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Hook Hobie devia toda a sua vida a um segredo de quase trinta anos. A liberdade, o
estatuto social, a riqueza, tudo. E como qualquer tipo cauteloso, estava disposto afazer
o que fosse necessário para proteger o seu segredo. Porque tinha muito a perder. Toda
a sua vida.
A sua protecção estava dependente de duas coisas: detecção e reacção. Fase um,
fase dois. Primeiro detecta-se a ameaça, depois reage-se.
A fase um consistia em duas camadas, como dois fios concêntricos a armadilharem
um engenho explosivo. O primeiro desses fios ficava a dezoito mil quilómetros de casa.
Dava o aviso prévio. Uma chamada de despertar. Dir-lhe-ia que eles estavam a
aproximar-se. O segundo fio encontrava-se oito mil quilómetros mais perto, e uma
chamada de lá informá-lo-ia de que eles estavam muito perto. Dir-lhe-ia que a fase um
terminara e a fase dois estava prestes a iniciar-se.
A fase dois era a reacção. Ele não tinha quaisquer dúvidas sobre a reacção
obrigatória. Passara quase trinta anos a matutar naquilo, mas a única resposta viável
fora sempre a mesma. Fugir. Assim que ouvisse os sons de aviso, tinha de pôr-se a
andar. Porque ninguém podia sobreviver ao que o perseguia. Nem um homem tão duro
e implacável como ele.
O filme passara-lhe pela mente um milhão de vezes. A primeira chamada havia de
surgir com cerca de um mês de antecedência em relação à segunda. Aproveitaria esse
mês para ligar as pontas soltas, fechar o estaminé, sacar o dinheiro, ajustar contas.
Depois, à segunda chamada, punha-se a milhas. De imediato. Era pôr-se ao fresco e
manter-se ao fresco.
Simplesmente, aconteceu que as duas chamadas ocorreram no mesmo dia. E que a
segunda veio antes da primeira. Hook Hobie não fugiu. Deitou às malvas trinta anos de
planeamento cuidadoso e ficou para lutar.
UM
Jack Reacher viu o tipo entrar pela porta. A bem dizer, não havia porta. O tipo
limitou-se a entrar pela abertura da fachada. O bar abria directamente para o passeio. Aí,
havia mesas e cadeiras sob uma velha videira seca que proporcionava uma sombra vaga.
Reacher supunha que tivessem alguma grade de ferro para tapar a abertura quando o bar
fechasse. Se é que fechava. Pelo menos Reacher nunca o vira fechado, e andava com uns
horários bastante radicais.
O tipo parou a menos de um metro da entrada da sala para habituar o olhar à meia-luz
após a quente brancura do sol de Key West. Estava-se em Junho, às 4 em ponto da tarde,
no ponto mais meridional dos Estados Unidos. Reacher deixou-se ficar sentado à mesa,
aguardando.
O bar era uma sala baixa construída com tábuas velhas que pareciam provenientes de
barcos naufragados. Havia tralha náutica pregada pelas paredes. Velhos objectos de latão
e globos de vidro verde. Pedaços de redes rotas. O tipo embrenhou-se mais na meia-luz e
dirigiu-se ao balcão. Devia ter uns sessenta anos, era de altura média e tinha excesso de
peso. Envergava a indumentária típica do cidadão nortenho em visita-relâmpago a um
sítio quente: calças cinzentas leves, casaco creme, fino e amarrotado, camisa branca de
colarinho aberto, meias escuras, sapatos de cidade. Nova Iorque ou Chicago, calculou
Reacher; devia passar o Verão em edifícios ou automóveis com ar condicionado.
0 tipo chegou ao balcão, enfiou a mão no bolso do casaco e extraiu uma carteira,
pequena, velha e sobrecarregada, de bom cabedal preto. O género de carteira que se
molda em torno daquilo que lhe enfiam lá dentro, Reacher viu o tipo abri-la com um
piparote, mostrá-la ao barman e perguntar qualquer coisa. O interpelado desviou o olhar
como se tivesse sido insultado. O tipo resmungou outra coisa qualquer, e o barman foi
buscar uma cerveja a uma arca frigorífica. O velhadas emborcou um bom trago.
Reacher correspondeu-lhe com um grande gole de água. O tipo em melhor forma que
alguma vez conhecera fora um soldado belga que jurava que a chave para uma boa forma
física era beber-se cinco litros de água mineral por dia. Como o belga era um tipo
pequeno e seco, com metade do seu tamanho, Reacher achava melhor aumentar o
consumo para dez litros diários. Dez garrafas grandes. Desde que chegara ao calor das
Keys entrara nesse regime, e estava a resultar. Aos trinta e oito anos, nunca se sentira
melhor. Tinha um metro e noventa e cinco e cento e dez quilos de músculo rijo. O
resultado era espectacular. Profundamente bronzeado pelo sol, ele estava na melhor
forma de toda a sua vida.
O velhote encostara-se ao balcão de lado, agarrando na cerveja, perscrutando a sala.
Reacher era o único outro circunstante, à excepção do barman. O velhote aproximou-se e
acenou com a cerveja num gesto vago de saudação. Reacher indicou com a cabeça a
cadeira à sua frente, e o tipo sentou-se pesadamente.
— Você é Jack Reacher? — perguntou do outro lado da mesa. Não era de Chicago. Tinha de
ser de Nova Iorque. — Jack Reacher?
insistiu.
Visto de perto, tinha olhinhos astutos sob um cenho proemniente. Reacher deu um gole,
fitando-o através da água da garrafa. Pousou-a.
— Não — mentiu, abanando a cabeça.
O velhote baixou ligeiramente os ombros de desapontamento e l’cz menção de se
levantar. No entanto, acabou por se recostar e acenar ao barman com a garrafa vazia de
cerveja, que logo foi substituída.
— Este calor dá cabo de mim — queixou-se.
Reacher correspondeu com um aceno de cabeça e bebeu outo gole de água.
— Conhece algum Jack Reacher por aqui? — indagou o tipo.
Reacher encolheu os ombros.
— Sabe dizer-me como ele é?
O tipo estava a emborcar um grande trago da segunda garrafa. Limpou os lábios com as
costas da mão.
— Não propriamente — confessou. — Só sei que é um tipo grandalhão. Por isso é que lhe
perguntei se era.
— Há por cá muitos tipos grandalhões — esclareceu Reacher. — E quem quer saber?
O outro sorriu e acenou com a cabeça, como que a desculpar-se pelo lapso de boas
maneiras, e apresentou-se:
— Costello, detective particular. Muito prazer.
Reacher correspondeu com novo aceno de cabeça e um soerguer da garrafa.
— Que fez o tal Reacher?
— Nada, tanto quanto sei. Só me foi pedido que o encontrasse.
— E supõe que esteja cá?
— Na semana passada, estava — revelou Costello. — Tem uma conta bancária na Virgínia
para a qual efectua transferências. Todas as semanas de há três meses para cá.
— E então?
— Então, é porque trabalha cá há três meses — concluiu Costello. — Seria de esperar que
alguém o conhecesse.
— E ninguém conhece? — indagou Reacher.
Costello abanou a cabeça.
— O máximo que consegui saber foi num barzeco de topless na Duval Street, onde uma das
raparigas me disse que está cá um tipo grandalhão há exactamente três meses e que todos
os dias às quatro horas bebe vem beber água aqui.
Caiu em silêncio, de olhos fixos em Reacher, como que a desafiá-lo. Reacher bebeu
novo gole de água e correspondeu com um encolher de ombros.
— Coincidência — declarou. — Há por cá muita população de passagem. Está sempre
gente a chegar e a partir.
— Calculo — assentiu Costello baixinho.
— Quem quer falar com ele? — interrogou Reacher.
— A minha cliente — redarguiu o interpelado. — Uma senhora chamada Mrs. Jacob.
Reacher voltou a beber água. O nome nada lhe dizia.
— Está bem, se o vir por aí, informo-o, mas não prometo nada.
— Você trabalha?
Reacher acenou com a cabeça afirmativamente e declarou:
— Escavo fundações para piscinas.
Costello ponderou a informação.
— E operador de retroescavadora?
Reacher sorriu e abanou a cabeça.
— Isso não dá para aqui — comentou. — Escavamos a braço. Os lotes são demasiado
exíguos para maquinaria. As ruas, demasiado estreitas, as árvores, demasiado baixas.
Costello assentiu de cabeça, repentinamente muito satisfeito.
— Então, não deve conhecer o tal Reacher — concluiu. — Era um importantão da Polícia
Militar. Um tipo desses não ia pôr-se para aí a fazer escavações à pazada.
Reacher bebeu um grande trago de água para dissimular a expressão.
Costello levantou-se e tirou da algibeira das calças um maço de notas amarrotadas.
Deixou uma de cinco dólares em cima da mesa e afastou-se.
— Muito gosto em conhecê-lo — despediu-se, sem olhar para trás.
Saiu pela abertura na parede para o brilho intenso da tarde. Reacher acabou a água e
ficou a vê-lo afastar-se.
Passada uma hora, Reacher descia descontraidamente a Duval Street à procura de um
sítio para jantar cedo, interrogando-se sobre a razão de ter mentido a Costello. Concluiu
que mentira por não ter motivo para não o fazer.
Era esta a característica que definia a sua vida, que o transformara naquilo que ele era.
Filho de um oficial dos Fuzileiros no activo, vivera numa interminável sucessão de bases
militares desde o dia em que a mãe saíra com ele da maternidade berlinense. Alistara-se
mais tarde no Exército como investigador da Polícia Militar, vivendo e trabalhando de
novo nessas mesmíssimas bases, até a sua unidade ser desmembrada, e ele, passado à
reserva. Regressara aos Estados Unidos e vagueara por aqui e por ali até dar à costa na
ponta meridional da nação, com as poupanças a esgotarem-se. Aceitara umas semanas de
trabalho de escavação, as semanas tinham-se
transformado em meses e ele continuava ali. Não havia qualquer razão para um detective
particular de Nova Iorque andar à sua procura. Nunca vivera em Nova Iorque. De facto,
nunca vivera em lado algum. Não tinha parentes vivos. Não devia dinheiro. Não tinha
filhos. O seu nome constava no mínimo de documentos possível. E não conhecia ninguém
chamado Jacob, nem Mrs. nem Mr. Portanto, fosse o que fosse que Costello quisesse, ele
não estava interessado.
Dois anos antes, ao sair do Exército, toda a sua vida se virara do avesso. Passara de
tubarão num tanque a zé-ninguém. De estar onde alguém o mandava estar cada minuto de
cada dia a deparar-se com mais de cinco milhões de quilómetros quadrados sem mapa.
Apreciava o anonimato. Gostava do seu secretismo. Fazia-o sentir o calor do conforto e
da segurança. Pagava tudo a dinheiro e viajava por estrada. Nunca aparecia em listas de
passageiros nem em verbetes de cartões de crédito. Não revelava a ninguém o seu nome.
Passeou durante uma hora até sair da Duval Street para um restaurante escondido num
pátio onde o conheciam de vista, tinham a sua marca de água preferida e lhe serviam um
bife a transbordar do prato.
Dois mil e quinhentos quilómetros para norte, em Nova Iorque, um presidente de
empresa desceu dois andares de elevador e dirigiu-se ao gabinete do director financeiro.
Os dois homens entraram juntos no escritório e sentaram-se lado a lado à luxuosa
secretária de pau-rosa. O computador estava ligado e aguardando uma palavra-chave. O
presidente premiu as teclas correspondentes, seguidas de enter, e o monitor apresentou
uma folha de cálculo. Era a única folha onde constava a verdade acerca da firma. Por
isso, estava protegida por código.
— Vamos conseguir? — perguntou o presidente.
Aquele fora o Dia D. D de downsizing, ou seja, reestruturação. O director de recursos
humanos da fábrica em Long Island estivera desde as 8 dessa manhã a pôr cobro ao
ganha-pão de oitenta por cento da mão-de-obra.
O director financeiro copiou grandes números para uma folha de papel. Efectuou uma
subtracção, olhou para um calendário e encolheu os ombros.
— Em teoria, sim. Na prática, não — respondeu.
— Não? — repetiu o presidente.
— É o factor tempo — esclareceu o director financeiro. — Fizemos o que devia ser feito na
fábrica, mas pagamos todos os salários até ao fim do mês que vem. Portanto, o cashflow
ainda vai demorar seis semanas a recuperar.
O presidente suspirou e acenou com a cabeça.
— Então, de quanto precisamos?
O director financeiro accionou o rato e abriu uma janela.
— Um milhão e cem mil dólares — informou. — Durante seis semanas.
— Empréstimo bancário?
— Esqueça — aconselhou o director financeiro. — Ao mais leve cheirinho de que ainda não
estamos de boa saúde, exigem o pagamento dos empréstimos correntes. Num abrir e fechar
de olhos.
O presidente tamborilou com os dedos no pau-rosa e encolheu os ombros.
— Vendo acções — sugeriu.
O director financeiro abanou a cabeça.
— Não pode — declarou pacientemente. — Se despejar acções no mercado, o preço vem por
aí abaixo. Os nossos empréstimos correntes são garantidos por acções, e se elas se
desvalorizarem ainda mais, eles liquidam-nos de imediato.
— Raios! — exclamou o presidente. — Estamos a seis semanas. Não vou perder tudo isto por
uma questão de seis semanas. Tem de haver alguma maneira de obter fundos.
O director financeiro não respondeu, mas permaneceu sentado, como se tivesse mais
alguma coisa em mente.
— O que é? — perguntou o presidente.
— Ouvi falar num esquema. Uma espécie de empréstimos de último recurso. Por seis semanas,
talvez valha a pena.
— Legal?
— Aparentemente — redarguiu o director financeiro. — Tem um ar respeitável. E um grande
escritório no World Trade Center especialista em casos destes.
O presidente deitou um olhar irado ao monitor.
— De quais?
Destes — repetiu o director financeiro. — Em que se está quase a dar a volta, mas
os bancos são demasiado conservadores para o perceber.
O presidente concordou com um aceno de cabeça.
— Muito bem — decidiu. — Vamos a isso.
A noite começou tranquila no bar de nudismo. Um serão a meio de uma semana de
Junho. Talvez uns quarenta clientes ao longo da noite, duas raparigas de serviço ao bar,
três a dançarem. Reacher observava uma mulher chamada Crystal. Era a melhor. Ganhava
muito mais do que Reacher alguma vez conseguira como major na Polícia Militar.
Gastava uma percentagem dos seus rendimentos na manutenção de um velho Porsche
preto.
O bar era uma sala de primeiro andar comprida e estreita, com passerelle e um
pequeno palco. Serpenteando em torno da passerelle e do palco, havia uma fila de
cadeiras. Com espelhos por todo o lado, a sala pulsava e pulava ao som de música alta
que abafava o rugido do ar condicionado.
Reacher estava ao balcão, suficientemente perto da porta para ser visto imediatamente,
suficientemente dentro da sala para a sua presença não ser esquecida. Porque ele estava
lá em serviço. Era segurança. Por cinquenta dólares, passava ali a noite sentado, com
aspecto duro, a beber à borla e a assegurar que as mulheres nuas não fossem molestadas.
Crystal estava mesmo a acabar o seu terceiro número quando Reacher viu dois homens
surgirem no topo da escada. Rondando os trinta anos, possantes, ameaçadores. Tipos
nortenhos, durões, de fatos completos de mil dólares e sapatos de verniz. Pararam na
recepção a regatear o consumo obrigatório de três dólares. A recepcionista relanceou um
olhar ansioso para Reacher, que deslizou do banco e se aproximou.
— Algum problema? — indagou.
Aquelas palavras, pronunciadas por um tipo com cento e dez quilos e um metro e
noventa e cinco, costumavam ser suficientes. Na maior parte dos casos, os outros
acalmavam-se logo. Com estes dois, no entanto, isso não aconteceu.
— Não há problema nenhum, Tarzan — replicou o da esquerda.
Reacher sorriu. Já lhe tinham chamado muita coisa, mas aquela
era nova.
— Três dólares por entrada. Ou então é de graça o regresso escadas abaixo.
— Só queremos falar com uma pessoa — contrapôs o da direita.
Ambos tinham pronúncia nova-iorquina. Reacher encolheu os
ombros.
— Aqui não se fala muito — redarguiu. — A música é demasiado alta.
— Como te chamas? — perguntou o da esquerda.
— Tarzan — respondeu Reacher, voltando a sorrir.
— Procuramos um tipo chamado Jack Reacher. Conhece-lo?
— Nunca ouvi falar — respondeu ele, abanando a cabeça.
— Então, temos de falar com as raparigas — insistiu o tipo. — Pode ser que o conheçam.
— Não conhecem — disse Reacher, abanando de novo a cabeça.
O da direita espreitou sobre o ombro de Reacher para a sala comprida e estreita,
concluindo que ele era o único segurança presente.
— Muito bem, Tarzan, sai da frente — ordenou. — Vamos entrar.
— Sabes ler? — ripostou Reacher. — Palavras complicadas e tudo? — Apontou para um
letreiro pendurado sobre a secretária da recepção que dizia em grandes letras
fluorescentes: a gerência reserva-se o direito de admissão. — A gerência sou eu —
explicou. — Recuso-vos a admissão. — O tipo relanceou o olhar alternadamente para o
letreiro e a cara de Reacher. — Queres que traduza? — insistiu Reacher. — Em palavras
simples? Eu é que mando e vocês não entram.
— Deixa-te de tretas, Tarzan — ripostou o outro.
Reacher deixou-o chegar junto de si, ombro a ombro, para passar. Depois, levantou a
mão e agarrou-o pelo cotovelo. Endireitou a articulação e apertou com os dedos o nervo
na base do tricípite do outro. É o mesmo que apanhar uma descarga eléctrica. O tipo pôs-
se aos saltinhos.
— Lá para baixo — pronunciou Reacher em tom cordato.
O outro tipo começou a descer a escada, e Reacher empurrou-lhe o companheiro atrás.
— Havemos de voltar a encontrar-nos — ameaçou o tipo.
— Tragam os vossos amigos — convidou Reacher. — A entrada é três dólares cada um.
Regressou para o interior da sala. A bailarina chamada Crystal postara-se mesmo atrás
dele.
— Que queriam eles? — perguntou.
— Procuravam uma pessoa — respondeu Reacher com um encolher de ombros.
— Uma pessoa chamada Reacher?
Ele confirmou com um aceno de cabeça.
— É a segunda vez hoje — prosseguiu ela. — Esteve cá antes um velhote. Queres ir atrás
dos tipos? Investigar?
Ele hesitou.
— Vai lá — incitou a dançarina. — Ficamos bem por um bocado. A noite está tranquila.
— Obrigado, Crystal — agradeceu Reacher, encaminhando-se para a escada.
— De nada, Reacher — gritou-lhe ela para as costas.
Key West às 11 da noite está no auge da animação. Duval é a rua principal,
percorrendo o comprimento da ilha de leste para oeste, banhada em luzes e algazarra. A
hipótese de os tipos o esperarem na Duval não preocupava Reacher. Havia gente a mais.
Se estivessem a considerar a vingança, escolhiam uma localização mais isolada. E não
lhes faltava por onde escolher. A povoação é minúscula. Uma curta caminhada era
suficiente para percorrer vinte quarteirões até àquilo que Reacher considerava os
subúrbios, onde escavava fundações para piscinas nos pequenos quintais traseiros das
casinhas.
Bateu as zonas mais tranquilas. Ninguém. Caminhava pelo meio da rua para que alguém
escondido num portal tivesse de percorrer quatro ou cinco metros de espaço aberto. Não
o preocupava a hipótese de ser alvejado. Os tipos não estavam armados. Tinham fatos
demasiado justos para esconderem armas. Os próprios fatos indicavam terem viajado à
pressa para o Sul. De avião. Não é fácil transportar armas dentro de aviões.
Virou à esquerda, junto do muro do cemitério, e regressou ao barulho. Estava um tipo
esparramado no passeio, encostado à vedação de arame. Não era uma visão inédita em
Key West, mas havia qualquer coisa de estranho. Era o braço do tipo. Encontrava-se
preso debaixo do corpo. Os nervos do ombro deviam protestar o suficiente para chegar
ao cérebro, por mais ébrio ou drogado que ele estivesse. Reacher deteve-se ao ver o
brilho pálido de um conhecido casaco creme. Aproximou-se. Agachou-se.
Era Costello. Tinha a cara esmurrada numa polpa informe. Coberta de sangue. Reacher
procurou a pulsação atrás da orelha. Nada. Tocou na pele com as costas da mão. Fresca.
Não havia rigor mortis, mas também estava uma noite quente. O tipo fora morto há talvez
uma hora.
Reacher vasculhou-lhe o interior do casaco. A carteira sobrecarregada desaparecera.
Depois, viu as mãos. As pontas dos dedos tinham sido cortadas. As dez. Cortes rápidos e
eficientes com algo bem afiado. Não um bisturi. A lâmina tinha de ser mais larga. Talvez
uma faca de cortar linóleo.
— A culpa foi minha — disse Reacher.
— Não foste tu que o mataste— contrapôs Crystal, abanando a cabeça, para logo erguer o
olhar com vivacidade. — Pois não?
— Fui a causa da morte dele. Há alguma diferença?
O bar fechara à 1 da manhã e estavam os dois sentados lado a lado junto do palco
vazio. As luzes tinham sido apagadas e não havia música. Não havia qualquer outro som
a não ser o zumbido do ar condicionado a sugar o fumo para o parado ar nocturno das
Keys.
— Devia ter-lhe dito — continuou Reacher. — Devia ter-me limitado a responder: claro, sou
Jack Reacher. Então, ele ter-me-ia contado o que tinha a contar, a esta hora já estava de
regresso a casa e eu podia continuar a mandar aquilo às malvas se me apetecesse. Eu
ficava na mesma e ele ainda estava vivo.
— Porque te preocupas? — insistiu Crystal. Era uma pergunta típica das Keys. Não se tratava
de insensibilidade, apenas de surpresa perante a preocupação de uma pessoa com um
forasteiro.
-y — Sinto-me responsável — redarguiu Reacher, fitando-a.
— Não, sentes-te culpado — contrariou ela. — Quem era o homem?
— Um detective particular — elucidou Reacher — que veio à minha procura.
— Porquê?
— Não faço ideia — confessou ele, abanando a cabeça.
— Os outros tipos vinham com ele?
Reacher voltou a abanar a cabeça.
— Não. Os outros tipos mataram-no.
— Mataram-no? — Ela fitou-o, espantada.
— É o que suponho — explicou Reacher. — Não estavam com ele, isso de certeza. Eram
mais novos e mais ricos. Os fatos ... Não lhes davam aspecto de subordinados dele. Em
qualquer caso, o primeiro tipo deu-me a impressão de ser um solitário. E provável que os
dois tenham recebido instruções para o seguirem, descobrirem que diabo andava a fazer. O
homem deve ter pisado uns calos lá no Norte, causado problemas a alguém. Portanto, foi
seguido até aqui. Apanharam-no, bateram-lhe até o obrigarem a confessar quem procurava.
Depois, vieram eles também à procura.
— Mataram-no para saber o teu nome?
— E o que parece — confirmou ele.
— Vais contar à Polícia?
Outra pergunta das Keys. Meter a Polícia fosse no que fosse implicava uma prolongada
discussão prévia.
— Não — decidiu ele. — Vou à procura de Mrs. Jacob. A cliente. Foi ela quem o mandou
ter comigo. Quero saber o que se passa.
— Muito bem, mas então como?
— Vou ao escritório do tipo. Talvez ele tivesse uma secretária. Pelo menos há-de lá haver
registos. Números de telefone, direcções, contratos com clientes. E provável que a tal
Mrs. Jacob seja o seu caso mais recente. Deve estar no cimo do monte.
— E onde é o escritório?
— Algures em Nova Iorque, pela pronúncia dele. Sei como se chamava. Sei que foi chui...
quase todos os detectives particulares o foram. E estava a par dos meus movimentos
bancários. Não há hipótese de se conseguir isso a não ser por um favor de um ex-colega
ainda no activo. Não deve ser difícil de encontrar.
Crystal sorriu, começando a interessar-se. Aproximou-se mais dele, encostando-lhe a
anca à coxa.
— Como sabes todas essas coisas complicadas?
— Eu próprio fui investigador — confidenciou Reacher. — Da Polícia Militar. Durante
treze anos. Era bastante bom. Não sou apenas uma carinha jeitosa.
— Nem sequer és uma carinha jeitosa — ripostou ela. — Não tenhas ilusões. Quando
começas?
— Imediatamente, acho eu. De certeza que há um voo madrugador a sair de Miami.
Ela voltou a sorrir. Desta vez, de pé atrás.
— E como vais até Miami a estas horas da noite?
Ele correspondeu ao sorriso. Confiante.
— Tu dás-me boleia.
Ela manteve o Porsche acima dos cento e sessenta durante todo o caminho para norte
até Key Largo. Era uma excelente condutora. Delicada, parca em movimentos, engatando
as mudanças com suavidade, mantendo o carro no centro da sua faixa. Quilómetro a
quilómetro, cobria o terreno à velocidade de uma avioneta.
Quando as luzes de Key Largo apareceram um pouco à frente, Crystal desacelerou,
atravessou cuidadosamente a povoação, para logo pisar de novo o acelerador e
prosseguir em grande velocidade em direcção a norte e à escura linha do horizonte. Uma
apertada curva para a esquerda, a travessia da ponte e a entrada no continente americano.
Chegaram às partidas do Aeroporto de Miami pouco antes das 5 da manhã. Ela parou
com suavidade na faixa destinada à saída de passageiros e ficou à espera sem desligar o
motor.
— Bem, obrigado pela boleia — agradeceu Reacher.
— De nada — respondeu ela com um sorriso.
Ele abriu a porta, mas permaneceu sentado, a olhar em frente.
— Pronto —acabou por dizer. — Até à próxima, acho eu.
— Não achas nada — retorquiu Crystal, abanando a cabeça. — Tipos como tu nunca
regressam. — Inclinou-se para ele, passou-lhe um braço por detrás da cabeça e beijou-lhe
a boca com força. — Adeus, Reacher — despediu-se. — Ainda bem que pelo menos
fiquei a saber o teu nome.
Ele correspondeu ao beijo com ímpeto prolongado e só depois se içou para fora do
carro. A dançarina esticou o braço e fechou a porta nas costas do passageiro. Embraiou e
arrancou. Reacher ficou a ver três meses da sua vida esvaírem-se com aquela mulher, tal
como o fumo do escape do Porsche.
Às 5 da manhã, oitenta quilómetros a norte da cidade de Nova Iorque, o presidente
estava deitado na cama, acordadíssimo, a olhar fixamente para o tecto.
Chamava-se Chester Stone. O nome do pai fora Chester Stone, assim como o do avô.
Este fundara o negócio na época remota em que a contabilidade se fazia com livros-razão
manuscritos. Fora um
relojoeiro que detectara cedo a futura atracção que o cinema viria a constituir. Recorrera
à sua habilidade com rodas dentadas e complexos mecanismos em miniatura para
elaborar um projector. Angariara um sócio que conseguia obter grandes lentes de fabrico
alemão. Juntos haviam dominado o mercado e feito fortuna. O sócio morrera novo e sem
herdeiros. O cinema florescera de costa a costa. Centenas de salas. Centenas de
projectores.
Seguira-se a televisão. Cinemas a fecharem, e os que permaneciam abertos a
aproveitarem até ao fim o equipamento que possuíam. O pai, Chester Stone II, assumindo
o comando. Diversificando. Explorando a atracção do cinema caseiro. Projectores de
oito milímetros. Grandes lucros a serem contabilizados lentamente nos cartões perfurados
de um dos primeiros computadores IBM.
A seguir, o regresso dos filmes. A morte do pai e o assumir do comando pelo jovem
Chester Stone III, o aparecimento das salas múltiplas. Quatro projectores, seis, doze,
dezasseis, onde antes havia apenas um. Depois, a estereofonia. Dolby Digital. Riqueza e
êxito. Casamento. A mudança para a mansão. Os carros.
Até que surgira o vídeo. E a concorrência feroz da Alemanha, do Japão e da Coreia,
tirando-lhe de debaixo dos pés o tapete do negócio das salas múltiplas. A explosão dos
microchips sólidos, RAM, consolas de jogos. Lucros astronómicos feitos à base de
coisas que ele não fazia ideia de como fabricar. Grandes perdas a acumularem-se no
software silencioso do seu PC portátil.
A mulher mexeu-se ao seu lado. Pestanejou e virou-se para o marido. Viu-o de olhos
fixos no tecto.
— Não dormes? — perguntou baixinho.
Ele não respondeu. Ela virou-se para o outro lado. Chamava-se Marilyn. Marilyn
Stone. Era há muito casada com Chester. Tempo suficiente para saber. Sabia tudo. Como
podia não saber? Tinha olhos e cérebro. Há muito que não via os produtos fabricados
pelo marido expostos orgulhosamente nas lojas. Há muito que nenhum proprietário de
uma sala múltipla os convidava para jantar em comemoração de uma grande encomenda.
E há muito que Chester não dormia uma noite inteira. Portanto, ela sabia.
Contudo, não estava preocupada. Prometera fidelidade na riqueza e na pobreza, e
fizera-o com consciência. Não que alguma vez viessem a ser pobres, como há quem seja.
Vendendo a casa, acaban-
do com o negócio, ainda ficavam com mais conforto do que ela alguma vez esperara.
Ainda eram novos. Tinham-se um ao outro. Correria tudo bem. Marilyn Stone voltou a
adormecer, enquanto o marido permanecia imóvel a seu lado a olhar para o tecto.
Reacher parou à entrada do terminal para consultar um monitor. Nova Iorque estava no
topo da lista, tal como esperava. O primeiro voo do dia era da Delta para La Guardia,
passando por Atlanta, dentro de meia hora. Dirigiu-se ao balcão da Delta e comprou
bilhete.
— O seu nome? — perguntou a hospedeira de terra.
— Truman — respondeu Reacher. — Como o presidente.
A jovem pareceu não entender. Truman para ela era pré-história. Premiu as teclas da
consola e o nome apareceu no bilhete saído da impressora.
— Porta B6 — informou. — Dei-lhe um lugar à janela.
— Obrigado — agradeceu Reacher.
Encaminhou-se para a porta, e um quarto de hora depois acelerava pela pista com uma
sensação muito semelhante à de estar de regresso ao Porsche de Crystal, só que desta vez
o lugar ao seu lado estava vazio.
Chester Stone barbeou-se e passou o tempo no chuveiro a matutar sobre o que havia de
vestir e em como se comportar. A verdade é que ia abordar aquele tipo praticamente de
joelhos. Um empréstimo de último recurso. A sua última esperança. Alguém que tinha
todo o seu futuro na mão. Como abordar um tipo assim? De joelhos, não. Se se aparenta
precisar de um empréstimo, este é negado. Só é concedido se parecer que não se precisa
dele. Como se se estivesse hesitante quanto a deixar o outro entrar no negócio e partilhar
um pouco dos lucros que espreitam logo ao virar da esquina.
Camisa branca, claro, e uma gravata discreta. No entanto, que fato? Tinha de ter um ar
sério, de quem dispõe de dinheiro suficiente para comprar uma dúzia de Armanis, mas é
de algum modo demasiado sério para o fazer. Demasiado preocupado com assuntos
graves para sequer considerar ir às compras à Madison Avenue. Decidiu que a tradição
era a característica a promover. Tradição de três gerações de êxito nos negócios. Tirou
do armário o fato cinzento de um alfaiate de Savile Row, em Londres. Perfeito. Fazia-o
parecer de
confiança. Escolheu uma gravata com um padrão esbatido e um par de bons sapatos
pretos. Virou-se para a esquerda e para a direita em frente do espelho. Não podia fazer
melhor. Com aquele aspecto, quase confiava em si próprio. Acabou o pequeno-almoço,
saiu para a garagem e às 6.45 estava na auto-estrada.
O World Trade Center é a sexta maior cidade do estado de Nova Iorque. Não chega a
ocupar sete hectares, mas alberga uma população diurna de 130 000 almas. Chester Stone
consultou o relógio e entrou. Apanhou um elevador para o octogésimo oitavo andar e saiu
para um corredor silencioso e deserto. Descobriu a porta certa, espreitou por um óculo de
vidro e tocou à campainha. A tranca foi accionada por um impulso eléctrico, e ele entrou
na recepção. Havia um balcão de latão e carvalho com um recepcionista sentado. Chester
parou, endireitou as costas e retomou o andamento até junto dele.
— Chester Stone — identificou-se em tom firme. — Tenho entrevista marcada para as nove
horas com Mr. Hobie.
Para sua surpresa, foi mandado entrar de imediato. Contara ter de ficar um bocado à
espera na recepção. Seria o que ele próprio teria feito. Se uma pessoa desesperada lhe
fosse pedir um empréstimo de último recurso, fazia-a suar numa espera de pelo menos
vinte minutos.
O escritório interior era vasto e escuro. Uma parede era inteiramente constituída por
janelas, que todavia se encontravam tapadas por estores verticais, apenas parcialmente
abertos. Havia uma secretária grande. Em frente desta, três sofás completavam um
quadrilátero. Havia mesinhas com candeeiros dos dois lados de cada sofá. Uma enorme
mesa de café de latão e vidro ocupava o espaço do meio. Tudo aquilo parecia uma
exposição de móveis de sala numa montra.
Estava um homem sentado à secretária. Stone passou de lado entre os sofás e deu a
volta à mesa de café. Aproximou-se da secretária. Estendeu a mão direita.
— Mr. Hobie? Chester Stone.
O homem à secretária sofrera queimaduras. Tinha tecido cicatricial róseo em todo um
lado da cara. A pele era escamosa como a de um réptil. Não tinha cabelo na parte que
subia até ao couro cabeludo. A face não queimada tinha a pele lisa, embora já um pouco
enrugada, e o cabelo era grisalho. O tipo aparentava entre cinquenta e cinquenta e cinco
anos. Estava ali sentado, com a cadeira quase en-
fiada na abertura da secretária e as mãos no colo. Stone permanecia de pé, recorrendo a
toda a sua força de vontade para não desviar o olhar, com a mão estendida por cima da
secretária.
Parecia idiota manter-se assim de pé, contudo ainda seria pior se retirasse a mão.
Portanto, continuou com ela estendida, à espera. Até que o homem se mexeu. Usou a mão
esquerda para afastar a cadeira da secretária. Levantou a direita ao encontro da de Stone.
No entanto, não era uma mão. Era um gancho em forma de J de aço inoxidável brilhante.
Stone quase o apertava, mas ainda foi a tempo de recuar a sua própria mão e a
imobilizar. O homem esboçou um sorriso generoso com a metade móvel do rosto. Como
se aquilo não o incomodasse nem um bocadinho.
— Chamam-me Hook Hobie — esclareceu.
Stone engoliu em seco e procurou recobrar a compostura.
— Sente-se — convidou Hook Hobie.
Chester ocupou a extremidade do sofá. O anfitrião fitou-o e pousou o braço sobre o
tampo da secretária. O gancho bateu na madeira com um som metálico.
— Pretende um empréstimo — começou Hobie.
Stone sentiu o estômago azedar e baixou os olhos para a mesa de café. Depois, assentiu
de cabeça e passou as palmas das mãos pelos joelhos, sobre as calças, tentando recordar
as falas que ensaiara.
— Preciso de colmatar uma falha — explicou. — Um milhão e cem mil dólares por seis
semanas.
— Banco? — inquiriu o outro.
— Prefiro não lhes pedir— declarou Stone. — Claro que temos um pacote de empréstimos,
mas eu consegui negociar uma taxa de jurp extraordinariamente favorável, com base na
ideia de ser tudo uma prestação fixa, por um prazo fixo. Não quero perturbar esse acordo
por uma quantia tão trivial.
Hobie mexeu o braço direito. O gancho raspou na madeira.
— Tretas, Mr. Stone — comentou em tom cordato. — Andei a investigar. De facto, o senhor
paga ao seu banco à taxa mais elevada, e a resposta deles a qualquer pedido de mais
financiamento será negativa. Todavia, está a fazer um trabalho razoável no sentido de sair
do vermelho. Está quase lá.
— Só faltam seis semanas e um milhão e cem mil dólares — esclareceu o empresário.
— Eu especializei-me em casos como o seu — explicou Hobie. — Firmas fundamentalmente
viáveis, com problemas de capital limitados e de curto prazo. Os meus juros são
razoáveis. Não sou nenhum agiota. Posso adiantar-lhe um milhão e cem mil, digamos, a
seis por cento pelas seis semanas.
Chester voltou a passar as palmas das mãos pelas coxas. Seis por cento por seis
semanas? Equivalente a uma taxa anual de quanto? Quase cinquenta e dois por cento. Não
eram bem as condições de um agiota, mas também não andavam longe. No entanto, ao
menos o tipo prontificava-se a emprestar-lhe o dinheiro.
— E relativamente à garantia? — indagou Stone.
— Fico com uma posição na firma — declarou o outro.
Stone obrigou-se a erguer a cabeça e fitá-lo.
— As acções não valem nada — confessou em tom baixo. — Só voltam a subir depois de
eu lhe ter pago, quando estiver desenrascado.
Hobie acenou com a sua cabeça horrível.
— Então, ganho nessa altura. Não estou a falar de uma transferência temporária. Eu vou
tornar-me accionista e tenciono manter-me como tal.
— Manter-se? — indagou Chester. Não conseguiu evitar que a surpresa lhe transparecesse
na voz. Juros de cinquenta e dois por cento e uma oferta de acções?
— E o que faço sempre — explicou Hobie. — E uma questão de sentimentalismo. Gosto de
deter uma pequena parte de todos os negócios que ajudo.
Stone engoliu em seco, desviando o olhar. Examinou as suas opções e acabou por
encolher os ombros.
— Está bem — concordou. — Acho razoável.
Hobie estendeu o braço esquerdo e abriu uma gaveta de onde tirou um impresso. Fê-lo
deslizar por cima da secretária.
— Preparei isto — disse.
Stone pegou no papel. Era um contrato de empréstimo: um milhão e cem mil dólares,
seis semanas, seis por cento, e um protocolo normal de transferência de acções de uma
parcela que ainda há bem pouco tempo teria valido um milhão de dólares. Pestanejou.
— Não posso fazê-lo de qualquer outro modo — garantiu Hobie.
— Não consegue melhor em sítio algum. Na realidade, não consegue nada em sítio algum.
Chester anuiu com um ligeiríssimo aceno de cabeça e enfiou a mão no bolso do casaco
para de lá tirar a grossa caneta Mont Blanc. Esticou-se para a frente e assinou nos dois
lados sobre o vidro frio e duro da mesa de café. Hobie observava-o.
— O dinheiro estará no seu banco dentro de uma hora.
— Obrigado — agradeceu Stone. Pareceu-lhe apropriado.
— Portanto, agora sou eu que estou a descoberto — comentou o interlocutor. — Seis
semanas, nada de garantias que se vejam. Não é uma sensação muito agradável.
— Não haverá problemas — sossegou-o Chester, de olhos baixos.
—Tenho a certeza de que não — corroborou o outro. Inclinou-se
para a frente e premiu o botão do intercomunicador. — O processo Stone, por favor.
Houve um momento de silêncio até a porta se abrir e o recepcionista se dirigir à
secretária com uma fina pasta verde na mão. Pousou-a em frente do patrão, que recorreu
ao gancho para empurrar a pastinha até à beira da secretária.
— Dê uma olhadela — convidou.
Chester inclinou-se para a frente e pegou-lhe. Abriu-a. Continha duas fotografias.
Grandes, de vinte por vinte e cinco, a preto e branco, brilhantes. A primeira era da sua
casa, tirada de dentro de um carro parado ao fundo do caminho de acesso. A segunda era
da mulher, Marilyn, envergando um roupão de banho, com o cabelo caído, tirada à noite
através da janela do quarto. Stone ficou de olhos fixos nesta. Para a tirar, o fotógrafo
postara-se no seu relvado das traseiras. A vista nublou-se-lhe e os ouvidos zumbiram-lhe
no silêncio. Fechou a pasta e pousou-a de novo lentamente em cima da secretária.
— São essas as minhas garantias, Mr. Stone — declarou Hobie. — Mas, tal como acaba de
me dizer, tenho a certeza de que não vai haver problemas.
Chester Stone não respondeu. Limitou-se a levantar-se e ziguezaguear por entre o
mobiliário a caminho da porta. Atravessou a recepção, percorreu o corredor e entrou no
elevador. Desceu oitenta e oito andares e regressou à rua, onde o sol matinal o atingiu na
cara como um soco.
DOIS
Os dois jovens de fatos de mil dólares amarrotados esperaram até Chester Stone se
afastar bem. Entraram então no escritório interior e postaram-se em silêncio diante da
secretária.
Hobie ergueu o olhar.
— Então? Obtiveram a informação que pedi?
— O tipo andava à procura de um tal Jack Reacher — assentiu o primeiro, acenando com a
cabeça.
— Quem é esse?
Fez-se um breve silêncio.
— Não sabemos — elucidou o segundo.
Hobie assentiu devagarinho com a cabeça.
— Quem era o cliente de Costello?
Novo silêncio.
— Também não sabemos — declarou o primeiro.
— Não se lembraram de fazer essas perguntas básicas?
— Fizemos — disse o segundo, acenando com a cabeça.
— Porém, Costello recusou-se a responder?
— Ia responder — explicou o primeiro —, mas morreu-nos na; mãos. Era velho e gordo.
Foi ataque cardíaco, acho eu.
— Perigo de sermos descobertos?
— Nenhum — garantiu o primeiro. — Não está reconhecível.
Hobie tamborilou ritmicamente no tampo da secretária com a
ponta do gancho. Matutou um pouco e voltou a fazer um aceno de cabeça, decidido.
— Muito bem, não foi culpa vossa, suponho. Se o coração era fraco, que podiam fazer?
O primeiro tipo descontraiu-se. Estavam safos, por ora.
— Precisamos de encontrar o cliente — continuou Hobie no silêncio. — Tragam-me a
secretária de Costello. — Os dois tipos permaneceram onde estavam. — O que é? —
interrogou o patrão.
— O tal Jack Reacher — começou o primeiro. — Parece que é um tipo grandalhão que vive
há três meses nas Keys. Costello disse-nos que as pessoas falavam de um tipo possante
que trabalhava
de noite num bar. Fomos ter com ele, que todavia negou ser Jack Reacher.
— E depois?
— No Aeroporto de Miami — retomou o segundo —, quisemos o avião da United por ser
directo. Mas havia um mais cedo, da Delta, via Atlanta. Vimos o matulão do bar a
caminho da porta de embarque.
Hobie recomeçou a tamborilar com o gancho na secretária, perdido nos seus
pensamentos.
— Muito bem, ele é Reacher — concluiu. — Tem de ser, não é? Costello a fazer perguntas,
depois vocês no mesmo dia, ele assusta-se, põe-se a mexer. Mas porquê? Quem será ele?
— Pensou por um instante e respondeu à sua própria pergunta: — A secretária vai dizer-
me quem é o cliente, certo? — Sorriu. — E o cliente informa-me sobre esse Reacher.
Os dois tipos de fatos caros acenaram com a cabeça, serpentearam por entre as peças
de mobília e saíram do escritório.
Reacher dirigia-se à Biblioteca Pública, na esquina da Rua 42 com a 5.a Avenida,
procurando avaliar as dimensões da tarefa que empreendera. Estava convicto de se
encontrar na cidade certa. A pronúncia dos três era óbvia. Mas era preciso triar uma
população vastíssima. Sete milhões e meio de pessoas espalhadas pelas cinco
circunscrições, e talvez uns dezoito milhões em toda a área metropolitana. Presumia
instintivamente que Costello tivesse base em Manhattan, sendo porém muito possível que
Mrs. Jacob vivesse nos arredores. Uma senhora instalada nos subúrbios que precise de
um detective particular onde vai procurá-lo? De certeza que não é nos arredores do
supermercado ou do clube de vídeo. E também não é no centro comercial, junto das lojas
de roupa. Pega nas Páginas Amarelas da grande cidade mais próxima.
Na biblioteca, encontrou todas as listas telefónicas de que precisava. Muita gente de
apelido Jacob, tanto em Manhattan como nas restantes circunscrições. Reacher ateve-se
aos que se encontravam num raio de uma hora de viagem da cidade. Com o lápis, foi
fazendo tracinhos na sua agenda, e contou cento e vinte e nove candidatas à desejada Mrs.
Jacob.
Teve, todavia, sorte com Costello. Encontrou uma Costello Investigations na
Greenwich Avenue, na Village.
A pessoa seguinte a entrar no escritório de Hobie foi o recepcionista, que trancou a
porta atrás de si. Sentou-se na extremidade do sofá mais perto da secretária e olhou
fixamente para Hobie.
— O que é? — indagou o patrão, embora soubesse muito bem o que era.
— Devia pôr-se a mexer — redarguiu o recepcionista. — Já está a ficar arriscado.
Hobie não respondeu. Limitou-se a segurar o gancho na mão esquerda, passando os
dedos que lhe restavam pela malévola curva metálica.
— Tivemos notícias do Havai, certo? — continuou o empregado. — O seu plano era
desaparecer assim que tivesse notícias do Havai.
— Costello não chegou a ir lá — contrapôs Hobie. — Verificámos isso.
— O que só piora as coisas. Foi outra pessoa ao Havai. Alguém que desconhecemos.
— Rotina — ripostou o patrão. — Teve de ser. Pensa bem: não há qualquer razão para
alguém ir ao Havai enquanto não tivermos notícias do outro lado. É uma sequência,
sabes isso perfeitamente. Temos notícias do outro lado, depois do Havai, fase um, fase
dois, e nessa altura é que tenho de me pirar. Antes, não.
O recepcionista inclinou a cabeça para trás e pôs os olhos no tecto.
— Porque está a fazer isto?
O outro abriu a gaveta e extraiu o processo Stone. Retirou dele o contrato assinado e
inclinou-o para a luz fraca que entrava pela janela.
— Seis semanas — declarou. — Talvez menos. É tudo o que falta para o maior golpe da
minha vida. Stone acaba de me entregar toda a sua empresa. Tudo de bandeja. Sabes
qual é o património dele? Uma grande fábrica em Long Island e uma enorme mansão em
Pound Ridge. Quinhentas casas todas apinhadas em redor da fábrica. Deve ter mais de
mil e duzentos hectares ao todo, tudo bom terreno para construção, no litoral, mesmo a
pedir uma urbanização.
— As casas não são dele — contrariou o outro.
Hobie concordou com um aceno de cabeça.
— Não, está quase tudo hipotecado a um banco de Brooklyn. No entanto, pensa só. Imagina-
me a pôr estas acções no mercado.
— Não valem um chavo — argumentou o recepcionista. — Ter isso ou nada é a mesma
coisa.
— Exacto. Não valem um chavo. Mas os banqueiros dele não sabem. Ele tem andado a
mentir-lhes. Tem escondido os problemas dos credores. Que outra razão teria para vir
ter comigo? Portanto, eu vou pôr-lhes debaixo dos olhos até que ponto as garantias deles
são nulas. E depois?
— Entram em pânico — concluiu o funcionário.
— Nem mais — concordou Hobie. — Entram em pânico. Até aparecer Hook Hobie a
oferecer-se para lhes comprar a dívida de Stone a vinte cêntimos por dólar.
— E quanto às casas?
— A mesma coisa. Eu tenho as acções, tenho a tal fábrica. Fecho a fábrica. Acabam-se não
sei quantos empregos, ficam quinhentas hipotecas por pagar. Isso vai dar um abalo ao
banco de Brooklyn. Compro as hipoteqas a dez cêntimos por dólar, executo-as e ponho
tudo no olho da rua. Contrato uns bulldozers e fico com mil e duzentos hectares de
terrenos de primeira para construção em Long Island. Mais um casarão em Pound Ridge.
Custo total para mim: algures à volta de oito milhões e cem mil dólares. Só a casa vale
uns dois milhões. Resultado: por um empate de seis milhões e cem mil, obtenho um
pacote com o qual posso ganhar cem milhões no mercado.
O recepcionista abanava a cabeça.
— Não vai resultar — comentou. — É uma velha empresa familiar. Stone ainda detém a
maioria das acções. O banco só detém uma parte. Para si, resta apenas o papel de sócio
minoritário. Ele não vai permitir-lhe fazer tudo isso.
— Vai acabar por me vender tudo — assegurou Hobie, abanando por sua vez a cabeça.
Reacher deparou com uma pequena placa de latão mesmo a meio da Greenwich
Avenue, do lado sul, afixada numa ombreira de pedra. A placa era uma de muitas e
situava a costello na Suite 5. A porta estava aberta. Lá dentro, havia um pequeno átrio
com um painel a indicar que o edifício estava subdividido em dez pequenas suites de
escritórios. Ao fundo, encontrava-se uma porta de vidro trancada. Reacher tocou a
campainha para a Suite 5. Não obteve resposta. Carregou no 6. Pelo intercomunicador,
fez-se ouvir uma voz distorcida:
— Quem é?
— Correio expresso — respondeu ele, e a porta de vidro foi aberta com um estalido.
Reacher subiu a escada e encontrou a Suite 5 bem nas traseiras do prédio, com a porta
encafuada por baixo do vão da escada quando esta virava para o andar de cima.
A porta de mogno estava entreaberta. Reacher empurrou-a com a ponta do pé, e ela
girou nas dobradiças, revelando uma pequena área de recepção. Uma secretária em forma
de L com um telefone complicado e um computador moderno. Um móvel de arquivo e um
sofá. Havia outra porta em frente que dava directamente para um gabinete.
Reacher dirigiu-se para essa porta. Embrulhou a mão na fralda da camisa e rodou a
maçaneta. Entrou numa segunda sala de dimensões semelhantes. O gabinete de Costello.
Numa parede à direita da secretária estavam fotografias emolduradas de uma versão mais
jovem e magra do homem que conhecera nas Keys, na companhia de comissários da
Polícia e de políticos locais que Reacher não reconheceu. Atrás da secretária, havia uma
cadeira de cabedal com o estofo marcado pelo peso de um homem gordo. Em frente, duas
cadeiras para clientes bem arrumadas.
Reacher regressou ao gabinete exterior. Havia no ar um cheiro a perfume. Contornou a
secretária e deparou com uma mala de senhora arrumadinha num espaço à esquerda da
cadeira. A aba estava levantada, revelando uma carteira de pelica e um pacote de lenços
de papel. Pegou na sua própria lapiseira e recorreu à borracha para afastar os lenços. Por
baixo destes, encontrou um monte de cosméticos, um molho de chaves e o suave aroma de
uma água-de-colónia cara.
O monitor do computador ostentava um Screensaver às ondas. Reacher usou a
lapiseira para accionar o rato. O monitor iluminou-se, revelando uma carta meio escrita.
A data daquele dia aparecia logo abaixo do cabeçalho. Reacher recordou o corpo de
Costello esparramado no passeio em Key West, relanceou o olhar pela mala da mulher
ausente, a porta aberta e a carta por acabar e sentiu um arrepio.
Utilizou a seguir a lapiseira para sair do processador de texto. Abriu o menu e
consultou a lista de ficheiros. Procurava uma factura. Era nítido pelo aspecto do
escritório que Costello geria um negócio eficiente. Com eficiência suficiente para facturar
um adiantamento antes de partir em busca de Jack Reacher. Porém, quando te-
ria sido iniciada essa busca? Devia ter começado com as instruções de Mrs. Jacob: nada
mais que o seu nome, uma descrição vaga da sua estatura, o facto de ter estado no
Exército. Costello teria então ligado para os registos centrais do Exército, um complexo
muito bem guardado em St. Louis que contém todos e quaisquer papéis referentes a todos
os homens e mulheres que alguma vez envergaram um uniforme. Após uma investigação
paciente, teria descoberto a sua passagem à reserva. Depois, uma pausa intrigada perante
um beco sem saída. A seguir, o tiro no escuro relativamente à conta bancária. Uma
chamada a um antigo colega, pedido de retribuição de favores, um puxar de cordelinhos.
Talvez um extracto de conta meio ilegível enviado da Virgínia por fax. Finalmente, um
voo apressado para sul, investigações pela Duval Street, os dois tipos, a cena de
pancadaria, a faca de cortar linóleo.
Uma sequência razoavelmente curta, embora St. Louis e a Virgínia devessem ter
constituído demoras consideráveis. Reacher calculou que obter informações fidedignas
dos registos centrais deveria exigir uns três dias, eventualmente quatro. Possivelmente, o
banco da Virgínia não teria sido mais rápido. Considerando um total de sete dias de
atrasos burocráticos, separados por um dia de ponderação, mais um dia ao princípio e
outro ao fim, dava um total de dez dias desde que Mrs. Jacob pusera tudo aquilo em
movimento.
Clicou numa pasta chamada facturas. No lado direito do monitor apareceu uma longa
lista de ficheiros. Não havia Jacob nos Js. Eram quase só iniciais, grandes siglas que
talvez correspondessem a sociedades de advogados. Verificou as datas. Nada de há dez
dias exactos. No entanto, encontrou um com nove dias rotulado SGR&T-09. Clicou aí, e
no monitor apareceu um adiantamento de mil dólares para procurar uma pessoa
desaparecida, pago por uma firma da Wall Street denominada Spencer Gutman Ricker &
Talbot.
Saiu do menu e entrou na base de dados. Voltou a procurar SGR&T e surgiu uma
página com o mesmo nome, mas desta vez com números de telefone, fax, telex e correio
electrónico. Inclinou-se para baixo e tirou dois lenços de papel do pacote da secretária.
Enrolou um em torno do auscultador e abriu o outro sobre as teclas. Ligou o número
premindo por cima dele.
— Spencer Gutman. Em que podemos ser-lhe úteis? — atendeu uma voz animada.
— Mrs. Jacob, por favor — pediu Reacher num tom de quem está muito ocupado.
— Só um momento — pediu a voz. Ouviu-se música para entreter, a que se seguiu uma voz
de homem que soava apressada, embora deferente. Talvez fosse secretário.
— Mrs. Jacob, por favor — repetiu Reacher.
O tipo pareceu incomodado.
— Já partiu para Garrison, e lamento não poder dizer-lhe quando regressará ao escritório.
— Tem a morada dela em Garrison?
— Dela? — surpreendeu-se o interlocutor. — Ou dele?
Reacher fez uma pausa e arriscou:
— Dele, quero eu dizer. Creio que o perdi.
— Pois — redarguiu a voz. — Acho que houve um erro de impressão. Hoje já tive de dar o
endereço certo a umas cinquenta pessoas no mínimo. — Recitou-o, aparentemente de
cor. Garrison, estado de Nova Iorque, uma terreola à beira do rio Hudson, cem
quilómetros a montante. — Acho que tem de se apressar — concluiu.
— Sim, com certeza — respondeu Reacher, e desligou, confuso.
Fechou a base de dados e deixou o monitor vazio. Deitou um último olhar à mala
abandonada da secretária desaparecida e voltou a sentir laivos do seu perfume ao sair da
sala.
A secretária morrera cinco minutos depois de ter revelado a identidade de Mrs. Jacob,
o que acontecera cinco minutos depois de Hobie ter começado a trabalhá-la com o
gancho. Encontravam-se na grande casa de banho para executivos incluída na suite de
escritórios do octogésimo oitavo andar. Brilhantes ladrilhos de granito cinzento cobriam
as seis superfícies: paredes, chão e tecto. Tinha um duche com uma cortina de plástico
translúcido pendente de um varão de aço inoxidável. Hobie descobrira que o varão
aguentava o peso de um ser humano inconsciente pendurado pelos pulsos.
Ocasionalmente, pessoas mais pesadas do que a secretária haviam estado ali penduradas
enquanto ele as persuadia da sensatez de determinada atitude.
Agora, Hobie já se sentara à secretária e conversava com o primeiro jovem. O segundo
procedia à limpeza.
— Quero que vão a casa de Mrs. Jacob. É só subir o Hudson.
Numa terra chamada Garrison. Vou saber a direcção. Trazem-ma, entendido?
— Claro — garantiu o subordinado. — E aquela? — Indicou a casa de banho com um
movimento de cabeça.
Hobie seguiu-lhe o olhar.
— Esperem pela noite — instruiu. — Depois, levem-na para o barco e despejem-na na baía
um par de milhas ao largo.
O hábito de viver sem deixar rasto tem vantagens, mas também implica alguns
inconvenientes. A melhor maneira de chegar a Garrison depressa era alugar um
automóvel, mas um tipo que opta por dispensar cartões de crédito e nem sequer tem carta
de condução perde essa possibilidade. Portanto, Reacher ia de táxi a caminho da Grand
Central Station. Tinha quase a certeza de que partiam de lá comboios suburbanos da
Hudson Line. Se não, talvez os grandes Amtraks que seguiam para Albany e o Canadá
parassem em Garrison.
Pagou o táxi e abriu caminho por entre a multidão até ao gigantesco átrio. Ergueu o
olhar para ler o painel onde estavam assinaladas as partidas. Na hora e meia seguinte,
nenhum comboio expresso o levava até Garrison. Tinha de apanhar um que parava em
todas as estações até Croton-on-Hudson e continuar de táxi desde aí.
Fechou bem a tampa de uma embalagem de café comprada na estação e embarcou no
comboio local. Pagara cinco dólares e meio por um bilhete de ida fora das horas de
ponta, e sentou-se num banco, nervoso por excesso de cafeína, encostando a cabeça à
janela e interrogando-se sobre o seu destino e o que faria quando lá chegasse.
O grande Chevy Tahoe preto saiu com um ressalto da rampa da garagem para o dia
soalheiro e embrenhou-se no engarrafamento em redor do World Trade Center. Virou à
direita e seguiu a passo de caracol durante nove quarteirões para norte, voltou à esquerda
na Rua 23, até virar de novo para norte na 12.a Avenida, que desembocava na Auto-
Estrada Miller. O trânsito continuou compacto durante todo o caminho, passando sobre os
muitos hectares abandonados do antigo depósito de material ferroviário. A Miller
passava a Henry Hudson Parkway, que por sua vez daria acesso à Estrada 9 em Croton-
on-Hudson, e daí seguia a direito para norte até Garrison. Uma li-
nha recta, sem quaisquer desvios, mas uma boa hora após a partida os capangas de Hobie
ainda continuavam presos em Manhattan.
Reacher apeou-se do comboio em Croton setenta e um minutos depois de ter
embarcado. Correu para a fila de táxis. Estavam lá quatro, todos eles velhas carrinhas
Caprice, com imitação de madeira nos lados.
— Conhece Garrison? — perguntou Reacher ao primeiro motorista, uma mulheraça.
— Garrison? — espantou-se ela. — Saiba o senhor que são trinta e dois quilómetros. Pode
custar-lhe quarenta dólares.
— Dou-lhe cinquenta — ofereceu ele. — Mas já lá devia estar.
Sentou-se à frente, ao lado da condutora, e esta precipitou-se
para a saída do parque de estacionamento, subindo para a Estrada 9 no sentido norte.
— Sabe dizer-me a direcção? — perguntou a taxista, de olhos fixos na estrada.
Reacher recitou o que o secretário da sociedade de advogados lhe dissera.
— Dá para o rio — comentou a mulher com um aceno de cabeça.
Seguiu em velocidade de cruzeiro durante um quarto de hora,
passou por Peekskill e depois virou à esquerda, para oeste, a caminho do rio. Aí chegada,
entrou numa estrada campestre em direcção a norte. O terreno descia para a esquerda, e
Reacher avistou West Point lá à frente, a um quilómetro e meio, do outro lado do azul da
água.
— Deve ser algures por aqui — declarou a taxista. Era uma estrada municipal estreita com
toscas vedações de madeira. — Ena — fez ela, surpreendida. — Acho que deve ser
isto.
A estrada já era estreita de si, mas ali tornava-se quase intransitável devido à
comprida fila de carros estacionados na berma. Talvez quarenta automóveis, muitos dos
quais pretos ou azul-escuros. A mulher conduziu o táxi para o caminho de acesso.
Encontrava-se mais um grupo de dez ou doze veículos estacionado em frente à garagem.
Dois deles eram carros simples verdes: viaturas militares.
— E isto? — perguntou a mulher.
— Deve ser — aventou Reacher à cautela. Tirou uma nota de cinquenta dólares do seu
maço e entregou-lha. Apeou-se e ficou parado no caminho de acesso, inseguro. Ouviu o
zunido do táxi a afastar-se em marcha atrás. Voltou atrás para espreitar a caixa do
correio, que tinha um nome escrito no cimo em letrinhas de alumínio. garber. Um nome
que ele conhecia tão bem como o seu.
A casa era baixa e comprida, revestida de cedro escurecido, com portadas escuras nas
janelas e uma grande chaminé de pedra. Qualquer coisa entre uma modéstia suburbana e a
confortável casinha de campo. Estava tudo tranquilo.
Aproximou-se e ouviu conversas em surdina do outro lado da residência. Pessoas a
falarem baixo, provavelmente muitas. Deixou-se guiar pelo som e deu a volta à garagem.
Encontrou-se ao cimo de um lanço de escadas de cimento virado para ocidente, de onde
se avistava o rio Hudson, azul e ofuscante, para lá do jardim das traseiras batido pelo
sol. À frente de Reacher estendia-se um relvado plano onde se via uma multidão solene,
constituída por umas cem pessoas. Estava toda a gente de preto, excepto meia dúzia de
oficiais do Exército fardados a rigor. As conversas eram em tom baixo, sóbrio, enquanto
se equilibravam pratos de papel e copos de vinho de uma refeição volante, com a tristeza
a revelar-se no descair dos ombros.
Um funeral. Era «penetra» num funeral.
Ficou ali, desajeitado, com a roupa que envergara na véspera nas Keys: calças de
algodão desbotado, camisa amarelo-clara, amarrotada, sem meias, sapatos gastos. Todos
os presentes fizeram silêncio e voltaram-se, erguendo os olhos para ele, que se
imobilizou. Era fitado inquiridoramente. Até que uma mulher se mexeu. Entregou o prato
de papel e o copo a quem estava mais perto e avançou ao encontro dele.
Era uma jovem, talvez com trinta anos, vestida como as outras, de austero fato preto.
Estava pálida e tensa, mas era extremamente atraente. Esguia, alta, sapatos de salto. Belo
cabelo louro, comprido e liso, olhos azuis, ossos finos. Atravessou com elegância o
relvado e parou ao fundo dos degraus de cimento à espera de que ele descesse.
— Olá, Reacher — cumprimentou baixinho.
Ele fitou-a de cima. E percebeu quem era. Ocorreu-lhe num único olhar, como num
filme que salta quinze anos para diante. Uma adolescente cresceu e desabrochou numa
linda mulher ali mesmo em frente dos seus olhos, tudo numa fracção de segundo. Garber,
o
nome da caixa de correio. Leon Garber, o seu comandante de muitos anos. Recordou o
convívio com ela, o conhecimento mútuo adquirido em churrascos nas noites quentes das
Filipinas. Era uma garota magra, suficientemente mulher aos quinze anos para ser
cativante, embora suficientemente garota para ser proibida. Jodie, a filha de Garber.
Agora, crescida e encantadora.
Reacher relanceou o olhar pela multidão e desceu os degraus até ao relvado.
— Olá, Reacher — repetiu a jovem. A voz era baixa, triste, como tudo o que a rodeava.
— Olá, Jodie — correspondeu ele. Queria perguntar «quem morreu?», mas no entanto não
conseguiu lembrar-se de nenhum modo que não parecesse insensível.
Ela percebeu a atrapalhação.
— O meu pai — informou com simplicidade.
— Quando? — perguntou ele.
— Há cinco dias. Esteve doente nestes últimos meses, mas o fim foi repentino. Uma
surpresa.
O recém-chegado acenou devagar com a cabeça.
— Lamento imenso — disse. Relanceou o olhar para o rio, e a centena de caras à sua
frente transformou-se numa centena de faces de Leon Garber. Homem baixo, atarracado,
rijo. Um grande sorriso omnipresente, quer estivesse feliz, aborrecido ou em perigo.
Homem corajoso, física e mentalmente. Grande dirigente. Honesto a mais não poder,
justo, perspicaz. Mentor e apoiante de Reacher. Fizera tudo o que estivera ao seu
alcance para conseguir promovê-lo num prazo de dezoito meses, o que fizera de
Reacher o major mais novo em tempo de paz de que havia memória. — Lamento
imenso, Jodie — repetiu ele. — Nem consigo acreditar. Vi-o há menos de um ano.
Nessa altura, estava em boa forma. Adoeceu?
— Do coração — explicou a jovem. — Acabou por ser disso que morreu. Lembra-se de
como ele gostava de fingir que não tinha coração?
— Tinha o maior coração que alguma vez existiu — disse Reacher, abanando a cabeça.
— Foi o que eu descobri — assentiu ela. — Depois da morte da minha mãe, fomos os
melhores amigos do Mundo durante dez anos. Eu adorava-o.
— Também eu — confidenciou Reacher. — Como se fosse meu pai, não seu.
A jovem assentiu de cabeça e disse:
— Ele ainda estava sempre a falar de si.
Reacher desviou o olhar, entorpecido. O pai morrera, a mãe morrera, o irmão morrera.
Agora, a pessoa que para ele mais se aproximava de um familiar de substituição morrera
igualmente. Jodie pôs-se ao seu lado e enfiou o braço no dele.
— Sempre foi um tipo bem disposto. Foi melhor para ele partir depressa. Não consigo
imaginá-lo a manter essa disposição numa doença prolongada.
Reacher teve um lampejo mental do velho Garber, pleno de actividade e ímpeto, uma
enérgica bola de fogo, e compreendeu como teria sido desesperante para um homem
assim ficar inválido. Anuiu com um tristonho aceno de cabeça.
— Venha conhecer umas pessoas — convidou ela.
— Não estou vestido para isto — argumentou Reacher. — Não me sinto à vontade. É melhor
ir-me embora.
— Não tem importância — contrariou a jovem. — Acha que o meu pai se importava?
Reacher recordou Garber no seu velho caqui amachucado e boné gasto — o oficial
mais mal vestido do Exército dos EUA — e esboçou um sorriso.
— Acho que não.
Jodie acompanhou-o até ao relvado. No meio da centena de pessoas, ele reconheceu
cerca de meia dúzia. Uns cinco, de fato, eram homens com quem trabalhara, aqui e ali,
noutra vida. Deu-lhes um aperto de mão. Quando as conversas em surdina retomaram o
seu curso, Jodie continuava a segurar-lhe o braço. A mão dela era fresca ao contacto com
a sua pele.
— Ando à procura de uma pessoa. De facto, foi por isso que vim cá — confessou Reacher.
— Eu sei. Mrs. Jacob, não é?
— Está cá?
— Sou eu — informou Jodie.
— Mrs. Jacob?
— Sou, fui — assentiu Jodie Garber com um aceno de cabeça. — Divorciei-me, mas
mantenho o nome profissionalmente.
— Quem era ele?
— Advogado, como eu. Na altura, parecia boa ideia. Conhecemo-nos na faculdade, casámos
quando arranjámos emprego. Eu permaneci na Wall Street, mas ele foi para uma firma de
Washington há dois anos. Ele não tinha vocação para o casamento, portanto a relação
como que se esgotou.
Reacher fitou-a, apercebendo-se de que o perturbava o facto de ela ter sido casada.
Aos quinze anos, era uma miúda magrizela, mas já absolutamente estonteante, cheia de
autoconfiança, embora inocente e um pouco tímida ao mesmo tempo. Agora, passados
quinze anos, era uma mulher feita, bela e segura de si.
— E casado? — perguntou.
— Não — disse Reacher, abanando a cabeça.
— Mas é feliz?
— Sou sempre feliz. Sempre fui, sempre hei-de ser —respondeu
ele.
— A fazer o quê?
— Nada de especial — declarou, encolhendo os ombros. — Ultimamente, estava nas Keys
a escavar fundações de piscinas.
Ela manteve-se impávida.
— Costello encontrou-o lá? — perguntou.
«Não me encontrou para me convidar para um funeral», pensou Reacher e retorquiu:
— Temos de conversar sobre Costello. Mais logo.
— O fulano é bom, não é?
«Não o suficiente», pensou ele. Jodie afastou-se para circular por entre os presentes.
As pessoas esperavam a oportunidade de lhe darem condolências, e o zunzum das
conversas ia subindo de tom e tornava-se mais sentimental. Reacher vagueou até um
terraço onde havia comida sobre uma mesa comprida. Encheu um prato de papel com
frango frio e arroz, sentando-se depois calmamente sozinho numa cadeira de jardim.
Foi observando a multidão enquanto comia. O afecto pelo velho Leon Garber era
palpável. Jodie movimentava-se por entre as pessoas, a acenar com a cabeça, a apertar
mãos, a sorrir tristemente. Movia-se com a serenidade de alguém que amara o pai durante
toda a sua vida e que fora correspondida. Nada havia que tivesse negligenciado contar-
lhe, nada que ele tivesse por sua vez negligenciado
contar à filha. Uma pessoa vive e depois morre, e, desde que faça bem as duas coisas,
não há muito a lamentar.
Os dois tipos do Chevy Tahoe preto fizeram marcha atrás para sair da fila de carros e
de debaixo dos cabos eléctricos, a fim de o telefone do carro funcionar sem
interferências. O condutor ligou um número, e a chamada foi atendida cem quilómetros a
sul, a oitenta e oito andares de altura.
— Há problemas, chefe — explicou o condutor. — Há aqui uma espécie de velório ou funeral,
ou lá o que é. Não temos possibilidade de agarrar a tal Mrs. Jacob. Nem sequer sabemos
quem é.
O auscultador retransmitiu um resmungo de Hobie:
— E?
— O tipo do bar lá das Keys apareceu mesmo agora num táxi. Chegou uns dez minutos depois
de nós e entrou.
No auscultador, ouviu-se um ruído. Não uma resposta que se percebesse.
— Então, que fazemos? — perguntou o condutor.
— Não saiam daí — disse a voz de Hobie. — Talvez seja melhor esconderem o carro e
porem-se algures à coca. Esperarem até toda a gente se ir embora. A casa é dela, tanto
quanto sei. Talvez seja a residência familiar ou um retiro de fim-de-semana. Portanto, as
outras pessoas hão-de ir-se todas embora, e ela há-de ficar. Não me voltem para cá sem
ela, entendido?
— E o matulão?
— Se se for embora, deixem-no ir. Se não for, despachem-no. Mas tragam-me a Jacob.
Reacher subiu os degraus de cimento atrás dos dois últimos convidados. Um deles era
coronel, e o outro, tenente-general, ambos fardados a rigor. Ele já contara com aquilo. Os
soldados são sempre os últimos a sair de qualquer lado onde haja comida e bebida de
graça.
Os militares apertaram formalmente a mão a Jodie e a seguir bateram os calcanhares e
fizeram continência. Movimentos rígidos, como em parada, olhos em frente, como que a
mil metros. Entraram no último automóvel estacionado no asfalto em frente da garagem,
um dos carros verdes sem distintivo que se encontravam mais perto
da casa. Reacher ficou a ver o automóvel verde fazer inversão de marcha e dirigir-se para
a saída, e Jodie voltou a dar-lhe o braço.
— Pronto. Já está — comentou baixinho.
— Temos de conversar sobre Costello — lembrou ele enquanto o ruído da viatura verde
se desvanecia pela estrada fora até deixar de se ouvir.
— Porquê? Ele deu-lhe o recado, não deu? — indagou ela.
— Não. Encontrou-me, mas eu estava desconfiado e disse-lhe que não era Jack Reacher.
— Mas porquê? — perguntou, fitando-o, atónita.
— Por hábito, suponho — disse Reacher, abanando a cabeça. — Não ando por aí à
procura de sarilhos. Não reconheci o nome Jacob, por isso limitei-me a não ligar.
— Se calhar, devia ter usado Garber — reflectiu a jovem. — Afinal, era uma coisa do
meu pai, não minha. Mas como o contratei através do meu escritório, nem pensei nisso.
Bem, não valia a pena preocupar-se. Não era nada de especial.
— Podemos ir lá para dentro? — perguntou Reacher.
Jodie ficou de novo surpreendida.
— Porquê?
— Porque era qualquer coisa muito especial.
Os tipos viram-na levá-lo para dentro pela porta principal. A mulher puxou o guarda-
vento, e o homem segurou-o enquanto ela rodava a maçaneta e abria a porta. Entraram e a
porta fechou-se nas suas costas. Dez segundos depois, viram uma luz fraca por uma janela
muito para a esquerda. Alguma salinha ou escritório, supuseram, tão na sombra das plantas
do exterior que precisava de luz eléctrica mesmo a meio do dia. Deixaram-se ficar
agachados numa depressão húmida perto da propriedade Garber, à espera, escutando com
atenção. Não chegava até eles qualquer som.
Acabaram por se soerguer, correndo para o canto da garagem. Coseram-se com o
revestimento de cedro e foram deslizando até à frente. Atravessaram em direcção à casa.
Enfiaram as mãos nos bolsos dos casacos para puxar das 9 mm. Dirigiram-se um de cada
vez até ao alpendre da frente. Acocoraram-se encostados à casa, um de cada lado da porta
principal, de pistolas em punho. A mulher entrara por ali. Havia de voltar a sair. Era só
uma questão de tempo.
— Mataram-no?! — exclamou Jodie.
— E provavelmente à secretária também — acrescentou Reacher.
— Não acredito — disse ela. — Porquê?
Jodie levara-o por um corredor até um pequeno escritório no canto mais afastado da
casa. Uma janela pequena. Apainelamento de madeira escura e pesado mobiliário de
cabedal castanho tornavam a divisão sombria, pelo que ela acendeu um candeeiro.
— Não sei — respondeu Reacher. — Não sei nada. Nem sequer sei porque é que você o
mandou à minha procura.
— O meu pai queria falar consigo — contou Jodie. — Não chegou a dizer-me porquê. Eu
andava ocupada, tinha um julgamento, uma coisa complexa, que durou meses. Só sei que,
quando adoeceu, ele tinha consultas de cardiologia. Encontrou lá alguém e envolveu-se num
assunto qualquer. Pareceu-me que sentia uma grande obrigação. Até que mais tarde, ao
piorar, percebeu que tinha de deixar o tal assunto e começou a dizer que devia procurá-lo a
si para que desse uma olhadela, pois era a pessoa que talvez pudesse fazer alguma coisa.
Estava a ficar muito agitado, por isso prometi-lhe contratar Costello para o localizar. A
minha sociedade recorre muito a ele.
Fazia algum sentido, mas o primeiro pensamento de Reacher foi: «Porquê eu?» As
Páginas Amarelas de Manhattan estavam cheias de investigadores.
— Quem foi a pessoa que ele encontrou na consulta de cardiologia?
Jodie encolheu os ombros, desgostosa.
— Não sei. Não chegámos a falar sobre isso.
— Çostello veio cá? Discutiu o assunto directamente com ele?
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
— Eu telefonei-lhe e disse-lhe que pagávamos um adiantamento através da sociedade, o que
fiz. No entanto, ele tinha de vir cá para se inteirar dos pormenores. Telefonou-me um ou
dois dias depois e contou-me que conversara com o meu pai e que tudo se resumia a
encontrá-lo a si.
— Por isso é que ele me disse que Mrs. Jacob era o cliente — comentou Reacher —, e não
Leon Garber. Portanto, eu não lhe liguei e assim provoquei-lhe a morte.
— O que aconteceu é óbvio, não? — contrapôs ela, abanando a cabeça. — O meu pai contou a
história a Çostello, que deve ter tentado
um atalho qualquer antes de ir à sua procura, perturbando inadvertidamente algum ninho
de víboras, que ficaram alerta. Mataram-no na tentativa de descobrirem quem ele
procurava e porquê. Não fazia qualquer diferença você ter-se identificado. Eles não
deixariam de ir atrás de Costello para lhe perguntar quem o tinha posto na sua peugada.
Portanto, em última análise, quem fez que o matassem fui eu.
Reacher abanou a cabeça.
— Foi Leon. Por intermédio de si.
Mais uma vez, ela abanou a cabeça.
— Foi a pessoa na clínica de cardiologia. Essa pessoa, por intermédio do meu pai, por
meu intermédio.
— Preciso de a descobrir — concluiu ele. — Se Eeon estava preocupado com qualquer
coisa, eu também estou preocupado.
Jodie exprimiu a sua concordância com um aceno de cabeça silencioso, e Reacher
retomou a palavra:
— E há a secretária. Hão-de ter-lhe perguntado quem era o cliente, e ela deve tê-los
informado. Mesmo que não tenha, os tipos descobrem de qualquer maneira. A mim,
bastaram-me trinta segundos e uma chamada telefónica. Portanto, agora hão-de vir à
sua procura. Você não pode ficar aqui. Isto é muito isolado. Tem casa na cidade?
— Claro — respondeu Jodie. — Um último andar na Lower Broadway.
— Veio de carro?
— Está na garagem — assentiu ela. — Mas ia passar cá a noite. Tenho de tratar da
papelada, fechar tudo.
— Faça isso agora — aconselhou Reacher. — O mais depressa possível, e vá-se embora.
Estou a falar a sério, Jodie. Quem quer que esta gente seja, não brinca em serviço.
A expressão de Reacher transmitia mais do que as palavras. Ela apressou-se a
corresponder com um aceno de cabeça e levantou-se.
— Então, vamos à secretária. Você pode ajudar-me.
Leon Garber cumprira quase cinquenta anos de serviço militar em diversas unidades, e
isso era evidente logo ali na sua secretária. As gavetas de cima continham canetas, lápis e
réguas, tudo em filas arrumadinhas. As gavetas inferiores, com o dobro da altura,
continham pastas de arquivo em fole. Cada pasta tinha um rótulo escrito em letra cuidada.
A filha passou os dedos e os olhos por elas, acabando por tirar todas as pastas de cada
uma das gavetas. Reacher encontrou no armário do escritório uma velha mala de cabedal,
e ambos carregaram as pastas directamente lá para dentro. Fecharam a mala com esforço.
— Vou buscar as minhas coisas — declarou ela. — Cinco minutos, está bem?
Ele apagou a luz e levou a mala para fora da divisão. Parou no corredor silencioso e
olhou em redor. A casa era agradável. Parecia evidente ter sofrido uma expansão a certa
altura da sua história. Havia um núcleo central de divisões e depois outras que davam
para o corredor em L onde ele se encontrava. Percorreu-o até à sala. As janelas davam
para o jardim e o rio, com os edifícios de West Point visíveis do ângulo da lareira. A
decoração era sóbria: sobrado neutro, paredes cremes, mobília pesada. Um televisor
antigo. Livros, quadros, fotografias. Nada a condizer. Era uma sala sem intervenção de
decoradores, cómoda, vivida.
— Muito bem, acho que estou pronta — disse Jodie, aparecendo à porta da divisão com uma
mala de viagem de cabedal. Despira o fato preto do funeral e envergava agora um par de
Levi ’s desbotadas e uma sweatshirt azul-clara que lhe captava a cor dos olhos e realçava o
mel-claro da pele. Os últimos quinze anos não lhe tinham feito mal nenhum.
Encaminharam-se para a cozinha, onde trancaram a porta que dava para o jardim.
Regressaram ao vestíbulo e abriram a porta da frente.
TRÊS
Reacher foi o primeiro a sair. Em circunstâncias normais, teria deixado
Jodie passar à frente porque a sua geração ainda albergava os últimos resquícios de boas
maneiras, mas a casa era dela, que teria de a fechar à chave. Portanto, ele foi o primeiro
a sair para o alpendre, e foi a ele que os dois tipos viram primeiro. Hobie dissera-lhes
que despachassem o matulão e levassem Mrs. Jacob. O tipo da esquerda sentiu a porta
principal abrir-se, viu que era o matulão e disparou. O da direita estava em má posição.
O guarda-vento abriu-se mesmo para cima dele. Isso em si não constituía obstáculo, mas
o caixilho da rede bateu-lhe na mão em que empunhava a arma no momento em que a
assestava, o que o fez hesitar uma fracção de segundo. Agarrou no caixilho com a mão
esquerda à frente do corpo, puxou-o para si e contornou-o, erguendo a mão direita.
Entretanto, Reacher entrara instintivamente em acção. Tinha quase trinta e nove anos e as
suas recordações de trinta e cinco desses anos eram quase só de serviço militar: do pai,
dos pais dos amigos, o seu próprio, o dos amigos. Assim, uma porção do seu cérebro
considerava absolutamente razoável transpor uma porta numa tranquila cidade-satélite de
Nova Iorque e avistar dois homens que vira pela última vez a mais de três mil
quilómetros de distância, nas Keys, agachados e a apontarem-lhe pistolas de 9 mm. Não
houve choque, medo paralisante nem pânico. Apenas a reacção instantânea a um
problema. Fez duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, usou toda a força do seu ombro
esquerdo para rodar a pesada mala para a frente e para o lado. Segundo, girou o braço
direito para trás, atingindo Jodie no peito e atirando-a de novo para dentro da casa. Ela
recuou um passo e a mala em movimento aparou a primeira bala. Reacher sentiu o
impacte transmitir-se-lhe à mão, mas não deteve o movimento. Aflorou com a mala a cara
do tipo da esquerda, o que foi suficiente para o derrubar, deixando de momento de
constituir problema. Contudo, Reacher não ficou a assistir, pois o seu olhar já recaía no
outro, que contornava o guarda-vento com a arma a uns quinze graus da posição de tiro.
Reacher aproveitou a inércia da mala em rodopio para se atirar para diante. Deixou-se
arrastar pela pega agarrada pelas pontas dos dedos em gancho, mergulhando pelo
alpendre. A arma girou e bateu-lhe de chapa no peito. Ouviu o disparo e sentiu a
explosão chamuscar-lhe a pele. A bala saída de lado passou-lhe sob o braço esquerdo
erguido e foi perder-se na garagem distante, sensivelmente ao mesmo tempo que o seu
cotovelo direito atingia o tipo na cara. Um cotovelo em movimento impulsionado por
cento e dez quilos de um corpo em mergulho causa grandes danos. Apanhou o tipo no
queixo, e a onda de choque subiu-lhe pela articulação do maxilar. Reacher percebeu pela
queda desarticulada que aquele ia ficar algum tempo sem sentidos. O guarda-vento estava
a fechar-se, impulsionado pela mola. e o tipo da esquerda afastava-se de lado sobre as
tábuas do alpendre a tentar alcançar a Beretta que lhe fugira. Jodie estava no limiar da
porta com as mãos no peito, arquejante. Jodie era o problema. Estava a quase dois
metros e meio de Reacher, e o tipo da esquerda encontrava-se entre eles. Se conseguisse
apanhar a arma e a apontasse à direita, teria Jodie na mira. Reacher empurrou o tipo
inconsciente e atirou-se para a porta. Puxou o guarda-vento e mergulhou para o interior.
Arrastou Jodie um metro para dentro do vestíbulo e bateu com a porta, que vibrou três
vezes quando o tipo disparou atrás dele, fazendo saltar lascas de madeira pelo ar.
Reacher trancou a porta e puxou Jodie na direcção da cozinha.
Marilyn Stone era de opinião de que apresentar uma casa com pouca mobília
aumentava a sensação de espaço. Portanto, os primeiros a chegar tinham sido os homens
das mudanças. Mandara-os levar a credência do vestíbulo e depois a poltrona de Chester
da saleta. Não por se tratar de uma peça de má qualidade, mas por estar indiscutivelmente
a mais. Era a cadeira preferida dele, escolhida como os homens escolhem as coisas, por
comodidade e por as reconhecerem, não por terem estilo e serem adequadas. No dia-a-
dia, dava à divisão um aspecto confortável e vivido, transformando-a de interior de
revista de decoração em casa de família. Por isso mesmo, linha de se ir embora.
A florista chegou a seguir com caixas de cartão baixas cheias de botões. Marilyn
mostrou uma revista europeia à rapariga e disse-lhe que copiasse os arranjos. O tipo da
imobiliária para que Sheryl trabalhava entregou o letreiro com vende-se e ela mandou
pô-lo na berma, perto da caixa do correio. Chegou depois o grupo de jardineiros, e a
dona da casa acompanhou o chefe numa volta pelo jardim, explicando o que tinha de ser
feito. De súbito, sentiu-se resplandecer de satisfação com os seus progressos.
Ambos o acompanharam à saída para se despedir, o velhote empurrando devagar o
cilindro à sua frente, usando-o em parte como bengala, em parte impelindo-o como um
carrinho de golfe. A mulher seguia-o. Reacher era o último da fila, com a pastinha de
cabedal debaixo do braço. A velhota manobrou a tranca da porta, e o marido parou,
ofegante, agarrado à pega do carrinho. A porta abriu-se, deixando entrar um doce ar puro.
— Ainda há por aí alguns velhos amigos de Victor? — perguntou Reacher. — Gostava de
conhecer os antecedentes.
Eles pareceram ficar confusos, mas não deixaram de pensar no assunto.
— Ed Steven, suponho, da drogaria — acabou por sugerir Mr. Hobie. — Era unha com carne
com Victor, lá isso era. Todavia, isso foi há trinta e cinco anos. Não vejo que importância
possa ter agora.
Reacher acenou com a cabeça.
— Ligo-vos assim que souber alguma coisa — prometeu. — Obrigado pelo café e pelo bolo. E
lamento imenso a situação em que se encontram.
Eles não responderam. Fora um comentário desajeitado. Trinta anos de sofrimento.
Todas as poupanças gastas a mandarem um tipo ao Vietname para uma reles fotografia. E
ele lamentava imenso a situação em que se encontravam? Virou-se, apertou-lhes as mãos
frágeis e saiu. Regressou ao Taurus e dirigiu-se para Brighton, a sul. A estrada não
tardou a alargar. Apareceram uma bomba de gasolina e um quartel de bombeiros, um
supermercado com ampla zona de estacionamento, um banco, uma fileira de lojecas um
pouco recuadas em relação à rua.
Reacher passou devagar pelo supermercado e avistou um barracão grande isolado:
Drogaria Steven. Dirigiu-se para lá e parou junto de uma zona de armazenagem de
madeiras.
A entrada dava para um labirinto de corredores onde estavam expostas numerosas
coisas que Reacher nunca precisara de comprar: parafusos, pregos, ferramentas, latas de
tinta. O labirinto desembocava num núcleo central onde quatro balcões desenhavam um
quadrado. Lá dentro, encontravam-se um homem e dois rapazes, todos de calças de ganga,
camisas e aventais encarnados de lona. O homem era baixo e magro, rondando os
cinquenta anos, e os rapazes eram nitidamente filhos dele.
— Ed Steven? — perguntou Reacher.
O homem anuiu de cabeça e ergueu as sobrancelhas, com o ar de quem tem trinta anos
de experiência em responder a perguntas.
— Posso perguntar-lhe umas coisas sobre Victor Hobie?
— Nova investigação encomendada pelos pais? — indagou o indivíduo.
Reacher confirmou com um aceno de cabeça.
— Preciso de ter umas luzes sobre que espécie de homem era. Consta que o senhor o
conhecia bastante bem.
— Sim, acho que sim, mas não passávamos de garotos. Andámos sempre juntos na escola,
acabámos o secundário no mesmo dia. Depois, só tornei a vê-lo uma única vez, quando
veio a casa de licença. Passara um ano no Vietname e ia voltar para lá.
— Que género de pessoa era?
— Tenho um certo pejo em dar-lhe a minha opinião — replicou o outro, encolhendo os
ombros.
— Porquê? Alguma coisa desagradável?
— Não, nada disso. Não há nada a esconder. Era bom rapaz. Só que é dar-lhe a opinião
de um miúdo sobre outro, e é uma opinião com trinta e cinco anos, percebe? Pode não
ser correcta.
Reacher assentiu com um aceno de cabeça.
— Sim, compreendo. Vou ter isso em conta.
— Victor era um tipo certinho — prosseguiu o dono da loja —, normalíssimo.
Interessava-se pelas mesmas coisas que todos nós, acho eu: basebol, Elvis, gelados e o
Zorro. O costume.
— O pai disse-me que ele sempre quis ser militar.
— Todos queríamos. Primeiro, eram cowboys e índios, depois, militares.
— Então, você também esteve no Vietname?
— Não — respondeu o outro, abanando a cabeça. — Eu a modos que ultrapassei a fase
militar. Não por ser contra. Tem de compreender que isto se passou muito antes de cá
chegar a moda dos cabelos compridos e dos protestos. Não, simplesmente comecei a
achar uma coisa antiquada, pertencente ao passado, percebe? Eu queria dedicar-me ao
negócio. Pretendia transformar a loja do meu pai num potentado. Parecia-me mais
genuinamente americano do que ir para a tropa.
— Como é que Victor reagiu a isso?
— Bem, eu não era contra a guerra, nem nada que se parecesse, foi apenas uma opção
pessoal. Eu queria avançar com os tempos, Victor queria as forças armadas. Ele queria
cumprir o seu dever. Por aqui, éramos todos muito sérios e antiquados, Victor talvez
um pouco mais do que os restantes.
— Era esperto?
— Saiu-se bem nos estudos, sem propriamente rebentar as escalas.
— Alguma vez teve problemas?
Steven pareceu impacientar-se.
— Problemas? Você não me ouviu bem. Victor era direito como um fuso.
— Que tal lhe pareceu quando o viu pela última vez? Entre as duas comissões de serviço.
Steven matutou.
— Um pouco mais velho, acho eu. Eu crescera um ano, ele aparentava ter crescido cinco.
Organizaram um desfile quando regressou por ter ganho uma medalha. Ficou muito
embaraçado, disse que a medalha não era nada de especial. Depois, voltou a partir. Nunca
mais regressou.
— E quanto ao mistério? Acerca do que lhe sucedeu.
O dono da loja abanou a cabeça, taciturno.
— Não há mistério. Morreu. Eles são apenas dois velhotes que se recusam a aceitar a realidade,
nada mais.
Caiu em silêncio, e Reacher agradeceu-lhe pela conversa e acrescentou:
— Tenho de ir almoçar. Ainda não comi nada.
— Vire para sul. Há um snack-bar logo a seguir à estação dos comboios. Era onde
costumávamos ir tomar batidos às nove e meia da noite de sábado, sentindo-nos
praticamente o Frank Sinatra.
O snack-bar modificara-se desde que Ed e Victor lá tinham bebido os seus batidos
ao sábado à noite. Agora, aparentava um estilo anos 70, baixo e quadrangular, com um
brilho de fim de século sob a forma de elaborados letreiros de néon em todas as montras.
Reacher sentou-se ao balcão e pediu um bife grande. A seguir, abriu a pastinha de
cabedal.
Concentrou-se nas cartas de Victor para os pais. Havia treze dos aquartelamentos de
recruta e catorze do Vietname. Corroboravam tudo o que Reacher ouvira a Ed Steven.
Gramática correcta, ortografia correcta, expressões concisas. Pessoa delicada,
cumpridora, convencional, bem instruída, não sendo no entanto nenhum génio.
A empregada serviu-o, e ele continuou a folhear o processo. A fotografia tirada após o
juramento de bandeira em Rucker era mais difícil de interpretar. A pala do boné punha os
olhos de Victor bem na sombra. Os ombros estavam para trás, e o corpo, tenso. A
rebentar de orgulho ou com vergonha da mãe? Era difícil de perceber. Reacher acabou
por se decidir pelo orgulho por causa da boca. Uma linha direita ligeiramente retorcida
para baixo nos cantos, o tipo de boca que precisa do domínio firme sobre os músculos
faciais para evitar um enorme sorriso de alegria. Era um tipo no seu auge. Todos os
objectivos conseguidos, todos os sonhos realizados. Duas semanas depois, estava no
ultramar.
Reacher pagou a conta, deixando dois dólares de gorjeta à rapariga. Demasiado cedo
para ir directo à Wall Street. Jodie dissera sete horas. Tinha, no mínimo, duas horas para
gastar. Esgueirou-se para dentro do Taurus, abriu o mapa sobre a rígida superfície de
cabedal da pastinha e estudou o caminho até à Auto-Estrada do Rio Bronx, que o levava
directo ao Jardim Botânico, que ele muito desejava visitar.
Marilyn verificou o trabalho da equipa de limpeza antes de a deixar partir, e estava
perfeito. Na alcatifa do vestíbulo fora usado um aparelho de vapor, não devido à
sujidade, mas sim por ser a melhor maneira de tirar as marcas deixadas pelos pés da
credencia.
Tomou um duche prolongado e depois vestiu-se. Envergou o veslido preferido de
Chester, de seda rosa-velho, que lhe chegava quase até ao joelho e sublinhava todos os
sítios certos, como se tivesse sido leito por encomenda. Até fora, embora Chester o
ignorasse. O marido estava convencido de que fora uma sorte no pronto-a-vestir. Marilyn
usava-o quando lhe parecia que Chester precisava de uma recompensa. Ou de distracção.
E esta noite ia precisar de distracção. la chegar a casa e encontrá-la à venda, com a
mulher no comando. I 'osse como fosse que ela encarasse a questão, seria um fim de dia
difícil.
Escolheu os Gucci de salto alto que condiziam com a cor do vestido e faziam as suas
pernas parecerem mais altas. A seguir, desceu para a cozinha, e estava a almoçar (uma
maçã e um quadradinho de queijo magro) quando o telefone tocou. Era Sheryl.
— Marilyn? Seis horas no mercado, e o isco já foi mordido!
— Sim? Por quem? E como?
— É um cavalheiro que vai mudar-se para cá com a família. Andava a passear pela zona a ver se
se adaptaria e viu o letreiro. Veio logo cá informar-se dos pormenores. Posso levá-lo aí?
— Caramba, já? Neste momento? É rápido, não é? Bem, acho que estou a postos. Quem é ele,
Sheryl? Achas que se trata de um comprador a sério?
— Sem dúvida, e só cá está hoje. Tem de voltar hoje à noite para casa.
— Bom, está bem, acho que podes trazê-lo. Fico à espera.
Correu pelo vestíbulo. Na salinha, abriu por completo as persianas para se ver a
piscina. A seguir, inspeccionou todas as divisões, deitando olhares críticos, ajustando
arranjos florais, sacudindo almofadas. Ouviu o carro de Sheryl no saibro ao mesmo
tempo que se olhava ao espelho. Santo Deus! Já estavam a chegar à porta, a tocar à
campainha. Inspirou, sacudiu as ancas para soltar o tecido e atravessou o vestíbulo.
Voltou a inspirar fundo e abriu a porta.
Sheryl fitou-a, radiante, mas Marilyn já estava a olhar para o comprador. Era alto,
rondando os cinquenta e cinco anos, envergava fato escuro e postara-se de lado, a
contemplar a sebe que ladeava o caminho de acesso. A dona da casa trocou com Sheryl
um rápido sorriso conspirador e virou-se para o homem.
—Entrem — convidou, animada, estendendo a mão.
Ele voltou-se, deixando de prestar atenção ao jardim, e fitou-a a direito, franca e
ostensivamente. E Marilyn deu por si a retribuir-lhe o olhar, pois o recém-chegado tinha
terríveis marcas de queimaduras.ETm lado da cabeça não passava de um conjunto de
brilhantes cicatrizes róseas. Ela manteve o sorriso delicado e a mão estendida para o
visitante. Este fez uma pausa e só depois levantou a mão ao encontro da sua. Todavia, não
se tratava de uma mão. Era um gancho de metal brilhante, uma desagradável curva
metálica feita de aço cintilante.
Reacher parou junto ao passeio, à porta do edifício de sessenta andares na Wall Street,
dez minutos antes das 7. Manteve o motor a trabalhar e pesquisou a praceta fronteira à
porta de saída do edifício. Nada que o preocupasse. Ninguém parado, ninguém a
observar, apenas uma torrente de empregados de escritório em saída apressada.
Ela apareceu antes das 7. Atravessou um raio de sol e entrou no carro.
— Olá, Reacher — cumprimentou.
— Olá, Jodie.
Ela sabia qualquer coisa. Percebia-se pela expressão. Tinha grandes notícias para lhe
dar, mas o seu sorriso indicava que não ia revelar-lhas à primeira.
— O que foi? — perguntou ele.
— Você primeiro. — Ela sorriu de novo, abanando a cabeça.
Reacher contou-lhe tudo o que o casal de velhotes lhe dissera. O
sorriso dela desvaneceu-se numa expressão sombria. Depois, Reacher deu-lhe a pastinha
de cabedal e deixou-a examinar o conteúdo enquanto ele conduzia até casa dela.
Entrou directamente na garagem. O automóvel era diferente, e ele achou que, se alguém
estivesse à espera, havia de hesitar o tempo suficiente para lhe proporcionar toda a
vantagem de que precisava. No entanto, a garagem estava tranquila. Estacionou o Taurus
no lugar e subiram os degraus de metal de acesso ao átrio, que estava vazio. Ninguém no
elevador, ninguém no corredor do quarto andar. Jodie abriu a porta e entrou à frente dele.
— Então, é o Governo que anda atrás de nós — comentou. — Estamos a aproximar-nos do
segredo desses campos, e o Governo tenta silenciar-nos. A CIA, ou seja lá quem for.
Reacher foi directamente para a cozinha. Abriu a porta do frigorífico e tirou uma
garrafa de água.
— Estamos em grave perigo — continuou ela. — Você não parece levar o caso muito a sério.
Não acredita?
— Acredito — respondeu Reacher. — Acredito em tudo que eles me contaram.
— E a fotografia prova-o, não é? A existência do lugar é real.
— Sei que existe. Eu estive lá — assentiu Reacher.
— Esteve lá? — perguntou ela, de olhos arregalados. — Quando? Como?
— Há pouco tempo. Cheguei quase tão perto quanto o tal Rutter.
— Por amor de Deus, Reacher — insistiu Jodie. — Devíamos ir à Polícia. Ou aos jornais, talvez.
—
— Espere aqui por mim, está bem?
Aonde vai?
— Vou comprar uma arma. Depois, compro piza para dois e jantamos aqui.
— Não pode comprar uma arma em Nova Iorque, por amor de Deus. Há leis. Precisa de
identificação, de licença, de uma data de
coisas.
— Posso comprar uma arma em qualquer lado — ripostou Reacher. — Especialmente em Nova
Iorque. Tranque a porta assim que eu sair, está bem? E não a abra senão quando me vir pelo
óculo.
Deixou-a na cozinha, desceu até ao átrio pelas escadas de emergência e deteve-se na
confusão do passeio o tempo suficiente para se orientar. Havia uma loja de pizas no
quarteirão a sul. Entrou e encomendou uma das grandes, metade com anchovas e pickles e
a outra metade com malagueta, para sair dali a meia hora. Depois, atravessou a
Broadway pelo meio do trânsito em direcção a leste.
Ao fim de dez minutos a andar depressa, encontrou o que procurava nas sombras das
proximidades da Ponte de Brooklyn. Era um emaranhado de ruas e um grande bairro de
habitação social. Lojas rascas apinhadas e um campo de basquetebol. Contornou uma
esquina e parou encostado à vedação de arame, com os ruídos do jogo atrás de si e a
assistir à colisão de dois mundos. O fluxo de trânsito era rápido e as pessoas
caminhavam à pressa. Por vezes, um veículo parava e um miúdo precipitava-se para a
janela do condutor. Havia
uma breve conversa, com dinheiro a mudar de mãos, e o miúdo regressava à mesma
velocidade a uma porta por onde desaparecia. Reaparecia pouco depois e corria de novo
para a viatura. O condutor relanceava o olhar para a esquerda e para a direita, aceitava um
pacotinho e reentrava no fluxo de trânsito com uma nuvem de gases de escape e o apitar de
buzinas.
O tráfico realizava-se por vezes a pé, mas o sistema era sempre igual. Os miúdos eram
os intermediários. Transportavam o dinheiro para dentro e os pacotinhos para fora, sendo
todos demasiado novos para poderem ser levados a julgamento. Reacher percebeu que se
dirigiam a três portas em especial, espaçadas nas frontarias do quarteirão. A central era a
que testemunhava mais actividade. Correspondia ao décimo primeiro prédio a contar da
esquina a sul. Reacher desencostou-se e deu a volta até ao estreito beco por detrás dos
edifícios.
Olhava em frente ao caminhar, contando onze escadas de emergência. Baixou o olhar
para o nível do chão e viu um carro preto encafuado no espaço estreito em frente da
décima primeira porta das traseiras. Um jovem com os seus dezanove anos sentara-se no
capô. A sentinela das traseiras.
Reacher entrou no beco. Fingiu ver as horas e depois olhar em frente à distância.
Estugou o passo, quase correndo. No último momento, baixou os olhos para o carro, como
se o obstáculo o tivesse atraído subitamente de volta à realidade. O jovem observava-o.
Reacher desviou-se para a esquerda, onde sabia que o ângulo do carro não lhe permitiria
passar. Parou, exasperado, e virou para a direita, a fumegar com a raiva de alguém
apressado e atrasado por um incómodo. Rodou o braço esquerdo ao mesmo tempo que
dava a volta, atingindo o rapaz em cheio na fronte. O tipo desequilibrou-se e caiu no chão
da viela. Reacher fê-lo rolar e revistou-lhe os bolsos. Encontrou uma arma, mas não das
que queria. Uma .22 chinesa, imitação de uma imitação soviética de uma arma com todas
as probabilidades de já ser inútil à partida. Atirou-a para debaixo do automóvel, fora de
alcance.
Sabia que a porta das traseiras não estaria fechada à chave, facto essencial para quem
trafica ilegalmente menos de cento e cinquenta metros a sul da Police Plaza. Perante um
ataque frontal, é preciso fugir pelas traseiras sem ter de se procurar a chave. Entreabriu a
porta
tom a ponta do pé e habituou a vista à escuridão. Uns dez passos para a direita ficava
uma sala com a luz acesa.
Avançou dez passos, parou à porta e ficou à escuta. Ouviu uma voz baixa dentro da
divisão. Seguiu-se uma resposta. Duas pessoas, no mínimo.
Inspirou e entrou de rompante. A porta oscilou nos gonzos, e ele atravessou a sala em
duas grandes passadas. Dois homens. Pacotes em cima da mesa. Dinheiro. Uma arma.
Atingiu o primeiro tipo na têmpora com um movimento largo. A vítima caiu de lado, e
Reacher passou por ela, com uma joelhada no baixo ventre na reviravolta, para se dirigir
ao segundo homem, que entretanto começara a levanlar-se da cadeira, boquiaberto de
estupefacção. Reacher investiu alto, embatendo com o antebraço na testa do tipo.
Imobilizou-se e escutou para além da porta. Nada. O tipo do beco ficara inconsciente,
e os ruídos da rua distraíam os rapazes de serviço no passeio. Olhou de soslaio para a
mesa e logo desviou o olhar, pois a arma lá pousada era um Colt Detective. Um revólver
.38 de seis balas. Cano grosso e curto de duas polegadas. Inútil. Virou costas à mesa e
agachou-se junto do tipo que atingira na têmpora, começando a revistar-lhe o casaco.
Encontrou precisamente o que queria no bolso interior: uma grande automática preta,
Steyr GB de 9 mm, uma beleza, a preferida de há longa data pelos seus amigos das
Forças Especiais. Pegou-lhe, enfiou-a no cós das calças atrás e sorriu. Acocorando-se
junto do tipo inconsciente, sussurrou:
— Compro a Steyr por um dólar. Basta abanares a cabeça se não concordares, está
bem?
Voltou a sorrir e levantou-se. Arrancou uma nota de dólar do seu maço e deixou-a em
cima da mesa. Refez os dez passos de regresso polo corredor e saiu para a luz. Verificou
os dois lados da viela e encaminhou-se na direcção do carro estacionado. Abriu a porta
do condutor, descobriu a alavanca e escancarou o porta-bagagem. Conlinha um saco de
desportista de nylon preto vazio. Uma caixinha de cartão com balas de 9 mm encontrava-
se sob um emaranhado de cabos eléctricos. Pôs as munições no saco e afastou-se. A piza
aguartlava-o quando regressou à Broadway.
Aconteceu inesperadamente. Assim que entraram e a porta se íechou, o homem atingiu
Sheryl na cara com um golpe terrível do
que quer que tinha dentro da manga vazia. Marilyn ficou paralisada com o choque. Viu a
outra cair para trás, esparramada sobre a alcatifa. Viu a arma descrever uma curva na sua
direcção num movimento simétrico.
— Chegue aqui — ordenou o intruso.
Ela estava paralisada. Tinha as mãos na cara e os olhos tão arregalados que ele achou
que lhe rebentariam a pele do rosto.
— Mais perto — disse o homem.
Ela fitava a amiga, que se esforçava por se erguer nos cotovelos. Escorria-lhe sangue
pelo nariz e o lábio superior começara a inchar. Tinha a respiração entrecortada. Os seus
cotovelos acabaram por ceder, deslizando para a frente, e a cabeça de Sheryl bateu no
chão com um baque.
— Chegue aqui — repetiu o homem.
Marilyn arrastou os pés para diante até a arma lhe tocar no tecido do vestido. Sentiu a
frieza do metal cinzento através da seda fina. Ele levantou o braço direito. O gancho.
Manteve-o erguido em frente dos olhos dela. Era uma simples curva de aço polido
cintilante, com a ponta afiada. Ele encostou-lhe à testa a parte plana da curva. Ela
estremeceu. O intruso fê-lo roçar pela face de Marilyn, descer do queixo pelo pescoço
sob o maxilar até a obrigar a erguer a cabeça com a força exercida pelo ombro. Fitou-a
olhos nos olhos.
— Chamo-me Hobie — declarou.
Marilyn estava em bicos de pés, tentando aliviar o peso do pescoço. Começava a
sentir-se asfixiar.
— Chester falou-lhe de mim?
A cabeça dela estava inclinada para cima, fitando o tecto. Ela abanou a cabeça num
breve movimento aflito.
— Não — arquejou.
— Contou-lhe os problemas dos negócios?
Marilyn pestanejou. Abanou de novo a cabeça.
— Então, é um homem muito metido consigo.
— Acho que sim — arfou a mulher. — Seja como for, eu já tinha percebido.
— Ele tem alguma amante?
Ela voltou a pestanejar. Abanou a cabeça.
— Acho que não precisa de amante. A senhora é uma mulher bonita. — O gancho
abrandou. A linha de visão de Marilyn regressou à
horizontal e os saltos tocaram na alcatifa. — Uma mulher muito bonita. — Deixou cair o
gancho do pescoço da vítima. Tocou-lhe com ele na cintura. Descreveu-lhe a curvatura
da anca. Sheryl mexeu-se no chão. O gancho parou e o horrível olho direito de Hobie
rodou na direcção dela. — Meta a mão no meu bolso — ordenou a Marilyn, i|uc ficou
especada a olhar para ele. — A sua mão esquerda. No meu bolso direito.
Ela teve de se aproximar e baixar a mão entre os braços do intruso. Tacteou o interior
do bolso. Os dedos fecharam-se-lhe em torno de um rolo de fita adesiva larga. Retirou-a.
Hobie afastou-se dela.
— Vá amarrar os pulsos de Sheryl um ao outro com a fita — instruiu. — Vire-a e una-lhe os
cotovelos.
Ela hesitou. O homem levantou um pouco a arma e a seguir o gancho, numa exibição de
armamento superior. Marilyn fez um esgar antes de recorrer a ambas as mãos para deitar
a amiga de borco e lhe unir os cotovelos atrás das costas. Raspou com uma unha na fita e
levantou a ponta, enrolando-a várias vezes em redor dos antebraços de Sheryl, logo
abaixo dos cotovelos.
— Muito bem, sente-a — ordenou Hobie.
Ela arrastou-a para a posição de sentada, com os braços colados atrás. A cara de
Sheryl era uma máscara de sangue com o nariz inchado.
— Tape-lhe a boca com fita — continuou o homem.
Marilyn cortou um comprimento de quinze centímetros com os dentes. Sheryl
pestanejava, tentando focar os olhos. Marilyn dirigiulhe um triste encolher de ombros,
numa espécie de desculpa impolente, e colou-lhe a fita na boca. Era espessa, com reforço
de tecido inserido no revestimento de plástico prateado. Ela passou-lhe os dedos por
cima para a fazer aderir. Os olhos da vítima esbugalharam-se de pânico.
— Meu Deus, ela não consegue respirar — ofegou Marilyn. — Você partiu-lhe o nariz. — Ia
arrancar a fita, mas Hobie deu-lhe uma sapatada na mão e apontou-lhe a arma à cabeça. A meio
metro de distância. — Ela vai morrer — protestou.
— Lá isso vai — ripostou o intruso.
Marilyn fitou-o, horrorizada. O sangue gorgolejava nas vias respiratórias fracturadas
da amiga. Tinha os olhos fixos, em pânico.
— Quer que eu seja simpático? — perguntou o homem a Marilyn.
Ela acenou freneticamente que sim.
Ele inclinou-se e virou o gancho de modo que a ponta roçasse a fita sobre a boca de
Sheryl, que abanava a cabeça. Fez então força e enterrou a ponta na fita. A vítima
imobilizou-se. Hobie mexeu o braço, alargando o buraco. Retirou de novo o gancho. A
fita tinha um buraco irregular por onde o ar assobiava ao entrar e sair. Sheryl arquejava,
ofegante.
— Fui simpático — declarou o intruso. — Portanto, agora está em dívida para comigo,
certo?
Chester Stone encontrava-se sozinho na casa de banho do octogésimo oitavo andar,
para onde Tony o forçara a entrar. Stone caminhara pela alcatifa em camisola interior e
boxers, meias escuras e sapatos de verniz. Depois, Tony fechara-lhe a porta. Passados
poucos minutos, os dois homens deviam ter saído, pois Chester ouviu portas a fecharem-
se e o zunido do elevador nas proximidades. Depois, ficou tudo escuro e em silêncio.
Ele esperou uma hora inteira sentado no chão, de olhos fitos na porta, que não fora
trancada à chave. Estava com frio, cãibras, fome, magoado e assustado. Devagar,
levantou-se, à escuta. Nada. Ficou parado com a mão no puxador da porta. Apurou o
ouvido. Continuava a não se ouvir nada. Abriu a porta. O enorme gabinete estava vazio.
Atravessou-o sem ruído até à recepção. A porta para o corredor fora trancada. Ele
abanou a maçaneta e ficou longo tempo parado a espreitar pelo vidro reforçado com rede
metálica para os botões do elevador, a dez metros de distância.
Elavia um telefone no balcão de recepção, mas quando lhe pegou, o mostrador de
cristais de quartzo anunciou desligado. Premiu o botão que dizia ligar e no pequeno visor
surgiu o pedido de código. Carregou em algarismos ao acaso e no mostrador reapareceu
desligado.
Voltou ao gabinete de Hobie e encaminhou-se para a parede envidraçada. Afastou as
réguas do estore e espreitou lá para fora. Tinha de fazer qualquer coisa. Mas estava a
oitenta e oito andares de altura, sem vizinhos em frente a quem pudesse acenar a pedir
ajuda. Era inútil. Estava numa prisão. Ficou parado, trémulo, de olhos fixos no vazio,
antes de se virar e reencaminhar com lentidão para a casa de banho.
SEIS
Trinta andares acima da 5.a Avenida, Hobie acordou pouco passava das 6 da
manhã, o que para ele era mais ou menos normal, dependendo da intensidade do
pesadelo com o fogo. Trinta anos são eerca de onze mil noites, e todas elas ele
sonhara com o incêndio. O cockpit separara-se da secção da cauda e a fractura
rasgara o depósito de combustível. O combustível derramara-se. Todas as noites,
ele via-o aproximar-se em horrível câmara lenta. Era líquido, globular e adquiria
formas sólidas, como gigantescas gotas de chuva distorcidas. Noite após noite,
virava a cabeça na mesmíssima sacudidela convulsiva, mas elas atingiam-no
sempre. Salpicavam-lhe a cara. Chegavam-lhe ao cabelo, que colavam à testa, e
escorriam-lhe lentamente para os olhos. Cheiravam a quente, como fogo, mas a
sensação era de frio, como de gelo. Depois, a forma escura da pá de rotor cm
curva descendente. Quebrava-se contra o peito do tipo chamado Bamford, e um
fragmento aguçado atingia-o mesmo a meio do antebraço.
Vira a mão soltar-se. A lâmina da pá passara-lhe pelos ossos do braço,
dividindo o antebraço em dois. Levantando o antebraço cortado, ele tocara com ele
na cara, tentando descobrir a razão de a pele lhe produzir uma sensação de frio,
apesar de cheirar a quente.
Percebeu mais tarde que essa acção lhe salvara a vida. As chamas intensas
tinham-lhe cauterizado as artérias. Se não tivesse levado o antebraço até ao rosto
queimado, ter-se-ia esvaído em sangue.
Permaneceu consciente durante cerca de vinte minutos. Fez o que tinha a fazer
dentro do cockpit e arrastou-se para longe dos destroços. Conseguiu internar-se no
mato e não parou até começar a agonia. Sobreviveu a vinte minutos dela e então
desmaiou.
Não recordava quase nada das três semanas seguintes até recobrar a
consciência no hospital. Certa manhã, acordou a flutuar numa nuvem de morfina.
Sentia-se melhor do que alguma vez se sentira em toda a sua vida. Contudo, fingiu
continuar em grande sofrimento. Desse modo, adiariam a sua repatriação.
A evacuação do hospital apanhou-o de surpresa. Ouviu os enfermeiros a
fazerem planos para a manhã seguinte. Fugiu de imediato. Não havia guardas. Só
um enfermeiro que, por acaso, andava a passear junto da cerca. O enfermeiro
custou-lhe uma preciosa garrafa de água, que lhe partiu na cabeça, mas não o
atrasou mais de um segundo.
A primeira tarefa foi recuperar o dinheiro. Estava enterrado a uns oitenta
quilómetros, num local secreto perto do último aquartelamento em que estivera
baseado, dentro de um caixão. Fora o único receptáculo grande a que conseguira
deitar mão na altura, mas acabara por se revelar um golpe de génio. O dinheiro
estava todo em notas de cem, cinquenta, vinte e dez dólares, pesando quase oitenta
quilos, um peso plausível para o conteúdo de um caixão. Pouco menos de dois
milhões de dólares. Entretanto, o campo fora abandonado, situando-se agora muito
para lá das linhas inimigas. Mas ele conseguiu lá chegar e, a muito custo, escavou
para retirar o caixão. Já removera quase toda a terra quando uma patrulha
vietcongue se precipitou sobre ele, vinda do meio das árvores. Teve a certeza de
que ia morrer. Mas não morreu. Em vez disso, fez uma descoberta ao nível das
maiores descobertas da sua vida. Percebeu que a combinação do seu aspecto
terrível com o comportamento errático e o caixão tivera o seu efeito em quem o
via. Medo da morte, cadáveres e loucura tornaram os outros passivos. As antigas
superstições jogaram a seu favor. A patrulha de vietcongues acabou-lhe a
escavação e carregou o caixão numa carroça puxada por búfalos. Ele sentou-se-lhe
em cima, delirou, tartamudeou, apontando para oeste, e eles levaram-no na
direcção do Camboja.
Foi passado de grupo em grupo e chegou ao Camboja em quatro dias.
Alimentaram-no a arroz, deram-lhe água a beber e vestiram-no de roupas negras
para o domarem e acalmarem os seus próprios temores primitivos. Os cambojanos
prosseguiram viagem com ele.
Ele saltitava e parlapatava como um macaco, apontando sempre para ocidente.
Passados dois meses, estava na Tailândia.
Viveu um ano em Banguecoque. Voltou a enterrar o caixão no quintal da barraca
que arrendou, indo depois à procura de médicos. Ilavia muitos em Banguecoque.
Vestígios do império, empapados em gin, despedidos de quaisquer possíveis
empregos, mas razoavelmente competentes quando estavam sóbrios. Um cirurgião
reconstruiu-lhe a pálpebra de maneira a quase se fechar. Outro abriu-lhe o
ferimento do braço e limou os ossos por forma a ficarem arredondados e lisos.
Coseu o músculo, passou-lhe a pele por cima, bem esticada, e voltou a selar tudo.
Enviaram-no então a um homem que construía próteses.
Todas elas implicavam usar um espartilho em redor do músculo do braço,
correias, um receptáculo de cabedal com os contornos exactos da extremidade do
coto. No entanto, havia acessórios diferentes. Havia uma mão de madeira,
esculpida com grande talento. Havia uma engenhoca de três bicos que parecia
vagamente um instrumento de jardinagem. Mas ele escolheu um gancho simples.
Agradava-lhe, embora não soubesse explicar porquê. O homem forjou-o em aço
inoxidável e cobrou quinhentos dólares por ele.
Acabou o ano a viver em Banguecoque. Quando voltou a escavar para tirar o
caixão da terra e marcou passagem para São Francisco num cargueiro, já tinha
esquecido que alguma vez tivera duas mãos.
Agora, Hobie rolou de borco, estendeu a mão esquerda para baixo, junto à cama,
e pegou no trabalho do homem de Banguecoque. 10 da manhã. Mais um dia da sua
vida. Lavou-se, vestiu-se e dirigiu-se ao World Trade Center.
Reacher acordou às 7 horas pelo seu relógio, que ainda tinha a hora de St. Louis,
portanto seriam 6 no Arizona, ou Colorado, ou no que quer que estivessem a
sobrevoar naquele momento, e já 8 em Nova Iorque. Espreguiçou-se no assento e
virou-se para Jodie.
— Olá, Reacher — cumprimentou ela.
— Viva, Jodie. Como é que te sentes?
— Nada mal. Melhor do que pensava. Que vais fazer enquanto eu estiver na
reunião? Procurar Hobie?
— Talvez, mas vai ser um trabalho dos diabos.
— Tem que haver pontas por onde pegar — assegurou ela. — Registos médicos e
esse tipo de coisas. O homem não pode deixar de usar uma prótese. E se sofreu
queimaduras, há-de haver registos disso.
Reacher concordou de cabeça.
— Também posso limitar-me a esperar que seja ele a descobrir-me. Afinal,
mandou matar Costello para poder continuar escondido. E depois mandou gente
atrás de nós. Posso limitar-me a ir para Garrison até ele mandar os capangas de
novo lá. — Voltou-se para a janela, fitando o seu pálido reflexo na escuridão, e
pensou: «Estou a aceitar que ele sobreviveu. Estou a convencer-me de que me
enganei.» Virou-se de novo para Jodie. — Podes dispensar hoje o telemóvel?
Para o caso de Nash descobrir alguma coisa e me ligar? Quero saber
imediatamente, se ele fizer alguma chamada.
Ela retribuiu-lhe o olhar demoradamente antes de anuir com um aceno de
cabeça. Inclinou-se para baixo e tirou o telemóvel da carteira.
— Boa sorte — desejou ao entregar-lho.
— Não costumava precisar de sorte — comentou Reacher, enfiando o telemóvel no
bolso.
Aterraram com dez minutos de antecedência, imediatamente antes da hora de ponta
do meio-dia, hora da Costa Leste. Jodie acertou o relógio e já estava levantada
ainda antes de o avião se deter, transgressão pela qual não se é insultado quando se
viaja em primeira classe.
— Vamos — disse. — Estou um bocado apertada em tempo.
Já estavam em fila à porta quando esta se abriu. Reacher levava o saco dela, e
ela foi à sua frente pelo terminal até lá fora. O Lincoln Navigator continuava no
parque de curta duração, grande, preto e vistoso.
Estavam em Manhattan vinte minutos depois da aterragem e seguiam para sul
pela Broadway, a caminho da casa de Jodie, passados mais dez minutos.
Deixaram o carro, subiram ao quinto andar e desceram para o quarto pelas
escadas de emergência. O regresso à cidade trouxera tlivolta as cautelas, mas o
edifício estava calmo e deserto. O apartamento, vazio e intacto. Meio-dia e meia.
— Dez minutos — pediu ela. — Depois, podes levar-me ao escritório, está bem?
— Como vais para a reunião?
— Temos um motorista. Ele leva-me — explicou ela.
Jodie passou cinco minutos no duche e cinco a vestir-se. Apareceu com um
vestido cinzento e casaco a condizer.
— Procura a minha pasta, sim? — bradou.
Limitou a maquilhagem a um toque de sombra para os olhos e bâton. Mirou-se
no espelho e correu de volta à sala. Reacher tinha a pasta à sua espera. Levou-a
para o carro.
— Toma as minhas chaves — ofereceu Jodie. — Assim, podes cá voltar. Ligo
para ti do escritório e podes ir lá buscar-me.
Levaram sete minutos a chegar à praceta onde se localizava o edifício do
escritório de advocacia. Jodie deslizou para fora do carro á 1 hora menos cinco.
— Boa sorte — gritou-lhe Reacher para as costas. — Fá-los sofrer.
Ela acenou-lhe com a mão e apressou-se em direcção à porta giratória. Chegou
ao seu gabinete ainda antes da 1 hora. O secretário seguiu-a com uma pasta fininha
na mão.
— Aqui está — apresentou cerimoniosamente.
Jodie abriu-a e passou os olhos por oito folhas de papel.
Que raio vem a ser isto? — interrogou.
— Na reunião, os sócios ficaram encantados — comentou o tipo.
Ela folheou de novo as páginas em ordem inversa.
— Não vejo porquê. Nunca ouvi falar em qualquer destas empresas e a quantia é
trivial.
Mas não é isso que interessa, pois não? — retorquiu ele.
Então, que é que interessa? — perguntou Jodie, fitando-o
Foi o credor que a contratou — explicou o outro. — Não o devedor. É uma
espécie de prevenção por parte do credor. Ele sabe que, se a senhora fosse
contratada pelo devedor, lhe havia de causar problemas. Portanto, contratou-a
primeiro para evitar que isso aconteça. Quer dizer que a senhora se transformou
numa estrela, Jodie.
DEZ
Para Lee Child, 1997 foi um ano notável. Poucos meses após inscrever-se no Fundo de Desemprego
de Kendal, localidade onde vivia, por ter sido dispensado do lugar que ocupava como controlador de
transmissões da Granada TV, encontrava-se no gabinete de um produtor dos estúdios de Hollywood
a discutir a passagem a guião cinematográfico de Jogo Mortífero, o seu primeiro romance.
— Na altura, não me apercebi, porque ser-se dispensado é muito Iraumatizante, mas a minha vida
mudou para melhor. Sempre quisera escrever, porém nunca tinha tempo nem energia. O
despedimento deume o empurrão decisivo!
Outros sucessos se seguiram, e agora TERRENO MINADO parece igualmente destinado às listas de
livros mais vendidos. Os leitores têm uma atracção irresistível pelo herói de Lee Child, Jack
Reacher, o antigo polícia militar duro como o aço, que, espera-se, venha a reaparecer em muitas
mais obras do autor.
— É o tipo de herói taciturno que estou convencido muitos de nós desejaríamos ser ou conhecer.
Por estar livre de todas as obrigações e inibições da vida quotidiana, pode agir de uma maneira
que a maior parte das pessoas ambiciona secretamente. Perante um problema, resolve-o sem
contemplações e com eficácia. Todavia, é bastante tímido. Não tem qualquer parecença com
James Bond ... é muito mais humano.
Em 1998, Lee Child e a sua mulher, americana, alcançaram o que ambicionavam há muito:
mudaram-se com a filha, de dezanove anos, para os Estados Unidos, onde se instalaram alegremente
no campo, uns sessenta quilómetros a norte da cidade de Nova Iorque.