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Do autor:

Dinheiro Sujo
O Último Tiro
Destino: Inferno
Alerta Final
Copyright © Lee Child, 1998.

Título original: Die Trying

Capa: Raul Fernandes


Foto de capa: Máté Kiss/GETTY Images

Editoração: DFL

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


2010
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C464d Child, Lee, 1954-


2ª ed. Destino: inferno / Lee Child; tradução José Moreira da Silva. — 2ª ed. — Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
490p.

Tradução de: Die trying


ISBN 978-85-286-1424-4

1. Romance inglês. I. Silva, José Moreira da. II. Título.

10-1159 CDD: 823


CDU: 821.111-3

Todos os direitos reservados pela:


EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.
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Se eu listasse aqui todo tipo de ajuda que ela me dá, esta
dedicatória seria mais longa do que o próprio livro.
Portanto, apenas direi:
para minha esposa, Jane, muito, muito obrigado mesmo.
1

NATHAN RUBIN MORREU POR TER CRIADO CORAGEM. Não


aquela do tipo prolongada, que vale medalha numa guerra, e sim daquelas
que vêm de uma explosão de fúria cega, impensada e repentina, que causa
mortes nas ruas.
Saiu cedo de casa, como sempre fazia, seis dias por semana, cinquenta
semanas por ano. Tomou um café da manhã com o cuidado próprio de um
homem baixo e troncudo que pretende continuar em forma na casa dos
quarenta. Percorreu os longos corredores acarpetados de uma bela casa às
margens de um lago, própria de um homem que ganhava mil dólares por dia
nos trezentos que trabalhava. Apertou o polegar na tecla do controle remoto
da porta da garagem e deu uma girada no pulso para ligar o silencioso
motor do seu caríssimo sedã importado. Colocou um CD, deu uma ré rápida
pela entrada de cascalho, uma pisadinha no freio, colocou o câmbio
automático na posição drive, cutucou o acelerador, e o último breve trajeto
da sua vida tinha começado. Seis e quarenta e nove da manhã, segunda-
feira.
Pegou verde o único sinal na rota para o trabalho, a causa direta da sua
morte, pois isso fez com que estacionasse na vaga isolada nos fundos do
prédio comercial, ainda faltando trinta e oito segundos para o término do
prelúdio depois do Si menor de Bach. Permaneceu sentado ouvindo até o
derradeiro toque de órgão ecoar no silêncio, fazendo com que, ao sair do
carro, três homens aparecessem próximos o bastante para que ele notasse
que estavam a fim de alguma coisa. Por isso os olhou de relance. Desviaram
o olhar e alteraram o curso. Três homens em compasso, como dançarinos ou
soldados. Voltou-se para seu prédio. Começou a andar. Mas de repente
parou. E olhou para trás. Os três homens estavam cercando seu carro.
Tentando abrir as portas.
— Ei! — ele gritou.
Era o som curto e universal de surpresa, raiva, desafio. O tipo de som
instintivo que um cidadão sério e ingênuo deixa escapar quando algo não
deveria estar acontecendo. O tipo de som instintivo que faz um cidadão
sério e ingênuo ir dessa para melhor. Quando caiu a ficha, estava voltando
diretamente para o carro. Na desvantagem, três contra um. Mas o fato de
estar no seu direito o encheu de moral e confiança. Voltou a passos largos,
sentindo-se puto da vida, com a bola toda e senhor da situação.
Mas eram sentimentos ilusórios. Um mauricinho de bairro nobre como
ele nunca estaria à altura de uma situação como essa. Sua boa forma era
apenas de academia. Não valia nada. Sua barriga durinha se rompeu com a
primeira porrada selvagem. Seu rosto foi sacudido para a frente e para
baixo, e juntas duras reduziram seus lábios a polpa e despedaçaram seus
dentes. Foi agarrado por mãos ásperas e braços volumosos, e mantido em
pé como se não pesasse nada. As chaves foram arrancadas da mão, e a
orelha levou um tapão estrondoso. Da boca jorrou sangue. E suas costas
foram esmagadas por botas pesadas depois de atirado no asfalto. Em
seguida, a barriga. E aí, a cabeça. Ele saiu do ar como um televisor num
temporal. O mundo simplesmente se desvaneceu diante dos seus olhos.
Tornou-se uma frágil chama e se desmanchou no nada aos suspiros.
E assim, porque de repente deu uma de macho, ele foi pro saco. Mas
não naquele exato momento. Morreu muito mais tarde, depois que o
momento de bravura se dispersou em longas horas de medo desprezível e
ofegante, e depois que as longas horas de terror se transformaram numa
explosão de gritos dementes de pânico que duraram longos minutos.

Jack Reacher permaneceu vivo porque foi cauteloso. E agiu com prudência
porque foi guiado por um eco do passado. Seu passado era intenso e o eco
vinha da parte sombria dele.
Servira ao exército treze anos, e a única vez que tinha sido ferido não
foi a bala. Foi pelo fragmento do maxilar de um sargento dos fuzileiros
navais. Reacher estava servindo na base de Beirute, nas instalações
militares norte-americanas nos arredores do aeroporto, atacadas por um
caminhão-bomba. Reacher se encontrava na portaria, e o sargento, uns cem
metros mais próximo da explosão. O fragmento de maxilar foi a única coisa
que sobrou do sujeito. Atingiu Reacher a cem metros de distância,
penetrando sua barriga, girando como um projétil. O cirurgião do exército
que o operou confessou mais tarde que ele tinha ganhado na loteria, que
uma bala de verdade na pança seria tão ruim quanto. Era esse o eco que
Reacher estava ouvindo. Muito atentamente. Porque treze anos mais tarde
lá estava ele, com uma pistola apontada diretamente para seu bucho. A uma
distância aproximada de três centímetros.
A pistola era uma automática, nove milímetros. Novinha em folha.
Lubrificada. Mantida em posição baixa, alinhada diretamente com sua velha
cicatriz. O sujeito que a estava segurando parecia, mais ou menos, saber o
que fazia. A trava de segurança estava liberada. A boca do trabuco não
tremia. Nenhuma tensão. O dedo no gatilho pronto para a ação. Reacher
estava ligado. Não tirava o olho do dedo no gatilho.
A postos ao lado de uma mulher, segurando seu braço. Nunca a tinha
visto. Ela olhava fixamente para uma nove milímetros idêntica, também
apontada para sua barriga. O cara que a ameaçava parecia mais tenso, com
certeza, estressado, preocupado. Sua arma tremia com a tensão. Unhas
roídas. Sujeitinho nervoso, agitado. Os quatro ficaram lá, na rua. Três deles,
imóveis como estátuas, e o quarto trocava ligeiramente o pé de apoio sem
parar.
Estavam em Chicago. No centro da cidade. Numa calçada
movimentada. Numa segunda-feira. O último dia de junho. Em plena luz de
um dia ensolarado de verão. Toda a situação se materializara em um
milésimo de segundo. Tinha acontecido de uma maneira que não poderia ter
sido planejada nem em um milhão de anos. Reacher estava zanzando pela
rua, sozinho, nem rápido nem devagar. Estava a ponto de passar em frente a
uma tinturaria, quando a porta se abriu na sua cara, e uma velha muleta
metálica tiniu na calçada bem diante dele. Ergueu os olhos e viu uma
mulher na entrada, prestes a derrubar nove cabides de roupa. Tinha pouco
menos de trinta anos. Trajava roupas caras. Morena, atraente, segura de si.
Uma perna estava capenga, tinha algum tipo de lesão. Reacher notou pela
posição desajeitada que uma dor a incomodava. Ela lhe lançou um olhar do
tipo: Será que você poderia... e ele devolveu um: Pode deixar, e pegou a
muleta metálica, e com a outra mão, seus nove cabides, e lhe passou a
muleta. Lançou todos os cabides sobre o ombro e sentiu uma pontada no
dedo por causa dos ganchos de arame. Ela havia apoiado a muleta na
calçada e colocado seu antebraço cuidadosamente na calha curvada de
metal. Ele ofereceu a mão. Ela hesitou. Então, acenou com a cabeça,
embaraçada, e ele pegou seu braço, pacientemente, sentindo-se prestativo,
porém sem graça. Então, ambos se voltaram para seguir em frente. Reacher
pensou em talvez caminhar um pouco ao seu lado, até que ela estivesse com
os pés firmes. Aí largaria o braço dela e entregaria a roupa. Mas, ao se
voltar, dera de cara com os dois sujeitos com as nove milímetros.
Os quatro permaneceram lá, cara a cara, duas duplas. Como quatro
pessoas comendo juntas num pequeno reservado de um restaurante. Os dois
sujeitos armados eram brancos, bem alimentados, parecidos e meio com
pinta de militares. Estatura média, cabelos curtos e castanhos. Mãos
grandes, fortes. Rostos enormes, chamativos, traços rosados e
inexpressivos. Fisionomia tensa, olhar cortante. O nervosinho era menor,
como se o excesso de preocupações queimasse sua energia. Ambos usavam
camisa xadrez e paletó de popeline. Ficaram lá, um em cima do outro.
Reacher era muito mais alto do que os outros três. Podia ver tudo ao redor
sobre suas cabeças. Paralisado, surpreso, com a roupa da mulher no ombro.
Ela se debruçava sobre a muleta, com o olhar fixo, sem dar um pio. Os
caras apontavam suas armas, bem de perto. Reacher sentiu que estavam
naquela posição há muito tempo, mas sabia que o sentimento enganava.
Talvez não tivesse passado mais do que um segundo e meio.
O cara na frente de Reacher parecia ser o líder. O maior, o calmo. Ele
olhou entre Reacher e a mulher e sacudiu o cano da automática para o
meio-fio.
— Entra no carro, vagabunda — o sujeito disse. — Você também, seu
babaca.
Falou com urgência, porém baixinho. Com autoridade. Não tinha um
sotaque muito acentuado. Talvez da Califórnia, pensou Reacher. Um sedã
no meio-fio estava esperando. Um carro grande, preto, todo estofado em
couro de qualidade, caro. O motorista estava se inclinando sobre o banco do
passageiro. Esticando-se para puxar o pino da porta traseira. O sujeito cara
a cara com Reacher voltou a sinalizar com a arma. Reacher não mexeu um
músculo, ficou olhando para a esquerda e a direita. Calculou que tinha mais
um segundo e meio para fazer algum tipo de avaliação. Não estava lá muito
preocupado com os dois fulanos e suas nove milímetros. Estava maneta por
causa das roupas, mas calculou que seria moleza dar um chega pra lá nos
dois. O problema estava no seu flanco e retaguarda. Ergueu os olhos para a
janela da tinturaria e a usou como um espelho. A uns vinte metros das suas
costas havia uma massa compacta de gente apressada na calçada. Uma
dupla de balas perdidas acertaria um par de alvos. Sem dúvida. Sem
nenhuma sombra de dúvida. Esse era o obstáculo da retaguarda. O
problema ao seu lado era a tal desconhecida. Suas habilidades eram um
enigma. Uma das pernas estava capenga. A reação seria lenta. Ele não
estava pronto para travar um combate. Não nesses arredores e não com essa
parceira.
O cara com sotaque californiano esticou o braço e agarrou o pulso de
Reacher preso no colarinho pelo peso dos nove cabides de roupas limpas.
Ele o usou para arrastá-lo para o carro. O dedo no gatilho ainda parecia
pronto para a ação. Reacher o observava de rabo de olho. Soltou o braço da
mulher, foi até o carro, jogou as roupas no banco traseiro e entrou. A
mulher foi empurrada para dentro em seguida. Então o agitadinho se
espremeu junto com eles e bateu a porta. O líder entrou na frente. Bateu a
porta. O motorista acionou a alavanca do automático, e o carro se moveu
suave e silenciosamente pela rua.

A mulher ofegava de dor, e Reacher calculou que a arma do nervosinho


estava metida nas costelas dela. O líder mantinha o corpo retorcido no
banco da frente, com sua arma apoiada no encosto de cabeça. Estava
apontando diretamente para o peito de Reacher. Era uma Glock 17. Reacher
sabia tudo sobre a pistola. Avaliara o protótipo para sua unidade. Essa tinha
sido sua tarefa durante a recuperação, trabalho leve, após o ferimento em
Beirute. Essa Glock era uma arminha danada. Dezenove centímetros de
comprimento, do percussor até a ponta da boca. Longa o suficiente para
torná-la precisa. Reacher tinha acertado cabeças de tachinhas a vinte e cinco
metros com ela. E a Glock disparava um projétil de respeito. Balas de sete
gramas a quase mil e trezentos quilômetros por hora. Dezessete balas por
pente, daí o nome. E era leve. Apesar de toda a sua potência pesava menos
de um quilo. As partes importantes eram de aço, e o resto, de plástico.
Policarbonato preto, como o de uma câmera cara. Uma fina obra artesanal.
Mas não gostou muito dela. Não para as exigências específicas da sua
unidade. Recomendou a rejeição. Apoiou a Beretta 92F. Ela também era
uma nove milímetros, cerca de vinte gramas mais pesada, por volta de três
centímetros mais longa, duas balas a menos no pente. Mas tinha
aproximadamente dez por cento mais poder de impacto do que a Glock.
Isso era importante para ele. E não era de plástico. A Beretta foi a escolha
de Reacher. Seu comandante de unidade concordou e avalizou o relatório.
Todo o exército apoiou a recomendação. Na mesma semana em que foi
promovido e condecorado com a Estrela de Prata e o Coração Púrpura,
requisitaram Berettas, apesar de serem mais caras, de a OTAN ter ficado
louca pela Glock e de Reacher ser apenas uma voz solitária que tinha se
formado há pouco tempo em West Point. Depois disso, teve que ir cumprir
missão em outra parte, e mais tarde servir ao redor do mundo, e não tinha
visto sequer uma Glock 17 desde a época. Até agora. Doze anos depois
estava dando uma bela reexaminada na máquina.
Desviou a atenção da arma e deu outra olhada de butuca para o fulano
que a estava segurando. Bronzeado razoável que embranquecia perto da
borda do cabelo. Corte recente. O motorista tinha uma baita testa brilhante,
cabelo ralo penteado para trás, feições rosadas e vívidas, sorriso afetado do
tipo que sujeitos feios que nem o diabo esboçam quando se julgam bonitos.
A mesma camisa barata de lojas populares, o mesmo paletó. O mesmo porte
construído a milho. A mesma confiança de quem está no comando,
norteado por uma ligeira avidez. Três caras, todos com talvez trinta ou trinta
e cinco anos. Um líder, um seguidor firme, um seguidor agitado. Todos
tensos, porém treinados, cumprindo algum tipo de missão às pressas. Um
enigma. Reacher tirou o olho da Glock e mirou o líder, e nesse momento o
cara balançou a cabeça.
— Boca calada, idiota — ele disse. — Se abrir o bico, leva chumbo.
Eu te prometo. Se ficar quieto, talvez fique na boa.
Reacher o levou a sério. O olhar do cara era sinistro, e a boca, uma
linha tensa. Por isso ficou de bico fechado. Então o carro reduziu a
velocidade e entrou num pátio de concreto irregular. Deu a volta e foi para
os fundos de uma instalação industrial abandonada. Tinham se dirigido para
o sul. Reacher calculou que estavam agora a cerca de oito quilômetros ao
sul do Loop, o centro de Chicago. O motorista foi reduzindo a velocidade
do grande sedã até parar, com a porta traseira alinhada à traseira de um
furgão de entregas que se encontrava sozinho no estacionamento vazio. Era
um Ford Econoline, branco encardido, um furgão não muito velho, porém
bem usado. Algum tipo de letreiro na lateral fora coberto com tinta branca
fresca, que não combinava exatamente com a lataria que Reacher
observava. O estacionamento estava cheio de lixo. Viu uma lata de tinta
jogada perto do veículo. Um pincel. Não havia ninguém à vista. O lugar
estava deserto. Se fosse para tentar algo, este seria o momento e o lugar
certos. Mas o indivíduo em frente deu um sorriso sarcástico e se inclinou
para a traseira do carro. Agarrou o colarinho de Reacher com a mão
esquerda e enfiou a ponta da Glock na sua orelha com a direita.
— Não se mexa, seu babaca — o cara ordenou.
O motorista saiu do carro e rodeou a capota. Tirou um molho novo de
chaves do bolso e abriu as portas traseiras do furgão. Reacher ficou sentado
imóvel. Enfiar uma arma na orelha de alguém não é necessariamente uma
jogada esperta. Se a pessoa de repente lançar a cabeça na direção da arma,
ela se desloca, rolando ao redor da testa. Aí, nem mesmo um dedo rápido no
gatilho causará muito dano. Pode fazer um furinho besta de brinco na
orelha, apenas na aba externa, e estourar os tímpanos, na certa, mas não são
ferimentos fatais. Reacher passou alguns segundos pesando essas
possibilidades. Então o sujeitinho agitado tirou a mulher do carro, arrastou-
a apressadamente até o furgão e colocou-a na traseira. Direto, de uma porta
a outra. Ela percorreu a curta distância aos trancos e barrancos, mancando e
saltitando. Reacher ficou observando, de rabo de olho. O cara que cuidava
dela tomou sua bolsa e a jogou de volta no carro, que caiu aos pés de
Reacher, batendo pesadamente no tapete grosso. Uma grande e cara bolsa
de couro, algo pesado dentro dela. Algo metálico. Mulheres carregavam
apenas uma coisa metálica que faria um barulho pesado como esse. Ele
olhou de soslaio para ela, como que, de repente, curioso.
Ela estava estirada na traseira do furgão. Sua perna, um empecilho.
Então o líder, na frente, puxou Reacher ao longo do banco de couro e o
passou para o tipinho agitado. Assim que uma Glock saiu da sua orelha,
outra foi enfiada na sua lateral. Foi arrastado pelo terreno acidentado para a
porta traseira. E empurrado para dentro junto da mulher. O sujeito agitado
cobria ambos com a Glock trêmula, enquanto o líder metia a mão no carro e
retirava a muleta de metal da mulher. Andou até eles e a atirou dentro do
furgão. Ela tiniu e estrondou na lateral metálica. Deixou as roupas dela na
traseira do sedã com a bolsa. Depois tirou um par de algemas do bolso do
paletó. Agarrou o pulso direito da mulher e lhe colocou um aro. Puxou-a
rudemente para o lado e agarrou o pulso esquerdo de Reacher. Colocou
outro. Balançou para ver se estava firme. Bateu a porta traseira esquerda do
veículo. Reacher observou o motorista esvaziar garrafas plásticas dentro do
sedã. Reconheceu a cor e logo sentiu o cheiro forte de gasolina. Uma
garrafa no banco traseiro, outra na frente. Então o líder fechou a porta
direita traseira do furgão com um estrondo. A última coisa que Reacher viu
antes da escuridão envolvê-lo foi o motorista tirar uma caixa de fósforos do
bolso.
2

A DOIS MIL SETECENTOS E QUARENTA QUILÔMETROS de


Chicago pela estrada, acomodações para um hóspede estavam sendo
preparadas. Um único quarto, que seguia um projeto não convencional,
arquitetado por um homem meticuloso, após muita deliberação. O design
exigia diversos atributos incomuns.
As acomodações foram projetadas para finalidade e hóspede
específicos. A natureza da finalidade e a da identidade do hóspede haviam
ditado os atributos incomuns. A construção ficou centrada no segundo
andar de um prédio já existente. Um quarto de canto tinha sido selecionado.
Havia uma série de janelões nas duas paredes externas. Davam para o sul e
para o leste. O vidro tinha sido estilhaçado e substituído por tábuas de
compensado, pregadas nos caixilhos que ficaram. A madeira fora pintada de
branco na parte externa para combinar com a lateral do prédio. No interior
não recebeu tinta.
O teto do quarto de canto fora arrancado. Era um prédio velho e havia
sido construído com reboco pesado. Ao ser derrubado, gerou uma sufocante
nuvem de poeira. As vigas do quarto agora estavam à mostra. A parede
interior fora removida. As paredes tinham sido revestidas com pinho velho,
amaciado pelo tempo e pelo polimento. Tudo isso já era. O vigamento do
prédio e o velho papelão pesado de alcatrão atrás da lateral exterior estavam
expostos. As tábuas do assoalho foram arrancadas. O teto empoeirado do
quarto de baixo podia ser visto sob as pesadas travessas. O quarto agora não
passava de um abrigo.
O reboco velho do teto e as tábuas das paredes e do assoalho foram
jogados pelas janelas, antes de serem cobertas com o compensado. Os dois
homens que executaram o trabalho de demolição amontoaram uma grande
quantidade de entulho e deram ré no caminhão até a pilha, prontos para
remover tudo. Ansiavam muito para deixar o lugar com uma aparência bem
limpa e em ordem. Era a primeira vez que trabalhavam para este
empregador em particular, e ele deixou transparecer que haveria mais
trabalho por vir. E olhando ao redor dava para ver que havia muito mais
para ser feito. Em resumo, estavam otimistas. Contratos novos eram difíceis
de conseguir, e esse empregador específico não tinha demonstrado nenhuma
preocupação com preço. Os dois homens sentiram que causar uma boa
impressão inicial seria muito interessante a longo prazo. Trabalhavam duro,
carregando o caminhão com os fragmentos de reboco, quando então o
próprio empregador apareceu.
— Acabaram? — perguntou.
O empregador era um sujeito enorme, estranhamente inchado, com voz
aguda e duas manchas vermelhas, do tamanho de uma moeda, ardendo em
suas bochechas pálidas. Movia-se com leveza, sorrateiro, como se, na
verdade, tivesse um quarto do seu tamanho. O efeito total que causava fazia
o povo desviar os olhos e responder prontamente.
— Estamos só dando uma limpada geral — o primeiro cara disse. —
Onde jogamos isso?
— Vou mostrar a vocês — o patrão respondeu. — Vão precisar dar
duas viagens. Tragam aquelas tábuas separadamente, está bem?
O segundo cara concordou com um gesto de cabeça. As tábuas do
assoalho eram de quarenta centímetros de largura, da época em que os
lenhadores podiam escolher à vontade entre todas as árvores que quisessem.
De jeito nenhum caberiam na caçamba do caminhão com o resto da sucata.
Acabaram de carregar o reboco, e o patrão entrou na boleia com eles.
Devido ao seu enorme tamanho, ficaram comprimidos lá dentro. Ele
apontou para além do prédio velho.
— Para o norte — ordenou —, um quilômetro mais ou menos.
A estrada seguia diretamente para fora da cidade e depois virava um
morro ascendente, com algumas curvas bem fechadas. O empregador
apontou para um lugar.
— Ali dentro — disse —, bem no fundo, falou?
Caminhou para longe em silêncio e os sujeitos descarregaram o
pequeno caminhão. Dirigiram de volta para o sul e transportaram as tábuas
velhas de pinho para dentro. Seguiram as curvas acentuadas mais uma vez e
descarregaram. Levaram as placas para dentro e as empilharam
ordenadamente. Bem no fundo do galpão, nas trevas. Neste momento, o
patrão saiu das sombras. Estava esperando. Com algo na mão.
— É o fim, chefia — o primeiro empregado afirmou.
O patrão concordou com um gesto.
— Com certeza — disse.
Ele levantou a mão. Segurava uma arma. Uma automática, preto fosco.
Atirou na cabeça do primeiro sujeito. Foi ensurdecedor o estrondo que a
bala fez. Sangue, fragmentos de osso e cérebro voaram para todo lado. O
segundo tipo, paralisado pelo terror, saiu em desabalada carreira. Lançou-se
lateralmente numa corrida desesperada, em busca de abrigo. O empregador
sorriu. Gostava quando corriam. Abaixou o bração fazendo um ângulo raso.
Atirou, acertando a parte de trás do joelho do sujeito. Deu outro sorriso.
Agora ficou melhor. Gostava quando corriam, mas adorava quando se
contorciam no chão. Ficou escutando o cara choramingar por um bom
tempo. Então se aproximou em silêncio e apontou com cuidado. Acertou o
outro joelho. Ficou observando por um tempo, aí se cansou da brincadeira.
Encolheu os ombros e enfiou a bala derradeira na cabeça do cara. Depois
colocou a arma no chão e foi rolando os dois corpos, até ficarem
empilhados ordenadamente, alinhados com as velhas tábuas do assoalho.
3

ESTAVAM NA ESTRADA HÁ UMA HORA E TRINTA E TRÊS


MINUTOS. Pegaram um pouco de trânsito na saída, depois aceleraram e
seguiram numa velocidade constante. Percorreram cerca de cem
quilômetros. Mas, na escuridão ruidosa do interior do furgão de entregas,
Reacher não fazia a mínima ideia em qual direção esses cem quilômetros
seguiam.
Algemado à moça com a perna machucada, dentro dos primeiros
minutos em que havia sido forçado a conhecê-la, tinham elaborado um jeito
de ficar tão confortáveis quanto poderiam. Haviam se movido como
caranguejos ao redor do interior até ficarem sentados lado a lado no chão,
as pernas esticadas, apoiados contra o grande arco da roda à direita,
firmando-se contra o sacolejo. A mulher acabou sentada de frente para a
traseira, e Reacher, ao contrário dela. Os pulsos algemados ficaram juntos
na parte superior lisa da protuberância de metal, como amantes vendo o
tempo passar num barzinho.
Inicialmente, não conversaram. Apenas ficaram sentados, assustados
por muito tempo no silêncio. O problema imediato era o calor. Era o início
da tarde do último dia de junho no Meio-Oeste. Trancados num espaço
cercado de metal. Sem ventilação alguma. Reacher calculou que a corrente
de ar na parte externa da lataria da caminhonete devia refrescá-los até certo
ponto, mas não o suficiente, não mesmo.
Apenas ficou sentado lá, nas trevas, e usou o tempo morto e quente
para refletir e planejar, como fora treinado a fazer. Permanecer calmo,
relaxado, pronto para agir. Não queimar energia com especulações inúteis.
Avaliar e reavaliar. Os três caras haviam demonstrado certo grau de
eficiência. Nenhum grande talento ou real fineza, mas, porém, nenhum erro
significativo. O tipinho agitado com a segunda Glock era o membro mais
fraco da equipe, mas o líder compensava consideravelmente bem. Um trio
eficiente. De modo algum o pior que já tinha visto. Mas essa questão não
estava esquentando a cabeça dele. Já havia sobrevivido a situações piores.
Muito piores mesmo, várias vezes. Por isso, ainda não estava se
inquietando.
Nesse dado momento, notou algo. Observou que a mulher também
estava tranquila até agora. Razoavelmente calma. Apenas sentada,
balançando-se para lá e para cá, algemada ao seu pulso, pensando e
planejando, como talvez fora igualmente treinada a fazer. Plantou os olhos
nela ali nas trevas e viu que ela o fitava. Um olhar fixo, manhoso, calmo,
senhor de si, um tanto superior, ligeiramente desaprovador. A autoconfiança
da juventude. Ela o olhou nos olhos. Sem desgrudá-los por muito tempo.
Depois esticou a mão direita, a algemada, chacoalhando o pulso esquerdo
dele, mas era um gesto encorajador. Ele estendeu o braço, apertou sua mão
e deram breves sorrisos irônicos perante a formalidade de ambos.
— Holly Johnson — ela disse.
Ela o avaliava com cuidado. Notou os olhos perscrutando seu rosto.
Passaram então rapidamente para as suas roupas e remontaram ao seu rosto.
Sorriu de novo, momentaneamente, como se tivesse decidido que ele
merecia algum tipo de cortesia.
— É um prazer conhecer você — ela disse.
Ele retribuiu o olhar. Fitou o rosto dela. Era uma mulher bonita. Talvez
com vinte e seis, vinte e sete anos. Examinou a roupa. A estrofe de uma
música antiga passou pela sua cabeça: Vestidos de cem dólares que eu ainda
não paguei. Ficou esperando a estrofe seguinte, mas ela não veio. Então
retribuiu o sorriso e meneou a cabeça.
— Jack Reacher — ele disse. — O prazer é todo meu, Holly, acredite.
Era difícil conversar porque a caminhonete seguia ruidosamente. O
som do motor se digladiava contra o ribombar da estrada. Reacher ficaria
satisfeito de permanecer sentado quieto por um tempo, mas Holly não.
— Preciso me livrar de você — ela concluiu.
Mulher confiante, senhora de si, com certeza. Ele nada respondeu.
Apenas olhou de relance para ela, e depois desviou o olhar. A estrofe
seguinte era: Mulher fria, de sangue-frio. Sobre uma traição, um verso triste
e tocante. Uma antiga música de Memphis Slim. Mas a estrofe não
combinava com ela. De modo algum. Essa não era uma mulher de sangue-
frio. Lançou outro olhar e deu de ombros. Ela o olhava fixamente.
Impaciente com seu silêncio.
— Você entende exatamente o que está acontecendo? — perguntou.
Ele fitou o rosto, os olhos dela. Ela não desgrudou os olhos dos dele.
Sua expressão era de preocupação. Pensava que estava presa lá dentro com
um imbecil, que ele não entendia exatamente o que estava se passando.
— Está mais do que na cara, né? — ele disse. — Pelas evidências?
— Que evidências? — indagou. — Foi tudo executado em questão de
segundos.
— Exatamente — concordou ele. — Essa é toda a prova de que
preciso, entende? Demonstra, mais ou menos, o que preciso saber.
Ele parou de falar e voltou a descansar. A oportunidade de tentativa de
fuga seguinte surgiria na próxima parada do furgão. Podia demorar horas.
Sentiu que teria que aguentar um longo dia, que devia poupar energia.
— Então... o que você precisa saber? — a mulher indagou.
Os olhos dela não desviavam dos dele.
— Você foi sequestrada — respondeu. — Estou aqui por acaso.
Ela continuava olhando-o. Ainda confiante, pensativa, agora incerta se
estava algemada a um idiota.
— Está mais do que na cara, né? — ele disse outra vez. — Não
estavam atrás de mim.
Ela não respondeu. Apenas arqueou uma sobrancelha fina.
— Ninguém sabia que eu estaria lá — afirmou ele. — Nem mesmo eu
sabia disso. Até chegar lá. Mas a operação foi muito bem planejada. Devem
ter levado tempo para organizar. Baseada na vigilância, certo? Três sujeitos,
um no carro, dois na rua. O carro estacionado exatamente no ponto certo.
Não faziam a mínima ideia de onde eu estaria. Mas, claro, sabiam, com toda
certeza, onde você estaria. Então pare de me olhar como se eu fosse o idiota
da história. Foi você que cometeu o grande erro.
— Erro? — a mulher pareceu indignada.
— Você tem uma rotina bem definida — Reacher disse. — Estudaram
seus movimentos, duas ou três semanas talvez, e você caiu direitinho. Não
esperavam que mais ninguém estivesse lá. Isso está claro, certo? Trouxeram
apenas uma algema.
Levantou o pulso, que ergueu o dela por sua vez, para deixar claro. A
mulher ficou um longo momento em silêncio. Estava reconsiderando sua
opinião a respeito dele. Reacher trepidou com o movimento do veículo e
sorriu.
— Devia ter sido mais esperta — ele disse. — Você é algum tipo de
agente do governo, certo? DEA, CIA, FBI, algo assim, talvez uma detetive
da polícia de Chicago. Novata no trabalho, ainda razoavelmente dedicada. E
um tanto rica. Então... ou vão pedir resgate, ou você já se tornou um
problema em potencial para alguém, mesmo sendo novata, e de um jeito ou
de outro você devia ter se precavido melhor.
Ela o fitou, meneou a cabeça positivamente. Olhos arregalados nas
trevas. Impressionada.
— Tem evidências? — ela perguntou.
Ele sorriu para ela outra vez.
— Duas coisas — começou. — Suas roupas lavadas a seco. Suponho
que toda segunda-feira, na hora do almoço, você leva as da semana anterior
para lavar e pega as da semana atual para vestir. Isso significa que você
deve ter aproximadamente quinze a vinte conjuntos. Observando isso que
você está vestindo, posso notar que suas roupas não são baratas. Digamos
quatrocentos dólares por conjunto, você deve ter cerca de oito mil dólares
empatados em vestuário. É isso que chamo de moderadamente rica com
rotina bem definida.
Ela concordou com um gesto de cabeça, lentamente.
— Certo — disse. — Por que sou agente do governo?
— Muito fácil — respondeu. — Você foi rendida com uma Glock 17,
enfiada num carro, jogada numa caminhonete, algemada a um total
desconhecido e não faz a menor ideia de para onde está sendo levada ou por
quê. Qualquer pessoa normal já teria tido uns mil chiliques, berrado feito
louca. Mas você não. Você está aí sentada, completamente calma. O que
sugere algum tipo de treinamento, talvez certa familiaridade com situações
fora do comum ou perigosas. E talvez alguma convicção de que tem uma
porrada de gente querendo reaver você o mais cedo possível.
Ele parou, e ela fez sinal com a cabeça para que continuasse.
— Você também tinha uma arma na bolsa — afirmou. —
Razoavelmente pesada, talvez um .38, cano longo. Se fosse uma arma
particular, uma mulher elegante como você escolheria algo mais jeitoso,
como um .22 de cano curto. Mas era um revólver grande; então você
precisa dele. Sendo assim, você é algum tipo de agente, talvez uma policial.
A mulher voltou a fazer um gesto positivo, lentamente.
— Por que sou novata no trabalho? — perguntou.
— Sua idade — Reacher respondeu. — Qual é? Vinte e seis?
— Vinte e sete.
— É nova para ser detetive — disse. — Faculdade, talvez alguns anos
com uniforme? Jovem para o FBI, DEA, a CIA também. Então seja lá o que
for, você é novata.
Ela deu de ombros.
— Certo — disse. — Por que sou razoavelmente dedicada?
Reacher apontou com a mão esquerda, chocalhando a algema
compartilhada.
— Seu ferimento — constatou. — Você voltou a trabalhar depois de
algum tipo de acidente, antes de se recuperar totalmente. Ainda está usando
essa muleta por causa da perna lesada. A maioria das pessoas em sua
posição estaria em casa recebendo auxílio-doença.
Ela sorriu.
— Eu poderia ser deficiente — alfinetou. — Poderia ter nascido assim.
Reacher balançou a cabeça na escuridão.
— Isso é muleta surrada de hospital — afirmou. — Emprestaram para
você por pouco tempo, até que se recupere. Se fosse coisa permanente, você
compraria sua própria muleta. Provavelmente uma dúzia. Pintaria todas de
forma diferente para combinar com seus trajes caros.
Ela riu. Era um som agradável acima do ronco ensurdecedor do motor
do furgão e o trepidar da estrada.
— Muito bem, Jack Reacher — parabenizou-a. — Eu sou agente
especial do FBI. Desde o outono passado. Recentemente, rompi os
ligamentos cruzados jogando futebol.
— Você joga bola? — Reacher ficou surpreso. — Bom para você,
Holly Johnson. Que tipo de agente do FBI desde o outono passado?
Ela ficou quieta por um tempinho.
— Apenas uma agente — respondeu. — Uma entre muitos na filial de
Chicago.
Reacher negou com a cabeça.
— Não é uma agente qualquer — disse. — Uma agente que está
pentelhando alguém que talvez queira dar o troco. Fala aí, você está
mexendo com quem?
Ela balançou a cabeça negativamente por sua vez.
— Eu não posso discutir isso — disse. — Não com civis.
Ele assentiu com um gesto. Isso não o incomodava.
— Certo.
— Todos os agentes fazem inimigos — afirmou.
— Naturalmente — concordou ele.
— Eu também, como qualquer outro — disse.
Olhou de esguelha para ela. Era uma observação curiosa. Defensiva.
De uma mulher treinada e ansiosa, pronta para botar pra quebrar, mas
acorrentada a uma mesa desde o outono passado.
— Departamento financeiro? — sugeriu.
Ela negou com a cabeça.
— Eu não posso discutir isso — disse novamente.
— Mas você já fez inimigos — afirmou ele.
Ela soltou um breve meio sorriso em negativa. Então ficou em
silêncio. Parecia calma, mas Reacher podia sentir em seu pulso que, pela
primeira vez, estava preocupada. Porém aguentando firme. E estava errada.
— Não querem te matar — disse. — Poderiam ter feito isso naquele
terreno ermo. Por que iam arrastar você para longe nesta porra de
caminhonete? E também trouxeram sua muleta.
— O que tem minha muleta? — perguntou.
— Não faz o menor sentido — disse. — Por que a jogariam aqui
dentro se vão matar você? Você é uma refém, Holly, é o que você é. Tem
certeza de que não conhece esses sujeitos? Nunca os viu?
— Nunca — afirmou ela. — Eu não sei quem diabos são ou o que
raios querem de mim.
Ele a encarou. Ela mostrou uma convicção exagerada. Estava
ocultando algo. Ficaram em silêncio em meio à barulheira. Chacoalhando
para lá e para cá no movimento de vaivém do furgão. Reacher olhou
fixamente para o interior das trevas. Podia sentir Holly fazendo
deliberações. Ela virou de lado outra vez.
— Eu preciso te tirar daqui — voltou a dizer.
Ele lhe lançou um olhar, desviou a vista e arreganhou os dentes.
— Pra mim está joia, Holly — ironizou. — Quanto antes, melhor.
— Quando alguém vai dar por sua falta? — perguntou.
Essa era uma pergunta que teria preferido não responder. Mas ela
estava olhando firme, na expectativa. Por isso, refletiu um pouco e disse a
verdade a ela.
— Nunca — disse ele.
— Por que não? — perguntou ela. — Quem é você, Reacher?
Ele olhou para ela e deu de ombros.
— Ninguém — retorquiu.
Ela continuou olhando para ele. Perplexa, talvez irritada.
— Certo, que tipo de ninguém? — perguntou.
Ouviu Memphis Slim na cabeça: Me fez trabalhar em uma siderúrgica.
— Eu sou segurança — disse. — De uma boate em Chicago.
— Qual boate? — perguntou.
— Uma casa de blues na Zona Sul — respondeu. — Você
provavelmente não conhece.
Ela olhou para ele e negou com a cabeça.
— Um segurança? — estranhou. — Você é sossegado demais para
segurança.
— Seguranças encaram muitas situações estranhas — contou.
Ela não pareceu muito convencida, e ele colocou o rosto perto do
relógio para checar a hora. Duas e meia da tarde.
— Em quanto tempo alguém vai notar sua ausência? — perguntou.
Ela olhou o próprio relógio e fez uma careta.
— Um bom tempo — respondeu. — Tenho uma reunião sobre alguns
casos às cinco horas da tarde. Nada antes disso. Duas horas e meia, antes
que alguém dê por minha falta.
4

BEM DENTRO DO ALICERCE DO ABRIGO DO SEGUNDO ANDAR,


um segundo abrigo tomava forma. Estava sendo construído com madeira
vagabunda, mas novinha em folha, pregada de maneira convencional,
parecia que o quarto velho estava parindo um novo. Mas o quarto novo
seria aproximadamente trinta centímetros menor do que o antigo em todas
as dimensões. Trinta centímetros mais curto, trinta centímetros mais estreito
e trinta centímetros mais baixo.
As vigas do assoalho seriam levantadas trinta centímetros acima das
antigas, com ripas de trinta centímetros da nova madeira vagabunda. As
ripas novas pareciam uma floresta de estacas curtas, prontas para suportar o
assoalho novo. Mais ripas curtas estavam prontas para segurar o novo
vigamento, trinta centímetros de distância do antigo, ao redor de todas as
laterais e das extremidades. O vigamento novo tinha o amarelo radiante de
madeira novinha. Brilhava em contraste com a cor fosca de mel do antigo,
que parecia um esqueleto velho que de repente gerava um novo de dentro
de si.
Três homens estavam construindo o novo esqueleto. Pisavam de ripa
em ripa com a habilidade vinda da prática. Pareciam ter experiência em
construções. E trabalhavam rápido e rasteiro. Seu contrato exigia que
acabassem no prazo. O patrão tinha sido explícito a esse respeito. Era
algum tipo de trabalho urgentíssimo. Os três carpinteiros não tinham do que
reclamar. O empregador havia aceitado o primeiro orçamento. Um
orçamento muito inflado, com uma grande margem embutida, para uma
negociação muito cheia de malandragem. Mas o sujeito não havia tirado
nada dessa margem. Não havia nem negociado. Apenas acenado que sim e
lhes dito para começar o trabalho assim que a turma da demolição tivesse
acabado. Estava difícil de arranjar trabalho, e empregadores que aceitavam
o primeiro preço eram ainda mais difíceis de encontrar. Por isso, os três
homens ficaram contentes de trabalhar duro, trabalhar rápido e trabalhar até
bem tarde. Ansiavam para causar uma boa impressão inicial. Olhando ao
redor, podiam ver potencial para muito mais trabalho.
Dessa forma, esforçavam-se ao máximo. Subiam e desciam escadas
com ferramentas e madeira recém-serrada. Trabalhavam a olho, fazendo
marcas de corte na madeira com as unhas dos polegares, usando suas
pistolas de pregos e serrotes até a exaustão. Mas faziam intervalos
frequentes para medir a abertura entre o vigamento antigo e o novo. O
patrão tinha deixado claro que a dimensão era crucial. O vigamento antigo
tinha quinze centímetros de profundidade. O novo tinha dez. O vão seria de
doze centímetros.
— Quinze com dez com doze — um cara disse. — Trinta e sete
centímetros no total.
— É isso? — um segundo peão perguntou ao encarregado do grupo.
— Perfeito — o chefe elogiou. — Exatamente o que ele pediu pra
gente.
5

A REUNIÃO DAS 5 HORAS DE HOLLY JOHNSON FOI designada para


a sala do terceiro andar da agência do FBI de Chicago. Era uma grande sala,
mais de setenta metros quadrados e praticamente tomada por uma longa
mesa envernizada, flanqueada por trinta cadeiras, quinze de cada lado. As
cadeiras eram chiques, de couro, e a mesa, de madeira maciça, de primeira,
mas qualquer pretensão de que o lugar fosse uma sala corporativa de
reuniões de diretoria era anulada pelo papel de parede governamental
padrão e surrado e pelo carpete barato. Havia uns oitenta metros quadrados
de carpete, e tal custo provavelmente tinha sido menor do que apenas uma
das cadeiras.
Cinco horas, verão, o sol da tarde afluía para o interior pela fachada
envidraçada e dava às pessoas que chegavam à sala apenas duas escolhas.
Se ficavam de frente para as janelas, o sol batia nos olhos, fazendo-as piscar
e ficar durante toda a reunião de olhos semicerrados, e acabavam com uma
ofuscante dor de cabeça. E o sol superava o ar-condicionado. Por isso, se
ficavam de costas para as janelas, esquentavam a ponto de se sentirem
incomodadas e começavam a se preocupar se o desodorante não venceria às
cinco horas da tarde. Uma escolha difícil, mas a melhor opção era evitar a
dor de cabeça e arriscar o calorão. Assim, os participantes que chegavam
mais cedo pegavam as cadeiras de costas para a fachada.
O primeiro a entrar na sala foi o advogado do FBI, com atuação
direcionada para crimes financeiros. Ficou parado um momento e calculou
a provável duração da reunião. Talvez quarenta e cinco minutos, pensou,
conhecendo Holly; então se voltou e tentou avaliar que lugar teria o
benefício da sombra da coluna fina que dividia a parede envidraçada em
duas. A faixa de sombra se encontrava à esquerda da terceira cadeira e ele
sabia que ela avançaria para a cabeceira da mesa à medida que o tempo
passasse. Portanto, jogou sua pilha de pastas na mesa, na frente da segunda
cadeira, tirou a jaqueta e a deixou cair na cadeira, reivindicando assim o
lugar. Então se voltou outra vez e se dirigiu para o aparador na extremidade
da sala, a fim de tomar uma xícara de café da máquina de expresso.
Em seguida, entraram dois agentes que trabalhavam em casos que
poderiam estar ligados ao abacaxi que Holly estava descascando. Abanaram
a cabeça para o advogado, vendo o lugar que tinha reivindicado. Sabiam
que era pura perda de tempo escolher entre as outras quatorze cadeiras perto
da janela. Todas ficariam igualmente quentes. Então, apenas jogaram suas
pastas nos dois lugares mais próximos e entraram na fila do café.
— Ela ainda não chegou? — um deles perguntou ao advogado.
— Não a vi o dia inteiro — o advogado constatou.
— Azar o seu, não é? — o sujeito brincou.
Holly Johnson era uma agente nova, porém talentosa, e isso a estava
tornando popular. No passado, o FBI não teria o mínimo prazer em prender
o tipo de empresário que Holly fora contratada para caçar, porém os tempos
haviam mudado e a agência de Chicago tinha pegado o gostinho. Os
empresários agora eram vistos como uns trastes e não cidadãos íntegros, e o
FBI estava de saco cheio de vê-los pegar trem para casa. Os agentes saíam
dos trens quilômetros antes dos banqueiros e corretores da bolsa, que iam
para bem mais longe, para seus subúrbios opulentos. Os agentes estariam
pensando em segundas hipotecas, e mesmo em segundos empregos, e nos
anos de trabalho como detetive particular que teriam que acrescentar para
completar sua magérrima aposentadoria pública. E os executivos estariam
sentados, de papo para o ar, com seus sorrisos presunçosos. Então, quando
um ou dois deles começaram a levar umas rasteiras, o FBI ficou muito feliz.
Quando esses um ou dois se transformaram em dezenas e depois em
centenas, o negócio virou uma caçada sangrenta.
O único inconveniente era ser um trabalho casca grossa.
Provavelmente mais difícil de resolver do que qualquer outro. A chegada de
Holly Johnson havia facilitado as coisas justamente nisso. Ela tinha talento.
Conseguia entender um balancete e sabia de imediato se havia alguma coisa
de errado. Era como se pudesse farejar. Sentava-se à mesa e olhava os
papéis, inclinava a cabeça ligeiramente para um lado e refletia, às vezes
horas, mas, quando parava, sabia o que diabos estava acontecendo, e aí
explicava tudo na reunião sobre os casos. Fazia a coisa toda parecer fácil e
lógica, como se não houvesse jeito de ninguém poder ter qualquer tipo de
dúvida a respeito. Era uma mulher que progredia, que fazia seus colegas
agentes se sentirem melhores naqueles trens à noite. Era isso que a tornava
popular.
A quarta pessoa a entrar na sala de reunião do terceiro andar foi o
agente designado para ajudar Holly a buscar e carregar coisas, até que se
recuperasse da contusão futebolística. Seu nome era Milosevic. Franzino,
um leve sotaque da Costa Oeste. Menos de quarenta anos, trajando um
terno casual cáqui, de grife, ouro no pescoço e no pulso. Era igualmente um
recém-chegado, há pouco transferido para a agência de Chicago, já que esse
era o lugar onde o FBI acreditava que precisava do seu pessoal financeiro,
digamos assim. Juntou-se à fila do café e olhou ao redor da sala.
— Está atrasada? — perguntou.
O advogado deu de ombros e Milosevic fez o mesmo. Gostava de
Holly Johnson. Trabalhava com ela há cinco semanas, desde a lesão no
campo de futebol, e havia apreciado cada minuto.
— Geralmente não chega atrasada para nada — avisou.
A quinta pessoa a entrar foi Brogan, chefe do departamento de Holly.
Irlandês, de Boston via Califórnia. Mais para a ala jovem da idade mediana.
Cabelo preto, rosto típico de irlandês, avermelhado. O chamado osso duro
de roer, elegantemente vestido com um paletó caro de seda, ambicioso.
Havia vindo para Chicago na mesma época que Milosevic e estava puto por
não ter sido mandado para Nova York. Buscava a ascensão que estava certo
que merecia. Havia uma teoria em sua linha de pensamento de que a
chegada de Holly ao seu departamento realçava suas possibilidades de
conseguir o que queria.
— Ela ainda não chegou? — estranhou.
Os outros quatro deram de ombros.
— Vou dar logo um esporro... — Brogan disse.
Holly tinha sido analista de mercado de capitais em Wall Street antes
de se candidatar ao FBI. Ninguém tinha certeza de por que havia feito a
troca. Tinha altos relacionamentos, um pai pra lá de ilustre, e a suposição
mais simples era de que queria impressioná-lo de algum modo. Ninguém
sabia ao certo se o velho estava, de fato, impressionado, mas sentiam que
devia estar sim senhor. Holly fora uma entre os dez mil pretendentes no seu
ano, e tinha ido parar no topo dos quatrocentos que haviam conseguido.
Havia superado os critérios de recrutamento. O FBI tinha procurado os
formados em Direito ou Ciências Contábeis ou então em disciplinas mais
fracas, mas que depois haviam trabalhado em algum lugar por três anos
pelo menos. Holly tinha se qualificado em todos os quesitos. Havia se
formado em contabilidade em Yale, tinha mestrado em Harvard e ainda por
cima três anos em Wall Street. Havia passado com facilidade nos testes de
inteligência e avaliações de aptidão. Tinha encantado os três agentes de
serviço que a haviam interrogado severamente em sua entrevista final.
Havia passado nas comprovações de antecedentes com a maior
moleza, o que era compreensível devido às suas relações, e então tinha sido
enviada à academia do FBI em Quantico. E foi aí que mostrou mesmo a que
veio. Estava em ótima forma e era forte, aprendeu a atirar, tirou de letra o
curso de liderança, nota máxima nos tiroteios simulados em Hogan’s Alley.
Mas seu principal quesito era a atitude. Fez duas coisas imediatamente.
Primeiro, aceitou a ética do FBI, no mais alto grau possível. Ficou
totalmente claro para todos que ali estava uma mulher que viveria e
morreria pelo FBI. Além disso, fez de um jeito que não deu qualquer
margem a dúvidas, além de dar um tom delicado de humor zombeteiro à sua
atitude, que impedia que o pessoal a odiasse. Acabaram adorando-a. Não
havia nenhuma dúvida de que o FBI havia contratado uma nova peça de
suma importância. Mandaram-na para Chicago e se sentaram
confortavelmente para colher os benefícios.

Um grupo de homens que chegaram juntos foi o último a entrar na sala de


reunião do terceiro andar. Treze agentes e o superintendente McGrath. Os
treze se aglomeravam em torno do chefe, que estava passando os olhos num
relatório enquanto andava. Os treze não deixavam escapar uma palavra
sequer. McGrath era o cara. Um homem que havia estado no topo e depois
voltara a descer às ruas. Havia passado três anos no Hoover Building como
subdiretor do FBI e depois tinha pedido rebaixamento e corte no salário
para voltar a uma filial de campo. A decisão tinha lhe custado um prejuízo
de dez mil dólares por ano, mas resgatara sua sanidade e conquistara o
respeito infinito, além da afeição cega dos agentes com quem trabalhava.
Um superintendente numa filial de campo como Chicago é o
equivalente a ser capitão de um grande navio de guerra. Teoricamente, há
pessoas acima dele, mas todas estão a três mil quilômetros de distância, em
Washington. São hipotéticas. O superintendente é real. Toca seu comando
como a mão de Deus. Era assim que a agência de Chicago via McGrath,
que não fazia nada para minar esse sentimento. Era distante, porém
acessível. Era reservado, no entanto fazia seu pessoal sentir que morreria
por eles. Era um homem baixo, encorpado, hiperativo. Um pit bull. O tipo
de sujeito incansável que irradia total confiança. O tipo de homem que
melhora um grupo só pelo fato de liderá-lo. Seu nome era Paul, mas era
chamado de Mack, como o caminhão.
Deixou seus treze agentes se sentarem, dez de costas para a janela e
três com o sol nos olhos. Então arrastou uma cadeira e a colocou na
cabeceira da mesa, pronta para Holly. Foi à outra extremidade e arrastou
uma para si. Sentou-se de lado para o sol. Começou a ficar preocupado.
— Onde ela está? — perguntou. — Brogan?
O cabeça da seção deu de ombros, com as palmas para cima.
— Já deveria estar aqui, até onde eu sei — disse.
— Ela deixou recado com alguém? — McGrath perguntou. —
Milosevic?
Milosevic, os outros quinze agentes e o advogado do FBI deram de
ombros e balançaram a cabeça. A preocupação de McGrath aumentou mais
ainda. As pessoas têm um jeito de agir, um ritmo, uma espécie de impressão
digital comportamental. Holly chegava, no máximo, um ou dois minutos
atrasada, mas isso era tão fora do normal que sinos badalavam. Em oito
meses, nunca tinha ouvido falar que ela havia chegado atrasada. Nunca
tinha acontecido. Outras pessoas poderiam chegar cinco minutos atrasadas à
sala de reunião, o que pareceria normal. Por causa do jeito de agir. Mas não
Holly. Três minutos depois das cinco da tarde, McGrath olhou fixamente
para sua cadeira vazia e se convenceu de que havia um problema.
Levantou-se na sala quieta e andou até o aparador, na parede oposta. Havia
um telefone ao lado da máquina de café. Pegou-o e discou para seu
escritório.
— Holly Johnson ligou? — perguntou à sua secretária.
— Não, Mack — afirmou ela.
Bateu no gancho e discou para a recepção, dois andares abaixo.
— Algum recado de Holly Johnson? — perguntou irritado ao agente
da portaria.
— Não, chefe — o agente respondeu. — Nem vi.
Bateu no gancho outra vez e ligou para a central telefônica geral.
— Holly Johnson ligou? — perguntou.
— Não, senhor — a telefonista da central respondeu.
Ficou segurando o telefone e gesticulou, pedindo caneta e papel. Então
falou com a central telefônica novamente:
— Passe o número do pager dela — ordenou. — E do celular, está
bem?
O receptor crepitou e ele rabiscou os números. Desconectou-se da
central telefônica e discou para o pager de Holly. Apenas recebeu um tom
baixo e longo, dando sinal de desligado. Então tentou o número do celular.
Recebeu um bipe eletrônico e uma mensagem gravada de uma mulher que
lhe dizia que o telefone para o qual estava discando estava desligado ou fora
da área de cobertura. Desligou e olhou ao redor da sala. Eram cinco e dez
da tarde, segunda-feira.
6

SEIS E MEIA NO RELÓGIO DE REACHER. A Movimentação dentro do


furgão tinha mudado. Haviam viajado seis horas e quatro minutos sem
parar, talvez entre oitenta e cem quilômetros por hora. O calor chegara ao
zênite e depois caíra. Ficou sentado, suando, quicando e se sacudindo no
escuro com o arco da roda entre ele e Holly Johnson, calculando a distância
com um mapa mental. Calculou que haviam feito uns seiscentos
quilômetros. Mas não sabia em que direção. Se estivessem indo para o leste,
teriam atravessado Indiana e mal teriam deixado Ohio, talvez estivessem
acabando de entrar na Pensilvânia ou na Virgínia Ocidental. Para o sul,
teriam saído de Illinois e entrado no Missouri ou no Kentucky, talvez até
mesmo no Tennessee, se tivessem subestimado a velocidade. Para o oeste,
estariam atravessando o Iowa. Poderiam ter rodeado a margem inferior do
lago e se dirigido para o norte, subido e atravessado o Michigan. Ou ter
saído direto pelo noroeste e, neste caso, poderiam estar lá em cima, perto de
Minneapolis.
Mas tinham chegado a algum lugar, porque o furgão estava reduzindo
a velocidade. Deram uma guinada para a direita, como se estivessem saindo
da estrada. Ouviram-se um ruído de engrenagem e uns baques sobre o
pavimento quebrado. Os pneus sofriam com a pressão das curvas. A muleta
de Holly deslizou e ribombou de um lado para outro no chão metálico cheio
de sulcos. O veículo subiu morros e desceu declives com o motor gemendo,
fez pausas em cruzamentos invisíveis, acelerou, freou, fez uma curva
fechada para a esquerda e depois desceu lentamente uma superfície
irregular reta por quinze minutos.
— Estamos numa área rural — Reacher concluiu.
— É óbvio — Holly disse. — Mas de onde?
Reacher deu de ombros nas trevas. O furgão reduziu a velocidade até
quase parar e fez uma curva acentuada. A superfície da estrada piorou. A
caminhonete irrompeu para a frente, talvez cento e quarenta metros, e
parou. Ouviram a porta do passageiro se abrir, lá na frente. O motor ainda
estava ligado. A porta do passageiro se fechou com um estrondo. Reacher
ouviu uma porta grande se abrir, e o furgão avançou lentamente para a
frente. O ruído do motor reverberou contra as paredes metálicas. Reacher
ouviu o barulho da porta mais uma vez, e o ruído do motor ecoou mais alto.
E então foi desligado, caindo no silêncio.
— Entramos em algum tipo de celeiro — Reacher disse. — Com as
portas fechadas.
Holly fez um sinal de concordância, com impaciência.
— Eu sei disso — disse. — Um estábulo. Pelo cheiro.
Dava para Reacher ouvir a conversa abafada fora do furgão. Passos
dando a volta até as portas traseiras. Uma chave entrando na fechadura. A
maçaneta girando. Um fluxo de luz ofuscante quando a porta se abriu.
Reacher piscou ao ser atingido pelo repentino brilho radiante e olhou
fixamente além de Holly, para três homens, duas Glocks e uma espingarda.
— Pra fora — o líder ordenou.
Saíram com esforço, algemados. Não foi fácil. Estavam entrevados e
cheios de dor, com cãibras de tanto terem se apoiado no arco da roda por
seis horas contínuas. Um dos joelhos de Holly se encontrava totalmente
paralisado. Reacher começou a voltar, a fim de pegar a muleta.
— Deixa lá, imbecil — o líder disse.
O sujeito tinha ares de cansaço e irritação. Reacher olhou duro para
ele, e deu de ombros. Holly se firmou e tentou pôr o peso sobre a perna.
Ofegou de dor e desistiu. Olhou firme para Reacher, de forma impessoal,
como se ele fosse algum tipo de árvore, e esticou a mão esquerda livre,
estabilizando o corpo em torno do seu pescoço. Era a única maneira que
conseguia ficar de pé.
— Desculpa, tá — murmurou.
O líder apontou para a esquerda com a Glock. Encontravam-se em um
grande estábulo. Nenhuma vaca, mas pelo odor não estavam ausentes há
muito tempo. O furgão estacionou numa larga coxia central. De um lado e
do outro havia baias de vacas, espaçosas, feitas de tubos de aço
galvanizado, soldados com eficiência. Reacher se voltou, segurou a cintura
de Holly, e os dois foram saltitando e cambaleando até a baia para onde o
sujeito da Glock estava apontando. Holly agarrou um parapeito e ficou
segurando, sem graça.
— Desculpa — murmurou outra vez.
Reacher meneou a cabeça e ficou no aguardo. O motorista com a
espingarda os cobriu e o líder se afastou. Ergueu a porta grande, abriu e
entrou. Reacher vislumbrou o céu que escurecia. Nublado. Não fazia a
menor ideia de onde estavam.
O líder ficou fora cinco minutos. Fez-se silêncio no celeiro. Os outros
dois sujeitos permaneceram imóveis, as armas apontadas e engatilhadas. O
tipinho agitado com a Glock olhava fixamente para a cara de Reacher. O
motorista com a espingarda não tirava os olhos dos peitos de Holly. Com
um semissorriso. Ninguém falava nada. Então o líder voltou. Portava outra
algema e duas correntes pesadas.
— Você está cometendo um grande erro — Holly disse. — Eu sou
agente do FBI, sabia?
— Sei disso, vagabunda — o cara respondeu. — Agora fica quieta.
— Você está cometendo um crime grave — Holly alertou.
— Sei disso, vagabunda — o sujeito repetiu. — E mandei você fechar
o bico. Se disser mais uma palavra, explodo a cabeça deste mané. Aí você
vai passar a noite com um cadáver acorrentado no pulso, sacou?
Ele ficou esperando até ela concordar, com um gesto de cabeça, em
silêncio. Então o motorista com a espingarda se posicionou atrás deles, e o
líder destrancou a algema, liberando seus pulsos. Passou uma das correntes
em torno da grade da baia e atrelou as pontas no aro livre da algema,
pendurada no braço esquerdo de Reacher. Puxou e sacudiu para ver se
estava firme. Então arrastou Holly duas baias adiante e usou as algemas
novas e a segunda corrente para prendê-la à grade, a seis metros de Reacher.
Seu joelho falseou e ela caiu pesadamente na palha suja com um gemido de
dor. O líder a ignorou. Apenas voltou ao lugar onde Reacher estava
acorrentado. Pôs-se na frente dele.
— Então, quem diabos é você, otário? — perguntou.
Reacher não respondeu. Sabia que as chaves de ambas as algemas
estavam no bolso desse sujeito e que levaria cerca de um segundo e meio
para estrangulá-lo com a corrente pendurada no seu pulso. Mas os outros
dois caras estavam fora de alcance. Uma Glock e uma espingarda, longe
demais para agarrá-las antes de se soltar, perto demais para ficar instigado a
tentar. Estava lidando com um bando razoavelmente profissional de
oponentes. Por isso, apenas deu de ombros e olhou para a palha aos seus
pés. Estava suja de esterco.
— Fiz uma pergunta, cacete! — o cara se irritou.
Reacher olhou para ele. Com o canto dos olhos viu o tipinho agitado
erguer sua Glock um ou dois graus.
— Eu te fiz uma pergunta, seu merda — o líder voltou a dizer, agora
em voz baixa.
A Glock do sujeitinho agitado avançou. Depois ficou reta, na altura do
ombro. Apontada bem para a cabeça de Reacher. A boca da arma tremia,
fazendo um pequeno círculo espasmódico, mas provavelmente não o
bastante para fazer com que o cara errasse. Não de tão perto. Reacher olhou
de um cara para outro. O sujeito com a espingarda desviou a atenção dos
peitos de Holly. Levantou a arma até o quadril. Apontou-a na direção de
Reacher. Era uma Ithaca 37. Calibre doze. Aversão de cinco tiros com cabo
de pistola e sem suporte de ombro. O cara colocou uma bala na câmara. A
mastigação do mecanismo ecoou no estábulo. Ecoou pelas paredes de
metal. Morreu no silêncio. Reacher viu o gatilho percorrer os primeiros
milímetros de sua curta jornada.
— Tem nome? — o líder perguntou.
O gatilho da espingarda se comprimiu mais um oitavo. Se disparasse
nessa trajetória, Reacher perderia ambas as pernas e uma boa parte do
estômago.
— Tem nome? — o líder perguntou pela segunda vez.
Era uma calibre doze, não o mataria imediatamente, mas ele sangraria
até a morte na palha suja. A artéria femoral iria para o beleléu em
aproximadamente um minuto, talvez um minuto e meio. Nessas
circunstâncias, não havia nenhum motivo para criar caso só para não dar um
nome a esse desgraçado.
— Jack Reacher — respondeu.
O líder balançou a cabeça, satisfeito, como se tivesse conquistado uma
vitória.
— Você conhece a vadia? — perguntou.
Reacher deu uma olhadela para Holly.
— Melhor do que muita gente — retrucou. — Acabei de passar seis
horas algemado a ela.
— Você é algum otário metido a esperto? — o líder perguntou.
Reacher negou com a cabeça.
— Transeunte inocente — admitiu. — Nunca vi mais gorda.
— Você trabalha para o FBI, não trabalha? — o cara perguntou.
Reacher negou com a cabeça outra vez.
— Eu sou segurança — disse. — De uma casa noturna em Chicago.
— Tem certeza, otário? — o cara perguntou.
Reacher disse sim com um gesto de cabeça.
— Absoluta — respondeu. — Eu sou esperto o suficiente para lembrar
o que faço para viver, de um dia para o outro.
Fez-se um longo silêncio. Tensão. Então o tipinho agitado com a
Glock saiu de sua posição de tiro. O motorista com a espingarda deixou a
arma se voltar para a palha no chão. Virou a cabeça e continuou a olhar
fixamente para os peitos de Holly. O líder acenou com a cabeça para
Reacher.
— Certo, otário — falou. — Se comporte e permanecerá vivo por
agora. O mesmo serve para a vagabunda. Nada vai acontecer com ninguém.
Pelo menos por enquanto.
Os três homens se reagruparam no corredor central e saíram do celeiro.
Antes de trancar a porta, Reacher viu o céu mais uma vez, por pouco tempo.
Mais escuro. Ainda nublado. Nenhuma estrela. Nenhuma pista. Testou a
corrente. Estava bem presa no aro da algema e no parapeito. Talvez tivesse
dois metros de comprimento. Podia ouvir Holly fazendo a mesma
experiência. Esticando sua corrente e calculando o campo de movimentação
que tinha.
— Dá pra desviar esse olho? — ela falou alto.
— Por quê? — ele devolveu.
Fez-se um breve silêncio. Houve um suspiro. Meio sem graça, meio
aborrecida.
— Você precisa mesmo perguntar? — bradou. — Ficamos seis horas
naquele furgão e não tinha banheiro, né?
— Você vai à baia ao lado? — perguntou.
— Tem outro jeito? — ela devolveu novamente.
— Certo — concordou ele. — Vai para a direita que eu vou para a
esquerda. Eu não olho se você não olhar.

Os três homens voltaram ao celeiro uma hora depois com comida. Algum
tipo de guisado de carne numa marmita de metal, uma para cada. Boa parte,
pedaços de bife malpassados e uma porção de cenouras duras. Quem quer
que esses caras fossem, cozinhar não era o forte deles. Reacher tinha
certeza disso. Passaram uma caneca esmaltada com café ralo, uma para
cada. Então entraram no furgão. Ligaram e saíram do celeiro de ré.
Desligaram as luzes fortes. Reacher percebeu de relance o vazio sombrio do
exterior. Então puxaram a porta grande para baixo e trancaram. Deixaram
seus prisioneiros no escuro e no silêncio.
— Posto de gasolina — Holly falou de seis metros de distância. —
Estão enchendo o tanque para o resto da viagem. Não podem fazer isso com
a gente dentro. Se tocaram que a gente poderia martelar a lateral e gritar
pedindo socorro.
Reacher fez que sim com a cabeça e acabou seu café. Lambeu o garfo
do guisado até deixá-lo limpinho. Curvou um dos dentes para fora e torceu
um pouco a ponta com a pressão da unha do polegar. Fez um ganchinho.
Usou-o para forçar a fechadura da algema. Levou dezoito segundos, do
começo ao fim. Largou a algema e a corrente na palha, e andou até Holly.
Curvou-se e soltou o pulso dela. Doze segundos. Ajudou-a a se levantar.
— Segurança, né? — zombou ela.
— Né — disse ele brincando. — Vamos dar uma olhada por aí.
— Eu não consigo andar — ela avisou. — Minha muleta está na bosta
do furgão.
Reacher concordou com a cabeça. Ela permaneceu na própria baia,
agarrando-se ao parapeito. Ele deu uma examinada ao redor do grande
estábulo vazio. Era uma estrutura metálica resistente, totalmente construída
com o mesmo metal galvanizado sarapintado, como os parapeitos das baias.
A porta grande estava trancada por fora. Provavelmente com cadeado de
aço. Nenhum problema se conseguisse chegar ao cadeado, mas ele estava
do lado de dentro, e o cadeado, de fora.
As paredes se juntavam com o chão numa cantoneira de ângulo reto,
aparafusada com firmeza no concreto. As próprias paredes eram painéis
horizontais de metal, de cerca de dez metros de comprimento por
aproximadamente um de altura. Foram unidas com mais cantoneiras de
ângulo reto aparafusadas. Cada cantoneira tinha uma saliência de uns
quinze centímetros de profundidade. Como uma escadinha doméstica
gigante, com degraus de um metro de distância um do outro.
Escalou a parede, arrastando-se rapidamente para cima, de cantoneira
em cantoneira, um metro de cada vez. A saída do celeiro ficava bem ali, no
topo da parede, sete seções acima, a oito metros do chão. Havia uma fresta
de ventilação entre a parte superior da parede e o declive protuberante do
telhado de metal. Aproximadamente meio metro de altura. Uma pessoa
poderia rolar horizontalmente para fora pela abertura, como um atleta de
salto em altura, e cair seis metros até o chão.
Ele conseguiria fazer isso, mas Holly Johnson não. Não teria
condições nem mesmo de andar até a parede. Não poderia escalá-la, e não
conseguiria se pendurar de jeito nenhum. Imagina cair seis metros para fora
com ligamentos cruzados destroçados.
— Vá logo — ela gritou. — Saia daqui, agora.
Ele a ignorou e olhou pela brecha a escuridão lá fora. As frestas
formavam um baixo horizonte. Um campo vazio, até onde o olho podia ver.
Desceu e escalou as outras três paredes. O segundo lado dava para um
campo tão vazio quanto o primeiro. O terceiro dava vista para uma casa.
Telhas brancas. Luzes em duas janelas. O quarto lado do estábulo dava
direto para a trilha da fazenda. Cerca de cento e quarenta metros, até uma
estrada sem nada marcante. Além dela, só o vazio. Bem ao longe, avistou
um único par de faróis, sacudindo-se rapidamente e oscilando.
Extensamente espaçado. Crescendo. Chegando mais perto. Era o furgão
voltando.
— Consegue ver onde estamos? — Holly gritou.
— Não faço a mínima ideia — Reacher gritou de volta. — Uma área
rural. Pode ser em qualquer lugar. Onde tem vacas como estas? E
plantações e coisas do gênero?
— É montanhoso lá fora? — Holly gritou. — Ou plano?
— Não dá pra saber — Reacher disse. — Está escuro demais. Talvez
um pouco montanhoso.
— Pode ser a Pensilvânia — Holly falou. — Lá tem morros e vacas.
Reacher desceu da parede e voltou à sua baia.
— Saia daqui, pelo amor de Deus — ela pediu. — Peça socorro.
Ele discordou com a cabeça. Ouviu o motor a diesel desacelerar para
virar na trilha.
— Essa pode não ser a melhor opção — retrucou.
Ela olhou fixamente para ele.
— E alguém deu opção a você por acaso? — disse asperamente. — É
uma ordem. Você é um civil e eu sou do FBI. Estou mandando você se pôr
em segurança agora mesmo.
Reacher apenas deu de ombros e ficou parado.
— Eu estou mandando, sacou? — Holly disse outra vez. — Você vai
me obedecer ou não?
Reacher negou com a cabeça outra vez.
— Não.
Ela olhou furiosa para ele. Então o furgão retornou. Ouviram o barulho
do motor a diesel e o gemido das molas na trilha acidentada lá fora. Reacher
trancou a algema de Holly e voltou correndo até sua baia. Ouviram a porta
do veículo bater e passos no concreto. Reacher acorrentou seu pulso ao
parapeito e endireitou o garfo até deixá-lo como estava. Quando a porta do
estábulo se abriu e a luz clareou o interior, ele estava sentado em silêncio na
palha.
7

O MATERIAL USADO PARA PREENCHER A CAVIDADE de cinquenta


centímetros entre a parte externa das paredes antigas e o interior das novas
foi trazido do galpão de suprimentos numa picape aberta. Pesava uma
tonelada e foram necessárias quatro viagens. Cada remessa havia sido
descarregada com cuidado por uma equipe de oito homens. Trabalharam
como uma antiquada fila de bombeiros antes da invenção da mangueira,
passando balde de mão em mão. Passaram cada uma das caixas para a
frente, de uma mão à outra, até o interior do prédio, e escada acima, até o
segundo andar. As caixas foram empilhadas no corredor em frente ao abrigo
reformado de canto. Os três construtores abriram uma caixa de cada vez e
transportaram o material para dentro do quarto. E depois empilharam tudo,
com cuidado, nos espaços amplos atrás do novo vigamento de madeira
vagabunda. Os descarregadores geralmente pausavam por um momento e
olhavam para os chefes, gratos por um momento de descanso.
O trabalho levou a maior parte da tarde, por causa da quantidade de
material e do cuidado que tomaram para movê-lo. Quando a última das
quatro cargas foi empilhada no andar superior, os oito peões se dispersaram.
Sete deles se dirigiram para o refeitório. O oitavo se espreguiçou nos
últimos raios de sol da tarde e vagueou para fora. Era seu hábito. Quatro ou
cinco vezes por semana, fazia uma longa caminhada, sozinho,
especialmente após um período de trabalho pesado. Pressupunham que
fosse sua maneira de relaxar.
Ele caminhou pela mata. Havia uma picada muito usada na direção
oeste, silenciosa. Seguiu-a por um quilômetro. Então fez uma pausa e se
espreguiçou outra vez. Usou o movimento de torção de um homem cansado
que alivia as costas doloridas para olhar ao redor, fazendo um círculo
completo. Então saiu pela lateral do caminho. Parou de andar. Começou a
caminhar com urgência. Desviou-se das árvores e seguiu uma rota circular
para o oeste, depois para o norte. Foi direto para uma árvore específica.
Havia uma grande pedra lisa, alojada em carrapichos, na base. Ficou
imóvel, aguardando. Escutou com atenção. Então se abaixou e levantou a
pedra. Debaixo dela, havia algo retangular envolto numa espécie de lona.
Desdobrou-a e tirou um pequeno rádio portátil. Puxou a antena curta e
grossa, bateu numa tecla e aguardou. Sussurrou uma mensagem longa e
agitada.

Quando o antigo prédio voltou à quietude, o empregador passou por lá com


várias e novas estranhas instruções. Os três operários, carpinteiros na
verdade, não fizeram nenhuma pergunta. Apenas escutaram atentamente. O
cara tinha direito de obter o que queria. As novas instruções significavam
que uma determinada quantidade de trabalho teria que ser refeita. Diante
das circunstâncias, não havia problema. Menos ainda quando o empregador
ofereceu um dinheiro extra.
Os três, um deles o mestre de obras, trabalharam rapidamente e
levaram menos tempo do que o normal. Porém, já era noite quando
acabaram. O mais novo ficou para trás para embalar ferramentas e enrolar
cabos. O chefe da equipe e o outro sujeito se dirigiram para o norte, no
escuro, e estacionaram exatamente onde o empregador tinha dito a eles.
Saíram do caminhão e aguardaram em silêncio.
— Aqui dentro — ouviu-se uma voz. O patrão. — Bem nos fundos.
Entraram. O lugar era escuro. O cara os esperava em algum lugar nas
sombras.
— Estas tábuas têm serventia para vocês? — o empregador perguntou.
Havia uma pilha de tábuas velhas de pinho bem nos fundos.
— É madeira da boa — o empregador disse. — Talvez vocês possam
usar. Tipo reciclagem, não acham?
Havia outra coisa no chão ao lado da pilha de tábuas. Algo esquisito.
Os dois carpinteiros olharam fixamente. Formas corcundas, estranhas.
Fizeram careta quando identificaram o que era, em seguida encararam um
ao outro. Então se voltaram. O empregador sorriu para eles e levantou uma
automática preta fosca.

O agente da estação de satélite remota do FBI era um cara esperto o


suficiente para perceber que ia ser importante. Não sabia exatamente como
ou por que seria importante, mas um informante infiltrado não arrisca uma
mensagem de rádio de um local oculto sem motivo. Portanto, copiou os
detalhes no sistema digital do FBI. Seu relatório atravessou a rede de
computadores e hospedou-se na enorme unidade central do primeiro andar
do Hoover Building em Washington, capital. O banco de dados do Hoover
não tinha condições de lidar com todos os relatórios novos em um único
dia. Então levou um tempão para o software do FBI fazer uma varredura e
selecionar as palavras-chaves. Depois de ter feito isso, colocou o boletim
em posição de destaque na memória e esperou.
Exatamente na mesma hora, o sistema registrava uma mensagem da
filial de campo do FBI em Chicago. O chefe da filial de lá, o
superintendente McGrath, informava que tinha perdido um dos seus. A
agente especial Holly Johnson havia desaparecido, tinha sido vista pela
última vez ao meio-dia, hora de Chicago, paradeiro atual desconhecido, e
houve uma tentativa frustrada de contato. E como Holly Johnson era um
caso muito especial, a mensagem foi codificada para ser vista apenas pelo
destinatário, e por isso ficou fora de todos os terminais do prédio, exceto
daquele da cobertura, na sala do diretor.

O diretor do FBI saiu de uma reunião de revisão orçamentária pouco antes


das sete e meia da noite. Voltou ao seu conjunto de escritórios e checou as
mensagens. Seu nome era Harland Webster e trabalhava no FBI fazia trinta
e seis anos. Tinha mais um ano de mandato como diretor e pronto, sumiria.
Por isso não estava atrás de encrenca, mas a encontrou fervendo no seu
monitor. Clicou no relatório e o leu inteiro, duas vezes. Suspirou para a tela.
— Merda! — exclamou. — Merda, merda, merda.
O relatório vindo de McGrath, em Chicago, não era a pior notícia que
Webster havia recebido em trinta e seis anos, mas chegava muito perto.
Pegou o interfone em sua mesa, e a secretária atendeu.
— Ligue para McGrath, em Chicago — mandou.
— Ele está na linha um, senhor — a secretária disse. — Já estava
aguardando.
Webster grunhiu e bateu na tecla da linha um. Colocou no viva-voz e
se inclinou para trás na cadeira.
— Mack? — disse ele. — Então, qual é a história?
A voz de McGrath chegou clara de Chicago:
— Oi, chefe — cumprimentou. — Não tem história nenhuma. Ainda
não. Talvez a gente esteja se preocupando cedo demais, mas tive um mau
pressentimento quando ela não apareceu. Sabe como é.
— Claro, Mack — Webster respondeu. — Gostaria de me confundir
com alguns fatos?
— Não temos fato nenhum — McGrath falou. — Ela não apareceu
para uma reunião das cinco horas. Eu estranhei. Ela não deixou recado em
lugar nenhum. Pager e celular estão fora de serviço. Perguntei por aí e a
última vez que ela foi vista foi por volta do meio-dia.
— Ela estava no escritório esta manhã? — Webster perguntou.
— A manhã toda — McGrath garantiu.
— Algum compromisso antes desse negócio das cinco horas? —
Webster indagou.
— Nada na agenda — McGrath disse. — Eu não sei o que ela estava
fazendo ou onde.
— Jesus, Mack! — Webster exclamou. — Você devia estar cuidando
dela. Você devia deixá-la fora das malditas ruas, certo?
— Estava em hora de almoço. — McGrath retrucou. — O que eu
podia fazer?
Fez-se silêncio no escritório do diretor, quebrado somente pelo
zumbido fraco do viva-voz. Webster tamborilou com os dedos em sua mesa.
— Ela estava trabalhando no quê? — perguntou.
— Esquece — McGrath disse. — Podemos pressupor que não houve
interferência de um suspeito do FBI, certo? Não faz o menor sentido no
caso dela.
Webster acenou que sim com a cabeça.
— No caso dela, concordo, creio eu — retrucou ele. — Então o que
mais estamos investigando?
— Ela estava machucada — McGrath disse. — Lesionou o joelho
jogando bola. Calculamos que talvez tenha caído, piorado ainda mais,
talvez tenha ido parar no pronto-socorro. Estamos checando os hospitais
agora.
Webster grunhiu.
— Ou então tem um namorado que não sabemos — McGrath falou. —
Talvez estejam num motel em algum lugar, dando uma trepada.
— Por seis horas?!? — Webster exclamou. — Bem que eu queria ter
tanta sorte.
Fez-se silêncio outra vez. Então Webster se inclinou para a frente.
— Certo, Mack — disse ele. — Você sabe o que fazer e o que não
fazer, num caso como o dela, correto? Mantenha contato. Tenho que ir ao
Pentágono. Voltarei em uma hora. Me liga nessa hora se precisar de mim.
Webster desligou e chamou a secretária pelo interfone para pedir o
carro. Então andou até seu elevador particular e desceu para o
estacionamento no subsolo. Seu motorista o encontrou lá e andaram juntos
até a limusine de diretoria, blindada.
— Pentágono — Webster comunicou ao motorista.

O trânsito não estava ruim, às sete e meia, para uma noite de segunda-feira
de junho. Levaram aproximadamente onze minutos para percorrer quatro
quilômetros. Webster passou esse tempo fazendo ligações urgentes no
celular. Ligou para vários locais dentro de um perímetro tão curto que
poderia tranquilamente ter contatado a todos no grito. Então o carrão
chegou ao Pentagon River Entrance e a sentinela dos fuzileiros navais se
aproximou. Webster desligou o telefone e abaixou a janela para o ritual de
identificação.
— FBI, diretor — disse. — Para ver o Chefe do Estado-Maior.
A sentinela bateu continência e acenou para a limusine seguir. Webster
fechou a janela e esperou o motorista parar. Então desembarcou e entrou
pela porta dos funcionários. Andou até o conjunto de escritórios do chefão.
A secretária o esperava.
— Entre direto, senhor — falou ela. — O general logo estará lá.
Webster entrou no escritório e ficou esperando. Olhou pela janela. A
vista era magnífica, mas tinha um matiz metálico estranho. A janela era
feita de Mylar unilateral, à prova de balas. Era uma ótima vista, mas a
janela ficava na parte externa do prédio, bem do lado da River Entrance, e
por isso tinha que ser protegida. Webster podia ver seu carro, com o
motorista esperando ao lado. Passando o carro, havia uma vista do
Capitólio, do outro lado do Potomac. Webster também via os veleiros na
Tidal Basin, com os últimos raios de sol da tarde reluzindo baixo na água.
Não era um escritório ruim, Webster pensou. Melhor que o meu.
Reunir-se com o chefão do Estado-Maior era um problema para o
diretor do FBI. Era uma daquelas esquisitices da vida em Washington: uma
reunião sem patente definida. Quem era o superior? Ambos eram nomeados
presidenciais. Ambos prestavam contas ao Presidente por meio de apenas
um intermediário, o secretário da Defesa ou o procurador-geral. Chefe do
Estado-Maior era o posto militar mais alto que a nação tinha a oferecer.
Diretor do FBI era o posto policial mais alto. Ambos os chefes estavam no
topo absoluto do seu receptivo pau de sebo. Mas qual pau de sebo era o
mais alto? Isso era um problema para Webster. No final, era um problema
para ele porque a verdade era que seu pau de sebo era menor. Ele controlava
um orçamento de dois bilhões de dólares e mais de vinte e cinco mil
pessoas. O Chefe do Estado-Maior supervisionava um orçamento de
duzentos bilhões e aproximadamente um milhão de pessoas. Dois milhões
se fossem incluídas a Guarda Nacional e a Reserva. O Chefe do Estado-
Maior ia ao Salão Oval do Presidente aproximadamente uma vez por
semana. Webster ia lá duas vezes por ano, se tivesse sorte. Não era de
admirar que o escritório do cara fosse melhor.
O próprio Chefe do Estado-Maior era um sujeito impressionante. Era
um general de quatro estrelas, cuja ascensão havia sido espetacular. Tinha
vindo de lugar nenhum e subira feito um raio no exército, praticamente
mais rápido do que o seu alfaiate conseguia costurar os adornos em seu
uniforme. O cara tinha acabado torto de tantas medalhas. Então fora
agarrado por Washington, entrou e transformou o lugar segundo sua visão,
como se fosse um objetivo militar. Webster ouviu sua chegada na antessala
e se voltou para cumprimentá-lo quando ele entrou no escritório.
— Olá, general — cumprimentou.
O chefe das Forças Armadas fez um gesto de ocupado e sorriu.
— Veio comprar alguns mísseis? — perguntou ele.
Webster ficou surpreso.
— O senhor está vendendo? — questionou. — Quais?
O chefão negou com a cabeça e sorriu.
— Brincadeirinha — disse. — Limitação de armamentos. Os russos se
livraram de uma base na Sibéria. Então agora temos de nos livrar dos
mísseis que designamos para combatê-la. Acatamento ao Tratado, certo?
Temos de jogar limpo. As coisas grandes vamos vender para Israel. Mas
ainda temos cerca de duzentas pequenas, você sabe, Stingers, bagulho que
se lança pelo ombro, terra-ar. Todo o excedente. Às vezes acho que a gente
devia vender pros traficantes de droga. Deus sabe que eles têm tudo o que
querem. Melhores armas do que nós, a maioria deles.
O chefe das Forças Armadas falou enquanto se dirigia para sua cadeira
e se sentava. Webster acenou com a cabeça. Tinha visto os presidentes
fazerem algo similar, contar uma piada, contar uma história leve, de homem
para homem, quebrar o gelo, para fazer a reunião começar com o pé direito.
O chefão se inclinou para trás e sorriu.
— Então, o que posso fazer por você, diretor? — perguntou.
— Recebemos uma notícia de Chicago — Webster disse. — Sua filha
desapareceu.
8

LÁ PELA MEIA-NOITE EM CHICAGO A SALA DE REUNIÕES do


terceiro andar havia sido transformada num centro de comando. Os técnicos
do FBI tinham se atropelado a noite toda, instalando linhas telefônicas na
sala e terminais de computador em linha reta no centro da mesa de madeira
maciça. Agora, à meia-noite, ela estava escura, fresca e quieta. Um
negrume brilhante do lado de fora da parede de vidro. Já não brigavam para
decidir qual lado da mesa era melhor.
Ninguém tinha ido para casa. Havia dezessete agentes estirados nas
cadeiras de couro. Até mesmo o advogado do FBI ainda estava lá. Não
havia motivo para isso, mas o cara estava sentindo na pele a mesma reação
de nível três de todos. O FBI cuida dos seus. Esse era o nível número um. A
filial de campo de Chicago cuida de Holly Johnson. Esse era o nível
número dois. Não apenas por causa de seu pai. Isso não tinha nada a ver
com a história. Holly era Holly. E o nível número três era: McGrath queria,
McGrath conseguia. Se McGrath estava preocupado com Holly, então todos
estavam preocupados, e todos iam permanecer preocupados até que ela
fosse encontrada, sã e salva. Por isso, todos ainda estavam lá. Quietos e
preocupados. Até que McGrath entrou na sala, falando alto e alegre,
fazendo uma entrada espalhafatosa, fumando como se sua vida dependesse
disso.
— Boa notícia, pessoal, escutem, escutem — berrou.
Foi se esquivando até chegar à cabeceira da mesa. Os murmúrios
morreram no silêncio repentino. Dezoito pares de olhos o seguiram.
— Ela foi encontrada — ele berrou. — Nosso pessoal encontrou,
certo? Ela está segura e bem. O pânico acabou, gente. Todo mundo pode
relaxar agora.
Dezoito vozes começaram a falar ao mesmo tempo. Todas fazendo as
mesmas perguntas urgentes. McGrath ergueu as mãos pedindo silêncio,
como um candidato num comício.
— Ela está no hospital — disse. — O que aconteceu foi que seu
ortopedista teve uma brecha esta tarde que não esperava. Ligou para ela, ela
foi direto para lá, foi levada direto para a sala de cirurgia. Ela está bem,
recuperando-se, e está com muita vergonha pelo rebuliço que causou.
As dezoito vozes começaram outra vez, e McGrath as deixou continuar
o alvoroço por um momento. Então ergueu as mãos novamente.
— Então, o pânico acabou, certo? — gritou outra vez, sorrindo.
O alvoroço ficou com um tom mais leve assim que as vozes se
encheram de alívio.
— Certo, pessoal, vão pra casa dormir — McGrath pediu. — Dia de
trabalho cheio amanhã, não é? Mas obrigado por estarem aqui. Da minha
parte e de Holly. Isso significa muito para ela. Brogan e Milosevic, fiquem
mais algum tempo, vão dividir a carga de trabalho dela para o resto da
semana. O restante de vocês, boa-noite, durmam bem e obrigado
novamente, cavalheiros.
Os quinze agentes e o advogado sorriram, bocejaram e se levantaram.
Acotovelaram-se alegre e ruidosamente para fora da sala. McGrath, Brogan
e Milosevic foram deixados sentados um longe do outro. No silêncio
repentino, McGrath foi até a porta. Fechou-a devagar. Voltou-se e encarou
os outros dois.
— Tudo mentira — disse. — Tenho certeza de que vocês dois
sacaram.
Brogan e Milosevic apenas olharam atentamente para ele.
— Webster ligou para mim — McGrath disse. — E tenho certeza de
que vocês dois podem adivinhar o motivo. Envolvimento total da capital.
Estão no maior alvoroço por lá. Sequestro VIP, certo? Webster ficou
pessoalmente encarregado. Quer sigilo total e o mínimo de pessoal
envolvido. Quer todos daqui fora do caso agora mesmo, exceto eu e mais
uma dupla da minha escolha. Eu escolhi vocês dois por conhecê-los melhor.
Então somos nós três. Lidamos direto com Webster e não falamos com mais
ninguém, entendido?
Brogan olhou fixamente para ele e fez que sim com a cabeça.
Milosevic concordou com um gesto. Sabiam que eram as escolhas óbvias
para o trabalho. Mas ser escolhido por McGrath por qualquer razão era uma
honra. Sabiam disso e também que McGrath sabia que sabiam. Então
acenaram outra vez, com mais firmeza. Em seguida, fez-se um longo
silêncio. A fumaça do cigarro de McGrath se misturou com o silêncio lá
perto do teto. Um relógio na parede tiquetaqueava na direção da meia-noite
e meia.
— Certo — Brogan disse finalmente. — E agora?
— Trabalhamos a noite toda, é isso que vamos fazer — McGrath disse.
— O dia todo, a noite toda, todo dia, toda noite, até acharmos ela.
Olhou de relance para os dois. Avaliou sua escolha. Uma equipe
adequada, pensou. Uma boa mescla. Brogan era mais velho, mais seco, um
pessimista. Um homem baixo, porém troncudo, com aparência arrumada e
instruído, boa dose de imaginação que o tornava útil. Vida privada
desregrada, uma namorada e duas ex-mulheres, todas lhe custando muita
grana e preocupação, mas isso nunca havia interferido no seu trabalho.
Milosevic era mais novo, menos intuitivo, mais altivo, mas sólido. O eterno
auxiliar, o que não era necessariamente uma falha. Uma queda por carros
grandes e caros, com tração nas quatro rodas, mas todo mundo precisa de
algum tipo de passatempo. Ambos estavam começando a se tornarem
veteranos no FBI, com quilometragem em suas Glocks e escalpos em seus
cintos. Ambos focados. Nenhum dos dois jamais reclamou do trabalho, do
expediente ou do salário, o que os tornava praticamente únicos. Uma equipe
adequada. Eram novos em Chicago, mas essa investigação permaneceria em
Chicago. McGrath tinha certeza disso.
— Milo, cheque tudo que ela fez — pediu. — Cada passo, cada
minuto a partir do meio-dia.
Milosevic acenou vagamente, como se já estivesse entretido fazendo.
— Brogan, averigue o background — McGrath ordenou. —
Precisamos achar alguma razão.
Brogan concordou com a cabeça, cabisbaixo, como se soubesse que o
motivo seria a largada e a chegada de tudo isso.
— Eu começo pelo velho? — perguntou.
— Obviamente — McGrath disse. — Pelo menos era o que eu faria.
— Certo, com qual deles? — Brogan perguntou.
— Tanto faz — McGrath respondeu. — Você decide.

A cerca de dois mil e setecentos quilômetros, outra decisão executiva havia


sido tomada. Uma decisão sobre o terceiro carpinteiro. O empregador
voltou ao prédio branco na picape do chefe de equipe. O terceiro carpinteiro
tinha acabado de empilhar as ferramentas e dado um passo para a frente
quando viu o veículo se aproximar. Aí se manteve imóvel, estranhou, ao
avistar a enorme figura ao volante. Permaneceu como estava, incerto,
quando o empregador parou no meio-fio e se ergueu para fora do carro.
— Tudo beleza?
— Onde está o pessoal? — o carpinteiro perguntou.
— Problemas — o empregador disse. — Problemas.
— Problemas?!? — o cara perguntou.
Ficou quieto porque estava pensando na sua parte do pagamento. Uma
parte pequena, com certeza, porque era o novato, mas a parte minoritária
desse preço ainda era mais dinheiro do que tinha visto há muito tempo.
— Tem uma serra aí? — o empregador perguntou.
O cara apenas olhou para ele.
— Pergunta idiota, né? — o empregador completou. — Você é um
carpinteiro e estou te perguntando se tem uma serra. Apenas me mostre qual
a sua melhor.
O cara ficou imóvel por um momento, depois se abaixou e tirou a serra
elétrica da pilha de ferramentas. Uma coisa grande de metal fosco, uma
tremenda lâmina circular, serragem fresca endurecida ao redor dela.
— Corte oblíquo? — o empregador perguntou. — É boa para
atravessar coisas muito duras?
O cara balançou a cabeça afirmativamente.
— Dá conta do recado — disse ele, cauteloso.
— Certo, o negócio é o seguinte: — o empregador começou —
precisamos de uma demonstração.
— Da serra? — o cara perguntou.
— Do quarto — o empregador disse.
— Do quarto? — o cara repetiu.
— O plano é para que ninguém consiga escapar de dentro dele — o
empregador explicou. — Esta é a ideia por trás disso, entende?
— Foi o senhor que projetou — o cara disse.
— Mas será que você... construiu direito? — ele indagou. — É essa a
minha pergunta. Precisamos de um teste experimental. Uma demonstração
para provar que cumpre seu propósito.
— Entendo. De que jeito? — o cara perguntou.
— Entre lá — o empregador ordenou. — Veja se você consegue
escapar até amanhã de manhã. Você construiu, certo? Então você conhece
todos os pontos fracos. Se tem alguém que consegue escapar, esse alguém é
você, com toda certeza, né não?
O cara ficou quieto um bom tempo. Tentando entender.
— E se eu conseguir? — perguntou.
O empregador deu de ombros.
— Então não recebe nada — disse ele. — Afinal você não construiu
direito.
O cara ficou em silêncio outra vez. Imaginando se o empregador
estava de brincadeira.
— Sacou o paradoxo? — o empregador perguntou. — Você está
calculando o seguinte agora: é do seu interesse simplesmente ficar com a
bunda sentada a noite toda, aí, e amanhã você fala para mim: Não, senhor,
não teve jeito de escapar de lá. Não, senhor, nem com reza braba.
O carpinteiro deu um riso nervoso e curto.
— Era isso mesmo que eu estava pensando — disse ele.
— Então você precisa de um incentivo — o empregador disse. —
Entende? Para termos certeza de que você vai tentar escapar mesmo.
O carpinteiro olhou para o canto isolado do segundo andar. Quando
olhou para baixo novamente, havia uma automática preta fosca na mão do
empregador.
— Tem um saco na caminhonete — o empregador disse. — Vá pegar,
falou?
O carpinteiro apenas olhou ao redor, pasmo. O empregador apontou a
arma para a cabeça dele.
— Pegue o saco — disse baixinho.
Não havia nada na carroceria da picape. Havia um saco de aniagem no
banco do passageiro. Envolto num pacote de cerca de quarenta centímetros
de comprimento. Era pesado. Parecia que estava enfiando a mão num
freezer no supermercado e retirando um pernil.
— Abra — o empregador exclamou. — Dê uma olhada.
O carpinteiro afastou a aniagem para trás. A primeira coisa que viu foi
um dedo. Duro como gelo, porque o sangue havia coagulado. Calos
amarelos de peão de obra se sobressaindo, grandes e evidentes.
— Vou te colocar no quarto agora — o empregador avisou. — Se não
sair até amanhã de manhã, vou fazer isto com você, sacou? Com tua própria
bosta de serra, já que a minha, como você pode ver, ficou cega.
9

REACHER CONTINUOU DEITADO EM SILÊNCIO na palha suja em


sua baia no estábulo. Sem dormir, mas seu corpo ficou paralisado a ponto
de praticamente estar adormecido. Cada músculo estava relaxado e sua
respiração era lenta e regular. Olhos fechados, já que o estábulo estava
escuro e não havia nada para ver. Mas a mente estava totalmente desperta.
Não agitada, apenas seguindo firme, com a intensidade noturna especial que
sentimos na ausência de quaisquer distrações.
Fazia duas coisas ao mesmo tempo. Primeiramente, estava ligado no
tempo. Fazia quase duas horas que tinha olhado para seu relógio pela última
vez, mas sabia que horas eram dentro de um espaço aproximado de vinte
segundos. Era uma antiga habilidade, nascida de muitas longas noites em
claro na ativa. Ao esperar algo acontecer, você fecha o corpo como uma
casa de praia no inverno e deixa a mente se fixar no ritmo constante da
passagem dos segundos. É como a suspensão temporária das funções vitais.
Conserva energia e afasta a responsabilidade do batimento cardíaco de seu
cérebro inconsciente e a passa para algum tipo de relógio oculto. Cria um
espaço escuro enorme para pensar. Mas se mantém acordado o suficiente
para estar pronto para o que der e vier. E isso significa que você sempre
sabe que horas são.
A segunda coisa simultânea que Reacher fazia era brincar de
aritmética mentalmente. Multiplicava números grandes de cabeça. Tinha
trinta e sete anos e oito meses de idade, com precisão praticamente até do
dia. Trinta e sete multiplicado por trezentos e sessenta e cinco perfazia treze
mil quinhentos e cinco. Mais doze dias por doze anos bissextos davam treze
mil quinhentos e dezessete. Oito meses contando do seu aniversário, em
outubro, para a frente, até essa data em junho, eram duzentos e quarenta e
três dias. Totalizando treze mil, setecentos e sessenta dias desde que nasceu.
Treze mil, setecentos e sessenta dias, treze mil, setecentos e sessenta noites.
Tentava colocar essa noite específica em algum ponto dessa escala infinita.
No grupo das piores noites.
Na verdade, uma noite desagradável, mas estava longe de ser a pior.
Muito longe mesmo. Ele não conseguia se lembrar de praticamente nada
dos primeiros quatro anos de vida; por isso tinha aproximadamente doze
mil e trezentas noites a qualificar. A probabilidade de esta noite específica
estar lá em cima, nas top 3, era real. Sem mesmo se esforçar muito, poderia
listar milhares de noites ainda piores. Nesta, ele estava quentinho,
confortável, ileso, sem ameaça imediata e tinham dado comida para ele.
Não muito boa, mas sentiu que foi por falta de habilidade mais do que por
má intenção. Então, fisicamente, não tinha do que se queixar.
Mentalmente era outra história. Estava suspenso num vácuo tão
impenetrável quanto a escuridão dentro do estábulo. O problema era a falta
total de informação. Ele não era do tipo que necessariamente se sentia
incomodado por estar desinformado. Era filho de um oficial dos fuzileiros
navais e havia vivido como militar literalmente desde o nascimento.
Consequentemente, estava acostumado com confusão e imprevisibilidade.
Mas nessa noite faltava informação demais.
Não sabia onde estava. Sem querer ou de propósito, os três
sequestradores não tinham dado absolutamente nenhuma pista de para onde
estavam indo. Isso o fazia se sentir à deriva. Seu problema específico era
que, tendo vivido como militar desde o nascimento, desses treze mil,
setecentos e sessenta dias de vida ele havia passado provavelmente muito
menos de um quinto nos Estados Unidos. Era tão americano quanto o
presidente, mas vivera e servira no mundo inteiro a maior parte da vida.
Fora dos EUA, ou seja, ele conhecia seu país tanto quanto um garoto de
sete anos. Sendo assim, não conseguiria decodificar os ritmos, cheiros e
sensações sutis do território tanto quanto queria. Era possível que outra
pessoa pudesse interpretar os contornos inobservados da paisagem invisível
ou a umidade do ar ou a temperatura da noite e dizer sim, estou neste ou
naquele Estado agora. Era possível que algumas pessoas pudessem fazer
isso. Mas Reacher não. Isso lhe causava um desconforto.
E, para piorar, não fazia a mínima ideia de quem eram os
sequestradores. Ou qual era a deles. Ou onde isso tudo ia parar. Ele os havia
estudado bem de perto, em cada oportunidade que tivera. Conclusões eram
difíceis. As evidências eram todas contraditórias. Eram três, novos, com
idade entre trinta e trinta e cinco anos, em forma, treinados para agir juntos
com certo grau de eficiência. Pareciam militares, mas não completamente.
Eram organizados, mas não de forma técnica. Alguns amadorismos eram
gritantes.
Eram mauricinhos demais. Todos vestiam roupas novas, básicas,
típicas de rede de lojas varejistas, de algodão e popeline, cortes de cabelo
recentes. Suas armas haviam acabado de sair da caixa. As Glocks estavam
novinhas em folha. A espingarda era novinha em folha, lustrosa como se
tivesse acabado de sair da embalagem. Esses fatores significavam que não
eram profissionais, de jeito nenhum. Porque profissionais fazem isso todo
dia. Fosse quem fossem: Forças Especiais, CIA, FBI, detetives, esse é o
trabalho deles. Usam roupa de trabalho. Usam armas que requisitaram no
ano passado ou no ano anterior, armas experimentadas e de confiança,
armas lascadas, armas riscadas, ferramentas de uso cotidiano. Coloque três
profissionais juntos, aleatoriamente, e você verá a pizza de ontem à noite na
camisa de um deles, outro não terá feito a barba, o terceiro estará usando
péssimas calças velhas que fazem com que seus camaradas lhe tirem sarro
pelas costas. É possível que você veja uma jaqueta nova de vez em quando
ou uma arma com pouco uso, ou sapatos novos, mas a chance de ver tudo
novo ao mesmo tempo, em três profissionais em missão no mesmo dia, é
tão mínima que chega a ser absurda.
E suas atitudes os traíam. Competentes, mas agitados, nervosos, hostis,
mal-educados, tensos. Treinados até certo ponto, mas sem prática. Sem
experiência. Haviam ensaiado a teoria e eram espertos o bastante para evitar
quaisquer erros grosseiros, mas não tinham a prática dos profissionais.
Portanto, os três eram de alguma forma amadores. E tinham sequestrado
uma agente novata do FBI. Por quê? O que uma agente novata do FBI
poderia ter feito a alguém? Reacher não fazia a mínima ideia. E a agente
novata do FBI em questão não estava falando nada. Apenas outro
componente que mal conseguia decifrar. Mas não o maior componente. O
maior componente que mal conseguia entender era por que ele ainda estava
lá.
Em primeiro lugar, ele não estava nem aí para o modo como havia sido
capturado. Apenas dera o azar de ir parar junto de Holly Johnson na hora
exata em que o sequestro estava rolando. Isso não o incomodava. Ele
entendia o que eram acasos bizarros. A vida era feita desses acasos, por
mais que as pessoas gostassem de fingir que não era assim. E ele nunca
perdia tempo especulando sobre como as coisas poderiam ter sido
diferentes, se tivesse sido assim ou assado. Está mais do que na cara que, se
estivesse andando naquela rua específica de Chicago um minuto antes ou
um minuto depois, teria passado direto pela tinturaria e nunca ficaria
sabendo bosta nenhuma de nada disso. Mas não tinha andado um minuto
antes ou um minuto depois, o tal acaso havia acontecido e ele não ia
desperdiçar seu tempo querendo saber onde estaria agora se não tivesse
acontecido.
Mas o que ficava infernizando suas ideias era por que ainda estava lá,
pouco mais de quatorze horas depois, segundo o relógio na sua cabeça.
Tivera duas chances razoáveis e uma certeza absoluta de fuga. Logo de
cara, na rua, poderia ter escapado. Provavelmente. A possibilidade de danos
indiretos o tinha impedido. Depois, no estacionamento abandonado, ao
entrar no furgão branco, poderia ter conseguido. Provavelmente. Três contra
um, ambas às vezes, mas eram três amadores contra Jack Reacher e ele se
sentia confortável com a chance de sucesso.
A certeza absoluta fora quando ele poderia ter escapado do estábulo,
digamos, uma hora depois que os três caras voltavam do posto de gasolina
com o furgão. Poderia ter tirado a algema outra vez, escalado a parede,
pulado fora e se mandado. Correria pela estrada e depois andaria até sumir.
Por que não tinha feito isso?
Ficou deitado lá na profunda escuridão, no breu, relaxando e percebeu
que era Holly que o mantinha ali. Não havia falado do carro porque não
dava para correr o risco. Os três caras poderiam ter se apavorado, matado a
moça e fugido. Reacher não queria que isso acontecesse. Holly era uma
mulher esperta, vivaz. Astuta, impaciente, confiante, durona pra burro.
Atraente, de um modo tímido e não de um modo forçado. Morena, esbelta,
bastante inteligência e energia. E que olhos! Reacher era chegado em olhos.
Ficava doidinho diante de um par de belos olhos.
Mas não eram os olhos que o estavam influenciando. Nem sua
aparência. Ou sua inteligência ou sua personalidade. Era seu joelho. Era
isso que o influenciava. Sua coragem e dignidade. Ver uma bela mulher
espirituosa lutando de bom humor contra uma inabilidade inédita parecia
algo bravo e nobre para Reacher. Isso a tornava o tipo de gente que ele
gostava. Ela estava dando conta do recado. E dando conta muito bem. Não
estava se queixando. Não estava pedindo sua ajuda. E, porque não estava
pedindo, ela ia ter.
10

CINCO E MEIA DA MANHÃ DE TERÇA-FEIRA. O agente Brogan


estava sozinho na sala de reunião do terceiro andar, usando uma das linhas
telefônicas recentemente instaladas para fazer uma ligação matinal para sua
namorada. Às cinco e meia da manhã não é o melhor momento para pedir
desculpas por ter dado bolo na noite anterior, mas Brogan estivera muito
ocupado e antecipava estar mais ainda. Por isso, fez a ligação. Acordou-a e
disse que tinha estado muito ocupado, e provavelmente ficaria assim para o
resto da semana. Ela estava sonolenta, irritada e o fez repetir tudo duas
vezes. Daí escolheu interpretar a mensagem como um prelúdio covarde para
algum tipo de fora. Brogan ficou irritado por sua vez. Disse-lhe que o FBI
tinha que vir em primeiro lugar. Ela certamente entendia isso. Não era o
melhor argumento a se dar às cinco e meia da manhã para uma mulher
sonolenta e mal-humorada. Tiveram uma briga boba, e Brogan desligou,
chateado.
Seu parceiro, Milosevic, estava sozinho em seu próprio cubículo.
Estirado na cadeira, também chateado. Seu problema era falta de
imaginação. Era sua maior fraqueza. McGrath lhe tinha dito no dia anterior
para traçar todos os passos de Holly Johnson, a partir do meio-dia de ontem.
Mas não havia conseguido nada. Ele a vira sair do prédio do FBI. Dar um
passo porta afora, ir para a rua, o antebraço enfiado na calha de metal da
muleta. Tinha visto chegar até esse ponto. Mas aí, depois disso, não havia
mais nada a relatar. Havia pensado muito a noite toda e não dissera nada a
McGrath.
Às cinco e quarenta, foi ao banheiro e pegou mais café. Ainda estava
muito triste. Caminhou de volta para sua mesa. Sentou-se, ficou perdido,
por muito tempo, em meio aos pensamentos. Então olhou para o pesado
relógio de ouro em seu pulso. Checou a hora. Sorriu. Sentiu-se melhor.
Pensou um pouco mais. Checou outra vez. Fez que sim com a cabeça.
Agora poderia dizer a McGrath aonde Holly Johnson havia ido ao meio-dia
de ontem.
A dois mil, setecentos e quarenta quilômetros de distância, o pânico havia
se instalado de vez. O carpinteiro tinha se deixado levar pelo choque do
torpor nas primeiras horas, que o tornara fraco e submisso. Deixara o
empregador levá-lo às pressas ao topo das escadas e para dentro do quarto.
O choque o fizera desperdiçar suas primeiras horas. Tinha ficado sentado,
olhando fixamente para o nada. Então havia subitamente começado a sentir
um otimismo louco, que tudo aquilo era algum tipo de brincadeira de mau
gosto de Halloween. Isso o fizera desperdiçar suas próximas horas,
convencido de que nada aconteceria. Mas então, como os prisioneiros na
madrugada fria, trancafiados sozinhos ao redor do mundo, todas as suas
defesas o abandonaram e ele ficou desesperado, em pânico total.
Com metade do tempo esgotado, entrou em ação frenética. Mas sabia
que era impossível. A ironia o estraçalhara. Tinham trabalhado duro no
projeto. Haviam construído tudo direitinho. Os maços de dólares tinham
dançado na frente de seus olhos. Não haviam feito nada nas coxas. Tinham
deixado de lado todos os truques habituais, as sacanagens de carpinteiro.
Cada uma das tábuas estava reta e firme. Cada um dos pregos havia sido
enfiado até o talo. Não havia nenhuma brecha. A porta era sólida. Perdeu a
esperança. Passou uma hora correndo para lá e para cá no quarto como um
louco. Passou as palmas ásperas sobre cada centímetro quadrado de cada
superfície. Assoalho, teto, paredes. Era o melhor trabalho que já tinham
feito. Acabou agachado num canto, olhando fixamente para as mãos,
chorando.

— A tinturaria — McGrath disse. — Foi para lá que ela foi.


Estava na sala de reunião do terceiro andar. Cabeceira da mesa, sete
horas, terça-feira de manhã. Abrindo um novo maço de cigarros.
— Foi mesmo? — Brogan questionou. — Para a tinturaria?
McGrath fez que sim com a cabeça.
— Diga a ele, Milo — pediu.
Milosevic sorriu.
— Lembrei neste instante — disse. — Eu trabalhei com ela cinco
semanas, certo? Desde que ela arrebentou o joelho. Toda segunda-feira na
hora do almoço ela leva roupa para lavar. Pega as da semana anterior. Não
vejo motivo para ontem ter sido diferente.
— Certo — Brogan disse. — Que tinturaria?
Milosevic balançou a cabeça.
— Não sei — respondeu. — Ela sempre ia sozinha. Eu sempre me
oferecia para essa tarefa, mas ela recusava, cinco segundas-feiras seguidas.
Ela não ligava de ter minha ajuda nos negócios do FBI, mas não ia me
deixar correr para lá e para cá com suas roupas. É uma mulher muito
independente.
— Mas ela ia a pé até lá, certo? — McGrath indagou.
— Certo — Milosevic concordou. — Ela sempre ia a pé. Com umas
oito ou nove roupas nos cabides. Então, podemos concluir com toda certeza
que o lugar que ela frequentava fica bem perto daqui.
Brogan fez que sim com a cabeça. Sorriu. Isso era algum tipo de pista.
Pegou as Páginas Amarelas e abriu no T.
— De qual raio estamos falando? — perguntou.
McGrath deu de ombros.
— Vinte minutos na ida e vinte minutos na volta — disse. — Seria o
máximo, certo? Com aquela muleta, eu não consigo imaginar que ela
percorresse mais de quatrocentos metros em vinte minutos. Mancando
daquele jeito? Digamos que seja um quadrado, um quilômetro para cada
lado, e este prédio no centro. O que temos?
Brogan usou o guia de ruas. Fez um compasso rudimentar com seu
polegar e o dedo indicador. Ajustou em um quilômetro, de acordo com a
escala na margem. Desenhou um quadrado no aglomerado de ruas. Então
ficou para lá e para cá, entre o mapa e as Páginas Amarelas. Circulou
nomes com um lápis. E os contou.
— Vinte e um estabelecimentos — disse ele.
McGrath o olhou fixamente.
— Vinte e um? — estranhou. — Tem certeza?
Brogan fez que sim com a cabeça. Deslizou a lista telefônica pela
madeira maciça e brilhante.
— Vinte e um — disse. — Obviamente, o povo desta cidade gosta de
manter suas roupas impecáveis.
— Certo — McGrath disse. — Vinte e um lugares. Pé na estrada,
pessoal.
Brogan pegou dez endereços e Milosevic onze. McGrath deu
ampliações em cores a ambos da fotografia arquivada de Holly Johnson.
Então apontou com a cabeça para que saíssem e ficou esperando em sua
cadeira na cabeceira da mesa da sala de reunião, ao lado dos telefones,
estirado, olhando fixamente para o espaço, fumando, tamborilando um
ritmo de preocupação com a extremidade sem ponta do lápis.

Ouviu uns barulhinhos muito mais cedo do que pensava. Não tinha relógio
e nem janela, mas tinha certeza de que ainda não era de manhã, que restava
mais uma hora. Talvez duas. Mas dava para ouvir barulho. Pessoas se
movimentando na rua lá fora. Prendeu a respiração e se concentrou em
ouvir. Talvez três ou quatro. Andou pela sala outra vez. Imobilizado pela
indecisão. Deveria estar martelando e chutando as tábuas de pinho novinhas
em folha. Tinha certeza disso. Mas não estava. Porque sabia que seria inútil
e porque pressentia que devia ficar em silêncio. Ficara convicto disso.
Convicto. Se ficasse em silêncio, talvez o deixassem em paz. Talvez
esquecessem que ele estava lá dentro.

Milosevic encontrou o lugar certo, o sétimo dos onze estabelecimentos da


sua lista. Havia acabado de abrir, às sete e quarenta da manhã. Apenas uma
loja de frente para a calçada, mas elegante, não visava de fato o pessoal
típico que pegava o transporte público e usava lã sintética. Anunciava todos
os tipos de processos e tratamentos especializados feitos sob encomenda.
Uma coreana era responsável pela loja. Milosevic lhe mostrou seu distintivo
do FBI e colocou a foto de Holly Johnson sobre o balcão na sua frente.
— Já viu esta pessoa? — perguntou.
A coreana olhou para a foto, educadamente, concentrada, com as mãos
juntas atrás das costas.
— Sim — disse. — É a Srta. Johnson, ela vem toda segunda-feira.
Milosevic deu um passo, chegando mais próximo do balcão, e se
inclinou para mais perto da mulher.
— Ela veio ontem? — Milosevic perguntou.
A mulher pensou a respeito e fez que sim com a cabeça.
— Sim — afirmou. — Já não disse ao senhor que ela vem toda
segunda-feira?
— Que horas mais ou menos? — perguntou.
— Na hora do almoço — a mulher respondeu. — Sempre na hora do
almoço.
— Cerca de meio-dia? — perguntou. — Meio-dia e meia, algo assim?
— Sim — a mulher confirmou. — Sempre na hora do almoço numa
segunda-feira.
— Certo, ontem — Milosevic disse. — O que aconteceu?
A mulher deu de ombros.
— Não aconteceu nada — disse ela. — Ela entrou, pegou os cabides,
pagou, deixou algumas peças para lavar.
— Tinha alguém com ela? — perguntou.
— Não — a mulher disse. — Nunca vem ninguém com ela.
— Em que direção ela seguiu? — Milosevic perguntou.
A mulher apontou para o prédio federal.
— Ela veio daquela direção — disse ela.
— Não perguntei de onde ela veio — Milosevic afirmou. — Em que
direção ela seguiu quando saiu?
A mulher fez uma pausa.
— Eu não vi — disse. — Entreguei os cabides e fui para os fundos.
Ouvi a porta abrir, mas não pude ver para onde ela foi. Estava nos fundos.
— Você apenas pegou as roupas? — Milosevic perguntou. — E se
mandou às pressas para os fundos antes que ela saísse?
A mulher meio que hesitou, como se estivesse sendo acusada de
alguma grosseria.
— Não saí às pressas — disse ela. — A Srta. Johnson estava andando
devagar. Perna ruim, certo? Eu achei que não devia ficar observando.
Percebi que ela sentia vergonha. Levei suas roupas para os fundos para ela
não perceber que eu estava observando.
Milosevic fez que sim com a cabeça, inclinou-se e suspirou para o teto.
Viu uma câmera de vídeo montada bem acima do balcão.
— O que é aquilo? — perguntou.
A coreana se virou e seguiu seu olhar.
— Segurança — disse ela. — A seguradora diz que precisamos ter.
— Funciona? — perguntou.
— Claro que sim — a mulher garantiu. — A seguradora diz que tem
que funcionar.
— Funciona o tempo todo? — Milosevic perguntou.
A mulher fez que sim com a cabeça e deu uma risadinha.
— Lógico — disse ela. — Está funcionando agora. Você está sendo
filmado.
Milosevic checou seu relógio.
— Eu preciso da fita de ontem — disse ele. — Imediatamente.
A mulher titubeou outra vez. Milosevic tirou seu distintivo pela
segunda vez.
— Esta é uma investigação do FBI — ratificou. — Assunto federal. Eu
preciso da fita agora, entendido?
A mulher fez que sim com a cabeça e ergueu a mão fazendo sinal para
que esperasse. Atravessou uma porta que dava para os fundos do
estabelecimento. Voltou depois de um longo momento, fedendo a sabão em
pó e alvejante, com uma fita de vídeo na mão.
— Vai me devolver, não vai? — indagou ela. — A seguradora diz que
precisamos ficar com elas por um mês.

Milosevic saiu correndo e, lá pelas oito e meia, os técnicos do FBI se


apinhavam por toda a sala de reuniões do terceiro andar novamente, ligando
um aparelho de VHS comum ao conjunto de monitores no meio da mesa
comprida. Houve um problema com uma tomada e, depois, um dos fios
mostrou ser curto demais. Então tiveram que mover um computador para
permitir que o monitor ficasse mais perto do centro da mesa. Aí, o chefe
dos técnicos entregou o controle remoto a McGrath e fez que sim com a
cabeça.
— Todo seu, chefe — ele disse.
McGrath mandou que ele saísse da sala, e os três agentes se
aglomeraram em torno das telas, esperando a imagem aparecer. As telas
estavam de frente para a parede envidraçada, e por isso os três se
encontravam de costas para as janelas de vidro. Mas nessa hora não havia
nenhum perigo de qualquer um deles se sentir incomodado, já que naquele
horário o sol radiante da manhã batia no outro lado do prédio.

Esse mesmo sol atravessou dois mil, setecentos e quarenta quilômetros a


partir de Chicago e criou uma manhã ensolarada no exterior do prédio
branco. Ele sabia que havia chegado o momento. Podia ouvir os estalos
baixos da armação de madeira velha esquentando e vozes abafadas lá fora,
abaixo dele, no nível da rua. O som de pessoas começando um novo dia.
Suas unhas já eram. Havia encontrado uma fendinha onde duas tábuas
se juntavam, mas não muito justas. Forçara a ponta dos dedos para baixo e
tentara erguê-las como uma alavanca, com toda sua força. Suas unhas foram
arrancadas, uma após outra. A tábua não se movera. Havia deslizado de
costas, como um rato, até um canto e se encolhido no chão. Havia chupado
os dedos ensanguentados, e seus lábios agora estavam manchados de
sangue, como uma criança suja de bolo.
Ouviu passos na escadaria. Um homem grande, movendo-se com
leveza. O som parou do lado de fora da porta. A fechadura girou para trás
com um estalo. A porta se abriu. O empregador olhou para ele. Cara
inchada, duas manchas vermelhas do tamanho de uma moeda ardendo altas
em suas bochechas.
— Você ainda está aqui? — zombou.
O carpinteiro estava paralisado. Não conseguia se mover nem falar.
— Fracassou, não é? — o patrão disse.
Fez-se silêncio no quarto. O único som era o estalido lento da armação
de madeira, à medida que o sol da manhã aquecia o telhado.
— Então, o que faremos agora? — o empregador perguntou.
O carpinteiro ficou olhando para ele com cara de idiota. Sem se mover.
O empregador deu um sorriso bobo e amistoso. Como se de repente tivesse
ficado surpreso com algo.
— Acha que eu falei sério? — perguntou, gentilmente.
O carpinteiro piscou. Balançou a cabeça ligeiramente, com esperança.
— Está ouvindo alguma coisa? — o empregador perguntou.
O carpinteiro escutou com muita atenção. Podia ouvir os leves
estalidos da madeira, o canto dos pássaros na floresta, o som suave da brisa
no céu ensolarado da manhã.
— Você estava apenas me zoando? — perguntou.
Sua voz era um coaxar seco. Alívio, esperança e temor empurravam
sua língua para o céu da boca.
— Escute só isso — o empregador começou.
O carpinteiro procurou ouvir com atenção. A armação estalava, os
pássaros cantavam, o ar morno suspirava. Era tudo que podia ouvir.
Silêncio. Aí ouviu um clique. Então ouviu um zunido. Começou lento,
baixo e se estabilizou em um nível alto, familiar. Era um som que ele
conhecia. Era o som de uma grande serra elétrica acelerando para pegar
velocidade.
— E agora? — o empregador gritou. — Você acha que eu estava
apenas te zoando?
11

HOLLY JOHNSON HAVIA FICADO MEIO DECEPCIONADA com a


avaliação de Reacher sobre o valor em dinheiro das peças que possuía no
guarda-roupa. Reacher havia dito que calculava que ela tinha, talvez, quinze
ou vinte conjuntos, quatrocentos dólares cada um, talvez oito mil no total. A
verdade era que ela tinha trinta e quatro conjuntos no armário. Havia
trabalhado três anos em Wall Street. Oito mil eram só de sapatos. Gastara
quatrocentos dólares apenas com uma blusa, e só porque foi motivada pelo
bom senso para ser um pouco mais econômica.
Gostava de Armani. Tinha treze terninhos de primavera. As roupas da
coleção de primavera de Milão serviam direitinho para boa parte do verão
de Chicago. Talvez em agosto, no auge do calor, estrearia seus Moschinos,
mas em junho e julho, setembro também, se desse sorte, os Armani eram os
preferidos. Os favoritos eram os de tom pêssego, mais para o escuro, que
havia comprado no seu último ano na corretora. Algum tipo de uma
misteriosa mistura italiana de sedas. Cortadas e costuradas por gente cujos
antepassados, há centenas de anos, manuseavam materiais finos que são
examinados, avaliados e cortados e se tornam formas macias maravilhosas.
Depois são lançados no mercado, e uma corretora de Wall Street compra e
adora tanto, que ainda está usando dois anos depois, quando se torna agente
do FBI e é sequestrada numa rua de Chicago. Ainda o está usando dezoito
horas mais tarde, após uma noite insone na palha suja de um estábulo.
Nessa altura, o troço já não é algo que Armani reconheceria.
Os três sequestradores tinham retornado com o furgão e dado ré para
dentro do corredor central de concreto do estábulo. Haviam trancado a porta
do lugar e desaparecido depois. Holly supôs que haviam passado a noite na
casa. Reacher tinha dormido em silêncio em sua baia, acorrentado ao
parapeito, enquanto ela se revirava para todo lado na palha, sem sono,
pensando nele sem parar.
A segurança do grandalhão era sua responsabilidade. Era um
transeunte inocente, envolvido à força no seu calvário. Não importando o
que o futuro lhe reservasse, ela precisava tomar conta dele. Esse era seu
dever. Ele era seu fardo. E ele estava mentindo. Holly estava absolutamente
certa de que ele não era segurança de casa noturna de blues. E tinha certeza
do que ele era. A família de Holly Johnson era formada de militares. Por
causa do pai, Holly tinha vivido em bases do exército a vida toda, até Yale.
Conhecia o exército. Conhecia soldados. Conhecia o tipo e sabia que
Reacher era um. Seu olho experiente lhe dizia que ele tinha pinta de militar.
Agia como um. Reagia como um. Era até possível que um segurança tivesse
a capacidade de forçar fechaduras e escalar paredes como um macaco, mas,
se fosse adiante e fizesse isso, agiria com ar de familiaridade, arrojo e
impaciência completamente artificiais. Não o faria como se fosse algo tão
natural quanto piscar. Reacher era um homem sossegado, controlado,
calmo, capaz, claramente treinado a ponto de ter algum tipo de
tranquilidade sobre-humana. Era provavelmente dez anos mais velho do
que ela, mas não chegava aos quarenta, aproximadamente dois metros de
altura, enorme, pesava uns cem quilos, olhos azuis, cabelo claro e ralo.
Grande o bastante para ser um segurança, e velho o bastante para ter
passado por muitas coisas na vida, o que estava claro, mas era um soldado.
Um soldado alegando ser um segurança. Mas por quê?
Holly não fazia a mínima ideia. Apenas ficou deitada lá,
desconfortável, escutando a respiração tranquila dele, a seis metros de
distância. Segurança ou soldado, dez anos mais velho ou não, era sua
responsabilidade tirá-lo dali são e salvo. Não dormiu. Ficou muito ocupada
pensando e seu joelho doía demais. Às oito e meia em seu relógio, ouviu-o
acordar. Apenas uma mudança sutil no ritmo da respiração.
— Bom-dia, Reacher — disse bem alto.
— Bom-dia, Holly — devolveu ele. — Estão voltando.
Fazia silêncio, mas depois de um longo momento, ela ouviu passos lá
fora. Escala como um macaco, ouve como um morcego ela pensou. Que
segurança, hein?
— Você está bem? — Reacher perguntou.
Ela não respondeu. O bem-estar dele era sua responsabilidade e não o
contrário. Ouviu um chacoalhar quando a porta do celeiro foi destrancada.
Rangeu e se abriu, e a luz do dia fluiu para o interior. Avistou uma área
rural verde e vazia. Pensilvânia talvez, pensou. Os três sequestradores
caminharam para dentro e a porta foi fechada.
— Levanta, vaquinha — o líder disse a ela.
Ela não moveu um músculo. Foi acometida por um desejo irresistível
de não deixar que a levassem para dentro do furgão. Muito escuro,
demasiado incômodo, monótono demais. Não sabia se poderia aguentar
outro dia lá dentro, se balançando, se sacudindo e, acima de tudo,
totalmente ignorante de para onde estava sendo levada, ou por que ou por
quem. Instintivamente agarrou o parapeito de metal e o ficou segurando, o
braço enrijecido, como se fosse esboçar uma reação. O líder ficou imóvel e
sacou a Glock. Baixou os olhos até ela.
— Podemos trabalhar de duas maneiras — alertou. — A fácil e a
difícil.
Ela não replicou. Apenas ficou sentada na palha, segurando com
firmeza o parapeito. O motorista feioso deu três passos na direção dela e
começou a sorrir, novamente com os olhos cravados nos peitos. Ela sentiu-
se nua e nauseada diante daquele olhar.
— Você decide, vaquinha — o líder zombou.
Ela ouviu Reacher se mover na baia.
— Ela não. Quem decide aqui é você — ouviu Reacher falar para o
cara. — Precisamos de um pouco de reciprocidade. Cooperação, sacou? Se
quiser que a gente volte para seu furgão, você precisa fazer valer a pena
para nós.
A voz estava calma e baixa. Holly grudou os olhos nele. Viu-o sentado
lá, acorrentado, desarmado, enfrentando uma automática carregada,
totalmente vendido de acordo com qualquer definição razoável da palavra,
três homens hostis com os olhos fixos voltados para baixo na sua direção.
— Precisamos de café da manhã — Reacher disse. — Torradas com
geleia de uva. E café, mas faça muito mais forte do que a merda de ontem à
noite; pode ser? Café forte é muito importante para mim. Entenda bem isso.
Depois coloque dois colchões no furgão. Um de casal e um de solteiro,
formando um sofá lá dentro. Aí a gente entra na boa.
Fez-se total silêncio. Holly deu uma olhadela para um homem e depois
para outro. Reacher lançava ao líder um olhar calmo, do chão. Seus olhos
azuis não piscaram. O líder ficou com os olhos cravados para baixo em sua
direção. Tensão visível no ar. O motorista desviou os olhos do corpo dela e
os baixou para Reacher. Olhar raivoso. Então o líder se voltou com um
estalido de dedos e acenou com a cabeça para os outros dois saírem do
estábulo junto com ele, Holly ouviu a porta se trancar ao saírem.
— Você come torrada? — Reacher perguntou.
Ela estava esbaforida demais para responder.
— Quando trouxerem, mande de volta — disse ele. — Obrigue-os a
refazer. Diga que está malpassada, queimada demais ou algo assim.
— Que bosta você acha que está aprontando? — ela perguntou.
— Psicologia — Reacher ensinou. — Precisamos começar a construir
algum domínio por aqui. Numa situação como esta, é muito importante.
Ela olhou fixamente para ele.
— Faça sem questionar, está bem? — disse ele, calmamente.

Ela fez. O sujeitinho agitado trouxe a torrada, que estava perfeita, mas foi
rejeitada. Ela olhou para a fatia com o desdém que usaria para um balancete
feito nas coxas e disse que estava queimada. De pé, com todo o peso sobre a
perna boa, com uma aparência horrível, esterco cobrindo seu Armani
pêssego, mesmo assim conseguiu gerar bastante desprezo altivo para
intimidar o safado, que voltou para a cozinha da casa da fazenda e fez
outras.
Veio com um bule de café forte e ambos comeram seus desjejuns, a
corrente retinindo, seis metros os separavam, enquanto os outros dois
sujeitos traziam colchões. Um de casal, outro de solteiro. Eles os puxaram
para cima até a traseira do furgão e colocaram o de casal no chão e o de
solteiro perpendicular a ele, encostado na divisória da caçamba. Holly ficou
observando enquanto faziam isso e se sentiu muito melhor em relação ao
que vinha pela frente. Daí percebeu num estalo exatamente para onde a
psicologia de Reacher estava voltada. Não apenas para os três
sequestradores. Para ela também. Não queria que ela arranjasse briga.
Perderia. Ele havia arriscado fazer o que tinha feito para impedir um
confronto inútil. Ela ficou espantada. Totalmente espantada. Pensou
vagamente: Pelo amor de Deus, este cara está invertendo tudo. Está
tentando tomar conta de mim.
— Dá pra falar seus nomes? — Reacher perguntou, calmamente. —
Vamos passar algum tempo juntos, podemos ser um pouco civilizados, não
acham?
Holly observou o líder, que tinha os olhos fixos em Reacher. O cara
não respondeu.
— A gente viu a cara de vocês — Reacher disse. — Falar os nomes
não vai dar em nada mesmo. É melhor tentarmos nos entrosar.
O cara pensou a respeito e fez que sim com a cabeça.
— Loder.
O sujeitinho agitado trocou a posição do pé de apoio.
— Stevie.
Reacher fez que sim com a cabeça. Então o motorista feioso percebeu
que todos os quatro estavam olhando para ele. Balançou a cabeça.
— Eu não vou dizer meu nome — avisou ele. — Por que diabos eu
deveria?
— E vamos deixar as coisas bem claras — o tal de Loder disse. —
Civilizado não é a mesma coisa que amistoso, correto?
Holly o viu apontar a Glock para a cabeça de Reacher e mantê-la assim
por um bom tempo. Inexpressivo. Não era a mesma coisa que amistoso.
Reacher concordou com a cabeça. Um pequeno movimento de cautela.
Deixaram seus pratos de torradas e canecas de café na palha, e o cara
chamado Loder soltou as correntes. Encontraram-se no corredor central.
Duas Glocks e uma espingarda apontadas. O motorista feioso com o velho
olhar malicioso. Reacher olhou-o nos olhos, abaixou-se e pegou Holly
como se não pesasse nada. Levou-a dez passos até o furgão. Colocou-a
delicadamente no interior. Rastejaram para a frente juntos até o sofá
improvisado. Puseram-se em posição confortável.
As portas traseiras foram batidas e trancadas. Holly ouviu a grande
porta do estábulo se abrir. O motor do veículo engasgou, mas pegou.
Dirigiram para fora do estábulo e trepidaram nos mais de cem metros da
trilha íngreme. Viraram num ângulo reto invisível e seguiram por uma
estrada, vagarosamente e em linha reta, por quinze minutos.
— Não estamos na Pensilvânia — Holly afirmou. — As estradas são
muito retas. Planas demais.
Reacher apenas deu de ombros para ela no escuro.
— E também não estamos mais algemados — constatou. —
Psicologia.
12

— MAS QUE MERDA É ESSA? — O AGENTE McGrath reclamou.


Apertou o botão do controle remoto e rebobinou a fita. Então
pressionou play e assistiu de novo. Mas o que viu não significava nada. A
tela estava cheia de imagens rápidas e espasmódicas, além de muito
chuvisco.
— Que diabos está acontecendo aqui? — perguntou de novo. Brogan
se aproximou e balançou a cabeça. Milosevic chegou mais perto para uma
averiguação. Ele tinha trazido a fita. Então se sentia pessoalmente
responsável por ela. McGrath a rebobinou e tentou mais uma vez. O mesmo
resultado.
Apenas um borrão de imagens desconexas piscando.
— Traga o porra do técnico de volta — gritou.
Milosevic usou o telefone no aparador, ao lado da jarra de café. Ligou
para o setor de serviços técnicos no andar superior. O chefe dos técnicos
entrou na sala num minuto. O tom de voz de Milosevic havia expressado
mais eficazmente do que quaisquer palavras que ele precisava se apressar.
— A porra da fita não funciona — McGrath lhe disse.
O técnico pegou o controle remoto com um misto de familiaridade e
infamiliaridade que os técnicos usam em todo o mundo. Todos eles ficam à
vontade com equipamentos complexos, mas cada equipamento tem suas
próprias peculiaridades. Perscrutou os botões e apertou um para rebobinar,
firme, com o polegar com a unha roída. A fita zumbiu enquanto rebobinava.
Ele apertou play e assistiu ao fluxo de imagens desarticuladas passando
rápido e o chuvisco na tela.
— Dá pra dar um jeito nisso? — McGrath perguntou.
O cara parou a fita e rebobinou de novo. Fez que não com a cabeça.
— Não está partida — disse. — Ela é assim mesmo. Uma câmera
barata de vigilância. Grava uma imagem pausada, provavelmente a cada
dez segundos, por aí. Apenas um quadro a cada dez segundos. Como uma
sequência de instantâneos.
— Por quê? — McGrath perguntou.
— É bem mais barato e fácil — o técnico disse. — Dá para conseguir
gravar um dia inteiro numa fita. Baixo custo e não precisa ter que se
lembrar de trocar a cada três horas. Basta trocar pela manhã. E, supondo
que um assalto leve mais de dez segundos, o rosto do suspeito aparece na
fita pelo menos uma vez.
— Entendo — McGrath disse impaciente. — Então...?
O técnico usou dois dedos juntos. Apertou play e pause ao mesmo
tempo. Na tela apareceu a imagem pausada perfeita de uma loja vazia em
preto e branco. No canto inferior esquerdo apareciam a data de segunda-
feira e a hora, sete e trinta e cinco da manhã. O técnico ofereceu o controle
remoto para McGrath e apontou para um botão pequeno.
— Esse aí? — disse. — É o botão de avanço dos quadros. Pressione e
a fita vai até o quadro seguinte. Geralmente como nos replays esportivos,
certo? Hóquei? Você pode ver o disco entrar direto na rede. Ou com
pornografia. Pode ver o que desejar. Mas este tipo de sistema salta de dez
em dez segundos. Direto para o próximo instantâneo, sacou?
McGrath se acalmou e fez que sim com a cabeça.
— Por que em preto e branco? — perguntou.
— Câmera vagabunda — o técnico disse. — Todo o sistema é barato.
Só instalam por exigência das seguradoras.
Entregou o controle remoto para McGrath e se dirigiu de volta para a
porta.
— Se quiser qualquer outra coisa, me informe, tá bem? — falou.
Não obteve resposta porque todos os olhos estavam grudados na tela
enquanto McGrath começava a avançar a fita vagarosamente. Cada vez que
pressionava o avanço de quadro, uma faixa larga de chuvisco percorria a
tela e então revelava uma nova imagem, o mesmo aspecto, o mesmo
ângulo, o mesmo cinza monocromático não ofuscante, mas o reloginho na
parte inferior saltava adiante dez segundos. O terceiro quadro mostrou uma
mulher atrás do balcão. Milosevic colocou o dedo na tela.
— Foi com essa mulher que falei.
McGrath concordou com a cabeça.
— Campo de visão extenso — disse ele. — Dá pra ver desde o lado
interno do balcão até lá fora na rua.
— A câmera tem um ângulo bem amplo — Brogan constatou. — Tipo
cento e oitenta graus. O proprietário consegue ver tudo. Os clientes saindo e
entrando e se o balconista está metendo a mão na registradora.
McGrath concordou com a cabeça outra vez e foi arrastando até
segunda-feira de manhã. Dez em dez segundos. Os clientes entravam e
saíam da imagem. A mulher atrás do balcão saltava de um lado para outro,
buscando, carregando e guardando o dinheiro na registradora. Lá fora, os
carros surgiam e saíam do campo visual.
— Avance para o meio-dia — Milosevic pediu. — Tá uma demora
infernal.
McGrath fez que sim com a cabeça e fuçou no controle remoto. A fita
zumbiu adiante. Pressionou stop e play e chegou até as quatro horas da
tarde.
— Merda! — exclamou.
Rebobinou e avançou algumas vezes, e chegou às onze e quarenta e
três e cinquenta segundos.
— É o mais próximo que a gente vai chegar — disse ele.
Manteve o dedo apertado no botão de avanço dos quadros, e o
chuvisco passou continuamente pela tela. Cento e cinquenta e sete quadros
mais tarde, parou.
— Lá está ela! — exclamou.
Milosevic e Brogan comprimiram o ombro um do outro para uma
olhada mais de perto. O quadro congelado mostrava Holly Johnson na
extrema direita da imagem. Lá fora, na calçada, muleta numa mão, cabides
de roupas na outra. Abria a porta com um dedo livre. O tempo no lado
esquerdo inferior do quadro estava parado em dez minutos e dez segundos
depois do meio-dia.
— Certo — McGrath disse baixinho. — Então, vejamos.
Apertou o botão e Holly saltou metade da distância até o balcão.
Mesmo congelada na tela monocromática enevoada, sua postura desajeitada
podia ser claramente percebida. McGrath bateu na tecla outra vez, o
chuvisco se deslocou e Holly apareceu ao balcão. Dez segundos mais tarde,
a coreana estava lá com ela. Dez segundos depois, Holly dobrava a bainha
de um dos seus terninhos e mostrava algo à mulher. Provavelmente a
posição de uma mancha específica. Ambas permaneceram assim por uns
dois minutos, próximas por doze quadros, saltando ligeiramente de um
quadro ao seguinte. Então a coreana se ausentou, a roupa ficou fora do
balcão e Holly permaneceu sozinha por cinco quadros. Cinquenta segundos.
Atrás dela, à esquerda, um carro entrou na imagem no segundo quadro e
permaneceu lá nos três seguintes, estacionado ao meio-fio.
Então a mulher voltou com as roupas em cabides e envolvidas em
plástico. Congelada no ato de estendê-las no balcão. Dez segundos mais
tarde, havia removido cinco etiquetas dos cabides. Dez segundos depois,
tinha mais quatro roupas alinhadas ao lado da caixa registradora.
— Nove conjuntos — McGrath observou.
— Exato — Milosevic disse. — Cinco para o trabalho, de segunda a
sexta, e quatro para usar à noite, eu suponho, certo?
— E como fica o fim de semana? — Brogan perguntou. — Talvez
sejam cinco para o trabalho, dois para usar à noite e dois para o...
— Ela provavelmente usa jeans nos fins de semana — Milosevic
interrompeu. — Jeans com camisa. Deve lavar na máquina, talvez.
— Mas que porra isso tem a ver? — McGrath esbravejou.
Pressionou o botão, e os dedos da coreana foram pegos dançando nas
teclas da registradora. Os dois quadros seguintes mostravam Holly pagando
em dinheiro e recebendo uns dois dólares de troco.
— Quanto ela deve gastar com isso no total? — Brogan perguntou em
voz alta.
— Nove conjuntos? — Milosevic disse. — Na certa, cinquenta dólares
por semana, com toda a certeza. Eu vi a lista de preços lá dentro. Processos
especializados, produtos químicos delicados e tudo o mais.
O quadro seguinte mostrou Holly começando a se dirigir para a porta
de saída, à esquerda da imagem. O topo da cabeça da coreana podia ser
visto, atravessando a loja para os fundos. O mostrador indicava exatamente
doze horas e quinze minutos. McGrath aproximou mais a cadeira e ficou
com o rosto a trinta centímetros da tela monocromática.
— Certo — disse. — E aí, para onde você foi agora, Holly?
Estava com os nove conjuntos limpos na mão esquerda. Ela os
segurava desajeitadamente, para que não arrastassem no chão. O cotovelo
direito enfiado na calha curvada de metal de sua muleta, mas a mão não
segurava a maçaneta. O quadro seguinte a mostrou esticando o braço para
abrir a porta. McGrath bateu no botão outra vez.
— Nossa Senhora! — ele gritou.
Milosevic bufou e Brogan parecia atordoado. Não havia nenhuma
dúvida sobre o que viam. O quadro seguinte mostrou um homem
desconhecido atacando Holly Johnson. Era alto e pesado. Estava agarrando
sua muleta com uma mão e suas roupas lavadas com a outra. Não havia
dúvida. Seus braços estavam esticados e tomavam a muleta e as roupas. Foi
pego num instantâneo perfeito através da porta de vidro. Os três agentes o
olharam fixamente. Fez-se total silêncio na sala de reunião. Então McGrath
apertou o botão outra vez. O digital correu dez segundos. Houve outra
arfada quando prenderam o fôlego simultaneamente.
Holly Johnson foi de repente cercada por um triângulo humano. Os
dois outros se juntaram ao grandalhão que a havia atacado. O mais alto
segurava as roupas por cima do ombro e agarrava o braço de Holly. Olhava
fixamente para a vitrine da loja, como se soubesse que havia uma câmera lá
dentro. Os outros dois sujeitos estavam de frente para Holly.
— Sacaram armas para ela — McGrath gritou. — Puta que pariu,
olhem isso!
Apertou o botão outra vez, até que a barra de chuvisco clareou na parte
inferior do quadro e toda a imagem se estabilizou, ficando perfeitamente
nítida. Os dois novos caras estavam com o braço direito dobrado num
ângulo de noventa graus e havia uma tensão aparente nos músculos dos
ombros.
— O carro — Milosevic disse. — Ela está sendo levada para o carro.
Passando Holly e o triângulo de homens havia o carro que tinha
estacionado quatorze quadros atrás. Apenas parado ali no meio-fio.
McGrath bateu no botão outra vez. A barra de chuvisco branco desceu. O
pequeno agrupamento de pessoas na tela saltou três metros para o lado. O
mais alto, que tinha atacado Holly, tomou a liderança até a traseira do carro.
Holly foi empurrada para dentro depois dele por um dos sujeitos. O outro
cara novo abriu a porta dianteira de passageiros. Dentro do carro, um quarto
homem podia claramente ser visto através do vidro lateral, sentado ao
volante.
McGrath bateu no botão novamente. A barra de chuvisco desceu. A
rua estava vazia. O carro havia sumido. Como se nunca tivesse estado lá.
13

— PRECISAMOS CONVERSAR — HOLLY DISSE.


— Pode começar — Reacher devolveu.
Estavam estirados no colchão, nas trevas, dentro do furgão, balançando
e aos solavancos, mas não muito. Era mais do que óbvio que desciam uma
estrada. Após seguirem devagar por uma pista reta, durante uns quinze
minutos, sentiram uma desaceleração, uma parada momentânea e uma
virada para a esquerda, seguida de uma aceleração constante aclive acima.
Então um ligeiro balanço quando o veículo virou à esquerda no asfalto.
Depois prosseguiram com um ronco constante, talvez a cem quilômetros
por hora, que havia continuado desde então e parecia que continuaria para
sempre.
A temperatura dentro do espaço escuro vinha subindo lentamente, cada
vez mais. Agora estava bem quente. Reacher havia tirado a camisa. Mas o
furgão tinha passado a noite fora do estábulo, ao relento frio, e Reacher
sentia que enquanto continuasse a se mover seria tolerável por causa do
vento. Teriam problema se parassem não importa por quanto tempo. Aí o
interior iria esquentar como um forno de pizza e ficaria tão ruim quanto no
dia anterior.
O colchão de solteiro jazia sobre a lataria, encostado na divisória
dianteira, e o de casal, estirado no chão, formando um sofá improvisado.
Mas o ângulo de noventa graus entre o assento e a parte de trás tinha
deixado todo o arranjo muito incômodo. Por isso, Reacher havia deslizado o
de casal para trás, com Holly em cima, como se fosse um trenó, e colocara
o de solteiro plano ao seu lado. Agora tinham uma área acolchoada com
algo em torno de 2,5 metros por 1,80 por 1,80. Estavam deitados de costas,
os rostos próximos para que pudessem conversar, separados um do outro,
formando um V decoroso, balançando delicadamente com o movimento da
viagem.
— Você precisa me obedecer — Holly disse. — Você devia ter fugido.
Ele não respondeu.
— Você é uma cruz nas minhas costas — disse ela. — Percebe? Já
tenho muitas coisas pra carregar sem ter que me preocupar com você.
Ele não respondeu. Ficaram deitados se balançando em silêncio. Ele
conseguia sentir o cheiro do xampu do dia anterior no cabelo dela.
— Sendo assim, você tem que fazer o que eu mandar a partir de agora
— pediu ela. — Você está me escutando? Eu não posso me dar ao luxo de
me preocupar com você.
Ele girou a cabeça para olhá-la, minuciosamente. Estava preocupada
com ele. Isso era uma agradável surpresa, que veio sem que ele esperasse.
Um choque até. Como estar num trem, parado ao lado de outro, numa
estação ferroviária movimentada. Seu trem começa a se mover. Pega
velocidade. E então subitamente não é o seu trem que está se movendo. É o
outro. Seu trem havia permanecido imóvel o tempo todo. Seu referencial
estava errado. Ele achava que seu trem estava se movendo. Ela achava que
era o dela.
— Eu não preciso da sua ajuda — avisou ela. — Eu já tenho toda a
ajuda necessária. Você sabe como o FBI trabalha? Você sabe qual é o maior
crime do mundo? Não é bombardeio, não é terrorismo, não é extorsão. O
maior crime do mundo é se meter a besta com o pessoal do FBI. O FBI
cuida dos seus.
Reacher permaneceu quieto por algum tempo. Então sorriu.
— Por isso estamos ambos certos — disse ele. — Basta a gente ficar
de papo pro ar aqui e muito em breve um bando de agentes entrará de
supetão para nos resgatar.
— Eu confio na minha equipe — Holly ratificou.
Fez-se silêncio outra vez. O furgão seguiu roncando por uns dois
minutos. Reacher calculou a distância de cabeça. Uns setecentos e trinta
quilômetros de Chicago, talvez. Leste, oeste, norte ou sul. Holly ofegou e
usou ambas as mãos para mudar a perna de lugar.
— Está doendo? — Reacher quis saber.
— Quando fica dobrada muito tempo — disse ela. — Quando está
reta, não tem problema.
— Em que direção estamos seguindo? — perguntou.
— Você vai fazer o que eu mandar? — ela devolveu.
— Está ficando mais quente ou mais frio? — perguntou ele. — Ou a
temperatura está estabilizada?
Ela deu de ombros.
— Não dá para saber — disse ela. — Por quê?
— Pro norte ou pro sul, devia ficar mais quente ou mais frio — disse
ele. — Leste ou oeste, devia permanecer mais ou menos igual.
— Estou sentindo que está igual — constatou ela. — Mas aqui dentro
não tem como sabermos.
— A estrada parece meio vazia — Reacher analisou. — A gente não
está fazendo ultrapassagens. Ninguém está nos retardando. Estamos em
velocidade constante.
— E o que tem isso? — Holly quis saber.
— Pode significar que nós não estamos indo para o leste — disse ele.
— Tem algum tipo de barreira, certo? De Cleveland a Pittsburgh e a
Baltimore. Uma espécie de delta. Fica muito mais movimentado. A gente
estaria pegando mais trânsito. Que dia é hoje? Terça-feira? Cerca de onze
horas da manhã? As estradas parecem muito vazias para o leste.
Holly concordou guinando a cabeça.
— Então a gente está indo para o norte, oeste ou sul — conclui ela.
— Num furgão roubado — disse ele. — Vulnerável.
— Roubado? — questionou ela. — Como você sabe disso?
— Porque o carro foi roubado também — disse ele.
— Como você sabe disso? — ela repetiu.
— Porque eles tacaram fogo nele.
Holly girou a cabeça e olhou direto para ele.
— Pense bem — começou ele. — Pense bem no plano deles. Vieram a
Chicago no próprio veículo. Talvez algum tempo atrás. Podem ter ficado
umas duas semanas de olho em você. Talvez até três.
— Três semanas? — estranhou ela. — Você acha que ficaram me
vigiando três semanas?
— Provavelmente — disse ele. — Você ia à tinturaria toda segunda-
feira, certo? Uma vez por semana? Devem ter levado algum tempo para
confirmar seu comportamento cotidiano. Mas não podiam te pegar usando
seu próprio veículo. Seria muito fácil de rastrear e provavelmente tinha
janelas e tudo o mais, não seria apropriado pra transportar para longe uma
vítima de sequestro. Então imagino que roubaram este furgão em Chicago,
provavelmente ontem de manhã. Pintaram por cima do letreiro na lateral.
Você notou a parte pintada de tinta branca? É fresca, não combina com o
resto. Camuflaram, devem ter trocado as placas. Mas mesmo assim era frio,
certo? E era o veículo de fuga. Então, não quiseram arriscá-lo na rua. E é
estranho pessoas entrarem na traseira de um furgão. Um carro é melhor.
Portanto, roubaram o sedã preto. Trocaram de veículo no terreno ermo,
queimaram o carro e vazaram.
Holly deu de ombros. Fez uma careta.
— Não prova que roubaram coisa nenhuma — disse ela.
— Prova sim — Reacher afirmou. — Quem compraria um carro novo,
com bancos de couro, sabendo que ia queimar? Comprariam alguma lata
velha.
Ela concordou com um aceno de cabeça, relutantemente.
— Quem são estas pessoas? — perguntou ela, mais para si mesma do
que para Reacher.
— Amadores — Reacher voltou a afirmar. — Estão cometendo erro
atrás de erro.
— Tipo? — indagou ela.
— Tacar fogo é burrice — disse ele. — Chama atenção. Pensam que
foram espertos, mas não foram. A probabilidade é de que também tenham
incendiado o carro original. Eu aposto que botaram fogo nele bem próximo
de onde roubaram o sedã preto.
— Parece esperteza para mim — Holly disse.
— A polícia investiga carros queimados — Reacher disse. — Vão
encontrar o sedã preto, descobrir de onde foi roubado. Irão até lá e vão
encontrar o veículo original, provavelmente ainda fumegando. Estão
deixando pistas, Holly. Deveriam ter deixado os dois carros no
estacionamento de O’Hare por um longo período, pago com antecedência.
Teriam ficado lá um ano talvez, antes que qualquer pessoa notasse. Ou
apenas deixado ambos em alguma quebrada na Zona Sul, com as portas
abertas, as chaves na ignição. Dois minutos mais tarde, dois marginais de lá
teriam carros novos. Os carros nunca seriam vistos novamente. É assim que
se cobrem as pegadas. Queimar parece bom, parece que acaba ali mesmo,
mas é muita burrice.
Holly virou o rosto para trás e olhou fixamente para o teto quente de
metal. Perguntando-se: Quem diabos é esse cara?
14

DESSA VEZ, MCGRATH NÃO FEZ O CHEFE DOS técnicos descer até o
terceiro andar. Ele mesmo liderou o ataque até seu laboratório, no sexto,
com a fita na mão. Irrompeu pela porta e limpou um espaço na mesa mais
próxima. Colocou a fita ali como se fosse feita de ouro maciço. O cara veio
correndo e olhou para ela.
— Eu preciso que faça fotografias — McGrath pediu.
O cara pegou a fita e a levou para um monte de fitas de vídeo
colocadas no canto. Ligou rapidamente uns dois interruptores. Nas três telas
só havia chuvisco.
— Não diga para absolutamente ninguém o que você vai ver,
entendido? — McGrath ordenou.
— Entendido — o cara aquiesceu. — O que devo procurar?
— Os últimos cinco quadros — McGrath pediu. — Será o bastante.
O chefe dos técnicos não usou um controle remoto. Apertou uns
botões no painel de controle da própria máquina. A fita rebobinou e a
história do sequestro de Holly Johnson se desenrolou ao contrário.
— Meu Deus! — ele exclamou.
Parou no quadro que mostrava Holly se afastando do balcão. Então
avançou a fita, Pulou até Holly, perto da porta, depois cara a cara com o
grandalhão, aí para o cano das armas e depois para o carro. Recuou e
repetiu pela segunda vez. Depois pela terceira.
— Meu Deus! — voltou a exclamar.
— Não desgaste a porra da fita — McGrath se irritou. — Eu quero
imagens ampliadas desses cinco quadros. Muitas cópias.
O chefe dos técnicos concordou com a cabeça lentamente.
— Eu posso lhe dar cópias a laser agora — sugeriu ele.
Apertou uns botões e virou umas chaves. Então se inclinou e se
afastou, ligou um computador numa mesa do outro lado da sala. No monitor
surgiu Holly se afastando do balcão da tinturaria. Ele clicou em uns dois
menus.
— Certo — ele disse. — Estou passando para o HD. Como print
screen.
Voltou correndo para a pilha de vídeos e avançou a fita um quadro.
Voltou para a mesa, e o computador capturou a imagem de Holly prestes a
empurrar a porta para ir embora. Repetiu o processo mais três vezes. Então,
imprimiu as cinco telas na impressora a laser mais rápida que tinha.
McGrath ficou em pé ao lado dela e pegou cada folha à medida que caía na
bandeja de impressão.
— Nada mau — disse ele. — Prefiro papel. Parece que é real mesmo.
O chefe dos técnicos lhe deu uma olhada e depois perscrutou por cima
do seu ombro.
— A definição está boa — constatou ele.
— Eu quero ampliações — McGrath ordenou.
— Sem grilo, agora que está no computador... — o técnico ironizou.
— É por isso que o computador é melhor do que o papel.
Sentou-se e abriu o quarto arquivo. A foto de Holly e dos três
sequestradores juntos na calçada apareceu na tela. Clicou com o mouse e
demarcou um quadrado em volta das cabeças. Clicou novamente. O
monitor ampliou bastante a imagem. O altão estava olhando fixamente para
fora da tela. Os outros dois foram pegos em ângulo, olhando fixamente para
Holly.
O técnico apertou o botão de imprimir e então abriu o quinto arquivo.
Deu um close com o mouse e fez um retângulo bem justo em volta do
motorista, dentro do carro. Imprimiu essa foto também. McGrath pegou as
novas folhas.
— Ótimo — disse. — É o melhor que a gente vai conseguir mesmo. É
uma pena que o idiota do seu computador não pode fazer todos eles
olharem para a câmera.
— Quem disse que não? — o chefe dos técnicos questionou.
— Pode?!? — McGrath exclamou. — Como?
— É fácil quando se sabe — o cara disse. Tocou na ampliação do rosto
de Holly. — Suponha que quiséssemos uma foto de frente dela, está bem?
A gente pediria que ela se movesse na frente da câmera e olhasse direto
para a lente. Mas suponhamos que, não importa a razão, ela não pudesse se
mexer. O que faríamos? A gente podia mover a câmera, certo? Suponhamos
que você subisse no balcão, tirasse a câmera da parede e a abaixasse a uma
determinada distância até que estivesse bem na frente dela. Então você
estaria vendo uma foto de frente dela, correto?
— Continua — McGrath disse.
— Então fazemos cálculos — o técnico disse. — A gente calcula que
se mudássemos essa câmera hipotética bem para a frente dela nós teríamos
que deslocá-la, digamos, um metro e meio para baixo, três metros para a
esquerda e girá-la aproximadamente quarenta graus, e então ela estaria bem
na frente dela. Então, obtemos esses números, registramos no programa, e o
computador faz um tipo de simulação inversa, faz um esboço. É
praticamente como se a gente movesse de fato a câmera real até fazer um
close.
— Você pode fazer isso? — McGrath perguntou. — Funciona?
— Com limitações — o chefe dos técnicos disse. Tocou na imagem do
sequestrador mais próximo. — Este cara, por exemplo, está praticamente de
perfil. O computador vai fornecer uma foto de rosto inteiro pra gente, na
boa, mas estará apenas dando uma estimativa de como é o outro lado,
entendeu? Ele é programado para supor que o outro lado é exatamente igual
ao lado que se pode ver, com um pouco da assimetria embutida. Mas se o
cara estiver sem uma orelha ou algo assim, ou tiver uma cicatriz grande, ele
logicamente não poderá nos dizer isso.
— Logicamente — McGrath disse. — Então, do que você precisa?
O chefe dos técnicos pegou a foto que enquadrava o grupo todo.
Apontou para cá e para lá com o curto e grosso dedo indicador.
— Medidas — disse ele. — Vou deixá-las tão exatas quanto possível.
Eu preciso saber a posição da câmera relativa à entrada e ao nível da
calçada. Preciso saber o comprimento focal da lente. Eu preciso da
fotografia da ficha da Holly para calibração. A gente sabe exatamente como
ela é, certo? Eu posso usá-la como teste. Vou arranjar as coisas para ela sair
direito, e aí os caras sairão direito também, supondo que tenham duas
orelhas e assim por diante, como eu disse. E traga um piso do chão da loja e
um dos aventais que a balconista estava usando.
— Para que? — McGrath indagou.
— Para que eu possa usar para decodificar os tons de cinza no vídeo
— disse ele. — Aí eu vou poder te dar fotos dos rostos em cores!
O comandante selecionou seis mulheres para o trabalho sujo daquela
manhã. Usou as que tinham mais deméritos, já que a tarefa seria dura e
desagradável. Ele as manteve na posição de sentido e se empertigou para
ficar bem ereto até o ponto máximo da sua estatura na frente delas. Esperou
para ver qual seria a primeira a desviar o olhar. Quando se satisfez que
nenhuma ousaria, explicou seus deveres. O sangue tinha se espalhado por
todo o recinto, arremessado para todo lado, devido à selvagem força da
lâmina dentada. Lascas de ossos haviam chovido para toda parte. Disse-lhes
para esquentar água na cozinha da casa e trazê-la em baldes. Para pegar
escovas, panos e desinfetante do almoxarifado. Disse-lhes que tinham duas
horas para deixar a sala imaculada novamente. Se levassem mais tempo que
isso, teriam ainda mais deméritos.

Levaram duas horas para conseguir os dados. Milosevic e Brogan foram à


tinturaria. Fecharam o lugar e cobriram cada canto como topógrafos.
Fizeram uma planta com as medidas exatas, um para sessenta centímetros.
Tiraram a câmera da parede e a levaram. Quebraram o chão e tiraram dois
pisos. Pegaram dois aventais da mulher e dois pôsteres da parede, porque
acharam que podiam ajudar no processo de colorização. De volta ao sexto
andar do prédio federal, o chefe dos técnicos levou mais duas horas para
inserir os dados. Então fez o teste, usando Holly Johnson para calibrar o
programa.
— O que acha? — perguntou a McGrath.
McGrath olhou minuciosamente para a foto do rosto de Holly. Então a
passou ao redor. Milosevic a pegou por último e olhou os pormenores mais
ainda. Cobriu algumas partes com a mão e olhou de sobrancelhas franzidas.
— Ela ficou muito magra — constatou ele. — Acho que o quadrante
inferior da direita está errado. Está faltando largura, de algum modo.
— Eu concordo — McGrath disse. — O maxilar dela ficou esquisito.
O chefe dos técnicos saiu para uma tela do menu e ajustou uns dois
números. Fez o teste outra vez. A impressora zumbiu. A folha de papel caiu
na bandeja.
— Está bem melhor — McGrath disse. — Acertou na mosca.
— A cor está boa? — o técnico perguntou.
— Tem que ser um tom de pêssego mais escuro — Milosevic disse. —
No vestido. Conheço esse conjuntinho. É um troço italiano.
O técnico abriu uma paleta de cores.
— Mostre — disse ele.
Milosevic apontou para um tom específico.
— É mais assim — disse ele.
Fizeram o teste outra vez. O HD vibrou e a impressora soltou o papel.
— Está melhor — Milosevic disse. — O vestido é esse. A cor do
cabelo está melhor também.
— Certo — o técnico disse. Salvou todos os parâmetros no disco. —
Vamos meter as caras aqui.
O FBI nunca usa equipamento de última geração. Acredita que é
melhor usar material que foi testado em campo. Então o computador do
chefe dos técnicos era na verdade um pouco mais lento do que os
encontrados no quarto dos garotos ricos subindo e descendo a North Shore.
Mas não muito mais lentos. Deu a McGrath cinco cópias dentro de quarenta
minutos. Quatro fotos de rosto dos quatro sequestradores e uma imagem
lateral em close-up da metade dianteira do carro deles. Tudo em cores
vívidas, todas com o pixel realçado e aplainado. McGrath achou que eram
as melhores fotos que já tinha visto.
— Obrigado, chefe — disse ele. — Estão magníficas. O melhor
trabalho que já fizeram por aqui há muito tempo. Mas não diga uma
palavra. É um grande segredo, está bem?
Bateu no ombro do chefe dos técnicos e o deixou se sentindo como o
homem mais importante de todo o prédio.

As seis mulheres trabalharam duro e acabaram um pouquinho antes do


prazo de duas horas. As minúsculas fendas entre as tábuas foram seu maior
problema. Estavam muito unidas, mas não o suficiente para impedir que o
sangue se infiltrasse. Estavam apertadas demais para permitir a entrada das
cerdas das escovas. Tiveram que limpar com jato de água, usando um pano
para secar. As tábuas estavam ficando com uma cor amarronzada e úmidas.
As mulheres rezavam para que não empenassem ao secar. Duas delas
chegaram a vomitar. Um acréscimo à sua carga de trabalho. Mas acabaram
na hora da inspeção do comandante. Ficaram aguardando em posição de
sentido no chão úmido. Ele verificou tudo, com as tábuas molhadas
rangendo diante da sua envergadura. Mas ficou satisfeito com o trabalho e
lhes deu mais duas horas para limpar as manchas do corredor e da
escadaria, por onde o corpo havia sido arrastado para a desova.

O carro foi fácil. Foi identificado rapidamente como um Lexus. Quatro


portas. Último modelo. O padrão da roda de liga leve o datou com exatidão.
A cor era preta ou cinza-chumbo. Impossível de ter certeza absoluta. O
software era bom, mas não o bastante para precisar exatamente a pintura
automotiva escura em pleno sol de meio-dia.
— Roubado? — Milosevic perguntou.
McGrath concordou com a cabeça.
— Na certa — disse Mack. — Você checa, ok?
Variações no valor do iene colocaram o preço de tabela de um Lexus
quatro portas zero, lá em cima, próximo do salário anual de Milosevic.
Assim, ele sabia em quais jurisdições valeria a pena verificar e quais não.
Não se incomodou com qualquer lugar ao sul do Loop. Ligou para a polícia
de Chicago e depois para todas as delegacias de North Shore até Lake
Forest.
Teve sucesso um pouco antes do meio-dia. Não exatamente o que
procurava. Não um Lexus roubado, e sim um Lexus desaparecido. O
Departamento de Polícia de Wilmette retornou para ele e disse que um
dentista de lá tinha dirigido um Lexus novinho em folha para o trabalho,
antes das sete da manhã de segunda-feira, e o tinha deixado no
estacionamento atrás do prédio comercial onde mantém consultório. Um
quiroprático do prédio de escritórios seguinte o tinha visto virar no
estacionamento. Mas o dentista não havia entrado no prédio. A secretária
tinha ligado para sua casa e a esposa havia chamado a polícia de Wilmette.
A polícia registrou a ocorrência e ficou coçando o saco. Não era a primeira
vez que ouviam o caso de um marido desaparecer. Disseram a Milosevic
que o nome do cara era Rubin e o carro era o novo tom de preto, pintas de
mica na pintura para fazê-lo perolizado, e tinha placas personalizadas, onde
se lia: ORTHO 1.
Milosevic desligou e o telefone tocou imediatamente outra vez com
um comunicado do corpo de bombeiros de Chicago. Uma unidade tinha
atendido um incêndio de automóvel que soltava uma nuvem de fumaça
oleosa na rota de voo ao lado da pista de aterrissagem do Aeroporto Meigs
Field. O carro de bombeiros havia chegado um pouco antes da uma hora no
terreno industrial abandonado, na segunda-feira, e encontrado um Lexus
preto queimando furiosamente. Tinham calculado que já queimara até o
metal mesmo, e por isso não haveria muito mais fumaça. Então
economizaram a espuma e apenas deixaram que acabasse de queimar.
Milosevic anotou a localização e desligou. Entrou no escritório de McGrath
para pedir instruções.
— Averigue — McGrath ordenou.
Milosevic assentiu com a cabeça. Sempre ficava feliz com trabalho
externo. Dava-lhe a possibilidade de dirigir seu próprio Ford Explorer
novinho em folha, que gostava de usar em preferência a um dos sedãs
desengonçados do FBI. E o FBI gostava de deixá-lo fazer exatamente isso,
porque ele nunca se incomodava em exigir reembolso para a gasolina.
Sendo assim, dirigiu seu carrão lustroso com tração nas quatro rodas oito
quilômetros para o sul e encontrou com facilidade os destroços do Lexus.
Havia sido estacionado à galega numa área de concreto cheia de saliências
atrás de um prédio industrial abandonado. Os pneus tinham queimado
completamente. Estava nos aros. As placas ainda eram legíveis: ORTHO 1.
Fuçou entre o amontoado de cinzas lá dentro, ainda ligeiramente quentes, e
então puxou o miolo queimado da ignição e abriu o porta-malas. Afastou-se
quatro passos, cambaleando, e vomitou no concreto, teve ainda mais
espasmos, cuspiu, e o suor lhe cobriu o corpo. Tirou o celular do bolso e
ligou. Entrou direto em contato com McGrath no prédio federal.
— Encontrei o dentista — avisou.
— Onde? — McGrath perguntou.
— Na porra do porta-malas — Milosevic disse. — Assado a fogo
lento. Parece que estava vivo quando o fogaréu começou.
— Caramba — McGrath disse. — Acha que tem ligação?
— Sem sombra de dúvida — respondeu.
— Tem certeza? — McGrath perguntou.
— Absoluta — Milosevic ratificou. — Encontrei outras coisas. Tá
tudo esturricado, mas reconhecíveis. Tem um .38 bem no meio do que
parece uma dobradiça de metal, poderia ser da bolsa de uma mulher, sabe?
Moedas, um tubo de batom e partes metálicas de um celular e um pager.
Ah... e tem nove cabides de arame no chão. Do tipo usado em tinturaria.
— Caralho!!! — McGrath exclamou novamente. — Conclusões?
— Roubaram o Lexus em Wilmette. — Milosevic disse. — Talvez o
dentista tenha pegado eles em flagrante. Partiu para cima deles, foi
dominado e colocado no porta-malas. Queimaram o sujeito junto com o
resto das evidências.
— Caralho!!! — McGrath repetiu. — Mas onde está Holly? Tem
conclusões sobre isso?
— Levaram para Meigs Field — Milosevic disse. — Fica a
aproximadamente um quilômetro daqui. Suponho que ela foi colocada num
jatinho particular e depois jogaram o carro aqui. Foi isso que fizeram,
Mack. Ela foi levada de avião para algum lugar. Quatro caras, capazes de
queimar outro vivo, estão com ela sozinha sabe-se lá onde, e ela pode estar
a essa altura a um milhão de quilômetros de distância daqui.
15

O FURGÃO BRANCO SEGUIU FIRME COM SEU barulho monótono,


mais outra hora, talvez mais cem quilômetros. O relógio mental de Reacher
tiquetaqueou das onze ao meio-dia. Os primeiros leves sinais de
preocupação começaram a se acumular no seu pensamento. Estavam fora há
um dia. Quase vinte e quatro horas. Passaram da primeira fase para a
intermediária. Nenhum progresso. E estava desconfortável. O ar dentro do
veículo não podia estar mais quente. Ainda deitados de costas, juntos, no
colchão quente, cabeças unidas. O estofamento de crina de cavalo os
esquentava insuportavelmente. Os cabelos pretos de Holly jaziam úmidos e
espalhados. À esquerda, se ondulavam de encontro ao ombro nu de
Reacher.
— É porque sou mulher? — perguntou, tensa. — Ou porque sou mais
nova do que você? Ou ambas as coisas?
— É porque o quê? — perguntou. Cuidadoso.
— Você acha que tem que tomar conta de mim — disse ela. — Você
está todo preocupado comigo porque sou jovem e mulher, certo? Você
pensa que preciso ser socorrida por um homem mais velho.
Reacher se moveu. Não queria de fato se mexer. Estava
desconfortável, mas sentia-se suficientemente feliz ali, era o que supunha.
Em particular, estava feliz com a sensação do cabelo de Holly de encontro a
seu ombro. Sua vida era assim. Não importava o que acontecesse, havia
sempre algumas pequenas compensações.
— É ou não é? — ela exigia uma resposta.
— Não tem nada a ver com feminilidade, Holly — afirmou ele. — Ou
com idade. Mas você precisa de ajuda sim.
— E eu sou uma mulher mais nova, e você um homem mais velho —
disse ela. — Portanto, você está obviamente qualificado. Só pode ser isso,
certo?
Reacher balançou a cabeça, deitando-se.
— Não tem nada a ver com feminilidade — voltou a dizer. — Ou
idade. Eu sou qualificado porque sou qualificado, ponto final. Estou apenas
tentando te ajudar.
— Você está assumindo riscos estúpidos — disse ela. — Instigar e
hostilizá-los não é o jeito certo de agir. Pelo amor de Deus! Você vai fazer
com que nos matem.
— Porra nenhuma — Reacher disse. — Eles têm que pensar na gente
como gente, e não como carga.
— Quem disse? — Holly vociferou. — Quem te promoveu de repente
a grande perito?
Ele deu de ombros.
— Deixa eu te fazer uma pergunta? — pediu ele. — Se você estivesse
no meu lugar, teria me deixado sozinho naquele estábulo?
Ela deu uma pensada.
— Claro que teria! — exclamou.
Ele sorriu. Ela estava provavelmente falando a verdade. O que fez com
que ele gostasse ainda mais dela.
— Certo — disse ele. — Na próxima vez que você pedir, eu me
mando. Sem discutir.
Ela se calou por um bom tempo.
— Bom — concluiu ela. — Se quiser realmente me ajudar, faça
exatamente isso.
Ele deu de ombros. Aproximou-se um centímetro.
— Seria arriscado para você — alertou ele. — Se eu escapar, podem
decidir te apagar e sumir.
— Eu assumo o risco — disse ela. — Eu ganho para isso.
— Então, quem são eles? — perguntou. — E o que querem?
— E eu vou lá saber? — respondeu.
Ela falou rápido demais. Ela sabia sim senhor.
— Querem você, certo? — disse ele. — Ou a sua pessoa mesmo ou
qualquer agente do FBI, e você calhou de estar justamente ali na hora H.
Quantos agentes o FBI tem?
— O FBI tem vinte e cinco mil funcionários — disse ela. — Dos quais
dez mil são agentes.
— Certo — disse ele. — Então querem você em particular. Um entre
dez mil é muita coincidência. Não foi aleatório.
Ela desviou o olhar. Ele a encarou.
— Por quê, Holly? — insistiu.
Ela deu de ombros e balançou a cabeça em sinal de não.
— Eu não sei — disse ela.
Haja teimosia. Ele a encarou outra vez. Ela parecia ter certeza, mas
estava muito na defensiva.
— Eu não sei — ela repetiu. — Devem ter me confundido com alguém
do escritório.
Reacher riu e voltou a cabeça para ela. O rosto tocou no cabelo dela.
— Está tirando uma com a minha cara, Holly Johnson — falou bem
sério. — Até parece que vão confundir justo uma mulher como você com
outra pessoa. E ficaram três semanas na sua cola. Tempo suficiente para te
conhecerem muito bem.
Ela sorriu sarcasticamente, com o rosto voltado para longe, na direção
do teto de metal.
— Uma vez vista... nunca esquecida, certo? — disse ela. —
Brincadeirinha.
— Tem alguma dúvida disso? — Reacher perguntou. — Não vi
ninguém mais linda que você esta semana.
— Obrigada, Reacher — disse ela. — Hoje é terça. Você me viu pela
primeira vez na segunda. Grande cumprimento, hein?
— Você sacou o que eu quis dizer.
Ela se sentou empertigada, com o corpo reto da cintura para cima,
como uma ginasta, e usou ambas as mãos para jogar a perna para o lado.
Apoiou o cotovelo no colchão. Enganchou o cabelo atrás da orelha e baixou
os olhos até ele.
— Não te entendo — disse ela.
Ele ergueu os olhos de volta para ela. Deu de ombros.
— Se tiver perguntas, faça — pediu ele. — Eu sou totalmente a favor
da liberdade de expressão.
— Está bem — Holly se animou. — Lá vai a primeira pergunta: quem
diabos é você?
Ele deu de ombros outra vez e sorriu.
— Jack Reacher — respondeu. — Apenas um nome e um sobrenome,
trinta e sete anos e oito meses de idade, solteiro, segurança de boate em
Chicago.
— Papo furado — disse ela.
— Papo furado? — ele repetiu. — Qual parte? Meu nome, minha
idade, meu estado civil ou minha profissão?
— Sua profissão — disse ela. — Você não é segurança de boate.
— Eu não sou? — questionou ele. — Então sou o quê?
— Você é um soldado — afirmou ela. — Você está no exército.
— Você acha?
— Tá na cara — disse ela. — Meu pai é militar. Vivi em bases toda
minha vida. Até completar dezoito anos, eu só via gente do exército.
Conheço soldados muito bem. Sei o jeitão deles. Eu tinha certeza que você
era um. Aí você tirou a camisa e eu confirmei.
Reacher arreganhou os dentes com um sorriso.
— Por quê? — perguntou ele. — Isso é o tipo de coisa que só um
soldado grosseiro faria?
Holly retribuiu o largo sorriso. Negou com a cabeça. Seu cabelo se
soltou. Ela o colocou de volta atrás da orelha, com um pálido dedo dobrado
como um ganchinho.
— Essa sua cicatriz na barriga — disse ela. — Esses pontos mal dados.
Isso foi uma cirurgia feita numa unidade móvel hospitalar militar, com
certeza. Feitos em algum hospital de campanha sabe-se lá onde, e levaram
cerca de um minuto e meio. Se qualquer cirurgião civil desse uns pontos
assim, seria processado por tratamento inadequado tão rapidamente que
ficaria atordoado.
Reacher correu o dedo pelo queloide. Os pontos pareciam uma
maquete de uma estrada de ferro.
— O cara estava atarefado — contou ele. — Achei que se saiu até
muito bem, considerando as circunstâncias. Eu estava em Beirute. Bem no
fim da lista de prioridades. Estava apenas morrendo de hemorragia, aos
pouquinhos.
— Então estou certa? — Holly sorriu. — Você é um soldado?
Reacher ergueu o rosto, sorriu para ela de volta e negou com a cabeça.
— Eu sou apenas um segurança — afirmou ele. — Como já disse.
Casa de blues na Zona Sul. Você devia dar uma passadinha lá. Muito
melhor do que os tradicionais pontos turísticos.
Ela correu os olhos da enorme cicatriz até seu rosto. Apertou os lábios
e lentamente balançou a cabeça. Reacher assentiu com a cabeça, como se
estivesse concordando nesse ponto.
— Fui um soldado — disse ele. — Eu saí, há quatorze meses.
— Que unidade? — ela perguntou.
— Polícia do exército.
Ela fez uma tremenda careta zombeteira.
— Os mais malvados dos malvados — disse ela. — Ninguém gosta de
vocês.
— Nem me fale — Reacher disse.
— Explica muitas coisas — avaliou ela. — Vocês recebem muito
treinamento especial. Então suponho que você seja realmente qualificado.
Devia ter falado logo, droga. Agora suponho que tenho que me desculpar
pelo que disse.
Ele não respondeu.
— Onde você serviu? — ela perguntou.
— Rodei o mundo — contou ele. — Europa, Extremo Oriente, Oriente
Médio. Chegou a tal ponto que eu não sabia qual era o lado de cima.
— Patente? — ela perguntou.
— Major.
— Medalhas? — ela perguntou.
Ele deu de ombros.
— Dúzias dessas merdas — disse ele. — Sabe como é. Medalhas de
participação em zona de guerra, claro, uma Estrela de Prata, duas de
Bronze, Coração Púrpura em Beirute, bagulhos da campanha do Panamá e
de Granada e do Escudo do Deserto e da Tempestade no Deserto.
— Uma Estrela de Prata? — ela ficou impressionada. — Pelo quê?
— Beirute — disse ele. — Tirei alguns sujeitos da casamata.
— E você se feriu nessa missão? — perguntou ela. — Foi assim que
ganhou a cicatriz e o Coração Púrpura?
— Eu já havia sido ferido — disse ele. — Em outra ocasião. Acho que
ficaram impressionados por causa disso.
— Herói, certo? — brincou ela.
Ele sorriu e negou com a cabeça.
— De jeito nenhum — disse ele. — Já estava cicatrizando. Fiz sem
pensar. Estado de choque grave. Eu só percebi o risco mais tarde. Se eu
tivesse parado para pensar, teria desmaiado na hora. Meus intestinos
estavam todos para fora. Horrível mesmo. Rosa choque. Parecia uma polpa.
Holly guardou silêncio por um segundo. O furgão seguia com seu
barulho monótono. Percorreram mais trinta quilômetros. Norte, sul ou
oeste. Provavelmente.
— Quanto tempo você serviu? — ela perguntou.
— Toda a minha vida — revelou ele. — Meu velho era oficial dos
fuzileiros navais, serviu em tudo quanto é canto. Casou com uma francesa
na Coreia. Eu nasci em Berlim. Só vim a conhecer os Estados Unidos aos
nove anos de idade. Cinco minutos mais tarde estávamos nas Filipinas.
Demos a volta ao mundo. O maior período que fiquei parado foi na
Academia de West Point. Quatro anos. Então me alistei e começou tudo de
novo. Outra volta ao mundo.
— Onde está sua família agora? — ela perguntou.
— Morta — disse ele. — O velho morreu, deixe-me ver... Faz dez
anos, suponho. Minha mãe morreu dois anos depois. Eu enterrei a Estrela
de Prata com ela. Na verdade, foi ela que ganhou para mim. Cumpra seu
dever, ela costumava me dizer. Cerca de um milhão de vezes por dia, com
um sotaque francês bem carregado.
— Irmãos e irmãs? — indagou ela.
— Eu tive um irmão — disse ele. — Morreu no ano passado. Eu sou o
último Reacher na face da Terra, até onde sei.
— Quando deu baixa?
— Abril do ano passado — respondeu. — Há quatorze meses.
— Por quê? — ela perguntou.
Reacher deu de ombros.
— Simplesmente perdi o interesse, creio eu — disse ele. — Estavam
fazendo cortes na Defesa. Isso fez o exército parecer desnecessário, de certo
modo. Tipo, já que não precisavam mais dos maiores e dos melhores, então
não precisavam de mim. Não quis fazer parte de algo pequeno e de segunda
categoria. Por isso fui embora. Quanta arrogância, né?
Ela riu.
— E decidiu virar segurança? — questionou ela. — De major
condecorado a segurança? Isso não é uma profissão de segunda categoria?
— Não foi bem assim — disse ele. — Não estava nos meus planos ser
segurança, nada a ver com o lance de que seria minha nova profissão. Foi
provisório. Cheguei a Chicago na sexta-feira. Planejava seguir viagem,
talvez na quarta. Estava pensando em ir para o Wisconsin. Dizem que é
agradável nessa época do ano.
— De sexta até quarta-feira? — Holly estranhou. — Você não é lá
muito chegado a comprometimento?
— Creio que não — concordou ele. — Por trinta e seis anos eu sempre
ia para onde me mandavam. Levava uma vida muito regrada. Suponho que
eu esteja reagindo. Adoro vagabundear quando me dá na telha. É como uma
droga. Desde então, o maior tempo que permaneci parado num lugar foram
dez dias consecutivos. No outono passado, na Geórgia. Dez dias em
quatorze meses. Tirando isso, fiquei na estrada mais ou menos o tempo
todo.
— Ganha a vida trabalhando em portas de boates? — ela perguntou.
— De jeito nenhum — disse. — Na maior parte do tempo não
trabalho, vivo das minhas economias. Mas fui a Chicago com um cantor,
uma coisa levou a outra, me pediram para trabalhar na boate para a qual o
cara estava indo.
— Então o que você faz se não trabalha? — ela perguntou.
— Fico olhando as coisas — disse. — Você tem que manter em mente
que sou um americano de trinta e sete anos que nunca passou muito tempo
nos Estados Unidos. Você já foi ao Empire State?
— Claro.
— Eu nunca tinha ido antes do ano passado — disse. — Você já foi
aos museus de Washington?
— Sim — respondeu.
— Eu também nunca tinha ido — disse ele outra vez. — Não, antes do
ano passado. Todo esse tipo de coisas. Boston, Nova York, Washington,
Chicago, Nova Orleans, Monte Rushmore, a Golden Gate, Niágara. Sou
tipo um turista. É como se estivesse correndo atrás do tempo perdido,
entende?
— Eu sou o contrário — Holly disse. — Meu negócio é viajar para o
exterior.
Reacher deu de ombros.
— Eu conheço o mundo — disse ele. — Seis continentes. Vou ficar
aqui agora.
— Eu já viajei muito pelo país — disse ela. — Meu pai vivia viajando,
mas ficávamos aqui, fora duas temporadas na Alemanha.
Reacher abanou a cabeça. Voltou mentalmente ao tempo que havia
passado na Alemanha como homem e como menino. Muitos anos no total.
— Aprendeu a gostar de futebol na Europa? — perguntou ele.
— Com certeza — Holly disse. — É uma febre por lá. Uma vez,
ficamos numa base perto de Munique. Eu era uma pirralha, onze anos
talvez. Deram ingressos ao meu pai para um jogão em Roterdã, na Holanda.
Final da Copa dos Campeões, Bayern de Munique contra algum time
inglês... Aston Villa, já ouviu falar?
Reacher confirmou com a cabeça.
— De Birmingham — disse ele. — Fiquei numa base em Oxford num
dado momento. Cerca de uma hora de distância.
— Eu odiava os alemães — Holly revelou. — Tão arrogantes, tão
cheios de si. Tinham absoluta certeza de que iam arregaçar os britânicos. Eu
não estava torcendo por eles. Mas não tive escolha, tive que ir, entende? Era
tipo um protocolo da OTAN. Seria um grande escândalo se eu tivesse me
recusado. Por isso fomos. E os ingleses venceram o poderoso Bayern. Os
alemães ficaram putos da vida. Eu adorei. E os garotos do Villa eram tão
fofos. Me apaixonei pelo futebol a partir daquela noite. Ainda sou
apaixonada.
Reacher balançou a cabeça. Gostava de assistir futebol, mas não era
um fanático. Achava importante que as pessoas pudessem conhecer melhor
o jogo, cedo e gradualmente. O jogo parecia muito leve e solto, porém
muito técnico. Cheio de magia. Mas entendia como uma mocinha poderia
ser seduzida por ele muito tempo atrás na Europa. Uma noite frenética
embaixo de holofotes em Roterdã. Fula da vida e nem um pouco a fim, no
começo, e depois, fascinada pelos padrões formados pela bola branca no
gramado verde. Acabando por se apaixonar pelo jogo futuramente. Mas
algo disparou um alarme nos seus miolos. Se a filha de onze anos de um
membro americano qualquer das Forças Armadas tivesse se recusado a ir,
ela causaria algum tipo de escândalo para a OTAN? Ela tinha dito isso?
— Quem é seu pai? — ele foi incisivo. — Parece que deve ter sido
alguém importante.
Ela deu de ombros. Não queria responder nem a pau. Reacher não
desgrudou os olhos dela. Outro alarme disparou.
— Holly, quem diabos é seu pai? — perguntou com urgência.
O tom defensivo que tinha estado em sua voz se espalhou pelo rosto.
Nenhuma resposta.
— Quem, Holly? — Reacher perguntou pela última vez.
Ela desviou os olhos. Falou na direção da lateral de metal do furgão.
Sua voz quase sumiu diante da barulheira da estrada. Defensiva pra burro.
— General Johnson — disse ela baixinho. — Naquela época, era
Comandante das Forças Armadas na Europa. Você o conhece?
Reacher a encarou. General Johnson. Holly Johnson. Pai e filha.
— Conheço — disse ele. — Mas isso é irrelevante, não é?
Ela olhou para ele com uma fúria animal.
— Por quê? — reagiu ela. — O que exatamente é relevante, cacete?
— Essa é a razão — disse ele. — Seu pai é o militar mais importante
dos Estados Unidos, não é? Caramba, Holly, foi por isso que você foi
sequestrada. Esses caras não querem Holly Johnson, agente do FBI. O fato
de você ser do FBI é um detalhe. Esses caras querem a filha do General
Johnson.
Ela o encarou como se ele tivesse dado um puta tapa na sua cara.
— Por quê? — ela realmente queria saber. — Por que todos supõem
que tudo que acontece comigo é por causa de quem meu maldito pai é?
16

MCGRATH TROUXE BROGAN COM ELE E ENCONTROU Milosevic


no Aeroporto Meigs Field em Chicago. Trouxe as quatro fotos de rosto
feitas com o auxílio do computador e a foto-teste de Holly Johnson. Veio
esperando total cooperação do quadro de funcionários do aeroporto. E foi
exatamente o que obteve. Três importantes agentes do FBI, atormentados
pelo medo por causa de uma colega, é um assunto difícil de não ser tratado
com total e absoluta cooperação.
Meigs Field era um pequeno estabelecimento comercial, bem na região
do lago, água dos três lados, um pouco abaixo da praia da Rua 12, tentando
ganhar a vida à sombra gigantesca do O’Hare. O pessoal da burocracia
apresentou uma documentação imaculada. Eficiência, de primeira classe.
Não a ponto de poderem estar prontos para lidar com investidas do FBI sem
nenhum aviso prévio, mas o suficiente para poderem continuar funcionando
e ganhando dinheiro sob o nariz do concorrente mais forte do mundo. Seus
registros e eficiência ajudaram bastante McGrath. Ajudaram a perceber,
dentro de aproximadamente trinta segundos, que estava se dirigindo a um
beco sem saída.
O quadro de funcionários do Meigs Field estava certo de que nunca
tinha visto Holly Johnson ou nenhum dos quatro sequestradores em nenhum
momento. Com certeza não na segunda-feira e muito menos por volta de
uma hora. Estavam convictos disso. Não estavam exagerando. Apenas
tinham certeza. Aquela certeza de quem passa os dias de trabalho
serenamente convicto de certas coisas, como autorizar o voo de pequenos
aviões nas rotas mais movimentadas do planeta.
E não houve nenhuma decolagem suspeita de Meigs Field, em nenhum
momento entre o meio-dia e, digamos, as três horas. Sem sombra de dúvida.
A papelada era explícita quanto a isso. Os três agentes saíram de lá tão
rapidamente quanto entraram. Os funcionários da torre acenaram um para o
outro e se esqueceram de tudo, antes mesmo que os agentes estivessem de
volta em seus carros no acanhado estacionamento.
— Está bem, primeira fase concluída — McGrath comemorou. —
Averiguem esta situação do dentista em Wilmette. Tenho coisas para fazer.
E tenho que ligar para Webster. Devem estar subindo pelas paredes lá na
capital.

A dois mil, setecentos e quarenta quilômetros de Meigs Field, o rapaz no


matagal precisava de instruções. Era um bom agente, bem treinado, mas no
que dizia respeito ao trabalho de infiltração era novo e relativamente
inexperiente. A demanda por agentes secretos aumentava sempre. O FBI
tinha dificuldades em preencher todas as vagas. Por isso pessoas como ele
eram logo incumbidas de missões. Pessoas inexperientes. Calculava que
contanto que sempre se lembrasse de que estava começando não teria
problemas. Seu ego não atrapalhava nessa questão. Estava sempre disposto
a pedir orientação. Era cuidadoso. Realista. Realista a ponto de saber que
agora estava numa situação acima da sua capacidade. As coisas estavam
esquentando a tal ponto que lhe davam certeza de que explodiriam e...
como, ele não sabia. Era apenas um pressentimento. Mas ele confiava nos
seus pressentimentos. Confiava tanto, que parou e se voltou antes de chegar
à sua árvore especial. Respirou fundo, mudou de ideia e se dirigiu para o
lugar de onde tinha vindo.

Webster aguardava a ligação de McGrath. Não havia dúvida. E ele a


atendeu imediatamente, como se estivesse sentado lá, no seu espaçoso
escritório, simplesmente esperando o telefone tocar.
— Progresso, Mack? — Webster perguntou.
— Alguns — McGrath disse. — A gente sabe exatamente o que
aconteceu. Temos tudo no vídeo de segurança de uma tinturaria.
Analisamos com todo o cuidado. Ela chegou lá ao meio-dia e dez. Saiu
cinco minutos depois. Tinha quatro sujeitos. Três na rua, um num carro.
Eles a pegaram.
— E depois? — Webster perguntou.
— Estavam num sedã roubado — McGrath relatou. — Parece que
precisaram matar o dono. Eles a levaram de carro oito quilômetros rumo ao
sul e tacaram fogo no sedã. Com o dono no porta-malas. Foi queimado
vivo. Era um dentista. Se chamava Rubin. A gente ainda não sabe o que
fizeram com Holly.
Em Washington, Harland Webster emudeceu por um bom tempo.
— Vale a pena fazer uma busca na área? — acabou perguntando.
Foi a vez de McGrath ficar quieto durante uns segundos. Inseguro
quanto às implicações. Webster estava querendo dizer que deviam procurar
por um esconderijo ou por outro corpo?
— Meu instinto diz que não — ele respondeu. — Devem saber que
podemos fazer uma busca na área. Pressinto que a levaram para outro lugar.
Talvez para bem longe.
Fez-se silêncio na linha outra vez. McGrath podia até ouvir Webster
pensando.
— Acho que concordo contigo — Webster disse. — Ela foi tirada
daqui. Mas como exatamente? Pela estrada? Via aérea?
— Via aérea, não — McGrath garantiu. — Cobrimos os voos
comerciais ontem. A gente acabou de investigar os particulares. Não deu
em nada.
— Um helicóptero? — Webster sugeriu. — Entrada e saída na
surdina?
— Em Chicago não, chefe — McGrath disse. — Não bem ao lado do
O’Hare. Tem mais radares aqui do que na força aérea. Se qualquer
helicóptero entrasse ou saísse daqui sem autorização, a gente saberia.
— Certo — Webster concordou. — Mas precisamos assumir o
controle disso. Sequestro e homicídio, Mack, estou tendo um péssimo
pressentimento. Imagina que um segundo veículo roubado esteja
envolvido? Que se encontrou com o sedã roubado?
— Tudo leva a crer — ele disse. — Estamos verificando agora.
— Faz qualquer ideia de quem sejam? — Webster perguntou.
— Não — McGrath respondeu. — A gente conseguiu fotos muito boas
do vídeo. Trabalhadas por um software. Vamos mandar para você baixar aí
imediatamente. Quatro sujeitos, brancos, entre trinta e quarenta anos, três
deles muito parecidos, porte médio, cabelos curtos e bem cuidados. O
quarto sujeito é muito alto, o computador diz que talvez tenha uns dois
metros. Acho que é o chefe da quadrilha. Foi o primeiro a chegar até ela.
— Já faz alguma ideia do motivo? — Webster perguntou.
— Nenhuma ideia mesmo — McGrath afirmou.
A linha caiu no silêncio novamente.
— Certo — Webster disse. — Está de olho em tudo, não deixando
passar nada?
— O máximo que posso — McGrath garantiu. — Somos apenas três.
— Quem você está usando? — Webster perguntou.
— Brogan e Milosevic — McGrath disse.
— São bons? — Webster perguntou.
McGrath grunhiu. Como ele os escolheria se não fossem?
— Conhecem a Holly muito bem — ele preferiu dizer. — São bons.
— Chorões e reclamões? — Webster perguntou. — Ou craques, como
as pessoas eram antigamente?
— Nunca ouvi reclamarem — McGrath disse. — De nada. Fazem o
trabalho, cumprem o horário. Nem mesmo se queixam do salário.
Webster riu.
— Dá pra clonar? — brincou.
A frivolidade subiu ao topo e desfaleceu dentro de segundos. Mas
McGrath apreciou a tentativa de levantar o moral.
— Como está se saindo aí? — ele perguntou.
— Em que sentido, Mack? — Webster disse, sério novamente.
— O velho — McGrath esclareceu. — Está dificultando as coisas para
você?
— Qual deles, Mack? — Webster perguntou.
— O general.
— Ainda não — Webster disse. — Ligou esta manhã, mas foi muito
educado. As coisas são assim mesmo. Os pais são normalmente muito
calmos nos primeiros dois dias. Ficam agitados mais tarde. Com o general
Johnson não será diferente. Ele pode ser um bambambã, mas as pessoas são
todas iguais por dentro, não é?
— É — McGrath concordou. — Manda ele me ligar se quiser
relatórios em primeira mão. Poderia ajudar sua situação.
— Perfeito, Mack, obrigado — Webster agradeceu. — Mas acho que a
gente devia manter este negócio do dentista só entre nós, por ora. Deixa
tudo com cara de muito pior. Nesse meio-tempo me envie seu material.
Farei nosso pessoal botar a mão na massa em cima disso. E não se
preocupe. A gente vai resgatá-la. O FBI cuida dos seus, certo? Nunca falha.
Os dois chefes do FBI deixaram a mentira morrer no silêncio e
colocaram o fone no gancho ao mesmo tempo.
O rapaz saiu caminhando da mata e deu de cara com o comandante. Era
inteligente o bastante para bater uma continência espalhafatosa e parecer
nervoso, mas manteve o nervosismo ao nível que qualquer soldado-raso
demonstra diante do comandante. Nada demais, nada suspeito. Ficou
parado esperando que a palavra fosse dirigida a ele.
— Tenho um trabalho para você — o comandante disse. — Você é
novo por aqui, certo? É bom com toda essa merdalhada técnica?
O homem confirmou com a cabeça cautelosamente.
— Geralmente consigo me virar, senhor — ele disse.
O comandante devolveu o meneio de cabeça.
— Temos um novo brinquedo — ele noticiou. — Um escâner de
frequências de rádio. Eu quero que fique de vigia.
O rapaz sentiu seu sangue gelar.
— Por quê, senhor? — perguntou. — Acha que alguém está usando
um radiotransmissor?
— Possivelmente — o comandante disse. — Não confio em ninguém e
suspeito de todo mundo. Por mais cuidado que eu tome, é pouco, ainda
mais agora. Tenho que cuidar dos detalhes. Conhece a velha máxima, a de
que a genialidade vem da meticulosidade? Certo?
O rapaz engoliu em seco e concordou com um gesto de cabeça.
— Então faça a instalação — o comandante ordenou. — Esquematize
um rodízio de plantões. Dois turnos, dezesseis horas por dia, entendido?
Precisamos de vigilância constante agora.
O comandante se voltou e foi embora. O rapaz concordou com a
cabeça e expirou. Olhou instintivamente para trás, na direção da sua árvore
especial, e abençoou seus pressentimentos.

Milosevic levou Brogan para o norte em sua picape nova. Fizeram um


desvio de rota até a agência dos correios de Wilmette para que Brogan
pudesse enviar seus dois cheques de pensão. Depois foram procurar o
prédio do dentista assassinado. Um policial fardado local os esperava nos
fundos do estacionamento. Nem se desculpou por ter negligenciado a
ocorrência relatada pela esposa do dentista. Milosevic começou a lhe dar
um tremendo esporro por causa disso, como se esse fato o tornasse
pessoalmente responsável pelo sequestro de Holly Johnson.
— Muitos maridos simplesmente desaparecem — o cana disse. — Isso
vive acontecendo. Aqui é Wilmette, meu amigo! Os homens daqui são
iguais aos de qualquer outro lugar, com a diferença de que aqui eles têm
dinheiro para conseguir o que querem. O que que eu posso fazer?
Milosevic não mostrou um pingo de compreensão. O cana havia
cometido mais dois erros. Em primeiro lugar, tinha pressuposto que havia
sido o assassinato do dentista que trouxe o FBI para sua jurisdição. Em
segundo, estava mais preocupado em tirar o seu da reta do que com o fato
de que quatro assassinos haviam sequestrado Holly Johnson em plena rua.
Milosevic estava definitivamente perdendo a paciência com o sujeito. Mas
ele se redimiu.
— O que que tá havendo aqui? — disparou. — Tem até incendiário na
porra da cidade? Algum cuzão queimou um carro perto do lago. Temos que
rebocar o troço. Os moradores estão enchendo o nosso saco.
— Onde exatamente? — Milosevic perguntou.
O tira raciocinou por uns dez segundos. Estava ansioso para ser bem
preciso.
— Bem no desvio de trilhos no litoral — disse. — Na estrada de
Sheridan, do lado de cá do parque Washington. Nunca vi tal coisa antes, não
em Wilmette.
Milosevic e Brogan foram averiguar. Seguiram o cana na viatura
lustrosa da polícia local. Ele os levou ao lugar. Não era um carro comum.
Era uma picape Dodge de dez anos de idade. Nada de placas. Embebida
com gasolina e praticamente queimada por inteiro.
— Aconteceu ontem — o policial falou. — Foi vista por volta de sete
e meia da manhã. O pessoal que usa transporte público fez a denúncia, a
caminho do trabalho, um após outro.
Ele rodeou o veículo e examinou os destroços, com cuidado.
— Não é da região — analisou o policial. — Esse é meu palpite.
— Por que não? — Milosevic lhe perguntou.
— A carroça tem dez anos de idade, certo? — o cara disse. — Por aqui
temos algumas picapes, mas são brinquedos de gente grande, saca? Grandes
V8, cheios de cromados. Ninguém abriria espaço para uma lata velha dessas
em sua garagem.
— Quem sabe jardineiro? — Brogan perguntou. — Garotos que
gostam de ferramentas, algo assim?
— Por que iam queimar a carroça? — o cana disse. — Se precisassem
trocar por outra, venderiam para desmanche, né não? Ninguém queima um
bem, concorda?
Milosevic pensou sobre isso e concordou com a cabeça.
— É verdade — disse. — Esta aí é nossa. Investigação federal. Vamos
mandar um caminhão pegar assim que puder. Neste ínterim, tome conta
dela, entendido? E faça direito, pelo amor de Deus! Não deixe ninguém
chegar perto.
— Por quê? — o cana perguntou.
Milosevic olhou para ele como se o policial fosse um retardado.
— Esta é a porra da picape deles! — bradou. — Jogaram aqui e
roubaram o Lexus para o sequestro verdadeiro.
O cana olhou para o rosto agitado de Milosevic e depois para a
caminhonete queimada. Perguntou-se por um momento como quatro caras
poderiam caber na cabine simples do Dodge. Mas não disse nada. Não
queria arriscar ser ridicularizado de novo. Apenas concordou com a cabeça.
17

HOLLY ESTAVA SENTADA ERETA NO COLCHÃO, um joelho sob o


queixo, a perna machucada esticada. Reacher estava sentado ao lado dela,
curvado para a frente, preocupado, uma mão lutando contra a trepidação da
caminhonete e a outra mergulhada no cabelo.
— E sua mãe? — perguntou ele.
— Seu pai era famoso? — Holly perguntou por sua vez.
Reacher balançou a cabeça.
— Longe disso — disse. — Imagino que o pessoal da unidade
conhecia bem o cara.
— Então você não sabe como é... — ela começou a desabafar. — Tudo
que você faz é por causa do seu pai, é um saco! Eu tirava um A atrás do
outro na escola, estudei em Yale e Harvard, trabalhei em Wall Street, mas
não era eu que fazia nada, era esta estranha esquisita chamada “filha do
general Johnson” que fazia tudo. Tem sido o mesmo no FBI. Todo mundo
tem certeza de que consegui entrar lá por causa do meu pai e, desde que
cheguei, metade das pessoas ainda me trata especialmente bem, e a outra
metade especialmente mal, apenas para provar o quanto não estão
impressionadas.
Reacher meneou a cabeça. Pensou a respeito. Ele era alguém que tinha
se saído melhor do que o pai. Progredira rapidamente, da maneira
tradicional. Deixou o velho para trás. Mas havia conhecido caras com pais
famosos. Filhos de grandes soldados. Até mesmo netos. Não importa o
quanto brilhassem, a luz deles sempre ficava perdida no fulgor.
— Verdade, é duro mesmo — concordou. — Você pode até tentar
ignorar o fato pelo resto de sua vida, mas agora temos que lidar com o
problema. Isso abre todo um leque de possibilidades desagradáveis.
Ela confirmou com a cabeça. Soltou um breve suspiro de irritação.
Reacher olhou de relance para ela nas trevas.
— Sacou o lance há quanto tempo? — perguntou.
Ela deu de ombros.
— Logo no início, creio eu — respondeu. — Como te disse, é um
hábito. Todo mundo já dá por certo que tudo acontece por causa do meu pai.
Acho até que eu também.
— Bem, valeu por ter me dito com tanta antecedência — Reacher
disse.
Ela não respondeu. Mergulharam no silêncio. O ar estava abafado e o
calor se misturava de algum modo com o ronco monótono e implacável. A
escuridão, a temperatura e o som eram como uma sopa grossa espalhada no
furgão. Reacher se sentia como se estivesse se afogando nela. Mas era a
incerteza que o perturbava de fato. Muitas vezes, havia viajado trinta horas
seguidas em aviões de carga, em condições piores até. Era a nova dimensão,
enorme, da incerteza, que o estava deixando inquieto.
— E sua mãe? — perguntou pela segunda vez.
Ela balançou a cabeça.
— Faleceu — disse. — Eu tinha vinte anos, estava na escola. Algum
tipo estranho de câncer.
— Sinto muito — ele falou. Fez uma pausa nervosa. — Irmãos e
irmãs?
Ela negou com a cabeça outra vez.
— Apenas eu — disse.
Ele balançou a cabeça, relutantemente.
— Era isso que eu temia — disse. — Eu meio que estava torcendo que
pudesse ser outra coisa, sabe. Talvez sua mãe fosse uma juíza ou você
tivesse um irmão ou uma irmã que fosse congressista ou algo do gênero.
— Esqueça — disse ela. — Sou apenas eu. Eu e meu pai. Isto tem tudo
a ver com meu pai.
— Mas e quanto a ele? — perguntou. — Mas que merda esperam
conseguir com isso? Resgate? Podem esquecer. Seu velho é importante,
mas é apenas um soldado, lutou com unhas e dentes para subir na hierarquia
do exército toda a sua vida. Mais rapidamente do que a maioria, eu
concordo, mas eu conheço os salários. Fiquei nessa vida treze anos. Não
fiquei rico, e tenho certeza de que ele também não ficou. Pelo menos, não o
bastante para que alguém pense em pedir resgate. Se alguém quisesse
resgate sequestrando a filha de alguém, tem um milhão de pessoas melhores
do que você só em Chicago.
Holly concordou com a cabeça.
— Isso deve ter a ver com influência — ela suspeitou. — Ele é
responsável por dois milhões de pessoas e duzentos bilhões de dólares por
ano. Espaço de sobra para exercer influência, certo?
Reacher negou com a cabeça.
— Não — disse. — Aí é que está o problema. Não consigo nem
imaginar no que isso pode ajudar esses merdas.
Ele se ajoelhou e rastejou para a frente ao longo dos colchões.
— Que diabos está fazendo? — Holly perguntou.
— Temos que conversar com eles — disse. — Antes de chegarmos
aonde estamos indo.
Levantou seu punho enorme e começou a martelar a divisória. Tão
forte quanto pôde. Bem atrás de onde calculava que deveria estar a cabeça
do motorista. Ficou martelando até conseguir o que queria. Levou um bom
tempo. Vários minutos. Seu punho ficou dolorido. Mas, de repente, o furgão
saiu da estrada e começou a reduzir a velocidade. Sentiu as rodas dianteiras
deslizarem no cascalho. Freios foram acionados. Ele foi pressionado contra
a divisória pela força cinética. Holly rolou uns cinco centímetros ao longo
do colchão. Gemeu de dor quando seu joelho se torceu diante do
movimento.
— Saíram da estrada — Reacher afirmou. — No meio do nada.
— Você está cometendo um grande erro, Reacher — Holly disse.
Ele deu de ombros, pegou sua mão e a ajudou a se sentar, com as
costas contra a divisória. Então deslizou adiante e se colocou entre ela e as
portas traseiras. Ouviu os três caras saírem da cabine. Bateram as portas.
Ouviu os passos triturando o cascalho. Dois vindo pelo lado direito, um
pelo esquerdo. Ouviu a chave entrar na fechadura. A maçaneta girou.
A porta traseira da esquerda se abriu dez centímetros. A primeira coisa
a entrar na caçamba foi a boca do cano da espingarda. Além dela, Reacher
viu um pedaço do céu, sem importância. Azul forte, pequenas nuvens
brancas. Poderia ser em qualquer lugar do hemisfério. A segunda coisa a
entrar foi uma Glock 17. Depois um pulso. A bainha de uma camisa de
algodão. A Glock estava firme como rocha. Loder.
— É melhor que valha a pena, vaquinha — exclamou.
Hostil. Muita tensão na voz.
— Precisamos conversar! — Reacher exclamou por sua vez.
A segunda Glock apareceu bem na abertura estreita. Ligeiramente
trêmula.
— Conversar sobre o quê, idiota? — Loder exclamou.
Reacher sentiu o estresse na voz do cara e observou a segunda Glock
tremer com seus ziguezagues aleatórios.
— Isto não vai dar certo, rapazes — disse. — Quem quer que tenha
mandado fazer o trabalho não está com a cabeça no lugar. Talvez tenha
parecido algum tipo de jogada esperta, mas está tudo errado. Não vai levar a
nada. Apenas vai deixar vocês afogados na merda até o nariz.
Fez-se silêncio na traseira do furgão. Apenas por um segundo. Porém
tempo suficiente para mostrar a Reacher que Holly estava certa. Tempo
suficiente para ele saber que tinha cometido um erro grave. A Glock firme
subitamente sumiu de vista. A espingarda foi sacudida, como se tivesse
trocado de dono. Reacher se arremessou para a frente e se jogou em cima de
Holly no colchão. O cano da espingarda se voltou para cima. Reacher ouviu
o pequeno clique do gatilho um milésimo de segundo antes de uma enorme
explosão. O tiro acertou o teto. Uma explosão enorme. Cem furos
minúsculos apareceram no metal. Cem pontos minúsculos de luz azul. Os
cartuchos gastos chocalharam, saltitaram e ricochetearam em torno do
veículo como chuva de granizo. Então o som da arma se desvaneceu no
zumbido da surdez temporária.
Reacher sentiu a batida da porta. A fresta de luz do dia evaporou.
Sentiu o chacoalhar do veículo quando os três homens subiram de volta na
cabine. Sentiu o tremor quando o velho motor a diesel pegou. Então um
sacolejo para a frente e uma guinada para a esquerda quando a caminhonete
saiu do acostamento e voltou para a estrada.

A primeira coisa que Reacher ouviu quando sua audição voltou ao normal
foi um murmurinho baixo à medida que o ar assobiava pelos cem furos
feitos pelas bilhas no teto. Ficou cada vez mais alto conforme os
quilômetros passavam. Cem assobios agudos, todos agrupados uns dois
semitons uns dos outros, digladiando-se e chilreando como algum tipo de
passarinho canoro demente.
— Bela loucura, né? — Holly o repreendeu.
— Minha ou deles? — Reacher perguntou.
Ele meneou a cabeça em sinal de desculpa. Ela devolveu o meneio
fazendo um tremendo esforço para se sentar. Usou ambas as mãos para
endireitar o joelho. Os furos no teto estavam permitindo a entrada da luz.
Luz suficiente para que Reacher pudesse enfim ver o rosto da mulher. Podia
interpretar sua expressão. Podia ver as fisgadas de dor. Como se uma
cortina tivesse coberto seus olhos e depois subisse imediatamente.
Ajoelhou-se e varreu algumas bilhas do colchão. Chocalharam pelo chão de
metal.
— Agora você precisa fugir — disse. — Vai acabar cavando a própria
sepultura logo, logo.
As mechas louras em seu cabelo piscavam sob a bruxuleante
iluminação brilhante.
— Estou falando sério — irritou-se. — Qualificado ou não, eu não
posso deixar você ficar.
— Eu sei que você não pode.
Ele usou a camisa para juntar as bilhas e formar um montinho perto
das portas. Depois endireitou os colchões e voltou a se deitar. Balançou-se
gentilmente com o movimento. Fitou os furos na placa de metal acima dele.
Eram como um mapa de alguma galáxia distante.
— Meu pai vai mover céus e terras para me resgatar — Holly disse.
Era mais difícil falar agora. O som monótono do motor e o burburinho
da estrada se complicaram mais ainda com os assobios agudos do teto. Uma
sinfonia de ruídos. Holly se deitou ao lado de Reacher. Colocou a cabeça ao
lado da dele. Seu cabelo se espalhou como um leque, roçou a bochecha dele
e tombou no pescoço. Ela contorceu os quadris e endireitou a perna. Ainda
havia um vão entre seus corpos. A decorosa forma em V ainda existia. Mas
o ângulo estava um pouco mais agudo do que outrora.
— Mas o que que ele pode fazer? — Reacher questionou. — Fale aí
então.
— Os caras vão fazer algum tipo de exigência — disse. — Entende?
Faça isso ou aquilo, ou machucaremos sua menininha.
Falou lentamente com um tremor na voz. Reacher deixou a mão
tombar e preencher o vão entre eles, e encontrar a dela. Pegou-a e apertou
delicadamente.
— Não faz nenhum sentido — Reacher disse carinhosamente. —
Reflita. O que seu pai faz? Executa a política de longo prazo e é
responsável pela prontidão em curto prazo. O Congresso, o presidente e o
secretário da Defesa articulam a política de longo prazo, certo? Assim, se o
chefe das Forças Armadas tentasse atrapalhar os planos, eles simplesmente
o substituiriam. Especialmente sabendo que ele está sob este tipo da
pressão, não é?
— E quanto ao curto prazo? — Holly questionou.
— É o mesmo tipo de coisa — Reacher disse. — Ele é apenas o
presidente de um comitê. Há também os chefes do Estado-Maior. Exército,
marinha, aeronáutica, fuzileiros navais. Se todos estiverem cantando uma
música diferente da que seu pai está relatando para o topo, isso não vai
permanecer um segredo por muito tempo, não é? Eles simplesmente o
substituiriam e o arrancariam da equação completamente.
Holly virou a cabeça. Olhou bem para ele.
— Tem certeza? — perguntou ela. — Vamos supor que estes caras
estejam trabalhando para o Iraque ou algo do gênero. Suponhamos que o
pessoal do Saddam queira o Kuwait de novo. Mas não queira outra
Tempestade no Deserto. E por isso me sequestrou, e meu pai diz que
lamenta, que nada pode ser feito, dando todos os tipos falsos de razões?
Reacher deu de ombros.
— A resposta está bem aí nas palavras que você mesma usou — disse.
— As razões seriam falsas. O fato é que a gente podia montar outra
Tempestade no Deserto, se fôssemos obrigados. Sem grilo. Todo mundo
sabe disso. Então, se seu pai começasse a negar, todos saberiam que ele
estaria com enrolação e todo mundo saberia por quê. Eles simplesmente lhe
dariam uma posição secundária. As Forças Armadas são um osso duro de
roer, Holly, não tem lugar para sentimentalismo. Se essa for a estratégia que
estes caras estão seguindo, estão desperdiçando tempo. Não tem como dar
certo.
Ela emudeceu por muito tempo.
— Então talvez se trate de vingança — disse ela lentamente. — Talvez
ele esteja sendo punido por algo do passado. Talvez eu esteja indo para o
Iraque. Talvez queiram obrigá-lo a se desculpar pela Tempestade no
Deserto. Ou o Panamá, ou Granada, ou uma porrada de coisas.
Reacher permaneceu deitado de costas, balançando-se com o
movimento. Podia sentir brisas ligeiras se agitando, devido aos furos no
teto. Sentiu que o furgão agora estava muito mais fresco, por causa do novo
sistema de ventilação, ou talvez até por ter ganhado um novo ânimo.
— Esotérico demais — disse ele. — Você teria que ser um analista
consideravelmente perspicaz para responsabilizar o chefe das Forças
Armadas por tudo isso. Há uma série de alvos mais óbvios. Pessoas da alta
hierarquia, entende? O presidente, o secretário da Defesa, pessoas em
serviço no exterior, generais de campo. Se Bagdá estivesse buscando
provocar uma humilhação pública, escolheriam um ícone, alguém que seu
povo poderia identificar, e não algum burocrata do Pentágono.
— Então qual é a razão disso tudo, merda? — Holly desabafou.
Reacher deu de ombros outra vez.
— No final, não será nada disso — concluiu. — Não pensaram em
todos os detalhes direito. É isso que os torna tão perigosos. São
competentes, mas ao mesmo tempo umas antas.

O furgão seguiu por mais seis horas com seu barulho monótono. Mais uns
quinhentos e sessenta quilômetros, segundo supunha Reacher. A
temperatura interna tinha esfriado, mas ele não estava mais tentando estimar
a direção que seguiam pela temperatura. Os furos de bilha no teto tinham
bagunçado o cálculo. Estava confiando em cálculos cegos mesmo.
Calculava um total de mil e trezentos quilômetros partindo de Chicago, mas
não rumo ao leste. Isso deixava uma grande gama de possibilidades. Fez
uma busca no sentido horário pelo mapa mental. Podiam estar na Geórgia,
no Alabama, no Mississippi, na Louisiana. Podiam estar no Texas, em
Oklahoma, no canto sudoeste do Kansas. Provavelmente não tão a oeste. O
mapa mental de Reacher ficava um pouco confuso nessa parte, mostrando
os declives do leste das montanhas, e o furgão não estava subindo morros
com dificuldade. Podiam estar no Nebraska ou na Dakota do Sul. Talvez ele
fosse passar pelo Monte Rushmore, pela segunda vez em sua vida.
Poderiam ter seguido em frente além de Minneapolis, passado a Dakota do
Norte. Mil e trezentos quilômetros de Chicago, em qualquer lugar ao longo
de um arco gigante riscando o continente.

A luz que entrava pelos buraquinhos havia desaparecido há horas quando o


veículo reduziu a velocidade e virou à direita. Subindo uma rampa. Holly se
mexeu e virou a cabeça. Olhou bem para Reacher. Seus olhos fervilhando
com perguntas. Reacher deu de ombros por sua vez e ficou no aguardo. A
caminhonete fez uma pausa e virou bruscamente para a direita. Percorreu
uma estrada reta, a seguir dobrou à esquerda, à direita e seguiu reto, mais
lentamente. Reacher se sentou ereto e encontrou sua camisa. Vestiu-a
encolhendo os ombros. Holly se endireitou dentro do possível.
— Outro esconderijo — disse. — Operação bem planejada, Reacher.
Dessa vez era um haras. O furgão seguiu uma trilha longa
chacoalhando e fez uma curva. Deu ré. Reacher ouviu dois sujeitos saírem.
Uma porta bateu. O veículo deu um tranco para trás, para dentro de um
prédio. Reacher ouviu o barulho do escapamento ressoando contra as
paredes. Holly sentiu cheiro de cavalos. O motor foi desligado. Os outros
dois caras saíram. Reacher ouviu os três se agrupando à traseira. A chave
foi enfiada na fechadura. A porta se abriu com um estalo. A espingarda foi
introduzida na abertura. Dessa vez, não apontava para cima. Apontava para
eles.
— Pra fora! — Loder exclamou. — Primeiro a vadia. Sozinha.
Holly ficou paralisada. Então deu de ombros na direção de Reacher e
deslizou para o outro lado dos colchões. A porta se escancarou e dois pares
de mãos a agarraram, abriram as algemas e arrastaram ela para fora. O
motorista deu o ar da graça, apontando a espingarda diretamente para
Reacher. Seu dedo segurava firme o gatilho.
— Banque o espertinho, cuzão — avisou. — Por favor, apenas me dê
uma merda de uma desculpa.
Reacher o fitou. Esperou cinco longos minutos. Então a espingarda
entrou quase toda na caçamba. Uma Glock apareceu ao lado dela. Loder
gesticulou. Reacher se moveu lentamente para a frente, na direção dos dois
canos. Loder se inclinou para dentro e então encaixou o aro livre no elo da
corrente e a trancou. Usou a corrente para arrastá-lo pelo braço, para fora da
caminhonete. Estavam num haras. Era uma estrutura de madeira. Muito
menor do que o estábulo anterior. Muito mais antigo. Vinha de uma
filosofia diferente de criadores. Havia duas fileiras de baias flanqueando um
corredor. O chão era de algum tipo de paralelepípedo. Verde de tanto
musgo.
A coxia central era ampla o suficiente para os cavalos, mas não para o
furgão. Estava com a traseira levemente imprensada no lado interno da
porta. Reacher observou um pedaço de céu ao redor da traseira do veículo.
Um céu amplo, escuro. Poderiam estar em qualquer lugar. Ele foi
conduzido como um cavalo pelo corredor de paralelepípedos. Loder
segurava a corrente. Stevie andava de lado, encostado em Reacher. A Glock
comprimia o topo da sua têmpora. O motorista os seguia com a espingarda
pressionada brutalmente contra seus rins. Ela sacolejava a cada passo.
Pararam na última baia, a mais distante da porta. Holly foi acorrentada na
vaga oposta. Um aro da algema no pulso direito, e o livre preso a uma
corrente passada num aro de ferro, aparafusado na parede dos fundos da
baia.
Os dois sujeitos armados se dividiram, formando um arco amplo, e
Loder empurrou Reacher para o interior da baia. Abriu a algema com a
chave. Passou a corrente pelo aro de ferro, aparafusado no madeiramento da
parede dos fundos, deu duas voltas nela e voltou a prendê-la na algema.
Deu-lhe vários puxões e chacoalhou bem para confirmar que estava firme.
— Os colchões — Reacher pediu. — Traga os colchões do furgão.
Loder questionou com a cabeça, mas o motorista sorriu e disse sim
com um gesto.
— Tudo bem — concordou. — Boa ideia, idiota.
Deu um passo para o interior e arrastou o de casal para fora. Lutando
para levá-lo de uma ponta a outra da coxia, jogou-o na baia de Holly.
Endireitou-o a pontapés.
— A vaquinha pode — disse. — Você não.
Começou a rir e os outros dois o acompanharam. Afastaram-se a
passos relaxados pela coxia. O motorista avançou o furgão para fora do
estábulo, e as portas pesadas se fecharam com um rangido. Reacher ouviu
uma trave pesada descer com um estrondo e se encaixar nos seus suportes
na parte externa, além do chacoalhar de outra corrente e um cadeado. Seu
olhar cobriu a distância até Holly e depois desceu até o chão úmido de
pedra.

Reacher estava agachado, comprimido no canto das paredes de madeira da


baia. Esperando que os três caras voltassem com o jantar. Chegaram uma
hora depois. Com uma Glock e a espingarda. E uma marmita de metal que
mais parecia uma lata. Stevie entrou com ela. O motorista tomou dele e
entregou a Holly. Ficou parado com um olhar malicioso por um segundo, e
então se voltou para Reacher. Apontou a espingarda para ele.
— Hoje a vaquinha come — avisou ele. — Você não.
Reacher não se levantou. Apenas deu de ombros na penumbra.
— Não vou morrer por causa disso — ironizou.
Ninguém respondeu à piadinha. Apenas caminharam de volta para
fora. Empurraram as portas pesadas de madeira até fechar. Colocaram a
trave no lugar e passaram a corrente. Reacher escutou o som dos passos
diminuir e se voltou para Holly.
— O que que tem aí? — perguntou.
Ela deu de ombros através da distância até ele.
— Algum tipo de creme ralo — relatou. — Ou uma sopa grossa, vá
saber. Um ou outro. Quer um pouco?
— Deram um garfo pra você? — perguntou.
— Não, uma colher — respondeu.
— Merda — ele reclamou. — Não posso fazer nada com uma bosta de
colher.
— Quer um pouco? — perguntou outra vez.
— Consegue se esticar? — ele quis saber.
Ela passou algum tempo comendo e então se esticou. Um braço firme
esticando a corrente, o outro empurrando a marmita pelo chão. Então deu
uma guinada e usou o pé bom para deslizar a lata para mais longe pelos
paralelepípedos. Reacher deslizou para a frente, com os pés esticados
adiante, tanto quanto sua corrente o permitia. Calculou que se pudesse se
esticar o máximo possível poderia enganchar o pé na lata e arrastá-la para
si. Mas calculou mal. Ele tinha quase dois metros, e os braços eram
aproximadamente os mais longos que os alfaiates do exército já tinham
visto, mas mesmo assim ficou faltando um metro e pouco. Ele e Holly
estavam esticados ao máximo numa perfeita linha reta, tão próximos um do
outro quanto suas correntes os deixariam, mas a marmita ainda estava bem
fora do seu alcance.
— Esqueça — disse. — Pegue de volta enquanto pode.
Ela enganchou o pé em torno da lata e a puxou de volta.
— Lamento — disse. — Você não vai jantar hoje.
— Vou sobreviver — brincou. — Deve estar uma bosta mesmo.
— É — ela disse. — Tá uma merda. Tem gosto de ração de cachorro.
Reacher varou a escuridão com o olhar e a fitou. Ficou subitamente
preocupado.

Holly se deitou, sentindo uma ponta de culpa, em seu colchão e caiu


calmamente no sono, mas Reacher ficou acordado. Não por causa do chão
de pedra. Era frio, úmido e duro. Os paralelepípedos tinham muitas
saliências. Mas essa não era a razão. Estava esperando algo. Contando os
minutos na cabeça, e no aguardo. Sua suposição era de que seria em
aproximadamente três horas, talvez quatro. Bem de madrugada, quando
havia pouca resistência, e a paciência se esgotava.
Uma espera longa. Treze mil, setecentos e sessenta e uma noites de sua
vida, contando esta, que certamente já se encontrava lá embaixo, na
antepenúltima posição das piores noites, deitado sem sono, esperando que
algo acontecesse. Algo ruim. Algo que talvez ele não tivesse nenhuma
chance de impedir. O momento se aproximava. Tinha certeza disso. Tinha
percebido os sinais. Ficou deitado esperando. Contando os minutos. Três
horas, talvez quatro.

Aconteceu três horas e trinta e quatro minutos depois. O motorista sem


nome voltou ao estábulo. Totalmente desperto e sozinho. Reacher ouviu
seus passos suaves na vereda lá fora. Ouviu o chacoalhar do cadeado e da
corrente. Ouviu-o levantar a trave pesada e tirá-la de seu suporte. A porta
do estábulo se abriu. Uma faixa brilhante de luar despencou no chão. O
motorista a atravessou. Reacher viu de relance sua cara de porco rosada. O
sujeito percorreu a coxia às pressas. Estava desarmado.
— Estou de olho em você — Reacher disse baixinho. — Desista ou
você é um homem morto.
O cara parou bem na frente dele. Não era um completo retardado.
Estava fora do alcance. Seus olhos brilhantes viajaram pela algema no pulso
de Reacher, ao longo da corrente, e pararam no aro de ferro na madeira.
Então sorriu.
— Pode assistir de camarote, se quiser — disse. — Plateia não me
incomoda. Quem sabe você aprende como se faz.
Holly se mexeu e acordou. Levantou a cabeça e olhou ao redor,
piscando no escuro.
— O que está acontecendo? — perguntou.
O motorista se voltou na direção dela. Reacher não conseguia ver a
fisionomia dele. Estava voltado para o outro lado. Mas conseguia ver Holly.
— A gente vai se divertir um pouquinho, minha potranca — o
motorista disse. — Apenas você e eu, com o viadinho do seu amigo
observando e aprendendo.
Baixou as mãos até a cintura e desafivelou o cinto. Holly o fitou.
Começou a se sentar.
— Você só pode estar brincando — disse. — Se chegar perto de mim,
eu te mato.
— Você não faria isso — o motorista zombou. — Não é mesmo? Logo
agora que eu te dei um colchão e um jantar. Para ficarmos bem à vontade
enquanto fazemos amor.
Reacher se levantou em sua baia. Sua corrente retiniu alto na noite
silenciosa.
— Eu vou te matar! — urrou. — Se tocar um dedo nela, você é um
homem morto.
Ele disse mais uma vez, e depois outra. Mas era como se o cara não o
ouvisse. Como se fosse surdo. Reacher foi consumido por um baque de
medo. Se o cara se recusasse a escutá-lo, não haveria nada que pudesse
fazer. Balançou sua corrente. O chacoalhar quebrou o silêncio da noite. Não
fez nenhum efeito. O cara simplesmente o ignorava.
— Se chegar perto de mim, eu te mato — Holly disse outra vez.
Sua perna a atrapalhava. Estava presa num esforço desajeitado para se
levantar. O motorista voou para sua baia. Levantou o pé e pisou no joelho
dela. Ela gritou de agonia, desmoronou e se encolheu toda até virar uma
bolinha.
— Faça o que eu mandar vagabunda — o motorista berrou. —
Exatamente o que eu mandar ou você nunca mais vai andar.
O grito de Holly terminou num soluço. O motorista recolheu o pé e,
com requintes de perversidade, como se fosse bater um tiro de meta, chutou
o joelho. Ela gritou outra vez.
— Você é um homem morto! — Reacher gritou.
O motorista se voltou e o encarou. Sorriu de orelha a orelha.
— Mantenha a boca bem fechada — ordenou. — Se der mais um pio,
a vadiazinha vai sofrer mais ainda, sacou?
As extremidades soltas do seu cinto pendiam para baixo. Ele fechou as
mãos e as apoiou nos quadris. Sua carranca vívida brilhava. O cabelo
formava uma moita ereta, como se tivesse acabado de lavar e penteá-lo para
trás. Girou a cabeça e falou com Holly por cima do ombro.
— Está usando alguma coisa embaixo desse conjuntinho?
Holly não falou nada. Silêncio no estábulo. O cara se voltou para ela.
Reacher a viu seguir seus movimentos.
— Eu te fiz uma pergunta, sua vaca — disse. — Quer outro chute?
Ela não respondeu. Resfolegava. Lutando contra a dor. O motorista
abriu o zíper. O ruído de abrir o zíper foi alto. Contrapunha-se ao farfalhar
de três pessoas ofegando.
— Está vendo isso? — perguntou. — Você sabe o que é isso?
— Lógico — Holly murmurou. — Parece um pouco com um pênis, só
que é bem menor.
Ele a encarou sem esboçar reação. Depois soltou um grito de raiva e se
atirou para dentro da baia, brandindo o pé. Holly se esquivou. A perna
grossa e curta dele foi lançada, mas não acertou nada. Ele cambaleou,
desequilibrado. Os olhos de Holly se estreitaram com um lampejo de
triunfo. Ela se encolheu para trás e enfiou o cotovelo no estômago dele. E
fez direitinho. Usou o próprio impulso contra ele, e todo seu peso, como se
quisesse lançar sua espinha dorsal costas afora. Deu-lhe uma tremenda
porrada. O cara girou para longe, ofegante.
Reacher deixou escapar um grito de admiração. E alívio. Pensou: Nem
eu poderia ter feito melhor, garota. O cara estava se erguendo. Reacher
reparou na cara, contorcida pela dor. Holly rosnava com triunfo. Batalhou
para lhe dar uma joelhada. Mirando suas bolas. Reacher incentivando-a. Ela
se lançou em cima dele. O cara girou e a porrada acertou a coxa. Holly
tinha planejado justo isso. A garganta ficou exposta ao seu cotovelo.
Reacher viu. Holly também. Ela se preparou para o golpe fatal. Um arco
selvagem. Ia arrancar a cabeça do safado do corpo. Lançou o golpe. Porém
a corrente se retesou e impediu o movimento. Retiniu com força contra o
aro de ferro e a puxou para trás.
O sorriso de Reacher se paralisou. O sujeito cambaleou para longe do
alcance dela. Curvou-se bufando e recuperou o fôlego. Então se endireitou e
ergueu mais as calças. Holly estava pronta para enfrentá-lo, com apenas
uma mão. Sua corrente se retesava contra a parede, vibrando com a tensão
com que ela a mantinha.
— Eu gosto das guerreiras — o cara ofegou. — Deixam as coisas mais
interessantes para mim. Mas vê se poupa alguma energia para mais tarde.
Não quero que fique deitada como um cadáver.
Holly olhou furiosa para ele, ofegando. Tremendo de ódio. Mas estava
com uma mão só. O cara avançou outra vez e ela deu-lhe um murro
certeiro. Rápido e seco. Ele entrou pela esquerda e o bloqueou. Ela não
conseguiu dar o golpe complementar. Seu outro braço estava preso atrás das
costas. Ele levantou o pé e tentou dar um chute na boca do estômago. Ela
fez um arco e desviou. Ele deu um chute novamente e deu de cara com o
cotovelo dela, uma porrada na orelha. Era o cotovelo errado, sem força por
causa da corrente. Um golpe fraco. Deixou-a desequilibrada. O motorista
deu um passo para a frente e lhe deu um chute na barriga. Ela caiu. Ele deu
outro chute e acertou seu joelho. Reacher ouviu o estalo. Ela gritou de
agonia. Desmoronou no colchão. O motorista respirou rapidamente e ficou
parado.
— Fiz uma pergunta, caralho! — ele berrou.
Holly estava pálida como um defunto, e trêmula. Ela se contorcia no
colchão, um braço preso atrás de si, ofegando de dor. Reacher viu seu rosto
bruxuleando no facho claro de luar.
— Eu estou esperando, vagabunda — o cara disse.
Reacher viu seu rosto novamente. Ela estava derrotada. Não tinha mais
forças para resistir.
— Quer que eu destrua de vez seu joelho? — o motorista ameaçou.
Fez-se silêncio no estábulo novamente.
— Eu estou esperando uma resposta.
Reacher fitou a cena, esperando. O silêncio persistia. Apenas o
farfalhar de três pessoas ofegando na quietude. Então, Holly falou:
— Qual foi a pergunta? — ela disse baixinho.
O cara sorriu para ela.
— Está usando alguma coisa embaixo desse conjuntinho?
Holly gesticulou que sim. Não falou nada.
— Certo. O quê? — o cara perguntou.
— Roupa íntima — respondeu baixinho.
O sujeito colocou a mão em concha atrás da orelha.
— Não consigo te ouvir, vagabunda.
— Estou usando roupa de baixo, seu filho da puta — ela disse mais
alto.
O cara balançou a cabeça.
— Palavrão... — ela ironizou. — Você vai precisar me pedir desculpa
por isso. Ah, mas vai.
— Vá se foder.
— Vou ter que te chutar novamente — o cara disse. — Bem no joelho.
Se eu fizer isso, você nunca mais vai andar sem muleta, nunca mais, sua
vaca.
Holly desviou os olhos.
— Você decide, vagabunda — o cara disse.
Preparou um chute. Holly olhou fixamente para seu colchão.
— Tudo bem, desculpe — disse. — Sinto muito.
O cara meneou a cabeça, satisfeito.
— Descreva sua roupa de baixo — mandou. — Detalhadamente.
Ela deu de ombros. Desviou o rosto e falou na direção da parede de
madeira.
— Sutiã e calcinha — disse. — Victoria’s Secret. Pêssego-escuro.
— Semitransparente? — o motorista perguntou.
Ela deu de ombros novamente, arrasada, como se soubesse, com
certeza, qual seria a pergunta seguinte.
— Acho que sim — disse.
— Quer mostrar para mim? — o cara falou.
— Não — ela respondeu.
O motorista deu um passo para mais perto.
— Adora uma muleta, não é? — alfinetou.
Ela ficou em silêncio. O cara colocou a mão em concha atrás da orelha
novamente.
— Não consigo te ouvir, vagabunda — disse.
— O que você perguntou? — Holly murmurou.
— Você quer outros chutes?
Holly balançou a cabeça.
— Por favor não.
— Certo — ele disse. — Me mostra a sua roupa íntima e eu te poupo
de outro bico.
Ele preparou o chute. Holly levantou a mão até o botão superior.
Reacher ficou observando. Havia cinco botões na frente. Reacher tentou
transmitir mentalmente a ela para desabotoar lenta e ritmicamente cada um
deles. Ele precisava que ela fizesse isso. Era vital. Lenta e ritmicamente,
Holly, implorou silenciosamente. Ele agarrou sua corrente com ambas as
mãos. Um metro e vinte de onde ela estava presa no aro de ferro na parede
dos fundos. Apertou as mãos em torno dela.
Ela abriu o botão superior. Reacher contou: Um. O motorista olhou
para baixo, cheio de tesão. A mão dela deslizou até o botão seguinte.
Novamente, Reacher apertou com mais força. O segundo botão foi aberto.
Reacher contou: Dois. A mão deslizou para baixo, até o terceiro botão.
Reacher deu as costas para ela e ficou de frente para a parede traseira de sua
baia. Respirou fundo. Girou a cabeça e a observou por cima do ombro.
Holly abriu o terceiro botão. Seus seios se avolumaram. Sutiã pêssego-
escuro. Semitransparente e rendado. O motorista arrastava um pé e depois o
outro. Reacher contou: Três. Expirou bem fundo. A mão de Holly deslizou
para baixo, até o quarto botão. Reacher inspirou, foi a inspiração mais
profunda de toda a sua vida. Apertou mais a corrente até suas juntas
brilharem de tanta brancura. Holly abriu o quarto botão. Reacher contou:
Quatro. A mão deslizou para baixo. Fez uma pausa no ritmo. Aguardou. O
quinto botão foi aberto. Seu conjuntinho se abriu. O motorista olhou para
baixo, de pau duro, e deixou escapar um gemidinho. Reacher se jogou para
trás de supetão e enfiou o pé na madeira. Bem embaixo do aro de ferro.
Lançou todo seu peso para trás contra a corrente, cem quilos de fúria
indomável explodiram com a força do chute. Lascas da madeira úmida
voaram para fora da parede. Tábuas velhas se despedaçaram. Arrancadas
violentamente dos parafusos. Reacher despencou para trás. Apoiou-se nas
mãos e se lançou de pé, a corrente se retorcia e açoitava o ar com fúria às
suas costas.
— Cinco! — gritou finalmente.
Agarrou o motorista pelo braço e o atirou para dentro da sua baia.
Jogou-o contra a parede dos fundos. O cara se estatelou contra ela e ficou
pairando, como uma boneca quebrada. Cambaleou para a frente e Reacher
lhe deu uma solada na boca do estômago. O sujeito se dobrou como um
canivete no ar, seus pés deixaram o chão e ele desabou de cabeça nos
paralelepípedos. Reacher dobrou sua corrente e a brandiu no ar. Apontou a
extensão fatal para a cabeça do sujeito, como se fosse um chicote gigante de
metal. O aro de ferro se sobressaía como uma antiga arma medieval. Mas,
no último segundo, Reacher mudou de ideia. Desviou bruscamente a
corrente da trajetória e a deixou estrondar contra as pedras no chão, gerando
faíscas. Agarrou o motorista, uma mão no colarinho, outra no cabelo.
Ergueu-o e atravessou a coxia até o colchão de Holly. Enfiou sua carranca
feia no colchão macio e a pressionou para baixo, asfixiando-o. O cara deu
coices e se agitou desenfreadamente, Reacher simplesmente cravou sua
mão gigantesca na parte de trás do crânio, e esperou pacientemente até que
ele morresse.
Holly ficou fitando o cadáver com Reacher resfolegando ao seu lado.
Estava exausto e fraco devido à força explosiva que usara para arrancar o
aro de ferro da madeira. Tinha a sensação de que uma vida inteira de
esforço físico havia sido despendida num milésimo de segundo. Um
suprimento de adrenalina de toda uma vida borbulhava dentro dele. Seu
relógio mental havia parado e explodido. Não fazia a mínima ideia de
quanto tempo ficaram sentados ali. Ele se sacudiu e se levantou,
cambaleando. Arrastou o cadáver para longe, deixando-o na coxia, bem
perto da porta aberta. Aí perambulou de volta e se agachou ao lado de
Holly. Seus dedos ficaram feridos devido à forma desesperada com que
agarrara a corrente, porém ele os forçou a serem delicados. Fechou todos os
botões, um por um, até em cima. A respiração dela era curta e rápida. Então
ela lançou os braços ao redor do pescoço dele e o ficou agarrando firme.
Expirando e inspirando contra sua camisa.
Ficaram abraçados um tempão. Sentindo a fúria se esvair dela.
Separaram-se e ficaram fitando as trevas, sentados lado a lado no colchão.
Ela se voltou para ele e colocou sua mãozinha levemente sobre a dele.
— Estou em dívida com você.
— É um prazer — Reacher disse. — Ei, acredite.
— Eu precisava de ajuda — ela disse baixinho. — Estive enganando a
mim mesma.
Ele agitou uma das mãos no ar e depois envolveu a dela.
— Deixa disso, Holly — disse gentilmente. — De tempos em tempos,
todos nós precisamos de ajuda. Não deixe que isso a incomode. Se você
estivesse em condições físicas, teria feito picadinho do sujeito. Deu para eu
ver. Com um braço e uma perna você quase chegou lá. O problema é o
joelho. Com uma dor assim, você não tem a mínima chance. Acredite, eu
sei como é. Depois do negócio em Beirute, por praticamente todo um ano,
eu não teria conseguido nem roubar um pirulito de um bebê.
Ela deu um ligeiro sorriso e apertou sua mão. O relógio interior dele
começou a tiquetaquear novamente. O alvorecer estava próximo.
18

SETE E VINTE DA MANHÃ, QUARTA-FEIRA, HORÁRIO da Costa


Leste. O general Johnson deixou o Pentágono. Estava à paisana, trajando
um terno comum, leve, e a pé. Era seu método preferido de locomoção.
Fazia uma manhã quente na Capital, clima úmido, e ele, porém, andava
numa velocidade constante, braços balançando soltos formando um
pequeno arco, a cabeça erguida, ofegando.
Andou para o norte, atravessando a poeira, na calçada do Bulevar
George Washington, ao longo do terreno do grande cemitério à sua
esquerda, através do Parque Lady Bird Johnson, e atravessando a ponte
Arlington Memorial. Então andou no sentido horário em torno do Lincoln
Memorial, passando o Vietnam Wall, e virou à direita, ao longo da Avenida
Constitution, a Reflecting Pool à sua direita, o Washington Monument logo
adiante. Caminhou, passando em frente ao Museu Nacional de História
Americana, ao Museu Nacional de História Natural e dobrou à esquerda na
Rua Nove. Exatamente cinco quilômetros e meio, numa manhã gloriosa,
uma caminhada estimulante de uma hora, por uma das grandes capitais do
mundo, passando por pontos de referência para os quais os turistas
convergiam a fim de fotografar. Não viu absolutamente nada além da névoa
sombria de preocupação que pairava diante de seus olhos.
Atravessou a Avenida Pensilvânia, e entrou no Hoover Building pela
entrada principal. Colocou as mãos com as palmas para baixo no balcão da
recepção.
— Presidente dos chefes adjuntos do Estado-Maior — ele se anunciou.
— Para ver o diretor.
Suas palmas deixaram duas manchas de umidade na superfície. O
agente que chegou para conduzi-lo até o andar superior as notou. Johnson
ficou em silêncio no elevador. Harland Webster o aguardava, à porta do seu
amplo gabinete. Johnson meneou a cabeça para ele. Não disse nada.
Webster se colocou de lado e gesticulou para que entrasse no escritório.
Estava escuro. As paredes eram revestidas de painéis de mogno, e as
cortinas estavam fechadas. Johnson se sentou numa cadeira de couro e
Webster o rodeou até sua mesa.
— Eu não quero ser um empecilho para você — Johnson disse.
Ele olhou para Webster. Webster ficou matutando por um momento,
decodificando o significado da expressão. E então meneou a cabeça,
cautelosamente.
— Falou com o presidente? — perguntou.
Johnson confirmou com a cabeça.
— Entende que é apropriado que eu proceda assim? — perguntou.
— Naturalmente — Webster respondeu. — Numa situação como esta,
ninguém deve se preocupar com o protocolo. Ligou ou foi até ele
pessoalmente?
— Eu fui até ele — Johnson disse. — Diversas vezes. Tive várias e
longas conversas com ele.
Webster pensou: Cara a cara. Várias e longas conversas. Pior do que eu
pensei, porém compreensível.
— E? — perguntou.
Johnson deu de ombros.
— Ele me disse que você está encarregado pessoalmente — falou.
Webster concordou com a cabeça.
— Sequestro — disse. — É da alçada do FBI, não importa a vítima.
Johnson concordou com a cabeça, lentamente.
— Concordo — devolveu. — Por enquanto.
— Não fique tão ansioso — Webster pediu. — Acredite em mim,
general, todos nós estamos bastante ansiosos.
Johnson concordou com a cabeça novamente. E então fez a pergunta
que havia andado cinco quilômetros e meio para fazer:
— Algum progresso?
Webster deu de ombros.
— Já se passaram dois dias — constatou. — Não estou gostando nem
um pouco disso.
Ele caiu no silêncio. As primeiras 48 horas de um sequestro são uma
espécie de limiar. Quaisquer possibilidades iniciais de resolução se
evaporam. A situação começa a se complicar, a se transformar num filme
longo e desagradável. O perigo para a vítima aumenta. O melhor momento
de solucionar um sequestro é no primeiro dia. No segundo, o processo se
torna mais difícil. As possibilidades escasseiam.
— Algum progresso? — Johnson perguntou novamente.
Webster desviou os olhos. Sequestradores começam a se comunicar no
segundo dia. Essa tinha sempre sido a experiência do FBI. No segundo dia,
cansado e frustrado por ter perdido a primeira e melhor chance, a pessoa
fica sentada, esperando desesperadamente que liguem. Se não ligam no
segundo dia, o mais provável é que não liguem mais.
— Qualquer coisa que eu possa fazer? — Johnson perguntou.
Webster confirmou com a cabeça.
— Você pode me dar um motivo — disse. — Quem o ameaçaria
assim?
Johnson balançou a cabeça. Estava fazendo a si mesmo a mesma
pergunta desde a noite de segunda-feira.
— Ninguém — respondeu.
— Você precisa me falar — Webster pediu. — Qualquer coisa secreta,
oculta, é melhor você me dizer já. É importante, pelo bem de Holly.
— Eu sei disso — Johnson concordou. — Porém, não há nada. Nada
mesmo.
Webster balançou a cabeça. Acreditava porque sabia que era verdade.
Havia revisado detalhadamente os dados de Johnson no FBI.
Documentação volumosa. Começava na página 1 com breves biografias de
seus bisavós maternos. Eram oriundos de um pequeno principado europeu
que não existia mais.
— Holly vai ficar bem? — Johnson perguntou em tom baixo.
As páginas recentes do arquivo narravam minuciosamente a causa da
morte da esposa de Johnson. Uma surpresa, um câncer maligno, não levou
mais de seis semanas, do começo ao fim. O parecer psicológico,
encomendado secretamente pelo FBI, tinha previsto que o velhote
aguentaria por causa da filha. Demonstrara ser um diagnóstico correto. Mas
se ele também a perdesse não precisaria ser um bom psicólogo para saber
que não seguraria as pontas. Webster acenou com a cabeça novamente e
imprimiu alguma convicção à sua voz:
— Não vai acontecer nada com ela — afirmou.
— Então, o que sabemos até agora? — Johnson se impacientou.
— Quatro caras — Webster disse. — Temos a picape deles.
Abandonaram antes do sequestro. Botaram fogo e largaram. A gente
encontrou ao norte de Chicago. Ela está sendo transportada por via aérea
para cá, e seguirá imediatamente para Quantico, agora mesmo. Nosso
pessoal vai vistoriar.
— Pistas? — Johnson perguntou. — Mesmo tendo sido queimada?
Webster deu de ombros.
— Botar fogo é muita burrice — disse. — Não oculta quase nada. Não
do nosso pessoal, em todo caso. A gente vai usar essa picape para encontrá-
los.
— E depois? — Johnson perguntou.
Webster deu de ombros novamente.
— Vamos resgatar sua filha — afirmou. — Nossa equipe de resgate de
reféns está de prontidão. Cinquenta homens, os melhores do mundo neste
tipo de operação.
Esperando ao lado dos helicópteros. Vamos resgatá-la e fazer uma
limpa nos caras que a sequestraram. Fez-se um breve silêncio na tranquila
penumbra da sala.
— Fazer uma limpa? — Johnson disse. — O que quer dizer com isso?
Webster olhou ao redor do seu próprio escritório e baixou a voz. Trinta
e seis anos de experiência.
— Essa é a nossa política — explicou. — Num caso importante
envolvendo a Capital como esse? Zero publicidade. Nada de divulgação
para a mídia. A gente não pode permitir. Se esse tipo de coisa chegar à TV,
todos os pirados do país vão tentar. Então, a gente vai entrar na surdina.
Algumas armas serão usadas. É inevitável numa situação deste gênero. Um
pouco de dano indireto aqui e ali.
Johnson acenou com a cabeça lentamente.
— Você vai executá-los? — perguntou vagamente.
Webster apenas olhou para ele, com neutralidade. Psicólogos do FBI
haviam sugerido para ele que a antecipação de vingança mortal poderia
ajudar na manutenção do autocontrole, particularmente com pessoas
acostumadas à ação direta, como outros agentes, ou militares.
— É a nossa política — disse novamente. — Minha política. E, como
diz o homem, eu tenho carta branca no comando.

A picape carbonizada foi levantada até uma plataforma de alumínio e presa


com cordas de náilon. Um Chinook da força aérea veio zunindo das
instalações militares de O’Hare e pairou sobre ela, e o deslocamento de ar
descendente chicoteou o lago até causar um frenesi. Baixou a corrente a
manivela e ergueu a picape suavemente no ar. Voou ao redor do lago e
mergulhou de nariz, zunindo estrondosamente para o oeste, de volta para
O’Hare. Descarregou no solo, bem na frente do nariz aberto de um
cargueiro Galaxy. A equipe de solo da força aérea puxou a plataforma para
dentro a manivela. A porta de carga se fechou e quatro minutos mais tarde o
Galaxy estava taxiando. E depois de mais quatro minutos estava no ar,
zunindo para o leste, para Washington. Quatro horas depois disso, estava
troando sobre a capital, dirigindo-se para a Base Andrews da força aérea.
Quando aterrissou, outro Chinook decolou e esperou no ar. O Galaxy taxiou
para a área de manobra e a picape foi retirada. O Chinook mergulhou e a
içou no ar. Levou-a para o sul, seguindo a Rodovia 1-95 até a Virgínia,
sessenta e cinco quilômetros, até Quantico.
O Chinook colocou-a gentilmente na pista, na frente do laboratório de
veículos. Os técnicos do FBI saíram correndo, jalecos brancos se agitando
na corrente de ar feroz, e arrastaram a plataforma para dentro, pela porta de
aço. Tiraram a sucata da plataforma e levaram para o centro do grande
galpão. Rolaram luzes de arco voltaico para dentro de um círculo
rudimentar em torno dela e a iluminaram. Então ficaram parados lá por um
segundo, parecendo exatamente uma equipe de patologistas se preparando
para trabalhar com um cadáver.

O general Johnson voltou exatamente pelo mesmo caminho. Percorreu a


Rua Nove, passou pelo Museu de História Natural e o de História
Americana, ofegante, com a boca formando um oval forçado, rígido e tenso.
Andou por toda a extensão da Reflecting Pool com um nó apertado na
garganta. Virou à esquerda na Avenida Constitution e conseguiu chegar até
o Vietnam Wall. Aí parou. Havia uma multidão razoável, atordoada e
quieta, como sempre. Olhou para eles. Olhou para si mesmo no granito
preto. Não aguentou. Estava com um terno cinza leve. Não teria problema.
Por isso deixou sua visão ficar turva com suas lágrimas, avançou, voltou-se
e se sentou contra a base do muro, soluçando e chorando, com as costas
pressionadas contra os nomes dourados dos garotos que haviam morrido há
trinta anos.
19

REACHER SEGUROU A CORRENTE SOLTA E SAIU sorrateiro do


estábulo para o crepúsculo que chegava. Andou vinte passos e parou.
Liberdade. O ar da noite se mostrava suave e infindável ao seu redor. Estava
livre. Porém não fazia a mínima ideia de onde estava. O estábulo jazia
solitário, a cinquenta metros, separado de um agrupamento de cabanas do
mesmo gênero antiquado. Havia uma casa, dois pequenos galpões e uma
estrutura aberta com uma picape nova estacionada lá dentro, ao lado de um
trator. E do lado do trator, com um branco espectral devido ao luar, estava o
furgão. Reacher andou até eles, seguindo a trilha de brita. As portas
dianteiras estavam trancadas. As traseiras também. Voltou correndo para o
estábulo e revirou os bolsos do motorista morto. Nada, exceto a chave do
cadeado da porta do estábulo. Nada da chave do furgão.
Voltou correndo, abraçando o emaranhado de corrente para impedi-la
de fazer barulho, passou pelo galpão do trator e olhou para a casa. Andou
ao redor dela. A porta da frente estava trancada. A dos fundos também. E
havia um cachorro lá atrás. Reacher o ouviu se mexer enquanto dormia.
Ouviu um rosnado grave e sonolento. Afastou-se.
Ficou parado na picada, na metade do caminho de volta para o
estábulo, e olhou ao redor. Apontou os olhos para o horizonte indistinto e
fez uma volta completa no escuro. Uma enorme paisagem vazia. Plana,
infindável, nenhuma característica discernível. O cheiro noturno úmido de
um milhão de acres com algo crescendo. Uma faixa pálida de alvorecer no
leste. Deu de ombros e voltou para dentro. Holly se levantou com um
cotovelo e deu uma olhada indagadora para ele.
— Problemas — ele disse. — As chaves das algemas estão na casa. As
do furgão também. Eu não posso entrar para pegar porque tem um cachorro
lá. Vai latir e acordar todo mundo. Tem mais de dois lá dentro. Isto é algum
tipo de fazenda produtiva. Tem uma picape e um trator. Pode ter quatro ou
cinco homens armados. Quando aquele maldito cachorro latir, eu me lasco.
E daqui a pouco vai clarear.
— Problemas — Holly concordou.
— Certo — ele disse. — A gente não pode conseguir um veículo,
muito menos fugir a pé, porque você está acorrentada e não tem condições
de caminhar, e de qualquer modo estamos a cerca de um milhão de
quilômetros da civilização.
— Que lugar é este? — ela perguntou.
Ele deu de ombros.
— Não faço a mínima — ele disse.
— Eu quero ver — ela pediu. — Eu quero ver do lado de fora. Estou
cansada de ficar confinada. Você não consegue tirar essa corrente?
Reacher se abaixou, se colocou atrás dela e examinou o aro de ferro. A
madeira parecia um pouco melhor do que a sua. De origem mais nobre.
Chacoalhou o aro e teve certeza de que não tinha jeito. Ela balançou a
cabeça, relutantemente.
— Vamos esperar — ela se resignou. — Esperar por uma oportunidade
melhor.
Voltou correndo para as baias centrais e inspecionou as paredes, bem
próximo ao chão, onde era mais úmido, e a lateral era feita de tábuas mais
longas. Deu umas pancadas e uns chutes nelas. Escolheu um lugar
específico e apertou forte com o pé. A tábua cedeu ligeiramente e abriu uma
brecha ao redor do prego enferrujado. Alargou a brecha e soltou a tábua
seguinte, e a próxima, até que formou uma fenda larga o suficiente para que
rastejasse sob ela. Então se agachou, foi até a coxia e colocou a ponta solta
da sua corrente no estômago do motorista morto. Vasculhou os bolsos da
calça e achou a chave do cadeado. Segurou-a nos dentes. Abaixou-se e
levantou o corpo e a corrente. Carregou-os para fora pela porta aberta.
Carregou-os cerca de vinte e cinco metros. Para longe da casa. Então
colocou o corpo de pé, mantendo-o assim pelos ombros, como se estivesse
dançando com uma parceira bêbada. Inclinou-se para a frente e o lançou
sobre o seu ombro. Pegou a corrente com uma mão e seguiu pelo caminho.
Andou rapidamente por vinte minutos. Mais de um quilômetro e meio.
Ao longo do caminho até uma estrada. Virou à esquerda mais para baixo na
estrada e entrou num pasto vazio. Era uma região de criação de cavalos.
Padoques cercados seguiam pela direita e pela esquerda nos lados da
estrada. Pastos planos sem fim, frescos e úmidos no finzinho da noite.
Árvores esporádicas se assomavam na escuridão. A superfície da estrada
era estreita, reta, pedregosa.
Caminhou no meio da pista. Então, virou no acostamento coberto de
grama e encontrou uma vala profunda. Ela corria ao longo da base da cerca
do padoque. Voltou-se completamente, com o motorista morto balançando
no ombro. Não conseguia ver nada. Estava a mais de um quilômetro da
fazenda e podia estar a mais de cem quilômetros da próxima. Curvou-se e
jogou o corpo na vala. Ele foi rolando pela grama abaixo e aterrissou de
cara na lama no fundo da vala. Reacher se voltou e correu um quilômetro e
meio até a fazenda. A faixa do amanhecer iluminava o céu.
Virou na vereda íngreme. Já havia luzes nas janelas da casa da
fazenda. Correu para o estábulo. Empurrou as pesadas portas de madeira até
fechar, pelo lado de fora. Ergueu e colocou a trave no suporte, e a
acorrentou. Correu de volta para a vereda e atirou a chave para longe no
campo. A quarta-feira flamejava no horizonte. Correu para o lado mais
distante do estábulo, e achou a brecha que havia feito. Empurrou a corrente
para dentro e depois entrou. Espremeu os ombros para passar, abrindo
caminho à força. Puxou as tábuas de volta até ficarem rentes com as
intactas, da melhor maneira que podia. Então, voltou à coxia e ficou de pé,
curvado, ofegante.
— Feito — ele disse. — Nunca será encontrado.
Pegou a marmita de metal com o resto da sopa. Fez uma busca em sua
baia para recuperar os parafusos caídos. Juntou todas as lascas de madeira
que pôde encontrar. Despejou e as misturou na sopa fria, e colocou-as de
volta à força nos buracos destroçados dos parafusos. Caminhou até a baia
de Holly e colocou a marmita de volta no chão. Ficou com a colher. Enfiou
os parafusos nos buracos, na base do anel de ferro, pendurados na sua
extensão de corrente. Forçou-os para seus lugares no meio das lascas
pegajosas. Usou o bojo da colher para calcá-los bem. Passou a corrente pelo
ilhó até que ficasse pendurada, varrendo o chão de pedra. Tensão mínima na
frágil montagem.
Lançou a colher de volta para Holly. Ela a pegou com uma mão só e a
colocou de volta na marmita. Então, ele se abaixou e encostou o ouvido nas
tábuas. O cachorro estava do lado de fora. Conseguia ouvi-lo fungando.
Então ouviu pessoas. Passos no caminho. Correram para as portas do
estábulo. Balançaram e chacoalharam a trave. Retrocederam. Houve uma
gritaria. Ficaram chamando um nome inúmeras vezes. As fissuras em torno
da porta do estábulo se iluminavam com a luz da manhã. As tábuas do
estábulo rangiam à medida que o sol inundava o horizonte e as aquecia.
Passos se dirigiram rapidamente de volta para o estábulo. O cadeado
foi chacoalhado, e a corrente, tirada. A trave caiu no chão com um baque
surdo. A porta se abriu rangendo. Loder entrou. Estava com a Glock na
mão, o rosto tenso. Permaneceu do lado de dentro da porta. Seus olhos se
moviam vertiginosamente, de um lado para outro, de Reacher para Holly. A
expressão tensa tinha uma ponta de ira. Algum tipo de luz fria brilhava em
seus olhos. Nesse ponto, o sujeitinho nervoso entrou atrás dele. Stevie.
Portava a espingarda do motorista. E sorria. Espremeu-se para passar por
Loder e andou depressa pelo corredor central de paralelepípedos. Levantou
a espingarda e a apontou diretamente para Reacher. Loder se pôs a correr
atrás dele. Stevie colocou, ruidosamente, uma bala na câmara. Reacher
deslocou um pé para a esquerda, para que o aro de ferro ficasse atrás dele,
fora da vista.
— Qual é o problema? — perguntou.
— O problema é você, babaca — Loder disse. — A coisa mudou de
figura. Estamos sem um homem. Então, você acaba de ficar sobrando.
Reacher se jogou no chão quando Stevie puxou o gatilho. Estatelou-se
nos paralelepípedos, jogando-se para a frente quando a espingarda
estrondou e a baia explodiu. O ar ficou instantaneamente coberto de lascas
de madeira úmida e do fedor de pólvora. A prancha de madeira suportando
o aro de ferro desabou da parede destroçada e a corrente caiu com um
estrépito no chão. Reacher rolou e lançou os olhos para cima. Stevie ergueu
o cano da espingarda e colocou outra bala na câmara. Balançou o cano para
baixo e apontou novamente.
— Esperem! — Holly gritou.
Stevie olhou para ela. Impossível não fazê-lo.
— Não banque o tremendo idiota — ela gritou. — Que porra está
fazendo? Você não tem tempo para isso.
Loder voltou-se para ela.
— Ele fugiu, não é? — ela disse. — Seu motorista? Foi isso que
aconteceu? Ele caiu fora e deve estar apavorado, certo? Sendo assim, você
precisa ir atrás dele logo de uma vez. Não há tempo a perder.
Loder olhou fixamente para ela.
— Neste momento você ainda está ganhando o jogo — Holly disse
urgentemente. — Mas, se atirar nele, os tiras da região estarão a meia hora
de distância de você. Vá logo atrás do cara.
Reacher ofegava olhando para ela do chão. Ela era magnífica. Estava
desviando toda a atenção para si. Salvando sua vida.
— Vocês são dois, nós também somos — ela disse com urgência. —
Vocês dão conta, não dão?
Fez-se silêncio. Pó e pólvora flutuavam no ar. Então Loder caminhou
de volta, cobrindo a ambos com sua automática. Reacher viu a decepção no
rosto de Stevie. Levantou o corpo bem devagar e puxou a corrente,
arrancando-a dos escombros. O aro de ferro se soltou da madeira
despedaçada e reverberou nas pedras.
— A vagabunda tem razão — Loder disse. — A gente dá conta.
Ele acenou com a cabeça para Stevie. Stevie correu até a porta. Loder
se voltou, pegou sua chave e abriu a algema de Holly. Jogou-a no colchão.
O peso da corrente a puxou de volta para a parede. A corrente se prendeu na
borda do colchão, soltou-se e deslizou sobre os paralelepípedos com um
som metálico estridente.
— Está bom, babaca, ande logo — Loder disse. — Antes que eu mude
de ideia.
Reacher enlaçou sua corrente na mão. Abaixou-se e pegou Holly por
baixo dos joelhos e ombros. Ouviram o furgão ser ligado. Entrar de ré.
Parar de supetão. Reacher levou Holly apressadamente para o veículo.
Deitou-a no interior. Subiu para dentro depois dela. Loder bateu as portas e
os trancou na escuridão.

— Agora acho que eu é que te devo uma — Reacher disse baixinho.


Holly expressou esquece com um gesto. Um gestinho constrangido.
Reacher olhou fixamente para ela. Gostava dela. Gostava do seu rosto.
Fitou-o. Lembrou-se dele pálido e enojado quando o motorista a ameaçava.
Viu o avolumar suave dos seus seios sob aquele imundo olhar babão. Então
a imagem mental mudou para Stevie, covarde, sorrindo e atirando nele,
indefeso acorrentado à parede. Então ouviu Loder dizer: A coisa mudou de
figura.
Tudo havia mudado. Ele havia mudado. Ficou ali deitado sentindo o
velho ódio dentro de si, moendo suas entranhas como uma engrenagem. Um
ódio frio, implacável. Incontrolável. Cometeram um erro. Eles o haviam
transformado. De espectador passara para oponente. Um erro muito grave
de se cometer. Abriram a porta proibida, sem saber o que saltaria para cima
deles. Ficou deitado lá, sentindo-se como uma bomba-relógio sendo
transportada bem para o centro nervoso do território inimigo. Sentiu a
inundação de ódio e vibrou com ela, e a saboreou, e a acolheu.

Agora havia somente um colchão dentro da caminhonete. E tinha apenas


um metro de largura. E Stevie era meio barbeiro. Reacher e Holly estavam
deitados, bem juntinhos um do outro. O pulso esquerdo de Reacher ainda
estava algemado, com a corrente presa a ele. Seu braço direito estava ao
redor dos ombros de Holly. Abraçando-a bem forte. Muito mais forte do
que precisava de fato.
— Falta quanto? — ela perguntou.
— A gente vai chegar lá antes do anoitecer — ele disse baixinho. —
Não trouxeram sua corrente. Não vai ter mais pernoites.
Ela ficou em silêncio por um momento.
— Não sei se fiquei muito contente com tal informação — ela disse.
— Eu odeio este furgão, mas não sei ao certo se quero chegar a algum
lugar.
Reacher concordou com a cabeça.
— Reduz nossas chances — ele ratificou. — O princípio básico é
escapar enquanto se está em movimento. Fica muito mais difícil depois.
O movimento do veículo indicava que estavam numa estrada. Porém,
ou o terreno era acidentado, ou Stevie não conseguia manobrá-la, ou ambos,
porque eram atirados violentamente de um lado para outro. O sujeito virava
atrasado nas curvas e jogava o veículo para lá e para cá, como se estivesse
tendo muita dificuldade em se manter entre as faixas da pista. Holly era
lançada continuamente contra o flanco de Reacher. Ele a puxou para mais
perto e a abraçou com mais força. Ela se aninhou, bem agarradinha,
instintivamente. Ele percebeu hesitação, como se ela tivesse percebido que
havia agido sem pensar, e então entendeu sua decisão de não se afastar
mais.
— Tudo bem com você? — ela perguntou. — Você matou um homem.
Ele ficou quieto por um bom tempo.
— Não foi o primeiro — ele disse. — E eu acabei de decidir que não
será o último.
Os dois viraram a cabeça para dizer algo, ao mesmo tempo. O furgão
deu uma guinada violenta para a esquerda. Seus lábios ficaram a dois
centímetros um do outro. Guinou novamente. Eles se beijaram. A princípio
com leveza e certa hesitação. Reacher sentiu os novos lábios macios sobre
os seus e o sabor, odor e tato, novos, desconhecidos. Aí, beijaram-se com
mais paixão. Nesse instante, o veículo começou a escoicear por uma série
de curvas acentuadas, deixaram a beijação para lá e simplesmente ficaram
bem agarradinhos, fazendo de tudo para não serem subitamente atirados do
colchão no piso sulcado de metal.
20

BROGAN FOI O HOMEM QUE FEZ A DESCOBERTA em Chicago.


Havia sido o terceiro cara, naquela manhã, a passar pela lata de tinta branca,
jogada lá no terreno da indústria abandonada, porém foi o primeiro a
perceber sua importância.
— A caminhonete que roubaram era branca — Brogan afirmou. —
Tinha algum tipo de identificação na lateral. Pintaram por cima. Foi isso. A
lata estava aí mesmo, com um pincel, a três metros do Lexus, mais ou
menos. Faz sentido pensar que estacionariam o Lexus bem ao lado da
caminhonete, certo? Sendo assim, a lata de tinta estava próxima de onde a
caminhonete tinha estado.
— Que tipo de tinta? — McGrath indagou.
— Tinta comum de parede — Brogan disse. — Galão de um litro.
Pincel com cerdas de cinco centímetros. A etiqueta de preço ainda está nela,
de uma loja de ferragens. E tem impressões digitais nos respingos na
maçaneta.
McGrath concordou com a cabeça e sorriu.
— Ótimo — ele disse. — Mãos à obra.

Brogan levou as fotos de rosto feitas com o auxílio do computador para a


loja de ferragens, cujo nome estava no cabo do pincel. Era uma lojinha de
família, abarrotada, a duzentos metros do terreno abandonado. Atendendo o
balcão estava uma mulher idosa, mas robusta, raciocínio rápido e uma
memória de elefante. Reconheceu, imediatamente, o rosto do sujeito ao
volante do Lexus que a câmera havia captado. Ela disse que a tinta e o
pincel tinham sido comprados por ele, mais ou menos às dez horas da
manhã na segunda-feira. Para provar, chacoalhou e abriu uma gaveta antiga,
e tirou um bloco de notas fiscais, procurando as vendas da segunda-feira.
Pagou 7,98 pela tinta, 5,98 pelo pincel, mais os impostos, aí mesmo no
bloco.
— Ele pagou em dinheiro — ela disse.
— A senhora tem câmera de segurança aqui? — Brogan perguntou.
— Não — ela disse.
— Sua seguradora não exige? — ele perguntou.
A mulher simplesmente sorriu.
— Não temos seguro — ela respondeu.
Aí se curvou para baixo do balcão e mostrou uma espingarda.
— Não de nenhuma seguradora, pelo menos — ela ironizou.
Brogan olhou para a arma. Estava bem certo de que o cano era curto
demais para a peça de artilharia ser legalizada. Mas não ia começar a se
preocupar com esse tipo de coisa. Não num momento como aquele.
— Falou — ele disse. — Se cuida.

Mais de sete milhões de pessoas na região de Chicago, algo em torno de dez


milhões de veículos particulares. Apesar disso, somente uma caminhonete
branca havia sido denunciada como roubada, no período de vinte e quatro
horas entre o domingo e a segunda-feira. Era uma Ford Econoline branca.
Pertencia a um eletricista da Zona Sul que trabalhava com ela. Sua
seguradora o fazia esvaziá-la à noite e guardar o estoque e as ferramentas
dentro da própria loja. Qualquer coisa deixada dentro do veículo não estaria
coberta. Essa era a regra. Era uma regra chata, mas na segunda-feira de
manhã, quando o sujeito saiu para carregá-la e ela havia sumido, começou a
parecer que era uma regra que fazia muito sentido. Comunicou o roubo ao
seu corretor e à polícia, e não esperava ter notícia dela tão cedo. Portanto,
ficou devidamente impressionado, quarenta e oito horas mais tarde, quando
dois agentes do FBI apareceram fazendo um monte de perguntas urgentes.

— Está bom — McGrath disse. — A gente sabe o que está procurando. Um


furgão Econoline branco, pintura nova nas laterais. Temos as placas. Agora
precisamos saber onde procurar. Ideias?
— Faz quarenta e oito horas que estão viajando — Brogan disse. —
Digamos que seja a uma velocidade média de noventa por hora. Isso daria
um alcance máximo de uns quatro mil quilômetros ou mais um pouco.
Nossa Senhora, praticamente qualquer lugar do continente norte-americano.
— Muito pessimista — Milosevic percebeu. — Provavelmente
pernoitaram. Digamos cerca de seis horas dirigindo na segunda-feira, talvez
dez na terça-feira, possivelmente quatro até agora, hoje, totalizando vinte
horas, é um alcance máximo de dois mil quilômetros.
— Mesmo assim, uma agulha no palheiro — Brogan disse.
McGrath deu de ombros.
— Então vamos achar o palheiro — ordenou. — E depois a gente sai
em busca da agulha. Digamos dois mil e quatrocentos quilômetros,
estourando. O que acham?
Brogan puxou um mapa rodoviário da pilha de material de referência
na mesa. Abriu na seção inicial, onde o país inteiro era mostrado de uma
vez, todos os Estados espalhados numa página, num mosaico colorido.
Verificou a escala e delineou um círculo com a unha.
— Pode ser em qualquer lugar antes da Califórnia — ele disse. —
Parte do Estado de Washington, parte do Oregon, mas nada da Califórnia e
absolutamente qualquer lugar dos outros Estados. Em algum ponto de um
número astronômico de quilômetros quadrados.
Fez-se um silêncio deprimente na sala.
— Montanhas entre aqui e... o Estado de Washington, certo? —
McGrath disse. — Então vamos supor que ainda não estejam em
Washington. Nem no Oregon, ou Califórnia. Alasca e Havaí também estão
fora. Então já reduzimos o número. Somente quarenta e cinco Estados para
checar, certo? Vamos trabalhar.
— Poderiam ter ido para o Canadá — Brogan disse. — Ou para o
México, ou para um barco ou um avião.
Milosevic deu de ombros e pegou o mapa dele.
— Você é pessimista demais — disse novamente.
— Uma agulha num maldito palheiro — Brogan ratificou.

Três andares acima deles, os técnicos de datiloscopia do FBI examinavam o


pincel que Brogan havia trazido. Tinha sido usado apenas uma vez por um
sujeito muito desajeitado. A tinta ressecara as cerdas e escorrera sobre a
virola de aço lisa que prendia as cerdas no cabo de madeira. O sujeito havia
colocado o polegar atrás da virola, e os dois primeiros dedos na frente.
Sugeria um cara de estatura média, esticando os braços para passar a tinta
sobre uma superfície plana, ao nível de sua cabeça, talvez um pouco mais
alto, com o cabo do pincel para baixo. Um Ford Econoline tinha quase dois
metros de altura. Qualquer letreiro estaria mais ou menos a um metro e
setenta do chão. O computador não conseguia calcular a altura do sujeito,
porque ele só tinha sido filmado sentado no Lexus; porém, pelo modo como
o pincel havia sido usado, ele devia ter entre um metro e setenta e dois e
setenta e cinco de altura. Esticara os braços, passando tinta só um pouco
acima da altura dos olhos, pincelando forte, com certa força lateral. O
trabalho final não ficaria muito caprichado.
Tinta fresca é um meio excelente de reter impressões digitais, e os
técnicos sabiam que não iriam ter muita dificuldade. Porém, por uma
questão de perfeccionismo, executaram todos os processos que tinham,
desde a fluoroscopia até o tradicional pó cinza. Acabaram com quase quatro
boas impressões, o polegar e os primeiros dois dedos da mão direita, com
toda certeza, e de quebra, a metade lateral do dedo mindinho. Realçaram o
foco no computador e enviaram as impressões pela linha digital até o
Hoover Building em Washington. Adicionaram um código instruindo o
grande banco de dados de lá a procurar para ontem.

Nos laboratórios em Quantico os caçadores foram divididos em dois


bandos. A picape queimada havia sido desmontada e metade do pessoal
examinava microscópicos vestígios físicos específicos do veículo. A outra
metade vasculhava os registros fragmentados mantidos pelo fabricante,
atentando para as réplicas indistintas de sua construção e histórico de
vendas subsequente.
Era uma Dodge de dez anos, fabricada em Detroit. Tanto o número do
chassi quanto o código estampados no metal do bloco do motor eram
originais. Os números possibilitavam ao fabricante identificar a remessa
original. A picape havia saído pelo portão da fábrica no mês de abril e
carregada num vagão ferroviário e transportada para a Califórnia. Depois,
levada de cegonha para uma concessionária no Mojave. A concessionária
havia pago a fatura em maio e, depois desse ponto, o fabricante não
mantinha mais nenhum conhecimento do paradeiro do veículo.
A concessionária no Mojave tinha ido à falência dois anos mais tarde.
A franquia fora adquirida pelos novos donos. Os registros atuais estavam
em seu computador. Dados antigos, de antes da mudança de proprietários,
encontravam-se no arquivo morto. Não era todo dia que uma pequena
concessionária automotiva na beira do deserto recebia uma ligação da
Academia do FBI em Quantico. Então havia a promessa de ação rápida. O
próprio gerente de vendas se incumbiu de conseguir as informações e ligar
de volta imediatamente.
O veículo propriamente dito estava praticamente todo queimado.
Todas as pistas de material sensível ao fogo não existiam mais. Não havia
nenhuma placa eletrônica. Nada de significativo no interior. Nenhum
bilhete de pedágio. Os adesivos do para-brisas já eram. Havia sobrado
apenas lama. A perícia técnica havia recortado os dois para-lamas das rodas
traseiras e os aros de metal em chapa diretamente acima dos pneus e os
transportaram cuidadosamente, atravessando toda a área, até a Unidade de
Análise de Materiais. Todo veículo registra seu próprio itinerário nas
camadas de lama que aderem no fundo. Os geólogos do FBI estavam
removendo as camadas e examinando onde a picape havia estado e de onde
tinha vindo.
A lama foi solidificada pelo calor dos pneus. Alguns dos cristais mais
moles se vitrificaram. Mas as camadas eram claras. As camadas exteriores
eram finas. Os geólogos concluíram que tinham sido depositadas durante
uma longa viagem cobrindo todo o país. Então havia um acúmulo de uns
dois anos de partículas de cascalho mescladas. A mescla particular era
interessante. Havia tanta combinação de tipos de areia ali que identificar
sua origem exata devia ser fácil. Sob essa mescla havia uma camada básica
espessa de pó do deserto. Imediatamente os geólogos concordaram que o
caminhão começou sua vida útil perto do Deserto do Mojave.

Todos os órgãos da força policial de quarenta e cinco Estados tinham a


descrição e o número da placa do Econoline branco roubado. Todos os
policiais a serviço da nação inteira tinham sido instruídos a procurá-la,
estivesse estacionada ou em movimento, queimada, escondida ou
abandonada. Por um breve tempo naquela quarta-feira, o furgão branco se
tornara o veículo mais procurado do planeta.
McGrath ficou sentado à cabeceira da mesa na sala de reunião
silenciosa, fumando, aguardando. Não estava otimista. Se o furgão estivesse
estacionado em algum lugar, escondido, o mais provável era que nunca
mais seria encontrado. A tarefa era realmente hercúlea. Qualquer lugar
fechado, garagem, prédio ou celeiro podia escondê-la eternamente. Se ainda
estivesse em algum lugar na estrada, as chances seriam melhores. Sendo
assim, a maior interrogação da sua vida era: Depois de quarenta e oito
horas, eles chegaram ao seu destino ou ainda estavam a caminho?

Duas horas depois do início da paciente busca, o banco de dados de


impressões digitais revelou um nome: Peter Wayne Bell. Havia uma
paridade perfeita, mão direita, polegar e primeiros dois dedos. O
computador classificava a paridade da impressão parcial do dedo mindinho
como muito provável.
— Trinta e um anos de idade — Brogan relatou. — Do Mojave,
Califórnia. Duas condenações por delitos sexuais. Acusado de dois estupros
três anos atrás. Acabou em pizza. As vítimas ficaram três meses
hospitalizadas. Esse tal de Bell conseguiu um álibi, três de seus amigos.
Muito abaladas pelos espancamentos, as vítimas não puderam fazer a
identificação.
— Gente finíssima — McGrath ironizou.
Milosevic concordou com a cabeça.
— E ele está com a Holly — disse. — Bem lá nos fundos de sua
caminhonete.
McGrath continuou em silêncio. Nesse ponto o telefone tocou. Ele
atendeu. Ouviu uma frase brusca e curta. Ficou estático na cadeira, e
Brogan e Milosevic viram seu rosto se iluminar como um sujeito que vê
todos os seus times ganharem a taça no mesmo dia: beisebol, futebol,
basquete e hóquei, tudo isso no mesmo dia em que seu filho se forma com
distinção em Harvard e suas ações sobem vertiginosamente.
— Arizona! — ele gritou. — Está no Arizona, indo para o norte na
US60.

Um veterano, numa viatura do Estado do Arizona, havia visto um furgão de


entregas branco, fechado, fazendo péssimas trocas de pista nas curvas
fechadas da US60, que serpenteava para longe da cidade de Globe, a cento
e dez quilômetros a leste de Phoenix. Havia se aproximado e lido a placa.
Tinha visto o oval azul e o nome Econoline na traseira. Apertara o botão do
microfone com o polegar e havia comunicado o ocorrido. Foi aí que o
mundo enlouqueceu. Recebeu ordem expressa para ficar na cola do veículo,
a qualquer preço, que helicópteros estariam indo até ele, de Phoenix e
Flagstaff, de Albuquerque, e até do distante Novo México. Toda unidade
móvel disponível viria atrás dele do Sul. Mais na frente, a Guarda Nacional
montaria uma barreira. Dentro de vinte minutos, ele foi informado, você
terá o apoio que jamais sonhou. Até lá, continuou, você é o representante da
lei mais importante dos Estados Unidos.

O gerente de vendas da concessionária Dodge no Mojave, Califórnia, ligou


de volta para Quantico dentro de uma hora. Havia estado no almoxarifado e
encontrara os registros das vendas feitos há dez anos pelos donos anteriores
da franquia. A picape em questão tinha sido vendida para um fazendeiro de
cítricos de Kendall, oitenta quilômetros ao sul do Mojave, em maio daquele
ano. O sujeito havia voltado para a primeira revisão e para fazer os testes de
emissão de gases nos primeiros quatro anos, e depois disso nunca mais
tinha sido visto. Havia comprado através de um financiamento de quatro
anos e seu nome era Dutch Borken.

Meia hora mais tarde, o Econoline branco roubado estava cinquenta


quilômetros mais ao norte, na US60 do Arizona, e encabeçava a longa fila,
constituída de cinquenta veículos, em forma de V, que seguia atrás dela.
Acima, cinco helicópteros zumbiam. Na frente, dezesseis quilômetros ao
norte, a estrada havia sido fechada e mais quarenta veículos se encontravam
estacionados no asfalto, criando uma formação perfeita de ponta de flecha.
A operação inteira estava sendo coordenada pelo agente encarregado do
escritório do FBI em Phoenix, no helicóptero de comando, olhando
fixamente para baixo, através do ar claro do deserto, para o teto da
caminhonete. Com fone de ouvido e microfone de lapela, falando sem
cessar:
— Certo, pessoal — ele pedia atenção. — Vamos pra cima deles, agora
mesmo. Vamos lá! Andem, andem!
Seu helicóptero de comando embicou para cima, saindo do caminho, e
dois outros mergulharam. Pairavam exatamente em frente do furgão, muito
baixo mesmo, um de cada lado, mantendo o ritmo. As viaturas na
retaguarda se espalharam por toda a largura da estrada e todos ligaram suas
luzes e sirenes ao mesmo tempo. Um terceiro helicóptero deu uma guinada
para baixo e voou de ré, bem próximo ao veículo, a dois metros e meio do
chão, estroboscópios relampejando, rotores fatiando o ar. O copiloto
começou uma sequência de gestos óbvios, mãos escancaradas, palmas para
fora, como se estivesse diminuindo pessoalmente a velocidade do furgão.
Aí, as sirenes todas se detiveram e o megafone gigantesco na frente da
aeronave entrou em ação. A voz do copiloto estrondou, amplificou-se
grotescamente, excedendo o ponto de distorção, claramente audível até
mesmo acima do açoite e martelamento das palhetas do rotor.
— Agentes federais — sua voz estrondou. — Pare imediatamente.
Repito: pare seu veículo imediatamente.
A caminhonete continuou a seguir em frente. O helicóptero adiante
dela deu uma guinada e cambaleou no ar. Depois, estabilizou-se novamente,
ainda mais perto do para-brisa, voando de ré, a não mais que três metros de
distância.
— Você está cercado — o copiloto gritou pelo megafone. — Temos
cem policiais no seu encalço. Adiante a estrada está fechada. Você não tem
nenhuma opção. Reduza a velocidade e depois pare. Faça isso agora
mesmo.
As viaturas, todas elas, ligaram as sirenes novamente e duas delas se
colocaram ao lado. O furgão estava bloqueado por uma massa sólida de
aparato policial. Seguiu a toda por um bom tempo e, em seguida, diminuiu
a velocidade. Atrás dele, a escolta frenética freou e desviou. Os helicópteros
subiram e mantiveram o ritmo. O furgão diminuiu a velocidade mais ainda.
As viaturas se posicionaram às suas laterais, duas delas encostadas mesmo,
porta a porta, para-choque com para-choque. O suspeito foi diminuindo aos
poucos até parar. Os helicópteros ficaram nos seus postos, no alto. Os carros
na dianteira ultrapassaram e tomaram a frente, parando de supetão, a
centímetros do capô. Ao redor, policiais pipocavam para fora. A estrada
estava apinhada de tiras. Apesar do estrondo dos rotores dos helicópteros, o
triturar dos mecanismos de espingarda e o estalido de cem cães de revólver
se fizeram claramente audíveis.

Em Chicago, McGrath não ouviu as espingardas e os revólveres, mas podia


ouvir o agente de Phoenix no comando gritando pelo rádio. O emissor do
microfone de lapela em seu helicóptero estava em ligação direta com
Washington e crepitava por um alto-falante na longa mesa de madeira
maciça. O sujeito falava continuamente, agitado, em parte como se fosse
uma série de instruções para sua equipe e em parte como um comentarista
ao vivo sobre a cena que presenciava na estrada abaixo. McGrath se
encontrava imóvel na sua cadeira, mãos frias e úmidas, olhando fixamente
para o alto-falante barulhento como se, se o fitasse com muita intensidade,
ele se transformaria numa bola de cristal e o deixaria ver o que estava
acontecendo.
— Ele está parando, está parando — o sujeito no helicóptero desatou a
gritar. — Ele está estacionário agora, parado na estrada, cercado. Aguardem
a ordem antes de atirar, aguardem minha ordem, não estão saindo, abram as
portas, abram as malditas portas e arrastem eles pra fora, entendido. Dois
elementos na frente, dois elementos, o motorista e um passageiro, estão
saindo, estão fora, rendam eles, coloquem num carro, peguem as chaves,
abram a traseira, mas tomem cuidado, tem mais dois lá dentro com ela.
Certo, estamos indo para a traseira, estamos dando a volta. As portas estão
trancadas lá atrás, estamos tentando a chave. Peraí! Ainda tem um letreiro
na lateral desta caminhonete. O letreiro ainda está lá. Diz Bright Spark
Electrics. Não era para estar apagado? Foi o que recebi. Pintado por cima
ou coisa do gênero?
Em Chicago, um silêncio mortal caiu sobre a sala de reunião do
terceiro andar. McGrath ficou branco. Milosevic olhou para ele. Brogan
olhou fixamente pela janela, calmo.
— E por que está indo em direção ao norte? — McGrath perguntou. —
Voltando para Chicago?
A crepitação do alto-falante ainda se fazia ouvir. Voltaram-se na
direção dele. Ouviram com muita atenção. Podiam ouvir as batidas das
palhetas do rotor por trás da voz que gritava.
— As portas traseiras foram abertas — a voz disse. — As portas estão
abertas, abertas, estamos entrando, tem gente saindo, aqui vêm elas. Mas
que porra é essa? Tem dezenas de pessoas lá dentro. Umas vinte pelo
menos. Estão saindo. Ainda estão saindo. Tem vinte ou trinta pessoas lá
dentro. Mas que diabo está acontecendo aqui?
O cara se interrompeu. Evidentemente, estava ouvindo um relato
transmitido por rádio do solo. McGrath, Brogan e Milosevic olharam
fixamente para o alto-falante sibilante. Ele ficou em silêncio por muito
tempo. Nada sendo transmitido mesmo, exceto a respiração barulhenta do
sujeito, o martelamento das palhetas e a cachoeira de estática. Então a voz
voltou:
— Meeerdaaa! — ele gritou. — Merda, Washington, vocês estão aí?
Estão ouvindo isso? Sabem o que acabamos de fazer? Sabem o que
mandaram a gente fazer? A gente acabou de prender um carregamento de
imigrantes ilegais mexicanos. Aproximadamente trinta ilegais. Acabaram
de ser pegos na fronteira. Estavam indo para Chicago. Disseram que
prometeram trabalho para eles por lá.
21

O ECONOLINE BRANCO SEGUIA COM SEU BARULHO monótono.


Movia-se mais rapidamente do que antes. Mas as curvas tinham acabado.
Fizera a última curva fechada a toda e depois se estabilizara numa
velocidade de cruzeiro rápida e direta. Mais barulhento que antes, por causa
da maior velocidade e do gemido do vento veloz que entrava pelos cem
buracos espalhados pelo teto.
Reacher e Holly estavam apertadinhos, um contra o outro, no colchão
diminuto. Deitados de costas, fitando os orifícios acima. Cada furo era um
ponto brilhante de luz. Não azul, apenas um ponto de luz tão brilhante que
não tinha absolutamente nenhuma cor. Apenas um ponto brilhante no
escuro. Como um teorema matemático. Luz total contra a escuridão total da
placa de metal. Luz, o oposto da escuridão. Escuridão, a ausência de luz.
Positivo e negativo. Os dois teoremas contrastados vivamente, lá em cima
no teto de metal.
— Eu preciso ver o céu — Holly disse.
Estava morninho no furgão. Não quente, como no primeiro dia e na
metade do outro. O jato de ar sibilante tinha resolvido esse problema. A
corrente de ar a mantinha confortável. Mas estava quente o bastante para
Reacher ter tirado a camisa, feito uma bolinha com ela e enfiado embaixo
da cabeça.
— Eu quero ver o céu inteiro — Holly disse. — Não apenas
pedacinhos dele.
Reacher não disse nada em resposta. Estava contando os orifícios.
— Que horas são? — Holly perguntou.
— Cento e treze — Reacher disse.
Holly virou a cabeça para ele.
— O quê? — ela indagou.
— Cento e treze buracos no teto — ele constatou.
— Que maravilha — ela disse. — Que horas são?
— Três e meia, fuso horário central — ele respondeu.
Ela se aconchegou mais. Moveu o peso para o flanco. A cabeça
descansava sobre seu ombro direito. A perna descansava sobre a dele. A
coxa dele se comprimia entre as dela.
— Quarta-feira, certo? — ela disse.
— Quarta-feira — ele confirmou.
Ela estava fisicamente mais perto dele do que muitas mulheres jamais
se tinham permitido. Sentia-se desinibida e disposta. Firme, porém tenra.
Jovem. Cheirosa. Ele flutuava nas ondas e curtia a sensação. Ligeiramente
excitado. Mas sem se encher de ilusões quanto à motivação dela. Ela estava
relaxada, mas fazia o que fazia para descansar seu joelho dolorido e para
não rolar do colchão e ir parar no chão.
— Cinquenta e uma horas — ela disse. — Cinquenta e uma horas sem
ver o céu.
Cento e treze era um número primo. Não dava para chegar até ele
multiplicando-o com nenhum outro número. Cento e doze dava para chegar
a ele multiplicando cinquenta e seis por dois, ou vinte e oito por quatro, ou
quatorze por oito. Cento e quatorze se obtinha multiplicando cinquenta e
sete por dois, ou dezenove por seis, ou trinta e oito por três. Mas cento e
treze era primo. Nenhum fator. A única maneira de obter cento e treze era
multiplicando por um. Ou disparando uma espingarda dentro de uma
caminhonete num momento de fúria.
— Reacher, estou ficando preocupada — Holly disse.
Cinquenta e uma horas. Cinquenta e um não era um número primo. Dá
para chegar a cinquenta e um multiplicando dezessete por três. Três vezes
dez são trinta, três vezes sete são vinte e um, trinta mais vinte e um são
cinquenta e um. Não é um número primo. Cinquenta e um tinha fatores. Ele
arrastou o peso da corrente para o alto com o pulso esquerdo e a abraçou
bem forte, ambos os braços em torno dela.
— Não vai acontecer nada com você — assegurou a ela. — Não vão te
machucar. Querem te trocar por algo. Vão mantê-la sã e salva.
Ele sentiu que ela balançou a cabeça contra seu ombro. Apenas um
pequeno toque, mas muito firme.
— Não estou tão preocupada comigo mesma — ela disse. — Estou
preocupada é com você. Quem diabos vai trocar algo por você?
Ele não disse nada. Não havia nada que pudesse dizer em relação a
isso. Ela se aconchegou mais. Pôde sentir o roçar das pestanas dela contra
sua pele no lado do peito quando ela piscou. O furgão seguiu estrondando,
mais rápido do que queria ir. Ele sentia que o motorista forçava a
velocidade de cruzeiro natural até o limite máximo.
— Então... estou ficando um pouco preocupada — ela avisou.
— Você cuida de mim — ele brincou. — E eu de você.
— Eu não estou pedindo para você fazer isso — ela disse.
— Eu sei que não está — ele replicou.
— Bem, eu não posso deixar você fazer isso — ela avisou novamente.
— Você não pode me deter — ele constatou. — A parada agora é
comigo também. Foram eles que fizeram as coisas ficarem assim. Iam me
matar com um tiro. Eu tenho uma regra, Holly: as pessoas mexem comigo
por sua conta e risco. Eu tento ser paciente com elas. Eu tive uma
professora uma vez, numa escola primária de algum lugar. Nas Filipinas, eu
acho, já que sempre usava um chapéu branco enorme. Bem, era em algum
lugar tropical. Eu sempre tive o dobro do tamanho dos outros garotos e ela
costumava me dizer: Conte até dez antes de ficar com raiva, Reacher. E eu
contei muito além de dez agora. Muito além. Então, é melhor você encarar
os fatos, vamos ganhar ou perder juntos.
Ficaram em silêncio. O furgão seguiu roncando.
— Reacher? — Holly chamou.
— O quê? — ele disse.
— Me abraça — ela pediu.
— Mas já estou te abraçando.
Apertou-a gentilmente, com ambos os braços, para segurá-la bem. Ela
se aconchegou mais.
— Reacher? — chamou mais uma vez.
— Sim? — ele respondeu.
— Você quer me beijar novamente? — ela perguntou. — Isso faz com
que eu me sinta melhor.
Ele virou a cabeça e sorriu para ela no escuro.
— Não me faz nem um pouco mal também — ele disse.

Oito horas a talvez cem ou cento e vinte quilômetros por hora. Percorreram
entre oitocentos e novecentos quilômetros. Essa era a distância aproximada
na estimativa de Reacher. Isso começava a lhe dar uma pista sobre onde
estavam.
— Estamos em algum lugar onde aboliram o limite de velocidade —
ele percebeu.
Holly se mexeu e bocejou.
— O quê? — ela indagou.
— Estamos indo rápido demais — ele disse. — Pra lá de cento e dez
quilômetros por hora, provavelmente há horas. Loder é muito meticuloso.
Não deixaria Stevie dirigir tão rápido assim se tivesse qualquer perigo da
gente ser parado por causa disso. Então estamos em algum lugar onde
aumentaram o limite ou aboliram completamente. Quais os Estados que
fizeram isso?
Ela deu de ombros.
— Não tenho certeza — ela disse. — Mas acredito que os Estados do
Oeste, acho eu.
Reacher concordou com a cabeça. Traçou um arco no mapa mental.
— Não fomos para o leste — ele decidiu. — Já sacamos isso. Então
calculo que estamos no Texas, Novo México, Colorado, Wyoming ou
Montana. Talvez até em Idaho, Utah, Nevada ou Arizona. Na Califórnia
ainda não.
A caminhonete reduziu a velocidade ligeiramente e eles ouviram a
nota do motor ficar mais grave. Então, ouviram o triturar quando o
motorista reduziu da quinta para a quarta marcha.
— Montanhas — Holly percebeu.
Era mais do que uma colina. Mais do que uma subida íngreme. Era
uma escalada reta, implacável. Uma estrada pelas montanhas. Projetada
claramente para ajudar o trânsito pesado, mas adicionava centenas de
metros a cada quilômetro que dirigiam. Reacher sentia a guinada quando o
furgão mudava de pista para ultrapassar veículos mais lentos. Não muitos,
mas alguns. Permaneceram na quarta marcha, o sujeito pisando fundo,
martelando morro acima, depois relaxando, subindo para a quinta marcha,
depois baixando novamente, arrojando-se para cima.
— A gente podia ficar sem gasolina — Holly disse.
— É diesel, não gasolina — Reacher corrigiu. — A gente usava estes
troços no exército. Tanques de cento e trinta litros. Um litro de diesel faz
cerca de quarenta quilômetros na estrada. Vão rodar, no mínimo, mil e
quatrocentos quilômetros antes do combustível acabar.
— Assim podem nos levar para fora dos Estados Unidos — ela
constatou.
Seguiram viagem. O furgão rugiu através das montanhas, por horas, depois
deixou a estrada. A noite havia caído. Os buracos brilhantes no teto tinham
escurecido. E depois desapareceram completamente. Ficaram mais escuros
do que o próprio teto. Positivo e negativo. Sentiram a guinada, quando o
veículo virou bruscamente para a direita, saindo da estrada, e os pneus
grudaram no asfalto quando o furgão fez uma curva muito fechada para a
direita. Depois atravessaram um trajeto confuso, cheio de curvas, paradas e
arrancadas. Descidas acidentadas com muitas voltas e curvas fechadas
morro acima, com o motor gemendo em marcha lenta. Períodos de trajetos
suaves numa estrada sinuosa, superfícies ruins e boas, inclinações, cascalho
sob as rodas, buracos na estrada. Reacher podia imaginar o feixe de luz dos
faróis dianteiros adejando para a esquerda e para a direita e pulando para
cima e para baixo.
O furgão reduziu a velocidade quase até parar. Fez uma curva bem
fechada para a direita. Tamborilou por algum tipo de ponte de madeira.
Então deu uma guinada e seguiu caminho aos trancos e barrancos ao longo
de uma via cheia de sulcos. Movendo-se lentamente, estremecendo de um
lado para outro. Dava a sensação de que estavam subindo um leito fluvial
seco. Algum tipo de via rochosa, estreita. Parecia que essa seria a última
fase da viagem. Sentiam que estavam muito perto do destino final. O
motorista dirigia sem pressa. A impressão era de que o furgão estava quase
em casa.
Mas a última etapa levou muito tempo. A velocidade era baixa e a
estrada, péssima. As pedras e os cascalhos estalavam sob os pneus, que se
contorciam para um lado na superfície arisca. O passado veículo seguiu
moendo por quarenta minutos. Cinquenta. Reacher ficou com frio. Sentou-
se e sacudiu a camisa. Vestiu-a. Uma hora na trilha repleta de buracos e
saliências. Nesta velocidade, talvez vinte e cinco quilômetros, talvez trinta.
Então chegaram. O furgão subiu um último morro, deu uma guinada e
aí se nivelou. Arrastou-se para a frente alguns poucos metros e parou. O
ruído do motor desapareceu de súbito. Substituído por um silêncio
aterrador. Reacher não conseguia ouvir nada, exceto um vasto vazio e o
tiquetaquear do silencioso enquanto esfriava. Conseguia ouvir os dois
sujeitos, na frente, sentados em silêncio, esgotados. Então, saíram. Ouviu as
portas se abrirem e as molas dos bancos rangerem. Passos no cascalho. As
portas bateram, fazendo um som metálico ensurdecedor em contraste com a
calmaria. Ouviu-os dar a volta, ruidosamente, até a traseira. O som das
chaves se balançando gentilmente na mão do motorista.
A chave deslizou fechadura adentro, que se moveu para trás com um
estalo. A maçaneta girou. A porta se abriu. Loder a manteve aberta com a
presilha de metal. Então, abriu a outra porta. Escorou-a. Gesticulou com a
Glock para que saíssem. Reacher ajudou Holly ao longo do piso sulcado.
Desceu. A corrente em seu pulso tiniu ao cair na terra. Pegou Holly no colo
e a colocou ao seu lado. Ficaram em pé, um ao lado do outro, curvados e se
apoiando na borda do assoalho sulcado de metal do veículo. Olhando
adiante e ao redor.
Holly quisera ver o céu. E ficou lá, em pé, sob o céu mais vasto que
Reacher já tinha visto. Era azul-escuro, como tinta de tinteiro, quase
nanquim, e era imenso. Estendia-se até uma altura infinita. Era tão grande
quanto um planeta. Salpicado com cem bilhões de estrelas brilhantes.
Distantes, porém anormalmente vívidas. Estendiam-se como polvilho até os
confins gélidos e distantes do universo. Era um céu noturno gigantesco e se
retesava até o infinito.
Estavam numa clareira na floresta. Reacher podia sentir o aroma
pungente de pinho. Um cheiro forte. Limpo e fresco. Haviam aglomerados
escuros de árvores em todas as direções. Cobriam os declives sanfonados
das montanhas. Uma clareira na floresta, cercada por declives montanhosos
arborizados. Era uma clareira enorme, infinitamente escura, e silenciosa.
Reacher podia ver os contornos pretos e tênues das construções mais
adiante, à sua direita. Cabanas longas, baixas. Estruturas de madeira
contraindo-se na escuridão.
Havia pessoas na borda da clareira. De pé, em meio às árvores mais
próximas. Reacher podia ver formas vagas. Uns cinquenta ou sessenta
indivíduos. Apenas estáticos, lá, silenciosos. Vestiam roupas escuras. Os
rostos estavam escurecidos, haviam sido pintados para camuflagem
noturna. Reacher podia ver seus olhos, brancos em contraste com as árvores
negras. Portavam armas. Dava para ver rifles e metralhadoras. Lançadas
casualmente sobre o ombro das estátuas, de olhares fixos. Tinham cães.
Muitos e dos grandes, com coleiras grossas de couro.
Havia crianças. Reacher podia avistá-las. Crianças em grupos,
silenciosas, olhando fixamente, olhos enormes, sonolentos. Aglomeravam-
se atrás dos adultos, imóveis, ombros apontados diagonalmente para longe,
temerosas e perplexas. Crianças com sono, acordadas no meio da noite para
testemunhar algo.
Loder girou lentamente em todas as direções e acenou para que a tribo
silenciosa, de olhos arregalados, se aproximasse. Fez um gesto abrangente
com o braço, como o mestre de cerimônias de um circo.
— Pegamos ela — ele berrou no silêncio. — A piranha federal agora é
nossa.
Sua voz ecoou nas montanhas distantes.
— Onde diabos a gente está? — Holly perguntou baixinho.
Loder se voltou e sorriu para ela.
— No nosso cantinho, vagabunda — ele disse baixinho. — Um lugar
onde seus camaradas federais não podem vir te resgatar.
— Por que não? — Holly perguntou. — Onde, diabos, a gente está?
— Pode ser complicado de entender — Loder disse.
— Por quê? — Holly perguntou. — A gente está em algum lugar, não
está? Em algum lugar nos Estados Unidos?
Loder negou com a cabeça.
— Não — ele afirmou.
Holly parecia estupefata.
— Canadá? — ela perguntou.
O cara balançou a cabeça novamente.
— Não é o Canadá, piranha — ele disse.
Holly dirigiu os olhos ao seu redor, para as árvores e as montanhas, e
os ergueu para o vasto céu noturno. Estremeceu com o frio repentino.
— Bem, com certeza não é o México — ela constatou.
O cara levantou os braços, fazendo um pequeno gesto descritivo.
— Este é um país novinho em folha — ele disse.
22

A ATMOSFERA DO ESCRITÓRIO DE CHICAGO, na quarta-feira à


noite, mais parecia um funeral e, de certo modo, era mesmo, porque
qualquer esperança realista de resgatar Holly tinha evaporado. McGrath
sabia que sua melhor chance havia sido no início. A chance inicial já era. Se
Holly ainda estivesse viva, agora era prisioneira em algum lugar do
continente norte-americano e ele nem teria a chance de descobrir onde, até
que seus sequestradores decidissem fazer contato. E até agora, depois de
quase sessenta horas do sequestro, não haviam feito.
Estava na cabeceira da mesa, na sala de reunião do terceiro andar.
Fumando. A sala estava silenciosa. Milosevic, sentado de um lado, de
costas para as janelas. O sol da tarde tinha se movido vagarosamente e o dia
caído na escuridão. A temperatura da sala havia subido e descido com o
movimento natural, até um balsâmico pôr do sol de verão. Mas, lá dentro,
os dois homens se encontravam gelados pelo anticlímax. Mal ergueram os
olhos quando Brogan entrou e se juntou a eles. Segurava um maço de folhas
saído de uma impressora. Não sorria, mas parecia bem próximo disso.
— Conseguiu alguma coisa? — McGrath perguntou.
Brogan concordou com um aceno enfático de cabeça e se sentou.
Separou as impressões em quatro punhados e os ergueu, um de cada vez.
— Quantico — ele disse. — Conseguiram algo. E o banco de dados
criminais da capital conseguiu três coisas. E eu tive uma ideia.
Espalhou seus papéis e ergueu os olhos.
— Ouçam — pediu. — Granito, cristais entrelaçados, sílex córneos,
gneiss, xisto, xisto argiloso, metamórficos foliformes, quartzitos, cristais de
quartzo, arenito de leito vermelho, areia triássica vermelha, vulcânicos
ácidos, feldspato cor-de-rosa, clorito verde, chumbo-ferro, grão, areia e
sedimentos. Sabem o que é tudo isso?
McGrath e Milosevic deram de ombros e acenaram negativamente
com a cabeça.
— Geologia — Brogan disse. — O pessoal de Quantico examinou a
picape. Geólogos da Unidade de Análise de Materiais. Deram uma boa
olhada na merda lançada sob as abóbadas das rodas. Descobriram que
material é e calcularam onde a picape esteve. Partículas minúsculas de
rocha e sedimentos grudaram no metal. É uma espécie de impressão digital
geológica.
— Certo. Então, por onde ela andou? — McGrath estava ansioso.
— Partiu da Califórnia — Brogan respondeu. — Um agricultor de
cítricos chamado Dutch Borken a comprou, dez anos atrás, no Mojave. O
fabricante rastreou isso para nós. Essa parte não tem nada a ver com a
geologia. E os cientistas dizem que ela ficou em Montana por dois anos.
Então, dirigiram até aqui, pela rota norte, através da Dakota do Norte,
Minnesota e Wisconsin.
— Eles têm certeza disso? — McGrath perguntou.
— Como o diário de bordo de um caminhoneiro — Brogan disse. —
Só que escrito com barro, não com papel e caneta.
— Então, quem é esse tal de Dutch Borken? — McGrath perguntou.
— Ele está metido nisso?
Brogan negou com a cabeça.
— Não — ele afirmou. — Dutch Borken morreu.
— Quando? — McGrath perguntou.
— Dois anos atrás — Brogan disse. — Tomou dinheiro emprestado, a
safra foi para o brejo, o banco executou a hipoteca, ele enfiou uma calibre
doze na boca e espalhou os miolos por toda a Califórnia.
— E daí? — McGrath queria que ele continuasse.
— O filho roubou a picape — Brogan disse. — Tecnicamente, era
propriedade do banco, certo? O filho se mandou com ela, nunca mais foi
visto. O banco deu parte, e os tiras locais procuraram, mas não conseguiram
encontrar. Não estava licenciada. O Departamento de Trânsito não sabe
nada sobre ela. Os tiras desistiram porque quem se importa com uma picape
velha caindo aos pedaços? Porém minha suposição é que este tal de Borken,
o filho, passou a mão nela e se mudou para Montana. A caminhonete ficou,
com certeza, dois anos em Montana, os cientistas me garantiram isso.
— Temos alguma coisa sobre o Borken júnior? — McGrath perguntou.
Brogan confirmou com a cabeça. Reteve no ar outro maço de papel.
— Temos um caminhão de merda sobre ele — disse. — Ele está por
toda parte em nosso banco de dados como formigas num piquenique. Seu
nome é Beau Borken. Trinta e cinco anos de idade, um metro e oitenta de
altura, pesando uns duzentos quilos. Cara grande, certo? Com tendências
paranoicas, extremista de direita. Agora é um líder de milícia. Fanático de
jogar pedra na lua. Ligações com outras milícias espalhadas pelo país. O
principal suspeito de um assalto no norte da Califórnia. Carro blindado
transportando vinte milhões em letras de câmbio ao portador. O motorista
foi morto. Chegaram à conclusão de que teve participação da milícia porque
os bandidos usavam vários componentes de uniformes militares. A
organização de Borken se enquadrou bem no lance, mas não conseguiram
provar. Os dados não são claros a respeito de por que não. E, além disso, o
que nos interessa é que Borken júnior foi um dos álibis que Peter Wayne
Bell usou para escapar da prisão por estupro. Então, é um parceiro
documentado de alguém que podemos provar que estava na cena do crime.
Milosevic ergueu os olhos.
— E a base fica em Montana? — ele perguntou.
Brogan confirmou com a cabeça.
— Podemos apontar a região exata, mais ou menos — ele garantiu. —
Os cientistas de Quantico têm quase certeza sobre dois vales específicos, no
lado noroeste de Montana.
— Podem ser tão específicos assim? — Milosevic indagou.
Brogan confirmou com a cabeça novamente.
— Liguei para eles — disse. — Afirmaram que o sedimento na parte
interna dos para-lamas pertence a um local específico. Tem algo a ver com
rochas muito antigas serem raspadas de geleiras há aproximadamente um
milhão de anos e se depositado mais próximas da superfície do que o
normal, toda misturada com a rocha comum, que é ainda muito antiga,
porém mais nova do que a rocha milenar, entende? Um tipo específico de
mistura. Perguntei a eles como podem estar tão certos. Disseram que apenas
a reconhecem, como eu reconheceria minha mãe a vinte metros de distância
na calçada. Disseram que pertenciam a vales glaciais, no canto noroeste de
Montana, onde as grandes geleiras antigas rolavam morro abaixo vindas do
Canadá. E tinha algum tipo de arenito triturado lá dentro, muito diferente,
porém é isso que o Serviço Florestal espalha nas trilhas lá em cima.
— Certo — McGrath elogiou. — Então os caras ficaram dois anos em
Montana. Mas será que realmente voltaram para lá?
Brogan segurou no ar a terceira das suas quatro pilhas de papéis.
Desdobrou um mapa. E sorriu pela primeira vez desde a segunda-feira.
— Pode apostar seu rabo que voltaram — ele garantiu. — Olhe o
mapa. Uma rota direta entre Chicago e o lado mais distante de Montana
passa pela Dakota do Norte, certo? Algum velho fazendeiro lá de cima
estava caminhando à toa esta manhã. E adivinha o que ele encontrou numa
vala?
— O quê? — McGrath perguntou.
— Um presunto — Brogan disse. — Numa vala, região de criação de
cavalos, a quilômetros de qualquer lugar. Então, claro que o fazendeiro
chamou a polícia, os tiras tiraram as impressões do cadáver, o computador
achou um nome.
— Que nome? — McGrath perguntou.
— Peter Wayne Bell — Brogan respondeu. — O cara que dirigiu o
carro que levou Holly embora.
— Tá morto?!? — McGrath se espantou. — Mas como?
— Não sei como — Brogan respondeu. — Talvez por algum tipo de
desentendimento? O cérebro do tal de Bell habitava era a cueca dele. Tem
histórico, certo? Talvez tenha tentado traçar a Holly, e ela acabou com a
raça dele. Mas ponha uma régua no mapa e dê uma olhada. Estavam
voltando para Montana. Com toda a certeza mesmo. Mesmo.
— Voltando? — McGrath questionou. — Não numa caminhonete
branca.
— Sim, num furgão branco — Brogan retificou.
— O Econoline foi o único veículo que desapareceu — McGrath disse.
Brogan balançou a cabeça. Segurou no ar o quarto maço.
— Minha nova suposição — ele disse. — Eu chequei se Rubin havia
alugado um furgão.
— Quem? — McGrath indagou.
— Rubin é o dentista assassinado — Brogan esclareceu. — Eu chequei
se ele tinha alugado.
McGrath olhou para ele.
— Por que a porra de um dentista ia alugar uma caminhonete? —
perguntou.
— Ele não alugou — Brogan disse. — Calculei que talvez os caras
tivessem alugado o furgão com um cartão de crédito do sujeito depois que o
capturaram. Faz muito sentido. Por que arriscar roubar um veículo se é
possível alugar um com um cartão roubado da carteira cheia de cartões de
crédito, uma carteira de habilitação e assim por diante? Então, fiz umas
ligações. Não deu outra. A Chicago-You-Drive, uma locadora da Zona Sul,
alugou um Econoline para um tal de Dr. Rubin, na segunda-feira de manhã,
às nove horas. Perguntei a eles se a foto na habilitação batia com a do cara?
Disseram que nunca olham. Contanto que o cartão de crédito passe na
máquina, estão pouco se lixando. Perguntei a eles a cor. Disseram que todas
as suas caminhonetes são brancas. Perguntei se tinha um letreiro na lateral.
Disseram que sim, Chicago-You-Drive, letras verdes, na altura dos olhos.
McGrath acenou com a cabeça.
— Vou ligar imediatamente para Harland Webster — ele disse. — Vou
precisar ir para Montana.

— Vá para a Dakota do Norte primeiro — Webster sugeriu.


— Por quê? — McGrath perguntou.
Houve uma pausa na linha.
— Um passo de cada vez — Webster disse. — A gente precisa
verificar esse negócio do Peter Wayne Bell. Então faremos uma parada na
Dakota do Norte primeiro, está bem?
— Tem certeza, chefe? — McGrath indagou.
— Trabalho paciente de base — Webster disse. — É isso que vai nos
ajudar a chegar lá. Trabalhe as pistas, está bem? Tem dado certo até agora.
Seu garoto, Brogan, fez um bom trabalho. Gosto do jeito que ele se impõe.
— Entendido, chefe — McGrath disse. — Até lá em Montana, certo?
— Não é bom sair às pressas por aí até que a gente saiba de algo —
Webster retrucou. — Como quem, onde e por quê. É isso que a gente
precisa saber, Mack.
— Sabemos quem e onde — ele disse. — Foi este tal de Beau Borken.
Em Montana. Está mais do que claro, certo?
Fez-se outra pausa na linha.
— Pode ser — Webster disse. — Mas... e quanto ao porquê?
McGrath segurou bruscamente o telefone com o ombro e acendeu o
cigarro seguinte.
— Não faço ideia — ele disse, relutante.
— Examinamos as fotos de rosto — Webster informou. — Eu as
enviei para a Unidade de Ciência Comportamental. Os psicólogos
examinaram.
— E? — McGrath perguntou.
— Incertezas — Webster respondeu. — O pessoal de lá é craque,
porém, o que dá para extrair apenas olhando para uma maldita fotografia?
— Chegaram a alguma conclusão? — McGrath perguntou.
— Algumas — Webster disse. — Acham que três dos caras fazem
parte do mesmo grupo e o grandalhão estava meio que separado. Os três
pareciam iguais. Você percebeu? O mesmo tipo físico, a mesma aparência,
os mesmos genes, talvez. Todos os três podem ser parentes. Esse tal de Bell
era da Califórnia. Mojave, certo? Beau Borken também. Estão convictos de
que os três são da mesma área. Todos têm pinta de ser da Costa Leste.
Porém o grandalhão é diferente. Roupas diferentes, postura diferente,
diferente fisicamente. Os antropólogos lá de Quantico pensam que ele pode
ser estrangeiro, pelo menos de pai, ou talvez da segunda geração. Cabelos
claros e olhos azuis, mas tem alguma coisa no seu rosto. Disseram que
talvez seja europeu. E ele é grande. Não de academia, apenas grande,
naturalmente.
— E o que tem isso? — McGrath perguntou. — Quais foram suas
conclusões?
— Talvez seja europeu — Webster disse. — Grandalhão, corpulento,
talvez do Leste, estão preocupados que possa ser algum tipo de terrorista.
Ou até um mercenário. Estão averiguando no exterior.
— Um terrorista? — McGrath perguntou. — Um mercenário? Mas por
quê?
— É aí que está o galho — Webster disse. — É a parte do porquê que
precisamos decifrar com exatidão. Se esse cara é realmente um terrorista,
qual é a finalidade? Quem recrutou quem? Quem é a força motriz neste
caso? A milícia de Borken o empregou para ajudá-los ou é o contrário? Será
que é ele que está no comando? Empregou a milícia de Borken para ter
gente da região nos Estados Unidos?
— Que diabos está acontecendo? — McGrath perguntou.
— Vou pegar o avião para O’Hare — Webster disse. — Vou assumir a
rotina a partir daqui, Mack. Um caso grande assim, tenho que fazer isso,
certo? O velhote espera isso.
— Que velhote? — McGrath perguntou com cara azeda.
— Qualquer um dos dois ou ambos — Webster respondeu.

Brogan pegou o carro e foi para O’Hare, no meio da noite, seis horas depois
da trapalhada com os mexicanos no furgão no Arizona. McGrath se sentou
ao lado dele no banco dianteiro, Milosevic no de trás. Ninguém falou nada.
Brogan estacionou o Ford do FBI na pista de tarmac[1] no complexo militar,
no interior da cerca rodeada de arame farpado. Sentaram-se no carro,
esperando o Lear do FBI que vinha de Andrews. Aterrissou depois de vinte
minutos. Eles o viram taxiar rapidamente em sua direção e então parar
bruscamente, iluminado pela luz ofuscante dos holofotes do aeroporto,
motores guinchando. A porta se abriu e a escada foi lançada para fora.
Harland Webster apareceu na abertura e olhou ao redor. Avistou-os e fez um
gesto para que se aproximassem. Um gesto enfático, urgente. Repetido duas
vezes.
Subiram para o interior do jatinho. A escada se dobrou para dentro e a
porta se fechou com um som de sucção atrás deles. Webster os conduziu
para a frente, para um grupo de assentos. Dois deles sentaram de um lado e
dois de outro a uma mesa pequena. Sentaram-se assim, McGrath e Brogan
de frente para Webster, com Milosevic ao seu lado. Colocaram os cintos de
segurança e o Lear começou a taxiar novamente. O avião virou, dando uma
guinada na pista de decolagem, e ficou no aguardo. Estremeceu, vibrou e
então se moveu para a frente, acelerou na longa pista antes de, subitamente,
decolar, inclinar-se para o noroeste e entrar numa barulhenta velocidade de
cruzeiro.
— Vamos lá, examinem minha teoria — Webster começou. — A filha
do chefão das Forças Armadas foi sequestrada por algum grupo terrorista,
com alguma participação estrangeira. Vão fazer exigências. Exigências com
algum tipo de dimensão militar.
McGrath discordou com a cabeça.
— Perdão, mas eu discordo totalmente — ele disse. — Como isso
poderia de alguma forma dar certo? Ele apenas seria substituído.
Reservistas dispostos a sentar suas bundonas gordas no Pentágono é o que
não falta.
Brogan concordou cautelosamente com a cabeça.
— Tem razão, chefe — ele disse. — Essa é uma proposição inviável.
Webster devolveu o meneio de cabeça.
— É verdade — teve que concordar. — Então, o que nos resta?
Ninguém respondeu. Ninguém quis dizer as palavras.

O Lear perseguiu o fulgor do sol que se punha no oeste e aterrissou em


Fargo, na Dakota do Norte. Um agente especial do escritório de Mineápolis
os aguardava com um carro. Não ficou intimidado com Brogan ou
Milosevic e era orgulhoso demais para demonstrar que o superintendente de
Chicago o havia impressionado tampouco. Porém estava muito tenso em
relação ao encontro com Harland Webster. Tenso e determinado a mostrar a
ele que não estava para brincadeira.
— Já encontramos o esconderijo deles, senhor — o cara disse. —
Usaram na noite passada e se mandaram. Está mais do que óbvio. Cerca de
um quilômetro de onde o corpo foi encontrado.
Ele os levou de carro rumo ao noroeste, duas horas de silêncio tenso e
lúgubre à medida que o carro rastejava como uma larva através de
imensidões infindáveis de plantações de cevada e trigo, feijão e aveia.
Então virou bruscamente para a direita e seus faróis mostraram uma
paisagem com pastagens infindáveis e céu cinza-escuro. O sol se pusera no
oeste. O agente local pegou uma curva atrás da outra e parou próximo a
cerca de um rancho. A cerca desaparecia mais à frente na escuridão, mas os
faróis mostraram faixas amarelas de não ultrapasse presas no meio de duas
árvores e uma viatura junto com um furgão do legista, que esperava a uns
vinte metros de distância.
— O corpo foi encontrado aqui — o local apontou.
Ele estava com uma lanterna. Não havia muita coisa a ser vista.
Apenas uma vala entre o asfalto e a cerca, coberta de grama, toda calcada
num trecho de dez metros. O corpo não estava mais lá, porém o médico-
legista aguardava com os detalhes.
— Muito esquisito — o legista disse. — O cara foi asfixiado. Com
toda certeza. Foi sufocado, empurrado com a cara para baixo em algo
macio. Petéquias cobrem todo o rosto e os olhos. Pontos de hemorragia,
resultado de asfixia.
McGrath deu de ombros.
— O que tem de esquisito nisso? — ele quis saber. — Eu mesmo
sufocaria o filho da puta, se me dessem a oportunidade.
— Antes e depois — o médico disse. — Violência extrema antes do
ato. Parece-me que o cara foi empurrado violentamente contra uma parede,
talvez a lateral de uma caminhonete. A parte de trás do seu crânio foi
rachada e quebraram três ossos das costas. Aí foi chutado na barriga. O
intestino está uma bagunça só. Chacoalhando para todo lado lá dentro.
Violência extrema, força impressionante. Quem quer que tenha feito isso...
eu não gostaria que ele ficasse com raiva de mim, com toda a certeza
mesmo.
— E depois? — McGrath perguntou.
— O corpo foi movido — o legista disse. — O padrão de hipóstase
está todo desarrumado. Como se alguém tivesse batido no cara, sufocado,
deixado num canto por uma hora, depois mudado de ideia e movido o
cadáver para cá e jogado fora.
Webster, McGrath e Brogan balançaram a cabeça. Milosevic olhou
fixamente vala abaixo. Reagruparam-se no acostamento e ficaram olhando
a vasta paisagem escura por um bom tempo, e então se voltaram juntos para
o carro.
— Obrigado, doutor — Webster disse vagamente. — Bom trabalho.
O médico meneou a cabeça. As portas do carro bateram. O agente
local começou a subir e depois continuou a seguir a estrada, rumo ao oeste,
na direção de onde o sol havia se posto.
— O grandalhão é quem dá as ordens — Webster arriscou. — É óbvio,
não é? Contratou os três caras para fazer o trabalho. Peter Wayne Bell saiu
da linha. Começou a mexer com Holly. Uma mulher desamparada e
incapacitada, jovem e bonita, muita tentação para um animal como ele,
certo?
— Perfeito — Brogan disse. — Só que o grandalhão é um profissional.
Mercenário, terrorista ou algo assim. Molestar a prisioneira não fazia parte
da estratégia. Então, ele ficou puto e apagou o Bell. Impondo algum tipo da
disciplina na gangue.
Webster concordou com a cabeça.
— Exatamente — ele disse. — Apenas o grandalhão podia fazer isso.
Por um lado, porque é o chefe, consequentemente tem a autoridade e, por
outro lado, porque é fisicamente poderoso o bastante para infligir tanto
dano assim.
— Protegendo ela? — McGrath sugeriu.
— Não. Protegendo o investimento — Webster retrucou com cara
azeda.
— Então, talvez ela ainda esteja bem — McGrath soltou.
Ninguém respondeu. O carro fez uma curva fechada para a esquerda
depois de um quilômetro e seguiu por uma trilha íngreme. Os feixes de luz
dos faróis dianteiros saltaram sobre um conjunto pequeno de prédios de
madeira.
— Aqui foi o ponto de parada deles — o local disse. — É uma velha
fazenda de criação de cavalos, um haras.
— Habitada? — McGrath perguntou.
— Até ontem — o cara disse. — Nenhum sinal de vida hoje.
Ele parou na frente do estábulo. Os cinco homens saíram na escuridão.
A porta do estábulo estava aberta. O local esperou ao lado do carro e
Webster, McGrath, Brogan e Milosevic entraram. Fizeram uma busca com
suas lanternas. Estava escuro e úmido. Chão de paralelepípedos, verde de
tanto musgo. Baias de cavalos de ambos os lados. Entraram. Seguiram a
coxia até o final. A baia à direita havia sido salpicada com um tiro de
espingarda. A parede dos fundos tinha praticamente se desintegrado. As
tábuas tinham caído para o lado de fora. Lascas de madeira jaziam em todas
as direções em pedaços devido ao apodrecimento.
A baia no final, à esquerda, tinha um colchão. Colocado em ângulo nos
paralelepípedos musgosos. Havia uma corrente presa num aro de ferro na
parede dos fundos. O aro havia sido colocado lá cem anos atrás para
prender um cavalo com uma corda. Mas na noite passada tinha prendido
uma mulher, acorrentada pelo pulso. Webster se abaixou e apareceu com a
algema cromada brilhante, presa num dos elos da corrente. Brogan se
ajoelhou e catou fios de cabelos escuros e longos do colchão. Então voltou
a se reunir com Milosevic e vasculharam as outras baias, uma de cada vez.
McGrath olhou fixamente para elas. Então andou para fora do estábulo.
Voltou-se para o oeste e olhou fixamente para o ponto onde o sol tinha se
posto no horizonte. Ficou parado, vislumbrando fixamente a escuridão
infinita naquela direção, como se, se olhasse fixamente por tempo suficiente
e com muita intensidade, poderia focalizar a oitocentos quilômetros de
distância e ver Holly.
23

NINGUÉM ACHARIA HOLLY. ELA SE ENCONTRAVA sozinha,


trancada numa espécie de cela construída especialmente para ela. Havia
sido tirada da clareira na floresta por quatro mulheres que, em nenhum
momento, sequer abriram a boca, trajando fardas verde-oliva, camuflagens
noturnas manchavam seus rostos, armas automáticas a tiracolo, saquinhos
com mais munição tiniam e chacoalhavam em seus cintos. Elas a haviam
separado de Reacher e arrastaram a prisioneira no escuro para o outro lado
da clareira, em meio às árvores, atravessando um corredor polonês de gente
assobiando, cuspindo e xingando. E, depois, um quilômetro e meio de medo
por um trajeto rochoso. Saíram da floresta novamente e se dirigiram para o
grande prédio branco. Não haviam falado com ela. Apenas a fizeram
marchar para dentro e a empurraram escada acima até o segundo andar.
Haviam aberto a porta, nova e resistente, e a empurrado um degrau acima
para dentro do quarto. O degrau tinha mais de trinta centímetros de altura
porque o assoalho no interior fora construído mais alto do que o chão no
corredor do lado de fora. Ela subiu o degrau, arrastou-se para dentro e ouviu
a porta bater e a chave girar bem forte atrás de si.
Não havia janelas. Uma lâmpada no teto dentro de um aramado
iluminava a cela com uma luz amarelada, vívida e quente. Todas as quatro
paredes, o assoalho e o teto, inacabados, foram feitos de tábuas novas de
pinho, cheirando a madeira fresca. Na extremidade mais distante havia uma
cama. Tinha uma armação simples de ferro e um colchão fino surrado.
Como uma cama de campanha ou um catre de prisão. Sobre ela havia dois
conjuntos de roupas. Dois pares de calças de farda e duas camisas. Verde-
oliva, iguais às que as quatro mulheres mudas usavam. Mancou até a cama
e tocou nelas. Velhas e gastas, mas limpas. Bem passadas. Os vincos nas
calças eram como lâminas.
Ela se voltou e inspecionou o quarto minuciosamente. Não era
minúsculo. Talvez seis metros quadrados. Mas percebeu que era menor do
que deveria. As proporções eram estranhas. Tinha observado o assoalho
elevado. Era uns trinta centímetros mais alto. Calculava que as paredes e o
teto deveriam ser iguais. Coxeou até a parede e bateu nas tábuas novas. Um
som oco, estava vazia por trás. Alguém tinha construído um puxadinho
simples de madeira bem dentro de uma sala maior. E tinham construído
com afinco. As tábuas novas estavam bem unidas e niveladas. Mas havia
umidade nas microrranhuras entre elas. Olhou fixamente para a umidade e
cheirou o ar. Sentiu um arrepio. O quarto cheirava a morte.
Uma das paredes era um muro. Havia uma porta numa divisória
diagonal. Mancou até ela e a abriu. Um banheiro. Uma privada e uma pia.
Uma lata de lixo com um saco plástico novo. E um chuveiro sobre uma
banheira. Louça branca barata, porém novinha em folha. Instalada com
cuidado. Azulejo bonito. Sabonete e xampu na prateleira. Inclinou-se no
alisar da porta e fitou o chuveiro. Olhou fixamente para ele por muito
tempo. Então tirou seu terninho Armani imundo com um sacudir de
ombros. Embolou-o e jogou-o na lata de lixo. Ligou o chuveiro e entrou sob
a corrente de água. Lavou o cabelo três vezes. Esfregou o corpo dolorido
por toda a parte. Ficou no chuveiro praticamente uma hora.
Depois, mancou de volta até a cama e selecionou um jogo de fardas.
Serviram perfeitamente. Deitou-se na cama e fitou o teto de pinho, atenta ao
silêncio. Pela primeira vez em mais de sessenta horas estava completamente
sozinha.

Reacher não estava. Ficou na clareira da floresta. A seis metros do


Econoline branco, acorrentado a um pinheiro, vigiado por seis homens
silenciosos e suas metralhadoras. Os cachorros corriam livres pela clareira.
Reacher se encurvava na casca áspera, esperando, observando seus guardas.
Estava com frio. Podia sentir o látex do pinheiro grudar em sua camisa fina.
Os guardas eram cautelosos. Formavam uma fila a dois metros dele, com as
armas apontadas, o branco dos olhos brilhava, contrastando com os rostos
enegrecidos. Vestiam as mesmas fardas. Reacher viu algum tipo de insígnia
semicircular nos ombros. Mas estava escuro demais para que conseguisse
ler.
Os seis homens estavam na casa dos quarenta anos de idade. Eram
magros e barbudos. Pareciam confortáveis com as armas. Alertas.
Silenciosos. Acostumados ao serviço noturno. Reacher notou isso. Pareciam
sobreviventes de um pequeno pelotão de infantaria. Como se tivessem
entrado na floresta em patrulha noturna vinte anos atrás como jovens
recrutas e nunca mais tivessem saído.
Ficaram em posição de sentido ao som de passos se aproximando atrás
deles. Os sons eram grotescamente altos, em contraste com a noite parada.
Botas esmagaram o cascalho, e então surgiram coronhas. Reacher olhou de
relance para a clareira e viu um sétimo homem se aproximando. Mais
jovem, talvez com trinta e cinco anos. Alto, sem barba, nenhuma
camuflagem no rosto, farda viçosa, botas brilhantes. As mesmas insígnias
semicirculares no ombro. Algum tipo de oficial.
Os seis soldados rasos deram um passo para trás, bateram continência
e o cara mais novo se moveu, triturando o cascalho, e ficou cara a cara com
Reacher. Tirou um maço de cigarros do bolso e um cigarro do maço.
Acendeu-o e manteve o isqueiro aceso para iluminar o rosto de Reacher.
Fitou-o através da chama bruxuleante com um olhar inexpressivo. Reacher
o encarou de volta. O sujeito tinha a cabeça pequena em relação aos
ombros, largos, um rosto feio e magro, com rugas e fissuras prematuras,
como que provocadas por uma vida miserável. Na sombra grosseira da
chama, parecia que não tinha lábios. Apenas um risco no lugar da boca.
Olhos frios, marcantes sob a pele fina, se esticavam sobre sua testa. Corte
de cabelo militar, feito talvez uma semana atrás, crescendo de novo. Olhou
fixamente para Reacher e deixou a chama se apagar. Passou a mão no couro
cabeludo. No ar parado da noite, Reacher pôde ouvir o grosar alto dos
fiapos de cabelo quando ele passou a palma da mão.
— Dell Fowler — o cara se apresentou. — Chefe do Estado-Maior.
Voz baixa. Da Costa Oeste. Reacher retribuiu o olhar e balançou a
cabeça, lentamente.
— Poderia me dizer de qual Estado-Maior você é chefe? — perguntou.
— Loder não explicou? — o cara chamado Fowler indagou.
— Loder não explicou nada — Reacher disse. — Já teve um trabalhão
danado apenas trazendo a gente aqui.
Fowler balançou a cabeça concordando e deu um sorriso gélido.
— Loder é um idiota — ele disse. — Cometeu cinco erros graves.
Você é um deles. Ele está com merda até o nariz agora. E você também.
Gesticulou para um dos guardas. O guarda deu um passo para a frente
e lhe entregou uma chave do seu bolso. O guarda ficou com a arma em
prontidão e Fowler abriu a corrente de Reacher. Ela desceu tinindo pelo
tronco da árvore até o chão. Metal em madeira, um som alto na noite da
floresta. Um cachorro se aproximou e farejou. Pessoas se moveram nas
árvores. Reacher se afastou do tronco e friccionou o antebraço para ter de
volta um pouco de circulação. Todos os seis guardas deram um passo
adiante. As armas voltaram à posição de prontidão. Reacher vigiou os
canos, Fowler pegou o braço dele e girou. Algemou suas mãos novamente,
atrás das costas. Fez um sinal com a cabeça. Dois guardas desapareceram
nas árvores. Um terceiro enfiou o cano da arma nas costas de Reacher. Um
quarto se posicionou na sua retaguarda. Dois andaram para a frente. Fowler
ficou ao lado de Reacher e pegou seu cotovelo. Guiou-o para o outro lado,
na direção de uma pequena cabana de madeira, no lado oposto da clareira.
Sem as árvores, o luar era mais brilhante. Reacher conseguiu decifrar a
escrita na insígnia do ombro de Fowler. Estava escrito: Milícia de Montana.
— Estamos em Montana? — ele perguntou. — É que Loder chamou
de país novinho em folha.
Fowler deu de ombros ao andar.
— Ele foi precipitado — disse. — Neste exato momento, ainda é
Montana.
Chegaram até a cabana. Os homens adiante abriram a porta. Uma luz
amarela se espalhou pela escuridão. O guarda com a arma nas costas de
Reacher a usou para empurrá-lo para dentro. Loder estava de pé, encostado
numa parede mais além. As mãos algemadas às costas. Estava sendo
vigiado por outro homem, magro e barbudo, com uma metralhadora. Um
cara um pouco mais jovem do que os outros soldados rasos, a barba mais
arrumada. Uma cicatriz roxa atravessava lateralmente sua testa.
Fowler rodeou e se sentou atrás de uma mesa simples. Apontou para
uma cadeira. Reacher se sentou, algemado, seis soldados atrás dele. Fowler
o observou se sentar e transferiu a atenção para Loder. Reacher seguiu seu
olhar. A primeira vez que tinha visto Loder, na segunda-feira, percebera
certo grau de serena competência, olhar duro, compostura. Tudo aquilo
tinha acabado. Ele tremia de medo. Suas algemas chacoalhavam atrás de si.
Reacher o observou e pensou: Este cara está se cagando de medo dos seus
chefes.
— Então, meu amigo... cinco erros, não é? — Fowler disse.
Sua voz ainda estava baixa. E confiante. Tranquila. A voz confiante e
tranquila de uma pessoa muito segura do poder que detinha. Reacher ouviu
a voz morrer no silêncio e escutou o rangido de botas na madeira atrás de si.
— Fiz o melhor que pude — Loder disse. — Ela está aqui, não está?
Sua voz era suplicante e angustiada. A voz de um homem que sabe que
está com merda até o nariz sem realmente entender exatamente por quê.
— Ela está aqui, não está? — disse novamente.
— Por um milagre — Fowler respondeu rigidamente. — Você causou
muito estresse em outras partes. Tiveram muito trabalho para encobrir sua
incompetência.
— O que eu fiz de errado, meu Deus? — Loder perguntou.
Ele se afastou da parede, mãos algemadas às costas, e se moveu para o
campo visual de Reacher. Olhou desesperado para ele, como se estivesse
pedindo um testemunho favorável.
— Cinco erros — Fowler disse novamente. — Um, você queimou a
picape, e dois, queimou o carro. Deu muito na cara. Por que não colocou
um anúncio na porra do jornal, meu filho?
Loder não respondeu. Sua boca estava se mexendo, mas nenhum som
saía.
— Três, você pegou este cara — Fowler apontou.
Loder olhou de relance para Reacher novamente e balançou a cabeça
vigorosamente.
— Este cara não é ninguém — ele disse. — Ninguém está atrás dele.
— Mesmo assim. Você devia ter esperado — Fowler o repreendeu. —
E, quatro, você perdeu o Peter. O que exatamente aconteceu com ele?
Loder deu de ombros novamente.
— Juro que não sei — ele respondeu.
— Entrou em pânico — Fowler sugeriu. — Você estava cometendo
tantos erros que ele entrou em pânico e saiu correndo. Foi isso que
aconteceu. Você tem outra explicação?
Loder apenas ficou olhando fixamente, sem expressão.
— E, cinco, você foi matar a porra do dentista — Fowler disse. — Não
vão deixar barato, sabia? Isto deveria ser uma operação militar, certo?
Política! Você adicionou um fator extra aí.
— Que dentista? — Reacher perguntou.
Fowler olhou de relance para ele e deu um sorriso desprovido de
lábios, indulgente, como se Reacher fosse uma plateia que poderia usar para
humilhar Loder um pouco mais.
— Roubaram o carro de um dentista — contou. — O cara pegou eles
no flagra. Deveriam ter esperado até que a barra estivesse limpa.
— Ele tentou atrapalhar — Loder disse. — A gente não podia trazer
ele com a gente, né?
— Ué, você me trouxe... — Reacher zombou.
Loder o fitou como se ele fosse retardado.
— O cara era judeu — ele disse. — Aqui não é lugar de judeu.
Reacher olhou de relance em torno da sala. Olhou para as insígnias nos
ombros. Milícia de Montana, milícia de Montana e milícia de Montana.
Concordou com a cabeça lentamente. Um país novinho em folha.
— Para onde levaram Holly? — perguntou a Fowler.
Fowler o ignorou. Ainda estava lidando com Loder.
— Você será julgado amanhã — avisou. — Um julgamento especial. O
Comandante o presidirá. A acusação é periclitar a missão. Eu serei o
promotor.
— Onde está Holly? — Reacher perguntou pela segunda vez.
Fowler deu de ombros. Um olhar de quem está pouco se lixando.
— Por perto — ele disse. — Não se preocupe com ela.
Então ergueu os olhos por cima da cabeça de Reacher e ordenou aos
guardas:
— Ponham Loder no chão.
O miliciano não ofereceu nenhuma resistência. Apenas deixou o cara
mais jovem com a cicatriz mantê-lo em pé. O guarda mais próximo inverteu
seu rifle e enfiou a coronha na boca do estômago do sujeito. Reacher ouviu
o ar escapar dele. O cara mais jovem deixou ele cair e o pisou com esmero.
Caminhou para fora da cabana, sozinho, dever cumprido. A porta bateu
ruidosamente atrás dele. Então Fowler se voltou novamente para Reacher.
— Agora vamos falar de você.
Sua voz ainda estava baixa. Baixa e confiante. Firme. Mas não era
difícil ser firme enfurnado no meio do nada com seis subordinados
armados, cercando um homem algemado numa cadeira. Um homem
algemado que havia acabado de testemunhar uma demonstração covarde de
poder e brutalidade. Reacher deu de ombros.
— O que tem eu? — ele disse. — Você sabe meu nome. Eu contei a
Loder. Na certa, ele contou pra você. Ele acertou pelo menos isso? Não tem
muito mais coisa a dizer sobre o assunto.
Fez-se silêncio. Fowler refletiu um pouco. Concordou com a cabeça.
— Esta é uma decisão para o Comandante — ele concluiu.
Foi o chuveiro que a convenceu. Baseou suas conclusões nele. Uma boa
conclusão e outra péssima. Um banheiro novinho em folha, simples, mas
equipado com algum cuidado, do jeito que equiparia uma solteirona,
orgulhosa de sua casa, mas passando dificuldades financeiras, morando
num parque de trailers. Esse banheiro dizia muito a Holly.
Significava que ela era uma refém, que ficaria presa por muito tempo,
só que com certos luxos. Por causa do valor que representava em algum
tipo de troca, não poderia haver nenhuma dúvida sobre seu conforto
rotineiro ou segurança. Esses fatores deveriam ser removidos da
negociação. Deveriam ser considerados como concedidos. Ela seria uma
prisioneira de status elevado. Por causa do tal valor. Por causa de quem era.
Mas não por causa de quem ela era de fato. Por causa de quem seu pai
era. Por causa das ligações que tinha, ela deveria se sentar neste quarto
angustiante, impregnado de medo, e ser a filhinha de alguém. Sentar-se e
esperar enquanto calculavam seu valor, de um jeito e de outro. Enquanto as
pessoas reagiam à sua situação, ela deveria se sentir um pouco tranquilizada
pelo fato de ter um chuveiro só para si.
Saiu com cuidado da cama. Foda-se, pensou. Ela não ia ficar sentada
enquanto a usavam como moeda de troca. A raiva aumentou dentro de si.
Aumentou e ela a transformou numa determinação férrea. Coxeou até a
porta e tentou abrir a maçaneta pela vigésima vez. Então ouviu passos nas
escadas. Aproximando-se ruidosamente no corredor. Pararam à sua porta.
Uma chave girou a fechadura. A maçaneta se moveu contra sua mão. Ela
deu um passo para trás e a porta foi aberta.
Reacher foi empurrado para dentro do quarto. Um borrão de figuras
camufladas atrás dele. Empurraram-no pela porta e a fecharam com um
baque. Ela a ouviu ser trancada e os passos se afastaram pesadamente.
Reacher foi deixado lá, olhando ao redor.
— Parece que teremos que rachar — brincou.
Ela olhou para ele.
— Esperavam somente um hóspede — ele acrescentou.
Ela não respondeu. Apenas observou seus olhos examinando todo o
quarto. Passaram rapidamente pelas paredes, chão, teto. Ele se voltou e
olhou de relance para o banheiro. Meneou a cabeça. Voltou-se para ela,
esperando um comentário. Ela estava fazendo uma pausa, refletindo sobre o
que dizer e como dizer.
— Só tem uma cama — ela disse por fim.
Queria fazer as palavras significarem muito mais. Tentou transformá-
las num longo discurso. Como um argumento minuciosamente raciocinado.
Tentou dar significado às palavras: Tudo bem, no furgão, fomos muito
íntimos. A gente se beijou. Tudo bem. Duas vezes. A primeira vez, apenas
aconteceu. A segunda, eu pedi a você, porque eu buscava conforto e
segurança. Mas agora estamos separados há uma ou duas horas. Tempo
suficiente para que eu começasse a me sentir um pouco boba pelo que
fizemos. Ela tentou fazer as quatro palavras dizerem tudo isso, enquanto
observava seus olhos, buscando uma reação.
— Você tem outra pessoa, certo? — ele perguntou.
Ela viu que ele disse isso como uma piada, como uma fala
inconsequente, para lhe mostrar que concordava com ela, que entendia,
como uma maneira de deixar que os dois tirassem o corpo fora, sem deixar
a situação ficar pesada. Mas ela não sorriu para ele. Em vez disso, viu-se
balançando a cabeça em concordância.
— Sim, tenho alguém — revelou. — O que posso dizer? Se eu não
tivesse, talvez fosse querer rachar.
Ela pensou: Ele parece desapontado.
— De fato, eu provavelmente ia querer — ela completou. — Mas
tenho uma pessoa, sinto muito. Não seria uma boa ideia.
O desapontamento transparecia no rosto e ela sentiu que precisava
dizer mais:
— Sinto muito — disse novamente. — Não é que eu não queira.
Ela o observou. Ele apenas deu de ombros. Ela viu que ele estava
pensando: Não vou morrer por causa disso. E depois pensou: Mas vou
sofrer. Ela ficou vermelha. Sentiu-se absurdamente satisfeita. Mas pronta
para mudar de assunto.
— O que está de fato acontecendo aqui? — ela perguntou. — Falaram
alguma coisa pra você?
— Quem é o sortudo? — Reacher perguntou.
— Apenas alguém — ela respondeu. — O que está acontecendo aqui?
Os olhos dele se anuviaram. Ele olhou direto para ela.
— Bota sortudo nisso — ele insistiu.
— E ele nem sabe — ela disse.
— Que você sumiu? — ele perguntou.
Ela negou com a cabeça.
— Que eu sinto isso por ele — ela disse.
Ele olhou fixamente para ela. Não respondeu. Fez-se um longo
silêncio no quarto. Então ela ouviu passos apressados novamente lá fora do
prédio. Entraram ruidosamente. Subiram a escada. Pararam no lado de fora
da porta. A chave deslizou na fechadura. A porta se abriu. Seis guardas
entraram com espalhafato, todos com metralhadoras. Ela deu um passo
dolorido para trás. Eles a ignoraram completamente.
— O Comandante está pronto para você, Reacher — o líder disse.
Sinalizou para que ficasse de costas. Colocou as algemas nele com um
estalo. Apertou-as bem forte. Empurrou-o com o cano da arma até a porta e
depois para o corredor. A porta bateu e foi trancada atrás do bando de
homens.

Fowler tirou os fones de ouvido e parou o gravador.


— Alguma coisa? — o Comandante perguntou.
— Não — Fowler respondeu. — Ela disse que tinha só uma cama, e
pareceu enfezada, como se ele quisesse transar com ela. Aí, ela disse que
tinha um namorado.
— Namorado? — o Comandante estranhou. — Ela disse quem era?
Fowler negou com a cabeça.
— Está funcionando bem? — o Comandante perguntou.
— Límpido como uma orquestra — Fowler garantiu.

Reacher foi empurrado enquanto desciam a escada de volta para o exterior,


noite adentro. Devolvido ao lugar de onde viera, um bom quilômetro
subindo o trajeto rochoso. O líder agarrava seu cotovelo e o guiava aos
empurrões. Estavam apressados. Quase correndo. Usavam o cano das armas
como varas eletrificadas de conduzir gado. Cobriram a distância em quinze
minutos. Atravessaram ruidosamente a clareira até a pequena cabana de
madeira. Reacher foi empurrado rudemente para dentro.
Loder ainda estava no chão. Mas havia alguém novo sentado à rústica
mesa de madeira. O Comandante. Reacher tinha certeza absoluta disso. Era
uma figura extraordinária. Talvez com um metro e noventa de altura,
provavelmente cento e oitenta quilos. Talvez trinta e cinco anos de idade,
muito cabelo, tão louro que era quase branco, cortado curto nos lados e
penteado bem para trás, como um estudante alemão do primário. Rosto liso
e rosado, muito inchado devido ao seu porte, manchas brilhantes vermelhas
do tamanho de uma moeda das grandes ardendo bem alto nas bochechas.
Olhos incolores minúsculos, apenas uma fresta entre as bochechas e as
sobrancelhas brancas. Lábios vermelhos bem úmidos se franziam acima de
um queixo forte o bastante para manter a forma diante de tanta banha.
Usava um largo uniforme preto. Uma camisa preta imaculada, corte
das Forças Armadas, nenhum emblema, a não ser por um par das mesmas
insígnias nos ombros que todos usavam. Um cinto de couro largo, brilhando
como um espelho. Calças pretas viçosas de equitação, alargadas na parte
superior, enfiadas nas botas pretas altas, que em matéria de brilho
combinavam com o cinto.
— Entre e sente — ele disse quase murmurando.
Reacher foi empurrado para a cadeira que já havia ocupado. Sentou-se
com as mãos atrás das costas. Os guardas, em rígida posição de sentido em
todas as direções, não ousavam respirar, apenas olhavam fixamente, sem
expressão, para o espaço.
— Eu sou Beau Borken — o homem enorme disse. — Quem manda
aqui sou eu.
Sua voz era aguda. Reacher encarou o sujeito e sentiu algum tipo de
aura que irradiava dele, como um fulgor. O fulgor do poder absoluto.
— Eu tenho que tomar uma decisão — Borken disse. — Eu preciso
que me ajude a tomá-la.
Reacher percebeu que estava desviando os olhos do cara. Como se o
fulgor fosse irresistível. Forçou-se a girar a cabeça bem devagar e encarar
diretamente o grande rosto branquelo.
— Que decisão? — perguntou.
— Se você deve viver — Borken disse. — Ou se deve morrer.

Holly puxou o painel lateral da banheira para fora. Tinha ouvido falar de
encanadores que deixavam coisas sob a banheira, fora da vista, atrás do
painel. Pedaços cortados de tubulação, restos de madeira, até mesmo
ferramentas. Lâminas usadas, uma chave inglesa esquecida. Coisas que
poderiam se mostrar úteis. Tinha encontrado todo tipo de coisa em alguns
apartamentos onde morara. Mas ali não havia nada. Ela se deitou, apalpou
as reentrâncias bem no fundo e não achou nada mesmo.
E o chão era totalmente sólido em toda a extensão embaixo das
instalações. O encanamento passava por orifícios apertados. Foi um
trabalho de craque. Era possível que pudesse forçar uma alavanca para
baixo, ao lado da tubulação grande que saía da privada. Se tivesse um pé de
cabra para afrouxar uma tábua. Mas não havia nenhum pé de cabra no
quarto. Muito menos algo que se equivalesse. O suporte de toalhas era de
plástico. Iria se dobrar e quebrar. Não havia mais nada. Sentou-se no chão e
sentiu o desapontamento invadi-la. Então ouviu passos do lado de fora da
porta.
Dessa vez eram leves. Abafados, e não barulhentos. Alguém se
aproximando, em silêncio e cautelosamente. Alguém que não vinha tratar
de algo oficial. Ela se levantou lentamente. Saiu do banheiro e puxou a
porta para esconder a parte desmontada. Mancou de volta para a cama
quando a fechadura estalou e a porta se abriu.
Um homem entrou no quarto. Era novinho, trajando roupa camuflada,
manchas pretas no rosto. Uma cicatriz vívida atravessava lateralmente sua
testa. Trazia uma metralhadora pendurada no ombro. Ele virou e fechou a
porta, bem de mansinho. Voltou-se com os dedos nos lábios.
Ela o fitou. Sentiu a raiva crescer. Dessa vez não estava acorrentada.
Dessa vez o cara ia morrer. Deu um sorriso nervoso diante de sua lógica. O
banheiro ia salvá-la. Era uma prisioneira de status elevado. Que deveria ser
mantida com dignidade e respeito. Alguém entrou afim de molestá-la e ela
o matou, não havia outra alternativa, não é?
Mas o cara com a cicatriz apenas manteve os dedos nos lábios e
apontou com a cabeça para o banheiro. Rastejou em silêncio até ela e
empurrou a porta. Gesticulou para que o seguisse. Ela mancou atrás dele.
Ele olhou de relance para baixo, para o painel lateral no chão, e fez sinal de
negativo com a cabeça. Esticou o braço para dentro e ligou o chuveiro.
Abriu o registro no máximo contra a banheira vazia.
— Eles têm microfones — o cara alertou. — Estão na escuta.
— Quem diabo é você? — ela perguntou.
Ele se abaixou e colocou o painel de volta na banheira.
— Não ia adiantar — ele disse. — Não tem saída.
— Tem que haver.
O sujeito negou com a cabeça.
— Fizeram um teste — ele contou. — O Comandante colocou aqui
dentro um dos caras que construíram este lugar. Disse a ele que se não
saísse arrancaria seus braços com uma serra elétrica. Então, imagino que ele
tentou com unhas e dentes.
— E o que aconteceu? — ela perguntou.
O sujeito deu de ombros.
— O Comandante usou a serra — ele respondeu.
— Quem diabo é você? — ela perguntou novamente.
— FBI — o sujeito disse. — Contraterrorismo. Agente infiltrado.
Acho que vou ter que tirar você daqui.
— Como? — ela perguntou.
— Amanhã — ele disse. — Eu posso conseguir um jipe. Vamos ter
que fugir. Não posso pedir ajuda porque estão fazendo uma varredura atrás
do meu transmissor. Vamos pegar o jipe, ir para o Sul e torcer pelo melhor.
— E como fica o Reacher? — ela perguntou. — Para onde levaram
ele?
— Esqueça ele — o sujeito disse. — Amanhã ele já vai estar morto.
Holly balançou a cabeça.
— Não vou sem ele — ela garantiu.

— Loder me desagradou — Beau Borken disse.


Reacher deu de ombros e olhou de relance para baixo. Loder havia se
virado até ficar sentado de lado, enfiado no canto, entre o assoalho e a
parede.
— Ele te desagradou?
Reacher não respondeu.
— Gostaria de chutar os cornos dele? — Borken voltou a perguntar.
Reacher manteve o silêncio. Podia ver aonde este joguinho ia chegar.
Se dissesse sim, iriam esperar que ele machucasse muito o sujeito. E ele não
tinha nada contra arrebentá-lo de porrada, a princípio, porém, preferiria
fazer isso à sua própria maneira. Caso ele dissesse não, Borken iria chamá-
lo de covarde, sem nenhum senso de justiça natural ou autorrespeito. Um
jogo óbvio que ele não tinha como ganhar. Por isso, ficou em silêncio. Uma
tática que havia usado mil vezes antes: quando em dúvida, fique de boca
fechada.
— A cabeça? — Borken perguntou. — O saco, talvez?
Loder mantinha o olhar erguido na direção de Reacher. Havia algo em
seu rosto. Reacher sabia o que era. Seus olhos se arregalavam de surpresa.
Loder estava implorando que ele lhe desse uns chutes, para que Borken não
o fizesse.
— Loder, deita aí de novo — Borken mandou.
Loder torceu os quadris para longe da parede e deixou os ombros
caírem no chão. Contorceu-se e se empurrou até ficar deitado de costas.
Borken fez sinal com a cabeça para o guarda mais próximo.
— Na cara — ele mandou.
O guarda se aproximou e usou a sola da bota para forçar a cabeça de
Loder a ficar lateralmente, com o rosto apontado para a sala. Então deu um
passo para trás e mandou um pontapé. Um golpe pesado, de bota pesada. A
cabeça de Loder foi atirada para trás e bateu na parede. O sangue jorrou do
nariz. Borken ficou observando-o sangrar por muito tempo, ligeiramente
interessado. Então se voltou de novo para Reacher.
— O Loder é um dos meus amigos mais antigos.
Reacher continuou calado.
— Duas perguntas já ficam respondidas, não é? — Borken disse. —
Pergunta número um: por que estou impondo uma disciplina tão rigorosa,
até mesmo contra meus velhos amigos? E a pergunta número dois: se é
assim que trato meus amigos, como, meu Deus, trato meus inimigos?
Reacher não disse nada. Quando em dúvida, mantenha a boca fechada.
— Trato meus inimigos mil vezes pior — Borken afirmou. — Muito
pior, nem queira saber. Nem queira mesmo, acredite em mim. E por que
estou sendo tão severo? Porque faltam dois dias para um momento único da
história. Vão acontecer coisas que mudarão o mundo. Os planos estão
prontos e as operações, em andamento. Consequentemente, eu tenho que
aumentar o nível do meu cuidado natural. Meu velho amigo Loder virou
vítima de uma força histórica. E temo que você também.
Reacher não disse nada. Apenas deixou cair o olhar para observar
Loder. Estava inconsciente. Respirando com esforço devido ao sangue que
já começava a coagular no nariz.
— Você tem algum valor para mim como refém? — Borken
perguntou.
Reacher refletiu um pouco. Não respondeu. Borken observou seu rosto
e sorriu. Seus lábios vermelhos se partiram sobre os pequenos dentes
brancos.
— Também acho que não — disse. — Então o que devo fazer com
uma pessoa que não tem nenhum valor para mim como refém? Durante um
momento de grande tensão histórica?
Reacher permaneceu em silêncio. Apenas observando. Movendo o
peso com cuidado para a frente. Preparado.
— Você pensa que vai levar uns chutes? — Borken perguntou.
Reacher enrijeceu as pernas, pronto para dar o bote.
— Relaxe — Borken disse. — Você não vai levar nenhum chute.
Quando chegar a hora, será uma simples bala na cabeça. Por trás. Eu não
sou burro, sabe. Tenho olhos e cérebro. Quantos metros você tem? Dois? E
uns cem quilos? É óbvio que está em forma e é forte. E olhe só para você,
tensão nas coxas, se preparando para dar o bote. Está na cara que foi
treinado, de certa forma. Mas você não é pugilista. Já que seu nariz nunca
foi quebrado. Um peso pesado como você, com o nariz inteiro, precisaria
ter um talento fenomenal e a gente teria visto sua foto nos jornais. Então
você é apenas um brigão, provavelmente serviu o exército, certo? Então, eu
serei cauteloso contigo. Nada de chutes, apenas uma simples bala na
cabeça.
Os guardas entenderam a dica. Seis rifles ficaram retos e seis dedos
engancharam em seis gatilhos.
— Tem alguma condenação por delito grave? — Borken perguntou.
Reacher deu de ombros e falou pela primeira vez.
— Não.
— Cidadão exemplar? — Borken perguntou.
Reacher deu de ombros novamente.
— Suponho que sim — disse.
Borken balançou a cabeça.
— Então vou pensar no teu caso — ele disse. — Seja para viver ou
morrer, vou informar a você, logo pela manhã, está bem?
Levantou o braço volumoso e estalou os dedos. Cinco dos seis guardas
se mexeram. Dois foram até a porta e a abriram. Um terceiro saiu no meio
deles. Os outros dois ficaram esperando. Borken se levantou, com uma
graça surpreendente para um homem do seu tamanho, e saiu de trás da
mesa. O chão de madeira rangeu diante do seu corpanzil. Os quatro guardas
no aguardo se puseram atrás dele e saiu noite adentro, sem olhar para trás.

Atravessou a clareira e entrou em outra cabana. Fowler o aguardava, fones


de ouvido na mão.
— Acho que alguém entrou lá — ele contou.
— Acha mesmo? — Borken se surpreendeu.
— O chuveiro foi ligado — Fowler disse. — Alguém que sabe sobre
os microfones entrou lá. Ela não precisaria de outra ducha. Havia acabado
de tomar uma, certo? Alguém entrou lá e ligou o chuveiro para camuflar o
papo.
— Quem? — Borken perguntou.
Fowler balançou a cabeça negativamente.
— Ainda não sei quem — ele disse. — Mas vou tentar descobrir.
Borken confirmou com a cabeça.
— Você não vai tentar — ele afirmou. — Vai descobrir.

Nas cabanas de alojamento, os homens e as mulheres trabalhavam no


escuro, limpando rifles. A notícia sobre Loder tinha circulado rapidamente.
Todo mundo sabia sobre o julgamento. Todos sabiam o provável veredicto.
Qualquer um podia ser selecionado para o pelotão de fuzilamento. Se é que
haveria um pelotão de fuzilamento. A maioria calculava que provavelmente
sim. Um oficial como Loder, o Comandante podia se satisfazer apenas com
um pelotão de fuzilamento. Provavelmente nada pior. Então limparam seus
rifles e os deixaram carregados e preparados ao lado das camas.
Os que eram do mal o bastante para estar no pelotão de castigo no dia
seguinte tentavam dormir um pouco. Se ele não se limitasse a um pelotão
de fuzilamento, poderiam ter um trabalhão. O velho trabalho sujo e
desagradável. E mesmo se Loder saísse ileso, ainda havia o outro sujeito. O
grandalhão que tinha vindo com a vagabunda federal. Não havia muita
chance de ele sobreviver além do café da manhã. Não conseguiam lembrar
a última vez que qualquer estranho desgarrado havia durado mais tempo
que isso.

Holly Johnson tinha uma regra. Uma regra incutida em seu cérebro como
um lema de família. Reforçada por seu longo treinamento em Quantico. Era
uma regra destilada dos milhares de anos de história militar e centenas de
anos de experiência em imposição da lei. A regra rezava: espere o melhor,
mas faça planos para o pior.
Ela não tinha nenhuma razão para não acreditar que estaria indo a toda
velocidade para o Sul, num jipe, logo que seu novo aliado conseguisse
providenciar um. Ele era treinado pelo FBI, assim como ela. Ela sabia que
se a situação fosse inversa ela o tiraria dessa, tranquilamente. Então, sabia
que podia se contentar em ficar esperando sentada. Mas não ia fazer isso.
Estava esperando o melhor, mas planejando para o pior.
Tinha desistido do banheiro. Por ali não havia saída. Agora, estava
examinando o próprio quarto, centímetro por centímetro. O madeiramento
novo de pinho estava bem pregado na moldura, todas as seis superfícies.
Isso a estava deixando louca. Tábuas de pinho de três centímetros, a
tecnologia mais antiga possível, usada há dez mil anos, e não havia como
atravessá-las. Pelo menos, uma mulher solitária sem nenhuma ferramenta.
Daria na mesma se fosse a lateral de um couraçado de guerra.
Então, se concentrou em encontrar ferramentas. Era como se estivesse
pessoalmente atravessando em alta velocidade o processo evolutivo de
Darvin. Os macacos desceram das árvores e fizeram ferramentas. Ela estava
se concentrando na cama. O colchão era inútil. Era uma coisa fina, batida,
nenhuma mola de metal no interior. Mas a armação da cama se mostrava
mais promissora. Aparafusada com tubos e discos de ferro. Se ela pudesse
desmontá-la, poderia pôr uma das braçadeiras de ângulo reto na
extremidade do tubo mais longo e transformá-lo num pé de cabra de dois
metros. Mas todos os parafusos foram cobertos de tinta. Tinha mãos fortes,
mas nem sonhava em tirá-los do lugar. Seus dedos apenas fizeram
arranhões e escorregaram com o suor.

Loder tinha sido arrastado para longe, e Reacher estava preso, sozinho, com
o último guarda remanescente do destacamento noturno. O guarda estava
sentado atrás da mesa rústica e apoiava sua arma no encosto da cadeira,
com a boca apontada diretamente para ele. As mãos de Reacher ainda
estavam algemadas por trás. Havia decisões a tomar. A primeira era que, de
jeito nenhum, ia ficar sentado a noite inteira daquele jeito. Olhou com
calma para o guarda, levantou-se cuidadosamente e deslizou as mãos para
baixo. Pressionou o peito contra as coxas e passou as mãos ao redor dos
pés. Então se sentou, inclinou-se para trás e forçou um sorriso, as mãos
juntas no colo.
— Braços longos — ele começou a rachar o gelo. — Útil.
O guarda concordou com a cabeça, lentamente. Tinha olhos pequenos
e penetrantes, plantados fundo num rosto estreito. Brilhavam em contraste
com a barba grande, através dos borrões de camuflagem, mas o lampejo
parecia inocente o bastante.
— Como é seu nome? — Reacher perguntou.
O sujeito hesitou. Trocou de posição no assento. Reacher notava que
algum tipo de cortesia natural instigava uma resposta. Mas o sujeito
precisava fazer considerações táticas óbvias. Reacher continuou a forçar o
sorriso.
— Eu sou Reacher — ele se apresentou. — Agora você sabe meu
nome. Você tem nome? Vamos ficar aqui a noite toda, podemos pelo menos
ser civilizados, não é verdade?
O sujeito concordou com a cabeça novamente, lentamente. Então deu
de ombros.
— Ray — ele disse.
— Ray? — Reacher questionou. — Esse é seu nome ou sobrenome?
— Sobrenome — o sujeito respondeu. — Joseph Ray.
Reacher balançou a cabeça.
— Certo, Sr. Ray — ele disse. — É um prazer conhecê-lo.
— Me chame de Joe — Joseph Ray devolveu.
Reacher forçou o sorriso mais uma vez. O gelo foi quebrado. Era como
um interrogatório. Reacher tinha feito isso mil vezes. Mas nunca deste lado
da mesa. Nunca quando era ele que estava usando as algemas.
— Joe, você vai ter que me dar uma mãozinha — ele arriscou. —
Preciso de informações preliminares. Eu não sei onde estou, por que ou
quem são todos vocês. Pode me fornecer alguma informação básica?
Ray o observava como se talvez estivesse tendo dificuldade em saber
por onde começar. Depois ficou olhando ao redor do quarto, como se talvez
estivesse se perguntando se tinha permissão para começar.
— Onde estamos exatamente? — Reacher perguntou. — Você pode
me dizer isso, certo?
— Montana.
Reacher balançou a cabeça.
— Perfeito — ele disse. — Onde em Montana?
— Perto de uma cidadezinha chamada Yorke — Ray disse. — Uma
antiga vila de mineradores, praticamente abandonada.
Reacher balançou a cabeça novamente.
— Certo — ele disse. — O que vocês estão fazendo aqui?
— Estamos construindo uma fortaleza — Ray respondeu. — Um lugar
que nos pertença.
— Pra quê? — Reacher perguntou.
Ray deu de ombros. Ele se expressava mal. No início, não disse nada.
Então se sentou para a frente e disparou como um mantra, ao menos era o
que parecia para Reacher, algo que o sujeito havia ensaiado muitas vezes e
decorado até de trás pra frente. Ou algo que tinham dito para o cara muitas
vezes.
— Viemos pra cá pra escapar da tirania dos Estados Unidos — ele
contou. — Temos que traçar nossas fronteiras e dizer: vai ser diferente aqui
dentro!
— Diferente como? — Reacher indagou.
— A gente tem que recuperar os Estados Unidos, um pedaço de cada
vez. — Ray contou. — Temos que construir um lugar onde o homem
branco possa viver livre, sossegado, em paz, com liberdade e leis corretas.
— Você acha que conseguirá fazer isso? — Reacher questionou.
— Já aconteceu — Ray disse. — Aconteceu em 1776. O povo deu um
basta. Disseram que queriam um país melhor. Agora a gente está dizendo
isso novamente. Estamos dizendo que queremos nosso país de volta. E
vamos vencer. Porque agora estamos agindo unidos. Tinha uma dúzia de
milícias aqui em cima. Todas queriam as mesmas coisas. Mas estavam
todas sozinhas. A missão do Beau foi unir o pessoal. Agora estamos unidos
e a gente vai tomar nosso país de volta. Vamos começar por aqui. E vamos
começar agora.
Reacher balançou a cabeça. Olhou para a direita e para baixo, para a
mancha escura onde o nariz de Loder tinha sangrado no assoalho.
— Deste jeito? — ele apontou. — E quanto ao direito de voto da
democracia? E todas as coisas do gênero? Devemos tirar e colocar as
pessoas pelo voto, certo?
Ray sorriu triste e balançou a cabeça negativamente.
— Já votamos há mais de duzentos anos — ele disse. — Fica cada vez
pior. Para o governo tanto faz como votamos. Tiraram todo o poder da
gente. Deram nosso país para os outros. Você sabe onde fica o governo
deste país de verdade?
Reacher deu de ombros.
— Na capital, Washington, não é?
— Errado — Ray disse. — Fica em Nova York. No prédio das Nações
Unidas. Já se perguntou por que a ONU fica tão perto de Wall Street? É
porque lá fica o verdadeiro governo. Nas Nações Unidas e nos bancos. Eles
controlam o mundo. Os Estados Unidos são apenas uma pequena parte dele.
O presidente é apenas uma voz num maldito comitê. É por isso que votar
não adianta. Você acha que as Nações Unidas e o Banco Mundial ligam
para quem a gente vota?
— Tem certeza de tudo isso? — Reacher perguntou.
Ray confirmou com a cabeça vigorosamente.
— Tenho certeza absoluta — afirmou. — Eu vi como funciona. Por
que você acha que mandamos bilhões de dólares para os russos quando a
gente tem pobreza aqui nos Estados Unidos? Você pensa que o governo
americano faz isso de livre e espontânea vontade? Mandamos porque o
governo mundial obriga a gente. Você sabe que tem campos aqui, né?
Centenas de campos por todo o país? A maioria deles é para tropas da
ONU. Tropas estrangeiras, esperando para nos invadir se a gente criar caso.
E quarenta e três deles são campos de concentração. É aí que vão colocar a
gente quando começarmos a falar sem papas na língua.
— Tem certeza? — Reacher voltou a indagar.
— Tenho certeza absoluta — repetiu. — Beau tem os documentos. A
gente tem provas. Acontecem coisas que você não acreditaria. Você sabia
que tem uma lei federal secreta que obriga todos os bebês nascidos em
hospitais a receberem um microchip implantado sob a pele? Quando tiram
eles da nossa frente no berçário, não estão pesando e limpando. Estão
implantando um microchip. Muito em breve a população inteira será
vigiada por satélites secretos. Você pensa que o ônibus espacial é usado
para experiências científicas? Você pensa que o governo mundial
autorizaria o gasto de verba para coisas desse tipo? Só rindo. O ônibus
espacial está lá para lançar satélites de vigilância.
— Você tá de brincadeira, não tá? — indagou Reacher.
Ray balançou a cabeça negativamente.
— De jeito nenhum — disse. — Beau tem os documentos. Tem outra
lei secreta, um sujeito de Detroit mandou a informação para Beau. Todo
carro fabricado nos Estados Unidos desde 1985 tem um radiotransmissor
secreto, e deste modo os satélites podem ver aonde vai. As telas de radar no
prédio das Nações Unidas mostram onde você está a cada minuto do dia ou
da noite quando compra um carro. Eles têm forças estrangeiras treinando
nos Estados Unidos agora mesmo, prontas para a tomada de posse oficial.
Você sabe por que a gente manda tanto dinheiro para Israel? Não é porque
ligamos para o que acontece com os israelenses. Por que a gente deveria
ligar? Mandamos dinheiro porque é aqui que é treinado o exército mundial
secreto da ONU. É tipo um lugar experimental. Por que você acha que a
ONU nunca impede os israelenses de invadirem outros povos? Porque, na
verdade, foi a ONU que deu a ordem a eles. Estão sendo treinados para
tomar posse do mundo. Tem três mil helicópteros neste exato momento, em
bases aéreas ao redor dos Estados Unidos, todos prontos para serem usados
por eles. Helicópteros pintados totalmente de preto, sem marcas de
identificação.
— Sério?!? — Reacher deu uma de surpreso, mantendo a voz em
algum lugar entre preocupada e cética. — Eu nunca ouvi falar de nada
disso.
— O que já é uma prova, certo? — Ray explicou.
— Por quê?
— É óbvio, certo? — Ray disse. — Você pensa que o governo mundial
permitiria o acesso da mídia a esse material? O governo mundial controla a
mídia, certo? São os donos dela. Então, é lógico que o que quer que não
apareça na mídia é o que está acontecendo realmente, certo? Eles falam
para a gente o que é seguro e mantêm os segredos longe de nós. É tudo
verdade, acredite em mim. Eu te disse, Beau tem os documentos. Você sabia
que toda placa rodoviária nos Estados Unidos tem uma marca secreta no
verso? Dirija e dê uma olhada. Um sinal secreto para guiar as tropas
mundiais ao redor do país. Estão se preparando para assumir o controle. É
por isso que precisamos de um lugar só nosso.
— Você acha que vão atacar vocês? — Reacher perguntou.
— Sem sombra de dúvida — Ray respondeu. — Vão cair matando em
cima da gente.
— E você calcula que podem se defender? — Reacher perguntou. —
Um punhado de indivíduos de uma cidadezinha pequena qualquer em
Montana?
Joseph Ray balançou a cabeça negativamente.
— A gente não é um punhado de indivíduos — ele disse. — Somos
cem.
— Cem caras?!? — Reacher ironizou. — Contra o governo mundial?
Ray negou com a cabeça novamente.
— A gente pode se defender sim! — ele garantiu. — Beau é um líder
esperto. Este território aqui é bom. Um vale. Cem quilômetros de Norte a
Sul, cem quilômetros de Oeste ao Leste. E a fronteira canadense ao longo
da borda norte.
Ele varreu a mão pelo ar, acima do nível dos olhos, da direita para a
esquerda, como um golpe de caratê com o lado da mão, para demonstrar a
geografia. Reacher balançou a cabeça positivamente. Conhecia bem a
fronteira canadense. Ray usou a outra mão acima e abaixo da borda
esquerda de seu mapa invisível.
— Rapid River — ele disse. — É a nossa fronteira ocidental. É um rio
grande, completamente selvagem. Não tem como atravessar.
Moveu a mão da fronteira canadense transversalmente e friccionou o
ar formando um círculo pequeno, como se estivesse limpando uma vidraça.
— Parque nacional — ele disse. — Sabia? Oitenta quilômetros, de
Oeste a Leste. Floresta virgem, densa, não tem como atravessar. Se estiver
atrás de uma fronteira do Leste, não tem nada melhor do que essa floresta.
— E quanto ao Sul? — Reacher perguntou.
Ray deu um golpe lateral de mão ao nível do peito.
— Ravina — ele relatou. — Armadilha natural de tanques. Acredite
em mim, conheço tanques. Não tem como atravessar, a não ser por uma
estrada e uma trilha. A ponte de madeira segue a trilha sobre a ravina.
Reacher balançou a cabeça. Ele recordava do furgão branco
tamborilando sobre uma estrutura de madeira.
— Se a ponte for explodida... — Começou. — Não tem como
atravessar.
— E quanto à estrada? — Reacher perguntou.
— A mesma coisa — Ray afirmou. — Se a gente explodir a ponte,
ficamos em segurança. Temos explosivos no local.
Reacher balançou a cabeça lentamente. Estava pensando em ataque
aéreo, artilharia, mísseis, minas, bombas inteligentes, infiltração de forças
especiais, tropas aerotransportadas, paraquedistas. Pensava em SEALs
(tropas de ataque aéreo, marítimo e terrestre da marinha) construindo uma
ponte sobre o rio ou Marines (fuzileiros navais) construindo uma ponte
sobre a ravina. Pensava em unidades da OTAN descendo pelo Canadá,
fazendo estardalhaço.
— E quanto a Holly? — perguntou. — O que vocês querem com ela?
Ray sorriu. Sua barba se partiu, e seus dentes brilharam para fora, tanto
quanto seus olhos.
— A arma secreta do Beau — ele contou. — Pense bem. O governo
mundial vai usar o velho dela para liderar o ataque. É por isso que ele foi
escolhido. Você acha que o presidente escolhe esses sujeitos? Isso é piada.
O velho Johnson é do governo mundial, está apenas esperando o comando
secreto para entrar em ação. Mas, quando ele chegar aqui, o que vai
encontrar?
— O quê? — Reacher perguntou.
— Ele vem do Sul, certo? — Ray disse. — O primeiro prédio que vai
ver será esse tribunal velho, no canto sudeste da cidade. Você acabou de
voltar de lá. Ela está no segundo andar, certo? Notou a construção nova?
Quarto especial, paredes duplas, cinquenta e seis centímetros de distância
uma da outra. O espaço está lotado de dinamite e explosivos que vieram dos
armazéns da antiga mina. A primeira bala perdida mandará a filhinha do
velho Johnson para o outro mundo.
Reacher balançou a cabeça de novo, lentamente. Ray olhou para ele.
— A gente não está pedindo muito — ele disse. — Cem quilômetros
por cem quilômetros, quanto é? Apenas dez mil quilômetros quadrados de
território.
— Mas por que agora? — Reacher perguntou. — Por que tanta pressa?
— Que dia é hoje? — Ray perguntou de volta.
Reacher deu de ombros.
— Início de julho? — ele sugeriu.
— Dia 2 de julho — Ray disse. — Faltam dois dias.
— Para quê? — Reacher perguntou.
— Dia da Independência — Ray respondeu. — Quatro de Julho.
— E o que tem isso? — Reacher perguntou novamente.
— Vamos declarar nossa independência — Ray afirmou. — Uma
nação novinha em folha nascerá depois de amanhã. É nessa data que vão
nos atacar com tudo, certo? Liberdade para os coitadinhos? Isso não está no
plano deles.
24

O LEAR DO FBI REABASTECEU EM FARGO E RUMOU na direção


sudeste para a Califórnia. McGrath havia argumentado novamente em prol
de irem direto para Montana, mas Webster levou a melhor sobre ele. Um
passo de cada vez era o estilo paciente de Webster. Portanto, iriam averiguar
a história de Beau Borken na Califórnia, e então iriam para a Base Peterson,
da força aérea no Colorado, a fim de se encontrarem com o general
Johnson. McGrath era praticamente o único homem do FBI vivo capaz de
gritar com Webster, e havia feito isso, mas argumentar não é a mesma coisa
que convencer; assim, estavam todos no ar, indo primeiramente para o
Mojave; McGrath e Webster, Brogan e Milosevic, todos mortos de cansaço,
superansiosos e mal-humorados na cabine barulhenta e abafada.
— Preciso de toda informação de base possível — Webster salientou.
— Fui colocado no comando e não dá para enrolar esse tipo de gente, não
é?
McGrath olhou furiosamente para ele e pensou: Não jogue seus
joguinhos políticos estúpidos com a vida de Holly, Webster. Mas não disse
nada. Apenas ficou sentado, até que o jatinho começasse a descer
rapidamente na direção do aeródromo, quase no deserto.
Estavam em terra logo depois das duas horas da manhã, hora da Costa
Oeste. O agente encarregado do Mojave os encontrou na pista abandonada,
em seu próprio carro. Conduziu-os para o sul através da cidade adormecida.
— Os Borken eram uma família de Kendall — ele disse. — Cidade
pequena, a oitenta quilômetros daqui. Região que forma um leque, grande
produtora de cítricos. O Departamento de Polícia é dirigido por um único
homem. O xerife está nos esperando lá embaixo.
— Ele sabe de alguma coisa? — McGrath perguntou.
O sujeito ao volante deu de ombros.
— Talvez — ele disse. — Cidade pequena, sabe como é.
Levaram apenas trinta e seis minutos para atravessar os oitenta
quilômetros na noite desértica, a cento e quarenta por hora. Kendall era um
pequeno agrupamento de prédios, à deriva num mar de bosques. Havia um
posto de gasolina, um armazém-geral, uma quitanda de um agricultor e um
prédio baixo de concreto com antenas apontando para cima no telhado.
Uma viatura vistosa estava estacionada na reentrância lá fora. Tinha o
letreiro: Xerife do Condado de Kendall. Havia uma única luz na janela do
escritório atrás do carro.
Os cinco agentes se espreguiçaram e bocejaram no seco ar noturno e
foram em fila indiana até o prédio de concreto. O xerife do condado de
Kendall era um sujeito de uns sessenta anos, firme, grisalho. Parecia de
confiança. Webster acenou para que voltasse à cadeira e McGrath colocou
quatro fotos na mesa, na frente dele.
— Conhece estes sujeitos? — perguntou.
O xerife deslizou as fotografias para mais perto e olhou cada uma
delas. Pegou-as e as embaralhou em nova ordem. Colocou-as de volta na
mesa como se estivesse distribuindo uma mão de cartas gigantes de baralho.
Então balançou a cabeça e esticou o braço para baixo até o suporte da mesa.
Abriu uma gaveta. Tirou três fichas amareladas. Colocou-as debaixo de três
das fotografias. Pôs um dedo curto e grosso no primeiro rosto.
— Peter Wayne Bell — ele disse. — Garoto do Mojave, mas não saía
daqui. Não é um garoto muito legal e eu acredito que vocês já sabem.
Ele balançou a cabeça na direção do monitor, num suporte na
extremidade da mesa. Uma página da Central de Banco de Dados Criminais
brilhava com uma cor verde. Era o relatório da polícia da Dakota do Norte
sobre a identidade do corpo que haviam encontrado em uma vala. A
identidade e os antecedentes.
O xerife moveu o pulso e colocou um dedo na fotografia seguinte. No
pistoleiro que havia empurrado Holly Johnson para dentro da traseira do
Lexus.
— Steven Stewart — ele disse. — Chamado de Stevie ou Pequeno
Stevie. Garoto de fazenda, meio lelé da cuca, saca? Um garoto meio
nervoso e agitado.
— O que tem na ficha dele? — Webster perguntou.
O xerife deu de ombros.
— Nada muito sério — ele afirmou. — O garoto era burro demais.
Para seu próprio bem. Um bando de garotos saía para aprontar e adivinha
quem ainda estava lá quando eu aparecia? O Pequeno Stevie, o próprio. Eu
o prendi uma dúzia de vezes, suponho, mas ele nunca fez muito do que se
poderia chamar de merdalhada.
McGrath balançou a cabeça e apontou para a fotografia do pistoleiro
que havia entrado no banco do carona do Lexus.
— E este? — perguntou.
O xerife moveu o dedo e o colocou na garganta lustrosa do sujeito.
— Tony Loder — ele afirmou. — Este é um sujeitinho do mal. Bem
mais esperto do que Stevie, porém mais burro do que qualquer um de nós.
Vou passar a ficha completa. Talvez não mantenha vocês do FBI acordados
à noite, mas, de qualquer jeito, com certeza não vai ajudá-los a dormir
melhor do que já dormiriam.
— E quanto ao grandalhão? — Webster perguntou.
O xerife saltou o dedo ao longo da fileira e balançou a cabeça grisalha.
— Nunca vi este cara antes — ele garantiu. — Tenho certeza absoluta.
Eu me lembraria dele se tivesse visto.
— Achamos que talvez seja estrangeiro — Webster sugeriu. — Talvez
europeu. Talvez tenha sotaque. Isso faz você se lembrar de algo?
O xerife apenas continuou a balançar a cabeça.
— Nunca vi — garantiu novamente. — Eu me lembraria.
— Certo — McGrath disse. — Bell, o Pequeno Stevie Stewart, Tony
Loder e o homem misterioso. Onde essa gangue do Borken se encaixa?
O xerife deu de ombros.
— O velho Dutch Borken nunca se encaixou em lugar nenhum — ele
contou. — Esse era o problema dele. Esteve no Vietnã, peão da infantaria,
se mudou para cá quando deu baixa. Trouxe consigo uma esposa bonita e
um garotinho gorducho, de dez anos de idade, começou a cultivar cítricos,
se deu muito bem por bastante tempo. Era um sujeito estranho, solitário, eu
nunca o via muito. Mas era feliz. Suponho eu. Então a esposa ficou doente,
morreu, e o menino ficou esquisito, o mercado levou uns dois baques, os
lucros estavam caindo, todos os agricultores começaram a ir aos bancos
atrás de empréstimos, os juros subiram, o preço da terra caiu, o crédito
estava desaparecendo, a água de irrigação ficou cara, começaram a falir, um
atrás do outro. Borken não aguentou o rojão, pegou a espingarda e comeu
um picadinho de chumbo.
Webster balançou a cabeça.
— O garotinho balofo de dez anos de idade era o tal Beau Borken? —
perguntou.
O xerife concordou com a cabeça.
— O próprio — ele disse. — Garoto muito estranho. Muito esperto.
Paranoicamente obcecado.
— Com o quê? — McGrath perguntou.
— Os mexicanos começaram a vir para cá — o xerife contou. — Mão
de obra barata. O jovem Beau era totalmente contra. Começou a gritar para
mantermos Kendall branca. Entrou para a turma da John Birch.[2]
— Então ele era racista? — McGrath disse.
— No início — o xerife disse. — Então entrou nesse lance todo de
conspiração. Falava que os judeus mandavam no governo. Ou eram as
Nações Unidas, ou ambos, ou alguma porra do gênero. O governo era
totalmente comunista, assumindo o controle do mundo, planos secretos para
tudo. Uma grande conspiração contra todos e especialmente contra ele. Os
bancos controlavam o governo ou será que era o governo que controlava os
bancos? Então, os bancos eram todos comunistas, e seu propósito era
destruir os Estados Unidos. Ele chegou à conclusão de que a razão exata do
banco ter emprestado dinheiro a seu pai foi para que pudesse levá-lo à
falência mais tarde, e dar a fazenda para os mexicanos, ou para os pretos ou
para alguma merda similar. Ele falava com entusiasmo delirante sobre isso
o tempo todo.
— E aí, o que aconteceu? — Webster indagou.
— Bem, logicamente o banco acabou tomando tudo dele mesmo — o
xerife disse. — O sujeito não pagou o empréstimo, certo? Mas não deram
suas terras aos mexicanos. Venderam para a mesma grande corporação que
possui tudo o mais por aqui, a dona dos fundos de pensão, o que
provavelmente significa que eu e você somos os donos, e não comunistas
ou mexicanos, ou quaisquer outros, certo?
— Mas o garoto responsabilizou a conspiração pela morte do pai? —
Brogan perguntou.
— Com toda certeza — o xerife disse. — Mas a verdade é que foi o
próprio Beau que acabou com o velho. Eu imagino que o velho Dutch
poderia ter enfrentado praticamente qualquer coisa se seu único filho não
tivesse se tornado um alucinado completo. Um garoto cruel, egoísta,
estranho. Tenho certeza que foi por isso que ele engoliu a maldita
espingarda, se quer saber a verdade.
— Então para onde Beau foi? — Webster perguntou.
— Montana — o xerife disse. — Foi isso que ouvi dizer. Ele curtia
todos esses grupos de direita, sabe, as milícias. Tornou-se um líder. Dizia
que o homem branco teria que se levantar e lutar.
— E os outros sujeitos foram com ele? — Brogan perguntou.
— Os três com toda certeza — o xerife disse. — Este grandalhão eu
nunca vi antes. Mas o Pequeno Stevie, Loder e Peter Bell idolatravam Beau,
como robozinhos. Todos eles foram lá para cima juntos. Tinham um pouco
de dinheiro, arrancaram tudo da propriedade do Borken que conseguiram
carregar e meteram o pé para o norte. Imaginaram comprar alguma terra
barata lá em cima para se defender, sabe, embora contra quem não faço a
mínima ideia, porque, pelo que ouvi dizer, não tem ninguém lá, e, se tiver,
são todos brancos, de qualquer maneira.
— O que tem na ficha dele? — Webster perguntou.
O xerife balançou a cabeça negativamente.
— Praticamente nada — ele afirmou. — Beau é esperto demais para
ser pego fazendo merdinhas.
— Mas... — McGrath disse. — Está fazendo coisas sem ser pego?
O xerife confirmou com a cabeça.
— Esse assalto ao carro-forte? — ele disse. — Em algum lugar no
norte do Estado? Ouvi falar sobre isso. Não conseguiram enquadrá-lo, não
é? Como eu disse, esperto demais.
— Mais alguma coisa que a gente devia saber? — Webster perguntou.
O xerife pensou por algum tempo e confirmou positivamente com a
cabeça.
— Havia sim um quinto sujeito — disse. — Chamado Odell Fowler.
Ele vai aparecer ao lado do Beau, na certa. Pode apostar nisso. Quando
Loder, Stevie e Bell são enviados para infernizar a vida de alguém, pode ter
toda certeza que Borken e Fowler estão sentados lá, nas sombras, mexendo
os pauzinhos.
— Mais alguma coisa? — Webster perguntou finalmente.
— No início havia um sexto sujeito — o xerife contou. — Um sujeito
chamado Packer. Seis ao todo, muito amigos. Mas Packer ficou caidinho
por uma mexicana. Não conseguiu se controlar, simplesmente se apaixonou
por ela, suponho. Beau mandou ele parar de sair com ela. Brigaram por
causa disso, havia muita tensão para todo lado. Mas um dia Packer sumiu, e
Beau ficou todo sorridente e relaxado. Encontramos Packer no matagal,
pregado a uma grande cruz de madeira. Crucificado. Morto fazia dois dias.
— E você calcula que Borken fez o serviço? — Brogan perguntou.
— Não pude provar — o xerife respondeu. — Mas tenho certeza. E
tenho certeza que ele convenceu os outros a ajudá-lo na tarefa. É um líder
nato. Ele é capaz de convencer qualquer um a fazer qualquer coisa, eu
garanto.

Oitenta quilômetros de carro para voltar de Kendall para o Mojave. Do


Mojave para a Base Peterson, mais uns mil, trezentos e cinquenta
quilômetros por Lear. Três horas de viagem, de porta a porta, que os levou
para Peterson pelo lindo alvorecer nas montanhas. Era o tipo da vista que as
pessoas pagam para ver, mas os quatro homens do FBI nem deram bola.
Quinta-feira, 3 de julho, o quarto dia da crise, e a falta de descanso e
alimentação apropriados os tinham deixado acabados e focados somente no
trabalho a curtíssimo prazo.
O general Johnson não pôde encontrá-los pessoalmente. Estava a
serviço em outra parte da gigantesca base, recebendo, com entusiasmo, as
patrulhas noturnas de retorno. Seu assessor bateu continência para Webster,
apertou a mão dos outros três e os levou até uma sala reservada. Havia uma
fotografia enorme na mesa, em preto e branco, com foco bem nítido. Algum
tipo de paisagem. Parecia a superfície lunar.
— Anadyr, na Sibéria — o assessor apontou. — Fotografia de satélite.
Na semana passada, tinha uma grande base aérea aqui. Uma base de
bombardeiros nucleares. A pista de decolagem apontava diretamente para
nossos silos de mísseis em Utah. O tratado de redução de armas exigia que
fosse explodida. Os russos obedeceram à exigência na semana passada.
Os quatro agentes se curvaram para dar outra olhada. Não havia sinal
de nenhuma estrutura feita pelo homem na foto. Apenas crateras enormes.
— Acho que obedeceram. — McGrath brincou. — Parece que fizeram
o trabalho com exagerado entusiasmo.
— E o que tem isso? — Webster quis saber.
O assistente puxou um mapa da pasta. Desdobrou-o e saiu da frente
para que os agentes pudessem compartilhar a visão. Era um trecho do
mundo, a Ásia Oriental e o Oeste dos Estados Unidos, com a massa do
Alasca bem no centro e do Polo Norte bem acima. O assistente esticou o
polegar e o indicador, e mediu a distância do sudeste da Sibéria descendo
até Utah.
— Anadyr era aqui — ele mostrou. — E Utah fica aqui. É claro que a
gente sabia tudo sobre a base, e tínhamos medidas defensivas prontas, que
incluíam as grandes bases de mísseis no Alasca, aqui, e mais uma cadeia
formada por quatro instalações pequenas de mísseis terra-ar, espalhadas do
norte ao sul, percorrendo toda a distância sob a rota de voo, de Anadyr até
Utah, que ficam aqui, aqui, aqui e aqui, fazendo uma linha entre Montana e
esse trecho de Idaho em forma de cabo de frigideira.
Os agentes ignoraram os pontos vermelhos em Idaho. Mas olharam
atentamente para as posições em Montana.
— Que tipo de bases são estas? — Webster perguntou.
O assistente deu de ombros.
— Provisórias — ele informou. — Feitas às pressas nos anos sessenta,
meio que sobreviveram desde então. Francamente, não esperávamos ter que
usá-las. Os mísseis do Alasca eram mais do que adequados. Nada teria
conseguido passar por eles. Mas você sabe como era, certo? Por mais
pronto que a gente estivesse, não bastava.
— Que tipo de armas? — McGrath perguntou.
— Uma bateria de Patriots em cada instalação — o assessor disse. —
Retiramos esses um tempinho atrás. Vendemos para Israel. Só sobraram
Stingers, sabe, sistemas de infantaria de lançamento sobre o ombro.
Webster olhou para o sujeito.
— Stingers?! — ele se surpreendeu. — Vocês iam derrubar
bombardeiros soviéticos com sistemas de infantaria?
O assessor balançou a cabeça. Parecia convicto.
— Por que não? — ele disse. — Não esqueça que essas bases eram
praticamente apenas enfeites. Nada deveria passar do Alasca. Mas os
Stingers dariam cabo. Fornecemos milhares deles para o Afeganistão.
Derrubaram centenas de aviões soviéticos. Na maior parte helicópteros,
suponho, mas o princípio é bom. Um térmico é um térmico, certo? Não faz
nenhuma diferença se for lançado de um caminhão ou do ombro de um
soldado.
— E o que vai acontecer? — Webster perguntou.
— Vamos fechar as bases — o sujeito informou. — É por isso que o
general está aqui, cavalheiros. Estamos trazendo o equipamento e o pessoal
aqui para Peterson, e vai haver algumas cerimônias, sabe, coisas de final de
uma era.
— Onde ficam estas bases? — McGrath perguntou. — As de Montana.
Exatamente.
O assessor puxou o mapa para mais perto e verificou as referências.
— Escondi das mais para o sul em alguma terra cultivada perto de
Missoula — ele disse. — A do norte fica escondida num vale, a
aproximadamente setenta quilômetros ao sul do Canadá, perto de um
lugarejo chamado Yorke. Por quê? Algum problema?
McGrath deu de ombros.
— A gente ainda não sabe — ele disse.

O assessor lhes mostrou onde deviam tomar o café da manhã e os deixou


esperando o general. Johnson chegou depois dos ovos, mas antes das
torradas. Então deixaram as torradas para lá e andaram de volta, juntos, até
a sala de reunião. Johnson parecia muito diferente do sujeito vistoso e altivo
com quem Webster havia se encontrado na segunda-feira à noite. Ficar
acordando cedo e três dias de tensão o fizeram parecer dez quilos mais
magro e vinte anos mais velho. Seu rosto estava pálido e os olhos,
vermelhos. Parecia um homem à beira da derrota.
— Então, o que sabemos? — perguntou.
— Acreditamos que quase tudo — Webster respondeu. — Neste exato
instante, nossa suposição operacional é que sua filha foi sequestrada por
uma milícia de Montana. Sabemos a localização, mais ou menos. Algum
lugar nos vales do noroeste.
Johnson balançou a cabeça lentamente.
— Alguma comunicação? — ele perguntou.
Webster balançou a cabeça negativamente.
— Ainda não — disse.
— E aí, qual é o motivo? — Johnson perguntou. — O que eles
querem?
Webster mais uma vez balançou a cabeça negativamente.
— Ainda não sabemos — afirmou.
Johnson balançou a cabeça novamente, estava meio perdido.
— Quem são eles? — perguntou.
McGrath abriu o envelope que carregava.
— Temos quatro nomes — ele disse. — Três do pelotão de sequestro,
e temos provas muito boas sobre quem é o líder da milícia. Um sujeito
chamado Beau Borken. Esse nome significa algo para você?
— Borken? — Johnson repetiu o nome e balançou a cabeça
negativamente. — Esse nome não significa nada para mim.
— Está bem — McGrath disse. — E quanto a este sujeito? Seu nome é
Peter Bell.
McGrath passou a Johnson a foto de Bell ao volante do Lexus.
Johnson deu uma longa olhada nela e balançou a cabeça em negativa.
— Esse aí já está morto — McGrath disse. — Não conseguiu voltar
para Montana.
— Ótimo — Johnson disse.
McGrath passou outra foto.
— Steven Stewart?
Johnson olhou atentamente a impressão, mas acabou balançando a
cabeça.
— Nunca vi este sujeito antes — ele garantiu.
— Tony Loder? — McGrath perguntou.
Johnson fitou o rosto de Loder e balançou a cabeça.
— Não, com certeza — ele afirmou.
— Esses três e Borken são da Califórnia — McGrath informou. —
Pode haver outro sujeito, chamado Odell Fowler. Você já ouviu falar dele?
Johnson balançou a cabeça negativamente.
— E tem ainda este sujeito — McGrath disse. — A gente não sabe
quem é.
Passou a fotografia do grandalhão. Johnson olhou de relance para a
foto, em seguida desviou os olhos. Mas aí o seu olhar voltou para ela.
— Conhece? — McGrath perguntou.
Johnson deu de ombros.
— É vagamente familiar — ele recordou. — Talvez alguém que vi
uma vez.
— Recentemente? — McGrath perguntou.
Johnson balançou a cabeça negativamente.
— Não recentemente — ele disse. — Deve ter sido há muito tempo.
— Militar? — Webster perguntou.
— Provavelmente — Johnson devolveu. — A maioria das pessoas
com quem convivi eram militares.
Seu assessor abriu caminho com o ombro para dar uma olhada.
— Não significa nada para mim — ele disse. — Mas a gente devia
mandar um fax para o Pentágono. Se este sujeito é militar, talvez haja
alguém em algum lugar que serviu com ele.
Johnson balançou a cabeça negativamente.
— Envie para a polícia do exército — ele sugeriu. — Este sujeito é um
criminoso, certo? É muito provável que esteve em apuros antes, no serviço
militar. Alguém de lá vai se lembrar dele.
25

FORAM PEGÁ-LO UMA HORA DEPOIS DO ALVORECER. Estava


cochilando em sua cadeira dura, as mãos algemadas no colo, Joseph Ray
estava acordado e alerta defronte dele. Tinha passado a maior parte da noite
pensando em dinamite. Dinamite velha, sobra de serviços de mineração
abandonados. Imaginou-se levantando uma dinamite na mão. Sentindo o
peso. Calculando o volume da cavidade atrás das paredes do quarto de
Holly. Imaginou-a lotada de dinamite velha. Dinamite velha apodrecendo,
nitroglicerina gotejando, ficando instável. Talvez uma tonelada de dinamite
velha instável ao redor de Holly, não tão perigosa a ponto de explodir com
movimentos aleatórios, mas perigosa o bastante para explodir com o
impacto de um projétil de artilharia ou uma bala perdida. Ou mesmo uma
martelada forte.
Então houve um ruído de passos no cascalho quando um destacamento
parou do lado de fora da cabana. A porta se abriu de supetão. Reacher virou
a cabeça e viu seis guardas. O líder entrou com certo estardalhaço e o
ergueu pelo braço. Foi arrastado para fora até o sol brilhante da manhã e
colocado de frente para cinco homens, lado a lado, rifles automáticos no
ombro. Fardas de camuflagem, todos barbados. Ficou em pé, com os olhos
semiabertos diante da luz. Os canos dos rifles o empurraram para a
formação rústica, e os seis homens o conduziram, marchando, por todo o
diâmetro da clareira, até um trajeto estreito que seguia para longe do sol e
para o interior da floresta.
Cinquenta metros adentro havia outra clareira. Um retângulo
rudimentar de moitas, de área pequena. Duas estruturas de compensado e
toras de cedro. Nenhuma delas tinha janelas. Os guardas o fizeram parar e o
líder usou o cano do rifle para indicar a construção da esquerda.
— A cabana de comando — ele mostrou.
Então apontou para a direita.
— A cabana de punição — ele disse. — A gente tenta evitar essa.
Os seis homens riram com a confiança segura de um destacamento de
elite e o líder bateu na porta da cabana de comando. Fez uma pausa e a
abriu. Reacher foi empurrado para dentro, com o cano do rifle nas costas.
A cabana chamejava de luz. As lâmpadas elétricas adicionavam
iluminação à luz esverdeada do dia provenientes das claraboias lodosas
colocadas no telhado. Havia uma mesa rústica de carvalho e cadeiras que
combinavam, umas coisas velhas, enormes e arredondadas, como as que
Reacher tinha visto em filmes antigos sobre redações de jornais ou
escritórios de bancos do interior. Não havia nenhuma decoração, exceto as
bandeiras e flâmulas pregadas numa parede. Havia uma enorme suástica
vermelha atrás da mesa e diversos objetos temáticos em preto e branco
similares nas demais paredes. Um mapa detalhado de Montana fixado a um
quadro na dos fundos. Uma parcela minúscula do canto noroeste do Estado
fora delineada em preto. Havia pacotes de panfletos e de manuais
empilhados no assoalho vazio. Um tinha sido intitulado: Desidrate, Você
Vai Gostar. Ensinava como o alimento poderia ser preservado para suportar
um cerco. Outros instruíram sobre como guerrilheiros poderiam descarrilar
trens de passageiros. Havia uma estante de mogno polido, lotada de livros,
incongruentemente elegante. A barra da luz do dia vinda da porta caiu sobre
a estante e iluminou as lombadas de couro e títulos com letras douradas.
Eram temas sobre a arte da guerra, traduções do alemão e do japonês. Havia
uma prateleira inteira com textos sobre Pearl Harbor. Volumes que o próprio
Reacher havia estudado num outro lugar e há muito tempo.
Ficou imóvel. Borken estava atrás da mesa. Seu cabelo branco
cintilava na luz. O uniforme preto parecia cinza. Borken apenas olhava
fixamente e em silêncio para ele. Então apontou para uma cadeira. Fez sinal
para os guardas esperarem do lado de fora.
Reacher se sentou pesadamente. A fadiga o corroía e a adrenalina
estava queimando seu estômago. Os guardas vagaram pelo assoalho e
saíram. Fecharam a porta silenciosamente. Borken abriu uma gaveta. Tirou
um revólver antigo. Colocou-o no tampo da mesa com um baque alto.
— Tomei minha decisão — avisou. — Sobre viver ou morrer.
Então apontou para ele o revólver antigo que se encontrava na mesa.
— Você sabe o que é isso? — perguntou.
Reacher olhou de relance para ele, através da luz forte e ofuscante, e
confirmou com a cabeça.
— É um Marshal Colt — respondeu.
Borken concordou com a cabeça.
— Pode apostar seu rabo que é — disse. — É um Marshal Colt 1873,
original, igual ao que davam para a cavalaria dos Estados Unidos. É minha
arma pessoal.
Ele a pegou com a mão direita e avaliou o peso.
— Você sabe o que ela dispara? — perguntou.
Reacher balançou a cabeça afirmativamente de novo.
— Calibre quarenta e cinco — ele disse. — Seis tiros.
— Acertou logo de primeira — Borken o parabenizou. — Seis tiros de
quarenta e cinco, duzentos e setenta e cinco metros por segundo de um cano
de dezenove centímetros. Você sabe o que uma bala dessas pode fazer com
você?
Reacher deu de ombros.
— Depende. Depende de se me acertar — ele disse.
Borken ficou estupefato. Então sorriu. Sua boca úmida se curvou para
cima e suas bochechas apertadas quase forçaram seus olhos a se fecharem.
— Acertará — ele disse. — Se eu estiver atirando, uma acertará.
Reacher deu de ombros novamente.
— Desta distância... talvez — ele disse.
— De qualquer distância — Borken afirmou. — Daqui, de quinze
metros, de cinquenta metros, se eu estiver atirando, acertará.
— Levanta aí a mão direita — Reacher pediu.
Borken ficou pasmo novamente. Então colocou a arma na mesa e
ergueu sua enorme mão branca, como se estivesse acenando para um
conhecido qualquer ou fazendo um juramento.
— Papo furado — Reacher disse.
— Papo furado?!? — Borken repetiu.
— Exato — Reacher disse. — Essa arma é razoavelmente precisa, mas
não é a melhor do mundo. Para acertar um homem a cinquenta metros com
ela você precisaria praticar como louco. E você não tem praticado.
— Eu não tenho? — Borken indagou.
— Não, você não tem — Reacher garantiu. — Olhe essa porra. Foi
projetada na década de 1870, certo? Já viu fotografias antigas? As pessoas
eram muito menores. Sujeitinhos briguentos que haviam acabado de imigrar
da Europa, morriam de fome há gerações. Gente pequena, mãos pequenas.
Olhe a coronha dessa coisa. Curva apertada, pequena demais para você. Ao
agarrar essa bosta, sua mão parece uma pata de elefante em torno dela. E
essa coronha é de nogueira de cento e vinte anos. Dura como uma rocha. A
parte traseira da coronha e a extremidade da armação abaixo do cão te
martelariam com coices. Se você usasse muito essa arma, teria um calo
enorme entre o polegar e o dedo indicador que eu poderia ver daqui. Mas
você não tem. Então não me venha dizer que anda praticando com ela e não
me diga que você pode ser um exímio atirador sem praticar.
Borken olhou zangado para ele. Mas logo sorriu novamente. Seus
lábios molhados se partiram e seus olhos se fecharam até virar fendas.
Abriu a gaveta oposta e tirou outro revólver. Era uma Sig Sauer nove
milímetros. Talvez de cinco anos de idade. Muito usada, mas bem
conservada. Um cabo quadrado grande para uma mão grande.
— Eu menti — ele disse. — Esta é que é a minha arma pessoal. E
agora eu sei de algo. Eu sei que tomei a decisão correta.
Pausou para que Reacher pudesse lhe perguntar sobre sua decisão.
Reacher permaneceu em silêncio. Apertou os lábios. Não ia perguntar coisa
nenhuma a ele, nem mesmo se fosse a última frase que viveria para proferir.
— Nós somos sérios aqui, sabe — Borken alertou. — Totalmente
sérios. Não estamos brincando. E estamos agindo corretamente em relação
ao que está acontecendo.
Pausou novamente para que Reacher pudesse perguntar o que estava
acontecendo. Reacher não disse nada. Apenas ficou sentado, fitando o
espaço.
— Os Estados Unidos têm um governo despótico — Borken disse. —
Uma ditadura, controlada do exterior por nossos inimigos. Nosso presidente
atual faz parte de um governo mundial que controla nossas vidas
secretamente. Sua política democrática é um disfarce usado para controlar
tudo. Estão planejando nos desarmar e escravizar. Já começou. Sejamos
totalmente claros quanto a isso.
Fez uma pausa. Pegou o revólver antigo novamente. Reacher o viu
verificar como a coronha ficava na sua mão. Sentiu o carisma irradiando
dele. Sentiu-se forçado a escutar a voz suave, hipnótica.
— Dois métodos principais — Borken disse. — O primeiro é a
tentativa de desarmar a população civil. A Segunda Emenda garante nosso
direito de portar armas, mas vão abolir isso. As leis antiarmas, todas essas
reclamações sobre crimes, homicídios, guerras contra as drogas, tudo isso
visa desarmar gente como nós. E quando estivermos desarmados poderão
fazer o que quiserem conosco, certo? É por esse motivo que isso estava na
Constituição desde o início. Os velhotes eram espertos. Sabiam que a única
coisa que poderia controlar um governo era a disposição e a habilidade do
povo de meter bala neles.
Borken fez uma pausa novamente. Reacher fitou a suástica, lá em
cima, atrás de sua cabeça.
— O segundo método é apertar as empresas de pequeno porte —
Borken continuou. — Esta é uma teoria pessoal minha. Você não a ouve
muito por aí. Mas eu topei com ela. Isso me faz entender muito mais que os
outros.
Borken esperou, mas Reacher continuou calado. Desviando a vista.
— É óbvio, certo? — Borken falou. — O governo mundial é
basicamente um tipo comunista de governo. Não querem um setor
empresarial de micro e pequenas empresas forte. Mas era isso que os
Estados Unidos tinham. Milhões de pessoas, todas trabalhando duro, para si
mesmas, e ganhando a vida. Gente demais para assassinar de improviso,
quando chegar a hora. Então, os números têm que ser reduzidos de
antemão. Por isso o Governo Federal foi instruído a pressionar o pequeno
empresário. Impõe sobre ele todo tipo de regulamentos, todo tipo de leis e
impostos, manipulam os mercados, fazem os pequenos ficarem de joelhos,
em seguida mandam os bancos aparecerem com empréstimos atraentes, e
assim que a tinta seca nos contratos sobem os juros e manipulam o mercado
um pouco mais, até o sujeito ficar inadimplente. Aí tomam seu negócio,
para que haja um a menos para as câmaras de gás quando chegar a hora.
Reacher olhou de relance para ele. Não disse uma palavra.
— Acredite — Borken disse. — É como se estivessem resolvendo um
problema de eliminação de cadáveres de antemão. Se eles se livrarem da
classe média agora, não precisarão de tantos campos de concentração mais
tarde.
Reacher apenas fitava os olhos de Borken. Como se estivesse olhando
para uma luz brilhante. Aqueles lábios vermelhos e gordos dando um
sorriso indulgente.
— Eu disse a você, estamos bem à frente dos outros — ele falou. —
Previmos isso. O FED serve para que mais? Essa é a chave de tudo. Os
Estados Unidos foram basicamente uma nação fundada em negócios, certo?
Controle os negócios, e você controla tudo. Como se controla os negócios?
Controlando os bancos. Como se controla os bancos? Você estabelece um
Banco Central de merda. Manda nos bancos. Essa é a chave. O governo
mundial controla tudo através do FED. Eu vi isso acontecer.
Seus olhos estavam arregalados. Brilhando soturnamente.
— Eu vi fazerem isso com meu próprio pai! — gritou. — Que sua
pobre alma descanse em paz. O FED o levou à falência.
Reacher desviou os olhos. Deu de ombros no canto do cômodo. Não
disse nada. Começou a tentar recordar a sequência dos títulos na estante de
mogno de Borken. Desde milenares táticas chinesas de guerrilha, passando
pelo Renascimento na Itália até Pearl Harbor. Concentrou-se em dar nome
aos títulos para si mesmo, da esquerda para a direita, tentando resistir ao
brilho que a atenção a Borken despertava.
— Somos sérios aqui — Borken voltou a enfatizar. — Você pode me
olhar e pensar que sou algum tipo de déspota, ou um líder de seita, ou o que
quer que o mundo queira me rotular. Mas eu não sou. Eu sou um bom líder,
e não negarei isso. Até mesmo um líder inspirado. Pode-se dizer que sou
inteligente e perspicaz, mas você pode não achar, não vou discutir contigo.
E olha que eu nem preciso ser. Meu povo não precisa de incentivo. Não
precisa de muita liderança. Precisa de orientação e de disciplina, mas não
deixe que isso te engane. Eu não estou forçando ninguém a nada. Não
cometa o erro de subestimar a vontade deles. Não ignore o desejo deles de
mudança.
Reacher estava em silêncio. Ainda estava se concentrando nos livros,
folheava em sua mente os eventos de dezembro de 1941, conforme vistos
do ponto de vista japonês.
— Nós não somos um bando de criminosos, sabe — Borken avisou. —
Quando um governo apodrece, é a elite que se rebela contra ele. Ou você
pensa que a gente deve simplesmente agir como cordeirinhos?
Reacher arriscou outra olhada na direção dele. Arriscou falar:
— Você é bastante seletivo — ele disse. — Sobre quem deve ficar aqui
e quem não deve.
Borken deu de ombros.
— Iguais com iguais — ele teorizou. — A natureza é assim, não é? Os
negros têm toda a África. Os brancos têm este lugar.
— E quanto aos dentistas judeus? — Reacher perguntou. — Que lugar
eles têm?
Borken deu de ombros novamente.
— Foi um erro operacional — ele revelou. — Loder devia ter esperado
até a barra ficar limpa. Mas... errar é humano.
— Devia ter esperado até que eu estivesse longe também — Reacher
disse.
Borken balançou a cabeça.
— Concordo — ele disse. — Teria sido melhor para você se fosse
assim. Mas não fizeram isso. Por isso aqui está você, entre nós.
— Só porque eu sou branco? — Reacher perguntou.
— Não desmereça isso — Borken respondeu. — Sobraram apenas
poucos e preciosos direitos para os brancos.
Reacher o encarou. Deu uma olhada ao redor da sala tomada por uma
tensão ofuscante, repleta de ódio. Sentiu um arrepio.
— Eu preparei um estudo sobre a tirania — Borken disse. — E como
combatê-la. A primeira regra é tomar uma decisão firme, de viver livre ou
morrer, e levar a sério mesmo. Viva livre ou morra. A segunda regra é não
agir como um cordeirinho. Levante-se e resista. Estude o sistema e aprenda
a odiá-lo. E então aja. Mas como você deve agir? O homem corajoso reage.
Revida, certo?
Reacher deu de ombros. Ficou em silêncio.
— O homem corajoso revida — Borken repetiu. — Mas o homem que
é corajoso e inteligente age diferente. Ataca primeiro. Antecipa o momento.
Dá o primeiro golpe. Dá a eles o que não esperam, quando e onde não
esperam. É isso que a gente está fazendo aqui. Estamos atacando primeiro.
É a guerra deles, mas vamos dar o primeiro golpe. A gente vai dar a eles o
que não esperam. Vamos virar seus planos de pernas para o ar.
Reacher voltou a olhar para a estante. Cinco mil páginas clássicas,
todas dizendo a mesma coisa: não faça o que esperam.
— Dê uma olhada no mapa — Borken pediu.
Reacher estendeu as mãos algemadas para a frente e se levantou
desajeitadamente da cadeira. Andou até o mapa de Montana na parede.
Achou Yorke no canto superior à esquerda. Bem dentro do diminuto
delineamento preto. Verificou a escala, olhou para o sombreamento do
contorno e para as cores. O rio sobre o qual Joseph Ray tinha falado ficava
a cinquenta quilômetros aproximadamente, a oeste, no outro lado das
montanhas. Era um belo corte azul descendo o mapa. Apareciam umas
elevações marrons enormes ao norte, percorrendo toda a extensão até o
topo, no Canadá. Uma única estrada seguia para o norte através de Yorke e
terminava numas minas abandonadas. Algumas trilhas atravessavam a
floresta densa, a esmo, para o leste. Ao sul, as linhas de contorno se
fundiam e mostravam uma incrível ravina leste-oeste.
— Olhe esse terreno, Reacher — Borken disse baixinho. — O que ele
revela a você?
Reacher olhou para o gorducho. Ele lhe dizia que não conseguiria
escapar. Não a pé, não com Holly. Seriam semanas de caminhada dura, no
leste e no norte. Barreiras naturais no oeste e no sul. O terreno formava uma
prisão, melhor do que cercas de arame farpado ou campos minados. Ele
tinha estado na Sibéria, após a Glasnost, checando histórias antigas sobre
soldados coreanos desaparecidos em combate. Os gulags eram
completamente abertos. Nada de arame farpado ou muros gigantescos. Ele
havia perguntado a seus anfitriões: Mas onde estão as cercas? Os russos
tinham apontado para quilômetros de neve e dito: Ali estão as cercas. Não
tem para onde fugir. Ele ergueu os olhos para o mapa novamente. O terreno
era a barreira. A fuga exigiria um veículo. E muita sorte.
— Não há como penetrar — Borken garantiu. — Somos
inexpugnáveis. Não podem nos deter. E nós não devemos ser detidos. Isso
seria um desastre de proporções verdadeiramente históricas. Suponha que
os Casacas Vermelhas tivessem impedido a Revolução Americana em
1776?
Reacher olhou ao redor da sala minúscula de madeira e sentiu um
arrepio.
— Esta não é a Revolução Americana — disse.
— Não é?!? — Borken questionou. — Qual é a diferença? Eles
queriam se livrar de um governo tirânico. A gente também.
— Vocês são assassinos — Reacher rebateu.
— Também eram em 1776 — Borken afirmou. — Matavam gente. O
sistema estabelecido também chamava aquilo de assassinato.
— Vocês são racistas — Reacher devolveu.
— Idem em 1776 — Borken replicou. — Jefferson e seus escravos.
Eles sabiam que os negros eram inferiores. Naquela época, eram
exatamente como a gente é agora. Mas depois se transformaram nos novos
Casacas Vermelhas. Lentamente, no decorrer dos anos. Tornou-se nossa
incumbência restaurar tudo ao que era. Viva livre ou morra, Reacher. É um
propósito nobre. Sempre foi, não acha?
Ele estava se inclinando para a frente com sua grande massa
pressionando forte a mesa. As mãos estavam no ar. Os olhos incolores
brilhavam.
— Mas cometeram erros em 1776 — ele disse. — Eu estudei a
história. A guerra poderia ter sido evitada, se ambos os lados tivessem
agido sensatamente. E a guerra deve sempre ser evitada, não acha?
Reacher deu de ombros.
— Não necessariamente — ele opinou.
— Bem, você vai nos ajudar a evitá-la — Borken disse. — Essa é a
minha decisão. Você vai ser meu emissário.
— Seu o quê?!? — Reacher perguntou.
— Você é independente — Borken disse. — Não é um de nós. Não
tem nenhum interesse pessoal. É um americano como eles, um cidadão
direito, sem condenações por delito grave. Um homem inteligente,
observador. Você observa as coisas. Eles vão te ouvir.
— O quê?!? — Reacher questionou novamente.
— Nós somos organizados aqui — Borken disse. — Estamos prontos
para sermos uma nação. Você precisa compreender isso. A gente tem um
exército, um departamento do tesouro, reservas financeiras, sistema
jurídico, enfim, uma democracia. Vou mostrar tudo isso para você hoje. Vou
te mostrar uma sociedade pronta para a independência, pronta para viver
livre ou morrer, e falta apenas um dia para a gente fazer isso. Vou te enviar
depois para o sul, para os Estados Unidos. Você vai dizer a eles que nossa
posição é forte e a deles é desesperadora.
Reacher apenas o encarou.
— E você pode falar pra eles sobre Holly — Borken disse baixo. —
Em seu quartinho especial. Você pode contar a eles sobre minha arma
secreta. Meu seguro.
— Você é louco — Reacher disse.
A cabana ficou em silêncio. Mais silenciosa que o próprio silêncio.
— Sou? — Borken sussurrou. — Por que sou louco... exatamente?
— Você não está pensando direito — Reacher disse. — Você não
percebe que Holly não tem nenhum valor? O presidente substituirá Johnson
mais rápido do que você pode piscar um olho. Vão te esmagar como um
inseto e Holly será apenas outra baixa. Você devia mandá-la de volta
comigo.
Borken balançou o cabeção gordo, feliz e presunçoso.
— Não — ele disse. — Isso não vai acontecer. Tem mais coisa sobre a
Holly do que a identidade do pai. Ela não te contou?
Reacher o encarou e Borken checou seu relógio.
— Hora de ir — disse. — Hora de você ver nosso sistema judiciário
em ação.

Holly ouviu passos do lado de fora e saiu com cautela da cama. A fechadura
foi destrancada e o jovem soldado com uma cicatriz na testa subiu o degrau
e entrou no quarto, com o indicador nos lábios, e Holly balançou a cabeça.
Mancou até o banheiro e ajustou o jato da ducha para cair na banheira
vazia, com muito barulho. O rapaz a seguiu para dentro e fechou a porta.
— A gente pode fazer isto apenas uma vez por dia — Holly sussurrou.
— Vão desconfiar se ouvirem o chuveiro com muita frequência.
O cara concordou com a cabeça.
— A gente vai fugir hoje à noite — ele disse. — Não pode ser de dia.
Estamos todos de serviço no julgamento de Loder. Vou passar aqui logo
depois do crepúsculo com um jipe. Vamos fugir já no escuro. Para o sul. É
arriscado, mas a gente vai conseguir.
— Não sem o Reacher — Holly disse.
O rapaz balançou a cabeça negativamente.
— Não posso prometer — disse. — Ele está lá dentro com Borken
agora. Só Deus sabe o que vai acontecer com ele.
— Só vou se ele for — Holly afirmou.
O rapaz olhou nervoso para ela.
— Está bem — ele disse. — Vou tentar.
Ele abriu a porta do banheiro e rastejou para fora. Holly ficou olhando
até que saísse e desligou o chuveiro. Continuou olhando depois que ele
saiu.

Ele virou para o norte e para o oeste, e pegou um caminho longo pelo mato,
do mesmo jeito que tinha vindo. A sentinela que Fowler havia escondido
nas árvores a cinco metros do caminho principal não o viu. Mas a que tinha
escondido no mato mais afastado, sim. Avistou de relance alguém trajando
uniforme de camuflagem atravessando às pressas a vegetação rasteira.
Voltou-se rapidamente, só que tarde demais para identificar o rosto. Deu de
ombros e refletiu bem. Calculou que não contaria para ninguém. Melhor
ignorar do que relatar que não tinha conseguido fazer a identificação.
Então o rapaz com a cicatriz percorreu rapidamente toda a distância e
voltou para a sua cabana, dois minutos antes do seu compromisso de
acompanhar seu comandante à audiência do tribunal.

À luz do dia, o tribunal no canto sudeste da cidade abandonada de Yorke se


assemelhava muito com centenas de outras construções que Reacher havia
conhecido em toda parte pelo interior do país. Construído no começo do
século vinte. Grande, branco, sustentado por pilares, ornamentado. Bastante
solidez quadrada para expressar uma finalidade séria, mas muita leveza nos
detalhes para torná-la uma estrutura bonita. Viu uma cúpula sobressaindo
no topo do prédio, com um relógio, pago provavelmente por uma verba
pública há muito tempo, por uma geração há muito tempo esquecida. Mais
ou menos como centenas de outros, mas o telhado era mais anguloso e
construído com mais solidez. Calculou que tinha que ser assim no norte de
Montana. Esse telhado precisava suportar cem toneladas de neve durante
todo o inverno.
Mas esta era a terceira manhã de julho e não havia neve no telhado.
Reacher ficou encharcado após andar um quilômetro e meio no tímido sol
setentrional. Borken tinha ido adiante, separadamente, e Reacher havia sido
escoltado pela floresta pelos mesmos seis guardas de elite. Ainda algemado.
Fizeram-no subir direto pelos degraus e entrar. O interior do primeiro andar
era um espaço amplo, interrompido por colunas que sustentavam o segundo
andar, revestido com tábuas lisas largas, serradas de enormes pinheiros. A
madeira estava escurecida por causa da idade e do verniz, e os painéis
tinham um estilo severo e simples.
Todos os assentos estavam ocupados. Todos os bancos preenchidos. O
salão era um mar de roupas de camuflagem verde. Homens e mulheres.
Sentados rigidamente, eretos, rifles bem verticais entre os joelhos.
Esperando cheios de expectativas. Algumas crianças, silenciosas e
confusas. Reacher foi conduzido na frente da multidão, até uma mesa na
parte larga do tribunal. Fowler aguardava lá. Stevie ao seu lado. Apontou
com a cabeça para uma cadeira. Reacher se sentou. Os guardas ficaram
atrás dele. Um minuto depois, as portas duplas se abriram e Beau Borken se
dirigiu até a cadeira do juiz. O assoalho velho rangia sob seu peso. Cada
uma das pessoas no salão, excetuando Reacher, se levantou. Ficaram em
posição de sentido e bateram continência, como se tivessem ouvido uma
deixa inaudível. Borken ainda vestia seu uniforme preto, com cinto e botas.
Havia adicionado um grande coldre para sua Sig Sauer. Segurava um livro
fino encadernado em couro. Entrou com os seis homens armados em
formação livre. Foram para seus postos, na frente do banco, e ficaram em
posição rígida de sentido, olhando para a frente, inexpressivos.
As pessoas voltaram a se sentar. Reacher visualmente dividiu o teto em
quadrantes. Elaborando qual era o canto sudeste. As portas se abriram
novamente e a multidão inspirou. Loder foi empurrado para dentro do
recinto. Cercado por seis guardas. Empurraram-no para a mesa oposta à de
Fowler. A mesa do réu. Os guardas se puseram atrás dele e o forçaram a
sentar na cadeira com ambas as mãos nos ombros do sujeito. O rosto estava
branco de medo e encrostado de sangue. O nariz, quebrado, e os lábios,
rachados. Borken o fitou. Sentou-se pesadamente na cadeira do juiz e
colocou as mãos enormes, de palmas para baixo, na tribuna. Olhou ao redor
do salão quieto e falou:
— Todos nós sabemos por que estamos aqui, certo?

Holly sentia que havia uma grande multidão no salão embaixo dela. Podia
perceber o burburinho de uma multidão se mantendo imóvel e quieta. Mas
não parou de trabalhar. Não havia razão para acreditar que o infiltrado
falharia, mas mesmo assim passaria o dia se preparando. Por via das
dúvidas.
A busca por uma ferramenta a conduziu à que tinha trazido consigo:
sua muleta de metal. Era um tubo de alumínio de uma polegada, com uma
calha de cotovelo e um punho. O tubo era largo demais e o alumínio não
dava para ser usado como de pé de cabra. Mas deduzir que, se retirasse o pé
de borracha, a extremidade aberta do tubo poderia ser transformada numa
chave de fenda improvisada. Poderia talvez amassar o tubo em torno dos
parafusos que seguravam a cama. Depois dobraria o tubo num ângulo reto e
quem sabe conseguiria usá-lo como uma espécie de ferramenta de
desmontar pneus, embora bem frágil.
Mas primeiro teve que raspar a tinta espessa dos parafusos. Era macia,
lisa e prendia os parafusos à armação. Usou a borda da calha do cotovelo
para esfarelar as camadas superiores. Depois raspou nas emendas até ver o
metal brilhante. Agora pretendia mancar até o banheiro e voltar várias vezes
com uma toalha embebida em água quente. Pressionaria forte a toalha nos
parafusos e deixaria o calor expandir o metal e aliviar o aperto. Então o
alumínio macio da muleta poderia se mostrar forte o bastante para
conseguir o resultado.

— Colocou a missão em perigo negligentemente — Beau Borken disse.


Sua voz era baixa e hipnótica. O salão estava quieto. Os guardas na
frente da cadeira do juiz olhavam fixamente para a plateia. O guarda na
extremidade encarava Reacher. Era o rapazinho, com a barba aparada e a
cicatriz na testa que Reacher tinha visto guardando Loder na noite anterior.
Encarava Reacher com curiosidade.
Borken segurou o volume fino encadernado em couro e o balançou
lentamente, da direita para a esquerda, como se fosse um holofote e ele
quisesse banhar o salão todo com seu feixe brilhante.
— A Constituição dos Estados Unidos — disse. — Tristemente
abusada, porém o maior tratado político já criado pelo homem. O modelo
da nossa própria Constituição.
Virou as páginas do livro. O farfalhar do papel espesso se fez alto no
salão silencioso. Começou a ler:
— A Declaração de Direitos — disse. — A Quinta Emenda especifica
que nenhuma pessoa será presa para responder por um crime capital sem
uma acusação do Grande Júri, exceto nos casos que envolvam a milícia, em
período de perigo público. Diz que nenhuma pessoa será privada da sua
vida ou da sua liberdade sem o devido processo judicial. A Sexta Emenda
especifica que o acusado terá direito a um julgamento público rápido, na
frente de um júri local. Diz que o acusado tem direito ao auxílio do
aconselhamento.
Borken parou novamente. Olhou ao redor do salão. Segurou o livro.
— Este livro nos diz o que fazer — informou. — Então, precisamos de
um júri. Não diz de quantas pessoas. Eu imagino que três homens sejam o
bastante. Voluntários?
Um monte de mãos se levantou. Borken apontou aleatoriamente, aqui
e ali, e três homens atravessaram o assoalho de pinho. Encostaram seus
rifles e entraram em fila na banca dos jurados. Borken girou em seu assento
e falou com eles:
— Cavalheiros — começou. — Isto é assunto da milícia e este é um
momento de perigo público. Estamos de acordo com isso?
Todos os novos jurados confirmaram com a cabeça e Borken se voltou
e olhou de sua cadeira para Loder, sozinho à sua mesa.
— Você recebeu aconselhamento? — perguntou.
— Agora você está me oferecendo um advogado? — Loder
questionou.
Sua voz estava gutural e anasalada. Borken balançou a cabeça
negativamente.
— Não há advogados aqui — ele disse. — Foram os advogados que
foderam o resto dos Estados Unidos. Não vamos ter advogados aqui. Não
os queremos. A Declaração de Direitos não fala nada sobre advogados. Diz
aconselhamento. Aconselhamento significa conselho. É isso que meu
dicionário diz. Você teve aconselhamento? Você quer um conselho?
— Você tem algum? — perguntou Loder.
Borken confirmou com a cabeça e deu um sorriso frio.
— Confesse sua culpa.
Loder apenas fez que não com a cabeça e baixou os olhos.
— Está bem — Borken disse. — Você recebeu conselho, mas está se
declarando inocente?
Loder confirmou com a cabeça. Borken baixou os olhos para seu livro
novamente. Voltou de novo para o começo:
— A Declaração de Independência — disse. — É o direito do povo de
alterar ou abolir o antigo governo e instituir um novo que lhe pareça mais
provável de trazer segurança e felicidade.
Parou e passou os olhos por toda a multidão.
— Vocês entendem o que isso significa? — perguntou. — As leis
velhas já não existem mais. Agora a gente tem novas. Maneiras novas de
fazermos as coisas. Estamos consertando duzentos anos de erros. Vamos
voltar para onde nunca deveríamos ter saído. Este é o primeiro julgamento
sob um sistema novinho em folha. Um sistema melhor. Um sistema com
uma pretensão muito mais forte à legalidade. A gente tem direito de fazer
isso, e o que estamos fazendo é certo.
Houve um ligeiro murmúrio da multidão. Reacher não detectou
qualquer desaprovação no som. Estavam todos totalmente hipnotizados.
Aquecendo-se no esplendor brilhante de Borken, como répteis sob o sol
quente do meio-dia. Borken fez sinal com a cabeça para Fowler. Fowler se
levantou ao lado de Reacher e se voltou para a banca dos jurados.
— Os fatos são os seguintes — Fowler começou. — O comandante
mandou Loder numa missão de grande importância para o nosso futuro.
Loder teve um péssimo desempenho. Ficou fora apenas cinco dias, mas
cometeu cinco erros graves. Erros que poderiam ter destruído toda a missão.
Primeiro, deixou um rastro ao queimar dois veículos. Depois escolheu o
momento errado para dois ataques e pegou dois civis. E, finalmente,
permitiu que Peter Bell desertasse. Cinco erros graves.
Fowler ficou parado lá. Reacher o encarou, com urgência.
— Vou chamar uma testemunha — Fowler avisou. — Stevie Stewart.
O Pequeno Stevie se levantou rapidamente e Fowler lhe indicou com a
cabeça a antiga cadeira das testemunhas, ao lado e abaixo da cadeira do
juiz. Borken se inclinou e entregou a ele um livro preto. Reacher não
conseguiu ver que livro era, mas não era uma Bíblia. A menos que tivessem
começado a fazer Bíblias com suásticas na capa.
— Você jura dizer a verdade? — Borken perguntou.
Stevie meneou afirmativamente com a cabeça.
— Eu juro, senhor — respondeu.
Ele abaixou o livro e se voltou para Fowler, pronto para a primeira
pergunta.
— Os cinco erros que eu mencionei — Fowler disse. — Você viu
Loder cometê-los?
Stevie concordou com a cabeça novamente.
— Sim, ele cometeu sim — afirmou.
— Assumiu a responsabilidade por eles? — Fowler perguntou.
— Com certeza — Stevie disse. — Bancou o chefão o tempo todo que
ficamos fora.
Fowler acenou com a cabeça para Stevie voltar à mesa. A sala do
tribunal ficou em silêncio. Borken sorriu astutamente para os jurados e
baixou os olhos para Loder.
— Tem algo a dizer em sua defesa? — perguntou baixinho.
A maneira como ele perguntou fez parecer absurdo que alguém
pudesse arquitetar qualquer tipo de defesa contra tais acusações. O tribunal
permaneceu em silêncio, imóvel. Borken ficou observando a multidão.
Cada par de olhos estava cravado na cabeça de Loder.
— Algo a dizer? — Borken perguntou novamente.
Loder olhou para frente. Não deu nenhuma resposta. Borken se voltou
para o júri e encarou o trio sentado nos velhos bancos gastos. Com uma
indagação nos olhos. Os três homens se reuniram por um segundo e
sussurraram. Então o sujeito à esquerda se levantou.
— Culpado, senhor. Definitivamente culpado.
Borken meneou a cabeça com satisfação.
— Obrigado, cavalheiros.
A multidão fez um burburinho. Ele se voltou para estancá-lo com um
olhar.
— Devo pronunciar a sentença. Como muitos de vocês sabem, Loder é
um velho conhecido meu, de longa data. Fomos amigos de infância. E
amizade significa muito para mim.
Fez uma pausa e desceu os olhos para Loder.
— Mas há outras coisas que significam mais. O cumprimento dos
meus deveres significa mais. A minha responsabilidade para com esta nação
emergente significa mais. Às vezes, o estado deve ser colocado acima de
todos os outros valores estimados por um homem.
A multidão ficou em silêncio. Com o fôlego preso. Borken continuou
imóvel por algum tempo. E então lançou os olhos por cima da cabeça de
Loder até os guardas atrás dele e fez um pequeno e delicado gesto com a
cabeça. Os guardas agarraram os cotovelos de Loder e o forçaram a ficar de
pé. Entraram em formação e o empurram para fora do tribunal. Borken se
levantou e encarou a multidão. Então se voltou e se dirigiu para a saída. A
multidão nos bancos públicos se levantou com um arrastar de pés e o seguiu
rapidamente.
Reacher observou os guardas levarem Loder até um mastro de
bandeira no trecho gramado nos arredores do tribunal. Borken os seguia a
passos largos. Os guardas chegaram até o mastro e empurraram a cara de
Loder com força na direção do mesmo. Seguraram seus pulsos e os
puxaram, dessa forma, ficou pressionado contra o mastro, abraçando-o, com
o rosto apertado contra a tinta branca fosca. Borken se colocou atrás dele.
Sacou a Sig Sauer. Soltou a trava de segurança. Colocou uma bala na
câmara. Encostou o cano na nuca de Loder e apertou o gatilho. Houve uma
explosão de sangue escarlate, e o estrondo do tiro ecoou pelas montanhas.
26

— O NOME DO SUJEITO É JACK REACHER — Webster disse.


— Então, general — McGrath aquiesceu. — Suponho que o sistema se
lembre dele.
Johnson confirmou com a cabeça.
— A polícia do exército é eficaz em manter registros — ele afirmou.
Ainda estavam na sala que tomaram posse na Base Peterson da força
aérea. Dez da manhã, quinta-feira, 3 de julho. O fax desenrolava uma
resposta longa à sua indagação. O rosto na fotografia tinha sido identificado
imediatamente. A ficha de serviço do investigado foi levantada às pressas
do computador do Pentágono e enviada junto com o nome.
— Sabe algo? Lembra-se de algo? — Brogan perguntou.
— Reacher...? — Johnson repetiu vagamente. — Eu não tenho certeza.
O que ele fez?
Webster e o assessor do general se espremiam junto à máquina, lendo
o relatório enquanto o papel saía. Viraram-no para cima e andaram
lentamente para trás, a fim de mantê-lo fora do chão.
— E aí, gente? O que ele fez?! — McGrath perguntou com urgência.
— Nada — Webster afirmou.
— Nada?!? — McGrath repetiu. — Por que teriam uma ficha dele se
não fez nada?
— Na verdade, era um deles — Webster disse. — Major Jack Reacher,
polícia do exército.
O assessor estava lendo o pedaço de papel com toda a pressa.
— Uma Estrela de Prata — ele disse. — Duas de bronze, Coração
Púrpura. É uma ficha e tanto, senhor. Puxa vida! Este cara foi um herói.
McGrath abriu seu envelope e retirou as fotos originais do vídeo do
sequestro, em preto e branco, não ampliadas, sem granulação. Selecionou a
primeira foto da participação de Reacher. A que o pegava no ato de tomar a
muleta de Holly e de arrancar as roupas limpas da sua mão. Deslizou a
fotografia na mesa.
— Grande herói — ironizou.
Johnson se curvou para estudar a foto. McGrath deslizou a seguinte. A
que mostrava Reacher segurando um braço de Holly, mantendo-a dentro do
grupo coeso de bandidos. Johnson pegou e a analisou. McGrath não tinha
certeza se ele estava olhando para Reacher ou para sua filha.
— Trinta e sete anos — o assessor do general leu em voz alta. — Deu
baixa quatorze meses atrás. West Point, serviu treze anos, grandes atos de
heroísmo em Beirute, logo no início. O senhor colocou uma estrela de
bronze nele, há dez anos. Esta é uma ficha absolutamente incrível, de ponta
a ponta. Ele foi o único não fuzileiro da história a ganhar o Wimbledon.
Webster ergueu os olhos.
— Tênis? — perguntou.
O assessor sorriu momentaneamente.
— Não é em Wimbledon — ele disse. — É o Wimbledon. A escola de
franco-atiradores da marinha realiza uma competição, a Copa Wimbledon.
Para franco-atiradores. Aberta para qualquer um, mas um fuzileiro naval
sempre ganha, só que em um ano Reacher ganhou.
— Então por que não serviu como franco-atirador? — McGrath
perguntou.
O assessor deu de ombros.
— Não faço a menor ideia — ele respondeu. — A ficha dele é bastante
enigmática. Tipo, por que ele parou de servir? Um cara como este chegaria
ao topo.
Johnson tinha uma foto em cada mão e as fitava minuciosamente.
— Então por que ele saiu? — Brogan perguntou. — Algum problema?
O assessor balançou a cabeça negativamente. Examinou o papel.
— Não consta absolutamente nada — disse. — Não deram nenhuma
razão. Estávamos nos livrando de contingente, na época, mas a ideia era
limar os sem futuro. Um sujeito como este não deveria ter sido dispensado.
Johnson trocou as fotografias de mão, como se estivesse procurando
uma nova perspectiva.
— Alguém conhece ele muito bem? — Milosevic perguntou. — Tem
alguém com quem a gente possa falar?
— Podemos achar seu antigo comandante, suponho — o assessor
disse. — Acredito que em vinte e quatro horas posso conseguir contatá-lo.
— Faça isso — Webster ordenou. — A gente precisa de informação.
Qualquer coisa serve.
Johnson colocou as fotografias na mesa e as deslizou de volta para
McGrath.
— Ele deve ter virado bandido — especulou. — Acontece, às vezes.
Bons homens podem virar bandidos. Eu mesmo já vi isso acontecer de
tempos em tempos. Pode ser um problemaço.
McGrath inverteu as fotografias na mesa lustrosa e as fitou.
— Na certa — ele disse.
Johnson voltou a olhar para ele.
— Posso ficar com essa foto? — pediu. — A primeira?
McGrath balançou a cabeça negativamente.
— Não — ele disse. — Você quer uma foto, eu mesmo tiro. Você e sua
filha na frente de uma lápide com o nome deste pilantra.
27

QUATRO HOMENS ESTAVAM ARRASTANDO O CORPO DE LODER


para longe enquanto a multidão se dispersava em silêncio. Reacher foi
deixado nos degraus do tribunal com seus seis guardas e Fowler. Fowler
havia finalmente aberto as algemas. Reacher estava rolando os ombros e se
espreguiçando. Tinha ficado algemado a noite e a manhã todas e estava
todo rígido e cheio de dores. Seus pulsos ficaram marcados com vergões
vermelhos onde o metal cortante pressionara.
— Vai um cigarro? — Fowler perguntou estendendo o maço. Um gesto
amigável. Reacher balançou a cabeça negativamente.
— Eu quero ver Holly — ele pediu.
Fowler estava a ponto de recusar, mas pensou um pouco mais e
concordou com a cabeça.
— Está bem — ele disse. — Boa ideia. Leve ela para fazer exercícios.
Converse. Pergunte como ela está sendo tratada. Isso é algo que na certa
vão perguntar a você mais tarde. Será muito importante para eles. A gente
não quer que você dê a eles nenhuma impressão falsa.
Reacher esperou na base dos degraus. O sol tinha ficado encoberto e
fraco. Tufos de névoa se juntavam ao norte. Mas um pedacinho do céu
ainda estava azul e claro. Depois de cinco minutos, Fowler trouxe Holly
para baixo. Andando devagar, com o ritmo um pouco quebrado, conforme
seu pé bom se alternava com a batida da muleta. Ela atravessou a porta e
ficou parada no topo dos degraus.
— Uma última pergunta, Reacher: — Fowler gritou para baixo —
quanto você consegue correr em meia hora com uns cinquenta quilos nas
costas?
Reacher deu de ombros.
— Não muito, suponho.
Fowler balançou a cabeça.
— Certo — disse. — Não muito longe. Se ela não estiver bem aqui em
trinta minutos, a gente vai atrás de você. Vamos te dar uma vantagem de
três quilômetros.
Reacher pensou nisso e balançou a cabeça. Conseguiria ir mais longe
que três quilômetros em meia hora com cinquenta quilos nas costas. Três
quilômetros eram provavelmente uma estimativa pessimista. Mas refletiu
sobre o mapa na parede de Borken. Pensou sobre o terreno selvagem. Para
onde diabos correria? Verificou o relógio com espalhafato. Fowler se
afastou, subiu e foi para trás do decrépito prédio de escritórios. Os guardas
jogaram as armas sobre o ombro e relaxaram. Holly alisou o cabelo para
trás. Ficou de frente para o mormaço.
— Consegue andar por algum tempo? — Reacher perguntou.
— Lentamente.
Ela se dirigiu para o norte no meio da rua deserta. Reacher caminhou
ao seu lado. Esperaram até ficar fora de vista. Olharam de relance um para
o outro. Então se voltaram e se lançaram num abraço daqueles. A muleta
caiu no chão e ele levantou a moça trinta centímetros no ar. Ela passou os
braços em torno do pescoço dele e enterrou o rosto.
— Estou pirando lá dentro — ela disse.
— Tenho uma má notícia — ele começou.
— O quê? — ela perguntou.
— Tiveram ajuda de Chicago.
Ela ergueu os olhos e o encarou.
— Ficaram apenas cinco dias fora — ele contou. — Foi o que Fowler
disse no julgamento. Afirmou que Loder tinha ficado fora apenas cinco
dias.
— E daí? — ela perguntou.
— E daí que eles não tiveram tempo para ficar de tocaia — concluiu.
— Não estavam vigiando você. Alguém contou a eles onde você estaria e
quando. Tiveram ajuda, Holly.
O rosto dela perdeu a cor. Foi substituído por uma onda de choque.
— Cinco dias!?! — ela disse. — Tem certeza?
Reacher confirmou com a cabeça. Holly emudeceu. Pensando com
muita concentração.
— Então... quem sabia? — ele perguntou. — Quem sabia onde você ia
estar ao meio-dia na segunda-feira? Alguém que mora com você? Um
amigo?
Seus olhos se lançavam da esquerda para a direita. Estava revisando
vertiginosamente as possibilidades.
— Ninguém sabia — ela disse.
— Você foi seguida alguma vez? — ele perguntou.
Ela deu de ombros, impotente. Reacher podia ver que ela queria
desesperadamente dizer: Sim, fui seguida. Porque ele sabia que dizer não
seria terrível demais para ela considerar.
— Foi? — ele voltou a perguntar.
— Não — disse baixinho. — Por um desses palhaços? Esquece. Eu
teria percebido. Eles teriam que ficar nos arredores do prédio federal o dia
todo, simplesmente esperando. A gente teria pegado eles num piscar de
olhos.
— Então? — ele insistiu.
— Minha hora de almoço era flexível — ela relatou. — Variava, às
vezes duas horas para menos ou para mais. Nunca era regular.
— Mais uma vez: então? — ele queria que ela concluísse.
Ela o encarou.
— Então eles têm um infiltrado — ela concluiu. — No próprio FBI.
Não tem outra. Pensando bem, nenhuma outra possibilidade. Alguém no
escritório me viu sair e ligou.
Ele não disse nada. Apenas observou o desânimo no rosto da mulher.
— Um infiltrado em Chicago — ela afirmou, não perguntou. —
Dentro do FBI. Não tem outra. Merda, eu não acredito.
Então deu um breve sorriso amargo.
— Mas temos um infiltrado aqui — ela revelou. — Irônico, não é? Ele
se identificou para mim. Um cara novo, cicatriz grande na testa. É agente
secreto do FBI. Diz que temos gente em muitos destes grupos.
Profundamente infiltrados, em caso de urgência. Ele avisou quando
colocaram a dinamite dentro das minhas paredes.
Voltou a olhar fixamente para ela.
— Você sabia sobre a dinamite? — indagou.
Ela fez uma careta e confirmou com a cabeça.
— Não é de admirar que você esteja pirando lá dentro — ele disse.
Então a encarou com uma nova expressão de pânico.
— Quem recebe as ligações do agente infiltrado? — perguntou com
urgência.
— Nossa filial em Butte — Holly respondeu. — É apenas um
escritório-satélite. Um agente residente. Se comunica pelo rádio. Tem um
transmissor escondido na floresta. Mas ele não o está usando agora. Diz que
estão checando as frequências.
Ele sentiu um arrepio.
— Então quanto falta para o filho da puta de Chicago acabar com o
disfarce dele? — perguntou.
Holly ficou mais pálida ainda.
— Será logo, suponho — ela disse. — Logo que alguém descobrir que
a gente estava vindo nessa direção. Chicago vai checar os computadores e
fazer uma busca em todos os comunicados de Montana. A informação dele
estará no topo da pilha. Minha nossa, Reacher, você tem que chegar até ele
primeiro. Você tem que avisá-lo. Ele se chama Jackson.
Voltaram-se. Começaram a apertar o passo para o sul pela cidade
fantasma.
— Ele diz que pode me tirar daqui — Holly contou. — Hoje à noite,
de jipe.
Reacher balançou a cabeça severamente, concordando.
— Vá com ele — ele pediu.
— Não sem você — ela afirmou.
— De qualquer maneira, estão me enviando — ele disse. — Querem
que eu seja um emissário. Devo dizer à sua gente que não tem escapatória.
— Você vai? — ela perguntou.
Ele negou com a cabeça.
— Não se eu puder evitar — ele disse. — Não sem você.
— Você devia ir — ela aconselhou. — Não esquente comigo.
Ele negou com a cabeça novamente.
— Estou preocupado contigo.
— Apenas vá. Esqueça de mim e some daqui.
Ele deu de ombros. Ficou em silêncio.
— Se manda. Reacher — ela pediu. — Estou falando sério.
Parecia estar falando sério mesmo. Olhava enfezada para ele.
— Somente se você for primeiro — ele disse finalmente. — Vou ficar
por aqui até que você esteja longe. Eu definitivamente não vou deixar você
com esses maníacos.
— Mas você não pode ficar aqui — ela pediu. — Se eu fugir, vão ficar
doidos e isso mudará tudo.
Ele olhou para ela. Lembrou-se de Borken dizer: Ela é mais do que
filha dele.
— Por que, Holly? — ele quis saber. — Por que mudará tudo? Quem
diabos é você?
Ela não respondeu. Olhou para longe. Fowler apareceu, vindo do
norte, fumando. Andou até eles. Parou bem na frente. Puxou seu maço.
— Cigarro? — perguntou.
Holly olhou para o chão. Reacher recusou com a cabeça.
— Ela contou para você? — Fowler perguntou. — Sobre todos os
confortos do lar que recebeu?
Os soldados estavam em posição de sentido, como um tipo de guarda
de honra, nos degraus do tribunal. Fowler levou Holly até eles. Um guarda
a conduziu para dentro. Na porta, ela voltou a olhar para Reacher. Ele
balançou a cabeça para ela. Tentou expressar Vejo você mais tarde, tá legal?
Então, ela se foi.

— Agora a grande turnê — Fowler disse. — Fique perto de mim. Ordens


do Beau. Mas pode fazer todas as perguntas que quiser, está bem?
Reacher olhou vagamente para ele e balançou a cabeça. Olhou de
soslaio para os seis guardas atrás dele. Desceu os degraus e fez uma pausa.
Olhou para o mastro da bandeira. Ficava bem no centro do que restara de
um quadrado fino de gramado na frente do prédio. Andou até ele e parou
sobre o sangue de Loder, olhando ao redor.
A cidade de Yorke estava praticamente morta. E há bastante tempo. E
não tinha sido lá grande coisa, para começo de conversa. A estrada seguia
do norte para o sul e houvera quatro quarteirões digamos, desenvolvidos,
flanqueando-a, dois no lado leste e dois no oeste. O tribunal ocupava todo o
quarteirão sudeste e ficava de frente para o que poderia ter sido algum tipo
de prefeitura do condado, no quarteirão sudoeste. O lado esquerdo da rua
era mais elevado. O chão se inclinava acentuadamente para cima. O alicerce
do prédio do cartório do condado era, mais ou menos, da mesma altura do
segundo andar do tribunal. Tinha começado com o mesmo tipo de estrutura,
mas havia caído em ruínas, talvez trinta anos antes. A pintura estava
descascada e a lateral deixava um vergalhão cinzento à mostra. Não havia
vidro em nenhuma janela. O montículo inclinado que o cercava voltara a ter
arbustos. Existira uma árvore decorativa bem no centro, que morrera há
muito tempo, e era agora apenas um tronco, de talvez dois metros de altura,
como um tronco de espancamento.
Os quarteirões do norte eram fileiras de lojas abandonadas, cobertas
com tábuas. Houvera fachadas ornamentadas altas, ocultando simples
prédios quadrados, mas a deterioração as tinha deixado com o mesmo
marrom fosco das estruturas de madeira quadradas de trás. As placas acima
das portas tinham desbotado até sumir. Não havia viva alma nas calçadas.
Nenhum barulho de veículos, nenhuma atividade, nada mesmo. O lugar era
uma cidade fantasma. Parecia uma cidade abandonada de caubóis do Velho
Oeste.
— Esta era uma cidade de mineração — Fowler disse. — Chumbo, na
maior parte, mas tinha algum cobre, e, por algum tempo, certa quantidade
de prata da boa. Ganharam muito dinheiro aqui, com toda certeza.
— E o que aconteceu? — Reacher perguntou.
Fowler deu de ombros.
— O que acontece com todo lugar de mineração? — indagou. — Se
esgota, morre. Cinquenta anos atrás, o pessoal registrava demarcação de
terras naquele velho cartório do condado, como se o amanhã não existisse, e
as disputava naquele tribunal velho, e havia bares, bancos e lojas em toda a
rua. Então começaram a extrair apenas terra em vez de metal, e seguiram
viagem. O que se vê agora é o que foi deixado para trás.
Fowler estava olhando ao redor para a paisagem lúgubre, e Reacher
seguia o seu olhar. Então olhou para cima, levemente, e absorveu a vista das
montanhas gigantes que se assomavam no horizonte. Eram maciças e
inóspitas, ainda com trechos de neve no dia 3 de julho. A névoa pairava
sobre as passagens e flutuava através das coníferas densas. Fowler se
moveu e Reacher o seguiu, subindo uma trilha que se lançava íngreme para
o noroeste, por trás do cartório arruinado do condado. Os guardas seguiam
em fila indiana atrás. Percebeu que esta era a trilha na qual havia esbarrado
duas vezes no escuro, na noite anterior. Depois de cem metros, chegaram às
árvores. A trilha curvava-se morro acima através da floresta. O progresso
era mais fácil na luz filtrada do dia por entre a vegetação. Tinham avançado
talvez um quilômetro em linha reta e chegaram até o furgão branco que
havia entrado na clareira na noite anterior. Havia um pelotão pequeno de
sentinelas, armadas e imaculadas, em posição de sentido no centro do
espaço. Mas não havia nenhum sinal do veículo. Havia sido levado dali.
— A gente chama isto de baluarte — Fowler disse. — Estes foram os
primeiros acres que a gente comprou.
Na luz clara do dia, o lugar parecia diferente. O baluarte era uma
grande clareira, rodeada por moitas, aninhada numa cavidade da montanha,
cem metros acima da própria cidade. Não havia nenhuma degradação feita
pelo homem. Tinha sido criada há milhões de anos pelas grandes geleiras
que desciam ruidosamente do polo. Os lados norte e oeste eram
montanhosos, elevando-se em linha reta até os picos elevados. Reacher viu
neve novamente, amontoada pelo vento nas valas altas que davam para o
norte. Se ela estava lá em julho, devia ficar lá os doze meses do ano.
A sudeste, mal dava para ver a cidade abaixo deles, em meio às
clareiras nas árvores, onde a trilha havia sido aberta. Reacher podia ver o
prédio em ruínas do cartório do condado e o do tribunal, branco,
posicionados abaixo dele como numa maquete. Diretamente ao sul, as
ladeiras da montanha terminavam na floresta densa. Onde não havia
nenhuma árvore, apareciam ravinas silvestres. Reacher as contemplou
quieto. Fowler apontou.
— Algumas delas têm trinta metros de profundidade — ele disse. —
Cheias de alces e carneiros selvagens. Ah... e também ursos negros
perambulando. Algumas pessoas viram até leões da montanha rondando por
aí. Dá para ouvi-los à noite, quando o verdadeiro silêncio começa.
Reacher balançou a cabeça e sentiu o impressionante silêncio. Tentou
calcular o quanto mais quietas as noites poderiam ser. Fowler se voltou e
apontou em várias direções.
— Foi isto que a gente construiu — ele mostrou. — Até agora.
Reacher balançou a cabeça novamente. A clareira continha dez
prédios. Todos grandes estruturas funcionais de madeira, construídas com
tábuas de compensado e de cedro, apoiando-se em colunas maciças de
concreto. Todo prédio tinha seu gerador de energia, que corria por um cabo
pesado que passava entre eles.
— A torre é da cidade — Fowler disse. — Um quilômetro e meio de
cabo. A água potável também vem de um lago intocado da montanha
através de encanamento de PVC, instalado pelo pessoal da milícia.
Reacher olhou para a cabana na qual tinha ficado preso a maior parte
da noite. Era menor do que as outras.
— É a cabana da administração — Fowler disse.
Uma das cabanas tinha uma antena chicote no telhado, talvez de vinte
metros de altura. Para o rádio de ondas curtas. E Reacher podia ver um cabo
mais fino, preso com correias aos fios de eletricidade. Ele serpenteava para
a mesma cabana e não saía novamente.
— Vocês têm telefone? — perguntou. — Fora da lista, certo?
Apontou e Fowler seguiu o seu olhar.
— Linha telefônica? — queria precisar. — Ela vem de Yorke com o
cabo de força. Mas não temos telefone. O governo mundial grampearia
nossas ligações.
Gesticulou para Reacher segui-lo até a cabana com a antena, onde o fio
terminava. Entraram juntos, empurrando a porta estreita. Fowler estendeu
as mãos com um pequeno gesto de orgulho.
— A cabana de comunicações — ele disse.
A cabana era escura e tinha uns seis metros por quatro. Dois homens
no interior, um agachado sobre um gravador de fita magnética, escutando
algo com fones de ouvido, o outro girando lentamente o seletor de um
escâner de rádio. Ambos os lados longos da cabana tinham bancadas de
madeira rústicas. Reacher olhou para a aresta e viu o fio de telefone
entrando por um furo feito na parede. Descia em espiral e estava conectado
a um modem. O modem estava ligado a dois computadores.
— Internet da milícia nacional — Fowler esclareceu.
Um segundo fio contornava os computadores e estava conectado a um
fax, que zumbia sozinho e liberava lentamente um caracol de papel.
— A rede patriótica de fax — Fowler disse.
Reacher balançou a cabeça e chegou mais perto. O fax se encontrava
na bancada, ao lado de outro computador e um grande rádio de ondas
curtas.
— Esta é a mídia das sombras — Fowler brincou. — A gente depende
de todo este equipamento para obter a verdade sobre o que está acontecendo
nos Estados Unidos. É o único jeito de se conseguir a realidade.
Reacher olhou tudo pela última vez e deu de ombros.
— Estou com fome — ele avisou. — Essa é a minha realidade. Nada
de jantar e nem café da manhã. Tem algum lugar que sirva café?
Fowler olhou para ele e sorriu.
— Claro — disse. — O refeitório serve o dia todo. O que você acha
que a gente é? Um bando de selvagens?
Dispensou os seis guardas e gesticulou novamente para que Reacher o
seguisse. O refeitório ficava ao lado da cabana de comunicações. Tinha
aproximadamente quatro vezes o tamanho dela, com o dobro do
comprimento e da largura. Do lado de fora havia uma chaminé construída
junto do telhado, feita de metal galvanizado brilhante. O interior estava
cheio de mesas comunitárias rústicas de cavalete, em filas perfeitas, bancos
simples dispostos com cuidado embaixo. Cheirava a comida velha, e o
cheiro empoeirado que os grandes espaços comunitários sempre têm.
Havia três mulheres trabalhando lá dentro. Estavam limpando as
mesas. Vestiam fardas verde-oliva, e todas tinham cabelos compridos e
penteados e rostos sem maquiagem, as mãos sem nenhuma joia. Pararam de
trabalhar quando Fowler e Reacher caminharam para dentro. Ficaram
apenas juntas, observando. Reacher reconheceu uma delas da sala do
tribunal. Ela fez um aceno cauteloso de cabeça para ele como cumprimento.
Fowler deu um passo para a frente.
— Nosso convidado ficou sem o café da manhã — ele ralhou.
A mulher cautelosa balançou a cabeça novamente.
— Pois não — ela disse. — O que posso trazer para você?
— Qualquer coisa — Reacher pediu. — Contanto que inclua café.
— Me dê cinco minutos — a mulher solicitou.
Ela conduziu as outras duas para longe, através de uma porta onde a
cozinha ficava em posição elevada nos fundos. Fowler se sentou a uma
mesa e Reacher pegou o banco oposto.
— Este lugar é usado para as refeições três vezes por dia — Fowler
explicou. — O resto do tempo, à tarde e à noite principalmente, é usado
como ponto central de reunião da comunidade. Beau sobe numa mesa e diz
ao povo o que precisa ser feito.
— Onde está o Beau neste instante? — Reacher perguntou.
— Você vai ver ele antes de ir embora — Fowler garantiu. — Conte
com isso.
Reacher balançou a cabeça lentamente e focalizou as montanhas
através da janelinha. O novo ângulo deu a ele um vislumbre de uma escala
mais afastada, talvez oitenta quilômetros de distância, pairando lá na
vastidão, entre a terra e o céu. O silêncio ainda era impressionante.
— Onde está todo mundo? — perguntou.
— Trabalhando — Fowler afirmou. — Trabalhando e treinando.
— Trabalhando? — Reacher indagou. — Trabalhando no quê?
— Construindo o perímetro sul — Fowler disse. — As ravinas são
rasas em uns dois lugares. Tanques podem penetrar. Você sabe o que é um
abatis?
Reacher se mostrou inexpressivo. Ele sabia o que era um abatis. Todo
graduado de West Point sabia o que era um abatis. Mas não ia deixar
Fowler saber exatamente o quanto sabia sobre qualquer coisa, nem a pau.
Por isso, apenas não mostrou qualquer expressão.
— Derrubamos algumas árvores — Fowler disse. — Derrubamos uma
a cada grupo de cinco ou seis. Deixamos cair apontando para dentro da
comunidade. As árvores por aqui são na maior parte pinheiros silvestres, os
ramos apontam para cima, certo? Assim, quando são derrubados, os ramos
ficam apontando para quem se defende e não para o inimigo. O tanque sobe
na extremidade cortada da árvore, tenta empurrar. Mas os ramos ficam
presos nas árvores que você deixou de pé. Muito em breve esse tanque
tentará arrastar duas ou três árvores. Depois quatro ou cinco. Mas não tem
como. Mesmo um tanque grande como um Abrams não consegue fazer isso.
Ele tem uma turbina a gás de mil e quinhentos cavalos, sessenta e três
toneladas, vai parar quando tentar empurrar todas essas árvores. Mesmo se
enviarem grandes tanques russos pra cá contra nós, não vão conseguir nada.
Isso é um abatis, Reacher. Usar a força da natureza contra eles. Não
conseguirão atravessar essas malditas árvores, com toda certeza. Os
soviéticos usaram isso contra Hitler, em Kursk, na Segunda Guerra
Mundial. Um velho truque comunista. Estamos voltando isso contra eles
agora.
— E quanto à infantaria? — Reacher perguntou. — Os tanques não
vão vir sozinhos. A infantaria virá com eles. Eles simplesmente vão saltar
adiante e explodir as árvores.
Fowler sorriu.
— Vão tentar explodir — ele disse. — Depois vão parar de tentar. A
gente tem metralhadoras posicionadas a quarenta metros ao norte dos
abatises. Vamos fazer picadinho deles.
A cautelosa mulher voltou da cozinha carregando uma bandeja. Ela a
colocou na mesa, na frente de Reacher. Ovos, bacon, batatas fritas, feijão,
tudo em um prato esmaltado. Uma caneca de metal de meio litro, café
fumegante pela metade. Talheres baratos.
— Bom apetite — ela desejou.
— Obrigado — Reacher agradeceu.
— E eu, não ganho café? — Fowler perguntou.
A mulher apontou para os fundos.
— Sirva-se — ela disse.
Fowler deu uma típica olhada de homem para homem para Reacher e
se levantou. Reacher se manteve inexpressivo. Fowler andou de volta até a
cozinha e se abaixou na porta. A mulher o observou ir e colocou uma mão
no braço de Reacher.
— Eu preciso falar com você — sussurrou. — Me encontre depois que
apagarem as luzes hoje à noite. Vou encontrar você do lado de fora da porta
da cozinha, está bem?
— Fale comigo agora — Reacher sussurrou de volta. — Pode ser que
eu não esteja mais aqui até lá.
— Você tem que ajudar a gente — a mulher sussurrou.
Então Fowler voltou para o salão, e os olhos da mulher se nublaram
com terror. Ela se endireitou e saiu apressada.

Havia seis parafusos em cada um dos tubos longos na armação da cama.


Dois deles fixavam o aramado que sustentava o colchão. Depois havia dois
em cada extremidade, fixando o tubo longo de ângulo reto aos flanges
anexados aos pés. Ela havia estudado a estrutura da cama por muito tempo
e tinha identificado uma melhoria. Poderia deixar um flange aparafusado a
uma ponta. Ele se sobressairia como um gancho rígido de ângulo reto.
Melhor do que separar o flange e então enfiá-lo na extremidade aberta.
Mais força.
Mas ainda restavam seis parafusos. Teria que tirar o flange do pé. Uma
melhoria, mas não um atalho. Trabalhou rapidamente. Não tinha nenhuma
razão para acreditar que Jackson falharia, mas suas probabilidades de
sucesso haviam piorado. Piorado dramaticamente.

Ao lado do refeitório ficavam os dormitórios. Havia quatro prédios grandes,


todos imaculados e desertos. Dois deles foram designados como casernas
para solteiros, homens e mulheres. Os demais foram subdivididos por
divisórias de compensado. As famílias viviam lá, os adultos em casais, em
compartimentos pequenos atrás das divisórias, as crianças numa área aberta
do dormitório. Estrados de lona com armação de ferro, um pouco menores
do que as que estamos acostumados a ver, alinhadas em fileiras
organizadas. Havia também pequenos compartimentos embaixo de cada
cama, nas extremidades. Nenhum desenho preso nas paredes, nenhum
brinquedo. A única decoração era um pôster turístico de Washington, a
capital. Era uma fotografia aérea tirada do norte, num dia ensolarado de
primavera, com a Casa Branca no primeiro plano direito, um shopping-
center no meio e o Capitólio à esquerda. Era emoldurado em plástico e a
mensagem turística tinha sido coberta com papel e um novo título havia
sido escrito à mão em seu lugar. Dizia: ESTE É SEU INIMIGO.
— Onde estão todas as crianças agora? — Reacher perguntou.
— Na escola — Fowler respondeu. — No inverno, usam o refeitório.
No verão, ficam lá fora na floresta.
— Aprendendo o quê? — Reacher perguntou.
Fowler deu de ombros.
— Aquilo que precisam saber — ele disse.
— Quem decide o que precisam saber? — Reacher perguntou.
— Beau — Fowler respondeu. — Ele decide tudo.
— Então o que ele decidiu que elas precisam saber? — Reacher
perguntou.
— Ele estudou com muito cuidado — Fowler argumentou. — Baseia-
se na Bíblia, na Constituição, na História, no treinamento físico,
sobrevivência na mata, caça, armas.
— Quem ensina tudo isso a elas? — Reacher perguntou.
— As mulheres — Fowler respondeu.
— As crianças são felizes aqui? — Reacher perguntou.
Fowler meio que deu de ombros.
— Não estão aqui para serem felizes — ele constatou. — Estão aqui
para sobreviver.
A cabana seguinte estava vazia, a não ser por outro terminal de
computador, sozinho numa mesa de canto. Reacher podia ver um suporte
grande de teclado e monitor preso nela.
— Creio que podemos chamar de Departamento do Tesouro — Fowler
disse. — Toda a nossa verba está nas ilhas Cayman. Se precisarmos de
algum, a gente usa esse computador para transferir para qualquer lugar que
quisermos.
— Quanto vocês têm? — Reacher perguntou.
Fowler sorriu como um conspirador.
— Uma porrada de grana — ele disse. — Vinte milhões em letras de
câmbio ao portador. Menos o que já gastamos. Mas sobrou bastante. Não
esquente a cabeça. Não vamos ficar sem recursos.
— Roubadas? — Reacher perguntou.
Fowler negou com a cabeça e sorriu.
— Confiscadas — ele corrigiu. — Do inimigo. Vinte milhões.
Os dois últimos prédios eram armazéns. Um formava uma linha com o
último dormitório. O outro ficava um pouco mais longe. Fowler conduziu
Reacher para o galpão mais próximo. Estava abarrotado de suprimentos.
Uma parede tinha uma fileira de enormes barris de plástico cheios de água.
— Feijão, munição e ataduras — Fowler disse. — Esse é o lema do
Beau. A gente vai enfrentar um cerco, mais cedo ou mais tarde. Tenho
certeza absoluta. E a primeira ação que o governo vai empreender é muito
óbvia, certo? Vão lançar morteiros infestados de bactérias letais no lago que
alimenta nosso abastecimento de água. E por isso a gente estocou água
potável. Cem mil litros. Essa é a prioridade. Depois temos comida enlatada,
o bastante para dois anos. Não será o bastante se mais pessoas começarem a
entrar na nossa turma, mas é um bom começo.
O galpão de suprimentos estava abarrotado. Um dos compartimentos
estava lotado, do assoalho até o teto, de roupas. Fardas verde-oliva, jaquetas
de camuflagem, botas. Tudo lavado e passado em alguma tinturaria do
exército, embalado e vendido em fardos.
— Você acha que vai precisar de uma? — Fowler perguntou.
Reacher estava a ponto de recusar, mas aí reparou que usava desde
segunda-feira de manhã a mesma roupa. Três dias inteiros. Não tinha sido a
melhor roupa, pra começo de conversa, e não havia melhorado com o
tempo.
— Acho que sim — disse.
Os tamanhos maiores estavam na parte de baixo da pilha. Fowler
levantou, empurrou e escolheu uma calça, uma camisa e uma jaqueta.
Reacher ignorou as botas lustrosas. Gostava mais dos seus próprios sapatos.
Despiu-se e se vestiu, pulando de um pé para outro no assoalho de madeira.
Abotoou a camisa e vestiu a jaqueta. Tudo servia direitinho. Não procurou
um espelho. Ele sabia como ficava de farda. Tinha passado anos suficientes
usando-as.
Ao lado da porta, havia suprimentos médicos classificados em
prateleiras. Kits de primeiros-socorros, bolsas de plasma, antibióticos,
ataduras. Todos dispostos com eficiência para acesso fácil. Pilhas
organizadas, com abundância de espaço entre elas. Borken claramente
treinou seu pessoal para correr e pegar equipamento e administrar
tratamento de emergência.
— Feijão e ataduras — Reacher disse. — E quanto à munição?
Fowler indicou com a cabeça o galpão distante.
— Lá fica o arsenal — ele informou. — Vou mostrar para você.
O arsenal era maior do que o outro galpão de suprimentos. Um grande
cadeado na porta. Continha mais armamento do que Reacher se lembrava
de um dia ter visto. Centenas de rifles e metralhadoras dispostas
organizadamente. O fedor de óleo fresco de máquina em toda parte. Pilhas
de caixas de munição do chão até o teto. Caixas de madeira contendo
granadas. Prateleiras cheias de revólveres. Nada tão pesado que um soldado
de infantaria não pudesse carregar, mas ainda assim era uma visão
impressionante.

Os dois parafusos fixando o aramado eram os mais fáceis. Eram menores do


que os outros. Os parafusos grandes que prendiam a armação aguentavam
toda a tensão. O estrado de lona apenas repousava lá dentro. Os parafusos
que o prendiam não eram estruturais. Poderiam ter sido eliminados e a cama
funcionaria do mesmo jeito.
Ela descascou e raspou a tinta até chegar ao metal nu. Aqueceu a
cabeça dos parafusos com a toalha. Então retirou a ponta de borracha da
muleta e curvou a extremidade do tubo de alumínio até formar um oval.
Usou os dedos para pressionar firmemente a boca do tubo sobre a fenda na
cabeça do parafuso. Usou o punho para girar a muleta toda, como uma
chave gigante de soquete. Escapuliu. Praguejou baixinho e usou a mão para
esmagá-la mais. Girou a mão e a muleta juntas, como uma unidade. O
parafuso se mexeu.

Havia um caminho de terra batida conduzindo para o norte do círculo de


prédios de madeira. Fowler levou Reacher até ele. Conduziu-o até uma área
de tiro. O campo era um trecho longo e plano, livre de árvores e moitas.
Silencioso. Tinha apenas vinte metros de largura, mas quase um quilômetro
de comprimento. Havia esteiras numa extremidade, para os atiradores se
deitarem, e bem ao longe Reacher podia ver os alvos. Começou a caminhar
lentamente até eles. Pareciam recortes padronizados, feitos de compensado,
que imitavam soldados correndo e agachados, tipicamente militares. O
desenho datava dos idos da Segunda Guerra Mundial. A estampa
rudimentar representava um soldado alemão da infantaria, usando um
capacete, com um rosnado selvagem. Mas, à medida que se aproximava,
Reacher podia ver que esses alvos em particular sofreram alguns
acréscimos. Novos emblemas foram pintados no peito com tinta amarela.
Cada novo emblema tinha três letras. Quatro alvos tinham: FBI. Quatro:
ATF.[3] Os alvos foram dispostos para trás em distâncias que iam de
trezentos a oitocentos metros. Os alvos mais próximos estavam cravejados
de buracos de bala.
— Todo mundo tem que acertar os alvos à distância de trezentos
metros — Fowler disse. — É uma exigência de cidadania daqui.
Reacher deu de ombros. Não ficou impressionado. Trezentos metros
não eram lá grande coisa. Continuou caminhando até a distância de
oitocentos metros. Os alvos de quatrocentos metros estavam danificados, as
placas de quinhentos metros um pouco menos. Reacher contou dezoito
acertos em seiscentos metros, sete nos de setecentos e apenas dois nos de
oitocentos.
— Estas placas estão aí há quanto tempo? — perguntou.
Fowler deu de ombros.
— Um mês — ele disse. — Talvez dois. Estamos treinando.
— É melhor que estejam mesmo — Reacher ironizou.
— A gente imagina que não vai dar tiro a distância — Fowler
respondeu. — Beau supõe que as forças da ONU vão vir à noite. Quando
acharem que a gente está descansando. Calcula que talvez consigam
penetrar em nosso perímetro até certo ponto. Talvez até um quilômetro,
mais ou menos. Acho que não vão conseguir, mas Beau é um cara
cauteloso. E ele detém toda a responsabilidade. Por isso, nossas táticas vão
ser manobras de flanqueio noturno. Cercar a penetração da ONU na floresta
e fuzilar todo mundo com fogo cruzado. Íntimo e pessoal, certo? Esse
treinamento vai indo muito bem. A gente pode se mover rapidamente e em
silêncio no escuro, sem luzes, sem som, na boa.
Reacher olhou para a floresta e pensou na grande quantidade de
munição que tinha visto. Pensou na vanglória de Borken: inexpugnável.
Pensou nos problemas que um exército enfrenta com guerrilhas
comprometidas com uma causa, em terreno hostil. Nada nunca é realmente
inexpugnável, mas as baixas para tomar este lugar seriam espetaculares.
— Quanto a hoje de manhã... — Fowler começou. — Eu espero que
você não tenha ficado angustiado.
Reacher apenas olhou para ele.
— Estou falando sobre o Loder — Fowler esclareceu.
Reacher deu de ombros. Pensou com seus botões: Me poupou de um
trabalhinho.
— A gente precisa de disciplina rígida — Fowler disse. — Todas as
nações em formação passam por uma fase como esta. Regras duras,
disciplina rígida. Beau fez um estudo sobre isso. Nesta altura é muito
importante. Mas sei que pode ser angustiante, eu suponho.
— É você que deveria estar angustiado — Reacher alertou. — Já ouviu
falar de Joseph Stalin?
Fowler confirmou com a cabeça.
— Ditador soviético — ele disse.
— Exato — Reacher confirmou. — Ele costumava fazer isso.
— Fazer o quê? — Fowler perguntou.
— Eliminar rivais em potencial — Reacher disse. — Com acusações
forjadas.
Fowler balançou a cabeça negativamente.
— As acusações foram justas — ele disse. — Loder cometeu erros.
Reacher deu de ombros.
— Na verdade, poucos — ele ponderou. — Até que fez um trabalho
razoável.
Fowler desviou os olhos.
— Você será o próximo — Reacher o alertou. — Você devia tomar
cuidado. Mais cedo ou mais tarde você vai descobrir que cometeu algum
tipo de erro.
— A gente se conhece há muito tempo — Fowler disse. — Beau e eu.
— Beau e Loder também, certo? — Reacher constatou. — Stevie não
terá problemas. Não representa nenhuma ameaça. É burro demais. Mas
você devia pensar nisso. Você será o próximo.
Fowler ficou calado. Apenas desviou os olhos novamente. Voltaram
juntos, descendo o caminho coberto de grama. Seguiram outra trilha batida
para o norte. Saíram da picada para permitir que um longo pelotão de
crianças passasse em fila. Marchavam em duplas, garotos e garotas juntos,
com uma mulher fardada na frente da fila e outra no final. As crianças
vestiam roupas cortadas provenientes do excedente militar e carregavam
cajados altos na mão direita. Rostos inexpressivos e aquiescentes. As
garotas tinham cabelos lisos compridos, e os garotos cortes de cabelo
rústicos feitos com cuias e tesourões cegos. Reacher ficou observando-os
passar. Eles ficaram olhando diretamente para a frente enquanto andavam.
Nenhum deles arriscou dar uma olhada de lado para ele.
O novo trajeto subia o morro através de um cinturão de árvores, e saía
numa área plana com cinquenta metros de comprimento e cinquenta de
largura. Tinha sido nivelada à mão. Pedras retiradas do campo haviam sido
pintadas de branco e colocadas a intervalos em torno da borda. Tudo era
quieto e deserto.
— Nosso campo de exercícios — Fowler disse já de cara azeda.
Reacher balançou a cabeça e deu uma olhada ao redor. Para o norte e
oeste, montanhas altas. Para o leste, densa floresta virgem. Para o sul, ele
podia ver sobre a cidade distante, através do cinturão de árvores, as ravinas
fendidas além. Um vento frio levantou sua jaqueta nova e inflou sua
camisa, e ele estremeceu.

Os parafusos maiores eram muito mais duros. Muito mais área de contato,
de metal a metal. Muito mais tinta para raspar. Era necessário muito mais
força para girá-los. Quanto mais força ela usava, mais a extremidade
esmagada da muleta podia escapulir para fora. Tirou o sapato e o usou para
dar forma à extremidade, a marteladas. Curvou e dobrou o alumínio macio
em torno da cabeça do parafuso. Então o apertou firmemente com os dedos.
Apertou até que os tendões finos do seu braço se sobressaíssem como
barbantes e o suor escorresse do rosto. Então girou a muleta, prendendo a
respiração, esperando para ver qual cederia primeiro, se o aperto dos seus
dedos ou o aperto do parafuso.

O vento que agitava a camisa de Reacher também trazia alguns sons fracos
até ele. Olhou de relance para Fowler e se voltou para encarar a borda
ocidental do campo de exercícios. Podia ouvir homens se movendo entre as
árvores. Uma fileira de homens, irrompendo para fora da floresta.
De repente surgiram, seis homens lado a lado, espingardas automáticas
nos ombros. Fardas de camuflagem, todos barbados. Os mesmos seis
guardas que haviam estado na frente da cadeira do juiz naquela manhã. O
destacamento pessoal de Borken. Reacher examinou a fileira de rostos. O
sujeito mais novo com a cicatriz estava no lado esquerdo da fileira. Jackson,
o agente infiltrado do FBI. Pausaram e restauraram o curso. Apressaram-se
através do terreno nivelado até Reacher. Quando se aproximaram, Fowler
deu um passo para trás, deixando Reacher parecer um alvo isolado. Cinco
homens se espalharam em leque, formando um arco. Cinco rifles
apontavam para o peito de Reacher. O sexto homem deu um passo na frente
de Fowler. Nenhuma continência, mas havia certa deferência em sua
posição, o que era mais ou menos a mesma coisa.
— Beau quer o sujeito de volta — o soldado disse. — Aconteceu algo
muito urgente.
Fowler balançou a cabeça.
— Levem logo então — ele ordenou. — Já está começando a me
encher o saco.
Os soldados empurraram Reacher com os rifles para uma formação
rudimentar e os seis homens se apressaram para o sul, através do fino
cinturão de árvores, movendo-se rapidamente. Passaram através do campo
de tiro e seguiram o trajeto de terra batida de volta ao baluarte. Rumaram
para o oeste, passaram pelo arsenal e seguiram pela floresta até a cabana de
comando. Reacher acelerou o passo. Passando adiante. Tropeçou numa raiz
e caiu pesadamente nas pedras. O primeiro sujeito a se aproximar dele foi
Jackson. Reacher viu a cicatriz na testa dele. Ele agarrou o braço de
Reacher.
— Tem espião em Chicago — Reacher sussurrou.
— De pé, idiota — Jackson respondeu com um grito.
— Se esconda e fuja hoje à noite — Reacher sussurrou. — Todo
cuidado é pouco, está bem?
Jackson olhou de relance para ele e respondeu apertando seu braço.
Então o puxou para cima e o empurrou adiante, descendo o trajeto até a
clareira menor. Beau Borken estava parado na entrada da cabana de
comando. Vestia uma farda de camuflagem folgada, enorme, suja e
desgrenhada. Como se estivesse executando um trabalho pesado. Fitou
Reacher quando ele se aproximou.
— Estou vendo que lhe demos roupa nova — ele disse.
Reacher confirmou com a cabeça.
— Então permita que eu me desculpe pela minha aparência — Borken
disse. — Dia cheio.
— Fowler me falou — Reacher disse. — Você estava construindo
abatises.
— Abatises? — Borken indagou. — Ah, sim.
Então emudeceu. Reacher olhou suas grandes mãos brancas, abrindo e
fechando.
— Sua missão está cancelada — Borken disse baixinho.
— É? — Reacher perguntou. — Por quê?
Borken desceu seu corpo volumoso lentamente da entrada e deu um
passo para perto. O olhar de Reacher fixava seu olhar penetrante e por isso
não viu a porrada chegar. Borken deu-lhe um murro na boca do estômago,
um punho duro e grande, na extremidade de cento e oitenta quilos de peso
corporal. Reacher caiu como uma árvore e Borken pressionou um pé nas
costas dele.
28

— SE CHAMA JACKSON — WEBSTER DISSE.


— Quanto tempo ele já está lá? — Milosevic perguntou.
— Há quase um ano — Webster respondeu.
Onze da manhã, quinta-feira, 3 de julho, dentro de Peterson. O chefe
da seção em Quantico estava enviando o material de Andrews pela linha
segura de fax da força aérea, tão rápido quanto as máquinas aguentavam.
Milosevic e Brogan retiravam o material das máquinas e passavam a
Webster e McGrath para análise. No outro lado da mesa, o general Johnson
e seu assessor faziam a varredura de um mapa do quadrante noroeste de
Montana.
— Você tem agentes infiltrados em todos esses grupos? — Johnson
perguntou.
Webster negou com a cabeça e sorriu.
— Não em todos — ele respondeu. — São muitos grupos, não tenho
gente suficiente para todos. Acho que tivemos sorte.
— Eu não sabia que a gente tinha um homem nesse — Brogan disse.
Webster ainda estava sorrindo.
— Muita gente não sabe de muitas coisas — ele ironizou. — É mais
seguro assim, não é?
— Então o que esse tal de Jackson informou? — Brogan perguntou.
— Algo sobre a Holly? — Johnson perguntou.
— Ele falou do que se trata toda essa merda? — Milosevic perguntou.
Webster inflou as bochechas e passou a mão na pilha ondulada de
papéis de fax. McGrath estava ocupado vasculhando-a. Separava os papéis
em duas pilhas. Uma de material rotineiro, a outra, relevante, de
inteligência. A de rotina era maior. A de inteligência, incompleta.
— Análises, Mack? — Webster indagou.
McGrath deu de ombros.
— Até certo ponto, nada de anormal — ele disse.
Johnson olhou fixamente para ele.
— Nada de anormal? — ele questionou.
Webster confirmou com a cabeça.
— Exatamente — ele disse. — Temos milícias espalhadas por todo o
país e é por isso que não podemos cobrir tudo. Muitos grupos mesmo. Na
nossa última contagem encontramos bem mais de quatrocentos grupos, em
todos os cinquenta Estados. A maioria é composta apenas de amadores,
loucos, mas alguns poucos a gente considera terroristas antigoverno sérios.
— Este grupo, por exemplo? — Johnson perguntou.
McGrath o olhou.
— Este grupo está nos alguns poucos, infelizmente — ele disse. —
Cem membros escondidos na floresta. Muito bem armados, muito bem
organizados, totalmente autossuficientes. Muito bem financiados também.
Jackson denunciou fraude no sistema de correio, saques bancários
fraudulentos, algumas falsificações de qualidade inferior. Provavelmente
assalto à mão armada também. Presume-se que roubaram vinte milhões em
títulos ao portador de um carro blindado no norte da Califórnia. E, claro,
estão vendendo vídeos, livros e manuais ao resto dos malucos pelo correio.
É uma indústria em franco crescimento. E naturalmente se negam a pagar
imposto de renda, licenciar os veículos ou qualquer outra coisa que possa
custar algo a eles.
— Com efeito, controlam o condado de Yorke — Webster disse.
— Como isso é possível? — Johnson perguntou.
— Porque ninguém controla — Webster afirmou. — Você já esteve lá?
Eu por exemplo nunca estive. Jackson disse que o lugar inteiro está
abandonado. Tudo foi largado, faz tempo. Diz que restaram apenas algumas
dúzias de cidadãos, espalhados por quilômetros de território vazio,
fazendeiros falidos, o que sobrou dos mineiros, velhos. O governo
praticamente inexiste no condado. Borken apenas entrou na manha e se
apoderou.
— Ele está chamando a coisa de experimento — McGrath disse. —
Um protótipo da nova nação.
Johnson assentiu inexpressivamente.
— Mas e a Holly? — ele se preocupou.
Webster empilhou os papéis e colocou a mão neles.
— Não foi mencionada — afirmou. — O último contato foi na
segunda-feira, o dia em que foi sequestrada. Uma cela estava sendo
construída, tudo leva a crer que era para ela.
— Este cara entra em contato? — Brogan quis saber. — Pelo rádio?
Webster confirmou com a cabeça.
— Tem um transmissor escondido na floresta — informou. — Ele sai
de mansinho quando pode e faz contato. É por isso que é tudo tão irregular.
Ele vem fazendo, em média, uma ligação por semana. É consideravelmente
inexperiente e foi instruído para ser cauteloso. A gente supõe que esteja
sendo vigiado. É um “admirável mundo novo” lá em cima, com toda a
certeza.
— A gente pode entrar em contato com ele? — Milosevic perguntou.
— Tá brincando — Webster disse. — A gente apenas senta e espera.
— Para quem ele se reporta? — Brogan perguntou.
— Ao agente residente em Butte, Montana — Webster respondeu.
— Então o que vamos fazer? — Johnson perguntou.
Webster deu de ombros. O recinto ficou em silêncio.
— Agora, nada — ele disse. — A gente precisa de uma posição.
O lugar permaneceu em silêncio e Webster apenas olhou duramente
para Johnson. Era uma troca de olhares entre homens do governo que dizia:
Você sabe como é. Johnson retornou o olhar penetrante dele, por muito
tempo, inexpressivamente. Então sua cabeça se mexeu com um
assentimento parcial. Apenas o bastante para dizer: Por enquanto, eu sei
como é.
O assessor de Johnson tossiu no silêncio.
— Temos mísseis ao norte de Yorke — informou mostrando o mapa.
— Estão se dirigindo para o sul neste instante, neste caminho aqui. Vinte
soldados-rasos, cem Stingers, cinco caminhões. Vão passar diretamente por
Yorke, a qualquer momento. A gente pode usá-los?
Brogan balançou a cabeça.
— É contra a lei — ele disse. — As Forças Armadas não podem
participar da aplicação da lei.
Webster o ignorou, olhou de relance para Johnson e esperou. Os
homens eram dele e Holly era sua filha. Era melhor que a resposta viesse
diretamente do militar. Fez-se silêncio e então Johnson discordou com a
cabeça.
— Não — ele disse. — Nós precisamos de tempo para planejar.
O assessor fez um gesto amplo com as mãos.
— A gente pode planejar — ele disse. — Temos contato de rádio, terra
a terra. Devíamos dar seguimento, general.
— É contra a lei — Brogan repetiu.
Johnson não respondeu. Estava concentrado. McGrath vasculhou a
pilha de papéis e puxou a folha acerca dos explosivos embutidos nas
paredes da cela de Holly. Segurou-a com a face para baixo na mesa lustrosa.
Johnson discordou com a cabeça outra vez.
— Não — ratificou. — Vinte homens contra cem? Eles nem são das
tropas de elite. Não são da infantaria. E Stingers não vão nos ajudar.
Presumo que esses terroristas não têm Força Aérea, certo? Não. A gente vai
esperar. Traga a unidade de míssil de volta para cá, o mais rápido possível.
Nada de confronto.
O assessor deu de ombros e McGrath deslizou o relatório sobre os
explosivos de volta para a pilha. Webster olhou ao redor e bateu ambas as
palmas levemente no topo da mesa.
— Vou voltar para a capital — ele decidiu. — Preciso conseguir uma
posição.
Johnson encolheu os ombros. Sabia que nada poderia começar sem
uma viagem de volta à capital para conseguir uma posição. Webster se
virou para McGrath.
— Vocês três vão se instalar em Butte — ordenou. — Se estabeleçam
no escritório de lá. Se este tal de Jackson entrar em contato, coloquem ele
sob alerta máximo.
— A gente pode levar vocês de helicóptero — o assessor informou.
— Precisamos de vigilância — Webster disse. — Pode fazer com que
a Força Aérea coloque alguns aviões com câmeras sobre Yorke?
Johnson assentiu.
— Vão estar lá — garantiu ele. — Vinte e quatro horas por dia. Vamos
fornecê-los vídeos ao vivo, direto de Butte. Se um rato peidar, vocês vão
ver.
— Zero intervenção — Webster pediu. — Ainda não.
29

ELA OUVIU PASSOS NO CORREDOR NO MOMENTO EXATO em que


o sexto parafuso se soltou. Pisada leve. Não era Jackson. Não era um
homem pisando com cuidado para não ser ouvido. Era uma mulher,
andando normalmente. Os passos pararam na sua porta. Houve uma pausa.
Ela apoiou o longo tubo na armação. Uma chave entrou na fechadura. Ela
arrastou o colchão de volta. Puxou o cobertor sobre ele. Outra pausa. A
porta se abriu.
A mulher entrou no quarto. Parecia com todos os outros, branca,
magra, cabelo liso longo, rosto forte e sem maiores atrativos, nenhuma
maquiagem, nenhum adorno, mãos avermelhadas. Carregava uma bandeja
com um pano branco cobrindo-a. Estava desarmada.
— Almoço — ela explicou.
Holly assentiu. O coração estava acelerado. A mulher ficou parada
com a bandeja nas mãos, olhando fixamente em volta do quarto para as
novíssimas paredes de pinho.
— Onde você quer isso aqui? — ela perguntou. — Na cama?
Holly fez que não com a cabeça.
— Prefiro no chão — ela respondeu.
A mulher se curvou e colocou a bandeja no chão.
— Acho que você precisa de uma mesa — ela disse. — E cadeira.
Holly baixou os olhos para os talheres e pensou: Ferramentas.
— Você quer que eu peça para trazerem uma cadeira pra você? — a
mulher perguntou.
— Não precisa — Holly respondeu.
— Bem, eu preciso de uma — a mulher disse. — Recebi ordens para
ficar aqui esperando e de olho vivo em você enquanto come. Pra garantir
que não vai roubar os talheres.
Holly balançou a cabeça vagamente e circulou em torno da mulher.
Olhou de relance para a porta aberta. A mulher seguiu seu olhar e sorriu.
— Não tem para onde fugir — ela avisou. — Nós estamos onde Judas
perdeu as botas e o terreno é muito hostil. Pelo norte, você chegaria ao
Canadá em duas semanas, se encontrar raízes, amoras silvestres e insetos
suficientes para comer. Pelo oeste, você teria que atravessar o rio a nado.
Pelo leste, ficaria perdida na floresta ou seria comida por um urso, e,
mesmo que não fosse, ainda estaria a um mês de Montana. Pelo sul, ia levar
chumbo grosso. A fronteira está cheia de guardas. Não teria a mínima
chance.
— A estrada está bloqueada? — Holly perguntou.
A mulher sorriu.
— Nós destruímos a ponte — ela contou. — Não tem mais estrada
nenhuma. Já era.
— Quando? — Holly perguntou. — A gente veio por ela.
— Agora há pouco — a mulher disse. — Você não ouviu? Eu suponho
que não; também, com estas paredes.
— Então como Reacher vai ser enviado? — Holly perguntou. — Ele
deveria levar algum tipo de mensagem.
A mulher sorriu outra vez.
— O plano foi alterado — ela disse. — Missão cancelada. Ele não vai
mais.
— Por que não? — Holly perguntou.
A mulher olhou diretamente para ela.
— A gente descobriu que fim levou Peter Bell — ela disse.
Holly ficou em silêncio.
— O grandalhão matou ele — a mulher disse. — Sufocamento. Na
Dakota do Norte. Acabamos de ficar sabendo. Mas suponho que você já
sabia, não é mesmo?
Holly a encarou. Pensou: Reacher está numa enrascada. Ela o
visualizou algemado e sozinho em algum lugar.
— Como eles descobriram? — ela perguntou baixinho.
A mulher deu de ombros.
— Temos amigos espalhados por tudo quanto é canto. Muitos amigos
— ela disse.
Holly continuou encarando-a. E pensou: O infiltrado. Eles sabem que
estivemos na Dakota do Norte. Só é preciso um mapa e uma régua para
descobrir onde estamos agora. Viu os teclados de computador estalando e o
nome do Jackson aparecendo em uma dúzia de monitores.
— O que vai acontecer com Reacher? — perguntou.
— Uma vida por uma vida — a mulher disse. — Essa é a regra aqui. E
seu amigo Reacher vai segui-la, como qualquer outro.
— Mas o que vai acontecer com ele? — perguntou outra vez.
A mulher riu.
— Não precisa de muita imaginação — ela zombou. — Ou talvez até
precise. Acho que não vai ser algo muito simples.
Holly balançou a cabeça.
— Foi legítima defesa — ela disse. — O cara estava tentando me
estuprar.
A mulher olhou para ela com desprezo.
— E isso é legítima defesa, por acaso? — retrucou ela. — Ele não
estava tentando estuprar o grandalhão, não é? E você provavelmente estava
pedindo para ser estuprada, de qualquer modo.
— Como é que é?!? — Holly exclamou.
— Rebolando o rabinho pra ele — a mulher disse. — Nós sabemos
tudo sobre as vadias espertinhas da cidade iguais a você. O pobre do Peter
não teve chance.
Holly apenas a encarou. Depois olhou de relance para a porta.
— Onde está Reacher agora? — ela perguntou.
— E eu sei lá! — a mulher reagiu. — Acorrentado a uma árvore, em
algum lugar, suponho.
Então ela sorriu.
— Mas eu sei para onde ele vai — ela disse. — Para o campo de
exercícios. É onde geralmente fazem esse tipo de coisa. Mandaram todo
mundo ir até lá em cima para assistir ao show.
Holly a encarou. Então engoliu em seco. Depois concordou com a
cabeça.
— Será que daria para me ajudar com esta cama? — pediu. — Tem
algo errado com ela.
A mulher fez uma pausa. Depois a seguiu.
— Errado o quê? — ela perguntou.
Holly puxou o cobertor para o lado e jogou o colchão no chão.
— Os parafusos parecem estar um pouco frouxos — ela respondeu.
— Onde? — a mulher perguntou.
— Aqui — Holly apontou.
Ela agarrou o longo tubo com ambas as mãos. Levantou-o e acertou a
têmpora da mulher como se fosse uma lança. O flange a golpeou como um
punho de metal. A pele se rasgou, um retângulo de osso perfurou
profundamente seu cérebro, caiu no colchão, ricocheteou para fora dele e já
estava morta antes de bater no assoalho. Holly pisou com cuidado por cima
da bandeja do almoço e mancou calmamente em direção à porta aberta.
30

HARLAND WEBSTER CHEGOU DE VOLTA AO Hoover, no Colorado,


às três horas da tarde da quinta-feira, horário da Costa Leste. Foi direto para
o escritório e verificou suas mensagens. Então interfonou para a secretária.
— O carro — ele pediu.
Desceu em seu elevador privativo até a garagem e encontrou o
motorista. Caminharam até a limusine e entraram.
— Casa Branca — Webster informou.
— Vai ver o presidente, senhor? — o motorista perguntou, surpreso.
Webster fez uma careta para a nuca do sujeito. Não, não ia ver o
presidente. Não via o presidente com muita frequência. E também não
precisava ser lembrado disso, principalmente por um motorista imbecil que
parecia todo surpreso de que tal possibilidade até mesmo existisse.
— Tenho uma reunião com a procuradora federal — ele disse,
rispidamente. — A Casa Branca é onde ela está neste instante.
O motorista balançou a cabeça silenciosamente. Xingou a si mesmo
por abrir o bocão. Dirigiu com tranquilidade e suavidade. A distância entre
o Hoover e a Casa Branca era de exatamente um quilômetro e meio. Menos
de uma milha. Nem mesmo distância suficiente para mudar o pequeno
número no odômetro do painel. Teria sido mais rápido ir a pé. E mais
barato. Acionar o V8 frio e arrastar a blindagem apenas um quilômetro e
meio gastava muita gasolina. Mas o diretor não podia se dar ao luxo de
andar por aí para lugar nenhum. Havia a teoria de que seria assassinado. O
fato era que provavelmente havia apenas cerca de oito pessoas em toda a
cidade que o reconheceriam. Era apenas mais um sujeito qualquer da capital
com terno cinza e uma gravata discreta. Anônimo. Outra razão para o velho
Webster nunca estar no melhor dos humores, seu motorista pensou.

Webster conhecia muito bem a procuradora federal. Era chefe dele, mas sua
familiaridade com ela não provinha de reuniões cara a cara. Vinha
principalmente das comprovações de antecedentes que o FBI tinha feito
para a nomeação. Webster provavelmente sabia mais sobre ela do que
qualquer outra pessoa na Terra. Seus pais, amigos e ex-colegas tinham suas
próprias perspectivas. Webster juntara tudo isso e pintou o quadro
completo. A ficha no FBI ocupava tanto espaço no disco quanto um
romance curto. Nada nela o fazia não gostar dela. Tinha sido advogada, um
pouquinho radical no início de carreira, acumulou prática considerável,
conseguiu a magistratura, nunca irritou a comunidade com a imposição da
lei, nunca se transformou numa chata doida de espumar pela boca. A
nomeação ideal, passou com tranquilidade pela sua confirmação, sem
problema nenhum. Tinha provado desde então ser uma boa chefe e uma
grande aliada. Chamava-se Ruth Rosen, e seu único problema com a chefe
era que ela tinha doze anos a menos, era bonita e muito mais famosa do que
ele.
O compromisso era para as quatro horas. Encontrou Rosen sozinha
numa saleta, distante cerca de dois andares e oito agentes do serviço secreto
do salão oval do presidente. Ela o cumprimentou com um sorriso tenso e
um aceno urgente de sua postura elegante.
— Holly? — perguntou.
Ele confirmou com a cabeça. Deu a ela uma visão geral, de cabo a
rabo. Ela ouviu com atenção e foi empalidecendo, com os lábios
firmemente apertados.
— Temos certeza absoluta de que é aí que ela está? — ela perguntou.
Ele assentiu com a cabeça novamente.
— Mais certeza é impossível — ele afirmou.
— Certo — ela disse. — Espere um instantinho, ok?
Deixou a saleta. Webster ficou esperando. Dez minutos, depois vinte,
então meia hora. Andou para lá e para cá. Olhou pela janela. Abriu a porta e
olhou de relance para fora, no corredor. Um agente do serviço secreto lhe
devolveu o olhar e deu um passo para a frente. Webster balançou a cabeça
em resposta à pergunta que o sujeito não tinha feito e fechou a porta
novamente. Apenas ficou sentado esperando.
Ruth Rosen ficou fora uma hora. Voltou e fechou a porta. Então,
apenas ficou parada lá, um metro dentro da saleta, pálida, respirando fundo,
totalmente chocada. Não disse nada. Apenas deixou que ele se tocasse que
algo grave estava acontecendo.
— O que houve? — ele perguntou.
— Estou fora do jogo — ela disse.
— O quê? — ele voltou a perguntar.
— Me tiraram da partida — ela disse. — Minhas reações foram
erradas. Dexter vai cuidar do assunto a partir de agora.
— Dexter? — ele repetiu. Dexter era o chefe do pessoal da Casa
Branca. Um populistazinho da velha guarda. Tão duro quanto um prego,
porém com metade dos sentimentos. Mas era a principal razão do
presidente estar sentado no salão oval, com a grande maioria dos votos
vindos das classes mais baixas.
— Sinto muito mesmo, Harland — Ruth Rosen disse. — Ele vai estar
aqui em um minuto.
Harland balançou a cabeça, azedo, e ela voltou a sair pela porta e o
deixou esperando novamente.

A relação entre o resto do FBI e a filial de campo em Butte, Montana, é


similar à relação entre Moscou e a Sibéria, falando proverbialmente. É uma
piada comum no FBI. Pise na bola hoje, diz a piada, e você estará
trabalhando em Butte amanhã. Como algum tipo de exilado interno. Como
os ineptos da KGB eram supostamente mandados para passar multas de
estacionamento proibido na Sibéria.
Mas nessa quinta-feira, 3 de julho, a filial de campo em Butte parecia o
centro do universo para McGrath, Milosevic e Brogan. Parecia o posto mais
desejável do mundo. Nenhum dos três jamais estivera ali. Não a negócios,
muito menos em férias. Nenhum deles jamais consideraria ir para lá. Mas
agora olhavam pelas janelas do helicóptero da Força Aérea como garotos a
caminho da Disney. Contemplavam a paisagem abaixo e voltavam o olhar
para o noroeste, onde sabiam que o condado de Yorke se ocultava sob a
distante névoa densa.
O agente residente em Butte era um competente veterano do FBI, que
ainda estava cambaleando depois da ligação pessoal de Harland Webster,
direto do Hoover Building. Foi instituído a levar os três agentes de Chicago
até seu escritório, posicioná-los no caminho, acomodá-los, alugar uns dois
jipes e então se mandar, permanecendo fora até novo aviso. Assim, ficou
esperando no Aeroporto Silver Bow do condado até o helicóptero preto
encardido pousar tinindo. Reuniu os agentes do governo em seu Buick e
voltou a toda para o norte, em direção à cidade.
— As distâncias por aqui são grandes — ele disse a McGrath. —
Nunca se esqueça disso. Ainda estamos a trezentos e oitenta quilômetros de
Yorke. Em nossas estradas são quatro horas, no mínimo. Se fosse eu,
arranjaria algumas unidades móveis e me aproximaria muito mais. Ficar
baseado aqui embaixo não vai ajudá-lo muito, não se as coisas começarem a
ficar feias lá em cima.
McGrath balançou a cabeça.
— Teve notícia de Jackson novamente? — ele perguntou.
— Não, desde segunda-feira — o agente respondeu. — O negócio da
dinamite.
— Na próxima vez que ele ligar, me fale, está bem? — McGrath
pediu.
O sujeito de Butte balançou a cabeça. Vasculhou o bolso com uma mão
enquanto dirigia. Retirou um minirreceptor de rádio. McGrath o pegou.
Colocou-o no próprio bolso.
— É todo seu — o sujeito de Butte disse. — Eu estou de férias. Ordens
de Webster. Mas espere sentado. Jackson não liga com frequência. É um
rapaz muito cauteloso.
A filial de campo era na verdade uma sala, no segundo andar de um
prédio municipal de dois andares. Uma mesa, duas cadeiras, um
computador, um mapa grande de Montana na parede, muito espaço para
arquivos e um telefone tocando. McGrath atendeu. Ouviu e grunhiu.
Desligou e esperou até o agente se tocar.
— Já fui, está bem — o velhote disse. — O jipe de Silver Bow vai
trazer dois veículos para vocês. Vão precisar de qualquer outra coisa?
— Privacidade — Brogan pediu.
O velhote balançou a cabeça e deu uma olhada ao redor de seu
escritório. Então se foi.
— A Força Aérea colocou dois aviões espiões lá em cima — McGrath
disse. — O equipamento de satélite está vindo pela estrada. O general e seu
assessor também estão vindo pra cá. Parece que vão ser nossos convidados
enquanto isso perdurar. Não teve jeito de...
Milosevic estudava o mapa na parede.
— Nem eu ia querer — ele disse. — Vamos precisar de alguns favores.
Vocês já viram um lugar que pareça pior?
McGrath e Brogan se juntaram a ele na frente do mapa. O dedo de
Milosevic estava plantado em Yorke. O hostil terreno verde e marrom
fervilhava totalmente em volta dela.
— Seis mil, quatrocentos e cinquenta quilômetros quadrados —
Milosevic disse. — Uma estrada e uma trilha.
— Escolheram um bom ponto — Brogan concluiu.

— Eu falei com o presidente — Dexter disse.


Sentou-se para trás e fez uma pausa. Webster o encarou. O que mais
estaria fazendo? Podando o jardim? Dexter devolveu o olhar fixo. Era um
sujeito pequeno, bronzeado, moreno, meio corcunda, do jeito que uma
pessoa fica depois de passar cada minuto de cada dia calculando cada
jogada possível.
— E? — Webster indagou.
— São quase setenta milhões de proprietários de armas neste país —
Dexter disse.
— E daí? — Webster perguntou.
— Nossos analistas pensam que todos compartilham basicamente de
determinadas simpatias — Dexter informou.
— Que analistas? — Webster perguntou. — Que simpatias?
— Foi feita uma pesquisa — Dexter disse. — A gente mandou uma
cópia pra vocês? Um em cada cinco adultos estaria disposto a pegar em
armas contra o governo, se estritamente necessário.
— Ãhn, e daí? — Webster perguntou novamente.
— Fizeram outra pesquisa — Dexter disse. — Uma pergunta simples
para ser respondida intuitiva e instintivamente. Quem está certo: o governo
ou as milícias?
— E?
— Doze milhões de americanos tomaram o partido das milícias —
Dexter disse.
Webster o encarou. Esperando a mensagem.
— Então — Dexter disse. — Algo entre doze e setenta e seis milhões
de eleitores.
— O que têm eles? — Webster perguntou.
— E onde estão eles? — Dexter perguntou de volta. — Você não vai
encontrar muitos deles na capital ou em Nova York, Boston ou Los
Angeles. É uma amostra enviesada. Em alguns lugares são minúscula
minoria. Tipos anormais. Mas em outros lugares é o que mais tem. Em
outros lugares são absolutamente normais, Harland.
— E o que tem isso? — perguntou.
— Em alguns lugares, eles controlam condados — Dexter afirmou. —
Até mesmo Estados.
Webster o encarou.
— Pelo amor de Deus, Dexter, não se trata de política — ele disse. —
É da Holly que estamos tratando.
Dexter fez uma pausa e olhou ao redor da saleta da Casa Branca. Era
pintada de um sutil branco gelo. Havia sido pintada e repintada com a
mesma cor sutil regularmente, enquanto presidentes vinham e iam. Deu um
sorriso de perito.
— Infelizmente, tudo é política — ele filosofou.
— É a Holly — Webster disse mais uma vez.
Dexter balançou a cabeça negativamente. Apenas um ligeiro
movimento.
— Isso é emoção — ele disse. — Pense em pequenas palavras
emocionais inocentes, como patriota, resistência, esmagamento,
underground, esforço, opressão, indivíduo, desconfiança, rebelde, revolta,
revolução, direitos. Há uma determinada magia com essas palavras, não
acha? Em um contexto americano?
Webster balançou a cabeça obstinadamente.
— Não há nada de mágico em sequestro de mulheres — ele disse. —
Nada mágico em armas ilegais, exércitos ilegais, dinamites roubadas. Isso
não é política.
Dexter balançou a cabeça novamente. O mesmo movimento ligeiro.
— As coisas têm um jeito todo próprio de se tornarem políticas — ele
disse. — Pense em Ruby Ridge. Pense em Waco, Harland. Aquilo não era
política, certo? Mas se transformou em política num piscar de olhos. Nós
nos prejudicamos com talvez setenta milhões de eleitores lá. E nós fomos
burros, muito burros, em relação àquilo. Grandes reações são o que esta
gente quer. Calculam que duras represálias deixam as pessoas perturbadas,
trazem mais gente para suas turmas. E nós lhes demos grandes reações. A
gente alimentou o incêndio. Nós deixamos transparecer que o grande
governo estava ansioso para esmagar o coitadinho.
A sala ficou em silêncio.
— Segundo as pesquisas, precisamos de uma abordagem melhor —
Dexter disse. — E estamos tentando encontrar uma. Estamos tentando
mesmo. Como ficaria se a Casa Branca parasse de tentar apenas porque, por
acaso, a Holly está envolvida? E justo agora? No fim de semana do Quatro
de Julho? Será que você não entende? Pense nisso, Harland. Pense na
reação. Pense em palavras como vingativo, interesseiro, vingança pessoal,
palavras desse tipo, Harland. Pense no que palavras como estas vão fazer
com nosso ibope.
Webster o encarou. As paredes brancas, encardidas, se comprimiam
contra ele.
— Trata-se de Holly, pelo amor de Deus — ele disse. — Isto não tem
nada a ver com números de pesquisa. E quanto ao general? O presidente
disse tudo isso a ele?
Dexter balançou a cabeça negativamente.
— Eu disse tudo isso a ele — afirmou. — Pessoalmente. Uma dúzia de
vezes. Ele fica ligando toda hora.
Webster pensou: Agora o presidente não atenderá mais as ligações de
Johnson. Dexter realmente deu um jeito nele.
— E? — ele perguntou.
Dexter deu de ombros.
— Acho que entende o princípio — ele disse. — Mas, naturalmente,
seu julgamento está meio colorido neste instante. Não é um homem feliz.
Webster caiu no silêncio. Começou a pensar intensamente. Era um
burocrata esperto o bastante para saber que, se não pode vencê-los, junte-se
a eles. Você se força a pensar como eles pensam.
— Mas arrancá-la de lá podia fazer bem para você — ele sugeriu. —
Muito bem. Pareceria durão, decisivo, leal, firme e eficiente. Podia ser
vantajoso. Nas pesquisas.
Dexter balançou a cabeça.
— Eu concordo totalmente com você — ele disse. — Mas é um jogo,
certo? Um grande jogo. Uma vitória arrasadora será convincente, uma
pisada na bola, um desastre. Um grande risco, com muito ibope na roleta. E
neste exato instante eu estou duvidando que você possa conseguir uma
vitória esmagadora. No momento, você está despreparado. Então, agora,
aposto na pisada na bola.
Webster o encarou.
— Ei, sem querer ofender, Harland — Dexter ponderou. — Sou pago
para pensar assim, certo?
— Certo. Então, que diabos você está dizendo? — Webster perguntou.
— Eu preciso mandar a equipe de salvamento de reféns para o lugar agora
mesmo.
— Não vai — Dexter informou.
— Não?!? — Webster repetiu, incrédulo.
Dexter balançou a cabeça negativamente.
— Permissão negada — ele disse. — Por enquanto.
Webster apenas o encarou.
— Eu preciso de uma posição — ele pediu.
A sala permaneceu em silêncio. Então Dexter falou para um ponto na
parede branca e encardida, um metro à esquerda da cadeira de Webster.
— Você permanece pessoalmente no comando da situação — ele disse.
— O fim de semana do feriado começa amanhã. Venha conversar comigo
na segunda-feira. Se ainda houver um problema.
— Há um problema agora — Webster disse. — E eu estou falando
com você agora.
Dexter balançou a cabeça novamente.
— Não, você não está — ele disse. — Não nos encontramos hoje e eu
não falei com o presidente hoje. A gente não sabia de nada disso hoje. Fale
para o pessoal sobre isso na segunda-feira, Harland, se ainda houver um
problema.
Webster apenas ficou sentado lá. Era um sujeito bem esperto, mas não
conseguia entender naquele momento se estava fechando um grande
negócio ou comprando uma casa mal assombrada.

Johnson e seu assessor chegaram em Butte uma hora mais tarde e da mesma
maneira, num helicóptero da Força Aérea vindo de Peterson até o aeroporto
do condado de Silver Bow. Milosevic recebeu uma ligação ar-terra
conforme se aproximavam, e depois de pousar saiu para encontrá-los num
Grand Cherokee seminovo, fornecido pela concessionária local. Ninguém
falou nada na breve viagem de volta à cidade. Milosevic apenas dirigiu e os
dois militares curvaram-se sobre cartas e mapas, provindos de uma grande
caixa de couro que o assessor carregava. Passaram-nos para a frente e para
trás e balançaram a cabeça, como se qualquer comentário adicional fosse
desnecessário.
A sala no prédio municipal de repente ficou apinhada. Cinco homens,
duas cadeiras. A única janela dava para a rua, na direção sudeste. Direção
errada. Os cinco homens relanceavam, instintivamente, os olhos para a
parede vazia oposta. Para além dessa parede estava Holly, a mais de
duzentos e cinquenta quilômetros.
— Vamos ter que nos instalar lá em cima — o general Johnson disse.
Seu assessor concordou com a cabeça.
— Não adianta ficarmos aqui — ele concluiu.
McGrath havia tomado uma decisão. Tinha prometido a si mesmo que
não travaria guerras territoriais com aqueles sujeitos. Sua agente era a filha
de Johnson. Ele compreendia os sentimentos do velhote. Não iria
desperdiçar tempo e energia para provar quem era o chefe. E precisava da
ajuda dele.
— Precisaremos compartilhar instalações — ele disse. — Apenas por
enquanto.
Fez-se um curto silêncio. O general balançou a cabeça lentamente. Ele
sabia o bastante sobre Washington para decodificar aquelas três palavras
com certo grau de exatidão.
— Eu não tenho muitas instalações disponíveis — ele disse por sua
vez. — É o fim de semana do feriado. Exatamente setenta e cinco por cento
do exército norte-americano estão de licença.
Silêncio. Foi a vez de McGrath decodificar e balançar a cabeça
lentamente.
— Nenhuma autorização de cancelamento das licenças? — ele
perguntou.
O general balançou a cabeça negativamente.
— Acabei de falar com Dexter — disse. — E ele acabou de falar com
o presidente. Sentiram que é melhor suspender, até segunda-feira.
A sala apinhada ficou em silêncio. A filha do sujeito estava em apuros
e o intermediário da Casa Branca brincava de política.
— Webster está com o mesmo problema — McGrath disse. — Não
pode trazer a equipe de salvamento de reféns aqui para cima ainda. Por
enquanto, estamos por conta própria, nós três.
O general fez um sinal com a cabeça para McGrath. Era um gesto
pessoal, de homem para homem, que expressava: Fomos francos um com o
outro e ambos sabemos a humilhação que isso nos custa, e ambos ficamos
gratos.
— Mas não custa nada ficar preparado — o general sugeriu. — Como
o fulano suspeita, as Forças Armadas estão tranquilas fazendo manobras
secretas. Eu estou cobrando alguns favores confidenciais que o Sr. Dexter
nunca precisará ficar sabendo.
O clima de apreensão na sala ficou mais leve. McGrath expressou uma
pergunta com o olhar.
— Já temos um posto móvel de comando a caminho — o general
avisou.
Pegou um mapa grande da mão do seu assessor e desdobrou na mesa.
— Vamos nos encontrar bem aqui — ele apontou.
Seu dedo mostrava um ponto a noroeste da última habitação de
Montana, antes de Yorke. Era uma curva larga na estrada que levava ao
condado, aproximadamente dez quilômetros antes da ponte sobre a ravina.
— Os caminhões-satélite estão se dirigindo direto para o local — ele
disse. — O plano é nos posicionarmos lá, estabelecermos o posto de
comando e interditar a estrada atrás de nós.
McGrath ficou imóvel, com os olhos baixados para o mapa. Ele sabia
que concordar seria ceder controle total às Forças Armadas. Sabia que
discordar seria ficar com joguinhos mesquinhos com sua agente e a filha do
homem. Viu então que o dedo do general estava a cerca de três centímetros
ao sul de uma posição muito melhor. Um pouco mais para o norte, a estrada
se estreitava bastante. Endireitava-se, dando uma vista muito boa para o
norte e para o sul. O terreno se apertava. Um local melhor para uma barreira
na estrada. Um local melhor para um posto de comando. Ficou espantado
pelo general não tê-lo visto. Então, encheu-se de gratidão. O general havia
visto sim. Mas estava dando espaço para McGrath apontá-lo. Briga de
cachorro grande. Estava dando espaço para concessão mútua. Não queria
controle total.
— Eu preferiria este lugar — McGrath apontou.
Bateu na posição norte com um lápis. O general fingiu estudá-la. Seu
assessor fingiu ficar impressionado.
— Boa ideia — o general disse. — Vamos revisar o ponto de encontro.
McGrath sorriu. Ele sabia muito bem que os caminhões já estavam
indo para esse ponto exato. Provavelmente até já estavam lá. O general
devolveu o sorriso. O teatro havia terminado.
— O que os aviões espiões podem nos mostrar? — Brogan perguntou.
— Tudo — o assessor do general disse. — Espere até ver as fotos. As
câmeras nesses bichinhos são inacreditáveis.
— Não gostei disso — McGrath disse. — Eles vão ficar nervosos.
O assessor balançou a cabeça negativamente.
— Nem ao menos vão saber que estiveram lá — garantiu. — Vamos
usar dois deles, voando em linha reta, do oeste ao leste e vice-versa. Trinta
e sete mil pés acima. Ninguém no chão nem ao menos estará ciente deles.
— Trinta e sete mil? — Brogan se espantou. — Como podem ver
qualquer coisa de uma altura dessas?
— As câmeras são excelentes — o assessor afirmou. — Trinta e sete
mil não é nada. Mostram um maço de cigarros na calçada. E tudo é
automático. Um sujeito aperta um botão lá em cima a câmera rastreia o que
quer que tenha que rastrear. Fica apontando para o ponto em solo que você
escolheu, transmitindo imagens de alta qualidade via satélite. Em seguida
você faz a volta, retorna e a câmera gira e faz tudo novamente.
— Indetectável? — McGrath perguntou.
— Parecem aviões de passageiros — o assessor disse. — Você olha
para cima, vê uma trilha minúscula de vapor e pensa que é um voo qualquer
da TWA. Você não pensa que é algum avião da Força Aérea checando se
você está engraxando seus sapatos esta manhã, compreende?
— Trinta e sete, dá para ver os cabelos brancos em sua cabeça —
Johnson disse. — Com o que você acha que gastamos todos esses dólares
da Defesa? Aviões pulverizadores?
McGrath balançou a cabeça. Sentiu-se nu. Por enquanto, ele não tinha
nada a oferecer, a não ser dois jipes alugados, seminovos, esperando na
calçada.
— Estamos criando um perfil do tal de Borken — ele avisou. — Os
especialistas em Quantico estão trabalhando nisso agora.
— Nós encontramos o antigo oficial comandante de Jack Reacher —
Johnson disse. — Está servindo atrás de uma mesa no Pentágono. Ele vai se
juntar a nós, nos dar o quadro geral.
McGrath balançou a cabeça.
— Um homem prevenido vale por dois — ele disse.
O telefone tocou. O assessor de Johnson atendeu. Estava mais
próximo.
— Quando vamos sair? — Brogan perguntou.
McGrath notou que ele tinha perguntado diretamente para Johnson.
— Agora mesmo, suponho — Johnson disse. — A Força Aérea vai
nos levar pra lá de avião. Economiza seis horas de estrada, certo?
O assessor desligou o telefone. Parecia que havia levado um murro na
boca do estômago.
— A unidade de mísseis — ele disse. — Perdemos o contato de rádio
no norte de Yorke.
31

HOLLY PAROU NO CORREDOR, ENTÃO SORRIU, a mulher tinha


deixado sua arma encostada na parede do lado de fora. Por isso aquelas
pausas: ela havia usado a chave, colocado a bandeja no chão, tirado a arma
do ombro, a encostado contra a parede e pegado a bandeja outra vez antes
de abrir a porta com um empurrão.
Holly trocou o cano de ferro pela arma. Não havia usado esse modelo
antes. Não queria usá-lo agora. Era uma pequena submetralhadora. Uma
Ingram MAC 10. Fabricação militar obsoleta. Obsoleta por um motivo. A
turma de Holly em Quantico tinha achado graça dela. Apelidaram-na de
arma de cabine telefônica. Era tão imprecisa que você teria que estar dentro
de uma cabine telefônica junto com o oponente para não errar o tiro. Uma
piada de mau gosto. E disparava muito rápido. Mil disparos por minuto. Um
toque no gatilho e o pente ficava vazio.
Mas era uma arma melhor do que um pedaço de cano velho da cama
de ferro. Ela verificou o pente. Estava cheio, trinta cápsulas. A câmara
estava limpa. Apertou o gatilho e observou o mecanismo se mover. A arma
funcionava perfeitamente. Travou o pente de volta na posição. Endireitou a
correia de lona e a enlaçou com firmeza em volta do ombro. Colocou a
manivela de carregamento na posição de tiro e fechou a mão em torno do
cabo. Apoiou-se com firmeza na muleta e lentamente se dirigiu para o topo
das escadas.
Ficou parada aguardando. Ouviu atentamente. Nenhum som. Desceu
as escadas, bem devagar, um degrau por vez, a Ingram em riste na sua
frente. No fim dos degraus, esperou e aguçou os ouvidos novamente.
Nenhum som. Atravessou o saguão de entrada e chegou às portas. Abriu na
maciota e olhou para fora.
A rua estava deserta. Mas era larga. Para ela, parecia uma avenida de
cidade grande. Chegar do outro lado em segurança custaria alguns minutos.
Minutos, lá fora, em local aberto, exposta às ladeiras da montanha acima.
Estimou a distância. Respirou fundo e agarrou a muleta. Lançou a Ingram
para a frente. Respirou fundo outra vez e disparou numa carreira furtiva,
comprimindo a muleta para baixo, pulando adiante com a perna boa,
movimentando a arma para a esquerda e para a direita para cobrir ambos os
acessos.
Jogou-se no barranco, na frente do escritório em ruínas do condado.
Arrastou-se para o norte, dando a volta por trás do escritório, e enfrentou o
matagal rasteiro que a impedia de prosseguir. Entrou na floresta paralela à
trilha principal, mas a trinta metros dela. Encostou-se contra uma árvore e
dobrou o corpo, resfolegando por esforço, medo e euforia.
Agora era para valer mesmo. Era para onde toda a sua vida a havia
conduzido. Ela podia ouvir mentalmente as histórias do front que seu pai
contava. As florestas do Vietnã. O medo esbaforido de ser caçado na
vegetação rasteira. O triunfo de cada passo em segurança, de cada metro
conquistado. Viu os rostos dos homens durões, dos cascas-grossas, quietos,
que conheceu nas bases quando era criança. Os instrutores em Quantico.
Sentiu o desapontamento de seu posto numa mesa segura em Chicago. Todo
aquele treinamento desperdiçado por causa de quem ela era. Agora seria
diferente. Ela se endireitou. Respirou fundo. E mais uma vez. Sentiu seus
genes fervendo em todo seu ser. Antes, sentiam-se como intrusos sem muito
o que fazer. Agora, sentiam-se aquecidos, integrais e prontos. Puxou o pai?
Com certeza!

Reacher estava algemado em torno do tronco de um pinheiro de trinta


metros. Havia sido arrastado por uma trilha estreita até o baluarte.
Queimando de fúria. Um soco e um pontapé eram bem mais do que havia
deixado barato desde sua infância. A ira enterrava a dor. E ofuscava sua
mente. Uma vida por uma vida, o gordo filho de uma puta havia dito.
Reacher tinha se contorcido no chão e as palavras não surtiram nele o efeito
desejado.
Mas as compreendeu agora. Tinham voltado até ele enquanto estava lá.
Homens e mulheres vagueavam até o pinheiro e sorriam. Seus sorrisos eram
do tipo que tinha visto antes, há muito tempo. Sorrisos de crianças
entediadas, vivendo numa base isolada de algum fim de mundo, depois de
serem informadas de que o circo estava chegando.

Ela botou a cabeça para funcionar. Tinha que calcular onde ele estava. E
tinha que calcular onde ficava o campo de exercícios. Precisava chegar
entre esses dois locais desconhecidos e armar uma emboscada. Sabia que o
solo tinha um declive ascendente íngreme até a clareira com as cabanas.
Recordou ser trazida morro abaixo até o tribunal. Supunha que o campo de
exercícios deveria ser uma enorme área plana. Consequentemente, teria que
ser mais morro acima, para o noroeste, onde a terra se nivelava no bojo da
montanha. Certa distância para além das cabanas. Partiu morro acima
através das árvores.
Tentou descobrir para onde o trajeto principal seguia. De poucos em
poucos metros, parava e espreitava o sul, virando para a esquerda e para a
direita, para um relance das aberturas na cobertura da floresta onde as
árvores tinham sido cortadas. Dessa maneira, poderia deduzir a direção da
trilha. Manteve-se paralela a ela, trinta ou quarenta metros ao norte, e
atravessou os galhos resistentes que cresciam lateralmente dos troncos a
muito custo. Era tudo subida, íngreme, e era trabalho duro. Usou a muleta
como um barqueiro usa uma vara, plantando-a firmemente no solo e
empurrando-se para cima.
Sabe-se lá como, mas seu joelho a ajudou. Ele a fez subir lentamente e
com cuidado. Tornou-a silenciosa. E ela sabia como agir. Por causa de
velhas histórias do Vietnã e não de Quantico. A academia havia se
concentrado em situações urbanas. O FBI a tinha ensinado como espreitar
por uma rua da cidade ou um edifício escuro. Como espreitar por uma
floresta se originava de uma gaveta pouco usada da memória.

Algumas pessoas caminharam para cima e se afastaram, mas outras


permaneceram. Após uns quinze minutos, havia uma pequena multidão,
quase vinte pessoas, em sua maioria homens, desorientados, formando um
largo semicírculo em torno dele. Mantiveram a distância, como curiosos no
trânsito ao verem um acidente de automóvel, atrás de um cordão imaginário
de isolamento. Olhavam fixamente para ele, silenciosamente, sem muita
expressão no rosto. Ele retornou o olhar fixo. Deixou seu olhar pousar em
cada um, por diversos segundos de cada vez. Manteve os braços engatados
para cima atrás dele o máximo que conseguia. Queria manter os pés livres
para a ação, caso algum deles achasse que deveria começar o show um
pouco mais cedo.
Ela sentiu o cheiro da primeira sentinela antes de avistá-la. Estava se
movendo contra o vento, na sua direção, fumando. O cheiro do cigarro
misturado ao do uniforme suado flutuou até ela, que se movimentou
silenciosamente para a direita. Fez um círculo largo em torno da sentinela e
esperou. Desceu a colina e desapareceu.
A segunda sentinela a ouviu. Ela percebeu isso. Sentiu-a parar e
escutar. Ficou imóvel. Pensou intensamente. Não queria usar a Ingram. Era
muito imprecisa. Estava certa de que iria errar com ela. E o barulho seria
fatal. Assim, ela se agachou e esfregou duas pedras pequenas. Um velho
truque da selva que lhe haviam ensinado quando era criança. Lançou a
primeira pedra seis metros a sua esquerda. Esperou. Lançou a segunda a
nove metros. Ouviu que a sentinela calculou que algo se afastava
lentamente para a esquerda. Ouviu a sentinela se deslocar naquela direção.
Ela se moveu para a direita. Um círculo largo, e para a frente, subindo a
interminável colina.

Fowler atravessou o pequeno semicírculo de transeuntes a ombradas. Ficou


frente a frente com o prisioneiro. Encarou-o firmemente. Então seis guardas
atravessaram a multidão. Cinco deles com os rifles nivelados, e o sexto com
uma corrente pequena na mão. Fowler saiu da frente e os cinco rifles foram
pressionados contra a barriga de Reacher. Ele desceu os olhos até eles. As
travas de segurança estavam desengatadas e todas ajustadas para disparo
automático.
— Hora de partir — Fowler disse.
Ele desapareceu atrás do grande tronco e Reacher sentiu as algemas se
soltarem. Inclinou-se para longe da árvore e os canos o seguiram,
acompanhando seu movimento. Então as algemas se fecharam novamente,
com a corrente no meio delas. Fowler prendeu a corrente e Reacher foi
arrastado pelo baluarte, de frente para os cinco guardas. Estavam todos
andando de costas, rifles a trinta centímetros de sua cabeça. As pessoas se
alinhavam, tensas, formando um cordão. Ele foi arrastado entre elas. O
povo assobiava e murmurava enquanto passava. Então, saíram das fileiras e
correram na frente dele, na direção do campo de exercícios.

A terceira sentinela a pegou. Seu joelho a deixou na mão. Teve que escalar
um alto penhasco rochoso e, por causa da perna, precisou fazer isso de
costas. Sentou-se na rocha como se fosse uma cadeira e usou a perna boa e
a muleta para empurrar-se para cima, um pé de cada vez. Chegou ao topo e
rolou de costas no chão, ofegante por causa do esforço, e então se contorceu
endireitando o corpo e ficou parada, frente a frente com a sentinela.
Por um milésimo de segundo, ficou pasma de surpresa e choque. Mas
ele não. Ele tinha ficado no topo do morro observando cada trecho do seu
avanço agonizante. Por isso não estava surpreso. Mas era lento. Com um
oponente como Holly, deveria ter sido rápido. Deveria estar pronto. Reagiu
antes que ele pudesse esboçar qualquer ação. Ela se lembrou do que
aprendera no treinamento básico. Veio inconscientemente. Fechou a mão e
deu um murro nele de baixo para cima. Acertando-o bem nos ovos. Ele se
dobrou para a frente e para baixo, e ela envolveu o braço esquerdo em sua
garganta e acertou sua nuca com o antebraço direito. Sentiu as vértebras do
sujeito se estilhaçarem e seu corpo ficar mole. Então apertou as palmas
sobre as orelhas dele e torceu sua cabeça com selvageria para um lado e
depois para outro. A coluna se rompeu e ela o girou e o jogou rochedo
abaixo. Ele despencou pelo penhasco aos trancos e barrancos, membros
mortos se agitando. Então ela o amaldiçoou e xingou com ódio, pois
deveria ter tomado o rifle. Ele valia mais do que doze Ingrams. Mas não
desceria tudo de novo para pegá-lo, de jeito nenhum. Subir aquilo tudo a
atrasaria muito.

O campo de exercícios estava lotado. Todo mundo em fileiras perfeitas.


Reacher calculava que havia talvez cem pessoas lá. Homens e mulheres.
Todos uniformizados. Todos armados. Suas armas formavam uma incrível
seleção de poder de fogo. Cada pessoa tinha uma espingarda inteiramente
automática ou uma metralhadora sobre o ombro esquerdo. Cada pessoa
portava uma pistola automática no cinto. Todo mundo tinha pochetes de
munição e granadas penduradas à moda convencional em laços nas suas
redinhas. Muitos deles tinham pintura de camuflagem noturna no rosto.
Seus uniformes foram adaptados do excedente do exército dos Estados
Unidos. Casacos camuflados, calças camufladas, coturnos de floresta,
casquetes. Aquele mesmo material que Reacher tinha visto empilhado no
depósito. E cada uniforme tinha outros suplementos. Cada casaco tinha uma
divisa na linha de ombro, bordada com linha de seda castanha, com Milícia
de Montana escrito em letras desenhadas. Cada casaco tinha o nome do
soldado bordado numa fita verde-oliva e costurado acima do bolso do peito.
Alguns dos homens tinham estrelas cromadas espetadas através do tecido
no bolso de peito. Algum tipo de patente.
Beau Borken estava em cima de um caixote de madeira virado na
borda ocidental da área nivelada, de costas para a floresta, o corpanzil
maciço assomando sobre sua tropa. Ele viu Fowler, Reacher e os guardas
chegando pelo meio das árvores.
— Atenção! — ele exclamou.
Houve um farfalhar quando os cem membros da milícia ficaram em
sentido. Reacher sentiu um cheiro de lona na brisa. O cheiro de cem
uniformes do excedente do exército. Borken acenou com o braço gordo e
Fowler pegou a corrente de Reacher para arrastá-lo para a dianteira do
agrupamento. Os guardas agarraram seus braços e ombros, o viraram e o
conduziram até ele ficar de pé ao lado do caixote, de repente isolado, de
frente para a multidão.
— Nós sabemos por que estamos aqui! — Borken exclamou para
todos.

Ela não tinha ideia da distância que havia percorrido. Sentia como se
fossem quilômetros. Centenas de metros de subida. Mas ainda estava nas
profundezas da floresta. A trilha principal ainda ficava a uns quarenta
metros ao sul, à sua esquerda. Sentiu os minutos tiquetaquearem e seu
pânico aumentar. Agarrou a muleta e moveu-se para o noroeste novamente,
o mais rápido que podia.
Então avistou um prédio diante dela. Uma cabana de madeira, visível
através das árvores. O matagal acabava aos poucos na brita pedregosa.
Rastejou para a borda do matagal e parou. Escutou atentamente sobre o
arfar de sua respiração. Não ouviu nada. Agarrou a muleta e levantou a
Ingram firmemente contra a correia. Atravessou a brita mancando até o
canto da cabana. Olhou para o outro lado e ao redor.
Era a clareira onde tinham chegado na noite anterior. Um largo espaço
circular. Rochoso. Rodeado de cabanas. Abandonado. Quieto. O silêncio
absoluto de um lugar recentemente abandonado. Saiu detrás da cabana e
mancou até o centro da clareira, fazendo uma pirueta sobre a muleta,
mirando a Ingram em um círculo extenso, cobrindo as árvores do perímetro.
Nada. Não havia ninguém ali.
Vislumbrou duas trilhas, uma para o oeste, outra, mais larga, para o
norte. Virou para o norte e retornou para a proteção das árvores. Esqueceu-
se da tentativa de permanecer quieta e correu, o mais rápido que podia se
mover.

— Nós sabemos por que estamos aqui! — Borken exclamou outra vez.
A multidão ordenada se moveu e uma onda de sussurros subiu até as
árvores. Reacher esquadrinhou os rostos. Viu Stevie na fileira da frente.
Uma estrela cromada fincada no bolso em seu peito. O Pequeno Stevie era
um oficial. Ao lado de Stevie viu Joseph Ray. Então se deu conta de que
Jackson não estava lá. Ninguém com uma cicatriz na testa. Verificou
novamente. Varreu tudo. Nenhum sinal dele em qualquer lugar do campo de
exercícios. Apertou os dentes para impedir um sorriso. Jackson estava se
escondendo. Holly ainda poderia conseguir.

Ela o viu. Mirou o olhar através da floresta sobre cem cabeças e o viu ao
lado de Borken. Suas mãos estavam algemadas atrás das costas. Ele
esquadrinhava a multidão. Nada no rosto. Ela ouviu Borken dizer: Nós
sabemos por que estamos aqui! Ela pensou: Sim, eu sei por que estou aqui.
Eu sei exatamente por que estou aqui. Olhou para a esquerda e para a
direita. Cem pessoas, rifles, metralhadoras, pistolas, granadas. Borken sobre
o caixote com os braços levantados. Reacher, indefeso ao lado dele. Ficou
entre as árvores, o coração disparado, encarando-o. Então respirou
profundamente. Ajustou a Ingram para a posição de tiro único e disparou no
ar. Saiu dali o mais rápido que pôde. Atirou outra vez. E de novo. Três tiros
no ar. Três balas se foram, restavam vinte e sete no pente. Colocou a Ingram
de volta no modo automático com um clique e entrou no meio da multidão,
dividindo-a ao meio ao agitar a arma com a mão ameaçadora.
Uma mulher movendo-se lentamente no meio de uma multidão de cem
pessoas. Abriram caminho cautelosamente ao seu redor enquanto ela
passava, tiraram a arma do ombro, puxaram o cão e apontaram para as
costas dela. Uma onda de ruídos mecânicos altos se fez ouvir como uma
marola lenta. No momento em que ela alcançou a fileira dianteira, havia
cem armas carregadas mirando as suas costas.
— Não atirem nela! — Borken gritou. — Isso é uma ordem! Ninguém
atira!
Ele saltou do caixote. Pânico no rosto. Levantou os braços largamente
e dançou desesperado em torno da agente, protegendo o corpo dela com seu
corpanzil enorme. Ninguém atirou. Ela mancou para longe dele e se virou
para a multidão.
— Que merda é essa? — Borken gritou com ela. — Você acha que
pode atirar em cem pessoas com essa bostinha?
Holly balançou a cabeça.
— Tenho certeza que não — ela disse baixo.
Então inverteu a Ingram e segurou-a contra o peito.
— Mas garanto que posso atirar em mim mesma — ela disse.
32

A MULTIDÃO SILENCIOU. INSPIRAÇÃO E EXPIRAÇÃO engolidas


pelo terrível silêncio da montanha. Todos estavam encarando Holly. Ela
mantinha a Ingram invertida, o cano da arma pressionando um ponto acima
do seu coração. Polegar para trás no gatilho, enrijecido. A cara inchada de
Borken brilhava de suor com o pânico. Seu corpanzil enorme tremia e se
sacudia. Pulando para lá e para cá ao lado de seu caixote virado, ele a fitava
com olhos arregalados. Ela lhe devolvia o olhar, calma.
— Eu sou uma refém, certo? — ela lhe falou. — Importante para eles,
importante para você, por causa de quem sou. Muito importante para todo o
processo. Você espera que façam coisas para me manter viva. Então agora é
sua vez. Vamos falar sobre o que você está disposto a fazer para me manter
viva.
Borken percebeu a troca de olhares com Reacher.
— Você não compreende — ele gritou para ela. Com uma urgência
desenfreada na voz. — Eu não vou matar seu amigo. Ele permanecerá vivo.
A situação mudou.
— Mudou como? — ela perguntou, calma.
— Vou substituir a sentença — Borken disse. Ainda havia pânico em
sua voz. — É por isso que estamos aqui. Eu ia anunciar. Nós sabemos quem
ele é. Acabamos de descobrir. Acabamos de ser informados. Serviu no
exército. Major Jack Reacher. Ele é um herói. Ganhou uma Estrela de Prata.
— E o que tem isso? — Holly perguntou.
— Ele salvou um grupo de fuzileiros navais — Borken disse
angustiado. — Em Beirute. Soldados comuns. Tirou-os de uma casamata
em chamas. Os fuzileiros navais nunca vão atacar a gente enquanto ele
estiver aqui. Nunca. Então vou usá-lo também como outro refém. É um
bom seguro contra os malditos fuzileiros navais. Eu preciso dele.
Ela o encarou. Reacher também.
— A sentença dele será substituída — Borken disse novamente. —
Cinco anos no pelotão de castigo. Apenas isso. Nada mais. Eu garanto.
Preciso dele vivo.
Ele a encarou com o largo sorriso de um vendedor, como se o
problema estivesse resolvido. Ela olhou fixamente para ele e depois para
Reacher. Reacher observava a multidão furiosa. O circo tinha saído da
cidade antes do espetáculo. Reacher sentiu que todos tinham dado um passo
na direção dele. Testavam o poder de Borken. Holly olhou de relance para
ele, com medo nos olhos. Acenou. Um movimento imperceptível de cabeça.
Ela estaria segura, o aceno expressava, não importava o que acontecesse.
Sua identidade a protegia como um colete mágico e invisível. Reacher
devolveu o aceno. Sem se voltar, calculando a distância até as árvores atrás
dele. Talvez seis metros. Empurrando Fowler na fileira dianteira, arrastando
a corrente, correndo como o diabo fugindo da cruz, ele podia chegar até as
árvores antes que qualquer um pudesse lhe apontar uma arma. Seis metros,
início da corrida, usando o impulso de empurrar Fowler com o ombro para
longe como ajuda, talvez quatro ou cinco passos, talvez três segundos,
talvez quatro. Nas árvores, ele teria uma chance de se proteger contra os
tiros. Imaginou-as acertando os troncos, de um ou de outro lado dele,
enquanto corria e se esquivava. A floresta é a melhor amiga de um fugitivo.
É preciso muita sorte para acertar alguém correndo no meio das árvores.
Deslocou o peso e sentiu seus tendões endurecidos. Sentiu o influxo de
adrenalina. Lutar ou fugir. Mas, então, Borken abriu os braços largamente
de novo. Deixou-os escancarados, como as asas de um anjo, e usou o poder
impressionante dos seus olhos em seu povo.
— Eu tomei minha decisão — ele gritou. — Compreenderam?
Fez-se uma longa pausa, que perdurou alguns segundos. Então cem
cabeças ficaram em sentido.
— Sim, senhor! — cem vozes gritaram.
— Compreenderam? — ele gritou novamente.
Cem cabeças ficaram em posição de sentido novamente.
— Sim, senhor!
— Cinco anos no pelotão de castigo — Borken gritou. — Mas
somente se ele puder provar quem é. Fomos informados de que este homem
é o único não fuzileiro da história a ganhar a competição de franco-atirador
da marinha. Disseram pra gente que este homem pode enfiar seis balas em
uma moeda a um quilômetro de distância. Vou competir com ele.
Oitocentos metros. Se ele ganhar, permanecerá vivo. Se perder, morre.
Compreenderam?
Cem cabeças ficaram em sentido.
— Sim, senhor! — cem vozes gritaram.
O alvoroço da multidão tinha recomeçado. Pareciam interessados desta
vez. Reacher sorriu por dentro. Jogada esperta, pensou. Queriam um
espetáculo, Borken lhes estava dando um. Fowler expirou e tirou uma chave
do bolso. Agachou-se e abriu as algemas. A corrente caiu no chão. Reacher
soltou o ar e friccionou os pulsos.
Então, Fowler se aproximou de Holly no meio da multidão. Ficou na
frente dela. Ela fez uma longa pausa e olhou de relance para Borken, que
assentiu com a cabeça.
— Você tem a minha palavra — ele disse, com tanta dignidade quanto
pôde recuperar.
Ela relanceou os olhos para Reacher. Ele deu de ombros e assentiu
com a cabeça. Ela devolveu o aceno e baixou os olhos até a Ingram.
Acionou a trava de segurança e tirou a correia do ombro. Sorriu e jogou a
arma no chão. Fowler se curvou perante seus pés e pegou a arma. Borken
levantou os braços pedindo silêncio.
— Para o estande de tiros — gritou. — Em ordem. Dispensados.
Holly se aproximou mancando e andou ao lado de Reacher.
— Você ganhou Wimbledon? — ela perguntou em voz baixa.
Ele assentiu com a cabeça.
— Dá para ganhar dele? — ela perguntou.
Ele assentiu com a cabeça novamente.
— De olhos vendados — ele brincou.
— E essa é uma boa ideia? — ela perguntou em voz baixa. — Ele não
vai gostar de perder, ainda mais um sujeito como ele.
Reacher deu de ombros.
— Ele quer um grande espetáculo e é o que terá — disse. — Ele está
totalmente transtornado. Você começou. Eu quero manter o ritmo. Vai ser
bom para nós, a longo prazo.
— Bem, tome cuidado — ela pediu.
— Não tire os olhos de mim — Reacher devolveu.

Dois alvos novinhos em forma humana foram colocados lado a lado, na


ponta oposta do estande. O de Borken estava à esquerda, com ATF pintado
no peito. O de Reacher estava à direita, com FBI no coração. As esteiras
rústicas foram puxadas para trás com o intuito de permitir a distância
máxima. Reacher calculou que estava a aproximadamente novecentos
metros. Mais cem metros e seria um quilômetro. Longe pra cacete.
A multidão havia formado um semicírculo irregular, atrás e ao lado das
esteiras. Os alvos mais próximos foram derrubados na vegetação rasteira
para desimpedir a vista. Muitos tinham binóculos. Perscrutaram o estande e,
então, o burburinho se desvaneceu, à medida que um após o outro se pôs
em um silêncio de antecipação.
Fowler percorreu o trajeto até o arsenal na clareira abaixo. Caminhou
de volta com um rifle em cada mão. Um para Borken, outro para Reacher.
Armas idênticas. O preço de um carrinho popular em cada mão. Era uma
Barrett 90s, .50 polegadas. Quase um metro e vinte de comprimento, pesava
mais de dez quilos. Os repetidores acionados por ferrolho disparavam uma
bala de um centímetro e trinta. Mais parecia um projétil de artilharia do que
uma bala de rifle.
— Um pente cada — Borken disse. — Seis tiros.
Reacher pegou sua arma e a colocou no chão a seus pés. O Pequeno
Stevie guiou a multidão para trás para deixar as esteiras livres. Borken
verificou seu rifle e colocou rapidamente os bipés do pé para fora. Colocou
o pente no lugar. Ajustou a arma para baixo delicadamente na esteira.
— Eu atiro primeiro — ele avisou.
Ajoelhou-se e forçou seu corpanzil a se abaixar atrás do rifle. Puxou a
coronha para si e aconchegou-o bem pertinho. Arrastou os pés do bipé três
centímetros para a esquerda e virou a coronha uma fração para a direita.
Arrastou o ferrolho com um estalo, para dentro e para fora, e se comprimiu
bem, no chão. Colocou delicadamente a bochecha contra o suporte e o olho
na mira. Joseph Ray saiu da multidão e ofereceu seu binóculo para Reacher.
Reacher assentiu com a cabeça silenciosamente e o pegou. Deixou-o
pronto. O dedo de Borken comprimiu o gatilho e deu o primeiro tiro.
O freio de boca enorme da Barrett soltou um jato de gás, lateralmente
e para baixo. A poeira explodiu para fora da esteira. O rifle deu um coice e
estrondou. O som causou um ribombar pelas árvores e ecoou nas
montanhas, segundos mais tarde. Cem pares de olhos passaram rapidamente
de Borken para o alvo. Reacher levantou o binóculo e focalizou oitocentos
metros estande acima.
Pra fora. O alvo estava intacto. Borken olhou pela mira e fez uma
careta. Agachou-se novamente e esperou até a poeira baixar. Reacher o
observou. Borken apenas ficou esperando. Respiração regular.
Descontraído. Então seu dedo apertou novamente. Disparou o segundo tiro.
O rifle deu um coice, causou um estrondo e uma nuvem de poeira. Reacher
levantou o binóculo novamente. Na mosca. Havia um furo estilhaçado no
ombro direito do alvo.
Houve um murmúrio na multidão. Os binóculos foram passados de
mão em mão. O volume dos sussurros subiu e desceu. A poeira se assentou.
Borken atirou de novo. Rápido demais. Ainda estava se ajeitando. Reacher
o observou cometendo o erro. Não se incomodou com o binóculo. Sabia
que o projétil de mais de um centímetro e meio ia parar em Idaho.
A multidão sussurrou. Borken olhou furioso estande abaixo. Reacher o
observou fazer tudo errado. Seu relaxamento estava desaparecendo. Os
ombros ficaram enrijecidos. Disparou o quarto. Reacher devolveu o
binóculo para Joseph Ray, na borda da multidão. Não precisava olhar. Sabia
que Borken ia errar o resto. Nesse estado erraria a trezentos metros. Erraria
a duzentos. Erraria até de um lado a outro de um quarto cheio de gente.
Borken disparou o quinto e então o sexto, e se levantou lentamente.
Levantou o grande rifle e usou a mira para verificar o que todos já sabiam.
— Um acerto — ele disse.
Abaixou o rifle e olhou para Reacher.
— Sua vez — ele avisou. — Vida ou morte.
Reacher balançou a cabeça. Fowler entregou-lhe o pente. Reacher usou
o polegar para testar a mola. Comprimiu a primeira bala e sentiu o retorno
suave. As balas eram brilhantes. Polidas à mão. Balas de franco-atirador.
Curvou-se e levantou o pesado rifle. Segurou-o verticalmente e colocou o
pente no seu devido lugar, com um clique. Não o estalou como Borken
tinha feito. Pressionou-o delicadamente com a palma.
Abriu os pés do bipé, um de cada vez. Estalando-os contra suas travas.
Olhou de relance estande abaixo e colocou o rifle na esteira. Agachou-se ao
lado dele e se deitou, tudo num movimento leve. Ficou deitado como um
cadáver, os braços jogados para trás, paralelos à arma. Ele queria ficar
deitado assim por muito tempo. Estava cansado. Extremamente cansado.
Mas se mexeu e encostou a bochecha delicadamente contra o suporte.
Aconchegou o ombro direito perto da extremidade. Comprimiu a mão
esquerda sobre o cano, os dedos sob a mira. Moveu gentilmente a mão
direita para o gatilho e o olho direito para a mira. Soltou o ar.
Para disparar com êxito com um rifle de franco-atirador a uma grande
distância se faz necessária a confluência de muitos fatores. Começa com a
química. Depende da engenharia mecânica. Envolve o sistema ótico, a
geofísica e a meteorologia. E a biologia humana governa tudo.
A química trata das explosões. O pó atrás da bala na cápsula do
projétil tem que explodir conforme esperado, perfeitamente,
poderosamente, instantaneamente. Tem que disparar do projétil, pelo cano
afora, na velocidade máxima. A bala de um centímetro e trinta na câmara da
Barrett pesa algo em torno de sessenta gramas. Num minuto está
estacionária, num milésimo de segundo depois está a quase três mil
quilômetros por hora, deixando o cano para trás a caminho do alvo. Esse pó
tem que explodir rapidamente, explodir completamente e sem erro. Uma
química difícil. Peso a peso, essa explosão precisa ser a melhor do planeta.
Depois a engenharia mecânica assume o controle por um tempo. A
própria bala tem que ser um pequeno artefato perfeito. Deve ser tão exato
quanto qualquer artigo manufaturado jamais foi. Precisa ser moldado
melhor do que qualquer joia. Deve ser totalmente uniforme, no tamanho e
no peso. Perfeitamente tubular, aerodinâmica perfeita. Tem que aguentar a
rotação feroz dos estriamentos dentro do cano. Tem que girar e silvar pelo
ar sem absolutamente nenhum tranco, nenhum desvio.
O cano tem que ser bem justo e tem que estar em linha reta. Não presta
para nada se um tiro precedente o aqueceu e alterou sua forma. O cano tem
que ser uma massa de metal perfeita, pesada o bastante para permanecer
inerte. Pesada o bastante para neutralizar as vibrações minúsculas do
ferrolho, do gatilho e do percussor. É por isso que a Barrett que Reacher
estava segurando custava tanto quanto um carro mil. É por isso que a mão
esquerda de Reacher estava apertando frouxamente a parte superior da
arma. Pois assim amortecia todo choque residual.
A ótica representava um grande papel. O olho direito de Reacher
estava um centímetro e meio atrás de uma mira Leupold & Stevens. Um
instrumento fino. O alvo aparecia pequeno, atrás de tênues linhas de dados
gravadas no vidro. Reacher olhou com toda atenção para ele. Então moveu
o suporte para baixo suavemente e viu o alvo desaparecer e o céu aparecer
diante dos seus olhos. Expirou novamente e fitou o céu.
Pois a geofísica é crucial. A luz viaja em linha reta. Mas é a única
coisa que faz isso. As balas não. As balas são objetos físicos que obedecem
as leis da natureza, como todas as outras coisas físicas. Seguem a curvatura
da Terra. Oitocentos metros é uma porção significativa de curvatura. A bala
sai do cano e sobe acima da linha de visão, a seguir passa através e depois
cai abaixo dela. Em uma curva perfeita, como nosso planeta.
Só que não é uma curva perfeita, porque, logo no primeiro
milissegundo que a bala sai, a gravidade começa a puxá-la como uma
mãozinha insistente. A bala não pode ignorá-la. É um projétil de chumbo de
precisamente cinquenta e sete gramas, revestido de cobre, viajando a mais
de três mil quilômetros por hora, e, mesmo assim, a gravidade realiza seu
intento. Não com muito sucesso, no início, mas seu melhor aliado dá uma
contribuição. O atrito. Desde o primeiro milissegundo da trajetória, o atrito
com o ar retarda a bala e dá à força g uma influência cada vez maior sobre o
seu destino. O atrito e a força g trabalham juntos para puxar a bala para
baixo.
Por isso, você aponta bem para cima. Aponta talvez três metros
diretamente acima do alvo, e oitocentos metros depois a curvatura da Terra
e a força g levam a bala para seu lugar, para onde você quer.
Só que você não aponta diretamente acima do alvo. Porque isso seria
ignorar a meteorologia. As balas viajam através do ar, e ele se move. É
raridade o ar ficar imóvel. O ar se move de um modo ou de outro. Para a
esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo, ou alguma combinação.
Reacher estava observando as folhas nas árvores e podia ver uma brisa
constante e lenta vinda do norte. Ar seco, movendo-se lentamente, da
direita para a esquerda, pela sua linha de visão. Por isso, estava apontando
dois metros e meio para a direita, e três metros acima de onde queria pôr a
bala. Ele ia lançar o projétil e deixar a natureza curvá-lo para a esquerda e
para baixo.
A biologia humana era o único obstáculo. Franco-atiradores são
pessoas. Pessoas são massas de carne e músculos, que tremem e se
chacoalham. O coração bate como uma bomba gigante, e os pulmões
espremem um volume enorme de ar para dentro e para fora. Cada nervo e
cada músculo tremem com energia microscópica. Ninguém jamais fica
imóvel. Mesmo a pessoa mais calma vibra como louco. Digamos que há um
metro entre o percussor do rifle e a boca. Se a boca se mover uma fração
minúscula, então, oitocentos metros mais adiante, a bala vai errar por
oitocentas minúsculas frações. Uma reação em cadeia. Se a vibração do
atirador perturbar a boca do cano, mesmo por um centésimo de centímetro,
a bala estará cerca de vinte centímetros fora do alvo. Aproximadamente a
largura da cabeça de um homem.
Por isso, a técnica de Reacher era esperar. Apenas olhar pela mira, até
que a respiração ficasse regular e os batimentos cardíacos desacelerassem.
Aí apertaria lentamente o dedo no gatilho e esperaria um pouco mais. Então
contaria os batimentos. Um e dois, três e quatro. Continuaria esperando, até
que o ritmo ficasse lento. Então atiraria entre os batimentos. Exatamente
quando a vibração fosse tão pequena quanto um ser humano pudesse
conseguir.
Ficou esperando. Soltou o ar devagar e profundamente. Seu coração
bateu uma vez. Bateu novamente. Ele atirou. O suporte saltou contra seu
ombro, e ele perdeu a visão por causa da explosão de poeira da esteira sob a
boca. O estrondo pesado do tiro causou um ribombar nas encostas da
montanha e voltou para ele com uma onda de sussurros da multidão. Ele
tinha errado. A silhueta do soldado correndo agachado, com a sigla FBI
pintada no peito, estava intacta.
Deixou a poeira assentar e checou as árvores. O vento era constante.
Expirou e aguardou seus batimentos cardíacos diminuírem. Atirou de novo.
O grande rifle deu um coice e causou um estrondo. A poeira levantou. A
multidão olhou fixamente e sussurrou. Outro erro.
Dois erros. Respirou firmemente e atirou de novo. Erro. E novamente.
Outro erro. Fez uma pausa por muito tempo. Acelerou o ritmo novamente e
deu o quinto tiro. Errou o quinto. A multidão ficou agitada. Borken se
aproximou pesadamente.
— Ficou tudo pro último tiro — disse e sorriu.
Reacher não respondeu. Não podia se dar ao luxo de arriscar um
distúrbio físico ao dizer algo. A interrupção da respiração e a contração
muscular de seus pulmões e garganta seriam fatais. Ficou esperando. O
coração batia forte. E novamente. Deu o sexto tiro. Errou. Abaixou a mira e
fitou o alvo de compensado. Intacto.
Borken o estava encarando. Seus olhos faziam perguntas. Reacher se
ajoelhou e levantou o rifle. Jogou o pente vazio fora. Retornou o ferrolho
para o lugar. Traçou um dedo ao longo da gravura simples, ao lado do
suporte. Dobrou o bipé. Colocou a arma ainda quente em ordem na esteira.
Levantou-se e deu de ombros. Borken o encarou. Olhou de relance para
Fowler. Fowler devolveu o olhar, confuso. Tinham observado um homem
atirando pela própria vida e o viram errar todos os tiros.
— Você conhecia as regras — Borken disse baixo.
Reacher ficou imóvel. Ignorando-o. Olhou para o céu azul. Duas
trilhas de vapor rastejavam através, como minúsculas linhas de giz distantes
na estratosfera, bem lá em cima.
— Espere, senhor — Joseph Ray gritou.
Veio para a frente, saindo do meio da multidão. Eriçou-se com
urgência e presunção. Tinha algo a dizer. Era um dos poucos homens no
baluarte com serviço militar de verdade no seu histórico e se orgulhava de
ver certas coisas que os demais deixavam passar batido. Achava que isso
lhe dava uma vantagem. Tornava-o útil, de forma especial.
Olhou com concentração para a esteira e se deitou exatamente onde
Reacher tinha se deitado. Olhou a extensão do estande até os alvos. Fechou
um olho e olhou fixamente com a metade do binóculo, como um telescópio.
Focalizado no alvo de um homem correndo. Moveu sua linha de visão uma
fração e a focalizou um pouco além da corcova do ombro do alvo. Fitou a
distância e assentiu com a cabeça para si mesmo.
— Vamos — ele disse.
Levantou-se e começou a correr estande abaixo. Fowler foi com ele.
Oitocentos metros depois, Ray passou pelo alvo sem dar nem uma segunda
olhada. Continuou a correr. Fowler o estava seguindo. Cinquenta metros.
Cem. Ray se ajoelhou e olhou fixamente para trás. Alinhou-se com o alvo e
a esteira, lá atrás, bem ao longe. Voltou-se e apontou para a frente, usando
todo o braço e o dedo esticados, como o cano de um rifle. Levantou-se
novamente e andou mais cinquenta metros até uma árvore em particular.
Era um vidoeiro-branco solitário. Um sobrevivente silvícola isolado,
crescendo na marra ao lado dos altos pinheiros. Seu tronco crescia retorcido
conforme lutava pela luz e pelo ar, primeiro para um lado e depois para
outro. Não era largo, não mais do que dezoito ou vinte centímetros de
largura. Um metro e oitenta de altura. Estava com seis buracos de bala.
Buracos recentes e grandes, de um centímetro e trinta. Três deles formavam
uma linha vertical reta perfeita de quase vinte centímetros de altura. Os
outros três eram ondulados, formando uma curva frouxa para a direita, indo
do furo superior para fora e de volta ao furo médio e para fora e para trás
novamente até o furo inferior. Joseph Ray olhou fixa e atentamente para
eles. Então percebeu o que eram. Sorriu. Os seis furos formavam um
perfeito B maiúsculo, bem lá na casca branca. A letra cobria uma área de
talvez treze centímetros por dezoito. Com as dimensões do rosto de um
homem gordo.
Fowler passou por Ray, empurrando-o com o ombro, se voltou e se
inclinou no tronco. Levantou-se e pressionou a nuca contra os furos toscos.
Levantou seu binóculo e olhou o estande ao longo na direção da esteira.
Chegou à conclusão de que estava a cerca de cento e poucos metros atrás do
alvo. O alvo tinha estado a bem mais de oitocentos metros das esteiras. Fez
a conta de cabeça.
— Novecentos metros — falou com um assovio.
Fowler e Joseph Ray contaram os passos juntos, voltando até Borken.
Ray manteve seu passo longo, cerca de um metro. Fowler contou.
Oitocentos e noventa passos, novecentos e seis metros. Borken se ajoelhou
na esteira e usou o binóculo de Ray. Fechou um olho e fitou a distância.
Mal conseguia ver a árvore branca. Reacher o observou ao tentar manter a
surpresa fora do rosto. Pensou com seus botões: Você quis um grande
espetáculo, eu te dei um. Gostou, balofo?
— Certo — Borken disse. — Vamos ver até onde sua maldita
esperteza vai te levar agora.

Os cinco guardas, que haviam sido seis quando Jackson estava com eles,
formaram fila. Moveram-se para a frente e se posicionaram em torno de
Reacher e de Holly. A multidão tinha começado a se dispersar, quieta. Seus
pés trituravam e deslizavam na terra rochosa. Então o som sumiu e o
estande de tiro ficou em silêncio.
Fowler se abaixou e pegou as armas. Calculou o peso de ambas em
cada mão e andou para longe, pelas árvores. Cada um dos cinco guardas
tirou a arma do ombro com o som alto das palmas batendo na madeira e no
metal.
— Certo — Borken disse novamente. — Pelotão de castigo.
Voltou-se para Holly.
— Você também — ele avisou. — Você não é um bibelô tão caro
assim. Pode ajudar. Tem uma tarefa a executar para mim.
Os guardas deram um passo para a frente e conduziram Reacher e
Holly para trás de Borken, desceram lentamente em meio às árvores até o
baluarte e ao longo da trilha de terra batida, até a clareira da cabana de
comando. Pararam lá. Dois dos guardas se separaram e andaram até os
armazéns. Voltaram cerca de cinco minutos depois com suas armas nos
ombros. O primeiro guarda carregava uma pá de cabo longo na mão
esquerda e um pé de cabra na direita. O segundo carregava duas camisas de
farda verde-oliva. Borken as pegou dele e se voltou para Reacher e Holly.
— Tirem a camisa — ele ordenou. — Vistam isso.
Holly o encarou.
— Por quê? — ela perguntou.
Borken sorriu.
— Faz parte do jogo — ele disse. — Se não voltarem até o anoitecer,
soltaremos os cachorros. Eles precisarão de suas camisas velhas para
farejar.
Holly balançou a cabeça.
— Não vou me despir — ela afirmou.
Borken olhou para ela e balançou a cabeça.
— Vamos ficar de costas — ele avisou. — Mas você tem somente uma
chance. Caso contrário, estes garotos vão fazer por você, entendido?
Deu o comando, e os cinco guardas se espalharam em leque, formando
um arco frouxo, de frente para as árvores. Borken esperou até Reacher se
voltar, e então girou sobre os calcanhares e olhou fixamente para o céu.
— Certo — ele disse. — Ande logo.
Os homens ouviram sons de desabotoar e o farfalhar do tecido de
algodão. Ouviram a camisa velha cair no chão e a nova deslizar sobre ela.
Ouviram as unhas estalarem contra os botões.
— Pronto — Holly murmurou.
Reacher tirou a jaqueta e a camisa e se arrepiou com a brisa fria da
montanha. Pegou a camisa nova da milícia e a vestiu. Lançou a jaqueta
sobre o ombro. Borken balançou a cabeça, e o guarda entregou a Reacher a
pá e o pé de cabra. Borken apontou para a floresta.
— Caminhe rumo ao oeste cem metros — ele insistiu. — Então mais
cem para o norte. Você saberá o que fazer quando chegar lá.
Holly olhou para Reacher. Ele devolveu a olhada e assentiu com a
cabeça. Caminharam juntos para as árvores, rumo ao oeste.

Trinta metros mato adentro, logo que ficaram fora da vista, Holly parou.
Plantou sua muleta e esperou Reacher voltar até ela.
— Borken — ela disse. — Sei quem ele é. Eu li o nome em nossos
arquivos. Suspeito de assalto, em algum lugar no norte da Califórnia. Vinte
milhões de dólares em títulos ao portador. O motorista do carro-forte foi
morto. A agência de Sacramento investigou, mas não conseguiu provar.
Reacher balançou a cabeça.
— Foi ele — afirmou. — Tenho certeza absoluta. Fowler admitiu.
Disse que eles têm vinte milhões nas Ilhas Cayman. Capturados do inimigo.
Holly fez uma careta.
— Isso explica o espião em Chicago — ela disse. — Borken pode
tranquilamente subornar um agente com vinte milhões de dólares no banco,
certo?
Reacher balançou a cabeça de novo, lentamente.
— Conhece alguém que aceitaria? — ele perguntou.
Ela deu de ombros.
— Todos reclamam do salário — ela contou.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Não esses — ele disse. — Pense em alguém que não reclama.
Quem quer que tenha os títulos ao portador de Borken não está mais
preocupado com dinheiro.
Ela deu de ombros novamente.
— Alguns deles não resmungam — ela disse. — Alguns apenas
toleram. Como eu, por exemplo. Mas suponho que eu seja diferente.
Ele olhou para ela. Continuou a andar.
— Você é diferente — ele confirmou. — Com toda certeza.
Ele disse vagamente, pensando no assunto. Continuaram a andar. Mais
dez metros. Ele estava andando mais lentamente do que seu passo normal e
ela mancava ao seu lado. Ele estava perdido em seus pensamentos. Ouvia a
voz aguda de Borken alegando: Ela é mais do que filha dele. Ouvia a
própria voz exasperada dela perguntando: Por que todos supõem que tudo
que acontece comigo é por causa de quem meu maldito pai é? Então parou
de andar novamente e encarou ela.
— Quem é você, Holly? — ele perguntou.
— Você sabe quem eu sou — ela afirmou.
Ele, mais uma vez, balançou a cabeça negativamente.
— Não, eu não sei — ele disse. — Inicialmente, achei que você era
apenas uma mulher qualquer. Então você era uma mulher chamada Holly
Johnson. Então descobri que você era do FBI. Depois você era filha do
general Johnson. Então Borken me disse que você é ainda mais do que isso.
Ela é mais do que filha dele, ele disse. Aquela façanha que você aprontou,
ele ficou se cagando. Você é algum tipo de refém de primeiríssima linha,
Holly. Então, quem mais você é?
Ela olhou para ele. Suspirou.
— É uma longa história — ela avisou. — Começou há vinte e oito
anos. Meu pai foi feito Fellow da Casa Branca. Transferido para
Washington. Costumavam fazer isso com os mais promissores. Ele acabou
fazendo amizade com um outro sujeito. Um analista político que
ambicionava ser senador. Minha mãe estava grávida de mim, a esposa dele
também estava grávida, ele convidou meus pais para serem padrinhos, meu
pai pediu para serem padrinhos também. Então, este outro sujeito foi meu
padrinho de batismo.
— E? — Reacher pediu que concluísse.
— O sujeito seguiu carreira — Holly disse. — Ainda está em
Washington. Você provavelmente votou nele. É o presidente.

Reacher continuou a andar, estonteado. Ficou olhando para Holly, que o


acompanhava como se estivessem competindo, passo a passo. A cem
metros ao oeste da cabana de punição havia uma área rochosa, desprovida
de árvores. Reacher e Holly se voltaram para lá e andaram para o norte, na
brisa.
— Aonde vamos? — Holly quis saber. Sua voz tinha uma ponta de
preocupação.
Reacher parou de repente. Sabia aonde iam. A resposta estava na brisa.
Ele sentiu frio. Sentiu um arrepio. Baixou os olhos para as ferramentas em
suas mãos, como se nunca tivesse visto tais coisas antes.
— Fique aqui — ele pediu.
Ela balançou a cabeça.
— Não. Vou com você aonde quer que seja.
— Por favor, Holly — insistiu. — Dá para você ficar aqui?
Ela pareceu surpresa com aquele tom de voz, mas continuou a balançar
a cabeça.
— Vou com você — ela ratificou.
Ele a olhou desolado e continuaram a andar para o norte. Ele se forçou
a seguir em frente, na direção certa. Cinquenta metros. Cada passo exigia
um esforço consciente de vontade. Sessenta metros. Ele queria voltar e sair
correndo. Apenas correr e nunca mais parar. Mergulhar no rio inexplorado e
se mandar. Setenta metros. Parou.
— Fique aqui, Holly — disse novamente. — Eu estou te pedindo.
— Por quê? — ela perguntou.
— Você não precisa ver isso — ele disse, arrasado.
Ela balançou a cabeça novamente e continuou a andar. Ele a
acompanhou. Sentiram o cheiro muito antes de ver. Fraco, adocicado,
inesquecível. Um dos cheiros mais comuns e terríveis da longa e terrível
história da humanidade. Cheiro de sangue humano fresco. Vinte passos
após sentirem o cheiro, ouviram o zumbido intenso de um milhão de
moscas.
Jackson foi crucificado entre dois pinheiros jovens. Seus braços
tinham sido esticados e as mãos pregadas nas árvores pela palma e pulso.
Havia sido forçado a ficar com o peso sobre os dedos do pé e seus pés
haviam sido pregados com as solas na base dos troncos. Estava nu e tinha
sido mutilado. Levara diversos minutos para morrer. Reacher estava certo
disso.
Ele ficou imóvel, olhando fixamente para a massa rastejante de moscas
azuis brilhantes. Holly tinha deixado a muleta cair e o seu rosto estava
branco. Lividamente branco. Horrível. Ela caiu de joelhos e teve ânsia de
vômito. Voltou-se para longe da visão hedionda e caiu de cara no chão.
Suas mãos agarravam cegamente a terra da floresta. Pulou e gritou no
silêncio sussurrante da floresta. Gritou e chorou.
Reacher observou as moscas. Seus olhos estavam inexpressivos. O
rosto, impassível. Apenas um diminuto músculo saltando no canto do seu
maxilar deixava transparecer algo. Ficou imóvel por um bom tempo. Holly,
agora em silêncio no chão da floresta, ao lado dele. Ele soltou o pé de cabra
no chão. Lançou sua jaqueta sobre um galho baixo. Pôs-se diretamente na
frente do corpo e começou a cavar.
Cavou com uma fúria silenciosa. Enfiava a pá na terra com tanto
ímpeto quanto podia. Retalhava as raízes da árvore com golpes selvagens.
Quando atingia as rochas, ele as arrancava e jogava em um canto, formando
uma pilha. Holly se sentou e o observou. Mirou os olhos ardentes no seu
rosto impassível e nos músculos salientes dos braços. Seguiu o ritmo
implacável da pá. Não disse nada.
O trabalho o estava deixando com calor. As moscas o examinavam.
Deixaram o corpo de Jackson e zumbiam ao redor da sua cabeça. Ele as
ignorou. Apenas manteve o esforço, e ofegando cavou quase dois metros.
Por fim, encostou a pá numa árvore. Limpou o rosto na manga. Não falou
nada. Pegou o pé de cabra e se aproximou do cadáver. Expulsou a tapas as
moscas. Tirou os pregos da mão esquerda. O corpo de Jackson caiu
pesadamente para um lado. O braço esquerdo apontou grotescamente para o
buraco abaixo. As moscas voaram formando uma nuvem de fúria. Reacher
deu a volta até a mão direita. Arrancou os pregos. O corpo caiu para a
frente, para dentro do buraco. Extraiu os pregos dos pés. O corpo tombou
livremente na sepultura. O ar estava escurecido pelas moscas, e o zumbido
estrondava. Reacher escorregou buraco abaixo e endireitou o cadáver.
Cruzou os braços sobre o peito.
Escalou o buraco de volta. Sem fazer uma pausa, pegou a pá e
começou a encher o buraco. Trabalhou implacavelmente. As moscas
desapareceram. Continuou a trabalhar. Havia muita terra. Formou-se um
monte alto quando tinha terminado, como sepulturas sempre fazem. Bateu
no monte até que ficasse bem ajeitado e largou a pá. Curvou-se e pegou as
pedras que tinha separado. Usou-as para escorar os lados do monte.
Colocou a maior no topo, como se fosse uma lápide.
Então ficou parado lá, arfando como um selvagem, coberto de terra e
suor. Holly o observou. Então falou pela primeira vez em quase uma hora:
— Devemos fazer uma prece? — ela perguntou.
Reacher balançou a cabeça negativamente.
— Tarde demais para isso — disse baixinho.
— Você está bem? — ela perguntou.
— Quem é o infiltrado? — ele perguntou com rispidez.
— Eu não sei — ela disse.
— Bem, pense nisso, combinado? — ele disse, furioso.
Ela ergueu os olhos com raiva para ele.
— Acha que eu não estava fazendo isso!?! — gritou. — O que você
acha que eu estava fazendo nessa última hora?
— Então quem é? — ele perguntou. Ainda zangado.
Ela fez uma pausa. Emudeceu novamente.
— Pode ser qualquer um — ela afirmou. — São cem agentes em
Chicago.
Ela estava sentada no chão da floresta, apequenada, arrasada,
derrotada. Tinha confiado na sua gente. Dissera isso a ele. Tinha estado
cheia da confiança, ingênua. Eu confio na minha equipe, ela tinha afirmado.
Ele sentiu uma grande ternura por ela. Ela desabou sobre ele. Não era
piedade, nem preocupação, apenas uma ternura agonizante por uma pessoa
boa, cujo brilhante mundo novo, de repente, havia apodrecido e ruía aos
pedaços. Começaram a se afastar, mas logo paravam novamente. Holly
precisava se sentar um pouco. Ele a encarou, torcendo para que ela
percebesse. Ela devolveu o olhar fixo, olhos cheios de lágrimas. Ele
estendeu as mãos. Ela aceitou. Ele a colocou de pé e a abraçou. Levantou-a
do chão e abraçou-a bem forte. Os seios de encontro a seu peito pulsante.
Suas lágrimas no pescoço dele.
Então, as mãos dela se colocaram atrás de sua cabeça, puxando-o para
perto. Ela virou o rosto para cima e o beijou. Um beijo zangado e cheio de
tesão. Os braços travados em torno do pescoço dele. Ele sentiu sua
respiração selvagem. Ajoelhou-se e a deitou delicadamente na terra macia.
As mãos dela vasculharam os botões de sua camisa. As dele, os botões dela.
Fizeram amor, nus no chão da floresta, com urgência,
apaixonadamente, avidamente, como se estivessem desafiando a própria
morte. Logo ficaram deitados, ofegantes e exaustos, nos braços um do
outro, olhando para a luz solar acima, varando as copas das árvores.

Ele afagou o cabelo dela e sentiu sua respiração desacelerar. Ficou abraçado
com ela em silêncio por muito tempo, observando a dança das partículas de
poeira nos raios solares sobre a cabeça.
— Quem sabia o que você ia fazer na segunda-feira? — perguntou
gentilmente.
Ela refletiu um pouco. Não respondeu.
— E qual deles não sabia sobre Jackson na época? — ele perguntou.
Nenhuma resposta.
— E qual deles está cheio da grana? — ele perguntou.
Nenhuma resposta.
— E qual deles é calouro? — ele perguntou. — Qual deles podia ter
chegado perto o suficiente de Beau Borken em algum lugar para ser
comprado? Em algum tempo no passado? Talvez ao investigar o assalto na
Califórnia?
Ela sentiu um arrepio nos braços.
— Várias perguntas, Holly — ele disse. — Quem se encaixa?
Ela passou a limpo todas as possibilidades. Como um processo de
eliminação. Um algoritmo. Escaneou mentalmente os cem nomes. A
primeira pergunta eliminou a maioria delas. A segunda, mais algumas. A
terceira, um punhado. Foi a quarta que se mostrou decisiva. Ela sentiu um
arrepio novamente.
— Ou um... ou outro — ela pensou alto.
33

MILOSEVIC E BROGAN SE ENCONTRAVAM presos nos cintos de


segurança, lado a lado na parte traseira do helicóptero da Força Aérea.
McGrath, Johnson e o assessor do general estavam espremidos na fileira
central de assentos. A tripulação se encontrava ombro a ombro na frente.
Decolaram de Silver Bow e partiram para o noroeste, sobrevoando a cidade
de Butte, o nariz do helicóptero para baixo, pouca altitude, buscando a
velocidade aerodinâmica máxima. O helicóptero era um antigo Bell,
reconstruído com um motor novo, mas forçava a barra a duzentos
quilômetros por hora, o que causava muito barulho lá dentro.
Consequentemente, McGrath e Johnson precisavam gritar para se fazerem
entender.
McGrath estava conectado ao Hoover Building. Tentava falar com
Harland Webster. Uma das mãos se encontrava sobre o microfone e a outra
apertava o fone de ouvido contra a cabeça. Estava falando sobre a unidade
de mísseis. Não sabia se Webster copiava. Apenas repetia sua mensagem a
cada vez, tão alto quanto podia. Então dedilhou o interruptor e tirou o fone
de ouvido. Jogou-o para o copiloto.
Johnson falava com Peterson. O contato de rádio não havia sido
restaurado. Limitou-se a solicitar uma atualização em duas horas pela linha
terrestre segura, direto para o posto móvel de comando. Não conseguiu
decifrar a resposta. Retirou o fone de ouvido, e seus olhos fizeram uma
pergunta para McGrath. Este respondeu dando de ombros para ele. O
helicóptero seguia estrondando.

Harland Webster ouviu a barulheira ser cortada. Desligou o telefone no


silêncio repentino de seu escritório. Inclinou-se para a frente e chamou sua
secretária pelo interfone.
— Prepare o carro — ele ordenou.
Caminhou até o elevador e desceu em direção à garagem. Andou para
sua limusine. O motorista segurava a porta para ele.
— Casa Branca — ele instruiu.
Desta vez o motorista não disse nada. Apenas virou a chave e saiu
devagar da garagem. Subiu a rampa e encontrou o rush da tarde. Rastejou
um quilômetro e meio para o oeste em silêncio. Webster foi levado para a
mesma sala branca encardida. Esperou lá quinze minutos. Dexter entrou.
Claramente insatisfeito de vê-lo de volta tão cedo.
— Roubaram alguns mísseis — Webster disse.
— Que mísseis? — Dexter perguntou.
Ele descreveu tudo tão bem quanto pôde. Dexter o escutou. Não
mexeu a cabeça. Não fez nenhuma pergunta. Não reagiu. Apenas mandou
que esperasse na sala.

O Bell aterrissou num desvio de cascalho a cento e oitenta metros ao sul de


onde a estrada para Yorke se estreitava e se endireitava até os montes. O
piloto manteve o motor ligado, e os cinco passageiros se abaixaram, saíram
e correram curvados até ficar fora de alcance da feroz corrente de ar
descendente. Havia veículos na estrada adiante. Um conjunto aleatório de
veículos militares idênticos espalhado pela pista. Um deles estava virando
lentamente para a estrada. Girou no espaço estreito entre as paredes
rochosas e se endireitou enquanto se aproximava. Reduziu a velocidade e
parou a cinquenta metros de distância. O general Johnson ficou visível. O
carro avançou e parou na frente dele. Era um Chevrolet novo, pintado de
verde-oliva, fosco. Havia letras e figuras brancas estampadas no capô e ao
longo das laterais. Um oficial deslizou para fora. Bateu continência para o
general e deu a volta para abrir todas as portas. Os cinco homens se
aglomeraram no interior do carro e, virando novamente, percorreu os cento
e oitenta metros para o norte até o amontoado de veículos.
— O posto de comando está a caminho, senhor — o oficial disse. —
Deve chegar aqui dentro de quarenta minutos. Os caminhões-satélite estão
uma hora atrás dele. Sugiro que espere no carro. Está esfriando lá fora.
— Alguma notícia da unidade de mísseis? — Johnson perguntou.
O oficial balançou a cabeça no escuro.
— Nada, senhor — ele informou.

Webster esperou praticamente uma hora. Então a porta da pequena sala


branca encardida se abriu. Surgiu um agente do serviço secreto. Terno azul,
um fio em espiral subia do colarinho e seguia até seu fone de ouvido.
— Por favor, venha comigo, senhor — o agente solicitou.
Webster ficou de pé e o sujeito levantou a mão e falou rente ao punho.
Webster o seguiu ao longo de um corredor silencioso e para dentro de um
pequeno e lento elevador. Ele os transportou para baixo, até o primeiro
andar. Andaram ao longo de outro corredor silencioso e pararam na frente
de uma porta branca. O agente bateu uma vez e a abriu.
O presidente estava sentado atrás de sua mesa. A cadeira voltada para
o outro lado e ele estava de costas para a sala. Olhando fixamente para fora,
pelas janelas à prova de balas, para a escuridão se assentando sobre o
jardim. Dexter sentado numa poltrona. Nenhum dos dois lhe pediu para se
sentar. O presidente não se voltou. Assim que ouviu a porta se fechar com
um clique, começou a falar:
— Suponhamos que eu fosse um juiz — ele disse. — E suponhamos
que você fosse algum policial que veio aqui atrás de um mandado de prisão.
Webster podia ver o rosto do presidente refletido no vidro espesso.
Apenas um borrão cor-de-rosa.
— Correto, senhor, suponhamos que eu fosse — ele disse.
— O que você conseguiu? — o presidente perguntou. — E o que não
conseguiu? Você nem sabe ao certo se Holly está lá de fato. Você tem um
agente infiltrado e ele não confirmou. Você está fazendo uma suposição,
apenas isso. E os mísseis? O exército perdeu contato pelo rádio. Pode ser
temporário. Pode haver muitas razões para isso. Seu infiltrado não as
mencionou.
— Ele pode estar tendo dificuldades, senhor — Webster sugeriu. —
Recebeu ordens para ser cauteloso. Não ligava para fazer comentários
quando algo ocorria. Ele está infiltrado, correto? Não pode simplesmente
desaparecer na floresta quando lhe dá na telha.
O presidente concordou com a cabeça. O borrão cor-de-rosa no vidro
se moveu para cima e para baixo. Demonstrava certa dose de compreensão.
— Entendemos isso, Harland — ele disse. — De verdade. Mas temos
que pressupor que, com questões dessa magnitude, ele fará um grande
esforço, certo? Mas você não ouviu nada. Então, não está nos dando nada, a
não ser especulações.
Webster estendeu as mãos. Falou bem próximo à nuca do sujeito:
— Senhor, isso é muito importante — ele disse. — Estão se armando,
fizeram um refém, estão falando em separatismo.
O presidente balançou a cabeça.
— É isso então? Esse é o problema? — ele disse. — Se estivéssemos
falando de três esquisitões enfurnados numa cabana no matagal com uma
bomba no colo, nós o mandaríamos lá para dentro imediatamente. Mas não
é. Isso pode levar à maior crise constitucional desde 1860.
— Então concorda comigo — Webster concluiu. — O senhor os está
levando a sério.
O presidente balançou a cabeça negativamente. Triste, como se
estivesse perturbado, mas não surpreso por Webster não ter entendido o X
da questão.
— Não — ele disse. — Não os estamos levando a sério. É isso que
torna tudo tão difícil. Eles são um bando de idiotas iludidos, vendo intrigas
em toda parte, conspirações, murmurando sobre independência para seu
pedacinho insignificante de terra. Mas a questão é a seguinte: como deve
uma nação democrática e madura reagir à questão? Deve massacrar todos,
Harland? É assim que uma nação madura reage? Deve desencadear uma
força mortal contra alguns cidadãos, mesmo que idiotas, iludidos? A gente
passou uma geração inteira condenando os soviéticos por fazerem isso.
Vamos fazer a mesma coisa?
— Eles são criminosos, senhor — Webster retificou.
— Sim, são — o presidente concordou, pacientemente. — São
falsificadores, possuem armas ilegais, não pagam impostos federais,
fomentam o ódio racial, talvez tenham roubado mesmo um carro blindado.
Mas são detalhes, Harland. O quadro maior é que são cidadãos insatisfeitos.
E como nós respondemos a isso? Nós incentivamos cidadãos insatisfeitos
no Leste europeu a se levantarem e se declararem como nação, certo?
Então, como lidamos com nossos próprios cidadãos insatisfeitos, Harland?
A gente declara guerra contra eles?
Webster apertou o maxilar. Sentiu-se desorientado. Como se os tapetes
grossos, a pintura discreta e o aroma desconhecido do ar dentro do salão
oval o estivessem sufocando.
— Continuam sendo criminosos — disse novamente. Era tudo que
conseguia pensar para dizer.
O presidente balançou a cabeça. Ainda com um certo grau de
compreensão.
— Eu sei, é verdade — concordou novamente. — Mas examine o
quadro maior, Harland. Olhe para o principal delito deles. O principal delito
é o ódio contra o governo. Se formos severos com eles por causa disso, a
gente poderá enfrentar uma crise. Como já dissemos, há talvez sessenta
milhões de americanos prontos para passar para o outro lado. Esta
administração está bem ciente disso, Harland. Esta administração vai agir
com máxima prudência.
— Mas... e quanto a Holly? — ele perguntou. — Não pode
simplesmente sacrificá-la.
Fez-se então um longo silêncio. O presidente manteve sua cadeira de
costas.
— Eu não posso reagir por causa dela, tampouco — ele disse baixinho.
— Não posso me permitir tornar isso pessoal. Não percebe? Uma resposta
pessoal, emocional, agressiva, seria um desastre. Seria um erro grave. Eu
tenho que esperar e pensar. Discuti isso com o general. A gente conversou
um bom tempo. Francamente, Harland, ele está puto comigo, e novamente,
francamente, eu não o censuro. Ele é praticamente meu amigo mais antigo e
está puto comigo. Então não me fale de sacrifício, Harland. Porque
sacrifício é do que se trata este cargo. Você põe o bem maior na frente da
amizade, na frente de todos os seus próprios interesses. Faz isso o tempo
todo. É o que significa ser presidente.
Houve outro longo silêncio.
— Então o que está me dizendo, senhor presidente? — Webster
perguntou.
Outro longo silêncio.
— Eu não estou dizendo nada para você — o presidente começou. —
Estou dizendo que você está pessoalmente no comando da situação. Estou
dizendo que venha ver o Sr. Dexter segunda-feira de manhã, se ainda
houver um problema.

Ninguém aguentou esperar no carro. Estavam agitados demais para isso.


Saíram para o ar frio da montanha e ficaram andando a esmo. Johnson e seu
assecla caminharam para o norte com o motorista e examinaram o local
sugerido para a instalação do posto de comando. McGrath, Brogan e
Milosevic mantiveram-se separados, como um trio. McGrath estava
fumando, absorto em seus pensamentos. De tempos em tempos, voltava a
entrar no Chevrolet do exército e usava o fone de ouvido. Ligou para a
polícia estadual de Montana, para a empresa de energia, a central telefônica,
o serviço florestal.
Brogan e Milosevic caminharam para o norte. Encontraram um veículo
blindado. Não era um tanque, era algum tipo de transporte de pessoal.
Havia o oficial que os tinha encontrado com o carro e talvez oito soldados
perto dele. Homens grandes, silenciosos, armando barracas no acostamento
ao abrigo das rochas. Brogan e Milosevic os saudaram com um aceno de
cabeça e caminharam de volta para o sul. Voltaram a se reunir com
McGrath e ficaram esperando.
Quarenta minutos depois todo mundo ouviu o clangor fraco de pesados
motores a diesel bem para o sul. O barulho aumentou e então estrondou em
torno da curva. Havia um pequeno comboio de caminhões. Veículos
grandes, quadradões, boleias exageradas, rodas grandes, pneus enormes,
eixos girando e moendo. A barulheira se aproximou, moviam-se devagar
em marcha lenta. O oficial do carro correu para encontrá-los. Apontou para
onde os queria. Passaram lenta e ruidosamente, e dois pararam lado a lado
na estrada onde ela se endireitava na reentrância rochosa.
Havia quatro veículos. Camuflagem preta e verde, redes enroladas nas
laterais, nos números estampados e grandes estrelas solitárias em branco.
Os dois caminhões dianteiros ostentavam antenas e pequenas parabólicas.
Os dois que vinham atrás eram só acomodações. Cada veículo trazia seus
próprios macacos hidráulicos. Os motoristas abaixaram os macacos, e os
pneus se aliviaram do peso. Os macacos foram empurrados contra a curva
da estrada e nivelaram o chão. Então os motores foram desligados, e o
diesel estrondoso morreu no silêncio da montanha.
Os quatro motoristas desceram de um pulo. Correram até a traseira dos
seus caminhões e abriram as portas. Entraram com meio corpo e retiraram
pequenas escadas dobráveis de alumínio. Depois subiram e ligaram os
interruptores. O interior dos quatro caminhões se iluminou com luz verde.
Os motoristas voltaram a sair. Reuniram-se em formação e bateram
continência para o oficial.
— Todos seus, senhor — o soldado da frente disse.
O oficial balançou a cabeça. Apontou para o Chevy.
— Dirija de volta nesse aí — ele ordenou. — E esqueçam que um dia
já estiveram aqui.
O soldado da frente voltou a bater continência.
— Entendido, senhor — ele disse.
Os quatro motoristas andaram até o Chevy. Botas rangiam no silêncio.
Entraram no carro e ligaram o motor. Viraram na estrada e desapareceram
em direção ao sul.

De volta em seu escritório, Webster encontrou o relatório com o perfil de


Borken em sua mesa e um visitante esperando-o. Vestia um uniforme verde
e um sobretudo cáqui, talvez com sessenta, sessenta e cinco anos, bastante
calvo, pasta surrada de couro marrom sob o braço, no chão uma bolsa velha
de lona de carregar paletó, aos seus pés.
— Fui informado de que precisa falar comigo — o sujeito disse. —
General Garber. Fui oficial-comandante de Jack Reacher alguns anos.
Webster balançou a cabeça.
— Estou de saída para Montana — ele informou. — Podemos falar lá.
— Podemos antecipar — Garber sugeriu. — Se o FBI puder nos levar
pelo ar a Kalispell, a Força Aérea nos levará de helicóptero o restante do
caminho.
Webster balançou a cabeça novamente. Chamou sua secretária pelo
interfone. Ela estava de folga.
— Merda! — Webster reclamou.
— Meu motorista está esperando — Garber informou. — Ele vai nos
levar até Andrews.
Webster ligou do carro para adiantar as coisas, e o Lear do FBI os
esperava a postos. Vinte minutos após ter deixado a Casa Branca, Webster
estava no ar, rumo ao oeste, sobre o centro da cidade. Ele se perguntou se o
presidente conseguia ouvir o rugido dos motores através de suas janelas
com vidros à prova de balas.

Os técnicos da Força Aérea chegaram com os caminhões-satélite uma hora


depois que o posto de comando havia sido instalado. Havia dois veículos
em seu comboio. O primeiro era similar ao do posto de comando, grande,
alto, quadrado, com macacos hidráulicos em cada extremidade, uma
pequena escada de alumínio instalada para acesso. O segundo era um
caminhão-plataforma longo, com uma grande antena parabólica que podia
elevá-la bastante num mecanismo articulado. Assim que foi estacionado e
nivelado, o mecanismo foi acionado e ergueu a parabólica para encontrar os
aviões, doze quilômetros acima, no céu que escurecia. Foi travada na
posição e o delicado equipamento eletrônico se assentou para rastrear os
sinais em movimento. O motor fazia um ruído constante conforme a
parabólica se movia, fazendo um arco sutil, lenta demais para que o olho
detectasse. Os técnicos soltaram um cabo de grande espessura do caminhão-
plataforma e o prenderam numa portinhola na lateral do caminhão fechado.
Então entraram como um enxame e ligaram os monitores e os gravadores.
McGrath pegou carona com os soldados no transporte blindado.
Seguiram ruidosamente um quilômetro e meio para o sul e encontraram
uma viatura da polícia estadual de Montana esperando na estrada. O policial
estadual falou com McGrath e abriu seu porta-malas. Retirou uma caixa de
sinalizadores vermelhos e uma série de placas de alerta. Os soldados
correram para o sul e colocaram um par de sinalizadores luminosos dos dois
lados de uma placa com os dizeres: Perigo, Estrada Interditada. Voltaram
para o norte e instalaram três sinalizadores luminosos no centro da pista
com uma placa com os dizeres: Ponte Interditada Adiante. Cinquenta
metros mais para o norte, bloquearam totalmente a estrada com mais
sinalizadores luminosos. Enfileiraram sinais de Estrada Bloqueada atrás
deles. Quando o policial estadual havia voltado para o sul fazendo
ziguezague e desaparecido, os soldados pegaram machados de seu veículo e
começaram a derrubar árvores. O blindado empurrava as árvores e as
arrastava pela estrada, o motor rugindo, os pneus guinchando. Alinhou-as
num ziguezague tosco. Um veículo podia atravessar, mas somente se
diminuísse bastante a velocidade e ziguezagueasse. Dois soldados foram
colocados como sentinela nos acostamentos. Os outros seis voltaram para o
norte com McGrath.
Johnson estava no veículo de comando. Fazia contato pelo rádio com
Peterson. A notícia era ruim. A unidade de mísseis estava fora de contato
pelo rádio há mais de oito horas. Johnson tinha uma regra prática. Havia
aprendido isso por amarga experiência nas selvas do Vietnã. A regra dizia:
Quando tiver perdido contato pelo rádio com uma unidade por mais de oito
horas, assinale essa unidade como perda total.

Webster e Garber não se falaram durante a viagem de avião. Decisão de


Webster. Tinha bastante experiência burocrática para saber que não importa
o que ouvisse de Garber. Teria que ouvir tudo de novo quando a equipe
finalmente estivesse reunida. Então ficou sentado quieto no choramingo
barulhento do jato e leu o relatório com o perfil de Borken que recebera de
Quantico. Garber lançava olhares indagadores em sua direção, mas ele os
ignorava. Se explicasse para Garber agora, teria que repetir para McGrath e
Johnson.
A noite em Kalispell estava fria e nublada na curta caminhada
barulhenta pela área de manobra até o Bell da Força Aérea. Garber se
identificou ao copiloto, que lançou uma escada curta na pista. Garber e
Webster subiram aos tropeços e se sentaram onde foram designados. O
copiloto sinalizou com as mãos que deviam pôr o cinto e que a viagem
levaria aproximadamente vinte e cinco minutos. Webster concordou com a
cabeça e escutou a batida do rotor enquanto ele decolava.

O general Johnson acabara de encerrar outra longa ligação para a Casa


Branca quando ouviu o Bell entrar com alarido. Ficou parado na entrada do
posto de comando e observou a aterrissagem no mesmo desvio de cascalho,
cento e oitenta metros para o sul. Visualizou duas figuras emergirem e se
afastarem agachadas. Viu o helicóptero decolar, dar uma guinada e partir
para o sul.
Então saiu do posto e os encontrou na metade do caminho. Acenou
com a cabeça para Garber e puxou Webster para um lado.
— Alguma coisa? — perguntou.
Webster balançou a cabeça negativamente.
— Tudo na mesma — ele informou. — A Casa Branca está jogando na
retranca. E você?
— Nada — Johnson disse.
Webster balançou a cabeça. Não tinha mais nada a dizer.
— O que temos aqui? — ele perguntou.
— Até onde a Casa Branca sabe, nada — Johnson afirmou. — Temos
dois aviões espiões no ar. Oficialmente, estão em exercício. Temos oito
fuzileiros navais e um carro blindado. Estão em exercício também. Seus
oficiais comandantes sabem onde estão, mas não exatamente por quê, e não
estão questionando.
— Você interditou a estrada? — Webster perguntou.
Johnson balançou a cabeça.
— Estamos todos por conta própria aqui em cima — ele respondeu.
34

REACHER E HOLLY ESTAVAM SENTADOS SOZINHOS na floresta,


com as costas apoiadas em dois pinheiros muito próximos um do outro,
olhando a certa distância o montículo de terra sobre o túmulo de Jackson.
Ficaram sentados ali até que a luz da tarde se desvaneceu. Não trocaram
palavras. A floresta ficou fria. A hora de tomar a decisão havia chegado.
— Vamos voltar — disse Holly.
Era uma afirmação, não uma pergunta. Havia muita resignação em sua
voz. Ele não respondeu. Estava respirando baixo, olhando para o nada,
perdido em pensamentos. Recordando mentalmente o gosto e o cheiro dela.
Seus cabelos e olhos. Seus lábios. A sensação que causava, forte, livre e
urgente sob ele.
— Anoiteceu — constatou ela.
— Ainda não completamente — devolveu ele.
— Temos que ir — disse ela. — Vão soltar os cães atrás da gente.
Ele não retrucou. Apenas ficou sentado, com os olhos cravados na
imensidão.
— A gente não tem mais para onde ir — disse ela.
Ele balançou a cabeça vagarosamente e se levantou. Espreguiçou-se e
recuperou o fôlego enquanto seus músculos cansados ameaçavam cãibras.
Ajudou Holly a se levantar, tirou a jaqueta da árvore e a vestiu. Deixou o pé
de cabra na lama próximo à pá.
— Vamos embora hoje à noite — decidiu ele. — Vão fazer a merda
amanhã. É Dia da Independência.
— Claro, mas como? — perguntou ela.
— Ainda não sei.
— Não corra riscos por minha causa.
— Você vale a pena.
— Por causa de quem eu sou?
Ele concordou com a cabeça.
— Por causa de quem você é, não por causa de quem é o seu pai. Ou a
porra do seu padrinho. E, não, eu não votei nele.
Ela se esticou e o beijou na boca.
— Tome cuidado, Reacher — pediu ela.
— Esteja pronta — disse ele. — Talvez à meia-noite.
Ela concordou. Caminharam cem metros para o sul, até um
afloramento, viraram-se e caminharam mais cem metros para o leste, até a
clareira. Saíram da floresta e entraram num semicírculo formado por cinco
guardas que os estavam esperando. Quatro deles com rifles. O do meio era
Joseph Ray, estava encarregado dos detalhes e segurava uma Glock 17.
— Ela vai voltar para o quarto, e você vai para a cabana de punição.
Os guardas entraram em formação. Dois cercaram Holly. Os olhos dela
estavam cheios de fúria e, talvez por isso, não tentaram pegá-la pelos
cotovelos. Apenas caminharam lentamente à frente dela. Ela se virou e
olhou para Reacher.
— Até mais, Holly — disse Reacher.
— Não bota muita fé nisso, Srta. Johnson — disse Joseph Ray, e riu.
Ele escoltou Reacher à porta da cabana de punição, pegou uma chave,
destrancou e abriu. Empurrou Reacher porta adentro, com a arma em
prontidão. Então fechou a porta e a trancou novamente.
A cabana de punição era do mesmo tamanho e formato que a de
comando de Borken, mas estava completamente vazia. Paredes nuas, sem
janelas, lâmpadas em suportes de arame. Num canto do chão havia um
quadrado feito de tinta amarela, talvez de 30 por 30 centímetros. Tirando
isso, a cabana não tinha traços característicos.
— Fique naquele quadrado — ordenou Ray.
Reacher acenou com a cabeça. Estava familiarizado com aquele
procedimento. Ser forçado a ficar em posição de sentido, horas a fio,
totalmente imóvel era uma punição que funcionava. Já tinha ouvido sobre
isso. Uma vez, ele viu os resultados. Depois das primeiras horas, a dor
começa. As costas doem, então a agonia se espalha lentamente para cima a
partir das canelas. Entre o segundo e o terceiro dia, os calcanhares incham e
estrangulam dentro do calçado, os músculos das coxas saem do lugar e o
pescoço cede.
— Fica aí — disse Ray.
Reacher foi ao canto da cabana e inclinou-se para o chão. Tirou a
poeira com a mão, fazendo um tremendo estardalhaço, virou e se abaixou
gentilmente, sentando-se confortavelmente no ângulo das paredes. Esticou
as pernas, colocou as mãos atrás da cabeça, cruzou os calcanhares e sorriu.
— É no quadrado — advertiu Ray.
Reacher o encarou. Ele havia dito: Acredite em mim, conheço tanques.
Então havia sido um soldado. Um soldadinho de merda numa unidade
motorizada. Provavelmente um carregador ou um motorista.
— Levante-se — ordenou Ray.
Dê uma tarefa a um soldado raso... e o que ele mais teme? Levar uma
comida de rabo de um superior por falhar na tarefa.
— Levanta, porra! — gritou Ray.
Então ele não falha e, se falhar, tem de guardar para si. Nenhum pau-
mandado na história da humanidade chegou na frente de seu superior e
disse: Eu não consegui, senhor.
— Estou mandando você se levantar, Reacher — disse Ray, agora em
voz baixa.
Se ele falhar, será um grande segredo. É muito melhor assim.
— Quer que eu me levante? — perguntou Reacher.
— É, levanta — ordenou Ray.
Reacher sacudiu a cabeça em sinal de negativo.
— Vai ter que me forçar, Joe — avisou ele.
Ray estava pensando nisso. Tinha uma capacidade de raciocínio
razoavelmente lenta. O progresso era visível pela sua linguagem corporal.
Primeiro a Glock subiu. Depois voltou a descer. Automaticamente admitiria
que falhou se atirasse no prisioneiro. Seria a mesma coisa que dizer: Eu não
consegui forçá-lo, senhor. Então ele olhou para as mãos e depois para
Reacher. E desviou os olhos. Combate sem armas não era uma boa. Ficou
ali, coberto por um nevoeiro de indecisão.
— Onde você serviu? — perguntou-lhe Reacher.
Ray encolheu os ombros.
— Aqui e ali — disse ele.
— Tipo onde e onde?
— Já estive duas vezes na Alemanha. E na Tempestade do Deserto.
— Como motorista?
— Carregador.
Reacher concordou com a cabeça.
— Vocês fizeram um bom trabalho — elogiou ele. — Eu também
estive na Tempestade do Deserto. Eu vi o que vocês fizeram.
Ray balançou a cabeça. Aceitou a abertura, como Reacher imaginou. É
o velho ditado, se não pode vencê-lo, junte-se a ele. Ray foi casualmente
para sua esquerda e se sentou no chão, de costas para a porta e com a Glock
contra a coxa. Acenou novamente.
— Nós acabamos com a raça deles — comemorou.
— Acabaram mesmo — disse Reacher. — Detonaram geral. Então a
Alemanha e depois o Deserto. Gostou de lá?
— Não muito.
— Gostou do sistema deles?
— Que sistema?
— O governo deles. Leis, liberdades, todas essas coisas.
Ray parecia espantado.
— Não notei — disse ele. — Nunca prestei atenção.
— Então como sabe que é melhor que o nosso?
— E quem disse que é melhor?
— Você disse. Ontem à noite você estava me falando que está ruim
aqui nos Estados Unidos. Deve ser melhor em outro lugar, né?
Ray balançou a cabeça.
— Eu nunca disse isso a você.
— Então, é ou não é? — perguntou Reacher.
— Sei lá. Deve ser, tem muitas coisas erradas por aqui.
Reacher concordou com a cabeça.
— Nisso eu concordo com você. Muitas. Mas vou te falar uma coisa. É
melhor aqui do que em qualquer outro lugar. Eu sei, porque já estive em
tudo quanto é canto. Todos os outros lugares são piores. Muito piores. Tem
muitas coisas erradas nos Estados Unidos, mas tem coisas muito piores
ainda em outros lugares. Vocês deviam pensar nisso.
Ray varou a escuridão com o olhar.
— Você acha que nós estamos errados? — ele perguntou.
Reacher disse que sim com a cabeça.
— Eu sei que estão errados. Certeza absoluta — disse ele. — Aquilo
que você me falou é besteira. Tudo besteira. Não está acontecendo.
— Está sim. Beau diz que está.
— Pense bem nisso, Joe. Você serviu, você viu como eram as coisas.
Acha que aqueles caras conseguiriam organizar isso tudo e manter em
segredo? Ao menos deram a você um par de botas do tamanho certo?
Ray riu.
— Raramente.
— É isso — disse Reacher. — Se eles não sabem nem o número certo
da porra das suas botas, como é que vão organizar tudo aquilo que Beau
está falando? E aquele papo furado de transmissores escondidos em todos
os carros novos? Você acha que Detroit poderia fazer tudo isso? Eles
pegariam todos de volta por não funcionarem direito. Gosta de apostas, Joe?
— Por quê?
— Qual é a probabilidade? Qual é a probabilidade de que eles
poderiam organizar uma conspiração desse tamanho e manter tudo em
segredo por anos a fio?
Um sorriso se formou no rosto de Ray, e Reacher percebeu que estava
perdendo. Era como falar com as paredes ou ensinar um chimpanzé a ler.
— Mas não mantiveram segredo — disse Ray triunfantemente. — Nós
descobrimos tudo. Eu disse pra você, Beau tem provas. Ele tem os
documentos. Não é segredo nenhum. É por isso que a gente está aqui. O
Beau está certo, não há dúvidas. Ele é um cara esperto.
Reacher fechou os olhos e suspirou.
— Tomara — disse ele. — Beau vai precisar de muita esperteza.
— Ele é um cara esperto — repetiu Ray. — E é persistente. Está
reunindo todos nós. Tinha uma dúzia de grupos aqui. Os líderes
fraquejaram e saíram. Toda aquela gente se juntou a Beau porque confia
nele. Ele é um cara esperto, Reacher, nossa única esperança. Você não vai
virar a cabeça de ninguém contra ele, esquece. No que nos diz respeito, a
gente adora ele e bota fé que ele vai fazer o que é certo.
— E o Jackson? Acha que foi certo?
Ray encolheu os ombros.
— Jackson era um espião — disse ele. — Ossos do ofício. Beau
estudou história. Isso aconteceu em 1776, né? Os ingleses tinham soldados
por todo canto. Nós os enforcamos na época do mesmo jeito. Muitas
velhinhas no Leste têm carvalhos centenários na frente dos seus jardins,
famosos por serem o local onde foram enforcados os espiões ingleses.
Algumas delas até cobram $2 só para você ver. Eu sei, já estive lá uma vez.
— Que horas é o toque de recolher aqui? — perguntou Reacher.
— Às dez da noite. Por quê?
Reacher fez uma pausa. Olhou para ele. Refletiu sobre a conversa que
estavam tendo. Encarou seu rosto magro e inquieto. Olhou dentro daqueles
olhos enlouquecidos, ardendo profundamente sob as sobrancelhas.
— Tenho que ir para outro lugar depois do toque de recolher — disse
Reacher.
Ray riu novamente.
— E acha que eu vou deixar? — questionou ele.
Reacher confirmou com a cabeça.
— Se quiser continuar vivo... — disse ele.
Ray tirou a pistola da coxa e apontou com uma mão só para a cabeça
de Reacher.
— Quem tem a arma aqui sou eu — avisou ele.
— Você não sobreviveria pra puxar o gatilho — disse Reacher.
— O gatilho está aqui e você está aí bem longe.
Reacher fez um gesto com a mão para ele ouvir bem, inclinou-se e
falou baixo:
— Não era pra eu falar isso pra você, soldado — disse ele —, mas
fomos avisados de que iríamos encontrar por aqui uns caras bem mais
espertos que o normal e estamos autorizados a explicar umas coisinhas pra
eles, se as circunstâncias operacionais tornarem aconselhável.
— Que circunstâncias? — perguntou Ray. — Que coisinhas?
— Você estava certo. Quase tudo o que você disse está certo. Algumas
imprecisões, mas espalhamos informações falsas aqui e ali.
— Como assim?
Reacher começou a falar em sussurros:
— Sou o comandante do destacamento avançado do Exército Mundial
— disse ele. — Tenho cinco mil soldados da ONU na floresta. Russos em
sua maioria, uns poucos chineses. Estávamos observando vocês pela
vigilância via satélite. Agora mesmo temos uma câmera de raios X
apontada para esta cabana. Temos também um feixe de laser apontado para
a sua cabeça. Parte da tecnologia SDI.
— Você tá de brincadeira.
Reacher balançou a cabeça bem sério.
— Você tinha razão sobre os microchips — disse ele. — Olha só isso.
Ele se levantou e ergueu a camisa até o tórax, virou um pouco para
Ray poder ver a imensa cicatriz em seu abdômen.
— São bem maiores que os modernos — disse ele. — Os mais novos
entram sem incômodo algum, do tipo que a gente bota em bebês. Mas esses
velhos trabalham do mesmo jeito. Os satélites sabem sempre onde estou,
como você disse. Se tentar puxar o gatilho, o laser estoura seus miolos.
Os olhos de Ray ardiam. Tirou o olhar da cicatriz de Reacher e mirou
nervosamente no teto.
— Suis pas américain — disse Reacher. — Suis un soldat français,
agent du gouvernement mondial depuis plusieurs années, parti en mission
clandestine il y a deux mois. Il faut évaluer l’élément de risque que votre
bande représent par ici.
Ele falou o mais rápido que pôde e acabou falando exatamente como
uma parisiense bem educada. Exatamente como ele se lembrava de como
sua falecida mãe falava. Ray balançou a cabeça lentamente.
— Você é estrangeiro?
— Francês — respondeu Reacher. — Operamos em brigadas
internacionais. Eu disse que estou aqui para checar o grau de risco que
vocês representam para o mundo.
— Eu vi você atirando. Localizei o tiro. Uns novecentos metros.
— Guiado por satélite. Eu falei pra você, tecnologia SDI, pelo
microchip. Podemos atirar de uns três quilômetros e acertamos sempre.
— Sério?!?
— Preciso estar a céu aberto às dez horas. Trata-se mais de um
procedimento de segurança. Você tem esposa aqui?
Ray concordou com a cabeça.
— E as crianças? — perguntou Reacher. — Alguma delas é sua?
Ray balançou a cabeça de novo.
— Claro — disse ele. — Dois garotos.
— Se eu não estiver lá fora até às dez em ponto, eles vão morrer —
disse Reacher. — Se eu ficar preso, o lugar todo vai ser incinerado. A gente
não pode deixar que meu microchip seja capturado. Eu expliquei pra eles
que vocês não iriam entender como funciona, mas o meu general disse que
alguns de vocês poderiam ser mais espertos do que eu pensava. Parece que
ele estava certo.
Ray balançou a cabeça com orgulho e Reacher checou o relógio.
— São sete e meia, confere? — disse ele. — Vou dormir duas horas e
meia. O satélite vai me acordar exatamente às dez horas. Espere só pra ver.
Ele se deitou no chão e colocou os braços sob a cabeça. Acertou o
alarme em sua mente para nove e cinquenta e oito. Disse para si mesmo:
Que isso não falhe comigo esta noite.
35

— ME RECUSO A ACREDITAR — RATIFICOU o general Garber.


— Ele está envolvido — afirmou Webster. — Tenho certeza. Temos
fotos, general, claras como cristal.
Garber sacudiu a cabeça.
— Fui promovido a tenente há quarenta anos — disse ele. — Agora
sou um general de três estrelas. Comandei milhares de homens. Dezenas de
milhares. Vindo a conhecer bem a maior parte deles. E de todos eles, Jack
Reacher é o menos provável de estar envolvido numa coisa dessas.
Garber estava sentado ereto à mesa do posto de comando móvel. Havia
tirado sua capa de chuva cáqui, revelando um velho uniforme desbotado.
Era daqueles que carregavam as divisas e medalhas acumuladas de uma
vida de serviço. Cheio de pins e listras. O uniforme de quem tinha servido
quarenta anos sem cometer um único erro sequer.
Johnson o olhava cuidadosamente. A velha cabeça grisalha de Garber
estava imóvel. Os olhos, calmos. As mãos jaziam confortavelmente na
mesa. A voz era firme, mas tranquila. Primorosa dicção, como se
estivessem lhe pedindo para defender o preceito de que o céu é azul e a
grama, verde.
— Mostre as fotos ao general, Mack — pediu Webster.
McGrath acenou com a cabeça e abriu um envelope. Deslizou as
quatro fotos por cima da mesa para Garber. Garber segurou uma de cada
vez, levantou-as para que ficassem expostas à luz. Johnson observava os
olhos dele. Aguardava um gesto de dúvida e, logo após, um de resignação.
Não viu nenhum dos dois.
— Aberto à interpretação — Garber disse.
A voz ainda estava calma. Johnson ouviu um oficial que lealmente
defende um estimado subordinado. Webster e McGrath ouviram a
experiência policial exprimir uma dúvida. Calcularam que quarenta anos de
serviço tinham dado ao cara o direito de ser levado a sério.
— Interpretação como? — Webster perguntou.
— Quatro momentos isolados, fora de sequência — disse Garber. —
Podem estar contando uma história falsa.
Webster debruçou-se e apontou para a primeira foto.
— Ele está segurando as coisas dela — ele disse. — Claro como
cristal, general.
Garber balançou a cabeça. Fez-se silêncio. Apenas se ouvia um
zumbido eletrônico em todas as partes do veículo. Johnson viu um gesto de
dúvida. Mas nos olhos de McGrath e não nos de Garber. Então Brogan
subiu a escada barulhenta. Enfiou a cabeça dentro do caminhão.
— Fitas de segurança, chefe — ele disse. — Estivemos revendo as
coisas que os aviões conseguiram mais cedo. O senhor precisa ver.
Ele saiu novamente e os quatro homens se entreolharam e se
levantaram. Atravessaram a curta distância na tarde fria até o caminhão-
satélite e subiram a escada. Milosevic estava com as mangas arregaçadas,
banhado pela luz azul de um conjunto de monitores. Rebobinou uma fita e
apertou play. Quatro telas iluminadas com uma clara e perfeita imagem de
uma cidade minúscula vista de cima. A qualidade da imagem era
esplêndida. Como uma imagem de filme, só que filmado verticalmente, de
cima para baixo, e não horizontalmente.
— Yorke — Milosevic disse. — O velho tribunal embaixo, à direita.
Agora observe.
Ele apertou a tecla de avanço rápido e observou o timer. Reduziu a
velocidade da fita e apertou play novamente.
— Isso fica a dois quilômetros de distância — ele disse. — A câmera
seguiu a trilha rumo ao noroeste. Tem um campo de exercícios, e este
estande de tiro.
A câmera deu um zoom out para se ter uma vista ampla da área. Havia
duas clareiras com cabanas ao sul e um amplo campo de exercícios plano ao
norte. No meio havia uma escarpa longa e estreita na vegetação rasteira,
possivelmente com oitocentos metros de comprimento e vinte de largura. A
câmera congelou em close por um instante para estabelecer a escala, e então
focou uma multidão a leste do estande. Depois mais um ótimo close numa
pequena aglomeração de pessoas sobre uma esteira marrom. Havia quatro
homens bem definidos e uma mulher. O general Johnson ofegou e fitou sua
filha.
— Quando foi isto? — perguntou ele, apontando para a imagem.
— Faz poucas horas — disse Milosevic. — Ela está viva e
razoavelmente bem.
Ele congelou a imagem e bateu a unha quatro vezes na tela.
— Reacher — disse ele. — Stevie Stewart. A gente descobriu que esse
aqui é Odell Fowler. E o gorducho é Beau Borken. Bate com a foto da ficha
dele na Califórnia.
E apertou play novamente. A câmera se fixou na esteira, a uns dez
quilômetros de altura. Borken pressionou seu corpanzil no chão e ficou
imóvel. Então uma baforada silenciosa de poeira foi vista sob a boca do seu
rifle.
— Eles estão atirando a pouco mais de setecentos metros de distância
— disse Milosevic. — Algum tipo de competição, creio eu.
Viram os cinco tiros finais de Borken, e em seguida Reacher pegou seu
rifle.
— É um Barrett — disse Garber.
Reacher ficou imóvel e então disparou seis tiros silenciosos, bem
espaçados. A multidão se dispersou, e, vez ou outra, Reacher foi perdido de
vista por causa das árvores ao sul.
— Está bem — disse Webster. — Como o senhor quer interpretar isso,
general Garber?
Garber encolheu os ombros. Tinha uma expressão obstinada no rosto.
— Ele é um deles, não há dúvida — disse Webster. — Viu as roupas
dele? Ele estava de uniforme. Será que estava só se exibindo na linha de
tiro? Será que iam dar um uniforme e um rifle pra ele brincar se não fosse
um deles?
Johnson voltou um pouco a fita e congelou a imagem. Olhou para
Holly por um longo instante. E depois saiu do veículo. Exclamou para
Webster por cima do ombro:
— Diretor, precisamos trabalhar! — disse ele. — Eu quero começar a
fazer um plano de contingência imediatamente. Não há motivos para não
estarmos prontos para isso.
Webster o seguiu para fora. Brogan e Milosevic ficaram monitorando.
McGrath observava Garber. Garber fitava a tela vazia.
— Ainda não acredito.
Virou-se e viu McGrath olhando para ele. Acenou com a cabeça para
que saísse do veículo. Os dois homens andaram juntos no silêncio da noite.
— Não tenho como provar — disse Garber. — Mas o Reacher está do
nosso lado. Garanto isso, garanto!
— Não parece ser bem assim — ponderou McGrath. — Ele é do tipo
clássico. Ajusta-se ao nosso perfil padrão perfeitamente. Ex-militar
desempregado, descontente, passou a infância em vários lugares,
provavelmente cheio de toda espécie de ressentimento.
Garber sacudiu a cabeça.
— Ele não é nenhuma dessas coisas — afirmou. — Exceto ex-militar
desempregado. Foi um ótimo oficial. O melhor que eu já tive. O senhor está
cometendo um grande erro.
McGrath viu a expressão no rosto de Garber.
— Então você confiaria nele? — ele perguntou. — Pessoalmente?
Garber confirmou com a cabeça enfaticamente.
— Boto minha mão no fogo — afirmou novamente. — Não sei por
que ele está lá, mas garanto que está do nosso lado e que fará o que for
preciso ou vai morrer lutando.

Há exatamente dez quilômetros ao norte, Holly tinha a mesma percepção da


situação. Tinham levado sua cama desmontada, e ela estava deitada no
colchão fino direto no assoalho. Haviam levado o sabonete, o xampu e a
toalha como punição. Tinham deixado a pequena poça de sangue da morta
enfocada. Estava lá no chão, a um metro da sua cama temporária. Ela
imaginou que achavam que isso a deixaria perturbada. Erraram. Isso a
deixava confiante. Ficou feliz em olhá-la secar e enegrecer. Estava
pensando no Jackson e fitando a mancha como se fosse um teste de
Rorschach dizendo a ela: Você já está saindo da sombra, Holly.

Webster e Johnson bolaram um plano de contingência bem simples.


Dependia da geografia. Exatamente a mesma geografia que supunham ter
influenciado Borken a escolher Yorke como o local do seu baluarte. Como
todas as estratégias baseadas na geografia, ele foi projetado com um mapa.
Com todos os planos projetados dessa forma, seu sucesso dependia da
exatidão do mapa. E, como a maior parte dos mapas, o deles estava muito
desatualizado.
Estavam usando um mapa de grande escala de Montana. O grosso da
informação era confiável. As características principais estavam corretas. O
obstáculo ocidental estava claro à vista.
— Partimos do pressuposto de que o rio não é navegável, certo? —
perguntou Webster.
— Certíssimo — concordou Johnson. — O degelo da primavera estará
em pleno fluxo. Não podemos fazer nada lá antes de segunda-feira...
quando pegaremos alguns equipamentos.
As estradas apareciam em vermelho como se um homem tivesse
apoiado a palma da mão direita no papel. As pequenas cidades de Kalispell
e Whitefish aninhavam-se abaixo da palma. Estradas se desdobravam em
leque como os quatro dedos e o polegar. O indicador passava por um lugar
chamado Eureka, rumo à fronteira canadense. O polegar seguia pelo
noroeste, por Yorke, e parava nas antigas minas. Esse polegar estava agora
amputado na primeira articulação.
— Esperam que você suba a estrada — concluiu Johnson. — Então
não suba. Você vai fazer a volta pelo leste, rumo a Eureka, e entrará pela
floresta.
Ele seguiu com o lápis o polegar e as costas da mão. Subiu pelo dedo
indicador e parou em Eureka. Havia oitenta quilômetros de floresta entre
Eureka e Yorke. A floresta era representada no mapa por uma grande
mancha verde. Densa e larga. Sabiam o que essa mancha verde significava.
Podiam ver o que significava ao olhar ao redor. A área era coberta de
floresta virgem. Seguia exuberantemente até o topo e a base das encostas da
montanha. Na maioria dos lugares a vegetação era tão fechada que um
homem mal poderia correr entre os troncos das árvores. Mas a mancha
verde a leste de Yorke era um Parque Nacional. Administrado pelo Serviço
Florestal. A mancha verde mostrava uma teia de fios passando através dela.
Esses fios eram trilhas do Serviço Florestal.
— Posso trazer meu pessoal pra cá em quatro horas — disse Webster.
— A equipe de resgate de reféns. Por minha própria iniciativa, se chegar a
esse ponto.
Johnson balançou a cabeça.
— Eles podem atravessar a floresta a pé — concordou ele. —
Provavelmente atravessar até de carro.
Webster assentiu com a cabeça.
— Já acionamos o pessoal do Serviço Florestal — informou ele. —
Vão trazer um mapa detalhado pra gente.
— Perfeito — disse Johnson. — Se as coisas ficarem ruins, você
convoca a sua equipe, manda eles diretamente pra Eureka, todo mundo faz
um pouco de barulho no flanco sul e sua equipe entra com tudo pelo leste.
Webster concordou com a cabeça novamente. O plano de contingência
estava pronto, até que o cara do Serviço Florestal subiu a pequena escada de
alumínio para o posto de comando. McGrath o levou para dentro com
Milosevic e Brogan. Webster fez as apresentações e Johnson, as perguntas.
Imediatamente o sujeito do Serviço Florestal começou a negar com a
cabeça.
— Essas trilhas não existem — disse ele. — Pelo menos, a maior parte
delas.
Johnson apontou para o mapa.
— Estou vendo elas aqui! — espantou-se ele.
O agente florestal encolheu os ombros. Estava com um livro grosso de
mapas topográficos sob o braço. Abriu e folheou até a página correta.
Colocou-o em cima do grande mapa. A escala era muito maior, mas era
óbvio que a teia de linhas tinha uma forma diferente.
— Os cartógrafos sabem que há trilhas — disse o cara. — Por isso só
aparecem as muito antigas.
— Ok — disse Johnson. — A gente vai usar os seus mapas.
O agente florestal sacudiu a cabeça.
— Eles também estão desatualizados — explicou ele. — Já estiveram
corretos, mas não podemos ter certeza disso agora. Passamos anos fechando
a maior parte dessas trilhas. Tivemos que impedir a entrada dos caçadores
de ursos. Ambientalistas nos forçaram a agir. A gente colocou toneladas de
terra nas entradas da maioria das trilhas diretas. Destroçamos muitas das
outras. Já devem estar totalmente cobertas pela vegetação a essa altura.
— Está bem, então quais trilhas estão fechadas? — perguntou Webster.
Tinha virado o mapa e o estudava.
— Impossível saber — disse o cara. — A gente não mantém registros
muito exatos. Apenas mandamos as escavadoras. A gente pegou muitos
caras fechando as trilhas erradas, porque eram mais perto, ou nem fechando
por completo, porque daria muito trabalho. Foi uma zona geral.
— Então tem algum caminho direto? — perguntou Johnson.
O agente florestal deu de ombros.
— Talvez sim — disse ele. — Talvez não. Impossível saber, a não ser
tentando. Pode demorar uns meses. Se você realmente conseguir atravessar,
registre e avise a gente, beleza?
Johnson olhou o cara com espanto.
— Deixa eu ver se entendi — começou ele. — Você é da porra do
Serviço Florestal e quer que a gente te diga onde estão as suas próprias
trilhas?
O cara concordou com a cabeça.
— Resumiu bem — disse ele. — Como eu falei, os nossos registros
são feitos nas coxas. A gente pensou que ninguém nunca ia dar a mínima
pra essa bosta.
O assessor do general o levou de volta à barreira na estrada. Fez-se
silêncio no veículo de comando. McGrath, Brogan e Milosevic estudaram o
mapa.
— Se a gente não pode passar, eles também não podem — concluiu
McGrath. — Estão encurralados. Temos que começar a exploração.
— Como? — questionou Webster.
— Controlando os caras — disse McGrath. — Já controlamos a
estrada deles. Podemos controlar a eletricidade e as linhas telefônicas
também. As linhas seguem mais ou menos a estrada. Extensões separadas
saindo de Kalispell. Podemos cortar os cabos telefônicos pra que acabem
aqui mesmo, neste veículo. Assim eles não podem se comunicar com
ninguém a não ser com a gente. Aí a gente diz que controla a eletricidade
deles. Ameaçamos cortar se não quiserem negociar.
— Negociar? — perguntou Johnson.
— Quero uma tática que os atrase — enfatizou McGrath. — Até a
Casa Branca relaxar.
Webster concordou com a cabeça.
— Certo, manda ver — ordenou ele. — Liga agora para a companhia
telefônica e manda desviar a linha pra cá.
— Já liguei — informou McGrath. — Vão fazer isso já de manhã.
Webster bocejou. Verificou o relógio. Gesticulou para Milosevic e
Brogan.
— Vamos fazer uma escala de plantão de vigília — disse ele. — Vocês
dois dormem primeiro. A gente vai dormir em dois turnos, digamos...
quatro horas de cada vez.
Milosevic e Brogan concordaram com a cabeça. Parecia que ficaram
contentes com isso.
— Até mais — disse McGrath. — Durmam bem.
Saíram do caminhão e fecharam a porta silenciosamente. Johnson
ainda estava mexendo no mapa. Girando e dobrando o papel na mesa.
— Eles não podem fazer o negócio do telefone mais rápido? —
perguntou ele. — Tipo hoje à noite?
Webster pensou e concordou com a cabeça. Ele sabia que cinquenta
por cento de qualquer batalha eram ganhos mantendo uma estrutura de
comando harmoniosa.
— Liga de novo, Mack — pediu ele. — Diz que a gente precisa pra
ontem.
McGrath ligou novamente. Usou o telefone ao seu lado. Teve uma
conversa curta que terminou com uma risada.
— Estão enviando o equipamento de emergência — disse ele. —
Devem concluir em umas duas horas. Mas a gente vai receber a conta por
isso. Mandei que a enviassem para o Hoover. O cara me perguntou onde
ficava.
Ele se levantou e esperou na porta. Johnson e Webster ficaram à mesa.
Acotovelaram-se em volta do mapa. Olharam o desfiladeiro sul. Havia sido
formado há um milhão de anos, quando a terra tinha rachado sob o peso de
um bilhão de toneladas de gelo. Partiram do pressuposto que estava
representado corretamente no papel.
36

REACHER ACORDOU EXATAMENTE DOIS MINUTOS antes das dez


horas. Fez isso da sua maneira normal, que era ficar rapidamente
consciente, imóvel, nenhuma mudança na respiração. Sentiu o braço
encurvado embaixo da cabeça e abriu os olhos o mínimo possível. Do outro
lado da cabana de punição, Joseph Ray ainda estava sentado contra a porta.
A Glock no chão ao lado dele. Estava checando seu relógio.
Reacher contou noventa segundos mentalmente. Ray relanceava os
olhos entre o teto da cabana e o pulso. Então olhou para Reacher. Reacher
ficou ereto de supetão, num movimento ágil. Pressionou a palma da mão
contra a orelha como se estivesse escutando uma comunicação secreta. Os
olhos de Ray estavam arregalados. Reacher balançou a cabeça e se
levantou.
— Certo — ele disse. — Abra a porta, Joe.
Ray tirou a chave do bolso. Destrancou a porta. Ela se abriu com um
balanço.
— Quer levar a Glock? — Ray perguntou.
Estendeu a arma, com a coronha para a frente. Ansiedade nos olhos.
Reacher sorriu. Exatamente conforme esperava que Ray fosse proceder. Ele
era meio burro, não totalmente. Tinha ganhado duas horas e meia para
avaliar a situação. Este foi o teste final. Se aceitasse a arma, ele seria um
enrolador. Estava certo de que ela estava descarregada e o pente, no bolso
de Ray.
— Não preciso de uma arma — Reacher afirmou. — Temos o lugar
inteiro coberto. Possuo armas à minha disposição muito mais potentes do
que uma nove milímetros, acredite em mim, Joe.
Ray balançou a cabeça e endireitou o corpo.
— Não esqueça os raios laser — Reacher disse. — Se você colocar o
pé para fora desta cabana, é um homem morto. Não há nada que eu possa
fazer a esse respeito agora. Vous comprenez, mon ami?
Ray balançou a cabeça novamente. Reacher se esgueirou noite adentro.
Ray fechou a porta. Reacher retrocedeu silenciosamente e esperou ao redor
do canto da cabana. Ajoelhou-se e encontrou uma pequena pedra. Avaliou o
peso na mão e esperou Ray segui-lo.
Não veio. Reacher esperou oito minutos. A longa experiência o tinha
ensinado: Se não vierem dentro de seis minutos, não virão de jeito nenhum.
As pessoas pensam em períodos de cinco minutos, por causa da maneira
que os relógios são dispostos. Dizem: Eu esperarei cinco minutos. Então,
porque são cautelosas, adicionam no máximo outro minuto. Pensam que é
esperteza. Reacher esperou os primeiros cinco, a seguir o extra, em seguida
adicionou mais dois só por segurança. Mas Ray não veio. Ele não viria.
Reacher evitou a clareira. Manteve-se junto às árvores. Contornou a
área na floresta. Ignorou os caminhos de terra batida. Não estava
preocupado com os cachorros. Não estavam soltos. Fowler tinha falado
sobre leões da montanha rondando. Ninguém deixa cachorros do lado de
fora à noite onde há leões da montanha rondando. Isso seria garantir que
não sobraria nenhum cachorro pela manhã.
Fez um circuito completo no baluarte, escondido nas árvores. Todas as
luzes estavam apagadas, tudo escuro e silencioso. Esperou nas árvores atrás
do refeitório. A cozinha era uma cabana quadrada, conectada
desajeitadamente aos fundos da estrutura principal. Não havia nenhuma luz
acesa, mas a porta estava aberta, e a mulher que tinha servido o café da
manhã para ele esperava nas sombras. Ele a observou das árvores. Esperou
cinco minutos. Então seis. Nenhum outro movimento em qualquer lugar.
Jogou a pedra na trilha à sua esquerda. Ela se assustou com o som. Ele a
chamou baixinho. Ela saiu das sombras. Sozinha. Andou até as árvores. Ele
pegou seu cotovelo e a puxou de volta para a escuridão.
— Como você saiu de lá? — ela perguntou com um sussurro.
Era impossível dizer quantos anos tinha. Talvez vinte e cinco, talvez
quarenta e cinco. Era uma mulher bonitona, esbelta, cabelo liso e longo,
mas aflita e preocupada. Um traço de disposição e vitalidade por baixo. Ela
estaria à vontade cem anos atrás, seguindo aos tropeções a trilha do Oregon.
— Como você conseguiu sair? — sussurrou novamente.
— Andando pela porta — Reacher sussurrou em resposta.
A mulher apenas olhou para ele, estupefata.
— Você tem que nos ajudar — sussurrou.
Então parou, torceu as mãos e virou a cabeça para a direita e a
esquerda, perscrutando a escuridão, apavorada.
— Ajudar como? — ele perguntou. — Por quê?
— São todos loucos — a mulher disse. — Você tem que nos ajudar.
— Como? — ele voltou a perguntar.
Ela apenas fez uma careta, com os braços escancarados, como se fosse
óbvio, ou como se não soubesse por onde começar, ou como.
— Do início — ele pediu.
Ela balançou a cabeça duas vezes, engoliu em seco, recobrou-se.
— Pessoas desapareceram — ela disse.
— Que pessoas? — ele perguntou. — Como assim... desapareceram?
— Simplesmente desapareceram — ela disse. — Foi o Borken. Ele
assumiu o controle de tudo. É uma longa história. A maioria de nós estava
aqui em cima com outros grupos, apenas sobrevivendo por conta própria,
com nossas famílias, sabia? Eu estava com os Freemen do noroeste. Então
surgiu Borken, falando de união. Ele lutava e argumentava. Os outros
líderes discordavam de seus pontos de vista. Então simplesmente
começaram a desaparecer. Simplesmente foram embora. Borken disse que
não aguentavam o rojão. Apenas desapareceram. Ele disse que a gente tinha
que se juntar a ele. Disse que a gente não tinha escolha. Alguns de nós são
mais ou menos prisioneiros aqui.
Reacher balançou a cabeça.
— E agora estão acontecendo coisas lá em cima nas minas — ela
contou.
— Que coisas? — ele perguntou.
— Não sei — ela respondeu. — Coisas ruins, eu suponho. Somos
proibidos de ir lá em cima. Elas ficam apenas a um quilômetro e meio
subindo a estrada, mas é proibido entrar nelas. Algo estava acontecendo lá
hoje. Disseram que estavam todos trabalhando no sul, na fronteira, mas,
quando voltaram para o almoço, vieram do norte. Vi eles da janela da
cozinha. Estavam sorrindo e dando gargalhadas.
— Quem? — Reacher perguntou.
— Borken e seu pessoal de confiança — ela disse. — Ele é louco. Diz
que vão atacar a gente quando declararmos independência, e a gente tem
que revidar. Começando amanhã. Estamos todos muito assustados. A gente
tem família, sabe? Mas não há nada que possamos fazer. Se você se opuser
a ele, é banido ou te envolve com palavras até que concorde com ele.
Ninguém consegue enfrentá-lo. Ele controla a gente, totalmente.
Reacher balançou a cabeça novamente. A mulher se apoiou nele. Com
lágrimas no rosto.
— E nós não podemos ganhar, podemos? — ela disse. — Não se nos
atacarem. Somos apenas cem, treinados. Nós não podemos derrotar um
exército com cem pessoas, podemos? Vamos todos morrer.
Seus olhos estavam arregalados, marejados e desesperados. Reacher
deu de ombros. Balançou a cabeça e tentou fazer sua voz parecer calma e
tranquila.
— Será um cerco — ele avisou. — Apenas isso. Um impasse. Vão
negociar. Isso já aconteceu. E será o FBI, não o exército. O FBI sabe fazer
este tipo de coisa. Vocês todos ficarão bem. Não serão mortos. Não virão
aqui para tentar matar ninguém. Isso é apenas propaganda de Borken.
— Viva livre ou morra — ela repetiu o lema. — É isso que ele fica
dizendo.
— O FBI vai cuidar disso. Sem precisar matar vocês.
A mulher apertou os lábios, fechou os olhos lacrimejantes com força e
balançou a cabeça descontroladamente.
— Não, o Borken vai matar a gente — ela disse. — Ele vai fazer isso,
não eles. Viva livre ou morra, entende? Se os Federais vierem, ele vai matar
todos nós. Ou então vai fazer a gente se matar. Tipo uma espécie de suicídio
coletivo. Ele vai forçar a gente a fazer isso, sei que vai.
Reacher apenas a fitou.
— Eu ouvi eles falarem — ela disse. — Vivem sussurrando isso o
tempo todo, fazendo planos secretos. Disseram que as mulheres e as
crianças morreriam. Disseram que era justificável. Disseram que era
histórico e importante. Disseram que as circunstâncias exigiam.
— Você ouviu isso? — Reacher perguntou. — Quando?
— O tempo todo — sussurrou novamente. — Estão sempre fazendo
planos. Borken e os cabeças. As mulheres e as crianças têm que morrer,
disseram. Vão obrigar a gente a se matar. Suicídio coletivo. Nossas
famílias. Nossas crianças. Nas minas. Acho que vão obrigar a gente a ir
para as minas e nos suicidar.

Ele permaneceu na floresta até chegar bem ao norte do campo de


exercícios. Então seguiu para o leste, até que viu a estrada que dava em
Yorke. Era esburacada e acidentada, mas iluminada pelo brilho cinzento do
luar. Permaneceu na sombra das árvores e a seguiu para o norte.
A estrada serpenteava por uma encosta de montanha com curvas
extremamente fechadas. Sinal seguro de que ela levava a algo de valor,
senão o trabalho consumido em sua construção seria sem sentido. Após um
quilômetro e meio de curvas e trezentos metros de elevação, a curva final
dava para um vale do tamanho de um estádio deserto. Era em parte natural,
em parte dinamitado, pendendo lá no bojo dos picos gigantes. As paredes
traseiras do vale eram rochedos totalmente verticais. Havia uns buracos
semicirculares feitos a dinamite em intervalos. Pareciam buracos de rato
gigantes. Alguns tinham sido construídos com rocha bruta para propiciar
entradas protegidas. Duas das entradas haviam sido ampliadas para galpões
de pedra gigantes, cobertos com madeira.
O vale foi pavimentado com brita. Havia montes de terra e de entulho
em toda parte. Ervas daninhas e mato penetravam à força. Reacher podia
ver os restos oxidados dos trilhos de ferro, começando em lugar nenhum e
avançando alguns metros. Agachou-se contra uma árvore, bem longe no
matagal, e observou.
Não acontecia nada. O lugar inteiro estava deserto e silencioso. Mais
do que silencioso. Tinha o tipo de ausência total de som que fica na nossa
cabeça quando saímos de um lugar movimentado e chegamos a um
abandonado. Sons naturais que sumiram há muito tempo. Grandes árvores
foram derrubadas, riachos foram desviados de seu curso natural, a
vegetação rasteira foi queimada, tudo substituído por máquinas ruidosas e
homens gritando. Então, quando os homens e as máquinas vão embora,
nada fica para trás para substituir seu barulho. Reacher aguçou os ouvidos,
mas não vinha nada. Silencioso como a lua.
Permaneceu na floresta. Aproximar-se pelo sul significava se
aproximar por cima do morro. Contornou para o oeste e ganhou mais trinta
metros de altura. Pausou e olhou para baixo, para dentro do vale, de uma
nova perspectiva.
Nada ainda. Mas tinha havido algo. Alguma atividade recente. O luar
mostrava os rastros de veículos na brita. Havia uma porção de sulcos para
dentro e para fora de um dos galpões de pedra. De dois anos para cá. A
frota. Havia sulcos mais recentes no outro galpão de pedra. O galpão maior.
Sulcos maiores. Alguém tinha conduzido alguns veículos grandes para esse
galpão. Recentemente.
Desceu aos tropeços, saiu do meio das árvores e entrou na brita. Seus
sapatos trituravam as pedrinhas, que produziam um som como o de tiros de
rifle na noite silenciosa. Seus passos ecoavam nos paredões íngremes como
um trovão. Ele se sentiu minúsculo e exposto, como um homem nu, num
pesadelo, andando num campo de futebol. Tinha a impressão de que as
montanhas circunvizinhas eram uma multidão enorme em arquibancadas,
encarando-o em silêncio. Parou atrás de um amontoado de rochas, agachou-
se e aguçou os ouvidos. O eco dos passos causou um estrondo e morreu no
silêncio. Não ouviu nada. Apenas a ausência total de som.
Rastejou ruidosamente para as portas do galpão menor. Bem de perto,
era uma estrutura grande. Construído provavelmente para abrigar máquinas
gigantes e motores de bombeamento. As portas tinham quase quatro metros
de altura. Foram construídas com toras descascadas, presas com ferro. Eram
como as laterais de uma cabana construída com troncos, presos com
dobradiças, na encosta da montanha.
Não havia nenhuma fechadura. Era difícil imaginar como poderia
haver. Nenhuma fechadura que Reacher jamais tinha visto poderia bater
com a escala daquelas portas. Encostou as costas na porta da direita e abriu
a da esquerda uns trinta centímetros, fazendo uma alavanca com os braços.
A dobradiça de ferro se moveu facilmente numa camada espessa de graxa.
Ele deslizou de lado pela abertura e deu um passo para dentro.
Estava escuro como breu. Ele não conseguia ver nada. Levantou-se e
esperou até que suas pupilas se adaptassem à escuridão. Mas o escuro era
imbatível. Os olhos podem se escancarar o máximo possível, até seu limite
máximo, mas, se não houver nenhuma luz, você não verá nada. Sentiu um
cheiro forte de umidade e deterioração. Podia ouvir o silêncio desaparecer
para trás na montanha, como se houvesse uma câmara ou um túnel longo na
frente dele. Moveu-se para dentro, mãos estendidas à frente como se fosse
um cego.
Encontrou um veículo. Sua canela bateu no para-choque dianteiro
antes que as mãos tocassem no capô. Era alto. Um caminhão ou um furgão.
Civil. Pintura automotiva lustrosa, macia, não tinta militar fosca. Correu os
dedos em volta da borda do capô. Abaixou-os na lateral. Um furgão. Foi
tateando em torno da parte traseira e subiu os dedos até o outro lado. Tateou
atrás da porta do motorista. Destrancada. Abriu-a. A luz interna chamejou
como um holofote com um milhão de velas de potência. Sombras bizarras
foram lançadas para todo lado ao redor. Estava numa caverna gigante. Não
tinha fundo. Abria-se direto para a encosta. O teto rochoso se inclinava para
baixo e se transformava numa emenda escavada estreita, que seguia até
desaparecer de vista.
Enfiou a mão no painel da picape e ligou os faróis. Os feixes se
refletiam na rocha. Havia uma dúzia de veículos estacionados em fileiras
arrumadas. Sedãs e furgões velhos. Jipes do excedente militar com
camuflagem rústica. E o Ford Econoline branco com os furos no teto.
Parecia triste e abandonado após a épica viagem de Chicago. Surrada e com
as molas baixas. Havia bancadas com ferramentas velhas penduradas acima.
Latas de tinta e tonéis de óleo. Pilhas de pneus carecas e bujões de gás de
soldagem enferrujados.
Vasculhou os veículos mais próximos. Todos com a chave. Havia uma
lanterna no porta-luvas do terceiro sedã que checou. Pegou. Caminhou de
volta para o furgão e apagou os faróis. Voltou para as enormes portas de
madeira e saiu noite adentro.
Esperou e escutou. Nada. Fechou a porta e seguiu para o galpão maior.
Uns cem metros pela brita barulhenta. O galpão maior tinha o mesmo tipo
de portas de toras. Até maiores. E estava trancado. A fechadura era a coisa
mais tosca que ele já tinha visto. Era uma tora velha empenada colocada em
dois suportes de ferro e acorrentada no lugar. As correntes estavam presas
com dois cadeadões. Reacher os ignorou. Não havia necessidade de mexer
neles. Podia ver que o empenamento na tora velha permitiria sua entrada
com uso de força.
Botou a musculatura para trabalhar até que as portas cederam. O
empeno na tora deixava uma brecha de uns trinta centímetros. Colocou os
braços para dentro, a seguir a cabeça, e então os ombros. Arrastou os pés e
atravessou aos empurrões. Levantou-se no interior e ligou a lanterna.
Era outra caverna gigante. A mesma escuridão. O mesmo cheiro forte
de umidade e deterioração. O mesmo teto inclinado indo para uma emenda
baixa. A mesma quietude, como se todo o som fosse sugado de volta para
as profundezas da montanha. A mesma finalidade. Um armazém de
veículos. Mas estes eram todos idênticos. Cinco deles. Cinco caminhões do
exército dos Estados Unidos, razoavelmente modernos. Identificados por
meio de letras brancas da artilharia aérea do exército. Não eram zero
quilômetro, mas estavam bem conservados. A lateral de lona se encontrava
arrumada na traseira.
Reacher deu a volta até a parte traseira do primeiro caminhão. Subiu
no engate de reboque e olhou por cima da tampa. Vazio. Tinha bancos de
ripas de madeira dispostos de cada lado. Transportador de tropa. Reacher
não conseguia nem começar a contar os quilômetros que tinha viajado em
bancos como esses, balançando, olhando fixamente para o piso de aço,
esperando para chegar ao seu destino.
O piso de aço estava encardido. Em desacordo com o exterior, limpo.
Havia manchas pretas no chão. Algum tipo de líquido grosso, viscoso,
agora ressecado. Reacher observou. Não conseguia nem começar a contar o
número de manchas desse tipo que tinha visto. Saltou para baixo e correu
para o segundo veículo. Subiu e se inclinou para o interior com a lanterna.
Não havia nenhum banco na parte traseira do segundo veículo. Em seu
lugar prateleiras aparafusadas em ambos os lados. Prateleiras instaladas
com precisão, soldadas nos cantos e equipadas com grampos de aço e
almofadas grossas de borracha para preservar sua carga delicada. A
prateleira da esquerda continha cinco lança-mísseis. Tubos finos de aço,
com dois metros de comprimento, metal preto opaco, com uma grande
caixa de eletrônicos e uma mira aberta, e um cabo de pistola aparafusado na
ponta dianteira. Cinco deles, precisamente paralelos, alinhados
ordenadamente.
A prateleira da direita continha vinte e cinco mísseis Stinger. A
centímetros de distância, lado a lado em seus suportes de borracha,
superfícies de controle dobradas para trás, prontas para carga. Liga opaca,
com números de lote estampados e uma faixa larga de tinta alaranjada
espalhafatosa envolvendo o tanque de combustível.
Correu para os outros três caminhões. Todos iguais. Cinco lança-
mísseis, vinte e cinco mísseis. Um total de vinte lançadores e cem mísseis.
Um requerimento inteiro de uma unidade móvel de artilharia aérea. Uma
unidade que mobilizava vinte homens. Andou de volta para o primeiro
caminhão e olhou fixamente no seu interior para o sangue no chão. Foi
nesse instante que ouviu os ratos. Inicialmente, achou que eram passos lá
fora, na brita. Desligou a lanterna. Então percebeu que os sons estavam
mais próximos e atrás dele. Havia ratos rastejando nos fundos da caverna.
Ligou a lanterna novamente, correu para os fundos e encontrou os vinte
homens.
Estavam amontoados numa grande pilha de cadáveres imediatamente
antes do teto ficar baixo demais para que um homem pudesse se levantar.
Vinte soldados mortos. Um verdadeiro inferno. Todos tinham sido baleados
nas costas. Reacher pôde constatar. Formavam um grupo em algum lugar e
tinham sido cravejados com balas de metralhadoras de grosso calibre pela
retaguarda. Ele se curvou, grunhiu e virou dois deles. Não eram os caras
mais durões que já tinha visto. Dóceis, cara de reservistas, servindo numa
base solitária nas profundezas do território amistoso. Emboscados e
assassinados por causa das suas armas.
Mas como? Ele sabia. Uma velha unidade terra-ar, quase obsoleta,
guardando o ponto mais ao norte de Montana. Um resquício de paranoia da
Guerra Fria. Certamente pronta para ser tirada de serviço. Provavelmente já
sendo encostada. Provavelmente se dirigindo rumo ao sul, para Peterson, no
Colorado. Ordens finais transmitidas sem código pelo rádio. Ele se
lembrava do escâner de rádio lá atrás na cabana de comunicações. O
operador ao lado do escâner, pacientemente girando o seletor. Imaginou a
ordem de recolhimento sendo interceptada acidentalmente, o operador
correndo para Borken, a cara inchada de Borken se iluminando com um
sorriso oportunista. Então um pouco de planejamento precipitado e uma
emboscada brutal em algum lugar nas montanhas. Vinte homens mortos a
tiros, jogados em seu próprio caminhão, empilhados nesta caverna.
Levantou-se e vislumbrou o espetáculo hediondo. Então desligou a lanterna
novamente.
Estivera certo sobre o barulho lá fora. Era barulho de passos na brita.
Ouviu-os novamente. Estavam se aproximando mais. Estavam aumentando
para um barulho de trituração ensurdecedor na noite. Dirigindo-se direto
para o galpão. Devido àquele tipo de pavimentação, não havia como saber
quantas pessoas eram.
Ouviu-os parar fora das portas maciças. Ouviu o tinir das chaves.
Ouviu o chacoalhar dos cadeados. As correntes foram retiradas e a tora
movida para o lado. As portas curvaram-se e abriram. Ele se atirou no chão.
Ficou deitado de bruços e se comprimiu contra a pilha de cadáveres gelados
e pegajosos.
Quatro pés. Duas vozes. Vozes que conhecia bem. Fowler e Borken.
Falando baixinho, andando confiantemente. Reacher deixou seu corpo
inclinar-se mais para o interior da pilha. Um rato correu sobre sua mão.
— Disse quando? — Fowler perguntou.
Sua voz ecoou, de repente alta contra o rochedo.
— O mais rápido possível, amanhã de manhã — Borken dizia. —
Quando a empresa telefônica começa a liberar a equipe de fiação? Umas
oito horas? Talvez sete e meia?
— Sejamos cautelosos — Fowler alertou. — Digamos sete e meia. A
primeira coisa que fazem é cortar a linha.
Eles tinham lanternas. Os feixes de luz bruxuleavam e balançavam
enquanto andavam.
— Tranquilo — Borken disse. — Sete horas aqui são nove na Costa
Leste. Sincronismo perfeito. Vamos fazer às sete. Primeiro a capital, então
Nova York, depois Atlanta. Deve estar tudo acabado às dez e dez. Dez
minutos que chocarão o mundo, certo? Vinte minutos de sobra.
Pararam no segundo caminhão. Desaferrolharam a tampa traseira
móvel. Ela desceu com um estrondo metálico.
— E depois disso? — Fowler perguntou.
— Aí esperamos para ver — Borken respondeu. — Neste instante eles
só têm oito fuzileiros navais aqui em cima. Não sabem o que fazer. Não têm
certeza sobre a floresta. A Casa Branca está tirando o corpo fora, como
pensamos. Deram a eles doze horas para uma decisão, eles não podem
tentar nada antes do anoitecer, amanhã é o mais cedo. E até lá este lugar
estará bem lá embaixo na lista de prioridades.
Estavam se inclinando no caminhão. Suas vozes abafadas pela grossa
lateral de lona.
— Ele precisa do míssil também? — Fowler perguntou.
— Apenas do lançador — Borken respondeu. — Está ao lado da caixa
de eletrônicos.
Reacher ficou deitado no meio dos ratos rastejantes e ouviu o som dos
grampos sendo retirados. Depois o guincho da borracha quando um
lançador saiu do suporte. E aí o chacoalhar dos parafusos da tampa traseira
sendo enfiados nos devidos lugares. Os passos retrocederam. Os fachos das
lanternas esvoaçaram para trás na direção das portas.
As dobradiças rangeram e as portas volumosas de madeira fecharam
com um baque seco. Reacher ouviu o lançador sendo colocado
delicadamente na brita, e as arfadas enquanto os dois homens levantavam a
tora velha e a recolocavam nos suportes em U. O chocalho da corrente e o
clique dos cadeados. A trituração dos passos atravessando o calçamento.
Rolou para longe dos cadáveres e descontou seu ódio num rato.
Acertou-o com as costas da mão, furioso, e jogou-o guinchando na
escuridão. Sentou-se e ficou de prontidão. Andou lentamente até a porta.
Aguçou bem os ouvidos. Esperou seis minutos. Colocou as mãos na
abertura da parte inferior das portas e as puxou.
Não se moveram nem três centímetros. Colocou as palmas
horizontalmente na madeira lisa, ergueu os ombros e levantou-as. Eram
como rocha maciça. Era como tentar derrubar uma árvore empurrando.
Tentou por um minuto. Estava fazendo o esforço de um levantador de peso.
As portas estavam emperradas. Então, subitamente, se deu conta do motivo.
Tinham posto a velha tora envergada de volta nos suportes ao contrário. A
curva apontando para ele, não para longe. Apertaram as portas com
eficiência extra, por acaso, em vez de permitir uns trinta centímetros de
movimento frouxo como antes.
Imaginou a tora como a tinha visto. Mais de trinta centímetros de
espessura, empenada e seca como ferro. Envergada para fora, não era
nenhum problema. Para dentro, ficaria imóvel. Olhou de relance para os
caminhões do exército. Estava numa merda de fazer gosto. Pensou em
empurrar um dos veículos contra as portas, mas não havia espaço para
ganhar velocidade decente. O caminhão as pressionaria, mas não bastaria.
Não poderia imaginar quanta força seria preciso para fragmentar a tora
velha.
Pensou em usar um míssil. Logo desistiu. Barulhento demais e não
daria certo, de qualquer maneira. Não se armavam até que estivessem dez
metros no ar. E carregavam apenas três quilos de explosivos. O bastante
para fazer parar um motor de jato em voo, mas três quilos de explosivos
contra aquelas vigas velhas seriam como raspá-las com uma lixa de unhas.
Estava preso no interior, e Holly esperando.
Não era do seu feitio entrar em pânico. Nunca tinha sido. Era um
homem calmo e seu longo treinamento o tinha tornado mais ainda. Tinha
aprendido a calcular, avaliar e usar exclusivamente a força de vontade para
nunca sucumbir. Você é Jack Reacher, tinham dito a ele. Você pode fazer
qualquer coisa. Primeiro, sua mãe tinha dito isso, então seu pai, depois os
militares monossilábicos e letais nas escolas de treinamento. E havia
acreditado neles.
Mas, ao mesmo tempo, não tinha acreditado. Em parte sua mente
sempre lhe dizia: Você apenas teve sorte. Sempre sortudo. E, nos momentos
de quietude, sentava e esperava sua sorte acabar. Sentou-se no solo rochoso
com as costas contra a madeira da porta e se perguntou: Será que ela
finalmente me abandonou?
Passou rapidamente o facho de luz da lanterna em torno da caverna. Os
ratos permaneciam longe dele. Estavam mais interessados na escuridão. Já
estão me abandonando, pensou. Abandonando um barco à deriva. Então,
mais uma vez, sua mente deu um clique. Não, estão interessados nos túneis,
ele pensou. Porque túneis levam a lugares. Ele se lembrou dos buracos
gigantes de rato explodidos na face da rocha, na parede norte do vale.
Talvez tudo estivesse interconectado por essas emendas estreitas nos
fundos.
Correu de volta para as profundezas da caverna, passando os
caminhões, o amontoado grotesco de cadáveres. De volta para o lugar onde
não podia mais ficar de pé. Um rato desapareceu na emenda à sua esquerda.
Ele se jogou de barriga e ligou a lanterna. Rastejou atrás dele.
Rastejou e encontrou um esqueleto. Arrastou os pés e deu de cara com
uma caveira com os dentes à mostra. E outras. Havia quatro ou cinco
esqueletos enfiados na emenda escavada. Ossos amontoados numa pilha.
Ofegou com o choque e retrocedeu trinta centímetros. Olhou com cuidado.
Usou a lanterna para dar um close.
Mais esqueletos, todos de homens. Dava para notar pelas pelves. Os
crânios mostravam perfurações de bala. Todas nas têmporas. Ferimentos de
entrada bem delineados, buracos de saída perfeitos. Balas de pistolas de alta
velocidade, revestidas. Razoavelmente recente, certamente um ano, não
mais. A carne não tinha deteriorado. Tinha sido comida. Dava para ver as
marcas paralelas dos dentes dos roedores nos ossos.
Todos os corpos foram remexidos. Os ratos os tinham puxado para
longe, para roer. Havia pedaços de tecidos, de vestimentas, aqui e ali.
Algumas das caixas torácicas ainda estavam cobertas. Os ratos não
mexeram muito nas roupas. Nem no torso. Por que deveriam? Vão
comendo na direção das entranhas. As partes macias primeiro. Chegam às
costelas pelas costas.
A cor das roupas era cáqui e verde-oliva. Algumas de camuflagem
preta e cinza. Reacher percebeu um tecido pintado. Rastreou-o de volta até
a insígnia em forma de raio escondida sob uma omoplata roída. Era um
emblema cursado de feltro bordado em seda. Ele sinalizava: Freemen do
Noroeste. Puxou o paletó do esqueleto. A caixa torácica desmoronou. O
bolso do peito tinha três estrelas cromadas varando o tecido.
Reacher fez uma busca completa, ainda deitado de barriga, com ossos
até as axilas. Montou cinco uniformes separados. Encontrou mais dois
emblemas. Um dizia: Identidade Cristã Branca. O outro dizia: Milícia
Constitucional de Montana. Alinhou os cinco crânios lascados. Checou os
dentes. Estava olhando para cinco homens, de meia-idade, talvez entre
quarenta e cinquenta anos. Cinco líderes. Os líderes que haviam
desaparecido. Os líderes que não aguentaram o rojão. Os líderes que tinham
abandonado seus membros para Beau Borken.
O teto era muito baixo para que Reacher pudesse passar sobre os
ossos. Teve que empurrá-los de lado e rastejar através deles. Os ratos não
mostraram nenhum interesse. Esses ossos foram roídos até não sobrar
carne. O novo banquete jazia lá atrás, no interior da caverna. Eles se
atropelavam de volta nessa direção. Segurou a lanterna na sua frente e se
introduziu montanha adentro contra a maré de chiados.
Perdeu o sentido de direção. Torcia para que estivesse indo
aproximadamente para o oeste, mas não sabia ao certo. O teto baixou uns
cinquenta centímetros. Estava rastejando na antiga fenda geológica,
escavada há muito tempo, por causa de minério. O teto descia ainda mais.
Descia para quarenta centímetros. Fazia frio. A fenda se estreitava. Braços
esticados à frente. A fenda se tornou estreita demais para puxá-los para trás.
Rastejava e descia por um túnel fino rochoso, um bilhão de toneladas de
montanha acima dele, nenhuma ideia de para onde estava indo. E a lanterna
começava a falhar. A pilha estava fraca. Sua luz se desvanecia, tornando-se
um brilho opaco alaranjado.
Ele já estava ofegando. Agitado. Não por causa do esforço. E sim do
temor. Do terror. Não era isso que havia esperado. Visualizara uma
caminhada por uma galeria abandonada e espaçosa. Não esta rachadura
estreita na rocha. Estava se introduzindo de cabeça em seu pior pesadelo de
infância. Ele era o tipo de cara que havia sobrevivido ao inferno, e era o
tipo de cara que raramente sentia medo. Mas soubera desde bem garoto que
tinha pavor de ficar preso no escuro, num espaço muito pequeno para girar
seu musculoso corpanzil. Todos os seus mais terríveis pesadelos de infância
foram a respeito de ficar trancado em espaços apertados. Ficou parado, a
barriga encostada no chão, deitado, e fechou os olhos, bem apertados.
Arfando com ânsia. Forçou o ar para dentro e para fora pela garganta
comprimida. Então avançou lentamente para o interior do pesadelo.
A luz da lanterna apagou finalmente, uns cem metros túnel adentro. A
escuridão era total. A fenda se estreitava. Abaixou os ombros. Estava se
enfiando à força num espaço que era pequeno demais para ele. O rosto
espremido lateralmente. Lutou para manter-se calmo. Lembrava-se do que
tinha dito a Borken: As pessoas eram menores na época. Baixinhos cascas-
grossas, migrando para o Oeste, procurando a fortuna nas entranhas das
montanhas. Sujeitos da metade do tamanho de Reacher, contorcendo-se
adiante, talvez de costas, lascando os veios brilhantes do teto rochoso.
Usou a lanterna apagada como um cego usa uma bengala. Batendo na
rocha maciça, a meio metro do seu rosto. Ouviu o tinido do vidro sobre o
arfar da respiração. Esforçou-se para a frente e tateou. Um paredão maciço.
O túnel terminava ali. Tentou se mover para trás. Impossível. Para
empurrar-se de volta com as mãos, teria que levantar o peito para conseguir
um ponto de apoio. Mas o teto era baixo demais para deixá-lo fazer isso.
Seus ombros estavam muito comprimidos. Não conseguia nenhum ponto de
apoio. Seus pés até poderiam empurrá-lo para a frente, mas não poderiam
puxá-lo para trás. Ficou rígido com o pânico que já estava se instalando. A
garganta se comprimia com toda força. Sua cabeça bateu no teto e sua
bochecha raspou o chão áspero. Lutou contra um grito acelerando sua
respiração.
Tinha que voltar. Enganchou os dedos dos pés no arenito. Virou as
mãos para dentro e plantou os polegares no chão. Puxou com os dedos do
pé e empurrou com os polegares. Moveu-se para trás uns míseros
centímetros e então a rocha se comprimiu bastante contra seu flanco. Para
deslizar o peso para trás, os músculos dos ombros se comprimiam e se
retesavam contra a rocha. Expirou e amoleceu os braços. Puxou com os
dedos dos pés. Derraparam inutilmente no arenito. Ajudou-os com os
polegares. Seus ombros se comprimiram e se retesaram novamente.
Empurrou os quadris de um lado ao outro. Tinha uns cinco centímetros de
folga. Enfiou as mãos no solo e se levantou para trás. Seu corpo emperrou
totalmente como uma cunha numa porta. Inclinou-se lateralmente e bateu
com a bochecha no teto. Empurrou-se para trás e para baixo e bateu com a
outra bochecha no chão. O rochedo esmagava suas costelas. Dessa vez não
conseguiu impedir um grito. Teve que soltá-lo. Abriu a boca e gritou de
terror. O ar em seus pulmões esmagou o peito contra o chão e jogou suas
costas contra o teto.
Não sabia dizer se os olhos estavam abertos ou fechados. Empurrou-se
para a frente com os pés e recuperou os três centímetros que tinha recuado.
Esticou os braços. Apalpou adiante novamente. Seus ombros estavam
emperrados tão firmemente que ele não poderia mover as mãos mais do que
um ângulo bem agudo. Esticou os dedos e os arrastou para a esquerda e
para a direita, para cima e para baixo. Rocha maciça adiante. Não tinha
mais como ir para a frente. Não tinha como mover-se para trás.
Ele ia morrer preso dentro da montanha. Tinha certeza disso. Os ratos
também. Estavam fungando atrás dele. Aproximando-se. Sentiu os animais
a seus pés. Deu um pontapé e os fez correr guinchando como loucos. Mas
voltaram. Sentiu o peso deles em seus pés. Fervilhavam por cima dele.
Entocavam-se em torno dos seus ombros. Deslizavam sob suas axilas.
Sentiu os pelos sebosos e frios no seu rosto quando forçavam a passagem.
Fediam. Sentiu o chicotear das caudas conforme o ultrapassavam.
Para onde? Deixou-os correr sobre seu braço para calcular a direção.
Moviam-se na frente dele, na completa escuridão. Tateou. Sentiu-os fluir
para a esquerda. A passagem dos bichos agitava o ar. O ar estava fresco.
Sentiu-o mover-se no seu suor, uma brisa fraca no lado esquerdo do rosto.
Enfiou-se com toda força na parede da direita e moveu o braço esquerdo
lateralmente, na sua frente. Apalpou à procura da parede da esquerda. Não
estava lá. Estava preso numa junção de túneis. Uma extremidade nova da
fenda seguia em ângulo reto, para longe da fenda na qual ele se encontrava.
Um ângulo reto, estreito e apertado. Noventa graus. Forçou-se para trás
tanto quanto seus polegares o empurrariam. Raspou o rosto na parede do
fundo e enfiou o flanco na rocha. Dobrou-se com os braços à frente ao redor
do canto e trouxe os pés.
A fenda nova não era melhor. Também não era mais larga. O teto não
era mais alto. Rebocou-se adiante, ofegando, suando e tremendo.
Impulsionou-se com os dedos dos pés, centímetro por centímetro. Os ratos
forçaram a passagem, ultrapassando Reacher. A rocha já arranhava
profundamente seus flancos e costas. Mas ainda sentia uma brisa ligeira no
rosto. O túnel levava para algum lugar. Ele ofegava e arfava. Seguiu
rastejando. Então a fenda nova se alargou. Ainda muito baixa. Uma
rachadura plana, bem próxima ao solo. Continuou a rastejar através dela,
esgotado. Cinquenta metros. Cem. Então sentiu o teto ficar mais alto.
Empurrou-se com os dedos dos pés. De repente sentiu o ar mudar e se viu
deitado com metade do corpo para dentro da primeira caverna. Percebeu
que seus olhos estavam arregalados e o Econoline branco estava bem na
frente dele no escuro.
Rolou de costas e ficou deitado, ofegando como louco, no arenito.
Ofegante e tremendo. Levantou-se cambaleando e olhou para trás. A fenda
era invisível. Escondida na sombra. Conseguiu chegar até o furgão branco e
desmoronou contra a lateral. Os números fluorescentes do seu relógio
mostravam que tinha ficado nos túneis quase três horas. A maior parte do
tempo enfiado lá, suando com o pânico. Um angustiante pesadelo de três
horas tinha ganhado vida. Suas calças e jaqueta estavam em farrapos. Cada
músculo do corpo ardia. O rosto, as mãos, os cotovelos e os joelhos
sangravam. Mas foi o medo que tinha feito isso com ele. O medo de não
conseguir atravessar. Ainda podia sentir a rocha se comprimindo contra
suas costas e pressionando o peito. Podia senti-la tentando quebrar suas
costelas por compressão. Levantou-se novamente e mancou até as portas.
Abriu-as com um empurrão e ficou parado no luar, braços estendidos, olhar
enlouquecido, boca aberta, enchendo os pulmões com o doce ar noturno.

Chegou ao centro do vale quando começou a colocar as ideias em ordem.


Então, correu de volta para a caverna. Encontrou o que queria. Encontrou-o
num dos conjuntos de ganchos de reboque do jipe. Um arame grosso e
pesado, pronto para alimentar os circuitos elétricos de um reboque. Puxou-o
para fora e descascou o isolante com os dentes. Correu de volta para o luar.
Manteve-se perto da estrada, percorrendo toda a distância de volta para
Yorke. Três quilômetros, vinte minutos de corrida lenta e agonizante pelas
árvores. Deu a volta atrás do bloco arruinado a nordeste e se aproximou do
tribunal pela retaguarda. Circundando-o silenciosamente nas sombras.
Esperou e escutou.
Tentou pensar como Borken. Ser complacente. Feliz com seu campo
de ação. Informação privilegiada e constante de dentro do FBI. Reacher
trancado na cabana de punição, Holly aprisionada no quarto. Postaria uma
sentinela? Hoje à noite não. Não quando esperava ação pesada de amanhã
em diante. Ele ia querer sua gente descansada. Reacher balançou a cabeça e
apostou que estava certo.
Chegou aos degraus do tribunal. Deserto. Tentou abrir a porta.
Fechada. Sorriu. Ninguém posta uma sentinela atrás de uma porta fechada.
Fez um pequeno gancho com o arame e tateou em busca do mecanismo.
Uma velha fechadura de duas alavancas. Oito segundos. Deu um passo para
dentro. Esperou e escutou. Nada. Subiu a escada.
A fechadura da porta de Holly era nova. Mas barata. Trabalhou bem
quieto, o que o atrasou. Levou mais de trinta segundos para a última
tranqueta clicar para trás. Abriu a porta lentamente e subiu no assoalho
elevado. Olhou de relance com apreensão para as paredes. Ela estava num
colchão no chão. Totalmente vestida e pronta. Acordada e de olhos bem
abertos. Olhos enormes, brilhando no escuro. Gesticulou para que ela
saísse. Voltou-se, desceu e esperou no corredor. Ela pegou a muleta e
mancou até a porta. Desceu o degrau com cuidado e se colocou ao lado
dele.
— Oi, Reacher — sussurrou. — Como foi?
— Péssimo e ótimo — ele sussurrou em resposta. — A vida é assim,
muda de tempos em tempos.
Ela se voltou e relanceou os olhos para o chão do quarto. Ele seguiu
aquele olhar e viu uma mancha escura no chão.
— A mulher que me trouxe o almoço — sussurrou.
Ele balançou a cabeça.
— Com o quê? — ele sussurrou em resposta.
— Parte da armação da cama — ela disse.
Ele percebeu a satisfação no rosto dela e sorriu.
— Boa — ele disse baixinho. — Armações de cama são excelentes
para isso.
Ela deu uma última olhada no quarto e fechou a porta delicadamente.
Seguiu-o escada abaixo através da escuridão, lentamente. Cruzaram o
saguão de entrada, atravessaram a porta dupla e saíram no brilhante luar
silencioso.
— Nossa Senhora — ela disse com urgência. — O que aconteceu com
você?
Ele olhou de relance para baixo e se examinou no luar. Estava
empoeirado da cabeça aos pés, poeira e terra. A roupa estava esfarrapada.
Coberto de suor e sangue. Ainda trêmulo.
— É uma longa história — ele refletiu. — Você tem alguém em
Chicago em quem possa confiar?
— McGrath — ela disse imediatamente. — É meu agente no comando.
Por quê?
Atravessaram a rua larga de braços dados, olhando para a esquerda e
para a direita. Contornaram o morro na frente do prédio de escritórios
arruinado. Encontraram a trilha que seguia para o noroeste.
— Você precisa mandar um fax para ele — pediu. — Eles têm mísseis.
Você precisa adverti-lo. Hoje à noite ainda, a linha deles vai ser cortada
logo pela manhã.
— O espião disse isso a eles? — ela perguntou.
Ele balançou a cabeça.
— Como? — ela perguntou. — Como ele está se comunicando?
— Por um rádio de ondas curtas — Reacher disse. — Só pode ser.
Qualquer outra coisa pode ser rastreada.
Ele se balançou e encostou-se numa árvore. Deu um resumo geral para
ela, tudo, do começo ao fim.
— Merda! — ela reagiu. — Mísseis terra-ar? Suicídio coletivo? Que
pesadelo, meu Deus!
— Esse pesadelo não nos pertence — ele disse. — Vamos cair fora.
— A gente devia ficar e ajudar... — ela começou. — As famílias.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— A melhor ajuda é a gente se mandar — ele discordou. — Talvez
perder você mudará o plano deles. E nós podemos falar sobre o layout deste
local.
— Eu não sei — ela disse.
— Mas eu sei — ele foi bastante contundente. — A primeira regra é
ater-se ao que é prioritário. Você. Vamos cair fora.
Ela deu de ombros e balançou a cabeça.
— Agora? — ela perguntou.
— Neste instante — ele avisou.
— Como? — ela perguntou.
— Com o jipe, pela floresta — ele disse. — Eu encontrei a frota deles.
Vamos lá, roubamos um jipe, até lá já deve estar claro o bastante para
acharmos o caminho. Eu vi um mapa no escritório de Borken. Tem muitas
trilhas seguindo para o leste através da floresta.
Ela concordou com a cabeça e ele desencostou da árvore. Subiram
todo o caminho sinuoso até o baluarte. Um quilômetro e meio no escuro.
Tropeçavam nas pedras e prenderam a respiração para andar. A clareira
estava escura e silenciosa. Circundaram a área além do refeitório, até os
fundos da cabana de comunicações. Saíram das árvores e Reacher se
aproximou e pressionou a orelha na lateral de madeira. Não havia nenhum
som no interior.
Usou o arame novamente e chegaram ao interior em poucos segundos.
Holly encontrou papel e caneta. Escreveu sua mensagem. Discou o número
do fax de Chicago e colocou a folha na máquina. Ela zumbiu
obedientemente e puxou o papel. Jogou a folha de volta na mão dela, que
aguardava. Ela apertou o botão para a confirmação. Não queria deixar
nenhuma pista para trás. Outra folha saiu. Mostrava o número certo de
destino. Dava o tempo da mensagem como dez para as cinco, sexta-feira de
manhã, 4 de julho. Ela rasgou ambos os papéis em pedacinhos e jogou-os
numa lata de lixo.
Reacher fez uma busca ao redor do longo balcão e encontrou um clipe.
Seguiu Holly de volta para o luar. Agachou-se e encontrou o cabo que
descia até a antena chicote de ondas curtas, na lateral da cabana. Pegou o
clipe e o torceu até quebrar. Forçou a ponta quebrada através do cabo como
um alfinete. Empurrou-a até que ficasse uniforme, um pedacinho à mostra
de cada lado. O metal provocaria um curto-circuito na antena. O sinal
desceria do éter, fio abaixo, vazaria na tela e correria até a terra sem jamais
alcançar a unidade de ondas curtas em si. Essa é a melhor maneira de
incapacitar um rádio. Se quebrar, ele será consertado. Desse jeito, a falha
não será rastreada, até que um técnico, esgotado, pense finalmente em
verificar.
— Precisamos de armas — Holly sussurrou.
Ele concordou com a cabeça. Seguiram se esquivando até a porta do
arsenal. Ele olhou a fechadura. Desistiu. Era uma coisa enorme. Não dava
para forçar.
— Vou tomar a Glock do cara que estava me guardando — ele
sussurrou.
Ela concordou com a cabeça. Voltaram para as árvores e andaram até a
clareira seguinte. Reacher tentou pensar numa história para explicar sua
aparição para Joseph Ray. Imaginou que podia dizer algo sobre ser
teletransportado para a ONU. Esse negócio de teletransporte deixa a pessoa
com as ideias atrapalhadas. Rodearam na surdina para os fundos da cabana
de punição e aguçaram os ouvidos. Tudo quieto. Contornaram o canto, e
Reacher puxou a porta. Deu de cara com uma nove milímetros. Dessa vez
não era uma Glock. Era uma Sig-Sauer. Não era de Joseph Ray. Era de
Beau Borken. Ele aguardava do lado de dentro da porta com o Pequeno
Stevie ao seu lado, sorrindo.
37

ERAM QUATRO E MEIA DA MANHÃ, E WEBSTER já estava mais do


que pronto para a troca de guarda. Johnson, Garber e o assessor do general
estavam cochilando em suas cadeiras. McGrath estava fora com os técnicos
em telecom. Estavam terminando. O trabalho havia levado muito mais
tempo do que o previsto. Algum problema de interface. Tinham cortado os
fios telefônicos saindo de Yorke e torcido o cobre duro para baixo, até uma
caixa de ligação provisória que haviam colocado na base de um poste.
Então enrolaram o cabo da caixa de ligação estrada abaixo até o veículo
móvel de comando. Conectaram-no numa das portas de comunicações.
Mas não tinha dado certo. Não imediatamente. Os técnicos ficaram
fuçando com multímetros e murmurando sobre impedâncias e
capacitâncias. Tinham trabalhado por três horas sem parar. Estavam prontos
para jogar a culpa no caminhão do exército pela incompatibilidade quando
pensaram em voltar para checar sua própria caixa de ligação provisória. A
falha estava lá. Um componente defeituoso. Fixaram um sobressalente, e o
circuito inteiro funcionou com perfeição. Às quatro e trinta e cinco da
manhã, McGrath estava apertando as mãos deles e pedindo para jurarem
ficar de boca fechada, quando Webster finalmente saiu do caminhão. Os
dois homens levantaram-se e os observaram partir. O barulho do caminhão
deles cessou após a curva. Webster e McGrath permaneceram sob o luar
cintilante. Ficaram ali cinco minutos enquanto McGrath fumava. Em
absoluto silêncio. Apenas olhando para a distância ao norte, com suas
indagações.
— Vá acordar seus garotos — Webster quebrou o gelo. — Vamos ficar
de prontidão por um tempo.
McGrath balançou a cabeça e desceu até os caminhões-dormitório.
Acordou Milosevic e Brogan. Estavam completamente vestidos em seus
beliches. Levantaram-se e bocejaram. Pouco depois ele desceu a escada e
encontrou Webster junto com Johnson e seu assessor. Garber atrás deles.
— A linha está ok — Webster comunicou.
— Já? — Brogan se surpreendeu. — Achei que ia ser feito de manhã.
— Calculamos que mais cedo era melhor do que mais tarde —
Webster explicou, inclinando a cabeça na direção do general Johnson. Era
um gesto que dizia: Ele está preocupado, certo?
— Perfeito — Milosevic disse. — Vamos cuidar disso.
— Acorde a gente às oito — Webster pediu. — Ou mais cedo, se
necessário, ok?
Brogan fez um gesto com a cabeça, como se estivesse falando sozinho,
e andou para o norte até o veículo de comando. Milosevic foi em seguida.
Pararam juntos para dar uma olhada nas montanhas, ao luar. Enquanto
faziam uma pausa, o fax dentro do caminhão de comando vazio começou a
zumbir. Soltou sua primeira comunicação apontada para cima na bandeja de
mensagem. Eram dez para as cinco, sexta-feira, 4 de julho.

Brogan acordou o general Johnson uma hora e dez minutos mais tarde, às
seis horas exatamente. Bateu forte na porta do caminhão-dormitório, e não
obteve nenhuma resposta. Então entrou e balançou o velhote pelo ombro.
— Base Peterson da Força Aérea, senhor — Brogan disse. — Precisam
falar.
Johnson cambaleou até o veículo de comando, só de camiseta e calças.
Milosevic juntou-se a Brogan lá fora no lusco-fusco para dar a ele um
pouco de privacidade. Johnson saiu de novo cinco minutos depois.
— Vou convocar uma reunião! — ele exclamou.
Voltou a entrar no caminhão. Milosevic desceu e acordou os outros.
Foram para a frente, Webster e o assessor do general bocejando e se
espreguiçando, Garber bem ereto. McGrath, vestido e fumando. Talvez nem
tivesse tentado dormir. Subiram a escada em fila e tomaram seus lugares em
torno da mesa, olhos vermelhos, desolados, cabelo com felpos emaranhados
por causa dos travesseiros.
— Peterson entrou em contato — Johnson disse. — Vão mandar um
helicóptero de resgate daqui a pouco, atrás da unidade de mísseis.
Seu assessor balançou a cabeça.
— Esse é o procedimento padrão — ele assentiu.
— Baseado em suposição — Johnson disse. — Acreditam que a
unidade sofreu algum tipo de pane eletromecânica.
— O que não é incomum — seu assessor disse. — Quando o rádio
falha, o procedimento é repará-lo. Quando um caminhão ao mesmo tempo
quebra, o procedimento é esperar em grupo por auxílio.
— Blindar a área? — McGrath perguntou.
O assessor balançou a cabeça novamente.
— Exatamente — ele disse. — Sairiam da estrada e esperariam um
helicóptero.
— Então podemos informá-los? — McGrath perguntou.
O assessor se sentou inclinando-se para a frente.
— Essa é a questão — ele disse. — Informar o que exatamente? Nem
sabemos com certeza se estes maníacos estão com eles de fato. Ainda é
possível que seja apenas uma infeliz coincidência.
— Acho improvável — Johnson opinou.
Webster deu de ombros. Ele sabia como lidar com tais assuntos.
— Qual é o lado positivo? — perguntou.
— Não há nenhum lado positivo — Johnson retrucou. — Se
contarmos a Peterson que os mísseis foram capturados, o segredo já era, nós
perderemos o controle da situação, seremos vistos como tendo
desobedecido a Washington por transformar tudo isso numa grande
encrenca antes da segunda-feira.
— Ok, então qual é o lado negativo? — Webster perguntou.
— Teoricamente — Johnson disse — temos que dar por certo que
foram capturados. Então também temos que pressupor que foram bem
escondidos. Neste caso, a Força Aérea nunca os encontrará. Apenas vão
sobrevoar ao redor por algum tempo, e então irão pra casa esperar.
Webster balançou a cabeça.
— Ok — ele concordou. — Positivo ou negativo, nenhuma grande
encrenca.
Fez-se um breve silêncio.
— Então, ficamos sentados esperando — Johnson analisou. —
Deixamos o helicóptero circular a área.
McGrath balançou a cabeça negativamente. Incrédulo.
— E se usarem os mísseis para derrubar o helicóptero? — perguntou.
O assessor do general deu um sorriso indulgente.
— Não tem como — ele explicou. — O IAI não permitiria.
— IAI? — McGrath repetiu.
— Identificador de Amigo ou Inimigo — o assessor esclareceu. — É
um sistema eletrônico. O helicóptero estará emitindo um sinal. O míssil lê
como amigo e se recusa a ser detonado.
— É garantido? — McGrath perguntou.
O assessor balançou a cabeça.
— À prova de acidentes — ele afirmou.
Garber fez uma careta para ele. Mas não disse nada. Não era sua
especialidade.
— Ok — Webster disse. — De volta pra cama. Acorde a gente
novamente às oito, Brogan.

Na pista de tarmac da base Peterson, um Boeing CH-47D Chinook aquecia


os motores e bebericava os primeiros goles dos seus três mil duzentos e
quarenta e oito litros de combustível. Um Chinook é uma aeronave gigante,
cujos rotores gêmeos explodem por meio de uma unidade oval de ar de
trinta metros de comprimento e vinte de largura.
Pesa mais de dez toneladas, vazio, e pode erguer mais doze. É uma
caixa voadora gigante, os motores e os tanques de combustível atrelados no
topo e nas laterais, a tripulação empoleirada bem alto na frente. Qualquer
helicóptero pode fazer uma busca, mas, quando equipamentos pesados
estiverem em jogo, só um Chinook pode resgatar. Por causa do feriado, o
despachante de Peterson designou uma tripulação reduzida, de apenas duas
pessoas. Nenhum vigia separado. Calculou que não precisava de um. Qual a
dificuldade de achar cinco caminhões do exército em algum acostamento de
Montana?

— Você devia ter ficado aqui — Borken o repreendeu. — Certo, Joe?


Reacher olhou para a escuridão dentro da cabana de punição. Joseph
Ray estava em posição de sentido no quadrado amarelo. Olhar fixo para o
nada. Completamente nu. Sangrando pela boca e nariz.
— Certo, Joe? — Borken perguntou novamente.
Ray não respondeu. Borken se aproximou e deu um murro na cara
dele. Ray tropeçou e caiu para trás. Bateu com as costas na parede e
batalhou para recuperar sua posição no quadrado.
— Eu não te fiz uma pergunta?
Ray concordou com a cabeça. O sangue pingava do queixo.
— Reacher devia ter ficado aí — ele apontou para o quadrado.
Borken bateu nele novamente. Um direto bem colocado no meio da
cara. A cabeça de Ray estalou para trás. O sangue jorrou. Borken sorriu.
— Nada de conversinha quando estiver no quadrado, Joe — ele disse.
— Você conhece as regras.
Borken andou de volta e colocou o cano da Sig-Sauer na orelha de
Reacher. Usou-a para empurrá-lo para a clareira. Gesticulou para Stevie
seguir.
— Você fica no quadrado, Joe! — ele exclamou por cima do ombro.
Stevie fechou a porta com um baque. Borken inverteu sua direção e
usou a Sig-Sauer para empurrar Reacher na direção dele.
— Diga a Fowler para se livrar deste sujeito — ele ordenou. — Ele
excedeu sua utilidade, se é que já foi útil. Ponha a vadia de volta no quarto.
Coloque um grupo de sentinelas em volta do prédio. Temos coisas para
fazer, certo? Não tenho tempo para esta merda. Todos no campo de
exercícios às seis e trinta. Todo mundo lá. Eu vou ler a proclamação para
eles antes de mandarmos o fax.

McGrath não conseguia pregar o olho. Retornou para o caminhão-


dormitório com os outros e pensou em deitar no beliche, mas desistiu
depois de dez minutos. Às quinze para as sete da manhã, ele voltava no
veículo de comando com Brogan e Milosevic.
— Tirem uma folga, se quiserem — ele sugeriu. — Eu cuidarei das
coisas por aqui.
— A gente podia correr atrás de um café da manhã — Brogan sugeriu.
— O Diners em Kalispell já deve estar aberto.
McGrath concordou vagamente com a cabeça. Enfiou a mão no bolso
de trás para pegar a carteira.
— Não se preocupe — Brogan avisou. — Eu pago. É por minha conta.
— Certo, obrigado — McGrath disse. — Traga café. Bastante.
Brogan e Milosevic levantaram-se e partiram. McGrath permaneceu na
entrada e os observou sair num sedã do exército, indo para o sul. O som
fraco do carro se desvaneceu e ele ficou com o zumbido baixo do
equipamento na cabeça. Voltou-se para se sentar. O relógio tiquetaqueou até
às sete. O fax começou a zumbir.

Holly passou a mão sobre o colchão velho, como se Reacher estivesse nele.
Como se fosse realmente seu corpo debaixo dela, cheio de cicatrizes e
curtido, quente, robusto e musculoso, e não uma porcaria de algodão
listrada gasta, estofada com crina de cavalo. Piscou até as lágrimas secarem.
Soltou um suspiro profundo e se concentrou na próxima decisão. Nada de
Reacher, nada de Jackson, nada de arma nem ferramentas, seis sentinelas lá
fora. Relanceou os olhos em torno do quarto pela milésima vez e começou a
reavaliar tudo.

McGrath despertou a turma batendo nervosamente na lateral do caminhão-


dormitório com ambos os punhos. Então correu de volta para o posto de
comando e achou uma terceira cópia da mensagem sendo cuspida pela
máquina de fax. Ele já tinha duas. Agora eram três.
Webster foi o primeiro a chegar ao caminhão. E aí Johnson, um minuto
depois. Então Garber e, finalmente, o assessor do general. Irromperam
escada acima um a um e foram apressados para a mesa. McGrath estava
absorto na leitura.
— O que é, Mack? — Webster perguntou a ele.
— Estão declarando independência — McGrath deu a notícia. —
Escuta isso.
Ele passou os olhos em torno dos quatro rostos. Começou a ler em voz
alta:
“Governos são instituídos entre os homens”, ele começou: “Derivando
seus justos poderes do consentimento dos governados. É direito do povo
alterá-los ou aboli-los depois de uma longa série de abusos e usurpações.”
— Estão citando o original — Webster disse.
— Parafraseando — Garber corrigiu.
McGrath concordou com a cabeça.
— Escutem isso — ele disse novamente. “A história do governo atual
dos Estados Unidos é uma história de danos e usurpações repetidas,
projetada para estabelecer uma tirania absoluta sobre o povo.”
— Que porra é essa? — Webster reagiu. — 1776 tudo de novo?
— Pior — McGrath disse. “Nós, portanto, somos os representantes dos
Estados Livres da América, localizados inicialmente no que era o condado
de Yorke, no que era Montana, e nós solenemente publicamos e declaramos
que este território é agora um Estado livre e independente, que é absolvido
de lealdade para com os Estados Unidos, com toda ligação política
completamente dissolvida, e que como um Estado livre e independente tem
pleno poder para declarar guerra, concluir a paz, defender suas fronteiras
terrestres e seu espaço aéreo, contrair alianças, estabelecer comércio e fazer
todas as outras coisas que todos os Estados independentes podem fazer.”
Ele ergueu os olhos. Organizou as três cópias numa pilha arrumadinha
e as deitou na mesa, em silêncio.
— Por que três cópias? — Garber perguntou.
— Três destinos — McGrath esclareceu. — Se nós não tivéssemos
interceptado, já estariam lá.
— Lá onde? — Webster perguntou.
— A primeira era para um número da capital — McGrath disse. — Eu
calculo Casa Branca.
O assessor de Johnson puxou sua cadeira para próximo do monitor.
McGrath leu o número para ele. Digitou e a tela rolou para baixo. Ele
concordou com a cabeça.
— Da Casa Branca — confirmou. — O próximo?
— Algum lugar de Nova York — McGrath disse. — Leia o número da
segunda folha.
— Nações Unidas — o assessor disse. — Eles querem testemunhas.
— O terceiro eu não sei — McGrath falou. — O código de área é 404.
— Atlanta, Geórgia — Garber disse.
— O que tem em Atlanta? — Webster perguntou.
O assessor estava atarefado no teclado.
— CNN — ele disse. — Querem mídia.
Johnson concordou com a cabeça.
— Jogadas inteligentes — ele comentou. — Eles querem isso tudo na
TV, ao vivo. Cristo, você pode imaginar? As Nações Unidas como árbitro e
cobertura vinte e quatro horas? O mundo inteiro assistindo?
— Então o que faremos? — Webster perguntou.
Fez-se um longo silêncio.
— Por que eles disseram espaço aéreo? — Garber perguntou alto.
— Estavam parafraseando — Webster disse. — Em 1776 não havia
qualquer controle do espaço aéreo.
— Os mísseis — Garber discordou. — É possível que tenham
incapacitado o IAI.
Fez-se outro longo silêncio. Ouviram um carro parar. Portas bateram.
Brogan e Milosevic irromperam escada acima e entraram no silêncio.
Portavam sacolas marrons e copos de isopor com tampa de plástico.
O Chinook gigante de busca e resgate conseguiu chegar ao norte desde
Peterson no Colorado, até a base da Força Aérea de Malmstrom, nas
cercanias de Great Falls, Montana, sem incidentes. Aterrissou e caminhões-
tanque foram encontrá-lo. A tripulação caminhou até o refeitório para o
café. Voltaram vinte minutos mais tarde. Decolou novamente e balançou no
ar matinal antes de se deslocar pesadamente para o noroeste.
38

— NÃO SURTIU QUALQUER EFEITO — FOWLER disse. — O que


pode estar havendo?
Reacher deu de ombros para ele. Estavam na cabana de comando.
Stevie o arrastou pelas árvores para o baluarte, e então Fowler o arrastou de
volta novamente com dois guardas armados. A cabana de punição estava
indisponível. Ainda ocupada por Joseph Ray. Usaram a cabana de comando
no lugar dela. Sentaram Reacher, e Fowler algemou seu pulso esquerdo no
braço da cadeira. Os guardas assumiram posições dos dois lados, rifles
abaixados, alertas. Então Fowler subiu para se juntar a Borken e Stevie para
a cerimônia no campo de exercícios. Reacher ouviu gritarias e aclamações
indistintas ao longe, conforme a proclamação era lida em voz alta. Depois,
silêncio total. Noventa minutos mais tarde, Fowler voltou para a cabana,
sozinho. Sentou-se atrás da escrivaninha de Borken, acendeu um cigarro, e
os guardas, armados, continuaram de pé.
— Nós passamos o fax uma hora atrás — Fowler garantiu. — Não
surtiu efeito qualquer.
Reacher sentiu o cheiro do cigarro e vislumbrou as bandeiras nas
paredes. Em vermelho-escuro e branco, opacas; símbolos distorcidos
vívidos em preto.
— Você sabe por que não está surtindo efeito? — Fowler perguntou.
Reacher apenas balançou negativamente a cabeça.
— Sabe o que eu penso? — Fowler começou. — Cortaram a linha. A
central telefônica está de conluio com os Federais. Fomos informados de
que aconteceria às sete e trinta. Obviamente aconteceu mais cedo.
Reacher deu de ombros novamente. Não respondeu.
— A gente esperava ser informado sobre uma coisa assim — Fowler
disse.
Ele pegou a Glock e escorou na sua frente, coronha na mesa, rodando-
a como artilharia naval para a direita e para a esquerda.
— E a gente não foi — ele concluiu.
— Talvez o camarada de Chicago tenha desistido de vocês — Reacher
sugeriu.
Fowler discordou com a cabeça. A Glock acabou parando apontada
para o peito de Reacher.
— Temos recebido muita informação — ele disse. — A gente sabe
onde estão, quantos são, as intenções. Mas principalmente agora, quando
tanto precisamos de informações, a gente não está recebendo. A
comunicação foi interrompida.
Reacher não disse nada.
— Mas estamos investigando — Fowler disse. — Estamos verificando
o rádio.
Reacher não disse nada.
— Quer dizer alguma coisa pra gente sobre o rádio? — Fowler
perguntou.
— Que rádio? — Reacher indagou.
— Estava funcionando normalmente ontem — Fowler disse. — Agora
não está funcionando de jeito nenhum, e você ficou zanzando por aí a noite
toda.
Fowler se abaixou e abriu a gaveta onde Borken guardava o Colt
Marshal. Mas não tirou o revólver. Tirou um pequeno transmissor preto de
rádio.
— Isto era do Jackson — exibiu. — Ele ficou muito ansioso para nos
mostrar onde estava escondido. De fato, implorou para nos mostrar. Gritou,
chorou e implorou. Quase arrancou as unhas escavando. Ai, ai, ai, ele
estava tão ansioso...
Sorriu maliciosamente e guardou a unidade com cuidado no bolso.
— Concordamos que vamos ligar — ele disse. — Isso deve nos
colocar em linha direta com a escória federal, cara a cara. Nessa altura do
campeonato, a gente precisa conversar diretamente. Ver se nós podemos
persuadir os caras a restabelecer nossa linha de fax.
— Plano brilhante — Reacher ironizou.
— A linha de fax é importante, veja bem — Fowler disse. — Vital. O
mundo precisa saber o que estamos fazendo aqui. O mundo precisa assistir
e testemunhar. A história está sendo feita aqui. Me entende?
Reacher olhou fixamente para a parede.
— Eles têm câmeras, sabe — Fowler disse. — Os aviões de vigilância
estão lá em cima neste momento. Agora é dia novamente, podem ver o que
a gente está fazendo. Então, como podemos explorar esse fato?
Reacher discordou com a cabeça.
— Você pode me deixar fora disso? — ele pediu.
Fowler sorriu.
— Claro que a gente vai te deixar fora disso — ele zombou. — Por
que se importariam em ver você pregado numa árvore? Você não passa de
um merdinha tanto para nós quanto para eles. Mas Holly Johnson é outra
história. Talvez a gente ligue para eles do seu próprio transmissorzinho e
diga para assistirem com suas próprias câmeras espiãs a gente agindo.
Quem sabe eles pensam no assunto. Poderiam trocar, ideia minha, uma
linha de fax pelo seio esquerdo dela.
Ele amassou o cigarro num cinzeiro. Debruçou-se para a frente. Falou
com serenidade:
— Nós somos sérios aqui, Reacher — ele disse. — Você viu o que
fizemos com o Jackson. A gente até podia fazer aquilo com ela. Podíamos
fazer contigo. A gente precisa se comunicar com o mundo. Precisamos
dessa linha de fax. Então a gente precisa das ondas curtas para confirmar o
que diabo eles andam fazendo. Precisamos dessas coisas desesperadamente.
Você entende, certo? Então, se você quiser evitar sofrimento desnecessário,
para você e para ela, é melhor me dizer o que fez com o rádio.
Reacher estava com o corpo meio virado para trás, olhando para a
estante de livros. Tentando recordar passagens das péssimas traduções que
havia lido dos textos japoneses sobre Pearl Harbor.
— Desembucha — Fowler falou suavemente. — Eu posso manter eles
longe de você e dela. Nenhuma dor será infligida a qualquer um de vocês.
Caso contrário, não há mais nada que eu possa fazer.
Colocou sua Glock na escrivaninha.
— Vai um cigarro? — perguntou.
Estendeu o maço. Sorriu. O policial bonzinho. O amigo. O aliado. O
protetor. O truque mais antigo do manual. Exigindo a resposta mais antiga.
Reacher olhou ao redor. Dois guardas, um de cada lado dele, o guarda à
direita mais próximo, o guarda à esquerda mais para trás, quase contra a
parede lateral. Rifles ao alcance com tranquilidade na envergadura dos
braços. Fowler atrás da escrivaninha, estendendo o maço. Reacher encolheu
os ombros e concordou com a cabeça. Pegou um cigarro com a mão direita
livre. Não fumava há dez anos, mas quando alguém oferecer a você uma
arma letal aceite imediatamente.
— Então conte — Fowler disse. — E seja rápido.
Acendeu o isqueiro e o estendeu. Reacher curvou-se para a frente e
acendeu seu cigarro. Tragou com vontade e se inclinou para trás. A tragada
foi gostosa. Dez anos e ele ainda apreciava. Inalou profundamente e encheu
os pulmões de novo.
— Como você danificou nosso rádio? — Fowler perguntou.
Reacher deu a terceira tragada. Soltou fumaça pelo nariz e segurou o
cigarro entre o polegar e o indicador, a palma ao redor dele. Dê umas
tragadas profundas e rápidas, e a brasa na ponta do cigarro se aquece até
dois mil graus. Vira uma arma. Girou a palma, como se estivesse estudando
a brasa ardente enquanto pensava em algo até o cigarro ficar apontado
diretamente para a frente como uma flecha.
— Como você danificou o nosso rádio? — Fowler perguntou, já se
impacientando.
— Você vai machucar a Holly se eu não disser a você? — Reacher
perguntou.
Fowler acenou com a cabeça. Deu seu sorrisinho.
— Isso eu te garanto — ele disse. — Machucarei tanto que ela vai
pedir pra morrer.
Reacher encolheu os ombros com tristeza. Esboçou um gesto de
“escute”. Fowler caiu. Acenou com a cabeça, mexeu-se na cadeira e então
se inclinou para perto. Foi aí que Reacher deu um bote para a frente e
enfiou o cigarro bem dentro do olho dele, como se fosse de isopor. Fowler
gritou e Reacher se levantou com um salto, a cadeira algemada no pulso
retumbando atrás dele como se fosse de isopor. Girou para a direita, a
cadeira fez um largo arco e quebrou na cabeça do guarda mais próximo. Ela
rachou e um pedaço voou longe quando Reacher moveu-se para sua
esquerda. Acertou o guarda mais distante com um golpe potente de
antebraço na garganta antes mesmo que o cara pudesse mover o rifle.
Chicoteou para trás e acertou Fowler com os destroços da cadeira. Usou o
impulso contínuo para voltar com o balanço para o primeiro guarda.
Acabou com ele com uma cotovelada na cabeça. O sujeito desmoronou.
Reacher agarrou o rifle pelo cano e gingou direto para o outro guarda.
Escutou os ossos do crânio racharem com a coronhada. Largou o rifle, virou
e fez o que sobrou da cadeira em pedaços no ombro de Fowler. Agarrou-o
pelas orelhas e bateu com a cara do marginal na mesa, uma, duas, três
vezes. Pegou uma perna da cadeira quebrada e a enfiou de través embaixo
da garganta. Dobrou os cotovelos em volta de cada ponta exposta e juntou
as mãos. Testou o aperto e contraiu os ombros. Puxou forte, uma vez, e
quebrou o pescoço de Fowler contra a perna da cadeira com uma única
mastigação ruidosa.
Pegou ambos os rifles, a Glock e a chave da algema. Saiu pela porta e
deu a volta para os fundos da cabana. Direto para as árvores. Colocou a
Glock no bolso. Pegou a algema do pulso. Um rifle em cada mão. Respirou
fundo. Apesar da descarga de adrenalina, estava morrendo de dor. Brandir a
pesada cadeira de madeira transformara o vergão vermelho no seu pulso
numa ferida. Levou o ferimento à boca e chupou. Abotoou o punho da
manga da camisa por cima.
Então ouviu um helicóptero. A batedeira grave ao longe de uma
pesada máquina de rotores gêmeos, um Boeing, um Sea Knight ou um
Chinook, distante, a sudeste. Pensou: Na noite passada Borken falou em
aproximadamente oito fuzileiros navais. Eles só conseguiram oito
fuzileiros, ele revelou. Os fuzileiros navais usam Sea Knights. Ele pensou:
Vão fazer uma investida frontal. As paredes revestidas de Holly surgiram
como um relâmpago na sua mente e ele começou a correr pelas árvores.
Conseguiu chegar até o baluarte. O barulho do helicóptero ficou mais
alto. Ele arriscou sair para o caminho cheio de pedras. Era um Chinook.
Não um Sea Knight. Marcações de busca e resgate, e não Corpo de
Fuzileiros Navais. Seguia a estrada do sudeste, de um quilômetro e meio de
distância, a uma altura de trinta metros, usando a sua violenta corrente de ar
descendente para apartar a folhagem circundante e ajudar na busca. Parecia
lento e pesado, suspenso de nariz para baixo no ar, guinando ligeiramente
de um lado a outro conforme se aproximava. Reacher estimou que ele
deveria estar muito perto de Yorke.
Então lançou os olhos na clareira e viu um sujeito, a quarenta metros
de distância. Um soldadinho, farda de camuflagem. Um Stinger no ombro.
Ele virou e apontou pela tosca mira aberta. Reacher o viu travar no alvo. O
sujeito se estabilizou e se firmou com os pés separados. A mão tateando
atrás do ativador. O sensor infravermelho do míssil se acendeu. Reacher
esperou que o IAI suspendesse o lançamento. Nada. O míssil começou a
esbravejar agudamente dentro do tubo de lançamento. Estava travado no
calor dos motores do Chinook. O dedo do sujeito pressionou o gatilho.
Reacher largou o rifle da mão esquerda. Lançou o outro para cima e
desativou a trava de segurança com o polegar, conforme as regras. Deu um
passo para a sua esquerda e apoiou o ombro numa árvore. Apontou para a
cabeça do sujeito e disparou.
Mas o sujeito atirou primeiro. Uma fração de segundo antes de
Reacher matá-lo, ele puxou o gatilho do Stinger. Duas coisas aconteceram.
O motor do Stinger foi acionado. Expelido ao longo do seu tubo. Aí o
sujeito perdeu os miolos. O impacto o atirou para um lado, e o lançador
acertou a cauda do míssil na saída do tubo e o fez titubear. Ele explodiu
para fora e se estabilizou com a cauda para baixo no ar, como um dardo de
arremesso, com o impulso do seu lançamento amortecido e praticamente
imóvel.
Então se endireitou. Reacher observou horrorizado quando ele fez
exatamente o que foi projetado para fazer. As suas oito pequenas asas
saltaram para fora. Pairou quase verticalmente, até travar no helicóptero
novamente. Então o seu foguete de segundo estágio se ativou e disparou
para o céu. Antes mesmo do corpo do sujeito cair no chão, ele já estava na
cola do Chinook a mil e seiscentos quilômetros por hora.
O Chinook seguia ruidosa e firmemente para o noroeste. Um
quilômetro e meio de distância. Seguindo a estrada. A estrada passava bem
no meio da cidade. Entre os prédios abandonados. Na esquina sudeste, o
primeiro prédio pelo qual ele passou foi o do tribunal. O Chinook se
aproximava a cento e trinta por hora. O Stinger ia se chocar com ele a mil e
seiscentos por hora.
Um quilômetro e meio a mil e seiscentos por hora. Um milésimo de
uma hora. Três segundos e meio. Para Reacher, parecia que uma vida se
passara. Ele acompanhou o míssil em todo o seu percurso. Uma arma
maravilhosa, brutal. Um propósito simples, infalível. Projetado para
reconhecer a assinatura térmica exata do escapamento do avião, projetado
para segui-lo até que chegasse lá ou ficasse sem combustível. Uma missão
simples de três segundos e meio.
O piloto do Chinook imediatamente percebeu o míssil. Mas
desperdiçou o primeiro segundo do seu voo imobilizado. Não horrorizado,
sem pânico, somente com a simples descrença de que um míssil de busca
térmica tinha sido disparado contra ele de uma pequena clareira no meio de
uma floresta em Montana. Então ele se lembrou do que aprendera no
treinamento. Fuja e evite. Fuja do míssil, evite cair em povoações lá
embaixo. Reacher o viu lançar o nariz para baixo e a cauda para cima. O
grande Chinook rodou para longe e vomitou um vasto leque de vapor de
escape na atmosfera. Então a cauda sacudiu para outro lado, os motores
berraram, a fumaça superaquecida foi borrifada formando outro arco
aleatório. O míssil fez pacientemente a primeira curva. Estreitou o raio. O
Chinook caiu devagar e logo subiu violentamente no ar. Moveu-se em
espiral para cima e para longe da cidade. O míssil virou e seguiu o segundo
arco. Chegou onde o calor havia estado meio segundo antes. Não pôde
encontrá-lo. Fez um círculo indolente completo diretamente abaixo do
helicóptero. Ecoou na radical manobra e começou a subir com uma nova
espiral implacável.
O piloto ganhou um segundo extra, mas apenas isso. O Stinger o
acertou em cheio na sua subida desesperada. Seguiu o rastro térmico de
ponta a ponta até o próprio motor de estibordo. Explodiu com toda potência
contra a nacela de escape.
Três quilos de um poderoso explosivo contra uma aeronave de dez
toneladas, mas o Stinger sempre ganha. Reacher viu o motor de estibordo
desintegrar-se, depois a caixa do rotor traseiro estourou. Os fragmentos da
transmissão explodiram caoticamente e o rotor se desengatou e girou para
longe em terrível câmera lenta. O Chinook parou no ar e caiu de cauda,
freado apenas pelo rotor dianteiro, estridente, e lentamente girou para a
terra, como um barco naufragado afundando no mar.

Holly ouviu o helicóptero. Ouviu o estrondo das hélices pulsando


fracamente pelas paredes. Ouviu-o ficar mais forte. Então vieram a
explosão e o guincho do rotor dianteiro sugando o ar e... não ouviu mais
nada.
Enfiou o cotovelo na muleta e mancou até a partição diagonal. Tirando
o colchão, o quarto estava completamente vazio. Portanto, a busca ia ter que
começar novamente no banheiro.

— Apenas uma pergunta: — começou Webster — Por quanto tempo a


gente vai poder encobrir isso?
O general Johnson não disse nada em resposta. Tampouco o seu
assessor. Webster olhou para Garber. Garber parecia melancólico.
— Não por muito tempo — ele respondeu.
— Quanto tempo? — Webster perguntou exigindo uma resposta. —
Um dia? Uma hora?
— Seis horas — afirmou Garber.
— Por quê? — McGrath perguntou.
— Procedimento padrão — explicou Garber. — Eles vão investigar a
queda, obviamente. Normalmente mandam outro helicóptero. Mas não se
houver suspeita de incêndio no chão. Portanto, virão pela estrada de
Malmstrom. Seis horas.
Webster balançou a cabeça afirmativamente. Voltou-se então para
Johnson.
— Pode atrasar eles, general?
Johnson balançou a cabeça negativamente.
— Creio que não — ele disse. A voz estava baixa e resignada. — Eles
apenas perderam um Chinook. Só duas pessoas tripulando. Não posso ligar
pra lá e dizer: “Façam-me um favor, não investiguem isso”. Posso tentar,
suponho, e até poderiam concordar no início, mas vazaria e logo a gente
estaria de volta onde começamos. Isso nos daria, no máximo, mais uma
hora.
Webster balançou a cabeça afirmativamente.
— Sete horas, seis horas, qual é a diferença? — ele ponderou.
Ninguém respondeu.
— Temos que agir agora — disse McGrath. — Esqueça a Casa Branca.
Não temos mais tempo a perder. Vamos fazer algo agora mesmo, pessoal.
Seis horas contando de agora; a situação vai sair totalmente de controle.
Estamos a um fio de perder a garota.
Seis horas são trezentos e sessenta minutos. Desperdiçaram os dois
primeiros sentados em silêncio. Johnson ficou olhando para o nada. Webster
tamborilou os dedos na mesa. Garber fitou McGrath, uma expressão azeda
na cara. McGrath fitava o mapa. Milosevic e Brogan ficaram de pé, em
silêncio, segurando os pacotes marrons com o café da manhã e os copos de
isopor.
— Olha o café. Alguém quer? — perguntou Brogan.
Garber fez sinal para ele se aproximar.
— Coma e planeje — ele disse.
— O mapa — Johnson pediu.
McGrath fez o mapa deslizar pela mesa. Todos se sentaram para a
frente. De volta à ação. Faltavam trezentos e cinquenta e oito minutos.
— O desfiladeiro fica a aproximadamente seis quilômetros ao norte de
nós — disse o assessor. — A gente tem apenas oito Fuzileiros Navais em
um VBL-25.
— O tanque? — McGrath perguntou.
O assessor balançou a cabeça negativamente.
— É um Veículo Blindado Leve — ele disse. — VBL. Oito rodas, sem
lagartas.
— Blindado? — Webster perguntou.
— Com certeza — o assessor respondeu. — Podem dirigi-lo o
caminho inteiro até Yorke.
— Se conseguir atravessar o desfiladeiro — disse Garber.
Johnson balançou a cabeça afirmativamente.
— Esta é a grande questão — ele refletiu. — Vamos ter que dar uma
olhada.

O VBL parecia exatamente com um tanque, segundo a ligeira olhada como


civil de McGrath, só que tinha oito rodas, em vez de lagartas. Possuía uma
sólida blindagem inclinada e havia uma torre à prova de balas e uma
rotatória com uma metralhadora. O motorista se sentava na frente e o
comandante ia na torre. Na traseira, duas fileiras com três fuzileiros
sentados de costas um para o outro, de frente para portinholas de armas.
Cada portinhola tinha o seu próprio periscópio. McGrath podia visualizar o
veículo troando para uma batalha, invulnerável, armas se alçando por
aquelas portinholas. Para baixo no desfiladeiro, para cima do outro lado, ao
longo da estrada de Yorke até o tribunal. Ele puxou Webster para um lado e
alertou insistentemente:
— A gente não falou nada — ele disse — sobre a dinamite nas
paredes.
— E nem vamos — disse Webster calmamente. — O velhote piraria.
Ele está perto de desabar a qualquer momento. Vou falar com os fuzileiros
navais diretamente. Vão entrar lá. Vão ter que cuidar disso. Não faz
nenhuma diferença se Johnson souber com antecedência ou não.
McGrath interceptou Johnson, e Webster correu para o VBL. McGrath
viu o comandante dos fuzileiros inclinando-se da torre blindada. Viu-o
balançar a cabeça e fazer caretas enquanto Webster falava. Então o assessor
do general ligou o Chevrolet do exército. Johnson e Garber sentaram-se na
frente com ele. McGrath pulou na traseira. Brogan e Milosevic se
espremeram para dentro.
Webster terminou e voltou correndo para o Chevy. Entrou ao lado de
Milosevic. O VBL acionou o seu poderoso motor a diesel e soltou uma
rajada de fumaça preta. Então engatou a marcha e seguiu ruidosamente do
norte. O Chevy acelerou atrás dele.

Seis quilômetros ao norte, alcançaram o cume de uma colina e entraram


numa curva. Reduziram a velocidade e pararam subitamente numa escarpa
que os protegia do vento. O comandante dos fuzileiros desceu com um salto
da torre e correu para o norte na estrada. Webster, Johnson e McGrath
saíram e correram atrás dele. Fizeram uma pausa em conjunto naquele
ponto da face da rocha e se arrastaram em volta da curva. Passaram os olhos
pelo desfiladeiro lá embaixo. Era uma vista intimidante.
O blindado seguia da esquerda para a direita na frente deles, mais ou
menos próximo. E não era apenas um escudo. Era um escudo e uma
garantia. A superfície da terra havia se rachado por inteiro, e uma placa já
caíra lá embaixo. Como rachaduras numa velha rodovia asfaltada onde um
carro passa e aumenta centímetros da fenda. Expandido à dimensão
geológica, esses centímetros formavam uma disparidade de quinze metros.
Onde a terra se rachara e caíra, as bordas haviam se subdividido em
grandes seixos rolados. A fricção das geleiras havia derrubado esses seixos
rolados para o sul. O gelo e o deslocamento das camadas do solo, as
intempéries, no decorrer de mais de um milhão de anos, tinham revolvido a
fenda e a transformado numa vala. Cortara as placas rochosas até onde
ficavam sólidas novamente. Em alguns lugares, tinha esculpido uma largura
de quase mil metros. Em outros lugares, as fendas mais resistentes da rocha
tinham mantido a brecha em vinte metros.
Então as raízes de mil gerações de árvores e a água congelada dos
invernos tinham corroído as bordas até construírem uma descida irregular e
íngreme ao fundo, e uma subida irregular e íngreme atrás, subindo o lado
norte até o topo, quinze metros mais alto do que o ponto de partida. Havia
árvores atrofiadas, vegetação rasteira entrelaçada e massas rochosas
escorregadias. A própria estrada foi levantada progressivamente em
cavaletes de contenção de concreto e subira suavemente por uma ponte.
Então mais cavaletes de contenção a depositavam no chão nivelado ao
norte, e ela serpenteava para longe pela floresta nas montanhas.
Mas a ponte fora explodida. As cargas tinham sido explodidas contra
os dois cavaletes centrais. Uma seção de seis metros do vão central tinha
caído trinta metros na vala. Os quatro homens na escarpa do afloramento
podiam ver fragmentos estilhaçados da estrada no fundo do desfiladeiro.
— O que você acha? — Johnson perguntava insistentemente.
O comandante dos fuzileiros navais varreu a área rapidamente com o
seu binóculo. Para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo,
examinando o terreno com precisão.
— Acho que estamos na merda, senhor — ele disse.
— Você não consegue atravessar? — Johnson lhe perguntou.
O sujeito abaixou o binóculo e balançou a cabeça negativamente.
— Nem que a vaca tussa — ele afirmou.
Deu um passo para a frente, ombro a ombro com o general, e assim
Johnson pôde compartilhar a mesma linha de visão. Começou a apontar e a
falar rapidamente:
— Podemos descer até o fundo — ele disse. — A gente pode entrar aí
mesmo, onde essa massa rochosa escorregadia nos dá uma descida
razoável. Mas subir do outro lado é que é o problema, senhor. O VBL não
pode subir muito mais do que quarenta e cinco graus. A maior parte da face
norte parece muito mais íngreme do que isso. Em alguns lugares é
praticamente vertical. Qualquer encosta é coberta de vegetação. E
derrubaram árvores. Veja lá, senhor.
Ele apontou para uma área de mata nativa na encosta em frente. As
árvores tinham sido derrubadas e jaziam com os troncos cortados apontando
para o sul.
— Abatises — o fuzileiro disse. — O veículo vai empacar neles. Sem
dúvida. Subindo o morro, lentamente, essas coisas parariam um tanque. Se
a gente entrar lá, vamos ficar presos no fosso, com toda certeza.
— Então o que fazemos? — Johnson perguntou.
O oficial encolheu os ombros.
— Traga alguns engenheiros para cá — ele pediu. — A fenda que
explodiram tem apenas cerca de seis metros de largura. A gente pode lançar
uma ponte sobre ela.
— Quanto tempo isto vai levar? — Webster perguntou.
O fuzileiro deu de ombros novamente.
— Até bem aqui em cima? Seis horas. Talvez oito.
— É tempo demais — Webster disse.
Então o radiorreceptor no bolso de McGrath começou a crepitar.
39

REACHER ESTAVA ESCONDIDO NA MATA, preocupado com os cães.


Era a única coisa que o deixava inseguro. Com humanos, ele resolvia a
parada. Mas com cachorros... tinha muito pouca experiência.
Estava embrenhado nas árvores, ao norte do baluarte, ao sul do estande
de tiro. Tinha ouvido o Chinook bater no chão, a um quilômetro e meio de
distância. Caíra de cauda, esmigalhando-se e rasgando na encosta
arborizada. Parecera ter deslizado de lado no ar e errado o tribunal nuns
vinte metros. Nenhuma explosão. Não do tribunal ou do próprio
helicóptero. Nenhum som de tanques de combustível indo pelos ares.
Reacher estava razoavelmente otimista em relação à tripulação. Imaginava
que as árvores poderiam ter amortecido o impacto para os militares.
Conhecia tripulações de helicóptero que haviam sobrevivido a coisas
piores.
Tinha um rifle M-16 na mão e uma Glock no bolso. A Glock estava
totalmente carregada. Dezessete balas. O M-16 tinha pente curto. Vinte
cartuchos, menos aquele que tinha matado o sujeito com o míssil. Já o
segundo M-16 tinha pente longo. Carga com trinta. Mas estava escondido
nas árvores. Reacher tinha uma regra: escolha a arma que você tem certeza
de que está funcionando perfeitamente.
Ele sentiu instintivamente que o foco da atenção ficaria na direção
sudeste. Era onde Holly estava sendo mantida e onde o Chinook tinha
pousado. Onde os milicianos estariam se concentrando. Sentiu que o
pessoal estaria se voltando para o sudeste, apreensivamente, encarando o
resto dos Estados Unidos, esperando. Portanto, retornou e se dirigiu para o
noroeste.
Moveu-se cautelosamente. O maior contingente do inimigo estava em
outro lugar, mas sabia que havia pelotões atrás dele. Sabia que já tinham
descoberto o corpo de Fowler. Havia visto duas patrulhas distintas fazendo
busca no matagal. Seis homens cada, armados até os dentes abrindo
caminho pela vegetação rasteira, procurando. Não seria difícil se esquivar
deles. Mas os cachorros dariam trabalho de despistar. Por isso estava
preocupado. Por isso se movia cautelosamente.
Ficou no meio das árvores e contornou a ponta ocidental do estande de
tiro. Seguiu a trilha de volta ao leste, rodeando o campo de exercícios.
Cinquenta metros ao norte, virou novamente e seguiu paralelo à estrada até
as minas. Permaneceu entre as árvores, mas decidiu que precisava correr.
Usou o tempo livre para começar a dispor de algumas prioridades. Na sua
escala mental de tempo, imaginou que tinha, talvez, três horas. A queda do
Chinook ia provocar algum tipo de reação violenta. Sem dúvida nenhuma.
Mas em todos os seus anos de serviço nunca ficou sabendo de algo que
acontecesse em menos de três horas. Portanto, tinha três horas e muito chão
pela frente.
Reduziu a velocidade para uma caminhada rápida quando o chão
rochoso começou a se elevar. Fez um amplo círculo ascendente para o oeste
e cortou caminho até a borda do vale onde as entradas das minas se
encontravam. Ouviu motores a diesel trabalhando. Curvou-se e engatinhou
até o topo de uma rocha. Olhou ao redor e para baixo.
Estava a meia distância do topo da encosta circundando o vale. Ela
parecia mais ou menos seguir para o leste através do perímetro. As portas
de toras do galpão mais afastado estavam abertas. Quatro caminhões de
unidade de mísseis jaziam estacionados no chão de cascalho. Os quatro com
as prateleiras de armas na traseira. O transportador de tropa ainda estava no
interior.
Havia um grupo de homens no vale. Formavam um círculo rudimentar
em volta da frota de caminhões. Reacher contou oito sujeitos. Fardados,
portando rifles, braços e pernas tensas. O que a mulher da cozinha tinha
dito? As minas eram interditadas. A não ser para o pessoal que Borken
confiava. Reacher os observou. Oito tenentes de confiança, fingindo
razoavelmente estar de sentinela.
Ele os observou durante uns dois minutos. Deslizou o rifle até o
ombro. Estava a menos de cem metros de distância. Podia ouvir os ruídos
do cascalho ao ser pisoteado conforme as sentinelas rondavam. Clicou o
seletor para a posição de tiro único. Tinha dezenove cartuchos no pente e
precisava dar no mínimo oito tiros. Tinha que ser cauteloso com a munição.
O M-16 é um bom rifle. Fácil de usar, pouca manutenção. Fácil de
apontar. A asa de transporte tem um topo entalhado que se alinha com uma
ranhura idêntica na mira dianteira. A cem metros, você mira com os olhos
meio fechados pela ranhura da asa e a deixa se fundir com a ranhura
dianteira, e acerta no que vê de fato. Reacher apoiou-se sobre uma rocha e
mirou o primeiro alvo. Praticou a varredura leve que o levaria para o
segundo. E o terceiro. Treinou a sequência completa de oito tiros. Não
queria que o seu cotovelo ficasse preso em algum ponto no meio.
Voltou ao primeiro alvo. Deu um tempo e atirou. O som do tiro ecoou
pelas montanhas. O pneu dianteiro direito do primeiro caminhão explodiu.
Mirou no segundo pneu dianteiro. Atirou novamente. O caminhão caiu para
a frente como um touro atordoado caindo de joelhos.
Continuou atirando com firmeza. Tinha dado cinco tiros e acertado
cinco pneus antes que alguém reagisse. Quando deu o sexto, viu pelo canto
dos olhos as sentinelas correndo atrás de proteção. Algumas apenas se
jogavam no chão. Outras corriam para o galpão. Ele deu o sétimo tiro. Fez
uma pausa antes do oitavo. O pneu mais distante foi mais difícil de acertar.
O ângulo era oblíquo. A lateral estava indisponível para ele. Ia ter que atirar
nas bandas de rodagem. Era possível que o cartucho pudesse desviar.
Atirou. Acertou. O pneu estourou. A frente do último caminhão despencou.
A sentinela mais próxima ainda estava de pé. Não se dirigindo ao
galpão. Apenas imóvel, de olho na rocha na qual Reacher usava como
cobertura. O cara levantou o rifle. Era também um M-16. Câmara longa,
trinta cartuchos. O sujeito ficou parado lá, mirando a rocha. Um homem
valente. Ou um idiota. Reacher agachou-se e esperou. O sujeito atirou. A
arma estava no automático. Ele deu uma rajada de três. Três tiros dentro de
um quinto de segundo. Bateram nas árvores, cinco metros acima da cabeça
de Reacher, arrancando pequenos galhos e folhas, que flutuaram e
aterrissaram perto dele. O sujeito correu uns dez metros para mais perto.
Atirou novamente. Mais três cartuchos. Bem longe, à esquerda de Reacher.
Ele ouviu o pipocar das balas e o estrondo quando acertaram as árvores
antes de ouvir a rajada da boca. Balas que viajam mais rápido do que o som
fazem isso. Você ouve tudo em ordem inversa. A bala chega ao alvo antes
do som do tiro.
Reacher tinha decisões a tomar. Ia deixar o sujeito chegar perto até que
ponto? Daria um tiro de aviso? A rajada seguinte foi mais próxima. Baixa,
porém mais perto. Não mais do que dois metros de distância. Reacher então
decidiu: nem um milímetro mais perto e sem essa de tiro de aviso. O
carinha estava todo animado. Não adiantava tentar um tiro de aviso. O
idiota não ia sossegar o facho.
Deitou de lado. Endireitou as pernas e saiu da base da rocha. Atirou
uma vez e acertou no peito. Ele desabou no cascalho. O rifle voou para a
direita. Reacher ficou onde estava. Observando cuidadosamente. O sujeito
ainda estava vivo. Por isso Reacher atirou novamente. Acertou no topo da
cabeça. Seria mais gentil não deixá-lo com um ferimento escancarado no
peito durante os últimos dez minutos da sua vida.
Os ecos da breve escaramuça morreram no silêncio da montanha e
logo o ar ficou parado. Os outros sete sujeitos sumiram de vista. Todos os
caminhões ficaram com os focinhos para baixo nos aros dianteiros.
Incapacitados. Talvez pudessem ser dirigidos para fora do vale, mas a
primeira curva em U da montanha ia arrancar as rodas fora. Os caminhões
estavam neutralizados, sem dúvida nenhuma.
Reacher rastejou dez metros para trás e se levantou entre as árvores.
Correu a passo lento encosta abaixo e voltou na direção do baluarte.
Dezessete balas na Glock, nove no rifle. Progresso, a um alto preço.

Os cães o encontraram na metade do caminho de volta. Dois animais de


grande porte. Pastores alemães. Reacher e os pastores se perceberam
simultaneamente. Trotavam com aquela espécie de energia infinita que os
grandes cachorros demonstram. Passadas bem largas e longas, expressão
ansiosa, babando com a boca escancarada. Pararam de repente com as
pernas dianteiras rijas e trocaram de direção com um único passo largo e
gracioso. A trinta metros de distância. Então vinte. Depois dez. Aceleraram.
Nova energia nos movimentos. Rosnados subindo pela garganta.
Seres humanos, Reacher sabia que eram previsíveis. Cachorros eram
diferentes. Humanos têm liberdade de escolha. Se um homem ou uma
mulher corresse rosnando para cima dele, fazia isso porque queria. Merecia
o que lhe acontecesse. A sua reação era problema deles. Mas cachorros
eram diferentes. Nenhum livre-arbítrio. Facilmente enganados. Isso causava
um problema ético. Atirar num ser porque algum idiota o induziu a fazer
algo imprudente não era o tipo de coisa que Reacher gostava de fazer.
Ele deixou a Glock no bolso. O rifle seria melhor. Era cerca de oitenta
centímetros mais longo do que a pistola. Uns sessenta centímetros a mais
entre ele e os animais pareciam uma boa ideia. Os cachorros pararam de
repente na frente dele. Os pelos da nuca eriçados. Os pelos das costas
eriçados, seguindo a linha da coluna. Agacharam-se, as patas dianteiras
abertas obliquamente, o pescoço esticado para a frente, rosnando bem alto.
Tinham dentes amarelados. Uma grande quantidade deles. Olhos castanhos.
Reacher podia ver pestanas escuras e finas, como de uma menina.
Um na frente do outro. Hierarquia da matilha. Sabia que os cachorros
tinham uma hierarquia social, com certeza. Dois cachorros, um deles tinha
que ser superior ao outro. Como humanos. Não sabia como os cachorros
resolviam isso entre si. Fazendo pose, talvez. Talvez pelo olfato. Talvez
lutando. Encarou o cachorro líder. Olhou no fundo dos seus olhos. Há um
tempo tinha ouvido falar sobre comportamento canino. Diziam: Nunca
demonstre medo. Faça o cachorro desviar o olhar. Não o deixe saber que
você está com medo. Reacher não estava com medo. Estava com um M-16
na mão. A única coisa que o preocupava era ter que usá-lo.
Encarou silenciosamente o cachorro, como costumava fazer com
algum militarzinho que tinha virado bandido. Um olhar duro e silencioso,
como uma força física, como uma pressão fria, esmagadora. Olhar cortante,
gélido, fixo. Havia funcionado cem vezes com pessoas. Agora estava
funcionando com o líder dos animais.
O cachorro era apenas parcialmente treinado. Reacher conseguia
perceber isso. O bicho podia dar uma de feroz, mas na hora do vamos ver
caía fora. Não tinha sido treinado para ignorar a ação da sua vítima. O cão
ficou encarando-o, olho no olho, mas recuando aos poucos, como se o
brilho do olhar emitisse um calor escaldante em direção à sua testa estreita.
Reacher aumentou a intensidade. Estreitou os olhos e mostrou os dentes.
Fez cara de mau como um sujeito durão num filme. A cabeça do cachorro
baixou. Os olhos se voltaram para cima para manter o contato. O rabo ficou
entre as pernas.
— Sen-ta! — Reacher ordenou. Falou pausadamente, mas com
firmeza. Muita ênfase no ta. O cachorro moveu-se automaticamente.
Arrastou as pernas traseiras para dentro e sentou-se. O outro seguiu o
exemplo, como uma sombra. Sentaram-se ombro a ombro e ergueram os
olhos para ele.
— No chão — Reacher disse.
Os cachorros não se moveram. Apenas ficaram sentados, olhando para
ele, confusos. Talvez a expressão incorreta. Não era a ordem a que estavam
acostumados.
— Deita! — Reacher ordenou.
Eles fizeram as suas patas dianteiras deslizar para a frente e baixaram a
barriga no chão da floresta. Levantaram os olhos para ele.
— Quietos!
Deu uma olhada firme neles, para deixar claro que era sério, e se
dirigiu para o sul. Forçou-se a andar devagar. Cinco metros entre as árvores,
ele se voltou para conferir. Os cachorros ainda estavam deitados. Pescoço
voltado para ele, observando-o partir.
— Quietos! — exclamou novamente.
Ficaram. Ele se foi.

Pôde ouvir vozes no baluarte. O som de uma multidão tentando ser


acalmada. Ouviu quando ainda estava ao norte do campo de exercícios.
Contornou a área nas árvores e andou em volta da ponta mais distante do
estande de tiro. Atravessou as árvores atrás do refeitório. Em frente da porta
da cozinha. Fez um círculo longo no mato atrás dos prédios, até que chegou
a um ângulo. Arrastou-se para a frente para dar uma olhada.
Havia, talvez, trinta pessoas no baluarte. Formando um grupo
compacto. Avançavam lentamente como um cardume. Todos homens, todos
com farda de camuflagem, todos fortemente armados. Rifles,
metralhadoras, lançadores de granada, bolsos transbordando de pentes
sobressalentes. A multidão se movia com a maré. Ombros se tocavam e se
separavam. Reacher vislumbrou Beau Borken no centro da massa. Ele
segurava um pequeno radiotransmissor preto. Reacher o reconheceu. Era o
do Jackson. Borken o tinha tirado do bolso de Fowler. Segurava-o contra a
orelha. Olhando para o nada como se tivesse acabado de ligá-lo e estivesse
esperando uma resposta.
40

MCGRATH PEGOU O RÁDIO DO BOLSO. ABRIU e olhou fixamente


para o aparelho. Crepitava alto na sua mão. Webster deu um passo para a
frente e o tomou dele. Voltou para a cobertura da face da rocha e apertou o
botão.
— Jackson? — ele tentou contato. — Aqui é Harland Webster.
McGrath e Johnson atropelaram-se para cima dele. Os três homens se
agacharam contra a parede de rocha. Webster afastou a unidade três
centímetros da orelha para que os outros dois pudessem escutar também. Na
cobertura da rocha, no silêncio das montanhas, podiam ouvi-lo crepitar,
assobiar e a respiração rápida de uma pessoa na outra ponta. Então ouviram
uma voz:
— Harland Webster? — a voz disse. — Ora, ora, o próprio
mandachuva.
— Jackson? — Webster perguntou novamente.
— Não — a voz disse. — Jackson foi pro brejo.
Webster lançou os olhos para McGrath.
— Então quem é? — ele perguntou.
— Beau Borken — a voz disse. — E desde hoje suponho que eu seja o
presidente Borken. Presidente dos Estados Livres da América. Mas fique à
vontade para falar sem formalidades.
— Onde está o Jackson? — Webster perguntou.
Houve uma pausa. Nada a ouvir, exceto o som eletrônico fraco da
tecnologia de telecomunicações do FBI. Satélites e micro-ondas.
— Onde está meu homem? — Webster perguntou impaciente.
— Morto — Borken disse simplesmente.
Webster lançou os olhos para McGrath pela segunda vez.
— Como? — ele perguntou.
— Simplesmente, puf, morreu — zombou Borken. — Um tanto quanto
rápido, de fato.
— Ele estava doente? — Webster perguntou.
Houve outra pausa. Então se ouviu o som de risada. Um som alto e
agudo. Um riso estrepitoso e agudo que sobrecarregou o fone de ouvido de
Webster se distorceu e ricocheteou na parede rochosa.
— Não, não estava doente, Webster — disse Borken. — Ele estava
muito saudável, pelo menos até os últimos dez minutos de vida.
— O que você fez com ele? — Webster perguntou.
— A mesma coisa que vou fazer com a filhinha do general —
ameaçou Borken. — Escute, pois vou dizer os detalhes exatos. Você tem
que prestar atenção, porque tem que saber com o que está lidando. Somos
sérios aqui. Não estamos brincando, você me entende? Tá prestando
atenção?
Johnson se aproximou mais. Pálido e suando.
— Seus filhos da puta dementes! — ele gritou.
— Quem está falando aí? — Borken perguntou. — É o próprio
general?
— O general Johnson — Webster ratificou.
Ouviu-se uma risadinha dissimulada no rádio. Apenas um som curto,
de satisfação.
— Casa cheia, hein — brincou Borken. — O diretor do FBI e o chefe
do Estado-Maior. Estamos lisonjeados, acredite-me. Mas suponho que o
nascimento de uma nova nação não mereça nada menos.
— O que você quer? — Webster perguntou.
— Na verdade, a gente crucificou o cara — Borken disse. —
Encontramos duas árvores com um metro entre uma e outra e pregamos ele.
E vamos fazer isso com a tua filha, general, se você sair da linha. Ah, e a
gente também cortou o saco dele fora. Ele suplicou e berrou por clemência,
mas fizemos de qualquer maneira. Não podemos fazer isso com a sua filha,
já que é uma mulher, mas a gente encontra algo equivalente, sacou o lance?
Você acha que ela vai gritar e suplicar, general? Você conhece ela melhor do
que eu. Pessoalmente, estou apostando que vai. Ela se julga um osso duro
de roer, mas quando avistar aquela lâmina chegando perto vai mudar a
ladainha rapidinho, tenho certeza disso.
Johnson ficou mais branco ainda. Todo o seu sangue secou. Caiu para
trás e se encostou com o cóccix pesadamente contra a rocha. A boca se
mexia sem produzir um som sequer.
— Que porra vocês querem, seus filhos da puta? — Webster gritou.
Fez-se outro silêncio. Então a voz voltou, tranquila e firme:
— Quero que você pare de gritar. Quero que peça desculpas por ter
gritado comigo. Quero que você peça desculpas por ter me xingado. Sou o
presidente dos Estados Livres e mereço alguma cortesia e deferência,
concorda?
A sua voz estava tranquila, e McGrath ouviu claramente. Olhou para
Webster em pânico. Estavam quase perdendo, antes mesmo de começar. A
primeira regra era negociar. Mantê-los falando e, gradualmente, ficar na
vantagem. Estabelecer o domínio. Teoria de cerco clássica. Mas começar
pedindo desculpas por gritar era o mesmo que dar um beijo de adeus a
qualquer esperança de domínio. Isso era o mesmo que dar a patinha,
obediente como um cão. Desse ponto em diante, você virava joguete nas
mãos deles. McGrath balançou a cabeça urgentemente. Webster balançou a
cabeça em resposta. Não disse nada. Apenas ficou segurando o rádio, sem
falar. Ele sabia como proceder. Já havia passado por essa situação. Várias
vezes. Conhecia o protocolo. Agora, o primeiro a falar seria o mais fraco. E
não ia ser ele. Ele e McGrath fitaram o chão e esperaram.
— Você ainda está aí? — Borken perguntou.
Webster continuou a olhar para baixo. Sem dizer uma palavra.
— Você está aí? — Borken perguntou novamente.
— O que tem em mente, Beau? — Webster perguntou, tentando
manter a calma.
Ouviu-se uma expiração zangada pelo ar.
— Você cortou a minha linha — disse Borken. — Quero que seja
restaurada.
— Não, não fizemos isso — Webster disse. — O seu telefone não está
funcionando?
— A minha linha de fax — disse Borken. — Não consegui nenhuma
resposta.
— Que fax? — Webster perguntou.
— Não tente me enrolar! — Borken avisou. — Sei que você cortou a
linha. Quero que seja consertada.
Webster piscou para McGrath.
— Certo — ele disse. — A gente pode fazer isso. Mas você tem que
fazer algo para nós primeiro.
— O quê? — Borken perguntou.
— Holly — Webster disse. — Leve-a para a ponte e deixe-a lá.
Fez-se outro silêncio. Então a risada começou novamente. Alta e
estridente.
— Sem chance — Borken devolveu. — E nada de acordo.
Webster meneou a cabeça. Baixou a voz. Parecia o homem mais
razoável da Terra.
— Escute, Sr. Borken — ele disse —, se não pudermos negociar, como
a gente vai conseguir ajudar um ao outro?
Outro silêncio. McGrath fitou Webster. A próxima resposta seria
crucial. Ganhar ou perder.
— Escute, Webster — Borken disse. — Nada de acordo. Se não fizer
exatamente o que eu mandar, Holly vai pro tronco. Com muita dor e
sofrimento. Tenho todos os trunfos e não vou fazer nenhum acordo. Está
entendendo?
Os ombros de Webster afundaram. McGrath desviou os olhos.
— Restaure a linha de fax — Borken disse. — Preciso de
comunicações. O mundo deve saber o que a gente está fazendo aqui. Este é
um grande momento da história, Webster. Não serei detido pelos seus
joguinhos estúpidos. O mundo precisa testemunhar os primeiros golpes
sendo desferidos contra a sua tirania.
Webster olhou para o chão com intensidade.
— Esta decisão é muito grande para você sozinho — Borken sugeriu.
— Tem que consultar a Casa Branca. Eles também têm interesse nisso, não
é mesmo?
Apesar de falar pelo rádio portátil minúsculo, a força da voz de Borken
era óbvia. Webster estremecia como se um martelo estivesse batendo contra
a sua orelha. Retraía-se e resfolegava, como se coração e pulmões lutassem
um com o outro por espaço dentro do seu peito.
— Tome a sua decisão — avisou Borken. — Retornarei a ligação em
dois minutos.
O rádio emudeceu. Webster o fitou como se nunca tivesse visto tal
equipamento antes. McGrath se debruçou e apertou o botão de desligar.
— Está bem — ele ponderou. — Ganhamos tempo, certo? Diga a ele
que estamos consertando a linha. Diga-lhe que vai levar uma hora, talvez
duas. Diga que a gente está em contato com a Casa Branca, a ONU, a CNN,
o raio que os parta. Promete qualquer bosta.
— Por que ele está fazendo isto? — Webster perguntou, vagamente. —
Agravando tudo? Ele está fazendo de tudo para forçar a gente a cair
matando em cima dele. Então não temos escolha, certo? É como se quisesse
que a gente fizesse isso. Ele não está nos dando outra escolha. Está nos
cutucando com vara curta.
— Ele está fazendo isso porque é pirado — afirmou McGrath.
— Só pode — disse Webster. — É um maníaco. Se não for assim,
simplesmente não consigo entender por que está tentando chamar tanta
atenção. Ele mesmo disse que já está com a faca e o queijo na mão.
— Vamos esquentar a cabeça com isso mais tarde, chefe — opinou
McGrath. — Neste momento, a gente tem mesmo é que enrolar o marginal.
Webster concordou com a cabeça. Forçou-se a voltar ao problema em
mãos.
— Mas a gente precisa de mais duas horas — disse. — O helicóptero
de resgate de reféns vai demorar pelo menos quatro para chegar aqui.
Talvez cinco, seis.
— Certo, hoje é o dia Quatro de Julho — disse McGrath. — Fala pra
ele que os técnicos da companhia telefônica estão todos de folga. Diga que
a gente pode levar o dia inteiro para achar os caras.
Fitaram um ao outro. Deram uma olhada em Johnson. Ele estava fora
de si. Simplesmente afundado contra a face da rocha, lívido e inerte, quase
sem fôlego. Noventa horas de estresse mortal e fortes emoções o tinham
quebrado de vez. Nesse ponto, o rádio na mão de Webster crepitou
novamente.
— E aí, como a gente fica? — Borken perguntou quando a estática
clareou.
— Tudo bem, fechado — disse Webster. — Vamos consertar a linha.
Mas vai levar algum tempo. Os técnicos estão de folga por causa do feriado.
Houve uma pausa. Então uma risadinha besta.
— O Dia da Independência? — Borken questionou. — Talvez eu
devesse ter escolhido outra data?
Webster não deu nenhuma resposta.
— Quero os seus fuzileiros navais bem à vista — ordenou Borken.
— Que fuzileiros navais? — Webster questionou.
Ouviu-se outro riso curto. Curto e complacente.
— Vocês têm oito fuzileiros navais — disse Borken. — E um
blindado. Temos olheiros por toda parte. A gente estava de olho em vocês.
Do mesmo jeito que vocês estão vigiando a gente com aqueles malditos
aviões. Vocês têm sorte que os Stingers não atiram tão alto, ou teriam mais
que uma porra de helicóptero no chão nessa altura do campeonato.
Webster não deu nenhuma resposta. Simplesmente esquadrinhou o
horizonte. McGrath fazia a mesma coisa, automaticamente, procurando o
reflexo do sol nos binóculos.
— Imagino que você já deve estar perto da ponte — disse Borken. —
Tenho razão?
Webster deu de ombros. McGrath o incitou com um aceno de cabeça.
— Estamos perto da ponte sim — confirmou Webster.
— Quero os fuzileiros navais nela — disse Borken. — Sentados na
borda, formando uma fileirinha arrumadinha. Com o veículo deles atrás. E é
pra já, sacou? Ou vamos crucificar a Holly. A escolha é sua, Webster. Ou
talvez seja a escolha do general. A filha é dele, e os fuzileiros também,
certo?
Johnson então acordou e lançou os olhos para cima. Cinco minutos
mais tarde, os fuzileiros estavam sentados na borda rachada da estrada, pés
pendurados no abismo. O VBL estacionado atrás deles. Webster ainda
estava no sotavento da face rochosa com McGrath e Johnson. O rádio ainda
pressionado contra a orelha. Podia ouvir sons abafados. Como se Borken
tivesse apertado a mão em cima do microfone e estivesse usando um
walkie-talkie. Podia ouvir a voz abafada dele se alternando com respostas
crepitantes. Então sentiu que a mão saiu de cima e a voz voltou novamente,
alta e clara no fone de ouvido.
— Certo, Webster, bom trabalho — disse Borken. — Os nossos
batedores podem ver todos os oito. Portanto, os nossos carabineiros
também. Se eles se mexerem, vão pro saco. Quem mais você tem aí com
você?
Webster fez uma pausa. McGrath balançou a cabeça insistentemente.
— Ué, você não pode ver? — Webster perguntou. — Achei que estava
nos vigiando.
— Não neste momento — Borken estava blefando. — Puxei a minha
gente um pouco para a retaguarda. Para nossas posições defensivas.
— Não tem mais ninguém aqui — Webster disse. — Apenas eu e o
general.
Fez-se outra pausa.
— Certo, vocês dois podem fazer companhia aos fuzileiros navais —
ordenou Borken. — Na ponte. No fim da fila.
Webster esperou um tempão. Com a cara inexpressiva. Então se
levantou e fez sinal com a cabeça para Johnson. O general se levantou
cambaleando e os dois avançaram a pé ao redor da curva. Deixaram
McGrath sozinho, agachado no sotavento da rocha.

McGrath esperou ali dois minutos e rastejou de volta para o sul na direção
do Chevrolet. Garber e o assessor de Johnson estavam na frente e Milosevic
e Brogan atrás. Todos de olho nele.
— O que diabos aconteceu? — Brogan perguntou.
— Estamos atolados na mais profunda merda — McGrath disse.
Dois minutos de explicação apressada e os outros concordaram.
— E agora, como ficamos? — Garber perguntou.
— Vamos resgatar a Holly — instruiu McGrath. — Antes que ele
perceba que a gente está fazendo hora com a cara dele.
— Mas de que jeito? — Brogan perguntou.
McGrath lançou os olhos para ele. E para Milosevic.
— Nós três — ele disse. — No final das contas, é assunto do FBI.
Chame do que quiser: terrorismo, complô, sequestro, é tudo da alçada do
FBI.
— Vamos em frente? — Milosevic perguntou. — Apenas nós três?
Nesse minuto?
— Você tem uma opção melhor? — McGrath indagou. — Se quiser
que algo seja bem feito, faça você mesmo, certo?
Garber estava com o corpo meio virado para trás, esquadrinhando os
três rostos no banco traseiro.
— Então, mãos à obra — ele disse.
McGrath concordou e levantou a mão direita. Com o polegar e os dois
primeiros dedos em destaque.
— Eu sou o polegar — ele começou a explicar. — Entro a leste da
estrada. Brogan, você é o primeiro dedo. Percorra um quilômetro e meio a
oeste da estrada e entre. Milo, você é o segundo dedo. Ande três
quilômetros para oeste e siga para o norte daí. A gente vai se infiltrar
separadamente, com espaço de um quilômetro e meio entre cada um de nós.
Voltamos a nos encontrar na estrada, a menos de um quilômetro e meio
antes da cidade. Entendido?
Brogan fez uma careta. Então balançou a cabeça. Milosevic deu de
ombros. Garber girou os olhos para McGrath, o assessor do general ligou o
Chevy e dirigiu suavemente para o sul. Parou-o novamente depois de uns
trezentos metros, onde a estrada voltava a sair da cobertura rochosa e dava
um acesso aberto para a direita e para a esquerda ao interior da zona rural.
Os três homens do FBI verificaram as suas armas. Cada um tinha um .38
liberado pelo governo no coldre lustroso de ombro de couro marrom.
Tambor cheio, seis tiros, mais outros seis num carregador rápido no bolso.
— Tentem tomar uns dois rifles — McGrath instruiu. — Nada desse
negócio de fazer prisioneiros. Se baterem o olho em alguém, atirem no filho
da puta, falou?
Milosevic tinha que andar mais; portanto, foi o primeiro a partir.
Atravessou a estrada e dirigiu-se rumo a oeste através do mato. Conseguiu
chegar a um pequeno arvoredo e desapareceu. McGrath acendeu um cigarro
e Brogan foi mandado um pouco depois dele. Garber esperou até que
Brogan estivesse nas árvores. Então se voltou para McGrath.
— Não esqueça o que eu falei a você sobre Reacher — pediu. — Não
estou errado a respeito do cara. Ele está do seu lado, acredite.
McGrath deu de ombros e não disse nada. Fumou em silêncio. Abriu a
porta do Chevy e deslizou para fora. Amassou a guimba com o pé e partiu
rumo ao leste, atravessou o acostamento gramado e daí foi para o mato.

McGrath não estava longe da casa dos cinquenta, era um fumante


inveterado, mas em boa forma. Tinha o tipo de constituição de vira-lata que
a idade e o fumo não conseguem prejudicar. Era baixo, um metro e setenta e
cinco de altura, mas robusto. Pesava uns oitenta quilos, composto daquela
chapa dura de músculo que não precisa de nenhuma manutenção e nunca se
desmancha em gordura. Sentia-se um garotão. Nem melhor nem pior. O seu
treinamento do FBI tinha sido há muito tempo, e bem rudimentar em
comparação com o que o pessoal recebia agora. E havia passado com a
maior facilidade. Fisicamente, fora indestrutível. Não era o sujeito mais
rápido da sua classe, mas sem dúvida o que tinha mais resistência. As
corridas de treino durante os primeiros dias em Quantico tinham sido
toscas. Circulava toda hora nas florestas da Virgínia, vencendo obstáculos
naturais. McGrath chegava em terceiro ou quarto lugar toda vez. Mas, se
fossem mandados dar a volta novamente, ele poderia fazer o mesmo tempo
exato, praticamente com a diferença de segundos. Os sujeitos mais rápidos
se matavam do seu lado enquanto ele seguia pesada e implacavelmente
adiante. Então ficavam para trás. Na segunda vez, McGrath chegava em
primeiro. Na terceira, já era o único a conseguir terminar.
Então estava correndo lenta e confortavelmente quando se aproximou
da borda sul do desfiladeiro. Tinha percorrido uns trezentos metros para o
leste, até um ponto onde a encosta era suave. Seguiu diretamente para
baixo, sem pausa. Passos curtos e rígidos contra a inclinação. Era ruim de
apoiar o pé. Escorregou em pequenos trechos de cascalho solto criando
breves desmoronamentos e usou as raízes aparentes das árvores para
diminuir a velocidade. Esquivou-se em volta do aglomerado de rochas no
fundo da trincheira e começou a subir a encosta norte.
Subir era mais difícil. Enfiou a ponta do pé no cascalho como apoio e
se levantou agarrando tufos de mato. Ziguezagueou entre as pequenas
árvores e arbustos, procurando um ponto de impulso. Os quinze metros
extras na borda norte foram uma tortura. Seguiu a trilha para a direita, onde
um pequeno deslizamento de terra tinha criado um caminho reto num
ângulo mais suave. Deslizou e rastejou para cima pela rocha esmigalhada
até o topo.
Esperou no ressalto, onde a terra tinha se dissolvido abaixo da crosta
de raízes. Aguçou bem os ouvidos. Não ouviu nada, exceto o silêncio.
Subiu na borda. Ficou parado lá com o peito contra a terra, cabeça e ombros
expostos, olhando para o norte em território inimigo. Não viu nada. Apenas
as encostas iniciais suaves, depois as colinas, e aí as montanhas gigantescas
se assomando a distância. Céu azul, um mar de árvores, ar puro, silêncio
total. Pensou: Você está muito longe de Chicago, Mack.
À frente dele havia uma faixa de mato onde a rocha antiga estava perto
demais da superfície para que muita coisa pudesse crescer. Depois um
cinturão de árvores, interrompidas no início por afloramentos, ficando mais
densas a distância. Pôde ver a artéria serpenteando nas copas de árvore onde
a estrada devia seguir. Trezentos metros à sua esquerda. Rolou para a grama
e correu para as árvores. Esforçou-se para a esquerda na direção da estrada
e seguiu para o norte na floresta.
Trotou adiante, evitando árvores como um replay em câmera lenta de
um atacante driblando os zagueiros. O mapa estava gravado em sua mente.
Calculou que ainda tinha cinco quilômetros pela frente. Cinco quilômetros
de cooper, talvez quarenta e cinco, cinquenta minutos. O chão subia suave
mente sob os seus pés. Cada quarto ou quinto passo largo, os seus pés
batiam no chão um pouco antes do que deveriam conforme o declive se
erguia nas colinas. Tropeçou algumas vezes em raízes. Uma vez, esbarrou
num tronco de pinheiro. Mas seguiu pesada e implacavelmente.
Depois de quarenta minutos, parou. Imaginou que Brogan e Milosevic
seguiam um percurso semelhante, mas estavam às voltas com distância
extra porque haviam seguido a trilha para o oeste no início. Portanto,
esperava que se atrasassem. Com sorte, estariam aproximadamente vinte
minutos atrás dele. Aprofundou-se mais na floresta e se sentou contra um
tronco. Acendeu um cigarro. Imaginou que estava a talvez uns dois
quilômetros e meio do ponto de encontro. Seu mapa mental dizia que a
estrada estava para subir diretamente para a cidade.
Esperou quinze minutos. Dois cigarros. Então se levantou e continuou
a andar. Seguiu cautelosamente. Estava se aproximando. Tomou dois
desvios à esquerda e encontrou a estrada. Mal se arrastou pelas árvores
quando viu o reflexo do sol no cimento cinza. Esquivou-se para trás,
cauteloso, e seguiu para o norte. Andou até ver a floresta se afinar adiante.
Viu raios de sol vencendo as árvores ao fundo. Parou e deu uns passos para
a direita e para a esquerda, a fim de encontrar um ponto melhor de
observação. Viu a estrada seguindo para a cidade. Viu prédios. Uma ruína
cinzenta num morro à esquerda. O tribunal à direita. Mais bem conservado.
Sua pintura branca refletia os raios de sol. Olhou pelas árvores por muito
tempo. Então voltou. Andou quinhentos metros até a floresta. Seguiu em
direção à estrada, até que pôde avistar apenas o vislumbre cinza pelas
árvores. Inclinou-se num tronco e esperou por Brogan e Milosevic.

Dessa vez, resistiu à vontade de fumar outro cigarro. Havia aprendido há


muito tempo que fumar enquanto se escondia não era uma coisa inteligente
a se fazer. O cheiro vagava e um bom olfato podia detectá-lo. Portanto,
inclinou-se na árvore e fitou o chão, frustrado. Fitou os sapatos. Ficaram
arruinados por causa da escalada da face norte da ravina. Ele havia forçado
a pisada na encosta rochosa e foram retalhados. Fitou os bicos arruinados e
imediatamente teve certeza de que tinha sido traído. O peito se estreitou. O
pânico subiu aos poucos pela garganta e atingiu seu rosto como uma grade
de prisão se fechando suavemente. Fechando sem produzir ruídos.
Dobradiças lubrificadas.
O que Borken tinha dito no rádio? Ele dissera: Do mesmo jeito que
você está vigiando a gente com aqueles malditos aviões. Mas o que o
assessor do general tinha lhe dito anteriormente no escritório de Butte?
Você levanta os olhos e vê um rastro de fumaça minúsculo e pensa que é
um voo da TWA. Você não pensa que é a Força Aérea checando se lustrou
os sapatos esta manhã. Então como Borken sabia que havia aviões de
vigilância no céu? Porque alguém tinha dito a ele. Mas quem? Quem diabos
sabia?
Lançou os olhos ao redor desenfreadamente, e a primeira coisa que viu
foi um cachorro vindo diretamente para cima dele. Depois outro. Seguiam
saltando pelas árvores. Ouviu um som às suas costas. O barulho ruidoso de
pés e o chicotear de ramos. Então o mesmo som à sua direita. O crepitar e
farfalhar de uma arma à sua esquerda. Os cachorros estavam aos seus pés.
Girou apavorado. Em toda a volta homens vinham na sua direção pelas
árvores. Homens magros, barbudos, com roupas camufladas, portando rifles
e metralhadoras. Granadas penduradas nas redinhas. Talvez quinze ou vinte
homens. Avançaram calma e resolutamente. Formaram um círculo
completo, diretamente em volta dele. Virou para um lado, depois para o
outro. Estava cercado. Levantavam as armas. Havia quinze ou vinte
automáticas apontando diretamente para ele como raios numa roda.
Estavam em silêncio, de armas em punho. McGrath lançou os olhos de
um para outro, um círculo completo. Então um deles avançou. Uma espécie
de oficial. Enfiou a mão diretamente dentro da jaqueta de McGrath.
Arrancou o .38 do seu coldre. Então o sujeito meteu a mão no bolso de
McGrath. Fechou-a sobre o carregador rápido e o puxou. O sujeito colocou
ambos os itens no próprio bolso e sorriu. Deu um murro na cara de
McGrath. McGrath cambaleou e foi cutucado para a frente de novo com o
cano de um rifle. Aí ouviu pneus na estrada. Um barulho de motor. Lançou
os olhos para a esquerda e viu de relance a cor verde-azeitona ao sol. Um
jipe. Dois homens dentro. Os soldados o rodearam e o forçaram a sair da
floresta. Empurraram-no pelas árvores e para o acostamento. Ele pestanejou
ao sol. Pôde sentir que o nariz sangrava. O jipe avançou e parou ao lado
dele. O motorista o fitou com curiosidade. Outro homem magro, barbudo e
de uniforme. No assento do carona havia um homem enorme vestido de
preto. Beau Borken. McGrath o reconheceu pela fotografia nos arquivos do
FBI. Ele o fitou. Então Borken se debruçou e arreganhou os dentes.
— Olá, Sr. McGrath — ele se apresentou. — Chegou rapidinho, não é
mesmo?
41

REACHER VIU A COISA TODA ACONTECER. Estava a uns cento e


cinquenta metros de distância, nas árvores, a noroeste da emboscada, bem
no alto da encosta do outro lado da estrada. Havia uma sentinela morta a
seus pés. O sujeito estava deitado na terra com a cabeça em ângulo reto ao
pescoço. Reacher usava um binóculo. Observando. Observando o que ele
não tinha muita certeza.
Pegara a essência da conversa pelo rádio no baluarte. A versão de
Borken ele tinha ouvido. Adivinhara as respostas. Tinha ouvido os vigias do
sul se comunicando pelos walkie-talkies. Sabia sobre os fuzileiros navais na
ponte. Sabia sobre Webster e Johnson, sentados lá ao lado deles, no fim da
fila.
Ele se perguntara quem mais estava lá embaixo. Talvez outros
militares, talvez mais pessoal do FBI. Os militares não viriam. Johnson os
teria mandado ficar sentados. Se alguém viesse, seria do FBI. Imaginava
que poderiam ter uma grande quantidade de agentes de prontidão. Calculou
que invadiriam, mais cedo ou mais tarde. Precisava explorar a situação.
Precisava usá-los como boi de piranha enquanto resgatava Holly. Por isso
havia se movido para sudeste, a fim de esperar a chegada. Agora, uma hora
mais tarde, ele mirava lá embaixo o baixinho troncudo sendo carregado no
jipe. Terno escuro, camisa branca, sapatos sociais. Do FBI, com certeza.
Mas, também com certeza, não era da Divisão de Resgate de Reféns
(DRR). O cara estava totalmente despreparado para fazer um resgate. O
pessoal da DRR chegava sempre paramentado, com toda aquela
parafernália militar. Reacher conhecia bem os procedimentos. Chegou até a
ter que ler manuais sobre o assunto e ouvir relatos de resgate. Conheceu
caras da Divisão dentro e fora de Quantico. Ele sabia muito bem como
trabalhava a DRR. Montavam operações de alta complexidade. Parecem
soldados comuns, vestidos de azul. Chegam com veículos apropriados. O
cara que ele observava estava vestido para uma reunião.
Era um quebra-cabeça, Oito fuzileiros navais. Ninguém da DRR. Um
Chinook de busca e resgate desarmado. Então Reacher repentinamente
pensou que talvez estivesse entendendo. Talvez fosse uma operação
clandestina. Discrição máxima. Invisível. Haviam seguido a trilha de Holly
rumo a oeste desde Chicago, mas por alguma razão não era oficial. Estavam
cuidando disso por conta própria. Por alguma razão tática. Talvez política.
Talvez algo a ver com Holly e a Casa Branca. Talvez a política fosse
resolver o problema secretamente, pegar pesado mesmo, cuidar disso com
uma pequena equipe tão bem selecionada e reduzida que a mão direita não
sabia o que a esquerda fazia. Por isso o helicóptero de busca e resgate
desarmado. Entravam às cegas. Não sabiam em que estavam se metendo.
E, nesse caso, o sujeito atacado de tocaia que ele observava vinha
direto de Chicago. Parte da operação original que deve ter começado lá
atrás, na segunda-feira. Parecia um sujeito maduro. Talvez já cinquentão.
Podia ser Brogan, o cabeça do departamento de Holly. Podia até ser
McGrath, tal do chefão. Em um caso ou no outro, isso fazia de Milosevic o
infiltrado. A questão era a seguinte: ele estava aqui em cima também ou
ainda lá atrás em Chicago?
O jipe virou devagar na estrada. O sujeito do FBI de terno, na traseira,
enfiado entre dois homens armados. O nariz sangrava e Reacher podia ver
uma inchação nascendo no rosto. Borken virara seu corpanzil para trás e
falava na direção dele. O resto do pelotão de emboscada estava entrando em
forma na estrada. O jipe passou por eles, para o norte, em direção à cidade.
Passou a cerca de trinta metros de onde Reacher estava parado, de pé, no
meio das árvores. Ele o observou se afastar. Virou-se e pegou o rifle.
Caminhou pela floresta, o cérebro trabalhando a todo vapor.
O seu problema atual era a ordem de prioridade. Tinha uma regra:
concentre-se no trabalho em mãos. O trabalho em mãos era tirar Holly de
lá, ilesa. Nada mais. Mas o cara do FBI estava em apuros. Ele pensou no
Jackson. O infiltrado do FBI que a milícia havia capturado. Talvez este
novo sujeito teria o mesmo destino. E, nesse caso, ele deveria intervir. E
gostou do jeitão do cara. Parecia durão. Baixinho invocado. Muita energia.
Emanava uma espécie de carisma. Talvez um aliado fosse algo inteligente a
ter. Duas cabeças eram melhores do que uma. Dois pares de mãos. Quatro
dedos no gatilho. Útil. Mas a sua regra era clara: concentre-se no trabalho
em mãos. Havia funcionado para ele muitas vezes no decorrer dos anos. Era
uma regra que tinha lhe servido bem. Será que deveria se desviar dela
agora? Deveria? Parou e ficou escondido na floresta, enquanto o pelotão de
emboscada passava marchando na estrada. Escutou o som dos seus passos
sumir lentamente. Ficou parado lá, pensando no sujeito um pouco mais, e se
forçou a tomar uma decisão difícil.

O general Garber também observou a coisa toda acontecer. Estava cento e


cinquenta metros ao sul da emboscada. Do lado oeste da estrada, atrás de
um afloramento, exatamente duzentos e oitenta metros ao sul de onde
Reacher tinha estado. Havia esperado uns três minutos e então seguido
McGrath para o interior através do desfiladeiro. Garber também era um
homem um tanto em forma, mas muito mais velho e tinha sido demasiado
penoso para ele acompanhar o ritmo de McGrath. Havia chegado ao
afloramento e desabado, sem fôlego. Calculou que tinha talvez quinze ou
vinte minutos para se recuperar antes do encontro. Aí o seu plano era seguir
os três agentes e ver no que ia dar. Não queria que ninguém cometesse um
erro em relação a Jack Reacher.
Mas o encontro acabou não acontecendo. Ele tinha observado a
emboscada e percebido que muitos erros haviam sido cometidos em relação
a muitas coisas.

— Você vai morrer... — Borken avisou.


McGrath estava enfiado entre dois soldados, no banco de trás do jipe.
Trepidava na estrada acidentada. Mas não conseguia mexer os braços,
porque o banco não era largo o bastante para três homens. Portanto fechou a
cara, já que não pôde encolher os ombros.
— Vamos todos morrer, mais cedo ou mais tarde — disse.
— Mais cedo ou mais tarde, claro — disse Borken. — Mas para você
estou planejando mesmo mais cedo do que mais tarde.
Borken estava com o corpo virado para trás no banco da frente, o olhar
fixo. McGrath olhou para além dele, para o vasto céu azul. Encarou as
pequenas nuvens brancas e pensou: Quem foi? Quem sabia? O pessoal
operacional da Força Aérea?, ele supôs, mas era uma ligação ridícula. Tinha
que ser alguém muito mais próximo. Alguém mais envolvido. As únicas
possibilidades eram Johnson ou o seu assessor, ou o próprio Webster, ou
Brogan, ou Milosevic. Garber não era carta fora do baralho. Ele parecia
muito insistente em desculpar este tal de Reacher. Isso era alguma
conspiração da polícia militar para derrubar os chefes do Estado-Maior?
— Quem foi, Borken? — ele perguntou.
— Quem foi o quê, condenado? — Borken retrucou.
— Quem andou de papo contigo? — McGrath insistiu.
Borken sorriu e bateu o dedo na têmpora.
— Causa comum — ele disse. — Essa é a questão, há muito mais
gente do nosso lado do que você pensa.
McGrath lançou os olhos de volta ao céu e pensou no Dexter, seguro
na Casa Branca. O que Webster tinha dito que ele falara? Doze milhões de
pessoas? Ou eram sessenta e seis milhões?
— Você vai morrer — Borken repetiu.
McGrath mudou o foco de volta.
— Então me diga quem foi, antes de eu morrer — pediu.
Borken arreganhou os dentes para ele.
— Você vai descobrir — ele disse. — E terá uma grande surpresa.
O jipe parou na frente do tribunal. McGrath se virou e ergueu os olhos
para a construção. Havia seis soldados de guarda fora do prédio.
Distribuídos num arco irregular apontando para o sul e para o leste.
— Ela está aí dentro? — ele perguntou.
Borken confirmou com a cabeça e sorriu.
— Neste momento, está — ele respondeu. — Talvez eu até tenha que
tirá-la mais tarde.
O walkie-talkie preso no seu cinto chamou. Uma rajada barulhenta de
estática e uma rápida mensagem distorcida. Ele apertou uma tecla e abaixou
a cabeça. Acusou o recebimento da informação sem tirar o aparelho do
cinto. Então puxou o radiotransmissor do bolso. Abriu e puxou a antena
curta. Apertou o botão de envio.
— Webster? — chamou. — Você mentiu pra mim! Duas vezes.
Primeiro, tinha três dos seus agentes aí embaixo contigo. Acabamos de
capturá-los.
Ele escutou a resposta. Manteve o rádio apertado contra a orelha.
McGrath não pôde ouvir o que Webster dizia.
— Não interessa... mesmo assim — disse Borken. — É isso. Não
estavam todos do seu lado. Há pessoas neste mundo que fazem qualquer
coisa por dinheiro.
Fez uma pausa, esperando resposta. Ao que parece não houve
nenhuma.
— E você me passou pra trás — Borken reclamou. — Você não ia
consertar a linha coisa nenhuma, não é? Você só estava me enrolando.
Webster começou a responder, mas Borken o cortou:
— Você e o Johnson — ele falava alto. — Podem sair da ponte agora.
Os fuzileiros ficam. Estamos de olho. Você e o Johnson voltam pros
caminhões. Não arredem o pé da frente daquelas televisões. Vão assistir a
um espetáculo interessante muito em breve.
Desligou o rádio e o dobrou de volta no bolso. Com um grande e largo
sorriso no rosto.
— Você vai morrer — ele disse a McGrath pela terceira vez.
— Quem? — McGrath perguntou. — Brogan ou Milosevic?
Borken arreganhou os dentes novamente.
— Adivinha — ele brincou. — Descubra por conta própria. Você não é
o grande investigador federal sabichão? O big boss?
O motorista pulou para fora e puxou uma pistola do coldre. Apontou-a
com as duas mãos para a cabeça de McGrath. O guarda da esquerda se
espremeu para sair do jipe e tirou o rifle do ombro. Segurou-o firme. O
sujeito da direita fez o mesmo. Então Borken abaixou seu corpanzil
devagar.
— Desce — ele ordenou. — Vamos a pé a partir daqui.
McGrath deu de ombros e desceu cautelosamente para o círculo de
armas. Borken deu um passo para trás dele e o pegou pelos braços.
Algemou os pulsos atrás das costas. Então o empurrou para a frente.
Apontando além do cartório do condado em ruínas.
— Lá em cima, condenado — ele disse.
Deixaram o jipe para trás ao lado do tribunal. Os dois guardas
entraram em formação. McGrath cambaleou para o outro lado da rua e para
cima do morro pedregoso. Foi empurrado além de uma árvore morta. Levou
uns empurrões para a esquerda até encontrar o caminho. Caminhou até os
fundos do prédio velho. A terra ressequida tentava atravessar as solas finas
dos seus sapatos sociais esfarrapados. Dava quase na mesma se estivesse
andando descalço.
— Mais rápido, seu mané — Borken grunhiu para ele.
Os guardas continuavam atrás dele, cutucando-o para a frente com
seus rifles. Ele acelerou o passo e seguiu aos tropeços pelo mato. Sentiu o
sangue coagulando no lábio e no nariz. Depois de um quilômetro e meio,
entrou no descampado que reconheceu pelas fotos de vigilância. Parecia
maior. A dez mil metros de altura, parecera um buraco certinho no meio das
árvores, um círculo bem delineado de prédios. Do chão parecia tão grande
quanto um estádio. Xisto irregular no chão da clareira, grandes cabanas de
madeira, habilmente construídas com toras e colunas de concreto maciças.
— Espere aqui — disse Borken.
Foi embora e os dois guardas assumiram seus postos dos dois lados de
McGrath enquanto ele dava uma geral no lugar. Viu a cabana de
comunicações, com o fio telefônico e a antena chicote. Viu também outros
prédios. Sentiu o cheiro de comida passada exalando da maior. Vislumbrou
a cabana mais distante, separada das outras. Deve ser o depósito de armas,
pensou.
Lançou os olhos para o céu e viu os rastros de condensação. A
urgência da situação estava escrita lá em cima, branco no azul. Os aviões já
haviam abandonado a inocente busca leste-oeste. Os rastros tinham se
comprimido em círculos contínuos, um dentro do outro. Voavam em
círculos toda hora, centrados dez mil metros acima da sua cabeça. Olhou
para o céu até eles, e gritou sem produzir som: Socorro! Indagou a si
mesmo se as lentes eram boas o bastante para captar o pedido. Ficou
imaginando se talvez Webster, Johnson, Garber ou o ajudante de Johnson
entendiam de leitura labial. A sua melhor suposição era: Sim e não.

O problema de Reacher era o diabo de uma ironia. Pela primeira vez na


vida, desejava que seus oponentes fossem melhores no gatilho. Estava
escondido no meio das árvores, cem metros a noroeste do tribunal. Vendo lá
embaixo seis sentinelas. Formando um arco solto, ao sul e para o leste, além
do grande prédio branco. O rifle de Reacher estava apontado para o homem
mais próximo. Mas ele não ia atirar. Já que, se fizesse isso, os seis homens
iam revidar o fogo. E iam errar.
Reacher estava satisfeito com um M-16, para um alcance de cem
metros. Podia garantir com toda certeza que acertaria no que quisesse com
essa arma a essa distância. Apostaria a sua vida nisso. Muitas vezes tinha
mesmo. E normalmente quanto piores no tiro fossem seus oponentes, mais
feliz ele ficava. Mas nesta situação não.
Estaria atirando do noroeste. Os seus oponentes estariam revidando do
sudeste. Ouviriam os seus tiros, talvez vissem algum clarão da boca da
arma, mirariam e atirariam. E errariam. Atirariam para o alto e longe do
alvo. Os alvos no estande de tiro eram prova tácita dessa conclusão. Até viu
uns tiros decentes a trezentos e quatrocentos metros. Os alvos danificados
eram testemunhas desse fato. Mas a experiência de Reacher dizia que caras
que podem atirar, quase com competência, a trezentos ou quatrocentos
metros num estande seriam inúteis num tiroteio. Permanecer imóvel numa
esteira, visando um alvo a seu bel-prazer, era uma coisa. Atirar em meio a
uma confusa e barulhenta chuva de balas era uma coisa bem diferente. Na
verdade totalmente diferente. O sujeito defendendo os caminhões de
mísseis tinha demonstrado isso. As suas salvas de artilharia estavam
espalhadas por toda parte. E esse era o problema. Revidando do sudeste, as
balas perdidas desses sujeitos estariam em toda parte, toda mesmo. De cima
para baixo, para a direita e para a esquerda. As balas de cima para baixo, e
as balas da esquerda, não eram nenhum problema. Iam somente danificar a
vegetação. Mas as balas de baixo para cima e as balas da direita iam parar
no tribunal.
O M-16 usa balas designadas de M855. Cartuchos da OTAN comuns,
calibre de 5.56 milímetros, meio milímetro de largura. Bem pesado para o
seu tamanho, porque é um sanduíche de chumbo e aço, dentro de um
invólucro de cobre. Projetadas para penetração. Essas balas perdidas iam
acertar a lateral do tribunal a mais de três mil quilômetros por hora. Iam
atravessar a madeira velha como se fosse isopor. Iam passar rasgando pela
dinamite instável como um trem descarrilado. A energia do impacto ia atuar
como um detonador, melhor do que qualquer empresa de mineração já um
dia sonhou em ter. Foi para isso que essas balas foram projetadas. Algum
comitê tinha pedido um projétil capaz de varar as laterais de caminhões de
munição. E foi isso que havia sido entregue.
Portanto Reacher não ia atirar. Três sentinelas, ele até poderia ter
arriscado. Calculou que dava para disparar três tiros certeiros, em talvez três
segundos. Rápido demais para qualquer reação. Mas seis eram demais.
Seriam muito espaçadas. Era necessário muito movimento físico entre os
disparos. Os alvos posteriores teriam tempo para reagir. Não muito tempo.
Certamente não o bastante para precisão. Esse era o problema.
A reversão da geometria não ajudaria em nada também. Ele podia
batalhar para dar a volta ao sul. Levaria talvez vinte minutos para contornar
as árvores e voltar até eles pela direção oposta. Mas e daí? Estaria vendo os
seus alvos de baixo para cima. O tribunal estaria bem atrás deles. Podia
acertar a cabeça de cada um deles, seria facílimo. Mas não podia pedir para
as balas simplesmente pararem lá na massa cinzenta. Não podia impedir
que invólucros de cobre a jato varassem queimando aqueles crânios e
seguissem sua trajetória ascendente, direto rumo às paredes do segundo
andar do tribunal. Balançou a cabeça e abaixou o rifle.

McGrath viu Borken trocando ideias com um cara na borda da clareira. Era
o tal que havia conduzido o pelotão de emboscada. O sujeito que tinha
tomado a sua arma e as suas balas e dado um murro na cara dele. Os dois
lançavam os olhos aos seus relógios e depois observavam o céu.
Balançavam a cabeça. Borken deu um tapinha no ombro do sujeito e se
virou. Mergulhou nas árvores e desapareceu, voltando em direção à cidade.
O líder da emboscada começou a andar na direção de McGrath. Sorridente.
Estava tirando o rifle do ombro.
— Hora do espetáculo! — exclamou alto.
Aproximava-se e virava o rifle nas mãos enquanto fazia isso. Enfiou a
coronha no estômago de McGrath. O agente caiu que nem um saco de
estrume no cascalho. Um guarda meteu a boca do rifle na garganta dele.
Outro enfiou o seu no estômago de McGrath, justo onde a porrada tinha
acertado.
— Fique deitado sem se mexer, seu merda — disse o líder de unidade.
— Volto dentro de um minuto.
McGrath não pôde mover a cabeça por causa do rifle na garganta, mas
seguiu o sujeito com os olhos. Ele estava entrando na penúltima cabana da
fileira. Não era a do depósito de armas, que ficava isolada. Era uma espécie
de almoxarifado. Saiu com um martelo de madeira, cordas e quatro objetos
metálicos. De cor verde fosca, do exército. Ao se aproximar mais, McGrath
reconheceu o que eram. Estacas de barraca. Talvez com cinquenta
centímetros de comprimento, projetadas para um tipo de barraca-refeitório
grande.
O sujeito largou o material no cascalho. Ais estacas metálicas tiniram
nas pedras. O sujeito fez sinal com a cabeça para o soldado com a arma na
barriga de McGrath, que se endireitou e se afastou. O líder de unidade
tomou o seu lugar. Usou a própria arma para manter McGrath preso.
O soldado pôs a mão na massa. Parecia saber o que deveria fazer. Usou
o martelo de madeira para enfiar a primeira estaca no chão. O chão era
pedregoso e o sujeito teve que marretar forte. Balançava o martelo de
madeira formando um grande arco, e usava muita força. Bateu na estaca até
que dois terços dela ficassem enterrados. Então mediu os passos, talvez dois
metros e meio, e começou a marretar a segunda. McGrath o seguiu com os
olhos. Quando a segunda estaca foi enterrada, o sujeito marcou mais dois
metros e meio, em ângulo reto, e enfiou a terceira no chão. A quarta estaca
completou um quadrado exato, dois metros e meio de cada lado. McGrath
fazia uma boa ideia para que aquele quadrado serviria.
— A gente costuma fazer isto no mato — disse o líder de unidade. —
Geralmente na vertical, com árvores.
Então, o sujeito apontou para o céu.
— Mas precisamos que eles vejam — explicou. — Não conseguem
ver direito no mato, nessa época do ano. Folhas demais na frente, sacou?
O guarda que tinha enfiado as estacas de barraca no chão estava
ofegante por causa do esforço. Trocou de lugar com o seu líder novamente.
Enfiou o rifle na barriga de McGrath e se debruçou nele, descansando.
McGrath arfou e se contorceu sob a pressão. O líder se agachou e vasculhou
as cordas. Desemaranhou uma e pegou McGrath pelo tornozelo. Fez um
laço com a corda e deu um nó bem apertado. Usou a corda para arrastar
McGrath pela perna, para o centro do quadrado. Então, amarrou a ponta
solta na quarta estaca. Amarrou-a apertado e a testou.
A segunda extensão de corda envolveu o outro tornozelo de McGrath.
Foi amarrada na terceira estaca. As pernas de McGrath foram escancaradas
à força, em ângulo reto. As mãos ainda estavam algemadas atrás das costas,
comprimidas contra o chão pedregoso. O líder usou a sola da bota para rolar
o tronco do policial para um lado. Abaixou-se e destrancou a algema.
Agarrou um pulso e deu um laço ao redor. Amarrou-o apertado e puxou o
pulso até a segunda estaca. Puxou até o braço de McGrath ficar esticado,
numa linha reta exata com a perna oposta. Então, amarrou-o firme na estaca
e abaixou o braço para pegar o outro pulso. Os soldados pressionaram mais
os canos das armas. McGrath olhou para os rastros de condensação e arfou,
morrendo de dor conforme o seu braço era esticado e amarrado formando
uma cruz perfeita.
Os dois soldados deixaram os seus rifles afastados e retrocederam.
Ficaram com o seu líder. Olhando para baixo. McGrath levantou a cabeça e
olhou desesperadamente ao redor. Puxou as cordas e logo percebeu que
estava apenas apertando mais os nós. Os três homens deram passos mais
para trás e olharam para o céu. McGrath percebeu que estavam se
certificando de que as câmeras tivessem uma panorâmica sem obstáculos. E
tinham. Dez mil metros no céu, os pilotos voavam em círculos, um deles
num raio curto de alguns quilômetros, o outro, exterior a ele, numa
trajetória mais ampla.

As câmeras apontavam para baixo, controladas por computadores de última


geração. O avião do círculo interno focava com precisão a clareira onde
McGrath estava com as pernas e braços escancarados. O outro pegava uma
visão mais ampla, filmando toda a área do tribunal ao sul, as minas
abandonadas ao norte. Os seus sinais de vídeo, em tempo real, saltavam
para baixo, mais ou menos verticais, para o veículo de antena parabólica,
estacionado atrás do posto de comando móvel. A antena parabólica
trabalhava no fluxo de dados e o alimentava pelo fio blindado grosso no
caminhão de observação. Então os computadores de decodificação
alimentavam os grandes monitores coloridos. As telas expunham a verdade
apavorante. O general Johnson, seu assessor e Webster ficaram imóveis na
frente deles. Imóveis, silenciosos e com os olhares fixos. Os gravadores de
vídeo zuniam sem parar, calmamente registrando cada movimento, cada
momento de tensão. O veículo inteiro estava tomado por um ruído branco.
Mas, ao mesmo tempo, estava tão silencioso quanto um túmulo.
— Você tem como dar um zoom lá? — Webster perguntou
educadamente. — No McGrath?
O assessor do general manuseou um joystick de borracha preto. Fitou a
tela. Ampliou até que o pixel individual de cada imagem começasse a se
aglomerar e distorcer. Então recuou uma fração.
— Não dá para chegar mais perto — informou.
Já estava perto o bastante. McGrath, a figura com os membros
escancarados, quase enchia as telas. O líder de unidade podia ser visto
diretamente do alto, pisando por cima das extensões de corda, conforme
rodeava. Já estava com uma faca na mão. Cabo preto, lâmina brilhante,
talvez com vinte e cinco centímetros de comprimento. Parecia um facão de
cozinha. O tipo de coisa que um cozinheiro chique compraria. Útil para
fatiar uma bela peça de carne. O tipo de peça que seria posta no balcão de
cozinha por alguém que faria um guisado ou um estrogonofe.
Viram o sujeito pôr a faca horizontalmente no peito de McGrath. Então
ele usou ambas as mãos para dobrar para trás as abas no paletó do agente.
Desatou a gravata e a puxou para um lado, quase abaixo da orelha. Então,
agarrou a camisa e a rasgou. O tecido de algodão se desfez facilmente,
deixando a faca agora perto da pele. O sujeito tirou a parte de baixo da
camisa da cintura e a afastou para os lados. Cuidadosamente, bem para fora
do caminho, como se fosse um cirurgião às voltas com um delicado
procedimento de emergência.
Viram o sujeito pegar a faca novamente. Estava agachado, à direita do
policial, ligeiramente se debruçando, segurando a faca. Com a ponta para
baixo, perto da barriga dele. A cor rosada da pele de McGrath se refletia no
rosto dos guardas dentro do veículo de observação.
Viram o sujeito levantar a faca três centímetros. Viram o seu indicador
deslizar ao longo das costas da lâmina, como se estivesse ajustando o aperto
para ter mais precisão. Viram a lâmina se mover para baixo. O sol fraco
reluzia no aço. Então a cena foi interrompida. Um sopro silencioso de
névoa rosa-choque obscureceu a imagem. Quando se dissipou, a faca ainda
estava na mão do sujeito. Porém, ele não tinha mais cabeça. A sua cabeça
inteira era uma ferida escarlate despedaçada e tombava lentamente para um
lado.
42

O GUARDA DA ESQUERDA, ASSIM COMO O primeiro, desabou que


nem um marionete. Reacher meteu uma bala certeira na têmpora do
desgraçado, e ele caiu pesadamente, bem em cima do policial do FBI que
permaneceu com as pernas e os braços escancarados. Mas o guarda da
direita reagiu. Agitou-se e pulou por cima das cordas esticadas, correndo
para as árvores. Reacher fez uma pausa e o abateu a três metros de
distância. O sujeito se estatelou no chão e escorregou ruidosamente pelo
cascalho, levantando uma porção de poeira. Deu uma tremida e morreu.
Então Reacher esperou. O último eco dos três tiros retornou das
montanhas mais distantes e dissolveu-se no silêncio. Reacher observou as
árvores em volta do baluarte. Buscou movimento. A claridade estava forte.
Forte demais para se ter certeza. Havia demasiado contraste entre o brilho
da clareira e a escuridão da floresta. Por essa razão, esperou.
Depois saiu detrás da cabana do rádio correndo desesperadamente.
Atravessou o descampado até o circo central. Puxou os corpos para fora do
caminho. O guarda estava estatelado no chão, bem em cima do sujeito do
FBI. O líder de unidade estava atravessado nas suas pernas. Jogou-os para
fora do caminho e encontrou a faca. Cortou quatro cordas grossas. Arrastou
e colocou o sujeito do FBI de pé e o empurrou de volta para o lugar de onde
tinha vindo. Então pegou os dois rifles mais próximos e correu atrás dele.
Alcançou-o no meio do caminho. O sujeito seguia cambaleando um
pouquinho. Por isso, Reacher o pegou por baixo dos braços e o levou às
pressas para um lugar seguro. Lançou-o entre as árvores, atrás das cabanas,
e ficou curvado, arquejando. Depois pegou os pentes dos novos rifles e pôs
um no bolso e outro na sua própria arma. Eram ambos versões alongadas de
trinta tiros. Só lhe restaram seis cartuchos. Agora tinha sessenta. Um
aumento décuplo. E ele tinha, finalmente, outro par de mãos.
— Você é o Brogan? — perguntou. — Ou o McGrath?
O sujeito respondeu formalmente, de modo neutro. Seu rosto mostrava
nervosismo, pânico e confusão.
— McGrath — respondeu. — FBI.
Reacher fez que sim com a cabeça. O sujeito estava abalado, mas era
um aliado. Reacher tirou a Glock de Fowler do bolso e ofereceu para ele,
com a coronha para a frente. McGrath arquejava baixinho e lançava os
olhos, desenfreadamente, em direção à floresta. Sua postura era agressiva.
Suas mãos formavam punhos.
— O quê? — Reacher perguntou, preocupado.
McGrath se lançou para a frente, pegou a Glock e retrocedeu.
Levantou-a, colocou-se em posição de tiro e apontou-a com as duas mãos.
Para a cabeça de Reacher. As pontas cortadas das cordas penduradas nos
seus pulsos. Reacher apenas o encarou inexpressivamente.
— Mas que porra você está fazendo? — perguntou.
— Você é um deles — disse McGrath em resposta. — Largue o rifle, é
uma ordem!
— O quê? — Reacher perguntou novamente.
— Obedeça de uma vez, está bem? — McGrath o ameaçou.
Reacher o encarou, incrédulo. Apontou através das árvores para os
corpos estirados no chão do baluarte.
— E como fica o que aconteceu ali? — ele perguntou. — Não significa
nada?
A Glock não oscilou. Estava firme como rocha, apontada diretamente
para a sua cabeça, no ápice de uma posição de apoio perfeita. Tirando as
cordas penduradas como serpentinas nos seus pulsos e tornozelos, McGrath
parecia uma foto de um manual de treinamento.
— Aquilo não quer dizer nada? — Reacher perguntou novamente,
apontando para o sangue no chão.
— Não necessariamente — rosnou McGrath em resposta. — Você
também matou Peter Bell. A gente está sabendo. Você não é do bem só
porque não permite que as suas tropas estuprem e torturem reféns.
Reacher olhou para ele por muito tempo, incrédulo. Refletiu bastante.
Então balançou a cabeça afirmativa e cautelosamente, e largou o rifle
exatamente no meio do caminho entre os dois. Se largasse diretamente aos
seus próprios pés, McGrath apenas o mandaria chutá-lo na sua direção. Se o
largasse perto demais dos pés de McGrath, não funcionaria. O cara era um
agente experiente. Pelo jeito da sua posição de tiro, Reacher esperava pelo
menos um pouco de competência da parte dele.
McGrath lançou os olhos para baixo. Hesitou. Claramente não queria
Reacher tão próximo. Não queria que se aproximasse para empurrar o rifle
em sua direção. Por isso deslizou o próprio pé para a frente, a fim de
arrastar a arma de volta para perto. Era talvez vinte e cinco centímetros
mais baixo do que Reacher. Ao apontar a Glock para a cabeça de Reacher, a
dois metros de distância, ele apontava para cima, num ângulo bem agudo.
Como fez o pé deslizar para a frente, reduziu a sua altura real em talvez três
centímetros, o que automaticamente aumentou a inclinação ascendente dos
seus braços, num grau proporcional. E tal posição lhe trouxe ligeiramente
mais próximo a Reacher, o que aumentou o ângulo ascendente ainda mais.
O seu dedão do pé se arrastava atrás da arma, os braços estavam perto do
seu rosto, atrapalhando a visão. Reacher esperou até ele lançar os olhos para
baixo novamente.
Ele baixou os olhos. Reacher afrouxou os joelhos e caiu verticalmente.
Lançou seu antebraço para cima como um relâmpago e bateu na Glock,
desviando-a. Fez um arco amplo com o outro braço, atrás dos joelhos de
McGrath, e o jogou de costas na terra. Fechou a mão por cima do pulso de
McGrath e espremeu suavemente até a Glock se soltar com um tremor.
Pegou-a pelo cano e segurou-a do lado errado.
— Olhe isso — ele falou com agressividade.
Sacudiu o punho da manga para trás e expôs o vergão no pulso
esquerdo coberto de sangue seco.
— Não sou um deles — ele disse. — Fiquei algemado a maior parte do
tempo.
Então esticou o braço com a Glock, com a coronha para a frente,
oferecendo-a a ele novamente. McGrath o encarou e logo olhou de volta
para a clareira. Lançou a cabeça para a direita e para a esquerda, para ver os
corpos. Voltou os olhos para Reacher, ainda confuso.
— Pra gente você era bandido — ele contou.
Reacher balançou a cabeça.
— Tá na cara — ele devolveu. — Mas por quê?
— O vídeo na tinturaria — explicou McGrath. — Parecia que você
estava agarrando ela.
Reacher negou com a cabeça.
— Transeunte inocente — ele disse.
McGrath continuou olhando firme para ele. Com surpresa e humor,
refletindo. Reacher o viu chegar a uma decisão. Ele balançou a cabeça por
sua vez, aceitou a Glock e a colocou no chão da floresta, exatamente entre
eles, como se o seu posicionamento fosse um símbolo, um tratado.
Começou a tatear os botões da camisa, as pontas cortadas da corda batiam
nos pulsos e tornozelos.
— Certo, dá pra gente começar de novo? — ele pediu, sem graça.
Reacher balançou a cabeça afirmativamente e ofereceu a mão.
— Lógico — disse. — Pode me chamar de Reacher, você deve ser
McGrath. O chefe de Holly. Muito prazer.
McGrath sorriu pesaroso e apertou a mão dele sem firmeza. Então
começou a apalpar os nós nos pulsos.
— Você conhece um cara chamado Garber? — McGrath perguntou.
Reacher balançou a cabeça afirmativamente.
— Trabalhava para ele — disse.
— Garber contou pra gente que você era do bem — disse McGrath. —
Ficamos com dúvidas.
— Entendo — Reacher disse. — Garber sempre fala a verdade. Por
isso ninguém nunca acredita nele.
— Então, peço desculpas — disse McGrath. — Sinto muito, acredite.
Mas tente ver as coisas pelo meu ângulo. Você vem sendo o inimigo público
número um faz cinco dias.
Reacher relevou a desculpa com um aceno, levantou-se e ajudou
McGrath a ficar de pé. Abaixou-se de novo na terra, pegou a Glock e
entregou para ele.
— Como está o nariz? — perguntou.
McGrath colocou a arma no bolso do paletó. Tocou o nariz suavemente
e fez uma careta.
— O filho da puta me deu um diretaço — ele contou. — Acho que está
quebrado. Sem mais nem menos, armou e me deu uma porrada, como se
não pudesse esperar.
Ouviu-se um barulho no mato, à esquerda. Reacher pegou o braço de
McGrath e o puxou mais para o fundo da floresta. Abriu caminho pelo
matagal e se colocou de frente para o leste. Ficou em silêncio, com os
ouvidos alertas a qualquer movimento. McGrath estava tirando as cordas
dos tornozelos e criando coragem para fazer uma pergunta.
— E aí? A Holly está bem? — perguntou.
Reacher balançou a cabeça afirmativamente. Mas sombriamente.
— Por enquanto — ele disse. — Mas pra resgatar ela vai ser um
inferno.
— Estou por dentro da dinamite — revelou McGrath. — Foi a última
coisa que Jackson comunicou. Segunda-feira à noite.
— Um inferno — Reacher disse novamente. — Uma bala perdida e ela
vira adubo. E tem cem pessoas que adoram abrir fogo aqui em cima. Seja lá
o que a gente fizer, temos que agir com cuidado. Você tem reforços a
caminho? Resgate de reféns?
McGrath fez não com a cabeça.
— Ainda não — ele respondeu. — Politicagem barata.
— Talvez até seja bom — Reacher ponderou. — Estão falando em
suicídio coletivo se parecer que vão levar a pior. Viva livre ou morra, tá
ligado?
— Não estou nem aí — McGrath disse. — Eles é que sabem. Estou
pouco me lixando pra essa raça. Minha única preocupação é a Holly.
Ficaram em silêncio e se embrenharam juntos pelas árvores. Pararam
nas profundezas do mato, mais ou menos no mesmo nível dos fundos do
refeitório. Agora Reacher estava criando coragem para fazer uma pergunta.
Mas esperou, imobilizado, um dedo nos lábios. Ouviu-se um barulho à sua
esquerda. Uma patrulha, varrendo o entorno da floresta. McGrath começou
a se mover, mas Reacher pegou-o pelo braço e o impediu. Melhor ficar
imóvel do que arriscar a fazer barulho. A patrulha chegou mais perto.
Reacher levantou o rifle e o trocou para fogo rápido. Abafou o som do
clique com a palma. McGrath prendeu a respiração. A patrulha apareceu, a
três metros de distância, pelas árvores. Seis homens, seis rifles. Lançavam
os olhos ritmicamente conforme andavam, para a direita e para a esquerda,
para a direita e para a esquerda, entre a borda da clareira ensolarada e as
profundezas verde-escuras da floresta. Reacher expirou, silenciosamente.
Amadores, com treinamento e táticas ruins. O sol forte nos olhos a cada
segunda olhada arruinava as chances deles de enxergar na escuridão da
floresta. Estavam cegos. Passaram sem parar. Reacher seguiu o som do
progresso da patrulha e se voltou para McGrath.
— Onde estão Brogan e Milosevic? — sussurrou.
McGrath balançou a cabeça, sombriamente.
— Já sei — ele disse, baixo. — Um deles está vendido. Finalmente
caiu a ficha, mais ou menos meio segundo antes de me pegarem.
— Cadê eles? — Reacher perguntou novamente.
— Aqui em cima, em algum lugar — McGrath respondeu. —
Entramos pelo desfiladeiro juntos, com um quilômetro e meio de intervalo.
— Qual deles? — Reacher perguntou.
McGrath deu de ombros.
— Sei lá — ele respondeu. — Não faz o menor sentido. Isso não me
sai da cabeça. Ambos fizeram um excelente trabalho. Milosevic encontrou a
tinturaria. Trouxe o vídeo. Brogan trabalhou paca seguindo a pista de tudo
até aqui em Montana. Rastreou o furgão. Fez a ligação com Quantico. O
meu instinto se nega a crer que um deles se vendeu.
— Quando fui identificado? — Reacher perguntou.
— Na manhã de quinta-feira — McGrath respondeu. — Já tínhamos a
sua ficha completa.
Reacher balançou a cabeça.
— O infiltrado informou imediatamente — afirmou. — Como esse
povo, do nada, sabia quem eu era na quinta-feira de manhã?
McGrath deu de ombros novamente.
— Os dois estavam lá na hora — disse. — Todo mundo estava em
Peterson.
— Você recebeu o fax de Holly? — Reacher perguntou.
— Que fax? — McGrath estranhou. — Quando?
— Esta manhã — Reacher disse. — Cedo, talvez dez pras cinco? Ela
mandou um aviso por fax.
— A gente está interceptando a linha deles — disse McGrath. — Em
um caminhão, numa rua por aqui. Mas às dez pras cinco eu estava deitado.
— Então quem estava no comando? — Reacher perguntou.
McGrath balançou a cabeça.
— Milosevic e Brogan — ele disse, desolado. — Ambos. Às dez pras
cinco esta manhã, tinham acabado de ficar de plantão. Seja lá qual deles foi,
deve ter recebido o fax e escondido. Mas qual... não faço a menor ideia.
Reacher balançou a cabeça por sua vez.
— A gente podia tentar descobrir — ele sugeriu. — Ou simplesmente
vamos esperar para ver. Um estará circulando por aí como se fosse o melhor
amigo deles, e o outro estará algemado ou morto. Saberemos a diferença em
breve.
McGrath balançou a cabeça, puto da vida.
— Mal posso esperar — ele disse.
De repente, Reacher voltou a se postar como um soldado, e o puxou
dez metros mais para o interior da floresta. Tinha ouvido a patrulha
voltando pelas árvores.
Dentro do tribunal, Borken tinha ouvido os três disparos. Estava sentado na
cadeira do juiz e ouviu claramente. Bangue, bangue... bangue e se repetiram
uma dúzia de vezes conforme cada uma das encostas distantes devolviam o
eco. Enviou um mensageiro de volta ao baluarte. Três quilômetros de ida e
volta na trilha sinuosa pelo mato. Vinte minutos desperdiçados, e aí o
mensageiro voltou resfolegando com as notícias. Três cadáveres, quatro
cordas cortadas.
— Reacher — Borken concluiu. — Devia ter apagado o desgraçado
logo de cara.
Milosevic concordou com a cabeça.
— Quero esse cara bem longe de mim — ele disse. — Ouvi o laudo da
autópsia do seu amigo Peter Bell. Só quero minha grana e um salvo-
conduto para vazar daqui, falou?
Borken balançou a cabeça. Então riu. Um riso agudo, nervoso, que foi
parte excitação, parte tensão. Levantou-se e saiu detrás do banco. Riu,
arreganhou os dentes e deu um tapinha no ombro de Milosevic.

Holly Johnson conhecia dinamite tanto quanto a maior parte das pessoas.
Mal conseguia se lembrar da composição química exata. Sabia que era feita
com nitratos e nitrocelulose. Tinha dúvidas sobre nitroglicerina. Também
estava na mistura? Ou era algum outro tipo de explosivo? De um jeito ou do
outro, calculou que dinamite era algum tipo de fluido pegajoso, embebido
em material poroso e moldado em barras. Barras pesadas, bastante densas.
Se as paredes do seu quarto estivessem cheias delas, absorveriam muito
som. Como se fossem um revestimento à prova de barulho num
apartamento da cidade. O que significava que os tiros que tinha ouvido
estavam razoavelmente perto.
Tinha ouvido: bangue, bangue... bangue. Mas não sabia quem estava
atirando em quem ou por quê. Não eram tiros de pistola. Ela conhecia o
barulho desafinado de uma pistola por causa da passagem por Quantico.
Eram tiros de uma arma longa. E não o baque pesado dos grandes Barretts
do estande de tiro. Era uma arma mais leve. Alguém atirando três vezes
com um rifle de calibre médio. Ou três pessoas atirando uma vez, com uma
salva irregular. Mas seja lá o que fosse, algo estava acontecendo. E ela tinha
que estar preparada.
Garber também ouviu os tiros. Bangue, bangue... bangue, talvez um
quilômetro a noroeste dele, talvez mais. Então uma dúzia de ecos
espaçados, ricocheteando nas encostas das montanhas. Não tinha a menor
dúvida sobre o que representavam. Um M-16, disparando uma bala de cada
vez, o primeiro par formando um grupo compacto que os militares
chamavam de baque duplo. O som de um atirador competente. A ideia era
dar o segundo tiro antes mesmo da primeira cápsula do cartucho bater no
chão. Então um terceiro alvo ou talvez um tiro de segurança no segundo.
Um ritmo inconfundível. Como uma assinatura. A assinatura audível de
alguém com centenas de horas de treinamento com armas. Garber balançou
a cabeça concordando com seu pensamento e avançou pelas árvores.

— Aposto no Brogan — sussurrou Reacher.


McGrath pareceu surpreso.
— Por que o Brogan? — ele perguntou.
Estavam agachados, de costas para troncos adjacentes, trinta metros no
meio do matagal, invisíveis. A patrulha de busca tinha seguido a trilha de
volta e passado batida por eles novamente. McGrath havia contado a
história toda para Reacher. Havia resumido as partes importantes da
investigação, de um profissional para outro, como uma espécie de relatório
confidencial. Reacher havia feito perguntas inteligentes e McGrath dera
respostas curtas.
— O tempo e a distância — Reacher disse. — Isso foi crucial. Pense
do ponto de vista deles. Enfiaram a gente no furgão e se mandaram direto
para Montana. Qual a distância? Talvez dois mil e setecentos ou três mil
quilômetros?
— Por aí — McGrath concordou.
— E Brogan é um cara esperto — disse Reacher. — E sabe que você é
um cara inteligente. Inteligente o bastante para saber que ele de bobo não
tem nada. Por isso, precisou, por um tempo, fazer jogo duplo. O que
conseguiu foi manter todos vocês fora do lance para impedir que criassem
problemas. E foi isso que ele fez. Gerenciou o fluxo de informação. A
comunicação tinha que ser de duas vias, certo? Então, na segunda-feira, ele
já sabia que tinham alugado um furgão. Mas até a quarta-feira ainda estava
guiando vocês para veículos roubados, certo? Desperdiçou muito tempo
com aquela coisa no Arizona. Então, finalmente, fez a grande descoberta
com a empresa de aluguel e o negócio da lama, e pareceu o grande herói
aos seus olhos, mas na verdade o que fez foi manter vocês atrasados na
perseguição. Deu a eles todo o tempo que precisavam para trazer a gente até
aqui.
— Mas ele, ainda assim, trouxe a gente até aqui, certo? — McGrath
questionou. — Um tanto atrasado, concordo, mas trouxe a gente pra cá do
mesmo jeito.
— Não perdeu nada — Reacher analisou. — Borken simplesmente
morria de vontade de contar a você onde Holly estava, assim que ela
estivesse segura aqui, certo? O ponto de destino nunca ia ser um segredo,
não é? Era tudo o que importava. Ela teria que ser um empecilho para
impedir um ataque de vocês. Não ia adiantar nada se não dissesse a você
exatamente onde ela estava.
McGrath grunhiu. Refletindo. Sem se deixar convencer.
— Subornaram o cara — Reacher disse. — Pode acreditar. Eles têm
reservas astronômicas, McGrath. Vinte milhões de dólares em letras de
câmbio ao portador roubadas.
— O roubo do carro-forte? — McGrath perguntou. — Pelas bandas do
Norte da Califórnia? Foram eles realmente?
— Estão se gabando disso — Reacher contou.
McGrath refletiu. Ficou pálido. Reacher notou e confirmou com a
cabeça.
— Correto — ele disse. — Vou dar uma de bidu: Brogan nunca estava
duro, certo? Nunca reclamava do salário, não é?
— Merda — McGrath disse. — Dois cheques de pensão alimentícia
por mês, namorada, ternos elegantes e nem me liguei por um instante
sequer. Apenas agradecia muito por ele não ser um dos queixosos.
— Aposto que está recebendo o seu próximo salário agora mesmo —
disse Reacher. — E Milosevic está morto ou preso em algum lugar.
McGrath concordou com a cabeça lentamente.
— E Brogan trabalhava na Califórnia — ele disse. — Antes de vir até
mim. Merda, nunca matutei sobre isso. Aposto dez contra um que ele era o
próprio agente que foi atrás de Borken. Ele disse que Sacramento não
conseguiu provas para enquadrar o cara. Disse que os arquivos não foram
muito claros sobre o motivo. O motivo é que Borken estava enchendo seu
rabo de grana para se certificar de que nada colasse. E o filho da puta
nadando em dinheiro.
Reacher confirmou com a cabeça. Não disse nada.
— Merdaaa! — McGrath exclamou. — Merda, merda, merda. Culpa
minha.
Reacher ainda não havia dito nada. Era mais diplomático
simplesmente ficar quieto. Ele entendia os sentimentos de McGrath.
Entendia a sua posição. Já estivera na mesma posição, de tempos em
tempos, no passado. Já tinha sentido a faca entrar nas costas, bem no meio
da omoplata.
— Vou dar um jeito no Brogan mais tarde — disse McGrath
finalmente. — Depois que pegarmos minha querida Holly. Ela falou de
mim? Ela se tocou que eu viria pegá-la? Ela mencionou isso?
Reacher confirmou com a cabeça.
— Ela me disse que confiava nos seus.
43

PELA PRIMEIRA VEZ EM VINTE ANOS O GENERAL Garber tinha


matado um homem. Havia sido sem querer. Tinha tencionado desmaiar o
sujeito e tomar a arma. Apenas isso. O homem fazia parte de uma barreira
interior de sentinelas. Foram postadas em intervalos irregulares, formando
uma cobra, cem metros ao sul do tribunal. Garber estava vasculhando para
cima e para baixo no mato e as localizara. Uma linha irregular de sentinelas,
talvez quarenta ou cinquenta metros entre uma e outra, duas nos
acostamentos da estrada e o resto na floresta.
Garber tinha selecionado uma mais próxima a uma linha reta entre ele
e o grande prédio branco. O homem precisava se mover. Garber necessitava
de acesso direto. E precisava de uma arma. Por essa razão, havia
selecionado o homem e rastejara para se aproximar mais dele. Conseguira
uma pedra do tamanho de um punho no chão úmido da floresta. Havia se
posicionado para ficar atrás dele.
A falta de treinamento dos milicianos tornava tudo fácil. Uma barreira
de sentinelas deve ser móvel. Seus membros devem ficar em constante
movimento, lado a lado, ao longo do perímetro que mandarem defender.
Desse modo, cobrem cada centímetro do território e descobrem se o homem
seguinte na fila foi atacado de tocaia e jogado no chão. Mas esses sujeitos
estavam estáticos. Simplesmente parados lá. Observando e escutando.
Tática ruim.
O homem selecionado estava usando um casquete, mas estava com a
camuflagem incorreta. Era um padrão irregular preto e cinza.
Cuidadosamente projetado para ser muito eficaz num ambiente urbano.
Inútil numa floresta ensolarada. Garber tinha vindo por trás do homem e lhe
dado a pedrada. Acertara com perfeição a parte de trás da cabeça.
Mas com força demais. O problema era que pessoas são diferentes.
Não há um padrão fixo de impacto para fazer o serviço. Não é como jogar
bilhar. Se você quer enfiar a bola na caçapa do canto, sabe quase
exatamente com que força deve dar a tacada. Mas com os crânios é
diferente. Alguns são mais duros. O deste homem não era. Rachou-se como
uma casca de ovo. A medula espinhal se rompeu bem no topo e o homem já
estava morto antes de bater no chão.
— Merda — Garber disse e bufou.
Não estava preocupado com a ética da situação. Não mesmo. Quarenta
anos lidando com caras durões que viram bandidos tinham angariado uma
porrada de pontos para ele, eticamente. Estava preocupado com os urubus.
Homens inconscientes não os atraem. Homens mortos sim. Urubus
circulando no céu espalham informação. Dizem a outras sentinelas: Um dos
seus está morto.
Portanto Garber modificou ligeiramente o seu plano. Pegou o M-16 do
falecido e avançou mais do que de fato queria. Moveu-se até vinte metros
de onde as árvores ficavam gradualmente mais espaçadas. Seguiu
laboriosamente para a direita e para a esquerda, até ver um afloramento, dez
metros além da borda do matagal. Seria o lugar da sua próxima penetração
cautelosa. Esgueirou-se atrás de uma árvore e se agachou. Desmontou o
rifle e verificou a sua condição. Remontou-o e ficou no aguardo.

Harland Webster rebobinou o vídeo pela quarta vez e assistiu à ação


novamente. A lufada de névoa rosa choque, o guarda desabando, o segundo
guarda decolando, a câmera subitamente dando zoom para mostrar toda a
clareira, o terceiro guarda silenciosamente se estirando no chão. Depois,
uma pausa longa. E em seguida a corrida desenfreada de curta distância de
Reacher. Reacher atirando corpos para fora do caminho, cortando as cordas,
levando McGrath às pressas para um lugar seguro.
— Cometemos um grande erro com aquele sujeito — disse Webster.
O general Johnson confirmou com a cabeça.
— Bem que eu queria que Garber ainda estivesse aqui — ele disse. —
Devo desculpas a ele.
— Os aviões estão com pouco combustível — disse o assessor em
meio ao silêncio.
Johnson concordou com a cabeça novamente.
— Mande um de volta — ele ordenou. — Não há mais necessidade de
dois lá em cima. Deixe um render o outro.
O assessor chamou Peterson e dentro de meio minuto três das seis telas
do veículo ficaram em branco quando o avião que circulava por fora saiu da
formação e seguiu para o sul. O outro avião relaxou o raio e reduziu o zoom
da câmera a fim de cobrir a área inteira. O close da clareira se dissolveu ao
tamanho de uma moeda e o grande tribunal branco ficou à vista, do lado
direito inferior das telas. Três cenários idênticos em três telas
incandescentes, um para cada um. Curvaram-se para a frente nas suas
cadeiras e assistiram. O rádio no bolso de Webster começou a crepitar.
— Webster? — A voz de Borken chamou. — Você está aí?
— Estou aqui — respondeu.
— Que negócio é esse com o avião? — Borken disse. — Você está
perdendo o interesse ou o quê?
Durante um segundo, Webster admirou-se como ele sabia. Então se
lembrou dos rastros de condensação. Eram como um diagrama lá em cima
no céu.
— Quem foi? — ele perguntou. — Brogan ou Milosevic?
— Que negócio é esse com o avião? — Borken perguntou novamente.
— Combustível — explicou Webster. — Ele terá que voltar.
Fez-se uma pausa. Então Borken retornou:
— Certo — ele disse.
— Então, quem foi? — Webster perguntou novamente. — Brogan ou
Milosevic?
Mas o rádio simplesmente emudeceu na cara dele. Apertou o botão de
desligar e notou Johnson olhando para ele. O rosto de Johnson dizia: O
militar provou ser bom e o cara do FBI provou ser pilantra. Webster deu de
ombros. Tentou transparecer pesar. Tentou fazer com que significasse nós
dois cometemos erros. Mas o rosto de Johnson disse: Você vacilou, você
deu bobeira.
— Temos um problemaço, certo? — o assessor disse. — Brogan e
Milosevic? Seja lá qual deles for o mocinho, ele ainda pensa que Reacher é
inimigo. E seja lá qual deles for o bandido, ele sabe que Reacher é inimigo.
Webster desviou os olhos. Retornou ao grupo de telas.

Borken recolocou o rádio no bolso do uniforme preto. Tamborilou os dedos


na escrivaninha do juiz. Retribuiu o olhar das pessoas.
— Uma câmera basta — ele disse.
— Com certeza — Milosevic ratificou. — Uma é tão boa quanto duas.
— Não queremos bisbilhoteiros aqui embaixo — avisou Borken. —
Então, precisamos pegar Reacher antes de fazermos qualquer outra coisa.
Milosevic lançou os olhos em volta, nervoso.
— Não olhe para mim — ele avisou. — Vou ficar aqui dentro.
Simplesmente quero o meu dinheiro.
Borken olhou para ele. Ainda pensativo.
— Você sabe capturar um tigre? — ele perguntou. — Ou um leopardo
ou coisa do gênero? Na selva?
— O quê? — Milosevic perguntou.
— Você amarra uma cabra numa estaca — disse Borken. — E fica de
tocaia.
— O quê? — Milosevic perguntou novamente.
— Reacher estava disposto a resgatar McGrath, certo? — Borken
disse. — Então talvez esteja disposto a resgatar o seu colega Brogan
também.

O general Garber ouviu o tumulto e arriscou subir alguns metros.


Conseguiu chegar onde as árvores rareavam e se agachou. Arrastou-se para
um lado, à sua esquerda, para ter uma vista melhor. O tribunal ficava bem
em frente, subindo a colina. A parede sul ficava de frente para o militar,
mas ele tinha um ângulo estreito na reta. Podia ver a entrada principal.
Podia ver os degraus até a porta. Viu que um grupo barulhento de homens
saía. Seis homens. Havia dois pontas de flanco, alertas, esquadrinhando o
terreno, rifles de prontidão. Outros quatro carregavam alguém, com as
pernas e os braços escancarados, rosto para baixo. A pessoa fora agarrada
pelos pulsos e os tornozelos. Era um homem. Garber reconheceu pela voz.
Ele dava trancos, debatia-se e gritava. Era Brogan.
Garber gelou. Sabia o que tinha acontecido com Jackson. McGrath
havia contado para ele. Levantou o rifle. Visando o ponta mais próximo.
Seguiu-o tranquilamente com a mira, conforme se movia da direita para a
esquerda. Então a sua visão periférica varreu outros cinco. Daí pensou na
barreira de sentinelas atrás dele. Fez uma careta e abaixou o rifle. Sem
chance. Criara uma regra: Concentre-se no trabalho em mãos. Ele a tinha
pregado como um Evangelho durante quarenta anos. E o trabalho em mãos
era tirar Holly Johnson viva dali. Arrastou-se para trás, para o interior da
floresta, e deu de ombros para os dois homens ao seu lado.
A tripulação do Chinook havia cambaleado para fora da aeronave
capotada e se afastado aos tropeços para dentro da floresta. Tinham pensado
que estavam seguindo para o sul, mas, desorientados, haviam se movido
rumo ao norte. Haviam passado diretamente pela barreira de sentinelas, sem
se dar conta, e tinham topado com um general de três estrelas sentado na
base de um pinheiro. O general os tinha arrastado para baixo e os mandara
se esconder. Pensaram que estavam sonhando e ficaram esperando acordar.
Não disseram um “a” e ficaram ouvindo até os gritos se esmorecerem atrás
dos escritórios do condado em ruínas.

Reacher e McGrath ouviram minutos mais tarde. Bem fraco, no início, bem
nas profundezas da floresta, à sua esquerda. E aí ficou mais alto. Moveram-
se juntos ao nível de uma abertura entre as cabanas, onde podiam ver do
baluarte até a embocadura da trilha. Estavam três metros dentro da floresta,
embrenhados o suficiente para estar bem escondidos, longe o bastante para
poder observar.
Viram os dois pontas irromperem na luz solar. Então mais quatro
homens, andando no mesmo passo, rifles a tiracolo, inclinando-se para fora,
os braços balançando algo pesado que carregavam. Algo que dava trancos,
debatia-se e gritava.
— Cristo — McGrath sussurrou. — Olha lá, é o Brogan.
Reacher fixou os olhos por um bom tempo. Silencioso. Então balançou
a cabeça.
— Eu estava errado — ele disse. — Milosevic é o pilantra.
McGrath imediatamente clicou o gatilho da Glock para liberar o
dispositivo de segurança.
— Espere — Reacher murmurou.
Moveu-se para a direita e sinalizou para McGrath seguir. Ficaram bem
no fundo, no meio das árvores, e seguiram paralelo aos seis homens e
Brogan para o outro lado da clareira. Os homens se moviam devagar através
do cascalho, e a gritaria de Brogan ficava mais alta. Passaram em volta dos
corpos, das estacas, das cordas cortadas e continuaram a andar.
— Estão indo para a cabana de punição — Reacher murmurou.
Eles os perderam de vista quando as árvores se fecharam ao redor da
trilha do descampado seguinte. Mas ainda puderam ouvir a gritaria. Parecia
que Brogan sabia exatamente o que ia acontecer com ele. McGrath
lembrou-se de quando tinha narrado detalhadamente o que Borken
conversara no rádio. Reacher lembrou-se de quando enterrara o corpo
destroçado de Jackson.
Arriscaram-se a chegar um pouco mais perto da clareira seguinte.
Viram os seis homens se dirigirem para a cabana sem janelas e pararem na
porta. Os pontas se voltaram e cobriram a área, armados com os rifles. O
sujeito agarrando o pulso direito de Brogan tirou desajeitadamente a chave
do bolso com a mão livre. Brogan gritou pedindo ajuda. Gritou pedindo
clemência. O sujeito destrancou a porta. Abriu-a. Parou surpreso no limiar e
gritou.
Joseph Ray saiu. Ainda completamente nu, com a roupa amontoada
nos braços. Sangue seco em todo o lado de baixo do rosto, como uma
máscara. Dançou e tropeçou sobre o cascalho. Os seis homens o
observaram ir embora.
— Que porra é essa? — McGrath murmurou.
— Depois te conto — murmurou Reacher em resposta.
Brogan foi largado no chão. Mas foi logo colocado de pé pelo
colarinho. Ficou olhando desenfreadamente ao redor e gritando. Reacher
viu o seu rosto, branco e apavorado, boquiaberto. Os seis homens o jogaram
na cabana. Entraram depois. A porta se fechou com um estrondo. McGrath
e Reacher se aproximaram. Ouviram gritos e o baque de um corpo batendo
contra as paredes. Esses sons continuaram durante vários minutos. Então se
fez silêncio. A porta se abriu. Os seis homens saíram em fila, sorrindo e
tirando o pó das mãos. O último homem ainda voltou correndo para dar um
pontapé final. Reacher ouviu a porrada acertar e o grito de Brogan. Então o
sujeito trancou a porta e saiu correndo atrás dos outros. Andaram
ruidosamente sobre o cascalho e desapareceram. A clareira caiu no silêncio.

Holly mancou no chão elevado até a porta. Encostou a orelha nela e aguçou
os ouvidos. Nenhum barulho. Nenhum som. Mancou de volta até o colchão
e pegou a calça de farda sobressalente. Usou os dentes para desfiar as
costuras. Rasgou o tecido até separar a parte dianteira de uma das pernas.
Ficou coin um retalho de pano de talvez setenta centímetros de
comprimento e seis de largura. Levou-o para dentro do banheiro e encheu a
pia de água bem quente. Embebeu a tira de pano nela. E depois tirou a
calça. Torceu o tecido encharcado e o amarrou tão apertado quanto pôde em
volta do joelho. Deu um nó e voltou a vestir a calça. Imaginava que o tecido
molhado e quente poderia se encolher ligeiramente conforme secava.
Apertaria mais. Era o mais perto que ia chegar da solução do seu problema.
Manter a articulação rígida era o único jeito de aliviar a dor.
Então fez o que estivera ensaiando. Puxou a borracha da base da
muleta. Bateu a ponta metálica no azulejo do chuveiro. O azulejo se
despedaçou. Inverteu a muleta e usou a ponta do clipe do cotovelo curvado
para arrancar os cacos da parede. Selecionou dois. Cada um era um
triângulo irregular, estreito na base e pontudo. Usou a borda do clipe do
cotovelo para raspar a argamassa na ponta principal. Deixou a camada
superficial branca vitrificada intacta, como a lâmina de uma faca.
Colocou as armas nos dois bolsos. Fechou a cortina do chuveiro para
esconder o estrago. Recolocou o pé de borracha na muleta. Mancou de volta
ao seu colchão e se sentou para esperar.

O problema em utilizar apenas uma câmera era que ela precisava ser
ajustada para uma tomada bem ampla. Era o único jeito de cobrir a área
inteira. Portanto, uma área específica aparecia bem pequena na tela. O
grupo de homens carregando algo havia se destacado como um grande
inseto rastejando no vidro.
— É o Brogan?!? — Webster perguntou em voz alta.
O assessor rebobinou o vídeo e assistiu novamente.
— Está de cara para baixo — ele disse. — Fica complicado afirmar.
Deu pausa na sequência e deu zoom para ampliar a imagem. Ajustou o
joystick para pôr o homem com as pernas e os braços escancarados no
centro da tela. Deu zoom até que a imagem embaçasse.
— Complicado afirmar — ele disse novamente. — É um dos nossos,
isso é certo!
— Acho que era o Brogan — disse Webster.
Johnson olhou com atenção. Usou o indicador e o polegar na tela para
calcular a altura do sujeito, da cabeça aos pés.
— Qual é a altura dele? — perguntou.

— Qual é a altura dele? — Reacher perguntou repentinamente.


— O quê? — McGrath indagou.
Reacher estava atrás de McGrath no meio das árvores, olhando
fixamente para a cabana de punição. Fitava a parede dianteira. Mais ou
menos três metros e setenta de comprimento, dois metros e meio de altura.
Da direita para a esquerda, havia um painel de setenta centímetros, depois a
porta, oitenta centímetros de largura, com dobradiças à direita, maçaneta à
esquerda. E em seguida um painel, de provavelmente dois metros e trinta de
largura, descendo até a ponta do prédio.
— Qual é a altura dele? — Reacher perguntou novamente.
— Caramba, o que isso tem a ver? — McGrath perguntou.
— Acho que tem sim — insistiu Reacher.
McGrath se voltou e o encarou.
— Um e setenta e cinco, talvez setenta e oito — ele disse. — Não é
nenhum gigante.
O revestimento era composto de ripas horizontais, dois e meio por um
e vinte, pregadas por cima da armação. Havia uma junção a meio caminho
para cima. O chão era provavelmente de tábuas de três quartos colocadas
por cima de outras de sessenta por um e vinte. Por isso, o chão começava
quase doze centímetros acima do fundo do revestimento exterior. Cerca de
quatro centímetros abaixo do fundo da entrada da porta.
— Magricela, certo? — Reacher perguntou.
McGrath ainda estava com os olhos grudados nele.
— Trinta e oito, quarenta, é meu melhor palpite — ele disse.
Reacher balançou a cabeça. As paredes deveriam ser de tábuas de
sessenta por um e vinte, revestidas por dentro e por fora com compensado.
Uns quinze centímetros aproximadamente de espessura no total, talvez
menos se o revestimento interior fosse mais fino. Digamos que a frente
interior da parede dos fundos, de doze centímetros, a partir do canto, e o
chão fosse de doze centímetros, a partir do fundo.
— Destro ou canhoto? — Reacher perguntou.
— Desembucha o que você quer — McGrath silvou que nem cobra.
— Responde! — Reacher foi enfático.
— Destro — McGrath disse. — Tenho quase certeza absoluta.
As tábuas de sessenta por um e vinte estariam em centros de quarenta
centímetros. Era a dimensão padrão. Mas do canto da cabana até a borda
direita da porta a distância era de apenas sessenta centímetros. Sessenta
centímetros, menos doze centímetros, para a espessura da parede dos
fundos, seriam quarenta e oito centímetros. Havia provavelmente uma tábua
de sessenta por um e vinte bem no meio daquele vão. A menos que fossem
mesquinhos, o que não era nenhum problema. A parede estaria cheia de
chumaços de fibra de vidro, como isolante.
— Chega pra lá — Reacher murmurou.
— Por quê? — McGrath indagou.
— Apenas obedeça — Reacher respondeu.
McGrath saiu da frente. Reacher olhou para algum lugar a trinta
centímetros da ponta da cabana e um pouco menos de um metro e meio do
fundo. Virou para a esquerda e apoiou o ombro numa árvore. Levantou o
seu M-16 e mirou.
— Que diabos você está fazendo? — McGrath murmurou.
Reacher não respondeu. Apenas esperou a batida do coração e atirou.
O rifle estalou e a bala atravessou a lateral a cem metros de distância. Trinta
centímetros a partir do canto, um metro e meio do chão.
— Que diabos você está fazendo? — McGrath murmurou novamente.
Reacher apenas agarrou o braço do policial e o puxou para o matagal.
Arrastou-o para o norte e esperou. Duas coisas aconteceram. Os seis
homens voltaram correndo para a clareira. E a porta da cabana de punição
se abriu. Brogan apareceu em pé, mas completamente grogue. O ombro
direito estava quebrado e sangrava bastante. Na mão direita, segurava o seu
.38 do FBI. O cão estava puxado. O dedo firme no gatilho.
Reacher ajustou o M-16 para disparos contínuos. Costurou o chão com
cinco rajadas de três cartuchos, a meio caminho da clareira. Os seis homens
fugiram derrapando, como se estivessem repentinamente enfrentando uma
barreira invisível ou uma queda do alto de um rochedo íngreme. Correram
para o matagal. Brogan saiu da cabana. Estava numa faixa de luz do sol e
tentava levantar o revólver. O braço não obedecia. Pairava inutilmente.
— Isca — Beacher concluiu. — Acharam que eu iria atrás dele. Ele
estava armado de tocaia atrás da porta. Eu sabia que ele era o bandido. Mas
eles me passaram a perna por um momento.
McGrath balançou a cabeça lentamente. Fitou o .38 oficial na mão de
Brogan. Lembrou-se de que o seu havia sido confiscado. Levantou a Glock
e apoiou o pulso contra uma árvore. Mirou pelo cano.
— Esquece — Reacher disse.
McGrath manteve os olhos em Brogan e discordou com a cabeça.
— Não vou me esquecer disso — ele disse baixinho. — O filho da
puta vendeu a Holly.
— Eu quis dizer esqueça a Glock — explicou Reacher. — São cem
metros. A Glock nem vai chegar perto. Você daria sorte de acertar a porra
da cabana daqui.
McGrath baixou a Glock e Reacher entregou o M-16 para ele.
Observou com interesse quando McGrath mirou.
— Onde? — Reacher perguntou.
— No peito — McGrath disse.
Reacher concordou com a cabeça.
— No peito é uma boa — ele devolveu.
McGrath se aprumou e atirou. Saiu-se bem, mas... O rifle ainda estava
ajustado para rajada e ele deu três tiros. O primeiro acertou na parte
superior esquerda da testa de Brogan, e os outros dois ziguezaguearam para
cima e arrancaram fragmentos do caixilho da porta. Razoável. Porém bom o
suficiente para dar conta do recado. Brogan desmoronou como uma
marionete com os cordões cortados. Simplesmente desabou no chão,
diretamente na frente da entrada. Reacher pegou o M-16 de volta e deu uma
rajada entre as árvores, na borda da clareira, até que o pente ficasse sem
balas. Recarregou e devolveu a Glock para McGrath. Apontou com a
cabeça para ele seguir para o leste, pela floresta. Voltaram-se juntos e deram
de cara com Joseph Ray. Estava desarmado e parcialmente vestido. O
sangue havia secado no seu rosto como tinta marrom. Mexia
desajeitadamente nos botões da camisa. Estavam abotoados nas casas
erradas.
— As mulheres e as crianças vão morrer — ele os alertou.
— Vocês têm uma hora, Joe — respondeu Reacher. — Espalhe a
notícia. Se alguém quiser sobreviver, é melhor fugir para as colinas.
O sujeito apenas discordou com a cabeça.
— Não — ele disse. — Temos de nos reunir no campo de exercícios.
Essas são as nossas instruções. A gente tem que esperar pelo Beau lá.
— Beau não vai — avisou Reacher.
Ray discordou com a cabeça novamente.
— Ele vai sim — disse. — Você não vai vencer o Beau, seja lá quem
você for. É impossível. Temos que esperar por ele. Vai falar pra gente o que
fazer.
— Fuja, Joe — insistiu Reacher. — Pelo amor de Deus, tire as suas
crianças daqui.
— Beau diz que elas têm que ficar — Ray disse. — Ou para usufruir
dos frutos da vitória ou para sofrer as consequências da derrota.
Reacher simplesmente o encarou. Os olhos brilhantes de Ray reluziam.
Os dentes apareceram num breve sorriso desafiador. Ele abaixou a cabeça e
saiu correndo.
— As mulheres e as crianças vão morrer? — McGrath repetiu.
— É a propaganda política de Borken — explicou Reacher. — Fez a
cabeça de todos eles, dizendo que o suicídio compulsório é a punição pela
derrota por aqui.
— E estão levando isso na boa? — McGrath perguntou.
— Lavagem cerebral braba — disse Reacher. — É pior do que você
pode imaginar.
— Não estou interessado em ganhar deles — disse McGrath. — No
momento, simplesmente quero resgatar Holly.
— Faço minhas as suas palavras — disse Reacher.
Continuaram a andar em silêncio, pelas árvores, na direção do
baluarte.
— Como você sabia? — McGrath perguntou. — Sobre o Brogan.
Reacher deu de ombros.
— Simplesmente tive o pressentimento — ele respondeu. — A cara
dele, suponho. Gostam de socar a cara dos outros. Fizeram isso com você.
Mas Brogan não tinha marca nenhuma. Vi a cara dele, nenhum machucado,
nenhum sangue. Me liguei que tinha algo errado ali. A excitação de uma
emboscada e a tensão estariam dando uma dura nele bem descontraídos.
Como fizeram com você. Mas ele era da turma deles; portanto,
simplesmente entrou, apertando a mão da cambada toda.
McGrath concordou com a cabeça. Levantou a mão e apalpou o nariz.
— Mas e se você estivesse errado? — ele questionou.
— Não teria galho — disse Reacher. — Se eu estivesse errado, ele não
estaria de pé atrás da porta. Estaria caído no chão, com um monte de
costelas quebradas, já que toda aquela pancadaria teria sido pra valer.
McGrath concordou com a cabeça novamente.
— E toda aquela gritaria — continuou Reacher. — Desfilaram bem
devagar, com o sujeito gritando feito um doido. Estavam tentando atrair a
minha atenção.
— Eles são bons nisso — McGrath disse. — Webster está
enlouquecido. Ele não entende por que Borken parece tão determinado a
chamar atenção, agora quando esta coisa toda muito mais do que precisa.
Estavam no mato. Na metade do caminho, entre a pequena clareira e o
baluarte. Reacher parou. Como se o fôlego tivesse sido arrancado dele. As
mãos subiram para a boca. Ele parecia sufocar, como se todo o ar tivesse
sido sugado do planeta.
— Puta que pariu, eu sei a razão — ele disse. — É uma isca.
— O quê? — McGrath perguntou.
— Estou tendo um mau pressentimento — disse Reacher.
— Sobre o quê?!? — McGrath lhe perguntou, insistentemente.
— Borken — Reacher respondeu. — Algo aqui não cheira bem. As
intenções dele. Dar o primeiro golpe. Mas onde está Stevie? Quer saber de
uma coisa? Acho que são dois primeiros golpes, McGrath. Este negócio
aqui em cima e algo mais, em outro lugar. Um ataque surpresa. Como Pearl
Harbor, como a porra dos seus livros de guerra. Por isso ele está
determinado a agravar tudo. A Holly, o negócio do suicídio. Ele quer toda a
atenção aqui em cima.
44

HOLLY ESTAVA EM PÉ, OLHANDO PARA A PORTA, quando foram


pegá-la. A atadura apertada no joelho estava secando e endurecendo.
Portanto ela tinha que ficar em pé, pois sua perna já não se curvava mais. E
queria ficar em pé, porque era a melhor posição para agir.
Ouviu os passos no corredor. Ouviu-os fazer barulho ao subir a escada.
Dois homens, calculou. Ouviu-os parar diante de sua porta. Ouviu a chave
entrar e a fechadura dar um clique. Deu uma piscadela longa enquanto
enchia os pulmões. A porta se abriu. Dois homens entraram. Ambos
armados com rifles. Ela estava de pé e os encarou. Um deles deu um passo
à frente.
— Pra fora, vadia — ordenou.
Ela pegou a muleta. Apoiou-se nela pesadamente e mancou pelo chão.
Lentamente. Queria ir para fora antes que percebessem que podia se mexer
melhor do que pensavam. Antes que percebessem que estava armada e era
perigosa.

— “Dar o primeiro golpe” — disse Reacher. — Interpretei tudo errado.


— Por quê? — McGrath perguntou com urgência.
— Porque não vi Stevie — respondeu Reacher. — Desde hoje bem
cedo. Stevie não está mais aqui. Foi pra outro lugar.
— Reacher, você não está falando coisa com coisa — disse McGrath.
Reacher sacudiu a cabeça como se estivesse clareando as ideias e
voltou à concentração. Começou a correr para o leste, pelas árvores.
Falando baixo, mas com urgência:
— Eu estava errado — ele se chateou. — Borken disse que iam dar o
primeiro golpe contra o sistema. Pensei que ele queria dizer a declaração de
independência. Pensei que essa fosse a iniciativa. A declaração e a batalha
para segurar este território. Pensei que fosse isso. Só isso. Mas estão
arquitetando outra coisa também. Em outro lugar. Estão arquitetando duas
coisas ao mesmo tempo. Simultâneas.
— O que você está falando? — McGrath perguntou, impaciente.
— Presta bem atenção — Reacher disse. — A declaração de
independência está concentrando os holofotes aqui em cima, em Montana,
certo?
— Com certeza. Planejavam ter a CNN e as Nações Unidas aqui pra
verem tudo acontecer. Haja holofote!
— Mas teriam estado no lugar errado. Borken tinha uma estante cheia
de teorias dizendo pra não fazer o que esperam. Uma prateleira inteira sobre
Pearl Harbor. Ouvi ele falando na mina. Quando estava pegando o lança-
mísseis. Fowler estava com ele. Borken disse para Fowler que hoje à noite
este lugar ia estar lá embaixo na lista de prioridades. Então eles vão agir em
outro lugar também. Algo diferente talvez até maior. Explosões em dobro
contra o sistema.
— Mas o quê? E onde? Perto daqui?
— Não. Provavelmente bem longe. Como Pearl Harbor. Estão
expandindo o alcance, tentando dar um golpe de enormes proporções em
algum lugar. Daí o fator tempo ser importante aqui. Será tudo coordenado.
McGrath o encarou.
— Eles planejaram com eficácia — Reacher resignou-se. — Atraindo
a atenção de todo mundo pra cá. Independência. Aquele negócio que iam
fazer contigo. Iam te matar lentamente, na frente das câmeras. E depois as
ameaças de suicídio coletivo, mulheres e crianças morrendo. Um cerco de
proporções históricas. Pra ninguém procurar em qualquer outro lugar.
Borken é mais inteligente do que eu pensava. Um golpe em dose dupla,
cada um cobrindo o outro. Todo mundo olhando para cá, daí algo grande
acontece em outro canto, todo mundo vai pra lá e ele consolida a sua nova
nação aqui.
— Mas onde está acontecendo, pelo amor de Deus? — McGrath
perguntou. — E o que diabos é?
Reacher parou e fez um gesto negativo com a cabeça.
— Eu simplesmente não sei — respondeu.
E aí parou. Houve um estrondo mais adiante, e uma patrulha de seis
homens apareceu em volta de uma moita espessa de pinheiros, parou de
supetão na frente deles. Tinham M-16 nas mãos, granadas no cinto e uma
mescla de surpresa e prazer estampadas no rosto.
Borken havia mobilizado todos os seus soldados para caçar Reacher, exceto
os dois que tinha reservado para cuidar de Holly. Ele os ouviu começar a
descer a escada do tribunal. Puxou o rádio do bolso e o abriu. Estendeu a
antena grossa e apertou o botão.
— Webster? — chamou. — Concentre-se, está bem? Falaremos
novamente em um minuto.
Não esperou nenhuma resposta. Somente desligou o rádio e virou a
cabeça ao rastrear a trilha do som dos passos que estavam vindo.

A setenta metros ao sul, Garber os viu sair pela porta e descer as escadas.
Ele havia saído do matagal, avançando e se agachando atrás do
afloramento. Calculou que era seguro o bastante agora que tinha um tipo de
apoio. A tripulação do Chinook estava trinta metros atrás dele, bem
separados, bem escondidos, instruídos para gritar se alguém se aproximasse
pela retaguarda. Portanto, Garber estava sossegado, com o olhar fixo
encosta acima, no grande edifício branco.
Viu dois homens armados, barbudos, começando a descer a escada.
Estavam arrastando uma figura menor, com uma muleta. Um halo de cabelo
escuro, farda verde arrumada. Holly Johnson. Nunca a tinha visto. Só nas
fotografias que os agentes do FBI haviam mostrado. As fotografias não
faziam jus a ela. Mesmo de setenta metros, ele podia sentir a paixão do seu
caráter. Uma espécie de energia radiante. Sentiu e puxou o rifle para mais
perto.

O M-16 nas mãos de Reacher era um produto de 1987, manufaturado pela


Colt Firearms Company, em Hartford, Connecticut. Era a versão A2. Sua
nova característica principal era a substituição do fogo automático pela
rajada. Para economizar, o gatilho retravava após cada rajada de três balas.
A ideia era desperdiçar menos munição.
Seis alvos, três balas fresquinhas do pente, um total de dezoito balas e
seis estocadas no gatilho. Cada rajada de três balas levava um quinto de
segundo; portanto, a sequência total de tiros demoraria somente um
segundo e um quinto ou doze décimos de segundo. Puxava o gatilho
repetidas vezes, o que desperdiçava tempo. Desperdiçou tanto, que ele ficou
com problemas após o quarto cara morrer. Não estava mirando. Apenas
rastreava casualmente em forma de arco, da esquerda para a direita, alcance
curto dos corpos à sua frente. Os rifles inimigos começaram a ser apontados
num único movimento. Os primeiros quatro nunca chegaram a ser. Mas o
quinto e o sexto já estavam levantados na horizontal, na hora em que o
quarto caía no chão, pouquinho mais do que dois segundos.
Portanto, Reacher apostou tudo. Fez o tipo de aposta instintiva tão
rápida que chamá-la de decisão de meio segundo seria fracionar a
velocidade por um fator absurdo. Apontou seu M-16 direto para o sexto
sujeito, totalmente seguro de que McGrath pegaria o quinto com a Glock.
Era o tipo de aposta instintiva em que você não se baseia em absolutamente
nada, a não ser num pressentimento, que por sua vez não está baseado em
absolutamente nada, a não ser no jeitão do teu parceiro. Então se compara
com o jeitão de outras pessoas que, no passado, valeu a pena confiar.
Os estalidos átonos da Glock se perderam sob o matraquear do M-16, e
o quinto cara morreu simultaneamente ao sexto. Reacher e McGrath caíram
para o lado juntos nas moitas e se estatelaram na terra. Olharam através do
súbito silêncio morto para a fumaça de cordite que estava levantando
suavemente pelos raios de luz solar. Nenhum movimento. Nenhum
sobrevivente. McGrath deu um grande suspiro e levantou a mão da
superfície do chão. Reacher se voltou e a apertou.
— Você é bem rápido pra um coroa — ele brincou.
— É por isso que virei coroa — McGrath respondeu.
Levantaram-se lentamente e mergulharam mais para a frente nas
árvores. Então puderam ouvir outras pessoas se movendo em direção a eles
na floresta. Eram muitas. Moviam-se para o noroeste, saindo do baluarte.
McGrath levantou a Glock novamente e Reacher ajustou o M-16 de volta
para tiros individuais. Tinha doze balas de sobra. Muito pouco para
desperdiçar, até com a tecnologia de economia A2. Mas então viram
mulheres entre as árvores. Mulheres e crianças. Alguns homens com elas.
Grupos de famílias. Marchavam em fila dupla. Reacher viu Joseph Ray,
com uma mulher ao seu lado, dois rapazes marchando inexpressivamente na
frente dele. Viu a mulher da cozinha do refeitório, marchando lado a lado
com um homem. Três crianças andavam impassíveis na frente deles.
— Onde estão indo? — McGrath sussurrou.
— Pro campo de exercícios — informou Reacher. — Borken mandou.
— Por que não saem correndo? — McGrath questionou.
Reacher encolheu os ombros e permaneceu em silêncio. Não tinha
explicação. Continuaram escondidos, observando os rostos inexpressivos
passando pelo matagal rajado. Então tocou no braço de McGrath, correram
pelas árvores e saíram por trás do refeitório. Reacher olhou cautelosamente
à sua volta. Esticou-se e agarrou o ressalto do telhado. Colocou um pé no
parapeito e puxou a si mesmo para cima. Engatinhou pelo telhado e se
firmou contra a chaminé de metal brilhante. Levantou o binóculo roubado e
focalizou o sudeste, para baixo e em direção à cidade, pensando: Certo, mas
o que mais está acontecendo? E onde?

O assessor do general Johnson estava mais acostumado com o computador,


ou por ser meio nerd, ou por ser mais jovem. Usou os botões de borracha e
o joystick para focar a área em frente à escadaria do tribunal. Então tirou o
close para enquadrar a vista. Ficou com a face oeste do tribunal à direita da
tela e a face leste das ruínas do cartório do condado à esquerda. Os dois
descampados ficaram no meio, um abandonado e esburacado, o outro ainda
razoavelmente plano. A estrada se estendia verticalmente no centro da
imagem, como um mapa. O jipe que havia trazido McGrath ainda estava lá,
onde o tinham largado. O assessor o usou para verificar o foco. Estava
nítido e claro. Era um veículo do excedente militar. Estampas brancas
manchadas. Dava para ver o para-brisa dobrado para baixo, um estojo de
lona de mapas, latas de combustível e uma pá de cabo curto na traseira.
Todos viram os dois homens levarem Holly para fora. De cima,
formavam uma fila reta diagonal perfeita, com Holly sozinha no meio,
como o que se vê quando cai o número três no dado. Eles a tiraram e
esperaram. Então viram uma enorme figura descer as escadas do tribunal,
como um elefante, atrás deles. Era Borken. Ele pisou na estrada e levantou
os olhos. Olhou diretamente para a câmera, invisível a dez mil metros de
altura. Encarou e acenou. Levantou a mão direita, bem alto. Havia uma
arma preta nela. Então, olhou para baixo e dedilhou nervosamente algo na
mão esquerda. Levou ao ouvido. O rádio na escrivaninha na frente de
Webster crepitou. Webster o pegou e abriu.
— Sim? — disse.
Viram Borken acenar para a câmera no céu novamente.
— Está me vendo? — perguntou.
— Lógico — respondeu Webster calmamente.
— Está vendo isto? — Borken perguntou.
Levantou a arma novamente. O assessor do general deu um close. O
porte enorme de Borken encheu a tela. Rosto rosado virado para cima,
segurando no alto a pistola preta.
— Estamos vendo — informou Webster.
O assessor deu close novamente. Borken retornou a sua perspectiva
normal.
— Sig-Sauer P226 — disse Borken. — Conhece?
Webster fez uma pausa. Olhou ao redor.
— Lógico — respondeu novamente.
— Nove milímetros — disse Borken. — Quinze balas no pente.
— E daí? — Webster perguntou.
Borken riu. Um som barulhento no ouvido de Webster.
— Chegou a hora de praticar tiro ao alvo — disse Borken. — E
adivinha só quem é o alvo?
Viram os dois homens irem em direção a Holly. Depois viram a muleta
de Holly aparecer. Ela a estendeu para a frente com ambas as mãos. Enfiou
como uma lança direto na barriga do primeiro homem. Puxou de volta
como um chicote e a brandiu. Girou e encostou-a na cabeça do segundo.
Mas era de alumínio leve. Sem peso para empuxo. Largou-a e enfiou as
mãos nos bolsos. Tirou-as com algo em cada palma. Coisas que reluziam e
refletiam o sol. Pulou para a frente e açoitou desesperadamente a cabeça do
soldado. Dançou, girou e brandiu as armas reluzentes.
O assessor empurrou espasmodicamente o controle de zoom. O
primeiro homem estava no chão, agarrando a garganta e o rosto. Muito
sangue nas mãos. Holly fazia círculos rápidos, que cortavam o ar, como
uma pantera enjaulada girando na perna rija, com o outro pé dançando para
dentro e para fora enquanto se atirava para a esquerda e para a direita.
Webster podia ouvir a respiração alterada e ofegante pelo receptor do rádio.
Podia ouvir gritos e berros. Fitou a tela e implorou silenciosamente: Vá pra
esquerda, Holly, vá pro jipe.
Ela foi para a direita. Lançou a mão esquerda para o alto e manteve a
outra baixa, como um boxeador. Atirou-se contra o segundo homem. Ele
levantou o rifle, mas de través, uma manobra de pânico para repelir o golpe
dilacerante. Lançou o rifle para cima contra o braço dela, o cano atingiu o
seu pulso com um estalido. O caco saiu voando. Ela deu um pontapé sob o
rifle e o acertou nas bolas. Ele rodou para longe e desabou. Ela se atirou
contra Borken. Sua mão brilhante fez um arco violento. Webster ouviu um
guincho no ouvido. A câmera mostrou Borken se esquivando e Holly
tentando aplicar o bote fatal nele.
Mas, incrivelmente, o primeiro homem voltara a ficar de pé, atrás dela.
Ele hesitou. Depois volteou o rifle como um bastão. Acertando a parte de
trás da cabeça da agente com a coronha. Holly perdeu os sentidos. Sua
perna enrijeceu. Caiu por cima dela como um tronco de árvore e se estirou
na estrada, aos pés de Borken.

Dois corpos no chão. Um deles era Holly. Reacher ajustou o binóculo e a


fitou. Dois ainda estavam de pé. Um miliciano ensanguentado com um rifle
e Borken com uma pistola e o rádio. Bem próximos, visíveis através das
árvores, a mil e duzentos metros a sudeste, e a cem metros abaixo. Reacher
encarou Holly, inerte no chão. Ele a queria. Ele a amava por sua coragem.
Dois homens armados e Borken, e ela os havia enfrentado. Vencida, mas foi
para cima deles. Abaixou o binóculo e engatou as pernas em volta da
chaminé. Como se estivesse montando um cavalo de metal. A chaminé
estava quente. A parte de cima de seu corpo estava reta no declive do
telhado. Sua cabeça e ombros estavam ligeiramente acima do cume.
Levantou o binóculo novamente, prendeu a respiração e esperou.

Viram os gestos frenéticos de Borken, e logo o homem nocauteado estava


se levantando e se juntando ao outro que tinha batido em Holly. Eles os
viram prender os braços dela pelas costas e a colocarem de pé. A sua cabeça
pendia mole para baixo. Uma perna estava curvada e a outra, rija. Eles a
deixaram em pé sobre a rija e esperaram. Borken fez sinal para
continuarem. Eles a arrastaram para o outro lado da estrada. Então a voz de
Borken voltou aos ouvidos de Webster, barulhenta e chiada:
— Certo, a diversão acabou — disse. — Coloca o velho dela na linha.
Webster passou o rádio para Johnson. Ele o fitou. Levou-o ao ouvido.
— Qualquer coisa que quiser — ele jurou. — Qualquer coisa mesmo.
Apenas não a machuque.
Borken riu. Uma risadinha dissimulada, barulhenta, aliviada.
— Esse é o tipo de atitude que eu gosto — disse. — Agora olha isso.
Os dois homens arrastaram Holly para cima do outeiro, em frente ao
prédio do cartório arruinado. Arrastaram-na para o toco de árvore morta.
Eles a viraram e a fizeram dar uns passos até suas costas ficarem contra o
tronco. Prenderam seus braços em volta do toco pelas costas. A cabeça dela
deu sinal de vida. Ela a sacudiu, tonta. Um homem segurava ambos os
pulsos enquanto o outro mexia com algo. Algemas. Prendeu os pulsos da
moça atrás da árvore. Os dois homens saíram, voltaram em direção a
Borken. Holly deslizou pelo toco abaixo. Então se empurrou de volta e se
levantou. Sacudiu a cabeça novamente e olhou ao redor.
— Prática de tiro ao alvo — disse Borken no rádio.
O assessor de Johnson deu zoom na imagem. Borken estava se
afastando. Andou vinte metros para o sul e se voltou, a Sig-Sauer estava
apontada para o chão, o rádio contra o rosto.
— Lá vai — avisou.
Virou de lado e levantou a arma. Deixou-a absolutamente reta, ombros
virados como um duelista em filmes antigos. Olhou com os olhos meio
fechados cano abaixo e atirou. A pistola deu um coice silencioso e surgiu
uma lufada de pó na terra, a um metro de onde Holly estava imóvel.
Borken riu novamente.
— Péssimo — disse. — Preciso praticar mais. Pode levar um tempinho
até chegar perto. Mas tenho mais catorze balas, né?
Atirou novamente. Uma lufada de pó da terra. Um metro do outro lado
do toco.
— Faltam treze — Borken zombou. — A CNN deve ser a sua melhor
aposta, né? Ligue pra eles e conte a história toda. Deixe claro que é um
comunicado oficial. Mande Webster ratificar. Aí passe o rádio para eles.
Você não vai me dar a minha linha de fax, vou ter que me comunicar direto.
— Você é louco — disse Johnson.
— Você que é o louco aqui! — irritou-se Borken. — Eu sou uma força
da história. Eu não posso ser detido. Estou atirando na sua filha. A afilhada
do presidente. Você não entende, Johnson. O mundo está mudando. Eu
estou mudando o mundo. Ele será a minha testemunha.
Johnson ficou em silêncio. Atordoado.
— Certo — Borken continuou. — Vou desligar agora. Faça a ligação.
Restam treze balas. Se não tiver notícias da CNN, a última dará cabo dela.
Johnson ouviu a linha ficar muda, ergueu a vista para as telas e viu
Borken largar o rádio no chão. Viu-o levantar a Sig-Sauer com as duas
mãos. Viu-o mirar. Viu-o acertar um tiro bem entre os pés de sua filha.
Reacher descansou contra a chaminé quente e abaixou o binóculo. Fez um
cálculo mental desesperado. Um cálculo envolvendo tempo e distância.
Estava a mil e duzentos metros no sentido noroeste. Não conseguiria chegar
lá a tempo. E não conseguiria chegar silenciosamente. Deitou-se de bruços
no telhado do refeitório e falou para McGrath lá embaixo. A voz já estava
tranquila e relaxada. Como se estivesse fazendo um pedido num
restaurante.
— McGrath? — chamou. — Arrombe o depósito de armas. A última
cabana, separada das outras.
— Está bem — McGrath falou. — O que você quer?
— Você sabe como é um Barrett? — Reacher perguntou. — Um
bagulho poderoso e preto, com mira e um grande compensador de coice.
Encontre um pente cheio. Provavelmente estará ao lado dele.
— Está bem — McGrath disse novamente.
— Pra ontem — insistiu Reacher.

A visão de Garber a partir do sul clareou quando os dois soldados deram a


volta e ficaram atrás de Beau Borken. Meio que escondidos, como se não
quisessem atrapalhar sua mira. Borken estava a uns vinte metros de Holly,
metendo bala do alto do outeiro. Garber estava a setenta metros de
distância, abaixo do declive íngreme. Direto em frente, Holly estava bem à
esquerda. Borken estava bem à direita. O seu corpanzil vestido de preto,
perfeitamente delineado contra a parede sul do tribunal pintada de branco.
Garber viu que alguém tinha alvejado as janelas dos andares superiores com
a nova madeira branca. A cabeça de Borken estava enquadrada bem no
centro, contra um dos novos retângulos. Garber sorriu. Seria como atirar no
centro de um minúsculo alvo cor-de-rosa numa folha de papel branca.
Ajustou o M-16 para três tiros por vez e verificou visualmente. Então o
levantou até o ombro.

McGrath ficou na ponta dos pés e ergueu o Barrett para Reacher. Reacher
esticou a mão e o puxou para cima. Olhou para ele e devolveu a arma.
— Não é este — ele disse. — Encontre um com o número de série que
termina em cinco-zero-dois-quatro, falou?
— Por quê? — McGrath perguntou.
— Porque tenho certeza que ele atira direito — respondeu Reacher. —
Já usei antes.
— Jesus! — McGrath bufou.
Partiu pela segunda vez em carreira desabalada. Reacher se deitou
novamente no telhado, tentando manter os batimentos cardíacos sob
controle.

O décimo tiro de Borken já estava perigosamente se aproximando. Holly


pulou o máximo que suas algemas permitiam. Borken começou a andar
para a frente e para trás com prazer. Dava uns passos, ria e parava para
atirar. Garber mirava seu enorme corpanzil à esquerda e à direita contra a
parede branca do prédio. Apenas esperando até ele parar de se mexer.
Porque Garber tinha uma regra: faça o primeiro tiro valer a pena.

McGrath encontrou o rifle que Reacher tinha usado antes e o passou para o
telhado. Reacher o pegou e verificou o número. Confirmou com a cabeça.
McGrath correu como louco para a entrada da trilha pedregosa.
Desapareceu nela, correndo a toda. Reacher o observou se afastar. Colocou
os balaços no pente e verificou a mola. Apertou o pente suavemente com a
palma. Ergueu o Barrett até o ombro e o direcionou cuidadosamente na
direção do cume. Puxou a coronha e baixou o olho até a mira telescópica.
Usou o polegar esquerdo para acertar o foco a mais de mil metros. Alinhou
a lente com a trava. Colocou a palma esquerda sobre o cano. Acionou o
mecanismo macio e colocou um cartucho na culatra. Fitou a cena abaixo.
A mira do rifle agrupava tudo, e a geometria estava perfeita. Holly se
encontrava no topo do declive, bem em frente, só que mais para a direita.
Algemada à árvore morta. Olhou fixamente para seu rosto por um longo
momento. Então cutucou a mira. Borken estava abaixo dela, uns vinte
metros mais adiante, atirando na policial morro acima, ligeiramente à
esquerda. Dava pequenas voltas, para a frente e para trás. Mas em todo
lugar que decidia parar havia cem quilômetros de área rural vazia atrás de
sua cabeça. As paredes do tribunal estavam bem longe da trajetória de
Reacher. Seguro o bastante. Seguro, mas não fácil. Mil e duzentos metros
era uma distância e tanto. Expirou e esperou Borken parar de andar.
Então se concentrou. No canto do olho, vislumbrou o sol refletir em
metal fosco. Talvez a setenta metros mais adiante no declive. Uma rocha.
Um homem atrás da rocha. Um rifle. Familiar, com alguns fios grisalhos.
General Garber. Com um M-16, entrincheirado numa rocha, movendo o
cano de um lado para outro enquanto rastreava seu alvo, que por sua vez
dava pequenos passos a uns vinte metros diretamente à frente dele.
Reacher expirou e sorriu. Sentiu um grande alívio pela ajuda. Garber.
Ele tinha apoio. Garber, atirando de somente setenta metros. Naquele meio
segundo ele soube que Holly estaria segura. O influxo caloroso de gratidão
corria através dele.
Mas, de repente, sentiu um certo medo. Seu cérebro foi acionado como
por um raio. A geometria embaixo dele virou um diagrama terrível
mostrando uma explosão. Preto no branco, como uma explicação técnica de
um desastre. Do ângulo de Garber, o tribunal estava diretamente atrás de
Borken. Quando Borken parasse de se mexer, Garber atiraria nele. Poderia
acertar ou errar. De um jeito ou de outro, sua bala ia de encontro à parede
do tribunal. Provavelmente bem em cima do canto sudeste, no segundo
andar. A tonelada de dinamite velha voaria pelos ares num cogumelo de
fogo com uns quatrocentos metros de diâmetro. Reduziria Holly a pó e
estraçalharia o próprio Garber. A onda de calor arrancaria Reacher do
telhado do refeitório, a mil e duzentos metros de distância. Como é que
Garber não sabia disso?
Borken parou de andar. Ficou de lado e se aprumou. Reacher expirou
todo o ar dos pulmões. Moveu o Barrett. Mirou bem no centro da têmpora
de Holly Johnson, direto onde os sedosos cabelos escuros se avolumavam
contra seus olhos. Manteve os pulmões vazios e esperou o próximo
batimento cardíaco. E então apertou o gatilho.

Garber observou a arma de Borken levantar. Esperou até se estabilizar.


Olhou com os olhos meio fechados pelas estrias do M-16 e colocou a
cabeçorra rosa e branca bem no centro. Borken ficou lá, grande e óbvio
contra o borrão da parede branca ensolarada por trás. Esperou como o
ensinaram há muito tempo. Esperou até expirar e seu coração estar entre
batidas. Então puxou o gatilho.

O general Johnson tinha fechado os olhos. O seu assessor observava


atentamente a tela. Webster observava através dos dedos cruzados,
boquiaberto, como uma criança com uma babá inexperiente assistindo a um
filme de terror na televisão, bem depois de sua hora de dormir.

A primeira coisa a deixar o cano do Barrett de Reacher foi uma rajada de


gás quente. A pólvora no cartucho explodiu numa fração de um
milionésimo de segundo e se expandiu até virar uma bolha superaquecida.
Essa bolha de gás lançou a bala pelo cano e se forçou adiante e ao redor até
explodir na atmosfera. A maior parte dela havia explodido pelos lados, pelo
compensador de coice, num padrão radial perfeitamente homogêneo, como
uma rosquinha, para que o recuo movesse o cano diretamente para trás,
contra o ombro de Reacher, sem desviá-lo para os lados, para cima ou para
baixo. Enquanto isso, atrás dele, a bala começava a girar dentro do cano,
agarrada pelo estriamento.
E então o gás à frente da bala aqueceu o oxigênio no ar a ponto de
pegar fogo. Houve uma espécie de breve relâmpago de fogo e a bala
explodiu pelo centro exato, atravessando o ar queimado a cerca de três mil
quilômetros por hora. Um milésimo de segundo depois, estava a um metro
de distância, seguido de um cone de partículas de pólvora e uma lufada de
fuligem. Outro milésimo de segundo, estava a dois metros de distância e o
seu som a perseguia corajosamente, três vezes mais devagar.
A bala levou cinco centésimos de segundo para atravessar o baluarte, e
nesse meio-tempo o som do tiro acabava de passar pelas orelhas de Reacher
e atravessar a borda do telhado. A bala tinha um invólucro de cobre polido à
mão e voava direto para o seu destino, mas, na hora em que estava passando
sem som sobre a cabeça de McGrath, ela já tinha ligeiramente reduzido a
velocidade. A fricção do ar a tinha aquecido e freado. E o ar a movia.
Movia-a da direita para a esquerda, enquanto a suave brisa da montanha a
puxava imperceptivelmente. Meio segundo de viagem, a bala tinha coberto
quatrocentos metros e se movido dezoito centímetros para a esquerda.
E havia caído outros dezoito centímetros. A gravidade fazia seu papel.
Quanto mais a gravidade a puxava, mais a bala reduzia a velocidade.
Quanto mais reduzia a velocidade, mais a gravidade a desviava. Ela saiu
rasgando adiante, formando uma curva graciosa e perfeita. Um segundo
inteiro depois de ter deixado o cano, estava a oitocentos e vinte e três
metros de viagem. Havia passado, há muito tempo, por McGrath, voando a
toda, mas ainda estava acima das árvores. Ainda faltavam trezentos e
setenta e sete metros para o alvo. Outro sexto de segundo depois, havia
deixado as árvores para trás e estava ao lado do edifício de escritório
arruinado. Agora era uma bala lenta. Tinha sido puxada um metro e trinta
centímetros para a esquerda e um metro e meio para baixo. Passou bem
longe de Holly e estava seis metros além dela antes que ouvisse o assobio
no ar. O som do tiro ainda estava por vir. Tinha acabado de alcançar
McGrath, que corria que nem louco pelas árvores.
Então apareceu uma segunda bala no ar. E uma terceira... e uma quarta.
Garber havia atirado um segundo e um quarto depois de Reacher. Seu rifle
estava ajustado para automático. Atirou uma rajada de três. Três balas num
quinto de segundo. As suas eram menores e mais leves. Sendo mais leves,
eram mais rápidas. Iam a bem mais de três mil e duzentos quilômetros por
hora. Ele estava mais perto do alvo. Como suas balas eram mais rápidas e
mais leves, e ele estava mais perto, a fricção e a gravidade não
atrapalharam. As suas três viajaram praticamente retas.
A bala de Reacher acertou a cabeça de Borken um segundo e um terço
depois de ser disparada. Entrou pela testa e saiu atrás do crânio trinta
milésimos de segundo depois. Entrou e saiu sem reduzir muito a
velocidade, já que o crânio e o cérebro de Borken não eram empecilho
comparados a um projétil de cinquenta e seis gramas com uma ponta de
agulha e um invólucro de cobre polido. A bala havia deixado bem para trás
a floresta infindável mais além, antes da onda de pressão se acumular no
crânio de Borken e o explodir.
O efeito é matemático e tem relação direta com a energia cinética. Da
forma como foi explicado para Reacher, há muito tempo, tudo dizia respeito
a equivalências. A bala pesava apenas cinquenta e seis gramas, mas era
rápida. Equivalente a algo pesado, mas lento. Cinquenta e seis gramas a mil
e seiscentos quilômetros por hora talvez equivalessem a algo pesando cinco
quilos se movendo a cinco quilômetros por hora. Talvez algo como uma
marreta sendo brandida por um homem com toda a força. Era bem esse o
efeito. Reacher estava observando pela mira da arma. Com o coração na
boca. Um segundo e um terço é um bom tempo de espera. Observou o
crânio de Borken explodir como se tivesse sido golpeado por uma marreta.
Partiu-se como se um pinto estivesse saindo do ovo, só que mil vezes mais
rápido. Reacher viu fragmentos côncavos de osso explodindo para fora e
uma nuvem escarlate aflorando.
Mas o que ele não pôde ver foram as três balas de Garber, movendo-se
rapidamente pelo vazio, livres de obstáculos, desenfreadas em direção à
parede do tribunal.
45

O ERRO CLÁSSICO AO ATIRAR COM UMA ARMA automática é


deixar o recuo do primeiro disparo empurrar o cano para cima, fazendo com
que o segundo vá alto e o terceiro mais alto ainda. Mas Garber não tinha
cometido esse erro. Praticou horas a fio em estande para ter confiança a
setenta metros. Já passara por situações espinhosas o bastante para saber
como ficar calmo e concentrado. Colocou todas as três balas diretamente no
centro exato da bola cor-de-rosa que um dia foi a cabeça de Borken.
Gastaram vinte milésimos de segundo viajando através dela e seguiram
viagem sem interrupções. Atravessaram as chapas novas de compensado no
caixilho da janela. A bala principal ficou ligeiramente distorcida pelo
impacto e foi lançada para a esquerda, passando pela lateral interior de
pinheiro sessenta centímetros depois. Cruzou o quarto de Holly e varou a
parede, à esquerda da porta. Atravessou-a toda e se enterrou na parede do
fundo do corredor.
A segunda bala entrou quase pelo buraco da primeira, e então
atravessou a fenda, de sessenta centímetros, em linha reta. Saiu pela lateral
interior e foi jogada para a direita. Cruzou o quarto, atravessou a divisória
do banheiro e quebrou o vaso sanitário vagabundo de louça branca.
A terceira bala subiu somente uma fração. Bateu num prego na parede
exterior e virou em ângulo reto. Perfurou de lado e para baixo oito dos
novos caibros de cinco por dez centímetros como um cupim demente antes
que sua energia fosse dissipada. Terminou parecendo uma bolha de chumbo
pressionada no verso do novo madeiramento de pinheiro.

Reacher viu o clarão do cano de Garber pela mira telescópica do rifle. Sabia
que ele devia estar usando o modo de disparo contínuo. Sabia que os três
projéteis deviam ter batido na parede do tribunal. Olhou para baixo, a mil e
duzentos metros de distância, agarrou-se no telhado e fechou os olhos.
Esperou pela explosão.
Garber sabia que seus tiros não tinham matado Borken. Não houve tempo.
Mesmo lidando com frações minúsculas de segundo, há um ritmo. Atirar...
acertar. Borken foi aniquilado antes que suas balas pudessem ter chegado lá.
Portanto, alguém mais estava abrindo fogo. Havia uma equipe em ação.
Garber sorriu. Atirou novamente. Mandou ver o dedo no gatilho mais nove
vezes e espalhou pedaços de dois soldados de Borken contra a parede do
tribunal com suas vinte e sete balas restantes.

Milosevic saiu do saguão do tribunal e desceu as escadas correndo.


Segurava seu .38 do FBI para o alto na mão direita e seu distintivo dourado
na esquerda.
— FBI! — gritou. — Todo mundo parado!
Ele olhou para a direita, para Holly, depois para Garber, a caminho de
encontrá-lo, e para McGrath, que ainda estava correndo, dando a volta no
prédio do cartório. McGrath foi direto até Holly. Abraçou-a forte contra a
árvore morta. Ela estava rindo. Não podia retribuir o abraço porque suas
mãos ainda se encontravam algemadas atrás do toco. McGrath soltou-a e
desceu a ladeira correndo. Ergueu os braços, e ele e Milosevic bateram as
palmas das mãos uma na outra para comemorar.
— Quem está com as chaves? — McGrath gritou.
Garber apontou em direção aos dois soldados mortos. McGrath correu
até eles e revistou os bolsos gotejantes de sangue. Tirou uma chave e voltou
para o montículo. Abaixou-se atrás do toco e soltou os pulsos de Holly. Ela
saiu cambaleando para longe e McGrath se lançou para a frente e agarrou
seu braço. Milosevic encontrou a muleta na estrada e a atirou para eles.
McGrath a pegou no chão e deu a ela. Ela se firmou e desceu o morro, de
braços dados com McGrath. Chegaram ao terreno de cascalho e ficaram
parados lá, juntos, olhando fixamente ao redor na súbita quietude
ensurdecedora.
— A quem devo agradecer? — Holly perguntou.
Ela segurava o braço de McGrath, fitando os restos de Borken, estirado
a vinte metros de distância. O cadáver estava estatelado de costas no chão,
alto e largo. Praticamente decapitado.
— Este é o general Garber — McGrath o apresentou. — O chefão da
polícia do exército.
Garber discordou com a cabeça.
— Não fui eu — ele disse. — Alguém foi mais rápido.
— Também não fui eu — disse Milosevic.
Então Garber apontou com a cabeça para trás deles.
— Provavelmente foi aquele cara.
Reacher estava descendo o morro. Sem fôlego. Um corpo de quase
dois metros de altura e cem quilos servia para muitas coisas, mas não para
correr um quilômetro.
— Reacher! — Holly comemorou.
Ele a ignorou. Ignorou todo mundo. Correu para o sul e somente se
virou para erguer os olhos para a parede branca. Viu buracos de bala.
Muitos. Provavelmente trinta buracos, a maior parte deles espalhados pelo
segundo andar, no canto sudeste. Ele os fitou durante três segundos e correu
para o jipe estacionado no meio-fio. Pegou uma pá presa ali, abaixo do
galão de combustível sobressalente. Correu para as escadas. Passou
desenfreado pela porta e seguiu escada acima até o quarto de Holly. Correu
para a parede dianteira.
Pôde ver pelo menos uma dúzia de buracos na parede de madeira.
Buracos dentados e fragmentados. Bateu com a lâmina da pá num deles.
Partiu a chapa de pinho, de comprido, e usou a mesma pá para arrancá-la.
Enfiou a pá atrás da seguinte e a desgrudou dos pregos que a retinham.
Assim que McGrath entrou no quarto, ele havia exposto um metro e vinte
de tachas. Assim que Holly se juntou a eles, estavam fitando uma cavidade
vazia.
— Porra nenhuma de dinamite — ela disse baixinho.
Reacher se dirigiu para outra parede. Arrancou tábuas suficientes para
ter certeza.
— Nunca teve — Holly disse. — Merda, não acredito.
— Tinha sim — McGrath retificou. — Jackson falou que tinha.
Descreveu a coisa toda. Eu vi o relatório. Ele descarregou o caminhão com
mais sete caras. Trouxe-as aqui pra cima. Viu-as serem enfiadas nas
paredes. Pelo amor de Deus, uma tonelada de dinamite. É meio difícil de
confundir.
— Então colocaram aí dentro — disse Reacher. — Mas depois tiraram.
Deixaram as pessoas verem elas serem colocadas, daí removeram,
secretamente. Estão em outro lugar.
— Removeram? — Holly repetiu.
— As mulheres e as crianças têm que morrer — Reacher pensou alto,
lentamente.
— O quê? — Holly perguntou. — O que você está dizendo?
— Mas não aqui — ele disse. — Não são essas mulheres e crianças.
— O quê? — Holly perguntou novamente.
— Não é suicídio coletivo — concluiu Reacher. — É homicídio.
Então ele ficou inexpressivo. Em silêncio. Mas na sua cabeça estava
ouvindo algo. Ouvia a mesma explosão terrível que tinha ouvido treze anos
antes. O som de Beirute. O som das instalações dos fuzileiros, perto do
aeroporto. Ouvia mais uma vez, e isso o ensurdecia.
— Agora já sabemos o que é — ele murmurou através do estrondo
destruidor.
— O que é? — McGrath perguntou.
— Com a suspensão arriada — disse Reacher. — Mas não sabemos
aonde foi.
— O quê? — Holly perguntou novamente.
— As mulheres e as crianças têm que morrer — repetiu Reacher. —
Borken disse isso. Disse que as circunstâncias históricas justificavam. Mas
não estava falando dessas mulheres e dessas crianças daqui de cima.
— O que é que você está falando?!? — McGrath se impacientou.
Reacher olhou para ele, e depois para Holly, surpreso, como se os visse
pela primeira vez.
— Eu estive na frota — ele disse. — Vi o furgão. O nosso furgão. Ele
estava estacionado, com a suspensão arriada, como se tivesse com algo
muito pesado no interior.
— O quê? — Holly perguntou novamente.
— Eles prepararam um caminhão-bomba — garantiu Reacher. —
Stevie está entregando em algum lugar, algum lugar público. Esse é o outro
ataque. Vão explodir numa multidão. Há uma tonelada inteira de dinamite
dentro dele. E está seis horas na nossa dianteira.
McGrath foi o primeiro a descer a escada.
— Pro jipe! — ele gritou.
Garber correu para o jipe. Mas Milosevic estava muito mais próximo.
Pulou para dentro e o ligou. Então McGrath ajudou Holly a se sentar no
banco dianteiro. Reacher estava na calçada, com o olhar fixo para o sul,
perdido em pensamentos. Milosevic sacou seu revólver. Puxou o cão para
trás. Garber parou. Levantou o rifle e apontou. Milosevic inclinou-se na
frente de Holly. McGrath pulou para longe. Milosevic acelerou e foi embora
segurando a arma contra as costelas de Holly. Dirigir com apenas uma mão
numa estrada irregular como aquela fazia o jipe serpentear para todo lado.
Não tinha jeito de acertar Milosevic. Garber podia ver isso. Abaixou o rifle
e os observou partir.

— Os dois? — Webster pensou alto. — Por favor, Deus, diga que não.
— Poderíamos usar o outro helicóptero agora mesmo — disse o
assessor. — Acho que não temos que nos incomodar mais com os mísseis.
Ele direcionou a câmera para o norte e o oeste, e ampliou a área do
vale nas montanhas na frente da entrada das minas. Os quatro caminhões
com mísseis estavam parados. O corpo estirado da sentinela morta estava
próximo.
— Certo, chame um helicóptero — ordenou Johnson.
— Melhor vindo direto do senhor — sugeriu o assessor.
Johnson virou de lado para falar ao telefone. Depois virou novamente
para observar enquanto o jipe entrava na tela. Saía rapidamente da última
curva em U no vale e corria no cascalho. Desviava dos caminhões
estacionados e parou com um tranco, na frente do abrigo à esquerda.
Milosevic pulou para fora e se agitou em volta da capota. Revólver firme
contra Holly enquanto se aproximava. Puxou-a pelo braço e arrastou-a para
as grandes portas de madeira. Abriu uma com o pé e a empurrou para
dentro. Seguiu-a e a enorme porta se fechou. Webster tirou os olhos da tela.
— Peça um helicóptero, senhor — insistiu o assessor.
— O mais veloz que tiverem — acrescentou Webster.

O caminho mais rápido até as minas era um atalho pelo baluarte, deserto e
tranquilo. E les o atravessaram e seguiram para o norte, pelo estande de
tiros, em direção ao campo de exercícios. Pararam de repente no matagal. A
população restante de milicianos estava parada em silêncio em fila, rostos
impassíveis, temerosos, voltados para a frente, onde um caixote virado para
cima aguardava a chegada de Borken.
Reacher os ignorou e conduziu os outros margeando as árvores. Então
em linha reta para a estrada. Direto para o norte ao longo dela. Reacher
carregava o grande Barrett. Ele o tinha recuperado do telhado do refeitório,
adorava ele. Garber apressava-se ao seu lado. McGrath progredia tão rápido
quanto podia, desesperado para chegar até Holly.
Mergulharam de volta no matagal antes da última curva em U e
Reacher estava fazendo reconhecimento adiante. Escondeu-se atrás da
rocha que havia usado antes e cobriu cada centímetro do vale com a mira do
Barrett. Então acenou para os outros dois se juntarem a ele.
— Estão na frota — ele disse. — No galpão à esquerda.
Apontou o cano do rifle de franco-atirador. Os outros viram o jipe
abandonado e acenaram com a cabeça. Ele correu pelo cascalho e agachou-
se atrás da capota do primeiro caminhão de mísseis. Garber mandou
McGrath depois. Então correu. Agacharam-se juntos atrás do caminhão e
fitaram as portas de toras.
— E agora? — Garber perguntou. — Assalto frontal?
— Ele está com uma arma apontada para a cabeça dela — disse
McGrath. — Não quero que ela se machuque, Reacher. Ela é muito preciosa
para mim, está bem?
— Tem outra entrada aqui? — Garber perguntou.
Reacher fitou as portas e a lembrança da explosão da bomba em
Beirute sumiu e foi substituída pelo tranquilo choramingar de um pesadelo
antigo. Passou um minuto procurando desesperadamente uma alternativa.
Pensou nos rifles, nos mísseis e nos caminhões. Então desistiu.
— Mantenha ele ocupado — pediu. — Fale com ele, qualquer coisa.
Deixou o Barrett e pegou a Glock de McGrath. Esgueirou-se até o
próximo caminhão, e depois outro, durante todo o tempo, ao nível da
entrada da outra caverna. O ossuário, cheio de corpos, esqueletos e ratos.
Ouviu McGrath chamar Milosevic numa voz distante e fraca, e correu para
as grandes portas de toras. Mergulhou pela fenda e moveu-se novamente
para a escuridão.
Não tinha lanterna. Circundou tateando o transportador da tropa, e
entrou devagar na caverna. Manteve uma mão acima da cabeça e sentiu o
teto abaixar. Tateou atrás dos corpos na pilha macabra e os contornou.
Agachou-se e se dirigiu à esquerda para os esqueletos. Os ratos o estavam
ouvindo, cheiravam-no e se agitavam zangados, enquanto voltavam para
seus ninhos. Ele se ajoelhou, deitou-se e nadou pela pilha de ossos úmidos.
Percebeu o teto do túnel abaixar mais e as laterais o pressionarem. Respirou
fundo e sentiu o medo voltar.
O helicóptero mais veloz disponível naquele dia era um Night Hawk do
corpo de fuzileiros navais baseado em Malmstrom. Era uma máquina longa,
pesada, corcunda, mas bem veloz. Dentro de alguns minutos após a ligação
de Johnson, já começava a subir e recebia ordens de se dirigir para o
noroeste a um desvio de cascalho na última estrada em Montana. Então
estava no ar. O piloto da marinha encontrou a estrada e a seguiu para o
norte, rápido e rasteiro, até encontrar um grupo de veículos militares de
comando, estacionados um perto do outro numa reentrância de rocha.
Balançou-se para trás, pousou no desvio e esperou. Viu três homens
correndo para o sul em direção a ele. Um era civil e dois, do exército. Um
era coronel e o outro, simplesmente o chefão do Estado-Maior. O piloto deu
de ombros para o seu colega, que apontava para cima, além da capota de
Plexiglass. Havia um rastro solitário de condensação, talvez a dez mil
metros acima. Um grande jato desenrolava uma espiral sucinta e ia a toda
para o sul. O piloto deu de ombros novamente e calculou que o que quer
que estivesse acontecendo acontecia ao sul. Portanto, fez um cálculo de
curso provisório e ficou surpreso quando as altas patentes escalaram a
bordo e ordenaram que fosse para o norte em direção às montanhas.

Reacher estava rindo. Arrastava-se ao longo do túnel e ria alto. Sacudia-se e


chorava de tanto rir. Não temia mais. O aperto forte da pedra contra seu
corpo era como uma carícia. Tinha passado por isso uma vez, e sobrevivera.
Era possível. Ele ia conseguir atravessar.
O medo havia retornado tão repentinamente como desaparecera.
Atravessou a pilha de ossos na escuridão, esticou-se e sentiu a rocha se
comprimir contra as suas costas. O peito estava esmagado e da sua garganta
já não saía uma palavra sequer. Tinha sentido a onda úmida e quente de
pânico subindo pelas pernas e se apertara contra a terra. Tinha sentido a sua
força se esgotar. Depois se concentrou. O trabalho em mãos. Holly. O
revólver de Milosevic contra aquele cabelo sedoso, aqueles olhos
encantadores, mas inexpressivos por causa do desespero. Ele a tinha visto
em sua mente no fim do túnel. Holly. Depois o túnel pareceu se endireitar e
virar um tubo liso e quente. Exatamente do tamanho dos seus ombros
largos. Como se fosse talhado para ele, somente para ele. Uma simples
viagem horizontal. Tinha aprendido há muito tempo que podia até ter medo
de algumas coisas, mas de outras não. Coisas que havia feito antes e
sobrevivera não justificavam o medo. Ficar com medo de uma coisa que
dava para sobreviver era irracional. E Reacher podia ser muitas coisas, mas
sabia que era um homem racional. Naquele meio segundo, o medo
simplesmente desapareceu e ele então relaxou. Era um lutador. Um
vingador. E Holly esperava por ele. Arrastou-se para a frente, como um
nadador mergulhando e se precipitou pela montanha em direção a ela.
Continuou a se arremeter em ritmo compassado. Como se estivesse
seguindo pela estrada aberta, só que deitado e na total escuridão. Fazia
pequenos movimentos com as mãos e os pés. Com a cabeça abaixada.
Rindo de alívio. Sentiu que o túnel se tornava mais estreito e o apertava.
Continuou a escorregar para dentro. Sentiu uma parede adiante e dobrou-se
aprumadamente em volta do canto. Respirou e parou de rir. Disse a si
mesmo que havia chegado a hora de ficar quieto. Rastejou adiante tão
rápido quanto podia. Diminuiu o ritmo quando sentiu o teto começar a
subir. Arrastou-se para a frente, até que o cheiro do ar lhe mostrasse que
estava quase atravessando.
Então ouviu o helicóptero. Ouviu o bater fraco dos rotores a distância.
Ouviu um arrastar de pés a quarenta metros à sua frente. O som inarticulado
de surpresa e pânico. Ouviu a voz de Milosevic. Aguda. Com sotaque
californiano.
— Mantenha esse helicóptero longe daqui — gritou Milosevic pela
porta.
O barulho se intensificava. Ficava mais alto.
— Deixa ele longe, está ouvindo? — Milosevic gritou. — Eu vou
matar ela, McGrath. Eu juro, está ouvindo?
Estava totalmente escuro. Havia veículos entre Reacher e as fendas de
luz em volta da porta. Mas não o furgão branco. Tinha sumido. Chegou ao
espaço onde ele estivera e puxou a Glock da cintura. O bater das pás do
rotor estava muito perto. Martelava as portas e enchia a caverna.
— Vou negociar ela com você — gritou Milosevic pela porta. — Se eu
sair daqui inteiro, você leva ela, está bem? McGrath? Está me ouvindo?
Se houve uma resposta, Reacher não ouviu.
— Não estou com esses caras! — gritou Milosevic. — Essa coisa toda
não tem nada a ver comigo. O Brogan que me meteu nessa. Ele me obrigou
a entrar.
O barulho era de rachar. As pesadas portas tremiam.
— Fiz pelo dinheiro, só por isso! — gritou Milosevic. — Brogan
estava me dando dinheiro. Centenas de milhares de dólares, McGrath. Você
teria feito exatamente a mesma coisa. Brogan estava me tornando rico. Ele
me comprou um Ford Explorer. Topo de linha. Trinta e cinco mil. Como é
que eu ia conseguir um daqueles de outro jeito?
Reacher escutou seus gritos na escuridão. Não queria atirar nele. Por
um momento louco, sentiu-se absurdamente grato a ele por tê-lo ajudado a
superar o seu pesadelo de infância. Ele o tinha forçado a confrontá-lo e
derrotá-lo. Ele o tinha tornado um homem melhor. Queria ir correndo na
direção dele e apertar sua mão. Podia se imaginar fazendo isso. Mas então o
quadro se modificou. Tinha que ir correndo na direção dele, enganá-lo e lhe
perguntar se sabia para onde Stevie tinha levado o furgão branco. Era isso
que precisava fazer. Por isso não queria atirar nele. Arrastou-se para a frente
em meio ao barulho ensurdecedor e contornou os veículos.
Estava vivendo num mundo unidimensional. Não podia ver nada por
causa da escuridão. Não podia ouvir nada por causa do helicóptero. Sentiu
um movimento perto das portas. Saiu detrás de uma picape e viu uma forma
contra a luz nas frestas da porta. Uma forma que deveria ter sido duas.
Largo em cima, quatro pernas. Milosevic com o braço em volta do pescoço
de Holly, arma na cabeça. Esperou até a visão se consolidar. Seus rostos
passaram de preto para cinza. Holly na frente de Milosevic. Reacher
levantou a Glock. Rodeou à direita para conseguir um bom ângulo. A
canela bateu num para-lama. Ele cambaleou e deu com as costas numa pilha
de latas de tinta. Elas caíram no chão rochoso, mas inaudíveis devido ao
ensurdecedor barulho do exterior. Ele correu para mais perto da luz.
Milosevic percebeu e se voltou. Reacher tentou gritar, mas não
conseguiu. Viu-o se virar e colocar Holly na frente dele, como um escudo.
Percebeu também que a indecisão o paralisou, o revólver para cima no ar.
Reacher se esgueirou para a direita, depois dançou de volta para a esquerda.
Viu Milosevic segui-lo, em ambas as direções. Viu Holly usar o balanço
para se libertar de supetão do estrangulamento. O barulho do rotor era
mesmo ensurdecedor. Viu Milosevic lançar os olhos à esquerda e à direita.
Viu-o tomar uma decisão. Reacher estava armado, Holly não. Milosevic se
arremeteu para a frente. O .38 brilhou silenciosamente em meio à
barulheira. A breve chama branca cegava na escuridão. Reacher perdeu a
noção de onde Holly estava. Xingou e não pôde atirar. Viu Milosevic mirar
novamente. Viu quando o braço de Holly subiu e golpeou a nuca do agente.
Viu a mão dela ir gentilmente de encontro ao rosto de Milo, certeira. Viu-o
tropeçar. Então a porta se abriu e Holly cambaleou para longe da inundação
estrondosa de barulho e claridade e se jogou diretamente nos seus braços.
A luz solar encontrou Milosevic. Ele estava deitado de costas. O .38 na
mão. O cão estava para trás. Havia um caco de azulejo de banheiro enfiado
na sua cabeça, exatamente onde deveria estar o olho esquerdo. Estava uns
dez centímetros para dentro e dez para fora. Um pequeno filete de sangue
escorria do ponto de entrada.
Depois o limiar da porta aberta ficou cheio de gente. Reacher viu
McGrath e Garber em meio à poeirada. Um Night Hawk aterrissava atrás
deles. Três homens saíram e correram em direção a eles. Um civil, um
coronel e o general Johnson. Holly se voltou, viu-os e enterrou o rosto de
volta no peito de Reacher.
Garber foi o primeiro a chegar até eles. Ele os puxou para a luz e o
barulho. Tropeçaram, desajeitados, como se tivessem quatro pés. A corrente
de ar descendente os puxava com força. McGrath deu uns passos para perto.
Holly se soltou do abraço de Reacher, lançou-se em cima dele e o abraçou
forte. Então o general Johnson estava chegando até ela pela multidão.
— Holly... — seus lábios pronunciaram na barulheira.
Ela se endireitou na luz. Riu para ele. Colocou o cabelo novamente
atrás das orelhas. Largou McGrath e abraçou forte o pai.
— Ainda tenho coisas pra fazer, pai — ela gritou por cima do barulho
dos rotores. — Eu te conto tudo depois, está bem?
46

REACHER FEZ UM SINAL ROTATÓRIO COM A MÃO para indicar ao


piloto do helicóptero que mantivesse os rotores girando e atravessou
correndo em meio ao barulho e à poeira que fazia redemoinhos para pegar
de volta o Barrett de Garber. Acenou aos outros em direção à máquina.
Empurrou-os escada acima e entrou com eles pela porta corrediça. Colocou
o Barrett no chão metálico e sentou-se com força num assento de lona.
Colocou um fone de ouvido. Acionou o botão com o polegar e ligou para o
piloto.
— Fique de prontidão, está bem? — ele pediu. — Vou dar o curso,
logo que eu conseguir.
O piloto acenou com a cabeça e botou potência nos motores. O rotor
bateu mais rápido e o barulho ficou mais alto. O peso da aeronave elevou-se
sobre os pneus.
— Diabos, para onde vamos? — Webster gritou.
— Estamos perseguindo Stevie, chefe — gritou McGrath em resposta.
— Ele está dirigindo o furgão. Está lotado de dinamite. Ele vai explodi-la
em algum lugar. Lembra o que o xerife Kendall disse? Que o Stevie sempre
era enviado para fazer o trabalho sujo? Quer que eu seja mais detalhista que
isso?
— Mas ele não pode ter saído daqui — gritou Webster. — A ponte foi
explodida. E não há nenhuma trilha pela floresta. Fecharam todas.
— O cara do Serviço Florestal não disse isso — gritou McGrath em
resposta. — Eles fecharam algumas delas. Ele não tinha certeza de quais,
apenas isso. O que ele disse foi que talvez haja um outro caminho para
atravessar. Talvez.
— Tiveram dois anos para checar — Reacher gritou. — Você disse que
o furgão tinha passado um tempo nas trilhas do Serviço Florestal, certo?
Arenito esmigalhado em toda a parte de baixo! Eles tiveram dois anos
inteiros para encontrar um caminho pelo labirinto.
Webster lançou os olhos à sua esquerda, para o leste, onde a floresta
jazia além da montanha gigantesca. Acenou com a cabeça insistentemente,
os olhos arregalados.
— Certo, então só nos resta impedi-lo! — gritou. — Mas para onde ele
foi?
— Ele está seis horas na nossa frente — bradou Reacher. — Podemos
pressupor que pela floresta foi bastante lento. Digamos, duas horas? Depois
mais quatro horas na estrada aberta. Talvez trezentos e cinquenta
quilômetros? Num Econoline a diesel, carregando uma tonelada, não pode
estar indo, em média, a mais de uns oitenta.
— Mas em que porra de direção? — Webster gritou em meio ao
barulho.
Holly olhou para Reacher. Era uma pergunta que tinham feito um ao
outro várias vezes, em relação a exatamente este mesmo furgão. Reacher
abriu o mapa mental e o vasculhou mais uma vez no sentido horário.
— Pode ter ido para o leste — respondeu. — Ele ainda estaria em
Montana, além de Great Falls. Pode estar lá em Idaho. Pode estar no
Oregon. Pode estar a meio caminho de Seattle.
— Não — Garber gritou. — Pense por outro ângulo. Esta é a chave
dessa coisa toda. Para onde ele foi mandado? Qual seria o alvo?
Reacher acenou com a cabeça lentamente. Fazia sentido. O alvo.
— O que Borken quer atacar? — Johnson gritou.
Borken tinha dito: Você estuda o sistema e aprende a odiá-lo. Reacher
pensou com cuidado e acenou com a cabeça novamente. Acionou o seu
microfone e ligou para o piloto.
— Certo, vamos — ele disse. — Deve ser diretamente ao sul daqui.
O barulho ficou mais alto e o Night Hawk se levantou pesadamente do
chão. Balançou-se no ar e subiu, afastando-se do penhasco. Deslizou para o
sul e deu uma guinada ao redor. Baixou o nariz e acelerou com força. O
barulho subiu por fora da cabine e se fixou num rugido profundo dentro dos
motores. A terra inclinou-se e passou a toda lá embaixo. Reacher viu as
curvas da montanha em U se endireitarem e o campo de exercícios passar
depressa. O grupo de pessoas estava se dissolvendo. Correram para as
árvores e foram engolidos pela cobertura verde acima deles. Depois o talho
estreito do estande de tiros apareceu, e então o largo círculo cheio de pedras
do baluarte. Depois a aeronave subiu bruscamente e o chão desapareceu.
Deixaram o grande tribunal branco para trás, tão pequeno como uma casa
de boneca. Passaram acima do desfiladeiro, por cima da ponte destruída, e
longe, nos vastos espaços arborizados ao sul.
Reacher cutucou o ombro do piloto e falou pelo sistema de
comunicação interna.
— Velocidade? — perguntou.
— Duzentos e sessenta.
— Curso? — Reacher perguntou.
— Direto para o sul — respondeu o piloto.
Reacher acenou com a cabeça. Fechou os olhos e começou a calcular.
Era como estar de volta ao primário. Ele está uns trezentos quilômetros na
frente, indo a oitenta por hora. Você o está perseguindo a duzentos e
cinquenta. Quanto tempo aproximadamente até o pegar? A matemática do
primário não havia sido difícil para Reacher. Brigar no pátio do recreio
também não. Recordava-se melhor das porradas do que da matemática.
Estava certo de que devia haver uma espécie de fórmula para isso. Algo
com x e y em toda a maldita página. Algum tipo de equação. Mas, se existia
uma fórmula, ele a tinha esquecido há muito tempo. Por isso teve que ser na
base da tentativa e erro. Uma hora e Stevie já estaria a quatrocentos
quilômetros de casa. O Night Hawk estaria a duzentos e cinquenta. Longe
ainda. Mais uma hora, a segunda de perseguição, e Stevie chegaria a
praticamente quinhentos quilômetros de estrada. O helicóptero teria
acabado de passar dos quinhentos, ou seja, obrigatoriamente já o teria
sobrevoado, ou, na pior das hipóteses, já estaria no campo visual do Night
Hawk. Por isso, certamente iam pegá-lo em algum lugar perto do início da
terceira hora. Isso se estivessem indo na direção certa.
Avistaram o Lago Flathead, muito adiante e muito abaixo. Reacher
podia ver as estradas serpentearem através do terreno acidentado. Apertou o
botão do seu microfone.
— Ainda estamos indo para o sul? — perguntou.
— Positivo — respondeu o piloto.
— Ainda a duzentos e sessenta? — Reacher perguntou.
— Positivo — respondeu o piloto novamente.
— Certo, continue assim — pediu Reacher. — Duas horas, talvez.
— Então para onde ele está indo? — Webster perguntou.
— Para São Francisco — Reacher deduziu.
— Por quê? — McGrath perguntou.
— Ou Minneapolis — disse Reacher. — Mas estou apostando em São
Francisco.
— Mas por quê? — McGrath perguntou novamente.
— São Francisco ou Minneapolis — respondeu Reacher. — Pense.
Outras possibilidades seriam Boston, Nova York, Filadélfia, Cleveland,
Richmond, na Virgínia, Atlanta, Chicago, St. Louis e Kansas City, no
Missouri, ou Dallas, no Texas.
McGrath somente deu de ombros, inexpressivamente. Webster parecia
confuso. Johnson lançou um olhar ao seu assessor. Garber estava imóvel.
Mas Holly sorria. Ela sorria e piscou para Reacher. Ele piscou de volta e o
Night Hawk continuou ribombando para o sul sobre Missoula, a duzentos e
sessenta por hora.

— Nossa mãe do céu, hoje é o Quatro de Julho! — exclamou Webster


repentinamente.
— Nem me fala — Reacher disse. — Muita gente junta em lugares
públicos. Famílias, crianças, todo mundo.
Webster acenou com a cabeça severamente.
— Certo. Onde exatamente em São Francisco? — perguntou.
— Não tenho certeza — disse Reacher.
— Na ponta norte da Market — Holly respondeu. — Bem perto da
Embarcadero Plaza. É lá, chefe. Já estive lá num dia Quatro. Acontece um
grande desfile à tarde, com fogos de artifício sobre a baía à noite. Tem uma
enorme multidão o dia todo.
— Muita gente se reúne em lugares públicos no Quatro de Julho —
disse Webster. — É melhor estarem certos, gente.
McGrath levantou os olhos. Um sorriso lento estava se estendendo
pelo seu rosto machucado.
— Estamos certos — ele disse. — É São Francisco com certeza. Pode
descartar Minneapolis ou qualquer outro lugar.
Reacher sorriu em resposta e piscou. McGrath tinha sacado.
— Dá pra falar por quê? — Webster pediu.
McGrath ainda estava sorrindo.
— Descubra — ele disse. — Você é o diretor, pô!
— Porque é mais próximo? — Webster questionou.
McGrath acenou com a cabeça.
— Em ambos os sentidos — ele disse e sorriu novamente.
— Que ambos os sentidos? — Webster perguntou. — Sobre o que
estamos falando, meu pai?
Ninguém respondeu. Os militares estavam quietos e concentrados.
Holly e McGrath olhavam fixamente a terra pela janela, seiscentos metros
abaixo. Reacher esticava o pescoço, olhando adiante pela capota de
Plexiglass do piloto.
— Onde estamos? — perguntou.
O piloto apontou para uma faixa de asfalto abaixo.
— É a rodovia US93 — ele informou. — A ponto de deixar Montana e
entrar em Idaho. Ainda indo rumo ao sul.
Reacher acenou com a cabeça.
— Ótimo — ele disse. — Siga a 93. É a única estrada que vai para o
sul, certo? Vamos alcançar ele em algum lugar antes de Nevada.

Começou a se preocupar perto do final da segunda hora. E a se preocupar


bastante. Começou a fazer revisões desesperadas dos seus cálculos do
primário. Talvez Stevie estivesse a mais de oitenta de média. Ele dirigia
rápido. Mais rápido do que Bell havia sido. Talvez estivesse a quase cem.
Nesse caso? Seiscentos quilômetros adiante. Com esse novo cenário, não o
pegariam antes de duas horas e quinze minutos. E se ele estivesse seguindo
a mais de cem? Aquele Econoline aguentaria cento e dez, cento e vinte,
hora após hora, transportando uma tonelada de explosivos? Talvez.
Provavelmente. Nesse caso ele estaria a uns setecentos quilômetros. Um
total de quase três horas antes que o alcançassem. Era o limite. Em algum
ponto entre duas horas e quarenta minutos, em algum lugar entre Montana e
Nevada. Por volta de mais uma hora de pânico crescente. Mais de cento e
sessenta quilômetros de faixa de asfalto para observar antes que pudesse
saber com certeza que estava errado e tivessem que sair a mil,
desesperadamente, para o nordeste, em direção a Minnesota.
O helicóptero voava com o nariz para baixo, em velocidade máxima,
diretamente ao longo da US93. Os sete passageiros estavam com os
pescoços inclinados para a frente, fitando a estrada. Sobre uma cidade
chamada Salmon. O piloto fornecia informações aos gritos como um guia
turístico. O pico gigantesco do Monte McGuire, de três mil metros, estava
bem à direita. Twin Peaks, três mil e duzentos metros à frente, à direita.
Borah Peak, o mais alto de todos, a três mil e oitocentos metros, bem para a
frente, à esquerda. A aeronave subiu e depois baixou a trezentos metros
acima do terreno. Arremessou-se abaixo dos picos circundantes, para baixo
na estrada, como um cão de caça.
O tempo também voava. Vinte minutos. Trinta. A estrada estava
bastante vazia. Unia Missoula, no norte, a Twin Falls em Idaho, quase
quinhentos quilômetros para o sul. Nenhuma delas era uma metrópole em
rápida expansão e era feriado. Todo mundo já havia chegado ao destino.
Ocasionalmente passava um carro de passeio ou um caminhão. Não se via
nenhum Econoline branco. Havia dois veículos brancos, mas ambos eram
picapes. Avistaram um furgão, mas era verde-escuro. Só isso. Nada mais.
Nenhum branco. Às vezes a estrada ficava totalmente vazia até o horizonte
na frente deles. O tempo passava. Como o de uma bomba-relógio. Quarenta
minutos. Cinquenta.
— Vou ligar para Minneapolis — disse Webster. — Pisamos na bola.
McGrath aguardou, esperançoso. Negou com a cabeça.
— Ainda não — pediu. — Sem desespero. Não podemos espalhar
pânico. Você pode imaginar as multidões? A evacuação? As pessoas vão ser
pisoteadas.
Webster perscrutou para fora e para baixo. Fitou a estrada por um
minuto. Cinquenta e quatro minutos, chegando no limite.
— Será pior, muito pior se aquele furgão dos infernos já estiver lá —
ele disse. — Dá para imaginar isso?
O tempo passava. Cinquenta e oito minutos. Uma hora. A estrada
continuava vazia.
— Ainda dá tempo — advertiu Garber. — São Francisco ou
Minneapolis, qualquer uma, ainda vai demorar até ele chegar.
Ele lançou os olhos a Reacher. A dúvida e a confiança visível nos seus
olhos, em medidas iguais. Mais tempo passava. Uma hora e cinco minutos.
A estrada ainda estava vazia, todo o percurso até o horizonte distante, que o
helicóptero veloz desenrolava, só para revelar um novo horizonte, ainda
vazio.
— Ele pode estar em qualquer lugar — disse Webster. — Não em São
Francisco, talvez também não seja Minneapolis. Ele já pode estar em
Seattle. Ou numa outra grande metrópole.
— Seattle não — disse Reacher.
Olhou fixamente para a frente. Sem tirar os olhos da estrada. O medo e
o pânico o pegaram pela garganta. Verificou o seu relógio muitas vezes.
Uma hora e dez minutos. Onze. Doze. Treze. Quatorze. Uma hora e quinze
minutos. Fitou o relógio e a estrada abaixo, ainda vazia. Depois se
acomodou e procurou ficar tranquilo. Congelado pelo terror. Tinha
aguentado o quanto podia, mas tinham chegado ao ponto onde a matemática
era absurda. Para estar tão longe ao sul, sem passar por ele, Stevie teria de
estar dirigindo a cento e sessenta quilômetros por hora. Ou duzentos. Ou
duzentos e quarenta. Lançou os olhos aos outros e falou com uma voz que
não parecia a sua:
— Bola fora — ele disse. — Deve ter sido Minneapolis.
Depois o baque dos motores diminuiu e, pela segunda vez naquele dia,
o desesperador estrondo da bomba voltou. Deixou os olhos arregalados para
não ter que vê-lo, mas o viu de qualquer maneira. Não eram fuzileiros
navais dessa vez, não eram Rambos, acampados no calor para executar uma
missão, mas pessoas frágeis, mulheres e crianças, de várias idades, num
parque da cidade para ver fogos de artifício, vaporizando-se e irrompendo
num orvalho escarlate nebuloso como acontecera com os seus amigos, treze
anos atrás. Fragmentos de ossos saindo de crianças e silvando para longe
pelo ar ardente e atingindo outras crianças cem metros mais adiante.
Atingindo-as e rasgando-as através de suas tripas macias, como navalhas, e
pondo os mais sortudos no hospital por um agonizante ano inteiro.
Todo mundo estava olhando para ele. Percebeu que lágrimas estavam
rolando pelas suas bochechas e caindo em sua camisa.
— Desculpem — foi tudo que pôde dizer.
Desviaram os olhos.
— Tenho ligações para fazer — disse Webster. — Por que agora é
Minneapolis? Por que era São Francisco antes?
— Filiais do Fed — disse Reacher calmamente. — Há doze delas. As
duas mais próximas de Montana ficam em São Francisco e Minneapolis.
Borken odiava o Fed. Ele achava que era o instrumento principal do
governo mundial. Achava que era uma grande conspiração para eliminar a
classe média. Era a sua paranoica teoria especial. Disse que isso era sua
grande sacação. E ele acreditava que o Fed tinha mandado o banco do seu
pai passar a perna no velhote para que fizesse um empréstimo, a fim de
torná-lo deliberadamente inadimplente depois.
— Então Borken está atacando o Fed? — Johnson perguntou com
urgência.
Reacher concordou com a cabeça.
— Golpe duplo — ele disse. — Na guerra contra o governo mundial,
ataque o velho sistema com uma jogada-surpresa, como Pearl Harbor. Ao
mesmo tempo fundando um novo sistema para os convertidos correrem
atrás. Dois pássaros com uma pedra.
Ele parou de falar. Estava muito cansado para continuar. Muito
desanimado. Garber o estava encarando. Com uma verdadeira expressão de
dor no rosto. O barulho dos rotores era tão alto que parecia fazer um
silêncio total.
— A Declaração de Independência foi só metade — McGrath disse. —
Chamariz duplo. Era para estarmos concentrados lá em cima, preocupados
com Holly, preocupados com um pacto de suicídio, pirando, enquanto
bombardeavam o Fed pelas nossas costas. Pensei em São Francisco por
causa de Kendall, lembram-se? Imaginei que Borken visaria a agência mais
próxima de onde a fazenda do seu velho ficava.
Webster concordou com a cabeça.
— Um plano diabólico — ele disse. — Um feriado que caiu no fim de
semana, agentes de licença, grandes decisões estratégicas para tomar, todo
mundo olhando pro lugar errado. Depois o mundo inteiro vendo o
bombardeio enquanto Borken garantia o seu território lá em cima.
— Onde fica o Fed em Minneapolis? — Johnson perguntou com
urgência.
Webster deu de ombros vagamente.
— Não faço a mínima ideia — ele respondeu. — Nunca fui a
Minneapolis. Imagino que seja um grande prédio público, provavelmente
num lugar bonito, parques em volta, talvez na margem de um rio ou algo
assim. Há um rio em Minneapolis, certo?
Holly acenou com a cabeça.
— O Mississippi — ela respondeu.
— Não — Reacher disse.
— Com certeza que é — Holly insistiu. — Todo mundo conhece.
— Não — Reacher disse novamente. — Não é Minneapolis. É São
Francisco.
— O Mississippi nem passa perto de São Francisco — Holly disse.
Depois ela viu um sorriso gigantesco estender-se pelo rosto de
Reacher. E um vislumbre final de triunfo nos seus olhos cansados.
— O que foi? — ela quis saber.
— São Francisco estava certo — ele disse.
Webster grunhiu com irritação.
— Já teríamos passado dele... — ele afirmou. — Quilômetros atrás.
Reacher ligou o microfone. Gritou para o piloto.
— Volte — ele pediu. — Cento e oitenta graus!
Depois sorriu novamente. Sorriu e fechou os olhos.
— Com certeza passamos o sujeito — ele disse. — Quilômetros atrás.
Diretamente por cima da sua maldita cabeça. Pintaram o furgão de verde.
O Night Hawk balançou para longe, fazendo uma volta inclinada bem
alta. Os passageiros olharam de janela em janela enquanto a paisagem
girava logo abaixo.
— Tinha tinta na garagem da frota — Reacher disse. — Esbarrei nas
latas. Provavelmente uma demão de pintura de camuflagem. Trabalharam
hoje de manhã. Ainda está fresca.
Viram um caminhão Kenworth que tinham passado há minutos.
Fungava enquanto andava a trezentos metros abaixo. Depois um trecho
longo de estrada vazia. Depois viram uma picape branca. A estrada ficou
mais vazia ainda. Então o tal verde-escuro, indo rapidamente para o sul.
— Lá embaixo, lá embaixo — Reacher falou pelo microfone.
— É ele? — McGrath perguntou.
A distância entre o furgão e a picape na frente se alongava. A
caminhonete estava ficando para trás. Não havia nada atrás dela em todo o
percurso até o horizonte. O Night Hawk estava perdendo altitude. Baixava
em direção ao furgão como uma águia voando para um filhote de coelho.
— É ele? — McGrath perguntou novamente.
— Tem que ser — Reacher respondeu.
— Com certeza é — Holly disse e deu um grito vitorioso.
— Positivo? — McGrath perguntou.
— Olha o teto! — Holly disse.
McGrath olhou. Agora, bem mais de perto, podiam ver que o teto
estava muito mal pintado com tinta verde-escura, e dava para ver também
que estava tomado de buracos minúsculos. Como se alguém tivesse atirado
com uma espingarda diretamente nele.
— Olhamos para aqueles malditos buracos dois dias inteiros — Holly
disse. — Vou me lembrar deles o resto da minha vida.
— Tem cento e treze — Reacher disse. — Contei. É um número
primo.
Holly riu e se inclinou para a frente. Ergueu o braço e ela e Reacher
bateram as palmas das mãos.
— É o furgão que procuramos — ela afirmou. — Sem dúvida.
— Dá pra ver o motorista? — McGrath perguntou.
O piloto se inclinou para baixo e se balançou de lado para uma olhada
mais de perto.
— É o Stevie — Holly gritou em resposta. — Com certeza. Pegamos o
cretino.
— Esse troço tem armas? — Webster perguntou.
— Duas grandes metralhadoras — o piloto falou pelo microfone. —
Mas não vou usá-las. Não posso fazer isso. Os militares não podem se
envolver com trabalho policial.
— Acha que pode pilotar esse troço reto e nivelado? — Reacher
perguntou. — A oitenta quilômetros por hora? Talvez cem? Sem fazer
muitas perguntas?
O piloto riu. O riso chegou “minúsculo e distorcido” pelos fones de
ouvido.
— Posso pilotar esse troço do jeito que você quiser — ele brincou. —
Com a permissão do general, naturalmente.
Johnson concordou com a cabeça cautelosamente. Reacher inclinou-se
para baixo e pegou o Barrett do chão. Desatou o cinto de segurança, se
levantou e se agachou. Acenou para Holly trocar de lugar com ele. Ela
rastejou pela frente de McGrath, e Reacher se sentou devagar no lugar dela.
Podia sentir a redução de velocidade do Night Hawk e sua caída no ar.
Amarrou uma corda no cinto de segurança de Holly e prendeu-o com folga
em volta da cintura. Esticou-se para trás para pegar a maçaneta da porta.
Puxou-a e a porta deslizou lateralmente nos suportes.
Então uma rajada de vento entrou enquanto o ar uivava pela abertura e
a aeronave virava meio pela lateral, escorregando pelo ar como um carro
escorrega na neve. O furgão verde estava atrás deles, talvez uns sessenta
metros abaixo. O piloto estava estabilizando a velocidade para que
combinasse com a da caminhonete e inclinando a aeronave para que a linha
de visão de Reacher apontasse diretamente para baixo na estrada.
— Assim está bom? — o piloto perguntou.
Reacher apertou o botão do microfone.
— No ponto — ele disse. — Algo adiante?
— Um veículo indo para o norte — o copiloto disse. — Quando ele
passar, você não tem mais nada por dezesseis quilômetros.
— Algo atrás? — Reacher perguntou. Viu o veículo indo para o norte
passar rápido lá embaixo.
McGrath enfiou a cara na abertura. Inclinou-se de volta e acenou com
a cabeça.
— Nada atrás — ele disse.
Reacher levantou o Barrett até o ombro. Recarregou-o. Atirar num
veículo em movimento, de outro na mesma situação, não é uma grande
receita para a exatidão, mas ele contemplava uma distância de menos de
setenta metros e um alvo de aproximadamente seis metros de comprimento
e dois metros de largura; portanto, não se incomodava com isso. Colocou a
mira num ponto a dois terços da distância do comprimento do teto.
Calculou que o movimento para a frente do furgão e o movimento para trás
do ar colocariam a bala bem no centro do compartimento de carga. Divagou
por um instante se o colchão ainda estava lá dentro.
— Espere! — Webster gritou. — E se você estiver errado? E se estiver
vazia? É só um palpite, certo? É tudo palpite. Precisamos de provas,
Reacher. Precisamos de alguma corroboração aqui.
Reacher não olhou para trás. Continuou mirando.
— Besteira — ele disse calmamente, concentrando-se. — Essa vai ser
toda a corroboração de que precisamos.
Webster agarrou o seu braço.
— Você não pode fazer isso — pediu. — Pode acabar matando um
inocente.
— Besteira — Reacher disse novamente. — Se for um inocente, não o
estarei matando, entende?
Tirou a mão de Webster do seu braço com uma sacudida. Voltou-se
para ele.
— Pense, Webster — ele pediu. — Relaxe. Seja lógico. A prova vem
depois que eu atirar, certo? Se ele estiver carregando explosivos, saberemos
de tudo. Se ele estiver carregando ar fresco, nada de mal lhe acontecerá. Ele
apenas terá mais um buraco na sua porra de furgão. O de número cento e
quatorze.
Voltou-se para a porta novamente. Levantou o rifle. Mirou no alvo. Por
puro hábito, esperou até ter que respirar de novo para desacelerar o coração.
Depois puxou o gatilho. Levou um milésimo de segundo para o som do tiro
chegar aos seus ouvidos, e setenta vezes mais tempo para a grande e
implacável bala atingir o veículo. Nada aconteceu durante um segundo.
Depois o furgão deixou de existir. Virou repentinamente uma bola de fogo
ofuscante, viajando estrada abaixo como um dente-de-leão incendiado
levado por uma rajada de vento. Um cogumelo gigantesco de fogo. O
helicóptero foi atingido por uma violenta onda de calor e lançado de lado, e
a mais de cento e cinquenta metros para cima. O piloto recuperou o controle
no alto e virou para trás. Estabilizou no ar e balançou de volta. Baixou o
nariz do helicóptero. Não havia nada para ver na estrada, exceto uma
grande nuvem de fumaça negra turbilhonando e assumindo lentamente a
forma de uma lágrima, com trezentos metros de comprimento. Nenhum
fragmento, nenhum metal, nenhuma roda se arremessando, nada de
destroços se chocando. Nada, exceto partículas invisíveis, microscópicas,
de vapor se arremessando na atmosfera, mais rápidas do que a velocidade
do som.

O piloto pairou por um longo momento e derivou para o leste. Pousou


suavemente a aeronave no mato, a cem metros do acostamento. Desligou os
motores. Reacher se sentou no silêncio ensurdecedor e soltou o cinto.
Colocou o Barrett no chão e saltou para fora pela porta aberta. Andou
lentamente em direção à estrada.
Uma tonelada de dinamite. Uma tonelada inteira. Uma explosão e
tanto. Não tinha sobrado nada. Calculou que havia terreno plano no raio de
um quilômetro, em todas as direções, mas apenas isso. A energia
devastadora desencadeada pela explosão se alastrou, mas não encontrou
absolutamente nada no caminho. Nada frágil, nada vulnerável. Tinha
explodido, mas logo enfraquecido e desacelerado, transformando-se num
sopro de brisa a quilômetros de distância, e não tinha detonado nada. Nada
mesmo. Parou em meio ao silêncio e fechou os olhos.
Então ouviu passos atrás de si. Era Holly. Ouviu o som dos passos de
sua perna boa alternando com a machucada. Um passo longo e um arrastar
de pé. Abriu os olhos e observou a estrada. Ela deu a volta, ficou na frente
dele e parou. Colocou a cabeça no peito de Reacher e os braços em volta de
seu pescoço. Apertou-o bem forte e ficou agarrada. Ele levantou a mão até a
cabeça dela e colocou o cabelo da moça atrás da orelha, como a tinha visto
fazer.
— Tudo acabado — ela disse aliviada.
— Está diante de um problema... resolva o problema — ele disse. — É
a minha regra.
Ela ficou quieta por um longo tempo.
— Queria que fosse sempre fácil assim... — ela comentou.
Do modo como se expressou, depois da demora, parecia um discurso
longo. Como um argumento bem raciocinado. Ele fingiu não saber sobre
que problema ela estava falando.
— O seu pai? — ele perguntou. — Você está bem longe da sombra
dele agora.
Ela sacudiu a cabeça contra o seu peito.
— Não sei — ela questionou.
— Acredite — ele disse. — O que você fez por mim no campo de
exercícios foi a coisa mais inteligente, mais legal, mais valente que alguma
vez vi alguém fazer, homem ou mulher, jovem ou velho. Melhor do que
algo que eu já tenha feito. Melhor do que algo que o seu pai já tenha feito.
Ele daria os dentes da frente por um ato de coragem como aquele. E eu
também. Você está muito fora da sombra de qualquer um agora, Holly.
Acredite.
— É... acho mesmo que estou — ela disse. — Me senti assim. De
verdade. Durante algum tempo. Mas depois, quando vi o general
novamente, me senti, apesar disso, como eu sempre me sentia. Chamei ele
de pai.
— Ele é o seu pai — Reacher disse.
— Eu sei — ela devolveu. — Está aí o problema.
Ele ficou quieto por um longo momento.
— Então mude de nome — ele sugeriu. — Poderia dar certo.
Pôde senti-la prender a respiração.
— Isso é um pedido de casamento? — ela perguntou.
— Apenas uma sugestão — ele respondeu.
— Você acha que Holly Reacher fica legal? — ela perguntou.
Era a vez dele de ficar quieto por um longo tempo. De prender o
fôlego. E, finalmente, de falar sobre o verdadeiro problema.
— Fica maravilhoso — ele respondeu. — Mas suponho que Holly
McGrath ficará melhor.
Ela não respondeu.
— Ele é o felizardo, percebe? — ele disse.
Ela concordou com a cabeça. Um pequeno movimento da cabeça
contra o seu peito.
— Então conte a ele — ele sugeriu.
Ela deu de ombros naqueles braços enormes.
— Não consigo — ela disse. — Estou nervosa.
— Não fique — ele pediu. — Ele pode ter algo semelhante para dizer
a você.
Ela levantou os olhos. Ele baixou os olhos semifechados para ela.
— Acha que sim? — ela perguntou.
— Você está nervosa, ele está nervoso — percebeu Reacher. —
Alguém deve dizer algo. Eu é que não vou fazer isso por vocês.
Ela o apertou com mais força. Depois esticou o corpo e o beijou. Um
beijo na boca muito demorado e intenso.
— Obrigada.
— Pelo quê? — ele perguntou.
— Pela compreensão — ela respondeu.
Ele deu de ombros. Não era o fim do mundo. Apenas pareceu ser.
— Você vem? — ela perguntou.
Ele negou com a cabeça.
— Não.
Ela o deixou no acostamento da US93, bem ali, em Idaho. Ele a
observou durante todo o percurso de volta ao Night Hawk. Observou-a
subir pela escada. Ela fez uma pausa e virou. Olhou novamente para ele.
Depois se inclinou para entrar. A porta fechou. O rotor foi acionado. Ele
sabia que nunca mais a veria. O vento fez sua roupa farfalhar e o pó girou
em toda a sua volta enquanto o helicóptero decolava. Ele acenou. Ficou
observando-o até perdê-lo de vista. Depois respirou profundamente e olhou
para a esquerda e para a direita ao longo da estrada vazia. Sexta-feira,
Quatro de Julho. Dia da Independência.

No sábado, dia 5, e no domingo, dia 6, o condado de Yorke foi isolado e


unidades secretas do exército ficaram entrando e saindo vinte e quatro horas
por dia. Os pelotões de artilharia aérea recuperaram a unidade de mísseis.
Ela foi levada para o sul em quatro Chinooks. Os mestres quarteleiros
recuperaram todas as peças de artilharia que puderam encontrar. Tinha o
suficiente para uma boa guerra civil.
Os paramédicos da marinha retiraram os cadáveres. Encontraram os
vinte homens da unidade de mísseis na caverna. Encontraram os esqueletos
através dos quais Reacher havia rastejado. Encontraram cinco corpos
mutilados em outra caverna. Em roupas civis. Construtores ou carpinteiros.
Tiraram Fowler da cabana de comando e Borken da estrada em frente ao
tribunal. Desceram Milosevic do vale e tiraram Brogan da pequena clareira
a oeste do baluarte. Encontraram a cova de Jackson na floresta e o
desenterraram. Ao todo, dezoito milicianos e uma mulher mortos, dispostos
ombro a ombro, no estande de tiro e os levaram de helicóptero.
Um dos investigadores militares de Garber chegou sozinho de avião e
resgatou o disco rígido do servidor, e o levou num helicóptero para
Chicago. Os engenheiros dinamitaram a entrada das minas. Sapadores
foram até o baluarte e interromperam o fornecimento de água, além de
derrubarem os postes de energia elétrica. Atearam fogo nas cabanas e
observaram-nas queimando. No final da noite de domingo, quando a última
fumaça subia, voltaram para os helicópteros e levantaram voo para o sul.
No início da manhã de segunda-feira, Harland Webster estava de volta
à sala de visitas branca e encardida, na Casa Branca. Ruth Rosen sorria para
ele e perguntava como tinha sido o seu feriado de fim de semana. Ele
devolveu o sorriso para ela sem dizer nada. Uma hora depois, o sol da
manhã rolava a oeste em direção a Chicago e três agentes prendiam a
namorada de Brogan. Eles a interrogaram durante trinta minutos e a
aconselharam a sair da cidade, deixando para trás tudo o que ele tinha
comprado para ela. Depois os mesmos agentes recuperaram a Explorer de
Milosevic, novinha em folha, do estacionamento do edifício federal e
dirigiram-na rumo ao sul por oito quilômetros. Foi deixada numa rua
tranquila, as portas destrancadas, as chaves dentro. Assim que foi roubada,
em pouquíssimo tempo, Holly Johnson chegava à clínica para o tratamento
de seu joelho. Uma hora depois, estava de volta à sua mesa de trabalho.
Antes do almoço, o dinheiro desaparecido do roubo de títulos ao portador
seguia uma rota determinada por Holly para fora das Ilhas Cayman. Às seis
horas da tarde na segunda-feira ela estava em casa fazendo as malas.
Lançou sua bagagem no carro e dirigiu para o norte. Mudou-se para a casa
de McGrath, em Evanston.
Na terça-feira pela manhã, havia três matérias distintas no site da
Milícia Nacional. Refugiados de um vale isolado em Montana foram parar
no Sul e no Oeste, em novos assentamentos, com notícias de uma manobra
recente do governo mundial. As tropas estrangeiras tinham eliminado um
grupo de heróis da milícia. O batalhão estrangeiro tinha sido liderado por
um mercenário francês. Ele havia conseguido isso apenas porque usara
tecnologia SDI secreta, inclusive satélites, raios laser e microchips. A
imprensa ficou a par da matéria e ligou para o Hoover Building. No final da
tarde de terça-feira, numa coletiva, o porta-voz do FBI negou ter qualquer
conhecimento de tais eventos.
No início da manhã de quarta-feira, depois de ganhar cinco caronas e
pegar quatro ônibus cruzando sete Estados, Reacher estava finalmente em
Wisconsin. Era onde pretendera estar exatamente uma semana antes.
Gostou de lá. Pareceu-lhe um ótimo lugar para estar em julho. Ficou até a
tarde de sexta-feira.
LEE CHILD (www.leechild.com), britânico de Coventry, divide seu tempo entre o
apartamento que possui em Manhattan (onde pode ser visto dirigindo seu possante Jaguar) e
sua casa de campo no Sul da França. Ao ser demitido em 1995, aos 40 anos de idade, devido a
um processo de reestruturação na empresa, decidiu fazer desse episódio uma oportunidade de
mudar de vida: gastou seis dólares comprando lápis e papel, e começou a escrever (sempre foi
um leitor voraz) Dinheiro Sujo. Todos os seus romances têm como personagem principal o
bom de briga Jack Reacher, e todos também foram bestsellers mundiais. Adora literatura,
música e esportes. É casado e tem uma filha.
[1] Espécie de pavimentação especial para pistas de pouso. (N.T.)

[2] Oficial da Inteligência, patriota exemplar, missionário batista, assassinado em 1945 por membros
do PC chinês. Deu nome a John Birch Society, grupo separatista de extrema direita fundado em 1958.
(N.T.)
[3] Alcohol, Tobacco and Firearms. Uma subdivisão da polícia norte-americana que atua contra
crimes nessas áreas. (N.T.)
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O autor
Notas

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