurou com atenção as
provas. O crânio estava bem. Não havia vestígios de fracturas nos braços, nas
pernas nem no peito. Porém, a pelvis fora esmagada e as vértebras lombares
estavam esmigalhadas. A parte posterior das costelas também apresentava
fracturas.
Por impacto, quando o Huey chocou com o solo. Foi atingido em força na parte
inferior das costas. Extensos traumatismos internos e hemorragias. Morte provável
no decorrer do primeiro minuto.
O general assentiu de cabeça, e Reacher avançou para o caixão seguinte. Havia
um tabuleiro de madeira semelhante ao primeiro, assim como o amontoado de
ossos amarelos. A caveira era também semelhante nos seus aspectos grotescos,
acusadores, sorridentes. Abaixo, o pescoço estava partido. Ele extraiu as placas de
identificação de entre os estilhaços de ossos.
— Tardelli — leu.
— O artilheiro de estibordo — elucidou Newman.
O esqueleto de Tardelli era uma confusão. Os artilheiros dos Hueys ocupam
posições expostas, basicamente inseguras, fazendo malabarismos com a pesada
metralhadora, presos por elásticos. Quando o Huey se despenhara, Tardelli fora
projectado pela cabina.
— Fractura da coluna — diagnosticou Reacher. — Peito esmagado. — Virou o
terrível crânio amarelado, que apresentava fracturas semelhantes às de uma
casca de ovo. — Traumatismo craniano também. Diria que morreu
instantaneamente.
— Tinha dezanove anos — mencionou o general.
O seguinte era diferente. Tinha um único ferimento no peito. As
placas de identificação estavam emaranhadas em ossos estilhaçados. Reacher não
conseguiu soltá-las. Teve de inclinar a cabeça para ver o nome.
— Bamford.
— O chefe da guarnição — esclareceu Newman. — Devia estar sentado no banco
da cabina, de frente para os três tipos que tinham ido buscar.
O rosto ossudo de Bamford sorria-lhes. Abaixo dele, o esqueleto estava
completo e não danificado, à excepção de um esmagamento que lhe atravessava o
tronco. O esterno fora projectado contra a coluna, deslocando três vértebras.
Também faltavam três costelas.
— Então, que te parece? — perguntou o general.
Reacher pôs a mão dentro da caixa e tacteou as dimensões do traumatismo, que
era estreito e horizontal.
— Um impacte de qualquer espécie — concluiu. — Um impacte de um instrumento
aguçado contra uma superfície plana. Atingiu-o de lado, no peito, é óbvio. Teria
provocado paragem cardíaca imediata. Terá sido a pá do rotor?
— Muito bem — anuiu Newman.
No caixão seguinte, alguns dos ossos tinham a mesma cor amarelada, mas a
maior parte estava branca e quebradiça. As placas de identificação encontravam-
se retorcidas e escuras. Reacher voltou-as para ler a gravação à luz proveniente do
tecto:
— Soper.
— O artilheiro de bombordo — elucidou Newman.
— Houve fogo — declarou Reacher.
— Como sabes? — indagou o general, como professor que era.
— As placas de identificação estão queimadas.
— A explosão que DeWitt avistou — interveio Jodie. — Foi o depósito de
combustível.
Newman concordou com um aceno de cabeça.
— Não foi fogo lento. Explosão de combustível. Salpica ao acaso e arde
rapidamente, o que explica a natureza ocasional dos ossos queimados. Parece-
me que Soper apanhou com o combustível na parte inferior do corpo, embora a
superior estivesse caída, fora do alcance do fogo. — As palavras murmuradas
desvaneceram-se no silêncio. Até ele pedir: — Vê o próximo.
O caixão seguinte continha os restos mortais de um homem chamado Allen. Sem
qualquer queimadura, só um esqueleto amarelado, com as placas brilhantes
penduradas no pescoço partido. Caveira sorridente. Fiadas perfeitas de dentes
brancos. O crânio redondo não tivera qualquer traumatismo, mas toda a parte de
trás do tronco estava esmagada, como um caranguejo morto.
— Allen era um dos três que foram buscar — lembrou o general.
Reacher acenou de cabeça, macambúzio. O sexto caixão era de
outra vítima do fogo de nome Zabrinski. Os ossos calcinados tinham dimensões
reduzidas.
— É provável que em vida tivesse sido um tipo alto — comentou Newman. — Por
vezes, o fogo reduz os ossos até cinquenta por cento.
O sétimo e último caixão continha os restos mortais de um homem chamado
Gunston. O seu estado era terrível. A princípio, Reacher pensou que não havia
caveira. Até que a viu, disposta no fundo da caixa de madeira. Ficara esmigalhada
num cento de bocados.
— Então, onde está Hobie? — espantou-se Reacher.
— Passou-te qualquer coisa despercebida — declarou Newman.
Trabalho desleixado, Reacher, para quem costumava ser bom nisto.
Ele olhou-o de soslaio. DeWitt dissera algo parecido. Em concreto: «Trabalho
desleixado para quem já foi major da PM.» E aconselhara a «procurar mais perto».
— Dois eram PMs, certo? — indagou de súbito. — Tinham ido ambos para
prender o terceiro. Foi uma missão especial. Kaplan deixara na véspera os dois
PMs no campo. A sua penúltima missão a solo, aquela que não pude ler. Eles
foram buscá-los mais ao tipo que linham detido.
— Correcto — confirmou Newman de cabeça. — Pete Zabrinski e Joey Gunston
eram os polícias. Cari Allen, o mau da fita.
— Que é que ele fez?
— Os pormenores são confidenciais — respondeu o general. — Que é que achas?
— Chegada e partida em sequência tão rápida para uma detenção Imediata?
Suponho que fragging.
— Que é isso? — inquiriu Jodie.
— Homicídio de um oficial — explicou Reacher. — Acontecia ile vez em quando.
Algum tenente aventureiro entusiasmava-se por avançar para posições
perigosas. Os praças não gostavam, achavam que ele andava à cata de
medalhas, preferiam não se arriscar. Então,
o tipo dizia: «Ao ataque!», e alguém o alvejava por trás ou lhe atirava uma
granada para cima, o que era mais eficiente porque disfarçava melhor. É essa a
origem da palavra: granada de fragmentação.
— Então, foi isso? — interessou-se ele.
— Os pormenores são confidenciais — repetiu o general. — Mas foi uma coisa
assim.
— Mas onde está Hobie? — voltou Reacher a perguntar, regressando ao caixão de
Allen.
— Continua a passar-te qualquer coisa despercebida. Um passo de cada vez, não
te esqueças.
— Mas de que se trata? Onde tenho de procurar?
— Nos ossos — elucidou Newman.
O relógio na parede do laboratório marcava 5.30. Não lhes restava muito mais
de uma hora. Reacher inspirou e deu a volta aos caixões pela ordem inversa:
Gunston, Zabrinski, Allen, Soper, Bamford, Tardelli, Kaplan. Seis caveiras
sorridentes e um conjunto de omoplatas e clavículas sem cabeça devolviam-lhe o
olhar. Repetiu uma vez mais a observação. 5.45. 5.50. Jodie fitava-o, ansiosa. Ao
passar pela terceira vez, ele descobriu a solução na caixa de Bamford. Era
evidente. Correu em redor das outras seis caixas, a contar, a proceder a nova
verificação. Era verdade. Descobrira.
— Há sete corpos, mas encontram-se aqui quinze mãos. — Após uma pausa,
acrescentou: — A décima quinta tem de pertencer a Hobie. O que eu não
compreendo é porque não pesquisou a área à procura do restante.
— Porque havíamos de o fazer? — ripostou Newman em tom neutro.
— Porque não? Porquê presumir que tenha sobrevivido? Estava gravemente ferido.
O braço direito arrancado abaixo do cotovelo, com toda a probabilidade por
um fragmento de pá de rotor. Hemorragia extensa ... Talvez também
queimaduras ... — Reacher tinha os olhos fixos em Nash Newman. Como podia
um dos tipos mais inteligentes que ele alguma vez conhecera ter cometido um
erro tão crasso? Expeliu então o ar dos pulmões e fechou os olhos. — Porque
sabe que ele sobreviveu, não é verdade? Não o procurou porque tinha a certeza
disso.
— Correcto — anuiu o general com um aceno de cabeça.
— Mas como é que sabe?
Newman relanceou o olhar pelo laboratório e baixou o tom de voz:
— Porque ele apareceu depois — contou. — Rastejou até um hospital de
campanha a oitenta quilómetros dali, aonde chegou pasMídas três semanas. Está
tudo nos registos médicos. Ardia em febre, sofria de malnutrição, terríveis
queimaduras num dos lados da cara, faltava-lhe um braço e tinha larvas de
insectos no coto. Quando recobrou a consciência depois de tratado, narrou a
história: não houve sobreviventes para além dele próprio. Por isso, afirmei
sabermos com exactidão o que íamos lá encontrar. Por isso, não se tratava de
Imofa prioritária até Leon ficar tão agitado.
— Então, que sucedeu? — interveio Jodie. — Porquê tanto secretismo?
— O hospital ficava muito para norte — informou Newman. — O inimigo
avançava para sul e nós recuávamos. O hospital preparava se para a evacuação.
Hobie desapareceu na noite anterior à data marcada para a transferência para
Saigão. Fugiu pura e simplesmenIc Saiu da cama e foi-se. Nunca rnais foi visto.
— Raios! — exclamou Reacher.
— Continuo a não entender o secretismo — resmungou Jodie.
Reacher pode explicar. É mais do âmbito dele do que do meu
retorquiu o general.
— Ele passou a desertor — começou Reacher. — Em termos técnicos, passou a
ser isso. Era um militar no activo que fugira. Mas foi tomada a decisão de não o
perseguir. Se o apanhassem, qual era o procedimento? Teriam de submeter a
conselho de guerra um tipo com uma folha de serviços exemplar, um tipo que
desertara após uma série de terríveis ferimentos que o haviam desfigurado. Não
podiam fazer uma coisa dessas. Mas também não podiam deixar passar a
mensagem de que aceitavam deserções.
Ainda eram presos muitos gajos por deserção. Não podiam revelar que tinham
bitolas diferentes para gente diferente. Portanto, o processo de Hobie foi encerrado
com a classificação de secreto.
Por isso, ele não consta no Memorial — concluiu Jodie. — Sabem que não
morreu.
Tem os registos médicos dele? — perguntou Reacher a Newman. —
Radiografias, informações sobre a dentição, esse tipo de roisas.
— Ele não é desaparecido em combate — replicou Newman, abanando a cabeça.
— Sobreviveu e desertou.
— Só que eu não acredito nisso, Nash. Tudo neste tipo nos diz que ele não tinha
mentalidade de desertor. Os antecedentes, a ficha, tudo. Sei como são os
desertores. Persegui muitos.
— A guerra modifica as pessoas — lembrou o general.
— Assim tanto, não — redarguiu Reacher.
Newnam aproximou-se mais e voltou a baixar o tom de voz:
— Matou um enfermeiro — sussurrou. — O tipo viu-o a fugir e procurou detê-lo.
Está tudo no processo. Hobie disse: «Não volto para trás», e deu-lhe com uma
garrafa na cabeça. Partiu-lhe o crânio. E por isso que há tanto secretismo,
Reacher. Não se limitaram a deixar a deserção impune. Deixaram igualmente
impune um homicídio.
O silêncio que caiu sobre o laboratório foi total. Reacher pousou a mão na
tampa reluzente do caixão de Bamford para se apoiar.
— Não acredito — declarou.
— Mas devias acreditar. Porque é verdade.
— Não posso dizer uma coisa dessas aos pais — reflectiu Reacher. — Era a morte
deles.
— Que raio de segredo — comentou Jodie. — Deixaram-no impune por um
homicídio?
— Politiquices — opinou o general. — Aquilo lá era de bradar aos céus.
— Temos de ir andando— lembrou ela. — Precisamos de apanhar o avião.
— Importava-se de analisar os registos médicos dele? — pediu Reacher. — Se eu
conseguisse obtê-los através da família? Fazia-me isso?
— Já os tenho — confidenciou Newman. — Leon trouxe-os. A família entregou-
lhos.
— Então, analisa-os? — insistiu Reacher.
— Estás a agarrar-te a ninharias — avisou Newman.
Reacher rodou sobre si próprio e apontou as caixas de cartão empilhadas no
recanto ao fundo da divisão.
— Ele pode já aqui estar, Nash. Pode ter fugido para a selva e morrido depois lá.
Analisa os registos? A título de favor pessoal?
— Não posso — respondeu o general. — Isto é material secreto,
mm entendes? Não devia ter-vos contado nada de nada. E não posso agora
acrescentar mais um nome às listas de desaparecidos. A nossa Iunção aqui é
reduzir a lista, não aumentá-la.
— Por favor, Nash — insistiu Reacher.
Fez-se silêncio. Até que o general suspirou.
— Está bem, c’os diabos — cedeu. — Acho que posso fazer isso por ti.
— Liga-me assim que tiver resultados? — Reacher recitou o número do telemóvel
de Jodie, e Newman escreveu-o no punho da bata. — Obrigado, Nash. Não sei
como agradecer-lhe.
— E uma perda de tempo — replicou o outro.
— Temos de ir — chamou Jodie.
Reacher assentiu de cabeça, e todos se encaminharam para a porIn, onde os
esperava o tenente Simon com a oferta de uma boleia pela estrada da cerca até aos
terminais de passageiros.

Trinta andares acima da 5.a Avenida, Hobie acordou pouco passava das 6 da
manhã, o que para ele era mais ou menos normal, dependendo da intensidade do
pesadelo com o fogo. Trinta anos são eerca de onze mil noites, e todas elas ele
sonhara com o incêndio. O cockpit separara-se da secção da cauda e a fractura
rasgara o depósito de combustível. O combustível derramara-se. Todas as noites,
ele via-o aproximar-se em horrível câmara lenta. Era líquido, globular e adquiria
formas sólidas, como gigantescas gotas de chuva distorcidas. Noite após noite,
virava a cabeça na mesmíssima sacudidela convulsiva, mas elas atingiam-no
sempre. Salpicavam-lhe a cara. Chegavam-lhe ao cabelo, que colavam à testa, e
escorriam-lhe lentamente para os olhos. Cheiravam a quente, como fogo, mas a
sensação era de frio, como de gelo. Depois, a forma escura da pá de rotor cm
curva descendente. Quebrava-se contra o peito do tipo chamado Bamford, e um
fragmento aguçado atingia-o mesmo a meio do antebraço.
Vira a mão soltar-se. A lâmina da pá passara-lhe pelos ossos do braço,
dividindo o antebraço em dois. Levantando o antebraço cortado, ele tocara com ele
na cara, tentando descobrir a razão de a pele lhe produzir uma sensação de frio,
apesar de cheirar a quente.
Percebeu mais tarde que essa acção lhe salvara a vida. As chamas intensas
tinham-lhe cauterizado as artérias. Se não tivesse levado o antebraço até ao rosto
queimado, ter-se-ia esvaído em sangue.
Permaneceu consciente durante cerca de vinte minutos. Fez o que tinha a fazer
dentro do cockpit e arrastou-se para longe dos destroços. Conseguiu internar-se no
mato e não parou até começar a agonia. Sobreviveu a vinte minutos dela e então
desmaiou.
Não recordava quase nada das três semanas seguintes até recobrar a
consciência no hospital. Certa manhã, acordou a flutuar numa nuvem de morfina.
Sentia-se melhor do que alguma vez se sentira em toda a sua vida. Contudo, fingiu
continuar em grande sofrimento. Desse modo, adiariam a sua repatriação.
A evacuação do hospital apanhou-o de surpresa. Ouviu os enfermeiros a
fazerem planos para a manhã seguinte. Fugiu de imediato. Não havia guardas. Só
um enfermeiro que, por acaso, andava a passear junto da cerca. O enfermeiro
custou-lhe uma preciosa garrafa de água, que lhe partiu na cabeça, mas não o
atrasou mais de um segundo.
A primeira tarefa foi recuperar o dinheiro. Estava enterrado a uns oitenta
quilómetros, num local secreto perto do último aquartelamento em que estivera
baseado, dentro de um caixão. Fora o único receptáculo grande a que conseguira
deitar mão na altura, mas acabara por se revelar um golpe de génio. O dinheiro
estava todo em notas de cem, cinquenta, vinte e dez dólares, pesando quase oitenta
quilos, um peso plausível para o conteúdo de um caixão. Pouco menos de dois
milhões de dólares. Entretanto, o campo fora abandonado, situando-se agora muito
para lá das linhas inimigas. Mas ele conseguiu lá chegar e, a muito custo, escavou
para retirar o caixão. Já removera quase toda a terra quando uma patrulha
vietcongue se precipitou sobre ele, vinda do meio das árvores. Teve a certeza de
que ia morrer. Mas não morreu. Em vez disso, fez uma descoberta ao nível das
maiores descobertas da sua vida. Percebeu que a combinação do seu aspecto
terrível com o comportamento errático e o caixão tivera o seu efeito em quem o
via. Medo da morte, cadáveres e loucura tornaram os outros passivos. As antigas
superstições jogaram a seu favor. A patrulha de vietcongues acabou-lhe a
escavação e carregou o caixão numa carroça puxada por búfalos. Ele sentou-se-lhe
em cima, delirou, tartamudeou, apontando para oeste, e eles levaram-no na
direcção do Camboja.
Foi passado de grupo em grupo e chegou ao Camboja em quatro dias.
Alimentaram-no a arroz, deram-lhe água a beber e vestiram-no de roupas negras
para o domarem e acalmarem os seus próprios temores primitivos. Os cambojanos
prosseguiram viagem com ele.
Ele saltitava e parlapatava como um macaco, apontando sempre para ocidente.
Passados dois meses, estava na Tailândia.
Viveu um ano em Banguecoque. Voltou a enterrar o caixão no quintal da barraca
que arrendou, indo depois à procura de médicos. Ilavia muitos em Banguecoque.
Vestígios do império, empapados em gin, despedidos de quaisquer possíveis
empregos, mas razoavelmente competentes quando estavam sóbrios. Um cirurgião
reconstruiu-lhe a pálpebra de maneira a quase se fechar. Outro abriu-lhe o
ferimento do braço e limou os ossos por forma a ficarem arredondados e lisos.
Coseu o músculo, passou-lhe a pele por cima, bem esticada, e voltou a selar tudo.
Enviaram-no então a um homem que construía próteses.
Todas elas implicavam usar um espartilho em redor do músculo do braço,
correias, um receptáculo de cabedal com os contornos exactos da extremidade do
coto. No entanto, havia acessórios diferentes. Havia uma mão de madeira,
esculpida com grande talento. Havia uma engenhoca de três bicos que parecia
vagamente um instrumento de jardinagem. Mas ele escolheu um gancho simples.
Agradava-lhe, embora não soubesse explicar porquê. O homem forjou-o em aço
inoxidável e cobrou quinhentos dólares por ele.
Acabou o ano a viver em Banguecoque. Quando voltou a escavar para tirar o
caixão da terra e marcou passagem para São Francisco num cargueiro, já tinha
esquecido que alguma vez tivera duas mãos.
Agora, Hobie rolou de borco, estendeu a mão esquerda para baixo, junto à cama,
e pegou no trabalho do homem de Banguecoque. 10 da manhã. Mais um dia da sua
vida. Lavou-se, vestiu-se e dirigiu-se ao World Trade Center.
Reacher acordou às 7 horas pelo seu relógio, que ainda tinha a hora de St. Louis,
portanto seriam 6 no Arizona, ou Colorado, ou no que quer que estivessem a
sobrevoar naquele momento, e já 8 em Nova Iorque. Espreguiçou-se no assento e
virou-se para Jodie.
— Olá, Reacher — cumprimentou ela.
— Viva, Jodie. Como é que te sentes?
— Nada mal. Melhor do que pensava. Que vais fazer enquanto eu estiver na
reunião? Procurar Hobie?
— Talvez, mas vai ser um trabalho dos diabos.
— Tem que haver pontas por onde pegar — assegurou ela. — Registos médicos e
esse tipo de coisas. O homem não pode deixar de usar uma prótese. E se sofreu
queimaduras, há-de haver registos disso.
Reacher concordou de cabeça.
— Também posso limitar-me a esperar que seja ele a descobrir-me. Afinal,
mandou matar Costello para poder continuar escondido. E depois mandou gente
atrás de nós. Posso limitar-me a ir para Garrison até ele mandar os capangas de
novo lá. — Voltou-se para a janela, fitando o seu pálido reflexo na escuridão, e
pensou: «Estou a aceitar que ele sobreviveu. Estou a convencer-me de que me
enganei.» Virou-se de novo para Jodie. — Podes dispensar hoje o telemóvel?
Para o caso de Nash descobrir alguma coisa e me ligar? Quero saber
imediatamente, se ele fizer alguma chamada.
Ela retribuiu-lhe o olhar demoradamente antes de anuir com um aceno de
cabeça. Inclinou-se para baixo e tirou o telemóvel da carteira.
— Boa sorte — desejou ao entregar-lho.
— Não costumava precisar de sorte — comentou Reacher, enfiando o telemóvel no
bolso.
Aterraram com dez minutos de antecedência, imediatamente antes da hora de ponta
do meio-dia, hora da Costa Leste. Jodie acertou o relógio e já estava levantada
ainda antes de o avião se deter, transgressão pela qual não se é insultado quando se
viaja em primeira classe.
— Vamos — disse. — Estou um bocado apertada em tempo.
Já estavam em fila à porta quando esta se abriu. Reacher levava o saco dela, e
ela foi à sua frente pelo terminal até lá fora. O Lincoln Navigator continuava no
parque de curta duração, grande, preto e vistoso.
Estavam em Manhattan vinte minutos depois da aterragem e seguiam para sul
pela Broadway, a caminho da casa de Jodie, passados mais dez minutos.
Deixaram o carro, subiram ao quinto andar e desceram para o quarto pelas
escadas de emergência. O regresso à cidade trouxera tlivolta as cautelas, mas o
edifício estava calmo e deserto. O apartamento, vazio e intacto. Meio-dia e meia.
— Dez minutos — pediu ela. — Depois, podes levar-me ao escritório, está bem?
— Como vais para a reunião?
— Temos um motorista. Ele leva-me — explicou ela.
Jodie passou cinco minutos no duche e cinco a vestir-se. Apareceu com um
vestido cinzento e casaco a condizer.
— Procura a minha pasta, sim? — bradou.
Limitou a maquilhagem a um toque de sombra para os olhos e bâton. Mirou-se
no espelho e correu de volta à sala. Reacher tinha a pasta à sua espera. Levou-a
para o carro.
— Toma as minhas chaves — ofereceu Jodie. — Assim, podes cá voltar. Ligo
para ti do escritório e podes ir lá buscar-me.
Levaram sete minutos a chegar à praceta onde se localizava o edifício do
escritório de advocacia. Jodie deslizou para fora do carro á 1 hora menos cinco.
— Boa sorte — gritou-lhe Reacher para as costas. — Fá-los sofrer.
Ela acenou-lhe com a mão e apressou-se em direcção à porta giratória. Chegou
ao seu gabinete ainda antes da 1 hora. O secretário seguiu-a com uma pasta fininha
na mão.
— Aqui está — apresentou cerimoniosamente.
Jodie abriu-a e passou os olhos por oito folhas de papel.
Que raio vem a ser isto? — interrogou.
— Na reunião, os sócios ficaram encantados — comentou o tipo.
Ela folheou de novo as páginas em ordem inversa.
— Não vejo porquê. Nunca ouvi falar em qualquer destas empresas e a quantia é
trivial.
Mas não é isso que interessa, pois não? — retorquiu ele.
Então, que é que interessa? — perguntou Jodie, fitando-o
Foi o credor que a contratou — explicou o outro. — Não o devedor. É uma
espécie de prevenção por parte do credor. Ele sabe que, se a senhora fosse
contratada pelo devedor, lhe havia de causar problemas. Portanto, contratou-a
primeiro para evitar que isso aconteça. Quer dizer que a senhora se transformou
numa estrela, Jodie.
DEZ

Reacher regressou devagar à Lower Broadway, estacionou o carrão


no lugar de Jodie e trancou-o. Não subiu ao apartamento. Voltou para a rua pela
rampa e dirigiu-se para norte, ao sol, até um café. Pediu ao empregado do balcão
um café duplo num copo de papel, sentou-se a uma mesa cromada e bebeu a
primeira golada.
Que dizer aos velhotes? A única atitude caridosa seria ir lá e dizer-lhes que
chegara a um beco sem saída. Limitar-se a ir lá, pegar-lhes nas mãos, comunicar-
lhes a trapaça de Rutter, devolver-lhes o dinheiro e a seguir contar uma pesquisa
prolongada e infrutífera, recuando no tempo até chegar ao nada. Implorar-lhes que
aceitassem o facto de o filho estar muito provavelmente morto há muito, de tal
forma que nunca ninguém conseguiria descobrir onde tal acontecera, nem quando,
nem como. Deixá-los viver o pouco tempo que lhes restava com a dignidade que
conseguissem ter.
No entanto, havia de encontrar Victor Hobie. Tocou na cicatriz da queimadura
através da camisa. Tinha contas a ajustar. Deitou o copo de café para o lixo e saiu
para o passeio. Caminhou para sul até ao prédio de Jodie. Estava cansado. No
avião, não dormira mais de quatro horas. Quatro em mais de vinte e quatro.
Recordou-se de ter reclinado o enorme assento de primeira classe e adormecido a
pensar em Hobie. Tal como agora. Victor Hobie mandara matar Costello para
poder continuar escondido. Jodie veio-lhe à mente. Conversava com ele no
escritório sombrio nas traseiras da casa de Leon. Dizia: «Costello ... deve ter
tentado um qualquer atalho antes de ir à sua procura, perturbando inadvertidamente
algum ninho de víboras, que ficaram alerta.»
Parou de repente no meio da rua com o coração aos pulos. Leon. Costello. Leon
e Costello juntos, a conversarem. Costello fora a Garrison conversar com Leon
pouco antes da sua morte. Leon expusera-lhe o problema: Procure um tipo
chamado Jack Reacher porque quero que ele verifique o que se passa com outro
tipo de nome Victor Hobie, qualquer coisa assim. Costello, calmo e profissional,
regressara à cidade e deitara mãos à obra. Pensara intensamente e seguira um
atalho. Fora à procura do tipo chamado Hobie antes de fazer o mesmo em relação
ao tipo de nome Reacher.
Reacher fez o último quarteirão até à garagem de Jodie a correr. Da Lower
Broadway à Avenida Greenwich eram quase cinco quilómetros, e ele chegou lá em
onze minutos. Abandonou o Lincoln no passeio em frente do edifício e subiu a
correr os degraus de pedra até ao átrio. Olhou em redor e premiu três campainhas
ao acaso.
— Entrega de encomendas — anunciou.
A porta interior foi aberta, e ele correu escada acima até à Suite 5. A porta de
mogno de Costello estava fechada, tal como Reacher a deixara há quatro dias.
Experimentou a maçaneta. A porta abriu-se. A lingueta continuava levantada, como
se o escritório ainda estivesse a funcionar. A cidade impessoal, a vida prosseguia
no seu rodopio. O perfume da secretária desvanecera-se até um ligeiríssimo
veslígio, mas o computador permanecia ligado, numa espera paciente pelo seu
regresso.
Reacher dirigiu-se à secretária e tocou com o dedo no rato. O monitor passou a
revelar a entrada referente à Spencer Gutman Ricker & Talbot, a última coisa que
ele consultara antes de lhes telefonar. Saiu para a listagem principal. Fê-la correr
de trás para a frente e da frente para trás, mas ela não continha nomes verdadeiros,
apenas as siglas das firmas. Reacher deixou aquela secretária e correu ao gabinete
do próprio Costello. Não havia papéis em cima da secretária. Abriu as gavetas,
uma de cada vez, e encontrou um bloco na de cima, à esquerda. Sentou-se na
cadeira de cabedal e folheou-o. Na décima página, o nome Leon Garber saltou-lhe
à vista no meio de uma confusão de apontamentos a lápis. Viu Mrs. Jacob,
SGR&T. Viu Victor Hobie. Este nome estava duplamente sublinhado, os traços
casuais de quem está a matutar em qualquer coisa. Ao lado, Costello garatujara
CCT?? Uma linha atravessava a página desde CCT?? até um outro apontamento
que dizia: 9 da manhã. Reacher litou a página e viu a marcação de um encontro
com Victor Hobie às ú da manhã num sítio chamado CCT.
Atirou a cadeira para trás e apressou-se a contornar a secretária, correndo dc
volta ao computador. Passou a lista para o princípio e procurou tudo o que
estivesse entre B e D. E ali estava CCT. Accionou o rato e clicou. O monitor
revelou uma entrada para o cayman CORPORATE trust, com endereço no World Trade
Center. Tinha nú-
meros de telefone e de fax. O proprietário registado era Mr. Victor Hobie. O
telefone começou a tocar.
Reacher arrancou os olhos do monitor e relanceou-os para a consola sobre a
secretária. Esta permanecia silenciosa. O toque provinha do seu bolso. Sacou o
telemóvel de Jodie do casaco e atendeu.
— Está?
— Tenho notícias — respondeu Nash Newman.
— Conte lá.
Newman assim fez. Seguiu-se silêncio. Só se ouvia um suave sibilar no
telemóvel, a dez mil quilómetros de distância. Reacher afastou o telemóvel do
ouvido e fitou o espaço entre ele e o monitor, estupefacto.
— Aindaaí está? — perguntou o general.
Reacher voltou a levar o telemóvel ao ouvido.
— Tem a certeza do que me disse?
— Tenho — redarguiu Newman. — A cem por cento.
— Raios — desabafou Reacher. — Está a ver o que isso significa? Tenho de ir,
Nash. E imperioso regressar ao arquivo.
— Acho que sim. E com muita urgência.
— Obrigado, Nash — agradeceu Reacher vagamente. Desligou o telemóvel,
levantou-se e saiu, cabisbaixo, do gabinete de Costello. Deixou a porta de
mogno aberta de par em par nas suas costas.
Tony entrou na casa de banho com o fato que Stone comprara em Savile Row
pendurado num cabide de metal e dentro de um saco de lavandaria. A camisa fora
engomada e vinha embrulhada em papel debaixo do seu braço. Olhou de soslaio
para Marilyn, pendurou o fato no varão do chuveiro e atirou a camisa para o colo
de Chester. Meteu a mão ao bolso e tirou a gravata. Atirou-a atrás da camisa.
— São horas do espectáculo — declarou. — Tem dez minutos para se aprontar.
Voltou a sair e fechou a porta. O prisioneiro continuou sentado no chão, com o
embrulho da camisa aninhado nos braços. A gravata continuava atravessada sobre
as suas pernas, onde caíra. Marilyn inclinou-se e tirou-lhe a camisa. Sacudiu-a do
embrulho e desabotoou os dois botões de cima.
— Faltapouco — pronunciou, como se de palavras mágicas se tratasse.
O marido fitou-a inexpressivamente e levantou-se. Pegou na camisa e enfiou-a.
A mulher ajeitou-lhe a gravata e depois ajudou-o n vestir o fato.
A porta da casa de banho abriu-se uma vez mais e Tony entrou. Trazia a caneta
MontBlanc.
—Vamos emprestar-lhe isto de novo para poder assinar a transferência. É
preciso manter as aparências, não é? Com tantos advogados por todo o lado.
Stone anuiu de cabeça e enfiou a caneta no casaco. Tony saiu e lechou a porta.
Marilyn estava ao espelho a ajeitar o cabelo com os dedos. Encaminhou-se para o
meio da divisão e alisou o vestido sobre as pernas.
— Estou pronta — afirmou.
O motorista da Spencer Gutman Ricker & Talbot esperava num Lincoln Town Car
quando Jodie saiu do elevador para a garagem e foi ter com ele, que baixou a
janela ao vê-la inclinar-se para falar:
— Sabe o caminho?
O interpelado confirmou de cabeça e bateu com os dedos num bloco rígido que
ocupava o lugar do passageiro da frente.
— Está tudo a postos — garantiu.
Ela entrou para trás, e assim que a viu instalada o motorista subiu n rampa e saiu
para a luz do dia. O trânsito movia-se com lentidão. Quando pararam junto do
World Trade Center, o homem deixou-se licar sentado, com o motor a trabalhar.
— Espero aqui — declarou.
Jodie apeou-se e embrenhou-se na multidão que se apressava pola praça em
direcção à torre sul.
O endereço no processo era no octogésimo oitavo andar. Ela juntou-se à fila
para o elevador atrás de um homem de estatura média que envergava um fato preto
mal cortado e transportava uma pasta preta. Seguiu-o para dentro do elevador a
custo, pois estava a abarrotar. As pessoas diziam os andares que pretendiam à
pessoa que se encontrava mais perto dos botões. O tipo de fato bera pediu o
octogésimo oitavo. Jodie ficou calada.
A progressão foi lenta. Só mesmo às 2 horas é que o elevador chegou ao
octogésimo oitavo. Jodie saiu, com o tipo mal vestido atrás dela. Ela dirigiu-se
para um lado pelo corredor deserto, e o tipo foi para o outro, ambos a lerem as
placas afixadas ao lado das portas. Reencontraram-se em frente de uma placa de
carvalho com a indicação CAYMAN CORPORATE TRUST.
— Vamos para a mesma reunião? — perguntou a jovem, surpreendida.
— Parece que sim — respondeu o homem, abrindo a porta.
Ela seguiu-o para dentro de uma zona de recepção em cobre e carvalho que
cheirava a escritório: produtos químicos usados em fotocopiadoras, café
requentado. Jodie estendeu a mão em andamento.
— Jodie Jacob — apresentou-se. — Da Spencer Gutman. Venho representar o
credor.
O tipo passou a pasta para a mão esquerda, sorriu e apertou-lhe a mão.
— David Forster — disse. — Da Forster and Abelstein.
Ela deteve-se, fitando-o.
— Não, não é — declarou sem rodeios. — Conheço David muito bem.
O tipo, que na verdade se chamava William Curry, detective particular
contratado por David Forster segundo as instruções de Marilyn, ficou de repente
com ar tenso. O vestíbulo silenciou. Ela virou-se e viu um homem que já conhecia
de o ter visto agarrado à porta do Oldsmobile quando Reacher fugia da colisão na
Broadway. Estava calmamente sentado ao balcão da recepção, fitando-a. Moveu a
mão esquerda e tocou num botão. No silêncio, a recém-chegada ouviu um clique na
porta de entrada. Depois, foi a mão direita dele que se moveu. Desceu vazia e
reapareceu com uma espingarda da cor de metal baço. Tinha cano grosso e coronha
de metal. O tipo do fato ordinário deixou cair a pasta e atirou as mãos para o ar.
Jodie ficou a olhar para a arma.
O homem armado tocou noutro botão com a mão esquerda. A porta para o
gabinete interior abriu-se, aparecendo enquadrado na soleira o responsável pela
colisão do Suburban contra eles. Tinha outra arma na mão, uma pistola automática.
O tipo da espingarda saiu de trás do balcão, empurrando Jodie de passagem.
Colocou-se atrás do homem mal vestido e encostou-lhe o cano da espingarda à
cintura. Ouviu-se um som duro de metal contra metal, abafado por tecido. O tipo da
espingarda enfiou a mão por dentro do casaco do outro, retirando um grande
revólver cromado. Ergueu-o.
— Acessório pouco habitual num advogado — comentou o homem no limiar da
porta.
— Não é advogado — asseverou o colega. — A mulher diz que conhece David
Forster muito bem e que não é este.
— Chamo-me Tony — apresentou-se o homem da porta, acenando com a cabeça.
— Entrem os dois, por favor.
Desviou-se e apontou a pistola automática a Jodie enquanto o colega empurrava
porta dentro o pretenso Forster. O gabinete adjacente era grande, espaçoso e
quadrangular. Uma luz difusa provinha ilc janelas com persianas corridas. Em
frente da secretária havia três sofás iguais, com duas pessoas sentadas no da
esquerda. Um homem r uma mulher. O homem envergava um fato imaculado, a
mulher eslava de vestido de cocktail de seda todo amarrotado. O homem ergueu o
olhar inexpressivamente. A mulher fez o mesmo, mas aterrolízada.
Havia outro homem à secretária sentado, na obscuridade, numa cadeira de
cabedal. Teria uns cinquenta e cinco anos. Jodie fitou-o. O lado direito do rosto
apresentava a pele enrugada e cabelo ralo grisalho. Na esquerda, havia tecido
cicatricial, róseo, espesso e brilhante, qual modelo plástico de uma cabeça de
monstro inacabada. Envergava um bom fato, que assentava sobre os seus ombros
largos. Tinha o braço esquerdo confortavelmente pousado na secretária, com os
dedos a tamborilarem no tampo um ritmo imperceptível. O braço direilo fora
colocado em simetria perfeita com o esquerdo, mas não tinha mão. Apenas um
gancho de aço polido pousado sobre a madeira.
— Hobie — disse Jodie.
Ele acenou devagar com a cabeça uma única vez e ergueu o gancho num
arremedo de cumprimento.
— Prazerem conhecê-la, Mrs. Jacob. Só lamento ter levado tanlo lempo.
O indivíduo chamado Tony puxou-a para junto do pretenso ForsIcr. Ficaram à
espera.
— Onde está o seu amigo Jack Reacher? — perguntou Hobie.
— Não sei — respondeu ela, abanando a cabeça.
Hobie fitou-a prolongadamente.
— OK. Depois já lá vamos, a Jack Reacher. Agora, sente-se. —
Apontou com o gancho para o sofá em frente do casal de olhos esbu galhados. Ela
dirigiu-se para lá e sentou-se, atordoada. — Apresento-lhe Mr. e Mrs. Stone —
prosseguiu Hobie. — Chester e Marilyn. Chester geria uma firma denominada
Stone Optical. Deve-me mais de dezassete milhões de dólares. Vai pagar-me em
acções.
Jodie relanceou o olhar para o casal. Ambos tinham o pânico estampado nos
olhos.
— Ponham as mãos em cima da mesa — bramou Hobie. — Todos vocês. Inclinem-
se para a frente e afastem os dedos. Quero ver seis estrelinhas do mar.
Jodie inclinou-se para diante e pousou as palmas das mãos sobre a mesa baixa.
O casal em frente fez a mesma coisa por automatismo.
Hobie levantou-se da secretária e parou em frente do tipo mal vestido.
— Parece que você não é David Forster — comentou. O interpelado não
respondeu, e ele prosseguiu: — É óbvio, sabe. De imediato. Com um fato
desses? Deve estar a brincar. Portanto, quem é você afinal?
O homem continuou em silêncio. Jodie observava-o com a cara virada de lado.
Tony levantou a arma e apontou-a à cabeça do tipo, começando a apertar o dedo no
gatilho.
— Curry — apressou-se o outro a elucidar. — William Curry. Sou investigador
privado contratado por Forster.
Hobie dirigiu-se para trás dos Stones. Parou mesmo atrás da mulher.
— Fui enganado, Marilyn — disse. Inclinou-se para diante e enfiou a ponta do
gancho no decote do vestido. Puxou-o para trás, obrigando-a a erguer-se
devagar. — Você enganou-me — repetiu. — Não gosto de ser enganado. Tinha
planos para si, mas parece-me que Mrs. Jacob acaba de usurpar a sua posição
nos meus afectos. Ninguém me tinha informado quanto à sua beleza. — O olhar
de Hobie desviou-se para Jodie. — Sim, acho que deve ser o presente de
despedida que Nova Iorque me oferece. — Comprimiu o gancho contra a nuca
de Marilyn até ela se inclinar de novo para a frente e repor as mãos em cima da
mesa. Depois, rodou sobre si próprio. — Está armado, Mr. Curry?
O interpelado encolheu os ombros.
— Estava. Você já sabe. Ficaram-me com a arma.
O tipo da espingarda ergueu o revólver cintilante, e Hobie acenou com a cabeça.
— Tony?
Este começou a tactear os ombros de Curry, a seguir debaixo dos lunços. O
homem da espingarda acercou-se e encostou-lhe o cano HO llanco.
— Fique quieto — ordenou.
Tony passou com as mãos sobre a cintura e entre as pernas do outro. Depois,
desceu-as rapidamente e fez aparecer dois revólveres Idênticos com canos curtos,
quase inexistentes.
— Mr. Curry — censurou Hobie. — Perguntei-lhe se estava urinado. Devia ter-me
contado a verdade, mas não o fez. Tentou enganar-me. E, tal como disse a
Marilyn, eu não gosto de ser engnnado.
Esmurrou Curry em plena cara com a curvatura exterior do gancho. A vítima
tropeçou para trás, arquejante.
— Pare com isso! — gritou Jodie, endireitando-se no assento. — Porque é que está
a fazer isto? Que diabo lhe sucedeu? Você era um tipo decente. Sabemos tudo a
seu respeito.
— Não, não sabem — declarou Hobie, virando-se para a enfrentar e abanando
devagar a cabeça.
Nesse momento, ouviu-se a campainha da porta que dava para o patamar dos
elevadores. Tony olhou de soslaio para o patrão e enfiou a automática no bolso.
Colocou um dos dois pequenos revólveres na mão esquerda de Hobie e fez-lhe
deslizar o outro para a algibeira do casaco num gesto de estranha intimidade.
Depois, saiu do gabinete. O tipo da espingarda recuou e descobriu um ângulo que
lhe permitia abarcar os quatro prisioneiros.
— Todos calados — sussurrou Hobie.
Ouviram a porta do vestíbulo abrir-se, depois o murmúrio de uma conversa
baixa, e a porta voltou a fechar-se. No segundo seguinte, Tony reentrou no
ambiente opressivo com um pacote debaixo do braço e um sorriso nos lábios.
— Mensageiro do banco de Stone. Trezentos certificados de acções.
— Abre — pediu o patrão.
Tony rasgou o sobrescrito, e Jodie reparou na impressão cuidada
dos documentos. Tony folheou-os. Hobie regressou à sua cadeira e pousou o
pequeno revólver no tampo da secretária.
— Sente-se, Mr. Curry — ordenou. — Ao lado da sua colega jurista.
Curry deixou-se cair em peso no lugar ao lado de Jodie. Fez deslizar as mãos
pelo vidro e inclinou-se para a frente, tal como os restantes.
Hobie descreveu com o gancho um movimento circular.
— Olhe bem à sua volta, Chester — instruiu. — Mr. Curry, Mrs. Jacob e a sua
querida esposa, Marilyn. Três vidas, e neste momento estão inteiramente nas
suas mãos.
Stone fitou os outros três em redor da mesa.
— Vá buscar o resto das acções — continuou Hobie. — Tony acompanha-o. Sem
desvios para lá, sem desvios para cá, nada de truques, e estas três pessoas
sobrevivem. Se acontecer qualquer outra coisa, morrem. Estamos entendidos?
— Vou buscar as acções — aquiesceu Stone, acenando com a cabeça.
— Também me parecia — confirmou Hobie. — No entanto, primeiro tem de
assinar a transferência. — Abriu uma gaveta de onde extraiu uma única folha de
papel. Chamou Stone com um gesto e o refém levantou-se, trémulo, contornando
a secretária para ir assinar com a caneta MontBlanc que tirou do bolso. — Mrs.
Jacob pode ser testemunha — sugeriu Hobie. — Para alguma coisa há-de estar
inscrita na Ordem dos Advogados.
Jodie permaneceu sentada, imóvel, por longo tempo. Olhou para o tipo da
espingarda, à esquerda, para Tony, à frente, e finalmente para Hobie, à direita.
Acabou por se dirigir à secretária e pegar na caneta que Stone lhe estendia.
Assinou e escreveu a data ao lado.
— Obrigado — agradeceu Hobie. — Agora, sente-se outra vez e fique
completamente imóvel.
Enquanto a jovem regressava ao sofá, Tony pegou no cotovelo de Stone e
encaminhou-o para a porta.
— Não se arme em herói, Chester — gritou Hobie para as costas dele.
Passaram vinte minutos. Hobie caminhava de um lado para o outro, consultando
o relógio uma boa dúzia de vezes, até que passou à
recepção, seguido pelo tipo da espingarda, que se deteve à porta. Mantinha a arma
apontada para dentro do gabinete, mas com a cabeça virada a observar o patrão.
— Estará a planear deixar-nos ir embora? — murmurou Curry.
— Não sei — respondeu Jodie num sussurro, encolhendo os ombros.
— Deixem-se de conversas — gritou o tipo à porta.
Voltaram a ouvir o zumbido do elevador e sentiram a ligeira sacudidela do chão
quando ele parou. Houve um momento de silêncio, r logo a porta para o patamar se
abriu, ouvindo-se barulho na recepção. A voz de Tony, depois a de Hobie, alta e
em tom aliviado. Hobie regressou ao gabinete com um pacote branco na mão e a
sorrir com a metade móvel do rosto. Rasgou o embrulho e deixou cair os
certificados para cima dos trezentos que já possuía. Stone entrou atrás de Tony,
parecendo ter sido esquecido, e ficou a contemplar o trabalho da vida dos seus
antepassados empilhado de qualquer maneira em i ima da madeira lisa.
— Pronto, já tem tudo — pronunciou Marilyn, aparentando calma. — Agora, pode
deixar-nos ir embora.
Hobie sorriu.
— Você é atrasada mental ou quê, Marilyn?
Tony soltou uma gargalhada. Jodie olhou dele para Hobie e percebeu que
estavam muito perto do fim de um qualquer longo processo. Havia um determinado
objectivo em vista, e agora ele estava hem próximo.
— Reacher continua em campo — interveio por sua vez baixinho.
Hobie parou de sorrir. Levou o gancho à testa, esfregou as cicali izes e anuiu de
cabeça.
— Reacher — repetiu. — A última peça do quebra-cabeças. Não I iodemos
esquecer-nos de Reacher, pois não? Ele tem uma coisa de que eu preciso. Uma
coisa vital. Portanto, ajude-me a resolver o assunto, Mrs. Jacob. Ligue-lhe e
convide-o a vir cá.
— Não sei onde está — asseverou ela após um momento de silêncio.
— Experimente a sua casa — disse Hobie. — Sabemos que tem In licado. Saíram
do avião de Honolulu às onze e cinquenta, não é verdade?
Ela fitou-o, surpreendida, e ele continuou:
— Verificamos essas coisas. Temos nas mãos um rapaz chama do Simon, que foi
deixá-los ao avião que saiu de Honolulu às sete O seu amigo Jack Reacher deve
estar na cama em sua casa a pôr os sonos em dia enquanto você se diverte aqui
connosco. Portanto, li gue para ele e convide-o a vir cá ter consigo. Assim,
poderá vê-lo uma última vez antes de morrer.
Jodie permaneceu em silêncio. Baixou os olhos para a mesa Queria ligar-lhe.
Queria voltar a vê-lo. Ao seu ténue sorriso de es guelha. Ao seu cabelo
emaranhado. As suas mãos, que mais pare ciam enormes luvas muito usadas e se
fechavam em punhos do ta manho de bolas de futebol. Queria rever aquelas mãos.
Queria vê -las em torno do pescoço de Hobie.
— Estábem — murmurou. — Vou ligar-lhe.
Hobie assentiu com a cabeça.
— Diga-lhe que, se quiser voltar a vê-la, é melhor vir depressa. Porque você e eu
temos um encontro marcado para a casa de banho dentro de meia hora. —
Aproximou-se, pegou-lhe pelo cotovelo e conduziu-a à porta. Levou-a até atrás
do balcão da recepção. — Este é o único telefone do escritório — elucidou. —
Não gosto de telefones. — Sentou-se na cadeira e premiu o nove com a ponta do
gancho. Entregou-lhe o auscultador. — Chegue-se cá para eu ouvir o que ele
disser. — Fê-la baixar-se e encostar a cara à sua. Cheirava a sabonete. Enfiou a
mão no bolso e tirou o revólver minúsculo, encostando-o ao flanco dela.
Jodie hesitou um segundo antes de marcar o seu próprio número de casa. Tocou
seis vezes. Seis suaves ruídos prolongados. Depois, chegou até ela a sua própria
voz, proveniente do atendedor.
— Não está lá — concluiu inexpressivamente.
— Que pena — comentou Hobie, sorrindo.
— Ele tem o meu telemóvel — disse Jodie de súbito. — Acabo de me lembrar.
— Está bem, carregue no nove para obter linha.
Ela assim fez, marcando de seguida o seu número de telemóvel. Tocou quatro
vezes. Quatro guinchos electrónicos, altos e imperativos. Ouviu-se então um
estalido no auscultador.
— Está? — atendeu Reacher.
Jodie expirou.
Hi, Jack — cumprimentou.
— Ah, Jodie — redarguiu Reacher. — Novidades?
Onde estás? — Ela percebeu a urgência na sua própria voz, que provocou uma
pausa por parte dele.
— Estou em St.Louis — acabou por elucidar. — Tive de voltar aos arquivos.
— St. Louis? — arquejou Jodie com a boca seca.
Hobie inclinou-se e encostou-lhe a boca ao ouvido.
— Diga-lhe que volte já para Nova Iorque. O mais depressa possível. — Premiu a
arma com mais força contra o corpo da advogada.
— Podes regressar? — perguntou ela para o bocal. — Preciso de ti aqui.
— Tenho bilhete para as seis horas — esclareceu Reacher. — Chega por volta das
oito e meia, hora daí, mas talvez consiga um voo mais cedo. Onde estás?
— Vem ter ao World Trade Center, torre sul, octogésimo oitavo andar.
— Está bem, digamos que dentro de duas horas e meia estou aí.
— Óptimo — redarguiu ela.
— Está tudo bem? — perguntou Reacher.
Hobie pôs a arma à vista da refém.
— Tudo — respondeu ela para o telefone. — Amo-te.
Hobie inclinou-se e desligou a chamada com a ponta do gancho. Jodie pousou o
auscultador na consola, devagar e com cuidado. Eslava destroçada de choque e
desapontamento.
— Duas horas e meia — comentou Hobie, exagerando na comptinção. — Bem,
parece que a cavalaria não vai chegar a tempo para si. — Riu-se para consigo e
meteu de novo a arma ao bolso. I ,evantou-se da cadeira e arrastou-a pelo braço
para a porta do gabinete. — Volte para o sofá — ordenou, e a jovem cambaleou
de regresso ao seu lugar junto de Curry. Voltou a pousar as mãos como HH tinha
antes.
Hobie voltou à secretária para arrumar o monte de certificados de acções. Em
cima uns dos outros, atingiam dez centímetros de altura.
— Não tarda aí um mensageiro — declarou ele, todo satisfeito.
Os promotores imobiliários ficam com as acções, e eu, com o dinheiro. Uma
meia hora, mais coisa menos coisa, e temos o caso ar-
rumado. — Deixou os papéis onde estavam, contornou a zona mobi lada e tirou a
espingarda ao tipo que a segurava. — Vai buscar-me café.
O homem fez que sim com a cabeça e saiu para o vestíbulo, fe chando a porta
com cuidado atrás de si. O silêncio caiu sobre o gabi nete. A espingarda estava na
mão esquerda de Hobie, apontada para o chão, a oscilar ligeiramente para um lado
e para o outro num pe queno arco. Jodie viu que Curry olhava para todos os lados
à pro cura da posição de Tony. Este recuara menos de um metro, com a arma
automática erguida e apontada ao sofá. Não havia hipótese. Curry estava entre duas
armas. As suas opções eram inexistentes.
Ao fim de uns minutos, Hobie levantou o gancho e passou sobre as cicatrizes a
parte plana da curvatura.
— Que diabo estará aquele tipo a fazer lá fora? Quanto tempo é preciso para me ir
buscar um raio de um café? Vá dar-lhe uma mãozinha.
Jodie percebeu que ele a fitava a direito.
— Eu?
— Porque não? Afinal de contas, o café é trabalho de mulher, não?
— Não sei onde é — empatou ela, hesitante.
— Eu mostro-lhe.
Jodie ficou de repente satisfeita por ter a oportunidade de se mexer um pouco.
Juntou os dedos, recuou as mãos e levantou-se. Hobie conduziu-a pela sala escura,
enfiando a espingarda debaixo do braço, e agarrou no puxador para abrir a porta.
«Verifica primeiro a porta para o corredor e depois o telefone.» Fora o que ela
ensaiara enquanto caminhava. Se ao menos conseguisse sair para o espaço público,
talvez tivesse uma oportunidade. Na falta disso, havia uma ligação rápida para o
112. Mesmo que não conseguisse falar, os circuitos automáticos forneceriam a
localização à Polícia. Todavia, chegado o momento, não olhou nem para a porta
nem para o telefone. Hobie parou de rompante à sua frente, e ela postou-se a seu
lado, de olhos cravados no tipo que saíra para ir buscar café.
O homenzarrão jazia de costas no chão, mesmo em frente da porta do gabinete.
Tinha as pernas direitas, a cabeça apoiada em ângulo agudo num monte de listas
telefónicas, os olhos, abertos. Fixos em
liculc, cegos. A mão esquerda pousava de palma para cima noutro monte de listas,
numa grotesca paródia de saudação. Jodie ouviu Hobie emitir um som abafado e
virou-se, vendo-o deixar cair a espingarda e agarrar-se à porta com a mão boa. As
cicatrizes das queimnduras continuavam rosa-vivo, mas o resto da cara dele ficara
de unia brancura fantasmagórica.
ONZE
O pai de Reacher, que tinha um horror implacável a tudo o que losse
rebuscado, dera-lhe o nome de Jack. Entrara na enfermaria Jn maternidade numa
terça-feira do fim de Outubro, na manhã após o parto, e entregara à mulher um
raminho de flores, dizendo:
— Vamos chamar-lhe Jack.
Sem mais nada. Jack Reacher simplesmente. Mais um cidadão dos Estados
Unidos nascido fora da pátria como filho de um militar < m comissão de serviço,
baptizado de Jack Reacher.
A mãe não levantara objecções. Coisas simples eram aquilo que agradava ao
marido, e ela não se importava, mesmo que a simplici-
0 liule se estendesse até aos nomes dos filhos.
Chamara Joe ao primogénito. Não Joseph, apenas Joe. Só com um apelido.
Claro que ela amava o menino, mas o nome era difícil pura si, pois era francesa e a
sua pronúncia fazia-a dizer Zhoe. Jack i ia muito melhor. Ficava a soar Jacques,
tradicional nome francês.
Mas nunca ninguém o tratara pelo nome próprio. Ninguém sabia porquê, mas
Joe sempre fora tratado por Joe, e Jack, por Reacher. I la própria o fazia sempre.
Não tinha a mínima ideia da razão. Puulia a cabeça fora da janela, fosse qual fosse
a instalação em aquartelamento, e gritava:
— Zhoe! Vem almoçar! E traz Reacher!
E os seus dois encantadores rapazinhos iam a correr comer qualquer coisa.
Na escola, acontecera exactamente a mesma coisa. Todos os miúdos lhe
chamavam Reacher já desde o infantário. Era Reacher, icmpre o fora, sempre o
seria, para toda a gente. Todos os amores da sua vida o tinham tratado por esse
nome. Todos. A própria Jodie fizera a mesmíssima coisa. Ele aparecera no topo
das escadas do jar dim de Leon, ela erguera o olhar e dissera: «Olá, Reacher.»
Ao fim de quinze longos anos, soubera exactamente como ele se chamava.
Todavia, não usara Reacher para o telemóvel. Ele premira a tecla, dissera:
«Está?», e a resposta fora: «Hi, Jack.» Aquilo soara-lhe ao ouvido qual sirene. A
seguir, perguntara: «Onde estás?»
Soara tão tensa que Reacher entrara em pânico, e a sua mente atarefara-se de tal
modo que por um segundo lhe passou despercebi do o que ela queria dizer com
exactidão. «Hi, Jack» era hijack, rapto. Precisou de um segundo para perceber. Ela
estava em perigo. Pe rigo a sério. Mas ainda tivera a frieza suficiente para o avisar
com duas simples sílabas no início de um telefonema desesperado.
Hijack. Um alerta. Um aviso de combate. Ele pestanejou, recalcou o medo e
deitou-se ao trabalho. A primeira coisa que fez foi mentir-lhe. Em combate, o
primeiro passo consiste em enganar o inimigo. Parte-se do princípio de que todas
as comunicações são violadas, e então recorre-se a elas para disseminar mentiras e
desinformação. Assim se consegue vantagem.
Ele não estava em St. Louis. Para quê fazer uma viagem de avião quando
existem telefones e ele já tinha uma relação de trabalho com Conrad? Ligou para
ele e disse-lhe o que precisava. Conrad retribuiu-lhe a chamada apenas três
minutos depois e leu-lhe o processo. Quando desligou o telefone, Reacher tinha
todas as informações necessárias.
Portanto, conduziu o Lincoln para sul pela 7.a Avenida e deixou-o numa
garagem um quarteirão a norte das Torres Gémeas. Já estava no átrio da torre sul
quando Jodie ligou. Apenas oitenta e oito andares abaixo dela. Ao apanhar o
elevador para o octogésimo nono andar, o seu rosto estava inexpressivo de pânico.
«Mantém-te calmo c raciocina.» Calculava que o octogésimo nono tivesse a mesma
disposição do octogésimo oitavo. Estava tranquilo e vazio. Havia corredores em
volta das caixas de elevadores, estreitos, iluminados por lâmpadas no tecto. As
portas que davam para os escritórios particulares tinham ao nível dos olhos
rectângulos de observação de vidro com quadrículas de arame.
Reacher descobriu as escadas de emergência e desceu a correr um lanço. O
octogésimo oitavo andar estava igualmente tranquilo. A mesma disposição, o
mesmo tipo de portas. Chegou por fim, deparando com uma porta fina de carvalho
e uma campainha de latão. Empurrou a porta cuidadosamente. Estava bem
trancada. Inclinou-se e espreitou pelo rectângulo de vidro reforçado. A zona de
recepção encontrava-se deserta. Reacher fitou a porta interior, fechada, e sentiu o
pânico subir-lhe à garganta.
Jodie estava lá dentro. No gabinete interior. Sentia-o.
Recuou, relanceando o olhar para a esquerda e para a direita, pelo corredor.
Colocou-se sob a luz mais próxima da porta, estendeu o braço e desatarraxou a
lâmpada até a apagar. O vidro quente queimou-lhe os dedos. Com uma careta,
voltou à porta e verificou uma vez mais. A recepção estava bem iluminada, mas
agora o corredor ficara às escuras. Uma diferença crucial. Ele via lá para dentro,
mas ninguém via cá para fora. Ficou à espera.
A porta interior abriu-se e um tipo possante saiu do gabinete para a recepção.
Fechou a porta com cuidado atrás de si. Um tipo possante de fato escuro, o tipo
que Reacher empurrara nas escadas do bar cm Key West. O tipo que disparara a
Beretta em Garrison. O tipo que se agarrara ao puxador da porta do Oldsmobile.
Atravessou a recepção e desapareceu do seu campo de visão. Reacher bateu ao de
leve na porta exterior. O outro aproximou-se do painel de vidro e espreitou.
Reacher, muito direito, virou-lhe o ombro, mostrando apenas o seu casaco
castanho.
— Serviço de entregas — informou em voz baixa.
O tipo abriu a porta. Reacher atirou a mão para dentro e arrebalou-o
violentamente pelo pescoço antes de ele conseguir articular qualquer som. O tipo
procurou resistir, mas Reacher arrastou-o pelo corredor até à porta das escadas de
emergência e inclinou-o para trás sobre o respectivo poço.
—É a hora das grandes decisões — sussurrou. — Ou me ajudas ou morres.
Perante um dilema destes, só há uma opção sensata, mas o outro nao a tomou.
Debateu-se, dando a entender que ia à luta. Reacher pontapeou-o no peito, fê-lo
rodopiar, passou-lhe o antebraço por cima dos ombros, levou uma das mãos por
baixo do queixo dele e lorceu.
Um-zero, mas aquele fora abatido sem prestar quaisquer informações, e em
combate as informações são vitais. Reacher continuava convicto de que se tratava
de uma pequena operação, mas peque-
na tanto podiam ser dois como cinco opositores. Era uma diferença dos diabos.
Ficou parado na caixa da escada e reparou no machado de incêndio no seu
receptáculo encarnado. Precisava de uma diversão. Algo que os perturbasse.
Abriu a porta sem ruído e largou o tipo no meio do chão do vestíbulo. Voltou
então a fechar a porta e agachou-se atrás do balcão do recepcionista. Tirando a
Steyr com silenciador da algibeira do casaco, instalou-se à espera.
Ouviu o estalido da tranca, seguido pelo som de quatro pés a pisarem a alcatifa
e a deterem-se, tal como previra. Levando à frente o grande silenciador preto na
extremidade da Steyr, ergueu-se acima do balcão.
O que viu foi do piorio. O tipo do gancho e da cara queimada deixara cair uma
arma, arquejante, agarrado à soleira da porta, mas encontrava-se do lado errado de
Jodie. Do lado de lá. Ela era muito mais baixa, mas Reacher apenas se soerguera
do chão, pelo que na sua linha de visão a cabeça dela tapava a cabeça do homem, e
o seu corpo tapava o corpo dele. Reacher não podia disparar com segurança. De
modo algum. Tinha Jodie pela frente.
Apareceu então um segundo tipo no limiar da porta atrás deles, de Beretta na
mão direita. O condutor do Suburban. Parou atrás do ombro de Jodie, pousou os
olhos no chão e logo se precipitou para dentro da sala.
Reacher premiu o gatilho, até que o silenciador fez o seu barulho abafado e o
rosto do homem se despedaçou. Jodie imobilizou-se. O tipo do gancho foi rápido.
Atirou o braço esquerdo para um lado e arrebatou a espingarda do chão, estendeu
o braço direito para o outro e rodeou com ele a cintura da refém. Ainda o outro não
caíra, já ele a apertava com força e arrastava para trás.
— Quantos? — gritou Reacher.
— Dois abatidos, um em pé! — respondeu ela também aos gritos.
Portanto, o homem do gancho era o único, mas já estava a assestar a espingarda.
Reacher encontrava-se meio exposto, agachado, a sair de trás do balcão. O tipo
disparou, a arma relampejou com um estampido, e o balcão da recepção desfez-se
em dez mil pedacinhos. Reacher baixou a cabeça, mas farpas de madeira e metal e
chumbinhos desgarrados atingiram-no numa face. Ele sentiu o impacte e a
insuportável dor aguda de ferimentos graves. Rolou, atordoado, e o tipo começou a
arrastar Jodie para trás pela soleira da porta, com a espingarda apontada a
Reacher, que se imobilizara encostado à parede. Reacher ergueu a Steyr,
inclinando-a um pouco para a direita, e continuava a ter Jodie na mira. O outro
encolhia-se atrás dela, mostrando só a mão esquerda a nivelar a espingarda.
Reacher fitou Jodie, tentando memorizar a sua fisionomia antes de morrer.
Então, apareceu de súbito uma mulher loura atrás dela, metendo desesperadamente
ombros às costas do tipo, desequilibrando-o. O homem vacilou, rodou sobre si
próprio e bateu-lhe com o lado da espingarda. Reacher vislumbrou um vestido cor-
de-rosa no momento em que ela caía.
Jodie debatia-se contra o braço do tipo, aos saltos e pontapés, e ele oscilava de
um lado para o outro sob o ímpeto do assalto. Aos tropeções, reentraram na zona
de recepção. O homem largou a espingarda e enfiou a mão ao bolso, de onde tirou
um cintilante revólver de cano curto. Com o polegar, accionou o cão. O estalido
foi claramente audível. Jodie atirava-se para a esquerda e para a direita contra o
braço que a apertava pela cintura. Para a esquerda e para a direita, para a esquerda
e para a direita, em fúria, ao acaso. Reacher uno conseguia um tiro limpo. Tinha
sangue a escorrer-lhe para o olho esquerdo. Fechou-o, usando apenas o direito. O
revólver brillmnte subiu e foi encostado com força ao flanco de Jodie. Ela arque|ou
e imobilizou-se.
— Larga a arma — arfou o tipo com um sorriso selvagem.
Reacher manteve a Steyr apontada, com o comprimento do silenciador em linha
recta para o sorriso contorcido do homem, que nvisou:
— Eu mato-a.
—E então eu mato-te a ti — ameaçou Reacher. — Ela morre, tu morres.
— Impasse — comentou o tipo, fitando-o.
Reacher concordou com um aceno de cabeça. Era o que parecia. Um impasse.
Mesmo que conseguisse disparar primeiro, o outro ainda podia conseguir fazer o
mesmo. Era demasiado arriscado. Manteve a Steyr assestada, levantou-se devagar,
puxou a fralda da camisa para fora das calças e limpou a cara com ela, sempre
com o olho direito na mira. O tipo inspirou e também se ergueu, içando Jodie
consigo.
— Portanto,temos de negociar — propôs.
Reacher não respondeu logo. A cabeça gritava-lhe de dor. Começava a
perceber que o caso era sério.
— Nada feito — replicou.
O oponente encostou o revólver ainda com mais força ao flanco de Jodie. Ela
arquejou. Era um Smith & Wesson modelo 60. O género de arma que as senhoras
usam nas carteiras. Os olhos dela estavam fitos em Reacher, e eram os mais belos
olhos que ele alguma vez vira.
— Ninguém se recusa a negociar com Victor Hobie — rosnou o outro.
Lutando contra a dor, Reacher manteve a Steyr apontada à testa do homem sem
uma tremura.
— Victor Hobie, uma ova — contrariou. — Cari Allen, e não passas de um monte
de esterco. — Fez-se silêncio. A dor martelava-lhe a cabeça. Jodie fitava-o
ainda com mais intensidade, com a interrogação no olhar. — Cari Allen —
repetiu ele. — Nascido a 18 de Abril de 1949 a sul de Boston. Uma familiazeca
normal, sem perspectivas. Mobilizado no Verão de 1968. Soldado raso,
considerado com capacidades abaixo da média em todas as categorias. Enviado
para o Vietname inserido em forças de infantaria. Humilde carne para canhão de
infantaria. A guerra modifica as pessoas e, quando lá chegaste, transformaste-te
mesmo no mau da fita. Começaste a comprar e vender, a traficar droga, mulheres
e tudo a que conseguisses deitar as mãos imundas. Depois, iniciaste o negócio
de empréstimo de capitais. Viveste muito tempo como um rei. Até que alguém se
apercebeu. Arrancou-te da tua cómoda situaçãozinha e mandou-te para o mato. A
selva. A guerra a sério. Numa unidade de combate, com um oficial teso no
comando. Isso chateou-te. Na primeira oportunidade, mataste o oficial. E a
seguir o sargento. No entanto, os camaradas denunciaram-te. Muito pouco
habitual. Dois polícias chamados Gunston e Zabrinski foram lá buscar-te. Já
queres negar alguma coisa?
O tipo não replicou. Reacher engoliu em seco. Doía-lhe terrivelmente a cabeça.
Sentia uma dor grave, profunda, para além dos golpes superficiais.
— Chegaram num Huey — prosseguiu. — O piloto era um miúdo decente chamado
Kaplan, que regressou no dia seguinte como co-piloto de um ás chamado Victor
Hobie. Gunston e Zabrinski tinham-te a postos, à espera em terra. Mas o Huey
de Hobie foi atingido ao levantar voo. Despenhou-se a seis quilómteros dali. Ele
morreu, assim como Kaplan, Gunston, Zabrinski e três outros membros iln
guarnição. Tu, porém, sobreviveste. E a tua cabecinha maléfica i ontinuou a
funcionar. Trocaste as placas de identificação com o primeiro tipo que
apanhaste. Por acaso, era Victor Hobie. Rastejaste dali para fora com as placas
dele ao pescoço, deixando as tuas no cadáver. A partir daquele momento. Cari
Allen e o seu passado criminoso deixaram de existir. Conseguiste chegar a um
hospital de nimpanha, mas tinhas de fugir porque sabias que em breve alguém se
aperceberia de que não eras Victor Hobie, e estavas de novo tramado. Portanto,
desapareceste sem mais. Uma nova vida, com novo nome. Era começar tudo de
novo.
— Fantasias — contrariou Allen, apertando Jodie com mais força.
— Não, é tudo verdade — garantiu Reacher, abanando a cabeça.
Nash Newman acaba de identificar o esqueleto de Victor Hobie.
Num caixão no Havai com as tuas placas de identificação. Foram os dentes que te desmascararam.
Newman passou uma hora a comparar os registos dentários de Hobie com as radiografias do
esquelelo que tinha as placas de identificação de Allen. Correspondem exactamente.
Allen não fez comentários.
— Resultou durante trinta anos — prosseguiu Reacher. — Mas agora tens de
responder perante mim.
Allen fez um trejeito de desprezo. Transferiu o peso de Jodie de modo a mantê-
la mesmo à sua frente. Encostou-lhe a arma com mais força.
— Muito bem, eu era Cari Allen — confessou. — Reconheço-o. Era Cari Allen,
mas depois isso acabou. Passei a ser Victor Hobie. Um Victor Hobie durante
muito tempo. Suponho que isso agora também tenha acabado. Portanto, a partir
de agora vou ser Jack Reacher.
— O quê?
— É esse o acordo — propôs Allen. — O teu nome em troca da vida desta mulher.
Tu és um vagabundo sem família, nunca ninguém dará pela tua falta. E uma troca
justa.
Jodie fitava Reacher a direito, expectante.
— Não há acordos — retorquiu ele.
— Eu mato-a — asseverou Allen.
Reacher voltou a abanar a cabeça. A dor era excruciante. Cada vez se
intensificava mais e espalhava-se por detrás dos olhos.
— Não — replicou. — Se o fizeres, eu mato-te a ti. Ela morre, tu morres um
centésimo de segundo a seguir.
— Palavras corajosas — comentou Allen —, mas estás a esquecer-te de uma coisa.
Estás a sangrar, sabias? Tens um prego espetado na cabeça.
Jodie acenou com desespero, de olhos aterrorizados.
— Estou bem. Que ninguém se preocupe comigo — garantiu Reacher.
— Palavras corajosas — repetiu Allen. — Mas estás cheio de dores e a esvaíres-te
em sangue. Não vais sobreviver-me, Reacher. Tens a mania que és duro, mas
não te comparas comigo. Rastejei para longe daquele helicóptero sem uma das
mãos. A arder. E sobrevivi. Tu não conseguias sobreviver-me, mesmo que não
tivesses um prego no raio da cabeça. Portanto, não tenhas ilusões.
Jodie fitava-o. O seu cabelo era dourado na luz difusa. Caía-lhe para a cara,
separado pela testa arqueada. Reacher via-lhe os olhos. A boca. A curva do
pescoço. O corpo firme e esbelto tenso contra o braço de Allen. A Steyr começava
a pesar-lhe na mão.
— Ora, vamos lá subir a parada — gritou Allen.
Puxou Jodie para cima com toda a força do braço. Espetou-lhe a arma com tanta
força que ela fez uma careta. Içou-a até ficar invisível atrás dela e depois mexeu o
gancho. Ergueu o braço da cintura dela e pousou-lhe o gancho no rosto. Depois,
rodou o cotovelo para fora, de modo a picar-lhe a pele com a ponta de aço.
— Podia rasgar-lhe a cara, e a única coisa que tu podias fazer era sentir-te pior.
Estás a começar a desfalecer, não é? Estás a caminho do inferno, Reacher, podes
crer.
Reacher estremeceu, não de dor, mas por saber que Allen tinha razão.
Começava a ter dificuldade em pensar. Sentia-se tonto. Tinha um ferimento aberto
na cabeça. Veio-lhe à mente a figura de Leon, a franzir-se e resmungar: «Se o
plano A não resulta, avança-se para o plano B.» A Steyr oscilou-lhe na mão e ele
pensou: «Muito bem, Leon, cá vai o plano B. Veja lá se gosta.»
Os joelhos cederam-lhe, e ele cambaleou. Reergueu-se a toda a sua altura e
apontou de novo a arma à nesga da cabeça de Allen que conseguia ver. A boca do
cano oscilou em círculo. Ele tossiu
e cuspiu sangue. Os joelhos voltaram a fraquejar-lhe e a sacudidela para se
endireitar foi como um espasmo. A Steyr estava a milhas do uivo. Pendia para a
direita, apontada à secretária. A mão de Allen movia-se. Reacher viu isso com o
seu único olho aberto. «Consegui» A força esvaía-se-lhe dos joelhos e começava a
tremer. «Espera, tens de esperar.» O pulso de Allen veio para a frente. Reacher
viu-o mover-se. Foi muito rápido. Avistou a boca negra do cano cromado. Não
visava o corpo dela. Jodie sacudiu a cabeça para baixo e Reacher ergueu de novo
a Steyr, colocando-a quase em posição de llm antes de Allen disparar. Só mais uns
centímetros. Poucos. Uns centímetros de nada. «Rápido», pensou, «mas não o
suficiente.»
Viu uma flor de chamas brilhantes desabrochar do cano da arma de Allen e um
comboio de mercadorias atingiu-o no peito. O estrondo do tiro perdeu-se por
completo no imenso impacte físico da bala a atingi-lo. Socou-o, esmagou-se contra
ele e ensurdeceu-o por dentro. Não sentiu dor. Nenhuma dor. Apenas um enorme
torpor frio no peito. Esforçou-se por raciocinar durante uma fracção de segundo,
lutou por se manter firme, de pé, e continuou com o olho bem aberto o tempo
suficiente para se concentrar na pluma de fumo que saía do silenciador da Steyr.
Moveu então o olho uma última fracção infinitesimal e assistiu ao rebentar da
cabeça de Allen a pouco mais de Ires metros e meio de distância. Só nessa altura
se deixou ir, caindo pura trás num negrume perfeitamente imóvel e silencioso, com
uma continuidade infinita que acabava em parte nenhuma.
mas ainda pensava. Seria normal? Estaria a viver no além? Que ironia dos diabos!
Estava morto,
Vivera quase trinta e nove anos a presumir a inexistência de vida para além da morte. Conhecera
quem concordasse com ele, assim como quem discordasse. Contudo, ele permanecera inflexível.
Agora, estava mesmo na outra vida. Havia de aparecer alguém com um sorriso trocista a comentar:
«Eu bem te disse.» Era o que ele faria na situação inversa. Nunca deixaria uma pessoa safar-se com
um engano colossal daqueles sem pelo menos umas cotoveladas amigáveis de troça.
Viu Jodie Garber. Não, não era possível. Ela não morrera. Com certeza que só
um morto pode falar connosco no além?! No entanto, era mesmo Jodie Garber e ia
mesmo falar com ele. Sentou-se à sua Irente e puxou o cabelo para trás das orelhas.
— Olá,Reacher — cumprimentou.
Era a voz dela. Não havia dúvida. Então, talvez estivesse morta. No regresso do
World Trade Center, podia ter sido atropelada na Lower Broadway por algum
camião desgovernado.
— Olá, Jodie — correspondeu.
Ela sorriu. Havia comunicação. Logo, estava mesmo morta. Decerto só um
morto podia ouvir outro morto a falar. Mas a sua amada devia estar viva. Ele
salvara-lhe a vida porque a amava. Então, porque estava morta? Que raio se
passava? Procurou endireitar-se a custo.
— Cuidado — advertiu Jodie.
— Onde estamos? — interrogou ele.
— Em São Vicente.
São Pedro, ele conhecia. Supostamente, era o tipo que estava às portas do Céu a
fazer perguntas para ver quem tinha direito a entrar. Talvez São Vicente fosse o
encarregado de tomar conta do sítio onde se esperava pela entrevista com São
Pedro. Uma espécie de recruta. Aquilo aborreceu Reacher. Afinal, acabara em
major. Porque diabo havia de repetir a recruta?
— Quero falar com São Vicente — exigiu ele. — Diz-lhe que venha a este quarto
dentro de cinco minutos, senão chateio-me a sério.
— Está bem — anuiu Jodie com um aceno de cabeça.
Depois, desapareceu da sua vista, e ele recostou-se de novo nas
almofadas macias.
devia ter sido um choque. Mas não foi. Simplesmente, o quarto
Em retrospectiva,
começou a ficar focado, e Reacher viu a decoração e o equipamento brilhante, e
ocorreu-lhe a palavra «hospital». Mudou de morto para vivo com o mesmo
encolher de ombros mental que um homem ocupado faz quando dá por se ter
enganado no dia.
O quarto cintilava ao sol. Rodou a cabeça e viu que tinha janela. Jodie estava
sentada numa cadeira a seu lado a ler. Tinha o cabelo sedoso caído abaixo dos
ombros e enrolava uma madeixa entre um dedo e o polegar. Envergava um vestido
amarelo de manga à cava. Os seus braços eram compridos, magros e bronzeados
pelo Verão.
— Olá, Jodie — chamou.
Ela virou a cabeça e olhou-o. Procurou-lhe qualquer coisa na cara e, quando a
encontrou, sorriu.
— Olá também para ti — correspondeu. Deixou o livro e levan-
it »u se. Deu três passos, inclinou-se e beijou-o ao de leve nos lábios.
— São Vicente — comentou ele. — Tu disseste-me, mas eu estava baralhado.
— Estavas a nadar em morfina — redarguiu Jodie.
— Que dia é hoje? — perguntou ele, relanceando o olhar para o sol que entrava
pela janela.
— Estamos em Julho. Estiveste três semanas em coma. — Pousou-lhe a mão no
antebraço, que estava virado para cima com tubos ligados às veias. — Lembras-
te de alguma coisa?
— De tudo — disse ele, acenado com a cabeça.
Ela engoliu em seco.
— Não sei o que dizer. Apanhaste um tiro por mim — murmurou.
— Culpa minha — ripostou ele. — Fui demasiado lento, nada ninis. Eu é que devia
atingi-lo primeiro. Mas parece que sobrevivi, portanto não digas nada. A sério.
Esquece.
— Em todo o caso, sempre tenho de agradecer-te — sussurrou Jodie.
— Talvez devesse ser eu a agradecer-te — contrariou Reacher.
É bom conhecer uma pessoa pela qual vale a pena levar um tiro.
Jodie acenou com a cabeça, mas não por concordar. Estava simplesmente a
tentar conter as lágrimas.
— Então, que tal estou eu? — prosseguiu Reacher.
Ela fez uma longa pausa.
— Vou chamar o médico — acabou por declarar baixinho. — Ele explica-te melhor
do que eu.
Saiu, deixando entrar um tipo de bata branca.
— Percebe alguma coisa de computadores? — perguntou ele sem mais delongas.
— Computadores? — espantou-se Reacher. — Nem por isso. — Começou a
preocupar-se que aquilo fosse um preâmbulo para más notícias sobre danos
cerebrais, perda de funções.
— Muito bem, vamos lá tentar — recomeçou o médico. — Imagine um grande
supercomputador a trabalhar. Fornecemos-lhe tudo o que sabemos sobre
fisiologia humana, tudo o que sabemos sobre ferimentos com armas de fogo e
pedimos-lhe que nos faça a projecçiío de uma pessoa equipada para sobreviver
a uma bala de trinta e oito milímetros no peito. Qual será a solução?
— Não sei — disse Reacher com um encolher de ombros.
— Uma cópia sua, é o que é, meu amigo — informou o médico — O raio da bala
nem sequer lhe penetrou no peito. A sua densidade muscular é tal que a deteve
sem mais. Como um colete de sete centí metros e meio de kevlar.
— Então, porque estive três semanas em coma? — indagou Reacher. — Não foi por
um ferimento muscular, c’os diabos. Que tal está a minha cabeça?
O médico fez uma coisa esquisita: bateu palmas e deu um soco no ar. Depois,
aproximou-se com um sorriso a iluminar-lhe o rosto.
— Acaba de nos poupar dez mil dólares em testes — declarou, contente. —
Expliquei-lhe o ferimento do peito, e que fez você? Percebeu que não se tratava
de um ferimento muito grave, percebeu que não dava para três semanas de coma,
recordou o outro ferimento, somou dois e dois e fez a pergunta que fez.
Raciocínio rápido, lógico. Não se passa nada de errado com a sua cabeça, meu
amigo. É a minha opinião profissional. Mas porém muita sorte. O prego
penetrou-lhe uns três milímetros no cérebro. Um nadinha mais fundo e era
obrigado e boa noite.
— Então, quando é que posso ir-me embora?
O médico pegou na ficha aos pés da cama, um monte de papéis presos a uma
prancha metálica. Folheou-a.
— Bem, o seu estado geral é excelente, mas é melhor ficar algum tempo em
observação. Talvez mais dois dias.
Reacher assentiu de cabeça, e o médico saiu do quarto, cruzando-se com Jodie à
porta. Com ela vinha um homem de casaco leve às riscas, aparentando uns
cinquenta anos, pálido e de cabelo grisalho curto. Ao vê-lo, Reacher pensou:
«Apostava dez contra um em como este é o tipo do Pentágono.»
— Reacher, o general Mead para ti — apresentou Jodie.
— Ministério da Defesa — comentou Reacher.
O outro fitou-o, surpreendido.
— Já nos conhecemos?
— Não, mas eu não duvidava de que um de vocês havia de aparecer assim que eu
recuperasse — esclareceu Reacher, abanando a cabeça.
— Passámos o tempo praticamente acampados ali fora — disse o general a sorrir.
— Sem mais rodeios, gostávamos que mantivesse sigilo sobre a questão de Cari
Allen.
— Nem pensar — redarguiu Reacher.
Mead voltou a sorrir e ficou à espera. Era suficientemente burocrata para
conhecer os trâmites.
— Os Hobies — retomou Reacher. — Metam-nos em primeira classe num avião
para Washington, alojem-nos num hotel de cinco rst relas, mostrem-lhes o nome
do filho no Memorial e assegurem-se da presença de uma guarda de honra a
fazer continência e salvas de honra e tudo. Cumpridas essas condições,
mantenho sigilo.
— De acordo — anuiu Mead, acenando com a cabeça.
Quando ele reabriu os olhos, Jodie estava sentada na cadeira perto da janela a ler.
O mesmo livro. Avançara pouco mais de um centímetro na espessura. Tinha um
vestido azul, não amarelo.
—É amanhã — elucidou ela. Fechou o livro, aproximou-se c beijou-o nos lábios.
— Como te sentes?
Reacher sentou-se encostado às almofadas e passou a mão pelo couro cabeludo
eriçado.
— Óptimo — respondeu.
— Tens visitas — informou Jodie.
— Está bem, manda-as entrar — assentiu Reacher.
Jodie saiu do quarto.
Ainda antes de as visitas entrarem, já ele sabia quem eram. Percebeu pelo
barulho. As rodinhas do carrinho para o oxigénio chiavam. A velha senhora deixou
passar primeiro o marido. Entrou a seguir cerimoniosamente. Pareciam pessoas
diferentes. Continuavam com muita idade e poucas forças, mas haviam recobrado a
serenidade. Saber-se que um filho morreu deve ser melhor do que não saber nada,
calculou ele.
— Ele foi um herói, sabem — disse-lhes.
— Cumpriu o seu dever — concordou o velhote com um aceno dc cabeça.
— Muito mais do que isso — asseverou Reacher. — Falei com o general DeWitt, e
ele contou-me que ele era um piloto corajoso que salvou muitas vidas devido a
essa mesma coragem. Se tivesse sobrevivido, seria pelo menos tenente-general.
Era o que eles precisavam de ouvir. A velhota pousou a mão magra e pálida
sobre a do marido e ficaram sentados em silêncio, com os olhos húmidos e fixos a
quase dezoito mil quilómetros de distância.
— Agora, já posso morrer feliz — declarou o velhote ao fim de algum tempo.
— Não, ainda não pode — contrariou Reacher, abanando a cabeça. — Tem de ir
ver o Memorial. Vão lá pôr o nome dele. Quero que me tragam uma fotografia.
O velhinho anuiu de cabeça, e a mulher fez um sorriso molhado.
Assim que saíram, Jodie entrou a sorrir.
—O médico deu-te alta.
— Então, podes guiar por mim? Já tens carro novo?
— Só de aluguer. Não tive tempo para compras. A Hertz trouxe-me um Mercury.
Tem navegação por satélite.
— Preciso de roupa — recordou Reacher. — Calculo que as antigas tenham ficado
estragadas.
Jodie baixou-se para um armário de onde tirou um monte de roupa: calças de
ganga novas, camisa nova, casaco novo, meias e boxers novos, tudo dobrado e
empilhado, com os seus velhos sapatos em cima, ao estilo da tropa.
— Não são nada de especial — disse ela em jeito de desculpa. — Não quis passar
muito tempo fora. Queria estar aqui quando acordasses.
— Passaste aqui três semanas sentada? E o trabalho?
— Estou de licença — explicou Jodie. — Disse-lhes que ou era assim ou pedia a
demissão.
— Essa coisa por satélite inclui Garrison? — perguntou Reacher.
— Vais para lá?
— Acho que sim — disse ele com um encolher de ombros. — O ar do campo deve
fazer-me bem. — Desviou o olhar. — Talvez pudesses ficar algum tempo
comigo, sabes, para me ajudares na convalescença. — Afastou o lençol e fez
deslizar os pés para o chão. Levantou-se devagar, cambaleante, começando a
vestir-se. Ela segurou-o pelo cotovelo para ele não cair.
LEE CHILD

Para Lee Child, 1997 foi um ano notável. Poucos meses após inscrever-se no Fundo de Desemprego
de Kendal, localidade onde vivia, por ter sido dispensado do lugar que ocupava como controlador de
transmissões da Granada TV, encontrava-se no gabinete de um produtor dos estúdios de Hollywood
a discutir a passagem a guião cinematográfico de Jogo Mortífero, o seu primeiro romance.
— Na altura, não me apercebi, porque ser-se dispensado é muito Iraumatizante, mas a minha vida
mudou para melhor. Sempre quisera escrever, porém nunca tinha tempo nem energia. O
despedimento deume o empurrão decisivo!
Outros sucessos se seguiram, e agora TERRENO MINADO parece igualmente destinado às listas de
livros mais vendidos. Os leitores têm uma atracção irresistível pelo herói de Lee Child, Jack
Reacher, o antigo polícia militar duro como o aço, que, espera-se, venha a reaparecer em muitas
mais obras do autor.
— É o tipo de herói taciturno que estou convencido muitos de nós desejaríamos ser ou conhecer.
Por estar livre de todas as obrigações e inibições da vida quotidiana, pode agir de uma maneira
que a maior parte das pessoas ambiciona secretamente. Perante um problema, resolve-o sem
contemplações e com eficácia. Todavia, é bastante tímido. Não tem qualquer parecença com
James Bond ... é muito mais humano.
Em 1998, Lee Child e a sua mulher, americana, alcançaram o que ambicionavam há muito:
mudaram-se com a filha, de dezanove anos, para os Estados Unidos, onde se instalaram alegremente
no campo, uns sessenta quilómetros a norte da cidade de Nova Iorque.

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