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Dinheiro Sujo
O Último Tiro
Destino: Inferno
Alerta Final
Copyright © Lee Child, 1998.
Editoração: DFL
Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia
autorização por escrito da Editora.
Jack Reacher permaneceu vivo porque foi cauteloso. E agiu com prudência
porque foi guiado por um eco do passado. Seu passado era intenso e o eco
vinha da parte sombria dele.
Servira ao exército treze anos, e a única vez que tinha sido ferido não
foi a bala. Foi pelo fragmento do maxilar de um sargento dos fuzileiros
navais. Reacher estava servindo na base de Beirute, nas instalações
militares norte-americanas nos arredores do aeroporto, atacadas por um
caminhão-bomba. Reacher se encontrava na portaria, e o sargento, uns cem
metros mais próximo da explosão. O fragmento de maxilar foi a única coisa
que sobrou do sujeito. Atingiu Reacher a cem metros de distância,
penetrando sua barriga, girando como um projétil. O cirurgião do exército
que o operou confessou mais tarde que ele tinha ganhado na loteria, que
uma bala de verdade na pança seria tão ruim quanto. Era esse o eco que
Reacher estava ouvindo. Muito atentamente. Porque treze anos mais tarde
lá estava ele, com uma pistola apontada diretamente para seu bucho. A uma
distância aproximada de três centímetros.
A pistola era uma automática, nove milímetros. Novinha em folha.
Lubrificada. Mantida em posição baixa, alinhada diretamente com sua velha
cicatriz. O sujeito que a estava segurando parecia, mais ou menos, saber o
que fazia. A trava de segurança estava liberada. A boca do trabuco não
tremia. Nenhuma tensão. O dedo no gatilho pronto para a ação. Reacher
estava ligado. Não tirava o olho do dedo no gatilho.
A postos ao lado de uma mulher, segurando seu braço. Nunca a tinha
visto. Ela olhava fixamente para uma nove milímetros idêntica, também
apontada para sua barriga. O cara que a ameaçava parecia mais tenso, com
certeza, estressado, preocupado. Sua arma tremia com a tensão. Unhas
roídas. Sujeitinho nervoso, agitado. Os quatro ficaram lá, na rua. Três deles,
imóveis como estátuas, e o quarto trocava ligeiramente o pé de apoio sem
parar.
Estavam em Chicago. No centro da cidade. Numa calçada
movimentada. Numa segunda-feira. O último dia de junho. Em plena luz de
um dia ensolarado de verão. Toda a situação se materializara em um
milésimo de segundo. Tinha acontecido de uma maneira que não poderia ter
sido planejada nem em um milhão de anos. Reacher estava zanzando pela
rua, sozinho, nem rápido nem devagar. Estava a ponto de passar em frente a
uma tinturaria, quando a porta se abriu na sua cara, e uma velha muleta
metálica tiniu na calçada bem diante dele. Ergueu os olhos e viu uma
mulher na entrada, prestes a derrubar nove cabides de roupa. Tinha pouco
menos de trinta anos. Trajava roupas caras. Morena, atraente, segura de si.
Uma perna estava capenga, tinha algum tipo de lesão. Reacher notou pela
posição desajeitada que uma dor a incomodava. Ela lhe lançou um olhar do
tipo: Será que você poderia... e ele devolveu um: Pode deixar, e pegou a
muleta metálica, e com a outra mão, seus nove cabides, e lhe passou a
muleta. Lançou todos os cabides sobre o ombro e sentiu uma pontada no
dedo por causa dos ganchos de arame. Ela havia apoiado a muleta na
calçada e colocado seu antebraço cuidadosamente na calha curvada de
metal. Ele ofereceu a mão. Ela hesitou. Então, acenou com a cabeça,
embaraçada, e ele pegou seu braço, pacientemente, sentindo-se prestativo,
porém sem graça. Então, ambos se voltaram para seguir em frente. Reacher
pensou em talvez caminhar um pouco ao seu lado, até que ela estivesse com
os pés firmes. Aí largaria o braço dela e entregaria a roupa. Mas, ao se
voltar, dera de cara com os dois sujeitos com as nove milímetros.
Os quatro permaneceram lá, cara a cara, duas duplas. Como quatro
pessoas comendo juntas num pequeno reservado de um restaurante. Os dois
sujeitos armados eram brancos, bem alimentados, parecidos e meio com
pinta de militares. Estatura média, cabelos curtos e castanhos. Mãos
grandes, fortes. Rostos enormes, chamativos, traços rosados e
inexpressivos. Fisionomia tensa, olhar cortante. O nervosinho era menor,
como se o excesso de preocupações queimasse sua energia. Ambos usavam
camisa xadrez e paletó de popeline. Ficaram lá, um em cima do outro.
Reacher era muito mais alto do que os outros três. Podia ver tudo ao redor
sobre suas cabeças. Paralisado, surpreso, com a roupa da mulher no ombro.
Ela se debruçava sobre a muleta, com o olhar fixo, sem dar um pio. Os
caras apontavam suas armas, bem de perto. Reacher sentiu que estavam
naquela posição há muito tempo, mas sabia que o sentimento enganava.
Talvez não tivesse passado mais do que um segundo e meio.
O cara na frente de Reacher parecia ser o líder. O maior, o calmo. Ele
olhou entre Reacher e a mulher e sacudiu o cano da automática para o
meio-fio.
— Entra no carro, vagabunda — o sujeito disse. — Você também, seu
babaca.
Falou com urgência, porém baixinho. Com autoridade. Não tinha um
sotaque muito acentuado. Talvez da Califórnia, pensou Reacher. Um sedã
no meio-fio estava esperando. Um carro grande, preto, todo estofado em
couro de qualidade, caro. O motorista estava se inclinando sobre o banco do
passageiro. Esticando-se para puxar o pino da porta traseira. O sujeito cara
a cara com Reacher voltou a sinalizar com a arma. Reacher não mexeu um
músculo, ficou olhando para a esquerda e a direita. Calculou que tinha mais
um segundo e meio para fazer algum tipo de avaliação. Não estava lá muito
preocupado com os dois fulanos e suas nove milímetros. Estava maneta por
causa das roupas, mas calculou que seria moleza dar um chega pra lá nos
dois. O problema estava no seu flanco e retaguarda. Ergueu os olhos para a
janela da tinturaria e a usou como um espelho. A uns vinte metros das suas
costas havia uma massa compacta de gente apressada na calçada. Uma
dupla de balas perdidas acertaria um par de alvos. Sem dúvida. Sem
nenhuma sombra de dúvida. Esse era o obstáculo da retaguarda. O
problema ao seu lado era a tal desconhecida. Suas habilidades eram um
enigma. Uma das pernas estava capenga. A reação seria lenta. Ele não
estava pronto para travar um combate. Não nesses arredores e não com essa
parceira.
O cara com sotaque californiano esticou o braço e agarrou o pulso de
Reacher preso no colarinho pelo peso dos nove cabides de roupas limpas.
Ele o usou para arrastá-lo para o carro. O dedo no gatilho ainda parecia
pronto para a ação. Reacher o observava de rabo de olho. Soltou o braço da
mulher, foi até o carro, jogou as roupas no banco traseiro e entrou. A
mulher foi empurrada para dentro em seguida. Então o agitadinho se
espremeu junto com eles e bateu a porta. O líder entrou na frente. Bateu a
porta. O motorista acionou a alavanca do automático, e o carro se moveu
suave e silenciosamente pela rua.
Os três homens voltaram ao celeiro uma hora depois com comida. Algum
tipo de guisado de carne numa marmita de metal, uma para cada. Boa parte,
pedaços de bife malpassados e uma porção de cenouras duras. Quem quer
que esses caras fossem, cozinhar não era o forte deles. Reacher tinha
certeza disso. Passaram uma caneca esmaltada com café ralo, uma para
cada. Então entraram no furgão. Ligaram e saíram do celeiro de ré.
Desligaram as luzes fortes. Reacher percebeu de relance o vazio sombrio do
exterior. Então puxaram a porta grande para baixo e trancaram. Deixaram
seus prisioneiros no escuro e no silêncio.
— Posto de gasolina — Holly falou de seis metros de distância. —
Estão enchendo o tanque para o resto da viagem. Não podem fazer isso com
a gente dentro. Se tocaram que a gente poderia martelar a lateral e gritar
pedindo socorro.
Reacher fez que sim com a cabeça e acabou seu café. Lambeu o garfo
do guisado até deixá-lo limpinho. Curvou um dos dentes para fora e torceu
um pouco a ponta com a pressão da unha do polegar. Fez um ganchinho.
Usou-o para forçar a fechadura da algema. Levou dezoito segundos, do
começo ao fim. Largou a algema e a corrente na palha, e andou até Holly.
Curvou-se e soltou o pulso dela. Doze segundos. Ajudou-a a se levantar.
— Segurança, né? — zombou ela.
— Né — disse ele brincando. — Vamos dar uma olhada por aí.
— Eu não consigo andar — ela avisou. — Minha muleta está na bosta
do furgão.
Reacher concordou com a cabeça. Ela permaneceu na própria baia,
agarrando-se ao parapeito. Ele deu uma examinada ao redor do grande
estábulo vazio. Era uma estrutura metálica resistente, totalmente construída
com o mesmo metal galvanizado sarapintado, como os parapeitos das baias.
A porta grande estava trancada por fora. Provavelmente com cadeado de
aço. Nenhum problema se conseguisse chegar ao cadeado, mas ele estava
do lado de dentro, e o cadeado, de fora.
As paredes se juntavam com o chão numa cantoneira de ângulo reto,
aparafusada com firmeza no concreto. As próprias paredes eram painéis
horizontais de metal, de cerca de dez metros de comprimento por
aproximadamente um de altura. Foram unidas com mais cantoneiras de
ângulo reto aparafusadas. Cada cantoneira tinha uma saliência de uns
quinze centímetros de profundidade. Como uma escadinha doméstica
gigante, com degraus de um metro de distância um do outro.
Escalou a parede, arrastando-se rapidamente para cima, de cantoneira
em cantoneira, um metro de cada vez. A saída do celeiro ficava bem ali, no
topo da parede, sete seções acima, a oito metros do chão. Havia uma fresta
de ventilação entre a parte superior da parede e o declive protuberante do
telhado de metal. Aproximadamente meio metro de altura. Uma pessoa
poderia rolar horizontalmente para fora pela abertura, como um atleta de
salto em altura, e cair seis metros até o chão.
Ele conseguiria fazer isso, mas Holly Johnson não. Não teria
condições nem mesmo de andar até a parede. Não poderia escalá-la, e não
conseguiria se pendurar de jeito nenhum. Imagina cair seis metros para fora
com ligamentos cruzados destroçados.
— Vá logo — ela gritou. — Saia daqui, agora.
Ele a ignorou e olhou pela brecha a escuridão lá fora. As frestas
formavam um baixo horizonte. Um campo vazio, até onde o olho podia ver.
Desceu e escalou as outras três paredes. O segundo lado dava para um
campo tão vazio quanto o primeiro. O terceiro dava vista para uma casa.
Telhas brancas. Luzes em duas janelas. O quarto lado do estábulo dava
direto para a trilha da fazenda. Cerca de cento e quarenta metros, até uma
estrada sem nada marcante. Além dela, só o vazio. Bem ao longe, avistou
um único par de faróis, sacudindo-se rapidamente e oscilando.
Extensamente espaçado. Crescendo. Chegando mais perto. Era o furgão
voltando.
— Consegue ver onde estamos? — Holly gritou.
— Não faço a mínima ideia — Reacher gritou de volta. — Uma área
rural. Pode ser em qualquer lugar. Onde tem vacas como estas? E
plantações e coisas do gênero?
— É montanhoso lá fora? — Holly gritou. — Ou plano?
— Não dá pra saber — Reacher disse. — Está escuro demais. Talvez
um pouco montanhoso.
— Pode ser a Pensilvânia — Holly falou. — Lá tem morros e vacas.
Reacher desceu da parede e voltou à sua baia.
— Saia daqui, pelo amor de Deus — ela pediu. — Peça socorro.
Ele discordou com a cabeça. Ouviu o motor a diesel desacelerar para
virar na trilha.
— Essa pode não ser a melhor opção — retrucou.
Ela olhou fixamente para ele.
— E alguém deu opção a você por acaso? — disse asperamente. — É
uma ordem. Você é um civil e eu sou do FBI. Estou mandando você se pôr
em segurança agora mesmo.
Reacher apenas deu de ombros e ficou parado.
— Eu estou mandando, sacou? — Holly disse outra vez. — Você vai
me obedecer ou não?
Reacher negou com a cabeça outra vez.
— Não.
Ela olhou furiosa para ele. Então o furgão retornou. Ouviram o barulho
do motor a diesel e o gemido das molas na trilha acidentada lá fora. Reacher
trancou a algema de Holly e voltou correndo até sua baia. Ouviram a porta
do veículo bater e passos no concreto. Reacher acorrentou seu pulso ao
parapeito e endireitou o garfo até deixá-lo como estava. Quando a porta do
estábulo se abriu e a luz clareou o interior, ele estava sentado em silêncio na
palha.
7
O trânsito não estava ruim, às sete e meia, para uma noite de segunda-feira
de junho. Levaram aproximadamente onze minutos para percorrer quatro
quilômetros. Webster passou esse tempo fazendo ligações urgentes no
celular. Ligou para vários locais dentro de um perímetro tão curto que
poderia tranquilamente ter contatado a todos no grito. Então o carrão
chegou ao Pentagon River Entrance e a sentinela dos fuzileiros navais se
aproximou. Webster desligou o telefone e abaixou a janela para o ritual de
identificação.
— FBI, diretor — disse. — Para ver o Chefe do Estado-Maior.
A sentinela bateu continência e acenou para a limusine seguir. Webster
fechou a janela e esperou o motorista parar. Então desembarcou e entrou
pela porta dos funcionários. Andou até o conjunto de escritórios do chefão.
A secretária o esperava.
— Entre direto, senhor — falou ela. — O general logo estará lá.
Webster entrou no escritório e ficou esperando. Olhou pela janela. A
vista era magnífica, mas tinha um matiz metálico estranho. A janela era
feita de Mylar unilateral, à prova de balas. Era uma ótima vista, mas a
janela ficava na parte externa do prédio, bem do lado da River Entrance, e
por isso tinha que ser protegida. Webster podia ver seu carro, com o
motorista esperando ao lado. Passando o carro, havia uma vista do
Capitólio, do outro lado do Potomac. Webster também via os veleiros na
Tidal Basin, com os últimos raios de sol da tarde reluzindo baixo na água.
Não era um escritório ruim, Webster pensou. Melhor que o meu.
Reunir-se com o chefão do Estado-Maior era um problema para o
diretor do FBI. Era uma daquelas esquisitices da vida em Washington: uma
reunião sem patente definida. Quem era o superior? Ambos eram nomeados
presidenciais. Ambos prestavam contas ao Presidente por meio de apenas
um intermediário, o secretário da Defesa ou o procurador-geral. Chefe do
Estado-Maior era o posto militar mais alto que a nação tinha a oferecer.
Diretor do FBI era o posto policial mais alto. Ambos os chefes estavam no
topo absoluto do seu receptivo pau de sebo. Mas qual pau de sebo era o
mais alto? Isso era um problema para Webster. No final, era um problema
para ele porque a verdade era que seu pau de sebo era menor. Ele controlava
um orçamento de dois bilhões de dólares e mais de vinte e cinco mil
pessoas. O Chefe do Estado-Maior supervisionava um orçamento de
duzentos bilhões e aproximadamente um milhão de pessoas. Dois milhões
se fossem incluídas a Guarda Nacional e a Reserva. O Chefe do Estado-
Maior ia ao Salão Oval do Presidente aproximadamente uma vez por
semana. Webster ia lá duas vezes por ano, se tivesse sorte. Não era de
admirar que o escritório do cara fosse melhor.
O próprio Chefe do Estado-Maior era um sujeito impressionante. Era
um general de quatro estrelas, cuja ascensão havia sido espetacular. Tinha
vindo de lugar nenhum e subira feito um raio no exército, praticamente
mais rápido do que o seu alfaiate conseguia costurar os adornos em seu
uniforme. O cara tinha acabado torto de tantas medalhas. Então fora
agarrado por Washington, entrou e transformou o lugar segundo sua visão,
como se fosse um objetivo militar. Webster ouviu sua chegada na antessala
e se voltou para cumprimentá-lo quando ele entrou no escritório.
— Olá, general — cumprimentou.
O chefe das Forças Armadas fez um gesto de ocupado e sorriu.
— Veio comprar alguns mísseis? — perguntou ele.
Webster ficou surpreso.
— O senhor está vendendo? — questionou. — Quais?
O chefão negou com a cabeça e sorriu.
— Brincadeirinha — disse. — Limitação de armamentos. Os russos se
livraram de uma base na Sibéria. Então agora temos de nos livrar dos
mísseis que designamos para combatê-la. Acatamento ao Tratado, certo?
Temos de jogar limpo. As coisas grandes vamos vender para Israel. Mas
ainda temos cerca de duzentas pequenas, você sabe, Stingers, bagulho que
se lança pelo ombro, terra-ar. Todo o excedente. Às vezes acho que a gente
devia vender pros traficantes de droga. Deus sabe que eles têm tudo o que
querem. Melhores armas do que nós, a maioria deles.
O chefe das Forças Armadas falou enquanto se dirigia para sua cadeira
e se sentava. Webster acenou com a cabeça. Tinha visto os presidentes
fazerem algo similar, contar uma piada, contar uma história leve, de homem
para homem, quebrar o gelo, para fazer a reunião começar com o pé direito.
O chefão se inclinou para trás e sorriu.
— Então, o que posso fazer por você, diretor? — perguntou.
— Recebemos uma notícia de Chicago — Webster disse. — Sua filha
desapareceu.
8
Ouviu uns barulhinhos muito mais cedo do que pensava. Não tinha relógio
e nem janela, mas tinha certeza de que ainda não era de manhã, que restava
mais uma hora. Talvez duas. Mas dava para ouvir barulho. Pessoas se
movimentando na rua lá fora. Prendeu a respiração e se concentrou em
ouvir. Talvez três ou quatro. Andou pela sala outra vez. Imobilizado pela
indecisão. Deveria estar martelando e chutando as tábuas de pinho novinhas
em folha. Tinha certeza disso. Mas não estava. Porque sabia que seria inútil
e porque pressentia que devia ficar em silêncio. Ficara convicto disso.
Convicto. Se ficasse em silêncio, talvez o deixassem em paz. Talvez
esquecessem que ele estava lá dentro.
Ela fez. O sujeitinho agitado trouxe a torrada, que estava perfeita, mas foi
rejeitada. Ela olhou para a fatia com o desdém que usaria para um balancete
feito nas coxas e disse que estava queimada. De pé, com todo o peso sobre a
perna boa, com uma aparência horrível, esterco cobrindo seu Armani
pêssego, mesmo assim conseguiu gerar bastante desprezo altivo para
intimidar o safado, que voltou para a cozinha da casa da fazenda e fez
outras.
Veio com um bule de café forte e ambos comeram seus desjejuns, a
corrente retinindo, seis metros os separavam, enquanto os outros dois
sujeitos traziam colchões. Um de casal, outro de solteiro. Eles os puxaram
para cima até a traseira do furgão e colocaram o de casal no chão e o de
solteiro perpendicular a ele, encostado na divisória da caçamba. Holly ficou
observando enquanto faziam isso e se sentiu muito melhor em relação ao
que vinha pela frente. Daí percebeu num estalo exatamente para onde a
psicologia de Reacher estava voltada. Não apenas para os três
sequestradores. Para ela também. Não queria que ela arranjasse briga.
Perderia. Ele havia arriscado fazer o que tinha feito para impedir um
confronto inútil. Ela ficou espantada. Totalmente espantada. Pensou
vagamente: Pelo amor de Deus, este cara está invertendo tudo. Está
tentando tomar conta de mim.
— Dá pra falar seus nomes? — Reacher perguntou, calmamente. —
Vamos passar algum tempo juntos, podemos ser um pouco civilizados, não
acham?
Holly observou o líder, que tinha os olhos fixos em Reacher. O cara
não respondeu.
— A gente viu a cara de vocês — Reacher disse. — Falar os nomes
não vai dar em nada mesmo. É melhor tentarmos nos entrosar.
O cara pensou a respeito e fez que sim com a cabeça.
— Loder.
O sujeitinho agitado trocou a posição do pé de apoio.
— Stevie.
Reacher fez que sim com a cabeça. Então o motorista feioso percebeu
que todos os quatro estavam olhando para ele. Balançou a cabeça.
— Eu não vou dizer meu nome — avisou ele. — Por que diabos eu
deveria?
— E vamos deixar as coisas bem claras — o tal de Loder disse. —
Civilizado não é a mesma coisa que amistoso, correto?
Holly o viu apontar a Glock para a cabeça de Reacher e mantê-la assim
por um bom tempo. Inexpressivo. Não era a mesma coisa que amistoso.
Reacher concordou com a cabeça. Um pequeno movimento de cautela.
Deixaram seus pratos de torradas e canecas de café na palha, e o cara
chamado Loder soltou as correntes. Encontraram-se no corredor central.
Duas Glocks e uma espingarda apontadas. O motorista feioso com o velho
olhar malicioso. Reacher olhou-o nos olhos, abaixou-se e pegou Holly
como se não pesasse nada. Levou-a dez passos até o furgão. Colocou-a
delicadamente no interior. Rastejaram para a frente juntos até o sofá
improvisado. Puseram-se em posição confortável.
As portas traseiras foram batidas e trancadas. Holly ouviu a grande
porta do estábulo se abrir. O motor do veículo engasgou, mas pegou.
Dirigiram para fora do estábulo e trepidaram nos mais de cem metros da
trilha íngreme. Viraram num ângulo reto invisível e seguiram por uma
estrada, vagarosamente e em linha reta, por quinze minutos.
— Não estamos na Pensilvânia — Holly afirmou. — As estradas são
muito retas. Planas demais.
Reacher apenas deu de ombros para ela no escuro.
— E também não estamos mais algemados — constatou. —
Psicologia.
12
DESSA VEZ, MCGRATH NÃO FEZ O CHEFE DOS técnicos descer até o
terceiro andar. Ele mesmo liderou o ataque até seu laboratório, no sexto,
com a fita na mão. Irrompeu pela porta e limpou um espaço na mesa mais
próxima. Colocou a fita ali como se fosse feita de ouro maciço. O cara veio
correndo e olhou para ela.
— Eu preciso que faça fotografias — McGrath pediu.
O cara pegou a fita e a levou para um monte de fitas de vídeo
colocadas no canto. Ligou rapidamente uns dois interruptores. Nas três telas
só havia chuvisco.
— Não diga para absolutamente ninguém o que você vai ver,
entendido? — McGrath ordenou.
— Entendido — o cara aquiesceu. — O que devo procurar?
— Os últimos cinco quadros — McGrath pediu. — Será o bastante.
O chefe dos técnicos não usou um controle remoto. Apertou uns
botões no painel de controle da própria máquina. A fita rebobinou e a
história do sequestro de Holly Johnson se desenrolou ao contrário.
— Meu Deus! — ele exclamou.
Parou no quadro que mostrava Holly se afastando do balcão. Então
avançou a fita, Pulou até Holly, perto da porta, depois cara a cara com o
grandalhão, aí para o cano das armas e depois para o carro. Recuou e
repetiu pela segunda vez. Depois pela terceira.
— Meu Deus! — voltou a exclamar.
— Não desgaste a porra da fita — McGrath se irritou. — Eu quero
imagens ampliadas desses cinco quadros. Muitas cópias.
O chefe dos técnicos concordou com a cabeça lentamente.
— Eu posso lhe dar cópias a laser agora — sugeriu ele.
Apertou uns botões e virou umas chaves. Então se inclinou e se
afastou, ligou um computador numa mesa do outro lado da sala. No monitor
surgiu Holly se afastando do balcão da tinturaria. Ele clicou em uns dois
menus.
— Certo — ele disse. — Estou passando para o HD. Como print
screen.
Voltou correndo para a pilha de vídeos e avançou a fita um quadro.
Voltou para a mesa, e o computador capturou a imagem de Holly prestes a
empurrar a porta para ir embora. Repetiu o processo mais três vezes. Então,
imprimiu as cinco telas na impressora a laser mais rápida que tinha.
McGrath ficou em pé ao lado dela e pegou cada folha à medida que caía na
bandeja de impressão.
— Nada mau — disse ele. — Prefiro papel. Parece que é real mesmo.
O chefe dos técnicos lhe deu uma olhada e depois perscrutou por cima
do seu ombro.
— A definição está boa — constatou ele.
— Eu quero ampliações — McGrath ordenou.
— Sem grilo, agora que está no computador... — o técnico ironizou.
— É por isso que o computador é melhor do que o papel.
Sentou-se e abriu o quarto arquivo. A foto de Holly e dos três
sequestradores juntos na calçada apareceu na tela. Clicou com o mouse e
demarcou um quadrado em volta das cabeças. Clicou novamente. O
monitor ampliou bastante a imagem. O altão estava olhando fixamente para
fora da tela. Os outros dois foram pegos em ângulo, olhando fixamente para
Holly.
O técnico apertou o botão de imprimir e então abriu o quinto arquivo.
Deu um close com o mouse e fez um retângulo bem justo em volta do
motorista, dentro do carro. Imprimiu essa foto também. McGrath pegou as
novas folhas.
— Ótimo — disse. — É o melhor que a gente vai conseguir mesmo. É
uma pena que o idiota do seu computador não pode fazer todos eles
olharem para a câmera.
— Quem disse que não? — o chefe dos técnicos questionou.
— Pode?!? — McGrath exclamou. — Como?
— É fácil quando se sabe — o cara disse. Tocou na ampliação do rosto
de Holly. — Suponha que quiséssemos uma foto de frente dela, está bem?
A gente pediria que ela se movesse na frente da câmera e olhasse direto
para a lente. Mas suponhamos que, não importa a razão, ela não pudesse se
mexer. O que faríamos? A gente podia mover a câmera, certo? Suponhamos
que você subisse no balcão, tirasse a câmera da parede e a abaixasse a uma
determinada distância até que estivesse bem na frente dela. Então você
estaria vendo uma foto de frente dela, correto?
— Continua — McGrath disse.
— Então fazemos cálculos — o técnico disse. — A gente calcula que
se mudássemos essa câmera hipotética bem para a frente dela nós teríamos
que deslocá-la, digamos, um metro e meio para baixo, três metros para a
esquerda e girá-la aproximadamente quarenta graus, e então ela estaria bem
na frente dela. Então, obtemos esses números, registramos no programa, e o
computador faz um tipo de simulação inversa, faz um esboço. É
praticamente como se a gente movesse de fato a câmera real até fazer um
close.
— Você pode fazer isso? — McGrath perguntou. — Funciona?
— Com limitações — o chefe dos técnicos disse. Tocou na imagem do
sequestrador mais próximo. — Este cara, por exemplo, está praticamente de
perfil. O computador vai fornecer uma foto de rosto inteiro pra gente, na
boa, mas estará apenas dando uma estimativa de como é o outro lado,
entendeu? Ele é programado para supor que o outro lado é exatamente igual
ao lado que se pode ver, com um pouco da assimetria embutida. Mas se o
cara estiver sem uma orelha ou algo assim, ou tiver uma cicatriz grande, ele
logicamente não poderá nos dizer isso.
— Logicamente — McGrath disse. — Então, do que você precisa?
O chefe dos técnicos pegou a foto que enquadrava o grupo todo.
Apontou para cá e para lá com o curto e grosso dedo indicador.
— Medidas — disse ele. — Vou deixá-las tão exatas quanto possível.
Eu preciso saber a posição da câmera relativa à entrada e ao nível da
calçada. Preciso saber o comprimento focal da lente. Eu preciso da
fotografia da ficha da Holly para calibração. A gente sabe exatamente como
ela é, certo? Eu posso usá-la como teste. Vou arranjar as coisas para ela sair
direito, e aí os caras sairão direito também, supondo que tenham duas
orelhas e assim por diante, como eu disse. E traga um piso do chão da loja e
um dos aventais que a balconista estava usando.
— Para que? — McGrath indagou.
— Para que eu possa usar para decodificar os tons de cinza no vídeo
— disse ele. — Aí eu vou poder te dar fotos dos rostos em cores!
O comandante selecionou seis mulheres para o trabalho sujo daquela
manhã. Usou as que tinham mais deméritos, já que a tarefa seria dura e
desagradável. Ele as manteve na posição de sentido e se empertigou para
ficar bem ereto até o ponto máximo da sua estatura na frente delas. Esperou
para ver qual seria a primeira a desviar o olhar. Quando se satisfez que
nenhuma ousaria, explicou seus deveres. O sangue tinha se espalhado por
todo o recinto, arremessado para todo lado, devido à selvagem força da
lâmina dentada. Lascas de ossos haviam chovido para toda parte. Disse-lhes
para esquentar água na cozinha da casa e trazê-la em baldes. Para pegar
escovas, panos e desinfetante do almoxarifado. Disse-lhes que tinham duas
horas para deixar a sala imaculada novamente. Se levassem mais tempo que
isso, teriam ainda mais deméritos.
A primeira coisa que Reacher ouviu quando sua audição voltou ao normal
foi um murmurinho baixo à medida que o ar assobiava pelos cem furos
feitos pelas bilhas no teto. Ficou cada vez mais alto conforme os
quilômetros passavam. Cem assobios agudos, todos agrupados uns dois
semitons uns dos outros, digladiando-se e chilreando como algum tipo de
passarinho canoro demente.
— Bela loucura, né? — Holly o repreendeu.
— Minha ou deles? — Reacher perguntou.
Ele meneou a cabeça em sinal de desculpa. Ela devolveu o meneio
fazendo um tremendo esforço para se sentar. Usou ambas as mãos para
endireitar o joelho. Os furos no teto estavam permitindo a entrada da luz.
Luz suficiente para que Reacher pudesse enfim ver o rosto da mulher. Podia
interpretar sua expressão. Podia ver as fisgadas de dor. Como se uma
cortina tivesse coberto seus olhos e depois subisse imediatamente.
Ajoelhou-se e varreu algumas bilhas do colchão. Chocalharam pelo chão de
metal.
— Agora você precisa fugir — disse. — Vai acabar cavando a própria
sepultura logo, logo.
As mechas louras em seu cabelo piscavam sob a bruxuleante
iluminação brilhante.
— Estou falando sério — irritou-se. — Qualificado ou não, eu não
posso deixar você ficar.
— Eu sei que você não pode.
Ele usou a camisa para juntar as bilhas e formar um montinho perto
das portas. Depois endireitou os colchões e voltou a se deitar. Balançou-se
gentilmente com o movimento. Fitou os furos na placa de metal acima dele.
Eram como um mapa de alguma galáxia distante.
— Meu pai vai mover céus e terras para me resgatar — Holly disse.
Era mais difícil falar agora. O som monótono do motor e o burburinho
da estrada se complicaram mais ainda com os assobios agudos do teto. Uma
sinfonia de ruídos. Holly se deitou ao lado de Reacher. Colocou a cabeça ao
lado da dele. Seu cabelo se espalhou como um leque, roçou a bochecha dele
e tombou no pescoço. Ela contorceu os quadris e endireitou a perna. Ainda
havia um vão entre seus corpos. A decorosa forma em V ainda existia. Mas
o ângulo estava um pouco mais agudo do que outrora.
— Mas o que que ele pode fazer? — Reacher questionou. — Fale aí
então.
— Os caras vão fazer algum tipo de exigência — disse. — Entende?
Faça isso ou aquilo, ou machucaremos sua menininha.
Falou lentamente com um tremor na voz. Reacher deixou a mão
tombar e preencher o vão entre eles, e encontrar a dela. Pegou-a e apertou
delicadamente.
— Não faz nenhum sentido — Reacher disse carinhosamente. —
Reflita. O que seu pai faz? Executa a política de longo prazo e é
responsável pela prontidão em curto prazo. O Congresso, o presidente e o
secretário da Defesa articulam a política de longo prazo, certo? Assim, se o
chefe das Forças Armadas tentasse atrapalhar os planos, eles simplesmente
o substituiriam. Especialmente sabendo que ele está sob este tipo da
pressão, não é?
— E quanto ao curto prazo? — Holly questionou.
— É o mesmo tipo de coisa — Reacher disse. — Ele é apenas o
presidente de um comitê. Há também os chefes do Estado-Maior. Exército,
marinha, aeronáutica, fuzileiros navais. Se todos estiverem cantando uma
música diferente da que seu pai está relatando para o topo, isso não vai
permanecer um segredo por muito tempo, não é? Eles simplesmente o
substituiriam e o arrancariam da equação completamente.
Holly virou a cabeça. Olhou bem para ele.
— Tem certeza? — perguntou ela. — Vamos supor que estes caras
estejam trabalhando para o Iraque ou algo do gênero. Suponhamos que o
pessoal do Saddam queira o Kuwait de novo. Mas não queira outra
Tempestade no Deserto. E por isso me sequestrou, e meu pai diz que
lamenta, que nada pode ser feito, dando todos os tipos falsos de razões?
Reacher deu de ombros.
— A resposta está bem aí nas palavras que você mesma usou — disse.
— As razões seriam falsas. O fato é que a gente podia montar outra
Tempestade no Deserto, se fôssemos obrigados. Sem grilo. Todo mundo
sabe disso. Então, se seu pai começasse a negar, todos saberiam que ele
estaria com enrolação e todo mundo saberia por quê. Eles simplesmente lhe
dariam uma posição secundária. As Forças Armadas são um osso duro de
roer, Holly, não tem lugar para sentimentalismo. Se essa for a estratégia que
estes caras estão seguindo, estão desperdiçando tempo. Não tem como dar
certo.
Ela emudeceu por muito tempo.
— Então talvez se trate de vingança — disse ela lentamente. — Talvez
ele esteja sendo punido por algo do passado. Talvez eu esteja indo para o
Iraque. Talvez queiram obrigá-lo a se desculpar pela Tempestade no
Deserto. Ou o Panamá, ou Granada, ou uma porrada de coisas.
Reacher permaneceu deitado de costas, balançando-se com o
movimento. Podia sentir brisas ligeiras se agitando, devido aos furos no
teto. Sentiu que o furgão agora estava muito mais fresco, por causa do novo
sistema de ventilação, ou talvez até por ter ganhado um novo ânimo.
— Esotérico demais — disse ele. — Você teria que ser um analista
consideravelmente perspicaz para responsabilizar o chefe das Forças
Armadas por tudo isso. Há uma série de alvos mais óbvios. Pessoas da alta
hierarquia, entende? O presidente, o secretário da Defesa, pessoas em
serviço no exterior, generais de campo. Se Bagdá estivesse buscando
provocar uma humilhação pública, escolheriam um ícone, alguém que seu
povo poderia identificar, e não algum burocrata do Pentágono.
— Então qual é a razão disso tudo, merda? — Holly desabafou.
Reacher deu de ombros outra vez.
— No final, não será nada disso — concluiu. — Não pensaram em
todos os detalhes direito. É isso que os torna tão perigosos. São
competentes, mas ao mesmo tempo umas antas.
O furgão seguiu por mais seis horas com seu barulho monótono. Mais uns
quinhentos e sessenta quilômetros, segundo supunha Reacher. A
temperatura interna tinha esfriado, mas ele não estava mais tentando estimar
a direção que seguiam pela temperatura. Os furos de bilha no teto tinham
bagunçado o cálculo. Estava confiando em cálculos cegos mesmo.
Calculava um total de mil e trezentos quilômetros partindo de Chicago, mas
não rumo ao leste. Isso deixava uma grande gama de possibilidades. Fez
uma busca no sentido horário pelo mapa mental. Podiam estar na Geórgia,
no Alabama, no Mississippi, na Louisiana. Podiam estar no Texas, em
Oklahoma, no canto sudoeste do Kansas. Provavelmente não tão a oeste. O
mapa mental de Reacher ficava um pouco confuso nessa parte, mostrando
os declives do leste das montanhas, e o furgão não estava subindo morros
com dificuldade. Podiam estar no Nebraska ou na Dakota do Sul. Talvez ele
fosse passar pelo Monte Rushmore, pela segunda vez em sua vida.
Poderiam ter seguido em frente além de Minneapolis, passado a Dakota do
Norte. Mil e trezentos quilômetros de Chicago, em qualquer lugar ao longo
de um arco gigante riscando o continente.
Oito horas a talvez cem ou cento e vinte quilômetros por hora. Percorreram
entre oitocentos e novecentos quilômetros. Essa era a distância aproximada
na estimativa de Reacher. Isso começava a lhe dar uma pista sobre onde
estavam.
— Estamos em algum lugar onde aboliram o limite de velocidade —
ele percebeu.
Holly se mexeu e bocejou.
— O quê? — ela indagou.
— Estamos indo rápido demais — ele disse. — Pra lá de cento e dez
quilômetros por hora, provavelmente há horas. Loder é muito meticuloso.
Não deixaria Stevie dirigir tão rápido assim se tivesse qualquer perigo da
gente ser parado por causa disso. Então estamos em algum lugar onde
aumentaram o limite ou aboliram completamente. Quais os Estados que
fizeram isso?
Ela deu de ombros.
— Não tenho certeza — ela disse. — Mas acredito que os Estados do
Oeste, acho eu.
Reacher concordou com a cabeça. Traçou um arco no mapa mental.
— Não fomos para o leste — ele decidiu. — Já sacamos isso. Então
calculo que estamos no Texas, Novo México, Colorado, Wyoming ou
Montana. Talvez até em Idaho, Utah, Nevada ou Arizona. Na Califórnia
ainda não.
A caminhonete reduziu a velocidade ligeiramente e eles ouviram a
nota do motor ficar mais grave. Então, ouviram o triturar quando o
motorista reduziu da quinta para a quarta marcha.
— Montanhas — Holly percebeu.
Era mais do que uma colina. Mais do que uma subida íngreme. Era
uma escalada reta, implacável. Uma estrada pelas montanhas. Projetada
claramente para ajudar o trânsito pesado, mas adicionava centenas de
metros a cada quilômetro que dirigiam. Reacher sentia a guinada quando o
furgão mudava de pista para ultrapassar veículos mais lentos. Não muitos,
mas alguns. Permaneceram na quarta marcha, o sujeito pisando fundo,
martelando morro acima, depois relaxando, subindo para a quinta marcha,
depois baixando novamente, arrojando-se para cima.
— A gente podia ficar sem gasolina — Holly disse.
— É diesel, não gasolina — Reacher corrigiu. — A gente usava estes
troços no exército. Tanques de cento e trinta litros. Um litro de diesel faz
cerca de quarenta quilômetros na estrada. Vão rodar, no mínimo, mil e
quatrocentos quilômetros antes do combustível acabar.
— Assim podem nos levar para fora dos Estados Unidos — ela
constatou.
Seguiram viagem. O furgão rugiu através das montanhas, por horas, depois
deixou a estrada. A noite havia caído. Os buracos brilhantes no teto tinham
escurecido. E depois desapareceram completamente. Ficaram mais escuros
do que o próprio teto. Positivo e negativo. Sentiram a guinada, quando o
veículo virou bruscamente para a direita, saindo da estrada, e os pneus
grudaram no asfalto quando o furgão fez uma curva muito fechada para a
direita. Depois atravessaram um trajeto confuso, cheio de curvas, paradas e
arrancadas. Descidas acidentadas com muitas voltas e curvas fechadas
morro acima, com o motor gemendo em marcha lenta. Períodos de trajetos
suaves numa estrada sinuosa, superfícies ruins e boas, inclinações, cascalho
sob as rodas, buracos na estrada. Reacher podia imaginar o feixe de luz dos
faróis dianteiros adejando para a esquerda e para a direita e pulando para
cima e para baixo.
O furgão reduziu a velocidade quase até parar. Fez uma curva bem
fechada para a direita. Tamborilou por algum tipo de ponte de madeira.
Então deu uma guinada e seguiu caminho aos trancos e barrancos ao longo
de uma via cheia de sulcos. Movendo-se lentamente, estremecendo de um
lado para outro. Dava a sensação de que estavam subindo um leito fluvial
seco. Algum tipo de via rochosa, estreita. Parecia que essa seria a última
fase da viagem. Sentiam que estavam muito perto do destino final. O
motorista dirigia sem pressa. A impressão era de que o furgão estava quase
em casa.
Mas a última etapa levou muito tempo. A velocidade era baixa e a
estrada, péssima. As pedras e os cascalhos estalavam sob os pneus, que se
contorciam para um lado na superfície arisca. O passado veículo seguiu
moendo por quarenta minutos. Cinquenta. Reacher ficou com frio. Sentou-
se e sacudiu a camisa. Vestiu-a. Uma hora na trilha repleta de buracos e
saliências. Nesta velocidade, talvez vinte e cinco quilômetros, talvez trinta.
Então chegaram. O furgão subiu um último morro, deu uma guinada e
aí se nivelou. Arrastou-se para a frente alguns poucos metros e parou. O
ruído do motor desapareceu de súbito. Substituído por um silêncio
aterrador. Reacher não conseguia ouvir nada, exceto um vasto vazio e o
tiquetaquear do silencioso enquanto esfriava. Conseguia ouvir os dois
sujeitos, na frente, sentados em silêncio, esgotados. Então, saíram. Ouviu as
portas se abrirem e as molas dos bancos rangerem. Passos no cascalho. As
portas bateram, fazendo um som metálico ensurdecedor em contraste com a
calmaria. Ouviu-os dar a volta, ruidosamente, até a traseira. O som das
chaves se balançando gentilmente na mão do motorista.
A chave deslizou fechadura adentro, que se moveu para trás com um
estalo. A maçaneta girou. A porta se abriu. Loder a manteve aberta com a
presilha de metal. Então, abriu a outra porta. Escorou-a. Gesticulou com a
Glock para que saíssem. Reacher ajudou Holly ao longo do piso sulcado.
Desceu. A corrente em seu pulso tiniu ao cair na terra. Pegou Holly no colo
e a colocou ao seu lado. Ficaram em pé, um ao lado do outro, curvados e se
apoiando na borda do assoalho sulcado de metal do veículo. Olhando
adiante e ao redor.
Holly quisera ver o céu. E ficou lá, em pé, sob o céu mais vasto que
Reacher já tinha visto. Era azul-escuro, como tinta de tinteiro, quase
nanquim, e era imenso. Estendia-se até uma altura infinita. Era tão grande
quanto um planeta. Salpicado com cem bilhões de estrelas brilhantes.
Distantes, porém anormalmente vívidas. Estendiam-se como polvilho até os
confins gélidos e distantes do universo. Era um céu noturno gigantesco e se
retesava até o infinito.
Estavam numa clareira na floresta. Reacher podia sentir o aroma
pungente de pinho. Um cheiro forte. Limpo e fresco. Haviam aglomerados
escuros de árvores em todas as direções. Cobriam os declives sanfonados
das montanhas. Uma clareira na floresta, cercada por declives montanhosos
arborizados. Era uma clareira enorme, infinitamente escura, e silenciosa.
Reacher podia ver os contornos pretos e tênues das construções mais
adiante, à sua direita. Cabanas longas, baixas. Estruturas de madeira
contraindo-se na escuridão.
Havia pessoas na borda da clareira. De pé, em meio às árvores mais
próximas. Reacher podia ver formas vagas. Uns cinquenta ou sessenta
indivíduos. Apenas estáticos, lá, silenciosos. Vestiam roupas escuras. Os
rostos estavam escurecidos, haviam sido pintados para camuflagem
noturna. Reacher podia ver seus olhos, brancos em contraste com as árvores
negras. Portavam armas. Dava para ver rifles e metralhadoras. Lançadas
casualmente sobre o ombro das estátuas, de olhares fixos. Tinham cães.
Muitos e dos grandes, com coleiras grossas de couro.
Havia crianças. Reacher podia avistá-las. Crianças em grupos,
silenciosas, olhando fixamente, olhos enormes, sonolentos. Aglomeravam-
se atrás dos adultos, imóveis, ombros apontados diagonalmente para longe,
temerosas e perplexas. Crianças com sono, acordadas no meio da noite para
testemunhar algo.
Loder girou lentamente em todas as direções e acenou para que a tribo
silenciosa, de olhos arregalados, se aproximasse. Fez um gesto abrangente
com o braço, como o mestre de cerimônias de um circo.
— Pegamos ela — ele berrou no silêncio. — A piranha federal agora é
nossa.
Sua voz ecoou nas montanhas distantes.
— Onde diabos a gente está? — Holly perguntou baixinho.
Loder se voltou e sorriu para ela.
— No nosso cantinho, vagabunda — ele disse baixinho. — Um lugar
onde seus camaradas federais não podem vir te resgatar.
— Por que não? — Holly perguntou. — Onde, diabos, a gente está?
— Pode ser complicado de entender — Loder disse.
— Por quê? — Holly perguntou. — A gente está em algum lugar, não
está? Em algum lugar nos Estados Unidos?
Loder negou com a cabeça.
— Não — ele afirmou.
Holly parecia estupefata.
— Canadá? — ela perguntou.
O cara balançou a cabeça novamente.
— Não é o Canadá, piranha — ele disse.
Holly dirigiu os olhos ao seu redor, para as árvores e as montanhas, e
os ergueu para o vasto céu noturno. Estremeceu com o frio repentino.
— Bem, com certeza não é o México — ela constatou.
O cara levantou os braços, fazendo um pequeno gesto descritivo.
— Este é um país novinho em folha — ele disse.
22
Brogan pegou o carro e foi para O’Hare, no meio da noite, seis horas depois
da trapalhada com os mexicanos no furgão no Arizona. McGrath se sentou
ao lado dele no banco dianteiro, Milosevic no de trás. Ninguém falou nada.
Brogan estacionou o Ford do FBI na pista de tarmac[1] no complexo militar,
no interior da cerca rodeada de arame farpado. Sentaram-se no carro,
esperando o Lear do FBI que vinha de Andrews. Aterrissou depois de vinte
minutos. Eles o viram taxiar rapidamente em sua direção e então parar
bruscamente, iluminado pela luz ofuscante dos holofotes do aeroporto,
motores guinchando. A porta se abriu e a escada foi lançada para fora.
Harland Webster apareceu na abertura e olhou ao redor. Avistou-os e fez um
gesto para que se aproximassem. Um gesto enfático, urgente. Repetido duas
vezes.
Subiram para o interior do jatinho. A escada se dobrou para dentro e a
porta se fechou com um som de sucção atrás deles. Webster os conduziu
para a frente, para um grupo de assentos. Dois deles sentaram de um lado e
dois de outro a uma mesa pequena. Sentaram-se assim, McGrath e Brogan
de frente para Webster, com Milosevic ao seu lado. Colocaram os cintos de
segurança e o Lear começou a taxiar novamente. O avião virou, dando uma
guinada na pista de decolagem, e ficou no aguardo. Estremeceu, vibrou e
então se moveu para a frente, acelerou na longa pista antes de, subitamente,
decolar, inclinar-se para o noroeste e entrar numa barulhenta velocidade de
cruzeiro.
— Vamos lá, examinem minha teoria — Webster começou. — A filha
do chefão das Forças Armadas foi sequestrada por algum grupo terrorista,
com alguma participação estrangeira. Vão fazer exigências. Exigências com
algum tipo de dimensão militar.
McGrath discordou com a cabeça.
— Perdão, mas eu discordo totalmente — ele disse. — Como isso
poderia de alguma forma dar certo? Ele apenas seria substituído.
Reservistas dispostos a sentar suas bundonas gordas no Pentágono é o que
não falta.
Brogan concordou cautelosamente com a cabeça.
— Tem razão, chefe — ele disse. — Essa é uma proposição inviável.
Webster devolveu o meneio de cabeça.
— É verdade — teve que concordar. — Então, o que nos resta?
Ninguém respondeu. Ninguém quis dizer as palavras.
Holly puxou o painel lateral da banheira para fora. Tinha ouvido falar de
encanadores que deixavam coisas sob a banheira, fora da vista, atrás do
painel. Pedaços cortados de tubulação, restos de madeira, até mesmo
ferramentas. Lâminas usadas, uma chave inglesa esquecida. Coisas que
poderiam se mostrar úteis. Tinha encontrado todo tipo de coisa em alguns
apartamentos onde morara. Mas ali não havia nada. Ela se deitou, apalpou
as reentrâncias bem no fundo e não achou nada mesmo.
E o chão era totalmente sólido em toda a extensão embaixo das
instalações. O encanamento passava por orifícios apertados. Foi um
trabalho de craque. Era possível que pudesse forçar uma alavanca para
baixo, ao lado da tubulação grande que saía da privada. Se tivesse um pé de
cabra para afrouxar uma tábua. Mas não havia nenhum pé de cabra no
quarto. Muito menos algo que se equivalesse. O suporte de toalhas era de
plástico. Iria se dobrar e quebrar. Não havia mais nada. Sentou-se no chão e
sentiu o desapontamento invadi-la. Então ouviu passos do lado de fora da
porta.
Dessa vez eram leves. Abafados, e não barulhentos. Alguém se
aproximando, em silêncio e cautelosamente. Alguém que não vinha tratar
de algo oficial. Ela se levantou lentamente. Saiu do banheiro e puxou a
porta para esconder a parte desmontada. Mancou de volta para a cama
quando a fechadura estalou e a porta se abriu.
Um homem entrou no quarto. Era novinho, trajando roupa camuflada,
manchas pretas no rosto. Uma cicatriz vívida atravessava lateralmente sua
testa. Trazia uma metralhadora pendurada no ombro. Ele virou e fechou a
porta, bem de mansinho. Voltou-se com os dedos nos lábios.
Ela o fitou. Sentiu a raiva crescer. Dessa vez não estava acorrentada.
Dessa vez o cara ia morrer. Deu um sorriso nervoso diante de sua lógica. O
banheiro ia salvá-la. Era uma prisioneira de status elevado. Que deveria ser
mantida com dignidade e respeito. Alguém entrou afim de molestá-la e ela
o matou, não havia outra alternativa, não é?
Mas o cara com a cicatriz apenas manteve os dedos nos lábios e
apontou com a cabeça para o banheiro. Rastejou em silêncio até ela e
empurrou a porta. Gesticulou para que o seguisse. Ela mancou atrás dele.
Ele olhou de relance para baixo, para o painel lateral no chão, e fez sinal de
negativo com a cabeça. Esticou o braço para dentro e ligou o chuveiro.
Abriu o registro no máximo contra a banheira vazia.
— Eles têm microfones — o cara alertou. — Estão na escuta.
— Quem diabo é você? — ela perguntou.
Ele se abaixou e colocou o painel de volta na banheira.
— Não ia adiantar — ele disse. — Não tem saída.
— Tem que haver.
O sujeito negou com a cabeça.
— Fizeram um teste — ele contou. — O Comandante colocou aqui
dentro um dos caras que construíram este lugar. Disse a ele que se não
saísse arrancaria seus braços com uma serra elétrica. Então, imagino que ele
tentou com unhas e dentes.
— E o que aconteceu? — ela perguntou.
O sujeito deu de ombros.
— O Comandante usou a serra — ele respondeu.
— Quem diabo é você? — ela perguntou novamente.
— FBI — o sujeito disse. — Contraterrorismo. Agente infiltrado.
Acho que vou ter que tirar você daqui.
— Como? — ela perguntou.
— Amanhã — ele disse. — Eu posso conseguir um jipe. Vamos ter
que fugir. Não posso pedir ajuda porque estão fazendo uma varredura atrás
do meu transmissor. Vamos pegar o jipe, ir para o Sul e torcer pelo melhor.
— E como fica o Reacher? — ela perguntou. — Para onde levaram
ele?
— Esqueça ele — o sujeito disse. — Amanhã ele já vai estar morto.
Holly balançou a cabeça.
— Não vou sem ele — ela garantiu.
Holly Johnson tinha uma regra. Uma regra incutida em seu cérebro como
um lema de família. Reforçada por seu longo treinamento em Quantico. Era
uma regra destilada dos milhares de anos de história militar e centenas de
anos de experiência em imposição da lei. A regra rezava: espere o melhor,
mas faça planos para o pior.
Ela não tinha nenhuma razão para não acreditar que estaria indo a toda
velocidade para o Sul, num jipe, logo que seu novo aliado conseguisse
providenciar um. Ele era treinado pelo FBI, assim como ela. Ela sabia que
se a situação fosse inversa ela o tiraria dessa, tranquilamente. Então, sabia
que podia se contentar em ficar esperando sentada. Mas não ia fazer isso.
Estava esperando o melhor, mas planejando para o pior.
Tinha desistido do banheiro. Por ali não havia saída. Agora, estava
examinando o próprio quarto, centímetro por centímetro. O madeiramento
novo de pinho estava bem pregado na moldura, todas as seis superfícies.
Isso a estava deixando louca. Tábuas de pinho de três centímetros, a
tecnologia mais antiga possível, usada há dez mil anos, e não havia como
atravessá-las. Pelo menos, uma mulher solitária sem nenhuma ferramenta.
Daria na mesma se fosse a lateral de um couraçado de guerra.
Então, se concentrou em encontrar ferramentas. Era como se estivesse
pessoalmente atravessando em alta velocidade o processo evolutivo de
Darvin. Os macacos desceram das árvores e fizeram ferramentas. Ela estava
se concentrando na cama. O colchão era inútil. Era uma coisa fina, batida,
nenhuma mola de metal no interior. Mas a armação da cama se mostrava
mais promissora. Aparafusada com tubos e discos de ferro. Se ela pudesse
desmontá-la, poderia pôr uma das braçadeiras de ângulo reto na
extremidade do tubo mais longo e transformá-lo num pé de cabra de dois
metros. Mas todos os parafusos foram cobertos de tinta. Tinha mãos fortes,
mas nem sonhava em tirá-los do lugar. Seus dedos apenas fizeram
arranhões e escorregaram com o suor.
Loder tinha sido arrastado para longe, e Reacher estava preso, sozinho, com
o último guarda remanescente do destacamento noturno. O guarda estava
sentado atrás da mesa rústica e apoiava sua arma no encosto da cadeira,
com a boca apontada diretamente para ele. As mãos de Reacher ainda
estavam algemadas por trás. Havia decisões a tomar. A primeira era que, de
jeito nenhum, ia ficar sentado a noite inteira daquele jeito. Olhou com
calma para o guarda, levantou-se cuidadosamente e deslizou as mãos para
baixo. Pressionou o peito contra as coxas e passou as mãos ao redor dos
pés. Então se sentou, inclinou-se para trás e forçou um sorriso, as mãos
juntas no colo.
— Braços longos — ele começou a rachar o gelo. — Útil.
O guarda concordou com a cabeça, lentamente. Tinha olhos pequenos
e penetrantes, plantados fundo num rosto estreito. Brilhavam em contraste
com a barba grande, através dos borrões de camuflagem, mas o lampejo
parecia inocente o bastante.
— Como é seu nome? — Reacher perguntou.
O sujeito hesitou. Trocou de posição no assento. Reacher notava que
algum tipo de cortesia natural instigava uma resposta. Mas o sujeito
precisava fazer considerações táticas óbvias. Reacher continuou a forçar o
sorriso.
— Eu sou Reacher — ele se apresentou. — Agora você sabe meu
nome. Você tem nome? Vamos ficar aqui a noite toda, podemos pelo menos
ser civilizados, não é verdade?
O sujeito concordou com a cabeça novamente, lentamente. Então deu
de ombros.
— Ray — ele disse.
— Ray? — Reacher questionou. — Esse é seu nome ou sobrenome?
— Sobrenome — o sujeito respondeu. — Joseph Ray.
Reacher balançou a cabeça.
— Certo, Sr. Ray — ele disse. — É um prazer conhecê-lo.
— Me chame de Joe — Joseph Ray devolveu.
Reacher forçou o sorriso mais uma vez. O gelo foi quebrado. Era como
um interrogatório. Reacher tinha feito isso mil vezes. Mas nunca deste lado
da mesa. Nunca quando era ele que estava usando as algemas.
— Joe, você vai ter que me dar uma mãozinha — ele arriscou. —
Preciso de informações preliminares. Eu não sei onde estou, por que ou
quem são todos vocês. Pode me fornecer alguma informação básica?
Ray o observava como se talvez estivesse tendo dificuldade em saber
por onde começar. Depois ficou olhando ao redor do quarto, como se talvez
estivesse se perguntando se tinha permissão para começar.
— Onde estamos exatamente? — Reacher perguntou. — Você pode
me dizer isso, certo?
— Montana.
Reacher balançou a cabeça.
— Perfeito — ele disse. — Onde em Montana?
— Perto de uma cidadezinha chamada Yorke — Ray disse. — Uma
antiga vila de mineradores, praticamente abandonada.
Reacher balançou a cabeça novamente.
— Certo — ele disse. — O que vocês estão fazendo aqui?
— Estamos construindo uma fortaleza — Ray respondeu. — Um lugar
que nos pertença.
— Pra quê? — Reacher perguntou.
Ray deu de ombros. Ele se expressava mal. No início, não disse nada.
Então se sentou para a frente e disparou como um mantra, ao menos era o
que parecia para Reacher, algo que o sujeito havia ensaiado muitas vezes e
decorado até de trás pra frente. Ou algo que tinham dito para o cara muitas
vezes.
— Viemos pra cá pra escapar da tirania dos Estados Unidos — ele
contou. — Temos que traçar nossas fronteiras e dizer: vai ser diferente aqui
dentro!
— Diferente como? — Reacher indagou.
— A gente tem que recuperar os Estados Unidos, um pedaço de cada
vez. — Ray contou. — Temos que construir um lugar onde o homem
branco possa viver livre, sossegado, em paz, com liberdade e leis corretas.
— Você acha que conseguirá fazer isso? — Reacher questionou.
— Já aconteceu — Ray disse. — Aconteceu em 1776. O povo deu um
basta. Disseram que queriam um país melhor. Agora a gente está dizendo
isso novamente. Estamos dizendo que queremos nosso país de volta. E
vamos vencer. Porque agora estamos agindo unidos. Tinha uma dúzia de
milícias aqui em cima. Todas queriam as mesmas coisas. Mas estavam
todas sozinhas. A missão do Beau foi unir o pessoal. Agora estamos unidos
e a gente vai tomar nosso país de volta. Vamos começar por aqui. E vamos
começar agora.
Reacher balançou a cabeça. Olhou para a direita e para baixo, para a
mancha escura onde o nariz de Loder tinha sangrado no assoalho.
— Deste jeito? — ele apontou. — E quanto ao direito de voto da
democracia? E todas as coisas do gênero? Devemos tirar e colocar as
pessoas pelo voto, certo?
Ray sorriu triste e balançou a cabeça negativamente.
— Já votamos há mais de duzentos anos — ele disse. — Fica cada vez
pior. Para o governo tanto faz como votamos. Tiraram todo o poder da
gente. Deram nosso país para os outros. Você sabe onde fica o governo
deste país de verdade?
Reacher deu de ombros.
— Na capital, Washington, não é?
— Errado — Ray disse. — Fica em Nova York. No prédio das Nações
Unidas. Já se perguntou por que a ONU fica tão perto de Wall Street? É
porque lá fica o verdadeiro governo. Nas Nações Unidas e nos bancos. Eles
controlam o mundo. Os Estados Unidos são apenas uma pequena parte dele.
O presidente é apenas uma voz num maldito comitê. É por isso que votar
não adianta. Você acha que as Nações Unidas e o Banco Mundial ligam
para quem a gente vota?
— Tem certeza de tudo isso? — Reacher perguntou.
Ray confirmou com a cabeça vigorosamente.
— Tenho certeza absoluta — afirmou. — Eu vi como funciona. Por
que você acha que mandamos bilhões de dólares para os russos quando a
gente tem pobreza aqui nos Estados Unidos? Você pensa que o governo
americano faz isso de livre e espontânea vontade? Mandamos porque o
governo mundial obriga a gente. Você sabe que tem campos aqui, né?
Centenas de campos por todo o país? A maioria deles é para tropas da
ONU. Tropas estrangeiras, esperando para nos invadir se a gente criar caso.
E quarenta e três deles são campos de concentração. É aí que vão colocar a
gente quando começarmos a falar sem papas na língua.
— Tem certeza? — Reacher voltou a indagar.
— Tenho certeza absoluta — repetiu. — Beau tem os documentos. A
gente tem provas. Acontecem coisas que você não acreditaria. Você sabia
que tem uma lei federal secreta que obriga todos os bebês nascidos em
hospitais a receberem um microchip implantado sob a pele? Quando tiram
eles da nossa frente no berçário, não estão pesando e limpando. Estão
implantando um microchip. Muito em breve a população inteira será
vigiada por satélites secretos. Você pensa que o ônibus espacial é usado
para experiências científicas? Você pensa que o governo mundial
autorizaria o gasto de verba para coisas desse tipo? Só rindo. O ônibus
espacial está lá para lançar satélites de vigilância.
— Você tá de brincadeira, não tá? — indagou Reacher.
Ray balançou a cabeça negativamente.
— De jeito nenhum — disse. — Beau tem os documentos. Tem outra
lei secreta, um sujeito de Detroit mandou a informação para Beau. Todo
carro fabricado nos Estados Unidos desde 1985 tem um radiotransmissor
secreto, e deste modo os satélites podem ver aonde vai. As telas de radar no
prédio das Nações Unidas mostram onde você está a cada minuto do dia ou
da noite quando compra um carro. Eles têm forças estrangeiras treinando
nos Estados Unidos agora mesmo, prontas para a tomada de posse oficial.
Você sabe por que a gente manda tanto dinheiro para Israel? Não é porque
ligamos para o que acontece com os israelenses. Por que a gente deveria
ligar? Mandamos dinheiro porque é aqui que é treinado o exército mundial
secreto da ONU. É tipo um lugar experimental. Por que você acha que a
ONU nunca impede os israelenses de invadirem outros povos? Porque, na
verdade, foi a ONU que deu a ordem a eles. Estão sendo treinados para
tomar posse do mundo. Tem três mil helicópteros neste exato momento, em
bases aéreas ao redor dos Estados Unidos, todos prontos para serem usados
por eles. Helicópteros pintados totalmente de preto, sem marcas de
identificação.
— Sério?!? — Reacher deu uma de surpreso, mantendo a voz em
algum lugar entre preocupada e cética. — Eu nunca ouvi falar de nada
disso.
— O que já é uma prova, certo? — Ray explicou.
— Por quê?
— É óbvio, certo? — Ray disse. — Você pensa que o governo mundial
permitiria o acesso da mídia a esse material? O governo mundial controla a
mídia, certo? São os donos dela. Então, é lógico que o que quer que não
apareça na mídia é o que está acontecendo realmente, certo? Eles falam
para a gente o que é seguro e mantêm os segredos longe de nós. É tudo
verdade, acredite em mim. Eu te disse, Beau tem os documentos. Você sabia
que toda placa rodoviária nos Estados Unidos tem uma marca secreta no
verso? Dirija e dê uma olhada. Um sinal secreto para guiar as tropas
mundiais ao redor do país. Estão se preparando para assumir o controle. É
por isso que precisamos de um lugar só nosso.
— Você acha que vão atacar vocês? — Reacher perguntou.
— Sem sombra de dúvida — Ray respondeu. — Vão cair matando em
cima da gente.
— E você calcula que podem se defender? — Reacher perguntou. —
Um punhado de indivíduos de uma cidadezinha pequena qualquer em
Montana?
Joseph Ray balançou a cabeça negativamente.
— A gente não é um punhado de indivíduos — ele disse. — Somos
cem.
— Cem caras?!? — Reacher ironizou. — Contra o governo mundial?
Ray negou com a cabeça novamente.
— A gente pode se defender sim! — ele garantiu. — Beau é um líder
esperto. Este território aqui é bom. Um vale. Cem quilômetros de Norte a
Sul, cem quilômetros de Oeste ao Leste. E a fronteira canadense ao longo
da borda norte.
Ele varreu a mão pelo ar, acima do nível dos olhos, da direita para a
esquerda, como um golpe de caratê com o lado da mão, para demonstrar a
geografia. Reacher balançou a cabeça positivamente. Conhecia bem a
fronteira canadense. Ray usou a outra mão acima e abaixo da borda
esquerda de seu mapa invisível.
— Rapid River — ele disse. — É a nossa fronteira ocidental. É um rio
grande, completamente selvagem. Não tem como atravessar.
Moveu a mão da fronteira canadense transversalmente e friccionou o
ar formando um círculo pequeno, como se estivesse limpando uma vidraça.
— Parque nacional — ele disse. — Sabia? Oitenta quilômetros, de
Oeste a Leste. Floresta virgem, densa, não tem como atravessar. Se estiver
atrás de uma fronteira do Leste, não tem nada melhor do que essa floresta.
— E quanto ao Sul? — Reacher perguntou.
Ray deu um golpe lateral de mão ao nível do peito.
— Ravina — ele relatou. — Armadilha natural de tanques. Acredite
em mim, conheço tanques. Não tem como atravessar, a não ser por uma
estrada e uma trilha. A ponte de madeira segue a trilha sobre a ravina.
Reacher balançou a cabeça. Ele recordava do furgão branco
tamborilando sobre uma estrutura de madeira.
— Se a ponte for explodida... — Começou. — Não tem como
atravessar.
— E quanto à estrada? — Reacher perguntou.
— A mesma coisa — Ray afirmou. — Se a gente explodir a ponte,
ficamos em segurança. Temos explosivos no local.
Reacher balançou a cabeça lentamente. Estava pensando em ataque
aéreo, artilharia, mísseis, minas, bombas inteligentes, infiltração de forças
especiais, tropas aerotransportadas, paraquedistas. Pensava em SEALs
(tropas de ataque aéreo, marítimo e terrestre da marinha) construindo uma
ponte sobre o rio ou Marines (fuzileiros navais) construindo uma ponte
sobre a ravina. Pensava em unidades da OTAN descendo pelo Canadá,
fazendo estardalhaço.
— E quanto a Holly? — perguntou. — O que vocês querem com ela?
Ray sorriu. Sua barba se partiu, e seus dentes brilharam para fora, tanto
quanto seus olhos.
— A arma secreta do Beau — ele contou. — Pense bem. O governo
mundial vai usar o velho dela para liderar o ataque. É por isso que ele foi
escolhido. Você acha que o presidente escolhe esses sujeitos? Isso é piada.
O velho Johnson é do governo mundial, está apenas esperando o comando
secreto para entrar em ação. Mas, quando ele chegar aqui, o que vai
encontrar?
— O quê? — Reacher perguntou.
— Ele vem do Sul, certo? — Ray disse. — O primeiro prédio que vai
ver será esse tribunal velho, no canto sudeste da cidade. Você acabou de
voltar de lá. Ela está no segundo andar, certo? Notou a construção nova?
Quarto especial, paredes duplas, cinquenta e seis centímetros de distância
uma da outra. O espaço está lotado de dinamite e explosivos que vieram dos
armazéns da antiga mina. A primeira bala perdida mandará a filhinha do
velho Johnson para o outro mundo.
Reacher balançou a cabeça de novo, lentamente. Ray olhou para ele.
— A gente não está pedindo muito — ele disse. — Cem quilômetros
por cem quilômetros, quanto é? Apenas dez mil quilômetros quadrados de
território.
— Mas por que agora? — Reacher perguntou. — Por que tanta pressa?
— Que dia é hoje? — Ray perguntou de volta.
Reacher deu de ombros.
— Início de julho? — ele sugeriu.
— Dia 2 de julho — Ray disse. — Faltam dois dias.
— Para quê? — Reacher perguntou.
— Dia da Independência — Ray respondeu. — Quatro de Julho.
— E o que tem isso? — Reacher perguntou novamente.
— Vamos declarar nossa independência — Ray afirmou. — Uma
nação novinha em folha nascerá depois de amanhã. É nessa data que vão
nos atacar com tudo, certo? Liberdade para os coitadinhos? Isso não está no
plano deles.
24
Holly ouviu passos do lado de fora e saiu com cautela da cama. A fechadura
foi destrancada e o jovem soldado com uma cicatriz na testa subiu o degrau
e entrou no quarto, com o indicador nos lábios, e Holly balançou a cabeça.
Mancou até o banheiro e ajustou o jato da ducha para cair na banheira
vazia, com muito barulho. O rapaz a seguiu para dentro e fechou a porta.
— A gente pode fazer isto apenas uma vez por dia — Holly sussurrou.
— Vão desconfiar se ouvirem o chuveiro com muita frequência.
O cara concordou com a cabeça.
— A gente vai fugir hoje à noite — ele disse. — Não pode ser de dia.
Estamos todos de serviço no julgamento de Loder. Vou passar aqui logo
depois do crepúsculo com um jipe. Vamos fugir já no escuro. Para o sul. É
arriscado, mas a gente vai conseguir.
— Não sem o Reacher — Holly disse.
O rapaz balançou a cabeça negativamente.
— Não posso prometer — disse. — Ele está lá dentro com Borken
agora. Só Deus sabe o que vai acontecer com ele.
— Só vou se ele for — Holly afirmou.
O rapaz olhou nervoso para ela.
— Está bem — ele disse. — Vou tentar.
Ele abriu a porta do banheiro e rastejou para fora. Holly ficou olhando
até que saísse e desligou o chuveiro. Continuou olhando depois que ele
saiu.
Ele virou para o norte e para o oeste, e pegou um caminho longo pelo mato,
do mesmo jeito que tinha vindo. A sentinela que Fowler havia escondido
nas árvores a cinco metros do caminho principal não o viu. Mas a que tinha
escondido no mato mais afastado, sim. Avistou de relance alguém trajando
uniforme de camuflagem atravessando às pressas a vegetação rasteira.
Voltou-se rapidamente, só que tarde demais para identificar o rosto. Deu de
ombros e refletiu bem. Calculou que não contaria para ninguém. Melhor
ignorar do que relatar que não tinha conseguido fazer a identificação.
Então o rapaz com a cicatriz percorreu rapidamente toda a distância e
voltou para a sua cabana, dois minutos antes do seu compromisso de
acompanhar seu comandante à audiência do tribunal.
Holly sentia que havia uma grande multidão no salão embaixo dela. Podia
perceber o burburinho de uma multidão se mantendo imóvel e quieta. Mas
não parou de trabalhar. Não havia razão para acreditar que o infiltrado
falharia, mas mesmo assim passaria o dia se preparando. Por via das
dúvidas.
A busca por uma ferramenta a conduziu à que tinha trazido consigo:
sua muleta de metal. Era um tubo de alumínio de uma polegada, com uma
calha de cotovelo e um punho. O tubo era largo demais e o alumínio não
dava para ser usado como de pé de cabra. Mas deduzir que, se retirasse o pé
de borracha, a extremidade aberta do tubo poderia ser transformada numa
chave de fenda improvisada. Poderia talvez amassar o tubo em torno dos
parafusos que seguravam a cama. Depois dobraria o tubo num ângulo reto e
quem sabe conseguiria usá-lo como uma espécie de ferramenta de
desmontar pneus, embora bem frágil.
Mas primeiro teve que raspar a tinta espessa dos parafusos. Era macia,
lisa e prendia os parafusos à armação. Usou a borda da calha do cotovelo
para esfarelar as camadas superiores. Depois raspou nas emendas até ver o
metal brilhante. Agora pretendia mancar até o banheiro e voltar várias vezes
com uma toalha embebida em água quente. Pressionaria forte a toalha nos
parafusos e deixaria o calor expandir o metal e aliviar o aperto. Então o
alumínio macio da muleta poderia se mostrar forte o bastante para
conseguir o resultado.
Os parafusos maiores eram muito mais duros. Muito mais área de contato,
de metal a metal. Muito mais tinta para raspar. Era necessário muito mais
força para girá-los. Quanto mais força ela usava, mais a extremidade
esmagada da muleta podia escapulir para fora. Tirou o sapato e o usou para
dar forma à extremidade, a marteladas. Curvou e dobrou o alumínio macio
em torno da cabeça do parafuso. Então o apertou firmemente com os dedos.
Apertou até que os tendões finos do seu braço se sobressaíssem como
barbantes e o suor escorresse do rosto. Então girou a muleta, prendendo a
respiração, esperando para ver qual cederia primeiro, se o aperto dos seus
dedos ou o aperto do parafuso.
O vento que agitava a camisa de Reacher também trazia alguns sons fracos
até ele. Olhou de relance para Fowler e se voltou para encarar a borda
ocidental do campo de exercícios. Podia ouvir homens se movendo entre as
árvores. Uma fileira de homens, irrompendo para fora da floresta.
De repente surgiram, seis homens lado a lado, espingardas automáticas
nos ombros. Fardas de camuflagem, todos barbados. Os mesmos seis
guardas que haviam estado na frente da cadeira do juiz naquela manhã. O
destacamento pessoal de Borken. Reacher examinou a fileira de rostos. O
sujeito mais novo com a cicatriz estava no lado esquerdo da fileira. Jackson,
o agente infiltrado do FBI. Pausaram e restauraram o curso. Apressaram-se
através do terreno nivelado até Reacher. Quando se aproximaram, Fowler
deu um passo para trás, deixando Reacher parecer um alvo isolado. Cinco
homens se espalharam em leque, formando um arco. Cinco rifles
apontavam para o peito de Reacher. O sexto homem deu um passo na frente
de Fowler. Nenhuma continência, mas havia certa deferência em sua
posição, o que era mais ou menos a mesma coisa.
— Beau quer o sujeito de volta — o soldado disse. — Aconteceu algo
muito urgente.
Fowler balançou a cabeça.
— Levem logo então — ele ordenou. — Já está começando a me
encher o saco.
Os soldados empurraram Reacher com os rifles para uma formação
rudimentar e os seis homens se apressaram para o sul, através do fino
cinturão de árvores, movendo-se rapidamente. Passaram através do campo
de tiro e seguiram o trajeto de terra batida de volta ao baluarte. Rumaram
para o oeste, passaram pelo arsenal e seguiram pela floresta até a cabana de
comando. Reacher acelerou o passo. Passando adiante. Tropeçou numa raiz
e caiu pesadamente nas pedras. O primeiro sujeito a se aproximar dele foi
Jackson. Reacher viu a cicatriz na testa dele. Ele agarrou o braço de
Reacher.
— Tem espião em Chicago — Reacher sussurrou.
— De pé, idiota — Jackson respondeu com um grito.
— Se esconda e fuja hoje à noite — Reacher sussurrou. — Todo
cuidado é pouco, está bem?
Jackson olhou de relance para ele e respondeu apertando seu braço.
Então o puxou para cima e o empurrou adiante, descendo o trajeto até a
clareira menor. Beau Borken estava parado na entrada da cabana de
comando. Vestia uma farda de camuflagem folgada, enorme, suja e
desgrenhada. Como se estivesse executando um trabalho pesado. Fitou
Reacher quando ele se aproximou.
— Estou vendo que lhe demos roupa nova — ele disse.
Reacher confirmou com a cabeça.
— Então permita que eu me desculpe pela minha aparência — Borken
disse. — Dia cheio.
— Fowler me falou — Reacher disse. — Você estava construindo
abatises.
— Abatises? — Borken indagou. — Ah, sim.
Então emudeceu. Reacher olhou suas grandes mãos brancas, abrindo e
fechando.
— Sua missão está cancelada — Borken disse baixinho.
— É? — Reacher perguntou. — Por quê?
Borken desceu seu corpo volumoso lentamente da entrada e deu um
passo para perto. O olhar de Reacher fixava seu olhar penetrante e por isso
não viu a porrada chegar. Borken deu-lhe um murro na boca do estômago,
um punho duro e grande, na extremidade de cento e oitenta quilos de peso
corporal. Reacher caiu como uma árvore e Borken pressionou um pé nas
costas dele.
28
Webster conhecia muito bem a procuradora federal. Era chefe dele, mas sua
familiaridade com ela não provinha de reuniões cara a cara. Vinha
principalmente das comprovações de antecedentes que o FBI tinha feito
para a nomeação. Webster provavelmente sabia mais sobre ela do que
qualquer outra pessoa na Terra. Seus pais, amigos e ex-colegas tinham suas
próprias perspectivas. Webster juntara tudo isso e pintou o quadro
completo. A ficha no FBI ocupava tanto espaço no disco quanto um
romance curto. Nada nela o fazia não gostar dela. Tinha sido advogada, um
pouquinho radical no início de carreira, acumulou prática considerável,
conseguiu a magistratura, nunca irritou a comunidade com a imposição da
lei, nunca se transformou numa chata doida de espumar pela boca. A
nomeação ideal, passou com tranquilidade pela sua confirmação, sem
problema nenhum. Tinha provado desde então ser uma boa chefe e uma
grande aliada. Chamava-se Ruth Rosen, e seu único problema com a chefe
era que ela tinha doze anos a menos, era bonita e muito mais famosa do que
ele.
O compromisso era para as quatro horas. Encontrou Rosen sozinha
numa saleta, distante cerca de dois andares e oito agentes do serviço secreto
do salão oval do presidente. Ela o cumprimentou com um sorriso tenso e
um aceno urgente de sua postura elegante.
— Holly? — perguntou.
Ele confirmou com a cabeça. Deu a ela uma visão geral, de cabo a
rabo. Ela ouviu com atenção e foi empalidecendo, com os lábios
firmemente apertados.
— Temos certeza absoluta de que é aí que ela está? — ela perguntou.
Ele assentiu com a cabeça novamente.
— Mais certeza é impossível — ele afirmou.
— Certo — ela disse. — Espere um instantinho, ok?
Deixou a saleta. Webster ficou esperando. Dez minutos, depois vinte,
então meia hora. Andou para lá e para cá. Olhou pela janela. Abriu a porta e
olhou de relance para fora, no corredor. Um agente do serviço secreto lhe
devolveu o olhar e deu um passo para a frente. Webster balançou a cabeça
em resposta à pergunta que o sujeito não tinha feito e fechou a porta
novamente. Apenas ficou sentado esperando.
Ruth Rosen ficou fora uma hora. Voltou e fechou a porta. Então,
apenas ficou parada lá, um metro dentro da saleta, pálida, respirando fundo,
totalmente chocada. Não disse nada. Apenas deixou que ele se tocasse que
algo grave estava acontecendo.
— O que houve? — ele perguntou.
— Estou fora do jogo — ela disse.
— O quê? — ele voltou a perguntar.
— Me tiraram da partida — ela disse. — Minhas reações foram
erradas. Dexter vai cuidar do assunto a partir de agora.
— Dexter? — ele repetiu. Dexter era o chefe do pessoal da Casa
Branca. Um populistazinho da velha guarda. Tão duro quanto um prego,
porém com metade dos sentimentos. Mas era a principal razão do
presidente estar sentado no salão oval, com a grande maioria dos votos
vindos das classes mais baixas.
— Sinto muito mesmo, Harland — Ruth Rosen disse. — Ele vai estar
aqui em um minuto.
Harland balançou a cabeça, azedo, e ela voltou a sair pela porta e o
deixou esperando novamente.
Johnson e seu assessor chegaram em Butte uma hora mais tarde e da mesma
maneira, num helicóptero da Força Aérea vindo de Peterson até o aeroporto
do condado de Silver Bow. Milosevic recebeu uma ligação ar-terra
conforme se aproximavam, e depois de pousar saiu para encontrá-los num
Grand Cherokee seminovo, fornecido pela concessionária local. Ninguém
falou nada na breve viagem de volta à cidade. Milosevic apenas dirigiu e os
dois militares curvaram-se sobre cartas e mapas, provindos de uma grande
caixa de couro que o assessor carregava. Passaram-nos para a frente e para
trás e balançaram a cabeça, como se qualquer comentário adicional fosse
desnecessário.
A sala no prédio municipal de repente ficou apinhada. Cinco homens,
duas cadeiras. A única janela dava para a rua, na direção sudeste. Direção
errada. Os cinco homens relanceavam, instintivamente, os olhos para a
parede vazia oposta. Para além dessa parede estava Holly, a mais de
duzentos e cinquenta quilômetros.
— Vamos ter que nos instalar lá em cima — o general Johnson disse.
Seu assessor concordou com a cabeça.
— Não adianta ficarmos aqui — ele concluiu.
McGrath havia tomado uma decisão. Tinha prometido a si mesmo que
não travaria guerras territoriais com aqueles sujeitos. Sua agente era a filha
de Johnson. Ele compreendia os sentimentos do velhote. Não iria
desperdiçar tempo e energia para provar quem era o chefe. E precisava da
ajuda dele.
— Precisaremos compartilhar instalações — ele disse. — Apenas por
enquanto.
Fez-se um curto silêncio. O general balançou a cabeça lentamente. Ele
sabia o bastante sobre Washington para decodificar aquelas três palavras
com certo grau de exatidão.
— Eu não tenho muitas instalações disponíveis — ele disse por sua
vez. — É o fim de semana do feriado. Exatamente setenta e cinco por cento
do exército norte-americano estão de licença.
Silêncio. Foi a vez de McGrath decodificar e balançar a cabeça
lentamente.
— Nenhuma autorização de cancelamento das licenças? — ele
perguntou.
O general balançou a cabeça negativamente.
— Acabei de falar com Dexter — disse. — E ele acabou de falar com
o presidente. Sentiram que é melhor suspender, até segunda-feira.
A sala apinhada ficou em silêncio. A filha do sujeito estava em apuros
e o intermediário da Casa Branca brincava de política.
— Webster está com o mesmo problema — McGrath disse. — Não
pode trazer a equipe de salvamento de reféns aqui para cima ainda. Por
enquanto, estamos por conta própria, nós três.
O general fez um sinal com a cabeça para McGrath. Era um gesto
pessoal, de homem para homem, que expressava: Fomos francos um com o
outro e ambos sabemos a humilhação que isso nos custa, e ambos ficamos
gratos.
— Mas não custa nada ficar preparado — o general sugeriu. — Como
o fulano suspeita, as Forças Armadas estão tranquilas fazendo manobras
secretas. Eu estou cobrando alguns favores confidenciais que o Sr. Dexter
nunca precisará ficar sabendo.
O clima de apreensão na sala ficou mais leve. McGrath expressou uma
pergunta com o olhar.
— Já temos um posto móvel de comando a caminho — o general
avisou.
Pegou um mapa grande da mão do seu assessor e desdobrou na mesa.
— Vamos nos encontrar bem aqui — ele apontou.
Seu dedo mostrava um ponto a noroeste da última habitação de
Montana, antes de Yorke. Era uma curva larga na estrada que levava ao
condado, aproximadamente dez quilômetros antes da ponte sobre a ravina.
— Os caminhões-satélite estão se dirigindo direto para o local — ele
disse. — O plano é nos posicionarmos lá, estabelecermos o posto de
comando e interditar a estrada atrás de nós.
McGrath ficou imóvel, com os olhos baixados para o mapa. Ele sabia
que concordar seria ceder controle total às Forças Armadas. Sabia que
discordar seria ficar com joguinhos mesquinhos com sua agente e a filha do
homem. Viu então que o dedo do general estava a cerca de três centímetros
ao sul de uma posição muito melhor. Um pouco mais para o norte, a estrada
se estreitava bastante. Endireitava-se, dando uma vista muito boa para o
norte e para o sul. O terreno se apertava. Um local melhor para uma barreira
na estrada. Um local melhor para um posto de comando. Ficou espantado
pelo general não tê-lo visto. Então, encheu-se de gratidão. O general havia
visto sim. Mas estava dando espaço para McGrath apontá-lo. Briga de
cachorro grande. Estava dando espaço para concessão mútua. Não queria
controle total.
— Eu preferiria este lugar — McGrath apontou.
Bateu na posição norte com um lápis. O general fingiu estudá-la. Seu
assessor fingiu ficar impressionado.
— Boa ideia — o general disse. — Vamos revisar o ponto de encontro.
McGrath sorriu. Ele sabia muito bem que os caminhões já estavam
indo para esse ponto exato. Provavelmente até já estavam lá. O general
devolveu o sorriso. O teatro havia terminado.
— O que os aviões espiões podem nos mostrar? — Brogan perguntou.
— Tudo — o assessor do general disse. — Espere até ver as fotos. As
câmeras nesses bichinhos são inacreditáveis.
— Não gostei disso — McGrath disse. — Eles vão ficar nervosos.
O assessor balançou a cabeça negativamente.
— Nem ao menos vão saber que estiveram lá — garantiu. — Vamos
usar dois deles, voando em linha reta, do oeste ao leste e vice-versa. Trinta
e sete mil pés acima. Ninguém no chão nem ao menos estará ciente deles.
— Trinta e sete mil? — Brogan se espantou. — Como podem ver
qualquer coisa de uma altura dessas?
— As câmeras são excelentes — o assessor afirmou. — Trinta e sete
mil não é nada. Mostram um maço de cigarros na calçada. E tudo é
automático. Um sujeito aperta um botão lá em cima a câmera rastreia o que
quer que tenha que rastrear. Fica apontando para o ponto em solo que você
escolheu, transmitindo imagens de alta qualidade via satélite. Em seguida
você faz a volta, retorna e a câmera gira e faz tudo novamente.
— Indetectável? — McGrath perguntou.
— Parecem aviões de passageiros — o assessor disse. — Você olha
para cima, vê uma trilha minúscula de vapor e pensa que é um voo qualquer
da TWA. Você não pensa que é algum avião da Força Aérea checando se
você está engraxando seus sapatos esta manhã, compreende?
— Trinta e sete, dá para ver os cabelos brancos em sua cabeça —
Johnson disse. — Com o que você acha que gastamos todos esses dólares
da Defesa? Aviões pulverizadores?
McGrath balançou a cabeça. Sentiu-se nu. Por enquanto, ele não tinha
nada a oferecer, a não ser dois jipes alugados, seminovos, esperando na
calçada.
— Estamos criando um perfil do tal de Borken — ele avisou. — Os
especialistas em Quantico estão trabalhando nisso agora.
— Nós encontramos o antigo oficial comandante de Jack Reacher —
Johnson disse. — Está servindo atrás de uma mesa no Pentágono. Ele vai se
juntar a nós, nos dar o quadro geral.
McGrath balançou a cabeça.
— Um homem prevenido vale por dois — ele disse.
O telefone tocou. O assessor de Johnson atendeu. Estava mais
próximo.
— Quando vamos sair? — Brogan perguntou.
McGrath notou que ele tinha perguntado diretamente para Johnson.
— Agora mesmo, suponho — Johnson disse. — A Força Aérea vai
nos levar pra lá de avião. Economiza seis horas de estrada, certo?
O assessor desligou o telefone. Parecia que havia levado um murro na
boca do estômago.
— A unidade de mísseis — ele disse. — Perdemos o contato de rádio
no norte de Yorke.
31
Ela botou a cabeça para funcionar. Tinha que calcular onde ele estava. E
tinha que calcular onde ficava o campo de exercícios. Precisava chegar
entre esses dois locais desconhecidos e armar uma emboscada. Sabia que o
solo tinha um declive ascendente íngreme até a clareira com as cabanas.
Recordou ser trazida morro abaixo até o tribunal. Supunha que o campo de
exercícios deveria ser uma enorme área plana. Consequentemente, teria que
ser mais morro acima, para o noroeste, onde a terra se nivelava no bojo da
montanha. Certa distância para além das cabanas. Partiu morro acima
através das árvores.
Tentou descobrir para onde o trajeto principal seguia. De poucos em
poucos metros, parava e espreitava o sul, virando para a esquerda e para a
direita, para um relance das aberturas na cobertura da floresta onde as
árvores tinham sido cortadas. Dessa maneira, poderia deduzir a direção da
trilha. Manteve-se paralela a ela, trinta ou quarenta metros ao norte, e
atravessou os galhos resistentes que cresciam lateralmente dos troncos a
muito custo. Era tudo subida, íngreme, e era trabalho duro. Usou a muleta
como um barqueiro usa uma vara, plantando-a firmemente no solo e
empurrando-se para cima.
Sabe-se lá como, mas seu joelho a ajudou. Ele a fez subir lentamente e
com cuidado. Tornou-a silenciosa. E ela sabia como agir. Por causa de
velhas histórias do Vietnã e não de Quantico. A academia havia se
concentrado em situações urbanas. O FBI a tinha ensinado como espreitar
por uma rua da cidade ou um edifício escuro. Como espreitar por uma
floresta se originava de uma gaveta pouco usada da memória.
A terceira sentinela a pegou. Seu joelho a deixou na mão. Teve que escalar
um alto penhasco rochoso e, por causa da perna, precisou fazer isso de
costas. Sentou-se na rocha como se fosse uma cadeira e usou a perna boa e
a muleta para empurrar-se para cima, um pé de cada vez. Chegou ao topo e
rolou de costas no chão, ofegante por causa do esforço, e então se contorceu
endireitando o corpo e ficou parada, frente a frente com a sentinela.
Por um milésimo de segundo, ficou pasma de surpresa e choque. Mas
ele não. Ele tinha ficado no topo do morro observando cada trecho do seu
avanço agonizante. Por isso não estava surpreso. Mas era lento. Com um
oponente como Holly, deveria ter sido rápido. Deveria estar pronto. Reagiu
antes que ele pudesse esboçar qualquer ação. Ela se lembrou do que
aprendera no treinamento básico. Veio inconscientemente. Fechou a mão e
deu um murro nele de baixo para cima. Acertando-o bem nos ovos. Ele se
dobrou para a frente e para baixo, e ela envolveu o braço esquerdo em sua
garganta e acertou sua nuca com o antebraço direito. Sentiu as vértebras do
sujeito se estilhaçarem e seu corpo ficar mole. Então apertou as palmas
sobre as orelhas dele e torceu sua cabeça com selvageria para um lado e
depois para outro. A coluna se rompeu e ela o girou e o jogou rochedo
abaixo. Ele despencou pelo penhasco aos trancos e barrancos, membros
mortos se agitando. Então ela o amaldiçoou e xingou com ódio, pois
deveria ter tomado o rifle. Ele valia mais do que doze Ingrams. Mas não
desceria tudo de novo para pegá-lo, de jeito nenhum. Subir aquilo tudo a
atrasaria muito.
Ela não tinha ideia da distância que havia percorrido. Sentia como se
fossem quilômetros. Centenas de metros de subida. Mas ainda estava nas
profundezas da floresta. A trilha principal ainda ficava a uns quarenta
metros ao sul, à sua esquerda. Sentiu os minutos tiquetaquearem e seu
pânico aumentar. Agarrou a muleta e moveu-se para o noroeste novamente,
o mais rápido que podia.
Então avistou um prédio diante dela. Uma cabana de madeira, visível
através das árvores. O matagal acabava aos poucos na brita pedregosa.
Rastejou para a borda do matagal e parou. Escutou atentamente sobre o
arfar de sua respiração. Não ouviu nada. Agarrou a muleta e levantou a
Ingram firmemente contra a correia. Atravessou a brita mancando até o
canto da cabana. Olhou para o outro lado e ao redor.
Era a clareira onde tinham chegado na noite anterior. Um largo espaço
circular. Rochoso. Rodeado de cabanas. Abandonado. Quieto. O silêncio
absoluto de um lugar recentemente abandonado. Saiu detrás da cabana e
mancou até o centro da clareira, fazendo uma pirueta sobre a muleta,
mirando a Ingram em um círculo extenso, cobrindo as árvores do perímetro.
Nada. Não havia ninguém ali.
Vislumbrou duas trilhas, uma para o oeste, outra, mais larga, para o
norte. Virou para o norte e retornou para a proteção das árvores. Esqueceu-
se da tentativa de permanecer quieta e correu, o mais rápido que podia se
mover.
— Nós sabemos por que estamos aqui! — Borken exclamou outra vez.
A multidão ordenada se moveu e uma onda de sussurros subiu até as
árvores. Reacher esquadrinhou os rostos. Viu Stevie na fileira da frente.
Uma estrela cromada fincada no bolso em seu peito. O Pequeno Stevie era
um oficial. Ao lado de Stevie viu Joseph Ray. Então se deu conta de que
Jackson não estava lá. Ninguém com uma cicatriz na testa. Verificou
novamente. Varreu tudo. Nenhum sinal dele em qualquer lugar do campo de
exercícios. Apertou os dentes para impedir um sorriso. Jackson estava se
escondendo. Holly ainda poderia conseguir.
Ela o viu. Mirou o olhar através da floresta sobre cem cabeças e o viu ao
lado de Borken. Suas mãos estavam algemadas atrás das costas. Ele
esquadrinhava a multidão. Nada no rosto. Ela ouviu Borken dizer: Nós
sabemos por que estamos aqui! Ela pensou: Sim, eu sei por que estou aqui.
Eu sei exatamente por que estou aqui. Olhou para a esquerda e para a
direita. Cem pessoas, rifles, metralhadoras, pistolas, granadas. Borken sobre
o caixote com os braços levantados. Reacher, indefeso ao lado dele. Ficou
entre as árvores, o coração disparado, encarando-o. Então respirou
profundamente. Ajustou a Ingram para a posição de tiro único e disparou no
ar. Saiu dali o mais rápido que pôde. Atirou outra vez. E de novo. Três tiros
no ar. Três balas se foram, restavam vinte e sete no pente. Colocou a Ingram
de volta no modo automático com um clique e entrou no meio da multidão,
dividindo-a ao meio ao agitar a arma com a mão ameaçadora.
Uma mulher movendo-se lentamente no meio de uma multidão de cem
pessoas. Abriram caminho cautelosamente ao seu redor enquanto ela
passava, tiraram a arma do ombro, puxaram o cão e apontaram para as
costas dela. Uma onda de ruídos mecânicos altos se fez ouvir como uma
marola lenta. No momento em que ela alcançou a fileira dianteira, havia
cem armas carregadas mirando as suas costas.
— Não atirem nela! — Borken gritou. — Isso é uma ordem! Ninguém
atira!
Ele saltou do caixote. Pânico no rosto. Levantou os braços largamente
e dançou desesperado em torno da agente, protegendo o corpo dela com seu
corpanzil enorme. Ninguém atirou. Ela mancou para longe dele e se virou
para a multidão.
— Que merda é essa? — Borken gritou com ela. — Você acha que
pode atirar em cem pessoas com essa bostinha?
Holly balançou a cabeça.
— Tenho certeza que não — ela disse baixo.
Então inverteu a Ingram e segurou-a contra o peito.
— Mas garanto que posso atirar em mim mesma — ela disse.
32
Os cinco guardas, que haviam sido seis quando Jackson estava com eles,
formaram fila. Moveram-se para a frente e se posicionaram em torno de
Reacher e de Holly. A multidão tinha começado a se dispersar, quieta. Seus
pés trituravam e deslizavam na terra rochosa. Então o som sumiu e o
estande de tiro ficou em silêncio.
Fowler se abaixou e pegou as armas. Calculou o peso de ambas em
cada mão e andou para longe, pelas árvores. Cada um dos cinco guardas
tirou a arma do ombro com o som alto das palmas batendo na madeira e no
metal.
— Certo — Borken disse novamente. — Pelotão de castigo.
Voltou-se para Holly.
— Você também — ele avisou. — Você não é um bibelô tão caro
assim. Pode ajudar. Tem uma tarefa a executar para mim.
Os guardas deram um passo para a frente e conduziram Reacher e
Holly para trás de Borken, desceram lentamente em meio às árvores até o
baluarte e ao longo da trilha de terra batida, até a clareira da cabana de
comando. Pararam lá. Dois dos guardas se separaram e andaram até os
armazéns. Voltaram cerca de cinco minutos depois com suas armas nos
ombros. O primeiro guarda carregava uma pá de cabo longo na mão
esquerda e um pé de cabra na direita. O segundo carregava duas camisas de
farda verde-oliva. Borken as pegou dele e se voltou para Reacher e Holly.
— Tirem a camisa — ele ordenou. — Vistam isso.
Holly o encarou.
— Por quê? — ela perguntou.
Borken sorriu.
— Faz parte do jogo — ele disse. — Se não voltarem até o anoitecer,
soltaremos os cachorros. Eles precisarão de suas camisas velhas para
farejar.
Holly balançou a cabeça.
— Não vou me despir — ela afirmou.
Borken olhou para ela e balançou a cabeça.
— Vamos ficar de costas — ele avisou. — Mas você tem somente uma
chance. Caso contrário, estes garotos vão fazer por você, entendido?
Deu o comando, e os cinco guardas se espalharam em leque, formando
um arco frouxo, de frente para as árvores. Borken esperou até Reacher se
voltar, e então girou sobre os calcanhares e olhou fixamente para o céu.
— Certo — ele disse. — Ande logo.
Os homens ouviram sons de desabotoar e o farfalhar do tecido de
algodão. Ouviram a camisa velha cair no chão e a nova deslizar sobre ela.
Ouviram as unhas estalarem contra os botões.
— Pronto — Holly murmurou.
Reacher tirou a jaqueta e a camisa e se arrepiou com a brisa fria da
montanha. Pegou a camisa nova da milícia e a vestiu. Lançou a jaqueta
sobre o ombro. Borken balançou a cabeça, e o guarda entregou a Reacher a
pá e o pé de cabra. Borken apontou para a floresta.
— Caminhe rumo ao oeste cem metros — ele insistiu. — Então mais
cem para o norte. Você saberá o que fazer quando chegar lá.
Holly olhou para Reacher. Ele devolveu a olhada e assentiu com a
cabeça. Caminharam juntos para as árvores, rumo ao oeste.
Trinta metros mato adentro, logo que ficaram fora da vista, Holly parou.
Plantou sua muleta e esperou Reacher voltar até ela.
— Borken — ela disse. — Sei quem ele é. Eu li o nome em nossos
arquivos. Suspeito de assalto, em algum lugar no norte da Califórnia. Vinte
milhões de dólares em títulos ao portador. O motorista do carro-forte foi
morto. A agência de Sacramento investigou, mas não conseguiu provar.
Reacher balançou a cabeça.
— Foi ele — afirmou. — Tenho certeza absoluta. Fowler admitiu.
Disse que eles têm vinte milhões nas Ilhas Cayman. Capturados do inimigo.
Holly fez uma careta.
— Isso explica o espião em Chicago — ela disse. — Borken pode
tranquilamente subornar um agente com vinte milhões de dólares no banco,
certo?
Reacher balançou a cabeça de novo, lentamente.
— Conhece alguém que aceitaria? — ele perguntou.
Ela deu de ombros.
— Todos reclamam do salário — ela contou.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Não esses — ele disse. — Pense em alguém que não reclama.
Quem quer que tenha os títulos ao portador de Borken não está mais
preocupado com dinheiro.
Ela deu de ombros novamente.
— Alguns deles não resmungam — ela disse. — Alguns apenas
toleram. Como eu, por exemplo. Mas suponho que eu seja diferente.
Ele olhou para ela. Continuou a andar.
— Você é diferente — ele confirmou. — Com toda certeza.
Ele disse vagamente, pensando no assunto. Continuaram a andar. Mais
dez metros. Ele estava andando mais lentamente do que seu passo normal e
ela mancava ao seu lado. Ele estava perdido em seus pensamentos. Ouvia a
voz aguda de Borken alegando: Ela é mais do que filha dele. Ouvia a
própria voz exasperada dela perguntando: Por que todos supõem que tudo
que acontece comigo é por causa de quem meu maldito pai é? Então parou
de andar novamente e encarou ela.
— Quem é você, Holly? — ele perguntou.
— Você sabe quem eu sou — ela afirmou.
Ele, mais uma vez, balançou a cabeça negativamente.
— Não, eu não sei — ele disse. — Inicialmente, achei que você era
apenas uma mulher qualquer. Então você era uma mulher chamada Holly
Johnson. Então descobri que você era do FBI. Depois você era filha do
general Johnson. Então Borken me disse que você é ainda mais do que isso.
Ela é mais do que filha dele, ele disse. Aquela façanha que você aprontou,
ele ficou se cagando. Você é algum tipo de refém de primeiríssima linha,
Holly. Então, quem mais você é?
Ela olhou para ele. Suspirou.
— É uma longa história — ela avisou. — Começou há vinte e oito
anos. Meu pai foi feito Fellow da Casa Branca. Transferido para
Washington. Costumavam fazer isso com os mais promissores. Ele acabou
fazendo amizade com um outro sujeito. Um analista político que
ambicionava ser senador. Minha mãe estava grávida de mim, a esposa dele
também estava grávida, ele convidou meus pais para serem padrinhos, meu
pai pediu para serem padrinhos também. Então, este outro sujeito foi meu
padrinho de batismo.
— E? — Reacher pediu que concluísse.
— O sujeito seguiu carreira — Holly disse. — Ainda está em
Washington. Você provavelmente votou nele. É o presidente.
Ele afagou o cabelo dela e sentiu sua respiração desacelerar. Ficou abraçado
com ela em silêncio por muito tempo, observando a dança das partículas de
poeira nos raios solares sobre a cabeça.
— Quem sabia o que você ia fazer na segunda-feira? — perguntou
gentilmente.
Ela refletiu um pouco. Não respondeu.
— E qual deles não sabia sobre Jackson na época? — ele perguntou.
Nenhuma resposta.
— E qual deles está cheio da grana? — ele perguntou.
Nenhuma resposta.
— E qual deles é calouro? — ele perguntou. — Qual deles podia ter
chegado perto o suficiente de Beau Borken em algum lugar para ser
comprado? Em algum tempo no passado? Talvez ao investigar o assalto na
Califórnia?
Ela sentiu um arrepio nos braços.
— Várias perguntas, Holly — ele disse. — Quem se encaixa?
Ela passou a limpo todas as possibilidades. Como um processo de
eliminação. Um algoritmo. Escaneou mentalmente os cem nomes. A
primeira pergunta eliminou a maioria delas. A segunda, mais algumas. A
terceira, um punhado. Foi a quarta que se mostrou decisiva. Ela sentiu um
arrepio novamente.
— Ou um... ou outro — ela pensou alto.
33
Brogan acordou o general Johnson uma hora e dez minutos mais tarde, às
seis horas exatamente. Bateu forte na porta do caminhão-dormitório, e não
obteve nenhuma resposta. Então entrou e balançou o velhote pelo ombro.
— Base Peterson da Força Aérea, senhor — Brogan disse. — Precisam
falar.
Johnson cambaleou até o veículo de comando, só de camiseta e calças.
Milosevic juntou-se a Brogan lá fora no lusco-fusco para dar a ele um
pouco de privacidade. Johnson saiu de novo cinco minutos depois.
— Vou convocar uma reunião! — ele exclamou.
Voltou a entrar no caminhão. Milosevic desceu e acordou os outros.
Foram para a frente, Webster e o assessor do general bocejando e se
espreguiçando, Garber bem ereto. McGrath, vestido e fumando. Talvez nem
tivesse tentado dormir. Subiram a escada em fila e tomaram seus lugares em
torno da mesa, olhos vermelhos, desolados, cabelo com felpos emaranhados
por causa dos travesseiros.
— Peterson entrou em contato — Johnson disse. — Vão mandar um
helicóptero de resgate daqui a pouco, atrás da unidade de mísseis.
Seu assessor balançou a cabeça.
— Esse é o procedimento padrão — ele assentiu.
— Baseado em suposição — Johnson disse. — Acreditam que a
unidade sofreu algum tipo de pane eletromecânica.
— O que não é incomum — seu assessor disse. — Quando o rádio
falha, o procedimento é repará-lo. Quando um caminhão ao mesmo tempo
quebra, o procedimento é esperar em grupo por auxílio.
— Blindar a área? — McGrath perguntou.
O assessor balançou a cabeça novamente.
— Exatamente — ele disse. — Sairiam da estrada e esperariam um
helicóptero.
— Então podemos informá-los? — McGrath perguntou.
O assessor se sentou inclinando-se para a frente.
— Essa é a questão — ele disse. — Informar o que exatamente? Nem
sabemos com certeza se estes maníacos estão com eles de fato. Ainda é
possível que seja apenas uma infeliz coincidência.
— Acho improvável — Johnson opinou.
Webster deu de ombros. Ele sabia como lidar com tais assuntos.
— Qual é o lado positivo? — perguntou.
— Não há nenhum lado positivo — Johnson retrucou. — Se
contarmos a Peterson que os mísseis foram capturados, o segredo já era, nós
perderemos o controle da situação, seremos vistos como tendo
desobedecido a Washington por transformar tudo isso numa grande
encrenca antes da segunda-feira.
— Ok, então qual é o lado negativo? — Webster perguntou.
— Teoricamente — Johnson disse — temos que dar por certo que
foram capturados. Então também temos que pressupor que foram bem
escondidos. Neste caso, a Força Aérea nunca os encontrará. Apenas vão
sobrevoar ao redor por algum tempo, e então irão pra casa esperar.
Webster balançou a cabeça.
— Ok — ele concordou. — Positivo ou negativo, nenhuma grande
encrenca.
Fez-se um breve silêncio.
— Então, ficamos sentados esperando — Johnson analisou. —
Deixamos o helicóptero circular a área.
McGrath balançou a cabeça negativamente. Incrédulo.
— E se usarem os mísseis para derrubar o helicóptero? — perguntou.
O assessor do general deu um sorriso indulgente.
— Não tem como — ele explicou. — O IAI não permitiria.
— IAI? — McGrath repetiu.
— Identificador de Amigo ou Inimigo — o assessor esclareceu. — É
um sistema eletrônico. O helicóptero estará emitindo um sinal. O míssil lê
como amigo e se recusa a ser detonado.
— É garantido? — McGrath perguntou.
O assessor balançou a cabeça.
— À prova de acidentes — ele afirmou.
Garber fez uma careta para ele. Mas não disse nada. Não era sua
especialidade.
— Ok — Webster disse. — De volta pra cama. Acorde a gente
novamente às oito, Brogan.
Holly passou a mão sobre o colchão velho, como se Reacher estivesse nele.
Como se fosse realmente seu corpo debaixo dela, cheio de cicatrizes e
curtido, quente, robusto e musculoso, e não uma porcaria de algodão
listrada gasta, estofada com crina de cavalo. Piscou até as lágrimas secarem.
Soltou um suspiro profundo e se concentrou na próxima decisão. Nada de
Reacher, nada de Jackson, nada de arma nem ferramentas, seis sentinelas lá
fora. Relanceou os olhos em torno do quarto pela milésima vez e começou a
reavaliar tudo.
McGrath esperou ali dois minutos e rastejou de volta para o sul na direção
do Chevrolet. Garber e o assessor de Johnson estavam na frente e Milosevic
e Brogan atrás. Todos de olho nele.
— O que diabos aconteceu? — Brogan perguntou.
— Estamos atolados na mais profunda merda — McGrath disse.
Dois minutos de explicação apressada e os outros concordaram.
— E agora, como ficamos? — Garber perguntou.
— Vamos resgatar a Holly — instruiu McGrath. — Antes que ele
perceba que a gente está fazendo hora com a cara dele.
— Mas de que jeito? — Brogan perguntou.
McGrath lançou os olhos para ele. E para Milosevic.
— Nós três — ele disse. — No final das contas, é assunto do FBI.
Chame do que quiser: terrorismo, complô, sequestro, é tudo da alçada do
FBI.
— Vamos em frente? — Milosevic perguntou. — Apenas nós três?
Nesse minuto?
— Você tem uma opção melhor? — McGrath indagou. — Se quiser
que algo seja bem feito, faça você mesmo, certo?
Garber estava com o corpo meio virado para trás, esquadrinhando os
três rostos no banco traseiro.
— Então, mãos à obra — ele disse.
McGrath concordou e levantou a mão direita. Com o polegar e os dois
primeiros dedos em destaque.
— Eu sou o polegar — ele começou a explicar. — Entro a leste da
estrada. Brogan, você é o primeiro dedo. Percorra um quilômetro e meio a
oeste da estrada e entre. Milo, você é o segundo dedo. Ande três
quilômetros para oeste e siga para o norte daí. A gente vai se infiltrar
separadamente, com espaço de um quilômetro e meio entre cada um de nós.
Voltamos a nos encontrar na estrada, a menos de um quilômetro e meio
antes da cidade. Entendido?
Brogan fez uma careta. Então balançou a cabeça. Milosevic deu de
ombros. Garber girou os olhos para McGrath, o assessor do general ligou o
Chevy e dirigiu suavemente para o sul. Parou-o novamente depois de uns
trezentos metros, onde a estrada voltava a sair da cobertura rochosa e dava
um acesso aberto para a direita e para a esquerda ao interior da zona rural.
Os três homens do FBI verificaram as suas armas. Cada um tinha um .38
liberado pelo governo no coldre lustroso de ombro de couro marrom.
Tambor cheio, seis tiros, mais outros seis num carregador rápido no bolso.
— Tentem tomar uns dois rifles — McGrath instruiu. — Nada desse
negócio de fazer prisioneiros. Se baterem o olho em alguém, atirem no filho
da puta, falou?
Milosevic tinha que andar mais; portanto, foi o primeiro a partir.
Atravessou a estrada e dirigiu-se rumo a oeste através do mato. Conseguiu
chegar a um pequeno arvoredo e desapareceu. McGrath acendeu um cigarro
e Brogan foi mandado um pouco depois dele. Garber esperou até que
Brogan estivesse nas árvores. Então se voltou para McGrath.
— Não esqueça o que eu falei a você sobre Reacher — pediu. — Não
estou errado a respeito do cara. Ele está do seu lado, acredite.
McGrath deu de ombros e não disse nada. Fumou em silêncio. Abriu a
porta do Chevy e deslizou para fora. Amassou a guimba com o pé e partiu
rumo ao leste, atravessou o acostamento gramado e daí foi para o mato.
McGrath viu Borken trocando ideias com um cara na borda da clareira. Era
o tal que havia conduzido o pelotão de emboscada. O sujeito que tinha
tomado a sua arma e as suas balas e dado um murro na cara dele. Os dois
lançavam os olhos aos seus relógios e depois observavam o céu.
Balançavam a cabeça. Borken deu um tapinha no ombro do sujeito e se
virou. Mergulhou nas árvores e desapareceu, voltando em direção à cidade.
O líder da emboscada começou a andar na direção de McGrath. Sorridente.
Estava tirando o rifle do ombro.
— Hora do espetáculo! — exclamou alto.
Aproximava-se e virava o rifle nas mãos enquanto fazia isso. Enfiou a
coronha no estômago de McGrath. O agente caiu que nem um saco de
estrume no cascalho. Um guarda meteu a boca do rifle na garganta dele.
Outro enfiou o seu no estômago de McGrath, justo onde a porrada tinha
acertado.
— Fique deitado sem se mexer, seu merda — disse o líder de unidade.
— Volto dentro de um minuto.
McGrath não pôde mover a cabeça por causa do rifle na garganta, mas
seguiu o sujeito com os olhos. Ele estava entrando na penúltima cabana da
fileira. Não era a do depósito de armas, que ficava isolada. Era uma espécie
de almoxarifado. Saiu com um martelo de madeira, cordas e quatro objetos
metálicos. De cor verde fosca, do exército. Ao se aproximar mais, McGrath
reconheceu o que eram. Estacas de barraca. Talvez com cinquenta
centímetros de comprimento, projetadas para um tipo de barraca-refeitório
grande.
O sujeito largou o material no cascalho. Ais estacas metálicas tiniram
nas pedras. O sujeito fez sinal com a cabeça para o soldado com a arma na
barriga de McGrath, que se endireitou e se afastou. O líder de unidade
tomou o seu lugar. Usou a própria arma para manter McGrath preso.
O soldado pôs a mão na massa. Parecia saber o que deveria fazer. Usou
o martelo de madeira para enfiar a primeira estaca no chão. O chão era
pedregoso e o sujeito teve que marretar forte. Balançava o martelo de
madeira formando um grande arco, e usava muita força. Bateu na estaca até
que dois terços dela ficassem enterrados. Então mediu os passos, talvez dois
metros e meio, e começou a marretar a segunda. McGrath o seguiu com os
olhos. Quando a segunda estaca foi enterrada, o sujeito marcou mais dois
metros e meio, em ângulo reto, e enfiou a terceira no chão. A quarta estaca
completou um quadrado exato, dois metros e meio de cada lado. McGrath
fazia uma boa ideia para que aquele quadrado serviria.
— A gente costuma fazer isto no mato — disse o líder de unidade. —
Geralmente na vertical, com árvores.
Então, o sujeito apontou para o céu.
— Mas precisamos que eles vejam — explicou. — Não conseguem
ver direito no mato, nessa época do ano. Folhas demais na frente, sacou?
O guarda que tinha enfiado as estacas de barraca no chão estava
ofegante por causa do esforço. Trocou de lugar com o seu líder novamente.
Enfiou o rifle na barriga de McGrath e se debruçou nele, descansando.
McGrath arfou e se contorceu sob a pressão. O líder se agachou e vasculhou
as cordas. Desemaranhou uma e pegou McGrath pelo tornozelo. Fez um
laço com a corda e deu um nó bem apertado. Usou a corda para arrastar
McGrath pela perna, para o centro do quadrado. Então, amarrou a ponta
solta na quarta estaca. Amarrou-a apertado e a testou.
A segunda extensão de corda envolveu o outro tornozelo de McGrath.
Foi amarrada na terceira estaca. As pernas de McGrath foram escancaradas
à força, em ângulo reto. As mãos ainda estavam algemadas atrás das costas,
comprimidas contra o chão pedregoso. O líder usou a sola da bota para rolar
o tronco do policial para um lado. Abaixou-se e destrancou a algema.
Agarrou um pulso e deu um laço ao redor. Amarrou-o apertado e puxou o
pulso até a segunda estaca. Puxou até o braço de McGrath ficar esticado,
numa linha reta exata com a perna oposta. Então, amarrou-o firme na estaca
e abaixou o braço para pegar o outro pulso. Os soldados pressionaram mais
os canos das armas. McGrath olhou para os rastros de condensação e arfou,
morrendo de dor conforme o seu braço era esticado e amarrado formando
uma cruz perfeita.
Os dois soldados deixaram os seus rifles afastados e retrocederam.
Ficaram com o seu líder. Olhando para baixo. McGrath levantou a cabeça e
olhou desesperadamente ao redor. Puxou as cordas e logo percebeu que
estava apenas apertando mais os nós. Os três homens deram passos mais
para trás e olharam para o céu. McGrath percebeu que estavam se
certificando de que as câmeras tivessem uma panorâmica sem obstáculos. E
tinham. Dez mil metros no céu, os pilotos voavam em círculos, um deles
num raio curto de alguns quilômetros, o outro, exterior a ele, numa
trajetória mais ampla.
Holly Johnson conhecia dinamite tanto quanto a maior parte das pessoas.
Mal conseguia se lembrar da composição química exata. Sabia que era feita
com nitratos e nitrocelulose. Tinha dúvidas sobre nitroglicerina. Também
estava na mistura? Ou era algum outro tipo de explosivo? De um jeito ou do
outro, calculou que dinamite era algum tipo de fluido pegajoso, embebido
em material poroso e moldado em barras. Barras pesadas, bastante densas.
Se as paredes do seu quarto estivessem cheias delas, absorveriam muito
som. Como se fossem um revestimento à prova de barulho num
apartamento da cidade. O que significava que os tiros que tinha ouvido
estavam razoavelmente perto.
Tinha ouvido: bangue, bangue... bangue. Mas não sabia quem estava
atirando em quem ou por quê. Não eram tiros de pistola. Ela conhecia o
barulho desafinado de uma pistola por causa da passagem por Quantico.
Eram tiros de uma arma longa. E não o baque pesado dos grandes Barretts
do estande de tiro. Era uma arma mais leve. Alguém atirando três vezes
com um rifle de calibre médio. Ou três pessoas atirando uma vez, com uma
salva irregular. Mas seja lá o que fosse, algo estava acontecendo. E ela tinha
que estar preparada.
Garber também ouviu os tiros. Bangue, bangue... bangue, talvez um
quilômetro a noroeste dele, talvez mais. Então uma dúzia de ecos
espaçados, ricocheteando nas encostas das montanhas. Não tinha a menor
dúvida sobre o que representavam. Um M-16, disparando uma bala de cada
vez, o primeiro par formando um grupo compacto que os militares
chamavam de baque duplo. O som de um atirador competente. A ideia era
dar o segundo tiro antes mesmo da primeira cápsula do cartucho bater no
chão. Então um terceiro alvo ou talvez um tiro de segurança no segundo.
Um ritmo inconfundível. Como uma assinatura. A assinatura audível de
alguém com centenas de horas de treinamento com armas. Garber balançou
a cabeça concordando com seu pensamento e avançou pelas árvores.
Reacher e McGrath ouviram minutos mais tarde. Bem fraco, no início, bem
nas profundezas da floresta, à sua esquerda. E aí ficou mais alto. Moveram-
se juntos ao nível de uma abertura entre as cabanas, onde podiam ver do
baluarte até a embocadura da trilha. Estavam três metros dentro da floresta,
embrenhados o suficiente para estar bem escondidos, longe o bastante para
poder observar.
Viram os dois pontas irromperem na luz solar. Então mais quatro
homens, andando no mesmo passo, rifles a tiracolo, inclinando-se para fora,
os braços balançando algo pesado que carregavam. Algo que dava trancos,
debatia-se e gritava.
— Cristo — McGrath sussurrou. — Olha lá, é o Brogan.
Reacher fixou os olhos por um bom tempo. Silencioso. Então balançou
a cabeça.
— Eu estava errado — ele disse. — Milosevic é o pilantra.
McGrath imediatamente clicou o gatilho da Glock para liberar o
dispositivo de segurança.
— Espere — Reacher murmurou.
Moveu-se para a direita e sinalizou para McGrath seguir. Ficaram bem
no fundo, no meio das árvores, e seguiram paralelo aos seis homens e
Brogan para o outro lado da clareira. Os homens se moviam devagar através
do cascalho, e a gritaria de Brogan ficava mais alta. Passaram em volta dos
corpos, das estacas, das cordas cortadas e continuaram a andar.
— Estão indo para a cabana de punição — Reacher murmurou.
Eles os perderam de vista quando as árvores se fecharam ao redor da
trilha do descampado seguinte. Mas ainda puderam ouvir a gritaria. Parecia
que Brogan sabia exatamente o que ia acontecer com ele. McGrath
lembrou-se de quando tinha narrado detalhadamente o que Borken
conversara no rádio. Reacher lembrou-se de quando enterrara o corpo
destroçado de Jackson.
Arriscaram-se a chegar um pouco mais perto da clareira seguinte.
Viram os seis homens se dirigirem para a cabana sem janelas e pararem na
porta. Os pontas se voltaram e cobriram a área, armados com os rifles. O
sujeito agarrando o pulso direito de Brogan tirou desajeitadamente a chave
do bolso com a mão livre. Brogan gritou pedindo ajuda. Gritou pedindo
clemência. O sujeito destrancou a porta. Abriu-a. Parou surpreso no limiar e
gritou.
Joseph Ray saiu. Ainda completamente nu, com a roupa amontoada
nos braços. Sangue seco em todo o lado de baixo do rosto, como uma
máscara. Dançou e tropeçou sobre o cascalho. Os seis homens o
observaram ir embora.
— Que porra é essa? — McGrath murmurou.
— Depois te conto — murmurou Reacher em resposta.
Brogan foi largado no chão. Mas foi logo colocado de pé pelo
colarinho. Ficou olhando desenfreadamente ao redor e gritando. Reacher
viu o seu rosto, branco e apavorado, boquiaberto. Os seis homens o jogaram
na cabana. Entraram depois. A porta se fechou com um estrondo. McGrath
e Reacher se aproximaram. Ouviram gritos e o baque de um corpo batendo
contra as paredes. Esses sons continuaram durante vários minutos. Então se
fez silêncio. A porta se abriu. Os seis homens saíram em fila, sorrindo e
tirando o pó das mãos. O último homem ainda voltou correndo para dar um
pontapé final. Reacher ouviu a porrada acertar e o grito de Brogan. Então o
sujeito trancou a porta e saiu correndo atrás dos outros. Andaram
ruidosamente sobre o cascalho e desapareceram. A clareira caiu no silêncio.
Holly mancou no chão elevado até a porta. Encostou a orelha nela e aguçou
os ouvidos. Nenhum barulho. Nenhum som. Mancou de volta até o colchão
e pegou a calça de farda sobressalente. Usou os dentes para desfiar as
costuras. Rasgou o tecido até separar a parte dianteira de uma das pernas.
Ficou coin um retalho de pano de talvez setenta centímetros de
comprimento e seis de largura. Levou-o para dentro do banheiro e encheu a
pia de água bem quente. Embebeu a tira de pano nela. E depois tirou a
calça. Torceu o tecido encharcado e o amarrou tão apertado quanto pôde em
volta do joelho. Deu um nó e voltou a vestir a calça. Imaginava que o tecido
molhado e quente poderia se encolher ligeiramente conforme secava.
Apertaria mais. Era o mais perto que ia chegar da solução do seu problema.
Manter a articulação rígida era o único jeito de aliviar a dor.
Então fez o que estivera ensaiando. Puxou a borracha da base da
muleta. Bateu a ponta metálica no azulejo do chuveiro. O azulejo se
despedaçou. Inverteu a muleta e usou a ponta do clipe do cotovelo curvado
para arrancar os cacos da parede. Selecionou dois. Cada um era um
triângulo irregular, estreito na base e pontudo. Usou a borda do clipe do
cotovelo para raspar a argamassa na ponta principal. Deixou a camada
superficial branca vitrificada intacta, como a lâmina de uma faca.
Colocou as armas nos dois bolsos. Fechou a cortina do chuveiro para
esconder o estrago. Recolocou o pé de borracha na muleta. Mancou de volta
ao seu colchão e se sentou para esperar.
O problema em utilizar apenas uma câmera era que ela precisava ser
ajustada para uma tomada bem ampla. Era o único jeito de cobrir a área
inteira. Portanto, uma área específica aparecia bem pequena na tela. O
grupo de homens carregando algo havia se destacado como um grande
inseto rastejando no vidro.
— É o Brogan?!? — Webster perguntou em voz alta.
O assessor rebobinou o vídeo e assistiu novamente.
— Está de cara para baixo — ele disse. — Fica complicado afirmar.
Deu pausa na sequência e deu zoom para ampliar a imagem. Ajustou o
joystick para pôr o homem com as pernas e os braços escancarados no
centro da tela. Deu zoom até que a imagem embaçasse.
— Complicado afirmar — ele disse novamente. — É um dos nossos,
isso é certo!
— Acho que era o Brogan — disse Webster.
Johnson olhou com atenção. Usou o indicador e o polegar na tela para
calcular a altura do sujeito, da cabeça aos pés.
— Qual é a altura dele? — perguntou.
A setenta metros ao sul, Garber os viu sair pela porta e descer as escadas.
Ele havia saído do matagal, avançando e se agachando atrás do
afloramento. Calculou que era seguro o bastante agora que tinha um tipo de
apoio. A tripulação do Chinook estava trinta metros atrás dele, bem
separados, bem escondidos, instruídos para gritar se alguém se aproximasse
pela retaguarda. Portanto, Garber estava sossegado, com o olhar fixo
encosta acima, no grande edifício branco.
Viu dois homens armados, barbudos, começando a descer a escada.
Estavam arrastando uma figura menor, com uma muleta. Um halo de cabelo
escuro, farda verde arrumada. Holly Johnson. Nunca a tinha visto. Só nas
fotografias que os agentes do FBI haviam mostrado. As fotografias não
faziam jus a ela. Mesmo de setenta metros, ele podia sentir a paixão do seu
caráter. Uma espécie de energia radiante. Sentiu e puxou o rifle para mais
perto.
McGrath ficou na ponta dos pés e ergueu o Barrett para Reacher. Reacher
esticou a mão e o puxou para cima. Olhou para ele e devolveu a arma.
— Não é este — ele disse. — Encontre um com o número de série que
termina em cinco-zero-dois-quatro, falou?
— Por quê? — McGrath perguntou.
— Porque tenho certeza que ele atira direito — respondeu Reacher. —
Já usei antes.
— Jesus! — McGrath bufou.
Partiu pela segunda vez em carreira desabalada. Reacher se deitou
novamente no telhado, tentando manter os batimentos cardíacos sob
controle.
McGrath encontrou o rifle que Reacher tinha usado antes e o passou para o
telhado. Reacher o pegou e verificou o número. Confirmou com a cabeça.
McGrath correu como louco para a entrada da trilha pedregosa.
Desapareceu nela, correndo a toda. Reacher o observou se afastar. Colocou
os balaços no pente e verificou a mola. Apertou o pente suavemente com a
palma. Ergueu o Barrett até o ombro e o direcionou cuidadosamente na
direção do cume. Puxou a coronha e baixou o olho até a mira telescópica.
Usou o polegar esquerdo para acertar o foco a mais de mil metros. Alinhou
a lente com a trava. Colocou a palma esquerda sobre o cano. Acionou o
mecanismo macio e colocou um cartucho na culatra. Fitou a cena abaixo.
A mira do rifle agrupava tudo, e a geometria estava perfeita. Holly se
encontrava no topo do declive, bem em frente, só que mais para a direita.
Algemada à árvore morta. Olhou fixamente para seu rosto por um longo
momento. Então cutucou a mira. Borken estava abaixo dela, uns vinte
metros mais adiante, atirando na policial morro acima, ligeiramente à
esquerda. Dava pequenas voltas, para a frente e para trás. Mas em todo
lugar que decidia parar havia cem quilômetros de área rural vazia atrás de
sua cabeça. As paredes do tribunal estavam bem longe da trajetória de
Reacher. Seguro o bastante. Seguro, mas não fácil. Mil e duzentos metros
era uma distância e tanto. Expirou e esperou Borken parar de andar.
Então se concentrou. No canto do olho, vislumbrou o sol refletir em
metal fosco. Talvez a setenta metros mais adiante no declive. Uma rocha.
Um homem atrás da rocha. Um rifle. Familiar, com alguns fios grisalhos.
General Garber. Com um M-16, entrincheirado numa rocha, movendo o
cano de um lado para outro enquanto rastreava seu alvo, que por sua vez
dava pequenos passos a uns vinte metros diretamente à frente dele.
Reacher expirou e sorriu. Sentiu um grande alívio pela ajuda. Garber.
Ele tinha apoio. Garber, atirando de somente setenta metros. Naquele meio
segundo ele soube que Holly estaria segura. O influxo caloroso de gratidão
corria através dele.
Mas, de repente, sentiu um certo medo. Seu cérebro foi acionado como
por um raio. A geometria embaixo dele virou um diagrama terrível
mostrando uma explosão. Preto no branco, como uma explicação técnica de
um desastre. Do ângulo de Garber, o tribunal estava diretamente atrás de
Borken. Quando Borken parasse de se mexer, Garber atiraria nele. Poderia
acertar ou errar. De um jeito ou de outro, sua bala ia de encontro à parede
do tribunal. Provavelmente bem em cima do canto sudeste, no segundo
andar. A tonelada de dinamite velha voaria pelos ares num cogumelo de
fogo com uns quatrocentos metros de diâmetro. Reduziria Holly a pó e
estraçalharia o próprio Garber. A onda de calor arrancaria Reacher do
telhado do refeitório, a mil e duzentos metros de distância. Como é que
Garber não sabia disso?
Borken parou de andar. Ficou de lado e se aprumou. Reacher expirou
todo o ar dos pulmões. Moveu o Barrett. Mirou bem no centro da têmpora
de Holly Johnson, direto onde os sedosos cabelos escuros se avolumavam
contra seus olhos. Manteve os pulmões vazios e esperou o próximo
batimento cardíaco. E então apertou o gatilho.
Reacher viu o clarão do cano de Garber pela mira telescópica do rifle. Sabia
que ele devia estar usando o modo de disparo contínuo. Sabia que os três
projéteis deviam ter batido na parede do tribunal. Olhou para baixo, a mil e
duzentos metros de distância, agarrou-se no telhado e fechou os olhos.
Esperou pela explosão.
Garber sabia que seus tiros não tinham matado Borken. Não houve tempo.
Mesmo lidando com frações minúsculas de segundo, há um ritmo. Atirar...
acertar. Borken foi aniquilado antes que suas balas pudessem ter chegado lá.
Portanto, alguém mais estava abrindo fogo. Havia uma equipe em ação.
Garber sorriu. Atirou novamente. Mandou ver o dedo no gatilho mais nove
vezes e espalhou pedaços de dois soldados de Borken contra a parede do
tribunal com suas vinte e sete balas restantes.
— Os dois? — Webster pensou alto. — Por favor, Deus, diga que não.
— Poderíamos usar o outro helicóptero agora mesmo — disse o
assessor. — Acho que não temos que nos incomodar mais com os mísseis.
Ele direcionou a câmera para o norte e o oeste, e ampliou a área do
vale nas montanhas na frente da entrada das minas. Os quatro caminhões
com mísseis estavam parados. O corpo estirado da sentinela morta estava
próximo.
— Certo, chame um helicóptero — ordenou Johnson.
— Melhor vindo direto do senhor — sugeriu o assessor.
Johnson virou de lado para falar ao telefone. Depois virou novamente
para observar enquanto o jipe entrava na tela. Saía rapidamente da última
curva em U no vale e corria no cascalho. Desviava dos caminhões
estacionados e parou com um tranco, na frente do abrigo à esquerda.
Milosevic pulou para fora e se agitou em volta da capota. Revólver firme
contra Holly enquanto se aproximava. Puxou-a pelo braço e arrastou-a para
as grandes portas de madeira. Abriu uma com o pé e a empurrou para
dentro. Seguiu-a e a enorme porta se fechou. Webster tirou os olhos da tela.
— Peça um helicóptero, senhor — insistiu o assessor.
— O mais veloz que tiverem — acrescentou Webster.
O caminho mais rápido até as minas era um atalho pelo baluarte, deserto e
tranquilo. E les o atravessaram e seguiram para o norte, pelo estande de
tiros, em direção ao campo de exercícios. Pararam de repente no matagal. A
população restante de milicianos estava parada em silêncio em fila, rostos
impassíveis, temerosos, voltados para a frente, onde um caixote virado para
cima aguardava a chegada de Borken.
Reacher os ignorou e conduziu os outros margeando as árvores. Então
em linha reta para a estrada. Direto para o norte ao longo dela. Reacher
carregava o grande Barrett. Ele o tinha recuperado do telhado do refeitório,
adorava ele. Garber apressava-se ao seu lado. McGrath progredia tão rápido
quanto podia, desesperado para chegar até Holly.
Mergulharam de volta no matagal antes da última curva em U e
Reacher estava fazendo reconhecimento adiante. Escondeu-se atrás da
rocha que havia usado antes e cobriu cada centímetro do vale com a mira do
Barrett. Então acenou para os outros dois se juntarem a ele.
— Estão na frota — ele disse. — No galpão à esquerda.
Apontou o cano do rifle de franco-atirador. Os outros viram o jipe
abandonado e acenaram com a cabeça. Ele correu pelo cascalho e agachou-
se atrás da capota do primeiro caminhão de mísseis. Garber mandou
McGrath depois. Então correu. Agacharam-se juntos atrás do caminhão e
fitaram as portas de toras.
— E agora? — Garber perguntou. — Assalto frontal?
— Ele está com uma arma apontada para a cabeça dela — disse
McGrath. — Não quero que ela se machuque, Reacher. Ela é muito preciosa
para mim, está bem?
— Tem outra entrada aqui? — Garber perguntou.
Reacher fitou as portas e a lembrança da explosão da bomba em
Beirute sumiu e foi substituída pelo tranquilo choramingar de um pesadelo
antigo. Passou um minuto procurando desesperadamente uma alternativa.
Pensou nos rifles, nos mísseis e nos caminhões. Então desistiu.
— Mantenha ele ocupado — pediu. — Fale com ele, qualquer coisa.
Deixou o Barrett e pegou a Glock de McGrath. Esgueirou-se até o
próximo caminhão, e depois outro, durante todo o tempo, ao nível da
entrada da outra caverna. O ossuário, cheio de corpos, esqueletos e ratos.
Ouviu McGrath chamar Milosevic numa voz distante e fraca, e correu para
as grandes portas de toras. Mergulhou pela fenda e moveu-se novamente
para a escuridão.
Não tinha lanterna. Circundou tateando o transportador da tropa, e
entrou devagar na caverna. Manteve uma mão acima da cabeça e sentiu o
teto abaixar. Tateou atrás dos corpos na pilha macabra e os contornou.
Agachou-se e se dirigiu à esquerda para os esqueletos. Os ratos o estavam
ouvindo, cheiravam-no e se agitavam zangados, enquanto voltavam para
seus ninhos. Ele se ajoelhou, deitou-se e nadou pela pilha de ossos úmidos.
Percebeu o teto do túnel abaixar mais e as laterais o pressionarem. Respirou
fundo e sentiu o medo voltar.
O helicóptero mais veloz disponível naquele dia era um Night Hawk do
corpo de fuzileiros navais baseado em Malmstrom. Era uma máquina longa,
pesada, corcunda, mas bem veloz. Dentro de alguns minutos após a ligação
de Johnson, já começava a subir e recebia ordens de se dirigir para o
noroeste a um desvio de cascalho na última estrada em Montana. Então
estava no ar. O piloto da marinha encontrou a estrada e a seguiu para o
norte, rápido e rasteiro, até encontrar um grupo de veículos militares de
comando, estacionados um perto do outro numa reentrância de rocha.
Balançou-se para trás, pousou no desvio e esperou. Viu três homens
correndo para o sul em direção a ele. Um era civil e dois, do exército. Um
era coronel e o outro, simplesmente o chefão do Estado-Maior. O piloto deu
de ombros para o seu colega, que apontava para cima, além da capota de
Plexiglass. Havia um rastro solitário de condensação, talvez a dez mil
metros acima. Um grande jato desenrolava uma espiral sucinta e ia a toda
para o sul. O piloto deu de ombros novamente e calculou que o que quer
que estivesse acontecendo acontecia ao sul. Portanto, fez um cálculo de
curso provisório e ficou surpreso quando as altas patentes escalaram a
bordo e ordenaram que fosse para o norte em direção às montanhas.
[2] Oficial da Inteligência, patriota exemplar, missionário batista, assassinado em 1945 por membros
do PC chinês. Deu nome a John Birch Society, grupo separatista de extrema direita fundado em 1958.
(N.T.)
[3] Alcohol, Tobacco and Firearms. Uma subdivisão da polícia norte-americana que atua contra
crimes nessas áreas. (N.T.)
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