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© Giovanni Giovannetti/Egie/Writer Pictures

Lee Child nasceu em Inglaterra em 1954. Estudou Direito e trabalhou no teatro e como diretor de programação televisiva. Foi
despedido aos 40 anos na sequência de um processo de restruturação. Sempre fora um leitor voraz e decidiu ver nessa
reviravolta da sua vida uma oportunidade para fazer algo interessante. Foi assim que escreveu o primeiro livro da série Jack
Reacher, que conheceu um êxito estrondoso.
A série conta hoje com mais de 90 milhões de exemplares vendidos e está publicada em 97 países e 42 línguas. Jack Reacher foi
protagonizado no cinema em 2012 por Tom Cruise e novamente em 2016, numa adaptação do livro Nunca Voltes Atrás.
Lee divide o seu tempo entre Manhattan e as suas casas de campo em Inglaterra e no sul de França. É casado e tem uma filha.

http://www.leechild.com/
Título original: Make Me
1.ª edição em papel: abril de 2017
Autor: Lee Child
Tradução: Vasco Teles de Menezes
Revisão: João Pedro Tapada
Design da capa: Ana Monteiro
Imagens da capa: Shutterstock Images

© Lee Child 2015


[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.]

Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-3432-1
Este livro foi disponibilizado pela equipe do e-Livros, com o objetivo de
ser usado somente para fins não comerciais.

e-Livros.xyz
Para Darley Anderson,
meu agente há vinte anos,
com os meus agradecimentos.
UM

Deslocar um tipo tão grande como Keever não era fácil. Equivalia a tentar arrancar um
colchão de tamanho grande de cima de uma cama de água. Por isso, enterraram-no perto da
casa. O que, assim como assim, fazia sentido. Ainda faltava um mês para a época das colheitas e
uma irregularidade num campo ver-se-ia do ar. E, para um tipo como Keever, o ar iria estar em
causa. Recorreriam a aviões de busca, a helicópteros e talvez até a drones.
Começaram à meia-noite, o que consideraram ser relativamente seguro. Estavam no meio
de quase cinco mil hectares de nada e a única construção humana minimamente próxima era a
linha férrea a leste, mas, à meia-noite, o comboio do final da tarde já tinha passado há cinco
horas e ainda faltavam sete para o da manhã. Portanto, nada de olhares indiscretos. A
retroescavadora deles tinha quatro holofotes instalados numa barra por cima da cabina, tal
como os miúdos quitavam as carrinhas de caixa aberta, e, em conjunto, os quatro feixes
formavam um amplo foco de luminosidade halogénica. Portanto, a visibilidade também não
era um problema. Puseram-se a escavar o buraco na pocilga, o que, por si só, já constituía uma
irregularidade permanente. Cada porco pesava noventa quilos e cada um tinha quatro patas. A
terra estava sempre revolvida. Não havia nada que se visse do ar, nem com uma câmara
térmica. A imagem deixaria imediatamente de ser visível, devido aos próprios animais
fumegantes e aos montes e poças de dejetos igualmente fumegantes.
Relativamente seguro.
Os porcos eram animais que fossavam, por isso, certificaram-se de que o buraco era fundo.
O que também não foi um problema. O braço da retroescavadora era comprido e batia
ritmicamente, escavando cinco metros à vez, em movimentos fluentes e articulados, com os
aríetes hidráulicos a cintilarem sob a luz elétrica, o motor a ir ao limite, a rugir e a pausar, e a
cabina a descer e a subir, enquanto cada balde era despejado. Depois de o buraco estar aberto,
fizeram a máquina recuar e inverter a marcha, servindo-se do balde da frente para empurrar
Keever para a cova, arrastando-o, fazendo-o rebolar e cobrindo-lhe o corpo de terra, até cair
por fim lá dentro, com um baque surdo e envolto nas sombras elétricas.
Só correu mal uma coisa, que aconteceu nesse preciso instante.
O comboio do final da tarde chegou cinco horas atrasado. Na manhã seguinte, ouviram na
estação AM que uma locomotiva avariada tinha provocado um congestionamento a cento e
sessenta quilómetros para sul. Mas na altura não o sabiam. Tudo o que ouviram foi o apito
pesaroso vindo da passagem de nível lá ao longe e, a seguir, não puderam fazer mais do que dar
meia-volta e ficar a olhar para as longas carruagens iluminadas a passarem ruidosamente, em
segundo plano, uma atrás da outra, como uma visão num sonho, aparentemente sem fim à
vista. Mas o comboio lá acabou por desaparecer, com os carris a cantarolarem por mais um
minuto e a luz traseira a ser depois engolida pela escuridão da meia-noite, e eles regressaram ao
trabalho.

A pouco mais de trinta quilómetros para norte, o comboio começou a abrandar


progressivamente até parar com um assobio, as portas abriram-se de repente e Jack Reacher
pisou a rampa de betão diante de um silo de cereais do tamanho de um prédio de
apartamentos. À esquerda, encontravam-se outros quatro silos, todos maiores do que o
primeiro, e, à direita, um gigantesco barracão de metal que mais parecia um hangar para
aviões. Havia luzes de vapor instaladas em postes, dispostos em intervalos regulares, que
trespassavam a escuridão com cones de amarelo. O ar noturno estava carregado de neblina,
como uma nota num calendário. O verão estava a chegar ao fim. E o outono vinha a caminho.
Reacher não se mexeu e, mais atrás, o comboio avançou sem ele, em esforço, insistindo até
se fixar num ritmo vagaroso e martelado, para em seguida acelerar, com a consequente e
crescente corrente de ar a puxar-lhe a roupa. Era o único passageiro que tinha saído. O que não
era surpreendente. Aquele sítio não era nenhum centro de tráfego intenso. Era completamente
agrícola. O que fazia as vezes de serviços para passageiros encontrava-se entalado entre os silos
e o barracão enorme e limitava-se a uma bilheteira e a bancos onde uma pessoa se podia sentar
à espera. Estava construído num estilo ferroviário tradicional e parecia um brinquedo de
criança, temporariamente pousado no meio de dois contentores de óleo reluzentes.
Mas, numa tabuleta que ia de um lado ao outro daquela construção, encontrava-se a razão
que tinha levado Reacher lá: Mother’s Rest1. Que ele tinha visto num mapa e que pensara ser
um nome fantástico para uma estação de caminhos de ferro. Calculou que a linha atravessasse
um antigo caminho para caravanas, naquele preciso ponto, onde tinha acontecido alguma coisa
há muito tempo. Talvez uma jovem grávida tivesse entrado em trabalho de parto. Os
solavancos não podiam ter ajudado. Talvez a caravana tivesse parado umas semanas. Ou um
mês. Talvez alguém se tivesse lembrado do sítio passado vários anos. Talvez um descendente.
Uma lenda da família. Talvez houvesse um museu com uma só sala.
Ou talvez se aplicasse uma interpretação mais triste. Talvez tivessem enterrado ali uma
mulher. Demasiado velha para aguentar. E, nesse caso, haveria uma lápide comemorativa.
Fosse qual fosse o caso, Reacher achou que mais valia ir descobrir. Não tinha sítio para
onde ir e tinha todo o tempo do mundo para lá chegar, por isso, um desvio não lhe custava
nada. E foi essa a razão para ter saído do comboio. E, de início, sentir-se desiludido. As suas
expectativas tinham saído completamente goradas. Imaginara um par de casas empoeiradas e
um cercado isolado com apenas um cavalo. Além do museu com uma só sala, talvez gerido a
tempo parcial, numa ótica de voluntariado. Talvez por um velhote de uma das casas. Ou a
lápide, talvez de mármore, dentro de uma vedação quadrada em ferro forjado.
Não estava a contar com a gigantesca infraestrutura agrícola. Mas, pensando bem, devia ter
contado. Cereais, aqui têm o caminho de ferro. Tinham de os carregar algures. Milhares de
milhões de litros e milhões de toneladas, todos os anos. Deu um passo para a esquerda e
espreitou por uma abertura entre as estruturas. Estava escuro, mas apercebeu-se de que havia
mais ou menos um semicírculo de habitação. Casas, evidentemente, para os trabalhadores da
estação. Conseguiu ver luzes, que esperou serem de um motel, de um restaurante ou de ambos.
Avançou para a saída, contornando os focos de luz a vapor puramente por uma questão de
hábito, mas percebeu que não podia evitar o último candeeiro, por estar mesmo por cima do
portão de saída. Portanto, poupou-se ao trabalho de mais um desvio e atravessou também o
penúltimo foco.
E foi então que uma mulher surgiu das sombras.
Dirigiu-se a ele com uma notória explosão de energia, duas passadas rápidas, ansiosa, como
se estivesse contente por vê-lo. A linguagem corporal dela tinha tudo que ver com alívio.
Mas depois deixou de ter. E passou a comunicar desilusão. Parou abruptamente e
exclamou:
— Oh.
Era asiática. Mas não era pequena. Talvez tivesse à volta de um metro e setenta e cinco ou
mesmo setenta e oito. E uma constituição correspondente. Não havia um osso à vista. Não era
nenhuma criatura frágil e graciosa. Devia ter uns quarenta anos, calculou Reacher, com cabelo
preto e comprido, calças de ganga e uma t-shirt por baixo de um casaco curto de algodão.
Trazia sapatos com atacadores.
— Boa noite, minha senhora — disse ele.
Ela estava a olhar para trás do ombro dele.
— Sou o único passageiro — disse Reacher.
Ela fitou-o.
E ele disse:
— Não saiu mais ninguém do comboio. Por isso, imagino que o seu amigo não venha.
— O meu amigo? — retorquiu ela.
Um sotaque neutro. Americano normal. Do género que se ouve em todo o lado.
— Porque havia uma pessoa de estar aqui, se não fosse para esperar pelo comboio? De
outro modo, não valia a pena vir. Calculo que, por norma, não haja nada para ver à meia-noite
— comentou ele.
Ela não respondeu.
— Não me diga que já está aqui à espera desde as sete da tarde — disse ele.
— Não sabia que o comboio estava atrasado — retorquiu ela. — Aqui não há sinal de
telemóvel. Nem ninguém do caminho de ferro para explicar seja o que for. E suponho que hoje
o Pony Express esteja de baixa.
— Não vinha na minha carruagem. Nem nas duas seguintes.
— Quem é que não vinha?
— O seu amigo.
— Não sabe como é que ele é.
— É um tipo grande — respondeu Reacher. — Foi por isso que apareceu quando me viu.
Achou que eu era ele. Pelo menos, por um segundo. E não havia tipos grandes na minha
carruagem. Nem nas duas seguintes.
— E a que horas passa o próximo comboio?
— Às sete da manhã.
— Quem é você e que veio cá fazer? — perguntou ela.
— Sou só um tipo que está de passagem.
— O comboio é que estava de passagem. Mas você, não. Saiu.
— Sabe alguma coisa deste sítio?
— Nadinha de nada.
— Viu algum museu ou lápide?
— Que veio cá fazer?
— Quem está a perguntar?
Ela deteve-se por um instante e, a seguir, respondeu:
— Ninguém.
— Há algum motel cá na terra? — perguntou Reacher.
— Estou lá hospedada.
— E que tal?
— É um motel.
— Para mim, chega — respondeu Reacher. — E tem quartos vagos?
— Ficaria espantada se não tivesse.
— Okay, pode indicar-me o caminho. Não fique a noite toda aqui à espera. Eu levanto-me
mal o Sol nascer. E bato-lhe à porta quando me for embora. Se tudo correr bem, o seu amigo
estará cá de manhã.
A mulher ficou calada. Limitou-se a olhar mais uma vez para os carris silenciosos e, a
seguir, deu meia-volta e foi a primeira a atravessar o portão de saída.

1 Descanso ou Repouso da Mãe. (N. do T.)


DOIS

O motel era maior do que Reacher esperara. Era uma estrutura em forma de ferradura, com
dois andares, trinta quartos no total e um parque de estacionamento bastante espaçoso. Mas
havia poucos lugares ocupados. O sítio parecia estar com a lotação a menos de metade. Era
uma construção simples, em madeira estucada, pintada de bege, com escadas e corrimãos de
ferro, pintados de castanho. Nada de especial. Mas tinha um aspeto limpo e bem conservado.
As lâmpadas funcionavam todas. Não era o pior sítio que Reacher já tinha visto.
A receção ficava na primeira porta à esquerda, no rés do chão. Estava um funcionário
sentado à secretária. Era um velhote pequeno, com uma barriga grande e o que parecia ser um
olho de vidro. Entregou à mulher a chave do quarto 214 e ela foi-se embora sem mais uma
palavra. Reacher perguntou qual era o preço e o tipo respondeu:
— Sessenta dólares.
— Por semana? — retorquiu Reacher.
— Por noite.
— Não nasci ontem.
— E que quer dizer com isso?
— Já estive em muitos motéis.
— E então?
— Não vejo aqui nada que valha sessenta dólares. Vinte, talvez.
— Vinte é impossível. Esses quartos são caros.
— Quais quartos?
— No andar de cima.
— Não tenho problemas em ficar no de baixo.
— Não precisa de ficar perto dela?
— Dela quem?
— Da sua amiga.
— Não — respondeu Reacher. — Não preciso de ficar perto dela.
— Quarenta dólares, cá em baixo.
— Vinte. Têm menos de metade da lotação ocupada. Estão praticamente falidos. É melhor
fazerem vinte dólares do que coisa nenhuma.
— Trinta.
— Vinte.
— Vinte e cinco.
— Combinado — atirou Reacher.
Tirou o maço de notas do bolso e pôs de parte uma de dez, duas de cinco e cinco de um.
Pousou-as no balcão e o zarolho trocou-as por uma chave com um suporte de madeira e o
número 106, tirada de uma gaveta, com um floreado de vitória.
— No canto dos fundos — disse o tipo. — Perto das escadas.
Que eram de metal e que fariam um barulho estridente quando as pessoas as subissem e
descessem. Não era o melhor quarto daquele sítio. Uma vingança mesquinha. Mas Reacher não
se importou. Calculou que seria o último a deitar-se nessa noite. Não previa que houvesse mais
chegadas tardias. Contava não ser incomodado, até ao fim da noite naquela planície silenciosa.
Disse «Obrigado» e foi-se embora, com a chave na mão.

O zarolho aguardou trinta segundos, depois marcou um número no telefone da secretária e,


ao atenderem, disse:
— Ela foi ter com um tipo ao comboio. Que veio atrasado. Esperou cinco horas até que
chegasse. Trouxe o tipo para aqui e ele pagou um quarto.
Ouviu-se o estalido plástico de uma pergunta e o funcionário zarolho respondeu:
— Outro tipo grande. Um sacana dum filho da puta. Lixou-me a cabeça com o preço do
quarto. Dei-lhe o 106, no canto dos fundos.
Outra pergunta crepitante e outra resposta:
— Daqui, não. Estou na receção.
Mais um estalido, mas, desta vez, num tom e numa cadência diferentes. Uma ordem e não
uma pergunta.
O zarolho disse:
— Okay.
E pousou o telefone, levantando-se a custo para sair da receção, pegando na espreguiçadeira
à porta do quarto 102, que estava vago, e arrastando-a para um ponto do asfalto onde pudesse
ver a própria porta e a do 106. A pergunta tinha sido Consegues ver o quarto dele daí?, e a
ordem fora Mexe o cu e vai para um sítio onde o possas vigiar a noite toda, sendo que o zarolho
obedecia sempre às ordens, ainda que por vezes com um pouco de relutância, como aconteceu
nessa altura, ao ajustar o ângulo da espreguiçadeira e deixar-se cair no plástico desconfortável.
Lá fora, no ar da noite. Não era assim que preferia fazer as coisas.

No quarto, Reacher ouviu a espreguiçadeira a arrastar pelo alcatrão, mas não prestou
atenção. Era apenas um som noturno aleatório, nada de perigoso, não era uma bala a entrar no
carregador de uma caçadeira nem o sibilar de uma faca numa bainha, nada que lhe pudesse
preocupar os lobos cerebrais. E as únicas possibilidades fora disso eram uns sapatos com
atacadores a percorrerem o passeio lá fora e alguém a bater à porta, já que a mulher da estação
parecia ser uma pessoa cheia de perguntas e, pelos vistos, contava que lhas respondessem.
Quem é você e que veio cá fazer?
Mas era algo a arrastar, não eram passos nem alguém a bater à porta e, por isso, Reacher
não prestou atenção. Dobrou as calças, estendeu-as debaixo do colchão e, a seguir, tomou um
duche para se livrar da sujidade do dia e enfiou-se na cama. Acertou o despertador mental para
as seis da manhã, espreguiçou-se uma vez, bocejou outra e adormeceu.

O dia nasceu só com tons dourados, sem uma réstia de cor-de-rosa ou púrpura. O céu era
de um azul descolorido, como uma camisa velha lavada mil vezes. Reacher tomou outro duche,
vestiu-se e saiu do quarto. Lá fora, viu a espreguiçadeira, vazia e estranhamente posta na faixa
de trânsito, mas não pensou duas vezes nisso. Subiu as escadas de metal com o mínimo barulho
possível, reduzindo a provável estridência a uma vibração mais surda, ao pousar os pés com
muito cuidado. Deu com o 214 e bateu à porta, com firmeza mas discrição, como imaginava
que um paquete faria num bom hotel. O seu despertar, minha senhora. Ela tinha cerca de
quarenta minutos. Dez para se levantar, dez para tomar banho e outros para voltar à estação.
Chegaria bem a tempo do comboio da manhã.
Reacher desceu as escadas sorrateiramente e dirigiu-se para a rua, que já era
suficientemente larga para ser considerada uma praça. Para camiões agrícolas, imaginou,
pesados e desajeitados, a virarem e a fazerem manobras, enfileirando-se diante das básculas,
dos serviços de receção e dos próprios silos. Havia carris fixados no alcatrão. Era uma coisa em
grande. Uma espécie de centro de atividade, presumivelmente, que servia a localidade, que,
naquela parte da América, poderia corresponder a um raio de bem mais de trezentos
quilómetros. O que explicava o motel grande. Os agricultores chegariam de vários pontos e
passariam ali a noite antes ou depois de uma viagem de comboio para uma qualquer cidade
distante. E talvez viessem todos ao mesmo tempo, em determinadas alturas do ano. Talvez
quando se iniciasse a venda de bens futuros, na longínqua Chicago. E daí os trinta quartos.
A rua larga, praça ou lá o que fosse atravessava a terra basicamente de sul a norte, com o
caminho de ferro e a infraestrutura reluzente a definirem o limite a leste, à direita, e o que
correspondia a uma espécie de rua principal a definir o limite a oeste, à esquerda. Estava lá o
motel, um restaurante e um armazém. Por trás desses estabelecimentos, a povoação espraiava-
se num vago semicírculo para oeste. Baixa densidade. Expansão, ao estilo rural. Mil pessoas,
talvez menos.
Reacher seguiu para norte, na rua larga, à procura do caminho para as caravanas. Calculou
que este acabaria por se cruzar com ele, de leste para oeste, o que tinha sido o objetivo
fundamental das caravanas. Vai para oeste, jovem. Tempos emocionantes. Viu uma passagem
de nível a cinquenta metros de distância, depois do último silo. Uma estrada, perpendicular,
precisamente de leste para oeste. À direita, o sol matinal iluminava-a, e, à esquerda, as sombras
cobriam-na.
A passagem de nível não tinha barreiras. Só sinais vermelhos. Reacher ficou parado nos
carris e olhou para trás, em direção a sul, de onde tinha vindo. Não havia mais passagens de
nível, no mínimo, no quilómetro e meio seguinte, que era até onde conseguia ver
aproximadamente, sob a luz pálida. E também não havia mais passagens de nível, no mínimo,
no quilómetro e meio seguinte para norte. O que queria dizer que, se Mother’s Rest
reivindicasse a sua própria via de passagem de leste para oeste, ele estava parado nela.
Era razoavelmente larga e com ligeiras lombas, feita com terra retirada de valetas pouco
fundas escavadas de ambos os lados. Tinha-lhe sido aplicada uma camada de alcatrão,
acinzentado com o passar dos anos, esburacado aqui e acolá devido ao tempo e com bodas
aleatórias como lava congelada. Era em linha reta, de um horizonte ao outro.
Uma possibilidade. As caravanas seguiam sempre em linha reta quando podiam. E porque
não? Ninguém fazia mais quilómetros só pelo gozo. O condutor principal orientar-se-ia por
um marco distante, os restantes segui-lo-iam, um ano mais tarde, uma nova caravana
encontrava os sulcos deixados pelas rodas e, passado outro ano, alguém assinalaria isso num
mapa. E outros cem anos depois, um departamento rodoviário estadual apareceria com
camiões cheios de asfalto.
Não havia nada para ver a leste. Nenhum museu com uma só sala nem lápide. Apenas a
estrada, por entre campos infinitos de trigo praticamente maduro. Mas, no sentido contrário,
para oeste dos carris, a estrada atravessava a terrinha, mais ou menos a meio, com as
construções a prolongarem-se, de ambos os lados, por cerca de seis quarteirões de edifícios
baixos. O terreno do canto direito tinha-se expandido para norte, à volta de cem metros. Como
um campo de futebol americano. Tratava-se de um concessionário de equipamento agrícola.
Tratores esquisitos e máquinas enormes, tudo novo e reluzente. À esquerda, ficava uma loja de
material veterinário, num pequeno edifício que devia ter começado por ser um simples prédio
de habitação.
Reacher virou e avançou pelo antigo caminho, atravessando a povoação em direção a oeste,
com o sol da manhã a aquecer-lhe tenuemente as costas.

Na receção do hotel, o funcionário zarolho marcou o número no telefone e, ao atenderem,


disse:
— Ela foi outra vez para a estação. Agora também foi esperar o comboio da manhã.
Quantos tipos é que esta gente vai enviar?
Teve como resposta um longo e plástico estalido, que não era uma pergunta, mas também
não era uma ordem. Possuía um tom mais suave. Talvez para encorajar. Ou tranquilizar. O
zarolho disse «Okay, claro» e desligou.

Reacher percorreu seis quarteirões e depois voltou para trás, vendo uma série de coisas. Viu
casas que continuavam habitadas e casas convertidas em lojas, de comerciantes de sementes,
vendedores de fertilizantes e um veterinário para animais grandes. Viu um escritório de
advogados com uma só sala. Viu uma bomba de gasolina um quarteirão para norte, um salão
de bilhar, um estabelecimento que vendia cerveja e gelo e outro que só vendia botas e aventais
de borracha. Viu uma lavandaria, uma loja de pneus e um sítio onde se punham solas de bota.
Não viu nenhum museu nem monumento.
O que podia não querer dizer nada. Não iriam pôr nenhuma dessas coisas mesmo na berma
da estrada. Provavelmente, a um quarteirão ou dois de distância, para dar um sentido de
reverência e para não sofrerem danos.
Saiu do caminho para as caravanas e entrou numa rua secundária. A terrinha estava
disposta numa quadrícula, embora tivesse crescido de forma semicircular. Havia terrenos mais
apetecíveis do que outros. Como se os silos gigantescos possuíssem um sistema gravitacional
próprio. As partes mais distantes não se encontravam desenvolvidas. Mais próximo do centro,
os edifícios estavam colados uns aos outros. O quarteirão atrás do caminho tinha apartamentos
com uma só divisão que talvez tivessem começado por ser celeiros ou garagens, e o que
pareciam ser barracas de mercado desmontáveis, para gente que tinha dedicado meio ou um
hectare a fruta e legumes. Havia uma loja com Western Union, MoneyGram, faxes, fotocópias,
FedEx, UPS e DHL. Ao lado, ficava o escritório de um contabilista diplomado, mas parecia
abandonado.
Nenhum museu nem monumento.
Calcorreou os quarteirões, um a seguir ao outro, passando por cabanas baixas, por uma
oficina de motores a diesel e por terrenos desocupados e cheios de erva daninha fina como
cabelos. Foi dar à outra ponta da rua larga. Tinha feito meia terra. Nenhum museu nem
monumento.
Viu o comboio da manhã chegar. Parecia incomodado e impaciente por ter de parar. Era
impossível perceber se tinha saído alguém. Havia demasiadas infraestruturas no caminho.
Reacher estava com fome.
Atravessou a praça a direito, quase até ao ponto de onde tinha partido, passando pelo
armazém e entrando no restaurante.

E foi nessa altura que o neto de doze anos do gerente do motel entrou rapidamente no
armazém e se dirigiu ao telefone público instalado na parede, logo a seguir à porta. Enfiou as
moedas, marcou um número e, ao atenderem, disse:
— Ele anda a vasculhar a terra. Nunca o perdi de vista. Anda a espreitar para todo o lado. E
de quarteirão em quarteirão.
TRÊS

O pequeno restaurante era limpo e agradável, com uma decoração atraente, mas, acima de
tudo, tratava-se de um sítio de trabalho, destinado a trocar calorias por dinheiro o mais
depressa possível. Reacher sentou-se de costas numa mesa de dois lugares, no canto mais à
direita, ficando com o restaurante inteiro à frente. Cerca de metade das mesas estava ocupada,
maioritariamente por gente que parecia estar a carregar baterias antes de um longo dia de
trabalho físico. Apareceu uma empregada, atarefada mas profissionalmente paciente, e Reacher
pediu o pequeno-almoço da praxe, que consistia em panquecas, ovos e toucinho fumado, mas,
antes de mais, café, em primeiro lugar e sempre.
A empregada informou-o de que o estabelecimento tinha uma política de chávena sem
fundo.
Reacher recebeu a informação com prazer.
Já ia na segunda caneca quando a mulher da estação entrou, sozinha.
Parou por um segundo, como que incerta, e a seguir olhou em redor, viu-o e avançou na
sua direcção. Enfiou-se na cadeira vazia à frente de Reacher. De perto e à luz do dia, tinha
ainda melhor aspeto do que na noite anterior. Olhos vivos e escuros e um rosto que denotava
uma certa determinação e inteligência. Mas também uma certa preocupação.
— Obrigado por ter batido à porta — disse ela.
— De nada — respondeu Reacher.
— O meu amigo também não veio no comboio da manhã — disse ela.
— E porque me está a dizer isso? — retorquiu ele.
— Porque sabe qualquer coisa.
— Sei?
— Por que outra razão sairia do comboio?
— Se calhar, vivo aqui.
— Não vive.
— Se calhar, sou agricultor.
— Não é.
— Até posso ser.
— Não me parece.
— E porque não?
— Não trazia nada quando saiu do comboio. O que não dá ideia nenhuma de que se tenha
o mesmo pedaço de terra há várias gerações.
Reacher deteve-se por uns instantes e depois perguntou:
— Mas quem é você realmente?
— Não interessa quem eu sou. O que interessa é quem você é.
— Sou só um tipo que está de passagem.
— Vou precisar de mais do que isso.
— E eu vou precisar de saber quem está a perguntar.
A mulher não respondeu. A empregada apareceu, com o prato dele. Panquecas, ovos e
toucinho fumado. Havia xarope na mesa. A mulher encheu-lhe outra vez a caneca. Reacher
pegou nos talheres.
A mulher da estação pousou um cartão de visita em cima da mesa. Empurrou-o pela
madeira pegajosa. Tinha um carimbo governamental. Azul e dourado.
Agência Federal de Investigação. Agente Especial Michelle Chang.
— É você? — perguntou Reacher.
— Sou — respondeu ela.
— Prazer em conhecê-la.
— Igualmente — retorquiu ela. — Espero eu.
— E porque me está o FBI a fazer perguntas?
— Reformada — disse ela.
— Quem?
— Eu. Já não sou agente do FBI. O cartão é antigo. Levei uns quantos quando me fui
embora.
— E pode fazer-se isso?
— Provavelmente, não.
— Mas, mesmo assim, mostrou-mo.
— Para lhe chamar a atenção. E por uma questão de credibilidade. Agora sou investigadora
privada. Mas não do género de tirar fotografias em motéis. Preciso que perceba isso.
— Porquê?
— Preciso de saber que veio cá fazer.
— Está a perder tempo. Seja qual for o seu problema, não passo de uma coincidência.
— Preciso de saber que está cá em trabalho. Podemos estar do mesmo lado. Podemos estar
os dois a perder tempo.
— Não estou cá em trabalho. Nem estou do lado de ninguém. Estou só de passagem.
— Tem a certeza?
— A cem por cento.
— E porque havia eu de acreditar em si?
— Não me interessa se acredita ou não.
— Veja a coisa do meu ponto de vista.
— O que era você antes de entrar para o FBI? — perguntou Reacher.
— Era polícia no Connecticut. Polícia de giro — respondeu Chang.
— É bom saber. Porque eu fui polícia militar. Só por acaso. Portanto, somos agentes
irmãos. Num certo sentido. Acredite neste cavalheiro. Sou uma coincidência.
— Que género de polícia militar?
— Do género do exército — respondeu Reacher.
— E que fazia?
— Na maior parte dos casos, o que me mandavam. Um pouco de tudo. Por norma,
investigações criminais. Fraude, roubo, homicídio e traição. As coisas todas que as pessoas
fazem, se as deixarem.
— E como se chama?
— Jack Reacher. Posto final de major. Nos últimos tempos, da 110 da Polícia Militar.
Também perdi o emprego.
Chang assentiu com a cabeça uma vez, devagar, e pareceu descontrair. Mas não por
completo. Perguntou, num tom mais suave:
— Tem a certeza de que não está cá em trabalho?
— Absoluta — respondeu Reacher.
— E que faz agora?
— Nada.
— E que quer isso dizer?
— Precisamente o que eu disse. Viajo. Ando de um lado para o outro. Vejo coisas. Vou para
onde quero.
— Constantemente?
— Para mim, serve.
— E onde vive?
— Em lado nenhum. No mundo. Hoje, aqui mesmo.
— Não tem casa?
— Não vale a pena. Nunca estaria lá.
— E já tinha estado em Mother’s Rest?
— Nunca.
— Mas então, se não está em trabalho, porquê agora?
— Ia a passar. Foi um capricho, por causa do nome.
Chang fez uma curta pausa e a seguir fez um sorriso, repentino e um bocadinho
melancólico.
— Eu sei — disse. — Estou a ver o filme na cabeça. A última imagem é um grande plano de
uma cruz inclinada e enterrada no chão, com duas tábuas pregadas e uma inscrição feita com
um atiçador em brasa de uma fogueira, e, por trás, a caravana vai-se afastando com um ruído
metálico, até ficar minúscula ao longe. E depois vem o genérico final.
— Acha que uma velhota morreu aqui?
— Foi isso que supus.
— Interessante — afirmou Reacher.
— E o que supôs?
— Não tinha a certeza. Achei que uma mulher talvez tivesse parado para ter um bebé.
Talvez tivesse descansado aqui um mês e seguido viagem. E talvez o filho se tivesse tornado
senador ou qualquer coisa assim.
— Interessante — afirmou Chang.
Reacher espetou a gema e levou o garfo a pingar à boca, começando a comer o pequeno-
almoço.

A uns nove metros de distância, o homem que estava ao balcão marcou um número no
telefone de parede e disse:
— Ela voltou sozinha da estação, foi logo ter com o tipo de ontem à noite e agora estão em
grande conversa, a maquinar e a conspirar, podes ter a certeza.
QUATRO

O restaurante foi ficando com menos gente. A hora de maior movimento, quanto a
pequeno-almoço, correspondia claramente ao raiar do Sol. Agricultura, tão má como as forças
armadas. A empregada voltou e Chang pediu café e um folhado doce, ao passo que Reacher
terminou o pequeno-almoço.
— Então como é que uma investigadora privada como você passa o tempo, se não chega a
tirar fotografias em hotéis? — perguntou ele.
E Chang respondeu:
— Temos como objetivo oferecer uma vasta gama de serviços especializados. Investigação
empresarial e, claro, agora muita segurança online, mas também pessoal. Proteção pessoal. Os
ricos estão cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, o que são boas notícias para a
atividade de guarda-costas. E também tratamos da segurança de edifícios. Além de consultoria,
verificação de antecedentes, avaliação de ameaças e também algumas investigações gerais.
— E o que a traz aqui?
— Temos uma operação em curso nesta zona.
— Contra quê?
— Não estou autorizada a dizer.
— E é uma operação muito grande?
— Temos um homem no terreno. Pelo menos, julgávamos que sim. Enviaram-me como
reforço.
— Quando?
— Cheguei ontem. Agora trabalho de Seattle. Fui de avião até onde podia e depois aluguei
um carro. Foi uma viagem dos diabos. Estas estradas nunca mais acabam.
— E o vosso homem não estava cá.
— Não — respondeu Chang. — Não estava.
— E acha que ele se foi embora temporariamente e que vai voltar de comboio?
— Espero que não tenha acontecido mais nada.
— E que podia ter acontecido? Já não estamos no Faroeste.
— Eu sei. O mais certo é ele estar ótimo. Trabalha de Oklahoma City. É perfeitamente
possível que tivesse de voltar para lá para tratar de outro assunto qualquer. E teria ido de
comboio, por causa das estradas. Portanto, vai regressar de comboio. Tem de ser. Disse-me que
aqui não tinha carro.
— E já tentou ligar-lhe?
Ela assentiu com a cabeça.
— O armazém tem um telefone fixo. Mas ninguém atende de casa e o telemóvel está
desligado.
— Ou não tem sinal. E, nesse caso, ele não está em Oklahoma City.
— E acha que ele se pode ter afastado mais? Por estas bandas? Sem carro?
— Você lá saberá — respondeu Reacher. — O caso é seu e não meu.
Chang não respondeu. A empregada regressou e Reacher antecipou o almoço pedindo uma
fatia de tarte de pêssego. Com mais café. A empregada fez um ar resignado. A política do
patrão de chávenas sem fundo estava a dar um belo prejuízo.
— Ele devia ter-me apresentado um relatório — afirmou Chang.
— Quem? O tipo que não está cá? — retorquiu Reacher.
— Evidentemente.
— Um relatório para a pôr a par da situação?
— Mais do que isso.
— Então afinal o que é que não sabe?
— Ele chama-se Keever. Trabalha no nosso escritório de Oklahoma City. Mas fazemos
todos parte da mesma rede. Consigo ver o que ele anda a fazer. Tem uma ou duas coisas
importantes em mãos. Mas nada que seja por aqui. Pelo menos, nada que esteja no computador
dele.
— E como foi destacada para servir de apoio?
— Estava disponível. Foi ele que me ligou.
— Daqui?
— Sem dúvida. Explicou-me tintim por tintim como chegar cá. Disse que era a localização
atual dele.
— E pareceu-lhe um pedido rotineiro?
— Basicamente. Cumpria os protocolos.
— Quer dizer que o procedimento foi seguido, só que o caso não está no computador dele?
— Correto.
— E que quer isso dizer?
— Que tem de ser uma coisa pequena. Se calhar, um favor a um amigo ou outra coisa
qualquer tão perto de ser de borla que nem chegou a passar pelo chefe. Seja como for, não
havia dinheiro a ganhar. E, por isso, passa despercebida. Mas depois calculo que se tenha
transformado numa coisa maior. Suficientemente grande para justificar o telefonema a pedir
reforços.
— Então é uma coisa pequena que se tornou maior? E que tem que ver com quê?
— Não faço ideia. O Keever ia apresentar-me um relatório.
— Nenhuma ideia mesmo?
— Que parte é que não compreende? Ele estava a trabalhar num caso como hobby, em
privado e em segredo, e ia contar-me tudo quando eu cá chegasse.
— E como foi o tom dele ao telefone?
— Estava descontraído. Ou praticamente. Não me parece que goste muito deste sítio.
— Disse isso?
— Foi mais uma impressão minha. Quando me estava a explicar como se chegava cá,
pareceu-me que estava a pedir desculpa por me estar a meter num sítio qualquer sinistro e
assustador.
Reacher ficou calado.
— Imagino que o pessoal das forças armadas ligue demasiado aos dados para seguir esse
tipo de raciocínio — atirou Chang.
Reacher respondeu:
— Não, eu até ia concordar. Não gostei da loja dos aventais de borracha, por exemplo, e,
hoje de manhã, houve uma criança esquisita que me andou a seguir para todo o lado. Com uns
dez ou doze anos. Um rapaz. Um miúdo atrasado, achei eu, fascinado com um desconhecido,
mas muito tímido. Escondia-se atrás de uma parede sempre que olhava para ele.
— Não sei se isso é esquisito ou triste.
— E não tem mesmo informações nenhumas?
— Estou à espera do relatório do Keever.
— O que quer dizer estar à espera dos comboios.
— Duas vezes por dia.
— E quanto tempo falta até desistir?
— Isso é muito direto.
— Estava a brincar. Isto é igual à maioria das coisas más que já me aconteceu, e
provavelmente a si também, no seu carro-patrulha. É uma falha de comunicação. Uma
mensagem que não chegou ao destino. É o meu palpite. Presumivelmente, por o telemóvel não
ter sinal. As pessoas já conseguem viver sem isso.
— Vou esperar vinte e quatro horas — disse Chang.
— Nessa altura, já me terei ido embora — retorquiu Reacher. — Acho que vou apanhar o
comboio da noite.

Reacher deixou Chang no restaurante e regressou ao antigo caminho, preparado para


espreitar o resto da terra. Não voltou a ver o miúdo esquisito. Virou à esquina da loja de
material veterinário e reinspeccionou o lado esquerdo da rua, os seis quarteirões inteiros, sem
ver nada de interessante. Seguiu para uma zona já despovoada, avançando cem metros,
duzentos, só para o caso de o caminho de ferro ter arrastado o centro da terra para leste,
deixando para trás relíquias nos locais originais. Se Chang tivesse razão e uma velhota tivesse
morrido ali, a lápide não se veria necessariamente ao longe. Poderia ser uma coisa em ponto
pequeno, uma placa no chão, uma estaca de ferro que não chegasse a meio metro de altura,
bem alojada num mar de trigo, talvez com um trilho ceifado a vir da berma até lá.
Mas não viu nenhum trilho, nem lápide, nem estaca de ferro cerimonial. E nenhuma
estrutura maior. Nem museu. Nenhum painel oficial a anunciar um local de interesse histórico.
Deu meia-volta e começou a calcorrear o quadrante sul, quarteirão atrás de quarteirão,
começando pela rua secundária que seguia de leste para oeste por trás dos estabelecimentos
situados precisamente no caminho. Era bastante parecido com o seu equivalente do Norte, mas
tinha mais casas com uma só divisão feitas de celeiros e garagens e menos barracas de fruta.
Mas nenhuma lápide comemorativa nem museu. Onde seria lógico, não. Mother’s Rest não
tinha sido construída sobre uma passagem de nível. Que só tinha surgido com o caminho de
ferro. Fora uma mancha aleatória junto a intermináveis sulcos que atravessavam a pradaria a
direito. A lápide ou a lenda é que tinham chamado a terra. E a terra crescera à volta de uma
delas, como uma pérola à volta de um grão de areia.
Mas não conseguiu encontrar nada. Nem a lápide nem o museu. Não onde deveriam estar,
que seria a uma distância respeitável da berma original. Que chegasse para criar uma sensação
de excursão ou peregrinação. O que corresponderia a um quarteirão moderno por trás da
berma original, mas não estava lá nada.
Avançou quarteirão após quarteirão, tal como tinha feito antes. Viu o mesmo género de
coisas e começou a compreendê-las. A terra foi-se explicando a Reacher gradualmente, rua a
rua. Servia de entreposto comercial a uma ampla e dispersa comunidade agrícola. Recebia toda
uma série de coisas técnicas e expedia quantidades imensas de produção. Cereais, acima de
tudo. Mas também havia ali pastagens. Aparentemente. Daí a loja de material veterinário e o
veterinário de animais grandes. Além dos aventais de borracha, imaginou. Havia gente a viver
bem e a comprar tratores novos e reluzentes e gente a viver menos bem, que por isso andava a
arranjar os motores a diesel e a mandar pôr solas novas nas botas.
Uma simples terra, igual a qualquer outra.
O verão estava a chegar ao fim e o dia tinha preservado os tons dourados, com um sol
quente mas que não escaldava, e por isso ele continuou o passeio, contente por estar ao ar livre,
até descobrir que já tinha revisitado todos os quarteirões e visto tudo novamente.
Nenhuma lápide comemorativa nem museu.
Nenhum miúdo esquisito.
Mas havia um tipo que estava a olhar para ele com um ar estranho.
CINCO

Foi a dois quarteirões do antigo caminho, numa rua secundária paralela, que também
seguia de leste para oeste e que tinha cinco quarteirões desenvolvidos de um lado e outros
quatro do outro. O padrão semicircular já começava a chatear. Havia uma agência bancária e
uma cooperativa de crédito. Havia pequenos estabelecimentos, tudo negócios individuais, com
um amolador, um mecânico especializado em caixas de velocidade e até um barbeiro com um
reclamo luminoso. Mas, em especial, havia um tipo que vendia peças sobresselentes para várias
marcas de sistemas de irrigação. Tinha uma loja exígua e estava encurralado atrás da
registadora. Não era um tipo pequeno. Estava a olhar para a rua e, quando Reacher passou à
frente da loja, os olhos como que brilharam e ele levantou o braço, esticando-o para trás, na
direção de qualquer coisa por trás do ombro. Reacher não viu o que era. O ímpeto tinha-o feito
continuar. A parte da frente do cérebro dele não fez grande caso disso. Mas a parte mais
recôndita insistiu: Porque é que o tipo reagiu?
Calma. O homem viu uma cara nova. Um desconhecido. Não batia certo.
Ele queria pegar em quê? Numa arma?
Provavelmente, não. Uma pessoa a passar ao acaso não constituía uma ameaça imediata. E
ninguém tinha um bastão de basebol ou uma .45 ali escarrapachados na parede. À vista
desarmada. Por baixo do balcão funcionava melhor. Além do mais, a irrigação seria uma
atividade assim tão perigosa? Os bastões e as pistolas eram para os bares e para as lojas de
vinhos, e talvez para as farmácias.
Então o tipo queria pegar em quê?
No telefone, muito provavelmente. Um telefone à antiga, instalado na parede. À altura dos
ombros para a maioria das pessoas, para que fosse cómodo ligar. O tipo tentou agarrá-lo de
costas por estar demasiado apertado para se poder virar por completo.
Mas porque iria ele telefonar? Ver um desconhecido era um acontecimento assim tão
extraordinário que fosse preciso comunicá-lo de imediato?
Talvez se tivesse lembrado de alguma coisa de repente. Talvez tivesse de fazer uma venda
por telefone. Talvez tivesse de enviar uma encomenda.
Ou talvez lhe tivessem dito para avisar se visse algo.
O quê?
Desconhecidos.
E quem lhe teria dito?
E talvez isso também valesse para o miúdo esquisito. Talvez aquilo até tivesse sido uma
verdadeira tentativa de vigilância. Há uma linha muito ténue entre a timidez vistosa e a pura
incompetência.
Reacher parou no meio da praça e deu uma volta completa.
Não estava lá ninguém.

Nesse momento, achou que uma chávena de café seria boa ideia e, por isso, voltou ao
restaurante. Chang ainda lá estava, na mesma mesa. Ao final da manhã. Tinha trocado de
lugar, estando de costas para o canto. Como ele estivera. Foi abrindo caminho pelo restaurante
e sentou-se à mesa a seguir à dela, lado a lado, ou seja, também de costas para a parede. Uma
questão de hábito, principalmente.
— Tem sido uma manhã agradável? — perguntou.
— Parece um domingo quando eu era caloira na faculdade. Sem telemóvel nem nada para
fazer — respondeu ela.
— Mas o vosso tipo não comunica ao menos com o escritório dele?
Ela começou a dizer qualquer coisa, mas parou. Olhou à volta do restaurante e para as
pessoas que lá se encontravam, como se estivesse a contar o número de potenciais testemunhas
do que se poderia vir a revelar uma admissão embaraçosa. A seguir, fez um sorriso expressivo e
complexo, em parte, ousado, em parte, pesaroso, talvez até mesmo um pouco conspiratório, e
disse:
— Se calhar, sou capaz de ter dado um bocadinho mais de encanto à nossa situação.
— Em que sentido? — retorquiu Reacher.
— O nosso escritório de Oklahoma City é o quarto de visitas do Keever. Tal como o nosso
escritório de Seattle é o meu quarto de visitas. O nosso website diz que temos escritórios em
todo o lado. O que é verdade. Em todo o lado onde haja um ex-agente do FBI desempregado,
com um quarto de visitas e contas para pagar. Não somos uma organização propriamente
intricada. Por outras palavras, não temos pessoal de apoio. Não há ninguém com quem o
Keever deva comunicar.
— Mas ele tem coisas importantes em mãos.
Chang assentiu.
— Somos sérios e fazemos um bom trabalho. Mas isto é um negócio. Despesas gerais baixas
são a chave de tudo. E um bom website. Ninguém sabe ao certo o que somos.
— E que tipo de coisa ia ele aceitar como hobby?
— Tenho andado a pensar nisso, obviamente. Nada que fosse empresarial. Um caso
empresarial pequeno é coisa que não existe. Alguns são como uma autorização para imprimir
dinheiro. E vão diretos para o computador, pode crer. É o mesmo que darmos a nós próprios
uma estrela dourada. Este caso tem que ver de certeza com um cliente privado, que paga em
dinheiro vivo ou passa cheques. Nada de desonesto, necessariamente, mas o mais provável é ser
uma coisa chata e, possivelmente, marada.
— Só que agora o Keever precisa de reforços.
— Tal como eu disse, começou por ser uma coisa pequena que depois se transformou numa
coisa maior.
— Ou a parte marada deixou de repente de ser marada.
— Ou ficou ainda mais destrambelhada.
A empregada apareceu e deu início à segunda chávena sem fundo do dia para Reacher. Que
pagou logo à cabeça, umas quatro vezes mais do que era a conta. Gostava de café e gostava de
empregadas de mesa.
— Que tal foi a sua manhã? — perguntou Chang.
— Não consegui encontrar a sepultura da velhota nem descobri nada sobre o bebé.
— E acha que alguma dessas coisas ainda estaria por aqui?
— Tenho a certeza. Há espaço de sobra. Não vão estar a pavimentar a sepultura de uma
pessoa. E há sempre lugar para uma placa histórica. Veem-se por todo o lado. Uma espécie de
metal fundido, pintado de castanho. Não sei quem as faz. O Departamento do Interior, se
calhar. Mas não há nenhuma.
— E já falou com a gente da terra?
— Vem a seguir na minha lista.
— Devia começar pela empregada.
— Tem a obrigação profissional de me dar a resposta versão mundo do espetáculo. Para
que a publicidade se espalhe e, de repente, o restaurante dela se transforme numa atração
turística.
— Para já, ainda não resultou.
— E acha que muita gente pergunta?
— Provavelmente, umas cinco em dez — respondeu ela. — Só que isso são, logo aí, uns
onze anos de visitantes. Portanto, estamos a falar de um caso de alta percentagem e baixa
frequência. Depende do que entende por «muita».
E foi nesse preciso instante que a empregada avançou para eles com uma cafeteira, para que
Reacher pudesse receber a primeira nova dose da sessão, e Chang perguntou-lhe:
— Por que motivo esta terra se chama Mother’s Rest?
A empregada endireitou-se, apoiando-se numa das ancas, como fazem as mulheres
cansadas, com a cafeteira levantada à altura da cintura. Tinha cabelo da cor do trigo lá fora,
uma cara vermelha e tanto podia ter trinta e cinco como cinquenta anos, ser uma pessoa magra
a ficar mais pesada com a idade ou uma pessoa forte estafada de tanto trabalho. Era impossível
perceber. Parecia muito contente por parar um minuto, pois Reacher já era o melhor amigo
dela para a vida inteira, por causa da gorjeta, e por terem acabado de lhe fazer uma pergunta
que não era ofensiva nem entediante.
Respondeu:
— Gosto de pensar que um filho agradecido, de uma cidade longínqua, construiu uma
casinha no campo onde a mamã pudesse passar o resto dos dias, em troca de todas as coisas
boas que ela tinha feito por ele, e a seguir apareceram umas lojas para lhe venderem aquilo de
que ela precisava, depois mais umas casas e não tardou muito até já ser uma terra.
— Essa é a versão oficial? — perguntou Reacher.
A empregada respondeu:
— Não sei, meu querido. Sou do Mississípi. Nem percebo como vim aqui parar. Deviam
perguntar ao homem que está ao balcão. Acho que, pelo menos, nasceu aqui neste estado.
E a seguir foi-se embora cheia de pressa, como era típico das empregadas de mesa.
— Aquilo foi a resposta versão mundo do espetáculo? — perguntou Chang.
Reacher assentiu e retorquiu:
— Mas do ponto de vista criativo e não do marketing. Ela tem de aprender a seguir as
regras. Ou então ir escrever filmes. Vi um mesmo igual. Numa televisão de um quarto de
motel. De dia.
— E acha que devíamos perguntar ao homem do balcão?
Reacher olhou para ele. O tipo estava atarefado.
— Primeiro, vou falar com umas quantas pessoas autênticas. Vi alguns candidatos
enquanto andava por aí. A seguir, vou arranjar um sítio para bater uma soneca. Ou talvez vá
cortar o cabelo. Talvez a veja na estação às sete. O seu tipo, o Keever, vai estar a sair do
comboio e eu vou estar a entrar — disse ele.
— Mesmo sem saber ainda a história por trás do nome?
— Não é assim tão importante. Não vale verdadeiramente a pena ficar cá por isso. Acredito
na minha própria versão. Ou na sua. Consoante o estado de espírito.
Chang não respondeu nada e, por isso, Reacher sorveu o resto da caneca, saiu da mesa e
voltou a abrir caminho pelo restaurante. Saiu. O sol continuava quente. Vem a seguir na minha
lista. Pessoas autênticas. A começar pelo tipo das peças sobresselentes para os sistemas de
irrigação.
SEIS

O tipo continuava preso atrás da registadora. Tinha uns sessenta centímetros de espaço, o
que não era suficiente. Era mais ou menos da mesma altura e peso de Reacher, mas mole e
inchado, com uma camisa do tamanho de uma tenda de circo, por cima de um cinto apertado a
uma altura improvavelmente baixa, sob uma barriga grande como um timbale. Tinha uma cara
pálida e cabelo descolorido.
Havia um telefone na parede, atrás do ombro direito dele. Não era um objeto antigo, com
um mostrador giratório e um fio encaracolado, mas um telefone moderno corriqueiro, sem
fios, com uma estação-base aparafusada a uma travessa de madeira e um auscultador em pé, na
ranhura. A estação-base possuía uma janela de plástico com dez espaços. Cinco estavam
identificados e outros tantos não. Os rótulos pareciam corresponder às marcas de que o tipo
vendia peças. Linhas de apoio para aconselhamento técnico, possivelmente, ou números de
departamentos de vendas e serviços.
— Posso ajudá-lo? — perguntou o tipo.
— Já nos conhecemos? — retorquiu Reacher.
— Tenho a certeza de que não. De certeza que me lembraria.
— Mas da primeira vez que passei à frente da loja, deu um salto tão grande que quase bateu
com a cabeça no teto. Porque fez isso?
— Reconheci-o das suas fotografias antigas.
— Quais fotografias antigas?
— As da Penn State, em 86.
— Eu não era suficientemente esperto para a Penn State.
— Teve uma bolsa para jogar futebol americano. Era o defesa de quem toda a gente falava.
Aparecia em todos os jornais desportivos. Costumava acompanhar imenso essas coisas na
altura. E ainda acompanho, na verdade. Mas claro que agora está com um ar mais velho. Se não
me leva a mal dizê-lo.
— Fez algum telefonema?
— Quando?
— Quando me viu passar.
— E porque ia eu fazer isso?
— Vi a sua mão mexer-se na direção do telefone.
— Se calhar, estava a tocar. Está sempre a tocar, caraças. Gente que quer isto, gente que
quer aquilo.
Reacher assentiu. Teria ouvido o telefone tocar? Possivelmente, não. A porta estava fechada
e o telefone era completamente eletrónico, com um volume de som ajustável, e talvez estivesse
a tocar muito baixinho, num sítio tão pequeno. Sobretudo se estavam sempre a receber
chamadas. Mesmo ao lado do ouvido do tipo. Um toque alto podia tornar-se desagradável.
— Qual é a sua teoria em relação ao nome desta terra? — perguntou Reacher.
— A minha quê? — retorquiu o tipo.
— Por que razão este sítio se chama Mother’s Rest?
— A verdade é que não faço ideia. O país está cheio de terras com nomes esquisitos. Não
somos só nós.
— Não o estou a acusar de nada. Interessa-me a história.
— Nunca ouvi nenhuma.
Reacher assentiu novamente.
— Tenha um ótimo dia — disse.
— O senhor também. E parabéns pela recuperação. Se não me leva a mal dizê-lo.
Reacher saiu com esforço da loja apertada e ficou parado ao sol um momento.

Reacher falou com mais doze comerciantes, treze no total, recebendo assim catorze
opiniões, incluindo a da empregada. Não havia consenso. Oito opiniões não eram realmente
opiniões nenhumas mas uns simples encolher de ombros e expressões vazias, a acompanhar
uma dose comum de posturas defensivas. O país está cheio de terras com nomes esquisitos. Para
quê destacar Mother’s Rest, num país com terras que se chamavam Why e Whynot, Accident e
Peculiar, Santa Claus e No Name, Boring e Cheesequake, Truth or Consequences, Monkeys
Eyebrow, Okay e Ordinary, Pie Town e Toad Suck e Sweet Lips?1
As restantes seis opiniões eram variações sobre a fantasia da empregada. E sobre a dele,
concluiu Reacher. E a de Chang. As pessoas pegavam no nome e andavam para trás,
inventando hipóteses pitorescas que pudessem servir. Não havia dados concretos. Ninguém
conhecia uma lápide comemorativa, um museu, uma placa histórica ou sequer um velho conto
popular.
Reacher percorreu de novo a rua larga, matutando: sesta ou corte de cabelo?

O tipo das peças sobresselentes foi o primeiro a telefonar a avisar. Disse que tinha a certeza
de ter lidado com a situação de forma segura, com o velho truque do futebol. Era uma técnica
que aprendera há muitos anos. Escolhia-se uma boa equipa universitária de um ano bom e a
maioria das pessoas ficava tão lisonjeada que nem desconfiava. No espaço de uma hora, outros
três comerciantes tinham repetido esse relatório. Sem a parte do futebol. Mas, quanto a
substância, não restavam dúvidas. O funcionário zarolho do motel atendeu todas as chamadas,
memorizou bem a informação, depois ligou para um número exterior e, ao atenderem, disse:
— Estão a investigar a partir do nome. O grandalhão anda pela cidade inteira a fazer
perguntas.
Recebeu um longo estalido plástico, calmo, melífluo e tranquilizador. Disse «Okay, certo»,
mas não parecia muito certo, e a seguir desligou o telefone.

A barbearia era um estabelecimento com duas cadeiras, com um tipo a trabalhar lá sozinho.
Era velho, mas não parecia tremer, por isso Reacher pediu que lhe fizesse a barba com uma
toalha quente e depois que lhe cortasse o cabelo à máquina, curto atrás e de lado e um pouco
mais comprido em cima. O cabelo continuava da mesma cor. Um bocadinho mais ralo, mas
ainda lá estava. O esforço do velho produziu bons resultados. Reacher olhou para o espelho e
viu o próprio reflexo a fitá-lo, todo bem arranjado e apessoado. Pagou onze dólares, o que
achou razoável.
Depois voltou a atravessar a ampla praça e, à porta do motel, viu a espreguiçadeira que já
tinha visto, completamente sozinha na faixa de trânsito. De plástico branco. Pegou nela e pô-la
no lado certo do passeio, num pedaço de relva perto de uma vedação. Discreta. Sem estar no
caminho de ninguém. Girou-a com o pé, até os raios de sol lhe baterem. A seguir, sentou-se
nela, recostou-se e fechou os olhos. Absorveu o calor. E, a certa altura, adormeceu, ao ar livre e
no verão, que era a segunda melhor maneira que conhecia de o fazer.

1 Por ordem, Porquê, Porque Não, Acidente, Singular, Pai Natal, Sem Nome, Entediante, Terra Alta, Verdade ou
Consequência, Sobrancelha do Macaco, Okay, Normal, Cidade das Tartes, Chupadela do Sapo e Lábios Doces. (N. do T.)
SETE

Ao final da tarde, Reacher dirigiu-se para a estação às seis, uma hora mais cedo do que
precisava, em parte por o Sol já ter baixado no céu e já não haver onde o apanhar e, em parte,
por gostar de chegar cedo. Gostava de ter tempo para avaliar bem a situação. Mesmo estando
em causa uma coisa tão simples como entrar num comboio.
Os silos encontravam-se parados e em silêncio, presumivelmente vazios e a aguardar a
colheita. O armazém gigante estava todo fechado. Os carris não produziam nenhum som. As
luzes de vapor já estavam acesas, antecipando o crepúsculo que se aproximava. A oeste, o céu
mantinha-se dourado, mas o resto já se encontrava escuro. Não faltava muito, pensou Reacher,
para o cair da noite.
O edifício minúsculo da estação estava aberto, mas sem ninguém. Reacher entrou. O
interior era todo de madeira, num intricado estilo vitoriano, e tinha sido pintado várias vezes,
em tons de creme pardacentos. Emanava o cheiro habitual dos edifícios de madeira ao pôr do
sol, após um longo dia de calor, completamente abafado, poeirento e seco.
A janela da bilheteira era em arco, mas no fundo pequena e, por isso mesmo, íntima. O
vidro tinha um buraco redondo, para se falar. Mas, por trás do vidro, o estore estava corrido. O
estore era castanho e plissado. De um tipo qualquer primitivo de vinil. Estava lá escrita a
palavra Fechado, a tinta, que parecia folha de ouro.
Havia casas de banho à saída de um pequeno corredor. E uma mesa, com um jornal já com
seis dias. Havia candeeiros pendurados no teto, com lâmpadas esbranquiçadas dentro de taças
de vidro, mas não havia interruptor. No sítio onde este se deveria encontrar, perto da porta,
estava uma chapa em branco, com uma mensagem colada: Peça luz na bilheteira.
Os bancos eram esplendorosos. Era possível que tivessem cem anos. Eram feitos de
autêntico mogno, perpendicular e sóbrio, apenas renitentemente esculpido de acordo com a
forma humana e todo lustroso e polido com o uso. Reacher escolheu um lugar e sentou-se. Era
mais confortável do que seria de prever. Tinha um aspeto austero e puritano, mas era muito
cómodo. O carpinteiro fizera um ótimo trabalho, muito subtil. Ou talvez a própria madeira
tivesse desistido de lutar e, em vez de resistir, cedido, moldando-se e aprendendo a ser recetiva.
A todos os perfis e tamanhos, com as suas várias massas e temperaturas. Pressão de vapor,
literalmente, como num processo industrial, em câmara lenta. Seria possível, com madeira tão
dura como o mogno? Reacher não sabia.
Deixou-se estar quieto.
Lá fora, escureceu. Por conseguinte, também escureceu ali dentro. Peça luz na bilheteira.
Reacher ficou sentado na escuridão, a olhar pela janela. Calculou que Chang estivesse algures
por ali. Nas sombras. Já tinha feito isso. Calculou que poderia ir à procura dela. Mas para quê?
Não estava a pensar fazer nenhum discurso comprido. Mais cinco minutos de conversa de
circunstância não fariam diferença. Viajava. Seguia caminho. As pessoas apareciam e
desapareciam. Estava habituado a isso. Nada de especial. Um aceno amistoso chegaria e
sobraria quando ele entrasse para o comboio. E, de qualquer modo, nessa altura, ela até já
poderia estar apreensiva, a falar com Keever, a ouvir a história, a tentar descobrir onde raio ele
tinha andado.
Se Keever viesse no comboio.
Esperou.

Um longo minuto antes da hora de chegada prevista do comboio, Reacher começou a ouvir
as pedras na camada de balastro a estalar e a sussurrar. A seguir, os próprios carris começaram
a cantarolar, um murmúrio baixo e metálico, num crescendo até um lamento mais sonoro.
Sentiu a pressão no ar e viu o feixe do farol. Depois veio o barulho, um misto de silvos,
estrépitos e zumbidos. Foi então que o comboio chegou, potente e brutal, mas infinitamente
lento, com os travões a ranger, parando quando já não se via a locomotiva e com as carruagens
dos passageiros alinhadas em relação à rampa.
As portas abriram-se abruptamente.
À esquerda, Reacher viu Chang sair das sombras. Como um reflexo, devido ao comboio.
Avançando e recuando, como o flash de uma máquina fotográfica.
Um homem saiu do comboio.
À direita, Reacher viu o tipo das peças sobresselentes da loja de irrigação. Emergiu das
sombras, dando um passo em frente e aguardando.
O homem do comboio foi banhado por um foco de luz.
Não era um tipo grande. Não era o homem de Chang. Não era Keever. Era uma pessoa
pouco acima da estatura média, mas já algo abaixo do peso médio. Era possível que tivesse uns
cinquenta anos e o que poderia ter sido considerado elegância, quando era novo, estava a
começar a parecer macilência. Tinha cabelo escuro, mas provavelmente pintado, e trazia um
fato e uma camisa formal, sem gravata. Trazia uma sacola na mão, de couro castanho, maior do
que uma maleta de médico e mais pequena do que um saco a tiracolo.
Não saiu mais ninguém do comboio.
As portas continuavam abertas.
À direita, Reacher viu o tipo das peças sobresselentes dar mais um passo. O homem do
comboio apercebeu-se dele. O tipo das peças sobresselentes disse um nome e estendeu a mão.
Educado, respeitoso, acolhedor e humilde.
O homem do comboio apertou-lhe a mão.
As portas continuavam abertas.
Mas Reacher não se mexeu, deixando-se ficar no escuro.
O tipo das peças sobresselentes pegou na sacola de couro e levou o homem do fato para o
portão de saída. As portas do comboio fecharam-se repentinamente, as carruagens chiaram e
estremeceram e o comboio recomeçou a andar, muito devagarinho, uma carruagem a seguir à
outra.
O tipo das peças sobresselentes levou o homem do fato para longe.
Reacher avançou para a rampa e ficou a ver a luz traseira a dançar até desaparecer.
Das sombras, Chang disse:
— Estão a ir para o motel.
— Quem? — retorquiu Reacher.
— O homem do comboio e o novo amigalhaço dele.
Ela avançou para a luz.
E disse:
— Não se foi embora.
— Pois não, não fui — respondeu ele.
— Achava que ia.
— Também eu.
— Acho que sou boa pessoa, mas sei que não sou eu a razão.
Reacher ficou calado.
E Chang disse:
— Isso não saiu lá muito bem. Peço desculpa. Não estou a falar de uma razão dessas. O que,
seja como for, é presumido da minha parte. Ou seja, não há razão para eu ser uma razão dessas.
E agora estou a piorar a coisa. O que eu quero dizer é que você não ficou cá só para me ajudar.
Pois não?
— Viu o aperto de mão daqueles tipos?
— Claro que sim.
— Foi por isso que fiquei.
OITO

Reacher levou Chang para a silenciosa sala de espera e sentaram-se num dos bancos, ao
lado um do outro, na escuridão.
— Como caracterizaria aquele aperto de mão? — perguntou Reacher.
— Em que sentido? — retorquiu Chang.
— A narrativa. A história. A linguagem corporal.
— Parecia que um executivo subalterno de uma empresa tinha ido receber um cliente
importante.
— E acha que já se conheciam?
— Não me parece.
— Concordo. E foi muito bem feito, por parte do tipo cá da terra. Não foi? Toda uma
atuação subtil. Deferencial, sem ser obsequioso. Uma coisa diferente de quando aperta a mão a
um compincha, de certeza. Ou ao sogro. Ou ao responsável pelos empréstimos no banco. Ou a
um velho amigo da secundária que já não vê há vinte anos.
— E?
— O nosso tipo cá da terra é um homem que domina uma grande variedade de estilos de
aperto de mão e podemos presumir que se sinta à vontade a recorrer a todos. Faz parte da cena
dele.
— E isso ajuda-nos em quê?
— Vi esse tipo hoje de manhã. Tem uma loja que vende peças sobresselentes para sistemas
de irrigação. Passei à frente da montra e o tipo deu um salto e esticou-se para agarrar no
telefone.
— E porquê?
— Diga-me você.
— Até onde quer que a minha paranoia vá?
— Aí algures entre o senso comum e o ligeiramente paranoico.
— Não daria importância nenhuma a isso, se não fosse pelo Keever — afirmou ela.
— Mas?
— Você é parecido com o Keever. Mais ou menos. Se calhar, o Keever tem andado a
bisbilhotar e disseram às pessoas para estarem de olho nele ou em quem seja parecido.
Reacher retorquiu:
— Também pensei nessa hipótese. Não me pareceu muito provável, mas acontecem coisas
improváveis. Por isso, voltei lá mais tarde, para tirar as dúvidas. Perguntei ao tipo: porque
reagiu assim? E ele disse que me tinha reconhecido, de quando eu joguei futebol americano na
universidade, em 1986. Na Penn State. Pelos vistos, saíram fotografias minhas nas revistas.
Disse que não tinha telefonado. Disse que, se calhar, a mão dele se estava a mexer por o
telefone estar a tocar. Disse que não para de tocar.
— E estava a tocar?
— Não podia ouvir.
— E jogou futebol na Penn State?
— Não, andei em West Point e só joguei futebol uma vez. E não muito bem, lamento dizê-
lo. Tenho a certeza de que nunca apareci numa revista.
— Pode ter sido um erro inocente. O ano de 1986 foi há muito tempo. Você terá mudado
consideravelmente desde então. E tem aspeto de quem pode ter jogado futebol pela Penn State.
— E a minha conclusão foi essa. Na altura.
— Mas agora?
— Agora, acho que ele estava a disfarçar. Estava a esconder-se atrás de uma história da
treta. Se calhar, é um truque que aprendeu. Não perder tempo a negar coisas com justificações
complicadas e atirar logo uma desculpa plausível. Provavelmente, há tipos que ficariam
lisonjeados com aquilo. Se calhar, queriam ser estrelas de futebol. Quem não queria? Se calhar,
ficam com a cabeça à roda e o problema desaparece. Além disso, ele mediu a coisa para que eu
parecesse mais novo do que sou. O que imagino que também seja lisonjeador. Em 1986, já
estava no exército. Licenciei-me em 83. Aquilo foi tudo uma grande atuação do tipo.
— Mas isso não prova nada.
— A primeira coisa que lhe perguntei foi: já nos conhecemos? Respondeu-me que não.
— O que era verdade, certo?
— Mas um tipo daqueles, um adepto que se lembra dos jogadores universitários de há
trinta anos, se eu lhe tivesse perguntado se já nos conhecíamos, ele teria dito: não, mas gostava
imenso de lhe apertar a mão. Ou quando eu fosse a sair. Teria havido ali um aperto de mão a
certa altura. Estamos a falar de um tipo que gosta de apertar a mão às pessoas. Isso é
importante para alguma gente. É uma coisa que eu já vi. É melhor do que um autógrafo ou do
que uma foto. Por ser pessoal. É contacto físico. Aposto que há uma lista compridíssima de
pessoas que quando este tipo as vê no jornal ou na televisão, pensa com os seus botões: já
apertei a mão àquele tipo.
— Mas ele não apertou a sua.
— O que foi um duplo deslize. Sabia que eu não era um jogador de futebol americano
famoso. Por isso, voltei à sua versão. De que disseram às pessoas para estarem de olho em
desconhecidos metediços. Incluindo, se calhar, o miúdo esquisito de hoje de manhã. Além
disso, nada de Keever no comboio. Onde anda ele, caraças? Por isso, resolvi ficar. Pelo menos,
mais uma noite. Só pelo gozo.
— E quem era o tipo do fato, que saiu do comboio?
— Não sei. Um forasteiro, suponho, que veio cá tratar de algum negócio. E que não vai ficar
muito tempo, dada a sacola pequena. Provavelmente, rico. As pessoas assim tão magras são
geralmente ricas. Vivemos em tempos estranhos. Os pobres são gordos e os ricos são magros.
Isso nunca aconteceu antes.
— E veio tratar de um negócio decente ou indecente? Será coincidência que o tipo da Penn
State o tenha ido buscar ou ele também está ligado ao que quer que seja de que o Keever anda
atrás?
— Pode ser tanto uma coisa como a outra.
— Se calhar, o homem é só um industrial da irrigação. O diretor executivo de uma grande
empresa.
— Nesse caso, acho que a viagem teria sido inversa. O nosso tipo é que teria ido a uma feira
profissional qualquer. E talvez conhecesse o mandachuva num cocktail. Trinta segundos, talvez
menos. E, durante esse tempo, teria apertado a mão ao homem. Isso de certeza absoluta.
— Estou a ficar preocupada com o Keever.
— E devia, suponho eu. Mas apenas um bocadinho. Porque até que ponto pode isto ser
grave? Com todo o respeito, estamos a falar de um investigador privado a receber dinheiro vivo
ou cheques de um único indivíduo. Que pode ou não ser marado. Segundo as suas próprias
palavras. E um tipo desse género teria ido sempre falar primeiro com a polícia. Depois de ter
tentado tudo o resto, da Casa Branca para baixo. Mas, ao que parece, a Casa Branca e a polícia
não se interessaram. Por isso, até que ponto pode isto ser grave?
— E acha que os polícias acertam sempre em tudo?
— Acho que têm um limiar que, quando é atingido, implica que deem pelo menos uma
vista de olhos. Se o tipo tivesse dito que o armazém estava carregado de bombas fabricadas com
fertilizantes, acho que teriam vindo logo a correr. Se tivesse dito que os canais dentários dele
estavam a receber transmissões dos silos, se calhar nem tanto.
— Mas a questão é que parece ter começado por ser uma coisa e agora já é outra. E daí a
chamada a pedir reforços. Se calhar, agora já ultrapassou mesmo o limiar.
— Nesse caso, o Keever pode ligar para o 112, como toda a gente. Ou então podia ligar
diretamente para o FBI. De certeza que ainda sabe o número.
— Então e que fazemos agora?
— Agora, voltamos para o motel. Além de tudo o resto, preciso de um quarto onde passar a
noite.

O zarolho estava de serviço na receção. Chang foi buscar a chave do quarto 214, como na
noite anterior, e ficou à espera. Reacher retomou a mesma negociação mesquinha. Sessenta
dólares, quarenta, trinta, vinte e cinco, mas não pelo quarto 106. Reacher não podia deixar que
o tipo ganhasse sempre. Ficou com o 113, a meio da ala em frente, no rés do chão, longe das
escadas de metal e apenas a um quarto de ficar mesmo por baixo do de Chang.
— Em que quarto está o senhor Keever? — perguntou.
— Quem? — soltou o funcionário.
— Keever. O grandalhão de Oklahoma City. Deu entrada há dois ou três dias. Veio de
comboio. Sem carro. É provável que tenha pago uma semana adiantada.
— Não estou autorizado a dizer. É uma questão de privacidade. Dos nossos hóspedes. De
certeza que compreende. E de certeza que lhe agradaria, se os papéis estivessem invertidos.
— Claro — respondeu Reacher. — Faz todo o sentido.
Pegou na chave e saiu da receção com Chang.
— Não interprete isto mal, mas quero subir ao seu quarto — disse-lhe.
NOVE

Subiram pelas escadas de metal da ponta direita da estrutura em forma de ferradura e, logo
a seguir, surgiu o quarto de Chang, 214, uma porta antes do último quarto da fila, que era o
215. Chang usou a chave e entraram. O quarto era igual a qualquer outro quarto, mas Reacher
percebeu que era uma mulher que o ocupava. Estava arranjado e cheirava bem. Havia uma
pequena mala com rodinhas, com coisas dobradas de forma ordenada lá dentro.
— Com que género de apontamentos andaria o Keever? — perguntou Reacher.
— Boa questão — respondeu Chang. — Por norma, andamos com computadores portáteis
e smartphones. Por isso, teclamos os nossos apontamentos todos. O que pode ser fastidioso,
mas é preciso fazer à mesma, já que tem de acabar por ficar tudo registado. Mas o objetivo de
um caso que pretende passar despercebido é ser uma coisa confidencial, por isso para quê estar
a digitar isso tudo? O mais certo é ele ter umas páginas escritas à mão algures.
— Onde?
— No bolso, provavelmente.
— Ou no quarto. Consoante a quantidade. Devíamos ir confirmar.
— Não sabemos qual é o quarto dele. E não temos a chave. Nem a podemos arranjar, já que,
pelos vistos, aqui o Four Seasons tem uma política de privacidade.
— Acho que é o 212, o 213 ou o 215.
— Porquê?
— Calculo que tenha sido o Keever a fazer a sua reserva, certo? Provavelmente, passou pela
receção e disse ao funcionário que vinha aí uma colega. E parece que este funcionário julga que
se houver alguma ligação entre duas pessoas, por mais vaga que seja, é preciso que os quartos
sejam perto um do outro. Você está no 214 porque o Keever já estava no 213, no 215 ou, se
calhar, no 212.
— Então porque perguntou ao tipo, se já sabia?
— Ele podia ter-me facilitado as coisas. Mas, acima de tudo, apeteceu-me dizer o nome do
Keever em público. Tão simples quanto isso. Se há pessoas a vigiar, então se calhar também
estão a ouvir, e, nesse caso, quero que elas me ouçam a dizê-lo.
— Porquê?
— Só para fazer a cortesia de os avisar — respondeu Reacher.

Reacher e Chang avançaram duas portas, até ao 212. Que foi fácil de excluir. Os cortinados
estavam corridos e a televisão estava ligada com o som baixo. Não era o quarto de Keever. Não
havia ninguém no 213 nem no 215. Tinham os dois os cortinados abertos, mas estavam
completamente às escuras. Tinham sido limpos de manhã e, a seguir, mais ninguém lá entrara.
Segundo a lei das probabilidades, um estava vago e o outro era o de Keever, pago mas de
momento desocupado, devido a uma qualquer circunstância extraordinária. O quarto vago
teria um aspeto completamente banal, ao passo que no de Keever haveria algum sinal de
ocupação, por mais pequeno que fosse, como um pijama a espreitar por baixo da almofada, um
livro pousado na mesinha de cabeceira ou o canto de uma mala, guardada atrás de uma cadeira,
longe da vista.
Mas estava demasiado escuro para se poder ver.
— Quer atirar uma moeda ao ar ou esperar até de manhã? — perguntou Reacher.
— E fazemos o quê? Arrombamos a porta? Veem-nos perfeitamente da receção.
Reacher olhou para o andar de baixo e viu o zarolho a arrastar uma espreguiçadeira pelo
alcatrão. Era a espreguiçadeira onde Reacher tinha dormido, junto à vedação. O zarolho pô-la
ao lado do passeio, em frente à janela da receção, e sentou-se nela, como um xerife da velha
guarda no seu alpendre de madeira, a contemplar simplesmente. Neste caso, não exatamente o
quarto 214. Um bocadinho mais abaixo e à direita. Ou seja, também não exatamente o 113.
Os dois quartos ao mesmo tempo.
Interessante.
E foi então que Reacher se lembrou da mesma espreguiçadeira, de manhã, abandonada na
faixa de trânsito, olhou para o quarto 106 e calculou os ângulos.
Interessante.
Apoiou os cotovelos no corrimão.
— Suponho que arrombarmos ou não a porta dependa do urgente que ache que isto tudo
seja — disse.
Ao lado dele, Chang respondeu:
— Ninguém acerta nessas decisões. Sempre, não.
— Mas às vezes sim, não é?
— Imagino que sim.
— Então qual dos casos é este?
— Qual é a sua opinião?
— Não sou seu superior. A minha opinião não devia ter importância nenhuma.
— Mesmo assim, qual é? — retorquiu ela.
— Cada caso é um caso.
— Tretas. Os casos são sempre iguais. E você sabe isso.
— Os casos deste género são iguais aí metade das vezes — respondeu Reacher. —
Enquadram-se em dois grupos amplos. Umas vezes, temos o nosso tipo de volta passadas umas
semanas, sem nada de mais, e, noutras, já o perdemos antes de sabermos sequer que havia um
problema. Não há grande meio-termo. O gráfico parece um smiley. Irónico.
— Ou seja, a matemática diz-nos para esperar. Ou já estamos derrotados ou temos tempo
de sobra.
Reacher assentiu.
— É o que a matemática nos diz.
— E quanto à operação?
— Se avançarmos agora, estamos a entrar sem reservas numa situação desconhecida, contra
forças que não podemos calcular quais sejam. Podem ser cinco tipos com apertos de mão
convincentes. Ou quinhentos, com armas automáticas e munições de ponta oca. A defender
qualquer coisa de que nunca ouvimos falar sequer.
— E que poderia ser o quê, hipoteticamente?
— Como eu já disse, não serão bombas feitas com fertilizantes dentro do armazém. Uma
outra coisa, que começou por ser esquisita e depois, de repente, deixou de ser. Se calhar, estão
mesmo a enviar-nos transmissões para os canais dentários.
Chang apontou com a cabeça para o zarolho, sentado lá ao longe, na espreguiçadeira de
plástico branca. E disse:
— Escolheu o canal certo para veicular o nome do Keever. Este tipo está metido nisto até ao
pescoço.
Reacher assentiu.
— Os gerentes de motéis são sempre úteis, em qualquer empreendimento. Mas este tipo
não tem uma posição importante na organização. Está cheio de mal-estar. E essa situação
ofende-o. Julga-se talhado para coisas melhores do que fazer de sentinela a noite toda. Mas,
pelos vistos, os chefes não acham.
— E são eles que temos de descobrir — atirou Chang.
— Temos?
— É uma maneira de dizer. Um resquício dos velhos tempos. Nessa altura, era tudo
trabalho de equipa.
Reacher ficou calado.
E Chang prosseguiu:
— Você ficou cá. Não vi ninguém a apontar-lhe uma pistola à cabeça.
— As minhas razões para ficar não têm nada que ver com o urgente que acha que esta coisa
toda do Keever é. Isso é outro assunto e a decisão é sua.
— Vou esperar até de manhã.
— Tem a certeza?
— É o que a matemática nos diz.
— E vai conseguir dormir bem, com este tipo a vigiar?
— Que mais posso fazer?
— Podíamos pedir-lhe para parar.
— E isso seria muito diferente de entrarmos sem reservas?
— Depende da reação dele.
— Vou dormir bem. Mas vou trancar a porta duas vezes e pôr a corrente. Não fazemos
ideia do que se está a passar aqui.
— Pois não — retorquiu Reacher, — não temos.
— Gosto do seu corte de cabelo, já agora.
— Obrigado.
— Quais foram as suas razões?
— Para o corte de cabelo?
— Para ficar.
— Curiosidade, acima de tudo — respondeu ele.
— Sobre o quê?
— Aquela coisa da Penn State, em 1986. Foi mesmo muito bem feita. Uma representação
magnífica. De certeza que o tipo já tinha feito isso e de certeza que já treinara e ensaiara, já se
tinha autocriticado e já revivera os respetivos êxitos mentalmente, e, por isso mesmo, também
tenho a certeza de que é completamente inconcebível que ele não saiba que, a certa altura,
tenha de haver um aperto de mão. Aposto que das outras vezes todas apertou a mão a alguém.
Mas não apertou a minha. E porquê?
— Cometeu um erro.
— Não, não se conseguiu obrigar a fazer isso. Fiquei com essa impressão. Ao ponto até de
comprometer a arte dele. Está metido em qualquer coisa, que neste preciso momento está a ser
ameaçada de uma maneira ou outra, e ele acha que as pessoas que a estão a ameaçar são
literalmente demasiado desprezíveis para lhes tocar. Foi com essa impressão que eu fiquei. Por
isso, estava com curiosidade em saber que género de coisa poderia fazer uma pessoa achar isso.
— Agora é que sou capaz de não dormir lá muito bem.
— Vão atacar-me primeiro — respondeu Reacher. — Estou no rés do chão. Não se
preocupe que vou fazer bastante barulho. E assim já ganha avanço.
DEZ

Reacher sentou-se numa cadeira, no seu quarto, às escuras, a uns dois metros da janela e
invisível do lado de fora, simplesmente a observar. Quinze minutos, depois vinte, depois vinte e
cinco. Tanto quanto fosse preciso. O zarolho, sentado na espreguiçadeira de plástico, era uma
mancha pálida na escuridão, a uns trinta metros de distância. Tinha-se posto confortável.
Estava ligeiramente inclinado para trás. Talvez estivesse a dormir, mas um sono leve.
Provavelmente, qualquer barulho ou movimento o despertaria. Não era a melhor sentinela que
Reacher já tinha visto, mas também não era a pior.
Por cima e à direita do tipo, no primeiro andar, o quarto do meio deixava ver um aro de luz
atrás dos cortinados. O quarto 203. O tipo do comboio, provavelmente. O recém-chegado, sem
dúvida a tirar o que tinha dentro da pequena sacola de couro e a organizar tudo. Unguentos e
frascos de medicamentos na casa de banho, umas coisas no armário e outras nas gavetas. Ainda
que o tamanho da sacola fosse um problema sério, na opinião de Reacher. Tinha-lhe parecido
um objeto de alta qualidade, já algo gasto, mas não amachucado nem destruído. Couro
granulado resistente, castanho e com ornamentos em latão. Um formato clássico, que
correspondia presumivelmente a um conjunto de dobradiças e a uma espécie de esqueleto
interno. Mas não era grande. E o tipo ia estar ali na terra no mínimo vinte e quatro horas. Se
calhar, mais. Com uma sacola onde não cabia um fato ou sapatos de reserva.
O que, na experiência de Reacher, era invulgar. A maioria dos civis trazia tudo e mais
alguma coisa de reserva, para o caso de nódoas, mudanças de temperatura ou convites
inesperados.
Passados dez minutos, o aro de luz apagou-se e o quarto 203 ficou completamente às
escuras. O zarolho deixou-se ficar onde estava, recostado, talvez a vigiar ou talvez não. E
Reacher continuou a observar desde as sombras, outros quinze minutos, o tempo que fosse
preciso, até ter a certeza de que não se passava nada. A seguir, despiu-se e dobrou a roupa
como fazia sempre, as mesmas calças debaixo de um novo colchão, tomou um duche rápido e
enfiou-se na cama. Deixou os cortinados abertos e acertou o despertador mental para o acordar
às seis da manhã ou caso houvesse barulho ou agitação durante a noite, o que acontecesse
primeiro.

O amanhecer foi silencioso, de novo em tons dourados, mas infinitamente pálido. Os silos
projetavam sombras fracas e suficientemente compridas para atingirem o motel. Ainda na
cama, Reacher endireitou-se e pôs-se a observar. A espreguiçadeira de plástico continuava lá,
no passeio por baixo da janela da receção, a uns trinta metros, mas o zarolho já se tinha ido
embora. Às quatro da manhã, calculou Reacher. Com a maré mais baixa. Para se deitar num
colchão lá dentro, sem dúvida.
O quarto 203 ainda tinha os cortinados corridos. O tipo do comboio. Provavelmente, ainda
estava a dormir. Reacher levantou-se e saiu da casa de banho com uma toalha enrolada à
cintura. Abriu a janela. Para o ar entrar. E o som. Conseguia ouvir os veículos na rua larga.
Motores V-8 normais a gasolina e pneus grossos a matraquear os carris fixados no alcatrão.
Carrinhas de caixa aberta, provavelmente. A dirigirem-se para o restaurante, para o pequeno-
almoço. As pessoas levantavam-se com as galinhas.
Sentou-se e ficou a olhar, sem café. Passou-lhe uma fantasia agradável pela cabeça, em que
ligava para o restaurante a pedir uma cafeteira à empregada, a nova melhor amiga dele, e em
que ela aparecia com aquilo minutos depois. Só que não tinha o número do restaurante e não
havia telefone no quarto. E não estava vestido. Cerca de trinta metros do outro lado da
estrutura em forma de ferradura, via-se uma luz acesa na janela da receção. Mas nenhum
movimento. Apenas um velho motel a definhar, com dois terços da lotação vaga, pouco depois
do amanhecer.
Ficou sentado a observar, pacientemente, na esperança de acabar por ser recompensado, o
que aconteceu por fim, passada quase uma hora. Primeiro, o zarolho saiu da receção, parou e
cheirou o ar, como as pessoas fazem de manhã. A seguir, o tipo deu uma vista de olhos ao
perímetro interior do dominiozinho dele, aos lugares de estacionamento, ao passeio ao longo
dos quartos do rés do chão e ao passadiço ao longo dos quartos do primeiro andar, uma
inspeção visual sem pressas, mais por uma questão de dever, achou Reacher, embora com uma
pontinha de orgulho misturada algures. Foi então que o tipo se lembrou do território que tinha
deixado por examinar mesmo atrás dele, voltando-se para o inspecionar e vendo a
espreguiçadeira fora do sítio. Arrastou-a outra vez para o 102 e alinhou-a uniforme e
perfeitamente com as restantes do rés do chão, que se encontravam todas diretamente por
baixo das do primeiro andar.
O que dava mais peso ao dever do que ao orgulho. Porque não se tinha dado ao trabalho de
fazer isso na véspera. Deixara a espreguiçadeira onde ela muito bem quisesse. Tinha estado
muito bem onde estava. Mas aquele novo dia era diferente. Por uma razão ou outra. O tipo
estava a comportar-se como um comandante nervoso antes da visita de um general de uma
estrela.
Reacher esperou. As sombras foram retrocedendo, metro a metro, à medida que o Sol
subia. Ouviu o comboio das sete. Chegou, a vibrar, e foi-se embora.
Reacher esperou.
Os cortinados do quarto 203 abriram-se. A janela estava de lado para o sol e, como tudo o
resto, o vidro encontrava-se repleto de pó das colheitas, mas, mesmo assim, Reacher viu o tipo
com toda a clareza, de fato, com os braços bem abertos e as mãos ainda nos cortinados, a
contemplar a manhã, como que espantado, como se fosse uma grande surpresa o Sol ter
voltado a nascer. Como se a melhor das hipóteses fosse cinquenta-cinquenta. O tipo deixou-se
ficar assim durante um minuto inteiro e, a seguir, deu meia-volta e desapareceu de vista.
Um sedã branco entrou no parque. Um Cadillac, pensou Reacher. Mas não novo. De uma
geração anterior. Era comprido e baixo, todo pesadão e confortável. Como uma limusina. E
portanto de uma cor invulgar, fora da Florida ou do Arizona. Em todo o caso, uma visão
invulgar em território rural. Era o primeiro sedã que Reacher via em quase quinhentos
quilómetros. Estava bastante limpo. No mínimo, tinha sido passado por água, senão mesmo
lavado. Reacher não conseguia ver o condutor. O vidro era demasiado escuro.
O carro virou rapidamente à direita, fez marcha-atrás à esquerda e estacionou no lugar por
baixo do quarto 203. Não tinha matrícula à frente. O condutor não saiu. Por cima do
automóvel, a porta do quarto 203 abriu-se e o homem do fato saiu de lá. Trazia a sacola de
couro castanha na mão. Ficou parado durante um longo momento e fez aquilo de cheirar o ar.
Como que espantado. Depois saiu subitamente do transe e avançou para as escadas, sem
dúvida magro, mas ágil, uma pessoa que se mexia fluente e fluidamente, sem ser musculado
como um atleta mas gracioso como um bailarino ou um ator de teatro. Desceu as escadas e o
condutor saiu do Cadillac para o cumprimentar.
O condutor era um homem que Reacher nunca tinha visto. Tinha cerca de quarenta anos,
era alto e bem constituído, sem ser gordo, mas claramente com carnes, cheio de cabelo e com
uma cara sincera. Possivelmente, outro executivo subalterno. O homem do fato apertou-lhe a
mão e enfiou-se no banco de trás do carro. O condutor levou a sacola de couro castanha até à
bagageira e pô-la lá dentro, como se fosse uma cerimoniazinha. Depois voltou a sentar-se ao
volante, o carro arrancou e foi-se embora.
Também não tinha matrícula atrás.
Reacher foi tomar um duche.

Chang já estava no restaurante, na mesa de dois lugares do canto onde se tinham sentado
antes. Estava de costas para a parede. E tinha reservado a mesa ao lado dela, pendurando o
casaco na cadeira. Reacher devolveu-lho e sentou-se, ficando ambos lado a lado e de costas
voltadas para a parede. O que era sensato do ponto de vista tático, mas uma vergonha em todos
os outros aspetos. Chang ficava com ótimo aspeto só de t-shirt. Ainda tinha o cabelo molhado,
o que o fazia parecer tinta. Tinha braços compridos e ligeiramente musculosos e uma pele
delicada.
— O tipo do fato já se foi embora. Levou a sacola, por isso já não vai voltar. Que sortudo —
disse ela.
— Eu vi — respondeu Reacher. — Do meu quarto.
— Eu estava a regressar da estação. O Keever não veio no comboio da manhã.
— Lamento sabê-lo.
— Portanto, está na hora. Já não espero mais por ele. Tenho de começar a procurá-lo. O
quarto dele é o 215. Espreitei pela janela. Está uma t-shirt grande pendurada numa das portas
do armário. No quarto 213 não há nada.
— Okay. Arranjamos maneira de entrar.
— Arranjamos?
— É uma maneira de dizer — respondeu Reacher. — Não tenho mais nada para fazer hoje.
— E devíamos ir fazer isso já?
— É melhor comermos primeiro. Comer quando se pode. É a regra de ouro.
— Agora podia ser uma boa altura para fazermos isso.
— Podia, mas mais tarde vai ser melhor. Quando a senhora da limpeza tiver começado a
trabalhar. Pode ser que nos abra a porta.
A empregada apareceu com café.
ONZE

Depois do pequeno-almoço, descobriram que a senhora da limpeza tinha começado de


facto a trabalhar, mas não se encontrava minimamente perto do quarto de Keever. Estava
bastante ocupada do outro lado da estrutura em forma de ferradura, a voltar a pôr o 203 pronto
após a saída do homem do fato. Tinha um carrinho grande e completamente cheio parado no
passadiço e a porta do quarto estava aberta. Conseguiam vê-la lá dentro, a mudar a cama.
Teria uma chave mestra no cinto, ou no bolso, ou então presa por uma corrente ao volante
do carrinho.
— Bom, acho que vou até ali dizer-lhe olá — disse Reacher.
Virou à esquerda a seguir ao 211, depois outra vez à esquerda a seguir ao 206 e parou ao
lado do carrinho, espreitando para dentro do 203.
A empregada estava a chorar.
E a trabalhar, as duas coisas ao mesmo tempo. Era branca, magra como um espeto e já não
propriamente nova, e estava a arrastar um saco de toalhas da casa de banho. Chorava baba e
ranho, toda fungosa e com lágrimas a escorrerem-lhe pela cara.
Sem entrar no quarto, Reacher perguntou-lhe:
— A senhora está bem?
A mulher parou, largou o saco e endireitou-se. Pôs-se a arfar, depois respirou fundo e
olhou inexpressivamente para Reacher, dando a seguir meia-volta para olhar também
inexpressivamente para o espelho e virando-se depois outra vez, sem nenhuma reação, como se
o seu aspeto já estivesse para lá de qualquer preocupação.
Sorriu.
E disse:
— Estou muito feliz.
— Okay.
— Não, a sério. Peço desculpa. Mas o cavalheiro que acabou de vagar o quarto deixou-me
uma gorjeta.
— O quê, foi a primeira na vida?
— A melhor na vida — respondeu ela.
Trazia um avental, com um bolso largo e que dava para muita coisa na bainha inferior.
Serviu-se das duas mãos com cuidado e tirou de lá um envelope. Mais pequeno do que o de
uma carta normal. Género resposta a um convite todo elaborado. E que tinha a palavra
Obrigado escrita à mão, com uma caneta de tinta permanente.
Levantou a dobra com o polegar e puxou de uma nota de cinquenta dólares. Ulysses S.
Grant ali escarrapachado.
— Cinquenta dólares — disse ela. — O máximo que já me deram foi dois dólares.
— Extraordinário — soltou Reacher.
— Isto vai fazer uma diferença enorme para mim. Nem imagina.
— Fico feliz por si — retorquiu Reacher.
— Obrigado. Pelos vistos, às vezes, os milagres acontecem mesmo.
— Sabe por que motivo esta terra se chama Mother’s Rest?
A mulher hesitou um instante.
— Está a perguntar-me ou vai dizer-me? — perguntou.
— Estou a perguntar-lhe.
— Não sei.
— E nunca ouviu nenhuma história?
— De quê?
— De mães — respondeu Reacher. — A repousarem, literalmente ou em sentido figurado.
— Não — afirmou ela. — Nunca ouvi nada disso.
— E é capaz de me deixar entrar no 215?
A mulher hesitou outra vez um instante.
— O senhor é o cavalheiro do 113? E do 106, na noite anterior? — perguntou.
— Sou.
— Só posso abrir um quarto a quem lá esteja hospedado. Lamento.
— Foi uma reserva empresarial. Trabalhamos todos juntos. Precisamos de estar sempre a
entrar e a sair. É trabalho de equipa.
— Posso ir perguntar ao gerente.
— Não se preocupe — retorquiu Reacher. — Vou eu perguntar-lhe.
Mas o zarolho não estava na receção. Claramente uma ausência repentina, já que a
secretária dava a ideia de que o trabalho tinha acabado de ser interrompido e apenas
temporariamente. Havia pastas e livros-razão abertos, canetas deixadas em cima de blocos e
uma chávena de café de plástico que parecia bastante quente.
Mas o tipo não estava ali.
Havia uma porta na parede, atrás da secretária. Um espaço privado, imaginou Reacher. De
certeza que estaria lá o sofá-cama, talvez uma kitchenette e, pelo menos, seguramente uma casa
de banho pequena. Que talvez fosse onde o tipo estava naquele preciso momento. Há coisas
que não podem esperar.
Reacher pôs-se à escuta, mas não ouviu nada.
Contornou a secretária, passando para o lado de dentro.
Deu uma vista de olhos aos livros-razão. Às pastas. E aos blocos. Coisas banais de um
motel. Contas, encomendas, listas do que fazer, percentagens.
Pôs-se novamente à escuta. Não ouviu nada.
Abriu uma gaveta. Onde o tipo guardava as chaves dos quartos. Enfiou lá a do 113 e tirou a
do 215.
Fechou a gaveta.
Voltou para o lado de fora.
Respirou fundo.
O zarolho não apareceu. Se calhar, tinha problemas digestivos. Reacher deu meia-volta e
saiu da receção. Atravessou a estrutura em forma de ferradura e subiu as escadas para o quarto
de Chang. Mostrou-lhe a chave e ela perguntou:
— Por quanto tempo a temos?
E ele respondeu:
— Pelo tempo que o Keever tiver pago. A semana inteira, provavelmente. Vou ficar com o
quarto dele. O tipo daqui não pode protestar. Já recebeu o dinheiro. E o Keever não está cá para
dar a opinião dele.
— E isso vai funcionar?
— É capaz. A não ser que arranjem um grupinho para nos fazer frente.
— E, nesse caso, ligamos para o 112. Como o Keever devia ter feito.
— O tipo do fato deixou uma gorjeta de cinquenta dólares à empregada.
— Isso é imenso dinheiro. Dá-se uma coisa dessas depois de uma semana num cruzeiro.
— Ela ficou muito contente.
— Já seria de esperar. Foi como receber uma semana de ordenado sem trabalhar.
— Faz-me sentir mal. Nunca deixo mais do que cinco.
— O tipo era rico. Foi você que o disse.
Reacher ficou calado e aproximou-se da porta de Keever. Enfiou a chave na fechadura.
Abriu a porta, recuou e disse:
— Faça favor.
Chang entrou, com Reacher logo atrás. Havia sinais de Keever espalhados por todo o
quarto. A camisa na maçaneta da porta, um imaculado estojo de viagem na casa de banho, um
casaco de linho no armário, uma mala amachucada encostada à parede e cheia de roupa. A
empregada tinha organizado tudo com grande precisão. O quarto estava limpo e arranjado.
Não havia nenhuma pasta. Nem saco para o computador, nem blocos de notas volumosos,
nem páginas escritas à mão.
Pelo menos, à vista desarmada.
Reacher virou-se para trás e fechou a porta. Talvez já tivesse revistado uma centena de
quartos de motel ao longo de uma longa e pouco glamorosa carreira e era bom nisso. Já tinha
descoberto toda a espécie de coisas em toda a espécie de lugares.
— O que era o Keever antes de entrar para o FBI? — perguntou.
— Era detetive da polícia, com um curso de Direito tirado à noite — respondeu Chang.
O que queria dizer que também já tinha revistado quartos de motel. O que queria dizer que
não teria recorrido a nenhum sítio óbvio. Conhecia os truques. Não é que o quarto oferecesse
muitas oportunidades. Não era complexo, arquitetonicamente.
Chang disse:
— Mas quem estamos a querer enganar? O funcionário já pode ter vindo cá uma dezena de
vezes. Ou ter deixado entrar outra pessoa. Temos de partir do princípio de que este quarto já
foi revistado há imenso tempo.
Reacher assentiu.
— Mas será que foi bem revistado? A questão é essa. Porque há uma coisa que sabemos. O
Keever esteve neste quarto a determinada altura e depois foi-se embora. E pode ter ido embora
de três formas. Primeira, foi-se embora para tratar de uma coisa inocente que a seguir deu para
o torto. Segunda, foi arrastado daqui para fora, a espernear e aos berros, por pessoas
desconhecidas. Ou, terceira, estava aqui sentado na cama, a pensar nas coisas, e, de um
segundo para o outro, fez uma ligação fortuita, um daqueles momentos do tipo «foda-se»,
levantou-se e desatou a correr para o telefone público da loja para ligar para o 112 sem mais
demoras. Só que nunca lá chegou.
— Nunca lá chegou? O que está a dizer?
— Estou a dizer que o tipo está desaparecido. Digam-me onde isso aconteceu e porquê e
descarto as outras teorias.
— Mas nenhuma dessas três formas de ir embora faz com que estejamos à espera de
encontrar alguma coisa no quarto dele. Alguma coisa que mais ninguém viu.
— Por acaso, acho que a terceira até faz. Pelo menos, é uma possibilidade. Imagine esse
momento. Foda-se. Está estupefacta. E, desde esse preciso instante, sob grande perigo. O perigo
é tanto que precisa de desatar a correr para o telefone. Mas vai ficar à vista de toda a gente. Não
é a mesma coisa que usar um telemóvel atrás de uma porta trancada. É andar a céu aberto. O
que passou a ser arriscado. Por isso, se calhar, sente-se tentada a deixar ficar qualquer coisa que
sirva de indicação. Escreve um bilhete e esconde-o. E depois vai telefonar.
— E não chego lá.
— É o que a matemática nos diz. Às vezes.
— Só que esse bilhete está tão bem escondido que ninguém o descobriu. Mas não está assim
tão bem escondido para nós não o descobrirmos. Se é que há sequer um bilhete. Se é que foi a
terceira das possibilidades. Se é que não foi qualquer coisa completamente diferente.
— Foi uma sequência — afirmou Reacher. — Teve de ser, certo? Foram dois momentos
«foda-se». Um mais pequeno, talvez na véspera, e a seguir ele liga-lhe a pedir reforços, e depois
o grandalhão, com ele a ir depois ligar à polícia.
— Mas a deixar primeiro um bilhete.
— Acho que é uma hipótese a considerar.

Quando Reacher revistava um quarto, começava pelo próprio quarto e não pelo que lá
estava. Quem escondia coisas e, por conseguinte, quem as procurava tinha por hábito ignorar a
estrutura física, que oferecia frequentemente variadíssimas possibilidades. Sobretudo para uma
folha de papel. Se se abrisse um aparelho de climatização debaixo de uma janela, encontrar-se-
ia, em nove de dez casos, uma bolsa de plástico expressamente concebida para guardar papéis,
muitas vezes um manual de instruções ou um cartão de garantia, no meio dos quais uma
pessoa empreendedora poderia esconder dezenas de páginas.
Ou, no caso de um sistema de aquecimento e arrefecimento de ar forçado, haveria grelhas,
fáceis de desatarraxar. As portas de correr, das que desaparecem dentro de compartimentos
adjacentes, eram boas para esconder papéis. Os tetos tinham painéis removíveis para efeitos de
manutenção. Uma porta de fole de um armário tinha um lado interior que nunca se via. E por
aí fora.
A mobília só vinha depois. Neste caso, uma cama, duas mesinhas de cabeceira, uma cadeira
acolchoada, outra de jantar, encostada à secretária, a própria secretária e uma pequena
cómoda.
Procuraram por todo o lado, mas não encontraram nada.
A seguir, Chang desabafou:
— Valeu a pena tentar, suponho. De certa forma, até estou contente por não termos
encontrado nada. Faz com que a coisa seja menos definitiva. Quero que ele esteja bem.
Reacher respondeu:
— E eu quero que ele esteja em Las Vegas com uma miúda de dezanove anos. Mas, até
recebermos um postal, temos de presumir que não está. Só para nos mantermos alerta.
— O tipo já foi polícia e agente especial. Qual é a distância até à loja? Que podia ter
acontecido?
— Fica a uns sessenta metros. Depois do restaurante. Podia ter acontecido uma série de
coisas.
Chang ficou calada. Reacher tinha as mãos sujas. De ter andado a arrastar a mobília e a
tocar em superfícies que não costumavam ser limpas com regularidade. Entrou na casa de
banho e abriu a torneira para molhar as mãos. O sabonete era novo e ainda estava embrulhado
em papel de seda. Azul-claro, todo pregueado e com um rótulo dourado. Não era o pior sítio
que Reacher já tinha visto. Arrancou o papel e amassou-o numa bola. O caixote do lixo estava
debaixo do toucador. E o toucador era fundo. Era preciso fazer uma espécie de lançamento
com a mão em baixo, como quem enfia qualquer coisa numa ranhura. E com a mão esquerda.
Que foi o que ele fez. A seguir, lavou as mãos, com o novo sabonete ao início duro, mas a
melhorar depois. Secou as mãos numa toalha lavada e foi então que a consciência o obrigou a
baixar-se para confirmar se a bolinha de papel de seda mastigado tinha acertado mesmo no
alvo.
Não tinha.
O caixote do lixo era redondo, como um pequeno cilindro, mas estava entalado no canto
esquerdo, o que significava que havia um espaço pouco fundo atrás dele. O tipo de espaço que
era ignorado, sobretudo por empregadas com esfregonas. Gorjetas de dois dólares não
chegavam para isso. Era o tipo de espaço que acabava por se transformar no cemitério das
coisas mal atiradas.
Estavam lá três.
Uma era a bolinha dele. Percebeu isso por estar húmida. Outra era uma versão mais antiga
da mesma coisa. Sequíssima. Um sabonete anterior.
E a terceira era um papel com cotão, como lixo saído de um bolso.
DOZE

O papel era um quadrado branco e duro, com perto de dez centímetros de lado e uma
borda autocolante. Uma folha de um bloco de notas ou de Post-it. Reacher já tinha visto coisas
dessas. Tinham-na dobrado em quatro e andado um mês ou mais dentro de um bolso. As
dobras encontravam-se gastas, os cantos tinham-se deteriorado e a superfície estava coçada.
Reacher calculou que tivessem atirado aquilo para dentro do caixote, talvez num piparote com
dois dedos, como um truque de cartas, mas com muita força, parando em plena terra de
ninguém.
Abriu a folha e alisou-a bem. Aquilo a que se poderia chamar o lado de fora estava em
branco. Só tinha uma camada de sujidade e umas ténues manchas aniladas, provavelmente de
ganga. Do bolso de trás de calças de ganga azuis, pensou.
Virou o papel ao contrário.
Aquilo a que se poderia chamar o lado de dentro tinha qualquer coisa escrita. A
esferográfica, um apontamento apressado. Gatafunhos, no fundo. Estava lá um número de
telefone e as palavras 200 mortes.
— É a letra do Keever? — perguntou Reacher.
E Chang respondeu:
— Não sei. Nunca vi a letra do Keever. E não é lá grande amostra. Por isso, não podemos
ter a certeza. Pense como um advogado de defesa. Não há nada que prove de onde é que isto
veio. Qualquer pessoa pode ter deixado cá isto. Em qualquer altura.
— Claro — retorquiu Reacher. — Mas imagine que é do Keever. O que seria?
— O que seria? Um apontamento, provavelmente feito durante um telefonema. No
escritório dele. Melhor, no quarto de visitas. Talvez fosse um contacto inicial ou uma chamada
posterior. A parada estava alta, com duzentas mortes e um número de telefone, que tanto pode
ser o do cliente como o de uma fonte de corroboração independente. Ou de informações
adicionais.
— E porque ia ele atirar o papel para o lixo?
— Porque já tinha escrito o que lá estava de forma mais desenvolvida e, por isso, já não
precisava dele. Se calhar, estava aqui a olhar-se ao espelho, a ver como estava, como as pessoas
fazem. Se calhar, deitou fora o Kleenex velho e pegou noutro, ao mesmo tempo que, se calhar,
foi ver o que tinha nos outros bolsos. Se calhar, já não usava aquelas calças há algum tempo.
O código de área do número de telefone era o 323.
— Los Angeles, certo? — atirou Reacher.
Chang assentiu e retorquiu:
— É de um telemóvel ou de um número fixo.
— Duzentas mortes. Já estaríamos a falar de perigo a sério.
— Se isto for do Keever. E se tiver que ver com o caso em questão. Pode ser de qualquer
pessoa e ter que ver com tudo e mais alguma coisa.
— E quem mais ia passar por aqui a pensar em duzentas mortes?
— E quem disse que foi isso que aconteceu? Mesmo que seja do Keever, pode ser de um
caso antigo. Ou de outro caso. Ou podia ser de um advogado especialista em responsabilidade
civil à procura de mais um processo para instaurar. E como podia haver sequer duzentas
mortes aqui? Isso é vinte por cento da população. Alguém teria reparado. Não era preciso um
investigador privado.
— Vamos ligar para o número — propôs Reacher — e ver quem atende.

Reacher fechou o quarto à chave, desceram as escadas de metal e, a uns trinta metros de
distância, o zarolho saiu da receção e apressou-se a ir ter com eles, esbracejando e gesticulando.
Quando lá chegou, disse:
— O senhor desculpe, mas o quarto 215 não está registado como seu.
E Reacher respondeu:
— Então corrija o registo. O quarto foi pago por um colega nosso e vou usá-lo até ele voltar.
— Não pode fazer isso.
— Ai isso é que posso.
— E como arranjou a chave?
— Encontrei-a debaixo de um arbusto. Foi uma bela sorte.
— Isto não é permitido.
— Então chame a polícia — atirou Reacher.
O tipo ficou calado. Limitou-se a bufar e a soprar por uns momentos e depois deu meia-
volta e foi-se embora, sem dizer mais uma palavra.
— E se ele chamar mesmo a polícia? — perguntou Chang.
— Não chama — retorquiu Reacher. — Teria feito questão de nos dizer que ia fazer isso,
sim senhor, naquele preciso momento. Além do mais, a polícia deve estar a uns oitenta
quilómetros daqui. Ou a cento e sessenta. Não viria cá ninguém por causa de um quarto que já
foi pago. E não só, se esta gente anda a esconder o que quer que seja, a última coisa que vai
fazer é chamar a polícia.
— Então que vai ele fazer?
— De certeza que vamos descobrir.
Foram para a rua larga e passaram à frente do restaurante, a caminho da loja. O sol estava
no céu e a terra, em silêncio. Nenhuma atividade e nenhum grande ajuntamento. Estava uma
carrinha de caixa aberta cinquenta metros mais à frente, a virar para uma rua secundária. E um
miúdo a atirar uma bola de ténis contra a parede e a bater-lhe com um pau depois de ela
ressaltar. Como se estivesse a treinar basebol. Era bastante bom. Se calhar, a fotografia dele
devia aparecer numa revista. Havia um camião da FedEx a atravessar os carris no antigo
caminho, em direção à terra.
A loja era um típico edifício rural, uma simples estrutura de telhado plano no final da rua,
com uma elegante frontaria com empenas e tábuas sobrepostas, pintadas de um vermelho baço.
Havia um letreiro, pintado com letras de circo, em tons dourados: Mother’s Rest Dry Goods.
Tinha uma única porta e uma única montra, que era pequena e servia apenas para deixar entrar
luz e não para expor produtos apetecíveis. O vidro estava pejado de autocolantes, todos com
nomes que Reacher não conhecia. Nomes de marcas, calculou, de coisas rurais obscuras mas
vitais.
Lá dentro, havia um vestíbulo exíguo, com um telefone público instalado na parede. Sem
cobertura acústica. Apenas o instrumento propriamente dito, todo de metal, incluindo o fio.
Chang introduziu umas moedas na ranhura e marcou o número. Ficou a ouvir durante um
bocado e, a seguir, desligou sem falar.
Explicou:
— Mensagens de voz. O anúncio-padrão da empresa de telecomunicações. Não era uma
coisa personalizada. Não tinha nome. Parecia ser de um telemóvel.
— Devia ter deixado mensagem — disse Reacher.
— Não valia a pena. Não consigo receber chamadas aqui.
— Experimente o Keever outra vez. Só para ver.
— Não quero. Não quero ouvi-lo a não atender.
— Das duas, uma: ele está bem ou então não está. Telefonar-lhe ou não não muda nada.
Ela serviu-se do telemóvel para procurar o número, mas utilizou a tecnologia mais antiga
para o marcar. Tal como já tinha acontecido, ficou a ouvir durante um bocado e depois
desligou sem falar. Experimentou um segundo número. O mesmo resultado.
Abanou a cabeça.
— Ninguém atende — disse.
— Devíamos ir a Oklahoma City — retorquiu Reacher.
TREZE

O comboio teria sido mais rápido, mas só saía dali a oito horas, por isso, foram no carro
alugado de Chang. Era um Ford SUV verde. Por dentro, era banal, não tinha nada de
identificativo e cheirava imenso a champô para estofos. Passado um minuto, já tinham saído da
terra, seguindo pelo antigo caminho para as caravanas e virando depois para sul, oeste e outra
vez para sul, atravessando o gigantesco tabuleiro de intermináveis campos dourados, até
descobrirem uma estrada de condado que anunciava um acesso à autoestrada a trezentos e
vinte quilómetros de distância.
Chang ia a guiar, de t-shirt. Reacher tinha puxado o banco do passageiro para trás e
observava-a. Segurava o volante com uma mão por baixo e tinha a outra no colo. Os olhos
moviam-se constantemente da estrada em frente para os retrovisores e de novo para a estrada.
Às vezes, esboçava por uns instantes um meio sorriso e depois fazia uma espécie de careta,
enquanto lhe iam passando coisas pela cabeça. Tinha os ombros ligeiramente arqueados, como
que encolhidos. O que Reacher pressupôs que quisesse dizer que ela queria ser mais pequena.
Uma ambição que ele não podia apoiar. Parecia-lhe ser do tamanho perfeito. Tinha braços e
pernas compridos e era forte, mas nos sítios certos.
Acho que sou boa pessoa, mas sei que não sou eu a razão.
Ficou calado.
Ela voltou a olhar para o retrovisor e disse:
— Está uma carrinha de caixa aberta atrás de nós.
— Muito perto? — perguntou ele.
— A uns cem metros.
— E há quanto tempo é que aí está?
— Há um quilómetro ou dois.
— É uma estrada pública.
— Apareceu muito depressa, mas agora está a deixar-se ficar para trás. Como se estivesse à
nossa procura e nos tivesse encontrado.
— É só uma?
— Não vejo mais.
— Não é lá grande grupinho.
— Dois homens, acho eu. Condutor e passageiro.
Reacher não se queria virar para espreitar. Não queria que nenhum dos tipos visse, por um
ténue instante, uma cara preocupada a aparecer no retrovisor. Por isso, baixou-se um
bocadinho e mexeu-se para o lado até conseguir ver a imagem no retrovisor do lado de Chang.
Uma carrinha de caixa aberta uns cem metros atrás deles. Uma Ford, calculou. Uma máquina a
sério, grande e ostensiva, a marcar passo. De um vermelho baço, como a loja. Estavam dois
tipos lá dentro, lado a lado, mas longe um do outro, devido à largura extravagante do veículo.
Reacher endireitou-se novamente e espreitou pelo para-brisas. Trigo à direita, trigo à
esquerda, e a estrada sempre em frente até deixar de se ver sob o horizonte longínquo. As
bermas tinham gravilha para ajudar a escoar a água, mas não havia valetas. Nem curvas. Os
campos eram infinitos. Quase literalmente. Talvez o mesmo campo se prolongasse até ao
acesso à autoestrada. Trezentos e vinte quilómetros. Era possível.
Não havia mais nenhum carro à vista.
— Treinou coisas destas em Quantico? — perguntou ele.
E ela respondeu:
— Até certo ponto. Mas há muito tempo. E num contexto diferente. Maioritariamente
urbano. Com semáforos, entroncamentos e ruas de sentido único. Aqui não temos muitas
opções. Treinou isto?
— Não, nunca fui nada de jeito a guiar.
— Devíamos deixar que sejam eles a tomar a iniciativa?
— Primeiro, temos de perceber o que os mandaram fazer. Se for só vigilância, podemos
levá-los até Oklahoma City e despistamo-los lá. As únicas lutas que se ganham
verdadeiramente são as que não travamos.
— E se não for só vigilância?
— Nesse caso, vai ser como no cinema. Vão bater-nos por trás.
— Para nos assustar? Ou pior do que isso?
— Isso seria um passo muito grande por parte deles.
— Vão dar a ideia de que foi um acidente. Uma turista adormeceu na estrada comprida e
sempre a direito e bateu com o carro. De certeza que isso está sempre a acontecer.
Reacher não disse nada.
— Não conseguimos andar mais depressa do que eles — afirmou Chang. — Com esta coisa,
não.
— Então deixe-os aproximarem-se, mude para a outra faixa e depois trave a fundo. E
passam eles para a frente.
— Quando?
— Não faço ideia — respondeu Reacher. — Chumbei na condução defensiva. Nem aguentei
um dia. Obrigaram-me a passar noutra coisa para poder ficar apto. Quando eles ficarem
grandes no retrovisor, suponho eu.
Chang continuou a avançar. Já com as duas mãos no volante. Um minuto. Dois.
— Quero ver do que eles são capazes. Temos de os forçar a agir — disse ela.
— Tem a certeza?
— Eles é que estão a jogar em casa. Precisamos de os espevitar.
— Está bem. Acelere um bocadinho.
Ela carregou no acelerador e ele voltou-se para olhar pelo vidro traseiro. Uma cara
preocupada, a aparecer por um ténue instante.
— Mais depressa — disse ele.
O pequeno Ford verde acelerou, quase duzentos metros, e, a seguir, a carrinha reagiu, com
a grelha a subir, investindo na direção deles.
— Faça-me uma contagem decrescente e em tempo real da distância. Não consigo calcular
pelos retrovisores — disse Chang.
— Estão a uns oitenta metros — retorquiu Reacher. — O que nos dá à volta de oito
segundos.
— Menos, porque eu vou abrandar. Esta coisa ainda é capaz de se virar.
— Sessenta metros.
— Okay, não vem ninguém à frente.
— Nem atrás. Somos só os dois na estrada. Quarenta metros.
— Vou abrandar mais um bocado. Não podemos fazer isto a cem à hora.
— Vinte metros.
— Faço a coisa aos dez metros.
— Okay, agora, faça isso agora.
E assim foi. Guinou para a esquerda e travou a fundo, com a carrinha a não lhe bater por
um triz no canto traseiro direito e a seguir em grande velocidade, só travando a fundo muito
mais tarde. Enquanto isso, o pequeno Ford fartou-se de abanar e quase tombar, mas não
demorou muito a parar por completo, em segurança, de regresso à faixa correta, cem metros
atrás da carrinha, as posições relativas e ambos totalmente invertidos passados poucos e
ruidosos segundos.
— É claro que, depois disto, se impõe a pergunta bastante óbvia: e agora? Fazemos inversão
de marcha e eles imitam-nos. E, a seguir, estão outra vez a perseguir-nos — disse Chang.
— Vá direito a eles — respondeu Reacher.
— Para batermos?
— Há sempre essa opção.
Mas a carrinha antecipou-se. Fez inversão de marcha e recomeçou a aproximar-se deles,
mas muito devagar, sem pressa nenhuma, quase em ponto-morto. O que, para Reacher, era
uma mensagem. Como uma bandeira branca.
— Eles querem falar — afirmou. — Querem fazer isto cara a cara.
A carrinha parou dez metros mais à frente e ambas as portas se abriram. Saíram de lá dois
homens. Sujeitos corpulentos, tanto um como o outro com mais de um metro e oitenta e
noventa quilos, trinta e tal anos, óculos de sol espelhados e casacos de algodão finos por cima
de t-shirts. Pareciam cautelosos, mas confiantes. Como se soubessem o que estavam a fazer.
Como se estivessem a jogar em casa.
— Devem estar armados. Senão, não iam estar a fazer isto assim — disse Chang.
— É possível — retorquiu Reacher.
Os dois homens posicionaram-se a meio da terra de ninguém entre os dois veículos. Um
ficou à esquerda da linha central e o outro à direita. Estavam descontraídos, simplesmente à
espera, com as mãos caídas ao longo do corpo.
— Atropele-os — atirou Reacher.
— Não posso fazer isso.
— Okay, então acho que vou ver o que eles querem. Se houver algum problema, siga para
Oklahoma City sem mim e a melhor das sortes.
— Não, não saia. É demasiado perigoso.
— Para mim ou para eles? São só uns campónios.
— Temos de partir do princípio de que têm pistolas.
— Mas só momentaneamente.
— Você é louco.
— Se calhar — respondeu Reacher. — Mas nunca se esqueça de que foi o Tio Sam que me
fez ficar assim. Passei todas as matérias, menos condução.
Abriu a porta e saiu do carro.
CATORZE

Como a maior parte dos carros, o pequeno Ford tinha portas que abriam para a frente e
essas portas paravam a cerca de dois terços de se abrirem por completo, pelo que sair do carro
também implicava recuar, o que melhorava o ângulo de Reacher. Ficava com o bloco do motor
entre ele e os dois tipos. Se puxassem das pistolas de imediato e desatassem logo a disparar, ele
podia baixar-se e esconder-se por trás de um escudo à prova de bala. Se tivessem pistolas. O
que ainda estava por provar. E mesmo que tivessem, Reacher não conseguia imaginar
nenhuma razão para desatarem logo a disparar. E, fosse como fosse, esse momento já tinha
passado. Podiam ter alvejado o para-brisas. Isso, sim, teria sido desatar logo a disparar. A não
ser que quisessem preservar o carro para efeitos de um acidente convincente. Seria difícil
explicar buracos de bala no vidro, se a turista tinha adormecido simplesmente ao volante. E,
nesse caso, qual seria a explicação para os buracos de bala no passageiro morto? E teriam de
voltar a pôr o corpo dele no carro. O que não seria fácil. Seria bastante peso morto.
Calculou que não fossem disparar.
Se tivessem pistolas.
— Rapazes, têm trinta segundos, por isso digam lá o que têm a dizer — atirou ele.
O tipo da direita cruzou os braços à frente do peito, bem alto, como um segurança à porta
de uma discoteca. Para dar apoio, imaginou Reacher, ao outro, que supostamente era o porta-
voz, e que disse:
— Tem que ver com o motel.
Continuava com as mãos caídas ao lado do corpo.
— Que tem o motel? — ripostou Reacher.
— O gerente é nosso tio. É um pobre de um velho deficiente e andas a lixar-lhe a vida.
Andas a violar uma série de leis.
Continuava com as mãos caídas. Reacher saiu de trás da porta e avançou para junto do farol
direito do Ford. Sentia o calor que vinha do motor.
— E que leis ando eu a violar? — perguntou
— Estás no quarto de outro hóspede.
— Que, neste momento, não se está a servir dele.
— Não interessa.
Continuava com as mãos caídas. Reacher deu um passo e depois outro, até ficar no
enfiamento do farol esquerdo do Ford, mas muito mais à frente, numa diagonal. O que o
punha a três metros dos dois homens, num triângulo exíguo, em plena terra de ninguém, com
o tipo dos braços cruzados num vértice, o porta-voz noutro e Reacher no mais afastado.
O da esquerda disse:
— Por isso, viemos cá buscar a chave.
Reacher deu mais um passo. Agora já só estava a dois metros. Agora já formavam um
grupinho íntimo. Não havia mais nenhum carro à vista. O trigo movia-se lentamente, em
ondas, como um gigantesco mar dourado.
— Devolvo a chave quando sair do motel — respondeu Reacher.
O homem da esquerda contrapôs:
— Já saíste do motel. A partir deste preciso momento. E não te vão dar nenhum quarto se lá
voltares. A gerência reserva-se o direito de admissão.
Reacher ficou calado.
O homem prosseguiu:
— E não há mais nenhum sítio em Mother’s Rest. O do meu tio é o único da terra. Estás a
perceber a mensagem?
— E porque se chama Mother’s Rest? — retorquiu Reacher.
— Não sei.
— E a que se deve a mensagem? Só ao vosso tio ou à outra coisa?
— Qual outra coisa?
— Uma coisa de que eu ouvi falar.
— Não há outra coisa nenhuma.
— É bom saber — respondeu Reacher. — Digam ao vosso tio que ninguém violou lei
nenhuma. Digam-lhe que lhe pagaram o quarto. Digam-lhe que nos vemos mais tarde.
O da direita descruzou os braços.
E o da esquerda perguntou:
— Vais dar-nos problemas?
— Já lhes estou a dar problemas — respondeu Reacher. — A questão aqui é o que vão fazer
em relação a isso.
Seguiu-se uma pausa, escaldante e solitária no meio de nenhures, e depois os dois homens
responderam afastando os casacos para o lado, ao mesmo tempo e de forma descontraída,
deixando ver assim ambos pistolas semiautomáticas, dentro de coldres-panqueca, presos ao
cinto.
O que foi um erro, e Reacher podia ter-lhes dito porquê. Podia ter-lhes pregado um sermão
comprido e impaciente, explicando-lhes que tinham selado o destino deles ao forçarem
demasiado cedo uma batalha decisiva e que tinham sabotado uma estratégia mais vasta ao
passarem a fase final para o começo. Havia que dar resposta às ameaças, o que queria dizer que
iria ter de lhes tirar as pistolas, já que os espiões na linha da frente tinham de regressar
espancados e os habitantes de Mother’s Rest não podiam duvidar que, da próxima vez que
entrasse na terra deles, Reacher viria armado. Queria dizer-lhes que a culpa era deles. Queria
dizer-lhes que tinham sido eles a provocar aquilo.
Mas não lhes disse nada. Preferiu enfiar a mão debaixo do casaco, agarrando apenas o ar,
mas os dois tipos não o sabiam e, como bons atiradores de campos de tiro que eram, lançaram-
se às pistolas e assumiram posições de disparo bem definidas, tudo ao mesmo tempo, ficando
assim com os pés afastados um metro para efeitos de estabilidade, o que permitiu que Reacher
avançasse e desse um pontapé em cheio na virilha do tipo da esquerda, antes ainda de a pistola
dele estar a meio do coldre, o que quis dizer que o da direita teve tempo para sacar a dele,
embora de nada lhe tenha valido, pois o que lhe aconteceu a seguir foi a chegada do cotovelo de
Reacher, acertando-lhe na maçã do rosto, num movimento curvo para trás, partindo-lha e
dando origem a um apagão geral.
Reacher recuou e, a seguir, foi espreitar o primeiro homem, que se encontrava absorto,
como acontecia à maioria dos tipos a quem tinha pontapeado na virilha. As pistolas eram
Smith & Wesson Sigma .40, que eram modernas, em parte de polímero, e caras. Encontravam-
se ambas carregadas. Cada um deles tinha uma carteira no bolso da anca, com cerca de cem
dólares entre os dois, com os quais Reacher ficou a título de despojos de guerra. Segundo as
cartas de condução, tinham como apelido Moynahan, o que queria dizer que podiam de facto
ser irmãos ou primos com um tio comum. Um chamava-se John e o outro Steven.
Reacher levou as pistolas ao voltar para o pequeno Ford verde. A janela de Chang tinha o
vidro descido. Enfiou uma pistola no bolso e entregou a outra a Chang. Que pegou nela um
pouco relutante.
— Ouviu alguma coisa do que eles disseram? — perguntou ele.
— Tudo — respondeu Chang.
— Conclusões?
— É possível que estivessem a dizer a verdade. Se calhar, o único problema deles era o
motel. Mas, por outro lado, também é possível que não fosse.
— Eu voto no não — afirmou Reacher. — O quarto já foi pago. Porque haviam de ficar tão
irritados?
— Você podia ter morrido.
Reacher assentiu.
— Imensas vezes — disse. — Mas todas há muito tempo. Hoje, não. Por causa destes tipos,
não.
— Você é doido.
— Ou competente.
— Então e agora?
Reacher olhou para trás. O homem da direita estava prestes a recuperar os sentidos e passar
a sofrer de um traumatismo. O da esquerda estava a contorcer-se sem grande convicção e a
apalpar tudo o que ficava entre a caixa torácica e os joelhos.
— Dê-lhes um tiro se se mexerem — ordenou Reacher.
Avançou dez metros até à carrinha e entrou nela. No porta-luvas, havia um livrete e um
seguro em nome de Steven Moynahan. Não havia mais nada de interessante na cabina.
Endireitou-se ao volante e meteu a primeira. Levou a carrinha para a berma e estacionou em
cima da gravilha, com as rodas da frente fora da faixa de rodagem, as da direita bem no meio
do trigo e a parte da frente virada para a terra. Desligou o motor e tirou a chave.
Arrastou os homens, à vez, para a sombra à frente do para-choques dianteiro e encostou-os,
bem direitos, ao cromado. Já estavam os dois acordados. Disse-lhes «Agora vejam com
atenção» e, quando já estavam a olhar para ele, pegou na chave, pousou-a na palma da mão e
atirou-a, sem levantar a mão, para o meio do campo. Uns doze ou quinze metros. Demorariam
uma hora a encontrá-la, mesmo na melhor das situações, mesmo depois de já se encontrarem
operacionais. O que, só por si, poderia significar mais uma hora.
A seguir, voltou para trás e entrou no Ford, e Chang arrancou. De vez em quando, Reacher
virava-se no banco e espreitava pelo vidro traseiro. A carrinha, estacionada, manteve-se visível
durante bastante tempo, encolhendo até um pontinho minúsculo e baço lá muito ao longe,
para depois deixar de se ver por completo sob o horizonte a norte.

Foram precisas praticamente mais três horas para chegarem à autoestrada e, a seguir, os
marcos anunciaram outras duas até Oklahoma City. A viagem correu sem incidentes, até já
terem passado noventa minutos, altura em que se começou a ouvir toda uma série de repiques
e apitos a sair do telemóvel que Chang tinha no bolso. Mensagens de voz, mensagens de texto e
de correio eletrónico, todas pacientemente guardadas e a descarregarem naquele momento.
O telemóvel tinha outra vez rede.
QUINZE

Chang pôs-se a guiar só com uma mão e a mexer no telemóvel, mas Reacher disse-lhe:
— Devíamos encostar. Antes que a turista tenha mesmo um acidente. Devíamos ir beber
um café.
— Não percebo como bebe tanto café — respondeu Chang.
— É a lei da gravidade — retorquiu Reacher. — Se inclinarmos a coisa, aquilo sai. E não
podemos deixar de o beber.
— Deve andar com o coração sempre aos saltos.
— É melhor do que a alternativa.
Um quilómetro e meio depois, viram uma tabuleta e saíram da autoestrada em direção a
uma corriqueira série linear de instalações género caixotes, incluindo uma estação de serviço,
casas de banho e um edifício de pedra, simples e antiquado, ao estilo federal, algo desfigurado
por letreiros luminosos incandescentes a publicitarem cadeias modernas de café e comida.
Estacionaram, saíram do carro e esticaram-se. A tarde ia a meio e continuava calor. Foram à
casa de banho e encontraram-se no café. Reacher pediu a habitual chávena de café simples e
quente e Chang, café gelado com leite. Arranjaram uma mesa num canto e Chang pousou o
telemóvel. Era uma coisa fina, com ecrã tátil, mais ou menos do tamanho de um livro de bolso.
Digitou, premiu e percorreu o ecrã na vertical, passando primeiro em revista as opções das
chamadas, depois as mensagens de texto e, por fim, o correio eletrónico.
— Nada do Keever — disse.
— Experimente ligar-lhe outra vez.
— Sabemos os dois que ele não vai atender.
— Já aconteceram coisas mais estranhas. Uma vez, tínhamos três departamentos da polícia
e a Guarda Nacional à procura de um tipo e, de repente, o gajo aparece, acabadinho de chegar
das férias que tinha ido passar fora do estado.
— Nós sabemos que o Keever não está de férias.
— Experimente à mesma.
E ela assim fez, após uma longa e relutante pausa, ligando-lhe primeiro para casa e, a seguir,
para o telemóvel.
Ninguém atendeu em nenhum dos casos.
— Experimente outra vez aquele número de Los Angeles. Do papel com as duzentas
mortes.
Chang assentiu, desejosa de avançar. Marcou o número e encostou o telemóvel ao ouvido.
Dessa vez, atenderam a chamada.
E ela perguntou, um bocadinho surpreendida:
— Boa tarde. O senhor pode dizer-me com quem estou a falar?
Pergunta essa que deve ter sido respondida da maneira óbvia, tal como Reacher tinha feito,
com uma questão prévia: Quem está a perguntar?
Ela disse:
— Chamo-me Michelle Chang. Sou investigadora privada e trabalho de Seattle. Já pertenci
ao FBI. Atualmente, trabalho com um homem chamado Keever. Julgo que ele lhe poderá ter
telefonado. Encontrei este número no quarto de motel dele.
Reacher não fazia ideia do que teriam perguntado a seguir, lá bem longe, em Los Angeles,
mas não tardou muito a perceber que deviam ter perguntado como se escrevia Keever, já que
Chang disse:
— K-e-e-v-e-r.
Uma longa pausa e depois uma resposta, quase de certeza negativa, já que Chang disse:
— Tem a certeza?
E seguiu-se uma longa conversa, maioritariamente unilateral, com a tendência a ser
declaradamente o tipo de Los Angeles a fazer as despesas da mesma, coisa que Reacher não
podia ouvir, ao mesmo tempo que as expressões faciais de Chang possibilitavam um milhar de
hipóteses concorrentes, pelo que não obteve dela qualquer verdadeira orientação. Ficou com a
sensação de que o tipo trabalhava a fundo numa coisa a seguir à outra, episodicamente. E com
grande minúcia. Talvez fosse ator. Ou trabalhasse em cinema. O contexto era nebuloso.
Reacher acabou por desistir de tentar construir uma narrativa plausível e limitou-se a aguardar.
Chang despediu-se por fim, desligando a chamada, respirando fundo, dando um gole no
café gelado e explicando:
— O homem chama-se Westwood. É jornalista do LA Times. Melhor dizendo, é o editor de
Ciência. Não é que seja uma secção gigantesca, segundo ele. Por norma, escreve artigos
aprofundados para a revista de domingo. Diz que o Keever nunca lhe ligou. Tem por hábito
apontar, de forma breve e imediata, todas as chamadas que recebe, numa base de dados
protegida, por ser o género de coisa que, nos dias que correm, os jornalistas têm de fazer,
segundo ele, para o caso de o jornal ser processado. Ou para o caso de quererem processar eles
o jornal. Mas o Keever não aparece na base de dados. Portanto, não lhe ligou.
— E este Westwood não é de certeza o cliente, pois não?
Chang abanou a cabeça.
— Se fosse, tê-lo-ia dito. Disse-lhe que era colega do Keever.
— Quando descobrimos o número, você disse que seria do cliente, de uma fonte de
corroboração independente ou de informações adicionais. Ora, se não se trata do cliente, é uma
das outras duas opções. Se calhar, o Keever ia telefonar-lhe a seguir. Depois de lhe ter
telefonado a si. Ou, se calhar, a sua função era essa. Servir de intermediária, com o Westwood.
A propósito de seja o que for.
— Temos de encarar a probabilidade de o número não ter nada que ver com o Keever. Esse
apontamento já podia estar há meses naquele quarto.
— E em que está o Westwood a trabalhar agora?
— Num artigo extenso sobre a origem do trigo. Explica que o trigo inicial foi cruzado e se
transformou no trigo moderno. Parece-me uma coisa lisonjeadora. Do género, já o
modificámos geneticamente, por isso, vamos lá continuar a fazer isso.
— E isso será importante? É que acabámos de ver imenso trigo.
— Que chega para uma vida inteira. Mas o meu voto vai no sentido do dos advogados de
defesa. Aquele apontamento já podia estar há um ano no quarto. Ou há dois. Qualquer um de
cinquenta hóspedes o pode ter largado ali. Ou de uma centena.
— E o número do Westwood será uma coisa muito privada? — perguntou Reacher.
— Depende de há quanto tempo o mudou. Se for antigo, anda por aí. Hoje em dia, é assim.
Sobretudo para os jornalistas. Está algures na Internet, basta procurarmos bem. E, por
experiência própria, é uma coisa de que muitos jornalistas gostam. Dá-lhes uma rede.
Reacher bebeu o resto do café e não disse nada.
— Em que está a pensar? — perguntou Chang.
— Estou a pensar que os advogados de defesa ganhariam o caso. Mas, no júri, haveria quem
não fosse dormir descansado. Porque vão achar que se pode contar uma história alternativa e
igualmente convincente, às quatro da manhã. Começa com a primeira impressão que você teve,
de um tipo qualquer nervosinho, com dinheiro vivo ou cheques, numa busca lunática, por o
trigo ir matar duzentas pessoas. Ou coisa do género. E, para o provar, fale com este jornalista,
que também sabe. E, o que é crucial, aqui está o número dele. O que nos prova uma coisa sobre
o tipo. Saca o número da Internet. É um tipo desses. E acho que há uma ligação àquele
apontamento. A coisa inteira parece-me consistente. Estamos a falar de uma obsessão de um
tipo esquisito e solitário, que não pressupõe nenhuma ameaça, até de repente o fazer.
— Devíamos voltar para a estrada — disse Chang.
DEZASSEIS

O pequeno Ford verde tinha um GPS no painel de instrumentos e o aparelho localizou a


casa de Keever sem problemas, numa urbanização suburbana degradada, a norte de Oklahoma
City propriamente dita. Era uma casa estilo rancho, com um andar, num beco sem saída. O
pátio da frente tinha uma árvore jovem, a sofrer por falta de água. Do lado direito do terreno,
havia um caminho de acesso, seguido de uma garagem para um só carro. O telhado era em
telha de asfalto castanha e o revestimento exterior, de vinil amarelo. Não era uma obra-prima
arquitetónica, mas o sol do final da tarde tornava-a agradável, de uma maneira muito própria.
Parecia de facto uma casa. Reacher pôs-se a imaginar um tipo grande a entrar, a descalçar-se e
a deixar-se cair numa poltrona gasta, ligando talvez a televisão para ver a bola.
Chang estacionou no caminho de acesso. Saíram ambos do carro e dirigiram-se para a
porta. Havia uma campainha e uma aldraba em bronze e experimentaram as duas, sem sucesso.
A porta estava trancada. E a aldraba não se mexia nada. Pelas janelas, via-se um interior escuro.
— Ele tem família? — perguntou Reacher.
— É divorciado — respondeu Chang. — Como tantos.
— E não é do género de deixar a chave debaixo de um vaso.
— E de certeza que tem um alarme instalado.
— Viemos de muito longe.
— Eu sei — retorquiu Chang. — Vamos dar uma vista de olhos às traseiras. Com o tempo
como está, talvez ele tenha deixado uma janela aberta. Nem que seja uma nesguinha.
O beco era sossegado. Havia apenas sete casas parecidas, três de cada lado, mais uma
mesmo na ponta. Não havia veículos nem peões. Não havia olhos nem interesse. Não era
propriamente um sítio com vizinhos preocupados em vigiar o bairro. A sensação era de
transitoriedade, mas em câmara lenta, como se as sete casas fossem ocupadas exclusivamente
por tipos divorciados a tirarem um ano ou dois para reordenarem a vida.
O pátio das traseiras de Keever tinha uma vedação à altura da cabeça, com tábuas
acinzentadas do tempo. Havia um pedaço de relva, bem aparado, e um alpendre com uma
cadeira de verga. A parede de trás da casa tinha o mesmo revestimento em amarelo. Havia
quatro janelas e uma porta. As janelas estavam todas fechadas. A porta era de madeira maciça
em baixo e tinha nove janelinhas em cima. Como numa quinta. A porta dava para um vestíbulo
exíguo, antes da cozinha, onde as pessoas podiam tirar a roupa enlameada.
O terreno era plano, as casas, baixas, e a vedação, alta. Ninguém os podia ver.
— Estou a tentar calcular o tempo de resposta médio da polícia num bairro destes. Caso ele
tenha um alarme — disse Chang.
— Provavelmente, algures entre os vinte minutos e nunca — respondeu Reacher.
— Então podíamos permitir-nos dez minutos. Não podíamos? Entramos e saímos, rápidos
e concentrados. Quer dizer, nem sequer estamos a falar de um crime. Eu e ele trabalhamos
juntos. Ele não ia apresentar queixa. Sobretudo nestas circunstâncias.
— Não sabemos do que andamos à procura.
— Papéis soltos, blocos pautados, cadernos de apontamentos, blocos de rascunhos,
qualquer sítio onde ele possa ter escrevinhado uma nota. Agarramos em tudo e passamos-lhe
revista quando já cá não estivermos.
— Okay — retorquiu Reacher. — Vamos ter de partir um vidro.
— Qual?
— Gosto da porta. A vidraçazinha georgiana mais perto da aldraba. E assim já podemos
entrar.
— Força — soltou Chang.
Das nove, a vidraça era a que estava no canto inferior esquerdo, um bocadinho baixo para o
cotovelo de Reacher, mas exequível, se ele se agachasse e o espetasse. A seguir, seria uma
questão de destruir os cacos que restassem, enfiar o braço até ao ombro e depois fletir o
cotovelo e avançar com a mão para a aldraba de dentro. Mexeu ao de leve na aldraba de fora,
para testar o peso do mecanismo e perceber se precisava de fazer muita força.
A porta estava aberta.
Deslocou-se para dentro sem problemas, sobre um tapete de boas-vindas à entrada do
vestíbulo. Havia um dispositivo de alarme na ombreira. Uma bolinha branca com um fio
coberto por uma camada de tinta. Reacher ficou à espera de ouvir um sinal de aviso. Trinta
segundos de apitos, por norma, para que o proprietário pudesse chegar ao painel e desativar o
sistema.
Não ouviu som nenhum.
Nenhum apito.
— Passa-se qualquer coisa aqui — afirmou Chang.
Reacher enfiou a mão no bolso e apertou-a à volta da Smith & Wesson. Cão de armador
automático e sem mecanismo de segurança manual. Pronta a usar. Apontar e disparar. Passou
do vestíbulo para a cozinha. Onde não estava ninguém. Nada fora do sítio. Nenhum sinal de
violência. Avançou para um vestíbulo. A porta da rua estava mesmo em frente. O Sol tinha
baixado mais. A casa encontrava-se repleta de luz dourada.
E de ar calmo e silêncio.
Atrás dele, sentiu Chang a deslocar-se para a esquerda, por isso, dirigiu-se para a direita,
entrando num corredor com quatro portas, que correspondiam a um quarto principal, uma
casa de banho, um quarto de visitas com camas e outro a servir de escritório, todos sem
ninguém, nada fora do sítio nem sinais de violência.
Encontrou-se com Chang no corredor, junto à porta da frente. Ela abanou a cabeça.
— Parece que ele saiu para ir buscar uma piza. Nem sequer trancou a porta — disse.
O painel do alarme estava na parede. Tinha sido uma instalação recente. Indicava as horas e
mostrava uma luz verde contínua.
Estava desativado.
— Vamos buscar o que nos trouxe cá — afirmou Reacher.
Foi à frente, até ao quarto mais pequeno, que se encontrava todo mobilado com peças a
fazerem conjunto, prateleiras em cima, armários em baixo, mais cómodas e uma secretária,
tudo de madeira clara de ácer envernizada, além de um computador, um telefone, um faxe e
uma impressora. Investimentos, imaginou Reacher, para uma nova carreira. Temos escritórios
em todo o lado. O estilo escandinavo era tranquilizador. O quarto estava arrumado. Não havia
tralha.
Nem papéis.
Fossem blocos pautados, cadernos de apontamentos, blocos de rascunhos ou de notas,
folhas soltas.
Reacher deteve-se.
E disse:
— Este tipo foi polícia e agente federal. Passava horas ao telefone. Em espera, a aguardar e a
falar. E há alguém que já tenha feito isso sem uma caneta e um bloco? Para tirar apontamentos,
garatujar e passar tempo? Com certeza é um hábito que nunca se perde.
— Que quer dizer?
— Quero dizer que isto é uma treta.
Afastou-se para os armários por baixo das prateleiras. Abriu-os, um a seguir ao outro. O
primeiro tinha cartuchos de toner extra para a impressora. O segundo tinha cartuchos de toner
extra para o faxe.
E o terceiro tinha blocos pautados.
E, logo ao lado, havia blocos de notas em espiral, ainda dentro do plástico e em conjuntos
de cinco, e, logo atrás destes, outros blocos de notas e cubos de Post-it novinhos em folha, com
perto de dez centímetros de lado.
— Lamento — soltou Reacher.
— O quê?
— Isto já não me parece lá muito bom. Temos aqui um tipo que usa imenso papel. Tanto
que até o compra em tamanho económico. Aposto que aquela secretária estava a abarrotar de
papéis. Podíamos ter juntado as peças todas disto. Mas alguém chegou cá primeiro. Com a
mesma missão. Por isso, já desapareceu tudo.
— Quem?
— O como diz-nos quem, parece-me. O Keever está preso. É a única maneira de uma coisa
destas poder funcionar. Encontraram apontamentos no bolso do casaco dele, se calhar,
arrancados de um bloco pautado, e num dos bolsos das calças encontraram a carta de
condução, que lhes indicou a morada dele, onde presumiram que estivesse o resto do bloco, se
calhar, com mais apontamentos, e no outro bolso das calças encontraram as chaves da casa, o
que lhes permitiu entrar simplesmente cá, e provavelmente a chave até tinha uma daquelas
coisas que se agitam perto do painel, para desligar estes novos alarmes. Um comando remoto,
no porta-chaves. Um transmissor-recetor. O que, nesse caso, suponho que terá sido uma
bênção. Não terão tido de o espancar para lhe arrancarem o código.
— Isso é muito bruto — disse Chang.
— Não consigo explicá-lo de outra forma.
— Mas não me diz quem.
— Mother’s Rest — respondeu Reacher. — É o último paradeiro conhecido dele.

Revistaram a casa de Keever divisão a divisão, para o caso de alguma coisa ter ficado
esquecida. Não havia nada de interessante no vestíbulo. A cozinha era um espaço simples,
pouco utilizado. Havia talheres soltos e uma grande diversidade de comida enlatada,
presumivelmente comprada com entusiasmo temporário, mas nunca consumida. Não havia
nada escondido, a não ser que tivesse sido metido na parede, tapado e habilmente pintado com
uma camada que fosse exatamente igual a uma tinta de látex com vinte anos e que incluísse
gordura e sujidade.
A sala de estar e o recanto para as refeições eram a mesma coisa. Foi fácil procurar. O tipo
não estava propriamente a acampar, mas era evidente que já tinha começado com pouca coisa e
que não tinha acrescentado muito desde então. O quarto de visitas com as camas parecia ter
sido preparado para os filhos. Direitos de visita. Fim de semana sim, fim de semana não, se
calhar. O que os advogados possam ter acordado. Mas Reacher ficou com a sensação de que o
quarto nunca tinha sido utilizado.
O quarto principal tinha um cheiro ligeiramente rançoso. Havia uma cama, com uma única
mesinha de cabeceira. Uma cómoda, um dispositivo de madeira com um cabide para um
casaco e tabuleiros para guardar relógios, moedas e carteiras. Como num hotel fino. A casa de
banho cheirava a humidade e as toalhas estavam todas revolvidas.
A mesinha de cabeceira tinha uma pequena pilha de revistas, com um livro de capa dura
em cima. Ao passar, Reacher olhou para baixo para ver o que lá estava. Só por curiosidade.
E viu três coisas.
Uma, a primeira revista do monte era o suplemento de domingo do LA Times.
Duas, não fora lido até ao fim. Via-se um bocadinho de um marcador.
Três, o livro de capa dura também não fora terminado. Também tinha um marcador.
E os marcadores eram ambos folhas velhas de um bloco de notas, dobradas uma vez,
longitudinalmente. Eram os primeiros papéis que Reacher via em toda a casa.
DEZASSETE

A folha que estava enfiada no livro não tinha nada lá escrito, a não ser o número 4. Que era
um número de interesse técnico moderado, mais famoso por ser o único número no universo
que correspondia ao número de letras da respetiva palavra em inglês: four. Mas, tirando isso,
não parecia significar grande coisa. Naquele contexto.
— Estou do lado dos advogados de defesa em relação a isto — afirmou Chang.
Reacher assentiu. Mas o caso seguinte era melhor. Muito melhor. De início, puramente do
ponto de vista funcional. Ao abrir, a revista de domingo do LA Times mostrava um longo
artigo do editor de Ciência, Ashley Westwood. Explicava que os progressos da ciência moderna
no tratamento de lesões cerebrais traumáticas permitiam compreender melhor o próprio
cérebro.
A revista tinha menos de duas semanas.
— Os advogados de defesa começariam por referir a tiragem do LA Times — disse Chang.
— Que é quanto? — retorquiu Reacher.
— Praticamente um milhão, acho eu.
— Ou seja, as hipóteses de isto não ser uma coincidência são uma num milhão?
— É o que os advogados de defesa diriam.
— E que diria uma agente do FBI?
— Ensinaram-nos a pensar antecipadamente. E a prever o que os advogados de defesa
diriam.
Reacher abriu o marcador. De um lado, não tinha nada.
Mas do outro tinha.
Do outro lado, tinha duas linhas preenchidas.
Em cima, estava o mesmo número de telefone a começar por 323. Do editor de Ciência em
pessoa, Westwood, em Los Angeles, na Califórnia.
Em baixo, estava escrito: Mother’s Rest — Maloney.
— E agora o que diria uma agente do FBI?
Chang respondeu:
— Diria aos advogados de defesa para se lixarem. O Keever vai ligar ao Westwood para
efeitos de corroboração ou de informação sobre qualquer coisa relacionada com a terra de onde
acabámos de vir. Acho que isso é evidente. Além do mais, agora já temos um nome. Pode haver
lá gente chamada Maloney. Afinal de contas, acabámos de conhecer os Moynahan.
— Mas porque estava o marcador no início do artigo?
— Ainda não o leu.
— E é por isso que ainda não ligou ao Westwood. É melhor não fazermos suposições sobre
o cliente. Chamemos-lhe apenas fervoroso. Um tipo desses passa a vida ao telefone. A contar a
mesma história, a quem o queira ouvir. Mother’s Rest, duzentas mortes, se não acredita em
mim, ligue a este jornalista de Los Angeles, e indica o número que lhe custou tanto a conseguir
e o Keever está sempre a apontar tudo, repetidamente, por ser uma pessoa desse género, e é por
isso que já encontrámos esse número duas vezes sem sequer tentarmos verdadeiramente.
Portanto, se calhar, de início, estamos a falar de um cliente chato. Que de certeza que apanham.
— De vez em quando.
— Mas há qualquer coisinha no que o tipo está a dizer que põe o Keever a pensar. Mas
continua a mostrar-se cético e, por isso, resolve fazer um pequeno teste. E estamos a falar de
Oklahoma City, certo? O mais provável é ter de fazer o caminho todo até à estação de
comboios para arranjar jornais de outras cidades. Mas vai à mesma. Compra o LA Times um
domingo. Quer confirmar se essa tal testemunha qualificada tem alguma credibilidade ou não.
É um escritor a sério ou uma coisa saída de um jornal de supermercado? O Keever quer ser ele
a decidir. Quando começou o trigo a ser cultivado?
— Depende do sítio — respondeu Chang. — Seja como for, há milhares de anos.
— Portanto, o mais certo é que o Westwood afinal seja mesmo bom. Pensou na coisa e
agora está a recuar milhares de anos. É um tipo inteligente. Mas o Keever ainda não sabe isso.
Porque ainda não leu o artigo. O que sugere que o que o cliente disse, independentemente do
que tenha sido, foi intrigante, mas, por uma razão ou outra, não muito urgente. O Keever não
se atirou a isso.
— Agora já parece bastante urgente.
— Exato. E temos de descobrir o que mudou.
Não era um sítio com vizinhos preocupados em vigiar o bairro, mas, ainda assim, não
viram razão para se demorarem. Saíram pelo vestíbulo e fecharam a porta. Dirigiram-se para o
caminho de acesso e entraram no carro.
— Devíamos falar outra vez com o Westwood — disse Reacher.
— O Keever ainda não lhe ligou — respondeu Chang. — Não vai ter nada para nos dizer.
— Mas, se calhar, ligou-lhe outra pessoa. E pode falar-nos disso.
— Que outra pessoa?
— Ainda não sabemos.
Chang ficou calada. Puxou do telemóvel, marcou o número, carregou em mais um botão e
pousou o aparelho no apoio de braço, entre os dois lugares da frente.
— Pus em alta-voz — anunciou.
Reacher ouviu o telemóvel a chamar.
E ouviu o telefonema a ser atendido.
— Está? — disse Westwood.
E Reacher disse:
— Daqui fala Jack Reacher e estou neste momento a trabalhar com a minha colega Michelle
Chang, que falou com o senhor não há muito tempo.
— Eu lembro-me. Concordámos que o outro colega dela nunca me tinha telefonado.
Keever, não era? Pensava que já tínhamos chegado a essa conclusão.
— Sim, nós aceitamos isso. Mas agora temos indicações bastante seguras de que ele lhe
pretendia ligar a determinada altura. Talvez fosse o que ia fazer a seguir ou talvez fosse mais
para a frente.
Westwood hesitou uns segundos, lá ao longe, e perguntou:
— E onde está esse tipo agora?
— Desapareceu — respondeu Reacher.
— Como? Onde é que ele está?
Reacher ficou calado.
— Perguntas estúpidas, imagino — disse Westwood.
— A parte do como pode ser crucial. A parte do onde foi bastante estúpida. Se soubéssemos
onde ele estava, não tinha desaparecido.
— Seguramente que deviam investigar as chamadas que ele já fez. E não as que poderia vir a
fazer. A determinada altura.
— As nossas informações são limitadas.
— A quê?
— Temos de analisar a coisa ao contrário, senhor Westwood. Achamos que ele se preparava
para lhe pedir alguma espécie de comentário ou opinião de perito. Precisamos de descobrir
com que tipo de coisa o senhor o podia ter ajudado.
— Sou jornalista. Não sou perito em nada.
— Mas é uma pessoa bem informada.
— Qualquer pessoa que leia o que eu escrevo está tão bem informada como eu.
— Acho que quase todos os leitores imaginam que fiquem coisas de fora de um artigo.
Partem do princípio de que o senhor sabe mais do que aquilo que sai no jornal. Se calhar, há
coisas que não pôde publicar por motivos legais. E por aí fora. E, independentemente disso,
partem do princípio de que gosta destas coisas. E respeitam a sua posição de destaque.
— É possível — respondeu Westwood. — Mas estamos a falar de uma conversa que nunca
existiu.
— Não, agora já estamos a pensar no cliente do Keever. Até ao momento, andamos a
pensar num tipo fervoroso, com tempo livre. Temos indícios de que ligou repetidamente ao
Keever. Temos a sensação de que se trata desse género de pessoa. E é evidente que estamos
perante uma questão que ele leva muito a peito. Eu disse que apostava que ele já tinha ligado a
toda a gente, da Casa Branca para baixo. E aposto que ligou mesmo. A centenas de pessoas.
Incluindo ao senhor. E porque não? O senhor é o editor de Ciência de um jornal importante.
Talvez tenha escrito alguma coisa relacionada com a tal questão. Acho que talvez tenha
descoberto o seu número na Internet não com o objetivo de o transmitir ao Keever, pelo menos
de início, mas para falar consigo diretamente. Acho que ele tem uma queixa científica
esquisitoide qualquer a fazer e julga que o senhor a compreenderá. Por isso, acho que talvez lhe
tenha ligado. Acho que o senhor talvez tenha falado com ele.
Seguiu-se uma curta pausa, a milhares de quilómetros de distância, e depois a voz de
Westwood voltou a ouvir-se, um pouco estrangulada, como se ele estivesse a tentar não sorrir.
Westwood disse:
— Eu trabalho no LA Times. Em Los Angeles. Que fica na Califórnia. E o meu número
pode ser encontrado na Internet. E tudo isso, pesando bem as coisas, é bom, mas significa que
estou sempre a receber chamadas estranhas. Dia e noite. Já ouvi todas as queixas científicas
esquisitoides possíveis. As pessoas ligam-me para falarem de extraterrestres, discos voadores,
nascimentos, suicídios, radiação e lavagem cerebral, e isso foi só no mês passado.
— E essas chamadas vão para a base de dados?
— São a base de dados quase toda. Pergunte a qualquer jornalista.
— E é possível procurar por assunto?
— Somos um bocado preguiçosos com os pormenores. Estes tipos nunca mais se calam. A
maior parte das vezes, usamos categorias. Um maluquinho deste género, outro maluquinho
daqueloutro. A certa altura, acabo sempre por lhes bloquear as chamadas. Quando começam a
abusar. Às vezes, preciso de dormir.
— Experimente Mother’s Rest.
— Que é isso?
— É o nome de uma terra. Duas palavras. Como se a sua mãe estivesse sentada numa
cadeira. Em maiúsculas.
— E porque se chama assim?
— Não sei — respondeu Reacher.
Ouviram nitidamente, graças à alta-voz, o som de teclas a serem premidas. A pesquisa na
base de dados, presumivelmente. Por assunto.
— Não aparece nada — anunciou Westwood.
— Tem a certeza?
— É um nome bastante incomum.
Reacher ficou calado.
E Westwood disse:
— Ouça, não estou a dizer que o cliente do vosso colega não me ligou. Provavelmente,
ligou. Todos nós conhecemos pessoas dessas. O que estou a dizer é como hei de saber de quem
estamos a falar?

Saíram do beco de Keever e da urbanização, passando por um outlet, em direção à entrada


para a autoestrada. Mother’s Rest ficava a cinco horas de distância para a direita, e a Baixa de
Oklahoma City ficava a dez minutos para a esquerda, com steakhouses, barbecues e hotéis
decentes.
Mas Chang disse:
— Não, temos de voltar.
DEZOITO

Em vez de uma steakhouse ou de um barbecue, comeram num silêncio fluorescente numa


estação de serviço explorada por uma cadeia nacional que era a terceira melhor do género.
Reacher pediu um cheeseburger, embrulhado em papel, e café, num copo de esferovite. Chang
pediu uma salada, que veio num recipiente de plástico do tamanho de uma bola de básquete,
com uma tampa transparente e uma taça branca por baixo. Estava enervada e talvez um pouco
cansada por vir a guiar, mas, mesmo assim, era uma companhia agradável. Puxou o cabelo para
trás dos ombros e transformou o ataque à salada numa desventura partilhada, cheia de olhos
esbugalhados e com uns seis tipos diferentes de meios sorrisos, que iam do pesaroso ao
humilde, passando por um de expetativa divertida, ao mesmo tempo que Reacher pegava no
hambúrguer e tentava dar-lhe uma dentada.
— Obrigado pela ajuda que me tem dado — disse ela.
— Não tem de quê — respondeu ele.
— Temos de pensar numa combinação de efeito mais duradouro.
— Ai sim?
— Não devíamos começar a trabalhar como equipa se é para eu acabar a trabalhar sozinha.
— Devia ligar para o 112 — retorquiu ele.
— Seria estar a participar o desaparecimento de uma pessoa. Neste momento, não passa
disso. Um adulto independente, desaparecido há dois dias, num ramo em que muitas vezes é
preciso viajar de um momento para o outro. Não iam fazer nada. Não temos provas para lhes
dar.
— A porta da casa.
— Incólume. Uma porta destrancada é uma prova de negligência por parte do proprietário
e não de um crime.
— Então quer contratar-me? E como funciona isso, com a história das despesas gerais
baixas?
— Só quero que me diga quais são as suas intenções.
Ele ficou calado.
— Daqui pode apanhar boleia para Oklahoma City. E ninguém fica chateado — disse ela.
— Eu ia a caminho de Chicago. Antes que o tempo arrefeça.
— A resposta é a mesma. Apanhe boleia até Oklahoma City e depois o comboio. O mesmo
comboio que apanhou antes. De certeza que não se vai atrasar outra vez.
Reacher não disse nada. Tinha começado a gostar dos sapatos com atacadores dela. Eram
práticos, mas também bonitos. As calças de ganga eram macias e velhas e ficavam-lhe abaixo
das ancas. A t-shirt era preta, nem justa nem folgada. E Chang estava a fitá-lo olhos nos olhos.
— Eu vou consigo. Mas só se quiser que eu vá. Isto é um assunto seu e não meu — disse ele.
— Sinto-me mal por estar a pedir.
— Não está a pedir. Eu é que me estou a oferecer.
— Não lhe posso pagar.
— Já tenho tudo aquilo de que preciso.
— Que é o quê, ao certo?
— Uns trocos no bolso e quatro pontos na bússola.
— Porque vou precisar de compreender as suas razões.
— Para quê?
— Para me ajudar.
— Acho que as pessoas se deviam ajudar sempre umas às outras.
— Isto pode implicar bem mais do que o normal.
— De certeza que já vimos os dois coisas piores.
Ela deteve-se por uns segundos.
— Última oportunidade — disse.
— Vou consigo — respondeu ele.

Já estava escuro quando saíram da autoestrada. A estrada do condado atravessava a


imensidão de espaço, apenas visível à distância do feixe de um farol e oculta depois disso. O
pequeno Ford avançava a bom ritmo, chocalhando aqui e acolá no alcatrão gasto, com pálidos
caules de trigo iluminados intermitentemente e a passarem como que em câmara lenta de
ambos os lados. No céu, viam-se nuvens finas, uma lua nova e uma camada de estrelas
longínquas.
Era impossível afirmar quando passaram pelo ponto em que tinham deixado os Moynahan.
Cada quilómetro parecia exatamente igual ao anterior. Mas a carrinha vermelha baça já lá não
estava. Não a viram em lado nenhum, na estrada propriamente dita nem depois de virarem à
direita-esquerda-direita-esquerda, já a atravessar os campos que iam dar a Mother’s Rest. Que
viram a um quilómetro e meio de distância, esbatida e fantasmática na noite, com os silos de
longe as coisas mais altas naquela paisagem. Entraram pelo antigo caminho, percorrendo a
parte mais ampla da terra, seis quarteirões de edifícios baixos, virando para a praça e parando
ao chegarem ao motel. Pela janela, viram que a luz da receção estava acesa.
— Que a diversão comece — disse Chang.
Estacionou no lugar por baixo do quarto dela e desligou o motor. Aguardaram um
momento, num silêncio repentino, e a seguir saíram do carro. Enfiaram as mãos nos bolsos,
agarrando as pistolas que tinham capturado, e ficaram parados junto ao carro, à meia-luz
noturna e amarela, devido ao brilho das lâmpadas elétricas nos respetivos suportes, uma por
cima de cada porta e todas a funcionar.
Nenhum movimento. Nem som.
Nenhum Moynahan nem qualquer grupinho.
Nada.
E foi então que, a uns trinta metros de distância, o zarolho saiu da receção.
Apressou-se a ir ter com eles, como já tinha feito, esbracejando e gesticulando, e, quando lá
chegou, fixou o seu olhar imperfeito no chão e respirou fundo.
— Peço desculpa — disse. — Houve um engano. Que levou a um mal-entendido. O senhor
pode utilizar o quarto 215 à vontade até o outro cavalheiro regressar.
Chang ficou calada.
E Reacher respondeu:
— Compreendido.
O zarolho assentiu, como que para selar o acordo, e depois virou costas e foi-se embora
rapidamente. Chang ficou a observá-lo e disse:
— Pode ser uma armadilha ou uma emboscada.
— Pode ser — retorquiu Reacher. — Mas não me parece que seja. Ele não ia querer gente a
lutar dentro do próprio quarto. A mobília ia ficar toda estragada e o tipo ia ter de passar o
inverno inteiro a remendar os buracos de bala no gesso das paredes interiores.
— Está a dizer que eles se renderam?
— É um dos passos do jogo.
— E qual é o próximo passo?
— Não sei.
— E quando vai acontecer?
— Provavelmente, amanhã — respondeu Reacher.
Olhou em volta, para os três lados da estrutura em forma de ferradura, para cima e para
baixo. Havia um aro de luz atrás dos cortinados do quarto 203. Onde o homem do fato tinha
pernoitado. Tinha um novo ocupante.
— Antes do amanhecer, não — prosseguiu ele. — É o meu palpite.
— Vai conseguir dormir bem?
— Estou a contar com isso. E você?
— Se não conseguir, bato na parede.
Subiram as escadas de metal ao mesmo tempo, sacaram das chaves e enfiaram-nas nas
fechaduras, lado a lado, mas a seis metros um do outro, como se fossem vizinhos a chegar a
casa do trabalho.

A trinta metros de distância, o zarolho pegou na espreguiçadeira à porta do quarto 102, que
estava vago, e arrastou-a para o sítio que já tinha utilizado, no passeio, por baixo da janela da
receção. Pô-la na posição certa e deixou-se cair nela, sob o ar noturno, pronto a obedecer à
segunda das ordens da noite, que tinha sido Vigia os quartos deles até de manhãzinha.
A primeira ordem tinha sido Mesmo que voltem, faças o que fizeres, não arranjes problemas
hoje à noite. Achava que tinha tratado bem desse assunto.
DEZANOVE

Tal como já tinha feito, Reacher sentou-se no quarto dele, às escuras, de costas para a janela
e invisível do lado de fora, simplesmente a observar, agora do primeiro andar. Quinze minutos,
depois vinte, depois trinta. Tanto quanto fosse preciso, para ter a certeza. O zarolho, sentado na
espreguiçadeira de plástico, era outra vez uma mancha pálida na escuridão, a uns trinta metros
de distância. E continuava a ver-se o aro de luz atrás dos cortinados do 203. Nada se mexia.
Carros ou pessoas. Não havia cigarros a brilhar nas sombras.
Não se passava nada.
Quarenta minutos. As luzes do quarto 203 apagaram-se. O zarolho deixou-se ficar quieto.
Reacher esperou mais dez minutos e foi para a cama.

Ao nascer, a manhã parecia tão bonita como na véspera. A luz tinha pálidos tons dourados
e as sombras eram compridas. Talvez fosse tão bonita como a primeira manhã de sempre.
Reacher sentou-se na cama, enrolado numa toalha, sem café, e pôs-se a olhar. A
espreguiçadeira de plástico continuava a trinta metros, à porta da receção, mas fora outra vez
abandonada. Os cortinados do quarto 203 ainda estavam corridos. Não se via ninguém. Lá
fora, na rua larga, ouvia-se o trânsito, invisível, primeiro um camião e depois mais uns quantos.
E, a seguir, silêncio.
Esperou.
E aconteceram as mesmas coisas.
As sombras foram retrocedendo, metro a metro, conforme o céu subia. O comboio das sete
chegou, esperou e foi-se embora. E as cortinas do quarto 203 abriram-se.
Uma mulher. O sol continuava a bater no vidro, o que a tornava mais pálida do que na
realidade era, devido ao pó, mas Reacher conseguiu vê-la, alva e vestida de branco, na mesma
posição que o tipo da véspera, com os braços bem abertos e as mãos nos cortinados. Estava a
contemplar a manhã, como o homem tinha feito.
Foi então que o Cadillac branco apareceu, virando à direita e fazendo marcha-atrás à
esquerda para estacionar no mesmo lugar. Continuava sem matrícula à frente. Dessa vez, o
condutor saiu logo do carro. A porta abriu-se por cima da cabeça dele e a mulher de branco
saiu do quarto. O branco era de um vestido justo, à altura do joelho. Os sapatos também eram
brancos. Não era nova, mas estava em boa forma. Como se fizesse por isso. Tinha cabelo cor de
cinza, cortado à tigela.
Trazia mais bagagem do que o tipo anterior. Tinha uma mala em bom estado, com
rodinhas e pega. Maior do que a sacola de couro. Mas não era enorme. Elegante, até. Avançou
para as escadas e o condutor do Cadillac, prevendo a situação difícil que a mulher teria de
enfrentar, fez um gesto súbito, Espere, e foi ter com ela. Baixou-lhe a pega da mala e desceu as
escadas à frente dela, como se lhe quisesse mostrar o caminho. Pôs a mala na bagageira, a
mulher entrou para o banco de trás e ele sentou-se ao volante, com o carro a arrancar e a
afastar-se.
Também continuava sem matrícula atrás.
Reacher foi tomar duche. Ouviu Chang na casa de banho do quarto ao lado. As banheiras
tinham uma parede em comum. Queria dizer que ela não tinha ido esperar o comboio da
manhã. O que era uma decisão racional. Tinha-lhe poupado uma viagem de ida e volta. Talvez
ela tivesse feito o mesmo que ele, observado. Talvez tivessem estado sentados lado a lado,
enrolados em toalhas, separados apenas pela parede. Embora ela provavelmente tivesse um
pijama. Ou uma camisa de noite. Provavelmente, pouco volumosa. Dado o tempo e a
necessidade de viajar com pouca coisa.
Saiu primeiro do que ela e dirigiu-se para o restaurante, na esperança de conseguir o
mesmo par de mesas ao lado uma da outra, no canto dos fundos, coisa que aconteceu. Pôs o
casaco na cadeira dela, mais descaído de um lado, por causa da Smith que se encontrava dentro
do bolso, e pediu café. Chang chegou passados cinco minutos, com as mesmas calças de ganga,
mas uma t-shirt nova, e o cabelo mais escuro por ainda estar molhado do duche que tinha
tomado. Também tinha o casaco mais descaído de um lado, devido à Smith dela. Como
qualquer ex-polícia, olhou em redor, numa volta completa de 360 graus, como que tirando sete
ou oito instantâneos, e atravessou o restaurante de forma bastante enérgica, propulsionada pelo
que aparentava ser entusiasmo ou talvez uma espécie de euforia partilhada por terem ambos
sobrevivido àquela noite. Sentou-se ao lado dele.
— Dormiu? — perguntou ele.
— Devo ter dormido. Julguei que não fosse conseguir — respondeu ela.
— Não foi esperar o comboio.
— O Keever está preso, segundo você. E essa é a melhor das hipóteses.
— É só uma suposição.
— Bastante sensata.
— Viu a mulher do 203?
— Achei-a difícil de explicar. Se estivesse vestida de preto, podia ser uma investidora, uma
gestora de fundos ou qualquer outra coisa merecedora do número do executivo subalterno. A
cara e o cabelo batiam certo. E tem a chave do ginásio da empresa, isso é certinho. Mas vestida
de branco? Parecia que ia a uma receção ao ar livre, em Monte Carlo. Às sete da manhã. Quem
é que faz uma coisa dessas?
— Terá que ver com moda? Será que há quem ache que aquilo é roupa de verão?
— Espero bem que não.
— Então quem era ela?
— Parecia que ia a caminho da câmara municipal para se casar pela quinta vez.
A empregada apareceu e Chang perguntou-lhe:
— Conhece algum tipo aqui na terra chamado Maloney?
— Não — respondeu ela. — Mas conheço dois tipos chamados Moynahan.
E, a seguir, piscou o olho e foi-se embora.
— Agora é que ela é mesmo a tua melhor amiga para a vida inteira. Não me parece que
goste dos Moynahan — afirmou Chang.
— Não estou a ver porque havia alguém de gostar — retorquiu Reacher.
— Mas há quem deva. Temos de partir do pressuposto de que também têm melhores
amigos para a vida inteira. Temos de contar com uma reação.
— Mas para já, não. Ficaram os dois amachucados. Vai ser como se estivessem com gripe
durante uns dias. E não como numa série de televisão, em que ficam bons durante os anúncios.
— Mas vão acabar por ficar bons. Entre os amigos deles e os coconspiradores, pode ser uma
multidão.
— Já foi polícia. De certeza que já disparou contra pessoas.
— Nunca saquei sequer da arma. Foi no Connecticut. Numa terrinha.
— Então e no FBI?
— Era analista financeira. Manga de alpaca.
— Mas passou nas provas, certo? Na carreira de tiro?
— Tínhamos de o fazer.
— E prestava para alguma coisa?
— Só disparo se dispararem primeiro.
— Já não é mau de todo.
— Isto é um disparate pegado. Estamos numa estação ferroviária. Não estamos no OK
Corral.
— Nesses sítios todos, havia caminhos de ferro. A questão era essa. O mauzão saía do
comboio. Ou o novo xerife.
— E acha que isso é muito grave?
— Estamos a falar de uma escala, como em tudo o resto. Num extremo, o Keever está em
Las Vegas com uma miúda de dezanove anos. No outro, está morto. Eu estou mais virado
precisamente para o meio. Ou, se calhar, já para um bocadinho depois disso. Lamento.
Provavelmente, foi um acidente. Ou um meio acidente. Ou um caso de pânico. E portanto
agora não sabem o que fazer.
— E nós sabemos?
— Neste preciso momento, temos três objetivos simples. Tomar o pequeno-almoço, beber
café e descobrir o Maloney.
— Pode não ser fácil.
— Que parte?
— O Maloney.
— Devíamos começar pelos serviços de receção. Ao pé dos silos. Aposto que conhecem os
nomes todos num raio de mais de trezentos quilómetros. E até podemos matar dois coelhos de
uma cajadada. E se se passar mesmo alguma coisa suspeita com o trigo, pode ser que
apanhemos uns zunzuns.
Chang assentiu e perguntou:
— Dormiu bem?
— Ao princípio, foi esquisito, com as coisas do Keever ali no quarto. A mala encostada à
parede. Parecia que eu era outra pessoa. Parecia que eu era uma pessoa normal. Mas depois
passou-me.

Os serviços de receção eram uma estrutura simples de madeira, logo a seguir à báscula.
Exclusivamente utilitária. Era o que era. Não fazia concessões em matéria de estilo ou de
atração. Não precisava. Não havia mais nenhuma na terra e, se não a utilizassem, os
agricultores morreriam à fome.
Lá dentro, havia balcões para preencher formulários, um chão gasto, com condutores a
aguardar numa fila, e uma secretária para trabalhar em pé, onde eram registadas as entregas.
Atrás da secretária, estava um tipo de cabelos brancos, com jardineiras e um lápis rombo
entalado na orelha. Estava atarefado a mexer em pilhas de papéis. Presumivelmente, estaria a
preparar-se para a colheita. Tinha o ar de um tipo completamente feliz no seu feudozinho.
— Posso ajudá-los? — perguntou.
— Andamos à procura de um tipo chamado Maloney — respondeu Reacher.
— Não sou eu.
— E conhece algum Maloney por estas bandas?
— Quem quer saber?
— Somos investigadores privados de Nova Iorque. Um tipo morreu e deixou o dinheiro
todo a outro. Mas, afinal, esse outro tipo também já morreu e, por isso, o dinheiro voltou a
estar disponível para todos os familiares que conseguirmos encontrar. E há um que diz que tem
um primo neste condado chamado Maloney. Não sabemos mais nada.
— Não sou eu — repetiu o homem. — Estamos a falar de quanto dinheiro?
— Não estamos autorizados a dizer.
— Muito?
— Melhor do que nada.
— Então em que lhes posso ser útil?
— Achámos que poderia conhecer uma série de nomes por estas bandas. Imagino que a
maioria das pessoas acabe por passar por aqui a certa altura.
O tipo assentiu, como se uma relação vital e imprevista tivesse sido estabelecida. Carregou
no space do teclado e um ecrã iluminou-se. Mexeu no rato e clicou numa coisa e surgiu uma
lista comprida e compacta. Uma série de nomes. Disse:
— São as pessoas com autorização para utilizar a báscula. Assim é mais rápido. E é disso
que precisamos nas alturas de mais movimento. Imagino que estejam aqui todas as pessoas
aqui da zona que têm que ver com cereais. Dos proprietários aos trabalhadores e tudo o resto.
Homens, mulheres e crianças. Em determinadas épocas do ano, é uma atividade em que toda a
gente participa.
— E está a ver aí algum Maloney? Dava-nos mesmo jeito um nome próprio e uma morada
— disse Chang.
Ele serviu-se outra vez do rato e a lista subiu no ecrã. Por ordem alfabética. Parou a meio e
disse:
— Há aqui um Mahoney. Mas acho que já faleceu. Há dois ou três anos, se a memória não
me falha. Foi apanhado pelo cancro. Ninguém soube qual era.
— Não há ninguém chamado Maloney? — insistiu Chang.
— Aqui na lista, não.
— E se ele não trabalhar com cereais? Acha que o podia conhecer à mesma?
— Se calhar, socialmente. Mas não o conheço. Não conheço ninguém chamado Maloney.
— E há mais alguém a quem possamos perguntar?
— Podem tentar na Western Union. Que tem o franchisado da FedEx. É mais ou menos a
nossa estação de correios.
— Okay — respondeu Reacher. — Obrigado.
O tipo assentiu, olhou para outro lado e não disse nada, como se estivesse ao mesmo tempo
encantado e aborrecido com aquela quebra na sua rotina.

Reacher lembrava-se de onde era a loja da Western Union. Já a tinha visto duas vezes ao
explorar os vários quarteirões. Um sítio pequeno, com uma montra atafulhada de letreiros
luminosos a publicitar a MoneyGram, faxes, fotocópias, a FedEx, a UPS e a DHL. Entraram e o
homem que estava ao balcão levantou a cabeça. Tinha cerca de quarenta anos, era alto e bem
constituído, sem ser gordo, mas claramente com carnes, cheio de cabelo e com uma cara
sincera.
Era o condutor do Cadillac.
VINTE

A loja era tão simples como os serviços de receção, cheia de pó e madeira por pintar, com
máquinas beges e gastas para faxes e fotocópias, pilhas desarrumadas de impressos de moradas
para os serviços de encomendas e pilhas periclitantes de caixas, umas presumivelmente a
chegar e outras presumivelmente a sair. Havia caixas pequenas, pouco maiores do que os
rótulos colados com as moradas, e outras grandes, incluindo duas que, pelos vistos, tinham
sido enviadas diretamente por fabricantes estrangeiros nas embalagens originais, uma de
material médico alemão feito de aço inoxidável estéril, se as capacidades de tradução de
Reacher fossem de fiar, e a outra de uma câmara de vídeo japonesa de alta-definição. Havia
resmas fechadas de papel de fotocópia em prateleiras abertas, esferográficas atadas a cordéis e
um quadro de cortiça com avisos pendurado numa parede e repleto de folhetos afixados com
tachas a anunciar todo o tipo de serviços na zona, incluindo aulas de guitarra, vendas de
garagem e quartos para arrendar. É mais ou menos a nossa estação de correios, dissera o homem
dos serviços de receção, e Reacher percebia porquê.
— Posso ajudá-los? — perguntou o condutor do Cadillac.
Estava atrás de um balcão em contraplacado, a contar notas de um dólar.
— Reconheço-o de algum lado — disse Reacher.
— Ai sim? — retorquiu o tipo.
— Jogou futebol na universidade. Por Miami. Em 1992, não foi?
— Eu não, amigo.
— Foi na USC?
— Enganou-se na pessoa.
E Chang disse:
— Então é o taxista. Vimo-lo hoje de manhã, no motel.
O tipo não respondeu.
— E ontem de manhã — acrescentou Chang.
Nenhuma resposta.
Havia um suportezinho em rede metálica no balcão, cheio de cartões de visita
providenciados pelo franchisado da MoneyGram. Uma regalia adicional, a juntar à comissão.
Reacher pegou num cartão e leu-o. O tipo não se chamava Maloney. Reacher perguntou-lhe:
— Tem uma lista telefónica aqui da zona?
— Para quê?
— Quero equilibrá-la na cabeça para melhorar o meu porte.
— Hã?
— Quero procurar um número. Para que mais serve uma lista telefónica?
O homem hesitou durante um longo momento, como se estivesse à procura de uma razão
válida para recusar o pedido, mas, pelos vistos, acabou por não conseguir encontrar nenhuma,
já que se baixou para tirar uma coisa fina de uma prateleira por baixo do balcão, rodando-a
cento e oitenta graus e fazendo-a deslizar pelo contraplacado.
Reacher disse «Obrigado» e abriu a lista com o polegar, na parte onde o L dava lugar ao M.
Chang inclinou-se para espreitar.
Nenhum Maloney.
— Por que razão esta terra se chama Mother’s Rest? — perguntou Reacher.
— Não sei — respondeu o homem.
— O seu Cadillac é muito antigo? — perguntou Chang.
— Que têm que ver com isso?
— Na verdade, não temos. Não somos do IMT. Não estamos interessados em matrículas.
Estamos só interessados, mais nada. Parece um ótimo automóvel.
— Faz o serviço dele.
— E que serviço é esse?
O tipo fez uma pausa.
— De táxi — disse ele. — Como calcularam.
— Conhece alguém chamado Maloney? — perguntou Reacher.
— Devia?
— É possível.
— Não — respondeu o tipo, com bastante certeza, como se estivesse satisfeito por se
encontrar em terreno seguro. — Não há ninguém chamado Maloney neste condado.
Reacher e Chang voltaram para a rua larga e pararam, sob o sol matinal.
— Ele estava a mentir sobre o Cadillac. Não é um táxi. Um sítio destes não precisa de táxis
— afirmou Chang.
— Então é o quê? — retorquiu Reacher.
— Dava a sensação de ser um carro de um clube qualquer, não dava? Como um carrinho de
golfe numa estância. Para levar os hóspedes de um lado para o outro. Da receção para os
quartos. Ou dos quartos para o spa. Uma cortesia. Sobretudo sem matrícula nenhuma.
— Só que não estamos numa estância. Estamos num campo de trigo gigantesco.
— Seja como for, o tipo não foi longe. Fez a viagem de ida e volta no tempo que levámos a
tomar banho e a comer o pequeno-almoço. Uma hora, se calhar. Trinta minutos para lá e trinta
minutos para cá. Num raio máximo de uns trinta quilómetros, nestas estradas.
— Isso são mais de dois mil e quinhentos quilómetros quadrados — respondeu Reacher. —
Pi vezes o raio ao quadrado. Mais de três mil quilómetros quadrados, na verdade. E estará
relacionado com aquilo do Keever ou nem por isso?
— Relacionado, claro. No motel, o tipo comportou-se como o das peças sobresselentes, que
foi esperar o comboio. Como um lacaio. E o das peças denunciou-o por você lembrar um
bocadinho o Keever. Portanto, está relacionado.
— Precisamos de um helicóptero para passar mais de três mil quilómetros quadrados a
pente fino — afirmou Reacher.
— E nada de Maloney — retorquiu Chang.
Enfiou a mão no bolso de trás e tirou de lá o marcador de Keever. Mother’s Rest —
Maloney.
— A não ser que o tipo também esteja a mentir em relação a isso. Não aparecer na lista
telefónica não prova necessariamente nada. O número pode não estar registado. Ou o homem
ser novo na terra.
— E a empregada também ia mentir?
— Devíamos tentar no armazém. Se o tipo existe e não anda a comer no restaurante, então
anda a comprar comida lá. Tem de se alimentar, dê lá por onde der.
Recomeçaram a caminhar, avançando para sul na rua larga.

Enquanto isso, o condutor do Cadillac estava em grande atividade, a comunicar as


informações. Que eram o que eram.
— Eles estão a leste — disse.
Na receção do motel, o zarolho retorquiu:
— E porque dizes isso?
— Já ouviste falar de um tipo chamado Maloney?
— Não.
— É dele que andam à procura.
— Um tipo chamado Maloney?
— Foram procurar na minha lista telefónica.
— Não há nenhum tipo chamado Maloney.
— Exato — respondeu o condutor do Cadillac. — Estão a leste.

O armazém geral dava a ideia de ser capaz de não ter mudado em cinquenta anos, tirando
os nomes e os preços das marcas. A seguir ao vestíbulo de entrada, era escuro e poeirento e
cheirava a lona húmida. Tinha cinco corredores estreitos, empilhados até cima com coisas que
iam de ferramentas para carpintaria a caixas de biscoitos, de velas a frascos com tampa de
encaixar, de papel higiénico a lâmpadas. Havia um cabide com roupa de trabalho que chamou
a atenção a Reacher. As coisas que trazia vestidas já tinham quatro dias de uso e estar ao pé de
Chang fazia-o ter consciência disso. Ela cheirava a sabonete e a pele lavada, com uma réstia de
perfume. Quando ela se aproximara dele para ver a lista telefónica, Reacher tinha reparado
nisso, ficando a pensar no que teria reparado Chang. Escolheu umas calças e uma camisa e
encontrou meias, boxers e uma camisola interior numa prateleira em frente. Um dólar por
peça, para as coisas mais pequenas, e menos de quarenta pelas peças principais. No geral, um
investimento compensador, pensou. Levou a roupa para o balcão, nos fundos, e largou tudo lá.
O dono do armazém recusou-se a vender-lhe os produtos.
— Não queremos que nos compre nada. Não é bem-vindo aqui — disse o tipo.
Reacher ficou calado. O tipo era um sujeito escanzelado, à volta dos sessenta anos. Tinha
faces cavadas, com barba branca de três dias, cabelo grisalho e ralo, sujo e demasiado
comprido, tufos de pelo nos ouvidos e penugem no pescoço. Usava duas camisas, uma por
cima da outra.
— Portanto, vá-se lá embora. Isto é propriedade privada — disse.
— Tem seguro de saúde? — retorquiu Reacher.
Chang pôs a mão em cima do braço dele. A primeira vez que lhe tocava, pensou Reacher,
do nada.
— Está a ameaçar-me? — perguntou o tipo.
— Basicamente — respondeu Reacher.
— Estamos num país livre. Posso decidir a quem quero vender. A lei assim o diz.
— Como se chama?
— Não tem nada que ver com isso.
— Chama-se Maloney?
— Não.
— E tem troco de um dólar?
— Porquê?
— Quero usar o telefone público.
— Hoje não está a funcionar.
— Tem algum telefone próprio aí atrás?
— Não o pode usar. Não é bem-vindo aqui — respondeu o outro.
— Está bem — retorquiu Reacher. — Já percebi.
Verificou as etiquetas com os preços dos produtos que tinha à frente. Um dólar pelas meias,
outro pelos boxers e outro pela t-shirt, mais dezanove e noventa e nove pelas calças e dezassete
e noventa e nove pela camisa. Subtotal: quarenta dólares e noventa e oito cêntimos, mais
provavelmente sete por cento de imposto sobre as vendas. Prejuízo total: quarenta e três
dólares e oitenta e cinco cêntimos. Tirou duas notas de vinte e uma de cinco e juntou-as.
Alisou-as longitudinalmente para que não enrolassem. Pousou-as no balcão.
E disse:
— Tem duas hipóteses, meu amigo. Telefonar para a polícia a dizer que o comércio
rebentou aqui na terra. Ou aceitar o meu dinheiro. Fique com o troco, se quiser. Se calhar,
pode usá-lo para cortar a barba e o cabelo.
O tipo não respondeu.
Reacher enrolou as compras e enfiou-as debaixo do braço. Seguiu Chang para fora do
armazém geral e parou no vestíbulo para verificar se o telefone público estava a funcionar. Não
dava sinal. Só um silêncio aspirado, como uma ligação direta ao espaço intergalático ou ao
sangue que lhe pulsava na cabeça.
— Coincidência? — perguntou Chang.
— Duvido. Provavelmente, ele desligou os fios. Querem-nos isolados — respondeu
Reacher.
— E a quem queria ligar?
— Para Los Angeles, ao Westwood. Lembrei-me de uma coisa. E depois de outra. Mas,
primeiro, acho que é melhor irmos ver o motel.
— O tipo do motel não nos vai deixar usar o telefone.
— Pois não — retorquiu Reacher. — Acho que podemos dar praticamente isso por
adquirido.

Aproximaram-se da ferradura do motel vindos do sul, por isso, a primeira coisa que viram
foi a ala onde se encontrava a receção. Por baixo da janela, havia três coisas no passeio. A
primeira era a espreguiçadeira de plástico, vaga, mas ainda na mesma posição da noite anterior.
A segunda foi a mala amachucada de Keever, vista pela última vez no quarto 215, e que
estava agora outra vez feita e à espera, toda inchada e desamparada.
E a terceira era a mala de Chang, com o fecho corrido e a pega levantada, também feita e à
espera.
VINTE E UM

Chang parou, como por reflexo, e Reacher fez o mesmo ao lado dela.
— Não há lugar na pousada — disse ele.
— O próximo passo deles — retorquiu ela.
Recomeçaram a andar, aproximando-se, alterando a geometria, vendo cada vez melhor o
interior da ferradura e vendo grupos de homens, simplesmente ali à espera, a preencher os
lugares de estacionamento vagos, a bater com os pés nas bermas, parados nas faixas de trânsito.
Talvez uns trinta ao todo, incluindo o Moynahan que tinha levado um pontapé nos tomates.
Parecia um bocadinho pálido, mas nem por isso mais pequeno. O seu desafortunado familiar
não estava lá. Provavelmente, continuava de cama, carregado de analgésicos.
— Vamos direitos para o meu quarto — atirou Reacher.
— Está doido? Se conseguirmos chegar ao carro, já é uma sorte — retorquiu Chang.
— Comprei roupa nova. Preciso de a vestir.
— Traga-a. Pode vesti-la depois.
— Já foi uma cedência não a ter vestido no armazém. Não gosto de andar com coisas atrás.
— Não podemos lutar contra trinta pessoas.
Continuaram a avançar e pararam a seis metros das escadas de que precisavam. Estavam
três tipos perto delas. Todos a olhar para a receção, de onde o zarolho estava a sair, a apressar-
se para ir ter com os dois, esbracejando e gesticulando. Quando lá chegou, disse:
— A reserva do senhor Keever chegou ao fim. Consequentemente, também a da colega. E
lamento informar que não podem ser renovadas. Nesta altura do ano, os quartos vagos ficam
indisponíveis por um ou dois dias, para a necessária manutenção. Para ficarem prontos para as
colheitas.
Reacher ficou calado. Não podemos lutar contra trinta pessoas. Ao que a resposta natural de
Reacher era: E porque não, caraças? Estava-lhe no ADN. Era como respirar. Era, por natureza,
um lutador feroz. Era o maior ponto forte dele e, ao mesmo tempo, o mais fraco. Tinha plena
consciência disso, até mesmo enquanto lhe passava pela cabeça a mecânica do problema, um
contra trinta. Os primeiros doze eram fáceis. Tinha quinze balas na Smith e não iria falhar mais
de três. E, partindo do princípio de que lhe seguiria as pisadas, Chang poderia acrescentar
outros seis. Ou por aí. Era manga de alpaca, mas, por outro lado, a distância não era grande e
havia vários alvos. Sobrariam assim à volta de uns doze, quando as pistolas já estivessem
descarregadas, o que era mais do que se lembrava de já ter enfrentado, de uma só vez, mas que
tinha de ser exequível. Imaginou que muito dependeria da confusão, presumivelmente
considerável, que tudo aquilo provocaria. O barulho, os clarões das bocas das pistolas, os arcos
dos cartuchos na resplandecente luz do sol matinal, os tipos a irem ao chão.
Tinha de ser exequível.
Mas não era. Não podia lutar contra trinta pessoas. Pelo menos, naquela altura, não. Sem
mais informações. Não havia causa provável.
— Qual é a hora de saída? — perguntou.
O zarolho respondeu «Onze horas» e, a seguir, fechou-se visivelmente em copas, como se
desejasse não ter dito nada.
— E que horas são agora? — perguntou Reacher.
O zarolho não respondeu.
— São nove menos três — disse Reacher. — Vamos estar fora daqui muito antes das onze.
Prometemos que sim. Por isso, já podem descontrair todos. Não há mais nada para ver aqui.
O zarolho ficou quieto, a decidir. Por fim, assentiu. Os três homens perto das escadas
recuaram, apenas meio passo, mas a intenção era clara. Não iam sair dali, mas também não iam
fazer nada. Para já.
Reacher subiu as escadas atrás de Chang, destrancou a porta e entrou no quarto.
— Vamos mesmo embora? Às onze? — perguntou Chang.
— Antes das onze — respondeu Reacher. — Provavelmente, daqui a dez minutos. É
escusado ficarmos cá. Não sabemos o suficiente.
— Não podemos abandonar simplesmente o Keever.
— Temos de ir para um sítio qualquer onde possamos, pelo menos, utilizar um telefone.
Largou a roupa nova em cima da cama, abriu as embalagens de plástico e arrancou as
etiquetas dos preços.
— Se calhar, devia tomar um duche — disse.
— Já fez isso há duas horas. Ouvi-o pela parede.
— Ouviu?
— Está ótimo. Vista-se e pronto.
— Tem a certeza?
Ela assentiu, trancando o quarto por dentro e enfiando a corrente na porta. E ele levou as
coisas para a casa de banho, onde despiu a roupa antiga e vestiu a nova. Enfiou a Smith num
bolso e a escova de dentes no outro, com o dinheiro, o cartão multibanco e o passaporte.
Enrolou as coisas velhas e enfiou-as no caixote do lixo. Olhou-se ao espelho. Alisou o cabelo
com os dedos. Prontíssimo.
— Reacher, eles estão a subir as escadas! — gritou Chang do lado de fora.
— Eles quem? — gritou ele.
— Uns dez. Género delegação.
Ouviu-a a recuar. E alguém a bater à porta, de forma zangada e impaciente. Saiu da casa de
banho e ouviu a fechadura a chocalhar e a corrente a abanar. Viu figuras pela janela, no
passadiço, uma série de tipos, alguns a espreitarem pelo vidro.
— Que vamos fazer? — perguntou Chang.
— O mesmo que já íamos fazer — respondeu ele. — Vamos fazer-nos à estrada.
Dirigiu-se para a porta e tirou a corrente. Pôs a mão na maçaneta.
— Preparada? — perguntou.
— Tanto quanto possível — respondeu Chang.
Reacher abriu a porta. Lá fora, os tipos lançaram-se para a frente e o que estava mais
próximo cambaleou na direção dele. Reacher encostou a palma da mão ao peito do homem,
empurrando-o. E não foi delicadamente.
— O que é? — perguntou.
O homem reequilibrou-se e respondeu:
— A hora de saída acabou de ser antecipada.
— Para quando?
— Para agora.
Reacher nunca tinha visto o tipo. Mãos grandes, ombros largos, cara enrugada e roupa
cheia de sujidade. Presumivelmente, escolhido de alguma maneira para ser o homem da frente.
Para ser o porta-voz. Sem dúvida, o crème de la crème da zona, segundo a opinião geral.
— Como te chamas? — perguntou Reacher.
O outro não respondeu.
— É uma pergunta simples — insistiu Reacher.
Nenhuma resposta.
— Chamas-te Maloney?
— Não — respondeu, com um tom qualquer na voz.
Como se fosse uma pergunta estúpida.
— Por que é que este sítio se chama Mother’s Rest? — perguntou Reacher.
— Não sei.
— Espera lá em baixo. Vamos embora quando estivermos prontos.
— Vamos esperar aqui — retorquiu o outro.
— Lá em baixo — repetiu Reacher. — E tens duas maneiras de lá chegar. A segunda é pelo
corrimão abaixo, de cabeça. A escolha é tua. Para mim, qualquer um desses métodos serve.
No rés do chão, o zarolho estava a olhar para cima. Tinham aproximado as malas do carro.
Estavam lado a lado no alcatrão, junto ao porta-bagagens. O tipo das mãos grandes e da roupa
suja fez uma careta, um misto de resignação, desprezo e assentimento, e disse:
— Okay, têm mais cinco minutos.
— Mais dez — retorquiu Reacher. — Acho que vamos escolher isso. Está bom para ti? E
não voltes a subir as escadas.
O tipo ficou com um brilhozinho nos olhos, numa espécie de desafio mudo.
— Como ganhas a vida? — perguntou Reacher.
— Crio porcos — respondeu o tipo.
— Desde sempre?
— Desde pequenino.
— No mesmo sítio?
— Praticamente.
— Foste à tropa?
— Não.
— Bem me parecia — retorquiu Reacher. — Deixaram-nos ficar numa posição de
vantagem. O que foi estúpido. Porque trinta tipos não significam népia se tiverem de subir
umas escadas dois a dois. Sabem que estamos armados. Podíamos abatê-los como se fossem
esquilos. Dentro de um edifício de betão. Que só podem atingir se tiverem lança-granadas, o
que não me parece que seja o caso. Por isso, não voltes a subir as escadas. Principalmente, à
frente.
O outro não disse nada em resposta e Reacher deu um passo atrás, fechando-lhe a porta na
cara.
— Se o nosso objetivo é sairmos daqui vivos, acho que não os devia antagonizar — disse
Chang.
— Não concordo — respondeu Reacher. — Porque, mal nos formos embora, vão começar a
pensar uma coisa: vamos voltar? Vai ser tema de grande discussão. Se nos tivéssemos mostrado
todos mansinhos e comedidos, tinham percebido que estávamos a fingir. É melhor deixá-los
acreditar que as evasivas deles resultaram.
— E resultaram. Como você disse, não sabemos nada.
— Sabemos alguma coisa. Eu disse que não sabíamos o suficiente.
— E que sabemos nós?
— Sabemos que o tipo do motel acabou de fazer um relatório de situação. Disse ao chefe
que nos íamos embora até às onze, mas isso não chegou para o outro. Foi um meio-termo
inaceitável. Queria que fôssemos já. E daí os dez gajos com a nova mensagem. Que foi uma
mensagem que não recebemos ontem à noite. Ontem à noite, fomos recebidos de braços
abertos. Portanto, o que mudou?
— A mulher de branco — respondeu Chang.
— Exato. O mesmo tipo que nos quer ver já daqui para fora não quis arranjar problemas
enquanto ela cá estava. Mas ela agora já se foi e, por isso, já pode voltar tudo ao normal.
— E quem era ela? E para onde foi?
— Não sabemos. E também não sabemos nada do homem do fato. A não ser que, por uma
razão ou outra, eram importantes. Ou seja, toda a gente tinha de se portar muito bem enquanto
eles cá estavam. Vi o tipo do motel a arrumar tudo antes de o carro vir buscar o homem do
fato. Alinhou as espreguiçadeiras todas. Antes que o homem pudesse ver o sítio à luz do dia.
— Não eram investidores. Pelo menos, dos que vão mesmo inspecionar um investimento.
Não davam essa sensação. Passei muito tempo com investidores.
— Então eram o quê?
— Não faço ideia. Os convidados importantes de alguém ou os melhores clientes. Ou
qualquer coisa do género. Como havemos de saber? Se calhar, andam a fugir da justiça. Se
calhar, isto é uma estação de caminhos de ferro do submundo. Mas para um nicho de mercado.
Só para a classe alta. Com garantia de paz e sossego e de uma boa noite de sono, mais
deslocações exclusivamente de Cadillac. Para criminosos de colarinho branco.
— E a mulher ia aperaltar-se para isso?
— Provavelmente, não.
Reacher disse:
— Também acho que isto dá a ideia de uma estação. Saem do comboio, passam a noite no
motel e seguem viagem de manhã, de carro. Há aqui uma sensação forte de transitoriedade. E
também de sentido único. Como se isto fosse uma paragem num trajeto mais longo.
— De onde para onde?
Reacher ficou calado.
— Então e agora? — perguntou Chang.
— Vamos para oeste e decidimos isso quando o seu telemóvel começar a funcionar.

Passados dez minutos certos, abriram a porta e avançaram para o passadiço. Os trinta tipos
ainda ali estavam, por baixo deles, continuando reunidos em pequenos grupos independentes,
de dois, três e quatro, rodeando coletivamente o pequeno Ford verde, numa espécie de
semicírculo distante. Quem se encontrava mais próximo era o criador de porcos, a uns três
metros do carro. Perto dele, estava o Moynahan agoniado. Tinham os dois um ar tenso e
impaciente. Reacher enfiou a mão no bolso, tocando ao de leve na Smith com a palma e três
dedos, e começou a descer as escadas, com Chang logo atrás. Ao chegarem lá abaixo, ela
carregou no comando, destrancando o carro com um batimento dissonante que soou muito
alto no silêncio.
Reacher contornou o capô, olhou para o criador de porcos e disse:
— Vamo-nos embora assim que puserem as nossas malas na bagageira.
— Ponham-nas vocês — respondeu o criador de porcos.
Reacher encostou-se ao Ford, com as mãos nos bolsos e os tornozelos cruzados.
Simplesmente, um tipo à espera. Com todo o tempo do mundo. Disse:
— Pelos vistos, não tiveram problemas em fazê-las e em carregá-las para aqui. Portanto,
calculo que não tenham nenhuma objeção física a tocar nas nossas coisas. Ou alergia. Ou
qualquer outro tipo de impedimento que os incapacite de fazer isso. Portanto, está na altura de
acabar o trabalho. Ponham-nas no carro e nós vamo-nos embora. É isso que querem, certo?
O tipo ficou calado.
Reacher esperou. O silêncio aumentou. Conseguia ouvir o trigo a abanar ao vento, a cem
metros de distância. Ninguém se mexeu. Foi então que um dos homens olhou para o que estava
ao lado dele, que lhe retribuiu o olhar, e não demorou muito até se porem todos a olhar uns
para os outros, olhares rápidos e duros, uma discussão violenta e silenciosa quanto a abdicar da
dignidade por resultados. Ponham-nas no carro e nós vamo-nos embora. É isso que querem,
certo?
Ponham-nas vocês.
Por fim, um que se encontrava atrás do criador de porcos acabou por sair da formação e
avançar. Um pragmático, claramente. Dirigiu-se para o carro, abriu o porta-bagagens e enfiou
lá as malas, uma a seguir à outra, primeiro a de Keever e depois a de Chang.
Fechou a bagageira e afastou-se.
— Obrigado — disse Reacher. — Espero que tenham todos um ótimo dia.
Abriu a porta do passageiro e sentou-se. Ao lado dele, Chang sentou-se ao volante.
Fecharam as respetivas portas ao mesmo tempo e Chang ligou o motor. Fez marcha-atrás para
sair do lugar, deu a volta ao volante e avançou, atravessando a praça e continuando para norte,
passando pelo restaurante e pelo armazém geral, em direção ao antigo caminho para as
caravanas, onde virou à esquerda, para oeste, com a estrada a seguir sempre a direito à frente
dela, eternamente, até desaparecer na névoa dourada do horizonte, nessa altura já tão exígua
como uma agulha.
— Vamos voltar? — perguntou.
Reacher largou a pistola, pela primeira vez desde que tinham saído do quarto do motel.
— Estou a contar que tenhamos de lá voltar — respondeu.
VINTE E DOIS

Fizeram três horas de viagem antes de parar para pôr gasolina e comer. Continuavam sem
rede. Calcularam que talvez só viessem a recuperá-la quando já estivessem perto do corredor
da I-25, bem no coração do Colorado. Mais umas quatro horas. E, nesse caso, mais valia irem
diretamente para Colorado Springs, que era onde o Ford tinha sido alugado e de onde saíam
regularmente aviões para Los Angeles. Concordaram que Los Angeles seria o passo seguinte. O
telefone era uma invenção maravilhosa, mas, às vezes, desadequada. O que queria dizer que a
fiscalização de segurança do aeroporto fazia parte do futuro deles e, por isso, desmontaram as
Smiths e largaram as várias peças em vários caixotes do lixo distribuídos pela área de serviço.
Tão depressa vem como desaparece.
Foi então que Reacher fez o troço seguinte, sem carta e ilegalmente, mas, ao longo dessas
duas horas, só viram dois veículos e nenhum era um carro da polícia. Depois voltou a ser
Chang a conduzir e prosseguiram, até que o horizonte dourado começou a escurecer e a
tornar-se cinzento, o que significava que se estavam a aproximar da civilização. Discutiram o
que fazer à mala de Keever. Sem sentimentalismos em relação a objetos pessoais, Reacher
queria desfazer-se dela. Mas, para Chang, era um talismã. Como um raio de esperança. Queria
que ficassem com ela. Acabaram por chegar a um meio-termo. Pararam na FedEx de um
complexo comercial nos arredores de Colorado Springs e enviaram a mala para a casa amarela
do beco na urbanização degradada a norte de Oklahoma City. Chang preencheu o impresso,
escrevendo a morada, e, depois de uma longa hesitação, fez uma cruzinha no espaço que
indicava assinatura não exigida.

Nessa tarde, oito homens reuniram-se ao balcão do armazém geral de Mother’s Rest. O
dono já lá estava, com as duas camisas e o cabelo sujo, e o primeiro a juntar-se a ele foi o tipo
das peças sobresselentes da loja de irrigação, ao qual se seguiram o condutor do Cadillac, o
gerente zarolho do motel, o criador de porcos, o homem que trabalhava ao balcão no
restaurante e o Moynahan que tinha levado um pontapé nos tomates e ficara sem a pistola.
O oitavo homem da reunião apareceu cinco minutos mais tarde. Era um tipo robusto, de
cara corada, que acabara de tomar um duche e com calças de ganga azuis engomadas e uma
camisa clássica. Era mais velho do que Moynahan, do que o tipo das peças sobresselentes e do
que o condutor do Cadillac. Mais novo do que o gerente do motel e do que o dono do armazém
e mais ou menos da mesma idade do criador de porcos e do homem do balcão. Tinha feito um
brushing ao cabelo, como um pivô de um noticiário televisivo. Os outros sete tipos ficaram
hirtos e endireitaram-se quando ele entrou, calando-se todos e esperando que o homem falasse
primeiro.
Foi direito ao assunto.
— Eles vão voltar? — perguntou.
Ninguém respondeu. Sete olhares inexpressivos.
O oitavo tipo disse:
— Expliquem-me ambas as perspetivas.
Seguiram-se alguns momentos de silêncio, cheios de embaraço e de hesitações, e depois o
tipo das peças afirmou:
— Eles não vão voltar porque nós fizemos o que era preciso. Não conseguiram nada aqui.
Provas ou testemunhas. Porque haviam de voltar para um buraco sequinho?
E o condutor do Cadillac contrapôs:
— Vão voltar por ter sido o último paradeiro conhecido do Keever. Vão voltar as vezes que
forem precisas. Não estando a conseguir descobrir nada, onde hão de recomeçar?
— E de certeza que não conseguiram nada aqui? — perguntou o oitavo tipo.
— Ninguém lhes disse nada. Nem uma palavra — retorquiu o homem do balcão.
E o dono do armazém acrescentou:
— Só utilizaram o telefone público uma vez. Tentaram ligar para três números, ninguém
atendeu e depois foram-se embora. Pessoas com informações escaldantes não fazem isso.
— Então o consenso é que eles não descobriram nada?
— O con… quê?
— A vossa opinião.
O condutor do Cadillac respondeu:
— A nossa opinião é que não descobriram nadinha de nada. Foram parar à minha loja, à
procura de um tipo qualquer que não existe chamado Maloney. Estavam a leste. Mas vão voltar
à mesma. Sabem que o Keever esteve cá.
— Então sempre descobriram alguma coisa.
O silêncio caiu sobre o armazém.
E o zarolho disse:
— Nós concordámos. A ideia era que parecesse que ele se tinha deslocado para outro sítio
qualquer. Nunca foi negar que tivesse estado cá.
— E com que atitude é que eles se foram embora? — perguntou o oitavo homem.
O criador de porcos respondeu:
— O tipo estava a armar-se em bom. Uma espécie de consolação, achei eu. Para se sentir
melhor. A fazer-se de duro por saber que estava derrotado. Acho que a rapariga ficou um
bocado envergonhada.
— E vão voltar?
— Eu voto no não.
— E quem vota no sim?
O condutor do Cadillac foi o único a levantar a mão.
E o oitavo homem disse:
— Uma maioria de seis para um. O que é uma avaliação válida. Acho que têm basicamente
razão. E estou orgulhoso de todos. Eles vieram cá, só descobriram aquilo que nos podíamos dar
ao luxo que soubessem e foram-se embora. Só com uma ínfima hipótese de poderem voltar.
O embaraço e as hesitações deram lugar a manifestações mais animadas. Os peitos
encheram-se e os lábios descaíram, em esgares de timidez autodepreciativos.
— Mas são as hipóteses ínfimas que fazem girar o mundo — disse o oitavo homem.
Os esgares passaram a solenes assentimentos de cabeça, sete homens muito sérios a
concordarem sisudamente com uma pérola de sabedoria.
— E para onde é que eles foram? — perguntou o oitavo homem.
Sete encolheres de ombros e sete olhares inexpressivos.
O oitavo homem respondeu:
— Na verdade, não interessa. A não ser que estejam a ir para Los Angeles. O jornalista é o
nosso único ponto fraco. A julgar pelo que ficámos a saber do Keever, é a única maneira de eles
arrombarem o cadeado.
— Uma hipótese num milhão — retorquiu Moynahan. — Como podiam eles sequer saber
do que andam à procura? E como ia o Westwood sequer saber aquilo que tem?
— São essas hipóteses que fazem girar o mundo.
— Supostamente, somos completamente invisíveis — comentou o gerente do motel. — Não
somos? Não é para isso que pagamos?
— Vocês não pagam nada. Eu é que pago.
O silêncio instalou-se de novo no armazém, até que o tipo das peças pegou na deixa. E
disse:
— Okay, não é para isso que tu pagas?
— É, sim. E para mais. Pago assistência consoante e quando necessito. É como na Triple-A.
Faz tudo parte do serviço.
— Sair do nosso círculo é dar um grande passo — respondeu o criador de porcos.
— É, sim — repetiu o oitavo homem. — Há desvantagens consideráveis. Mas também
vantagens. Devíamos falar delas.
— Que tipo de assistência? — perguntou Moynahan.
— Há um menu. Recebo aquilo que pago. Vai do mínimo ao máximo.
E o dono do armazém disse:
— Acho que devíamos começar pela vigilância. No mínimo. Se se aproximarem do
Westwood, no jornal, precisamos de saber isso imediatamente. Para estarmos preparados para
o que vem a seguir. Para o caso de a tal hipótese nos ser desfavorável.
Os outros seis puseram-se a olhar para a cara do oitavo homem, à espera que ele deitasse
por terra a ideia, e, quando isso não aconteceu, começaram a assentir, concordando todos sábia
e sensatamente.
O oitavo homem disse:
— Devíamos fazer uma votação. Quem é a favor da vigilância?
— Estamos a falar da solução mais básica no menu? — perguntou Moynahan.
O oitavo homem assentiu.
— Telefones, Internet e vigilância física.
— E até onde vai o menu?
— Até àquilo a que chamam uma solução permanente.
— Dessa parte podemos nós tratar.
— E como está o teu irmão?
— Quer dizer, da próxima vez, vamos estar preparados.
— Estão a mudar de opinião? Agora já acham que vai haver uma próxima vez?
Silêncio no armazém.
— Quem vota a favor da vigilância? — perguntou o oitavo homem.
Ergueram-se sete mãos.
— Ainda bem que concordam — disse o oitavo homem. — Porque já fiz a chamada. A
vigilância já começou há uma hora. Enviaram um homem chamado Hackett. Um dos melhores
que têm, disseram. Com competências numa série de áreas.
VINTE E TRÊS

A empresa de aluguer de carros disponibilizava um vaivém entre o recinto de entrega e os


terminais de passageiros, o que era conveniente, mas lento. Acrescentava outra meia hora a um
dia já longo. Reacher e Chang chegaram ao balcão ao início da noite. Ainda iria partir um voo
para Los Angeles, mas estava esgotado. Não restava mais nenhum lugar e havia uma longa fila
em lista de espera. Duas falhas anteriores de outros aviões tinham provocado o caos.
O próximo voo disponível era às oito da manhã. Não tinham escolha. Avançaram para esse.
Chang tinha um bilhete de regresso sem data marcada e utilizou-o, ao passo que Reacher
comprou o dele. O funcionário informou-os de que o embarque teria início cerca de quarenta
minutos antes da partida, por volta das sete e vinte da manhã, e que, até lá, podiam ir para um
hotel ao pé do aeroporto, que ficava a cinco minutos de autocarro.
Preferiram ir a pé, com Reacher a carregar a mala de Chang em vez de se servir das
rodinhas, por achar que o betão pré-fundido dos passeios as estragaria. O hotel pertencia a uma
cadeia, branco e limpo do lado de fora e bege e quente do lado de dentro, com néons em tons
de verde a publicitar-lhe o nome e a função. Estava um pequeno ajuntamento no átrio. Talvez
nove pessoas, que não estavam propriamente a fazer fila para a receção, a maioria estava
simplesmente ali parada, a falar ao telemóvel, com um ar frustrado ou ambas as coisas. Duas
falhas anteriores de outros aviões tinham provocado o caos. Reacher não costumava andar
muito de avião, mas reconheceu os sinais.
A rececionista, com um casaco justo e um lenço à volta do pescoço, chamou-os. O gesto
que fez possuía uma espécie de urgência secreta.
— Só me resta um quarto. Se os senhores o quiserem, é melhor agarrarem-no já — avisou.
— Só um quarto? — perguntou Chang.
— Sim, minha senhora, porque as companhias aéreas tiveram um problema hoje.
— E há mais algum hotel?
— Ao pé do aeroporto, não.
— Ficamos com o quarto — disse Reacher.
Chang olhou para ele e Reacher soltou:
— Havemos de nos arranjar.
Pagou e recebeu uma chave magnética. Quinto andar, quarto 501, elevadores à esquerda,
serviço de quartos até às onze, pequeno-almoço à parte, wi-fi grátis. Dois casais tinham feito
fila atrás deles e estavam prestes a ter uma desilusão. Reacher e Chang subiram no elevador até
ao quinto andar e deram com o quarto. Era bege e verde-hortelã lá dentro e perfeitamente
adequado. Mas Chang não comentou nada.
— Pode ficar com ele — disse Reacher.
— E que vai você fazer? — perguntou ela.
— De certeza que me hei de lembrar de alguma coisa.
Entrou com a mala dela no quarto e deixou-a junto à cama. Deu-lhe a chave e disse:
— Devíamos ir jantar. Antes que as criancinhas sem casa fiquem com as mesas todas.
— Deixe-me só refrescar. Vou ter consigo ao restaurante.
— Okay.
— Não precisa de se refrescar? Se quiser, pode usar a casa de banho primeiro.
Reacher olhou-se ao espelho. Cabelo cortado há pouco, barba feita há pouco, duche tomado
há pouco e roupa nova.
— Penso que melhor que isto seja impossível — atirou.

O restaurante ficava no rés do chão, separado da zona da receção pelo átrio com os
elevadores. Era um espaço agradável, com cortinados, uma carpete e madeira clara, apenas
ligeiramente prejudicado por acabamentos antinódoas e antiabrasão, com uma camada de
vinil, em todas as superfícies. Era amplo, mas encontrava-se quase cheio. Reacher ficou à
espera e foi posteriormente conduzido até uma mesa para dois perto de uma janela. Não havia
verdadeiramente vista. Apenas luzes amarelas e um parque de estacionamento cheio de limpa-
neves, postos na prateleira até depois do verão.
Chang chegou passados oito minutos, de cara lavada e cabelo penteado, com uma t-shirt
nova. Sentou-se à frente de Reacher, com bom aspeto, novamente enérgica, claramente
revigorada pelo simples conforto que era a água da torneira. Mas foi então que a cara dela
mudou, como se tivesse percebido de repente o outro lado da questão: fosse o que fosse que ela
tivesse, ele não tinha.
— Não se preocupe com isso — disse ele.
— E onde vai dormir? — perguntou ela.
— Posso dormir aqui mesmo.
— Numa cadeira de casa de jantar?
— Estive treze anos no exército. Aprendemos a dormir basicamente em todo o lado.
Ela hesitou uns segundos e, a seguir, perguntou:
— Como foi o exército?
— No geral, bastante bom. Tenho recordações felizes e não me posso queixar. A não ser em
relação ao óbvio.
— Que era?
— A mesma coisa que no seu caso, tenho a certeza. O chorrilho fantástico de tretas que saía
da boca de superiores sem nada melhor para fazer.
Ela sorriu.
— Sim, havia disso.
— E foi por isso que se foi embora?
Ela parou de sorrir.
— Não foi bem — respondeu.
— Eu conto-lhe, se me contar — disse ele.
— Não sei se quero.
— O que pode acontecer assim de tão mau?
Hesitou novamente uns segundos, inspirou e respirou fundo e disse:
— Comece você.
— Andavam a dispensar gente e, portanto, a escolher as pessoas com muito cuidadinho. A
minha folha de serviços era assim-assim e, naquele preciso momento, havia um tipo em
concreto que me queria lixar. Tendo em conta essas duas circunstâncias, não foi propriamente
uma grande surpresa o meu processo ter ido parar à bandeja de saída.
— Que tipo em concreto?
— Era tenente-coronel. Um tipo gordo, com um trabalho de secretaria. Relações-públicas,
no Mississípi. Eu estava lá, com uma situação má, ele ficou todo nervosinho com uma coisa
ridícula, eu fui ligeiramente impaciente com ele, verbalmente, cara a cara, e ele ofendeu-se. E
vingou-se, simplesmente porque a ocasião jogou a favor dele. Eu já me tinha safado com coisas
muito piores, quando não andavam a dispensar gente.
— E não se podia ter oposto a isso?
— Podia ter cobrado uns favores. Mas o mal já estava feito. Não havia volta a dar. Se eu
vencesse, o tenente-coronel perdia e os outros oficiais não iam gostar disso. Não me iam querer
perto deles. Ia acabar a guardar uma estação de radar na ponta norte do Alasca. No pino do
inverno. Não tinha nada a ganhar. E, além disso, serviu para me rebentar a bolha. Não me
queriam mesmo lá. Acabei por perceber isso. Portanto, não me opus. Recebi uma dispensa
honrosa e saí do exército.
— Quando foi isso?
— Há muito tempo.
— E continua a andar.
— Isso é demasiado profundo.
— Tem a certeza?
— No meu âmago, sou uma pessoa muito superficial.
Ela não respondeu. Apareceu uma empregada e pediram. Quando ela se foi embora,
Reacher disse:
— É a sua vez.
— De quê? — respondeu Chang.
— A sua história.
Hesitou outra vez uns segundos.
— Num certo sentido, é igual à sua — disse ela. — Não tinha nada a ganhar. Mas a
responsável fui eu. Deixei-me encurralar. Não vi a coisa.
— Não viu que coisa?
— Assaltaram-me a casa. Não levaram nada, não revistaram nada, não partiram nada nem
deixaram nada. O que, na altura, não compreendi. Estava a trabalhar num caso de lavagem de
dinheiro. Havia imensa massa e uma cadeia labiríntica de empresas-fantoche, como sempre,
mas eu tinha apanhado o tipo. Só que era uma situação difícil de provar. Aliás, quase
impossível. Estava inclinada a esquecer aquilo. Não vale a pena recomendar uma acusação se
não houver forma realista de a vencer. E foi então que o tipo veio ter comigo. Eu estava
literalmente prestes a dizer-lhe que o processo estava quase a ser encerrado. Só que ele falou
primeiro e estava dois passos atrás. Disse-me que, se eu não desistisse imediatamente daquilo,
ia alegar que eu tinha aceitado um suborno, logo no início, para fazer vista grossa à coisa, mas
que depois, mais tarde, tinha mudado de ideias e o apunhalara pelas costas. E ficado com o
dinheiro à mesma. Achou que o meu trabalho ficaria manchado, ou seria mesmo excluído, e
que se safaria.
— As pessoas são capazes de dizer tudo e mais alguma coisa. Como ia ele provar isso?
— Tinha aberto uma conta nas Caraíbas, em meu nome, e transferiu para lá o dinheiro do
suborno. Estava mesmo ali, mais do que visível. Dinheiro de verdade e imenso. Ia corroborar
tudo o que ele estava a dizer.
— Só que foi ele que abriu a conta, não foi você. Tem de haver registos.
— Explicou-me que tinha sido uma mulher a entrar-me em casa. Não levou nada, não
revistou nada, não partiu nada nem deixou nada. Mas serviu-se do meu telefone fixo. Abriu a
conta em meu nome, ali mesmo, em minha casa, e isso está escarrapachado na minha conta
telefónica. O que me deixou entre a espada e a parede. Como podia eu provar que não tinha
feito aquela chamada? Imaginei que, se calhar, o banco estrangeiro teria uma gravação, ou a
NSA, mas duas vozes femininas talvez fossem difíceis de distinguir num telefonema de longa
distância, sobretudo se ela estivesse a tentar imitar-me, o que provavelmente estava, já que este
tipo era bastante organizado. Sabia o meu número da Segurança Social, por exemplo, e o nome
de solteira da minha mãe. Que, pelos vistos, era a minha pergunta de segurança.
— Então o que fez?
— O que ele mandou. Desisti do caso. De imediato. Encerrei o processo dele. Que era o que
já ia fazer. Acho.
— E onde anda esse tipo agora?
— Continua em atividade.
— E que aconteceu ao dinheiro do suborno?
— Desapareceu. Segui-lhe o rasto, tal como ele sabia que eu faria. E descobri-o numa
empresa de fachada nas Antilhas Holandesas. Pelos vistos, eu tinha adquirido uma posição
minoritária num veículo financeiro, como investimento a longo prazo. E ele era o acionista
principal. Estávamos ligados para sempre.
— E a seguir?
— Resolvi abrir o jogo. Contei tudo ao meu superior. Percebi que ele queria acreditar em
mim, mas o FBI não funciona à base da fé. E, desse momento em diante, passaria a não servir
para nada como agente no ativo. O meu testemunho seria sempre automaticamente suspeito,
mesmo anos mais tarde. Teria sido o sonho molhado de qualquer advogado de defesa. Do
género: senhora agente especial, fale-nos, por favor, do suborno que não pode provar que não
recebeu. Portanto, teria ido fazer-lhe companhia para aquela estação de radar no Alasca. No
pino do inverno. Não tinha nada a ganhar. Por isso, demiti-me.
— Isso foi duro.
— Ganham-se umas e perdem-se outras.
— Não, ganham-se bastantes e depois perde-se uma. Sem segundas hipóteses.
— Não me sinto mal a fazer o que faço.
— Mas?
— Não sei por quanto mais tempo vou conseguir continuar a fazer isso. Não me parece que
seja um trabalho para a vida inteira.
— Para o Keever é capaz de ter sido.
— Isso é muito direto.
— Qual era a história dele?
— Era?
— Pronto, é.
— Ouvi dizer que ele estava à beira de sofrer uma terceira admoestação. O FBI é muito
cauteloso e o Keever tinha o hábito de se atirar às coisas à maluca. Sem plano nem apoio.
Diziam que estava a pôr os casos em risco. Tal como a ele próprio e aos colegas. À terceira,
também estaria habilitado a ir parar ao Alasca. E essa estação de radar ia começar a ficar
apinhada de gente. Por isso, demitiu-se, antes da audiência. Imagino que tenha achado que era
a única coisa digna a fazer. E antes que o diga, sim, claro que concordo, provavelmente foi isso
mesmo que ele fez em Mother’s Rest. Atirou-se à maluca. Não esperou por apoio.
A empregada voltou, com a comida e enchendo-lhes novamente os copos. Quando se foi
embora, Reacher disse:
— Mas o Keever ligou a pedir apoio. Até aí, chegou. Sabemos isso. Porque havia de ligar
para depois não esperar?
— Impaciência? Urgência? — retorquiu Chang.
— Se calhar, apanharam-no primeiro. Enquanto ele estava à espera. Se calhar, não se atirou.
— Isso parece uma mensagem de serviço público em prol de todos os estouvados do
mundo.
— Não sabemos o que aconteceu.
— Quem me dera que ele se tivesse atirado, mas para fora da coisa.
— É sempre uma medida sensata.
— Aposto que nunca fez isso.
— Até lhe perdi a conta. E é por isso que ainda aqui estou, a jantar consigo. O universo
caótico. O darwinismo em ação.
Ela hesitou uns segundos e, a seguir, soltou:
— Posso perguntar-lhe uma coisa?
— Claro — respondeu ele.
— Estamos a jantar?
— Era o que dizia no menu. O almoço era diferente e não há dúvida de que isto não é o
pequeno-almoço.
— Não, estou a falar de estar a jantar, por oposição a estar a comer qualquer coisa na
estrada.
— Ou seja, à luz das velas e com um piano a tocar?
— Não necessariamente.
— Violinistas e tipos a venderem rosas?
— Se for apropriado.
— Como num encontro romântico?
— Genericamente falando, sim — respondeu ela.
— Quer uma resposta sincera? — retorquiu ele.
— Sempre.
— Imagine que ontem tínhamos encontrado o Keever, para aí a sair do comboio ou caído
num campo de trigo qualquer, com o pé torcido e um bocado de fome e sede, mas, fora isso,
okay, então, sim, pode crer que a tinha convidado para jantar e, se tivesse aceitado, estaríamos a
ter esse jantar basicamente agora, portanto suponho que isto cumpra mais ou menos os
requisitos.
— Só mais ou menos?
— Não encontrámos o Keever. Portanto, em parte, ainda continua a ser comer qualquer
coisa na estrada.
— Mas tinha-me convidado para jantar?
— Absolutamente.
— Porquê?
— É o género de pessoa com quem gosto de jantar.
Ficou calada durante um longo momento, cinco ou seis segundos, até a situação ser quase
desconfortável, e depois respondeu:
— E eu teria aceitado, pela mesma razão.
— Extraordinário.
— Portanto, não se engane. Estamos a jantar. Não estamos a comer qualquer coisa na
estrada. E isso é um facto, não é uma pergunta.
— Então porque me perguntou?
— Para ter a certeza de que sabia.

Reacher não precisou de nenhuma cadeira de jantar nessa noite. Comeram sobremesa e
beberam café, lenta e descontraidamente, sem pressas, preferindo ambos confiar no inevitável,
e a seguir Chang pagou, levantando-se, e Reacher levantou-se também, com ela a dar-lhe o
braço, como se fossem um velho casal de há muitos anos, e saíram do restaurante, lenta e
descontraidamente, sem pressas, esperando pelo elevador, subindo até ao quinto piso e abrindo
o quarto.
E depois as coisas ficaram um bocadinho menos lentas, um bocadinho menos
descontraídas e um bocadinho mais apressadas. Chang era quente e fragrante, suave e com
braços e pernas compridos, nova mas não uma miúda, suficientemente resistente para Reacher
fazer força e suficientemente resistente para ele não ter de se preocupar. Reacher gostava
bastante dela e ela também parecia gostar bastante dele. A seguir, conversaram durante um
bocado, depois ela adormeceu e, por fim, ele fez o mesmo, da melhor maneira que conhecia.
VINTE E QUATRO

O embarque começou mesmo a horas, às sete e vinte da manhã. Chang puxou a mala com
as rodinhas ao longo da manga e Reacher foi seguindo o objeto, parando apenas junto aos
lugares de preço reduzido passados mais ou menos dois terços do avião. Chang enfiou a mala
no compartimento superior e sentou-se à janela. Reacher sentou-se na coxia. E perguntou:
— Conheces bem Los Angeles?
— O suficiente para descobrir o prédio do jornal — respondeu ela.
— Se calhar, ele trabalha de casa.
— Nesse caso, não se vai encontrar connosco lá. De certeza que a morada dele é secreta,
ainda que o telemóvel não seja. Vai escolher um café do bairro.
— Por mim, tudo bem. Mas que bairro? Conheces todos?
— Calculo que tenhamos de alugar outro carro. Devíamos arranjar um com GPS.
— A não ser que ele esteja no jornal e não se importe de se encontrar connosco lá.
Podíamos apanhar um táxi.
— Vamos chegar muito cedo. Ele ainda não vai estar lá.
— Okay, ligamos-lhe para o telemóvel quando aterrarmos e deixamo-lo decidir por nós.
Café ou jornal. Carro alugado ou táxi.
— Se aceitar sequer falar connosco.
— Duzentas mortes. Aí está uma história.
— Que ele já ouviu, segundo dizes. Quando o cliente do Keever lhe telefonou. E que não o
parece ter impressionado lá muito.
— Há uma diferença entre ouvir e escutar com atenção. E o nosso problema é esse. Duvido
que o Westwood saiba sequer o que tem. Não escutou com atenção e os apontamentos dele não
parecem dizer grande coisa. Vai ser como se estivéssemos a arrombar uma fechadura com
esparguete.
— E se não conseguirmos?
— Ai isso é que conseguimos.
— Estás muito otimista hoje de manhã.
— É uma consequência inevitável. Tive uma noite muito agradável.
— Eu também.
— É bom saber.
— Como te chamam os teus amigos?
— Reacher.
— E Jack, não?
Abanou a cabeça.
— Até a minha mãe me chamava Reacher.
— E tens irmãos?
— Tinha um irmão chamado Joe.
— E onde está ele agora?
— Em lado nenhum. Morreu.
— Desculpa.
— Não tiveste culpa.
— E a tua mãe chamava-lhe o quê?
— Joe.
— E a ti chamava-te Reacher?
— É o meu nome, tanto quanto Jack. Estás a dizer que os teus amigos não te tratam por
Chang?
— Fui a detetive Chang e depois a agente especial Chang, mas isso foi só no trabalho.
— Então chamam-te o quê?
— Michelle — respondeu ela. — Ou, às vezes, Shell, para abreviar. O que eu até gosto
bastante. É um diminutivo giro. Mas com o meu apelido, não. Shell Chang parece uma coisa
entre uma estrela porno coreana, uma empresa petrolífera no mar da China Meridional e um
rolo de moedas de vinte e cinco cêntimos a ser largado para dentro de uma registadora.
— Okay — retorquiu Reacher. — Que seja então Michelle. Ou Chang.
E foi então que o avião descolou, perseguindo o amanhecer do outro lado das montanhas a
oeste.

A sete horas para leste de carro, em Mother’s Rest, o amanhecer já tinha ocorrido. O
comboio da manhã já chegara e partira. A hora de ponta do pequeno-almoço no restaurante
começava a abrandar. O tipo das duas camisas tinha aberto o armazém geral. E o das peças
sobresselentes também tinha aberto a loja e já estava entalado atrás do balcão, a separar várias
pilhas de faturas. O condutor do Cadillac estava a registar os recibos das suas correspondentes
sete contas: Western Union, MoneyGram, faxes, fotocópias, FedEx, UPS e DHL. O Moynahan
que tinha levado um pontapé nos tomates e ficara sem a pistola ainda estava em casa, a cuidar
do irmão, que continuava um bocadinho atordoado.
E o gerente zarolho estava a sair da receção do motel, a parar para cheirar o ar e olhar em
volta, para o perímetro interior da ferradura, para os lugares de estacionamento, para o passeio
ao longo dos quartos do rés do chão e para o passadiço ao longo dos do primeiro andar. Uma
inspeção visual sem pressas. Às lâmpadas, que funcionavam todas. Às espreguiçadeiras, todas
muito bem alinhadas. Todas ali. Tudo sossegado. Tudo calmo. O 214 estava vago. E o 215
também.
Não iam voltar, pensou.
Tudo ótimo.

O terminal de chegadas do LAX estava apinhado de gente, por isso Reacher e Chang
tiveram de abrir caminho até um canto para descobrir um sítio tranquilo de onde pudessem
telefonar. Chang escondeu-se atrás de um pilar e marcou o número. E acordou Westwood. Não
começava o dia cedo. Primeiro, mostrou-se envergonhada, depois, apaziguadora e, por fim,
falou do que interessava. Voltou a apresentar-se e disse que precisava de se encontrar com ele,
já que uma coisa que tinha parecido pequena a ambos, de repente, já não era assim tão
pequena. Disse que havia um número credível de duzentas mortes. Disse que, como ex-agente
do FBI, estava a levar aquilo a sério. Disse que o colega era das forças armadas e que também
estava a levar aquilo a sério. E disse que, claro, os direitos para o livro ainda não tinham sido
vendidos.
A seguir, ouviu uma morada com atenção e desligou.
— Café — atirou. — Em Inglewood.
— Isso é perto. Quando? — perguntou Reacher.
— Trinta minutos.
— É melhor apanharmos um táxi. Não temos tempo para alugar um carro.
A cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem das calças de ganga
engomadas e do brushing no cabelo atendeu uma chamada no telefone fixo. Triple-A, mas não
era bem. O homem deles, Hackett, tinha registado o primeiro contacto. Uma chamada de
telemóvel para telemóvel, com seis minutos de duração, entre Westwood, que estaria
presumivelmente em casa, tendo em conta as horas, e uma mulher que disse chamar-se Chang,
que estava no aeroporto a julgar pelo barulho em pano de fundo e que tinha um colega que
referenciou como militar. Tinham falado em mortes e marcado um encontro, num café de
Inglewood, que Hackett iria acompanhar.

A fila para os táxis era comprida mas rápida e Inglewood ficava logo do outro lado da 405, a
seguir ao aeroporto, por isso chegaram mais do que a tempo ao café indicado. Era um de
muitos de ambos os lados da rua. A maior parte tinha mesinhas pequeninas no exterior e
palavras italianas escritas nos quadros de ardósia, mas não o que Westwood escolhera. Era uma
autêntica antiguidade em vinil e linóleo, que as décadas tinham desbotado e tornado de uma
baça cor de caqui. Tinha cerca de um quarto dos lugares ocupado, por homens sentados
sozinhos, todos a ler jornais em silêncio ou a olhar para o vazio. Nenhum tinha ar de editor de
Ciência.
— Chegámos cedo — disse Chang. — Ele vai chegar atrasado.
Por isso, escolheram um reservado e sentaram-se lado a lado numa mesa de madeira
laminada, que tinha um banco estofado em vinil plissado que talvez tivesse começado por ser
vermelho e reluzente, mas que agora era tão caqui como tudo o resto. Pediram café, um a
escaldar e o outro gelado. E esperaram. Estava tudo muito silencioso. Só se ouviam o virar das
páginas dos jornais e o tinir das chávenas de barro vidrado nos pires do mesmo material.
Cinco minutos.
Até que Westwood chegou por fim. Não era nada parecido com aquilo de que Reacher
estava à espera, mas a realidade servia tão bem como as ideias preconcebidas. Tinha ar de
amante da natureza, não de quem vivia encafuado, e, ao contrário de um franganote, era um
tipo robusto. Parecia um naturalista ou um explorador. Tinha cabelo curto, mas desgrenhado,
louro, mas a caminho do grisalho, e barba do mesmo tamanho e cor. Tinha a cara vermelha
por andar ao sol e linhas de rugas à volta dos olhos. Talvez tivesse uns quarenta e cinco anos. A
roupa que trazia era uma junção de tecidos de alta tecnologia e de vários fechos de correr, mas
estava tudo velho e amarrotado. Trazia botas de montanha, com atacadores pintalgados a
lembrar cordas de alpinismo em miniatura. E tinha um saco de lona ao ombro, grande como o
de um carteiro.
Parou logo a seguir à porta e identificou de imediato Chang, já que ela era a única mulher lá
dentro. Sentou-se à frente deles, deslizando pelo vinil gasto e arrastando o saco. Pousou o
antebraço em cima da mesa e disse:
— Presumo que o vosso outro colega continue desaparecido. O senhor Keever, não era?
Chang assentiu e respondeu:
— Chegámos a um beco sem saída, no que diz respeito a ele. Não sabemos para onde nos
virar. Só podemos seguir-lhe o rasto até certo ponto, depois disso já não.
— E já ligaram para a polícia?
— Não.
— Então, acho que a minha primeira pergunta é: e porque não?
— Estaríamos só a participar o desaparecimento de uma pessoa. Nesta fase, não passa disso.
É um adulto, que desapareceu há três dias. É possível que tomassem nota da ocorrência, mas
ninguém iria fazer nada em relação a isso. Passaria logo para segundo plano.
— Duzentas mortes são capazes de lhes interessar.
— Não podemos provar nada. Não sabemos quem, porquê, quando, onde nem como.
— Então estou a oferecer-lhes o pequeno-almoço por causa de um tipo que ainda nem
participaram que tinha desaparecido e de duzentas mortes de que não sabem nada?
— Está a oferecer-nos o pequeno-almoço porque vai ficar com os direitos para o livro. Pode
oferecer os pequenos-almoços todos.
— Só que, para já, só este pequeno-almoço já vale mais do que os direitos para o livro. Para
já, os direitos para o livro e cinquenta cêntimos dão-me para pagar uma chávena de café.
— Você é cientista. Tem de pensar nisto cientificamente — afirmou Reacher.
— Em que sentido?
— Estatisticamente, se calhar. E linguisticamente. Com um bocadinho de sociologia
misturado. Além de um conhecimento profundo e nato da natureza humana. Pense no número
duzentos. Parece um número muito bonitinho e redondinho, mas, na verdade, não é. Ninguém
diz duzentos só por acaso. As pessoas dizem cem ou mil. Ou centenas ou milhares. Duzentas
mortes parece-me uma coisa concreta. Como um número verdadeiro. Se calhar, arredondado
de cento e oitenta e muitos ou de cento e noventa e tal, mas parece-me que há informação por
trás dele. Pelo menos, que chegue para me manter interessado. Por exemplo. Falando como
investigador.
Westwood ficou calado.
E Reacher continuou:
— Além disso, partimos do princípio de que a polícia já ouviu a história e que não fez caso.
Westwood assentiu.
— Por partirem do princípio de que o cliente do senhor Keever telefonou a toda a gente, da
Casa Branca para baixo. Incluindo a mim.
— E é por aí que temos de começar. Pelo cliente. Precisamos de encontrar o tipo.
Precisamos de ouvir a história outra vez, do início, como o Keever ouviu. E depois talvez
possamos adivinhar o que aconteceu a seguir.
— Recebo centenas de chamadas. Já lhes disse.
— Quantas?
— Bem visto.
— E anota-as a todas. Também já nos disse isso.
— Mas não com grandes pormenores.
— Se calhar, conseguimos juntar as peças.
— Para isso, precisam, no mínimo, de um nome.
— E acho que temos um nome.
Chang olhou para Reacher.
— É possível — disse-lhe Reacher.
E depois voltou-se outra vez para Westwood. E disse:
— É provável que não seja um nome verdadeiro, mas é capaz de já ser qualquer coisa.
Disse-nos que, a determinada altura, acaba sempre por bloquear as chamadas chatas. Quando
começam a abusar. Imagine que um tipo ficava frustrado com isso e resolvia tentar recomeçar
voltando a falar consigo com um nome e um número falsos?
— É uma possibilidade — respondeu Westwood.
Reacher virou-se para Chang e disse:
— Mostra-lhe o marcador do Keever.
Chang tirou o papel do bolso, alisando-o em cima da mesa. O número de telefone que
começava por 323 e Mother’s Rest — Maloney.
— É o meu número. Não há dúvida — afirmou Westwood.
E Reacher retorquiu:
— Achámos que isto queria dizer que havia um tipo em Mother’s Rest chamado Maloney e
que, de uma maneira ou outra, tinha interesse. Mas esse tipo não existe. Temos a certeza.
Perguntámos e as respostas não foram evasivas. Descartaram isso em absoluto e até
demonstraram alguma perplexidade. Por isso, e se você se tivesse fartado do cliente do Keever,
seja qual for o nome dele, e o tipo resolveu recomeçar voltando a falar consigo com o nome de
Maloney? E, a seguir, telefonou outra vez para o Keever e, como de costume, disse-lhe para
falar consigo, para efeitos de corroboração, só que, dessa vez, o avisou de que o assunto já não
estaria registado no nome verdadeiro dele mas em Maloney, um nome falso? Se calhar, é o que
este apontamento quer dizer.
— Se calhar.
— Tem alguma terceira interpretação?
— Posso confirmar — disse Westwood.
— Agradecíamos. Estamos a agarrar-nos ao pouco que podemos.
— Bem podem dizê-lo. Os apontamentos do Keever são tão maus como os meus.
— Não nos resta mais nada.
— Mas, mesmo assim, com um tipo desaparecido e um rumor acerca de duzentas mortes,
não acham que deviam pelo menos tentar outra vez a polícia?
— Já fui polícia — respondeu Reacher. — E conheci imensos. E nunca conheci nenhum que
fosse atrás de trabalho extra. Por isso, neste momento, ninguém iria prestar atenção. Ainda
não. Posso garantir-lhe isso. Tal como você não o fez.
— Posso confirmar — repetiu Westwood. — Mas não estou a ver como é que um nome
falso vai ajudar.
— Levando-nos ao nome verdadeiro.
— E como é que isso é possível? Está a esconder o nome verdadeiro.
— Confirme que chamadas bloqueou mesmo antes de o Maloney começar a ligar. E é esse o
cliente.
— Vamos encontrar mais do que um candidato. Farto-me de bloquear gente.
— Depois chegamos lá. A geografia pode ser importante. Sabemos que ele contratou um
investigador de Oklahoma City e sabemos que lê o LA Times. Isso é capaz de reduzir um
bocado as hipóteses.
Westwood abanou a cabeça.
— O meu número de telefone não é propriamente fácil de descobrir. Não pago à Google
para que isso apareça logo em destaque. Se o vosso tipo é suficientemente bom para o sacar da
Internet, então anda a ler o jornal em linha. De certeza absoluta. Tipos desses já não compram
nada em papel há uma década. Pode estar a viver em qualquer sítio.
— É bom saber — retorquiu Reacher.
— Vão ter comigo ao meu escritório daqui a uma hora. No edifício do Times.
Chang assentiu e disse:
— Eu sei onde é.
Foi então que a empregada regressou. Westwood pediu o pequeno-almoço e Reacher e
Chang foram-se embora para o deixarem comer.

Passados menos de dez minutos, a cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o
homem das calças de ganga engomadas e do brushing no cabelo atendeu uma segunda
chamada no telefone fixo. O contacto informou-o de que Hackett observara o encontro no café
de Inglewood. Não estava suficientemente perto para ouvir muita coisa, mas apanhara o nome
de Keever e lera nos lábios de Chang que tinham chegado a um beco sem saída, no que dizia
respeito a ele. A seguir, no fim da conversa, deduzira que tinha sido proposto um segundo
encontro, num local que não percebera, mas ouviu Chang dizer que sabia onde era. Para já, não
iria largar Westwood, que de certeza o levaria até lá.
VINTE E CINCO

O LA Times ficava num belo edifício estilo art déco, na esquina da West 1st com a Spring,
em plena Baixa de Los Angeles. A segurança era digna de uma agência governamental. Havia
uma máquina de raios X e um detetor de metais. Reacher não sabia bem porquê. Talvez por
um insuflado sentido de importância. Duvidava que o Times se encontrasse no topo da lista de
alvos de fosse quem fosse. Provavelmente, nem sequer na quarta ou quinta página. Mas não
havia alternativa. Despejou as moedas numa taça e passou por baixo do aro. Chang foi mais
lenta. Ainda tinha a mala, mais o casaco.
Mas lá acabaram por passar, recebendo cartões à entrada e subindo num elevador. O
escritório de Westwood revelou-se uma divisão quadrada, cor de creme, com estantes com
livros e montes de jornais. Havia uma secretária antiga e bonita por baixo da janela, com um
computador com dois ecrãs em cima dela. Westwood estava sentado numa cadeira, diante da
secretária, a ler e-mails. Tinha o gigantesco saco de lona caído no chão, aberto e cheio de mais
livros, jornais e um computador portátil metalizado. Lá fora, ouvia-se o zunzum intenso de
pessoas atarefadas a fazerem coisas importantes no corredor. E, pela janela, o céu cintilava com
a perpétua luz do sol da Califórnia do Sul.
— Já os atendo. Sentem-se — disse Westwood.
Havia qualquer coisa na voz dele.
Para se sentarem, foi necessário um pouco de esforço. Reacher e Chang afastaram pilhas de
revistas e jornais de cima de duas cadeiras. Westwood fechou o correio eletrónico e virou-se
para trás.
— O departamento jurídico do jornal não está lá muito contente. Estão em jogo questões de
confidencialidade. A nossa base de dados é privada — disse.
— E que género de inconvenientes preveem? — perguntou Chang.
— Indeterminados. São advogados. Só há inconvenientes.
— É uma investigação importante.
— E eles dizem que as investigações importantes vêm com mandados e intimações. Ou, no
mínimo, com participações de pessoas desaparecidas.
— E porque foi falar com os advogados? — retorquiu Reacher.
— Porque sou obrigado a fazê-lo — respondeu Westwood.
— E já falou com o seu editor-chefe?
— Não vê aqui nenhuma notícia. Investigámos o passado do Keever. Deve andar por aí nos
copos. É um velho detetive privado que já passou do prazo.
Chang ficou calada.
E Reacher retorquiu:
— Nunca vi o tipo. Mas já conheci imensos iguais a ele. Acima da média em todos os
aspetos, só que com pouco domínio dos impulsos. Mas esses impulsos nasciam das melhores
intenções. E, por mais passado do prazo que estivesse, era um James Bond ao pé da população
de Mother’s Rest. Mas, mesmo assim, apanharam-no.
— Não sabem se isso aconteceu.
— Mas imagine que sim. Imagine que há ali qualquer coisa esquisita, com duzentos mortos.
Já é uma notícia, certo? Já é uma coisa que punha o LA Times a babar-se todo. Podiam publicá-
la durante semanas. Podia ganhar um Pulitzer. Podia aparecer na televisão. Podia arranjar um
contrato para um filme.
— Voltem a contactar-me assim que tiverem qualquer coisa de substancial.
— E quais acha que são as probabilidades de isso acontecer?
— Uma em cem.
— E não em duzentas?
— As vossas teorias não servem de prova.
— Pois aqui tem outra teoria. Saímos daqui, deixando a possibilidade, uma em cem, de
haver algures uma notícia importante, mas como já cá não estamos, já não se trata de um
exclusivo do Times, o que quer dizer que, se essa possibilidade der frutos e a notícia vier a lume,
vai haver uma luta desenfreada, com os jornais a competirem todos pela pole position.
Portanto, se for um editor de Ciência inteligente, mesmo sendo só uma hipótese de um em
cem, perceberá que tem uma vantagenzinha mínima em utilizar o que sabe para já para se
preparar um pouco com algum tempo. Por isso, aposto que, mal voltemos para o elevador, vai
procurar na base de dados se há telefonemas de um tipo chamado Maloney. Só para ficar
descansado.
Westwood ficou calado.
E Reacher rematou:
— Ou seja, que diferença faz se ainda estivermos aqui dentro?
Não houve resposta durante um longo momento. E foi então que Westwood virou a cadeira
para os ecrãs, carregou no rato e escreveu umas quantas letras em duas caixas. Identificação do
utilizador e senha, calculou Reacher. A base de dados, esperavam eles. Chang inclinou-se para a
frente. O ecrã mostrou uma página de pesquisa. Um software registado qualquer, sem dúvida
apropriado para a tarefa em questão, mas feio. Westwood clicou numa série de opções.
Possivelmente, estaria a isolar os apontamentos tirados. Para evitar resultados irrelevantes. Se
calhar, havia cem Maloneys em Los Angeles dignos de uma notícia. Se calhar, havia duzentos.
Estrelas do desporto, empresários, atores, músicos, dignitários civis.
— Tem de se testar todas as teorias. É uma parte central do método científico — atirou
Westwood.
Escreveu Maloney.
Clicou no rato.
E obteve três resultados.

A base de dados indicava contactos feitos por uma pessoa chamada Maloney em três
ocasiões. A mais recente tinha pouco menos de um mês, a segunda tinha sido três semanas
antes e a mais antiga tinha acontecido duas semanas antes da segunda. No cômputo geral, um
período de cinco semanas, terminado há cerca de quatro. Nas três ocasiões, o número de
telefone fora o mesmo. Tinha como código de área o 501, que ninguém reconheceu.
Westwood não tirara nenhum apontamento sobre o assunto ou o conteúdo dessas três
conversas. Tinha-se limitado a enviar o nome, o número, o dia e a hora para uma pasta
intitulada C.
— Que é? — perguntou Reacher.
— Conspirações — respondeu Westwood.
— Que género de coisa?
— É uma categoria bastante ampla.
— Dê-me um exemplo.
— Os alarmes de incêndio são obrigatórios nas casas por conterem câmaras e microfones
com uma ligação sem fios ao governo. E também têm cápsulas de gás venenoso, para o caso de
o governo não gostar do que andamos a dizer ou a fazer.
— O Keever não ia perder tempo com uma coisa dessas.
— E eu não ia ignorar uma coisa que fosse mais séria.
— Se calhar, foi mal explicada.
— Acho que só pode ter sido.
— De certeza que não se lembra mesmo desse tal Maloney?
Como resposta, Westwood foi clicando até chegar a uma lista por filtrar com todas as
chamadas que tinha recebido. Os ecrãs eram grandes e havia dois, mas, ainda assim, só havia
espaço para uma pequena parte do ano civil.
— E nós estamos aí? — perguntou Reacher.
Westwood assentiu.
— Desde hoje de manhã.
— E em que pasta nos pôs?
— Ainda não decidi.
Chang pegou no telemóvel e marcou o número de Maloney. O código de área 501, mais
sete números. Pôs o telemóvel em alta-voz. Ouviram-se silvos e depois mais nada, enquanto o
aparelho fazia a ligação. E, a seguir, o número tocou.
E tocou e tocou.
Ninguém atendeu e não havia voice mail.
Chang desligou, passado um longuíssimo minuto, e o silêncio invadiu o escritório.
— Temos de descobrir qual é o código de área 501 — exclamou Reacher.
Westwood fechou a base de dados e ligou a Internet. Depois olhou para a porta e disse:
— Quer dizer que parece que estamos mesmo a fazer isto.
— Ninguém vai saber — respondeu Reacher. — Só quando sair o filme.
O computador informou-os que o número 501 era um de três códigos de área que eram
atribuídos aos telemóveis no Arkansas.
— Bloqueou algum número do Arkansas à volta de nove semanas? Se calhar, o nosso tipo
passou do telefone fixo para o telemóvel, tão simples como isso — disse Chang.
Westwood voltou à base de dados, à lista por filtrar com as chamadas, retrocedeu nove
semanas e perguntou:
— Quanto tempo de impasse lhe devemos dar? Quanto tempo demoraria ele a ter a ideia de
mudar de nome e número?
— Deve ter sido uma coisa bastante rápida — respondeu Reacher. — Não estamos a falar de
neurocirurgia. Mas imagino que tenha havido algum impasse. Quase de certeza, por causa de
ressentimentos. Você rejeitou-o. Ele é capaz de ter demorado uma semana para engolir o
orgulho e lhe telefonar outra vez.
Westwood retrocedeu mais um bocado. Dez semanas. Abriu a lista dos códigos de área no
segundo ecrã e foi saltando de um para o outro, comparando linha a linha, e, ao terminar,
anunciou:
— Bloqueei quatro tipos nessa semana. Mas nenhum era do Arkansas.
— Experimente a semana antes dessa. Talvez ele seja mais sensível do que julgámos —
respondeu Reacher.
Westwood voltou a andar para trás, passando em revista os sete dias anteriores e depois
avançando de novo, comparando com a lista dos códigos de área, até dizer:
— Bloqueei dois tipos nessa semana, num total de seis em quinze dias, mas continua a não
haver ninguém do Arkansas.
E Reacher retorquiu:
— Seja como for, estamos a chegar a algum lado. As chamadas com o nome Maloney
começaram há nove semanas, feitas por um tipo que tinha acabado de ser bloqueado numa
janela de tempo recente, e, nessa categoria, há seis candidatos possíveis. A lógica dita que o
nosso tipo seja um deles. E podemos estar a falar com ele daqui a trinta segundos. Na outra
linha dele. Porque você tem todos os números de telefone originais.
VINTE E SEIS

Westwood copiou e colou os seis nomes e números para um novo ecrã, em branco. Os
nomes eram a mistura americana da praxe. Podiam ser dos primeiros seis tipos a serem
escolhidos para qualquer equipa de um campeonato profissional ou podiam ser de seis tipos
quaisquer numa fila numa loja de penhores, nas urgências ou na sala de espera da primeira
classe no aeroporto. Reacher calculou que metade dos números correspondesse a telemóveis, já
que não reconhecia os códigos de área, embora houvesse ali um 773, para Chicago, um 505,
algures no Novo México, e um 901, que achou que pudesse ser de Memphis, no Tennessee.
Westwood pousou o telefone num suporte em cima da secretária e marcou o primeiro
número logo a partir do computador. O suporte tinha colunas e Reacher ouviu o beep-boop-
bap dos impulsos eletrónicos, depois apenas silvos e, por fim, uma voz pré-gravada, num tom
algures entre a repreensão e a afabilidade.
O número estava fora de serviço.
Westwood desligou e verificou o código de área no ecrã. Disse:
— Aquilo era um telemóvel, no norte do Louisiana, talvez em Shreveport ou perto.
Provavelmente, o contrato terminou ou foi cancelado, como é a ordem natural das coisas, e o
número vai ser reatribuído mais cedo ou mais tarde.
Marcou o segundo número.
A mesma coisa. Os sons de marcação, depois nada e, a seguir, a voz da empresa de
telecomunicações, com um discurso contrito e um tom levemente incrédulo por alguém se
lembrar de fazer uma coisa tão parva que até dava pena: tentar ligar para um número de
telefone que, de momento, se encontrava fora de serviço.
— Um telemóvel no Mississípi — afirmou Westwood. — Algures no norte. Em Oxford,
provavelmente. Há lá muitos estudantes universitários. Se calhar, os pais tiraram-no do plano
que contrataram para a família.
— Ou, se calhar, era um telemóvel descartável — retorquiu Reacher. — Daqueles que se
compram e carregam consoante as necessidades e que esgotou os minutos. Ou que foi deitado
fora. Se calhar, são todos descartáveis.
— É possível — respondeu Westwood. — Os mauzões andam a fazer isso há anos, para
impedir que o governo consiga reunir casos contra eles. E, hoje em dia, os cidadãos andam a
aprender a fazer a mesma coisa. Sobretudo o género de cidadãos que ligam para os jornais com
dicas escaldantes sobre conspirações. É assim o mundo moderno.
Marcou o terceiro número. Outro telemóvel, segundo a lista dos códigos de área, dessa vez,
no Idaho.
E esse foi atendido.
Ouviu-se uma voz masculina pelas colunas, alto e bom som. Que disse:
— Sim?
Westwood endireitou-se na cadeira e falou para o ecrã.
— Bom dia. Daqui fala Ashley Westwood, do LA Times, a responder à sua chamada —
disse.
— Está?
— Peço desculpa pela demora. Tive de verificar alguns factos. Mas, agora, concordo. O que
me contou tem de ser revelado. Por isso, preciso de lhe fazer algumas perguntas.
— Bom, sim, claro, isso seria ótimo.
A voz estava mais próxima da de um contralto do que da de um tenor e parecia um
bocadinho rápida e nervosa. Um tipo magro, imaginou Reacher, sempre a tremer e a palpitar.
Talvez com uns trinta e cinco anos, ou mais novo, mas não muito mais velho. Era possível que
tivesse nascido e sido criado no Idaho, mas o mais certo era que não.
— Primeiro, preciso de começar com algo que me crie confiança. Preciso que me confirme
o nome do detetive privado que contratou — disse Westwood.
— O nome do quê? — respondeu a voz.
— Do detetive privado.
— Não percebo.
— Contratou um detetive privado?
— E porque ia eu fazer isso?
— Porque tem de se acabar com aquilo.
— Aquilo o quê?
— Aquilo que me contou.
— Um detetive privado não ia servir para nada. Iam fazer-lhe o mesmo que fazem a toda a
gente. Mal o vissem. Literalmente. Já lhe disse, é como uma linha de mira. Ninguém consegue
evitar aquilo. Não compreende. Ninguém consegue derrotar o raio.
— Então não contratou nenhum detetive privado?
— Não, não contratei.
— E costuma usar outro telemóvel, com o código de área 501?
— Não, não costumo.
Westwood desligou sem lhe dizer mais uma palavra.
— Acho que me lembro deste tipo. Segundo parece, as nossas mentes andam a ser
controladas por raios — explicou.
— Que tipo de raios? — perguntou Reacher.
— Raios que controlam a mente. Saem da parte de baixo dos aviões civis. São uma
exigência da Federal Aviation Administration. É por isso que agora se cobra por levar malas no
porão, para as pessoas usarem antes bagagem de mão, que deixa mais espaço no porão para o
equipamento. E o tipo que o opera. Também está lá em baixo, como um artilheiro à moda
antiga, a disparar raios contra as pessoas. O tipo do Idaho só sai se o tempo estiver encoberto.
Diz que, como é evidente, os estados de passagem entre uma costa e a outra são especialmente
vulneráveis. Faz tudo parte da conspiração elitista.
— Só que o estado que é mais vezes sobrevoado não é de perto nem de longe o Idaho.
— Então qual é?
— A Pensilvânia.
— A sério?
E Chang respondeu:
— Sim, a sério, porque já há imenso tráfego normal ao longo da Costa Leste, mais os
shuttles todos entre D.C. e Nova Iorque e Boston. E agora já podemos avançar? Podemos ligar
para o número seguinte?
Westwood marcou o número seguinte, que era o quarto e que correspondia ao 901, de
Memphis. Provavelmente, o primeiro telefone fixo. Ouviram os sons de marcação e depois o
toque, bem alto no escritório.
A chamada foi atendida.
Ouviu-se o clonk surdo de um auscultador pesado a ser levantado e uma voz masculina a
dizer:
— Está?
Westwood endireitou-se de novo e repetiu a ladainha anterior, o nome, o LA Times, a
resposta ao telefonema, o pedido de desculpas pela demora.
— O senhor vai desculpar-me, mas não sei se estou a compreender — retorquiu a voz.
O tipo era velho, calculou Reacher, falava devagar e educadamente e, se não fosse de
Memphis, era de um sítio qualquer muito perto.
— Ligou-me para o LA Times, há dois ou três meses, para falar de uma coisa que o estava a
preocupar — disse Westwood.
E o velho respondeu:
— Se o fiz, garanto-lhe que não guardo qualquer memória de tal. E o senhor queira
desculpar-me se o ofendi seja de que forma for.
— Não, o senhor não me ofendeu. Não é preciso pedir desculpa. Só quero saber mais sobre
o que o apoquenta. Só isso.
— Oh, tenho muito pouco que me apoquente. Tenho uma situação abençoada.
— Então porque me telefonou?
— Não sei mesmo responder-lhe a essa pergunta. Nem sequer tenho a certeza de o ter feito.
Westwood olhou para Chang e depois novamente para o ecrã, respirando fundo, pronto
para recomeçar a falar, mas ouviu-se um som abafado a sair da coluna e outro clonk, quando o
auscultador foi aparentemente retirado das mãos do homem, já que, nesse momento, surgiu do
outro lado da linha uma voz feminina, que perguntou:
— Quem fala, por favor?
— Ashley Westwood, minha senhora, do LA Times, a responder a uma chamada deste
número — explicou Westwood.
— Uma chamada recente?
— De há dois ou três meses.
— Então terá sido o meu marido.
— E posso falar com ele?
— Estava agora mesmo a fazê-lo.
— Compreendo. Ele não se lembrava da chamada.
— Como seria de esperar. Dois ou três meses já é muito tempo.
— E a senhora faz alguma ideia do que poderá ter sido o assunto da chamada?
— O senhor não faz?
Westwood não respondeu.
E a mulher disse:
— Não o estou a julgar. Se eu pudesse desligar o meu marido, também o faria. O senhor
escreve para Política ou para Ciência?
— Ciência — respondeu Westwood.
— Então terá sido sobre os tampos de balcão de granito serem radioativos. É o assunto
deste ano. E são mesmo, já agora, mas é uma questão de gradação. De certeza que lhe pediu
para escrever um artigo acerca disso. A si e a muitos outros.
— E sabe a quantos outros?
— Será um número pequeno, comparado com a população dos Estados Unidos, mas um
número grande se o compararmos com a quantidade de horas que um velho devia passar ao
telefone.
— E a senhora acha possível que ele tenha contratado um detetive privado? — perguntou
Westwood.
— Para quê? — retorquiu a mulher.
— Para o ajudar a investigar a situação do granito.
— Não, não me parece nada provável.
— E tem mesmo a certeza?
— Não é matéria que se possa questionar. Não há nada para investigar. E ele não tem acesso
a dinheiro. Não podia contratar ninguém.
— Nem sequer dinheiro vivo?
— Nem sequer. Não me pergunte. E não perca tempo.
— E o seu marido tem telemóvel?
— Não.
— E acha que poderia ter arranjado um?
— Não, ele nunca sai de casa.
— E já morreram pessoas por causa do granito?
— Ele diz que sim.
— Quantas, ao certo?
— Oh, milhares.
— Okay — disse Westwood. — Obrigado. Peço desculpa pelo incómodo.
— Não tem de quê — respondeu a mulher. — Sempre é uma novidade falar com outra
pessoa.
Ouviram uma pausa lenta e um ruído metálico final, quando o grande e velho auscultador
voltou a ser pousado no gancho.
— Bem-vindos à minha vida — soltou Westwood.
— É melhor do que a dela — atirou Chang.
Westwood marcou o quinto número. Código de área 773, que correspondia a Chicago.
Fartou-se de tocar, ultrapassando e muito o ponto em que um atendedor lhe teria cortado o
pio. E foi então que, subitamente, uma mulher esbaforida surgiu do outro lado da linha e disse:
— Biblioteca Municipal, Lincoln Park, sala de voluntariado.
Parecia muito nova, muito alegre e muito atarefada.
Westwood apresentou-se e perguntou com quem estava a falar. A miúda indicou-lhe um
nome, sem hesitar, mas disse que nunca tinha telefonado para o LA Times e que não conhecia
nenhum detetive privado. Westwood perguntou-lhe se aquele telefone era utilizado por mais
alguém e ela disse que sim, por todos os voluntários. Disse que fazia parte da equipa. Disse que
a sala de voluntariado era onde deixavam os casacos e faziam as pausas. Havia lá um telefone e,
de vez em quando, tempo para o utilizar. Disse que a Lincoln Park Library ficava um
bocadinho para norte da Baixa de Chicago e que tinha dezenas de voluntários, sempre a
mudar, novos e velhos, homens e mulheres, todos fascinantes. Mas, não, nenhum parecia
obcecado com fosse o que fosse de científico. Pelo menos, abertamente. De certeza que não a
ponto de ligar para jornais longínquos.
Westwood verificou a lista, à procura do nome associado ao número que começava por
773, tal como tinha sido registado, à altura, na base de dados do jornal.
— Conhece algum voluntário com o nome McCann? Não tenho bem a certeza se será
senhor ou senhora — disse.
— Não — respondeu a miúda. — Nunca ouvi esse nome.
— E há quanto tempo é voluntária aí? — perguntou Westwood.
— Há uma semana — respondeu a miúda. Westwood agradeceu-lhe, ela disse que ele não
tinha de quê, ele disse que, se calhar, era melhor deixá-la ir, ela retorquiu que, sim, realmente
tinha coisas a fazer e Westwood desligou.
Marcou o último número. Código de área 505, que correspondia ao Novo México.
VINTE E SETE

O número do Novo México tocou quatro vezes, até que um homem, com uma voz calma e
desalentada, atendeu. Westwood disse como se chamava e percorreu o preâmbulo da praxe,
com o LA Times, a resposta ao telefonema, o pedido de desculpas pela demora e o súbito
reavivar de interesse pelo assunto. Seguiu-se uma longa pausa e foi então que o homem
tranquilo do outro lado da linha disse:
— Isso foi nessa altura. Agora, a coisa já mudou de figura.
— Em que sentido? — retorquiu Westwood.
— Eu sei o que vi. Primeiro, ninguém me queria ouvir, incluindo você, lamento dizê-lo.
Mas depois a polícia enviou um detetive. Um rapaz, vestido informalmente, mas perspicaz.
Disse que fazia parte de uma unidade especial confidencial e recolheu o meu depoimento.
Disse-me para esperar sentadinho e não fazer mais nada. Mas uma semana mais tarde vi-o de
uniforme, na brigada de trânsito. Andava a passar multas. Não era nenhum detetive. A polícia
tinha-me enganado com um novato. Para me calar, suponho. Para me desviar.
— Explique-me outra vez o que viu exatamente — disse Westwood.
— Uma nave espacial no deserto, acabada de aterrar, com seis passageiros a desembarcar.
Pareciam humanos, mas não eram. E o mais importante é que a nave aparentava não ter
capacidade para voltar a descolar. Era só um módulo de aterragem. O que queria dizer que o
objetivo destas criaturas era ficar. O que suscita a seguinte questão: eram os primeiros? E, se
não eram, quantos já tinham vindo antes deles? Quantos já cá estão? Será que já controlam a
polícia? Será que já controlam tudo?
Westwood ficou calado.
E o homem tranquilo prosseguiu:
— Portanto, agora a coisa já seria psicológica e não puramente científica. Como é que um
indivíduo lida com o facto de saber algo, mas ser forçado a fingir que não?
— E contratou algum detetive privado? — perguntou Westwood.
— Tentei. Os primeiros três que eu contactei não faziam investigações extraterrestres. Foi
então que percebi que era mais seguro não fazer ondas. E agora a questão é essa. O stresse.
Imagino que haja muitos de nós no mesmo barco. Sabemos, mas sentimo-nos como se
fôssemos só nós, por não podermos falar uns com os outros. Se calhar, você devia escrever
sobre isso. O isolamento.
— E que aconteceu à nave?
— Não a consegui voltar a encontrar. Imagino que os aliados deles a tenham transportado
para longe e a tenham escondido.
— E já morreu alguém por causa disso?
— Não sei. É possível.
— Quantas pessoas?
— Uma ou duas, presumivelmente. Quer dizer, uma aterragem controlada pressupõe uma
energia considerável. Chamas a saírem de retrofoguetes e por aí fora. É capaz de ter sido
perigoso, dentro de um certo perímetro. E ninguém sabe o que eles fazem a seguir, depois de se
instalarem.
— E tem telemóvel?
— Não, a radiação é demasiado perigosa. Pode provocar cancro do cérebro.
— E Keever é um nome que lhe diga alguma coisa? Foi um dos tipos que contactou?
— Não, nunca ouvi esse nome.
— Obrigado — retorquiu Westwood. — Depois volto a dar notícias.
E desligou.
— Já sei, bem-vindos à minha vida — disparou Chang.
— Bem-vindos ao Novo México — ripostou Westwood.
Apagou o terceiro, o quarto e o sexto números da lista temporária. E disse:
— O rapaz dos raios, o tipo do granito e o outro dos encontros imediatos estão fora, certo?
Resta-nos o telemóvel abandonado no Louisiana, o telemóvel abandonado no Mississípi e a
sala de voluntariado em Chicago. Pelo menos, reduzimos as probabilidades a metade.
Rearranjou as três linhas que lhe apareciam agora no ecrã. Em cima, estava o número do
Louisiana, que, dez semanas antes, pertencera a uma pessoa chamada Headley, de acordo com
a base de dados, por baixo, estava o número do Mississípi, com o nome Ramirez, e, por baixo
desse, o número da sala de tempos livres em Chicago, de que um dos utilizadores tinha sido o
elusivo senhor McCann, de acordo com a base de dados, ou senhora McCann, e a miúda
esbaforida nunca ouvira falar de nenhum.
Westwood imprimiu a página e entregou-a a Chang.
— Experimente o número do Maloney outra vez — disse ela.
Westwood marcou-o, beep-boop-bap, o número fartou-se de tocar, ninguém atendeu e o
voice mail não veio interromper nada.
Depois de mais um longuíssimo minuto a tentar, Westwood desligou.
— Precisamos de uma lista de tudo o que tenha publicado nos últimos seis meses —
afirmou Reacher.
— Porquê? — retorquiu Westwood.
— Por que outra razão haveria o tipo de lhe ligar? Viu qualquer coisa que você escreveu.
Precisamos de saber o que foi.
— Isso não nos vai ajudar a encontrá-lo.
— Concordo. Não vai. Mas precisamos de saber com que género de pessoa estamos a lidar
quando lá chegarmos. Precisamos de saber qual é o problema dele.
— As minhas coisas estão todas no site do jornal. Podem consultá-lo, dá para andar para
trás vários anos.
— Okay — respondeu Reacher. — Muito obrigado pela ajuda.
— Então e agora?
— Havemos de pensar em alguma coisa. Como você disse, reduzimos as probabilidades a
metade. Temos três por onde escolher. Vamos descobri-los.
— Pois aqui têm outra teoria — retorquiu Westwood. — Como é óbvio, fui ver a página
web do Keever, e também a da senhora Chang. Tem tudo um aspeto muito competente. De
certeza que têm à vossa disposição todo o género de recursos, incluindo as vossas bases de
dados pessoais, formas de identificar quem lhes telefona e, possivelmente, as vossas fontes nas
próprias empresas de telecomunicações. Por isso mesmo, a minha nova teoria é que já não
precisam de mim. A minha teoria é que, agora, me vão descartar por completo.
— Não vamos — respondeu Chang. — Vamos mantê-lo a par.
— E porque haviam de fazer isso?
— Não queremos os direitos para o livro.
— E porque não haviam de querer?
— Tenho demasiadas coisas para fazer e ele mal consegue escrever o nome com um lápis.
Reacher não disse nada.
— Então continuo envolvido? — perguntou Westwood.
— Um por todos e todos por um — respondeu Chang.
— Jura?
— Por todos os santinhos.
— Mas só se for uma boa história. Por favor, não me tragam raios, granito ou naves
espaciais.

Reacher e Chang deixaram Westwood no escritório, desceram no elevador e saíram do


jornal. Chang tinha um computador portátil na mala e só precisava de um sítio sossegado e de
uma ligação wi-fi, depois já podia meter mãos ao trabalho e servir-se das bases de dados
pessoais, das formas de identificar quem lhe telefonava e da lista de fontes nas próprias
empresas de telecomunicações. O que implicava um hotel, o que, por seu turno, implicava
arranjar um táxi. Havia um estacionado junto ao passeio, do outro lado da rua, e Reacher
assobiou e fez-lhe sinal, mas, por algum motivo, o táxi arrancou em grande velocidade no
sentido contrário e sem eles. Cada cidade tinha um protocolo próprio para chamar táxis e era
difícil uma pessoa não se baralhar. Seguiram para norte, a caminho do museu infantil, e deram
com uma fila de táxis prontos a receber clientes. Os sítios que Reacher conhecia em Los
Angeles não eram conhecidos por serem sossegados e talvez não tivessem wi-fi, por isso deixou
que Chang decidisse qual seria o destino deles. Disse ao taxista West Hollywood e o tipo
enfiou-se no trânsito.

Dez minutos mais tarde, a cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem
das calças de ganga engomadas e do brushing no cabelo atendeu uma terceira chamada no
telefone fixo. Dessa vez, o contacto estava em modo conversador. O tipo disse:
— Foi uma dádiva. Encontraram-se no escritório do Westwood no LA Times e estiveram
reunidos lá praticamente uma hora. E o sítio é um edifício antigo, com paredes grossas. Mas o
Hackett teve sorte. Ao que parece, a maior parte da coisa foi ao telefone e, ao que parece, o
Westwood usa o telefone num suporte que tem na secretária, secretária essa que fica por baixo
da janela, por isso o Hackett recebeu um sinal amplificado a sair aos berros pelo vidro. O
scanner dele quase rebentou. Ao todo, fizeram sete chamadas. Duas foram para telemóveis fora
de serviço, outra para um telemóvel que ninguém atendeu e outra para um telefone público em
Chicago. As outras três foram para uns esquisitoides que descartaram. O nome do Keever foi
referido uma vez e falou-se de detetives privados, em termos gerais, dessas três vezes, mais uma
quando ligaram para o número partilhado de Chicago, altura em que o Westwood também
perguntou pelo nome McCann.
O homem a sul de Mother’s Rest ficou calado durante bastante tempo.
E depois perguntou:
— Mas não houve verdadeiros avanços?
— Isso és tu que tens de decidir. Têm três possibilidades. De certeza que uma delas
corresponde ao cliente do Keever e de certeza que sabes qual é. Têm os registos telefónicos, que
podem ser investigados. Já vi coisas darem para o torto com menos do que isso.
— Se contactarem as empresas de telecomunicações, preciso de saber. Uma espécie de
sistema de alerta antecipado e à distância. E, caso o façam, preciso de saber o que lhes disserem.
— Infelizmente, isso vai ser um serviço extra. As empresas de telecomunicações conseguem
ser bastante sigilosas. Seria preciso untar algumas mãos.
— Façam-no.
— Okay.
— E que aconteceu depois?
— Depois as coisas ficaram cómicas.
— Em que sentido?
— O Westwood ficou no escritório e o Reacher e a Chang foram-se embora.
— E para onde foram?
— Foi aí que as coisas ficaram cómicas. O Hackett perdeu-os de vista. Estava a passar-se
por taxista. Não há melhor disfarce numa cidade. Mas o Reacher tentou chamá-lo, por isso teve
de arrancar à pressa.
— Isso não é bom.
— Ele tem o telemóvel da Chang no sistema. Mal ela faça uma chamada, vai ficar a saber
onde eles estão ao certo.
VINTE E OITO

A morada que Chang escolheu em West Hollywood correspondia a um motel, não muito
diferente do de Mother’s Rest, exceto a localização glamorosa fazer dele um sítio atual e bizarro
e não velho e triste. Reacher pagou com dinheiro vivo por um quarto, que tinha uma secretária,
uma cadeira e ligações com e sem fios. Mas, melhor do que tudo o resto, tinha uma cama de
tamanho grande, lisa, larga e firme. Olharam os dois para ela e beijaram-se, com ardor, mas
apenas por breves instantes, como quem sabe que tem coisas para fazer primeiro. Chang
sentou-se e ligou o portátil. Abriu a folha que Westwood tinha imprimido. Três nomes, três
números.
— Gostas de apostar? — perguntou-lhe.
E Reacher respondeu:
— O Louisiana fica logo ao lado do Arkansas, o que pode explicar por que motivo o tipo
tem esses dois códigos de área. Mas o Mississípi também, é igual. Chicago já não, mas um tipo
que se chame McCann pode muito bem escolher Maloney como nome falso. Talvez fosse o
apelido da mãe. Portanto, nesta altura, diria 50-50.
— E por onde queres começar?
— Pelo 501 que temos. Pode ser um contrato recente. Pode ter um nome verdadeiro
associado.
— Se não for um descartável.
Abriu uma página de pesquisa tão feia como a de Westwood e escreveu o número, 501,
mais sete dígitos.
E no ecrã apareceu: Consultar.
— Que quer isso dizer? — perguntou Reacher.
— Quer dizer que não chegamos lá pelo pedido normal de identificação de quem telefonou,
mas que há informações disponíveis. Por um preço e vindas de uma fonte dentro da empresa
de telecomunicações.
— Um preço muito elevado?
— Provavelmente, uns cem dólares.
— E podes pagar isso?
— Se der algum resultado, depois cobro ao LA Times.
— É melhor veres primeiro os outros. Caso precises de um desconto de grupo.
O que se veio a revelar uma possibilidade. Confirmou-se que o número em Chicago era
exatamente aquilo que prometia ser, uma de doze linhas da sucursal de Lincoln Park da
biblioteca municipal, mas tanto para o telemóvel do Louisiana como para o do Mississípi
apareceu a indicação consultar.
Informações disponíveis.
— E, concretamente, como as conseguimos? — perguntou Reacher.
E Chang explicou:
— Dantes, era por correio eletrónico, mas agora já não. Demasiado vulnerável. Demasiado
arriscado para a fonte. Pior do que ficar registado num documento físico. Agora, é preciso
ligar.
Pegou no telemóvel e marcou o número. A chamada foi atendida depressa. Não houve
conversa de circunstância. Chang foi direta ao assunto. Disse como se chamava, explicou o que
queria, leu os três números lenta e claramente, ouviu-os a serem repetidos, disse «okay» e
desligou.
— Duzentos dólares — atirou. — O tipo vai contactar-me ainda hoje.
— Daqui a quanto tempo? — perguntou Reacher.
— Podem ser horas.
Só havia uma coisa a fazer para passar o tempo.

Dez minutos mais tarde, a cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem
das calças de ganga engomadas e do brushing no cabelo atendeu uma quarta chamada no
telefone fixo.
— O Hackett diz que a Chang acabou de fazer um telefonema. Diz que estão num motel em
West Hollywood — informou o contacto.
— E a quem é que ela telefonou?
— À empresa de telecomunicações. Queria informações sobre três números. E pagou
duzentos dólares por elas.
— E que informações recebeu?
— Para já, nenhumas. A fonte disse que lhe ligava ainda hoje.
— Daqui a quanto tempo?
— Podem ser horas.
— E consegues obtê-las mais depressa?
— Poupa o dinheiro. O Hackett está à escuta. Quando ela souber, também sabes.
— E ele está muito longe?
— Está neste momento a caminho de West Hollywood. De certeza que estará a postos antes
de o tipo ligar.

A cama do quarto do motel era realmente lisa, larga e firme. Reacher ficou deitado de
costas, a escorrer suor, com o ar condicionado a não sair propriamente frio e a ventoinha do
teto estragada. Chang estava deitada ao lado dele, a respirar fundo. Reacher tivera sempre a
teoria de que a segunda vez era de longe a melhor. Já não havia mais inibiçõezinhas, nem
hesitações típicas de uma primeira vez, e, no entanto, continuava a haver novidade e excitação
de sobra. Mas essa teoria tinha sido destruída. Tinha ficado em fanicos. Tem de se testar todas
as teorias, tinha dito Westwood. É uma parte central do método científico. E não havia dúvida
de que a tinham testado. A segunda vez, uma hora atrás, tinha sido sensacional. Mas a terceira
tinha sido melhor. Muito melhor. Reacher estava ali deitado, esgotado, vazio, com os ossos
transformados em borracha, tão descontraído que todas as noções anteriores de repouso
faziam a vez de uma agitação furiosa.
Por fim, Chang virou-se e, apoiada no cotovelo, passou-lhe os dedos pelo peito, pelo
pescoço, pela cara, e voltando depois a descê-los, como se estivesse a aprendê-lo, a memorizar
todos os contornos e porções do corpo dele. Reacher, por seu turno, sentia-se perfeitamente
satisfeito estando quieto, com a mão pousada na parte interna da coxa dela, sem se mexer mas
a vibrar com a emoção da pele quente, húmida mas macia como veludo, o músculo por baixo
indolente, um pulsar minúsculo a bater-lhe na palma da mão.
— Reacher — disse ela.
— Sim? — respondeu ele.
— Nada. Estava só a experimentar dizê-lo.
Tinha o cabelo, farto e volumoso, no ombro dele. Os seios estavam comprimidos contra o
braço de Reacher. Que lhe sentia o coração a bater.
— Já foste casado? — perguntou ela.
— Não — respondeu ele. — E tu?
— Uma vez. Mas não durou.
— Como acontece a tanta gente.
— Qual foi a relação mais longa que já tiveste? — perguntou ela.
— Seis meses — respondeu ele. — Ou à volta disso. As colocações dificultavam as coisas.
Passava a vida a ser transferido. Era uma lotaria. Uma lotaria dupla, nos casos em que elas
também estavam no exército. A maioria das vezes, foram barcos a passar durante a noite.
O telemóvel dela tocou.
Afastou-se dele, levantou-se e atravessou o quarto, nua, até à secretária. Olhou para o
número que estava a ligar e atendeu a chamada. Nenhuma conversa de circunstância. Direta ao
assunto. A empresa de telecomunicações, presumivelmente. Descobriu uma caneta e dirigiu-se
para a mesinha de cabeceira, onde se encontrava um bloco de notas do motel, com as folhas
quebradiças e amareladas com o tempo. Voltou com ele para a secretária, debruçou-se e
começou a tirar apontamentos, primeiro, uma página, depois, uma segunda, e, por fim, uma
terceira. A certa altura, virou-se para Reacher, inclinando-se para a frente e piscando-lhe o
olho.
Reacher endireitou-se, apoiado nos cotovelos.
Ela disse «Obrigado» e desligou a chamada.
— Que foi? — perguntou ele.
— Espera — respondeu ela.
Reativou o computador, clicando e escrevendo, com a cara iluminada pela luz fria e
cinzenta do ecrã. Pôs as pontas dos dedos na superfície tátil e começou a mexê-las de um lado
para o outro, a percorrer o ecrã na vertical e a aumentá-lo.
E depois sorriu.
— Que foi? — repetiu ele.
E ela disse:
— Os três números são todos de telemóveis descartáveis. Todos pré-pagos. O telemóvel do
Louisiana é recente. De uma loja em Shreveport. Tiveram de o registar para o poder usar. O
sistema funciona assim agora. Compramos um telemóvel, utilizamo-lo para ligar para um
número grátis e fica associado a um código de área de onde estamos a ligar e a um número
disponível. E isso aconteceu tudo. A seguir, usaram-no onze vezes e depois os minutos
esgotaram-se, não foram suficientemente rápidos a fazer um novo carregamento, por isso
deixou de funcionar. Foi retirado de circulação. Daqui a uns seis meses, o número vai ser
reatribuído.
— E a quem ligaram?
— Ao Westwood, para Los Angeles, as onze vezes todas.
— De onde?
— De Shreveport. Sempre da mesma torre de rede de telemóvel.
Reacher ficou calado.
E Chang continuou:
— E com o telemóvel do Mississípi foi exatamente igual, mais coisa menos coisa, só que é
um bocadinho mais antigo. Compraram-no há um ano, numa loja de Oxford, foi registado
com um código de área do Mississípi, teve quatro carregamentos, mas acabou abandonado. As
utilizações foram sempre em Oxford, todas em duas torres. Dezenas de chamadas para o
Westwood, talvez de uma faculdade ou de um dormitório, se ele tinha razão e o tipo era
mesmo um estudante universitário.
— É bom saber — retorquiu Reacher. — Mas isso não justifica um piscar de olho e um
sorriso. Portanto, fala-me lá do número do Arkansas. Imagino que o prato forte esteja aí.
Chang sorriu novamente, ainda nua e ainda contente, aliviada, satisfeita e entusiasmada.
Disse:
— O número do Arkansas é diferente. Tal como os outros, é um descartável, só que
continua a funcionar, embora seja muito, mas muito mais, antigo. Fazia parte de uma
encomenda enorme do Walmart de há uma série de anos. Nessa altura, os telemóveis já
vinham com números atribuídos. E daí o código de área do Arkansas, visto que a sede do
Walmart é no Arkansas. Mas não foi vendido lá. Aliás, não foi vendido em lado nenhum, pelo
menos pelo Walmart. Foi substituído por um modelo mais novo e, no início deste ano, o que
ainda restava do stock foi leiloado a dez por cento do valor original. Cerca de cem unidades,
acha o meu tipo.
— E quem as comprou?
— Um intermediário de New Jersey. Uma espécie de mediador. Um especialista nessas
coisas.
— E revendeu-as?
— É o que os intermediários fazem.
— Quando?
— Há doze semanas.
— E a quem as revendeu?
Chang fez um sorriso mais rasgado.
— Revendeu-as a uma lojazinha de Chicago — disse.
— Em Chicago, onde? — retorquiu ele.
Ela voltou o portátil para ele poder ver o ecrã. Reacher esticou o pescoço. Uma luz cinzenta
e linhas retas. Calculou que fosse o Google Maps, ou o Google Earth, ou lá que Google fosse
que mostrava fotografias de ruas de cidades tiradas por satélite.
— Fica um bocadinho para norte da Baixa. É, literalmente, na porta ao lado da sucursal de
Lincoln Park da biblioteca municipal.

Ainda nua, ainda entusiasmada e ainda a sorrir, Chang experimentou ligar outra vez para o
número, com o código de área 501 pré-definido e mais sete dígitos, mas, tal como já
acontecera, tocou e tocou sem que ninguém atendesse nem surgisse o voice mail. Esperou um
minuto longuíssimo, esperançosa, e depois desligou. A seguir, pôs o telemóvel em alta-voz,
ligou para Westwood e apanhou-o no LA Times, no escritório. Disse-lhe:
— O número a começar por 501 é de um telemóvel descartável que foi vendido numa
lojinha logo ao lado da Lincoln Park Library de Chicago. Portanto, o Maloney é o McCann.
Presumimos que ele trabalhe como voluntário na biblioteca, o que lhe daria livre acesso ao
número começado por 773 e que já utilizou. Quando você o bloqueou, ele foi à loja do lado
comprar um telemóvel e tentou outra vez. Precisamos de saber qual é a história dele.
Precisamos de saber quando começou a telefonar.
— Vou já verificar — respondeu Westwood.
Ouviram dedos a tamborilar em teclas, a clicar e a pesquisar páginas, acompanhados de
uma respiração profunda. Reacher imaginou os dois ecrãs e o telefone pousado no suporte. Foi
então que Westwood voltou a falar:
— A primeira chamada do McCann foi há pouco mais de quatro meses. Seguiram-se outras
quinze antes de eu o bloquear. Depois passou para Maloney e ligou mais três vezes. Mas isso já
sabem.
— E tirou algum apontamento dessas chamadas anteriores?
— Nada. Lamento.
— Não se preocupe. Havemos de chegar lá.
— Vão dando notícias.
— Esteja descansado.
Desligou.
— Devíamos descobrir qual é o número geral da biblioteca. Devem saber pormenores dos
voluntários. Podíamos conseguir uma morada de casa — disse Reacher.
— Devíamos tomar banho primeiro. E vestirmo-nos. É esquisito estar a fazer isto sem
roupa — retorquiu ela.
Reacher ficou calado.

O homem das calças de ganga engomadas e do brushing no cabelo atendeu uma quinta
chamada no telefone fixo.
— A empresa de telecomunicações acabou de lhe ligar. E ela ligou logo a seguir para o LA
Times. Está toda entusiasmada por causa de um tipo chamado McCann, em Chicago —
informou o contacto.
Seguiu-se uma pausa longuíssima.
E depois o homem das calças de ganga e do brushing perguntou:
— E ela falou com ele?
— Com o McCann? — retorquiu o contacto. — Não.
— Mas tem o número de telefone dele.
— Por acaso, até tem dois números. Mas um parece ser de uma biblioteca pública. Pelos
vistos, o McCann é voluntário lá.
— Então já sabe onde ele trabalha?
— Fazer voluntariado não é a mesma coisa que trabalhar.
— E porque ainda não falou com ele?
— Já tentou. Ligou para o telemóvel dele, mas ninguém atendeu.
— Porquê?
— Como hei de saber?
— Estou a perguntar a tua opinião, como profissional. Quero uma análise. É para isso que
te pago. Quais são as razões possíveis para não atender uma chamada para o telemóvel?
— Morte súbita do proprietário do telemóvel, deixar o telemóvel debaixo do banco de um
autocarro municipal ou coisa parecida, não reconhecer de quem é a chamada quando se está
num registo misantropo, estar num local ou contexto em que atender um telefonema seria
socialmente inaceitável. Existem centenas de razões.
— E qual é o próximo passo dela?
— Vai continuar a tentar ligar para o telemóvel e recorrer aos serviços centrais da biblioteca
para obter as informações que possam ter acerca dos voluntários.
— Como uma morada?
— Isso é capaz de ser difícil. Estariam em causa questões de privacidade.
— Então o quê?
— Ela vai para Chicago. Aconteça o que acontecer. Se o McCann for o cliente do Keever,
vai querer interrogá-lo. E não vai ficar à espera de que ele vá apanhar um avião para ir ter com
ela.
— E o Reacher vai acompanhá-la até Chicago.
— Muito provavelmente.
— Não os posso deixar fazer isso. Já estão demasiado perto.
— E como te propões a impedi-los?
— O teu rapaz, o Hackett, está aí à mão de semear.
— De momento, as obrigações do Hackett são unicamente de vigilância.
— Mas é possível que isso tenha de mudar. Falaste-me do menu.
— É melhor pensares nisto com cuidado. E não é só pelo dinheiro. É dar um grande passo.
— Não posso deixar que cheguem a Chicago.
— Não podes ter dúvidas nenhumas. Decisões deste género só têm a ganhar quando há
certezas absolutas.
— Devíamos ter sido nós a pará-los quando tivemos essa oportunidade.
— Vou precisar de uma ordem formal.
O homem das calças de ganga e do brushing disparou:
— Diz ao Hackett para os parar imediatamente. Em definitivo.
VINTE E NOVE

O duche serviu de transição lenta e suave entre o que tinham estado a fazer e o que tinham
de fazer a seguir. A banheira era estreita, mas o varão da cortina fazia uma curva para fora e a
pressão era forte e quente, e como o que eles queriam era estar bem juntinhos, era tudo
confortável. Lavaram-se um ao outro, como num jogo, da cabeça aos pés, devagar e
cuidadosamente, com sabão e champô, sem negligenciar nenhum fissura e dando especial
atenção a algumas. Deixaram o tempo correr. Houve uma certa dose de marotice. Formou-se
vapor, que encheu a casa de banho, e o espelho embaciou-se.
Até que saíram por fim da banheira e se secaram com toalhas finas, esfregando círculos no
vapor colado ao espelho, um bem alto e o outro mais em baixo, e penteando-se, Reacher, com
os dedos, e Chang, com um acessório cor de tartaruga que tirou da mala. Foram buscar a roupa
onde esta tinha caído, no chão, na cadeira e na cama, e enfiaram-na por cima da pele ainda
húmida.
E depois a pausa terminou. Reacher reabriu os cortinados e viu apenas um sol brilhante e
um céu azul. Estava um dia formidável. A Califórnia do Sul, no final do verão. Até a faixa de
smog, lá em baixo, tinha um aspeto dourado. Chang experimentou ligar outra vez para o
telemóvel que começava por 501. Como das outras vezes, tocou interminavelmente, sem
ninguém atender. Deixou-o tocar. O ruído surdo e pesaroso, mas inexorável, foi saindo das
colunas. Sem parar.
— Nunca tinha visto isto a acontecer. Ou alguém atende ou vai para o atendedor —
afirmou Reacher.
— Se calhar, os descartáveis antigos ainda não tinham voice mail. Ou então o tipo não o
ativou. Ou desativou-o.
— E isso é possível?
— Não sei.
— Então porque não atende? Ou se faz uma coisa ou a outra. Se não se usa o voice mail,
atende-se o raio do telemóvel.
— O tipo desistiu. Ninguém o queria ouvir. Por isso, largou o telemóvel. Está a tocar numa
gaveta qualquer.
No que dizia respeito às tecnologias, os conhecimentos de Reacher limitavam-se ao
estritamente necessário. Compreendia os faxes, os telexes, a rádio militar e os correios
americanos, mas nunca precisara de saber nada sobre telemóveis de civis. Nunca tivera
nenhum. Para quê? Para ligar para quem? E quem lhe ligaria? O pouco que compreendia devia-
se à observação quotidiana. Imaginou o telemóvel a tocar ininterruptamente. E,
provavelmente, também a vibrar. A tocar e a vibrar. Cheio de força e energia. Disse:
— A bateria deve estar carregada. Se acabasse, o telemóvel desligava-se e a rede sabia. Por
isso, ele deve carregá-lo de vez em quando.
— Então talvez tenha ido fazer compras sem o levar.
Reacher olhou pela janela, sem responder.
O telemóvel continuou a tocar.
— Que é? — perguntou Chang.
— Nada.
Mas estava a visualizar uma imagem solitária, de um telemóvel no chão, vivo, aos pulinhos
de um lado para o outro, como um fiel spaniel a tocar com a pata no dono morto, tentando
chamar-lhe a atenção, sem entender. Numa charneca qualquer, se calhar, ou numa imponente
sala de estar. Talvez um ataque cardíaco, ou gota, ou fosse lá o que fosse de que morriam os
tipos que tinham spaniels. Mas ele era uma pessoa que se regia com base nas informações e no
estritamente necessário, portanto limitou-se a dizer:
— Desliga isso e tenta os serviços centrais da biblioteca.
Chang deu por finda a chamada e o silêncio tomou conta do quarto. Foi ativar o
computador e clicou até chegar à página web do sistema bibliotecário de Chicago. A sucursal
de Lincoln Park tinha um número próprio para as informações. Com o código de área 773,
mais sete dígitos, não muito diferente do número da sala de voluntariado para onde tinham
ligado. Marcou o número e ouviu um menu. Inglês ou espanhol. Prima a tecla um para uma
coisa e a dois para a outra. Para falar com uma pessoa, prima a tecla nove.
E ela carregou na tecla nove. Ouviu-se um toque de chamada e depois uma voz feminina a
perguntar:
— Posso ajudar?
Chang apresentou-se tal como tinha feito a Westwood, da primeira vez de todas. Disse
como se chamava, que era investigadora privada, atualmente a trabalhar em Seattle, mas
anteriormente no FBI, e essa última parte pareceu ajudar. A mulher que estava em Chicago
pareceu impressionada.
— Segundo percebo, têm voluntários que os ajudam — disse Chang.
— Correto — respondeu a mulher.
— E têm algum voluntário chamado McCann?
— Tivemos.
— Mas agora já não?
— Não o vemos há três ou quatro semanas.
— Desistiu.
— Não propriamente. Mas, por norma, os voluntários vão e vêm.
— E que me pode dizer dele?
— Porque precisa de saber? Ele meteu-se em algum sarilho?
— Era cliente da minha empresa. Mas perdemos o contacto. E estamos a tentar restabelecê-
lo. Para saber se ele ainda precisa da nossa ajuda.
— É um senhor de idade e bastante tranquilo, não comunica muito com os outros. Mas
trabalha bem. Também gostávamos de restabelecer o contacto com ele.
— E ele tinha algumas paixões que o movessem ou coisas que o preocupassem?
— Não sei bem. Nunca foi propriamente de falar muito.
— E é daí da zona? Sabe a morada dele?
Silêncio absoluto em Chicago. E foi então que a mulher disse:
— Lamento, mas não estou minimamente autorizada a fornecer esse tipo de informação.
Temos de respeitar a privacidade dos nossos voluntários.
— E tem algum número de telefone dele? De casa? Talvez a senhora o pudesse contactar a
pedir para nos ligar.
Silêncio em Chicago. Só uns cliquezinhos plásticos. Possivelmente, uma base de dados. Era
preciso percorrer um documento longo. E o M de McCann ficaria precisamente a meio.
Foi então que a mulher surgiu outra vez na linha e disse:
— Não, infelizmente não temos nenhum número de telefone.

A seguir, foram às bases de dados secretas de investigação de Chang procurar tipos


chamados McCann em Chicago, para o caso de ele sobressair de outra forma, mas obtiveram
centenas de resultados aleatórios, conforme seria de esperar, supôs Reacher, tendo em conta os
nomes étnicos e os padrões históricos de migração. Talvez o McCann deles fosse um destes,
mas não havia maneira de saber. Estava escondido como um grão de areia numa praia.
Depois foram ver as companhias aéreas. Havia muito por onde escolher. Do aeroporto de
Los Angeles para o de Chicago era um trajeto bastante importante. Havia variadíssimas
partidas ao longo da tarde. O que fazia sentido. As pessoas podiam chegar a casa antes da hora
normal de dormir, no fuso horário da Costa Leste. Tudo o que fosse mais tarde já se
aproximaria de um voo noturno.
As principais transportadoras estavam todas a cobrar exatamente o mesmo preço, pelo que
Chang escolheu a American, na qual tinha um cartão dourado e fez a reserva pelo telefone,
com uma pessoa responsável pelos ditos cartões. Era mais seguro em situações urgentes,
explicou ela, e os lugares eram melhores.
Reacher enfiou a escova de dentes no bolso e Chang fez a mala, guardando o pente, o
computador, o carregador deste e o do telemóvel.
Puxou o fecho de correr.
— Okay? — disse.
Reacher assentiu e respondeu:
— Vamos lá arranjar um táxi.
TRINTA

Saíram do quarto, semicerrando os olhos devido ao sol forte, e pararam na receção para
devolver a chave. O funcionário pareceu perturbado pela rápida partida, de início, preocupado
por o quarto poder ter qualquer coisa errada e, a seguir, quando lhe disseram que não tinha,
presumindo aparentemente que tinham achado que aquilo era um sítio para passar umas horas
escaldantes e ficando outra vez todo incomodado. Reacher explicou-lhe que se tratava
simplesmente de uma mudança de planos urgente, uma pura questão de negócios e nada mais
do que isso, mas percebeu a lógica do tipo. Ainda tinham o cabelo molhado do duche e a
sensação de prazer que libertavam quase parecia radiação nuclear.
Estava um táxi encostado ao passeio, do outro lado da rua. Reacher assobiou e fez-lhe sinal,
como já tinha feito, e dessa vez funcionou. O carro fez uma lenta inversão de marcha, de um
passeio para o outro, e parou com o puxador da porta de trás exatamente ao nível da anca de
Reacher. O taxista abriu a bagageira ainda dentro do carro e saiu para ajudar a pôr lá a mala de
Chang. Era um tipo grande, com uma camisa de manga curta, os antebraços musculosos, o
nariz torto por já o ter partido e as sobrancelhas repletas de cicatrizes. Um pugilista nos tempos
de juventude, pensou Reacher, ou simplesmente um tipo bastante azarado. O homem pegou na
mala como se não pesasse nada e enfiou-a no porta-bagagens. Chang entrou no táxi,
instalando-se no banco de vinil, atrás do condutor, e Reacher sentou-se ao lado dela. O taxista
pôs-se ao volante e fitou Reacher pelo retrovisor.
— LAX — atirou Reacher. — Para a American, voo nacional.
O táxi arrancou, avançando lenta e paulatinamente sob a luz do sol cintilante, virando para
a esquerda e para a direita nas ruas secundárias, até chegar ao Santa Monica Boulevard, onde se
dirigiu para sul e para oeste, a caminho da 405.
Desta vez, o tipo das calças de ganga e do brushing não ficou à espera de que o telefone fixo
tocasse. Queria saber as novidades antecipadamente, por isso ligou para o contacto numa
manobra de antecipação.
— Está feito? — perguntou.
— Não te preocupes, vai estar — respondeu o contacto.
— Então ainda não está?
— Ainda não.
— Mas o Hackett estava mesmo à mão de semear.
— Deixa-nos fazer aquilo que sabemos fazer, okay? Dois mortos num quarto de motel em
West Hollywood ia ser um desastre. Atiravam-se a uma coisa dessas de cabeça. Num abrir e
fechar de olhos, estavam lá dez carros da polícia. Punham quatro detetives a tratar disso.
Aparecia no noticiário da noite. O Hackett não se pode dar ao luxo dessa cobertura. É
demasiado arriscado. Tem de poder voltar a trabalhar.
— Então quando?
— Acredita. Não vão entrar no avião.

Como sempre, a 405 estava cheia de trânsito, mas sempre se conseguia avançar. Três faixas,
a andar à mesma velocidade, só cores berrantes, tinta imaculada, lustre e cromados, mais o sol
intenso e brilhante e as colinas castanho-claras em pano de fundo. A viagem foi tranquila.
Chang tinha o vidro da janela todo para baixo e a brisa era quente. Esvoaçava-lhe o cabelo.
Tinha a t-shirt húmida nos ombros, onde tinha assentado. O taxista era ordenado e preciso nos
movimentos. Não atirava o carro de um lado para o outro. Mantinha-se na faixa da direita,
seguindo ao ritmo dos outros, o que era uma opção tão boa como qualquer outra, nas vias
rápidas de Los Angeles. Chegariam quando chegassem.
Reacher estava recostado no banco, ainda com um ar profundamente satisfeito, ainda com
a sensação de que tinha os ossos transformados em borracha, e Chang, ao lado dele, estava com
o mesmo aspeto.
— Um voluntário da biblioteca só pode ser aqui da zona, certo? É uma coisa comunitária,
basicamente. Não temos propriamente de andar a vasculhar Chicago de uma ponta à outra —
disse ela.
— É melhor investigares o que o Westwood escreveu há quatro meses. Precisamos de saber
o que ia na cabeça do McCann. Antes de estarmos com ele. Precisamos de saber o que levou
àquela primeira chamada.
Chang pegou no telemóvel e serviu-se dos polegares para pedir o website do LA Times. A
rede do telemóvel era mais lenta do que o wi-fi, mas acabou por chegar lá.
— Quatro meses certos? Ou partimos do pressuposto de que ele pesquisou um artigo mais
antigo? — perguntou.
— Bem visto — respondeu Reacher. — Se o McCann é um tipo dado à Internet, então pode
ter encontrado tudo e mais alguma coisa. Mas estar a listar tudo o que o Westwood já escreveu
na vida não nos vai ajudar. Experimenta uma janela de três meses. Anda para trás quatro, cinco
e seis meses.
Chang recorreu à caixa de pesquisa do site e escreveu Westwood. Obteve uma série de
coisas sobre o bairro de Los Angeles com esse nome. Por isso, mudou a busca para Ashley
Westwood, com aspas, o que funcionou muito melhor. Primeiro, surgiu uma barra lateral à
direita, com uma fotografia e uma biografia do dito cujo. A fotografia parecia ter sido tirada há
já uns anos, num dia bom. Westwood parecia um pouco mais novo, com o cabelo e a barba
mais bem arranjados e menos grisalhos. A biografia indicava que ele tinha tirado pós-
graduações em biologia molecular e jornalismo. À esquerda, vinha uma lista de artigos escritos
por Westwood. Cada um tinha um cabeçalho e um pequeno resumo. A primeira coisa que
aparecia era uma antevisão do artigo sobre a evolução do trigo, com data de publicação para o
domingo seguinte. A seguir, vinha o artigo sobre lesões cerebrais traumáticas que já tinham
visto, no quarto de Keever, em Oklahoma City.
Chang passou o dedo pelo ecrã e fez subir a lista. Parou passados oito artigos, o que
correspondia a quatro meses. O tipo andava a escrever um novo artigo mais ou menos de duas
em duas semanas, todos bastante longos e presumivelmente implicando pesquisas bastante
extensas. O que, quanto a empregos civis, era mais fácil do que ser mineiro numa mina de
carvão ou médico nas Urgências, sem dúvida, mas não propriamente fácil, na opinião de
Reacher. Nunca tinha escrito nada mais comprido do que um relatório pós-ação. O que, por
norma, era um exercício com uma forma mais curta, que não implicava necessariamente
pesquisa, e uma dose menor de não ficção.
O primeiro artigo que surgia na marca dos quatro meses tinha que ver com a agricultura
orgânica. Fruta, legumes e alimentos essenciais. O cabeçalho era provocador e o pequeno
resumo dava a entender que a grande agroindústria estava a subverter a definição para poder
obter melhores preços sem se esforçar. Duas semanas antes, Westwood tinha escrito sobre
gerbilos. Em concreto, gerbilos do antigamente, de acordo com o cabeçalho. Segundo parecia,
novas pesquisas comprovavam que a peste bubónica, na Europa medieval, não se tinha
propagado graças às pulgas das ratazanas, conforme se supunha há muito, mas devido às
pulgas dos gerbilos gigantescos da Ásia.
O trânsito estava a abrandar, pelo menos, na faixa da direita. Os carros que iam na do meio
e na da esquerda estavam a ultrapassá-los. Mas o taxista não mudou de faixa.
Chang foi percorrendo a lista. A seguir aos gerbilos, era a vez de um artigo com cinco meses
sobre as alterações climáticas. O cabeçalho informava que o nível dos oceanos estava a subir e o
pequeno resumo explicava que a geometria fractal implicava que um molhe na Costa Leste
necessitasse de mais cimento do que o que já tinha sido preparado até então na história da
humanidade.
— Toda a gente escreve sobre as alterações climáticas. O McCann não precisava de estar a
individualizar o Westwood, pois não? — exclamou Chang.
— Concordo — retorquiu Reacher.
Depois, vinha uma coisa chamada Deep Web. Que tinha que ver com motores de busca e a
Internet. Aparentemente, a rede à superfície era mais fácil de navegar. Seguiam-se as abelhas.
Ao que parecia, estavam em extinção pelo mundo inteiro. E, sem elas, as culturas não seriam
fertilizadas e toda a gente morreria à fome. O que correspondia a bem mais do que duzentas
pessoas. E, naquele preciso momento, Reacher conseguia ver à volta de duzentas pessoas, pela
janela, já que o trânsito estava a abrandar ainda mais. Continuavam na faixa da direita. E as do
meio e da esquerda continuavam a avançar um bocadinho mais depressa. Uma autêntica
banheira preta apareceu do lado de Chang e seguiu à velocidade deles por uns instantes. Abriu-
se um espaço à frente do carro. O vidro da janela de trás baixou e Reacher vislumbrou
parcialmente um tipo lá dentro, a virar a cabeça para eles. Durante uma absurda fração de
segundo, pareceu que o homem lhes queria dizer alguma coisa. Mas foi então que o inevitável
aconteceu. O carro grande ia na faixa do meio, mas à velocidade da faixa da direita, e, logo
atrás, um pequeno coupé vermelho, desatento, não abrandou e tocou ao de leve no para-
choques traseiro do carro grande. A diferença de velocidade era reduzida, não mais de quinze
quilómetros por hora, mas, ainda assim, o carro grande foi projetado uns bons metros para a
frente, com a cabeça do passageiro a bater com força no encosto do assento e depois a ser
atirada outra vez para a frente, com todas as leis do movimento de Newton a fazerem-se sentir:
inércia, ação e reação. Reacher ficou surpreendido com a potência de tudo aquilo. Talvez o
efeito de chicotada fosse mesmo uma coisa a sério. O carro grande avançou para o espaço que
tinha à frente e o coupé vermelho seguiu-o, sem que nenhum abrandasse e ambos
aparentemente ilesos. Era evidente que os para-choques dos veículos de passageiros
funcionavam como deviam.
Não houve confusão. Ninguém buzinou, sacudiu o punho ou fez gestos obscenos. Um
incidente perfeitamente normal, calculou Reacher, no trânsito de Los Angeles.
A faixa da direita abrandou ainda mais. No espaço de poucos segundos, o carro grande e o
coupé vermelho já se encontravam bem longe, tendo desaparecido de vista. A faixa da esquerda
avançava ainda melhor. Reacher inclinou-se para a frente e perguntou:
— Porque é que ainda não mudou de faixa?
O taxista espreitou para o retrovisor e respondeu:
— Não tarda nada, vai ficar tudo engarrafado.
— Então porque não aproveita para avançar antes de isso acontecer?
— Isto é como a lebre e a tartaruga, meu amigo.
Chang pôs a mão no braço de Reacher e puxou-o para trás.
— Deixa-o fazer o que sabe. Chumbaste na condução, lembras-te? — disse.
Voltou novamente a atenção para o telemóvel. O último artigo, na janela de três meses
escolhida, dizia respeito a um corredor oceânico paralelo à Costa Oeste, da Califórnia ao
Oregon, que os grandes tubarões-brancos utilizavam para as migrações sazonais. Não era
assunto que dissesse muito à maioria das pessoas, mas um francês propunha-se percorrê-lo a
nado, numa travessia do Pacífico iniciada no Japão. Dormiria todas as noites num barco de
apoio e recomeçaria a cada manhã, oito horas por dia. Aparentemente, os tubarões constituíam
um problema secundário. Primeiro, teria de atravessar o Giro do Pacífico Norte, que era um
lento remoinho com mais de mil e quinhentos quilómetros, repleto de plástico, lixo tóxico e
todo o género de outras porcarias ali largadas.
— Os franceses são malucos — atirou Chang.
— A minha mãe era francesa — retorquiu Reacher.
— E era maluca?
— Bastante.
O trânsito voltou a abrandar, proporcionalmente, passando a faixa da esquerda para a
velocidade anterior da do meio e esta para a anterior da faixa da direita, que entretanto já
estava quase parada. Ainda assim, o taxista continuou sem mudar para outra. Limitou-se a
avançar a passo de caracol num para-arranca pouco mais rápido do que seria ir a pé.
E foi então que perceberam porquê.
Logo a seguir a Culver City e mesmo antes de Inglewood, já não muito longe do LAX, o
tipo deixou a via rápida, por uma saída não assinalada, à direita, que levava a uma estrada
apertada parecida com a entrada para uma espécie de armazém de manutenção abandonado. O
táxi passou por cima de alcatrão pejado de entulho, sem mais ninguém por perto, e pelo meio
de barracões de metal enferrujado, acabando por virar e seguir aos solavancos sobre betão
esburacado, até chegar a uma bifurcação que era no fundo uma via de sentido único, tendo
apenas pela frente um armazém em ruínas, com uma porta arrombada e escancarada.
O taxista avançou sem hesitações, entrando na escuridão.
TRINTA E UM

O armazém tinha vigas de ferro enferrujadas a segurar o telhado e a pouca luz que havia lá
dentro vinha das centenas de intensos salpicos de sol que entravam pelos buracos reticulados
no revestimento exterior das paredes. Era um sítio grande, com perto de cem metros de
comprimento, mas encontrava-se maioritariamente vazio, com exceção de umas pilhas
inexplicadas de material abandonado e sucata de metal. O chão era de betão, gasto em
determinadas partes, manchado de óleo noutras e pejado de fragmentos enferrujados e penas
de pombo por todo o lado. O triturar dos pneus, o ruído do motor e o pulsar do tubo de escape
ouviam-se alto e bom som pela janela aberta do lado de Chang.
Não havia ali ninguém, tanto quanto Reacher conseguia ver, o que lhe pôs a parte mais
recôndita do cérebro a trabalhar. Uma cacetada na cabeça do taxista resolveria o problema.
Uma direita violenta, de lado e um bocadinho para baixo. Inesperada. Sem aviso. Para também
dar ao tipo uma chicotadazinha. Retaliar primeiro. Reacher cerrou o punho, preparado.
E, a seguir, voltou a descontrair. O tipo continuou a avançar, lenta e paulatinamente, mas
de forma confiante, como se soubesse ao certo para onde ia, como se já tivesse estado ali muitas
vezes, e disse:
— A lebre e a tartaruga, meu amigo. Acabei de nos poupar vinte minutos.
Na outra ponta do armazém, estava uma porta igualmente arrombada e escancarada, com o
tipo a atravessá-la em direção à luz brilhante, passando por cima de mais betão esburacado e
pelo meio de mais barracões abandonados e entrando, por um portão bambo, no perímetro
fechado norte do LAX, mesmo encostado à grande vedação metálica. Reacher viu a torre de
controlo mesmo em frente, pistas e vias de acesso a estas, aviões estacionados e pequenas
carrinhas a andarem por todo o lado, atarefadas e inocentes sob o céu alto e o sol escaldante.
O taxista explicou:
— Tecnicamente, estávamos a invadir propriedade alheia, mas eu já trabalhei ali, nos
tempos em que aquilo funcionava sem previsões de falir, portanto acho que tenho direito a
fazê-lo. E assim evito o caminho habitual para sair da via rápida, que vai estar uma grande
confusão nesta altura. Está sempre, à tarde. Faço um ou dois dólares a menos, mas recupero-os
a dobrar porque arranjo um novo cliente muito mais depressa. É a minha receita secreta.
Conhecer um bocadinho uma zona ajuda sempre.
Virou à direita, para uma estrada para transporte de carga, seguindo pelo lado de fora de
outra grande vedação metálica, e, dez segundos mais tarde, encontravam-se outra vez na
imensidão de carros grandes, táxis, amigos e familiares, todos a dirigirem-se para os terminais.
Passado um minuto, estavam junto à American, a abrandar, a encostar e a parar. Outro minuto
depois, a mala de Chang já estava no passeio, em pé, com a pega levantada e pronta a seguir,
com o taxista a voltar a arrancar após receber o valor da corrida mais uma gorjeta.

Chang retirou cartões de embarque fininhos de uma máquina e depois seguiram para a fila
da fiscalização de segurança. Mas não chegaram lá. Um tipo intrometeu-se-lhes à frente. Tinha
à volta de cinquenta anos, era rosado e robusto, loiro e de cabelo curto. Trazia calças de sarja
castanho-claras e um polo azul por baixo de um casaco desportivo também azul. A roupa tinha
toda um ar oficial. Uma espécie de uniforme. Tinha um cordão ao pescoço. Estava emaranhado
e o crachá que se encontrava lá pendurado estava virado ao contrário.
— Vi os senhores a entrarem no aeroporto — disse ele.
— Ai viu? — retorquiu Reacher.
— Passaram pela zona de entrega de bagagem e utilizaram uma máquina para quem viaja
sem bagagem.
— Ai foi?
— Os senhores não têm bagagem. Não fizeram check-in nenhum, não trazem bagagem de
mão, nem sequer um objeto pessoal.
— E isso é um problema?
— Sinceramente, é, sim senhor. É um comportamento invulgar. É uma das coisas na nossa
lista.
— Na lista de quem?
O tipo fitou-o por um instante e depois percebeu do que se tratava e olhou para baixo, onde
tinha a identificação pendurada do avesso. Fez um barulhinho com a garganta, de irritação ou
frustração, e virou o crachá. Reacher viu uma minifotografia cor-de-rosa, à direita, e as letras
azuis LAPD, Los Angeles Police Department, à esquerda, mais uma série de linhas demasiado
pequenas e ténues para ler.
— Contraterrorismo — disse o tipo.
— Aceito que não ter bagagens seja estatisticamente raro. É uma questão de simples
observação. Mas não vejo porque se têm de retirar daí consequências negativas — respondeu
Reacher.
— Não sou eu que faço as regras. Lamento muito, mas têm de me acompanhar. Os dois.
— Para onde? — retorquiu Chang.
— Falar com o meu chefe.
— E onde é que ele está?
— Na carrinha estacionada junto ao passeio.
Reacher espreitou pelas portas de correr e viu uma carrinha de distribuição azul-escura
parada na fila proibida, a uns trinta metros de distância. Pouco limpa. E pouco reluzente.
— Vigilância — afirmou o tipo. — E quando falo em chefe, refiro-me ao meu supervisor
para o dia de hoje. E não ao meu verdadeiro chefe. O homem que está na carrinha é que tem
essa responsabilidade. Tão simples quanto isso. Isto é pura rotina. Não é nada de especial.
— Não — soltou Reacher.
— Essa palavra não se aplica neste preciso momento. Isto é uma questão de segurança
nacional.
— Não, isto é um aeroporto. Isto é um sítio onde as pessoas apanham aviões. Que é o que
nós vamos fazer. Só com uma mala para os dois. Portanto, prenda-nos ou deixe-nos passar.
— Esse género de atitude também está na lista.
— Mais acima ou mais abaixo daquilo de não ter bagagem?
— O senhor não se está a ajudar.
— A fazer o quê?
O tipo ficou todo tenso e apareceram dois polícias do LAPD de uniforme, com toda uma
panóplia de equipamento preso às ancas volumosas. Foi então que o tipo respirou fundo,
produzindo o mesmo som anterior, de irritação ou frustração, e disse:
— Okay, tenham um ótimo voo.
E foi-se embora, afastando-se na diagonal, já à procura, em plano médio, de novos motivos
de alerta.

O tipo dos cartões dourados de Chang tinha-lhes conseguido uma espécie de estatuto pré-
aprovado para os cartões de embarque, o que lhes permitiu utilizar uma fila especial na
fiscalização de segurança e não precisarem de se descalçar. Reacher pôs as moedas numa taça,
levantou as mãos ao passar pelo scanner e foi ter com Chang do outro lado. Avançaram para a
porta de embarque e deram com uma sala de espera ali perto, onde puderam entrar graças a
mais códigos associados ao cartão dourado, aguardando durante bastante tempo sentados em
cadeiras acolchoadas, tendo ambos concordado que eram o equivalente, do ponto de vista
moderno, dos bancos antigos em mogno da estação ferroviária de Mother’s Rest, no sentido em
que tanto uns como os outros eram mais confortáveis do que aparentavam. Coisa que os
equivalentes modernos até precisavam de ser, já que o voo deles não seria o primeiro a partir.
O que Reacher acabou por perceber ser a desvantagem do cartão dourado.
A seguir, embarcaram e o tipo dos cartões dourados mostrou-se de novo à altura, com
lugares na fila da saída, o que implicava mais espaço para as pernas, coisa que Reacher
obviamente agradecia, mas também levava a mal. Percebia a teoria. Numa emergência, as
pessoas teriam de sair por ali, passando pela janela e por cima da asa. E daí toda uma série de
normas a exigir um mínimo de espaço, para as pessoas se poderem sentir à vontade ao
evacuarem o avião, só que se existia um mínimo de espaço para uma pessoa se sentir à vontade,
por que razão não eram todas as filas assim? Tratava-se de um enigma normativo que ele não
conseguia deslindar.
— Isto é agradável — disse Chang.
— Podes crer que é — respondeu Reacher.
— Porque não gostaste do polícia do aeroporto?
— Não tinha nada contra o tipo. Gosto de toda a gente. Sou uma pessoa feliz, bem-disposta
e sociável.
— Não, não és mesmo.
— Não tinha nada contra o tipo — repetiu Reacher.
— Reagiste mal.
— Ai foi?
— Disseste-lhe não e, a seguir, começaste a provocá-lo. Estavas praticamente a desafiá-lo a
prender-nos.
— Tinha uma pergunta a fazer.
— E qual era?
— Quer dizer, achei-o plausível. Muito plausível, na verdade. Já vimos os dois acontecerem
situações semelhantes. Um intelectual qualquer importante escreve uma lista. Ninguém sabe
com base em quê. Se calhar, nove em cada dez vezes em que uma pessoa não tem bagagem quer
dizer que está ali um mauzão. Só que, para mim, seria mais uma num milhão. E para ele
também, provavelmente. Mas segue a lista. Porque tem de o fazer.
— Então qual era a tua pergunta?
— Tens visto alguma foto de identificação do LAPD recentemente? Para comparar?
— Não me lembro.
— Nem eu.
— Achas que o tipo era uma fraude?
— Quem me dera saber. Mas calculo que, não sendo, estava pelo menos a provar que aquilo
das lavagens cerebrais era uma tanga. Caso contrário, ia ficar todo contente por eu não estar a
fazer nenhum check-in. Ia deixar muito mais espaço no porão para o equipamento.
— Se o tipo era uma fraude, quem poderia ele ser?
— Se calhar, era mais um primo Moynahan.
— Em Los Angeles? Mas quantos poderá haver? Não vou nisso.
— E porque nos deixou ele ir quando o fez?
— Porque o convenceste. Não havia causa provável. E o mais certo era ele precisar de uma.
Provavelmente, a legislação tem menos força do que pensamos.
— Não, ele deixou-nos ir quando o fez porque os polícias se estavam a aproximar.
— Eram colegas dele.
— Mas e se não fossem? E se ele fosse um intrujão, com o objetivo de nos fazer entrar
naquela carrinha? Só que, ei, não há nada assim tão importante. O tipo é um profissional, que
quer continuar a trabalhar. E não sabia ao certo o que eu ia fazer a seguir. Podia ter-me passado
da marmita. E ele não podia arriscar chamar a atenção. Por isso, parou com aquilo, já que os
polícias por acaso apareceram, a rondar por ali, à coca de comportamentos invulgares. Por
outras palavras, o tipo protegeu o couro e desapareceu.
— Ou então era um bom soldado, que te poupou a uma hora na cadeira e, no caso dele, a
uma hora a escrever papelada, respirando fundo, contando até dez e afastando-se.
O avião virou para a pista, por entre vagas ruidosas de ar seco e castanho, e começou a
acelerar lenta e complacentemente, como se tivesse plena consciência de que os mistérios do
ato de voar já tinham sido resolvidos há muito, descolando com calma, reluzindo ao sol,
deslizando lateralmente sobre a asa, no meio da bruma, subindo em linha curva, deixando para
trás um rasto de fuligem, e traçando uma rota, negra mas elegante, para nordeste.

Dez minutos mais tarde, a cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem
das calças de ganga engomadas e brushing no cabelo atendeu a chamada no telefone fixo.
— Vamos emendar isto — disse o contacto.
— Emendar o quê?
— Tivemos muito azar.
— De que estás a falar?
— Houve um problema.
— Eles apanharam o avião?
E foi nessa altura que o contacto se voltou a mostrar conversador. Não por estar animado.
Por uma obsessão amarga e incrédula em relação ao que deveria ter acontecido. Disse:
— O Hackett preparou tudo lindamente. Ela reservou o voo pelo telefone, por isso ele
soube os pormenores todos. O timing foi perfeito. Até ao mais ínfimo segundo. Viu-os sair do
motel, de táxi. Por essa altura, já ele ia no banco de trás de um carro grande, com um tipo
subcontratado a guiar, e seguiram-nos durante um bocado, até que ficaram lado a lado na 405 e
era autenticamente canja, ela até tinha a janela para baixo e tudo, a faixa rápida estava a andar a
boa velocidade para uma fuga e um carro grande e preto a caminho de Los Angeles é invisível,
já que há milhões iguais, por isso a caçadeira estava literalmente a subir, naquele preciso
momento, à queima-roupa, só que um Ferrari bateu-lhes por trás. Foi como se levassem um
pontapé até à semana seguinte, explicou o Hackett. Nunca mais os viram. Não se pode fazer
marcha-atrás numa via rápida.
— Então estão no avião?
— Não foram logo no primeiro voo. Escolheram aquele por ela ter um cartão dourado. O
Hackett vai à frente deles, com trinta e quatro minutos de vantagem. Já te disse, vamos
emendar isto.
— Em Chicago?
— Sem custos extra. O Ferrari não era nosso, mas a reputação é.
— Não os deixem falar com o McCann.
— Entendido. Estamos em completa sintonia.

O voo foi longo. Não era de costa a costa, mas era basicamente transcontinental. Uma bela
fatia, ainda que não o bolo inteiro. Chang tinha reclinado a cadeira uns centímetros e estava
com as pernas completamente esticadas, os sapatos com atacadores por baixo da cadeira da
frente. Estava a pensar, como já a tinha visto a fazer, ao volante do pequeno Ford verde, na
longa estrada deserta até Oklahoma City. Às vezes, esboçava um meio sorriso e depois fazia
uma espécie de careta, conforme lhe iam passando pela cabeça coisas positivas e negativas, ou
forças e fraquezas, ou desenlaces bons e maus. E sem uma estrada à qual tivesse de prestar
atenção, os olhos dela também participavam naquilo, estreitando-se, semicerrando-se,
esbugalhando-se, focando-se alternadamente entre o que se encontrava longe e perto.
Reacher estava a tentar não pensar. Estava a perseguir uma recordação fugidia,
precisamente na zona cinzenta entre o consciente e o subconsciente. Estava a desviar o olhar, a
não pensar nela, a deixá-la em paz.
— A biblioteca vai estar fechada quando lá chegarmos — disse.
— Vamos lá logo de manhãzinha. E passamos a noite num hotel — respondeu ela.
— Devíamos ficar num bom. Devíamos passar a noite no melhor hotel da cidade e mandar
a conta ao jornal. Uma suíte grande. Com serviço de quarto. Vão pagar de bom grado. Porque
vem aí qualquer coisa. Consigo senti-lo.
— O quê, ao certo?
— Não sei. Há qualquer coisa de que não me consigo lembrar, mas que sei que é
importante.
— Como, se não te consegues lembrar?
— É só uma sensação.
— É que o melhor hotel da cidade vai ser pago primeiro com o meu cartão de crédito. Vou
estar a assumir um risco financeiro.
— Vão pagar de bom grado — repetiu Reacher.
— O Four Seasons ou o Peninsula?
— Tanto faz.
— Telefono do O’Hare e escolho o que for mais barato.
Reacher ficou calado.
— E qual é a importância, ao certo, que achas que esta coisa tem, de que não te consegues
lembrar mas que sabes que é importante? — perguntou Chang.
— Acho que nos vai dar uma ideia. Do que temos pela frente.
— E o que é que vai?
— Não sei. É como se eu estivesse a tentar fazer uma correspondência entre duas coisas.
Houve duas coisas que foram iguais. Mas não sei o quê. Palavras, factos ou sítios.
— Não serão sítios. Los Angeles não tem nada que ver com Mother’s Rest. Não há
nenhuma semelhança.
— Okay.
— E Chicago também não. A não ser talvez alguns dos agricultores lá irem, para fazer seja
lá o que for que os agricultores fazem em Chicago. Será isso?
— Não.
— É melhor despachares-te. Vamos chegar lá não tarda nada.
Reacher assentiu distraidamente. Vamos chegar lá não tarda nada. Imaginou o processo de
desembarque do avião. Gostava de analisar bem as coisas e de as avaliar convenientemente.
Mesmo uma coisa tão simples como sair de um avião. Tinha que ver com os lobos cerebrais.
Iriam deslizar pela pista até parar, o sinal do cinto de segurança desligar-se-ia, as pessoas iriam
levantar-se, começar a tirar coisas dos compartimentos superiores e debaixo das cadeiras e a
juntarem-se todas no corredor, até começarem por fim a avançar lentamente, uma a uma, em
direção à porta e, a seguir, para a manga. Depois a corrida teria verdadeiramente início, ao
longo de corredores amplos e compridos, passando pelas lojas elegantes e pelas zonas de
restauração, com as suas mesas laminadas e os seus clientes solitários.
Foi então que ele percebeu.
— Não são palavras, nem factos, nem sítios — disse.
— Então é o quê? — retorquiu ela.
— Caras — respondeu ele. — Lembras-te do carro grande na 405?
— Havia um milhão de carros grandes na 405.
— Mas houve um que se pôs ao nosso lado e seguiu à nossa velocidade por uns instantes,
até um coupé vermelho lhe bater por trás.
— Ah, esse.
— O vidro da janela desceu. Vi o tipo que estava lá dentro de relance.
— Que género de relance?
— Parcial e extremamente rápido.
— Mas?
— Já vimos aquele tipo.
— Onde?
— No restaurante barato de Inglewood. Naquele sítio castanho. Hoje de manhã. Onde nos
encontrámos com o Westwood da primeira vez. Aquele tipo estava lá. Com os cotovelos
apoiados na mesa, a ler um jornal.
Foi a vez de Chang ficar calada.
— O mesmo tipo — disse Reacher.
— Fui treinada para pensar como um advogado de defesa.
— E, independentemente do que vás dizer, a parte mais racional do meu cérebro concorda
contigo a cem por cento. Foi uma coisa de relance, num milésimo de segundo, com dois carros
a andarem a mais de sessenta quilómetros por hora, casos em que os depoimentos das
testemunhas oculares são, na melhor das hipóteses, pouco críveis.
— Mas?
— A parte mais recôndita e instintiva do meu cérebro sabe que era o mesmo tipo.
— Como?
— Estou a ouvir uns zunzuns ensurdecedores.
— Ouves zunzuns?
— Faço todos os possíveis para os ouvir. Fomos animais selvagens durante sete milhões de
anos. Aprendemos imensas lições. Devíamos ter o cuidado de não as esquecer.
— E que estão os zunzuns a dizer-te?
— Uma parte está a preparar-se para lutar. Sabe que não pode vir aí nada de bom.
— E a outra parte?
— Está a andar para trás e para a frente, a analisar as possibilidades. Que são basicamente
tudo ou nada. Das duas uma, ou me enganei redondamente ou aquele tipo anda a seguir-nos
desde o começo. O que implicaria que nos vai localizando através do teu telemóvel. O que, por
seu turno, implicaria que sabe praticamente tudo até agora. E o que implicaria, por fim, que é
melhor ligarmos para o Four Seasons ou para o Peninsula de um telefone público. E assim
ganhamos vantagem. E precisamos de ganhar vantagem porque este tipo anda a subir na escala.
A toda a velocidade. Hoje de manhã, ao pequeno-almoço, estava a observar-nos no restaurante.
Se calhar, até a escutar um bocadinho o que dizíamos, a ler-nos os lábios. E agora está a tentar
matar-nos.
— Abrindo a janela do carro?
— Ele olhou para mim. Por um instante, achei que me queria dizer alguma coisa. Parecia
estar a centrar a atenção em mim. Como quem se preparara para qualquer coisa. Mas não era
para falar comigo. Estava a fixar o alvo. Era isso que ele estava a fazer. A lógica diz-nos que ele
tinha uma caçadeira de canos serrados algures dentro do carro. Para um assassínio a partir de
um veículo em movimento, género míssil ar-ar. Dois tiros para ter a certeza, depois toda a
gente entra em pânico e bate com os carros uns nos outros, ele escapa-se pela faixa rápida e, a
seguir, já passa a ser simplesmente um carro grande num milhão, conforme disseste.
— Isso é uma hipótese extremíssima.
— É um tudo ou nada. Que mais podia ele estar a fazer, a pôr-se assim ao nosso lado?
Mandaram-no eliminar-nos. O que indicia que ele seja versátil. E, por conseguinte, caro. O que
nos começa a dar uma ideia daquilo que está a acontecer em Mother’s Rest. Estão a fornecer
qualquer coisa. A troco de dinheiro. Dinheiro que chega para contratar um agente privado e
versátil para contrariar uma suposta ameaça.
— A não ser que, tal como disseste, tenha sido uma coisa de relance, num milésimo de
segundo, com dois carros a andarem a mais de sessenta quilómetros por hora e depoimentos
pouco críveis de testemunhas oculares.
— Esperar pelo melhor e prepararmo-nos para o pior.
— Mas isso não nos daria um mandado.
— Os mandados são para o que podemos provar. E não para o que sabemos.
— E tu sabes?
— É uma coisa instintiva. É por isso que ainda cá ando, após sete milhões de anos. O
darwinismo em ação.
— E que fizemos nós entre o pequeno-almoço e agora para os tipos subirem na tal escala?
— perguntou ela.
— Exato — respondeu ele. — Centrámo-nos no McCann.
— O que, portanto, deve ser muito perigoso para eles. E, portanto, muito interessante para
nós.
— E a biblioteca vai estar fechada quando lá chegarmos.
— Se o gajo for o mesmo tipo. Podes ter-te enganado à mesma — disse ela.
— Mas a aposta mais segura vai no sentido de agirmos como se eu tivesse razão. Só por via
das dúvidas.
— Como na aposta de Pascal.
— Não nos custa nada se estivermos errados, mas poupa-nos a muito se estivermos certos.
— Só que ele agora ficou para trás. Ainda está em Los Angeles.
— Não necessariamente. Não vamos no primeiro voo que partia para lá.
Chang ficou calada. Limitou-se a puxar do telemóvel, carregando num botão para o tirar do
modo de voo e o desligar por completo.

Aterraram vindos de leste, após sobrevoarem o lago e a cidade longa e indolentemente. Já


estava quase a terminar um fim de tarde de verão, com o céu ainda em tons de bronze e o
tempo quente, mas a escurecer. As luzes das pistas brilhavam com intensidade. Deslizaram até
parar e depois o sinal do cinto de segurança desligou-se, as pessoas levantaram-se, começaram
a tirar coisas dos compartimentos superiores e debaixo das cadeiras e juntaram-se todas no
corredor, Reacher e Chang incluídos.
TRINTA E DOIS

Reacher e Chang acabaram por avançar lentamente pelo corredor, um a seguir ao outro, em
direção à porta do avião, depois para a manga e, por fim, para o átrio, que estava a abarrotar
com um milhar de pessoas, sentadas, à espera, ou a apressarem-se para todos os lados. Reacher
tinha a cara do desconhecido bem presente na cabeça, como uma fotografia nos correios de um
criminoso procurado, e sondou a multidão obliquamente, pelo canto do olho, como quem não
quer a coisa, sem pensar, confiando nos instintos para não deixar passar qualquer semelhança,
se tal ali se encontrasse.
Mas não era o caso. O tipo não estava sentado, não estava à espera, não estava a apressar-se
para nenhum lado. Atravessaram juntos o longo corredor, passando por pessoas que
aguardavam do lado de fora de casas de banho, por outras que faziam fila para beber café, por
tabacarias, por lojas elegantes e por estabelecimentos de pronto-a-comer, com as suas mesas
laminadas e os seus viajantes solitários e curvados. Reacher sondou o que tinha pela frente, à
procura de jornais a serem lidos, de cotovelos apoiados nas mesas, de ombros inclinados de
forma familiar, mas não viu nada. Ninguém. Pelo menos, ali dentro.
Saíram da zona de fiscalização de passaportes e entraram na de recolha de bagagem,
seguindo em direção à porta para os transportes terrestres, vendo pelo caminho uma parede
cheia de telefones públicos, sozinhos e ignorados, e, melhor ainda, encontrando um balcão de
atendimento, que disponibilizava todo o tipo de serviços úteis aos recém-chegados, incluindo
reservas de hotel feitas na hora. Uma mulher bem-disposta e com um blazer recomendou-lhes
o Peninsula e ligou para lá, arranjando-lhes uma suíte e explicando-lhes onde era a fila para os
táxis.
Estava um fim de tarde quente e, lá fora, o ar estava carregado de humidade, gases de motor
e fumo de tabaco. Esperaram cinco minutos e calhou-lhes um tipo cansado, com um Crown
Vic cansado, que arrancou para a cidade o mais depressa possível. Reacher espreitou pela janela
até a multidão do aeroporto desaparecer, mas não viu caras conhecidas. Na autoestrada,
observou os carros à volta deles, mas nenhum se pôs ao lado ou seguiu à mesma velocidade.
Limitavam-se a avançar, atravessando a escuridão do anoitecer, individual e absortamente,
todos iluminados, dentro de mundos próprios.
— Devíamos comprar um telemóvel descartável — disse Chang.
E Reacher retorquiu:
— E devíamos dizer ao Westwood para comprar um também. Porque, presumivelmente,
foi assim que o nosso tipo começou isto tudo. Andava a vigiar o Westwood, a ouvir-lhe as
chamadas. E, hoje de manhã, nós fomos ter com ele. Enfiámo-nos mesmo na coisa.
— O que prova que eles andam preocupados com o Westwood. O que confirma que o
Westwood escreveu qualquer coisa extremamente relevante.
— Provavelmente, não foi aquilo dos tubarões e do francês.
— E o mesmo se pode dizer dos gerbilos ou das alterações climáticas.
— Estás a ver? Já estamos a reduzir as possibilidades.

Chegaram acompanhando os carris do L, o sistema de via-férrea suspensa do metro de


Chicago, e, à frente deles, viram a grande cidade, enorme, alta e implacável, por aquela altura,
já um cenário inteiramente noturno, com um milhão de janelas iluminadas tendo como pano
de fundo o céu escuro como tinta a leste. O hotel Peninsula estava a postos para os receber,
com uma suíte que era o dobro dos bangalós das forças armadas em que Reacher tinha
crescido, além de mil vezes mais sumptuosa. A ementa do serviço de quartos era do tamanho
de uma lista telefónica e encadernada a couro. Pediram o que lhes apeteceu, partindo do
pressuposto de que o LA Times pagaria. E comeram-no devagar, partindo do pressuposto de
que tinham a noite toda pela frente, sem interrupções. Não era preciso terem pressa. Era
melhor saborearem a certeza. Era melhor deliciarem-se com a expetativa do que aí vinha. Com
as entradas, os pratos, as sobremesas e o café de permeio.

Na manhã seguinte, acordaram cedo, apesar do fuso horário, em parte, por terem a cabeça
ocupada com pensamentos, mas, sobretudo, por não se terem dado ao trabalho de correr os
cortinados na noite anterior e o quarto se encontrar virado para leste, onde batia o sol matinal.
E os pensamentos que ocupavam a cabeça de Reacher prendiam-se com a teoria dele, que tinha
sido revista novamente. A quarta vez tinha sido melhor do que a terceira. Difícil de acreditar.
Mas era verdade. O que deixava um sabor agridoce. Porque, um dia, teria de passar a ser uma
coisa corriqueira. Tinha de parar algures. Mais cedo ou mais tarde. Não podia continuar a
melhorar sempre.
Ou podia?
Esperar pelo melhor e prepararmo-nos para o pior.
E, pelos vistos, os pensamentos que ocupavam a cabeça de Chang tinham que ver com
Lincoln Park e um aspeto irónico, já que ela disse:
— Estou a matutar como chegamos lá. É bastante perto. Não sei bem se vale a pena alugar
um carro. É capaz de ser difícil estacionar. E os táxis vão acabar por ficar caros e talvez sejam
difíceis de arranjar. Portanto, contas feitas, acho que devíamos reservar um carro com
motorista para o dia inteiro. De preferência, preto.
— Pelo hotel — acrescentou Reacher. — Mais uma forma de ganharmos vantagem.
— Para nos vir buscar às nove. Chegamos à biblioteca dez minutos depois de abrir.
— Fantástico.
O que, por ser ainda tão cedo, lhes dava tempo de sobra para um pequeno-almoço longo e
vagaroso, pedido ao serviço de quartos, e para duches longos e vagarosos, a seguir a outras
coisas preferencialmente feitas de forma longa e vagarosa, de manhã, incluindo testar teorias.

O carro que tinham reservado era tradicionalmente grande, preto, conforme tinha sido
pedido, e encerado até ficar a brilhar. O motorista era um homem pequeno, de fato cinzento.
Declarou-se igualmente satisfeito por andar no meio do trânsito ou estar parado junto ao
passeio. Tanto lhe fazia. Fosse como fosse, recebia o ordenado. Demorou dez minutos a chegar
a Lincoln Park. Quando lá entraram, a biblioteca tinha aquele ambiente de que o dia estava a
começar. Havia um pequeno e discreto bulício, de coisas a serem preparadas. Perguntaram pela
mulher com quem tinham falado ao telefone, na véspera, pelo número das informações, depois
de terem carregado na tecla nove, e vários membros prestáveis do pessoal foram-lhes dando
indicações, como numa corrida de estafetas, até chegarem a um balcão intitulado Informações,
isolado num recanto lateral e, naquele momento, desocupado. A cadeira estava muito bem
arrumada e o ecrã do computador, apagado. Nenhuma atividade. A senhora das informações
estava atrasada para o trabalho.
Mas nem tudo estava perdido. Porque, na parede final do recanto, havia uma porta e, por
trás dessa porta, ouviam-se vozes. A porta tinha um letreiro: Sala de Voluntariado. Dentro da
qual McCann tinha feito dezasseis chamadas, até Westwood ter perdido a paciência.
Reacher bateu à porta e as vozes calaram-se. Abriu-a e viu uma sala de tempos livres, muito
municipal, repleta de cores inofensivas e de cadeiras baixas com tecido almofadado. Sentadas
nas cadeiras, estavam cinco pessoas, dois homens e três mulheres, de idades e estilos diferentes.
O telefone ficava numa mesa baixa, entre duas cadeiras.
— Peço desculpa — disse Reacher. — Perdoem-me a interrupção. Estou à procura do
senhor McCann.
Um velho respondeu «Não está cá», dizendo-o de uma maneira que fez com que Reacher
presumisse que conheceria McCann, possivelmente bem, para responder com tanta autoridade
e se nomear porta-voz relativamente a essa questão. Era um espécime velho e magro, com
calças pregueadas cor de caqui, que não precisavam de ser engomadas, uma farta cabeleira
branca bem penteada e uma camisa de xadrez enfiada dentro das calças, género uniforme de
um reformado. Reformado, provavelmente, de uma posição executiva, pejada de folhas de
cálculo e de dados, e ainda a precisar de se sentir desejado ou a desejar sentir que precisavam
dele.
— Quando viu o senhor McCann pela última vez? — perguntou-lhe Reacher.
— Há três ou quatro semanas.
— E isso é habitual?
— Ele vai e vem. Afinal, estamos a falar de cargos de voluntariado. Imagino que tenha
muitos outros interesses.
— E sabe onde ele vive?
— Desculpe, mas está a fazer-me perguntas pessoais e não faço ideia de quem o senhor seja
— respondeu o velho.
— Não há muito tempo, o senhor McCann contratou uma empresa de investigadores
privados para o ajudar com um problema. Nós somos os agentes. E viemos ajudá-lo.
— Então deve saber onde ele vive.
— O senhor importa-se de que falemos em privado? — perguntou Reacher baixinho.
O que acertou na mosca, no que dizia respeito ao ego do velho. Tinha sido reconhecido
como especial. Como precisamente o género de homem que é destacado para o aproximarem
do centro de um assunto. Disse aos outros voluntários:
— Importam-se de nos deixar a sós? Assim como assim, também é preciso começar a
trabalhar. Temos todos coisas para fazer.
E os outros foram-se embora em fila indiana, o homem mais novo e as três mulheres.
Chang fechou a porta e foi sentar-se, com Reacher, em lugares que tinham acabado de ficar
vagos, formando um triângulo com o velho, que não saíra do mesmo sítio.
Chang disse:
— Infelizmente, o agente que lidou com o senhor McCann está desaparecido. E, num caso
destes, a primeira coisa que precisamos de fazer é garantir que o cliente se encontra bem.
Trata-se do nosso procedimento-padrão. Mas vamos necessitar de ajuda para o encontrar.
— De que se trata? — retorquiu o velho.
— Não sabemos ao certo. Talvez também nos possa ajudar nisso. Julgamos que o senhor
McCann está muito preocupado com alguma coisa. Talvez já tenha mencionado isso.
— Sei que ele não é um homem feliz.
— E sabe porquê?
— Não somos chegados. Não trocamos confidências. Temos uma relação de trabalho.
Falamos de assuntos relacionados com a biblioteca, claro, muitas vezes prolongadamente, e
concordamos na maior parte dos casos, mas recordo-me de muito poucas conversas pessoais.
Tenho a impressão de que ele tem problemas familiares. É tudo quanto lhes posso dizer. Acho
que a mulher já morreu há muito e que o filho, já adulto, é um problema. Ou uma dificuldade,
como agora se diria.
— E sabe onde ele vive?
— Não, nunca me disse.
— E não acha isso estranho? As pessoas não costumam falar de onde vivem? Das lojas que
há no quarteirão ou da distância que têm de percorrer para beber um café? — perguntou
Reacher.
— Fiquei com uma forte impressão de que ele tinha vergonha do sítio onde vivia —
respondeu o velho.

Deixaram o velho na sala e deram com a senhora das informações a trabalhar ao balcão.
Tinha aparecido, mesmo a tempo. Chang reatou o contacto com ela, mostrando-lhe um dos
seus cartões defuntos do FBI, e estava tudo a correr o melhor possível, mas, ainda assim, a
mulher não queria revelar a morada de McCann. Inflexível, mostrava-se fervorosa em matéria
de privacidade. Disse-lhes que podiam fazer um pedido ao diretor. Mas Reacher calculou que o
diretor se mostrasse igualmente fervoroso, talvez não em matéria de privacidade, mas com
certeza quanto a um possível litígio, e, consequentemente, tão inflexível como ela.
— Okay, não me diga a morada. Mas, pelo menos, diga-me se o senhor McCann tem uma
morada — disse ele.
— Claro que tem — respondeu a mulher.
— E sabe qual é?
— Sim, sei. Mas não lhe posso dizer.
— É aqui na zona?
— Não lhe posso dar a morada.
— E eu não a quero. Já não quero saber da morada. Nem a ouvia se ma dissesse. Só quero
saber se é aqui na zona. Mais nada. E isso não revela nada. Os bairros têm todos milhares de
pessoas.
— Sim, é aqui na zona.
— Muito perto? Nos dias em que ele trabalha aqui, vem a pé?
— Está a pedir-me a morada dele.
— Não estou, não senhor. Não quero a morada dele. Nem sequer a deixava dizer-ma agora.
Enfiava os dedos nos ouvidos e começava a cantarolar lá-lá-lá. Só quero saber se dá para ir a pé.
É uma questão de geografia. Ou de fisiologia. Que idade diria que o senhor McCann tem?
— Que quê?
— Idade. Que não é a mesma coisa que a morada. Pode falar disso à vontade. Pode dizer-
nos o que acha sem problemas.
— Tem sessenta. Fez sessenta o ano passado.
— E está em boa forma?
— Nem por isso. Tem um aspeto horrível.
— Mas que pena. Em que sentido?
— É demasiado magro. Não tem cuidado com a saúde. Não tem cuidado nenhum.
— Falta-lhe energia?
— Sim, diria que sim. Está mais ou menos sempre em baixo.
— Então não ia querer andar muito, não acha? Digamos que, no máximo, três quarteirões.
Acha que é uma conclusão ajuizada?
— Não lhe posso dizer.
— Um raio de três quarteirões equivale a trinta e seis quarteirões ao quadrado. Isso é maior
do que o Milwaukee. Não me ia estar a dizer nada.
— Okay, sim, ele vem trabalhar a pé, e, sim, é uma distância pequena. Mas já chega. Não lhe
posso dizer mais nada.
— E qual é o nome próprio dele? Pode dizer-nos isso?
— Peter. Chama-se Peter McCann.
— E a questão da mulher? Há quanto tempo ele é viúvo?
— Acho que isso já foi tudo há muito tempo.
— E como se chama o filho?
— Michael, acho eu. Michael McCann.
— E há algum problema com o Michael?
— Não falávamos disso.
— Mas deve ter chegado a alguma conclusão.
— Estaria a trair uma confidência.
— Se não foi ele que lhe disse, não. Estaria a compartilhar as suas próprias conclusões. Só
isso. É uma grande diferença.
— Acho que o Michael, o filho do senhor McCann, tem um problema comportamental.
Não sei o que é ao certo. Mas acho que não será coisa de que uma pessoa se possa orgulhar. A
minha conclusão seria essa.
Reacher fez uma cara compreensiva e tentou pela última vez, mas ela continuou a recusar-
se a dar a morada de McCann. Por isso, foram-se embora, fazendo um desvio até ao balcão das
consultas e folheando as listas telefónicas de Chicago. Havia demasiados P. McCann e
demasiados M. McCann para aquilo poder ser útil. Voltaram para a rua, munidos pura e
simplesmente de impressões e palpites.
TRINTA E TRÊS

À saída da biblioteca, viraram à esquerda e deram com a lojazinha no preciso sítio onde
deveria estar e que era mesmo ao lado. Tinha uma fachada exígua, com um toldo, uma porta e
uma pequena montra, cheia de produtos não muito tentadores, incluindo ligaduras elásticas,
compressas térmicas e um assento de sanita para pessoas com problemas de mobilidade. Para
Reacher, as montras das lojas eram um desafio em matéria de marketing. Era difícil pensar
numa montra passível de fazer as pessoas correrem para dentro da loja, entusiasmadíssimas.
Mas viu um produto interessante. Era um telemóvel descartável, num pino pendurado num
painel. O telemóvel tinha um aspeto antiquado. E a embalagem de plástico, um ar empoeirado.
O preço estava anunciado como superbaixo.
Entraram e depararam com mais seis telemóveis idênticos pendurados num painel que, de
resto, estava pejado de caixas de proteção a dois dólares, carregadores a dois dólares,
adaptadores para carros e cabos de variadíssimos géneros, a maioria brancos. Os telemóveis
propriamente ditos estavam a doze dólares e noventa e nove cêntimos. Vinham pré-carregados
com cem minutos de chamadas.
— Devíamos comprar um — disse Reacher.
— Estava a pensar numa coisa mais moderna — retorquiu Chang.
— E é preciso ser assim tão moderno? Basta que funcione.
— Não vai ter Internet.
— Estás a falar com a pessoa errada. No que a mim me diz respeito, isso é uma
particularidade. Além disso, é uma questão de carma. Ficamos com o mesmo telemóvel que o
McCann. Pode ser que nos dê sorte.
— Não parece ter resultado com ele — respondeu Chang.
Mas tirou à mesma um telemóvel do painel e levou-o para o balcão, onde uma velhota se
encontrava atrás da registadora. Tinha cabelo grisalho, da cor do aço e penteado num
carrapito, e estava vestida com um formalismo à século XIX europeu. Lá bem no fundo da loja,
estava um velho ocupado com receitas. A mesma idade e o mesmo estilo. Um casaco branco
por cima de um fato e gravata. O mesmo cabelo, tirando o carrapito. A mamã e o papá,
presumivelmente. Não havia mais empregados. Despesas gerais baixas.
— Estes telemóveis têm voice mail? — perguntou Reacher à mulher.
Ela repetiu a pergunta, muito mais alto, não para ele, apercebeu-se Reacher, mas para o
Papá, lá atrás, que gritou:
— Não!
E a mulher respondeu:
— Não.
— Um amigo nosso comprou um aqui. Peter McCann. Conhece-o? — perguntou Reacher.
— Conhecemos algum Peter McCann? — gritou ela.
— Não! — gritou o velho nos fundos.
— Não — respondeu a mulher.
— E conhece o filho dele, o Michael?
— Conhecemos o filho dele, o Michael?
— Não!
— Não.
— Okay — retorquiu Reacher.
Descobriu uma nota de dez e outra de cinco no bolso e pagou o telemóvel. Recebeu o troco
em moedas, habilmente calculado e destramente dado. Pararam no passeio, à entrada da loja, e
tentaram abrir a embalagem. Não foi fácil. Reacher acabou por se deixar de paninhos quentes e
rasgou-a ao meio. Guardou o carregador no bolso e passou o telemóvel a Chang. Que o
examinou, percebeu como funcionava e o ligou. Surgiu um ecrã de boas-vindas, pequeno,
desfocado e a preto-e-branco. Mostrava o próprio número. Um código de área 501, mais
outros sete dígitos. E também mostrava um ícone para a bateria, mais ou menos a cinquenta
por cento da capacidade total. Tinham-no carregado na fábrica, mas não até ao fim. O ícone
parecia uma bateriazinha de lanterna, deitada de lado, sólida numa ponta e oca na outra.
— Tenta ligar outra vez para o McCann. Talvez ele atenda desta vez. Talvez o telemóvel
dele reconheça uma alma gémea — disse Reacher.
Não havia opção de alta-voz. Por treze dólares, não. Chang marcou o número, encostaram
a cara um ao outro, à escuta, o ouvido direito dela e o esquerdo dele, e ouviram o telemóvel de
McCann a tocar. E a tocar. Sem parar. Como das outras vezes. Sem ninguém atender nem
aparecer o voice mail.
Como um spaniel fiel, sem entender.
Chang terminou a chamada.
— E agora? Revistamos uma área maior do que o Milwaukee? — perguntou.
— Estava a dramatizar, para dar mais impacto. O Milwaukee é maior do que trinta e seis
quarteirões. É um sítio bastante simpático.
Calou-se de repente.
— O que foi? — perguntou ela.
— Nada — respondeu ele.
Estivera prestes a dizer devíamos ir lá um dia destes.
E ela disse:
— Okay, temos de revistar uma área não muito mais pequena do que o Milwaukee.
— Se calhar, uns quantos quarteirões chegam. Se apontarmos na direção certa. Estamos a
falar de um homem com um aspeto horrível por não ter cuidado com a saúde. Provavelmente,
não come como devia e, se calhar, não dorme como devia. Provavelmente, não vai ao médico e,
por isso, não tem receitas para aviar. E de certeza que não anda a calcorrear corredores a
comparar preços de vitaminas. As drogarias passam-lhe ao lado. Não tem nenhuma preferida.
São-lhe todas indiferentes. Logo, não tinha nenhuma razão específica para comprar o
telemóvel naquela loja específica. Então porque o fez? Porque passa por lá duas vezes por dia, a
ir e vir da biblioteca. Senão, como ia sequer reparar? Eles tinham um telemóvel na montra,
todo cheio de pó. Portanto, acho que podemos concluir que o caminho para casa dele é por
aqui. Virando à esquerda, à saída da biblioteca, passando pela loja e continuando.
— Para onde?
— Parece-me um bairro bastante simpático. O imobiliário parece-me bom. Mas, segundo
consta, o McCann tem vergonha do sítio onde vive. Que quer isso dizer? Vês alguma coisa por
aqui onde tivesses vergonha de viver?
— Não sou o McCann.
— Exato. É tudo relativo. O velho da sala de voluntariado parece um diretor executivo
reformado ou coisa do género, e tenho a certeza de que é daqui da zona e de que mora numa
casa. É basicamente impossível ter uma camisa daquelas sem se morar numa casa. Uma coisa
implica a outra. É quase uma obrigatoriedade. Provavelmente, será uma casa de arenito
castanho-avermelhado ou isso, numa rua sossegada e com árvores frondosas. Portanto, se é
relativo, o McCann não mora numa casa. Mas também não mora num apartamento. Os
apartamentos são alternativas perfeitamente válidas às casas. Em alguns aspetos, melhores.
Seguramente que não são nada que envergonhe ninguém. Por isso, o McCann mora numa
coisa que não chega a uma casa, mas que também não é um apartamento.
— Uma casa dividida — disse Chang. — Uma casa de arenito castanho-avermelhado pouco
simpática, numa rua com árvores pouco frondosas, toda dividida em vários espaços.
Provavelmente, sem cozinharem ainda com chapas elétricas, mas quase. O que é uma coisa
difícil para um tipo admitir a outro, sobretudo quando o outro tem uma casa de arenito só para
ele. Se calhar, exatamente o mesmo arenito. O mesmo construtor, a mesma planta. Só que a rua
dele não passou por tempos difíceis. O que é, de longe, uma coisa muito forte para a
testosterona aguentar.
— Também me parece — respondeu Reacher. — No geral. Se calhar, a cena hormonal, não.
Mas, dois ou três quarteirões mais à frente, vamos encontrar um par de ruas com casas
geminadas em mau estado, cada uma com para aí uma dezena de campainhas na porta, e essas
campainhas normalmente têm umas etiquetas ao lado, às vezes, com nomes, e, com um
bocadinho de sorte, vamos descobrir que um desses nomes é McCann.

Havia imensos nomes, já que havia imensas etiquetas, pois havia imensas campainhas,
porque havia quatro ruas, e não um par, e eram compridas. As primeiras duas viravam à
esquerda e à direita da via principal, dois quarteirões a seguir à biblioteca, e a terceira e a quarta
apareciam passado mais um quarteirão. Eram enclaves de edifícios baixos, entre prédios mais
altos, não enfiados a martelo mas ali desde o início. Não tinham nada de perturbador ou
desagradável. Não havia lixo nas sarjetas, não se pisava seringas partidas no chão, não havia
grafítis, coisas a apodrecerem ou em ruínas. Nada que saltasse à vista. Mas, sem se perceber
bem como, o misterioso e implacável cálculo do negócio imobiliário tinha-as desprestigiado.
Talvez faltassem árvores, houvesse humidade nas caves ou demasiados ares condicionados
instalados nos caixilhos das janelas. Talvez a brisa não soprasse como devia. Talvez, em tempos
que já lá iam, uma pobre viúva tivesse dividido a casa para poder sobreviver, e depois outra e
mais outra. A imagem era uma coisa muito subtil.
Já no carro, atravessaram o bairro de um lado ao outro, lentamente, para definirem os
limites da área que tinham de verificar. A seguir, disseram ao tipo para estacionar e saíram. O
sol estava sobre o lago e a luz, repleta de reflexos. Já estava quente, a duas horas do meio-dia.
Chang ficou com o lado soalheiro da rua, ao passo que Reacher se manteve na sombra
matinal. Foram de casa em casa, separadamente, de forma dessincronizada, subindo e
descendo alpendres de granito castanho-avermelhado, como se fossem empregados de
restaurantes a entregar ementas ou missionários à procura de convertidos. Reacher reparou
que a maior parte das campainhas tinha nomes escritos, alguns, à mão, outros, passados a
computador, outros ainda, impressos, e, em certos casos, gravados em relevo e colados com fita
preta e estreita por cima dos anteriores inquilinos. Havia nomes polacos, africanos, sul-
americanos e irlandeses, autenticamente as Nações Unidas ali mesmo, mas, pelo menos na
primeira rua, nenhum era McCann.

A cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem das calças de ganga
engomadas e do brushing no cabelo atendeu mais uma chamada no telefone fixo.
— Ela já não está a usar o telemóvel — informou o contacto.
— E porque não?
— É difícil dizer. Por precaução, possivelmente. Já foi do FBI e ele já foi das forças armadas.
Não nasceram ontem.
— Por outras palavras, estás a dizer que o Hackett não os consegue encontrar.
— Não, ele encontrou-os. Encontrou-os muito facilmente. Pôs-se a vigiar a biblioteca. E
eles apareceram mesmo à hora certa. Estiveram lá dentro trinta minutos e depois compraram
um telemóvel descartável na loja do lado.
— Então de que está ele à espera?
— De uma oportunidade.
— Eles não podem falar com o McCann.
— Não te preocupes. Isso não vai acontecer. Garanto-te.

Atravessaram a via principal e entraram na segunda rua, subindo e descendo de novo


alpendres de arenito castanho-avermelhado, casa a casa. A maioria dos sítios parecia ter três
andares, com um máximo de quatro habitações cada. Os nomes não paravam de surgir. Num
sítio, havia Javier, Hiroto, Giovanni, Baker, Friedrich, Ishiguro, Akwame, Engelman, Krupke,
Dassler, Leonidas e Callaghan. Em perfeita ordem alfabética, se se alterasse a sequência. As
primeiras doze letras. E Callaghan, pelo menos, era irlandês. Mas não era McCann.
As casas propriamente ditas possuíam vestígios da glória passada. Havia fragmentos de
vitrais e de azulejos vitorianos. As portas da frente tinham camadas de tinta incrustadas e, na
maior parte dos casos, painéis de vidro martelado, que desfocavam e não deixavam ver
nitidamente os átrios interiores, onde se encontravam silhuetas que poderiam ser de bicicletas
ou carrinhos de bebé arrumados. Reacher foi avançando, de porta em porta, um sítio a seguir
ao outro, com o fim da rua a aproximar-se, a busca já quase a meio e ele sem encontrar
McCann.
Mas Chang encontrou.
Fez-lhe sinal do outro lado da rua, de um alpendre de uma casa igualzinha a todas as outras,
e Reacher ergueu as palmas das mãos, numa pergunta feita por meio de semáforo, e ela
levantou o polegar, discretamente, como um golfista a seguir a uma pancada leve de longa
distância, mas bem-sucedida. Ele atravessou a rua para ir ter com Chang e ela apontou para as
campainhas e passou com uma unha elegante por cima de uma tira de papel branco com o
nome Peter J. McCann impecavelmente impresso.
TRINTA E QUATRO

Segundo a indicação, os aposentos de McCann correspondiam ao apartamento 32, que


Reacher calculou que fosse o segundo apartamento do terceiro andar, possivelmente um quarto
dos fundos, se contassem no sentido dos ponteiros do relógio e a começar na parte da frente
esquerda, como era provável. Por outras palavras, uma habitação no último andar, sem
elevador nem vista. Num prédio banal, numa rua de segunda categoria. A localização não
estava propriamente a funcionar a favor do tipo.
A porta da rua era robusta e estava bem trancada.
Chang carregou no botão de McCann. Não ouviram sons do interior do prédio. Demasiado
longe, presumivelmente. Nem qualquer resposta crepitante pelo intercomunicador. Nada de
nada. Apenas uma manhã quente e sossegada, sem nada a acontecer.
— Experimenta o telemóvel dele outra vez — disse Reacher.
O descartável tinha a funcionalidade de remarcação. Nada mau por treze dólares. Chang
carregou no botão e aguardaram, com a cara encostada um ao outro.
O telemóvel tocou sem parar.
Sem ninguém atender.
Ela terminou a chamada.
E perguntou:
— E agora?
— É muito cedo para uma piza — respondeu Reacher. — Vamos ter de ser a UPS.
Carregou em nove campainhas e, quando a primeira atendeu, Reacher disse:
— Entrega de encomenda, minha senhora.
Seguiu-se uma pausa e depois ouviu-se o trinco elétrico e a porta abriu-se.
Entraram, atravessando um vestíbulo quente, com bicicletas, carrinhos de bebé e
montinhos de ementas de restaurantes tailandeses e de cartões de serralheiros, e passando para
um corredor no rés do chão que apresentava vestígios de vida em família de há cem anos, com
cornijas de coroa e papel de parede. Mas o papel de parede estava desbotado e coçado, as
cornijas terminavam cruelmente em divisões toscas e as elegantes portas de salão tinham
fechaduras de alavanca com cinco pontos de fecho que as estropiavam bastante, óculos das
portas e números de bronze aparafusados não exatamente ao mesmo nível. Primeiro, à
esquerda, vinha o 11, seguido do 12 mais à frente no corredor.
A escada era ornamentada, alcatifada e íngreme. As luzes acendiam-se automaticamente a
cada meio patamar. Chegaram ao fim, ofegantes. Estava quente lá em cima. A habitação 32 foi
a primeira porta que viram. Canto dos fundos, à esquerda.
Reacher bateu à porta.
Ninguém apareceu.
Mas a maneira como a porta tinha sacudido na ombreira parecera estranha.
Reacher experimentou a maçaneta.
A porta não estava trancada.

A porta abriu diretamente para uma sala de estar, que era basicamente o apartamento
inteiro, logo ali, escuro, mas pequeno o suficiente para se ver de uma assentada. O ar estava
quente e cheirava a ranço, havia uma cama de casal por fazer encostada a uma parede e uma
kitchenette, própria de uma rulote e sem janelas, e uma casa de banho, igualmente própria de
uma rulote e sem janelas, lado a lado noutra. A única luz que entrava naquele sítio vinha de
uma janela saliente, que se encontrava preta de fuligem e que tinha os cortinados apenas meio
abertos. Não havia nada pendurado nas paredes, que, em tempos, talvez tivessem sido brancas,
mas que há muito se tinham tornado da cor da cinza. Havia uma mesa de bar para refeições,
alta e da largura de um contentor de óleo, e um único banco. Havia uma poltrona solitária e
um sofá que não combinava com ela, exceto quanto a estar igualmente ruço e brilhante de
muito uso. E, no que dizia respeito à mobília, a diversidade ficava-se por aí. O resto era tudo
mesas.
Ao todo, havia cinco, cada uma mais ou menos do tamanho de uma porta, com mais ou
menos dois metros de comprimento e mais ou menos um de largura, e todas de madeira e
manchadas de preto. Em conjunto, dominavam o apartamento inteiro. Estavam alinhadas no
centro da sala, seguindo um padrão, com a primeira na perpendicular, a segunda, de lado,
formando um T, a terceira, outra vez na perpendicular, a quarta, de lado, noutro T, e a quinta e
última outra vez na perpendicular, com tudo aquilo a lembrar uma espinha dorsal rígida a
percorrer o triste espaço de uma ponta a outra, como vértebras e costelas fortes.
Em cima das mesas, estavam computadores, sete dos quais eram de secretária e oito,
portáteis. Havia outras caixas pretas não especificadas, discos externos, modems, dispositivos
USB, carregadores e ventoinhas de arrefecimento. Mas, acima de tudo, havia cabos, feixes
protuberantes de cabos enrolados e emaranhados, uma autêntica salgalhada. E onde não havia
cabos ou caixas, havia livros, pilhas altas e periclitantes, todos sobre os aspetos técnicos da
codificação, dos protocolos de hipertexto e da atribuição de nomes de domínios.
Chang espreitou para o corredor e fechou a porta.
— Experimenta o telemóvel dele — disse Reacher.
Chang carregou no botão de remarcação, ele ouviu um toque de chamada a ronronar ao
ouvido dela e, a seguir, a rede móvel entrou em ação e um telefone começou a tocar na sala.
Ruidosa e insistentemente. Estava a tocar e a vibrar, com uma melodia estúpida e a vibração
densa do plástico na madeira. O telemóvel de McCann estava ali mesmo, em cima de uma
mesa, a saltitar para um lado e para o outro debaixo de um emaranhado de cabos, com o
ecrãzinho todo iluminado em tons de azul. Tinha um carregador enfiado e ligado a um
computador.
Chang terminou a chamada.
E perguntou:
— Porque não anda ele com isto? Um telemóvel deve andar no bolso.
Reacher respondeu:
— Imagino que, para ele, isto não seja um telemóvel. Pelo menos, no sentido normal. Não
passava de um número alternativo para ligar ao Westwood. E cumpriu os seus propósitos. Não
tem culpa de a coisa não ter resultado em nada. Portanto, conforme calculaste, o tipo desistiu
dele e largou-o numa gaveta. Só que a gaveta é uma mesa.
— E o telemóvel está a carregar.
— Por hábito, se calhar.
— Então e onde é que o tipo está?
— Não sei onde é que o tipo está — respondeu Reacher.
— O Keever também não tinha a porta trancada.
— Eu lembro-me.
— Acho que devíamos dar uma vista de olhos rápida e ir embora.
— Muito rápida?
— Dois minutos.
O que não era muito, mas chegava, já que não havia grande coisa para onde olhar. A
cozinha era muito pequenina, com um armário minúsculo, onde havia apenas uma caixa de
cereais de pequeno-almoço de marca branca, e um frigorífico igualmente minúsculo, onde
havia apenas um pacote de um litro de leite de marca branca e duas tabletes de chocolate. O
armário da casa de banho tinha analgésicos legais e remédios para a constipação não sujeitos a
receita médica. Havia uma cómoda carregada de roupa puída, a maior parte de material
sintético, e toda ela preta. A cama não tinha nada de anormal. E os computadores eram o que
eram. Os ecrãs ligaram-se todos automaticamente, mas, daí em diante, para cada passo era
preciso uma senha.
Não havia fotografias, objetos pessoais, literatura de lazer ou pilhas de cartas.
Chang abriu a porta e espreitou outra vez para o corredor.
— Vamos embora — disse.
Abriu um bocadinho mais a porta.
Estava um tipo ali parado.
Os depoimentos de testemunhas oculares são duvidosos por causa dos condicionamentos
prévios, das predisposições cognitivas e do poder da sugestão. São duvidosos porque as pessoas
veem aquilo que esperam ver. Reacher não era diferente. Era humano. A parte mais racional do
cérebro dele desperdiçou o primeiro e precioso instante concentrada na imagem do tipo que se
encontrava à porta, tentando rearranjá-la de acordo com uma versão plausível de um teórico
McCann. O que não era uma tarefa mental fácil, já que McCann tinha supostamente sessenta
anos e, segundo constava, era magríssimo, com um aspeto doentio, ao passo que o tipo à frente
da porta era uns bons vinte anos mais novo do que isso e duas vezes mais robusto. Mas, ainda
assim, Reacher tentou, instintivamente, pois quem mais poderia ser, além de McCann? Quem
mais poderia estar à porta de casa de McCann, no prédio de McCann, na cidade de McCann?
Foi então que, passado meio segundo, a parte mais recôndita e instintiva do cérebro de
Reacher assumiu o comando e aquela imagem definiu-se, de forma nítida e clara, deixando ver
não um potencial McCann, muito longe disso, nem sequer uma hipótese remota, mas o
familiar rosto já vislumbrado duas vezes, e agora visto uma terceira, primeiro no restaurante,
depois no carro grande, e, por fim, naquele preciso momento, no mal iluminado corredor no
cimo de um prédio de três andares sem elevador.
TRINTA E CINCO

O tipo devia ter à volta de quarenta anos, mais coisa menos coisa, estabilizado a pulso na
plenitude da vida, já não um miúdo parvo, mas também não um velho, cheio de competência,
confiança e capacidade acumuladas, tudo embrulhado em experiência. Parecia ter, no mínimo,
um metro e oitenta e uns noventa quilos. Usava calças de ganga azuis, vulgares e de cintura
subida, nada elegantes, com um cinto, uma camisa com o colarinho aberto e um casaco de
basebol de cetim azul. Tinha cabelo loiro curto e bem penteado, uma cara rosada e grosseira,
olhos azuis pequenos e uma expressão perscrutante. Podia ser o eletricista-chefe lá do bairro, a
deslocar-se em pessoa para fazer um orçamento pormenorizado para um trabalho difícil.
Tirando a pistola que tinha na mão. E que parecia uma velha Ruger P-85. De nove
milímetros. Com um tubo supressor acoplado. Um silenciador, com cerca de vinte
centímetros. O tipo trazia a pistola encostada à perna. Apontada ao chão. Com o tubo
supressor, ia do meio da coxa ao meio da barriga da perna. Comprida e esguia.
Um circuito qualquer na parte mais recôndita e instintiva do cérebro de Reacher faiscou
com um relato: O tipo saiu de Los Angeles em cima da hora e não pode ter levado uma pistola no
avião, por isso, tem apoio operacional aqui em Chicago, e a um nível bastante superior, já que os
supressores são proibidos no estado do Illinois.
A parte mais racional do cérebro dele disse: Avança.
E avançou.
A pistola subiu e o tipo disse:
— Não te mexas.
Reacher voltou a avançar, desta vez até à porta.
— Eu disparo — disse o tipo.
Não disparas porque me queres dar um tiro na sala e não à entrada do apartamento, já que
eu sou demasiado grande para depois me arrastares, além de que, na vida real, os silenciadores
não funcionam como nos filmes, com uma cuspidelazinha educada, mas com um estouro do
caraças, pouco mais silencioso do que um tiro normal, que o prédio inteiro vai ouvir se disparares
no corredor.
Portanto, não disparas.
Ainda não.
— Deixa-te estar quieto — disse o tipo.
E a parte mais instintiva do cérebro de Reacher disse: Se o tipo tem apoio operacional em
Chicago, devias tentar perceber se ele trouxe reforços. Aqui, os capangas são mais baratos do que
os silenciadores.
E era por isso que tinha arriscado avançar até à porta. Para ter uma ideia. Mas, no meio das
sombras mal iluminadas, não havia nada por trás do ombro do tipo. Nenhum vulto, nenhum
som, nenhuma mudança de posição, nenhuma respiração.
O tipo estava sozinho.
Reacher ficou quieto.
E o tipo disse:
— Volta para dentro.
— O que queres? — perguntou Chang, da sala.
Não vais dizer que nos queres matar, mas que não é nada pessoal, apenas uma questão de
negócios, porque isso nos levaria a uma tentativa de defesa em desespero de causa.
— Quero conversar — respondeu o tipo.
— Sobre quê?
— Sobre o que se está a passar em Mother’s Rest. Acho que os posso ajudar.
E tens uma ponte à venda em Brooklyn. Não nasci ontem. Reacher não se mexeu um
milímetro, continuando a encher a entrada, ligeiramente enviesado, com o pé mais avançado a
pisar a linha de junção entre o corredor e o apartamento, o tipo mais ou menos um metro à
frente dele, a meio caminho do corrimão da escada, e Chang uns dois metros atrás, ainda a
meio da sala.
— Se vieste cá para nos ajudar, porque trouxeste uma pistola? — perguntou ela.
O tipo não respondeu.
Reacher tinha chumbado na condução, mas passara em tudo o resto. Incluindo no combate
corpo a corpo. O que parecia ser uma habilitação útil, mas não era. O objetivo das forças
armadas tinha sido precisamente a utilização de armas de fogo com o mínimo risco para a
equipa da casa. Por outras palavras, dar um tiro ao outro tipo, a uma distância bem grande,
com uma espingarda, ou, sendo isso impossível, dar-lhe um tiro, mais de perto, com uma
pistola. Os cursos de combate corpo a corpo só tinham vindo depois. Com um perfume a
constrangimento. O corpo a corpo pressupunha incapacidade em matéria de armas de fogo. E,
pior ainda, os intelectuais não eram capazes de arranjar nada para escrever no manual. Não
havia teorias válidas. As artes marciais não funcionavam no mundo real. O judo e o karaté não
serviam para nada sem os tapetes, o árbitro e os pijamas especiais. Portanto, o combate corpo a
corpo equivalia, basicamente, a uma rixa. Como uma luta num bar. Valia tudo.
— Guarda a pistola e conversamos — disse Chang.
Não a vai guardar porque isso seria abdicar da única vantagem que tem. Ficaria frente a
frente com um gigante, o que não era apetecível, sobretudo porque, naquele preciso momento, o
gigante estava a fitá-lo com o olhar vítreo de um psicopata.
Valia tudo.
O tipo deixou ficar a pistola onde estava.
Reacher inclinou-se uns centímetros para a frente.
Quer dar-me um tiro na sala e não à entrada do apartamento. Sou demasiado grande para
arrastar.
— Recua — disse o outro.
Reacher ficou calado.
Sou demasiado grande para arrastar.
E foi então que a coisa mudou. O homem da pistola deixou de estar no comando. Deixou
de controlar a situação. Estava a ser obrigado a recuar. Centímetro a centímetro. Por causa de
uma pressão inexorável. Mas não fisicamente. A ponta do supressor não se mexeu. Só que,
dentro da própria cabeça, o homem da pistola sentiu-se atacado por um súbito e indecifrável
revés da fortuna e torrado por uma espécie de raios mortais que saíam dos olhos do psicopata.
— Não te preocupes — disse Reacher.
Rixas. Está tudo na cabeça. Há que as vencer antes de as começar.
— Vamos lá ver se te conseguimos ajudar a sair desta trapalhada — lançou.
O procedimento-padrão dele, ou aquilo a que se poderia chamar isso, tendo em conta o que
já tinha resultado quando um destro tinha de enfrentar um atirador também destro, era
avançar ligeiramente, mas basicamente no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, uma
rotação brutal da cintura, explosiva, exagerada como um passo de dança, com o ombro direito
a girar violentamente, e, por conseguinte, o cotovelo direito a girar também violentamente, tal
como a mão direita e a palma direita, a palma a bater com força na parte de dentro do pulso do
mauzão e depois a afastá-lo, a afastá-lo ao máximo, e à pistola também, e a apertá-lo como uma
garra, ao mesmo tempo que a palma da outra mão atingia a palma da mão que segurava a
pistola, a esquerda contra a direita, como se estivessem a dançar, como se estivessem a lutar
pela pistola, mas não era uma questão de lutar pela pistola, era uma questão de afastar a mão
que segurava a pistola, afastá-la cada vez mais para trás enquanto não se parava de arrastar o
pulso para a frente com a garra, até o pulso se partir e a pistola cair.
Mas podes poupar uma data de trabalho, já que ele tem um silenciador. Aquela pistola tem o
dobro do tamanho do que o que a memória muscular dele julga que tem. O que facilita tudo.
Mais vale cortar caminho.
E foi o que Reacher fez, com uma rotação forte da cintura, mas curta, mantendo a palma da
mão encostada ao corpo e batendo não no pulso do tipo mas no próprio supressor, afastando-o
de forma segura e, a seguir, agarrando-o e puxando-o com violência.
Um procedimento-padrão, assim intitulado por ser frequentemente utilizado, como uma
configuração pré-estabelecida, já que funcionava noventa e nove em cada cem vezes. Mas
aquele homem era o centésimo. Sabia o que devia fazer. Não se deixou desequilibrar para ficar
agarrado à pistola. Largou-a logo. Imediatamente. Abdicou dela sem dar luta. Limitou-se a
deixá-la cair e a girar para se afastar. Era a única jogada inteligente. Uma em cem.
E era uma jogada inteligente porque, embora Reacher ficasse com a posse exclusiva de uma
arma mortífera, ficava com ela ao contrário do que devia. Tinha-a agarrado pelo supressor,
com a mão direita e a palma virada para fora, e ainda estava a rodar no sentido contrário ao da
ação, sendo que a paragem abrupta e a baralhada direita-esquerda-direita necessária para que a
pistola ficasse na posição certa iriam ocupar uma fatia de tempo finita, e depois virar o cano
para o alvo iria ocupar outra fatia, talvez mais longa, já que era um cano comprido, com o
supressor montado. Não era apontar e disparar. Era mais estar a chicotear o tipo. E tudo isso
demoraria o quê? Um segundo e meio? Dois segundos?
E durante esse tempo, um tipo suficientemente inteligente para iniciar uma jogada dessas vai
estar a dar-te murros na cabeça. Vai espetar-te uma série de socos. Talvez uns quatro, nos teus
dois segundos, se tiver algum jeito para o speed bag. É melhor largares a pistola para já. É melhor
voltares a ela mais tarde. É melhor preparares-te para o que sabes que vem aí.
Reacher abriu a mão, a Ruger caiu ao chão e ele começou a desfazer a rotação, agora no
sentido dos ponteiros do relógio, levantando o cotovelo e baixando a cabeça, com o primeiro
dos socos a acertar-lhe no cocuruto e depois um gancho com a esquerda a atingi-lo acima da
orelha, um golpe brutal, como uma barra de ferro, a que se seguiu o cotovelo dele a aparecer
nas redondezas, numa ampla manobra defensiva a cortar o ar, placando a direita que aí vinha,
com Reacher a servir-se do ímpeto para puxar também ele de um gancho com a esquerda, mas
a pancada acima da orelha tinha atrasado um pouco o processo de inversão da rotação e, por
isso, a pontaria às cegas saiu-lhe mal e o soco chegou sem muita força, ou seja, não atirou o tipo
pela escada abaixo, apenas o fez andar ligeiramente para trás.
E foi nessa altura que o outro demonstrou ainda mais talento. Como era natural, Reacher
estava a aproximar-se, à espera de acabar com aquilo, à espera que o tipo voltasse a avançar,
todo bamboleante, maltratado e indefeso, mas o homem deu um esticão para o lado, num
ângulo de noventa graus. Um magnífico movimento atlético. Formidável para um tipo grande.
E tinha-lhe salvado a vida. Com um bónus. Não só tinha escapado a um impacto colossal como
Reacher estava agora com o peso do corpo no pé errado, e o tipo aproveitou, dando um passo
para a frente e enfiando uma esquerda curta no rim de Reacher. E que Reacher achou que iria
deixar marcas.
A seguir, o homem recuou para a posição inicial, como um pugilista a retroceder para um
canto neutro. Ficou ali parado, atento mas sem se mexer, com um ar bastante confiante. A
Ruger estava caída na alcatifa do corredor, mais ou menos a meio caminho dos pés de Reacher
e dos dele. Não estava virada para nenhum. Estava a apontar para o lado, ainda indecisa, como
o polegar de um imperador, nem para cima nem para baixo.
Mas não estava bem a meio caminho dos dois.
Em concreto, estava mais perto de Reacher.
Quanto tempo demoraria ele a apanhá-la?
O tempo suficiente para levares um pontapé na cabeça.
Ou um tiro no coração. Reacher olhou para a roupa do tipo. O casaco de cetim era fino e
não se percebiam coisas protuberantes ou pesadas. Estava aberto, sem nada a esconder. E os
bolsos das calças de ganga estavam inchados de forma inocente. Só ar e uns Kleenex. Portanto,
a arma de reserva estaria presa ao cinto, dentro de um coldre de panqueca no cós das calças.
Cortesia do apoio operacional de que desfrutava em Chicago. Não seria a maneira mais rápida
de atirar, mas era bastante mais rápida do que um tipo alto a dobrar-se todo para tentar
apanhar à pressa uma pistola pequena caída no chão, ainda por cima com cerca de vinte
centímetros de metal a mais.
E daí a confiança. Que o homem não sentiria se estivesse prestes a entrar numa luta mano a
mano. Era coisa que nunca tinha acontecido. Mas parecia mesmo descansado. Só tinha uma
pequena preocupação, pensou Reacher. Que ele não precisasse mesmo de pegar na Ruger. Na
verdade, só precisava de lhe chegar com o pé e arrastá-la para trás, pelo meio das pernas, na
direção de Chang.
E isso mudaria o jogo por completo.
Mas era difícil. E uma coisa lenta. Um movimento trôpego e forçado. Além da fatia de
tempo finita que Chang levaria depois a pegar na pistola, a preparar-se, a fazer pontaria e a
disparar.
Não seria a maneira mais rápida de atirar, mas era mais rápida do que a outra.
Quase de certeza.
Portanto, uma preocupação, mas pequena.
Estava na hora de lhe pôr a cabeça à roda.
Reacher recuou. Um passo grande. As proporções alteraram-se. Agora, a Ruger já estava
mais perto do tipo. Que resolveu avançar. Aproximando-se da pistola. Era inevitável. A
natureza humana, ali mesmo. Era difícil reprimi-los, mas fácil atraí-los. O outro teria feito
questão de resistir a qualquer tipo de pressão que o quisesse fazer recuar, mas não demonstrou
tal determinação no sentido contrário. Avançou logo. O seu primeiro erro. Uma fraqueza. Não
percebia. Julgava que qualquer pedaço de um corredor de um prédio era igual ao anterior.
Aliás, até achava que aquela nova posição era melhor. Por ficar com a Ruger mesmo aos pés.
Podia recuperá-la, quando muito bem lhe apetecesse. E depois ficaria com duas pistolas e
Reacher sem nenhuma.
Melhor.
Mas nem por isso.
Por causa da tentação. Por causa da urgência. Tinha duas armas a que podia aceder
facilmente, mas não tinha nenhuma verdadeiramente na mão. Tão perto e tão longe. As
possibilidades futuras consumiam-no. Estava a antecipar sensações, o peso robusto na mão, o
cabo rugoso e áspero encostado à palma, o gatilho quente e duro sob o dedo. Invulnerabilidade.
Vitória. Serviço feito. Tão perto. E, para isso, bastava mergulhar para apanhar a Ruger e subir
outra vez, bem depressa e subitamente, ou então afastar rapidamente o casaco de cetim,
apalpar atrás das costas, à procura do coldre, e sacar, apontar e disparar.
Bastava tão-só isso.
Tão perto. Tentação. Urgência. Mas qualquer uma das manobras levaria tempo. Um
segundo ou perto disso. Talvez mais. E qualquer uma delas seria um sinal evidente. Não
haveria ambiguidade. Reacher saberia ao certo o que se seguiria. E estava apenas à distância de
dois passos. Era um tipo grande, mas com clara mobilidade. E de quanta mobilidade precisaria?
Tentar apanhar a Ruger implicaria um pontapé na cara. De certeza. Reacher avançaria um
passo e bang. Com o pé direito, depois de o puxar ligeiramente para trás. Como pontapear uma
bola de futebol americano. O alvo estaria mesmo ali, no sítio certo, na hora certa, à altura certa.
Num suportezinho. A pedi-las. A cara do tipo.
E tentar chegar ao coldre implicaria um pontapé nos tomates. Também de certeza. Ficaria a
lutar com uma mão literalmente atrás das costas. E o cotovelo dobrado numa posição esquisita.
Seria pôr-se mesmo a jeito.
Duas armas a que podia aceder facilmente, mas nenhuma na mão.
Tentação.
Urgência.
Distração.
Reacher aproximou-se meio passo. Comprimindo a geometria. Reduzindo a distância.
Intensificando a concentração. Aumentando a pressão. Cara a cara, a um metro e meio um do
outro. O tipo manteve-se calmo à superfície. Mas Reacher conseguia ver o que se escondia por
baixo disso. O tipo estava a tremer. Uma manifestação física daquele dilema. Queria baixar-se
ou pôr a mão atrás das costas. Uma coisa ou a outra. Ou ambas. Incontrolável. Estava sempre a
arrancar e a parar, num plano microscópico. A experimentar assim e a experimentar assado.
Uns sobressaltozinhos e umas trepidaçõezinhas. Os olhos não paravam quietos. Para cima e
para baixo, uma e outra vez. Tão perto e tão longe.
— Como te chamas? — perguntou-lhe Reacher.
— O quê? — retorquiu o tipo.
— Pelos vistos, acabámos de nos conhecer. Mais vale apresentarmo-nos formalmente.
— Porquê?
— Podia ser uma jogada inteligente da tua parte. Podia fazer-me pensar em ti como uma
pessoa. E não como um adversário. Podia não te bater com tanta força. É o raciocínio
convencional, nos tempos que correm. As vítimas precisam de se humanizar.
Sobressaltos e trepidações. Olhos a mexerem-se para cima e para baixo.
Tão perto e tão longe.
— Não sou nenhuma vítima — afirmou o tipo.
— Por enquanto — respondeu Reacher.
E, atrás dele, Chang disse:
— Isto não tem de acabar mal. Recua e põe as mãos no ar. Depois conversamos. E podemos
arranjar uma solução. Ainda não nos fizeste nada.
O tipo não disse nada. Tinha os olhos a subir e a baixar. Reacher percebia que ele queria
usar a Ruger. E porque não? Tinha sido a arma inicialmente escolhida. Presumivelmente, por
alguma razão. E tinha o silenciador. Do ponto de vista operacional, era superior. E do ponto de
vista sentimental, também. O que o tipo talvez ainda não tivesse compreendido, na parte mais
racional do cérebro. Mas aquilo estava a fazer efeito. Se pegasse na Ruger, voltaria precisamente
ao ponto de partida. Seria como recomeçar. Como se não tivesse acontecido nada. Podia pegar
na Ruger e voltar a sentir-se completo.
— Como te chamas? — repetiu Reacher.
— Keith Hackett — respondeu o tipo.
— Jack Reacher. Prazer em conhecer-te.
O tipo ficou calado.
— Mas a verdade é que já sabes como nós nos chamamos — continuou Reacher.
Nenhuma resposta.
— Portanto, o preço é esse. Como disse a minha colega, isto não tem de acabar mal. Pelo
menos, para ti. Só precisas de nos contar quem te disse os nossos nomes. Quem te deu este
serviço. A quem telefonas todas as noites, para apresentar um relatório de progresso. Contas-
nos isso e deixamos-te ir embora.
Nenhuma resposta.
— É um conceito simples, Hackett. Contas-nos e vais-te embora. Não nos contas e não te
vais embora. Se calhar, nem consegues ir embora. Estas coisas são imprevisíveis. Há ferimentos
que podem ser graves.
Nenhuma resposta.
— Lembra-te daqueles semáforos antigos para atravessar a rua — prosseguiu Reacher. —
Quando tinham palavras. Andar ou não andar, Hackett. É essa a questão aqui.
O tipo deteve-se um segundo, repentinamente quieto pela primeiríssima vez, e depois
lançou-se para a Ruger. Projetou-se desenfreadamente, mais rápido do que a gravidade, com as
mãos já a mexerem-se, ensaiando como recolher a pistola, e a cara desviada, devido ao que
sabia que aí vinha de certeza, mas que esperava poder ser evitado.
Não podia. O tipo tinha a cara toda esticada para cima e para trás e, por isso, a bota de
Reacher acertou-lhe por baixo do queixo, como um uppercut dado por um peso-pesado com
uma ferradura dentro da luva. O tipo voou para trás, estatelando-se no chão, mas, honra lhe
seja feita, sabia que já estava morto se ali ficasse, por isso, escorregou uma vez e, a seguir, pôs-se
a andar de lado e afastou-se desajeitadamente, com a ajuda dos cotovelos e dos joelhos, até que
se conseguiu pôr em pé, arqueando os ombros, pestanejando e tentando agarrar o ar. Não
parecia lá muito bem. Tinha o maxilar partido, evidentemente. E faltavam-lhe uns dentes.
Ferimentos que eram graves. Mas nenhum que fosse também, do ponto de vista técnico e,
como diria um árbitro, debilitante, naquelas circunstâncias. A não ser que o tipo estivesse a
pensar começar o banquete de vitória nos tempos mais próximos.
Reacher pôs os olhos na mão direita do tipo. Calculou que ela só tinha três possibilidades. A
mais inteligente seria subir, em sinal de desistência. E a mais estúpida, cerrar-se outra vez num
punho. Logo, a segunda mais estúpida equivaleria à segunda mais inteligente, tentar chegar ao
coldre.
E o tipo tentou chegar ao coldre.
Mas ficou pelo caminho.
Puxou o braço para trás, espetando o cotovelo, e pôs a mão na horizontal para a enfiar por
trás das costas, com a mão esquerda a avançar de forma desajeitada e solidária, como um
contrapeso, os ombros a abrirem-se muito e o tipo a ficar tão horizontal e bidimensional como
se estivesse colado no ar. Como um alvo de papel. Como um alvo de papel numa aula de
combate corpo a corpo. Valia tudo. Reacher deu um pequeno passo em frente e espetou-lhe
uma cabeçada, em cheio na cara, a um bom metro de distância, com bastante arco ao longo do
ar do corredor mal iluminado, bastante potência e bastante aceleração, um impacto colossal e
violento, e depois, de repente, o homem já lá não estava e Reacher recorria a todos os músculos
do corpo para se impedir de prosseguir o movimento e dar uma cabeçada no chão.
Foi então que, do outro lado da escada, se abriu uma porta e uma mulher de cabelos
brancos espetou a cabeça. Fez acender uma luz automática.
— Quem são vocês? — perguntou ela.
TRINTA E SEIS

A vizinha era uma velhota de ar distinto, magra e enfraquecida, mas ainda com vivacidade.
Parecia atenta. Como tanta gente da mesma geração, mostrava tendência para a cortesia e
relutância em descrer. Pelo menos, abertamente. Uma simples questão de delicadeza, calculou
Reacher.
— Estamos a instalar um computador novo em casa do senhor McCann. Mas está muito
quente aqui em cima. Este tipo desmaiou — disse ele.
— E não quer que eu chame uma ambulância?
— Não, vamos levá-lo para dentro e dar-lhe um copo de água.
— Não me custava nada.
— Tem que ver com os seguros, minha senhora. Ele é freelancer. As coisas são difíceis para
estes tipos. O que ele pode deduzir é de loucos. Não vai querer uma conta de hospital.
— E não posso fazer mais nada para ajudar?
— Nadinha, minha senhora.
Reacher levantou Hackett e começou a arrastá-lo em direção à sala de McCann. Chang
empurrou a Ruger com o pé, discretamente, afastando-a para um lugar seguro, uns centímetros
de cada vez. A vizinha começou a fechar a porta, mas depois mudou de ideias e voltou a abri-la,
a mesma nesguinha confidencial de uns trinta centímetros, dizendo:
— Pensava que era o Peter que instalava sempre os próprios computadores.
A seguir, fechou a porta de vez e o corredor ficou em silêncio.
Chang pegou na Ruger e fez o resto do caminho com ela. Reacher entrou com Hackett. E
Chang fechou a porta. Uma coisa era certinha, o maxilar de Hackett estava bem estropiado.
Praticamente os ossos faciais todos. Havia por aí um médico a preparar-se para entrar no
circuito das palestras. Mas o tipo estava a respirar bastante bem. Pelo menos, até ao momento.
Até diversos órgãos internos começarem a inchar e a obstruir. Depois, era uma incógnita.
— Quando é que ele vai acordar? — perguntou Chang.
— Não faço ideia. Algures entre daqui a duas horas e nunca — respondeu Reacher.
— Bateste-lhe com imensa força.
— Ele bateu-me primeiro. Duas vezes na cabeça e uma nas costas.
— E estás bem?
Assentiu. Estava bem. Mas não formidável. O rim doía-lhe muito. Sentia dores quando se
mexia. E a cabeça ainda lhe doía mais. Tinha uma dor lancinante acima da orelha. Fora um
soco e peras. Se calhar, o pior que já tinha levado.
E, dadas as circunstâncias, a cabeçada não tinha sido muito prudente.
— Não podemos ficar aqui à espera duas horas — afirmou Chang. — Pode acontecer tudo e
mais alguma coisa.
— Precisamos de encontrar o McCann e ficar aqui à espera é uma maneira tão boa como
qualquer outra.
— Não estás a pensar — respondeu ela. — Estás com dor de cabeça?
— Ainda não. Mas daqui a bocado, sim. Porquê?
— Como é que eles nos descobriram aqui?
— Imagino que este tipo nos tenha seguido. Olhando para trás, era óbvio que ele ia
começar pela biblioteca.
— Mas depois metemo-nos no carro. E fizemos um caminho maluco. Andámos às voltas
pelo bairro inteiro, para nos orientarmos. E não havia ninguém atrás de nós. Ninguém nos
estava a seguir. E como podia estar?
— Então, como aconteceu isto?
— Sabem mais coisas do McCann do que nós sabemos. Por uma razão ou outra. Se calhar,
já fizeram negócios juntos. Pelo menos, sabem a morada dele. Se calhar, foi por isso que a porta
não estava trancada. Tal como a porta do Keever não estava trancada. Se calhar, o Hackett já cá
tinha estado hoje de manhã.
Havia qualquer coisa na voz dela.
Reacher pegou na Ruger, inspecionou a câmara e abriu o carregador. Viu balas de nove
milímetros acobreadas a reluzir. Mas não viu balas de nove milímetros acobreadas que
chegassem.
Faltava uma no carregador.
Cheirou a câmara. E a boca da pistola.
Tinha sido disparada.
— Não queriam que falássemos com o McCann. E havia duas maneiras de nos impedir.
Escolheram as duas — disse Chang.
Reacher verificou a pulsação de Hackett. No pescoço. Estava a bater, mas devagar.
Inconsciência profunda. Ou estado comatoso. Havia alguma diferença? Reacher não tinha a
certeza.
— Temos de pressupor que vêm aí reforços, mais cedo ou mais tarde — insistiu Chang.
— Este tipo pode dizer-nos coisas — retorquiu Reacher.
— Não temos tempo.
— Então levamos ao menos o que pudermos.
Sacaram um telemóvel sofisticado, tão fino como o de Chang, a chave de um carro alugado,
uma chave magnética de hotel, oitenta e cinco cêntimos e uma carteira, tudo dos bolsos, e uma
Heckler & Koch P7, do coldre preso à parte de trás do cinto. A P7 era suficientemente pequena
para esconder e grande para utilizar. Tinha as mesmas balas Parabellum que a Ruger, o que, do
ponto de vista logístico, era sensato. A carteira tinha mais de cem dólares em dinheiro vivo,
uma carta de condução da Califórnia e uma série de cartões de crédito. Chang ficou com o
telemóvel, para ver o registo de chamadas, e Reacher ficou com o dinheiro, para futuras
despesas, e com a P7, por variadíssimas razões. Limparam o que não iam levar e tudo aquilo
em que tinham tocado. Enfiaram o saque nos bolsos.
— Precisamos de mais alguma coisa? — perguntou Chang.
Reacher deu uma vista de olhos final.
— Se calhar, só de mais uma — respondeu.
— Que seria o quê?
— Acho que podemos esquecer a comida orgânica e as abelhas. Olha-me para este sítio. Os
cereais têm açúcar e o leite é de marca branca. E há duas tabletes de chocolate. É isso que ele
come. E anda com calças de poliéster. Quer lá saber o que enfia no corpo e não é amiguinho da
natureza. Portanto, o artigo do LA Times a que ele reagiu foi aquilo da Deep Web. Sobre a
Internet. O que até faz todo o sentido, com esta catrefada de computadores.
— E queres levar um?
— Ouviste o que a vizinha disse? Antes de fechar a porta?
— Disse que pensava que era o Peter que instalava os próprios computadores. Não a
convenceste. Foi uma tirada de despedida muito educada.
— Mas usou as palavras certas. Os computadores são instalados, não são? E tratou-o por
Peter. Ia julgar que uma senhora daquela idade o ia tratar por senhor McCann. Devem ser bons
amigos. Como os vizinhos de longa data são às vezes. E, nesse caso, talvez falem de assuntos
pessoais. E se ela percebe de computadores, talvez ele lhe tenha contado o que o preocupa.
Porque ela ia compreender.
— Não temos tempo para lhe perguntar. A qualquer altura, podem entrar aqui no prédio
mais tipos como este. E depois a polícia.
— Concordo — retorquiu Reacher. — Não temos tempo para lhe perguntar. Pelo menos,
aqui no prédio. Por isso, ela é que é a outra coisa que eu quero que levemos. A vizinha.
Devíamos convidá-la a ir beber um café. Longe daqui. E devíamos convidá-la já.

Não foi um processo rápido. Uma fuga a alta velocidade. Houve algum ceticismo. Alguma
relutância. Chang acabou por ter de recorrer literalmente à cartada do FBI. Seguiram-se uns
instantes à procura de um casaco, embora lhe tivessem dito que estava quente. Mas era uma
questão de boas maneiras. Disse que não era completamente antiquada. Não iria insistir em
levar luvas e chapéu.
Depois veio a longa e titubeante descida pela escada íngreme, até à rua, onde o carro a fez
ultrapassar a última dose real de relutância. A tinta preta cintilante e o motorista de impecável
fato cinzento foram o toque final. Tinha um ar governamental. Já vira carros desses nos
noticiários da noite.
A seguir, foi a vez de Reacher se pôr à procura do sítio certo. Foram rejeitados vários
candidatos agradáveis. Até que um foi escolhido, um café tradicional de Chicago, talvez
discretamente atualizado por um neto e herdeiro respeitoso. Tinha um ambiente agradável,
bem como o conjunto completo de todas as virtudes necessárias. Que eram estacionamento
próximo, lugares lá dentro e um ecrã de televisão na parede.
A vizinha de McCann parecia agradada. Talvez lhe recordasse os sítios que costumava
frequentar. Enfiou o corpo magro num reservado, deixando-se encurralar por Chang, que se
sentou ao lado dela. Reacher sentou-se no banco em frente, todo esparramado, o menos
ameaçadoramente possível.
As apresentações gerais revelaram que a vizinha se chamava Eleanor Hopkins, uma viúva
que, quando casada, tinha sido investigadora de laboratório na universidade, com
conhecimentos técnicos, a que acrescia a literatura técnica que dominava estar escrita, segundo
disse, num número pequeníssimo de pequeníssimas maneiras, quase sub-reptícias, por ela ou
por pessoas que conhecia. Ou de que tinha conhecimento, ou poderia ter tido, se tivesse
mudado de emprego em determinada altura. Explicou que a sua carreira coincidira com um
período interessante, em matéria de progressos técnicos.
E depois disse que Peter McCann já vivia há bastantes anos no prédio dela e que tinham
acabado por se aproximar um do outro, de uma forma pouco expansiva e ocasional, com um
respeito mútuo pela privacidade de cada um. Disse que o tinha visto pela última vez quatro
semanas antes. O que acontecia frequentemente. E que não era razão para preocupações. Ela só
saía muito raramente e seria uma questão de pura coincidência se o encontrasse no corredor. E
ele também se ausentava bastante, muitas vezes por vários dias. Não fazia ideia para onde.
Nunca lhe tinha perguntado. Era vizinha dele, não era irmã. Sim, era um homem infeliz. Não
era incomum as coisas correrem mal na vida.
A televisão do café estava a passar o noticiário local. Reacher foi vendo pelo canto do olho.
A senhora Hopkins pediu café e uma fatia de bolo e Chang disse-lhe que era possível que o
senhor McCann estivesse a braços com um problema. De que tipo, ninguém sabia. E ela?
Não sabia.
— Pareceu-lhe obcecado com alguma coisa? — perguntou Reacher.
— Quando? — retorquiu a senhora Hopkins.
— Recentemente.
— Sim, diria que sim.
— Durante quanto tempo?
— Nos últimos seis meses, mais coisa menos coisa.
Lá fora, ouviram-se sirenes ao longe, mais o bater surdo de asas de helicóptero, talvez a um
quilómetro e meio dali.
— Sabe qual era o problema do senhor McCann? — insistiu Reacher.
— Não, não sei. Falávamos muito pouco de assuntos pessoais.
— Estaria relacionado com o filho?
— Era possível, embora por norma não se tratasse de uma situação que variasse muito.
A televisão estava a mostrar uma imagem de relvados verdes filmados de um helicóptero.
Árvores. Um parque.
— E qual era a questão com o filho? — perguntou Reacher.
— Não falava disso a fundo — respondeu a senhora Hopkins.
— E sabia que ele contratou um detetive privado?
— Sabia que ele pretendia tomar medidas concretas.
— Em relação a quê?
— Não sei.
— E falavam os dois de assuntos técnicos? Tendo em conta a formação da senhora e o
aparente interesse dele?
— Sim, falávamos com frequência de assuntos técnicos. Às vezes, enquanto tomávamos
café e comíamos um bolo. Como agora. Explorávamos as questões em conjunto. E gostávamos
bastante. Ajudei-o a compreender as estruturas básicas e ele ajudou-me a perceber quais são as
utilizações que agora lhes dão habitualmente.
— E a obsessão dele era uma obsessão técnica?
— Acho que, no essencial, não, mas havia aspetos técnicos.
— E tinha alguma coisa que ver com a Internet?
Na televisão, por baixo das imagens verdes instáveis, passava uma faixa que dizia Homem
Abatido a Tiro Encontrado em Parque.
A velhota levantou a cabeça e disse:
— Aposto que foi por alguém que ia a passear o cão. Acho que é isso que costuma
acontecer. Nos parques.
— E que interesse tinha o McCann na Internet? — perguntou Reacher.
— Queria entender alguns aspetos. Como a maioria dos leigos, pensava nas coisas do ponto
de vista físico. Como se a Internet fosse uma piscina, carregada de bolas de ténis a boiar.
Representando as bolas de ténis, naturalmente, websites individuais. O que, como é evidente,
está errado. Os websites não são coisas físicas. A Internet não possui uma realidade física. Não
possui dimensões nem limites. Não há para cima nem para baixo, não há perto nem longe.
Embora possamos afirmar que possui massa. A informação digital é toda em uns e zeros, o que
quer dizer que as células de memória estão ou não carregadas. E a carga corresponde à energia,
logo, se acreditarmos na equação E = mc2 de Einstein, em que E é a energia, m, a massa, e c, a
velocidade da luz, então não podemos deixar de acreditar que m seja igual a E dividido por c2,
o que corresponde à mesma equação, mas expressa de forma diferente, e que pressuporia que a
carga possui massa detetável. Quanto mais canções e fotos puserem num telemóvel, mais
pesado ele fica. Não aumenta sequer um grama, mas ainda assim.
Na televisão, a câmara fez um zoom do helicóptero para um grupo de pequenos arbustos.
Havia polícias de uniforme parados à volta deles, fita plástica de delimitação e o que parecia ser
uma figura meio oculta no chão, de sapatos pretos e pernas de calça pretas, debaixo de ramos
folhosos. O rodapé continuava a dizer Homem Abatido a Tiro Encontrado em Parque.
— E que queria o McCann entender ao certo? — perguntou Reacher.
A velhota respondeu:
— Queria saber porque há websites que não se conseguem encontrar. O que era
essencialmente uma questão acerca de motores de busca. A imagem que ele tinha da piscina
deu uma ajuda. Imaginou milhões de bolas de ténis, umas a boiar na água e outras mais em
baixo, sob o peso das primeiras, sem poderem vir à tona. E então pedi-lhe para imaginar que
um motor de busca era como uma fita de seda comprida, a ser puxada para cima e para baixo,
para dentro e para fora, a serpentear pelo meio das bolas, de um lado ao outro, a deslizar sobre
as suas superfícies molhadas e penugentas e a uma velocidade extraordinária. E, a seguir, para
imaginar que algumas bolas tinham sido adaptadas, passando a ter picos em vez de penugem,
como anzóis, e que outras tinham sido adaptadas no sentido de não terem nenhuma penugem,
de serem completamente lisas, como bolas de bilhar. Onde se prenderia a fita de seda? Nos
picos, claro. Deslizaria sem parar sobre as bolas de bilhar. E era isso que o Peter precisava de
entender acerca dos motores de busca. É como uma rua de dois sentidos. Um website tem de
querer ser encontrado. Tem de se esforçar muito para desenvolver picos eficazes. Aquilo a que
as pessoas chamam otimização para motores de busca. Hoje em dia, trata-se de uma disciplina
muito importante. Dito isto, ser uma bola de bilhar é igualmente difícil. Ser uma coisa secreta
também não é fácil.
— Os websites secretos pressupõem ilegalidades — afirmou Chang.
— Com efeito — retorquiu a velhota. — Ou imoralidades, suponho eu. Ou as duas
situações ao mesmo tempo. Sou ingénua em relação a essas coisas, mas posso imaginar
pornografia muito desagradável, cocaína enviada por correio e por aí fora. Chama-se a isso a
Deep Web. Todas aquelas bolas de bilhar lisas. Milhões. Sem picos nem anzóis, nada a não ser
tratarem da vidinha delas sem ninguém a vigiar. A Deep Web é capaz de ser dez vezes maior do
que a rede de superfície. Ou cem. Ou mais. Ninguém sabe. E como poderiam saber? E, claro,
não deve ser confundida com a Dark Net, que não passa de sites desatualizados, com links
quebrados, como satélites mortos a rodopiar eternamente pelo espaço. O que faz com que a
Dark Net pareça arqueologia de tempos antigos e a Deep Web lembre mais o lado menos
recomendável da cidade. Não é que qualquer uma delas seja verdadeiramente escura ou
profunda ou venha seja de que lado for da cidade, como devem compreender. A Internet não é
um sítio físico. Não possui nenhumas características físicas.
Na televisão, uma ambulância entrou no plano, avançando lentamente sobre a relva, com as
luzes a piscar lugubremente, seguida pelo que aparentava ser a carrinha do médico-legista. Saiu
gente das duas, juntando-se aos polícias.
— Então como pode uma pessoa descobrir websites secretos? — perguntou Chang.
— Não pode — respondeu a velhota. — Pelo menos, do exterior. Não se pode usar um
motor de busca, já que os sites são lisos. É preciso a morada exata. Não chega CoffeeShop.com,
tem de ser qualquer coisa como CoffeeShop123xyz.com. Ou muito pior, claro, na realidade.
Um localizador de recursos único aliado a uma senha supersegura, num dois em um. Segundo
consta, moradas dessas circulam por determinadas comunidades boca a boca.
Na televisão, um Crown Vic azul-escuro atravessou o relvado aos solavancos e estacionou.
Saíram de lá dois homens de fato. Detetives, presumivelmente. O rodapé mudou para
Homicídio no Lincoln Park. Reacher ouvia mais helicópteros no ar, a cerca de um quilómetro e
meio de distância. Canais da concorrência atrasados para a festa.
— E o McCann disse-lhe de que tipo de website andava à procura? — perguntou ele.
— Não — respondeu a velhota.
Na televisão, havia homens a agacharem-se diante da figura de preto deitada na relva. Os
detetives e o médico-legista, calculou Reacher. Conhecia aquela rotina. Já se tinha agachado
muitas vezes diante de figuras na horizontal. Algumas estavam vivas. Mas esta, não, sabia-o
bem. Não havia urgência. Nem pressa. Nem vozes a gritar. Nem suportes para as costas, nem
linhas intravenosas, nem tubos de respiração assistida, nem compressões no peito.
Homicídio no Lincoln Park.
— Aquele é o Peter, não é? Caso contrário, porque me estariam a fazer perguntas acerca
dele? Porque havia o FBI de estar interessado em mim? — perguntou a velhota.
Chang não respondeu a nenhuma das perguntas e Reacher ficou calado, pois, ao mesmo
tempo que a velhota falou, a televisão mostrou outra coisa. Uma imagem de uma casa. Uma
banal casa de arenito castanho-avermelhado, numa rua banal. O prédio de arenito de Peter
McCann. O prédio da velhota. Onde tinham estado momentos antes. Era reconhecível. Era
familiar. A parte da frente estava toda iluminada por luzes vermelhas a piscar. Com polícias a
subir o alpendre.
Mas era demasiado cedo para já se ter estabelecido uma ligação. Os polícias do parque
ainda nem sequer tinham revistado os bolsos de McCann. Não haviam encontrado uma
carteira nem tinham olhado para a carta de condução, não sabiam quem ele era nem onde
vivia. Ainda estavam à espera da autorização do médico-legista. Reacher sabia como aquilo
funcionava. Já tinha ficado muitas vezes de cócoras, simplesmente à espera. Era preciso
decretar a morte para que o corpo passasse a constituir uma prova.
Ainda não havia ligação. Uma investigação diferente. O rodapé mudou para Polícia
Antiterrorismo Invade Habitação em Chicago.
Reacher virou-se para a velhota e perguntou-lhe:
— Ligou para o 112?
— Sim, liguei — respondeu a velhota.
— Quando?
— Mal fechei a porta a seguir a falar convosco.
— Porquê?
— Não gostei da vossa cara.
— De nenhum de nós?
— Sobretudo de si. Não tem cara do que diz ser. Não parece um daqueles agentes do FBI
que se veem na televisão.
— Estava disfarçado. A fingir que era um dos maus.
— Foi muito convincente.
— E, por isso, ligou para o 112.
— Imediatamente.
— E o que disse?
— Que tinha terroristas armados em minha casa.
— E porquê isso?
— Estamos em Chicago. É a única maneira de conseguirmos uma resposta em menos de
quatro horas.
— Talvez fosse melhor irmos andando — disse Chang.
— Não, vamos ficar mais um bocadinho. Mais cinco minutos não vão fazer mal a ninguém
— retorquiu Reacher.
Encheram-lhes de novo as chávenas de café e, como a velhota quis comer mais bolo,
Reacher e Chang também pediram outra fatia cada, para lhe fazer companhia. A televisão
passou a mostrar um ecrã dividido ao meio, com o parque à esquerda e a casa à direita, por
cima de rodapés independentes que diziam Homicídio no Lincoln Park e Alerta de Terrorismo,
ambos centrados sobre a faixa principal, que dizia Dia Atarefado para a Polícia.
A segunda chávena de café foi tão boa como a primeira. Tal como o bolo. Um saco para
recolher cadáveres apareceu no parque e uma ambulância chegou à casa. Puxaram o fecho de
correr do saco e transportaram-no para a carrinha do médico-legista, ao mesmo tempo que os
socorristas saíam da ambulância e subiam o alpendre para entrar na casa. Mais tarde, saíram de
lá com um homem ferido deitado numa maca. Hackett, presumivelmente, embora fosse difícil
ter a certeza. O tipo tinha a cara toda enfaixada com ligaduras, do pescoço para cima, como
uma múmia egípcia, e a roupa tapada com um lençol.
Foi então que, como num efeito visual filmado em câmara lenta, os polícias se foram
embora do parque e, passados quatro longos minutos, surgiram junto à casa, nos mesmos
carros, da esquerda do ecrã para a direita, um saltinho eletrónico, mas um percurso sinuoso no
mundo real. Os mesmos detetives saíram dos carros, apressando-se a subir o alpendre para
entrar na casa, e, um minuto mais tarde, já estavam outra vez na rua, a falar com urgência ao
telemóvel.
O rodapé mudou para Representante Oficial Confirma Que Casos Estão Relacionados.
E Reacher disse:
— Lamento imenso a sua perda, minha senhora, e lamento imenso a intrusão de que está
prestes a ser alvo. A polícia de Chicago vai querer interrogá-la. E não é como nas séries. O FBI
não pode aparecer e ficar-lhes com o caso. Temos de os deixar em paz. Portanto, agradecíamos
que a senhora nem sequer lhes dissesse que tínhamos conversado. Há todo um conjunto de
sensibilidades em jogo. É melhor não se referir a nós pura e simplesmente. Nem sequer ao facto
de já termos estado no prédio. Não precisam de saber que nós chegámos lá primeiro.
— Está a pedir-me para lhes mentir?
— Que é o que eu vou fazer, se me perguntarem quem lhes falou de terroristas e porquê.
— Então está muito bem, também vou fazer isso — retorquiu a velhota.
— E não faz mesmo ideia de qual era o problema do McCann?
— Já lhes disse, sou vizinha dele, não a irmã. Deviam era perguntar-lhe a ela.
— A ela, quem?
— À irmã.
— Ele tem uma irmã?
— Já lhes tinha dito.
— Julguei que não fosse uma coisa literal.
— Não, ela existe mesmo. E são muito chegados. Era à irmã que ele teria contado segredos.
TRINTA E SETE

Disseram ao motorista para levar a senhora Hopkins para casa, explicando-lhe que seria o
último serviço que teria de fazer naquele dia e que, doravante, ficaria de folga e livre para ir
para casa, voltar para a garagem ou para onde quer que fosse que tivesse de ir. Ele recebeu a
notícia animadamente. Mas Reacher calculou que esse último serviço não seria o mais
agradável. Calculou que não conseguiriam fazer a viagem até ao fim. Calculou que chegariam a
umas duas ruas da casa da velhota e depois apanhariam com as barricadas. Se a velhota fosse
capaz de provar como se chamava e onde morava, deixá-la-iam continuar a pé. Ou no banco de
trás de um verdadeiro carro governamental, consoante a rapidez com que quisessem falar com
a vizinha. Fosse como fosse, ela acabaria toda confortável e descansada, cheia de água e café, a
conversar com raparigas educadas.
Relativamente seguro.
Chang ligou o telemóvel. O que também era relativamente seguro. A operação de
localização de Hackett estava encerrada, pelo menos temporariamente. E precisavam de mapas,
imagens de satélite, horários de voos e motores de busca. A senhora Hopkins tinha-lhes
contado que a irmã de Peter McCann se chamava Lydia Lair. Era mais nova do que ele vários
anos. Casara com um médico e mudara-se para um subúrbio chique de Phoenix, no Arizona. O
marido era rico, mas McCann nunca tinha pedido nada à irmã além de tempo e atenção.
Tinham a morada dela, escrevinhada numa nota destinada à lista de cartões de Natal da velhota
e que esta ainda levava enfiada num diário de bolso dentro da carteira. Mas não tinham um
número de telefone. Chang descobriu o consultório do marido em linha, mas a rececionista
recusou-se a dar-lhe o número de casa. E a base de dados da empresa de telecomunicações
informou que não se encontrava registado. Marido e mulher não apareciam em nenhuma das
bases de dados secretas de Chang. E o Google também não ajudou em nada, dando-lhes apenas
uma imagem anódina do casal num evento de caridade. O doutor Evan Lair e a mulher. Uma
fundação do rim. Ele estava de smoking e ela de vestido de noite. Parecia de boa saúde. Reluzia
com diamantes e tinha os dentes muito brancos.
Foi então que se viram a braços com uma decisão tripartida, entre a urgência com que
precisavam de chegar a Phoenix, o tempo que podiam esperar por um voo com o cartão
dourado e o tempo que a polícia esperaria até notificar a irmã. Se o fizesse sequer. Não era o
parente mais próximo. Esse seria o filho. A polícia focar-se-ia primordialmente nele. Iria
querer informá-lo primeiro. E, se tal acontecesse, caberia a ele ligar à tia. Seria visto como uma
responsabilidade do filho. Que a poderia ou não descartar, dependendo dos problemas dele.
E tudo isso queria dizer que, independentemente do que se pudesse passar, ela podia ou
não estar a receber a chamada no momento em que aterrassem em Phoenix. O que, no fundo,
tanto fazia. Más notícias eram más notícias. Não interessava quando se recebiam. O importante
era que ela não tivesse tempo para se pôr a congeminar apanhar um avião para Chicago e tratar
de tudo pessoalmente. Tinham de falar com ela antes de isso acontecer. Antes de funcionários
de apoio às vítimas e amigos bem-intencionados a convencerem a repensar a vida.
A melhor hipótese, quanto à viagem, estava fora da zona de conforto de Chang, por meio
de uma companhia aérea onde ela não tinha cartão. Mas era a primeira opção e a mais
satisfatória. Dava-lhes, à justa, tempo para passarem pelo Peninsula para largar a P7 e pegar na
mala de Chang. E mais outra coisa. Ligaram o telemóvel que tinham sacado a Hackett e
verificaram o registo de chamadas. As comunicações recebidas vinham todas de um único
número. Com o código de área 480.
Chang consultou o computador.
E disse:
— Isso é um telemóvel de Phoenix, no Arizona. Para onde nós vamos.

Uma chamada rápida mas cara para o tipo da empresa de telecomunicações informou-os
de que o número de Phoenix pertencia a um telemóvel descartável comprado num Walmart do
Arizona apenas há uma semana e registado de imediato, logo à porta, no parque de
estacionamento do Walmart. Comprado com dinheiro vivo, num total de seis de uma só vez,
comportamentos aquisitivos que indiciavam um cliente que se sentia à vontade com a teoria e a
prática das comunicações impossíveis de localizar.
— Ele vai desfazer-se desse número não tarda nada. E vai passar para o próximo — disse
Reacher.
Chang assentiu.
— Mal o Hackett não lhe telefone quando devia. Ou mal ligue a CNN e veja o que se está a
passar aqui.
— Então, se calhar, devíamos telefonar-lhe primeiro. Enquanto ainda podemos.
— E dizemos o quê?
— Qualquer coisa que nos possa dar uma vantagem. Precisamos de o desorientar.
Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos arranjar.
— Queres baralhá-lo.
— Mal não fará. Quaisquer emoções fortuitas que possamos aproveitar.
— Okay, experimenta.
Reacher ligou o telemóvel de Hackett, descobriu o ecrã certo e carregou no botão verde.
Ouviu os números a desbobinar em direção ao éter, depois, um breve silêncio sibilante e, por
fim, um toque de chamada.
E foi então que ouviu alguém a atender.
— Sim? — disse uma voz.
Era uma voz masculina, saída de um peito grande e de um pescoço grosso, mas a sílaba foi
dita repentinamente, com o volume tonitruante a surgir reprimido, devido à pressa e ao
entusiasmo aspirados. E à expetativa. Como um gole ou um arquejo. O tipo tinha o serviço de
identificação de chamadas, queria saber notícias de Hackett, queria muito sabê-las e queria
sabê-las imediatamente. Isso era evidente. Portanto, as festividades podiam, presumivelmente,
começar.
— Não é o Hackett que está a falar — disse Reacher.
A voz aguardou um instante e respondeu:
— Estou a ver.
— Daqui fala Jack Reacher.
Nenhuma resposta.
— O Hackett apanhou o McCann, mas não nos apanhou a nós. Aliás, nós é que o
apanhámos. Ele era bom, mas tinha de ser mais.
— E onde está o Hackett agora? — perguntou a voz.
Um sotaque uniforme e monocórdico. Talvez da Europa de Leste. Um tipo grande, de
certeza. Provavelmente, pálido e rechonchudo, talvez ofegante.
Reacher respondeu:
— O Hackett está no hospital. Mas algemado à cama porque a polícia o encontrou primeiro
que os médicos. Aqui mesmo em Chicago. Ficámos com o telemóvel e a arma de reserva dele,
mas deixámo-lo com a pistola que matou o McCann. Desmaiado num suposto antro de
terroristas. A polícia encontrou-o lá. Eu sei, não perguntes. Dados errados. Foram mal
informados. Mas, por causa disso, vão apertar bastante com ele. Vão dizer-lhe que o futuro dele
passa por Guantánamo. Ou por uma transferência, para um sítio qualquer onde aconteçam
coisas más. Vai ficar tão desesperado por um acordo que te vai entregar num abrir e fechar de
olhos. Não há nada de mau que lhe possas fazer que o governo não lhe possa fazer ainda pior.
Portanto, tens de te preocupar com isso. E, além disso, tens de te preocupar connosco.
Começaste uma guerra. O que foi uma estupidez. Porque vais perder. E não vai ser bonito.
Vamos dar cabo de ti de tal maneira que os teus filhos vão nascer tontos.
— Achas?
— Já demos cabo do Hackett. Foi fácil despachá-lo. Era o melhor que tinhas? Espero que
não, para teu bem. Porque a seguir és tu. Sabemos como te chamas e sabemos onde vives. E já
estamos a caminho. Está na altura de começares a olhar por cima do ombro.
A pessoa que se encontrava do outro lado da linha inspirou fundo e longamente, como se
viessem aí mais palavras, talvez muitas, mas acabou por não ser dita nenhuma. Em vez disso, a
chamada foi interrompida e Reacher já não ouviu mais nada. Imaginou o cartão eletrónico a
ser arrancado do telemóvel e partido em dois por uma unha romba de polegar, com os
pedacinhos a irem parar ao lixo.
— Quem era ele? — perguntou Chang.
— Não falou muito. Só disse onze palavras. Mas pareceu-me grande e pesado, russo,
bastante verboso e razoavelmente inteligente — respondeu Reacher.
— Russo?
— Por essas bandas. Geórgia ou Ucrânia. Um desses países recentes.
— Verboso só com onze palavras?
— Disse-lhe que não era o Hackett e ele respondeu: estou a ver. Ponderado e calmo. Ou
dito de forma que pareça ponderado e calmo. Estamos a falar de um tipo que compreende que
as palavras podem querer dizer todo o tipo de coisas.
— E sabemos mesmo como ele se chama e onde mora?
— Se calhar, sou capaz de ter enfeitado um bocadinho mais a nossa situação. Ou de ter
exagerado, para dar mais impacto. Do género, fingimos até lá chegarmos. Porque, mais cedo ou
mais tarde, vamos ficar a saber. De uma forma ou outra. Se calhar, o teu tipo dos telefones
podia arranjar um registo das chamadas dele por localização. Aquele número só tem uma
semana de telefonemas. Ele não se pode ter afastado muito de casa. Podíamos começar a
aproximar-nos.
— E essa informação levaria a lesões corporais ou a ferimentos graves?
— Seria o único objetivo dela.
— Então o meu tipo dos telefones não o vai fazer. É o acordo que temos.
— E tens de lhe dizer?
— Ele iria juntar dois mais dois depois de a coisa acontecer. E, a seguir, iria trabalhar para
outra pessoa. Não posso deixar que isso aconteça.
— Mesmo pelo Keever?
— O Keever compreenderia. E tu também devias. Tinhas um código. Um acordo é um
acordo.
— Por mim, tudo bem — retorquiu Reacher. — Acho eu. Calculo que podemos descobrir
isso de outra maneira. Depois de falarmos com a irmã. Que até pode fazer isso por nós.
Dependendo do que saiba. E se isso significar alguma coisa para nós.
— Não há mais nenhuma hipótese. Já não estamos a falar de uma coisinha num campo de
trigo. O Hackett é da Califórnia, tem quem lhe forneça armas no Illinois e um chefe no
Arizona. Estamos a falar de uma organização nacional. Vão estar à coca no aeroporto.
Avisaste-os de que íamos a caminho.
— E foi por isso que os avisei. Nunca os vamos encontrar se não for assim.
— É um risco.
— É tudo um risco. Entrar no avião é um risco. Os outros passageiros têm todos
telemóveis. Lembra-te das canções e das imagens. Lembra-te da massa a mais.

Os motores a jato acabaram por estar perfeitamente à altura do desafio que os telemóveis a
bordo representavam. O avião descolou sem problemas e ganhou altura, tal como todos os
outros aviões nesse dia, no aeroporto americano mais movimentado. Reacher estava seguro de
que não tinham sido seguidos, pelo menos a partir da zona da fiscalização de passaportes. Mas
os nomes verdadeiros deles encontravam-se num computador de uma companhia aérea e a
hora prevista de chegada do voo era mais do que conhecida. Esperar pelo melhor e
prepararmo-nos para o pior.
Ficaram sentados ao lado um do outro, junto à ponta dianteira da asa. À janela e ao meio.
Não era ao pé da saída de emergência. Isso era duas filas atrás. Reacher estava à janela. Chang
tinha escolhido ficar ao meio. Ao lado dela, no lugar de corredor, ia uma mulher com
auriculares.
— Estava a pensar nos primos Moynahan. Ou irmãos, ou lá o que eram — disse Reacher.
— E? — retorquiu Chang.
— Eram dois e deram cem vezes menos trabalho do que o Hackett sozinho.
— Como te sentes?
— Como se me tivessem batido três vezes. E é aí que eu quero chegar. Por oposição a zero
vezes, como aconteceu antes. Concordo contigo em relação ao Hackett ser da Califórnia, ter
tipos que o armam no Illinois e um chefe no Arizona. É uma organização nacional. Mas não
estou a ver como Mother’s Rest se pode enquadrar nisso. Esses tipos eram bem inferiores. Não
podem ser uma divisão local. Seriam o elo mais fraco. Sobressairiam como um polegar dorido.
— Então o que são?
— Clientes, possivelmente — respondeu Reacher. — O McCann contratou o Keever. Se
calhar, o pessoal de Mother’s Rest também contratou alguém. Se calhar, é o que acontece agora.
Se calhar, os mauzões subcontratam capangas para organizações em todo o país. Se calhar,
subcontratam de tudo. E porque não? Estamos numa economia de serviços.
E Chang retorquiu:
— Então, a irmã pode correr perigo. Teoricamente. Porque as organizações agem como
organizações. Pedem relatórios pormenorizados. Será que em Mother’s Rest sabiam que o
McCann falava com a irmã? Se sim, ela faz parte do relatório. É uma ponta solta. Porque nós
também somos. Podíamos cruzar-nos. E as organizações não gostam que as pontas soltas se
cruzem. Proteger a pele é demasiado importante para permitir isso.
Reacher ficou calado.
— Que foi? — perguntou Chang.
— Queria dizer que tenho a certeza de que a irmã está bem. Tem de estar, dum ponto de
vista lógico. Quer dizer, o Keever só lá esteve uns dias e agora estamos a perguntar se alguém
sabe a morada da irmã do cliente dele? As probabilidades contra seriam, com certeza,
gigantescas. Números grandes.
— Mas?
— Ir num avião dá uma sensação de impotência. As coisas podem começar a moer-nos a
cabeça.

O aeroporto de Phoenix chamava-se verdadeiramente Sky Harbor International e era de


facto um porto seguro, pelo menos até à zona de fiscalização de passaportes. Devido aos
detetores de metais. Mas da zona de recolha de bagagem em diante já era outra história.
Portanto, Reacher e Chang desceram do avião e afastaram-se da saída, em direção a portas
mais distantes. E foi aí que pararam, num café, sentando-se em bancos altos e aguardando. Até
que o último passageiro vindo de Chicago estivesse num autocarro, a caminho do hotel. Até
que quem quer que estivesse lá fora à espera de passageiros vindos de Chicago já tivesse
desistido há muito e voltado para casa.
A seguir, começaram a andar descontraidamente, a ver as montras, a um ritmo
infinitamente lento, atentos a reconhecimentos tardios, a alertas dados por telefone, mas sem
repararem em nada. O aeroporto era espaçoso, havia pouca gente e as pessoas estavam
descansadas. Depois de Chicago, parecia um domingo. Pararam de repente, mesmo à saída da
zona de verificação de passaportes, e puseram-se a olhar para sapatos, camisolas e joalharia
turquesa, até que o avião seguinte aterrou, com uma multidão de passageiros a desembarcar,
talvez uma centena de pessoas, do Minnesota, calculou Reacher, com uma centena de malas de
mão, e ele e Chang enfiaram-se à frente dos mais atrasados e apressaram-se pelo átrio de
bagagem, no meio de um grupo móvel e fluido, apanhando a última aragem gelada do ar
condicionado, chegando à fila para os táxis e entrando no calor escaldante do deserto. Mas não
esperaram lá fora mais do que um minuto ofegante. Ninguém prestou atenção. Ninguém
hesitou, ninguém olhou para eles nem desviou o olhar.
Foram de táxi até ao recinto de aluguer de carros. Ninguém os seguiu. Reacher não tinha
carta, por isso Chang pôs-se na fila e alugou um Chevrolet de tamanho médio. Era indistinto e
branco, por questões de anonimato, e tinha GPS, para poderem andar de um lado para o outro.
Esperaram no balcão da documentação e sondaram o que tinham pela frente. Não havia carros
encostados à berma, com o motor a trabalhar. Não havia mais ninguém por ali. Estava
demasiado calor para haver peões.
Seguiram aleatória e incoerentemente durante dez minutos e depois introduziram no GPS
os dados do subúrbio chique onde o médico morava com a irmã de McCann. Encontraram as
notícias no rádio, mas não disseram nada de Chicago. Não havia tempo para isso. Pelos vistos,
Phoenix tinha problemas próprios. O GPS levou-os para norte e, a seguir, para leste, em
direção a Scottsdale, até entrarem numa rua suburbana que conduzia a outra e, por fim, à
urbanização correta.
Que tinha uma casa de guarda à entrada.
Estava construída num estilo decorativo, com um telhado de quatro águas, catos plantados
à volta, uma barreira de riscas vermelhas a sair da direita e outra igual a sair da esquerda. Como
um pássaro gordo, com duas asas escanzeladas.
Um condomínio fechado. Gente rica. Contribuintes. Doadores para campanhas políticas.
Com os xerifes do condado de Maricopa em marcação automática nos telefones.
Esperaram junto ao passeio, a uma centena de metros da casa.
Eram três da tarde. Cinco, em Chicago.
Estava um guarda atrás do vidro.
— Devíamos ter imaginado — desabafou Reacher.
— Se ela já soube do irmão, nunca vamos conseguir entrar. Pelo menos, se aquele tipo tiver
de ligar para a casa primeiro. Que, de certeza, tem — afirmou Chang.
— Tens um cartão do FBI — retorquiu Reacher.
— Não é um crachá. Ele vai perceber a diferença.
— O tipo é um segurança de segunda.
— É um ser humano com pulsação. Não é preciso mais nada.
— A senhora Hopkins ficou impressionada com o cartão.
— Gerações diferentes. Instintos diferentes em relação ao governo.
Reacher ficou calado.
— Estás bem? — perguntou Chang.
— Dói-me a cabeça.
— E que queres fazer?
— Vamos tentar entrar.
— Okay, mas, se houver algum problema, retiramo-nos graciosamente. E ganhamos a
possibilidade de tentarmos noutro dia. A irmã é uma ponte que não nos podemos dar ao luxo
de queimar.
Ela arrancou, virou para a casa e parou à frente da barreira, mesmo ao lado da divisória de
vidro corrediça. Baixou a janela. Sacudiu o cabelo com um movimento súbito, virou a cabeça e
sorriu.
— Viemos ver o doutor Evan Lair e a mulher — disse.
O segurança era um branco idoso, com um uniforme de poliéster cinzento. Uma camisa de
manga curta. Braços magros e pintalgados de sinais.
Carregou num botão vermelho.
E disse:
— Desejo-lhes uma ótima tarde.
A barreira subiu.
Chang avançou. Voltou a subir a janela e exclamou:
— Não ia querer pagar para ter uma segurança destas.
— Mas o sítio está muito bem ajardinado — retorquiu Reacher.
E estava. Não havia relvados. Não havia nada que precisasse de água. Havia pedras roladas
dispostas intricadamente, com folhas de cato a rasgarem-nas como facas, brumas de flores
vermelho-claras e esculturas de aço, ainda a brilhar, sem corrosão, no ar completamente seco.
O terreno era plano, os lotes, grandes, e as casas estavam posicionadas em ângulos distintos,
para um lado e para o outro, como se tivessem aparecido ali por acidente.
— Deve ser um bocadinho mais à frente, do lado esquerdo. Uns quatrocentos metros, se
calhar — disse Reacher.
Que era onde estavam reunidos imensos carros. Todos de marcas, modelos e cores
diferentes. E quase todos caros. Estavam colados uns aos outros, no caminho de acesso, com
três em paralelo e outros tantos em espinha, e assim sucessivamente, todos juntos e
amontoados, todos desalinhados, ao acaso, com passeios vazios à frente e atrás, como se aquela
casa específica fosse singular e fortemente magnética.
Talvez uns trinta carros ao todo.
E era por isso que a barreira tinha subido sem que fosse perguntado nada.
Havia uma mensagem na casa de guarda.
Havia uma festa.
Ou um cocktail, uma festa de piscina ou lá de que género fosse, qualquer coisa capaz de
chamar trinta carros às três horas de uma tarde quente.
A caixa de correio no final do caminho de acesso apinhado dizia O Covil dos Lair1.
Chang estacionou a seguir ao último dos carros parados junto ao passeio. Saíram,
enfrentando o calor e olhando para trás. A casa propriamente dita era bonita, larga e
imponente, de um andar e um telhado complexo, em parte, de adobo e, em parte, casa
senhorial falquejada e usada para a caça, suficientemente vistosa para, pelo menos, indiciar
riqueza e bom gosto, mas, segundo os padrões normais, no fundo, nada vistosa. Fosse o que
fosse que estivesse a acontecer na casa, estava a acontecer no jardim de trás, que não se
conseguia ver. A propriedade estava cercada por um muro à altura da cabeça. Um pormenor
arquitetónico, pensado para ser igual à casa. O mesmo revestimento exterior e a mesma cor.
Igual em tudo. Os jardins da frente estavam completamente à vista, mas os de trás
encontravam-se todos tapados. Privados. Nada para ver. Mas Reacher achou que ouvia uma
piscina. Estava a ouvir gente a chapinhar e a berrar abafadamente, como que dentro de água. O
género de sons que as pessoas fazem nas piscinas. Respirações ofegantes e o choque da água
fria. O que faria sentido. Eram três da tarde. E estavam uns quarenta graus. Que outra razão
levaria as pessoas ali? A piscina, o pátio, talvez a cozinha e talvez a sala de estar, entrando e
saindo por portas de correr. Latas de cerveja dentro de baldes cheios de gelo.
Chang disse:
— Fizemos umas pesquisas no FBI. Até fui eu que escrevi uma parte. Sou como a senhora
Hopkins. A pesquisa teve que ver com carros. Estabelecemos uma proporção, para qualquer
espaço, entre o valor dos carros estacionados lá fora e o dinheiro que muda de mãos lá dentro.
— Achas que há dinheiro a mudar de mãos ali dentro? — perguntou Reacher.
— Não, estou a dizer que, com base na minha experiência, obtida à custa de muito esforço,
a avaliar carros, há ali dentro gente muito rica. E uma bela misturada. Não estamos a falar só de
carros de raparigas. Também há ali alguns carros de casais. E até alguns carros de rapazes,
acabadinhos de vir do trabalho. É malta da pesada.
Aproximaram-se.
Havia uma cancela no muro de trás, perto da garagem. Suficientemente larga para um
trator corta-relva. Projetada vários anos antes, presumivelmente, por um arquiteto que achava
que as pessoas iriam querer sempre relvados. E que agora era utilizada como uma passagem
pedonal normal. Um caminho ajardinado. Pedras roladas. Candeeiros solares à altura do
joelho. E a cancela aberta uma nesga. Vislumbres de pessoas mais à frente, amontoadas,
vaporosas, iluminadas pelo sol, a mexerem-se um bocadinho.
Uma mulher a sair pela cancela.
A levar um saco para o carro, apressada, enérgica e com um ar oficial.
Não era a irmã de McCann. Uma amiga ou vizinha. Uma coanfitriã ou coorganizadora.
A andar depressa.
A aproximar-se.
A parar e a sorrir.
A dizer:
— Olá, bem-vindos, que bom terem podido vir, entrem, por favor.
E a seguir a dirigir-se para o carro.

1 No original, Lairs’ Lair, trocadilho com a palavra lair, ao mesmo tempo o apelido das personagens em questão e covil, em
português. (N. do T.)
TRINTA E OITO

Reacher e Chang fizeram o caminho decorativo, passando pelos canteiros de plantas e entre
os candeeiros solares, atravessando a cancela e entrando no jardim de trás. Viram um amplo e
formidável retângulo de tratamento paisagístico em pleno deserto, com caramanchões de
madeira e trepadeiras para dar sombra, vasos enormes de terracota, ânforas caídas a
transbordar de flores e majestosos catos saguaros sozinhos, em leitos de gravilha. Viram uma
piscina de estuque escuro, com a forma de um lago natural, circundada por pedras e
alimentada por pequenas cascatas salpicantes. Viram mobília de teca profusamente oleada,
com almofadas gordas e coloridas, guarda-sóis e mesas de jantar exteriores.
Viram cerca de quarenta pessoas, homens e mulheres, alguns novos, a maioria já mais
velha, alguns com roupa do Arizona de cores vivas, outros de fato de banho e ainda outros com
agasalhos, todos amontoados em vários grupos, a conversar e a rir, com pratos e copos na mão.
Alguns estavam molhados e outros ainda estavam dentro de água, submersos até ao pescoço, a
conversar, a boiar ou na brincadeira. A uma mesa debaixo de uma trepadeira, encontrava-se
uma rapariga de uns trinta anos, alta e elegante, com um bronzeado em tons dourados e uma
camisa fina por cima de um biquíni, descontraída e sorridente, mas luminosa, e, de uma
maneira implícita mas evidente, o centro das atenções. Atrás dela, de um lado, estava um
homem, de cabelos grisalhos mas bem conservado, com calções cor de caqui e uma camisa
havaiana berrante, e, do outro, estava uma mulher de cabelo escuro, olhos brilhantes e um
sorriso largo, com um vestido solto, de linho claro, que lhe dava pelo tornozelo. O à-vontade
familiar entre os três tornava óbvio que se tratava de filha e pais. A imagem antiga googlada no
telemóvel de Chang tornava igualmente evidente que os pais eram o doutor Evan Lair e a
mulher.
Reacher apontou discretamente e disse:
— Olha só.
Havia uma mesa comprida instalada perto da casa e cheia de presentes, a maior parte coisas
grandes e quadradas, e todos embrulhados, com laços, em papel branco e prateado
monocromático.
— Isto é um casamento — afirmou Chang.
— Parece que sim — respondeu Reacher. — Da filha, presumivelmente. A rapariga que está
à mesa. Suponho que seja a sobrinha do McCann.
Foi então que a irmã de McCann se afastou, após uma última gargalhada, sorrindo e
apertando o ombro da filha afetuosamente. Foi passando de grupo em grupo, conversando,
cintilando, encostando-se, sorrindo, dando beijos, divertindo-se como nunca.
Chang disse:
— Ainda não teve notícias de Chicago. Como podia ter tido?
Reacher não respondeu.
A irmã de McCann prosseguiu, de grupo em grupo, tirando um copo de uma bandeja que
ia a passar, pousando a mão nos braços de outras pessoas e voltando a deixar o copo noutra
bandeja. Foi nesse momento que reparou em Reacher e Chang parados perto da cancela,
sozinhos e pouco à vontade, com roupa deficitária, quanto a qualidade, e supérflua, quanto a
quantidade, desconhecidos e enigmáticos, mudando de direção e avançando para eles,
continuando a sorrir e de olhos brilhantes, com um ar de anfitriã feliz e acolhedora estampado
na cara.
— Não lhe podemos contar. Agora, não — sussurrou Chang.
A mulher aproximou-se e estendeu-lhes a mão, esguia e bem tratada.
— Já nos conhecemos? Lydia Lair — disse.
Estava tal e qual como na foto googlada do baile de caridade. Como se valesse um milhão
de dólares. Chang apertou-lhe a mão e disse-lhe como se chamava, e Reacher fez o mesmo. A
mulher disse:
— Vou fazer-lhes a mesma pergunta que tenho feito a tarde inteira, ou seja, conhecem a
minha filha da escola ou do trabalho? Não é que isso faça o mínimo de diferença, claro. É tudo
uma grande festa. Mas sempre é uma coisa para dizer.
E Reacher respondeu:
— Viemos cá devido a uma coisa completamente diferente, minha senhora. Talvez seja
melhor voltarmos mais tarde. Não quereríamos ser penetras num casamento. Isso é capaz de
trazer sete anos de azar.
A mulher sorriu.
— Acho que isso são os espelhos — retorquiu. — E isto não é o casamento. Longe disso.
Ainda não. É uma espécie de festa/pequeno-almoço pré-pré-pré-casamento, só do lado da
noiva. Para as pessoas se poderem começar a conhecer antes do resto dos acontecimentos da
semana, para toda a gente ganhar energia para o grande acontecimento do fim de semana. A
minha filha diz que toda a gente faz isso hoje em dia. Os festejos duram mais tempo do que os
casamentos.
E depois riu-se, um som de felicidade, como se tivesse a certeza de que essa piada não se
aplicava a ela, como se tivesse a certeza de que o casamento da filha iria durar para sempre.
— Acha que hoje à noite seria mais conveniente? — perguntou Chang.
— Posso saber do que se trata?
— Do seu irmão Peter.
— Oh, céus, lamento imenso, mas acho que são capazes de ter feito uma viagem em vão.
Ele não está cá. Não veio. Estávamos a contar com ele, evidentemente, mas é uma viagem de
avião longa. Como conhecem o Peter?
— É melhor falarmos disso hoje à noite. Caso seja conveniente. Porque, neste momento,
estamos a atrasá-la. E já lhe tomámos demasiado tempo. É melhor deixarmo-la voltar para os
seus convidados.
A irmã de McCann fez um sorriso de agradecimento e começou a afastar-se. Mas passou-
lhe algo pela cabeça e voltou-se para trás, com um aspeto diferente.
— O Peter está com algum problema? Os senhores são da polícia? — perguntou.
Chang fez a única coisa que podia, sendo uma mulher com um código, e que era ignorar
por completo ambas as perguntas e reagir com uma declaração parecida com uma resposta.
— Somos investigadores privados — disse.
— E foi o Keever que os enviou?
— Agora é que precisamos mesmo de conversar, minha senhora. Mas não podemos estar a
afastá-la disto tudo.
— O Peter está com algum problema?
Chang fez a mesma coisa. Disse:
— Viemos cá para receber informações, minha senhora. Compete-nos ouvir o que nos
possa ter a dizer do Peter.
— Venham comigo — respondeu a irmã de McCann.

Atravessaram a casa e entraram num escritório com painéis escuros, com as persianas
corridas para não deixar passar o sol, poltronas de costas baixas e uma lareira com pedras
roladas. Sentaram-se, as mulheres inclinadas para a frente, com os joelhos quase a tocarem-se,
e Reacher recostado.
— Por onde querem que comece? — perguntou a irmã de McCann.
— Diga-nos o que sabe sobre o Keever — respondeu Reacher.
— Nunca o vi, como é óbvio. Mas o Peter gosta de estudar bem as coisas, portanto, durante
o processo de seleção, achei que tinha ficado a conhecer os candidatos todos até certo ponto.
— E quantos candidatos eram?
— De início, oito.
— E o processo demorou muito tempo?
— Quase seis semanas.
— Uma coisa bastante meticulosa.
— O Peter é assim.
— Falam com muita frequência?
— Quase todos os dias.
— E os telefonemas são muito longos?
— Há dias em que duram uma hora.
— Isso é bastante tempo.
— Ele é meu irmão. E sente-se sozinho.
— E porque precisava ele de um detetive privado?
— Por causa do Michael, o filho. O meu sobrinho.
— As pessoas dizem que há problemas.
— Não é a palavra certa. Isso é uma maneira delicada de dizer dificuldades. O que já é uma
maneira educada de dizer uma coisa pior. O Michael é o oposto de difícil.
— Então qual seria a palavra certa?
— O Michael não chegou ao fim da linha de montagem. Houve umas coisas que não foram
aparafusadas. Tento não culpar a mãe. Mas ela não estava bem. Morreu ainda não tinham
passado dez anos.
— E que coisas ficaram a faltar?
— É um homem feliz, senhor Reacher?
— Não me posso queixar. De um modo geral. Neste momento, sinto-me bastante bem. Mas
não em relação a esta parte da nossa conversa, claro.
— Numa escala de um a dez, qual é o pior que já se sentiu?
— Talvez um quatro.
— E o mais feliz?
— Em comparação com o melhor possível?
— Sim.
— Talvez um nove.
— Okay, quatro em baixo e nove em cima. E a senhora Chang?
Ela não respondeu de imediato. Mas acabou por dizer:
— O pior que já me senti corresponderia a um três. E ia dizer oito para o melhor. Mas
agora talvez um nove. Acho.
Olhou para Reacher, de uma certa maneira, ao dizer aquilo e a irmã de McCann reparou.
— Andam a dormir um com o outro? — perguntou.
Nenhuma resposta.
— Minha querida, se andam, diga um nove de certeza. É sempre mais seguro. Mas mais do
que isso, não. Um dez dá-lhes ansiedade de desempenho. Mas, neste preciso momento, entre os
dois, temos um arco que vai do três ou quatro, no nível mais baixo, a um par de noves, no nível
mais alto, ainda que um dos noves seja de facto um oito, mas sejamos demasiado educados
para o dizer. Mas percebem onde eu quero chegar. São pessoas normais. E se o vosso arco fosse
do dois ao sete, continuavam a ser normais, mas considerá-los-iam um bocadinho taciturnos e
reservados. Estão a perceber?
Chang assentiu.
— E agora imaginem que o vosso ponteiro não consegue sair do zero. Não se mexe um
milímetro. Zero em baixo e zero em cima. O Michael é assim. Nasceu infeliz. Nasceu sem a
capacidade de ser feliz. Nasceu sem sequer ter conceção do que é a felicidade. Não sabe que isso
existe.
— E há algum nome para isso? — perguntou Chang.
— Agora há nomes para tudo. Eu e o Peter estamos sempre a falar deles. Não há nenhum
que se encaixe verdadeiramente. Gosto de um vocabulário à antiga. Para mim, é melancolia.
Mas isso soa demasiado fraco e passivo. O Michael tem emoções profundas. Só não tem é a
amplitude. Sentimos alegria ou paixão e ele sente as coisas com a mesma intensidade, só que
aquilo nunca sai do nível zero. E é inteligente. Sabe perfeitamente o que lhe está a acontecer. E
a consequência é um tormento interminável.
— E que idade tem ele agora?
— Trinta e cinco.
— E quais são os sinais exteriores? É difícil lidar com ele?
— Pelo contrário. Quase nem damos por ele. É muito calado. Faz o que lhe dizemos.
Raramente fala. É capaz de passar vários dias a olhar para o nada, a morder o lábio e a mexer os
olhos de um lado para o outro. Ou então está ao computador ou agarrado ao telemóvel. Não há
agressividade. Nunca se zanga. Zangar-se pressuporia uma amplitude emocional.
— E consegue trabalhar?
— Isso tem sido uma parte do problema. Ele tem de trabalhar, para ter direito a habitação.
Faz parte do acordo. E consegue trabalhar. Há coisas em que é bom. Mas as pessoas acham-no
esgotante. Não gostam de estar ao pé dele. A produtividade baixa. Por norma, mandam-no
embora. Por isso, está sempre a entrar e a sair de programas.
— E onde vive ele agora?
— Neste preciso momento, em lado nenhum. Desapareceu.

Foi nessa altura que a noiva entrou no escritório, à procura da mãe. Com uma camisa fina
por cima de um biquíni. A sobrinha de Peter McCann. A prima de Michael McCann. De perto,
continuava a ser luminosa. Brilhava. Estava próxima da perfeição. Cuidados pré-natais,
perinatais e pós-natais, pediatria, nutrição, educação, ortodontia, férias, faculdade, pós-
graduação, um noivo, tudo e mais alguma coisa. A linha de montagem dela tinha funcionado
às mil maravilhas. O sonho americano. Um resultado formidável. E parecia feliz. Não parecia
tonta, nem parvinha, não parecia estar excitada nem ser uma cabeça no ar. Estava apenas
profunda e serenamente satisfeita. Com espaço para chegar ainda ao êxtase. O ponteiro dela
talvez fosse dos seis aos dez. Tivera tudo o que o primo não tivera.
A irmã de McCann voltou para a piscina com ela. E prometeu regressar assim que pudesse.
Reacher e Chang ficaram sentados em silêncio, no escritório sombrio. Ouviam os sons da festa,
abafados pelas paredes e pela distância. Chapes, berros, o tinido dos copos e o murmúrio
ressonante das conversas.
— Devíamos ligar para Los Angeles e falar com o Westwood. Devíamos pô-lo ao corrente.
Um acordo é um acordo. Além disso, vamos precisar de outro hotel — disse Chang.
E Reacher respondeu:
— Diz-lhe que precisamos de todas as informações que ele tem sobre a Deep Web. Todos
os apontamentos. Ou então diz-lhe para vir cá explicar-nos tudo pessoalmente. Podemos não
compreender os apontamentos. E ele pode apanhar um avião. Vai ficar com os direitos para o
livro.
Chang pôs o telemóvel em alta-voz, marcou o número e ofereceu um relato a Westwood,
contando-lhe tudo o que se tinha passado desde a última vez que ligara, do motel em West
Hollywood. Falou de Chicago, da biblioteca, da lojinha, da rua de McCann, da casa de
McCann, de Hackett, da vizinha, do homicídio no Lincoln Park, da viagem de avião para
Phoenix e, por fim, da irmã. E do filho, em última análise, encurralado entre zero e zero, e, no
imediato, desaparecido.
— Chamam anedonia a isso. A incapacidade de sentir prazer — afirmou Westwood.
— A irmã dá a ideia de ser pior do que isso.
— E o objetivo do Keever era encontrá-lo e levá-lo para casa?
— Presumimos que sim. A história não chegou tão longe. Fomos interrompidos.
— Não vejo como a Deep Web ou duzentas mortes podem ter que ver com isso. Parece ser
uma coisa para a secção do crime e não da ciência. Ou um daqueles artigos sobre tragédias
humanas.
— Pode ser isso tudo. Ainda não sabemos.
— E onde estão hospedados?
— Ainda não tratámos disso.
— Okay, ligo-lhes quando aterrar.
A ligação foi interrompida.
E Reacher disse:
— Ao que parece, o Michael costuma estar ao computador ou agarrado ao telemóvel. Se
calhar, a ligação à Deep Web é essa. Se calhar, ele passa o tempo todo num chat qualquer
esquisito. Se calhar, tem uma outra vida que ninguém conhece.
— Ele está deprimido, não é uma pessoa esquisita.
— Deprimido quer dizer isso mesmo, ou seja, abaixo da posição normal. O que pressupõe
uma amplitude. Que o Michael não tem. O que é esquisito. Ou invulgar, para ser delicado. Mas
ele é inteligente, disse a tia. Se calhar, há grupos de apoio em linha. Se calhar, ele criou um.
— E porque precisava de ser secreto?
— Por causa dos motores de busca, suponho. Os empregadores vão ver isso em linha. Li
qualquer coisa no jornal. E, provavelmente, não são só os empregadores. Provavelmente, é toda
a espécie de gente. Familiares, possivelmente, ou médicos. Já não há privacidade. As coisas que
fizemos podem voltar para nos lixar a vida. Se o Michael publicasse alguma coisa que mostrasse
que não estava a evoluir, podia ficar sem habitação. Ou alguém podia decidir que ele precisava
de supervisão.
Foi então que a porta se abriu e Lydia Lair entrou de novo no escritório. A irmã de Peter
McCann, a tia de Michael McCann e a mãe da noiva. Sentou-se na mesma poltrona e Reacher
perguntou-lhe:
— Como desapareceu o Michael?
— É uma história comprida — respondeu ela.

A cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem das calças de ganga
engomadas e do brushing no cabelo atendeu a chamada no telefone fixo.
— Esta trapalhada agora é tua — disse o contacto.
— Em que sentido?
— Havia coisas que não sabias.
— Quais coisas?
— Prometi-te que eles não iam falar com o McCann. E cumpri. Não se pode falar com um
morto. Mas teve o seu preço. Perdi o Hackett.
— Como?
— O Reacher tratou dele. Ou os dois. Seja como for, isso não devia ter acontecido. Era
teoricamente impossível.
— E ele morreu?
— Está no hospital.
— E vais deixá-los safarem-se com isso?
— Não, não vou. Vou fazer deles um exemplo. Este ramo tem que ver com a imagem. É
muito competitivo. A força de uma marca é tudo. Por isso, vou reparti-lo contigo a meias.
— Repartir o quê?
— O custo de não os deixar safarem-se.
O homem das calças de ganga e do cabelo deteve-se uns segundos, antes de dizer:
— Não os deixaste falar com o McCann. E agradeço-to profundamente. Foi um trabalho
bem feito. Mas, com todo o respeito, isso finalizou o nosso entendimento. Quaisquer
sentimentos que guardes em relação ao Reacher ou à Chang já só dizem respeito a ti,
seguramente.
— O Hackett está algemado à cama do hospital. À guarda da polícia.
— E que sabe ele?
— Umas coisas soltas. Que não provam nada. O Hackett não tem provas com ele. Não tem
dados. O Reacher roubou-lhe o telemóvel e ele deixou os computadores no carro. Que foi
providenciado pelos nossos amigos de Chicago, com motorista incluído e tudo. Portanto, ainda
temos o hardware dele. E voltámos a ligar o localizador de telemóveis. A Chang está outra vez
ativa. Acabou de telefonar ao tipo do LA Times. De um subúrbio precisamente aqui em
Phoenix.
— E porquê aí? Por causa de ti? Querem apanhar-te?
— O Reacher ligou-me pelo telemóvel do Hackett para me dizer isso mesmo. Além disso,
seria sempre fácil de prever. Mas a julgar pela chamada da Chang para o LA Times, não.
Vieram cá por uma razão completamente diferente.
— Qual?
— Havia coisas que não sabias.
— Quais coisas?
— Das que te vão fazer querer repartir a coisa a meias comigo.
— Explica-me.
— O Peter McCann tinha uma irmã. A Lydia McCann, em tempos idos. Atualmente, Lydia
Lair, casada com um médico. Vive aqui em Phoenix. Num subúrbio. Os dois irmãos estavam
sempre a falar um com o outro. E ele contava-lhe tudo. Segundo o que a Chang acabou de dizer
ao Westwood, é possível que falar com a irmã seja a mesma coisa que falar com o próprio
McCann.
— Não podemos deixar que isso aconteça.
— Não podemos?
— Okay, a meias. Claro.
— Ainda bem que concordamos.
— Mas com mais uma coisinha.
— Que seria o quê?
— Diz-me como o McCann morreu.
— O Hackett deu-lhe um tiro.
— Com mais pormenores.
— O Hackett foi visitá-lo logo de manhãzinha e levou-o para fora do prédio apontando-lhe
uma pistola. Até ao parque daquela zona. Não havia ninguém por perto. Deu-lhe um tiro na
nuca com uma nove milímetros com silenciador.
— E houve muito sangue?
— Eu não estava lá.
— Provavelmente, a bala saiu pela cara. Mas o cérebro já estava morto. Não houve mais
pulsação. Nem tensão arterial. Uma coisa eficaz, mas não visual. Vais fazer o mesmo com o
Reacher e a Chang?
— Vou fazer seja lá o que for que resulte, caraças. Repartido a meias. O que poderá ser caro.
Porque, além de tudo o resto, também temos de fazer isso depressa. Eles podem estar a falar
neste preciso instante.
TRINTA E NOVE

A história comprida do desaparecimento de Michael McCann começava com o desejo de


visitar Oklahoma. Michael anunciou-o um dia, naquela maneira lenta, hesitante e desiludida
que era típica dele, e o pai não se deixou cair na armadilha de se preocupar logo com isso, pelo
menos de imediato, pois sabia que era improvável que isso viesse a acontecer. Essas coisas
raramente aconteciam. Mas, a seguir, Michael anunciou também que tinha investigado qual era
a política do Oklahoma em matéria de direito à habitação e que era diferente da do Illinois, no
sentido em que poderia bastar um trabalho a tempo parcial. O que talvez fosse mais
sustentável.
Peter McCann tinha reagido com sentimentos contraditórios. Evidentemente, e acima de
tudo, sentia um autêntico terror ao imaginar Michael sozinho e à deriva num ambiente
desconhecido. Mas, por baixo disso, afloravam uns rebentozinhos de otimismo. Michael tinha
passado finalmente algum tempo ao computador de forma produtiva. Tinha investigado a
política de outro estado em matéria de direito à habitação. E até tinha chegado a uma
conclusão. O que talvez fosse mais sustentável. Que era quase como estar a fazer planos.
Seguramente, era sinal de um concreto fogacho de iniciativa. Era uma prova de automotivação,
que, em tempos idos, um psiquiatra qualquer tinha dito que seria o primeiro sinal de
progressos.
Portanto, tudo somado, Peter McCann até se estava a aguentar.
A irmã explicou:
— Foi então que o Michael anunciou que tinha um amigo no Oklahoma. O que era uma
coisa importante. Ele nunca tinha tido amigos. Nunca empregara sequer essa palavra.
Calculámos que tivesse acontecido por intermédio de um fórum da Internet. O que era
preocupante, suponho. Mas o Michael tem trinta e cinco anos. E não é deficiente. Tem um QI
altíssimo. Sabe o que está a fazer. Está triste, mais nada. Por isso, o Peter perguntou-lhe o que
pôde e depois refreou-se.
— E que aconteceu? — perguntou Reacher.
— O Michael foi para o Oklahoma. Para um sítio não muito longe de Tulsa. Ao princípio,
enviava mensagens de texto. Que começaram a ser menos frequentes. Mas, tanto quanto
sabíamos, ele estava bem. Até que, um dia, enviou uma mensagem a dizer que ia voltar em
breve para casa. Não disse ao certo quando nem porquê. E nunca mais tivemos notícias dele.
— E quando foi que o Peter contactou a polícia?
— Quase logo de seguida. E depois contactou toda a gente.
— Incluindo a Casa Branca?
— Aconselhei-o a não o fazer. Mas claro que ninguém lhe prestou qualquer atenção. Na
América, há meio milhão de sem-abrigo com problemas mentais. Ninguém pôs a hipótese de ir
à procura de um entre tantos. Como seria possível fazerem-no? E porquê? O Michael não é
agressivo nem toma medicação. Não é perigoso.
— E ninguém tentou sequer contactar o amigo?
— De certeza que sabem como é. No vosso trabalho. De repente, já só temos um nome que
não significa grande coisa e uma morada nebulosa e meio esquecida que nem se consegue
encontrar.
— Então o amigo não foi identificado?
— Ninguém sabe sequer se é homem ou mulher.
— E a habitação social?
— Não havia nenhuma. Era óbvio que o Michael tinha ficado com o amigo desconhecido.
E, provavelmente, também não estivera a trabalhar, nem sequer a tempo parcial.
— E que aconteceu a seguir?
— Como é óbvio, o Peter recusou-se a desistir. Começou a procurar sozinho. Primeiro, foi
a empresa de telecomunicações que o ajudou. Ele consegue ser muito persistente. Localizaram
o telemóvel do Michael. E viram-no, no último dia, a passar de uma torre de rede de telemóvel
para outra, sempre em direção a sudoeste, dos arredores de Tulsa até Oklahoma City, a uma
velocidade média aparente de cerca de oitenta quilómetros por hora. Ou seja, um autocarro,
segundo o Peter. Acha que o Michael apanhou o autocarro que vai de Tulsa para Oklahoma
City.
— Porquê?
— Para apanhar o comboio para Chicago.
Reacher assentiu. O comboio.
Inevitável.
— Mas há outros comboios que partem de Oklahoma — disse Chang.
E a irmã de McCann retorquiu:
— O Peter acha que o Michael estava a voltar para casa. Tem a certeza disso. E a verdade é
que, realmente, o telemóvel começa por se deslocar para norte, na direção e à velocidade certas.
Mas depois desliga-se.
— Porque se afastou demasiado. Também nos aconteceu o mesmo. A última torre de rede
fica a uns noventa minutos para norte de Oklahoma City. A seguir, é só silêncio absoluto.
— Nunca mais voltou a estar ligado.
— E o Peter informou os polícias?
— Claro.
— E que disseram eles?
— Dizem que o telemóvel andou tanto à procura de um sinal que gastou a bateria toda. E
depois o Michael já não o conseguiu carregar antes de o roubarem em Chicago. Lá porque
ainda não visitou o pai não quer dizer que não tenha voltado. E por aí fora. Ou então
roubaram-lhe o telemóvel em Tulsa ou em Oklahoma City e foi outro tipo qualquer que andou
com ele no autocarro e no comboio, mas, como não tinha o código para o desbloquear, acabou
por desistir e deitou-o fora. E, enquanto isso, o Michael continua em Oklahoma ou talvez tenha
ido para outro sítio qualquer, possivelmente São Francisco.
— E porquê São Francisco? — perguntou Reacher.
— Há imensos sem-abrigo em São Francisco. Os polícias acham que aquilo é um íman.
Acham que as pessoas vão para lá automaticamente, como se ainda estivéssemos em 1967 —
respondeu a irmã de McCann.
— E que acha o Peter dessa possibilidade?
— Que é uma possibilidade, nada mais do que isso.
— E então a seguir contratou o Keever?
— Iniciou o processo.
— A pesquisar em linha?
— Começou por aí.
Mas foi então que a filha entrou outra vez no escritório, para avisar a mãe de que havia
gente a ir-se embora. Saíram as duas para se despedirem dos convidados e Reacher ouviu o
rebuliço lá fora mudar a frequência e passar a um tom contínuo e vagaroso de despedida,
seguido de portas de carros a fecharem-se, de motores que começavam a trabalhar e de veículos
a arrancarem.
Passados cinco minutos, a casa estava num silêncio absoluto.
Ninguém voltou a entrar no escritório das persianas corridas. Reacher e Chang ficaram à
espera na escuridão. Mais cinco minutos. Não se passava nada. Abriram a porta e espreitaram.
Um corredor interior, sem ninguém. Fotografias penduradas na parede, em molduras
prateadas. Uma história de família, por ordem cronológica. Um casal, um casal com um bebé,
um casal com uma criança, um casal com uma miúda, um casal com uma adolescente. Os três a
envelhecerem, de fotografia em fotografia.
Não se ouvia ruído nenhum.
Nem vozes nem passos.
Saíram do escritório e passaram para o corredor. Sentiram que tinham esse direito. Ou
autorização. Ou, pelo menos, que já não era inapropriado. Os convidados tinham-se ido
embora. Não era preciso continuarem escondidos. Viraram para o que julgaram ser o centro da
casa, com passos hesitantes e silenciosos. As fotografias das molduras prateadas recomeçaram.
Uma nova fornada num novo local. Mas a mesma história de sempre. Um casal com uma
universitária, um casal com uma universitária com um equipamento de futebol enlameado e a
segurar uma taça, um casal com uma universitária licenciada.
Nem vozes nem passos.
Avançaram, passando por uma divisão com paredes almofadadas, um ecrã gigante e uma
imensidão de altifalantes verticais. Mais três cadeiras, cada uma com o seu mecanismo de
reclinação e o seu suporte para copo. Uma sala de cinema em casa. Reacher nunca tinha visto
tal coisa.
Nenhum ruído.
Foram dar a uma antecâmara abobadada, prévia à sala de estar. Era aí que a arquitetura
mudava, passando de uma casa de adobo para uma coisa senhorial, de caça. O teto era altíssimo
e imponente, com tábuas nodosas que subiam obliquamente, formando um V raso e invertido.
Tinha candelabros pretos de ferro, com lâmpadas que faziam lembrar velas. Havia sofás
castanhos de couro grosso, fundos, largos e compridos, com cobertores axadrezados dobrados
por cima das costas, para dar cor.
Ouviram um carro no caminho de acesso.
Baques surdos e metálicos, de portas a abrirem-se e a fecharem-se.
Passos nas pedras roladas.
A porta da frente abriu-se.
Uma passada pesada no corredor.
O doutor Evan Lair entrou na sala de estar. Viu Reacher e Chang e parou. Soltou um «Ei,
pessoal» que era, em parte, de boas-vindas e, em parte, uma pergunta, algo perfeitamente
afável, completamente tolerante, mas com uma ligeira pontinha de impaciência, como se o que
ele quisesse realmente dizer fosse Julgava que os convidados já se tinham ido todos embora.
Foi então que a filha surgiu atrás dele, ainda de camisa e biquíni, pousando a mão nas
costas do pai e explicando-lhe:
— Tem que ver com o primo Michael. A mãe tem estado a falar com eles.
A seguir, ela avançou, aproximando-se deles, estendendo-lhes a mão e dizendo «Olá. Sou a
Emily», e todos se cumprimentaram e apresentaram, com os devidos parabéns a serem dados.
Depois apareceu a irmã de McCann, parecendo estar a limpar as mãos, que disse:
— Peço desculpa, mas fomos levar uma fatia de bolo e um copo de chá ao homem que está
à entrada. Era o mínimo que podíamos fazer. Teve uma tarde atarefada por nossa causa.
— Deram-lhe a lista dos convidados previamente? — perguntou Reacher.
— Somos obrigados.
— Então só lhe deviam ter dado meia fatia de bolo. Deixou-nos entrar sem olhar para ela.
— O Michael continua desaparecido? — perguntou Evan.
— Já sabes que sim, pai — disse Emily.
— E o Peter anda à procura dele finalmente? É disso que se trata?
— O tio Peter tem andado à procura dele desde o princípio.
— Bom, ele não está cá. Nenhum deles está.
— Pedimos desculpa pela intromissão — afirmou Reacher.
— Sentem-se — retorquiu Emily. — Por favor.
Acabaram por ficar dois num sofá e três noutro, com Reacher e Chang instalados
confortavelmente cada um no seu canto, com copos de chá gelado pousados em bases em cima
de mesinhas de apoio a lembrar baús antigos, e, no sofá em frente, estava sentada a família Lair,
em fila, com Evan e Lydia nas pontas e Emily ao meio, comprida, elegante e com um
bronzeado em tons dourados.
— O Peter esteve muito bem com a empresa de telecomunicações. Não são informações
fáceis de obter — disse Reacher.
— É Chicago. Foi um amigo de um amigo do sindicato — respondeu a irmã de Peter.
— E sendo o Peter um tipo meticuloso, com certeza que não descartou de imediato as
hipóteses de o telemóvel ter sido roubado antes ou depois do comboio. Em Tulsa, Oklahoma
ou Chicago. Não ia fazer isso logo à partida. Mas também terá pensado que seria no mínimo
igualmente provável que tivesse acontecido alguma coisa durante a viagem.
— No comboio? — perguntou Emily.
— Ou não. Por acaso, conhecemos esse comboio. Faz uma paragem antes de Chicago. Num
sitiozinho na província chamado Mother’s Rest.
A irmã de McCann não reagiu.
E Reacher continuou:
— Mother’s Rest fica no meio de nenhures. E também é o último paradeiro conhecido do
Keever. Acho que o Peter concluiu que o Michael saiu do comboio lá. E daí o telemóvel dele
nunca ter saído da zona morta. Acho que enviou o Keever para lá para investigar.
— Bem, mas isso é bom, certo? — retorquiu Evan. — Se ele lá está, o Keever vai encontrá-
lo.
Reacher ficou calado.
E a irmã de McCann disse:
— Ainda não teve sorte nenhuma. Há três dias que o Peter não recebe relatórios. Não se
passa nada. A não ser que ele esteja prestes a ligar para me dar boas notícias neste preciso
instante.
E, com isso, pareceu lembrar-se das horas, pois tocou ao de leve no pulso, à procura de um
relógio, e semicerrou os olhos na direção da cozinha, para conseguir ver o relógio do micro-
ondas.
— Já passa da hora de jantar em Chicago — disse.
Apontou para perto de Reacher e disse:
— Passe-me o telefone, querido.
O telefone estava em cima do baú, perto do copo de chá gelado. Era grande, curvo e pesado.
O plástico era melhor. Continuava a não ter fios e a ser moderno, mas era de primeira geração.
Não vale a pena mexer no que está bem. Tinha uma parte transparente, para as etiquetas dos
números de marcação automática, com um espaço em cima para o próprio número, que
alguém tinha escrito a lápis e de forma elegante, o código de área 480 mais sete dígitos. Passou-
o à irmã de McCann, que pegou nele para ver se estava a funcionar.
— A linha dá sinal — disse.
— Mother’s Rest é um sítio muito grande? — perguntou Evan.
— Muito pequeno — respondeu Reacher.
— E porque se chama assim?
— Ninguém sabe.
— E como se pode demorar três dias a revistar um sítio tão pequeno?
— Depende da meticulosidade. Podemos passar três dias a enfiar o nariz em todo o lado, a
abrir as portas todas, a espreitar por baixo de cada arbusto. E é nisso que estou a pensar. Estou
a imaginar uns pés bem doridos. Trabalho policial à moda antiga. O pedido de localização à
empresa de telecomunicações, por intermédio de um amigo do sindicato, os horários dos
comboios, a hipótese de ele ter continuado a bordo ou saído, a busca física num local físico.
Tempo e espaço. Aço e ferro. Cabedal para calçado e noites longas. As pessoas inteligentes
chamar-lhe-iam uma coisa analógica.
— Imagino que, por vezes, tenha de ser assim.
— Mas ouvimos dizer que o Peter andava obcecado com a Internet. Ligou, ao todo,
dezanove vezes a um jornalista especializado em ciência, em Los Angeles, para falar disso. Seria
uma outra coisa? Qual é a ligação que isso pode ter com um sítio onde nem sequer há rede de
telemóvel?
A irmã de McCann respondeu:
— Não era outra coisa. Era paralelo. Acha que podia ser uma pista para descobrir o
paradeiro do Michael. Achava que o Michael era capaz de andar a falar com pessoas parecidas
com ele em sites secretos. E, se calhar, o Michael estava a dirigir-se para um determinado lugar
por uma razão. Talvez isso tivesse sido discutido. Durante algum tempo, depositámos grandes
esperanças no senhor Westwood. Talvez ele pudesse ter a chave. Mas o Peter era muito
persistente. E a persistência pode acabar por ser uma coisa negativa. Conforme o senhor disse,
dezanove telefonemas. Tentei avisá-lo.
— E ele acabou por descobrir os sites?
— Vou buscar mais chá — respondeu a irmã de McCann.
Levantou-se e pegou no jarro que estava em cima do baú, com o jarro a bater no telefone e
a fazê-lo rodar sem sair do mesmo sítio nem haver fricção, plástico e couro. Reacher viu o
número elegantemente escrito a girar devagar, como os raios de uma roda de bicicleta a
pararem. Código de área 480 mais sete dígitos.
Phoenix, no Arizona. Para onde nós vamos.
E já estamos a caminho.
Está na altura de começares a olhar por cima do ombro.
Meia fatia de bolo.
— Evan, posso fazer-lhe uma pergunta pessoal? — inquiriu.
O doutor Lair reagiu como a maioria das pessoas ao ser confrontada com uma pergunta
dessas, ou seja, hesitou uns segundos, com um ar confuso, encolheu os ombros de forma
supostamente inocente e respondeu:
— Claro.
— Tem uma pistola aqui em casa?
— E isso é importante?
— Estou só interessado em saber.
— Por acaso, até tenho.
— E posso vê-la?
— Isso é um pedido estranho.
A filha, Emily, estava meio de lado e de pernas cruzadas, a acompanhar o diálogo, olhando
para uma cara e para a outra, como no ténis.
E Chang também.
— E essa pistola está no quarto? — perguntou Reacher.
— Por acaso, até está — respondeu Lair.
— Seria melhor tê-la no corredor. Invadir uma casa a altas horas da noite é uma coisa rara.
Além disso, o senhor não iria ser eficaz por estar demasiado ensonado. É destro?
— Sim, sou.
— Então o melhor sítio seria a uns dois metros da porta da frente, do lado direito. Numa
gaveta ou num armário. Ou com o cabo para cima, numa jarra decorativa. Pousada numa
mesa. Calculo que isso funcionasse.
— Também são consultores em matéria de segurança?
— Temos como objetivo fornecer uma ampla gama de serviços.
— Ele tem razão, pai. No quarto não serve de nada — afirmou Emily.
E Chang acrescentou:
— Teoricamente, o nosso conselho seria esconder uma arma de fogo em todas as zonas
principais da casa. No quarto, decerto, mas também na zona da cozinha, na sala de estar, no
átrio de entrada, no andar de cima, caso haja, na cave, caso haja, e na garagem.
— E qual é o melhor sítio se só tivermos uma? — perguntou Emily.
Só tivermos uma, ouviu Reacher.
— É ir pela matemática — respondeu Chang. — A maior parte dos problemas surge pela
porta da frente.
— A sério? — retorquiu Lair. — Devia mudá-la de sítio?
— É melhor perguntar à mãe — disse Emily.
E foi nesse preciso momento que a irmã de McCann regressou, com um jarro cheio de chá
e bolo numa bandeja, soltando:
— Perguntar-me o quê?
— Se o pai devia mudar a pistola para o corredor.
— E por que carga de água havia ele de querer fazer isso?
— Devido aos conselhos de uma filha racional e de dois consultores de segurança.
— E por que carga de água esse assunto veio à baila? É importante?
Não lhe podemos contar. Agora, não.
Reacher respondeu:
— Não, foi só por interesse profissional, mais nada.
E, passado um minuto, a questão já se tinha evaporado como uma bolha de sabão e
rapidamente esquecida, exceto por Chang, que perguntou, com uma curta troca de olhares:
Que raio se está a passar?
Reacher coçou o nariz com a ponta do indicador, distraidamente, e o resto da mão por
baixo, em concha, a esconder o que estava a articular com a boca: Desliga o telemóvel.
— O senhor está bem? — perguntou a irmã de McCann.
— Fale-nos dos websites que o Michael andava a usar — respondeu Reacher.
QUARENTA

McCann aprendeu duas coisas depressa, explicou a irmã, quando começou a olhar para o
computador do filho. A primeira foi que era possível armadilhar o software de modo que abrir
um histórico de navegação fosse o mesmo que apagá-lo. A não ser que o abríssemos
corretamente, coisa que, como é óbvio, ele não fez. Porque não sabia como. Mas, tal como
muitos programas descarregados, não era perfeito. Tinha uma pequeníssima falha. O primeiro
ecrã ficava visível durante cerca de meio segundo. E depois desaparecia. Um espaço em branco.
Deixava de existir.
A segunda coisa que aprendeu foi que meio segundo era um período muito curto. Mas
também muito longo. Uma bola rápida podia ir e voltar em meio segundo, facilmente. E a
memória era capaz de armazenar muita coisa. Era uma questão de confiar, sem pensar. Um
truque qualquer antigo da mente e da retina e que tinha que ver com a pós-imagem. Era
melhor desviar o olhar e apanhar a coisa apenas de raspão.
Só que aquilo não significava nada. Eram só umas linhas carregadas de caracteres, como se
tivesse posto uma bola a rolar pela parte de cima de um teclado. De forma completamente
aleatória.
E a irmã de McCann disse:
— Portanto, sendo o Peter o Peter, aprendeu tudo o que podia acerca do que tinha pela
frente, o que se veio a revelar ser a Deep Web. E, em relação a isso, não havia muito que fosse
útil aprender. Tivemos umas conversas assustadoras. Julgávamos que tínhamos as coisas na
mão. Por assim dizer. Mas não tínhamos nada. Havia todo um mundo secreto que
desconhecíamos por completo. E era dez vezes maior do que o nosso. Com pessoas lá dentro, a
conversar. E a fazer coisas que seríamos capazes de compreender. Parecia um filme de ficção
científica.
— E o Westwood deveria ter ajudado com alguma coisa específica ou era uma dúvida mais
genérica? — perguntou Reacher.
— Não, era uma coisa muitíssimo específica. A maioria das pessoas da Deep Web acredita
que o governo está a criar um motor de busca capaz de encontrar os websites deles. E, pelo
artigo do Westwood, ficámos com a sensação de que já existia. O Peter quer que o Westwood
confirme ou negue isso e, em caso afirmativo, o ajude a ter a possibilidade de o usar.
— E isso é provável?
— Pessoalmente, acho que não há a mínima esperança, mas há que tentar todas as
alternativas. O filho dele desapareceu. O meu sobrinho.
— E é possível que o Peter tenha deixado coisas de parte ao falar com a senhora? As
histórias pareciam sempre completamente ligadas?
— Que quer dizer?
— Nunca tinha ouvido as palavras Mother’s Rest, por exemplo.
— Pois não, nunca tinha.
— E ele falou alguma vez em duzentas mortes?
— Duzentas quê? — exclamou Emily.
— Não — respondeu a mãe.
E Reacher prosseguiu:
— Ele falou ao Keever de ambas as coisas. E o Keever foi para Mother’s Rest. Portanto,
alguma importância teria. Mas nunca falou disso a si.
— E que acontece lá?
— Não sabemos.
— O Peter é o meu irmão mais velho e eu sou a irmã mais nova dele. E ele nunca se esquece
disso. Nem me deixa esquecê-lo. Mas não é de uma maneira má. É da melhor maneira. Só não
me contaria algo para me poupar a coisas desagradáveis.
Ninguém disse nada.
E Chang levantou-se.
Disse:
— Preciso de ir à casa de banho.
Emily apontou-lhe onde era e ela afastou-se na direção certa.
— Têm planos para o jantar? — perguntou Reacher.
— Ainda não pensei nisso — respondeu a irmã de McCann.
— Podíamos ir comer fora.
— Quem?
— Nós todos.
— Onde?
— Onde quiserem. Agora mesmo. Sou eu que convido. Deixem-me levá-los a jantar.
— Porquê?
— Dá a ideia de terem estado o dia inteiro a trabalhar imenso.
Chang reapareceu à entrada da sala de estar. Trocou um olhar com Reacher e disse:
— A casa de banho dos homens é mesmo aqui, caso precises.
— Okay — respondeu ele.
— Posso mostrar-ta, se quiseres.
— De certeza que a consigo descobrir quando for a altura certa.
— Ela quer falar consigo em privado — disse Emily.
E Reacher levantou-se para ir ter com Chang ao corredor exterior.
— Achas que os amigos do Hackett vêm aí? — perguntou ela baixinho.
— Devíamos ter tido mais cuidado com o telemóvel. Eles podem ter equipamento
espalhado pelo país inteiro. E, se for esse o caso, acabámos de lhes entregar a irmã. Contámos
tudinho ao Westwood. Por isso, não os podemos deixar sozinhos. Aqui, não. Nem agora. Ou os
tiramos daqui ou armamo-nos em amas-secas a noite toda. Proteção pessoal. Uma ampla gama
de serviços.
— Preferia tirá-los daqui.
— Já lhes ofereci jantar.
— O tipo que está à entrada não serve para nada.
— Onde é o quarto?
— Na outra ala. Tens de voltar a atravessar a sala.
— Experimenta tu convidá-los a jantar fora. Se calhar, acharam esquisito ter sido eu.
— Vai ser esquisito em qualquer dos casos. Não os conhecemos e eles estão em plena
contagem decrescente, com imensa precisão, para um casamento. Se, de repente, dois
desconhecidos os levassem a ir comer um balde de frango, a cabeça deles explodia.
— Eu disse que íamos onde quisessem. Não tem de ser ao KFC.
— Vai dar ao mesmo. Não interessa onde vamos.
Ouviram um carro no caminho de acesso.
Baques surdos e metálicos de portas a abrirem-se e a fecharem-se.
Passos nas pedras roladas.

No desenho dos automóveis modernos, não há espaço para mais do que quatro lugares
atrás de portas normais, que se abrem por completo. Alguns sedans podiam ter cinco lugares e
havia carrinhas com sete, mas nenhum durão cresce a querer sentar-se em cima da caixa de
velocidades e ninguém consegue ser eficaz bem nos fundos de um monovolume. Portanto, no
pior dos cenários, viriam aí quatro tipos. E, no melhor, um. Mas o mais provável era que
fossem dois ou três. Reacher deu meia-volta de imediato e avançou para a sala de estar,
planeando o trajeto com antecedência, o mais a direito possível, preparando-se para raspar nos
cantos das mesas e nos braços das cadeiras, como num slalom em contrarrelógio por uma
encosta abaixo. A família Lair continuava sentada em fila no sofá, petrificada, sem
compreender. Lydia, Emily e Evan, o vestido solto, de linho, a camisa e o biquíni, os calções e a
camisa havaiana berrante, todos a observá-lo, e, por isso, Reacher como que afagou o ar ao
passar por eles, dizendo-lhes para não se mexerem, e depois continuou, saindo da sala de estar
e entrando num pequeno corredor, onde passou por mais fotografias em molduras prateadas
de pessoas que não conhecia, se calhar parentes, incluindo um homem magro e um rapaz de ar
triste, talvez Peter e Michael McCann, para a seguir chegar por fim ao quarto.
A parte mais recôndita e instintiva do cérebro disse-lhe as mulheres escolhem habitualmente
o lado mais próximo da casa de banho e, por isso, deu um passo para o lado e contornou a cama
de tamanho grande atafulhada de almofadas, em direção a uma mesinha de cabeceira que
apenas tinha um despertador e um livro ainda por ler.
Ouviu-os a arrombar a porta da frente.
Abriu a gaveta por baixo do livro com toda a força e viu um par de óculos de ler,
comprimidos para as dores de cabeça, uma caixa de lenços de papel e um Colt Python com um
cano de quinze centímetros. Um cabo de madeira de nogueira lacado, com um brilho baço, aço
azul e balas Magnum calibre 357 dentro do tambor. Uma arma noturna do caraças. Por um
lado, era inteligente. Não era complexa. Não tinha mecanismo de segurança nem emperrava.
Mas, por outro, também era estúpida. Pesava mais de um quilo. Era demasiado pesada para
levantar enquanto ainda se estava a acordar. E o coice faria um braço dormente atravessar a
cabeceira da cama.
Reacher pegou nela e verificou o tambor. Não faltava nada. Um revólver de seis tiros. Seis
balas.
Ouviu o som de botas no corredor.
Já lá dentro. A darem seis passos para a direita. Duas pessoas. E uma terceira entraria pelas
traseiras. Se houvesse uma terceira. Pelo caminho decorativo, passando pelos canteiros e por
entre os candeeiros solares e atravessando a cancela.
Entrem, por favor.
Não havia mais balas na gaveta.
Um revólver de seis tiros.
Reacher aproximou-se da porta do quarto. Continuava a ouvir as botas no corredor. A
seguir, saiu dali, voltando a passar pelas fotografias das molduras prateadas, andando
ligeiramente de lado, de Python em riste e olhos na mira, com toda a concentração e nitidez,
mas tudo o resto desfocado, a luz suave e a casa com as persianas corridas, protegida do sol e
cheia de sombras indistintas.
Parou à entrada da sala. À esquerda, estava a família Lair, ainda sentada no sofá, mas a
começar a mexer-se. O choque estava a dar lugar ao medo. E, no caso de Emily, ao escândalo.
Ela ia explodir. E os pais iam dominar-se. À direita, estava o sofá onde ele e Chang se tinham
sentado e, a seguir, via-se um pouco da porta.
Viu um ombro corpulento a deslocar-se. Uma silhueta, recortada contra a luz. Tensa,
inchada e pronta a avançar.
À esquerda, do outro lado da porta de correr, viu um tipo no jardim de trás. Escondido
pelos presentes de casamento. E depois às claras. T-shirt e calças pretas. E uma Ruger P-85, com
um tubo supressor acoplado. Levava-a para baixo, encostada ao corpo, antes do joelho e até à
caneleira da bota. Que também era preta. Estavam vestidos a preceito, não havia a mínima
dúvida disso.
E onde estava Chang?
Reacher não queria disparar sem saber onde ela estava. Uma bala de uma Magnum, não.
Sem ter uma ideia concreta de onde ela estava. Havia demasiadas sombras indistintas.
Demasiados contrastes ofuscantes. Demasiadas possibilidades imprevistas. As balas podiam
desviar-se num osso e atravessar paredes. Plural. Podiam chegar mesmo a sair do edifício e
partir uma janela lá fora.
Onde estava ela?
Emily estava a inspirar fundo, prestes a começar a gritar e a berrar, com biquíni e tudo, uma
reação primitiva natural, segundo Reacher, a defesa instintiva da família e do território, mais,
no caso dela, uma boa dose de indignação justificada, do género: aquela era a semana especial
dela e, afinal de contas, quem pensavam eles que eram, raios? Evan era um homem calmo,
acostumado a calamidades, com formação científica e racional, via testes, indícios e
diagnósticos cuidadosos, e era um tipo esperto, com os circuitos todos a trabalhar naquele
momento, mas não conseguia que nada encaixasse na cabeça e, por isso, o corpo ficou à espera
de uma decisão final. Lydia estava encostada no canto, a mulher e a mãe, a irmã e a tia, a
refugiar-se em si mesma, achou Reacher, ou numa versão anterior dela, talvez a verdadeira
versão McCann, criada num ambiente mais duro, talvez num sítio em que madeira lascada e
passadas pesadas nunca pudessem ser boas notícias.
Foi então que o tipo do jardim abriu a porta e entrou, com Reacher a receber da parte mais
recôndita do cérebro todas as jogadas que precisava de fazer, bem escarrapachadas e evidentes,
como setas de néon a piscar, gigantesca e grotescamente pormenorizadas, a rotação rápida para
a esquerda e a bala em cheio no peito do tipo, já que seria menos provável de lhe entrar e sair
do corpo do que um tiro na cabeça, o que era bom, dado que havia um bairro atrás dele repleto
de vedações de madeira, mas o mais certo seria encharcar a família Lair com um esguicho rosa
e espesso, por trás, acertando-lhes no cabelo e tudo, o que não seria bom, já que seria
traumático, sobretudo naquela semana, só que, após refletir, Reacher chegou à conclusão de
que a semana já se tinha transformado basicamente num desastre desde aquele preciso
momento, tendo em conta que as tais jogadas lhe indicavam que, naquele instante, um tipo
morto lhes cairia em pleno chão do lar, ao mesmo tempo que o Python do dono da casa virava
outra vez depressa, mas para a direita, e disparava dois tiros para o sítio onde a silhueta do
ombro tinha sido vista, tiros esses que poderiam ou não atingir alguma coisa, mas que daria um
segundo a Reacher para se esconder à pressa atrás do sofá e capturar a Ruger do morto, num
total de três tiros gastos e quinze ganhos.
Mas Reacher não fez nenhum desses disparos ou movimentos, pois, por essa altura, já sabia
onde Chang estava. Estava a vir da porta da frente para a sala de estar, empurrada por dois
tipos, que a seguravam, e a contorcer-se, com as mãos presas por trás das costas, a palma de
uma mão a tapar-lhe a boca e uma pistola encostada à cabeça. Outra Ruger, com outro
supressor. Instável e difícil de manusear na sua presente função, devido ao tamanho. Mas, sem
dúvida, eficaz.
Reacher pousou o Python no chão atrás dele, sem fazer barulho, nas sombras projetadas
pelo rodapé da parede do corredor, por baixo da última das fotografias das molduras prateadas.
E, a seguir, entrou na sala.
QUARENTA E UM

O tipo do jardim fez parte da curva e os que vinham da porta entraram e posicionaram-se
no mesmo arco, afastados, com Chang a ser subitamente empurrada para a frente e a ir parar,
toda desengonçada, ao sofá onde os Lair se encontravam, aterrando lá, recompondo-se e
virando-se para se empoleirar a um canto. Reacher sentou-se no braço do sofá, devagar e
descontraidamente, querendo parecer o menos ameaçador possível, querendo ancorar-se nessa
ponta da sala, sabendo que um tipo que estivesse de pé receberia ordens para se sentar, ao
passo que um tipo sentado raramente tinha de mudar de sítio. Evan estava ao lado dele, e a
seguir vinham Emily, recostada, Chang, inclinada para a frente e ofegante, e Lydia, também
recostada. O que era espaçoso para três estava apinhado para cinco. Formavam um alvo
unificado. Três Rugers apontadas a eles, distribuídas a toda a largura da sala, como num
diagrama de campo de tiro num velho manual de infantaria.
Três Rugers e três tipos. Roupa preta, cabelo à máquina zero e pele clara. Suficientemente
grandes e suficientemente fortes, mas também, de alguma maneira, macilentos. Maçãs do rosto
salientes. Tinham tempos difíceis inscritos no ADN, de um passado não muito longínquo. Da
Europa, se calhar. No distante e pantanoso Leste. Todos contra todos, ao longo dos últimos mil
anos. Estavam ali parados, inflexíveis, primeiro, acalmando-se, avaliando a situação e
assinalando quadradinhos mentalmente, e, depois, concentrando-se noutra coisa.
Normalmente, Reacher talvez tivesse dito que tinham ar de que sabiam o que estavam a fazer,
mas a verdade é que, naquele preciso momento, achava que não sabiam. Não a cem por cento.
Agora, já não. Estavam a improvisar. Ou a prepararem-se para improvisar. Ou, pelo menos, a
considerarem essa hipótese. Como se as jogadas que também tinham visualizado os tivessem
levado a uma encruzilhada. Setas para a esquerda e setas para a direita. Opções. Liberdade de
escolha. Uma coisa sempre perigosa.
Não se mexeram. Não falaram. Talvez houvesse o esboço de um sorriso. E foi então que o
tipo do meio soltou:
— Disseram-nos que íamos dar com um homem e uma mulher a conversar com outra
mulher.
Bom inglês, com um sotaque quase tipicamente americano, mas com uns resquícios
monocórdicos eslavos. Da Europa de Leste, de certeza. Um tipo sombrio e explorado, com uma
vida que era uma imensidão de problemas.
Ninguém respondeu.
E ele prosseguiu:
— Mas o que acabamos por encontrar são dois homens e três mulheres. E uma é chinesa. O
que é tudo bastante confuso. Por isso, contem-me lá, quem tem estado a conversar com quem?
Chang respondeu:
— Sou americana, não sou chinesa. E temos estado todos a conversar. Uns com os outros.
Sem deixar ninguém de parte. Todas as combinações possíveis. E agora contem-nos vocês uma
coisa. Quem é que são, c’os diabos, e que raio vieram cá fazer?
— Há aqui uma irmã de uma pessoa — disse o tipo.
Nenhuma resposta.
— Não sabemos se essa pessoa é chinesa. Suponho que essa informação teria ajudado —
afirmou o tipo.
Nenhuma resposta.
— Quem é irmã de uma pessoa?
— Eu, não — respondeu Reacher.
— Tens uma irmã, espertalhão? Se calhar, devias dizer-me onde ela mora.
— Se tivesse uma irmã, dizia. Poupava-me o trabalho de te dar eu um enxerto de porrada.
O tipo olhou para a outra ponta do sofá. Para as três mulheres lá sentadas.
— Qual de vocês é a irmã? — perguntou.
Nenhuma resposta.
— Qual de vocês é a mulher que conversou com a irmã?
Nenhuma resposta.
Olhou de novo para o outro lado.
— Qual de vocês é o homem que conversou com a irmã? — perguntou.
Nenhuma resposta.
O tipo continuou:
— Há aqui muitas hipóteses. Como num teste do Instituto de Matemática. De quantas
meias preciso para ter um par? Mas, neste caso, há pelo menos uma resposta óbvia, até para o
aluno mais bronco. Podíamos matá-los a todos. E isso garantiria o resultado correto. Já seria
um número suficientemente grande de meias. Mas seriam cinco mortos pelo preço de três. E
esse preço foi fixado à partida. Há que verificar o troco antes de sair da loja. E não se renegoceia
a posteriori. São as regras do gordo.
Silêncio.
Olhou para Evan e perguntou:
— Que fazes na vida?
Evan não conseguiu desembuchar, duas vezes, mas à terceira lá respondeu.
— Sou médico — afirmou.
— E trabalhas de borla?
— Não, não posso dizer que o faça.
— É uma pergunta parva, não é? Médicos a trabalharem de borla?
— Há médicos que trabalham de borla.
— Mas tu não, pois não?
— Não posso dizer que o faça.
— E achas que eu devia trabalhar de borla?
Evan inspirou e expirou, atrapalhado.
E o tipo disse:
— É uma pergunta simples, doutor. Não estou a pedir uma opinião médica. Achas que eu
devia trabalhar de borla? Quando tu não o fazes?
— E o que eu acho interessa?
— Quero que estejamos todos à vontade. Quero que concordemos todos. Uma pessoa deve
ser paga pelo trabalho que faz. Preciso que me apoies nisto.
— Okay, uma pessoa deve ser paga.
— Pelo quê?
— Pelo trabalho que faz.
— E deve receber mais por cinco coisas do que por três?
— Acho que sim.
— Mas como é que pode, se o preço já foi fixado à partida? Esse poço já secou. O que é uma
má notícia para nós. Mas uma boa notícia para vocês. Só vamos fazer aquilo que nos pagaram
para fazer. Não há cá amostras grátis. Têm hipóteses de sobreviver.
Uma possibilidade de quarenta por cento, disse a parte mais recôndita do cérebro a
Reacher, imediata e automaticamente, se disparassem aleatoriamente. Mas por que razão iriam
disparar aleatoriamente? As instruções recebidas falavam de um homem e de duas mulheres. E,
nesse caso, as hipóteses de Evan subiam para cinquenta-cinquenta. E as de Chang caíam de
quarenta para trinta e três por cento.
O tipo disse:
— Claro que o defeito desse plano é que nos podemos enganar nas duas pessoas que
deixamos vivas. O que não seria aceitável. De certeza que também tens critérios profissionais.
O problema precisa de ser resolvido de outra maneira. Precisamos de pensar lateralmente.
Precisamos de arranjar forma de sermos pagos. Ajuda-me lá nisto.
— Não há dinheiro cá em casa — retorquiu Evan.
— Não estou a pedir a um homem para pagar a própria execução, doutor. Isso seria duro.
Estou a pedir-te que penses lateralmente. Nesta situação, o que poderia servir de recompensa a
mim e aos meus parceiros?
Evan ficou calado.
— Tens de ser criativo, doutor. Solta-te. Livra-te das amarras e pensa. Tirando o dinheiro,
que mais poderia ser?
Nenhuma resposta.
O homem olhou para Emily e perguntou:
— Como é que te chamas, querida?
— Não — desabafou Evan.
O tipo olhou para Chang.
— E ela também — afirmou.
Emily apertou a camisa ao corpo, puxou os joelhos para cima e recuou no sofá, assustada.
Evan inclinou-se à frente dela. O tipo do meio lançou-lhe um olhar feroz e disse:
— Se te portares bem, matamos-te primeiro. Caso contrário, deixamos-te vivo e
obrigamos-te a ver.
Os três tipos ocupavam a orla de um quarto de círculo, à mesma distância uns dos outros.
Como as bases cheias no basebol. Só que muito mais próximos. Afinal de contas, estavam
numa sala e não num campo. Numa sala espaçosa, mas mesmo assim. O tipo na primeira base,
à direita, talvez estivesse a pouco mais de dois metros de Reacher. O mais distante, na terceira
base, na ponta esquerda, estava a quatro metros e meio. E o da segunda estava a meio caminho
entre os outros dois, a fazer as despesas todas da conversa, numa linha reta entre Reacher e a
porta, a uns três metros e meio dele.
Três homens. O advogado do Ministério Público do condado de Maricopa chamar-lhes-ia
seguramente invasores. Do género, uma invasão domiciliar acabou em tragédia esta noite, num
luxuoso condomínio fechado a nordeste da cidade. Imagens às onze. Os polícias chamar-lhes-
iam criminosos. Os advogados deles chamar-lhes-iam clientes. Os políticos chamar-lhes-iam
escumalha. Os criminólogos chamar-lhes-iam sociopatas. Os sociólogos chamar-lhes-iam
incompreendidos.
E a 110 da Polícia Militar chamar-lhes-ia mortos andantes.
— Vamos lá a andar com isto — atirou o tipo da segunda base.
Emily estava toda encolhida contra as costas do sofá, colada ao cobertor de lã de xadrez,
com os joelhos para cima e os braços a apertarem as canelas com força. Tudo somado, parecia
ter metade do tamanho real. E Chang também não se ia mexer para lado nenhum. Estava
completamente plantada, com as palmas das mãos pousadas no sofá, ao lado do corpo, as
pernas todas esticadas, com os sapatos com atacadores bem diante dela e os calcanhares
literalmente enterrados no tapete, como um papa-léguas dos desenhos animados a derrapar até
parar.
— Estou a começar a ficar impaciente — soltou o da segunda base.
Lábios molhados.
Olhos sempre em movimento.
Insistente.
Nenhuma resposta.
A seguir, Reacher expirou, erguendo a palma da mão, num gesto apaziguador, não
disparem, pôs-se meio em pé, devagar e calmamente, de forma não ameaçadora, o perfeito
oposto de uma coisa repentina, meio afastado dos tipos armados e meio virado para o grupo
sentado no sofá, e disse:
— Vamos, Emily, é melhor despacharmos isto. Vão lixar-te de uma maneira ou outra. Mais
vale facilitares as coisas.
— O quê? — respondeu ela.
Reacher inclinou-se à frente de Evan para agarrar na miúda pelo pulso e levantá-la. Evan
pôs-se em pé de imediato para o impedir, tal como Chang e a irmã de McCann, todos
ofegantes, em pânico e descrentes. Subitamente, havia um pequeno emaranhado de pessoas, de
pé e ativas, todas amontoadas no tapete entre os sofás, a mexerem-se, a oscilarem, a chocarem,
a olharem desesperadamente para a esquerda e para a direita.
O momento da verdade.
Os três tipos não fizeram nada. Nesse momento, a jogada mais inteligente teria sido
começarem a disparar, sem contemplações nem hesitações, reconhecendo que a situação estava
a dar para o torto mesmo à frente do nariz deles. Só que, por essa altura, já estavam demasiado
embrenhados num estratagema que tinham engendrado, num plano de ação, num
procedimento, na expetativa de prazer físico extremo, sendo que as duas componentes
principais desse nirvana que se avizinhava estavam imiscuídas no meio daquele grupo
oscilante, mesmo a pedir para se tornarem danos colaterais, e eles não as queriam danificadas.
Tão depressa, não. Queriam-nas precisamente como se encontravam, plenas, conscientes, a
reagir, carne macia e bronzeada, biquínis, t-shirts e calças de ganga abaixo das ancas. Por isso,
não dispararam. Não pensaram. Pelo menos, com os miolos.
Até ali, tudo bem.
Reacher deu um encontrão a Evan e outro a Chang, tirando Emily do meio da confusão.
Puxou-a para junto dele, com a rapariga a mexer os joelhos e os cotovelos descontroladamente,
obrigando-a a dar meia-volta e empurrando-a com força para o corredor das fotografias dos
parentes desconhecidos nas molduras prateadas.
— O quarto é para aqui — disse.
Evan ultrapassou-o atabalhoadamente, agarrando a filha, a irmã de McCann deu-lhe uma
cotovelada, quase tão depressa, e Chang juntou-se a ela, logo atrás, com o tipo da primeira base
a segui-los, um súbito ar de preocupação em relação ao caos emergente estampado na cara,
com o da segunda base a juntar-se ao barulho e o da terceira a vir mais atrás. Ao todo, oito
pessoas, trapalhonas, aos tropeções, praticamente forçadas a seguir em fila indiana, afunilando-
se num corredor escuro e estreito.
Reacher baixou-se no meio daquela gente e pegou no Python, com as duas mãos, para que
não deslizasse na madeira encerada, agarrando na coronha com a palma da mão, robusta e
reconfortante, enfiando o dedo no guarda-mato, encostando-o ao gatilho, duro e sólido,
erguendo a pistola, quase um quilo e meio de peso, pousando a mão esquerda no cocuruto de
Lydia Lair, fazendo os joelhos dela cederem e obrigando-a a baixar-se, apontando por cima do
ombro direito de Chang e disparando para o meio da cara do homem da primeira base.
Havia vários fatores que tornavam uma pistola certeira ou não. A velocidade da bala e o
comprimento do cano eram os mais importantes, auxiliados ou não por subtilezas
aerodinâmicas como a dose de rotação dada pelas estrias, que funcionava bem ou não,
consoante a bala. A precisão em matéria de manufatura tinha influência, sendo um cuidadoso
trabalho mecânico associado a metal de qualidade bastante preferível em relação à fundição de
escória. Não é que alguma coisa fizesse grande diferença a pouco mais de dois metros de
distância. Um poro mais à esquerda ou uma ruga mais à direita iam dar ao mesmo. A cara de
uma pessoa era um alvo suficientemente grande, por norma, difícil de falhar quase à queima-
roupa, e a do homem da primeira base não fugia à regra.
A bala entrou e voltou a sair, como era óbvio, tendo em conta a distância curta e a potência
do cartucho Magnum. Seis metros atrás da cabeça do tipo, a parede abriu de imediato uma
cratera, do tamanho de uma taça de ponche, e, no horripilante instante seguinte, os miolos do
tipo vieram preenchê-la, atingindo-a com um estalo molhado, tudo vermelho, cinzento e
púrpura. Enquanto isso, o tipo propriamente dito estava a descer verticalmente, como que a
cair num poço de elevador, e Reacher estava a virar muito ligeiramente para a esquerda,
rodando a cintura e de ombros retesados, à procura do da terceira base, o que estava mais
longe, porque os cálculos recebidos pela parte mais recôndita do cérebro lhe estavam a dizer
que o tipo tinha uma melhor linha de tiro e não se estava a babar tanto como o da segunda
base, portanto talvez não estivesse tão embrenhado no divertimento que se avizinhava e, por
conseguinte, talvez fosse mais provável que desatasse a disparar, mesmo correndo o risco de
danificar a mercadoria.
Reacher puxou o gatilho para trás, sentido o mecanismo a girar, as rodas dentadas, os
cames e as alavancas, suavemente, e a pistola disparou, um tiro ponderado, para ele, com um
intervalo razoável após o primeiro, mas, no mundo real, foram quase dois tiros dados um a
seguir ao outro, um caso rápido de bang-movimento-bang, um artesão a fazer o que sabia,
calmamente, recorrendo aos naturais talentos natos. A bala voltou a entrar e a sair,
inevitavelmente, atingindo o lábio superior do tipo e fugindo-lhe pela nuca, destruindo a janela
corrediça e explodindo com uma pilha de presentes de casamento em cima da mesa no jardim
de trás, numa nuvem de fragmentos de papelinhos, brancos e prateados, como confetes uns
dias antes de tempo. O vidro partido caiu como uma cascata, sujeita à gravidade e, por isso
mesmo, à mesma velocidade que o da terceira base, que também se encontrava sujeito às
mesmas leis. Reacher assistiu, durante um milésimo de segundo, à descida sincronizada de
ambos e depois rodou o mais depressa possível para a direita, à procura do da segunda base.
Isto porque, naquela altura, a corrida já ia avançada e Reacher estava a perder. Um tipo não
custava nada e dois também nunca eram um verdadeiro problema, mas um terceiro podia
tornar-se complicado. O bang-bang dos amigos a irem ao chão tinha o efeito habitual de o fazer
concentrar-se e, ainda pior, dava-lhe tempo para entrar na coisa, para reagir, para perceber
finalmente ah, pois, tenho uma pistola na mão e para a erguer, mais devagar do que o costume,
por causa do grosso tubo supressor, por a pistola ter o dobro do tamanho que a memória
muscular dele julgava que tinha, por ser mais pesada e, consequentemente, mais difícil de
dominar, o que era tudo bom, pois o movimento que precisava de fazer era muito mais curto
do que o de Reacher. Já estava quase lá. Só faltavam uns centímetros. O jogo estava quase a
terminar. Mas Reacher não parou, parecendo deslocar-se desesperadamente em câmara lenta,
como se estivesse a enfiar a mão em melaço num dia frio de inverno, com o olho esquerdo na
mira do Python e o direito no buraco na ponta do tubo supressor, que continuava elíptico, mas
apenas ligeiramente. Estava a pouco mais de dois centímetros do alvo.
Enquanto o Python estava a mais de trinta centímetros.
Reacher baixou a pistola com força, como se estivesse a estalar um chicote, principalmente
para ganhar velocidade e potência, mas também por o tipo ser mais largo nos ombros e ele já
não se poder dar ao luxo de fazer pontaria. O Python era uma arma de ação dupla, o que
implicava que, ao se carregar no gatilho, o cão viesse para trás e depois para a frente, por isso,
Reacher começou antecipadamente, pondo o tambor a rodar com a pistola ainda em
movimento, vendo o cão a subir, sentindo os cames e as alavancas, aguardando e, a seguir,
disparando, confiando num período de milissegundos, na força cinética, na deflexão e em
complexos cálculos tetradimensionais.
Por outras palavras, meia bola e força.
Mas, pelos vistos, resultou.
Porque o outro não ripostou, saindo-lhe do pescoço um grande pedaço de vermelho. Que
chegava para uma casa de família.
Uma jogada tripla.
Sem ajuda.
A imortalidade no basebol.
Atrás do tipo, a bala entrou e saiu da casa de banho das visitas e estilhaçou um candeeiro do
corredor. Quanto ao homem, desabou no chão, no que devia ter sido um baque estrepitoso,
mas Reacher não ouviu nada, já que a desvantagem de uma Magnum era a surdez, pelo menos
temporária e sobretudo dentro de portas. À volta dele, os outros encontravam-se paralisados
com o choque, como que petrificados pela luz estroboscópica de uma máquina fotográfica ou
por um relâmpago. A irmã de McCann estava ajoelhada, de boca aberta, num grito que
Reacher não conseguia ouvir, e Emily estava agachada e encostada à parede do corredor.
Compreensível. Dentro de casa, uma Magnum era como uma granada de atordoamento. A
multiplicar por três.
Foi então que os silvos e o estrondo acalmaram um pouco e as pessoas se começaram a
mexer. Chang foi ter com Emily e Evan ajudou a mulher a levantar-se, abrindo depois caminho
para espreitar a sala e dando de seguida meia-volta, recomeçando a conduzir as pessoas para o
quarto enquanto abanava a cabeça enfaticamente e dizia repetidas vezes «Não podemos entrar
ali». Reacher calculou que não se tratasse de um caso de mal-estar, visto o tipo ser médico e por
aí fora, antes uma questão de poupar a família àquele espetáculo. Embora imaginasse que eles
já tivessem estado num talho e conseguido sobreviver à experiência. Ainda que três homens
fossem imensa carne morta. Ou talvez estivesse preocupado com a integridade da cena do
crime. Televisão a mais.
A família Lair sentou-se na cama e parecia, de certa maneira, mais pequena, excetuando os
olhos, com os três a arquejarem e a tentarem dominar-se. Chang começou a andar de um lado
para o outro. Reacher limpou o velho e grande Colt e pousou-o em cima da mesinha de
cabeceira de Evan Lair.
— Devíamos chamar a polícia. Temos uma responsabilidade legal — afirmou Lair.
— Sim, o meu conselho seria esse. O senhor tem de dar a cara por isto — respondeu Chang.
— O Peter está morto, não está? — perguntou a irmã de McCann.
Nenhuma resposta.
— Apanharam-no e agora vieram apanhar-me. Porque julgam que eu sei o que ele sabe. Ou
sabia. Toda a gente julga isso. É o que vocês julgam.
— Não temos provas nem informações em primeira mão acerca do Peter. Seria de todo
desadequado estarmos a dizer-lhe o que quer que seja. E, em todo o caso, o Michael tem de ser
informado primeiro.
— Imagino que ele também esteja morto.
— Não temos informações.
Instalou-se silêncio no quarto.
Até que Evan perguntou:
— Que vamos fazer?
— Em relação a quê? — retorquiu Reacher.
— Temos mortos em nossa casa.
— Que não vão ficar bem na fotografia. Por isso, os polícias vão dizer que foram mortes
justificadas. Uma invasão domiciliária, armas com silenciadores, ameaças de violência sexual.
Não vamos para a cadeia por causa disto. Vão é fazer-nos festas na cabeça. Só que, a mim, essas
coisas não me interessam propriamente. Ficaria felicíssimo se o meu nome nem sequer fosse
referido. Como se eu não tivesse estado cá. O senhor é que devia ficar com os louros. Brinque
com a pistola. Deixe outra vez as impressões digitais nela. Vão oferecer-lhe uma anuidade
grátis no country club. Vai arranjar novos doentes. O médico durão.
— Está a falar a sério?
— Não me interessa o que vai acontecer. Nunca me vão encontrar. Mas gostava de poder
contar com um avanço. Eu e a senhora Chang temos muito que fazer. E ajudar-nos-ia se
pudesse aguentar uns trinta minutos antes de ligar para o 112. Conte-lhes a história que quiser.
Diga-lhes que estava em choque. E daí a demora.
— Trinta minutos — disse Evan.
— O choque pode durar isso.
— Okay.
— Mas, quando for altura da história, diga-lhes que só dois estavam armados.
— Porquê?
— Porque vou levar uma pistola. E há polícias que são capazes de contar até três.
— Okay, trinta minutos. Duas pistolas. Se conseguir. Não sou bom com uniformes.
Reacher olhou para Emily e disse:
— Lamento imenso que lhe tenham estragado a sua semana especial, minha senhora.
— Estou-lhe muito agradecida — respondeu Emily.
— Não se preocupe com isso.
Começou a sair do quarto, atrás de Chang, que parou para abraçar a irmã de McCann e lhe
dizer, em resposta às perguntas tácitas dela:
— Lamento muito a sua perda.
A seguir, fecharam a porta e percorreram o corredor, passando pelas fotografias, em
direção à sala de estar. Primeiro, deram com o tipo da primeira base, mas este tinha-se
estatelado no chão num ângulo esquisito. O silenciador estava no meio da poça de sangue que
saía do que lhe sobrava da cabeça, sendo que os silenciadores possuem acolchoamento interior
ou refletores muito finos e, fosse qual fosse o caso, o sangue nunca mais pararia de pingar, logo,
descartaram-no. O da terceira base implicava um desvio e, por isso, Chang baixou-se junto ao
da segunda, o que tinha feito as despesas todas da conversa, e pegou-lhe na Ruger, manga de
alpaca ou não.
E, a seguir, parou.
— Reacher, este ainda está a respirar — murmurou.
QUARENTA E DOIS

Reacher pôs-se de cócoras ao lado da figura horizontal. Chang ajoelhou-se ao pé dele. O


tipo estava deitado de costas, com as pernas esparramadas e os braços todos tortos. Desmaiado.
Ou em choque profundo, ou em coma. Ou então as três coisas. O pescoço era de fugir. Metade
tinha desaparecido. Cheirava a roupa suja, a suor e ao fedor implacável do sangue. Cheirava a
morte.
Mas havia uma respiração ténue e uma pulsação fraca.
— Como é sequer possível? — murmurou Reacher. — Um pedaço do tamanho de um bife
da vazia saiu a voar-lhe do pescoço.
— Como é evidente, não era um pedaço vital — respondeu Chang, no mesmo tom.
— E que queres fazer?
— Não sei. Não podemos chamar uma ambulância. Os tipos trazem a polícia. Fazem
sempre isso quando alguém leva um tiro. E aí já ficávamos sem o nosso avanço. Mas, por outro
lado, este está mesmo com má cara. Precisa de alguém que perceba de cirurgia traumática, o
mais depressa possível.
— O Evan é médico.
— Mas de que género? Olhava para o tipo e chamava logo a ambulância. Imediatamente. E
depois chamava a polícia. Também imediatamente. Assim como assim, já não está lá muito
seguro em relação àquilo dos trinta minutos.
— Podíamos ir embora e deixar cá o tipo. Quem ia saber?
— É complicado para o Evan. Potencialmente. Este é capaz de aguentar mais trinta
minutos. E, a seguir, a história vinha a lume. Ele passava a ser o médico que ignorou um
moribundo para poder ficar sentado no quarto.
Reacher tocou com as pontas dos dedos na parte de cima do pescoço do homem, no pedaço
que estava intacto, sobre o ferimento, uma mão de cada lado, por trás das orelhas, perto das
articulações do maxilar.
E não as tirou de lá.
— Que estás a fazer? — perguntou Chang.
— A comprimir as artérias que lhe alimentam o cérebro.
— Não podes fazer isso.
— O quê, não havia problema em assassiná-lo à primeira, mas à segunda já há?
— Não está certo.
— Mas estava certo à primeira, quando ele era um merdoso prestes a violar-te com uma
pistola apontada à tua cabeça. Por acaso mudou? Por acaso se tornou de repente um mártir
cheio de virtude e que devemos levar a correr para o hospital? Quando aconteceu essa parte?
— Quanto tempo isso vai demorar?
— Pouco. Já não estava muito bem para começar.
— Isto não está nada certo.
— Estamos a fazer-lhe um favor. Como se fosse um cavalo com uma pata partida. Já não
havia salvação para este pescoço.
O telemóvel dela tocou.
Alto e bom som. Penetrante. Sacou-o, afastando-se e curvando-se para atender. Ficou a
ouvir. Murmurou. E desligou.
— Quem era? — perguntou Reacher.
— O Westwood aterrou no Sky Harbor.
— É bom saber.
— Disse-lhe que lhe ligávamos depois.
— Provavelmente, é melhor.
— A família ouviu de certeza o telemóvel. Vai perceber que ainda cá estamos.
— Vai achar que é de um destes tipos. Num bolso. Vai ignorar isso.
— Ele já morreu?
— Está quase. É uma coisa pacífica. É como adormecer.
A seguir, endireitou-se, tomou o pulso do tipo e não o encontrou.
— Vamos embora — disse.

O carro estava estacionado junto ao passeio, a cem metros da casa, no que correspondia ao
sítio mais perto na altura em que lá tinham chegado. Depois, a maré tinha descido e o carro
ficara encalhado. Estava completamente sozinho. Chang pôs-se ao volante. Fez inversão de
marcha no meio da estrada e seguiu no mesmo sentido em que tinham vindo. A urbanização
estava sossegada. Atordoada com o calor. O ar tremeluzia por todo o lado, em tons azuis e
dourados, como líquido.
A casa de guarda tinha as barreiras para cima. As duas varas de riscas vermelhas estavam na
vertical. Como um pássaro gordo, temperado para ir ao forno. Completamente escancaradas,
nos dois sentidos, à entrada e à saída. Sem o segurança atrás do vidro.
Chang parou o carro.
— Vai lá ver — disse.
Reacher sentiu o calor do alcatrão ao pisá-lo. Dava para estrelar um ovo. Ouviu moscas a
zumbir a menos de dois metros dele. A divisória de vidro corrediça estava aberta. Por onde o
guarda se inclinava para falar. Desejo-lhes uma ótima tarde. O ar condicionado estava no
máximo, a esforçar-se para lidar com a situação.
E o guarda estava caído no chão. Todo emaranhado em redor das pernas do banco. Camisa
de manga curta. Braços pintalgados de sinais. Olhos abertos. Tinha levado um tiro no peito e
outro na cabeça. As moscas empanturravam-se com o sangue dele. Azuis e iridescentes. De um
lado para o outro. Já a deixar larvas.
Reacher voltou para o carro.
— O velho já não vai envelhecer mais — afirmou.
— Faz-me sentir melhor em relação àquilo do homicídio assistido.
— E a mim dá-me vontade de ter arranjado uma faca para manteiga na cozinha e cortado a
cabeça ao tipo.
Chang arrancou, saindo do condomínio, e começou a virar à esquerda e à direita
aleatoriamente. Não ouviram sirenes a uivar ao longe. Nenhuma agitação. Apenas o trânsito
perpétuo de Phoenix, três faixas reluzentes, como um rio vagaroso, avançando eternamente.
— Para onde? — perguntou ela.
— Vamos à procura de café. E precisas de fazer um telefonema.

Pararam num complexo comercial de Paradise Valley. Havia um café de uma marca
importante ensanduichado entre uma loja que vendia cintos de couro com fivelas de prata e
outra que vendia pratos de porcelana com desenhos vistosos. Chang pediu café gelado e
Reacher, quente. Sentaram-se nos fundos, numa mesa pegajosa.
— Diz ao Westwood para escolher um hotel. Um sítio qualquer conveniente, que não lhe
estrague o orçamento. Diz-lhe que vamos ter com ele daqui a duas horas — disse Reacher.
— Porquê duas horas?
— Vocês têm um escritório em Phoenix?
— Claro. Há imensos ex-agentes do FBI em Phoenix.
— Precisamos de quem tenha conhecimentos aqui da zona.
— Em relação aos tipos da casa?
— Em relação ao chefe. Que também era o chefe do Hackett. Um fornecedor de segurança
em regime de subcontratação, direcionada para o que é sem dúvida um conjunto diversificado
de clientes. A economia de serviços em ação. Fisicamente, pareceu-me ser um tipo grande. Ao
telefone. E o que fez as despesas todas da conversa lá na casa chamou-lhe gordo. Ouviste isso?
Estava a queixar-se por não ser pago, por não poder renegociar a posteriori, e disse que eram as
regras do gordo. Por isso, precisamos de um nome. De um rei do crime da Europa de Leste e
estabelecido na zona de Phoenix, que manda em capangas da Europa de Leste por estas bandas
e em gente como o Hackett noutros lados. E a quem poderiam chamar gordo de forma
plausível. Nas costas dele, presumivelmente. E paradeiros conhecidos também davam jeito.
— Porquê?
— Quero fazer-lhe uma visita.
— Porquê?
— Pela Emily. E pela irmã do McCann. E pelo segurança da casa de guarda. E doem-me as
costas e agora também estou com dor de cabeça. Há coisas que não podem simplesmente
continuar.
Chang assentiu.
— E há coisas que têm vantagens adicionais.
— Exato.
— Mother’s Rest vai ficar completamente desprotegida. Vamos cancelar-lhe o contrato de
segurança. Cortando-lhe a cabeça. Antes de lá voltarmos.
— E achas que a vossa pessoa aqui da zona teria informações dessas?
— Eu teria, se me ligassem a perguntar sobre Seattle.
Pegou no telemóvel e ligou primeiro para Westwood, para lhe falar do hotel, percorrendo
depois a lista de contactos até descobrir o número da pessoa que tinham naquela zona. Um
quarto de visitas, presumivelmente. Ali perto. Em Mesa, Glendale ou Sun City. Mobilado com
prateleiras e armários a fazerem conjunto, mais uma secretária e uma cómoda. E um
computador, um telefone, um faxe e uma impressora. Investimentos, para uma nova carreira.
Temos escritórios em todo o lado.
Reacher levantou-se para ir à casa de banho, onde se olhou ao espelho à procura de sangue,
dele ou não, ou de outros sinais de violência. Sempre prudente. Uma vez, prendera um tipo que
tinha um dente da vítima agarrado ao cabelo, bem à vista, como uma conta amarelo-clara saída
de um salão de beleza junto à praia. A seguir, lavou as mãos com grande meticulosidade, mais
os pulsos e os antebraços, com bastante sabão. Para se livrar dos resíduos de disparo. O que
também era sempre prudente. Para quê facilitar?
Ao voltar para a mesa, Chang disse-lhe:
— O tipo é ucraniano e chama-se Merchenko.
— E é gordo? — perguntou Reacher.
— Parece que é colossal.
— E sabemos onde é a base dele?
— Tem um clube privado, a sul do aeroporto.
— Seguranças?
— Não sabemos.
— E podemos entrar no clube?
— É só para sócios.
— Podíamos tentar arranjar trabalho lá. Podia fazer de segurança.
— E eu fazia de quê?
— Depende do tipo de clube que seja.
— Acho que dá para ter uma ideia.
— Não tenho nenhum problema estético com isso — retorquiu Reacher. — Devíamos ir
dar uma vista de olhos ao sítio. Já. É melhor vê-lo à luz do dia.

A zona sul do aeroporto não era um ermo completo, mas era mais colorida e desabrida do
que o que viram até lá chegarem. O clube de Merchenko era um edifício de metal do tamanho
do Yankee Stadium. Mas quadrado. Ocupava um quarteirão inteiro, de um passeio ao outro.
As paredes estavam pintadas de cor-de-rosa e tinham a forma suavizada com centenas de
gigantescos balões de alumínio, uns em forma de corações, outros em forma de lábios e todos
colados, sem se perceber bem como, ao revestimento exterior. Entrelaçados no meio deles,
encontravam-se imensos néons, naquele preciso momento acinzentados, como que desbotados
pelo sol, mas, à noite, sem dúvida cor-de-rosa. De que outra cor poderiam ser os néons? A
porta era cor-de-rosa, com um toldo de plástico cor-de-rosa por cima, e o sítio chamava-se
Pink.
— Arriscamos dar a volta ao quarteirão? — perguntou Chang.
— É cedo — respondeu Reacher. — Deve ser relativamente seguro.
Chang contornou o edifício pela esquerda, seguindo pelo lado direito da rua. O mesmo
tamanho gigantesco. O mesmo cor-de-rosa. Os mesmos lábios e corações. Que eram meio
atraentes para bêbedos, pensou Reacher. Era melhor do que virar para o outro lado, no sentido
do trânsito.
E foi então que perceberam que o edifício não ocupava o quarteirão inteiro. De um lado ao
outro, talvez, mas não da parte da frente para a de trás. Parava subitamente, com as traseiras do
quarteirão a funcionarem como um recinto para cargas e descargas. O que fazia sentido. Um
clube daquele tamanho precisava de bens de consumo de toda a espécie. Como um
transatlântico. E gerava igualmente lixo e reciclagem de toda a espécie. O que precisava de ser
recolhido com regularidade. O recinto tinha uma vedação reforçada, de arame de aço
galvanizado, intercalada com divisórias cor-de-rosa, portanto, não dava para ver o que estava
do outro lado. A parte de cima da vedação tinha espirais folgadas de arame farpado, para não
deixar ninguém trepar. Mas duas partes da vedação, com três metros cada, tinham dobradiças
que abriam para dentro, o que fazia sentido, tendo em conta os camiões que entravam e saíam,
comida, bebida e lixo.
E um desses portões estava aberto.
— Para — disse Reacher.
Chang obedeceu e, a seguir, recuou discretamente, para ver melhor.
— Não acredito — soltou.
Lá dentro, encontrava-se uma fila de contentores do lixo, à altura da cabeça, e depois uma
zona à entrada da cozinha, com relva falsa a cobrir o betão, uma coisa qualquer a servir de
paliçada, um banco de jardim de metal branco e um grande guarda-sol de lona. Para os
cozinheiros e os empregados fumarem confortavelmente.
E, sentado no banco, estava um gordo.
Estava a fumar um charuto grosso e a falar com um hispânico, que tinha uma camisa de
alças e um lenço na cabeça e estava completamente em sentido e atento, de olhar fixado num
ponto do ar mesmo acima da cabeça do gordo.
Mas gordo era uma palavra demasiado pequena e, neste caso, perfeitamente desadequada.
O homem sentado no banco não era roliço nem bem constituído, não tinha peso a mais nem
sequer era obeso. Era uma montanha. Era enorme. Tinha mais de um metro e oitenta, e isso era
de um lado ao outro. O banco parecia minúsculo. Trazia um cafetã até ao tornozelo, cinzento, a
barriga obrigava os joelhos a estarem bem afastados e estava inclinado para trás, com o rabo
empoleirado na parte mais à frente do banco, já que, na direção contrária, a barriga não o
deixaria dobrar-se num ângulo de noventa graus para se sentar de forma normal. O corpo não
possuía contornos reconhecíveis. O tipo era um triângulo de carne indiferenciado, com peitos
do tamanho de bolas de basquetebol e outras saliências e protuberâncias misteriosas parecidas
com almofadas de tamanho grande. Tinha os braços apoiados nas costas do banco e descaíam-
lhe papadas enormes de gordura dos cotovelos cheios de covinhas.
Tudo somado, era colossal, a palavra que o contacto de Chang tinha utilizado. A cabeça era
minúscula comparada com o corpo. Tinha a cara rosada e reluzente do sol e os olhos, pequenos
e cavados, em parte por estar a semicerrá-los por causa da luz, e em parte por ter a cara
inchadíssima, como se lhe tivessem enfiado uma bomba de bicicleta no ouvido e dado à coisa
com força umas boas dez vezes. Tinha o mesmo corte de cabelo à máquina zero dos três tipos
da casa da irmã de McCann.
— Pode ser um irmão ou primo. Se calhar, é uma família de gordos — disse Chang.
— Tem ar de ser o chefe — respondeu Reacher. — Olha só como está a falar com aquele
tipo. Está a dar-lhe uma rabecada a sério.
E estava mesmo. Sem histrionismos. Nem gritaria. Apenas um fluxo contínuo de palavras,
interminável, em tom de conversa e, por conseguinte, provavelmente muito mais cruel e eficaz.
O tipo do lenço na cabeça não se estava a divertir, não havia dúvida disso. Estava todo retesado,
a fitar o ar, a aguentar aquilo.
— Temos de ter a certeza. Se calhar, o Merchenko delega. Se calhar, há braços-direitos. Se
calhar, estamos a ver um irmão ou primo a tratar-lhe de questões relacionadas com o pessoal
— disse Chang.
— O teu contacto falou em algum familiar? — retorquiu Reacher.
— Não disse nada.
— E podes confirmar?
Chang marcou o número. E Reacher observou o gordo. Não ia a lado nenhum. Para já.
Continuava a falar. Chang fez a pergunta e ouviu a resposta. Desligou a chamada.
— Não temos conhecimento de nenhum familiar — informou.
— Tem ar de ser o chefe — repetiu Reacher. — Só que não há ali seguranças. Não há tipos
com óculos de sol e auriculares. Devia estar um ao portão, seguramente. O mínimo dos
mínimos. Supostamente, o tipo é um rei do crime. E está ali à vista de toda a rua. Estamos
simplesmente aqui parados. Ninguém nos tentou afugentar.
— Confiança, se calhar — respondeu Chang. — Ou excesso de confiança. Julga que já
estamos mortos. Se calhar, não há mais nada que o preocupe. É possível que seja o maior dos
predadores todos aqui da zona. Incontestado.
— Se for ele o tipo.
— Não devíamos partir desse pressuposto.
— Quem me dera que pudéssemos. Despachava-o daqui.
— A sério?
— É uma maneira de dizer. Com uma pistola, não. Para ter a certeza, ia querer estar mais
perto.
— Dentro do recinto?
— Idealmente.
— Se calhar, há guardas depois do portão.
— É possível. Mas, com tipos destes, a imagem é muito importante. Gostam de ser vistos
atrás de um muro humano. Ou de não ser vistos.
— Então, se calhar, não é este o nosso tipo.
— Mas tem mesmo ar de ser. Tem ar de gordo e tem ar de estar a estabelecer regras.
— Temos de ter a certeza.
— Nunca vamos ter a certeza. A não ser que eu lhe peça a identificação. Que ele é capaz de
não ter. Não vejo nenhum bolso no vestido dele.
— É um cafetã. Ou um muumuu.
— O que é um muumuu?
— O que ele tem no corpo.
— Precisamos de ter a certeza. Isto pode ser uma oportunidade única. O tipo está mesmo
ali.
— E o problema é esse. É demasiado bom para ser verdade.
— Pode ser uma questão de confiança. Como tu disseste. Pode ser pura rotina. Se calhar, os
seguranças dele estão lá dentro. Se calhar, estão habituados a que o tipo dê uma
escapadelazinha cá fora para fumar. É cedo e sabem que não há ninguém por perto. Se calhar, o
tipo não gosta de os ter em cima dele. Ou, se calhar, acha que é melhor tratar das questões
relacionadas com o pessoal em privado.
— E quanto tempo ele ainda vai ficar ali?
— O charuto é grande. Mas, se calhar, fuma-o aos bocadinhos.
— Nunca vamos ter uma oportunidade tão boa.
— E não pode durar muito mais tempo.
— Mas temos de ter a certeza.
Reacher ficou calado.
O gordo continuava a falar. Talvez com maior intensidade. Espetava a cabeça a cada frase.
Tinha a gordura no pescoço a abanar. E o resto do corpo não se mexia um milímetro. Não era
feito para gesticular.
— Acho que ele está a recapitular a coisa. Acho que está a chegar a uma conclusão. Não
temos muito mais tempo. Precisamos de tomar uma decisão — afirmou Reacher.
Chang ficou calada.
E depois disse:
— Espera.
Ergueu o telemóvel e Reacher viu uma imagem a surgir no ecrã. O passeio, a vedação cor-
de-rosa, a abertura. Um ângulo estranho, instável. Modo de câmara. A seguir, vieram os
contentores do lixo, o jardim falso e o gordo.
Ela tocou no ecrã e o telemóvel fez um barulho parecido com o de uma persiana. Depois,
Chang digitou, premiu e escreveu, premindo ainda noutras tantas teclas, e o telemóvel soltou
um whoosh.
— Estou a pedir uma identificação visual ao meu contacto — explicou ela.
— Então é melhor que ele se despache. Isto não pode durar muito mais tempo — retorquiu
Reacher.
O gordo continuava a falar, a espetar a cabeça e a abanar a gordura. E o tipo do lenço na
cabeça continuava a aguentar. Foi então que os dedos do gordo começaram a tentar agarrar a
tira de cima do banco. Possivelmente, o início de um processo longo e complexo com vista a
levantar-se.
— Vamos perdê-lo — avisou Reacher.
O gordo atirou o charuto para o chão.
O telemóvel de Chang vibrou.
Ela olhou para o ecrã.
E desabafou:
— Oh, não me lixes!
— O que é?
— Ela quer que eu faça zoom. Quer um grande plano.
— Mas o que é isto, o Supremo Tribunal?
Chang ergueu outra vez o telemóvel e fez qualquer coisa com os dedos, o oposto de um
beliscão, ficando com uma imagem tão grande quanto possível do gordo, centrando-a no ecrã e
carregando para tirar a foto. Reacher voltou-se para trás para pegar na Ruger que se encontrava
no chão do carro. Só por via das dúvidas. Ouviu de novo o whoosh do SMS dela, ou do e-mail
ou lá do que fosse. Sem levantar a pistola, passou-a por entre os bancos e pousou-a no colo.
Uma arma robusta. Nada vistosa. O equivalente, em matéria de armas de fogo, a um sedan de
fabrico nacional. Como o Chevrolet alugado onde se encontravam. O supressor era uma peça
sobresselente, com um suporte feito à medida. Faltavam duas balas ao carregador. Do velhote
da casa de guarda. No peito e na cabeça. Desejo-lhes uma ótima tarde.
Reacher aguardou.
Foi então que o gordo esticou as ancas para a frente. Uma técnica especial, claramente. Ia
endireitar-se todo, como uma tábua, e depois levantar-se com a ajuda das mãos. Ou fazer força
de trás e esperar conseguir cambalear para a frente. Nenhuma dessas manobras era fácil. Mas
eram ambas obviamente possíveis. O tipo não tinha passado a vida inteira no mesmo sítio.
— Estamos a ficar sem tempo — afirmou Reacher.
Mas, de repente, o hispânico falou.
Talvez fosse uma declaração sentida, repleta de pedidos de desculpa e de contrição, repleta
de promessas de correções futuras, provavelmente, educada, e, sem dúvida, curta, mas, pelos
vistos, havia nela qualquer coisa que o gordo queria refutar ou então comentar, pois voltou a
inclinar-se para trás, com muita oscilação e tremedeira assíncronas de permeio, e recomeçou a
falar.
O telemóvel de Chang vibrou.
Ela olhou para o ecrã.
E disse:
— Temos a certeza absoluta de que aquele tipo é o Merchenko.
QUARENTA E TRÊS

Ela arrancou e avançou vinte metros, depois fez inversão de marcha, de um lado ao outro
da rua, e voltou para trás devagar, encostando lentamente ao passeio, mesmo antes da primeira
possibilidade de uma linha de mira pela metade aberta do portão. O que punha Reacher a uns
dezoito metros do alvo. Seis em relação ao portão, mais doze já dentro do recinto. Tendo de
virar à direita. Abriu a porta do carro e saiu. Não havia nenhuma maneira fácil de esconder
uma pistola com silenciador, por isso, levou-a encostada à perna, comprida e ameaçadora, do
meio da coxa ao meio da barriga da perna. Sem ambiguidades. Mas contava que as vantagens
acústicas valessem a pena, durante o horário de expediente, perto do centro da sexta maior
cidade americana.
Seis passos no passeio e, a seguir, virou para o recinto. Não havia guardas depois do portão.
Os contentores do lixo estavam mesmo à frente. A seguir, o jardim. E, por fim, o gordo. Que
continuava a falar. Sem olhar para ele. Ainda não. O hispânico continuava ali parado, de
queixo erguido e olhos fixos, ainda a aguentar. Reacher continuou a andar, de forma enérgica,
mas não urgente, com a pistola ainda para baixo e os tacões a fazerem imenso barulho no
betão, tanto que era impossível que o gordo não estivesse já a olhar para ele, mas não estava.
Continuava a falar, agora de forma audível, com os mesmos tons monocórdicos da conversa
telefónica, repreendendo, rebaixando e humilhando, a cabeça a abanar sobre a ampla barbela
do pescoço.
E depois pôs-se a olhar. Virou a cabeça, completamente independente do corpo imóvel e
abriu a boca, com Reacher a passar por cima da suposta paliçada, que não chegava a meio
metro de altura, a pisar a relva brilhante, a erguer a pistola e a avançar mais um passo.
Nas histórias da carochinha que se contavam à lareira, havia sempre um breve e lacónico
diálogo. Porque o mau tinha de saber por que razão tinha de morrer, como se a alusão a partes
lesadas, como Emily Lair, Peter e Lydia McCann e os netos do segurança da casa de guarda,
possuísse o poder de invocar espíritos e de os consolar, e também porque o mau tinha de ter
oportunidade de se arrepender ou de rosnar mais provocações, sendo que qualquer uma dessas
hipóteses poderia transformar uma história num clássico, consoante a resposta seguinte do
herói.
Mas as histórias eram histórias e não o mundo real.
Reacher não disse nada e pregou dois tiros na cabeça do gordo, um a seguir ao outro, pum
pum, ficando a olhar para a porta da cozinha.
Que continuou fechada.
O silenciador tinha funcionado bastante bem, a céu aberto.
Reacher deu meia-volta e passou outra vez por cima da pequena paliçada.
Atrás dele, o hispânico disse:
— Gracias, hombre.
Reacher sorriu. Um autêntico maná dos céus para aquele tipo. Basicamente, aquilo que ele
não tinha parado de rezar para que acontecesse. À letra. Sem tirar nem pôr. Senhor, envia-me,
por favor, alguém que dê imediatamente um tiro na cabeça a este sacana. Um milagre. No
domingo, iria à missa.
Reacher atravessou o recinto, seguindo o mesmo percurso e à mesma velocidade, de forma
enérgica, mas não urgente. Pelo caminho, limpou a pistola à camisa e largou-a no primeiro
contentor do lixo que lhe apareceu à frente. E depois continuou, saindo pelo portão, e, mal o
viu, Chang fez o carro avançar lentamente, ele entrou e ela arrancou.

Westwood tinha escolhido um sítio chique, em Scottsdale, o trânsito estava lento devido à
hora de ponta do final da tarde e, por isso, já estava a escurecer quando lá chegaram. Deram
com ele no bar, exatamente com o mesmo aspeto, o cabelo revolto, a barba desgrenhada, a
roupa fina como papel e cheia de fechos de correr e o enorme saco de lona junto aos pés. Estava
a ler um livro sobre marijuana. Talvez fosse o tema que se seguiria ao trigo.
Chang instalou-se para lhe relatar o que se tinha passado até então e Reacher foi tirar mais
resíduos de disparo das mãos. Quando voltou, Westwood perguntou-lhe:
— Acha que os jornalistas seguem um código deontológico?
— De certeza que isso varia — respondeu Reacher.
— Pois é melhor esperar que eu não siga. Porque, de acordo com uma interpretação lógica
do que a senhora Chang me acabou de contar, o senhor cometeu quatro homicídios só hoje.
— E um duas vezes — ripostou Reacher.
— Isso não teve piada.
— Está à vontade para voltar para casa quando muito bem quiser. Os direitos para o livro
são seus e não meus. Outra pessoa qualquer pode pegar na história depois de a coisa acontecer.
— E há uma história?
— Só não temos a certeza de três partes.
— Que são?
— O princípio, o meio e o fim.
Westwood ficou calado durante bastante tempo. E depois disse:
— Já tinha ouvido esse nome, Merchenko. Quando estava a trabalhar no artigo da Deep
Web. Alegadamente, o tipo fornecia um menu de serviços. Garantia a invisibilidade do website
e tratava dos eventuais problemas que surgissem. Era como uma espécie de subscrição. Os
ucranianos entraram cedo nas coisas em linha. Só não escrevi acerca dele no jornal por não
haver provas de nada. O departamento jurídico não me deixou.
— E quantos clientes tinha o Merchenko?
— As pessoas falavam em dez ou à volta disso. Uma coisa exclusiva.
— Aquele tipo não era exclusivo. Mesmo que uma coisa exclusiva lhe estivesse
escarrapachada à frente da tromba gorda, não ia saber o que isso era. O tipo tinha um clube de
strip maior do que o Dodger Stadium. Era cor-de-rosa e estava cheio de balões. Gostava de
excesso. Gostava de volume.
— Dez foi o que eu ouvi dizer.
— Então o volume devia vir das receitas. Devia andar a ganhar uma fortuna com esses dez
clientes.
— É possível — retorquiu Westwood. — A Deep Web pode ser quinhentas vezes maior do
que a rede à superfície. Imagino que muito pouca coisa nela dê dinheiro, mas muito pouca
coisa precisa de o fazer, num universo tão grande. Para se ganhar uma fortuna, globalmente,
claro.
— E o governo já criou um motor de busca capaz de ver a Deep Web? — perguntou Chang.
— Não — respondeu Westwood.
— Era isso que o McCann queria saber.
— Então estava a fazer a pergunta errada. Ou a pergunta certa, mas da maneira errada.
Começo a desligar quando quem me telefona se põe a falar do governo. Como um teste com
papel de tornassol para o bom senso. Ou seja, quem cria motores de busca? Quem escreve os
softwares, lá está. Os codificadores. Um projeto difícil exige os melhores codificadores e, hoje
em dia, os melhores codificadores são como estrelas de rock. Têm agentes e gestores de
carreira. Recebem imenso dinheiro. O governo não lhes consegue pagar. E a alternativa são
miúdos. Estrelas de rock ainda famintas. Mas o governo também não os contrata. Isso é muito
fora do manual de procedimentos. Esses miúdos são esquisitos.
— E qual teria sido a pergunta certa, feita da maneira certa?
— Ele devia ter voltado as atenções para Silicon Valley e não para o governo.
— E há alguém em Silicon Valley que já tenha criado um motor de busca capaz de ver a
Deep Web?
— Não — respondeu Westwood.
— O McCann achava que havia indícios no seu artigo.
— Eu perguntava qual seria a motivação para um dos grandalhões, como a Google. O que
não é evidente. Isso ajudaria as forças da lei, mas não faria dinheiro. Por definição. Se as
pessoas da Deep Web quisessem publicidade e promoção, podiam subir à rede da superfície e
sacar isso de imediato. Mas a questão é que não querem mesmo. Recusam-se mesmo a
passarem a ser clientes. E vai ser sempre assim. Um motor de busca melhor vai fazê-los
esconderem-se ainda mais. Tão simples quanto isso. A coisa transformar-se-ia numa corrida às
armas, sem nunca dar dinheiro a ganhar. Por que motivo alguém faria isso?
— O McCann ligou-lhe dezanove vezes. Os indícios deviam ser positivos.
— Eu dizia que haveria quem o fosse fazer. Ele deve ter julgado que eu estava a falar do
governo. Mas não estava. Os grandalhões, como a Google, não foram sempre grandalhões.
Houve uma altura em que eram dois tipos numa garagem. Ou num quarto de uma residência
universitária. Alguns sempre quiseram ser bilionários desde o início, mas outros, não. Outros
limitaram-se a ficar obcecados com a resolução de um problema interessante, que, por acaso,
veio a valer depois milhares de milhões de dólares. É uma questão de personalidade. Tem que
ver com a resolução e não com o problema. É uma compulsão. Quem sabe onde vai atacar?
— Está a dizer que um miúdo qualquer num quarto de uma residência universitária criou
um motor de busca que consegue ver a Deep Web?
— Não é bem isso — respondeu Westwood. — Não se trata de um miúdo, nem de um
quarto de uma residência universitária, nem propriamente de criar. Como eu já disse, é uma
compulsão. Eles não conseguem explicar isso. Mas, mais cedo ou mais tarde, há um problema
que lhes diz algo e têm simplesmente de o resolver. E não se vão deixar vencer. Só que, nove em
cada dez vezes, não há aplicação comercial e, por isso, são obrigados a arranjar um trabalho das
nove às seis e a coisa passa a ser um hobby. Mas continuam a debruçar-se sobre isso de vez em
quando. Continuam a escarafunchar. Nunca vai estar terminado, por causa do tempo e do
dinheiro. Mas, para um hobby, isso não é um problema. Aliás, é a razão de ser de um hobby.
— Quem? — perguntou Chang.
— É um tipo de uma start-up de Palo Alto. Já é um veterano. Vinte e nove anos.
Atualmente, está a safar-se muito bem com sistemas de pagamento de retalho. Mas, quando
ainda não tinha acabado a licenciatura, disseram-lhe que não podia pesquisar a Deep Web e
não foi preciso mais nada. Foi como mostrar um lenço vermelho a um touro. Um entusiasmo
qualquer esquisito no plano intelectual. Sabia que não havia dinheiro a ganhar nisso. Seria
sempre um hobby. Ele reconhece que foi, acima de tudo, por arrogância. Há geniozinhos que
são assim. Precisam de ser melhores do que o outro geniozinho.
— E o tipo já vai muito avançado?
— Isso é uma pergunta impossível. Como pode ele saber? Consegue ver qualquer coisa,
clara como água. Mas será que é tudo ou só uma fraçãozinha?
— Não percebo porque não disse mais coisas no artigo. Isto é uma parte importante da
notícia, certo? Já se fizeram progressos.
— O tipo não me deixou. Teve medo de que os tipos da Deep Web retaliassem. Alguns
desses sites não querem mesmo ser encontrados. Foi ele que me falou do Merchenko. Um
projeto que é um hobby torna-o um alvo fácil. Não faz parte de uma equipa. É só um tipo. E,
segundo os senhores, tinha razões para estar assustado. Na altura, eu não tinha a certeza. Podia
ser só exagero. Estes tipos vivem num mundo só deles.
— Precisamos de nos encontrar com esse tipo — afirmou Reacher.
— Não vai ser fácil.
— Neste momento, só temos rumores em segunda mão. Mas o consenso parece ir no
sentido de que o Michael McCann recorreu à Deep Web e de que o Michael McCann saiu de
um comboio num sítio chamado Mother’s Rest. Precisamos de saber se uma coisa levou à
outra. Será que ele saiu do comboio por causa da Internet ou já ia sair à mesma?
— Acham que andam a atrair pessoas para Mother’s Rest por meio da Deep Web?
— Vimos duas pessoas a chegar de comboio. Passaram a noite no motel e, na manhã
seguinte, um Cadillac branco veio buscá-las.
— Nem sequer há rede de telemóvel lá. Aquilo não pode ser uma espécie de concentrador
de Internet — interveio Chang.
Westwood deteve-se por um instante e, a seguir, disse:
— É melhor irmos para um sítio mais privado.

A cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest, o homem das calças de ganga
engomadas e do brushing no cabelo estava a andar de um lado para o outro. À espera de que o
telefone tocasse. A tentar não se precipitar. Da última vez que tinha ligado antes de tempo,
tinham-no feito sentir-se insignificante. Deixa-nos fazer aquilo que sabemos, está bem? Não é
que o tivessem feito. Ainda.
Não conseguiu aguentar.
Levantou o auscultador.
E marcou o número.
Ninguém atendeu.

Westwood já tinha ligado para fazer a reserva e, por não saber, tinha pedido um quarto
para Reacher e outro para Chang. Quando se apercebeu do engano, não ficou constrangido
nem preocupado com o gasto excessivo. Limitou-se a escolher o quarto com a ligação wi-fi
mais forte e a fazer dele um escritório. Tirou o computador metalizado do saco e pô-lo em
cima de uma secretária. Reacher e Chang sentaram-se na cama.
E Westwood disse:
— Já me tinham falado em Mother’s Rest. Logo no início de tudo. E tinham razão. Um
editor de Ciência inteligente tentaria antecipar-se. E foi o que eu fiz. É uma estação de recolha e
distribuição de cereais e um entreposto comercial. Já tínhamos alguns dados técnicos nos
nossos registos. Mas um bom jornalista gosta de ter duas fontes. Por isso, fui ao Google Earth e
lá estava ela, ali mesmo, nas fotografias tiradas por satélite. Precisamente onde devia estar. E
parece exatamente uma estação de recolha e distribuição de cereais e um entreposto comercial.
Só que fica literalmente no meio de nenhures. É como se o distrito de Los Angeles tivesse uma
passagem de nível e depois mais nada. Uma coisa fascinante. Portanto, pus-me a brincar um
bocadinho. Retrocedi o zoom, para perceber quando aparecia outra coisa, só pela piada, e
calhou ver um vizinho a cerca de trinta quilómetros para sul. O único vizinho. Ainda mais
isolado. Por isso, como é natural, fiz outro zoom, para me aproximar e dar uma espreitadela.
Virou o computador para a cama.
— E foi isto que vi — anunciou.
E o que viu foi uma luz do dia brilhante, claro, apesar de lá fora estar escuro. As fotografias
tiradas por satélite não eram em tempo real. Nem necessariamente atualizadas. As coisas
podem mudar. Ou não. Reacher imaginou que o que aparecia ali no ecrã já não mudava há
vários anos. Estava a ver uma quinta, cercada por uma imensidão de trigo. A quinta tinha uma
habitação e uma série de anexos. Tanto quanto se podia perceber, vendo aquilo na vertical, de
cima para baixo, e com bastantes sombras, tinha tudo um aspeto sólido e organizado. O sítio
era mais ou menos autossuficiente. Havia porcos, galinhas e hortas. Havia o que parecia ser um
edifício para um gerador de eletricidade. A casa propriamente dita parecia robusta. Tinha um
espaço onde os carros podiam estacionar, numa ponta, e, na outra, quatro antenas parabólicas.
E o que dava a ideia de ser um poço. E uma linha telefónica.
— Lembrei-me das parabólicas mais tarde. Para que servem? — disse Westwood.
— Para ver televisão — retorquiu Reacher.
— Duas, sim. As outras duas estão a olhar para outras coisas.
— Para canais estrangeiros.
— Ou, se calhar, para a Internet via satélite. Com a banda larga toda que quiserem pagar.
Rapidíssima. Com segurança reforçada. E eletricidade própria. E isso já seria um autêntico
concentrador de Internet.
— E não dá para perceber pela posição das parabólicas?
— Precisaríamos de saber em que dia e a que horas a Google carregou a foto. Para
percebermos o ângulo das sombras.
— Então precisamos de ver isso de dentro. Precisamos do motor de busca. Se estão a
comunicar dali, precisamos de saber o que estão a dizer.
— A única coisa que posso fazer é perguntar.
— Diga-lhe que o Merchenko está morto. Diga-lhe que foi você que mandou despachar o
tipo, um serviço prestado aos criadores de software do mundo inteiro. Diga-lhe que ele lhe deve
um favor.
Westwood ficou calado.
Reacher olhou outra vez para o ecrã.
— Onde é mesmo este sítio? — perguntou.
Westwood respondeu «A cerca de trinta quilómetros para sul de Mother’s Rest» e inclinou-
se por trás do computador para digitar e fazer mais qualquer coisa com os dedos, uma espécie
de beliscão, fazendo a quinta diminuir e o trigo aumentar e pretendendo com certeza
prosseguir até Mother’s Rest propriamente dita surgir no ecrã, mais acima, para mostrar assim
a distância geográfica entre ambos os pontos. Mas, antes de isso acontecer, a imagem foi
cortada, no canto inferior, por uma linha reta, e Reacher perguntou:
— Que é isso?
— A linha férrea — respondeu Westwood.
— Mostre-ma.
Foi então que Westwood saiu de trás do computador e fez os devidos ajustes no ecrã. A
quinta e a linha férrea, centradas e com as proporções corretas. A pouco mais de um
quilómetro uma da outra. Em segundo plano, para os olhos da maioria das pessoas.
— Lembro-me dessa quinta. Quando vim de comboio. Já não se via uma habitação humana
há várias horas. Foi mais ou menos trinta quilómetros antes de o comboio chegar finalmente a
Mother’s Rest. Estava uma máquina a trabalhar, com luzes. Talvez um trator. À meia-noite —
disse Reacher.
— E isso é normal?
— Não faço ideia.
E Chang acrescentou:
— Calculámos que o Cadillac tivesse feito mais ou menos trinta quilómetros. Lembras-te?
Trinta quilómetros num sentido e outros tantos no outro. E agora já sabemos para onde ia.
Não há mais nenhum sítio para onde pudesse ir, a trinta quilómetros de Mother’s Rest.
Portanto, foi para aí que os tipos do comboio foram. O homem e a mulher, com a respetiva
bagagem. Mas para onde foram depois?
Ninguém respondeu.
— Os agricultores utilizam a Deep Web? — perguntou Westwood.
— Alguém utiliza — respondeu Reacher. — Precisamos do motor de busca.
— O tipo recebe pelo tempo despendido.
— Ninguém gosta de trabalhar de borla. É uma coisa que eu aprendi.
— E não vem cá. Nós é que vamos ter de ir a São Francisco.
— Como se ainda estivéssemos em 1967.
— O quê?
— Nada — retorquiu Reacher.
Passados dez minutos, já estava sozinho com Chang, no quarto com a ligação wi-fi mais
fraca.
QUARENTA E QUATRO

Na manhã seguinte, acordaram cedo, com cortinados por correr e a cabeça ocupada com
pensamentos, tal como na véspera, em Chicago, meras vinte e quatro horas antes. Reacher
estava a rever de novo a teoria dele, fascinado com a evolução. Estava para lá das expetativas.
Talvez até para lá da compreensão. Ao passo que Chang se encontrava absorta com a ideia de
sair de Phoenix. Estava a ver a programação televisiva matinal de uma emissora filial de
Phoenix, que tinha descartado receitas e moda a favor de questões criminais. Um apresentador
estava a dar a notícia de que uma suposta figura do crime organizado tinha sido abatida a tiro
nas traseiras de um clube de strip na Baixa, o que implicou bastante especulação ofegante a
acompanhar imagens sem sentido, maioritariamente do portão fechado na vedação cor-de-
rosa, sobre um rodapé onde se lia Moscovo Chega a Phoenix, que Reacher achou que iria irritar
os ucranianos do mundo inteiro, visto que estavam a falar de dois países completamente
diferentes, e orgulhosos disso mesmo, pelo menos, num dos casos.
O outro apresentador relatou a notícia mais importante. Já não era invasão domiciliária
acabou em tragédia esta noite porque o «esta noite» já era «ontem» e a tragédia tinha-se
transformado em algo inspirador. Aparentemente, um respeitado médico de Phoenix,
residente na morada em causa, tinha-se servido de uma arma para defesa doméstica e matado
três intrusos, salvando assim a família de um destino pior do que a morte. A câmara apanhou
Evan Lair, ao longe, no limite de um zoom instável, gesticulando e recusando-se a responder às
perguntas. A relutância em falar foi apelidada de modéstia resoluta e de outros tempos. A lenda
dele estava a crescer. Já ia a meio caminho de se tornar o médico durão, perceção que surgia
reforçada pelas imagens em vídeo, granulosas e noturnas, de macas a saírem-lhe de casa,
banhadas por uma luz vermelha intermitente. Ao longe, viam-se também Emily, que tinha
trocado a camisa e o biquíni por calças de ganga e uma camisola, e Lydia, que estava a olhar
para o chão.
Foi então que um terceiro apresentador, uma mulher, interrompeu para noticiar que a
polícia informava que os dois acontecimentos poderiam estar relacionados, já que os três
mortos da casa eram conhecidos associados do morto do clube de strip. E um quarto
apresentador, outra mulher, interveio para anunciar que as informações iniciais do gabinete do
advogado do Ministério Público apontavam para que as mortes na casa fossem provavelmente
consideradas justificadas e iam no sentido de, no que dizia respeito ao incidente no clube de
strip, a arma do crime ter sido recuperada de um contentor do lixo nas imediações, mas não
haver impressões digitais nem, por conseguinte, suspeitos até ao momento, sendo que a
investigação iria prosseguir.
A seguir, dez coisas para fazer com frango.
— Estás bem? — perguntou Chang.
— Nas nuvens. Tirando ainda me doer a cabeça — respondeu Reacher.
— Nenhuma reação?
— A quê?
Ela apontou para a televisão.
— Àquilo tudo.
— Ainda tenho os ouvidos a zumbir um bocadinho.
— Não estou a falar disso.
— Deixo as pessoas em paz, se me deixarem em paz. O risco é delas e não meu.
— Não estás incomodado?
— Tu estás?
— Como era a máquina que viste na quinta à meia-noite?
— Era um pontinho ao longe. Tinha uma barra com luzes. Como uma grelha metálica
frontal, mas por cima da cabina. Quatro luzes retangulares, muito fortes. Podia ser uma
carrinha de caixa aberta toda quitada. Mas o mais provável era ser um trator. E estava a dar o
máximo. Via-se o fumo do tubo de escape nas luzes.
— E achas que podia ser uma retroescavadora?
— Porquê?
— Foi nesse dia que o Keever desapareceu.
— Podia ser uma retroescavadora — admitiu Reacher.
— É por isso que não estou incomodada. Podia ter sido eu, se as coisas tivessem sido
diferentes. Imagina que o Michael tinha desaparecido em Seattle. O McCann tinha-me
telefonado a mim e depois, mais tarde, podia ter ligado eu ao Keever a pedir apoio. E agora
podias estar tu a andar com ele à minha procura.
— Deus nos livre!
— Podia ter acontecido.
— Tu tinhas resolvido a coisa melhor.
— O Keever era um tipo esperto.
— Era?
— Acho que tenho de encarar os factos.
— Era esperto, mas não era suficientemente esperto. Cometeu um erro. E tu podias tê-lo
evitado.
— Que erro?
— Se calhar, o mesmo erro que eu estou prestes a cometer. Subestimou-os. Se o enterraram
na quinta com a retroescavadora, então o Merchenko não teve nada que ver com isso. Nessa
fase, ainda não. Foi tudo obra deles. Não precisaram de ajuda. Se calhar, são melhores do que
julgávamos.
— Não pareciam.
— Esperar pelo melhor e prepararmo-nos para o pior.

Nessa manhã, oito homens reuniram-se ao balcão do armazém de Mother’s Rest. Mais uma
vez, o dono já lá estava, ainda com as duas camisas e ainda com o cabelo sujo e a barba por
fazer. E, mais uma vez, o primeiro a juntar-se a ele foi o tipo das peças sobresselentes da loja de
irrigação, ao qual se seguiram o condutor do Cadillac, da loja da FedEx, o gerente zarolho do
motel, o criador de porcos, o homem que trabalhava ao balcão no restaurante e o Moynahan
que tinha levado um pontapé nos tomates e ficado sem a pistola.
O oitavo homem chegou passados cinco minutos, com as calças de ganga engomadas e o
brushing no cabelo. Os primeiros sete tipos não disseram nada. Ficaram à espera de que ele
falasse.
— As notícias não são boas. A nossa fé revelou-se infundada. O sistema do menu não
funcionou conforme esperado. Não nos tratou daquilo que precisávamos. Doravante, estamos
por nossa conta — disse ele.
Os primeiros sete começaram a mexer-se, inquietos. Ainda não preocupados, mas
indignados. Do género, era tudo ideia dele quando as coisas pareciam bem encaminhadas. E
agora já é «nossa» e «estamos»?
— Foi isso que eu vi hoje de manhã na CNN? Aquilo em Phoenix? O russo? — perguntou o
criador de porcos.
— O tipo era ucraniano. E não foi só ele. Os outros três também lhe pertenciam.
— E o primeiro? Chamava-se Hackett, não era?
— Está no hospital, em Chicago. Com um polícia à porta.
— Então nenhum deles tratou do assunto?
— Foi o que eu lhes disse.
— Sair do nosso círculo foi dar um grande passo.
— Não nos custou nada. A não ser dinheiro. Eles ainda andam por aí, mas sempre andaram
por aí. Foram-se embora e agora vão voltar. E nós vamos tratar deles aqui.
— Vão trazer a polícia.
— Não me parece. Puseram o Hackett no hospital. Quanto a isso, não há dúvidas. E,
provavelmente, também foram eles em Phoenix. O que quer dizer que não podem ir à polícia.
Em qualquer esquadra do país, prendiam-nos logo. Como precaução. Até as coisas se
clarificarem. Eles vêm sozinhos.
Mais inquietação por parte dos primeiros sete.
— E quando é que isso vai ser? — perguntou o condutor do Cadillac.
— Suponho que em breve. Mas conhecemos todos o plano. E sabemos todos que funciona.
Vamos perceber quando estiverem a vir. Vamos estar preparados — respondeu o homem das
calças de ganga e do brushing.

Reacher e Chang desceram para ir tomar o pequeno-almoço com Westwood, que lhes
explicou que tinha telefonado ao tipo de Palo Alto e marcado um encontro para o início da
noite. Em Menlo Park. Embora estivesse à espera de que o tipo se atrasasse. Era uma pessoa
dessas. A seguir, tinha comprado bilhetes de avião do Sky Harbor para o Aeroporto
Internacional de São Francisco. Três lugares em classe executiva, os únicos que restavam. E um
hotel. Só dois quartos, o que era uma ajuda. Todos os anos reduziam o orçamento da secção
dele. Reacher achou que ele tinha o ar nervoso de um jogador em apuros, mas prestes a ganhar
uma grande maquia.
Na altura devida, apanharam um táxi para o aeroporto, onde os bilhetes de luxo lhes deram
direito a entrar numa sala de espera, onde Reacher repetiu o pequeno-almoço, por ser grátis.
Embarcaram no início da fila e beberam um copo antes de o avião arrancar na pista e descolar.
Era melhor do que as filas de trás. Mesmo as de saída.
O voo propriamente dito não foi longo nem curto, mas qualquer coisa a meio caminho.
Não foi um saltinho nem um pulinho, mas também não fizeram grande parte da circunferência
terrestre. Foi menos do que de Nova Iorque a Chicago. A viagem de táxi foi simples, já que o
sítio ficava basicamente fora da cidade, ainda que o Santa Clara Valley já não fosse um local
pacato. Era o centro do mundo, estendendo-se para lá de Mountain View, e as pessoas
conduziam como se o soubessem. O encontro que iriam ter ao início da noite seria num bar
perto de uma livraria, no Menlo Park, e descobriram-no à segunda tentativa. Chegaram cedo,
mas não chegava para ir e vir do hotel, por isso, pagaram e saíram do táxi.
O bar originou um instante de preocupação e de ansiedade psíquica, já que estava
completamente pintado de vermelho e se chamava Red, com a parte mais recôndita e instintiva
do cérebro de Reacher a pôr-se a imaginar ideias descabeladas, tentando perceber se Westwood
seria um polícia ou um dos maus, a atormentá-lo com o fantasma do Pink, como uma coisa
saída de Shakespeare ou de Sherlock Holmes, mas depois acalmou-se e chegou à conclusão de
que teria sido o geniozinho a escolher o sítio, logo, aquela ligação era uma coincidência. E, em
todo o caso, imprecisa. O sítio era irónico, ao contrário de piroso. O vermelho possuía um tom
sombrio de meados do século XX. Género material militar. Havia foices e martelos em estêncil
branco, sujos e artificialmente gastos e raspados para parecerem antigos, cabeçalhos
emoldurados do Pravda e capacetes do Exército Vermelho, todos amolgados e arranhados. O
letreiro, à entrada, estava escrito com um R invertido, para lhe dar um ar russo, o que provocou
um pequeno eco de pânico. Seria uma referência a Merchenko? Não, Westwood sabia com
certeza a diferença entre a Rússia e a Ucrânia. Mas será que havia bares de temática ucraniana,
para um pedante que quisesse atormentar uma pessoa? Ou teria sempre de se contentar com
qualquer coisa russa?
Não, o geniozinho é que tinha escolhido aquilo.
— Estás bem? — perguntou Chang.
— Estou a pensar demasiado. Um mau hábito. Tão mau como nem sequer pensar —
respondeu Reacher.
— Vamos esperar na livraria.
Reacher tropeçou no passeio. Foi só um passo em falso. Não chegou a cair. Foi mais roçar o
pé em algo do que um verdadeiro tropeção. Como se houvesse ali uma lomba ou uma
superfície irregular. Olhou para trás. Talvez. Talvez não.
— Estás bem? — repetiu Chang.
— Ótimo — respondeu Reacher.
Westwood explicou que já tinha estado na livraria. Numa sessão de autógrafos, para uma
antologia em que tinha participado. Jornalismo científico. Um artigo galardoado. A livraria era
um sítio frio, em todos os sentidos, da temperatura refrigerada aos clientes. Westwood
deambulou para um lado e Chang para o outro. Reacher pôs-se a olhar para os livros em cima
das mesas. Costumava ler quando podia, principalmente graças à vasta biblioteca nacional de
livros perdidos e esquecidos. Sobretudo, livros de bolso amachucados, todos engelhados e
encardidos, que encontrava em salas de espera ou autocarros, ou em alpendres de motéis
isolados, já lidos e desfrutados, deixados algures para quem viesse a seguir. Gostava mais de
ficção do que de não ficção, já que a segunda muitas vezes não o era de facto. Como a maioria
das pessoas, tinha a certeza de umas quantas coisas, vistas com os próprios olhos e de perto, e
quando apareciam em livros, não correspondiam à realidade. Por isso, preferia histórias
inventadas, pois toda a gente sabia ao que ia logo à partida. Não tinha pruridos em relação a
géneros. Ou aconteciam merdas ou não aconteciam.
Chang regressou, depois Westwood também, e voltaram sem pressas para o bar,
preparando-se para esperar. Por terem chegado cedo, puderam escolher a mesa, e optaram por
uma para quatro pessoas, junto à janela. Reacher pediu café e os outros, gasosas.
Westwood afirmou:
— Lamento muito, mas não hão de ser boas notícias. Mesmo que o tipo vá na conversa. A
Deep Web não é um sítio atraente, de um modo geral. Pelo menos, foi o que ouvi dizer. Não é
que passe lá tempo. Mas podem não gostar do que vão ver.
— Estamos num país livre. E o Michael era filho do McCann, não era meu. Não me
interessa no que ele andava metido — ripostou Reacher.
O ponteiro dos minutos do relógio de parede em cirílico saltou para as doze, hora certa, e a
vodka baixou para metade do preço. Happy hour. A primeira nova pessoa a entrar no bar foi
uma rapariga de vinte e tal anos, corada, sem dúvida com pouca experiência no que estava a
fazer, mas boa nisso.
A segunda pessoa a entrar foi o tipo de Palo Alto.
Em ponto. Nem um minuto atrasado. Era pequeno, branco como um lençol e magro como
um espetro, sempre em movimento, mesmo quando estava parado. O veterano de vinte e nove
anos. Estava vestido todo de preto. Viu Westwood e aproximou-se da mesa. Dirigiu um
cumprimento com a cabeça três vezes e sentou-se. Disse:
— No Valley, gostam de ironia, mas há que reconhecer que uma happy hour num santuário
soviético é o maior paradoxo de todos. E, por falar na ex-URSS, constou-me, pelos alertas que
recebo de blogues, que um ucraniano chamado Merchenko foi morto ontem à noite por
mafiosos. O que é uma feliz coincidência. Mas vão substituí-lo. O mercado vai preencher esse
vazio. Portanto, vou continuar sem dar a cara.
Westwood respondeu:
— E nós também. Só daqui a muito tempo, pelo jornal. E, nessa altura, já haverá tanta coisa
para esconder que você nem sequer vai chegar perto do topo da lista. Dou-lhe a minha palavra.
Não vai dar a cara. Só precisamos de uma pesquisa. Privada. Para saber de uma pessoa que
desapareceu e de onde possa estar.
— Uma pesquisa onde?
— Em chats, sobretudo. Talvez em websites comerciais.
— Não quero ser um recurso público.
— Não tenho problemas em não lhe pagar.
— Nesse caso, estaria a fazer a coisa por amizade, o que piora a obrigação.
— E consegue fazer isso? Se quisesse? — perguntou Reacher.
— Ando a fazê-lo desde que aquilo se chamava Undernet. E a rede invisível. Ficou mais
difícil, mas eu também melhorei.
— Pode ser difícil chegar a onde ele está.
— Chegar a um sítio é fácil. Encontrá-lo é que é difícil.
— Então o que era preciso para nos disponibilizar uma hora do seu tempo? Tirando ser
pago?
— E quais são as suas razões, tirando ser pago? Na verdade, será que elas existem para
alguém?
— Por acaso, não me estão a pagar nada.
— Então porque está a fazer isso?
— Porque há um tipo que julga que é muito espertinho.
— Mas você é mais esperto? E tem de o provar?
— Não tenho de o provar. Quero prová-lo. De vez em quando. Por uma questão de
respeito. Pelas pessoas que são realmente espertas. Há que manter os padrões.
— E está a tentar levar-me a concluir o mesmo. Uma batalha de egos. Eu contra eles, como
codificadores. Bem jogado. Conhece-me bem, apesar de ainda agora nos termos visto pela
primeira vez. Mas já estou noutro nível. E sinto-me lindamente lá. Sou melhor do que eles. E
sei-o. Com toda a certeza. Já não tenho necessidade de o demonstrar. Nem sequer de vez em
quando. Nem sequer por uma questão de respeito. Não é que não respeite a sua opinião. O
meu eu antigo teria concordado consigo.
— E o seu eu novo concordaria com quê?
— Fale-me da pessoa que desapareceu. É interessante?
— Um homem de trinta e cinco anos, que sofre de uma coisa a que os médicos chamam
anedonia. A tia diz que o contador de felicidade dele não consegue sair do zero. Fora isso, um
QI normal. Funcional em determinadas alturas.
— Vivia sozinho?
Reacher assentiu.
— Alojamento para pessoas com deficiência.
— Desapareceu?
— Sim.
— E conheceu de repente um amigo antes de desaparecer?
— Sim.
— Trinta e dois segundos — atirou o tipo.
— Para quê?
— Encontro-o na Deep Web em trinta e dois segundos. Sei onde procurar.
— E quando pode fazer isso?
— Fale-me da tia.
— Casou com um tipo rico. Médico. Tem uma filha linda. Mas continua a adorar o
sobrinho. E parece compreendê-lo.
— Gosto da imagem que ela deu, do contador de felicidade.
— Chegámos à conclusão de que a minha escala ia de quatro a nove.
— Já ultrapassei isso. Cheguei ao dez. E nunca de lá saio.
— Isso é do ecstasy.
— Do quê?
— Li no jornal.
— Há dois anos que não tomo ecstasy.
— Agora é outra coisa?
— Agora é tudo o resto. Ando um bocado stressado.
— Mas não se esqueça de que a velocidade a mais pode matar. Pelo menos, era o que nos
diziam antigamente.
— Não vou dar a cara. Percebe o que isso quer dizer?
Reacher assentiu.
— Não vai haver julgamento.
— O Merchenko foi você?
— Não devemos admitir nada, nem sequer às portas da morte. Pode ser que recuperemos
subitamente.
— É só uma noite — afirmou o tipo. — Nada de voltarem para ver como estão as coisas.
Preciso do meu espaço.
— E quando pode fazer isso?
— Agora, se quiserem.
— Onde?
— Em minha casa. Estão todos convidados.
QUARENTA E CINCO

O tipo de Palo Alto tinha uma coisa no telemóvel que chamava carros numa questão de
minutos. Entrarem os quatro num foi considerado desapropriado, por isso, o tipo carregou
duas vezes e pediu dois. Foi com Westwood, para porem a conversa em dia. Reacher e Chang
seguiram-nos noutro carro com motorista. Tinha uma casa tipo caixote da década de 1950,
remodelada na de 1970 para lhe dar um aspeto à anos 1930. Pelas contas de Reacher, teria uma
camada tripla de autenticidade irónica muito própria que, por isso mesmo, valeria muito mais
do que todo o dinheiro que ele já tivesse ganho na vida.
Lá dentro, estava limpa e era toda em tons prateados e pretos. Reacher contava dar com
uma autêntica salgalhada de equipamento informático, como tinham visto no apartamento de
McCann, em Chicago, mas a saleta tinha apenas uma pequena mesa de vidro e um único
computador de secretária de marca branca. Havia uma torre, um ecrã, um teclado e um rato
trackball, cada qual oriundo do seu sítio. E só havia cinco cabos, exatamente do tamanho certo,
nenhum emaranhado e todos dispostos de forma ordenada.
O tipo explicou:
— Fui eu que construí isto. Há diversas barreiras técnicas e algumas incompatibilidades de
dados importantes a ultrapassar. É como visitar um país estrangeiro. É preciso aprender a
língua. E, acima de tudo, os hábitos. Escrevi um software para browser. Com base no Tor, que é
o que eles usam todos. E que, ironicamente, foi escrito pelo Laboratório de Investigação Naval
dos Estados Unidos. Para providenciar um porto seguro para os dissidentes políticos e
informadores de todo o mundo. O que corresponde, chapadinho, à lei das consequências
indesejadas a lixar o mundo à grande. Tor quer dizer The Onion Router1, porque é disso que
estamos a falar. Camadas, mais camadas e camadas, como as camadas de uma cebola na Deep
Web propriamente dita e dentro de todos os sites individuais que fazem parte dela.
Sentou-se e ligou a máquina. Não apareceram coisas supercomplexas no ecrã. Imagens do
espaço intergalático ou ícones. Apenas pequenas linhas escritas a verde num campo a negro.
Direto ao assunto, como no balcão de check-in de uma companhia aérea ou de um rent-a-car.
— Como se chama a pessoa que desapareceu? — perguntou o tipo.
— Michael McCann — respondeu Chang.
— Número da Segurança Social?
— Não sei.
— Morada?
— Não sei.
— Isso não é bom — disse o tipo. — Há passos preliminares que têm de ser dados. Preciso
daquilo a que chamo «impressão digital da Internet». É um algoritmo que eu escrevi. Um
pouco disto e daquilo. O mínimo necessário exato para sermos concretos. Bastante elegante, no
fundo. Podemos começar com uma coisa tão simples como a conta da televisão por cabo dele.
Mas há outras maneiras. Sabemos quem é o parente mais próximo?
— O pai, Peter McCann. A mãe já morreu há muito tempo.
— E temos uma morada para o Peter McCann?
Chang disse-lhe. A banal casa de arenito castanho-avermelhado, na rua banal. Lincoln
Park, Chicago. Apartamento 32. O tipo teclou um comando e surgiu o que parecia ser um
portal de acesso ao sistema informático da Segurança Social. Uma coisa a sério, governamental.
Reacher olhou de relance para Chang e esta assentiu, como se quisesse dizer Não há problema,
também tenho isso. O tipo introduziu os dados de Peter McCann e descobriu o número dele da
Segurança Social automaticamente, o que, por seu turno, levou automaticamente ao de
Michael, já que estavam indicados como beneficiários sobreviventes um do outro. Os parentes
mais próximos. O número da Segurança Social de Michael levou à morada dele, que também
era em Lincoln Park, Chicago.
A seguir, o tipo saiu da Segurança Social e entrou noutra base de dados complexa qualquer.
Introduziu o número da Segurança Social de Michael McCann e a morada e o ecrã mostrou
uma longa lista de códigos alfanuméricos. As impressões digitais da Internet. Michael McCann
e mais ninguém.
O tipo teclou um novo comando e surgiu no ecrã uma página de título, formatada
toscamente com linhas simples escritas a verde sob um fundo preto, mas com tabelas ASCII,
espaçamento e centradas, o que a fazia lembrar vagamente um produto comercial. Ou um
protótipo. O que era, pensou Reacher. De certa maneira. Potencialmente. Parecia
suficientemente convidativo. Como esmeraldas brilhantes em veludo. O nome mais
preeminente na página era Batiscafo.
— Percebem? — perguntou o tipo.
— Um submarino — respondeu Chang. — Capaz de ir até ao leito do oceano.
— Inicialmente, chamei-lhe Nemo. Em homenagem à personagem das Vinte Mil Léguas
Submarinas. É o capitão de um submarino chamado Nautilus. Gostei dele porque, em latim,
nemo quer dizer ninguém. Mas depois fizeram um filme sobre um peixe. E estragaram tudo.
Teclou outro comando e apareceu uma caixa de pesquisa.
— Okay, liguem os motores. A aposta são trinta e dois segundos — disse ele.
Fez copy-paste de uma data de coisas para a caixa de pesquisa. Não o nome de Michael
McCann, mas alguns dos longos códigos alfanuméricos da base de dados anterior. As
impressões digitais. Melhor do que um nome, presumivelmente.
Clicou na tecla tab e um relógio começou a contar na cabeça de Reacher.
Cinco segundos.
— Um dia, isto vai ser muito mais rápido. Uma pesquisa indefinida funciona bem, mas
uma pesquisa por página está ligada à função localizar e substituir de um velho processador de
texto — explicou o tipo.
Doze segundos.
Ele continuou:
— Mas não fiquem com a impressão errada, por favor. Em termos absolutos, é mais do que
rápido. Mas a Deep Web é muito grande. A questão é essa. E eu não tenho as vantagens do
Google. Não tenho ninguém a pedinchar a minha atenção. Querem precisamente o contrário.
Mas eu estou lá em baixo. Neste preciso momento. No meio deles. Não me conseguem ver, mas
eu consigo vê-los.
Vinte e cinco segundos.
Ficou calado.
E, a seguir, a pesquisa chegou ao fim.
O ecrã mudou para uma lista de links.
— Encontrámo-lo — disse o tipo. — Vinte e seis segundos. Bem abaixo dos trinta e dois
prometidos.
— Muito bem — soltou Reacher.
— Arrisquei. Encurtei distâncias. Sabia onde o poderia encontrar.
— Que era onde?
— Espero que o senhor Westwood lhes tenha falado de mim. Às vezes, escolhem-nos as
tocas por onde nos enfiamos. E não é necessariamente por mérito.
— A resolução e não o problema — afirmou Reacher.
— Tecnicamente, pesquisar a Deep Web é elegante, mas estar lá dentro pode ser
desagradável. Há um pouquinho de tudo, mas, em última análise, é como um banco com três
pernas. Um terço corresponde a um vasto mercado criminoso, onde se encontra de tudo à
venda, do nosso número do cartão de crédito a homicídios. Há sites de leilões onde os
assassinos disputam serviços. Vence quem o fizer por menos dinheiro. Há outros sites em que
podemos especificar como queremos que a nossa mulher morra e há prestadores de serviços
que nos dão preços à medida.
— E onde encontrou o Michael McCann? — perguntou Chang.
— A segunda perna da Deep Web tem que ver com pornografia extrema. De dar a volta ao
estômago, até para mim, que não sou propriamente uma pessoa de gostos corriqueiros.
— E era nisso que ele andava metido?
— Não, encontrei-o na terceira perna.
— Que é o quê?
— Não foi difícil adivinhar. Por causa da anedonia. Por causa do contador de felicidade que
não consegue sair do zero. A terceira perna da Deep Web tem que ver com o suicídio.

O tipo de Palo Alto explicou:


— De vez em quando, dou uma vista de olhos a esses chats. Como antropólogo, espero, e
não como voyeur. Não como um espectador num jardim zoológico. E imagino que o Michael
McCann se encontrasse nos casos típicos mais negros. Nasceu deprimido e se a mãe já morreu
há muito tempo, então morreu quando ele era pequeno. Não é uma boa combinação. De
certeza que ele queria que terminasse tudo. Todos os dias. Não podemos imaginar o grau de
certeza que estas pessoas têm. Não estamos a falar de altos e baixos temporários. São pessoas
que detestam a vida que têm, profunda e sinceramente, e que querem que ela acabe. Querem
apanhar o autocarro. É a expressão que elas usam. Querem apanhar o autocarro e sair da
cidade. Mas isso é um grande passo. Há chats que dão apoio. Por isso é que perguntei pelo
novo amigo repentino. Chamam-lhes «parceiros de suicídio». Fazem isso juntos. Dão as mãos e
atiram-se, por assim dizer. Os chats põem-nos em contacto. Fala-se muito de compatibilidades.
O parceiro do Michael também desapareceu?
— Não sabemos. Nem sequer sabemos se era um homem ou uma mulher. Achamos que foi
perto de Tulsa, no Oklahoma — respondeu Chang.
— E de que falam os outros chats? — perguntou Westwood.
— Discutem como se faz. Interminavelmente. É a grande questão deles. Há imensa
informação por aí. Discutem-na como se fossem as escrituras. A melhor maneira é com um
tiro de caçadeira na cabeça. Uma coisa automática, pelo que se sabe, e noventa e nove por cento
eficaz. Se for com uma pistola na boca, já é só noventa e sete por cento. Se for com uma
caçadeira no peito, noventa e seis, e, com uma pistola, uns oitenta e nove. Que é mais ou menos
igual a enforcarmo-nos. Incendiarmo-nos dá uns setenta e seis. E incendiarmos a nossa casa,
uns setenta e três. No fundo, ninguém quer baixar disso. Já saltar para a frente de um comboio
está lá para cima, nos noventa e seis, ou noventa e três, se for de um telhado, e ir contra os
suportes de uma ponte equivale a uns setenta e oito. Mas não nos podemos esquecer de apertar
o cinto de segurança. Senão, podemos ser projetados e safar-nos. Condutores que não tenham
nada a prendê-los chegam à volta dos setenta. É preciso estar lá quando o motor entra pelo
tabliê dentro. E, por último, mas não menos importante, eternamente popular e mesmo lá no
topo, só atrás da caçadeira, temos o cianeto. Mais do que noventa e sete por cento eficaz, em
cerca de dois minutos. Mas são dois minutos de sofrimento atroz. E o problema é mesmo esse.
As melhores maneiras são todas violentas. Há gente que não é capaz de aguentar isso. Homens
e mulheres. E há gente limitada pelas circunstâncias. Se vivemos na cidade, não temos, lá nos
fundos do celeiro, a pistola que o nosso tio costumava usar para dar cabo de pragas. E se não
nos conseguimos arrastar até à casa de banho, como nos conseguimos arrastar até à linha
férrea?
— Então que fazem eles?
— Falam sem parar. Do santo graal. Uma maneira rápida e indolor. Como adormecer e
nunca mais voltar a acordar. É disso que andam à procura. Já o tiveram. Ou os pais. Um frasco
de comprimidos para dormir e um copo de uísque. Ou uma mangueira enfiada pela janela do
Buick da família. Adormecemos e nunca mais voltamos a acordar. Garantidamente. Mas,
agora, já não. O Buick da família já vem com um conversor catalítico. Já não há monóxido de
carbono. Pelo menos, suficiente. Ficamos com uma dor de cabeça e com a pele irritada. O
uísque é o mesmo de sempre, mas os comprimidos para dormir, não. Agora, já são seguros.
Podemos tomá-los todos de uma vez que passamos um dia e meio a dormir, mas não
acordamos mortos. A vida, na América, passou a ser muito protegida. O que provoca um
problema a esta gente. Foi o que os levou à Deep Web logo para começar. O estigma, claro,
mas, sobretudo, as soluções para os problemas deles terem começado a parecer zonas
cinzentas. No mundo à superfície, haveria questões de indemnização, de responsabilidade
social e o resto dessas coisas todas dos advogados. Do género, agora que o nosso Buick já não
serve para isso, a nova fonte preferida de monóxido de carbono são as grelhazinhas hibachi que
se compram no supermercado. Um recipiente de papel de alumínio com carvão e uma grelha
metálica, tudo em celofane e pronto a utilizar. Pomos seis ou oito no quarto, lá bem no alto das
prateleiras, acendemos tudo, o monóxido começa a sair, como líquido, mais pesado do que o
ar, começa a formar uma poça no chão, sobe até à cama e leva-nos desta para melhor. De
maneira rápida e indolor. Como adormecer e nunca mais voltar a acordar. O santo graal. Só
que, provavelmente, uma dessas grelhas também incendeia a parede, com o prédio a ir abaixo e
a pessoa que tiver sugerido esse método a apanhar com quinhentos processos.
— E que outras leis é que eles estão a violar? — perguntou Chang.
— Voltamos à questão daquilo que conseguem aguentar. Mesmo a mangueira enfiada pela
janela era demasiado dura para alguns. A garagem está fria, estamos pouco confortáveis no
carro e a coisa toda parece esquisita. Embora o monóxido de carbono deixe um cadáver com
boa cara. Vermelho-cereja. Com um aspeto saudável. Facilita muito o trabalho do agente
funerário. Mas há gente que prefere morrer em casa. Dentro do próprio edifício. O santo graal
é na cama. Portanto, a coisa nova que apareceu a seguir foi um gás diferente. Mais um facto
médico interessante. Posso fazer-lhe uma pergunta? Se tiver de conter a respiração durante
demasiado tempo, o que faz com que fique desesperada por respirar outra vez?
— Calculo que seja estar a ficar sem oxigénio.
— Mas isso é que é interessante. Não é a ausência de oxigénio. É a presença de dióxido de
carbono. É mais ou menos a mesma coisa, mas não exatamente. A questão é que podíamos
sugar qualquer tipo de gás, desde que não fosse dióxido de carbono, que o nosso cérebro ficaria
contente. Podíamos ter o peito cheio de nitrogénio, sem nenhum oxigénio, prestes a cair para o
lado, que os nossos pulmões diriam, ei, meu, está tudo fino, não há dióxido de carbono por
aqui, só precisamos de recomeçar a bombear quando o virmos. Coisa que nunca vai acontecer,
já que nunca mais vamos voltar a respirar. Porque nunca mais vamos precisar. Por não termos
dióxido de carbono. E por aí fora. Portanto, essa gente começou a snifar nitrogénio, mas, para
isso, é preciso ir ao soldador e os cilindros são pesados para se estar a carregar, por isso, a
seguir, começaram a experimentar o hélio das lojas de balões, mas eram necessários tubos e
máscaras, além de que aquilo tudo continuava a parecer esquisito, pelo que a maioria das
pessoas acaba por se contentar com o frasco de comprimidos e o copo de uísque, à moda
antiga. Precisamente como era dantes. Só que já não pode ser como era. O mais certo era que
esses comprimidos fossem de Nembutal ou de Seconal, substâncias que, hoje em dia, estão
extremamente controladas. Não há forma de as arranjar. A não ser ilegalmente, claro, lá bem
no fundo, onde ninguém nos consegue ver. Há fontes. O santo graal. Como é natural, quase
todas as ofertas são burlas. Nembutal em pó vindo da China e por aí fora. Dissolver em água ou
sumo de fruta. Talvez uns oitocentos ou novecentos dólares por uma dose fatal. Uma pobre
alminha desesperada leva o dinheiro à MoneyGram e envia-o, e depois fica à espera em casa,
ansiosa e atormentada, sem nunca chegar a ver o Nembutal em pó da China porque não havia
nenhum para começar. O pó da fotografia na Net é pó talco e o frasco com a receita era para
outra coisa qualquer completamente diferente. O que eu acabei por achar que era descer o mais
baixo possível. Estão a aproveitar-se das últimas esperanças de suicidas.
— Mas deu a entender que também há ofertas honestas. Falou em quase todas e não em
todas — disse Reacher.
— O Seconal desapareceu por completo. O Nembutal é a última hipótese. Sozinho, agora é
o santo graal. Nos Estados Unidos, o Nembutal só é legal para a eutanásia de animais grandes.
Às vezes, roubam-no, e também há veterinários desonestos. E porque não? Uma dose fatal para
um humano seriam dois frasquinhos. Fácil de enviar. A FedEx tratava disso. Novecentos
dólares por uma coisa que acaba esparrinhada no chão quando se mata uma mula. Quem ia
recusar isso?
Viu casas que continuavam habitadas e casas convertidas em lojas, de comerciantes de
sementes, vendedores de fertilizantes e um veterinário para animais grandes.
— Mostre-nos ao certo onde o Michael McCann andava a escrever posts. Queremos ler o
que ele disse — atirou Reacher.

1 Literalmente, O Roteador Cebola. (N. do T.)


QUARENTA E SEIS

Puxaram umas cadeiras para perto da mesa de vidro e juntaram-se todos à volta do ecrã
para lerem. Michael McCann era membro de dois chats de suicídio. Em ambos os casos,
escrevia posts utilizando Mike como nome. Escrevia de forma seca e trabalhosa, como se
estivesse entorpecido, como se estivesse exausto dos fardos que carregava. A ortografia era boa
e a gramática, formal. Não de forma natural, pensou Reacher, mas como se lhe tivessem dito
que havia uma maneira especial de o fazer, em pleno domínio público. Como quando se
discursava em público. Punha-se uma camisa e uma gravata.
O primeiro chat era o que punha as pessoas em contacto. Michael andava à procura de um
companheiro solidário. Não é que precisasse de ajuda. Pelo menos, sempre. Era mais uma
questão de achar que poderia ser ele a dá-la. Pelo menos, algumas vezes. Ao longo de vários
meses, conversou com dois candidatos e, a seguir, pareceu decidir-se por um terceiro, que dava
pelo nome de Exit. Começaram a trocar mensagens com frequência.
Entretanto, o segundo chat era o do como se faz, que, por vezes, se dispersava por outras
discussões. Michael contribuía de vez em quando, com palavras ponderadas e nunca com
fúrias ou precipitações. Defendia o direito que tinha de apanhar o autocarro. Apareceu num
thread que explicava como tomar Nembutal. Estava desejoso de orientação. Dizia-se que a
forma comercial da substância era amarga. O melhor era misturá-la com sumo ou bebê-la com
uísque, que, em todo o caso, aumentava a eficácia. Era sempre prudente tomar primeiro um
antiemético, como um comprimido contra o enjoo. Ninguém queria vomitar e ficar só com
uma dose que não chegava a ser fatal no organismo. Ninguém queria acordar vinte e quatro
horas mais tarde e ter de fazer tudo outra vez.
Michael também comentou num thread sobre a fiabilidade dos fornecedores de Nembutal.
Já tinha sido enganado mais do que uma vez. O mercado era uma selva. Um vigarista só
precisava de um bom website. Ninguém conseguia saber ao certo quem ele era. Dizia-se que
havia um tipo de confiança na Tailândia. E foi então que alguém escreveu que MR tinha feito
um serviço cinco estrelas, exatamente conforme prometido, o produto autêntico, com os testes
a comprovarem-no. E outra pessoa reforçou a ideia. MR era boa gente, disse. Uma coisa séria.
Michael perguntou: MR? O primeiro tipo voltou ao chat e respondeu: Mother’s Rest.
A seguir, passado um dia, no chat dos contactos, Michael disse a Exit que tinha ido ver o
website de Mother’s Rest e que achava que Exit também devia dar uma vista de olhos, pois
havia bastantes coisas a discutir, sobretudo no nível cinco.
Não havia mais detalhes.
— O que é o nível cinco? — perguntou Reacher.
E o tipo de Palo Alto respondeu:
— Pensem na cebola. Várias camadas. Cada vez mais profundas. A Web propriamente dita
e todos os sites individuais que fazem parte dela. Por norma, a página de registo corresponde ao
nível dois. E, por norma, o quarto equivale à primeira página de mercadoria. Logo, o mais
provável é o nível cinco ter que ver com a mercadoria especial.
No chat, Exit tinha respondido que o nível cinco era interessante. Mas isso foi bem depois e
não houve mais desenvolvimentos. A mudança de Michael para o Oklahoma sobrepôs-se a
isso. Para casa de Exit, perto de Tulsa. O parceiro de suicídio dele. Para se preparar. Reacher
presumiu que a discussão tivesse sido prosseguida em carne e osso.
— Podemos dar uma olhadela ao website de Mother’s Rest? — perguntou.
— Para isso, precisamos de o encontrar primeiro — respondeu o tipo.
— Já fez uma coisa igual sem problema nenhum. Seis segundos antes do prometido.
— Sabia onde devia procurar. Esta próxima pesquisa vai ser em minutos. Se tivermos sorte.
— Em quantos minutos? Qual é a aposta?
— Vinte — respondeu o tipo.
Escreveu uns comandos e uma série de termos de pesquisa e palavras-chave. Carregou na
tecla tab e o relógio começou a contar na cabeça de Reacher. Toda a gente se afastou da mesa
de vidro, esticando-se e pondo-se à vontade, e se preparou para esperar.
Westwood disse:
— As duzentas mortes podiam ser duzentos compradores de Nembutal. Não sei bem o que
pensar. Quer dizer, de um ponto de vista noticioso. Será um escândalo? É legal em Washington
e no Oregon.
— Não é a mesma coisa — retorquiu o tipo de Palo Alto. — São precisos dois médicos para
autorizar isso. E é preciso termos uns cem anos e uma doença terminal. Estes tipos não iam
cumprir os requisitos. E estão sobretudo lixados com isso.
— Então a coisa passa a ser uma discussão de natureza ética. Respeitamos as escolhas de
uma pessoa, pura e simplesmente, ou sentimo-nos obrigados a julgar os motivos dela?
— Os motivos, não — respondeu Chang. — Isso é demasiado intrusivo. Mas acho que
devíamos avaliar a determinação. Há uma grande diferença entre um pânico de curta duração e
uma necessidade de longo prazo. Se calhar, a determinação comprova os motivos. Se não
desistimos, apesar de todas as dificuldades, é porque deve ser mesmo uma coisa importante
para nós.
— Então talvez o sistema atual seja bom. De certa maneira. E inadvertidamente.
Dificuldades não faltam. Eles estão mesmo a fazer por merecer.
Reacher retorquiu:
— Mas quanto dinheiro andam a ganhar em Mother’s Rest? Duzentos envios de Nembutal,
a novecentos dólares cada, correspondem a menos de duzentos mil. Presumivelmente, ao longo
da vida inteira do projeto. Menos o preço por atacado e os custos de envio. Isso é um hobby. E
não se consegue pagar a tipos como o Merchenko com dinheiro ganho com hobbies. Passa-se
mais qualquer coisa lá. Tem de ser. Porque…
Parou de falar.
— Porque quê? — perguntou Chang.
— Achamos que o tipo foi morto lá.
— Qual tipo?
— O do início. Com a retroescavadora.
— O Keever?
— Isso, o Keever. Porque haviam de matar o Keever por causa de um hobby? Tem de haver
mais qualquer coisa.
— O nível cinco pode ser a mercadoria especial. Pode valer mais.
Reacher deu uma olhadela ao ecrã. A pesquisa ainda estava em curso. Já tinham passado
sete minutos.
— Estou a tentar pensar o que podia ser assim tão especial. Para valer o dinheiro que o
Merchenko custava.
— Têm todos a minha solidariedade — afirmou o tipo de Palo Alto.
Reacher disse:
— E a minha também. Abro uma exceção em relação àquilo de incendiar o prédio com
grelhas hibachi. Mas, fora isso, devíamos deixá-los fazer o que quiserem. Não pediram para
nascer. É como ir devolver uma camisola à loja.
— Só que não devia ser nem muito fácil nem muito difícil. O que, de certa maneira, nos
obriga a nós a definir os padrões. E isso será justo para alguém? — retorquiu Chang.
Westwood afirmou:
— Era precisamente disto que eu tinha receio. É uma discussão de natureza ética. Podia ter
escrito esse artigo no meu escritório. Para ficar de reserva para um mês mais lento. Não
precisava de ter gasto dinheiro em viagens. Vão lixar-me à séria por causa disto.
Passaram doze minutos.
Tomaram umas bebidas, que não foram propriamente servidas mas recolhidas na cozinha.
Que era muito retro. Lembrava vagamente alguns dos sítios de que Reacher se lembrava
quando era miúdo. Aposentos para a família numa dezena de bases pelo mundo inteiro, tempo
diferente do lado de fora da janela e os mesmos armários na cozinha. Havia mães que faziam
questão de os esfregar muito bem com desinfetante, logo na primeira manhã, mas a mãe de
Reacher era francesa e acreditava na imunidade adquirida. Que, de um modo geral, resultava.
Embora o irmão tivesse adoecido uma vez. Mas o mais provável foi ter sido num restaurante.
Começara a sair com raparigas.
— Estás bem? — perguntou Chang.
— Ótimo — respondeu.
Passaram dezoito minutos.
Voltaram para a saleta e o relógio continuou a contar. Dezanove minutos.
— Não combinámos a parada. Para a aposta — disse o tipo de Palo Alto.
— E o que combinámos da primeira vez? — retorquiu Reacher.
— Não combinámos nada.
Passaram vinte minutos.
— Não queremos demorar muito tempo e abusar da hospitalidade dos nossos anfitriões —
disse Reacher.
— O programa vai lá chegar. Sou melhor geniozinho do que eles — respondeu o tipo.
— Qual foi a pesquisa mais longa que já fez?
— Dezanove horas.
— E o que encontrou?
— A agenda do presidente num site de assassinos.
— Dos Estados Unidos?
— O próprio. E quando iniciei a pesquisa a agenda era atual.
— E participou isso?
— Foi um dilema. Não sou um recurso público. E a verdade é que não havia mais
informações disponíveis. Um site que me levou dezanove horas a encontrar iria ter tantos
mirrors e engodos que os servidores bem podiam estar em Vénus ou Marte. Mas os Serviços
Secretos não iriam acreditar na minha palavra. Teriam desfeito as minhas coisas todas para que
os tipos deles pudessem espreitar. E empatar-me-iam durante um ano, com conversas e
consultas. Por isso, não, não participei isso.
— E não aconteceu nada.
— Felizmente.
Vinte e sete minutos.
A pesquisa ainda estava em curso.
E, de repente, parou.
O ecrã mudou para uma lista de links.
QUARENTA E SETE

A lista de links mostrava uma ligação URL direta ao website de Mother’s Rest, e a quatro
subpáginas, e uma referência externa, que o tipo de Palo Alto quis verificar primeiro, pois
achou isso invulgar. Conseguiu recuperar um comentário isolado feito num chat por alguém
chamado Blood. Dizia Ouvi dizer que Mother’s Rest tem boas cenas. Era um chat protegido, que
o tipo não reconheceu. E o contexto não era evidente. Mas não era um chat de suicídio.
Pertencia a outra comunidade qualquer. Um site de entusiastas, ao que parecia.
Não havia mais informações.
Um beco sem saída.
— Vamos diretamente para a nave-mãe. Sem trocadilhos — disse o tipo de Palo Alto.
Não usou o trackball. Não era um software desses. Foi só teclar comandos. O tipo parecia
gostar de fazer as coisas assim. À maneira antiga. Era um veterano. E era rápido. Os dedos cor
de marfim tamborilaram sem parar. Eram quase um borrão.
O ecrã mostrou um website a cores e multifacetado.
Apareceu uma fotografia.
A fotografia era de uma estrada a seguir em linha reta, pelo meio de uma imensidão infinita
de trigo, eternamente, até desaparecer na névoa dourada do horizonte, nessa altura já tão
exígua como uma agulha. Era o antigo caminho para as caravanas. A estrada que saía de
Mother’s Rest, para oeste.
E era uma alegoria, obviamente. No topo da página, estava escrito: Faça a Viagem
Connosco. E, no fundo, surgia: Mother’s Rest. Por fim.
O link para a primeira subpágina correspondia a um texto do género Sobre Nós. Eram uma
comunidade dedicada a providenciar opções para terminar a vida. Prometiam-se solenemente
os melhores produtos, serviços, cuidados e atenções. A confiança era garantida. E a discrição,
um dado adquirido.
O link para a segunda subpágina correspondia à página de registo. Para os membros da
comunidade. Nome do utilizador e senha. Provavelmente, difícil de decifrar. Mas não havia
necessidade disso, já que o terceiro link a ultrapassava por completo e levava diretamente ao
nível quatro.
A primeira página de mercadoria.
Estavam a disponibilizar três artigos. O primeiro era uma solução oral não esterilizada de
Nembutal, num frasco de 50 ml, à venda por 200 dólares. O segundo era uma solução injetável
de Nembutal, num frasco de 100 ml, por 387 dólares. E o terceiro, uma solução oral esterilizada
de Nembutal, num frasco de 100 ml, por 450 dólares. A dose injetável garantidamente fatal era
de 30 ml ou então de 200 ml, por via oral. O tempo até se atingir um sono profundo era
inferior a um minuto e, até à morte, inferior a vinte. Reacher imaginou que a solução injetável
não fosse fácil de vender. Se um tipo gostasse de agulhas, podia ter uma overdose de heroína
por um décimo do preço. Calculou que a solução oral esterilizada fosse o campeão de vendas.
Novecentos dólares por uma saída pacífica. De certa forma, esterilizado dava a ideia de limpo.
O santo graal. Mas a solução não esterilizada ficava mais em conta. Só custava oitocentos
dólares, com o risco de se apanhar uma gastroenterite no dia seguinte a termos morrido.
A entrega custava trinta dólares, com um número para poder seguir a encomenda, e era
obrigatório pagar o valor por inteiro antes do envio pela Western Union ou pela MoneyGram.
Não eram aceites cheques nem vales postais. O Nembutal chegava numa embalagem simples.
Não devia ir para o frigorífico, mas devia ser mantido bem fechado e num sítio fresco e seco.
A seguir, vinha um botão que dizia: Clique Aqui para Encomendar.
— O Reacher tinha razão. Esta página não dá para pagar ao Merchenko — afirmou Chang.
— Devíamos espreitar o nível cinco — disse Westwood.
Demoraram algum tempo a chegar lá. Como uma ligação telefónica costumava ser. Ainda
que Reacher tivesse a certeza de que, nos bastidores, as coisas se estavam a passar à velocidade
da luz. O código do tipo, a combater as defesas do site, um guerreiro contra uma horda,
milhões de fintas e penetrações por segundo, escavando cada vez mais fundo, atravessando as
múltiplas camadas.
A página surgiu.
O amigo de Michael McCann, Exit, dissera que era interessante. E, de facto, era, calculou
Reacher. Dependendo do que uma pessoa precisasse. Disponibilizava um serviço de receção.
Os membros eram convidados a viajar para Mother’s Rest de comboio, de Chicago ou de
Oklahoma City. Na estação, seriam recebidos por um representante e passariam a noite num
motel de luxo. A seguir, seriam transferidos de carro, também luxuoso, para a sede de Mother’s
Rest. Onde teriam direito a um anexo privado, com uma suíte a fazer lembrar um hotel de
luxo, com um quarto com um ambiente repousante. Poderiam pôr-se à vontade e, na altura
escolhida, um assistente fornecer-lhes-ia um copo com Nembutal e depois retirar-se-ia. Ou,
caso fosse preferível, para quem não quisesse engolir um líquido amargo, o assistente
forneceria um comprimido para dormir normal e, a seguir, carregaria num botão. Um velho
Chevy da década de 1970, com motor V-8 de bloco pequeno, começaria a trabalhar lá fora, ao
longe e inaudível, mas com o doce e intenso fumo do tubo de escape ligado ao quarto, e a fazer
suavemente o que tinha a fazer.
Os membros eram convidados a perguntar quanto custaria o serviço.
Seria bastante, pensou Reacher. Visualizou o tipo que tinha saído do comboio, de fato e
camisa formal, com a elegante sacola de couro, e a mulher, do vestido branco próprio para uma
receção ao ar livre, em Monte Carlo. Os dois ricos. E, possivelmente, os dois doentes. Ambos a
caminho de um fim digno. Viu-os mentalmente, pessoas e dias diferentes, mas um ato igual. À
janela empoeirada do quarto 203. Os braços bem abertos e as mãos ainda nos cortinados, a
contemplarem a manhã, como que espantados.
A última manhã deles.
— O Michael e o amigo. Foi isso que eles fizeram? — perguntou Chang.
E Westwood disse:
— Está aqui o meu artigo. Escarrapachado. Vou perguntar se isto será o futuro. É possível,
daqui a cem anos. Caos, sobrepopulação e falta de água. É possível que haja uma coisa destas
em cada esquina. Como o Starbucks. Mas vou ter de ver com os meus próprios olhos. Depois
de já ter gasto o dinheiro nas viagens.
— Se calhar — retorquiu Reacher. — Depois de confirmarmos tudo.
— O que há para confirmar? Sabemos o que lá há. Enviam as encomendas registadas do
Nembutal dos veterinários e recebem os clientes de luxo à saída do comboio. E quem pode
dizer verdadeiramente que qualquer uma dessas coisas não devia ser feita? Eu podia perguntar
se, de certa maneira, a Deep Web não prevê o que virá a seguir. Se calhar, tem mesmo de o
fazer. Afinal de contas, estamos a falar do desejo humano. E nada mais do que isso. Sem filtros
nem condicionantes. Uma coisa orgânica, de certa forma. Neste caso, os direitos para o livro
estão na secção de filosofia. Porque é assim que estas coisas acontecem. Já vimos estas coisas a
acontecer. Daqui a cem anos, isto pode ser normal.
— Mas o Keever não achou que já fosse normal. Podia ter-se limitado a encolher os
ombros. Podia ter mudado de nome para Wittgenstein e não se intrometer no meio do
progresso. Mas viu que havia qualquer coisa errada.
— E o senhor?
— Não tenho a certeza. Mas o Keever tinha.
— Que pode haver de errado?
— Não estou a ver como o Michael e o amigo podiam ter conseguido pagar o tal serviço de
receção. Nem que tivessem poupado a vida inteira. Por isso, onde é que eles estão, raios
partam?
— Já acabámos? — perguntou o tipo de Palo Alto.
— Já e muitíssimo obrigado — respondeu Chang.
— Você é o maior. Anda ali no meio deles. Não o conseguem ver, mas consegue vê-los —
afirmou Reacher.
— Envie-me a fatura — disse Westwood.
O tipo disse «Vou arranjar-lhes um carro» e carregou numa tecla do telemóvel.
Levantaram-se todos. Reacher deu um passo na direção da porta, e depois outro, e, a seguir,
o chão subiu de rompante, à esquerda, num ângulo esquisito de quarenta e cinco graus,
movendo-se obliquamente, com uma força gigantesca e instantânea, e ele pensou tremor de
terra e desequilibrou-se, indo bater com o peito e o pescoço na ombreira da porta, como se
tivesse apanhado com uma pequena viga de madeira, estatelando-se em seguida no chão e
olhando desesperadamente em redor, à procura de Chang e aguardando o que mais pudesse aí
vir.
Não era um tremor de terra.
Endireitou-se.
E todas as outras pessoas se agacharam.
— Estou bem — disse.
— Caíste — retorquiu Chang.
— Se calhar, estava alguma tábua solta.
— As tábuas não têm problema nenhum.
— Se calhar, há alguma deformação na madeira.
— Dói-te a cabeça?
— Dói.
— Vais para as urgências.
— O tanas.
— Esqueceste-te do nome do Keever. Tiveste de dizer o tipo que foi morto com a
retroescavadora. É um exemplo clássico de afasia. Esqueceste-te de uma palavra e andaste às
voltas para poderes dizer o que querias. E isso não é bom. E já tinhas tropeçado perto da
livraria. E estás sempre a divagar. Como se estivesses a sonhar acordado ou a falar sozinho.
— Ai sim?
— Como se estivesse tudo meio aluado aí dentro.
— E como costuma estar?
— Vais para as urgências.
— O tanas. Não preciso.
— Faz isso por mim, Reacher.
— É uma perda de tempo. Devíamos ir logo para o hotel.
— De certeza que tens razão. Mas faz isso por mim.
— Nunca lá fui.
— Há sempre uma primeira vez para tudo. Espero que não seja só para isto.
Reacher ficou calado.
— Meu, vá às urgências — disse o tipo de Palo Alto.
Reacher olhou para Westwood e disse:
— Ajude-me a levantar.
— Urgências — atirou Westwood.
— Diga-lhes que é codificador. E não há tempo de espera. Algumas dessas empresas fazem
grandes doações — acrescentou o tipo de Palo Alto.

Fizeram o que o tipo disse e reivindicaram um estatuto que Reacher não possuía. E não era
previsível que viesse alguma vez a possuir. Em matéria de probabilidades, eram tão baixas
como as de se tornar colchoeiro, criar álbuns de fotografias ou de recortes ou ser tenor num
coro. Mas conseguiu ser atendido passados noventa segundos e, noventa segundos mais tarde,
já estavam a preparar-se para lhe fazerem uma TAC. E ele disse o tanas, não preciso, é uma
perda de tempo, mas Chang não se deixou demover e a máquina lá fez a coisa, que não era
nada por aí além, uma espécie de zumbido elétrico, só raios X, e a seguir ficaram à espera de
que um médico olhasse para o processo dele. E Reacher repetiu as mesmas coisas todas, o
tanas, é uma perda de tempo, mas Chang voltou a não se deixar demover e lá acabou por
aparecer um tipo com um processo na mão e uma expressão no olhar. Chang e Westwood não
saíram do gabinete.
— TAC quer dizer tomografia axial computorizada — disse Reacher.
— Eu sei — respondeu o tipo do processo.
— E eu sei em que dia da semana estamos e quem é o presidente. Sei o que comi ao
pequeno-almoço. Das duas vezes. Estou a provar que não tenho problema nenhum.
— Tem uma lesão cerebral.
— Impossível.
— Tem uma cabeça. Que pode sofrer lesões. Tem uma contusão cerebral ou, em latim, uma
contusio cerebri, na verdade, duas, tecnicamente, tanto direta como indireta, e provocadas com
toda a clareza por um impacto direto no lado direito da cabeça.
— E isso são as boas ou as más notícias? — atirou Reacher.
O tipo explicou:
— Se tivesse levado esse soco na parte superior do braço, podia contar com uma bela nódoa
negra. E é precisamente isso que tem. Só que não é exterior. Não há carne suficiente. A nódoa
negra é interior. No seu cérebro. Com uma gémea do outro lado, por o seu cérebro ter andado
aos saltos de um lado para o outro do crânio, como um peixinho dourado dentro de um tubo
de ensaio. Aquilo a que chamamos lesões diretas e indiretas.
— Sintomas? — perguntou Reacher.
— Variam consoante a gravidade da lesão e a pessoa em causa, mas, até certo ponto,
incluem dores de cabeça, confusão, sonolência, tonturas, perda de consciência, enjoos,
vómitos, ataques apopléticos e dificuldades de coordenação e motoras, problemas de memória
e visão, dificuldades na fala, audição, gestão de emoções e raciocínio.
— São muitos sintomas.
— É o cérebro.
— E no meu caso concreto? Quais vão ser os meus sintomas?
— Não lhe sei dizer.
— Tem a minha papelada aí na mão. Uma imagem e tudo.
— Não pode ser interpretada com toda a exatidão.
— Pronto, caso encerrado. São só palpites. Já levei pancadas na cabeça. E esta é igual. Não é
nada de especial.
— É uma lesão cerebral.
— E qual é a parte seguinte do seu discurso?
— Acho que o exame justifica que passe cá a noite sob observação.
— Isso não vai acontecer.
— Mas devia.
— Se o tipo me tivesse acertado no braço, o doutor estava a dizer-me que eu ia ficar bom
num par de dias. O inchaço ia baixar. E mandava-me para casa. Pode fazer a mesma coisa em
relação à cabeça. Aconteceu ontem, por isso amanhã já vai ser um par de dias. Não me vai
acontecer nada. Se é que é sequer o que o doutor diz. Pode ter confundido esse processo com o
de outra pessoa.
— O cérebro não é a mesma coisa que um braço.
— Concordo. Um braço não tem uma camada densa de osso a protegê-lo.
E o tipo respondeu:
— O senhor é adulto. E isto não é uma instalação psiquiátrica. Não o posso obrigar a ficar
cá. Não se esqueça de assinar à saída.
Depois, deu meia-volta e foi-se embora, pronto a atender quem viesse a seguir. Talvez fosse
um codificador ou talvez não. A porta fechou-se quando ele saiu.
— É uma nódoa negra. E está a melhorar — afirmou Reacher.
— Obrigado por teres vindo ver o que era. Vamos lá descobrir o hotel — retorquiu Chang.
— Devíamos ter ido logo para lá.
— Caíste, Reacher.
Foi avançando com cuidado até à praça de táxis.
QUARENTA E OITO

As pessoas diziam que, num mapa, São Francisco parecia um polegar erguido de sul para
norte, protegendo a Bay Area do Pacífico, mas Reacher achava que a curva que fazia lembrava
mais alguém a fazer um gesto obsceno com o dedo médio. Embora não soubesse por que razão
devesse a cidade estar zangada com o oceano. Talvez por causa do nevoeiro.
Independentemente disso, o hotel escolhido por Westwood ficava na ponta, no que
corresponderia à unha do polegar ou do dedo. Mesmo na zona ribeirinha. Estava escuro e, por
isso, a vista era um vazio, com exceção da Golden Gate Bridge, que se encontrava toda
iluminada, à esquerda, sendo que, mais adiante, à direita, se via o brilho longínquo de Sausalito
e Tiburon.
Fizeram o check-in, tomaram banho e encontraram-se no restaurante para irem jantar. Era
uma sala bonita, com muitas toalhas e guardanapos de um branco imaculado. Havia vários
grupos de duas e de quatro pessoas. Eram o único de três. Por todo o lado, estavam a acontecer
encontros românticos secretos e reuniões de negócios. Westwood ligou a Internet no telemóvel
e disse:
— Todos os anos, há quarenta mil suicídios na América. Um em cada treze minutos.
Estatisticamente, é mais provável suicidarmo-nos do que nos matarmos uns aos outros. Quem
diria?
— E se, de nove em nove dias, houver cinco suicidas a utilizar o serviço de receção de
Mother’s Rest, estamos a falar de duzentos por ano. Como no apontamento do Keever. E já
vimos dois — retorquiu Chang.
— E quanto pagarias por isso? — perguntou Reacher.
— Não pagava, espero eu.
— Se custa novecentos dólares tratarmos nós do assunto na cama, qual seria o preço
razoável? Cinco vezes isso? Aí uns cinco mil?
— Talvez. Pelos mimos. Um bocado como ir ao spa em vez de limar as unhas em casa.
— E isso daria um milhão de dólares por ano. Digamos que é melhor do que nada.
— Mas?
— Só nesta semana, a hipotética lista que tinham de alvos a abater era o Keever, o McCann,
eu, tu e os Lair. Sete pessoas. O que, pelos vistos, não é problema nenhum porque eles alugam
um durão ucraniano para fazer o trabalho pesado. E isso é uma reação bem grande por um
milhão de dólares.
— Há pessoas que morrem só por um.
— Na rua, numa situação de pânico. Não como um imperativo estratégico. Acho que isto
ultrapassa o milhão de dólares. Mas não estou a ver como. As pessoas não iam pagar dez ou
vinte mil. Ou mais. Pois não? Podiam comprar elas um Chevy dos anos setenta. Podiam
comprar um barracão para o jardim e fazer lá um buraco.
— Não estamos a falar necessariamente de uma decisão racional. Que tem completamente
que ver com não comprarmos nós o Chevy. O objetivo é mesmo esse. Serviço completo.
— Então iam pagar o quê?
— Não sei. É uma coisa difícil de visualizar. Imaginemos que somos ricos e queremos ir
desta para melhor. Um último luxo. Gente discreta em segundo plano, para garantir que corre
tudo bem. Cuidados e atenções, mais mãos para segurar. Evidentemente, trata-se de um
acontecimento importantíssimo na nossa vida. É possível que paguemos o mesmo que pelo
carro. Que, provavelmente, será um Mercedes ou um BMW. Cinquenta mil, se calhar. Ou até
oitenta. Ou mais. Quer dizer, porque não? Não podemos levar isso connosco.
— E quando vamos para lá? — perguntou Westwood.
E Reacher respondeu:
— Quando tivermos um plano. No aspeto tático, não vai ser fácil. Vai ser como estarmos a
aproximar-nos de uma ilha pequena por mar aberto. Aquilo é tão plano como uma mesa de
bilhar. Os silos de cereais são as coisas mais altas do condado. De certeza que têm imensos
escadotes e passadiços. Por questões de manutenção. E vão pôr lá vigias. Vão ver-nos a chegar
com dez minutos de antecedência. E, se viermos de comboio, vão fazer fila na rampa, ali à
nossa espera.
— Podíamos entrar lá à noite, de carro.
— Viam-nos os faróis a uma série de quilómetros de distância.
— Podíamos desligá-los.
— E não víamos para onde íamos. À noite, aquilo é escuro como breu. Estamos a falar do
campo.
— As estradas são sempre a direito.
— E, de momento, também não temos armas.
Westwood calou-se.

Depois do jantar, Westwood foi para o quarto e Reacher e Chang deram um passeio no
Embarcadero. Junto à água. A noite estava fresca. Literalmente, metade da temperatura de
Phoenix. Chang só trazia a t-shirt. Ia a andar colada a ele, para se aquecer. O que lhes
atrapalhava a marcha, como se fossem uma criatura com três pernas.
— Estás a segurar-me para eu não cair? — perguntou Reacher.
— Como te estás a sentir? — retorquiu ela.
— Ainda com dor de cabeça.
— Só quero ir para Mother’s Rest depois de te sentires melhor.
— Estou ótimo. Não te preocupes.
— Nem sequer lá voltava se não fosse pelo Keever. Quem sou eu para julgar? Estão a dar
resposta a uma necessidade. Talvez o Westwood tenha razão. Se calhar, daqui a cem anos,
vamos estar todos a fazer isso.
Reacher ficou calado.
— O que foi? — perguntou ela.
— Ia dizer que poupava o dinheiro e optava pela caçadeira. Mas isso era duro para quem
desse comigo. Ia haver muito sangue. E o mesmo vale para a pistola. E para a opção de me
enforcar ou de saltar do telhado. E saltar para a frente de um comboio não é justo para o
maquinista. E mesmo estar a beber a tal mistela num quarto de motel não é justo para a
empregada. Se calhar, é por isso que as pessoas escolhem o serviço de receção. É mais fácil para
quem fica neste mundo. E imagino que isso justifique uma remuneração adicional. Mas
continuo sem perceber como vale o dinheiro necessário para se pagar ao Merchenko.
— E eu não percebo como vamos conseguir lá voltar. É como se eles tivessem uma vedação
de arame farpado com mais de quinze quilómetros. Só que ao nível do chão.
— Devíamos começar de Oklahoma City.
— Queres apanhar o comboio?
— Quero manter as nossas opções em aberto. Depois tratamos dos pormenores. Diz ao
Westwood para comprar os bilhetes de avião.
Na manhã seguinte, Reacher acordou muito cedo, antes de Chang, esgueirando-se para fora
da cama e fechando-se na casa de banho. Tinha descartado a teoria anterior dele. De uma vez
por todas. Fora desmentida categoricamente. Repetidamente. Não havia teto. Não havia um
limite superior. Nem razões para que pudesse deixar de melhorar.
E era bom saber isso.
Pôs-se diante do espelho e torceu-se e virou-se todo para se examinar. Tinha nódoas negras
novas da queda. E a antiga, nas costas, onde Hackett lhe acertara, tinha uma cor amarela
intensa e estava do tamanho de um prato de jantar. Mas não estava a urinar sangue, a dor
começava a desaparecer e a rigidez a acalmar. Ainda tinha a cabeça dorida e um bocadinho
mole, mas não estava propriamente inchada. Não havia carne suficiente, como o médico tinha
dito. A dor de cabeça era moderada. Não estava sonolento. Nem tonto. Levantou uma perna,
fechou os olhos e não balançou. Estava consciente. Não estava enjoado. Não vomitara. Nem
tinha tido ataques apopléticos. Percorreu uma sequência de azulejos, da banheira à sanita, e
voltou para trás, sempre de olhos fechados e sem se desviar. Tocou no nariz com a ponta do
dedo e, a seguir, coçou o estômago ao mesmo tempo que fazia festas na cabeça. Não havia
dificuldades de coordenação nem motoras, além da natural e inevitável falta de jeito dele. Não
era um bailarino. Hábil, ágil e destro eram adjetivos que nunca se lhe tinham aplicado.
A porta abriu-se atrás dele e Chang entrou. Viu-a no espelho. Estava com um ar mole e
ensonado. Bocejou e disse:
— Bom dia.
— Para ti também — respondeu ele.
— Que estás a fazer?
— A verificar se tenho algum sintoma. O médico deu-me uma lista e peras.
— E até onde chegaste?
— Ainda me falta a memória, a visão, a fala, a audição, a gestão de emoções e o raciocínio.
— Já passaste na gestão de emoções. Tenho estado bastante impressionada. Tendo em
conta que és um tipo. Que esteve no exército. E agora diz-me o nome de três pessoas famosas
nascidas em Oklahoma, já que é para lá que vamos.
— Mickey Mantle, obviamente. Johnny Bench. Jim Thorpe. E tenho direito a pontos extra
pelo Woody Guthrie e pelo Ralph Ellison.
— A tua memória está ótima.
Chang recuou até à banheira e levantou dois dedos.
— Quantos?
— Dois.
— A tua visão está ótima.
— Não foi um teste muito rigoroso.
— Okay, não saias desse sítio e diz-me quem fez a banheira.
Reacher olhou para lá. Estava qualquer coisa escrita, em letras esbatidas, perto do orifício
de descarga.
— American Standard — disse, porque já sabia.
— A tua visão está ótima — repetiu ela.
Sussurrou qualquer coisa muito baixinho.
— No avião? — respondeu ele. — Alinho completamente.
— A tua audição também está ótima. Não há dúvida disso. Qual é a palavra mais comprida
do Discurso de Gettysburg?
— E que sintoma é esse?
— O raciocínio.
Pensou.
— Há várias. Com dez ou mais letras. Proposição e consagrado.
— E agora declama a primeira frase. Como se fosses um ator em cima do palco.
— O Lincoln estava com varíola nessa altura. Sabias?
— A frase não é essa.
— Eu sei. Isso era para ficar com mais créditos na parte da memória.
— Já fizemos a parte da memória. Lembras-te. Agora, estamos a tratar da fala. A primeira
frase.
— O tipo que fundou a Getty Oil descendia do gajo que deu o nome à cidade de
Gettysburg.
— A frase também não é essa.
— Isso era cultura geral.
— Que nem sequer é um sintoma.
— Tem que ver com a memória.
— Já tratámos da memória há séculos.
E ele disse, em voz alta, como se fosse um ator:
— Há oitenta e sete anos, os nossos pais fizeram nascer neste continente uma nova nação,
criada sob o signo da liberdade e devotada à proposição de que todos os homens nascem iguais.
Soava bem, dentro de uma casa de banho. O mármore fazia as palavras ecoarem e
ressoarem.
Continuou, mais alto:
— E agora travamos uma grande guerra civil, num teste para saber se essa nação, ou
qualquer outra assim criada e devotada, poderá perdurar por muito tempo.
— Já não te dói a cabeça? — perguntou ela.
— Mais ou menos — respondeu ele.
— Ou seja, ainda te dói.
— Está prestes a deixar de doer. Nunca foi nada por aí além.
— O médico achou que sim.
— A profissão médica tornou-se muito tímida. Muito cautelosa. Perdeu o sentido de
aventura. Sobrevivi à última noite. Não precisei de ser observado.
— Ainda bem que ele foi cauteloso — retorquiu Chang.
Reacher ficou calado.
Foi então que Westwood ligou para o telefone do quarto a avisar que as pessoas que lhe
tratavam das viagens tinham comprado bilhetes para o voo da United, o único direto para São
Francisco naquele dia. Mas não havia pressa, o avião só saía a meio da manhã. Por isso, ligaram
para o serviço de quartos e pediram café, para beberem já, e depois o pequeno-almoço, para
lhes ser entregue precisamente dali a uma hora.

Muito cedo em São Francisco equivalia a umas horas mais à frente no dia, em Mother’s
Rest. Não se tratava de uma diferença de hábitos entre cidade e campo, mas somente de fusos
horários. Em Mother’s Rest, era mais tarde. O armazém geral estava a faturar. O restaurante
ainda tinha uns clientes mais atrasados. A empregada do motel já estava a trabalhar no duro. O
gerente zarolho estava na casa de banho. E o condutor do Cadillac, na loja, com a Western
Union, a MoneyGram e a FedEx a atenderem gente.
Mas a loja que vendia peças sobresselentes estava fechada. A dos sistemas de irrigação. E
não havia ninguém a servir ao balcão no restaurante. Esses dois tipos estavam num passadiço
metálico por cima daquilo a que chamavam Silo Três, o velho gigante de betão, o maior que
tinham. Com binóculos. E um sistema simples. Havia duas estradas que iam dar à cidade, uma,
vinda do leste, e a outra, do oeste, e que era o antigo caminho para as caravanas, seguindo na
transversal e passando praticamente por baixo deles. Mas não havia estradas vindas do norte
nem do sul. Só a linha férrea. Em matéria de perigo, o sistema encontrava-se fortemente
direcionado para as estradas. Os tipos sentavam-se à frente um do outro, um a olhar para o
oeste e o outro para o leste, e, mais ou menos de quinze em quinze minutos, viravam-se e
sondavam o caminho de ferro para norte e para sul, uma inspeção vagarosa, de perto para
longe, só para o caso de vir alguém a aproximar-se a pé ou de estar a utilizar uma máquina
qualquer esquisita autopropulsionada, como num velho western. A coisa passou a ser um
ritual. Uma oportunidade para se espreguiçarem.
A não ser à hora do comboio. Nessa altura, era um trabalho mais complicado. Estavam a
fitar o comboio mais ou menos de frente, por isso, conseguiam ver o lado mais afastado. Quase.
Com certeza veriam se alguém forçasse uma porta e saltasse pelo ângulo morto, como num
velho filme de espionagem. Mas, em simultâneo, tinham de prestar a mesma atenção às
estradas. Sempre. Uma intrusão por via de um veículo era considerada muito mais provável.
O que queria dizer que, tirando uma ocasião, de manhã, e outra, à tarde, os binóculos
estavam a apontar para o horizonte distante, para obter um aviso atempado, através da poeira
no ar, fina e dourada de perto e, a seguir, já uma névoa, ao longe.
Visibilidade, cerca de vinte e cinco quilómetros.
Conhecemos todos o plano.
E sabemos todos que funciona.

Fizeram o check-out, um porteiro chamou um táxi e enfiaram-se os três no banco de trás,


alguns lamentando a partida, mas não no caso de Westwood, que se encontrava um bocadinho
perturbado. Desabafou:
— Aquilo era um hotel muito bizarro. Só podia ser em São Francisco, suponho eu.
Enquanto estava no chuveiro, não parei de ouvir um tipo a declamar o Discurso de Gettysburg
pelo ventilador da casa de banho.
QUARENTA E NOVE

O voo decorreu sem problemas e o hotel que o LA Times reservara em Oklahoma City era
uma coisa elaborada, imponente e antiga, com três torres, construída cem anos antes e que
tinha ficado um pouco mofenta, mas fora salva por uma recauchutagem efetuada há cerca de
uma década. Era perfeitamente adequado e, acima de tudo, mantinha ainda o tipo de serviço
que Reacher pretendia. Disse a Chang:
— Vai ter com o rececionista e diz-lhe que és daquelas pessoas que gostam de ficar a
conhecer uma cidade calcorreando-a de uma ponta a outra. Mas explica-lhe que, como é
natural, estás preocupada com a tua segurança. Pergunta-lhe se há alguma zona que devas
evitar.
Ela regressou passados dez minutos, com um mapa de papel para turistas, de que tinham
imprimido milhares de versões para as pessoas das convenções, assinalado pelo rececionista
com uma esferográfica. Alguns bairros degradados da cidade tinham sido isolados por grossas
linhas azuis. Zonas onde não se devia ir. Parecia um rascunho, feito num guardanapo, da
Berlim Oriental de antigamente. Um quadrante em concreto estava ao mesmo tempo isolado e
novamente destacado com um X tão vigoroso que até atravessava o papel.
— O tipo disse-me para não ir lá de dia ou noite — afirmou Chang.
— Um sítio cá dos meus — retorquiu Reacher.
— E eu vou contigo.
— Já estava a contar com isso.
Comeram cedo, o equivalente a um lanche ajantarado. Ingredientes simples vistosamente
preparados. O café era bom. A seguir, esperaram uma hora pelo pôr do sol. O dia, naquelas
longas planícies, chegou ao fim. Os candeeiros acenderam-se lá fora. E os faróis também. O
ruído do bar passou de uma quietude vespertina para um bulício de início de noite.
— Vamos embora — disse Reacher.
Foi uma caminhada longa, já que os pais da cidade sabiam de facto de onde vinham os
benefícios. O negócio das convenções tinha de ser protegido. A fronteira sem lei ficava a vários
quarteirões de distância. A vida nas ruas foi mudando conforme avançavam, passando dos
ocasionais trabalhadores atarefados a regressarem rapidamente a casa para um cenário
centrado no alpendre, com grupos de pessoas reunidos à porta das casas sem fazerem grande
coisa. Algumas lojas tinham fechado por já passar do horário de expediente, outras pareciam
estar entaipadas há vários anos, mas ainda havia umas abertas e a vender. Comida,
refrigerantes, cigarros avulsos.
— Estás bem? — perguntou Chang.
— Estou ótimo — respondeu Reacher.
Estava a orientar-se por instinto, à procura de sítios onde as pessoas se pudessem reunir e
os carros estacionar em segunda fila por uns instantes. Havia carros encostados ao passeio e
outros a circular. Havia coupés japoneses todos quitados, carros com o chassi quase rente ao
chão e monstruosidades gigantes que mais pareciam porta-aviões, da Buick, da Plymouth e da
Pontiac. Alguns tinham modificações personalizadas, grandes rodas de liga de magnésio, tubos
de escape cromados e néons azuis por baixo do chassi. Havia um carro que dava pela cintura de
uma pessoa, com o motor a sair por um buraco no capô, vertical como uma miniplataforma
petrolífera, com um enorme carburador de quatro cilindros e um monumental filtro de ar
quase ao nível do tejadilho.
Reacher parou para o observar.
— Preciso de voltar a ver aquelas imagens de satélite — disse.
— Porquê? — perguntou Chang.
— Têm qualquer coisa de errado.
— O quê?
— Não sei. Está qualquer coisa a atazanar-me a cabeça. E não tem que ver com perdas de
memória. Estou bem.
— Tens a certeza?
— Faz-me uma pergunta.
— O vice-presidente de Teddy Roosevelt.
— Charles Fairbanks.
— Não havia um ator de cinema que se chamava assim?
— Acho que esse era Douglas.
Continuaram, passando por casas de madeira abauladas e coladas umas às outras, e por
quintais cobertos de ervas daninhas, atrás de vedações metálicas, uns a transbordar de lixo,
outros com cães acorrentados e outros ainda com bicicletas e triciclos de cores vivas e outros
brinquedos de criança espalhados por tudo o que era sítio. Deram com uma rua que fazia uma
diagonal entre uma via que não era bem a principal e outra rua. Era suficientemente larga para
ter três faixas, mas não havia um único lugar para estacionar no passeio. E era suficientemente
comprida para abrandar, parar e arrancar outra vez.
— Isto deve dar — soltou Reacher.
Havia movimento nos alpendres, mas estava a acontecer quase tudo mais ou menos a meio
da rua. Grupos de miúdos, de uns doze anos, a andar de um lado para o outro e a olhar para a
esquerda e para a direita para ver se vinha trânsito.
— Okay, é nesta altura que fingimos que damos de repente conta daquilo em que nos
metemos e batemos rapidamente em retirada — anunciou Reacher.
Deram meia-volta e apressaram-se a regressar à via que não era bem a principal. Fizeram a
direita apertada e seguiram, mais ou menos na mesma direção em que tinham estado a andar,
por trás da rua que tinham visto. Pararam quando acharam que se encontravam em linha reta
com o grupo invisível de miúdos de doze anos, que imaginaram que estariam à direita, à
distância de um extenso lote de terreno. A que se acrescentavam a profundidade do jardim de
trás e da casa, mais o quintal e o passeio. Pouco mais de cento e vinte metros, calculou Reacher.
— Vamos lá ver o que eles têm para nós — disse.
CINQUENTA

Escolheram uma casa entaipada, com a corrente do portão partida. Entraram, rápida e
decididamente, como se fizessem parte daquele lugar, e deram a volta à casa, esgueirando-se
pelo jardim de trás, até à vedação, que fazia um ângulo obtuso com o jardim das traseiras de
uma casa na rua diagonal. Provavelmente, não era a casa que queriam, mas andava lá perto.
Reacher conseguiu abrir um espaço na vedação para passarem, despercebidos, tirando o brilho
branco que a obscuridade do início da noite lhes estampava na cara.
Percorreram o novo jardim e espreitaram por entre a casa e a seguinte. Tinham falhado por
uma. Todo o comércio estava a decorrer no lote à esquerda. Uma vedação de rede metálica
separava os jardins. Era fácil de trepar, mas implicava uma sucessão de tinidos metálicos.
Chang era ágil. Melhor do que Reacher. Que tinha sido feito para abrir caminho à força e não
para fazer ginástica.
O jardim que encontraram do outro lado não estava bem preservado. Em bom rigor, não
estava preservado e ponto final. Estava repleto de relva e de ervas daninhas que davam pela
coxa. As traseiras da casa tinham uma janela iluminada.
— Se puderes, deixa ficar a mão direita dentro do bolso. Fá-los pensar que tens uma arma
— disse Reacher.
— E isso funciona?
— Às vezes.
— São passadores? — perguntou ela.
Ele assentiu.
— É como ir buscar hambúrgueres sem sair do carro. Usam miúdos para transportar os
saquinhos e o dinheiro da casa para os carros e vice-versa. São suficientemente novos para não
os prenderem. Embora essa parte possa ter mudado. Se calhar, hoje em dia, é só um mito.
Sobretudo, no Oklahoma. Provavelmente, já são julgados como adultos.
A janela iluminada ficava à direita. Provavelmente, uma espécie de sala de estar. À
esquerda, estavam uma janela e uma porta, ambas às escuras. Uma cozinha, presumivelmente.
Atravessaram a minipradaria de uma penada, até à porta. Reacher experimentou a maçaneta.
Trancada. Deu um passo para o lado e espreitou pela janela. Um espaço sombrio, com pilhas
enormes de lixo e de louça suja. Restos de piza e latas vazias. De Red Bull e de cerveja.
Deu outro passo para o lado e encostou-se todo à parede. Espreitou pela janela iluminada,
com um campo de visão limitado e oblíquo. Viu dois tipos. Estavam esparramados, cada um
no seu sofá, a olhar para os telemóveis. Estavam a mexer os polegares. A jogar ou a enviar
mensagens. Numa mesa baixa entre ambos, encontravam-se dois sacos de viagem compridos.
De nylon preto, novos mas de má qualidade. O género de coisa que custa cinco dólares numa
loja que vende máquinas fotográficas a dez e telescópios a vinte. Em cima de um dos sacos,
estava uma embalagem grande de elásticos de uma loja de material de escritório.
E, em cima do outro, estava uma pistola-metralhadora Uzi.
Reacher afastou-se devagar e foi ter outra vez com Chang ao pé da porta da cozinha.
— Precisamos de arranjar uma pedra — sussurrou.
— Para a janela?
Assentiu.
— E que tal aquilo?
Olhou para onde ela estava a apontar. Um patiozinho de cimento. Um objeto quadrado
com cantos arredondados. Ligeiramente arqueado. Com um buraco no meio. Um material
resistente qualquer. Plástico, vinil ou uma mistura. Uma base para um guarda-sol.
— Consegues atirar aquilo? — sussurrou ele.
— Claro — respondeu ela.
Ele sorriu. Ela não era nenhuma criatura frágil e graciosa.
— Um segundo depois de eu arrombar a porta a pontapé — disse Reacher.
Ela pegou na base.
E ele pôs-se em posição.
— Okay? — sussurrou-lhe.
Ela assentiu.
Reacher deu um, dois, três passos, bateu com o tacão no cadeado, a porta abriu-se de
rompante e ele ouviu, ao mesmo tempo que entrava, a janela da sala de estar a partir-se e a base
do guarda-sol a aterrar no chão. Atravessou rapidamente a cozinha até à sala e deu com o tipo
da esquerda ainda com o telemóvel na mão e o da direita já com a mão a avançar depressa para
a Uzi, mas, de repente, a não chegar lá porque os ombros tinham começado subitamente a
curvarem-se e a retraírem-se, um reflexo motivado pelo estrondo atrás dele, com uma catadupa
de vidros partidos a cair-lhe em cima da cabeça e do pescoço e o borrão de um objeto grande
de jardim a voar-lhe pelo campo de visão.
E a voar-lhe pelo campo de visão estava também a bota direita de Reacher, que lhe acertou
na cara e o deixou estendido como uma gabardina velha lançada para um chão reluzente. E a
coisa acabou logo ali, já que, a partir desse ponto, bastou a Reacher pegar na Uzi, passá-la para
modo automático, carregar no botão de segurança no cabo e apontá-la ao coração do tipo da
esquerda.
Disse «Não te mexas» e o tipo obedeceu.
Não se ouvia barulho do corredor. Verão, uma noite quente, toda a gente na rua.
— Mas que vem a ser isto? — perguntou o homem.
— Vem a ser que vamos levar as vossas armas e o dinheiro — respondeu Reacher.
O tipo deitou um olhar ao saco com os elásticos em cima. Um reflexo. Involuntário. Chang
apareceu por trás deles. Com o punho enfiado no bolso.
— Revista-os — disse-lhe Reacher.
E ela assim fez. Rápida e meticulosamente. Formação em Quantico. As únicas coisas com
interesse que retirou dos dois tipos foram a chave de um carro e duas pistolas. A chave era de
um Audi e as pistolas eram uma Glock 17 e uma Beretta 92. Duas armas de nove milímetros.
Tal como a Uzi. Pelo menos, tinham uma logística, em matéria de munição, bem organizada e
precisa.
— Vê o que os sacos têm — disse Reacher.
E foi o que ela fez. Dentro do saco onde a Uzi tinha estado pousada, estavam milhares de
saquinhos de papel de cristal, cheios de um pó castanho muito escuro. Heroína,
presumivelmente, cortada várias vezes e já embalada e pronta a ser vendida nas ruas.
E dentro do saco dos elásticos, estava dinheiro.
Imenso dinheiro. Notas sebentas de cinco, dez e vinte dólares, soltas, empilhadas e em
maços, umas rasgadas, outras amarrotadas e todas bem apertadinhas. E daí os elásticos,
calculou Reacher. Tinha lido em tempos um livro sobre o contabilista de um cartel que gastava
cinco mil por mês só em elásticos, para acondicionar o dinheiro todo.
— Onde está o Audi? — perguntou.
— À frente da casa. Boa sorte — respondeu o tipo.
— Tu vens connosco. Vais carregar os sacos.
— O tanas.
— Esquece lá isso. Quem vai à guerra, dá e leva. Não somos polícias. Continuam a poder
faturar. Numas semanas, já recuperaram este dinheiro. E agora mexe o cu.
O tipo levou um saco em cada mão e Reacher empurrou-o pelo corredor, com uma mão no
colarinho e a outra a espetar-lhe a Uzi na região lombar. Chang levava a Glock na mão direita e
a Beretta na esquerda. O corredor era comprido e imundo e, mais à frente, ouviam-se sons da
rua. Ordinarices, gargalhadas, pés a arrastarem-se de um lado para o outro, carros em
movimento, compactos e amortecidos pelo calor e pela distância, e a porta da frente fechada.
— Só mais dez segundos — afirmou Reacher. — Não faças parvoíces e chegas a velho.
Arrastou o tipo para o lado e deixou Chang passar à frente e abrir a porta. A seguir, Reacher
empurrou o tipo lá para fora e a conversa e as gargalhadas pararam. Havia ali onze pessoas,
umas no quintal, outras no passeio, e outras na valeta. O grupo era constituído por um
rapazinho de uns dois anos, três mulheres com menos de vinte, dois homens à volta dos trinta
e cinco e miúdos escanzelados com cerca de doze anos, os tais que andavam sempre a fazer
piscinas de um lado para o outro. Um carro passou na rua, lentamente, só para o estilo, com
uma linha de baixo barulhenta a fazer os vidros vibrar. Depois, foi-se embora. Reacher obrigou
o tipo a avançar e o pessoal dele aproximou-se, pronto para a luta, mas o gajo disse:
— Não vale a pena.
Chang carregou no botão do comando e um carro preto piscou as luzes. Era mais pequeno
do que uma limusina, mas também não era um compacto. Chang abriu a porta de trás e
Reacher mandou o tipo largar os sacos no banco. A seguir, deu meia-volta com ele e
empurrou-o na direção da casa. Manteve a Uzi apontada. Chang sentou-se ao volante. Reacher
recuou e enfiou-se no lugar do passageiro. Chang arrancou a toda a velocidade. Reacher tirou o
saco com a heroína do banco de trás e despejou-o pela janela enquanto ela acelerava.
Saquinhos minúsculos de papel de cristal voaram por todo o lado, reluzentes e castanhos, como
uma praga de gafanhotos mortos, como o turbilhão de um redemoinho. Havia gente a correr
pela estrada, a apanhá-los do chão, a correr atrás do carro, com as pessoas a passarem à frente
umas das outras, a tentarem sacar tudo o que conseguissem, e os tipos da casa também a
correrem de um lado para o outro, a tentarem restaurar a ordem, a tentarem reapoderar-se do
que era deles. E Reacher já não viu mais nada porque Chang guinou à esquerda no fim da rua
diagonal e os moradores desapareceram de vista.
CINQUENTA E UM

Abandonaram o Audi numa garagem para convenções, numa rua lateral a quatro
quarteirões do hotel, com as portas destrancadas e a chave lá dentro, guardaram as pistolas no
saco do dinheiro e levaram-no para o quarto de Westwood. Onde, de início, fizeram um
bocadinho de teatro, mostrando as coisas aos poucos, como num espetáculo de magia. Como
se estivessem a tirar coelhos da cartola. Primeiro, a Beretta, depois, a Glock, a seguir, a Uzi,
todas elas recebidas com entusiasmo, e, por fim, abriram o saco por completo, deixando cair
uma avalanche de dinheiro em cima da colcha.
— Estou a mudar de ideias em relação àquilo da secção de filosofia — desabafou
Westwood.
Começou a contar o dinheiro com Chang, ao mesmo tempo que Reacher verificava as
armas. Estavam todas carregadas e com uma bala na câmara. Ao todo, sessenta e sete balas
idênticas. A Uzi encontrava-se em bom estado. Como a maioria das Uzis. Eram máquinas
simples, feitas para a realidade do combate e não para o que este deveria ser. À semelhança,
diriam alguns, da Kalashnikov. As pistolas eram diferentes. Sobretudo, diriam outros, a Beretta.
Eram instrumentos de precisão. Maravilhosamente concebidos e duros como tudo, mas, ainda
assim, a necessitarem de cuidados mínimos básicos. Que, por norma e segundo a experiência
de Reacher, os passadores não lhes proporcionavam. Gastavam o dinheiro como qualquer
pessoa, mas, por vezes, as armas não disparavam. Era um facto da vida. Má manutenção. Ou
nenhuma. Tanto a Glock como a Beretta tinham um aspeto seco e estavam ásperas. Eram
máquinas duradouras e quase de certeza que não tinham problemas, mas quase não chegava.
Para o género de coisa que fazia uma pessoa pegar à partida numa pistola, não. Era uma
discussão circular. Uma pergunta zen. Uma arma em que não se podia confiar era sequer uma
arma?
— Olha para isto, Reacher — disse Chang.
E ele olhou. As aparências tinham-se revelado enganadoras. Claramente. As notas de cinco
solitárias e sebentas, as pilhas ásperas de notas de dez e os maços soltos de vinte eram sem
dúvida reais. Mas não eram a história toda. Nem sequer a maior parte. Não estavam previstas à
partida. Tinham sido atiradas para dentro do saco para servir como uma fina camada adicional
a tapar a carga principal. Que correspondia a pilhas de notas de cem dólares ainda atadas com a
tira de papel oficial do banco. Todas viçosas, bem-cheirosas, impecáveis e novas. E grossas.
Cem notas em cada pilha.
E cem vezes cem eram dez mil dólares.
Por pilha.
E havia imensas pilhas.
— Quanto? — perguntou ele.
— Acima dos duzentos e trinta mil dólares — respondeu ela.
Reacher ficou calado durante bastante tempo.
E, a seguir, perguntou:
— Posso ver outra vez as fotografias de satélite daquele sítio?
O computador de Westwood já se encontrava bem desperto e a trabalhar, com o ecrã a
mostrar o histórico de navegação de imediato, e ainda que ele tivesse explicado que a ligação
wi-fi era lenta, a imagem surgiu no ecrã passados uns segundos.
Reacher deu uma olhadela.
Tal como anteriormente, estava a ver uma quinta, cercada por uma imensidão de trigo.
Vedações, terra batida, porcos, galinhas e hortas. Uma casa e seis anexos. Carros estacionados e
antenas parabólicas. Um barracão para um gerador. Vislumbres de espirais de fios de alta
tensão no meio de alguns dos edifícios e uma linha telefónica a avançar ao longo de postes de
eletricidade. A estrutura do poço e a sua sombra. Melhor do que uma planta de arquitetura, já
que se tratava da verdadeira realidade, tal como se encontrava construída, e não de uma mera
intenção.
Fez o que já tinha visto outros fazerem, passando dois dedos pelo touchpad para que a
imagem se movesse e aumentando-a com um gesto parecido com o oposto de um beliscão.
Começou no sítio onde os carros se encontravam estacionados e imaginou que um estava a
andar. Seguiu-o para fora da área circundante da quinta, entrando numa estrada de terra batida
e avançando primeiro para leste, em direção à linha férrea, e depois para norte, virando para
um campo. O campo prolongou-se, sem interrupções, por mais de quinze quilómetros, a
estrada de terra batida virando a seguir para oeste, no canto mais afastado, e depois de novo
para norte, até Mother’s Rest propriamente dita, entrando na terrinha como um afluente
estreito e insignificante que desaguava na mesma praça larga que, mais à frente, ia dar aos silos.
Basicamente, era um caminho de acesso privado com mais de trinta quilómetros. Terminava
ali.
Fez a viagem virtual no sentido inverso, um pouco mais de trinta quilómetros até à quinta,
e estacionou onde tinha começado. Voltou a fazer o mesmo gesto parecido com o oposto de
um beliscão até a imagem da quinta preencher o ecrã, de um lado ao outro e de cima a baixo. A
pocilga era o que se encontrava mais perto da linha férrea. Tinha um abrigo grande,
provavelmente de madeira, e uma zona com uma vedação, na parte da frente, o sêxtuplo do
tamanho, toda revolvida e esburacada por patas pesadas. Toda cheia de lama e lodo. Havia um
celeiro um bocadinho maior do que o abrigo da pocilga. Essas duas estruturas não possuíam
eletricidade. O barracão para o gerador era fácil de identificar. Tinha um tubo de entrada que
atravessava a parede e um respiradouro de saída no telhado. Diesel, para uma central daquele
tamanho. Uma instalação gigantesca. Cabos da grossura de um polegar saíam dela em forma de
teia, afundando-se de beiral em beiral, em direção à casa e aos outros três edifícios.
— Vamos partir do princípio de que a estrutura maior corresponde à casa. Com os carros e
as antenas parabólicas. Mas qual das estruturas é a suíte do suicídio? — perguntou Reacher.
Os outros agacharam-se junto a ele, ombro a ombro, cada um do seu lado.
— Provavelmente, a suíte do suicídio é a segunda maior. Quarto, sala de estar, casas de
banho e por aí fora — disse Westwood.
— Com eletricidade para o aquecimento, o ar condicionado e luz ambiente mais fraca.
Talvez música relaxante. Todos os confortos de casa.
Reacher apontou.
— Aquela?
— Quase de certeza.
— Então e onde está o Chevy com motor V-8 de bloco pequeno?
— Num dos outros anexos. Afastado, à prova de som.
Reacher assentiu.
— Uma vez, estava no Texas Ocidental e vi-os a serem utilizados para alimentar bombas de
irrigação. Nos tempos em que a gasolina era mais barata do que a água. Motores de carro
normais, retirados de acidentes, imagino. Faziam bases de cimento e aparafusavam aquilo,
como se ainda estivesse debaixo de um capô qualquer. Pintavam-nos de amarelo berrante, para
que os tratores e as charruas não lhes acertassem. Mas eram barulhentos, ali a céu aberto. Por
isso, claro que haviam de querer instalar paredes à volta da base de cimento, mais um telhado.
Podiam encher as paredes com qualquer coisa e revestir o teto. Com uma espécie de material
de isolamento sonoro.
— E seria preciso eletricidade — acrescentou Westwood. — Não estão sempre com aquilo a
funcionar. Só quando é necessário. Seria constrangedor se não pegasse. Portanto, seria preciso
ter um carregador ligado, permanentemente, com um sistema de gotejamento. Só para ter a
certeza.
— Então qual dos edifícios?
Westwood apontou.
— Aquele ou aquele.
— E onde está o tubo de escape?
Silêncio durante uns segundos.
— Se calhar, não o conseguimos ver.
— Conseguimos ver os fios de alta tensão. E conseguimos ver a linha telefónica, mais ou
menos. Os fios são capazes de ter uns dois centímetros e meio de grossura. Provavelmente, um
bocadinho menos. E um tubo de escape tem pelo menos cinco centímetros. Ou, se calhar, sete e
tal. Dê uma espreitadela um dia destes. De metal, devido ao calor, e, por isso mesmo, com
várias partes soldadas umas às outras. Mas onde é que isso está? Não se vê nenhum tubo a ir
para a suíte do suicídio. Pelo menos, de nenhum dos outros edifícios.
— Se calhar, enterraram-no.
— A humidade enferrujava-o numas semanas. E o fumo escapava. Iam passar a vida a levá-
lo para arranjar. Se o quisessem esconder, faziam-no passar, à altura do joelho, por um canteiro
e deixavam crescer lá arbustos. Talvez rosas. O que até nos ia facilitar vê-lo. Mas não está lá.
Não existe. O website deles é uma mentira.
Westwood inclinou-se para a frente e aumentou a imagem ao máximo, até já só haver um
borrão tosco e pixelizado. Fê-lo andar de um lado para o outro, cuidadosa e lentamente,
percorrendo as quatro paredes dos sete edifícios.
Não havia tubo de escape. Não havia nada mais substancial do que um cabo elétrico a ligar
duas estruturas.
— Duzentos e trinta mil dólares para gastarmos. É como estar a trabalhar outra vez para o
Pentágono. Podemos dar-nos ao luxo de fazer um plano novo.

O plano novo foi feito devagar, com cuidado, meticulosa e pormenorizadamente, pela noite
fora e até ao final da manhã. Os computadores ajudaram. O plano tinha cinco partes móveis,
sendo que tinham todas de ser sincronizadas sem falhas, eram todas complexas e eram todas
vitais. Mas, graças à tecnologia, o que, no passado, teria demorado dias, demorou meras horas.
Westwood e Chang tinham portáteis e até Reacher contribuiu, como o telemóvel de Chang.
Estava a receber wi-fi. Estava a clicar e a percorrer o ecrã na vertical como um verdadeiro
mestre. E quando chegou a altura de fazer chamadas, quando Westwood e Chang se atiraram
aos telemóveis, ele serviu-se do telefone fixo que se encontrava em cima da mesinha de
cabeceira e, os três juntos, conseguiram despachar tudo umas dez vezes mais depressa do que
nos velhos tempos.
O resto do plano correspondia a uma lista de compras. No topo da lista, estava um
verdadeiro morador do estado em questão. Que não deveria ser comprado, por assim dizer,
mas tão-só alugado. Ou subornado, mais precisamente, no sentido de ir comprar o resto das
coisas na lista. Para a maior parte, seria preciso uma carta de condução do Oklahoma. O
rececionista do hotel acabou por se voluntariar. Considerava-se um facilitador e uma pessoa
experimentada. Os valores oferecidos atraíram-no sem dúvida. Não hesitou. O dinheiro era
real. E ele não estava a violar nenhuma lei. Estava protegido pela Segunda Emenda.
Quando entregou o material, ao fim da tarde, já estava tudo definido. Já tinham ensaiado,
discutido e arriscado as hipóteses todas. Tinham sondado, questionado e, por vezes,
recomeçado. Tinham-se posto na pele dos maus e avaliado as opções. Tinham ponderado os
fatores imprevistos. E se chovesse? E se houvesse um tornado? Faltava apenas Reacher aprovar
as compras.
Havia três produtos principais. Mais nada. Tinham-se sentido tentados a entrar em
desvario, como miúdos numa loja de doces. Mas depois a lógica impôs-se gradualmente e
acabaram onde, no fundo, Reacher gostava de estar, com tudo aquilo de que precisavam e nada
do que não era necessário. Os produtos selecionados eram todos da Heckler & Koch. Uma
pistola P7 para Westwood. Igual à pistola de reserva de Hackett. Apontar e disparar. Nove
milímetros. Mais pequena do que uma pistola normal. Para enfiar na bota de montanha, num
coldre para o tornozelo, também fornecido.
Os outros dois produtos formavam um par. Duas pistolas-metralhadoras MP5K idênticas.
Uma para Reacher e a outra para Chang. Maiores do que uma pistola normal, mas não muito.
Havia revólveres mais compridos. Cabos iguais, grossos e bojudos. Um design futurista, muito
prezado pelas forças de intervenção e esquadrões antiterroristas do mundo inteiro. De tiro
único ou completamente automático, e a segunda opção podia chegar aos novecentos tiros por
minuto. O que equivalia a quinze balas por segundo.
E daí o resto da encomenda corresponder a munições. Tudo balas Parabellum de nove
milímetros, que se podiam trocar pelas três armas, mas, de momento, distribuídas por quatro
carregadores P7 e vinte e quatro carregadores MP5. Mais teria sido difícil de transportar.
Além de um saquinho com coisas de uma loja de ferragens.
Reacher desmontou as pistolas e voltou a montá-las, puxando depois o gatilho com elas
descarregadas, às vezes com o dedo mindinho, que achava ser mais sensível às nuances
mecânicas.
Funcionavam as três.
— Tudo bem? — perguntou Chang.
— Tudo perfeito — respondeu.
— E tu?
— Lindamente — respondeu.
— Contente com o plano?
— É um ótimo plano — respondeu.
— Mas?
— Há uma coisa que costumávamos dizer na Polícia Militar. Toda a gente tem um plano
até levar um sopapo na boca.
Westwood olhou para as horas. O seu relógio era uma coisa complexa, de aço e com muitos
ponteiros. Eram cinco da tarde.
— Faltam sete horas. Devíamos comer. De certeza que o restaurante está aberto.
— Vá você — retorquiu Reacher. — Nós pedimos qualquer coisa ao serviço de quartos. E
depois batemos-lhe à porta na altura devida.
CINQUENTA E DOIS

Do passadiço metálico por cima do velho gigante de betão, o amanhecer era imenso,
longínquo e infinitamente lento. A leste, o horizonte estava escuro como a noite, e assim se
manteve, até que, por fim, uma pessoa, de olhos bem abertos e com muito esforço, o poderia
considerar ligeiramente cinzento, como o carvão mais escuro, aclarando depois, durante
longos e vagarosos minutos, e espalhando-se, finíssimo, de um lado ao outro e para cima, como
dedos a tatear uma das camadas externas da atmosfera, impossivelmente distante, talvez a
estratosfera, como se a luz viajasse mais depressa lá ou chegasse lá mais cedo.
A extremidade do mundo surgiu sorrateiramente, pelo menos, aos olhos bem abertos e
esforçados, iluminada e recortada exclusivamente a cinzento, infinitamente esbatida,
infinitamente subtil, quase invisível, parte imaginação e parte esperança. A seguir, pálidos
dedos dourados sondaram o cinzento, movendo-se, etéreos, como que hesitantes. E depois
espalhando-se, ativando camadas finas e longínquas, uma molécula de cada vez, um lúmen,
acendendo tudo lentamente, tornando-o luminoso e transparente, o vidro da taça já não
branco e frio mas de cores mais calorosas.
A luz continuou fraca, mas foi avançando, minuto a minuto, até o céu adquirir por inteiro
tons dourados, mas pálidos, insuficientes para permitirem ver, demasiado ténues sequer para
projetar uma sombra. Foi então que começaram a surgir umas listras mais ardentes, que
iluminaram o horizonte, e, por fim, o Sol nasceu, imparável, num primeiro segundo, vermelho
e furioso como se já se estivesse a pôr, mas depois assumindo uma intensa luminosidade
amarela, aclarando meio horizonte e lançando de imediato sombras, de início perfeitamente
horizontais e depois simplesmente com alguns quilómetros. O céu passou de um dourado-
claro para azul-claro, percorrendo todas as camadas entre um e outro, pelo que o mundo lá em
cima parecia, ao mesmo tempo, novamente profundo e infinitamente alto e largo. O orvalho
noturno tinha feito a poeira assentar e, até secar, o ar estava cristalino. Em todas as direções, a
vista era completa e absoluta.
O condutor do Cadillac estava no passadiço, com o Moynahan que tinha sido atingido na
cabeça e ficado sem a pistola. O tipo ainda se sentia mal, mas havia um horário a cumprir.
Trazia um capacete de couro de futebol americano, à antiga, a servir de tala. Para a maçã do
rosto. O condutor do Cadillac estava virado para oeste, com o Sol acabado de nascer a bater-
lhe, fraco, na nuca. Moynahan estava a semicerrar os olhos para leste, por causa da
luminosidade, e a observar a estrada. Não vira movimento de veículos durante a noite. Nada de
faróis. Tudo o resto era trigo. E depois vinha a curvatura da terra.
O mesmo valia para oeste. A estrada, o trigo, o horizonte longínquo. Nenhum trânsito
noturno. Nada de faróis. Nada de nada. A terceira manhã. Mesmo por baixo deles, na praça, os
mais madrugadores iam a caminho do pequeno-almoço. Pareciam formigas. Havia camiões a
estacionar, lembrando brinquedos. Portas a bater. Pessoas a trocarem os bons-dias. Tudo sons
familiares, mas abafados e vagos, por causa da distância vertical.
Passados vinte minutos, o Sol tinha-se afastado do horizonte e já estava a curvar para
sudeste, dando início à sua viagem matinal. O amanhecer transformara-se em dia. O céu tinha
ficado mais luminoso e azul, perfeitamente uniforme. Não havia nuvens. Um novo calor
agitava o ar e o trigo movia-se e revoluteava, com um ruge-ruge sussurrado, como se estivesse a
acordar. Do alto do Silo Três até ao horizonte, eram à volta de vinte e cinco quilómetros. Uma
questão de elevação e geometria, além da planura da paisagem. O que queria dizer que os tipos
em cima do passadiço se encontravam precisamente no centro de um círculo de cerca de
cinquenta quilómetros, pairando sobre o mesmo, com o mundo visível a estender-se por
completo aos pés deles. Um disco dourado, sob um céu alto e azul, dividido ao meio, de cima a
baixo, pela linha do caminho de ferro e, de um lado ao outro, pela estrada. Do passadiço,
pareciam ambas exíguas e cercadas pelo trigo. A olho nu, duas linhas finas feitas a lápis,
perfeitamente direitas, com a ajuda de uma régua. As linhas cruzavam-se na passagem de nível,
mesmo por baixo deles. O centro do disco. O centro do mundo.
O condutor do Cadillac estava sentado com os joelhos levantados, para apoiar os binóculos.
Estava a olhar para a ponta mais afastada da estrada, lá ao longe, no oeste. Se viesse mesmo aí
alguma coisa, queria sabê-lo com a máxima antecedência. Moynahan tinha a mão direita
erguida, para tapar o sol, e os binóculos colados aos olhos com a esquerda. Um bocadinho
vacilante. Não era fácil, com o capacete. A técnica dele era perscrutar para a frente e para trás,
de perto para longe. Queria ter a certeza de que não deixava escapar nada.
O walkie-talkie sibilou. Moynahan pousou os binóculos e pegou nele.
— Força — disse.
O homem das calças de ganga e do brushing afirmou:
— Preciso que fiquem aí em cima até chegar o comboio da manhã, rapazes. Os vossos
substitutos atrasaram-se.
Moynahan olhou para o condutor do Cadillac. Que encolheu os ombros. A terceira manhã.
O pânico tinha-se transformado em rotina.
— Okay — respondeu Moynahan.
Pousou o walkie-talkie.
Olhou para o relógio e disse:
— Vinte minutos.
Voltou a pegar nos binóculos e a erguer a palma da mão direita para tapar o sol.
— Estou a ver qualquer coisa — anunciou.
O condutor do Cadillac olhou uma última vez para o oeste vazio e virou-se. Levantou a
mão direita para se proteger do sol. Os binóculos tremeram um bocadinho. O horizonte a leste
era intenso. E o Sol ainda estava suficientemente baixo para agitar o ar. Pior, com as lentes
telefotográficas. Via-se um quadradinho minúsculo na estrada, estranhamente a abanar de um
lado para o outro, mas sem sair do mesmo sítio. Não parecia avançar. Uma ilusão de ótica, por
causa dos binóculos. Era um camião, talvez a uns setenta e poucos quilómetros por hora. Quase
todo branco. A vir direito a eles.
— Não tires os olhos de cima dele. Para ter a certeza de que não vem mais nada atrás —
disse o condutor do Cadillac.
Voltou-se outra vez para oeste e puxou os joelhos para cima.
Apoiou os binóculos.
— Merda, também estou a ver qualquer coisa — atirou.
— O que é? — perguntou Moynahan.
O mais provável era ser um carro vermelho. Não passava de um pontinho diminuto, ao
longe, com o Sol baixo a cintilar-lhe no para-brisas. A uns vinte e cinco quilómetros de
distância. E a mesma coisa que a leste, a abanar de um lado para o outro, mas parado, sem
avançar. Uma ilusão.
— Como está o teu? — perguntou ele.
— Continua a vir.
— E não há nada atrás?
— Não dá para perceber, ainda. Até pode ser um autêntico comboio.
— Aqui também.
Continuaram a observar. Veículos a virem ao longe, numa estrada em linha reta, direitos a
eles, com a imagem ampliada mas achatada pelas lentes dos binóculos. O ar a agitar-se,
movimentos oscilantes e urgentes, mas sem progressão, plumas de poeira.
Moynahan pegou no walkie-talkie. Carregou no botão e, após receber autorização,
informou:
— Temos veículos a aproximarem-se do leste e do oeste. A uma velocidade moderada.
Devem chegar mais ou menos à mesma altura que o comboio.
— É agora. Não há que enganar. Querem que nos preocupemos com três coisas ao mesmo
tempo — retorquiu o homem das calças de ganga e do brushing.
O condutor do Cadillac virou-se para olhar para leste, já que Moynahan ainda estava a
comunicar pelo walkie-talkie. O camião continuava lá. Continuava a ser um vulto quadrado,
que continuava a abanar. Sem parecer avançar. Quase todo branco. Mas apenas quase. Havia
uns lampejos de outras cores.
Roxos e laranjas familiares.
— Espera — soltou.
— Espere um segundo — disse Moynahan.
— É a FedEx. Para mim — afirmou o condutor do Cadillac.
— Não há crise no leste, chefe. É só a FedEx. No oeste ainda não sabemos — explicou
Moynahan.
O homem das calças de ganga e do brushing disse:
— Fiquem de olho nisso.
— Certíssimo.
Moynahan pousou de novo o walkie-talkie. Espreitou o camião da FedEx, só por uns
instantes, e depois virou-se para olhar para oeste. Talvez duas cabeças funcionassem melhor do
que uma. O carro continuava a aproximar-se. Mas ainda vinha longe. Apenas sol refletido e
crómio a brilhar, com uns vestígios de vermelho. À frente dele, novas e fracas correntes de ar
quente ascendentes a surgirem do alcatrão, e, atrás, uma pequena onda de poeira a encapelar.
Podia ser tudo e mais alguma coisa.
O condutor do Cadillac desviou o olhar e espreitou a linha férrea. Não havia nada a norte.
Ninguém a andar. Nenhuma máquina autopropulsionada. Mas, a sul, o horizonte cintilava em
tons prateados. O comboio da manhã, a uns vinte e cinco quilómetros dali. A vir de Oklahoma
City. Uma perturbaçãozinha insignificante no ar.
Olhou para leste. O camião da FedEx ainda lá estava, a abanar sem sair do mesmo sítio.
— Acabei de me aperceber de uma coisa. Não vou receber a encomenda. Não posso sair
daqui — disse.
— É uma viagem grande para se ter de voltar amanhã — retorquiu Moynahan.
E, a seguir, apontou com o queixo para oeste.
— Nunca vi carro mais lento.
— Não é lento. Eles é que têm tudo calculado. Querem chegar cá ao mesmo tempo que o
comboio. Para termos de dividir atenções. E é por isso que vêm do oeste. Não precisam de
utilizar a passagem de nível.
— O comboio ainda está muito longe?
— O carro está mais perto.
— Mas o comboio anda mais depressa.
O condutor do Cadillac não respondeu. Parecia aquelas tretas que perguntavam na
secundária. Se um carro está a vinte quilómetros de distância e a andar a setenta e sete
quilómetros por hora, e um comboio está a vinte e cinco e a andar a noventa e seis, qual vai
chegar aqui primeiro?
Os dois. Era uma coisa coordenada. Não havia que enganar.
O carro continuou a avançar. E o comboio também. A aproximarem-se. Uma rota de
colisão. Lá em baixo, na praça, as pessoas estavam a caminho de se apresentar ao serviço,
apressando-se como formigas. Havia tipos a sair do restaurante. E a entrar nos camiões. Bem
jogado. Iam enviar um grupo para estancar a coisa. Uma barricada, talvez a um quilómetro e
meio da terra. Era sempre melhor lidar com um problema noutro sítio. A não ser que o carro
fosse um engodo. Se calhar, vinham no comboio. Como num velho western. As portas laterais
das carruagens abrir-se-iam e irromperia de lá uma série de xerifes a cavalo. Estariam quatro
tipos à espera deles na rampa. Mais um do lado do ângulo morto, só por via das dúvidas. Devia
chegar. Conhecemos todos o plano. E todos sabemos que funciona.
O comboio já era suficientemente grande para se poder ver. Tinha o sol a bater-lhe de um
lado e o outro estava à sombra. Tal como o camião e o carro, parecia estar a abanar de um lado
para o outro, sem, no fundo, sair do mesmo sítio. O ar fervilhava à volta dele, como um
turbilhão luminescente.
O carro continuava a aproximar-se. Estavam duas carrinhas de caixa aberta preparadas
para o receber. A cerca de um quilómetro e meio da terra, paradas lado a lado, uma em cada
faixa. Perfeitamente alinhadas. Orgulhosas. Com um aspeto quase cerimonial. Como leões de
pedra à entrada de uma mansão.
E foi então que ouviram o flape-flape-flape das hélices.
CINQUENTA E TRÊS

Moynahan e o condutor do Cadillac puseram-se a correr de um lado para o outro como


loucos, torcendo-se e virando-se, como se estivessem a ser atacados por abelhas, olhando para
cima e vasculhando o céu à procura do helicóptero. E encontrando-o em dois sítios.
Havia dois helicópteros.
Estavam a descer em voo picado, depressa e a baixa altitude, um do nordeste, ou seja, meio
à direita, e o outro do noroeste, ou seja, meio à esquerda. Flape-flape-flape. Pareciam ambos
pintados de preto. Cabinas transparentes, mas vidros fumados. Por baixo deles, o trigo estava a
entrar em ebulição e a agitar-se violentamente, em linhas retas e compridas, o começo de um V
gigantesco. A ponta da letra parecia encontrar-se precisamente onde se encontravam. No topo
do Silo Três.
O carro continuou a avançar. E o comboio também.
O walkie-talkie sibilou.
— Não lhes tirem a vista de cima. Preciso de saber o que sai dessas coisas. E onde — disse o
homem das calças de ganga e do brushing.
A seguir, a comunicação foi interrompida. Viam o tipo lá em baixo, minúsculo e truncado
pela perspetiva descendente. Estava a andar de um lado para o outro, a passos largos, com o
rádio encostado à cara.
Flape-flape-flape.
O carro continuou a avançar. E o comboio também. A aproximarem-se. Não era preciso
binóculos. Agora, já não. As hélices ouviam-se cada vez melhor, a baterem dessincronizadas, e
o rugido das turbinas tornava-se percetível.
Estava tudo a ficar cada vez mais perto.
Talvez faltasse menos de um minuto.
E aconteceu uma série de coisas. Moynahan e o condutor do Cadillac começaram a rodar
de um lado para o outro, sem parar, a tentar ver tudo. A tentar não perder nada de vista.
Primeiro, o helicóptero da direita avançou declaradamente para leste, deslizando por trás da
terrinha e seguindo para sul, a toda a velocidade, ou seja, bem rapidinho.
Na direção da quinta.
Foi nessa altura que o carro atingiu a barricada e parou. Era vermelho. E nacional.
Baratucho, mas sobrenaturalmente limpo. Logo, alugado. Dois tipos do restaurante
debruçaram-se e começaram a falar pelo vidro da janela.
A seguir, o helicóptero da esquerda afastou-se para oeste e ficou a pairar, sem sair do
mesmo sítio, como se estivesse à espera, e depois voltou a avançar. Sobrevoando a praça. A
baixa altitude. Muito baixa. Inferior ao velho gigante de betão. Estavam os dois a olhar para ele
de cima. O barulho e a corrente de ar ascendente quase lhes arrancavam a roupa, atirando-os
de um lado para o outro. E a corrente descendente expelia terra batida e porcaria por tudo o
que era sítio. Como uma tempestade de areia, em plena rua principal.
E foi então que o camião da FedEx atravessou a passagem de nível, uns trinta metros à
frente do comboio. A trinta metros de ser abalroado por mil toneladas. O tipo nem sequer
acelerou. Aquilo era o percurso normal dele. Sabia o que estava a fazer.
Depois, lá bem no sul, o helicóptero da direita, desapareceu por baixo do horizonte
longínquo. Aproximando-se da quinta, calcularam, pois que mais havia ali?
E, no instante seguinte, mesmo sob os pés deles, surgiu o comboio, ruidoso e comprido,
potente e brutal, num misto de silvos, estrépitos, zumbidos e rangidos, mas, pela primeira vez
na vida, abafado pelo batimento das hélices e pelo barulho dos propulsores a jato.
Os tipos do restaurante ainda estavam a falar pelo vidro da janela do carro.
As portas do comboio abriram-se.
Flape-flape-flape.
Ninguém saiu.
Nada pelo ângulo morto.
Flape-flape-flape.
As portas fecharam-se.
E o comboio começou a afastar-se, deslizando debaixo dos pés deles, muito lentamente,
carruagem a carruagem.
Os do restaurante ainda estavam a falar.
A última carruagem seguiu viagem, ficando cada vez mais pequena e abanando, com os
carris cansados a cederem uns centímetros.
Os propulsores rugiram e o helicóptero subiu abruptamente.
O camião da FedEx voltou a atravessar a passagem de nível, já de regresso. A uma
velocidade moderada. Chegaria quando chegasse.
O helicóptero começou a afastar-se, virando para dentro e fazendo com que a corrente de
ar descendente soprasse de lado, o que os empurrou pelo passadiço, fustigados pela poeira
aerotransportada e pelo barulho ensurdecedor. A sul, o outro helicóptero apareceu no
horizonte, imitando a mesma manobra. Subindo, virando para dentro e afastando-se. Em voo
picado, a baixa altitude e depressa. A ficar cada vez mais pequeno. A fazer um V novinho em
folha, com a ponta virada dessa vez para longe.
De repente, instalou-se um silêncio. Só se ouvia o trigo. E o trigo era apaziguador.
O walkie-talkie sibilou.
Moynahan pegou nele e informou:
— Ninguém saiu do helicóptero. Nem sequer chegou a aterrar. E ninguém saiu do
comboio. Nada pelo ângulo morto.
Na estrada, os tipos do restaurante estavam a fazer marcha-atrás com as carrinhas. O carro
vermelho estava a passar pelo meio deles. Em direção à terra.
— Que se passa ali? — perguntou Moynahan.
— Ele diz que é um cliente. Trouxe imenso dinheiro. Vamos dar uma olhadela —
respondeu o homem das calças de ganga e do brushing.

Levaram o tipo para o restaurante, mas, antes de o deixarem entrar, discutiram a questão
dos helicópteros. Estava lá toda a gente, tirando o irmão de Moynahan. O que levara um
pontapé nos tomates e ficara sem a pistola. A conversa foi curta e não se chegou a consenso.
Havia duas opiniões. Tratar-se-ia de um reconhecimento geral, a antecipar nova incursão em
data futura, sendo que, nesse caso, teria provavelmente implicado imagens térmicas e um radar
de penetração no solo, ou então seria a própria busca à procura de Keever, que já tinham há
muito previsto que incluiria o ar, e, nesse caso, estaria em causa basicamente a mesma
tecnologia, mas os resultados também seriam negativos, por causa dos porcos.
Curta.
Sem consenso.
Iriam voltar ou não iriam, das duas uma.
Não houve votação.
O tipo que deixaram entrar tinha um aspeto saudável. Parecia do canal da National
Geographic. Cabelo e barba grisalhos e desgrenhados. Uns quarenta e cinco anos. Roupa
esquisita, com imensos fechos de correr. E atacadores nas botas que lembravam cordas de
alpinismo.
Disse que se chamava Torrance.
Disse que se tinha desfeito da identificação. Não tinha que ver só com o seguro. Ainda que
a apólice tivesse algumas cláusulas. Mas, acima de tudo, queria deixar as pessoas na dúvida. Era
esse o objetivo. Os documentos físicos dele tinham ficado mais de mil e cem quilómetros para
trás. Um foguinho, no lavatório da casa de banho de um motel no Nevada. Tinha desaparecido
tudo. E só conduzira à noite, para minimizar os riscos. Queria deixar as pessoas na incerteza. E
não as queria incomodar. Sete longos anos, antes de haver presunção legal.
— Queira desculpar a nossa prudência, senhor Torrance — disse o homem das calças de
ganga.
A seguir, olhou para o Moynahan que fora atingido na cabeça e ficara sem a pistola,
perguntando-lhe:
— Onde está o raio do teu irmão?
— Não sei — respondeu Moynahan.
— Preciso dele aqui.
A política habitual deles em matéria de mensagens numa reunião era: o último a entrar é o
primeiro a sair. E Moynahan tinha sido o último a entrar. Demorara a descer do velho gigante
de betão. Por causa da cabeça. Por causa do equilíbrio.
— Okay, vou procurá-lo — disse.
Encaminhou-se para a rua.
O homem das calças de ganga e do brushing olhou outra vez para Westwood e disse:
— Bom, senhor Torrance, acho que a nossa primeira pergunta é saber se traz ou não um
microfone.
— Não trago — retorquiu Westwood.
— Então não terá problemas em desabotoar a camisa.
Westwood assim fez. Um peito robusto, cheio de carne e de pelos encaracolados grisalhos.
Sem microfone.
— E a nossa segunda pergunta é saber como nos descobriu — disse o homem das calças de
ganga.
— Em linha — explicou Westwood. — Por um chat. Uma pessoa amiga chamada Exit
informou-me.
— Nós conhecíamos essa rapariga.
Rapariga. Conhecíamos.
— Disse-me que vinha para cá com um amigo, o Michael. Que também era meu amigo.
Escrevia posts assinando como Mike — continuou Westwood.
— E veio. Também conhecíamos o Mike.
— Achei que, se chegava para eles, também chegava para mim.
— E a nossa terceira pergunta é saber o que pensou fazer com o carro que alugou. Ora aí
está um autêntico documento físico em vermelho berrante.
— Pensei que, se pagasse um extra, um dos senhores se poderia livrar dele por mim.
Podiam largá-lo longe, em Wichita ou Amarillo. Roubavam-no em menos de três fósforos.
— É possível tratar disso. E se chegasse a aparecer, no barrio ou lá onde fosse, limitar-se-ia a
adensar o mistério. Ou poria as pessoas a pensar em homicídio.
— Foi o que calculei.
— Conforme sabe, providenciamos opções para terminar a vida. E opções querem dizer
precisamente isso. Não julgamos. Não obrigamos as pessoas a explicitar as suas razões. Não
oferecemos aconselhamento nem tentamos que mudem de ideias. Mas a sua chegada foi
bastante pouco convencional. Portanto, temos de lhe perguntar porquê. Excecionalmente.
— Estou farto. Nunca pedi para nascer. Para dizer a verdade, nunca desfrutei da vida.
— E em termos concretos?
— Devo imenso dinheiro. E não consigo pagar. Não sou capaz de enfrentar o que aí vem.
— Foi o jogo?
— Pior.
— O governo?
— Cometi alguns erros.
O homem das calças de ganga olhou para a equipa. Estava lá toda, exceto os irmãos
Moynahan. Cinco tipos. Hesitaram, fizeram esgares pensativos e assentiram com a cabeça
vagamente.
O homem das calças de ganga olhou outra vez para Westwood e anunciou:
— Acho que o podemos ajudar, senhor Torrance. Infelizmente custar-lhe-á tudo o que
trouxe.
— Quero o motor a gasolina. É como eu quero fazer a coisa.
— É uma opção popular.
— E é gasolina com chumbo?
— Agora é sem chumbo. Cabeças de cilindros especiais. O monóxido de carbono é o
mesmo de sempre. É o catalisador que o tira, não a gasolina sem chumbo. E o cheiro é melhor.
A benzina adocica a coisa. É uma boa maneira para se partir.
— E o que escolhem as outras pessoas?
— A maioria escolhe as duas coisas. A certeza do resultado final é considerada da mais
extrema importância. E daí as estatísticas todas que elas estudam.
— E eu devia fazer as duas?
— Não há necessidade. O motor a gasolina é cem por cento eficaz. Pode confiar nele.
Foi então que o tipo olhou para a porta da rua.
— Onde se meteram os Moynahan? — exclamou.
O último a entrar é o primeiro a sair.
— Vou procurá-los — disse o tipo da loja de irrigação.
Saiu do restaurante.
O homem das calças de ganga olhou de novo para Westwood e soltou:
— É uma pergunta estranha, senhor Torrance, mas quer tomar o pequeno-almoço
connosco?
Westwood pensou um pouco e depois aceitou o convite, com o homem do balcão a
esquecer, temporariamente, o estatuto de membro da comunidade em questão para prosseguir
os deveres profissionais, voltando ao posto e pondo café a fazer. O condutor do Cadillac disse
que era melhor ir ver primeiro da encomenda e que voltava num instantinho, mas o dono do
armazém de vendas, o criador de porcos e o zarolho do motel sentaram-se todos de imediato.
A empregada veio ter com eles e anotou os pedidos. Serviu café e trouxe comida. A seguir, o
dono do armazém levantou-se e disse que tinha de ir a correr até à porta ao lado buscar uma
coisa. Remédio para a azia, pensaram os outros. Também disse que voltava num instantinho.
Mas não voltou.
Nem o condutor do Cadillac.
Nem os Moynahan, nem o tipo que tinha ido à procura deles.
O homem das calças de ganga e do brushing pôs-se a olhar para a porta.
— Mas que raio se passa aqui? Está tudo a ir-se embora e ninguém volta — disse.
Levantou-se e foi até à janela. Não havia nada lá fora. Ou seja, nada de nada. Apenas
quietude. Não havia trânsito nem peões. Não se passava nada. Um sol quente e ruas vazias.
— Temos um problema. Para as traseiras, já. Com licença, senhor Torrance. Vimos buscá-
lo depois — afirmou.
E, a seguir, desatou a correr, atravessando a cozinha, com o criador de porcos, o homem do
balcão e o gerente zarolho logo atrás, para a ruela dos fundos, onde estava estacionada a
carrinha de caixa aberta do homem do balcão. Enfiaram-se lá todos e arrancaram, para a praça,
a sul da ponta mais distante e entrando na estreita estrada de terra batida. Como um caminho
de acesso privado, com mais de trinta quilómetros.
Westwood ficou sozinho no restaurante, entretanto em silêncio. Até que a porta da rua se
abriu e Chang entrou, seguida de Reacher.
CINQUENTA E QUATRO

A maior fatia do dinheiro tinha ido para os helicópteros. Duas limusinas aéreas, para
angariar clientes empresariais em Kansas City. Carros de luxo no céu. Estava fora de questão
aterrarem. Pelo menos, em locais não aprovados. Estava fora de questão deixarem alguém
descer em rapel com a ajuda de cordas. O seguro não o permitiria. Mas não tinham problemas
em fazer uma viagem de ida e volta sem transportar ninguém. Não tinham problemas em
adicionar um pouco de emoção. Para as filmagens de um vídeo, segundo lhes tinham dito.
Foram buscar as coordenadas exatas ao Google. A parte mais complicada era a coordenação.
Para que as câmaras pudessem filmar. Mas tinham computadores na cabina. Era capaz de dar.
Westwood levou a segunda maior fatia do dinheiro. O suficiente para impressionar. A
servir-lhe de computador na cabina, tinha o velocímetro de um Ford alugado e o relógio de
pulso. Uma coisa da secundária e não de pós-graduação. Se um carro precisa de fazer vinte e
cinco quilómetros em quinze minutos, tem de ir a que velocidade? Tudo ligado ao comboio,
claro. Descobriu uma estação AM que dava o trânsito e o tempo e onde avisaram que o
comboio estava dentro ou perto. Do horário, presumivelmente. Não podia arranjar melhor.
Enquanto isso, Reacher e Chang iam no camião da FedEx. Haviam ligado para a central de
Oklahoma City a informar que tinham uma encomenda superurgente para entregar no dia
seguinte, num sítio chamado Mother’s Rest. Disseram até que horas a podiam trazer.
Chegaram cinco minutos antes do fim do prazo. Deram com o motorista do turno da noite a
fumar na viela. Que lhes disse que Mother’s Rest fazia parte do percurso habitual dele.
Reconheceu que pilhas de notas de cem dólares ainda atadas com a tira de papel oficial do
banco eram uma coisa maravilhosa. Sobretudo, adicionando um bocadinho de psicologia à
coisa. Fique com quantas quiser. O que achar que é justo. Só queremos ir na parte de trás do
camião. E chegar à hora do comboio, em ponto. O que o tipo disse que era possível. Não havia
problema. Fazia isso de olhos fechados. Era o percurso habitual dele. Até podiam ir à frente,
caso preferissem, e depois saltar para a parte de trás quando se estivessem a aproximar.
E depois voltar a saltar, dessa vez para fora do camião, e esperava-se que despercebidos,
atrás da loja do condutor do Cadillac, no meio do caos dos helicópteros, do pânico relacionado
com o comboio e da confusão provocada por Westwood. Se a coordenação resultasse. O que,
pelos vistos, fora o caso. Houvera bastante caos. Não havia dúvida nenhuma disso. E não estava
ninguém na loja. O que, no imediato, foi um bónus. Mas um fardo, a longo prazo. Era mais
uma coisa que ficava adiada.
E que começou com fosse lá qual fosse dos Moynahan a quem Reacher tinha dado um
pontapé nos tomates. Viram o tipo a percorrer com dificuldade uma rua transversal, em
direção ao restaurante ou ao armazém. Ou ao motel, possivelmente. Foi fácil subjugá-lo,
acabando com os braços e pernas bem presos com atilhos para cabos comprados na loja de
ferragens, amordaçado com um dos trapos vindos do mesmo sítio e largado no escritório
abandonado do contabilista diplomado, ao lado da FedEx, que não tinha sido dotado de grande
fechadura.
Seguiu-se o irmão, primo ou lá o que era do tipo, com um chapéu de couro ridículo e à
procura de qualquer coisa. Foi igualmente fácil tratar dele, cinco atilhos para cabos, um trapo e
um poiso no chão do escritório do contabilista, mesmo ao lado do familiar. Depois, veio o tipo
das peças sobresselentes. Da loja de irrigação. À procura dos dois primeiros. E, dessa vez, não
houve conversas sobre futebol americano. Só os atilhos, um trapo e o chão.
As pessoas comuns não se intrometeram. Deixaram-se ficar em casa. Uma espécie de
instinto imemorial, presumivelmente. Talvez devido às pistolas-metralhadoras. Pareciam
estranhíssimas. Como se fossem adereços de um filme. Não havia mais nada a fazer a não ser
esconderem-se. O 112 era praticamente como se não funcionasse. A polícia estava muito,
muito longe. E, em todo o caso, estava calor. Sempre era mais confortável dentro de portas,
com o ar condicionado.
O condutor do Cadillac caiu que nem um patinho. Julgava que a loja ainda era dele.
Atilhos, trapo, chão. Tiveram de se deslocar para encontrar o dono do armazém de vendas.
Apanharam-no à saída das traseiras do armazém, com um frasquinho de Pepto-Bismol. Atilhos,
trapo, chão.
E foi então que o filão se esgotou, quando a carrinha de caixa aberta se afastou
ruidosamente das traseiras do restaurante.
O que deixou Westwood completamente sozinho.
— Concordaram com o motor a gasolina — disse ele.
Reacher assentiu.
— Vão continuar com a intrujice até ao fim. Seja ela qual for.
— Presumo que tenham ido para a quinta.
— Que mais há aqui?
— E estamos prontos?
— Já fizemos o que podíamos.
— Eu ponho-nos lá.
— Eu sei que sim.
— E é nessa altura que me vão despachar, certo?
— Não o vamos despachar. A não ser que queira ser despachado — respondeu Chang.
— Não quero.
Reacher disse:
— Quem me dera poder enviá-lo para lá. Em vez de a mim. Já é um adulto. Não quero
saber o que lhe acontece. Venha, se quiser. Fique connosco até ao fim. Mas fique connosco do
meu lado esquerdo.
— E porquê?
— Sou destro. Gosto de ter liberdade de movimentos.
— Entendido. Vamos embora.

Normalmente, teria sido um test drive. Uma máquina desconhecida, conduzida brevemente
e à experiência por um potencial comprador. Só que Reacher não era um potencial comprador.
Raramente comprava fosse o que fosse, muito menos algo não consumível, e seguramente
nunca uma máquina agrícola. O vendedor sabia-o. E também não era Reacher que ia a
conduzir, pois não podia. Não o sabia fazer. O primeiro problema foi ultrapassado graças à
pistola-metralhadora e o segundo graças a Westwood, que, em tempos, tinha aprendido a
conduzir uma coisa daquelas porque, por vezes, os editores de Ciência deixavam-se convencer
a avaliar projetos científicos, o que, por vezes, levava a um envolvimento direto em boas ações
da treta num determinado bairro, o que implicava muitas vezes ter de andar a arrastar e atirar
uma merda qualquer, e era sempre melhor fazer isso com uma máquina.
Era uma retroescavadora New Holland, do concessionário de equipamento agrícola a norte
do caminho para as caravanas. Westwood fê-la atravessar a praça ruidosamente e passar pelo
motel. Se não era um test drive, era, no mínimo, um empréstimo por cortesia. Sem a parte da
cortesia. Mas não deixava de ser um empréstimo. Reacher não fazia tenções de ficar com ela.
Na parte de trás, tinha um braço com uma garra e uma pá, muito estreita, com dois dentes
agressivos. Uma coisa para cavar trincheiras. À frente, o balde era grande e alto, mas pouco
fundo. Parecia mais uma pá de buldózer. Era claramente uma máquina versátil. Podiam
acoplar-se às mais diversas coisas. Era novinha em folha e estava pintada com cores vivas e
completamente limpa. Cheirava a uma retroescavadora nova. A cabina dava à justa para três
pessoas, mas só havia um lugar. Ocupado por Westwood, pois tinha de ser. Havia uma série de
alavancas e pedais. Chang estava de lado, à esquerda de Westwood, e Reacher, entalado,
também de lado, à direita. O motor rugia. Aquilo tinha sido feito para trabalhar no duro e
percorrer distâncias curtas, para trás e para a frente, entre um buraco e um monte de entulho,
mas também tinha mudanças que lhe permitiam andar na estrada. Ao saírem da praça,
Westwood já tinha a coisa quase a ir a cinquenta quilómetros por hora.
Mas não em direção à entrada do caminho de acesso privado.
Em direção ao trigo.
Westwood pôs o balde da frente a meio metro do solo, com a ponta inferior toda esticada
para a frente. Como um queixo de metal. Foi desbastando o trigo, como uma gadanha romba,
com nuvens douradas e espessas de poeira e fragmentos a preencherem o ar, como uma
explosão linear contínua, e os escombros dos caules a fustigarem a parte de baixo, e, nas
extremidades do sulco, o trigo ondeava e roçava nos vidros das janelas. Na globalidade, o
terreno era plano, mas, na parte em que os pneus se cruzavam com a terra batida, era irregular,
cheio de altos e baixos. A retroescavadora parecia um barco a balouçar da popa à proa, com os
pneus aos saltos. Eram macios e inchavam e estrebuchavam a cada lomba. Westwood não
parava quieto no banco, para cima e para baixo. Reacher e Chang iam agarrados de lado, como
se fossem no metro e o comboio estivesse desgovernado.
O queixo de metal continuou a abrir caminho.
A poeira e os fragmentos revolteavam e gemiam à volta deles.
Cinquenta quilómetros por hora.
Com trinta para fazer.
Básico.
Quarenta minutos.
Mas era melhor do que ir pelo caminho de acesso privado. Que podia estar minado. Ou, no
mínimo, ter pregos. E que implicava de certeza uma aproximação direta, durante os últimos
quinze quilómetros, a uma esquina em ângulo reto, onde qualquer pessoa boa da cabeça que se
quisesse defender poria uma metralhadora de calibre cinquenta. Fazer a estrada de terra batida
de carro era igual a subir os degraus do motel dois a dois. Podíamos abatê-los como se fossem
esquilos. Mais valia ter alguma liberdade de movimentos. O que implicava um veículo todo-o-
terreno. O que implicava um aríete. E daí o balde da frente. Que também era à prova de bala e
do tamanho do colchão de uma cama de casal. Aço pesado, para carregar pedregulhos
irregulares. Havia uma nesga de visibilidade lá de cima. Tanta quanto precisavam. Pelo menos,
para o trigo. Até ali, tudo bem. O plano estava a resultar. Tirando uma pequena consequência
não intencional. Sobretudo por causa de abanões e solavancos.
A dor de cabeça de Reacher estava a regressar.

Ao longo da maior parte do percurso, a quinta estava escondida pelo trigo e, por isso,
foram-se orientando pelo Sol. Não era cem por cento certo, mas andava lá perto. O primeiro
contacto visual ocorreu uns quatrocentos metros antes do sítio para onde estavam a apontar e
basicamente no momento previsto. Uma casa e seis anexos. Vedações e terra batida. Uma linha
telefónica no cimo de postes. O respiradouro de saída do gerador a diesel.
E o fedor a porcos.
Como uma arma química.
Westwood fez a retroescavadora descrever um arco para depois voltar a avançar de frente e
parar a uns duzentos metros da quinta. O motor ficou a roncar em ponto-morto. Os últimos
fragmentos de trigo assentaram de novo na terra.
Silêncio.
Completamente sozinhos.
Reacher sentiu-se como um predador diante de um bebedouro.
E, de repente, o bebedouro começou a dar tiros.
Três armas a disparar. Espingardas. Todas iguais. Bem específicas. Latidos secos e robustos
e balas rápidas a estalarem no ar. Munições da NATO a saírem de M16, apostaria Reacher se
fosse dado ao jogo. E todas, até então, a falhar. Compreensível. Era um tiro que enganava.
Duzentos metros, completamente plano, olhos nos olhos. Só que era completamente curvo, já
que fazia parte de um planeta esférico. E daí o erro de cálculo.
— Acham que devíamos recuar? — perguntou Westwood.
— Não — respondeu Reacher.
Contou mentalmente. E disse:
— Avance cinquenta metros. Já. Aumente a pressão. Eles estão quase a mudar de
carregador.
— Avançar cinquenta metros?
— Já.
Westwood avançou.
Um intervalo nada perfeito. Bastante lento. Não tinham tido treino de infantaria, não havia
dúvidas nenhumas disso. A seguir, recomeçaram os tiros a olho. Sempre sem acertar no alvo.
Até uma bala acabar por acertar.
Mesmo no meio do balde da frente. Com a estrutura a vibrar muito ao de leve. E a bala a
aterrar no chão. E só depois se ouviu o som, já fora de tempo, um clang sonoro.
— Estou impressionado — afirmou Reacher.
— Com quê? — perguntou Chang.
— Acertaram finalmente num alvo que é só um bocadinho mais pequeno do que a porta de
um celeiro. E provando com isso que o balde da frente é de facto à prova de bala. Portanto,
podemos prosseguir.
— Já? — perguntou Westwood.
— Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje.
— Tem cuidado, Reacher — disse Chang.
— Tu também, Chang — retorquiu Reacher.
Abriram as respetivas portas e saltaram para o chão, um à esquerda e o outro à direita.
CINQUENTA E CINCO

Westwood tinha-se referido à pesquisa que efetuara recentemente e explicado que o trigo à
antiga crescia até mais de um metro de altura, mas que, atualmente, estava a ser produzido de
uma planta mais robusta, com mais sementes, sem ultrapassar os sessenta centímetros. E, nesse
caso, os agricultores da zona ainda eram à antiga. O trigo tinha à vontade mais de um metro de
altura. Não é que Reacher precisasse disso para proteção. Quase não era preciso proteção
contra tipos incapazes de acertar num alvo que era só um bocadinho mais pequeno do que a
porta de um celeiro. Mas o efeito-surpresa era sempre bom. Por isso, foi a rastejar. Alguma
perturbação visível, mas subtil e difícil de localizar com exatidão, a duzentos metros de
distância. O orvalho noturno não se tinha evaporado. Ficou com os joelhos e os cotovelos
cheios de lama. O futuro passava por roupa nova. Isso era evidente. Mesmo sem a lama. O
cheiro dos porcos era bastante mau. O ar estava carregado dele. Mais tarde ou mais cedo, iria
penetrar no tecido. Portanto, uma nova vestimenta para o dia seguinte. Em todo o caso, uma
boa ideia, pensou, com Chang por perto.
Mas depois lembrou-se: isto acaba hoje.
Amanhã já não vai haver Chang por perto.
Depois de percorrer cem metros num movimento lateral, fez uma curva apertada na
direção da quinta, com o objetivo de se ir aproximando enquanto contornava o respetivo
perímetro. O mais próximo possível. Se parasse a menos de trinta metros, já ficaria contente.
Era um grande admirador da MP5K. Era uma pistola ligeiramente ampliada que funcionava
como uma miniespingarda. Com a opção de tiro único selecionada, tinha hipóteses de acertar
num alvo a vinte e sete metros. Ou vinte e quatro. Ou mesmo vinte e três. O que seria um
bónus.
Passados cinco minutos, arriscou levantar a cabeça para perceber onde se encontrava. Num
sítio bastante bom. Tinha feito a curva no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, das
dez para já depois das oito. E tinha-se aproximado muitíssimo. E, claro, as forças adversárias,
por não confiarem na própria pontaria, tinham-se agrupado o mais perto possível da ameaça
principal, sem descurar no entanto a segurança. Consideraram a retroescavadora a ameaça
principal e a proteção que se encontrava mais perto correspondia a um anexo próximo da
vedação, mais ou menos do tamanho de uma garagem individual. Estavam três tipos
escondidos atrás dele. O que os punha exatamente ao lado de Reacher. Claro como água. Uma
manobra de flanqueamento clássica. Em West Point, ficariam orgulhosos.
O homem do balcão do restaurante encontrava-se lá. Tal como o gerente zarolho do motel.
E o criador de porcos, que encabeçara a delegação escadas acima. Mãos grandes, ombros largos
e roupa cheia de sujidade.
E tinham todos espingardas M16.
Reacher esperou. Doía-lhe a cabeça, de ambos os lados.

Chang rastejou na direção contrária e aproximou-se mais depressa, já que não lhe cabia
flanquear. Cabia-lhe esperar que a retroescavadora avançasse e, a seguir, abrir uma segunda
frente com uma rajada de tiros prolongada. O que os forçaria a abrigarem-se e, nessa altura,
Reacher alvejá-los-ia pelas costas.
O plano dele era esse. Ela duvidara. Mas o plano tinha resultado até ao momento. Reacher
previra quatro prisioneiros iniciais e conseguiram cinco. E tinha previsto que, na quinta, iriam
disparar, mas falhar, e também acertara nisso. Mas, ainda assim, ela tinha-lhe perguntado outra
vez se aquela parte iria resultar. Não, não vai, respondera ele. Vão recuar para a casa. Uma
retirada controlada. Já devem ter uma posição preparada. Qualquer coisa pronta a aguentar o
que for preciso. Tipo uma sala segura.
Então porque vamos fazer isso assim?, perguntara ela.
Porque talvez nos saia a sorte grande, respondera ele.
Chang continuou a rastejar. Queria aproximar-se mais. Sabia os números. Um carregador
com trinta balas esgotar-se-ia em dois segundos. E ela queria que ambos contassem. Queria que
lhe saísse a sorte grande. Se acertasse num e ele, noutro, já eram menos dois para mais tarde. O
que era bom.
Palavras que ela nunca tinha dito, antes de o conhecer.
Continuou a rastejar, aproximando-se cada vez mais. O cheiro dos porcos era horrível.
Mentalmente, ajustou a posição dela à imagem de satélite. Estava no equivalente às onze horas.
A pocilga encontrava-se às três. E fedia. O que lhe dizia duas coisas. Não estavam a falar de
uma estância refinada. Era impossível. Havia gente que nem se conseguiria aproximar. Pelo
menos, sem vomitar.
E Keever estava enterrado ali. Sabia-o. Na pocilga. Não podiam cavar nos campos. Até uma
versão mais lenta da velocidade a que Westwood conduzira seria visível do ar. E preocupar-se-
iam com o ar. Tinham a carteira de Keever. Tinham-lhe visto os cartões do FBI. Defuntos,
como os dela, mas isso eles não sabiam.
Sentiu-se próxima dele.
Levantou a cabeça. Viu uma vedação e um anexo mais ou menos do tamanho de uma
garagem individual. A retroescavadora estava parada, sozinha e em ponto-morto, embrenhada
no trigo, bem à direita de Chang. O anexo era a única coisa que lhes servia de proteção contra a
máquina. Pelo menos, um deles iria inclinar-se para fora para disparar. Mesmo à frente dela.
Pousou dois carregadores sobresselentes no chão. Ao lado um do outro e prestes a usar.
Queria que lhe saísse a sorte grande.
Selecionou a opção de tiro automático.
Fez pontaria.
Esperou.

Westwood fez o motor ganhar vida, começando a puxar alavancas e a empurrar outras,
pondo o balde da frente na vertical e subindo-o, até já só conseguir ver pelo para-brisas a sua
superfície traseira pintada. Segurança acima da visibilidade. Doravante, a parte do plano que
lhe tocava era fluida. Reacher tinha-lhe dito para segurar no volante sempre a direito e avançar
lentamente. Às cegas. Sempre em movimento. Atravesse a vedação, se necessário. Não se
preocupe. Não pare. A não ser que aconteça alguma coisa primeiro.
Fluida.
O futuro do jornalismo. A Internet alterara tudo. Agora, as notícias eram uma coisa
pessoal. O jornalista tinha de fazer parte delas. Um relato na primeira pessoa. O jornalista tinha
de ser a notícia.
Blogues, artigos, plataformas, acordos para os direitos para livros.
Carregou na embraiagem. E meteu a primeira.
Arrancou.

Reacher ouviu a retroescavadora mover-se. Sentiu-se tonto. Estava de joelhos, mas a


balançar. Levantou a cabeça. Duas vedações. Dois anexos. Seis tipos. Visão dupla. Bateu com a
parte inferior da mão na testa. Experimentou outra vez.
Melhor.
Bem à esquerda, a retroescavadora começou a avançar. Os pneus grandes e vazios cediam e
fletiam. Os três tipos estavam de costas para ele, colados às traseiras do anexo. Com as
espingardas na diagonal em relação ao corpo e a apontar para a esquerda. Foi então que o
homem do balcão virou a esquina do edifício e se deslocou sorrateiramente ao longo da parede
do fundo. Ao chegar à outra esquina, espreitou com cautela. E ergueu a espingarda.
Reacher fez pontaria. A H&K era basicamente um cano com trinta centímetros e um cabo
de pistola nas duas pontas. Extremamente precisa. E uma mira não telescópica.
O homem do balcão apontou para a retroescavadora. E esperou. Atrás dele, o zarolho
deslizou em direção à outra esquina.
A retroescavadora seguiu em frente. Os pneus fizeram barulho na lama. O trigo raspou na
parte de baixo do balde e voltou a subir de rompante.
A cabeça de Reacher continuava a doer-lhe, de ambos os lados. Uma contusão cerebral, na
verdade, duas, tanto direta como indireta. A faiscar num arco voltaico, como eletricidade.
Foi então que Chang disparou.
Em modo completamente automático. Novecentas balas por minuto. Inacreditavelmente
depressa. Um curto borrão de som, como uma máquina de costura frenética. Dois segundos.
Um carregador inteiro. A terra batida foi suturada com uma sequência de tiros e uma farpa de
madeira voou do anexo.
O zarolho recuou, abrigando-se.
O homem do balcão rodou ainda mais à esquina, à procura da nova fonte de perigo.
Reacher acompanhou o movimento com a pistola-metralhadora. Mira traseira, mira dianteira,
alvo.
Reacher disparou. Modo de tiro único. A vinte e cinco metros de distância. Parabellum de
nove milímetros, 124 grãos, balas encamisadas. Velocidade inicial a rondar os mil e trezentos
quilómetros por hora. Tempo de chegada ao alvo inferior a quinze avos de um segundo.
Praticamente de imediato.
A bala atingiu o tipo em cheio no cimo das costas, junto ao pescoço. Um tiro na coluna.
Sortudo. Reacher tinha apontado mais para baixo, para o meio do corpo. A parte maior de um
alvo. Sempre o mais seguro. Com uma vantagem intrínseca. O meio era o meio. Havia coisas à
volta, de um lado e do outro, e, sobretudo, para cima e para baixo. As pernas e a cabeça. Os
tiros falhados tinham para onde ir. O tipo caiu. Um simples e lento movimento de encontro à
esquina do anexo, o que o fez dar uma volta e estatelar-se ao comprido.
O criador de porcos atirou-se para o chão. Para onde não o podiam ver. Atrás do trigo. Um
tipo esperto. Mas o gerente zarolho deu um passo em frente. Ergueu a espingarda. E disparou.
A bala estalou no ar, rasgando o trigo, e parou uns dez metros à direita de Reacher.
Chang voltou a disparar.
Um segundo carregador. Ainda bem. Era um sinal de determinação. O mesmo ronronar
desenfreado. Terra a levantar e farpas a voar.
E, a seguir, silêncio.
O zarolho voltou para a esquina, inclinou-se para o outro lado e fez pontaria na direção de
onde tinham vindo os sons.
A retroescavadora continuou a aproximar-se.
Uma partezinha da cabeça de Reacher não queria disparar contra o zarolho. É um pobre
velhote deficiente. Não parecia justo. Só que, naquele preciso momento, o pobre velhote
deficiente tinha uma arma mortífera apontada a Chang. Por isso, Reacher fez pontaria. A uns
vinte e sete metros. Focou a mira dianteira. Um pauzinho como uma agulha, dentro de um
anel. Fitou a tinta. Cada recorte e pormenor a nível molecular. Penetrantemente. A mira
traseira transformou-se num borrão. E o alvo também. Para um máximo de precisão. Tinham-
no treinado assim. A mira dianteira era tudo. E, mais cedo ou mais tarde, tudo aquilo se iria
fundir. Borrão, pauzinho e borrão. E assim foi. As três coisas mesclaram-se. Tornando-se
lineares. E firmes.
Disparou.
A mesma coisa. Uma trajetória ascendente. Dessa vez, vinte e sete metros em vez de vinte e
cinco. Mais doze por cento de tempo no ar. Mais doze por cento de subida. A bala atingiu o
zarolho na nuca. Na medula alongada. Os primeiros vestígios titubeantes de inteligência. Um
rebentozinho de há cem milhões de anos. Os lobos cerebrais. Com cerca de dois centímetros e
meio de espessura. A bala penetrou-a num milésimo de segundo. Encamisada. A pressão
hidrostática rebentou com ela. O tipo já estava morto antes de o som do disparo ter deixado de
se ouvir do outro lado da vedação. Caiu como uma porta a fechar-se com força.
A retroescavadora continuou a aproximar-se.
E o criador de porcos começou a correr.
Reacher passou para o modo completamente automático, levantou-se e disparou, com a
boca da arma a fustigar o tipo, como se estivesse a espalhar tinta. O resto do carregador, vinte e
oito balas, uma máquina de costura só dele. Mas falhou os tiros todos. Muito baixos. Não tinha
os pés bem assentes no chão. Estava desequilibrado. E tonto. Temporariamente. Sacudiu a
cabeça e ficou bom.
Chang disparou novamente. Um terceiro carregador. Em modo completamente
automático. Mas muito para cima. Voaram ripas de madeira do telhado do anexo. O tipo fugiu
a toda a velocidade e desapareceu de vista.
A retroescavadora continuou a aproximar-se.
Foi nessa altura que Reacher também se pôs a correr, mergulhando pelo trigo dentro,
esmagando os caules, com uma passada larga, prosseguindo a custo, debatendo-se, num ângulo
oblíquo em direção à retroescavadora. Westwood viu-o pela janela lateral e parou. Chang veio
a correr do outro lado e não parou. Contornou a máquina e abraçou Reacher com força.
— Estás bem? — perguntou-lhe.
— Vou-me aguentando — respondeu ele.
— Apanhaste dois.
— E ainda faltam outros tantos. Iam quatro na carrinha.
— Como fazemos?
— Primeiro, encontramo-los.
— Falaste numa sala segura.
Voltaram para dentro da cabina, um à esquerda e outro à direita, flanqueando Westwood e
ficando de lado. Sem verem pela frente.
— Onde iriam eles construir uma sala segura? — perguntou Westwood.
— Não construíram — respondeu Reacher. — Já a tinham. De certeza que todas as quintas
deste estado têm isso. Preparada para aguentar os maiores impactos.
— Um abrigo contra tornados — disse Chang.
— Exato. Por baixo da casa. Com uma saída secundária noutro sítio. Para o caso de a casa
ruir sobre o alçapão. Todas as casas devem ter isso. E de certeza que estes tipos têm. Precisam
dessa versatilidade. Provavelmente, um túnel até outro local completamente diferente. Com
um alçapão de fuga escondido. E é isso que precisamos de encontrar primeiro. Para podermos
estacionar um camião lá em cima.

Westwood fez o motor ganhar novamente vida, puxando as mesmas alavancas, mas pela
ordem contrária, com o balde da frente a inclinar-se para trás e a descer, até ele começar a
conseguir ver por cima do objeto. Uma abertura exígua. Já não era completamente seguro, mas
era um meio-termo razoável.
Esperou.
— Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje — repetiu Reacher.
A retroescavadora deu um solavanco e fixou o andamento numa velocidade moderada, aos
pinotes em cima dos pneus desajeitados. A cento e cinquenta metros de distância. A cem.
Dirigindo-se para a vedação. Aproximando-se. Cada vez mais. E rebentando com ela, estacas a
voar, para a esquerda e para a direita, e farpas de nogueira-americana a espalharem-se pelo ar,
para depois continuar, contornando o primeiro anexo pela esquerda, passando pelo zarolho
morto, e entrando no recinto de terra batida. Onde abrandaram e, a seguir, pararam. E
esperaram. Já não eram um predador diante de um bebedouro. Eram um combatente numa
arena.
Ninguém disparou contra eles.
Não houve reação.
A realidade correspondia basicamente à imagem vista pelo Google. Só que de um lado ao
outro e não para baixo. A casa ficava mesmo em frente e, mais perto, à direita, encontrava-se a
suíte do suicídio. À esquerda, estavam o barracão com o gerador e um pequeno edifício do
tamanho do sítio atrás do qual os três tipos se tinham escondido. E muito depois da casa, para
leste, ficavam o abrigo da pocilga e o celeiro. Mais ou menos separados. O caminho de acesso
intrometia-se no meio deles. Onde surgia a linha telefónica nos postes de eletricidade.
Não havia tubo de escape.
Nem movimento.
Westwood tirou a pistola de dentro da bota.
— A próxima parte é num registo estritamente voluntário — disse Reacher.
— Eu sei.
— Mantenham-se juntos e comecem pela casa.
Saíram da cabina.
Ninguém disparou contra eles.
Não houve reação.
Nada de nada, a não ser o fedor da pocilga.
Avançaram pela terra batida, em direção à casa, os três em fila, com Chang à esquerda,
Westwood, ao meio, e Reacher, à direita, com a cabeça a doer-lhe como se lhe estivessem a
espetar um picador de gelo no ouvido.
CINQUENTA E SEIS

Reacher ficou de guarda na varanda da frente enquanto Chang e Westwood entraram para
procurar lá dentro. Manteve-se atento. A saída secundária podia ser em qualquer sítio. Podiam
aparecer surpresas repentinas de qualquer lado. Mas não apareceram. Não aconteceu nada.
Passados dois minutos, Chang saiu da casa e anunciou:
— Descobrimos a entrada principal. O Westwood está de olho nela. Aquilo parece um
jardim zoológico ali dentro.
Substituiu-o na varanda e Reacher entrou, encontrando Westwood num corredor que dava
para um quarto. Estava a vigiar o interior do que poderia ter sido em tempos um armário para
a roupa de cama. Agora, estava ocupado por um alçapão enviesado, num ângulo de quarenta e
cinco graus entre a parede do fundo e o chão. E num ângulo de quarenta e cinco graus porque,
presumivelmente, estava a tapar uma escada. Para uma sala subterrânea, sem dúvida. Estava
fechado, mas, tal como todas as contraportas, abriria para fora. Para o vento nunca o poder
escancarar.
Reacher calculou a distância, a largura do corredor e a profundidade do armário até meio
do alçapão enviesado, e, a seguir, pôs-se à procura da sala de estar, onde percebeu o que Chang
queria dizer ao falar de um jardim zoológico. Era como a casa de Peter McCann, em Chicago,
mas dez vezes mais caótica. Havia ecrãs por todo o lado, no mínimo vinte, dezenas de teclados
e de torres, estantes altas com componentes a zumbir, pilhas de unidades de disco rígido,
ventoinhas, fichas, tomadas e luzes a piscar, mas, acima de tudo, cabos, quilómetros de cabos,
em molhos, emaranhados e enrolados.
De momento, Reacher não queria nada daquilo.
Prosseguiu, dando com uma zona de estar e olhando para o sofá. Uma coisa grande e velha.
De três lugares, confortável. E com braços extravagantes e intricados. Suficientemente
comprido. Levou-o, ou arrastou-o, para o sítio de onde tinha vindo. Para o corredor. Onde o
pôs em pé, fazendo-o avançar e voltando a deixá-lo cair, de lado, entalado entre a tampa do
alçapão e a parede em frente.
Um buraco tapado.
Depois, reuniram-se no alpendre e calcularam mais ou menos onde seria o segundo buraco
por estimativa e fartando-se de apontar, gesticular e explicar coisas visualmente. A casa era
retangular, como a maioria das casas, o que queria dizer que o abrigo também seria, e na
mesma direção. Tinha de ser, seguramente. Não havia volta a dar, do ponto de vista
arquitetónico. E a natureza humana dizia que, se a porta principal ficasse numa ponta, o
alçapão ficaria na outra. Portanto, o túnel seguiria a coluna da casa, perpendicularmente à
empena, passando por baixo do recinto, na direção do barracão do gerador ou, possivelmente,
do edifício mais pequeno logo ao lado.
O barracão faria mais sentido. Tinha uma base de betão, estava bem concebido e integrar-
se-ia facilmente com a entrada do túnel. À superfície, o ambiente era de trabalho, verificado
com frequência. Limpo, eficiente e seguro. Sem tralha a acumular. O alçapão perfeito. Por
todas as razões certas.
Mas, por todas as razões erradas, optariam pelo edifício mais pequeno. Não esperavam
simplesmente conseguir passar a perna à natureza. Às pessoas, também, na pior das hipóteses.
Seria escusado saírem por um sítio lógico.
O edifício mais pequeno tinha portas duplas, como uma garagem à antiga. A fechadura
estava enferrujada, com as portas abertas, o que aumentava as probabilidades do edifício. Não
havendo sequer fechadura, seria o mais seguro. As chaves perdiam-se. Não valia a pena estar a
escapar por um fio para depois passar a noite trancado num celeiro.
Abriram as portas de par em par e viram uma confusão de tralha. Sobretudo, sucata de
metal, mais umas latas velhas de tinta. Havia uma capa de proteção largada no chão. Não era
um ambiente de trabalho. Não era verificado com frequência. Não era limpo, eficiente ou
seguro. Não era um local provável.
Mas.
A confusão de tralha parecia um pouco engenhosa. Havia um vazio onde a lógica e a
gravidade não o teriam posto. Tal como havia outros vazios, de certa forma ligados, como se
uma pessoa se pudesse apressar de um para o outro e chegar lá fora num ápice.
O vazio principal ficava precisamente por cima de uma ligeira saliência na capa de proteção
salpicada de tinta.
Reacher afastou a capa e viram o mesmo género de alçapão que tinham encontrado na casa.
Já não enviesado, perfeitamente a direito no chão e com cimento a toda a volta.
Estava fechado.
— Extraordinário — soltou Reacher.
Chang foi à procura de uma carrinha que tivesse a chave lá dentro, ao passo que Reacher e
Westwood se entretiveram a afastar sucata, para ela poder entrar quando encontrasse uma.
Regressou na carrinha de caixa aberta que tinham visto a arrancar em grande velocidade de
trás do restaurante. Entrou e pôs-se a virar de um lado para o outro até ficar com a roda
esquerda dianteira centrada no alçapão.
Segundo buraco tapado.
Chang saiu da carrinha, olhou para a sucata e perguntou:
— Que raio de coisa é essa?
O que era uma boa questão.

Na sucata, só havia aço temperado, uma parte tubos retangulares, outra autênticas hastes e
outra ainda chapas de um por oito marteladas em estranhas formas frisadas. Estava tudo
enferrujado e, quase sem exceção, esborratado aqui e ali com tinta ou manchas pretas. A
maioria dos tubos e todas as hastes estavam soldados, aparentando corresponder a partes de
uma vedação. Algumas tinham um metro e vinte por sessenta centímetros, outras, um metro e
vinte por um metro e vinte, e, as últimas, um metro e oitenta por noventa centímetros.
Estavam todas amontoadas numa pilha irregular e confusa.
E nenhuma fazia sentido. A vedação que tinham rebentado com a retroescavadora era de
postes e estacas, de madeira, com arame farpado acoplado. Não havia vedações metálicas na
propriedade. Nem em todo o condado, tanto quanto Reacher tinha visto. Talvez nem no estado
inteiro. E as partes não batiam certo. O tamanho não era uniforme. Não havia maneira
coerente de as prender umas às outras. Não servia de muito ter uma vedação em que uma parte
tinha noventa centímetros de altura, a outra, um metro e oitenta, e, a outra, um metro e vinte.
Além disso, os buracos para os pinos não eram todos iguais. Uns eram verticais e os outros,
horizontais.
Havia partes com dobradiças.
Não era uma vedação.
— Oh, meu Deus! São jaulas — exclamou Chang.
As chapas tinham sido cortadas em faixas e, a seguir, enroladas, marteladas e soldadas.
Formas enferrujadas e manchadas de preto, como tudo o resto. Havia aros articulados com
pouco menos de dez centímetros de diâmetro e uns olhos em U soldados.
Algemas.
E havia aros articulados com mais ou menos o dobro do diâmetro e picos compridos
soldados.
Colares de escravo.
Havia máscaras de ferro rudimentares, mais tenazes e pregos.
— As manchas pretas — atirou Chang. — Acho que são sangue.
Saíram pelas portas duplas e ficaram parados ao sol. Que não os aqueceu. Viraram-se e
olharam para a casa. E para a suíte do suicídio, ao lado.
— A próxima parte é num registo estritamente voluntário — repetiu Reacher.
Começou a andar. Chang acompanhou-o. Westwood hesitou uns segundos e depois
apressou-se para se juntar a eles.

A suíte do suicídio era um anexo com mais ou menos metade do tamanho da casa. Possuía
alicerces em betão, a dar pelo joelho, mais coisa, menos coisa, e com manchas cor-de-laranja da
lama que a chuva fazia respingar das poças. A seguir, vinha um forte revestimento de cartão
alcatroado. O telhado era de ripas de madeira. Uma construção convencional, quadrada, sólida
e duradoura. Um fio de alta tensão da grossura do dedo de Reacher dava voltas por baixo dos
beirais.
Não havia janelas.
E a porta estava trancada.
— Preparada? — perguntou Reacher.
— Nem por isso — respondeu Chang, com uma voz que parecia fraca, pejada de derrota.
Lembrou-se de quando ela se encostara a ele, na loja do condutor do Cadillac, para
espreitar para a lista telefónica. À procura do M de Maloney. Lembrou-se das pilhas de caixas.
Duas tinham vindo diretamente de fabricantes estrangeiros. Uma, de material médico alemão
de aço inoxidável estéril, e, a outra, de uma câmara de vídeo japonesa de alta-definição.
Lembrou-se do tipo de Palo Alto, a interrogar-se sobre o comentário perdido feito num chat
pelo tipo chamado Blood. Ouvi dizer que Mother’s Rest tem boas cenas. Num chat que o tipo de
Palo Alto não reconheceu. Outra comunidade qualquer. Um site de entusiastas, ao que parecia.
Nas profundezas da Deep Web.
Reacher deu um passo atrás para depois avançar e espetar o tacão na fechadura. A porta
abriu de rompante para dentro e, a seguir, fez ricochete na parede. Parou-a abruptamente,
segurando-a com os dedos abertos, e entrou.
Um vestíbulo. E um cheiro. Pior que o dos porcos. Mais à frente, ficava uma cozinha, com
canecas e garrafas de água. Mais fios, cabos, tomadas e fichas, todos amontoados e
emaranhados, utilizados e esquecidos. Um local de trabalho. À esquerda, um pequeno átrio,
com uma porta à direita e outra no fim. A porta da direita era uma casa de banho. Nem limpa
nem suja. Um espaço eficiente. Comunitário. Na parede em frente, estavam cabides. Uma fila
de quatro. Carregados, mas não de casacos.
De aventais de borracha.
Tinham manchas castanhas e pretas.
Reacher experimentou a porta no fim do átrio.
Destrancada.
Doía-lhe a cabeça.
— Preparada? — perguntou.
— Nem por isso — repetiu Chang.
Uma voz fraca, pejada de derrota.
Abriu a porta. Escuro como breu. Um cheiro horrível. Frio. O som vazio de um espaço
amplo. Superfícies duras. Alguns obstáculos. Apalpou a parede, à procura de um interruptor.
Descobriu-o.
E ligou-o.
Viu a mulher de branco.
Não ia a uma receção ao ar livre, em Monte Carlo. Não ia ao governo municipal
comemorar o quinto casamento. E não ia para um anexo privado com um ambiente
repousante, onde se poderia pôr à vontade e beber Nembutal ou então deitar-se na cama
enquanto um velho motor V-8 fazia suavemente o que tinha a fazer.
Nada disso.
Estava acorrentada pelos pulsos a uma parede de azulejo branco.
Afundada e junto ao chão.
Salpicos de sangue por todo o lado.
Mais do que morta.
Reacher não era de maneira nenhuma um patologista competente, mas calculou que ela
tivesse sido morta à pancada, com um bastão de basebol. Estava uma coisa dessas no chão,
encrostada de sangue. A ficar preto, como as manchas na sucata. A mulher tinha hematomas
lívidos e ossos partidos. O crânio estava deformado. E o cabelo, emaranhado. O vestido branco
justo estava imundo, com sangue e vómito.
Havia um conjunto de material de vídeo virado para ela. Três câmaras de televisão
montadas em tripés robustos e holofotes em suportes, com chapas presas de difusores
translúcidos. E cabos a serpentearem de uma ponta à outra do chão. Os azulejos brancos
formavam uma espécie de palco. Ocupavam o último terço das paredes laterais, a parede dos
fundos inteira e o último terço do chão. Uma arena. Iluminar-se-iam por completo. Com
imensa definição. E imenso detalhe.
Azulejos brancos manchados de cor-de-rosa.
Havia microfones por cima do palco.
Dois.
Estéreo.
E um papel afixado num dos tripés. Um e-mail, impresso. Que dizia: Quero ver uma cabra
mandona espancada até à morte com um bastão. Tipo uma diretora executiva. Façam a coisa
durar o máximo que for possível. As pernas, primeiro. E obriguem-na a dizer sem parar desculpa,
Roger, desculpa, Roger. Estou disposto a pagar cem mil.
Outra comunidade qualquer. Um site de entusiastas.

O site de entusiastas chamava-se Mother’s Rest, tal como o engodo. Westwood e Chang
conseguiram pôr os computadores a funcionar. Na casa. Eram só vídeos em streaming. Pay-
per-view. Imenso dinheiro. O mais barato custava o mesmo que um carro. Morto à Fome era o
mais caro. Presumivelmente, devido ao tempo que demorava. Muitas horas de trabalho.
Grávida e Abaionetada vinha a seguir. Tiro no Estômago também era dispendioso. Havia listas
dos títulos mais populares. E listas com os últimos vídeos visionados. Em todo o género de
categorias. Vítima masculina, vítima feminina, casais, novos, velhos, negros, brancos, golpes
com instrumentos cortantes, esfaqueamentos, espancamentos, ferramentas elétricas, inserções
brutais, experiências médicas, eletricidade, afogamento e execuções a tiro.
Também havia uma área de material por encomenda. O nível cinco. Os membros da
comunidade eram convidados a enviarem pedidos. Tão pormenorizados quanto quisessem.
Guiões inteiros, se preferissem. A satisfação do cliente seria procurada ao máximo. Dependia
tudo de aparecer o ator certo. Não era necessário pagar antes de se chegar a um acordo em
relação à cara e ao preço.
Chang desceu a página do catálogo até ao fim e disse:
— Vê só.
Uma voz fraca, pejada de derrota.
Reacher olhou. O último título adicionado à videoteca de Mother’s Rest tinha acabado de
chegar, novíssimo, e estava disponível para streaming instantâneo. Chamava-se Homem Magro
com as Costelas Todas Partidas Primeiro.
O tipo do comboio. Do fato e da camisa formal. Com a elegante sacola de couro.
Era magro.
A cabeça de Reacher continuava a doer-lhe.
Chang puxou a página para cima, dos títulos novíssimos para os recentes, e parou quando
leu Casal Triste com Razões para Estar Triste.
— Isto tem de ser o Michael McCann e o amigo Exit. Não achas? — soltou.
Reacher ficou calado.
— Vejam-me isto — atirou Westwood.
Estava numa espécie de diretório de base. Apontou para as várias linhas com números. E
disse:
— Vamos chamar-lhes filmes. Porque é isso que são. Filmes snuff. Alguns muito longos. O
mais curto tem duas horas. O mais antigo é de há cinco anos e o mais recente foi posto ontem.
A seguir, percorreu o ecrã com o dedo e parou perto do final da página.
— Adivinhem lá quantos filmes eles fizeram antes do primeiro telefonema que recebi do
McCann. — disse.
— Duzentos — respondeu Reacher.
— Agora, duzentos e nove.
Reacher ficou calado.
— Querem ver o Morto com Mil Golpes? — perguntou.
— Não.
— O que será que teriam chamado ao meu filme?
— Ataque a Um Jornalista Medíocre, provavelmente. Esfaqueado até à morte com canetas.
— E quanto tempo dura esta burla? Quando é que as pessoas descobrem a verdade? Só
depois de entrarem naquela sala?
— Acho que descobrem quando o condutor do Cadillac lhes abre a porta e sentem o cheiro
dos porcos. Acho que é nessa altura que as armas aparecem — respondeu Chang.
— Devíamos perguntar — afirmou Reacher. — Sabemos onde os burlões estão.
Foram até ao corredor. E avançaram para o antigo armário. Para o sofá, entalado entre o
alçapão e a parede em frente.
— É mais fácil tirar a carrinha do sítio — disse Reacher.
— Estás bem? — perguntou Chang.
Ele assentiu.
— Dadas as circunstâncias.
Saíram pela frente e seguiram até onde calcularam que o túnel fosse dar, ao pequeno
edifício das portas duplas. Chang entrou para a carrinha e fê-la avançar. Saiu, deixando-a em
ponto-morto. Olhou para o alçapão e perguntou:
— Como queres fazer isto?
Reacher respondeu:
— Duvido que estejam mesmo ali, neste preciso momento, agachados. Mas há que nos
prepararmos para o pior. O Westwood abre o alçapão e recua e nós apontamos pelo buraco
abaixo. Okay?
Ela assentiu. E Westwood também. Reacher posicionou-se mesmo no meio, com a H&K
pronta. Novo carregador, tiro completamente automático. Chang fez exatamente o mesmo, à
esquerda.
Westwood baixou-se e agarrou no puxador.
Abriu o alçapão com força e deu um salto para trás.
Não havia buraco.
CINQUENTA E SETE

As peças que formavam o alçapão tinham sido compradas numa loja e, a seguir, cimentadas
num chão de betão plano. Não havia buraco nem o cimo de uma escada. Não havia nenhum
tipo de penetração. Um bloco contínuo e ininterrupto. A mesma superfície pedregosa à
esquerda, à direita e por baixo do alçapão.
Como um olho cego.
Uma coisa falsa.
Um engodo.
— A culpa é minha. Não pensei — desabafou Reacher.
— Não vale a pena chorar sobre o leite derramado. Mas precisamos de descobrir onde é que
a coisa está mesmo — retorquiu Westwood.
— Não — respondeu Chang. — Precisamos de descobrir se já se serviram dela.
Uma questão que foi respondida de imediato por um crack supersónico no ar,
acompanhado do gemido sibilante de uma espingarda e do impacto granuloso de uma
munição NATO a atravessar uma parede de madeira, a um metro da cabeça deles. As ondas
sonoras eram mais lentas do que as balas. Mas, naquele caso, a diferença não foi grande. O que
queria dizer que a espingarda estava perto. A uns trinta metros, pensou Reacher. O que era
mais do que perto. Estava a aproximar-se da queima-roupa, mesmo para aqueles tipos.
Entraram a correr no edifício e outro tiro atravessou a madeira, deixando ver um pedaço de
sol brilhante. E mais outro, a menos de três metros do anterior. A tática de disparar através da
parede. Sem ver. Completamente ao acaso. Aquilo era a força de elite, pensou Reacher. Tipos
que eram capazes de acertar na parede lateral de um celeiro. Passou pelo meio de uma confusão
de metal, até ao canto de trás mais afastado. Invisível do exterior. E bastante invulnerável. Não
estava protegido por nenhum tipo de proteção física, mas estava protegido pela lotaria que era
fazer pontaria às cegas. As paredes não valiam nada, mas os números nunca mentiam.
Arrancou o revestimento da parede dos fundos a pontapé, na parte de baixo, bem rente ao
chão, abrindo um buraco com sessenta centímetros de altura e um metro e vinte de
comprimento, e depois um metro e meio, quando ele afastou mais umas tábuas a soco.
Suficientemente grande para se escapulirem. Primeiro Westwood e a seguir Chang. Outra bala
atravessou a parede. Depois, foi a vez de Reacher sair. Começaram a recuar, sempre com o
edifício pela frente. Atrás só havia trigo. À esquerda, ficava o anexo próximo da vedação
destruída. Com os tipos mortos. A retroescavadora estava parada à direita. A uns vinte metros
de distância. Mais à frente, encontravam-se o estúdio de cinema e a casa. E, mais à frente, à
esquerda, encontrava-se o barracão do gerador. Sítios de sobra.
Mas todos completamente expostos. Vinte metros, no mínimo. Vinte passos. Muito longe.
Mas não impossível. Dependia dos outros tipos. Da pontaria deles. Do treino que tivessem tido.
Se o tivessem. Um tipo que tivesse aprendido o mantra da mira dianteira, poderia focá-la tanto
que talvez ficasse sem visão periférica. Completamente abstraído. Era possível que um tipo
conseguisse passar despercebido. Era possível que um tipo com um fato de gorila o conseguisse
fazer. Dependeria do grau de concentração. Uma pessoa poderia safar-se.
Mas três, não.
— Não saiam daqui. Não se mexam. Quando eu sair, venho buscá-los — sussurrou
Reacher.
— Quando saíres de onde? — retorquiu Chang.
— Vou voltar para dentro do edifício.
— Isso é de loucos.
— Nem por isso. Pensa como estes tipos são a disparar. É uma coisa matemática. Tem que
ver com probabilidades. Não vou ficar menos seguro por me ir enfiar no sítio para onde eles
estão a fazer pontaria.
— Isso é uma loucura.
— A parede é grande. Quais são as hipóteses? É mais provável ficar com problemas
cardíacos raros a caminho de lá.
— Eu vou contigo.
— Okay, mas o Westwood não sai daqui. Os correspondentes de guerra avançam com a
segunda vaga.
— É isso que eu sou? — perguntou Westwood.
— Não, estou só a tentar animá-lo. Está a pensar nos direitos para o livro.
— E não só.
— Seja como for, não saia daqui.
Reacher e Chang voltaram para o edifício e entraram pela abertura. Os pedacinhos de sol
formavam uma constelação. A maior parte, a grande altura. O irmão de Reacher, mais alto, era
capaz de ter passado por problemas. Mas Reacher, não, tal como Chang escaparia ilesa. Outra
bala atravessou a parede, um impacto, um bum, outro pedaço de sol, a grande altura e muito
para a esquerda, outro bilhete que não dava direito a prémio.
— Se estiverem mesmo a disparar ao calhas, todos os sítios são igualmente prováveis. Até
os sítios onde já acertaram — afirmou Reacher.
Encostou o olho a um pedaço de sol, semicerrando-o para ver o exterior.
E disse, numa voz distorcida por ter a face colada à tábua:
— Precisamos de ver os clarões das bocas das espingardas. E aí já os podemos enxotar.
Quero vê-los a fugir.
Mais uma bala a atravessar a parede, impacto, bum, sol. Com a altura perfeita, mas três
metros a mais para a direita.
— Estou a ver um — anunciou Reacher.
Poeira no ar. Viu de raspão um clarão na madeira.
Esperaram.
Mais uma bala. Impacto, bum, sol. A grande altura e para a esquerda.
Reacher afastou-se da parede. E disse:
— Apanhei os dois. Estão no mesmo sítio. No canto de trás esquerdo do estúdio de cinema.
A uns trinta e três metros de distância. Estão a disparar à vez, chegando-se ao canto e
levantando a espingarda. Como num filme dos marines. Um é o criador de porcos e o outro
tem um cabelo à meteorologista da televisão.
— E conseguimos acertar-lhes daqui?
— Podemos gastar um carregador para os calar durante um minuto. E depois podemos
avançar até ao canto da frente do estúdio de cinema.
— E fazemos o quê? Andamos à socapa, de canto em canto? Da frente para os fundos? É
uma distância e peras. Estamos a falar de um edifício retangular. Como a maior parte.
— Os marines atravessariam o edifício. E sairiam parede dos fundos. É para isso que servem
as armas antitanque.
— E que faríamos nós?
— Arriscaríamos. Esperaríamos até que trocassem de carregadores.
— Não chega — respondeu Chang.
— Não irias gostar do plano que chega.
— Estás a dizer isso em tom justificativo?
— Podes crer.
— E qual é o plano que chega?
A cabeça continuava a doer-lhe.
Explicou:
— É um pacto com o diabo. Garante um, mas só um. O outro tipo foge. E, além disso, não
vai ser bonito.

Reacher disparou primeiro, já que Chang corria mais depressa. Entrou pelas portas abertas,
apontou para o canto de trás esquerdo do estúdio, a uns dois terços da altura da parede, e viu
umas farpas de madeira, mas não que chegassem para dois segundos inteiros. Mas calou-os.
Depois foi a vez de Chang, um carregador de trinta, em tiro completamente automático, dois
segundos inteiros, com Reacher a correr para o canto da frente do estúdio, ali perto, onde
recarregou, enchendo o edifício de tiros, de um canto ao outro, mais um carregador, ao mesmo
tempo que Chang corria para junto dele, colando-se às costas de Reacher, ofegante.
— Preparada? — perguntou ele.
Ela não respondeu.
Passaram pela porta, entrando no estúdio. O vestíbulo. O cheiro. A cozinha pequena, com
as canecas e as garrafas de água.
Esperaram.
Ouviram um barulho. Um tipo a chegar-se ao canto. Como num filme dos marines.
Esperaram.
Ouviram o tiro. Na direção do edifício já desocupado e longínquo. Talvez a bala tenha
acertado e talvez não. Independentemente disso, Reacher esticou-se e ripostou com meio
carregador. Sem expetativas. Nem tempo para subtilezas. Mas o suficiente para uma
mensagem.
Os vossos adversários já estão dentro do edifício.
Mesmo em cima do vosso jogo.
Reacher e Chang avançaram de costas, passando pela casa de banho, pelos aventais e pela
porta no fim do átrio. As luzes ainda estavam acesas. A mulher de branco ainda lá estava. Não
se tinha mexido. Ficaram ali parados, a olhar para outro lado, como se fossem operadores de
câmara que se tivessem virado para responder a uma pergunta.
Esperaram.
Os caçadores estavam a ser caçados. As presas estavam a atraí-los para uma zona
congestionada. Tinham de se mostrar, em fila indiana, num corredor exíguo e com as luzes
acesas. Era igual a subir as escadas de um motel dois a dois. A opção mais inteligente seria não
entrar. Nunca. Mas iriam fazê-lo. Tinham de o fazer. Era o domínio deles. E continuava a ser o
futuro. Todos os tipos que Reacher já tinha conhecido, fraude, roubo, homicídio e traição,
tinham acreditado, mesmo até ao último segundo, que havia uma hipótese qualquer de se
safarem, e que, consequentemente, alguma coisa devia ser salva, se possível. Ninguém queria
recomeçar do zero. E aqueles tipos eram capazes de tentar salvar grande parte do inventário. E
do material. Reacher presumiu que as câmaras de alta-definição fossem caras.
Por isso, um deles entraria. Mas só um. O final-surpresa só resultava uma vez.
Esperaram.
Natureza humana.
Apareceu o criador de porcos. Mãos grandes, ombros largos, a roupa cheia de sujidade. A
espreitar pelo canto, com toda a cautela, não arriscando mais do que um olhar rápido. Colado à
parede. Sem mostrar nada. Um ombro, talvez. Ou um nariz. A espreitar de novo, pelo canto,
um bocadinho mais para a frente, esticando-se um nadinha.
Reacher atingiu-o na testa. Um levíssimo toque no gatilho, quase sem carregar nele, de
raspão, uma saraivada ronronante de dez tiros. Assunto encerrado. Evidentemente, o último
tipo ouviu aquilo e, por isso mesmo, desatou a fugir. Estava completamente sozinho.
Subitamente acometido por medos primordiais. E subitamente à vontade para lhes dar rédea
solta. Sem testemunhas.
Nos círculos militares, as perseguições agressivas eram muito apreciadas, e qualquer
desculpa servia para sair daquela sala, portanto, Reacher também começou a correr, com
Chang logo atrás.
CINQUENTA E OITO

Saltaram por cima do criador de porcos e saíram pela porta do estúdio a toda a velocidade,
virando meio à esquerda e contornando as traseiras da casa, em direção ao início do caminho
de acesso. Porque o objetivo era o caminho de acesso. Tinha de ser. Natureza humana. Fuga. A
única possível. O resto era trigo.
Viram-no a uns vinte metros de distância, a correr, olhando para trás, com a M16 numa
mão e nada na outra. Era um tipo corpulento, com uma cara vermelha e cabelo ondulado e
todo armado à volta da cabeça. Usava calças de ganga azuis que pareciam engomadas.
Aproximou-se da entrada do caminho de acesso e espreitou para trás. Reacher e Chang
abrigaram-se junto à casa. O tipo estava completamente sozinho naquela paisagem. Tinha a
pocilga atrás dele e, a seguir, nada a não ser trigo até ao Missouri. O caminho de acesso estava à
direita. Eram cerca de trinta quilómetros até Mother’s Rest.
O tipo parou.
— Consegues acertar-lhe daqui? — perguntou Chang.
Reacher não respondeu.
— Estás bem? — perguntou ela.
— Noventa por cento — respondeu ele.
E era assim que Reacher via a coisa. Não tinha nenhum problema. Nada em concreto. Nariz
partido ou ferimento a sangrar. Mas nada estava a funcionar bem. Pelo menos, a cem por
cento. O cérebro não é a mesma coisa que um braço.
— Como fazemos isto? — perguntou Chang.
Reacher contou mentalmente. Os tiros disparados contra o pequeno edifício. Impacto,
bum. Quantos?
Memória.
Deu um passo em frente.
O tipo das calças de ganga e do brushing ergueu a espingarda.
Uma M16 quase a vinte metros. Teoricamente, um problema. Qualquer atirador conseguia
atingir o alvo com uma espingarda a vinte metros. Uma distância inferior ao comprimento de
quarenta canos médios, para uma M16. Era quase como estar a tocar nele. Mas o tipo não era
um atirador competente. Isso já ficara provado. No pequeno edifício. E agora já estivera a
correr. Estava sem fôlego. Tinha o peito a arfar. E o coração aos saltos.
Reacher não se mexeu.
O tipo disparou.
E falhou. Por trinta centímetros, para cima e para o lado. Reacher ouviu o zunido da bala a
atravessar o ar e, a seguir, um baque surdo e longínquo, muito mais atrás, quando o projétil
atingiu o edifício. Provavelmente, o anexo próximo da vedação destruída. Com os tipos
mortos.
Voltou a abrigar-se.
— Mais cedo ou mais tarde, vai esgotar as munições — disse.
— E depois recarrega — retorquiu Chang.
— Mas não depressa.
— É esse o teu plano?
— Preciso que vás comigo. Só por via das dúvidas.
— De quê?
— Duas cabeças funcionam melhor do que uma. Sobretudo, com a minha como está.
— Estás bem?
— Nem por isso. Mas, no fundo, será que preciso de estar assim tão bem?
— Vou eu fazer isso.
— Não pode ser.
— Não é trabalho para uma mulher?
Reacher sorriu. Pensou nas mulheres que tinha conhecido.
— É só uma coisa pessoal — respondeu. — Uma questão de hábito, sobretudo.
— E como vai ser?
— Vou fazê-lo disparar. Vai falhar os tiros todos. Juro. E quando ficar sem munição,
despacho-o. Enquanto isso, tu vais estar sempre a correr, cada vez mais perto, portanto, se eu
falhar, acertas tu.
— Não, fazemos os dois com que ele dispare. Vamos fazer isto juntos — retorquiu Chang.
— Não é eficaz.
— Não quero saber. É assim que vai ser.
Avançaram. O tipo continuava ali. Completamente sozinho naquela imensidão. Calças de
ganga, brushing, espingarda M16. A uns vinte metros. Chang fez pontaria com a pistola-
metralhadora, fechando um olho. Reacher deixou-se ficar quieto, de braços esticados e a olhar
para o céu, com a arma virada para baixo e pendurada no dedo. Mostra o que vales. E o tipo
mostrou. Levantou a espingarda, firmou-se, apontou e disparou.
E falhou.
Não acertou em nenhum.
Chang ripostou. Tiro único. O invólucro gasto foi cuspido, voando pelo ar. E a bala não
acertou. Mas o tipo recuou. Cinco passos trôpegos. E depois dez.
Chang disparou novamente. Outro invólucro reluzente atravessou o ar. Outro tiro falhado.
O trigo ondulava, pesado, lento e silencioso.
O outro levantou a espingarda.
Mas não disparou.
— Já não tem balas? — perguntou Chang.
A cabeça de Reacher continuava a doer-lhe.
— Não sabe. Perdeu a conta. E eu também — respondeu ele.
E, a seguir, sorriu.
— Sentimo-nos com sorte? — perguntou.
Ergueu a arma. Dois cabos, segurados confortavelmente, entre o firme e o suave. A mira
dianteira e o borrão em frente. Pestanejou. Estava focado, mas não molecularmente. Além
disso, sentia uma vibração microscópica nos braços. No corpo inteiro. Dificuldades de
coordenação e motoras, problemas de memória e visão, dificuldades na fala, audição, gestão de
emoções e raciocínio.
Baixou a arma.
E disse:
— Devíamos aproximar-nos mais.
Avançaram o mesmo que o outro tinha recuado. Devagar e com calma. Frequência cardíaca
baixa e respiração normal. O tipo acrescentou mais dez passos aos anteriores. As calças de
ganga e o cabelo a recuarem em direção à pocilga.
Reacher e Chang continuaram a aproximar-se.
O cheiro era horrível.
Mas melhor do que no estúdio de cinema.
O adversário recuou outros dez passos.
E acabou colado à cerca da pocilga.
Reacher e Chang pararam.
O outro levantou a espingarda.
E depois voltou a baixá-la. Ficou ali parado, colado à cerca, completamente sozinho, com as
estacas a baterem-lhe nas costas, pequeno e ridículo naquela vastidão. O Sol estava bem alto, a
sul. Bem atrás do tipo, os porcos começaram a sair do abrigo. Gordos e lisos, a reluzir da lama.
Cada um do tamanho de um Volkswagen.
Reacher avançou. Chang acompanhou-o.
O outro largou a espingarda e ergueu as mãos.
Reacher continuou a avançar. E Chang continuou a acompanhá-lo.
Quinze metros. Doze. Nove.
Seis metros.
O tipo tinha as mãos bem levantadas.
Nas histórias da carochinha que se contavam à lareira, havia sempre um breve diálogo.
Porque o mau tinha de saber por que razão tinha de morrer.
Reacher não disse nada.
As histórias eram histórias e não o mundo real.
Mas o tipo falou primeiro.
E disse:
— Eles já tinham abdicado da vida. Com certeza que percebem isso. Já se tinham
descartado da vida. Já tinham tomado uma decisão. Já cá não estavam. Podia servir-me deles a
meu bel-prazer. E, seja como for, tiveram o que queriam. No final.
— Não me parece que tenham tido o que queriam. O santo graal não era isso — respondeu
Reacher.
— Eram só uma ou duas horas. Já mesmo no fim. Depois do fim, no caso deles. Já tinham
tomado uma decisão.
— E quantas horas foram para o tipo que mataste à fome? Ou era uma mulher?
O tipo ficou calado.
— Uma pergunta prática — disse Reacher.
O outro levantou a cabeça.
— Onde estão os corpos?
O tipo não disse nada. Mas olhou para trás. Um reflexo. Involuntário.
Olhou para os porcos.
— Então porque enterraram o Keever? — perguntou Reacher.
— Os porcos já tinham comido nesse dia — respondeu o homem.
Reacher ficou calado.
E o outro disse:
— Foi uma encomenda especial do Japão. Calhou mesmo bem. Só estou a satisfazer a
procura. Não me podem culpar pelos gostos dos outros.
Reacher não respondeu.
As mãos do homem desceram um pouquinho. Queria poder mexer os ombros
normalmente, tal como o pescoço e a cabeça, para efeitos de linguagem corporal, para
gesticular, para persuadir, para explicar. Para regatear e para oferecer. Todos os tipos que
Reacher já tinha conhecido. Mesmo até ao último segundo. A acreditar que se iriam safar.
Chang ergueu a arma. Reacher observou-a. Cabelo preto solto. Olhos vivos e escuros, um
fechado e o outro centrado na mira dianteira. O pauzinho como uma agulha, dentro de um
anel.
— Isto é pelo Keever — afirmou.
O mau tinha de saber.
— Podia ter sido eu — exclamou.
Tocou no gatilho. Seis metros. De imediato. Acertou-lhe na garganta. Uma bala encamisada
a entrar e a sair do corpo do tipo. A bala acabaria por ir parar ao chão, no meio do trigo, onde
nunca a encontrariam. Ficaria debaixo da terra lavrada, perdida e esquecida, e regressaria aos
seus elementos constituintes, chumbo e cobre, parte do planeta, tal como tinha começado.
O homem regurgitou, uma única vez e muito alto, como um tuberculoso a tossir, com o
sangue a espumar e a esguichar do ferimento. Durante um segundo, manteve-se de pé, apenas
um tipo encostado a uma estaca, e depois cedeu tudo ao mesmo tempo e bruscamente, com ele
a cair como se fosse líquido, uma poça a espalhar-se, só braços e pernas e calças e cabelo.
— Para onde estavas a apontar? — perguntou Reacher.
— Para o meio do corpo — respondeu Chang.
Reacher sorriu.
— Não há melhor que o meio do corpo — afirmou.
Avançou seis metros, deu com o colarinho e a parte de trás do cinto e içou-o, largando-o do
outro lado da cerca.
Os porcos vieram a correr.
CINQUENTA E NOVE

Não quiseram voltar para a terra na carrinha de caixa aberta, já que não se queriam sentar
onde aqueles tipos se tinham sentado, por isso foram outra vez na retroescavadora, com
Westwood a conduzir e Reacher e Chang cara a cara, por cima da cabeça dele, mas dessa feita
pela estrada de terra batida. Que era lenta, mas mais confortável. Pararam no parque de
estacionamento do concessionário. O vendedor apareceu. E examinou a retroescavadora.
Estava um bocadinho manchada do trigo esmagado e um bocadinho arranhada de lado. Tinha
um bocadinho de terra encrostada. E o balde da frente apresentava uma covinha, no sítio onde
a bala o atingira. Já não era uma máquina nova. Em folha. Reacher deu ao tipo cinco mil
dólares, do dinheiro que lhes tinha sobrado. Tão depressa vem como desaparece.
A seguir, atravessaram a praça para sul. O sol estava quente. Um miúdo atirou uma bola
contra um edifício e bateu-lhe com um pau depois de ela ressaltar. O mesmo miúdo que já
tinham visto. Pararam na receção do motel. Westwood reservou uma série de quartos. Para ele,
para os fotógrafos e para toda a espécie de assistentes e estagiários. A nova empregada de
serviço era uma adolescente. Talvez pronta para a faculdade. Era rápida e eficiente. Bem-
disposta e alegre.
Reacher perguntou-lhe:
— Por que motivo esta terra se chama Mother’s Rest?
— Não lhe posso dizer — respondeu ela.
— Porquê?
— Os agricultores não gostam. Fizeram todos os possíveis por esconder isso.
— Não lhes vou dizer que me contaste.
— É uma corruptela do antigo nome que os índios arapaho lhe davam. Uma só palavra,
mas parecem ser duas. Quer dizer o sítio onde crescem coisas más.
Westwood entregou a Chang a chave do carro que tinha alugado e despediu-se. Reacher
acompanhou-a até ao restaurante, onde o Ford vermelho se encontrava estacionado.
— Ias a caminho de Chicago — disse ela.
— Pois ia — retorquiu ele.
— Querias lá chegar antes que o tempo arrefecesse.
— É sempre uma boa ideia, no caso de Chicago.
— Podes apanhar o comboio das sete. Almoçar no restaurante. E dormir a tarde toda ao sol.
Numa espreguiçadeira. Eu vi-te, logo no primeiro dia.
— Viste-me?
— Ia a passar.
— Eu bem te disse. Estive no exército. Consigo dormir em qualquer lado.
— Vou até Oklahoma City. Depois deixo o carro no aeroporto. Imagino que os estagiários
do Westwood lhe vão trazer outro. Posso apanhar lá um avião para casa.
Reacher ficou calado.
— Estás bem? — perguntou-lhe ela.
— Ainda agora estivemos em Chicago. Se calhar, devia ir para outro sítio qualquer —
respondeu ele.
Ela sorriu.
— Vai visitar o Milwaukee. Os trinta e seis quarteirões todos.
Ele hesitou uns instantes.
— Estás bem? — voltou ela a perguntar.
— Vens comigo?
— Ao Milwaukee?
— Só por uns dias. Como se fossem férias. Já as merecemos. Podíamos fazer o que as
pessoas fazem.
Ela ficou calada durante bastante tempo, cinco ou seis segundos, a situação a tornar-se
quase constrangedora, antes de dizer:
— Não quero responder a essa pergunta aqui. Em Mother’s Rest, não. Entra para o carro.
Foi o que ele fez, e ela também, pondo o motor a trabalhar. Meteu a primeira, rodou o
volante e depois afastaram-se do restaurante, e do armazém, em direção ao antigo caminho
para as caravanas, onde viraram à esquerda e continuaram para oeste, a estrada a seguir sempre
a direito à frente deles, pelo meio do trigo, eternamente, até desaparecer na névoa dourada do
horizonte longínquo, nessa altura já tão exígua como uma agulha.

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