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Antropologia Social Aula
Antropologia Social Aula
Leonardo Campoy
IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
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detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A.
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Katrine Glazkova/Krakenimages.com/Shutterstock
Campoy, Leonardo
Antropologia social / Leonardo Campoy. - 1. ed. - Curitiba [PR] :
IESDE, 2020
102 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6542-4
6 Gabarito 98
APRESENTAÇÃO
Saber devotado às diferenças humanas, a antropologia social constituiu,
ao longo de sua história, um modo particular de conhecer e de produzir
conhecimento. Nas páginas que seguem, apresentamos essa particularidade
de maneira acessível, sem, contudo, sacrificar o conteúdo do saber
antropológico.
Nossa intenção não é narrar uma história da antropologia. Mais do que
contar a cronologia de ideias e autores que a constituíram, ao longo dos
capítulos, mobilizamos nomes e conceitos importantes para traçar o modo
pelo qual sua perspectiva concebe as diferenças humanas, isto é, o que
denominamos de diferentes modos de cultivar a vida.
Ao apresentar um saber arraigado na tradição acadêmica, com bagagem
teórica e premissas metodológicas relativamente complexas, corre-se o risco
constante de incorrer no mesmo erro dos conhecimentos universitários em
geral: fechar-se em si mesmo, provocando no leitor a inescapável impressão
de que o que está estudando é impermeável, como se fosse praticamente
impossível usar aquele saber em sua vida cotidiana.
Apesar de nunca estarmos completamente “vacinados” de cometer esse
equívoco, oferecemos, assim esperamos, caminhos de entrada fáceis de
serem achados e seguidos. Essa é a inspiração que anima os capítulos e
a divisão entre eles. Almejando tecer um diálogo com você, leitor, todos
os capítulos começam com a palavra como. Comando privilegiado para
a antropologia, o “como” aponta para um saber-fazer que não busca a
explicação – que seria o foco de perguntas iniciadas com “por que” e “o que”
–, mas procura articular um engajamento prático, sensório e cognitivo com o
mundo, justamente para conhecê-lo a partir dessa experiência. Assim, a ideia
é convidá-lo a se engajar com o texto de modo interativo para, ao longo da
leitura, formular sua própria apropriação – sempre original e criativa, e não
mera reprodução – da maneira pela qual a antropologia se relaciona com as
diferenças humanas.
O diálogo se desdobra gradualmente ao longo dos cinco capítulos. No
primeiro, descobrimos as bases do pensamento antropológico por meio de
uma revisão das origens da disciplina. No segundo, estudamos as ideias de
dois importantes teóricos, Boas e Malinowski, para nos aproximarmos da
etnografia, que é o modo pelo qual se produz conhecimento antropológico.
No terceiro capítulo, realizamos o que os antropólogos chamam de efeito
bumerangue, isto é, nos perguntamos o que a antropologia, ao estudar as
diferenças humanas, pode ensinar sobre as semelhanças. Assim, “Como
aprender antropologicamente”, título desse capítulo, aponta para uma
reflexão crítica sobre nosso próprio modo de cultivar a vida. Já no quarto
capítulo, procuramos considerar como a antropologia pode ser aplicada
em nossas atividades práticas. “Como propor soluções antropológicas” é
uma interpelação que incita a transformar esse saber acadêmico em ações
e soluções para a vida em movimento. Finalmente, no quinto capítulo,
pagamos nosso tributo à tradição antropológica de se manter atrelada às
dimensões locais para propor uma interpretação do Brasil, tendo a questão
racial como eixo de investigação.
Antes de deixá-lo mergulhar no livro, uma palavra sobre o estilo da escrita
da obra. Quando eu estava iniciando minha trajetória em antropologia,
ainda na graduação em Ciências Sociais, tinha uma enorme dificuldade
para explicar para minha avó, uma senhora de alfabetização rudimentar
que viveu quase toda sua vida no campo, o que estava estudando na
universidade. Usei vários exemplos em nossas conversas e também a
escutava sobre sua vida no mundo rural do sudeste brasileiro na década
de 1930. Nossas conversas jamais se revestiram de teorias e conceitos,
sempre mantivemos nosso diálogo em reminiscências sobre a vida
prosaica entre uma senhora que migrou do campo para a cidade e um
jovem com toda sua vida tecida na urbe.
Procurei escrever esta obra tendo em mente esses diálogos, isto é,
mantendo a conversa no chão batido e empoeirado da vida, sem alçar
voos especulativos e abstratos demais. Eu era muito feliz ao conversar com
minha avó. Fui feliz escrevendo este livro e, desse modo, espero que você
também o seja lendo-o. Quem sabe, assim como eu, você se apaixona pela
antropologia? Espero que sim. Em minha opinião, o conhecimento só pode
ser gerado por meio da alegria e da felicidade. Mais ainda, não há nada
mais elucidativo sobre a vida do que uma conversa em que há a troca de
experiências. Que este livro signifique algo assim para você: uma conversa
entre pessoas que gostam da vida e, por isso, querem compartilhá-la.
Boa leitura!
1
Como pensar
antropologicamente?
O que é antropologia? Algumas pessoas podem responder
usando o significado literal da palavra: o estudo ou a ciência do
humano. Mas, e a psicologia não é um estudo do humano tam-
bém? E o ramo da biologia, que se ocupa do corpo humano, não
é um tipo de ciência do humano? Que tal tentarmos responder ao
que é a antropologia identificando o que ela estuda? Seriam ossos?
Ou os ancestrais dos humanos, os hominídeos? Seriam as etnias
indígenas? Ou então festas e tradições populares?
Você que está se deparando com a antropologia pela primeira
vez na leitura deste livro provavelmente não fez essas perguntas
antes. Contudo, ao fazê-las, deve ter percebido como não é simples
responder o que é antropologia e o que ela estuda. Este primeiro
capítulo tem justamente o objetivo de delinear uma concepção de
antropologia para o estudante que se depara pela primeira vez
com o assunto. Nas duas primeiras seções, veremos uma inter-
pretação da antropologia, seus temas de interesse e seus objetos
de estudo. Nos dois últimos, abordaremos os primeiros passos da
história da disciplina, identificando as principais teorias que mobili-
zaram o pensamento antropológico em sua aurora.
Antes de passar para as próximas páginas e iniciar a leitura,
uma sugestão: se estiver com fome, alimente-se; se tiver um ani-
mal de estimação, pegue-o para ler ao seu lado ou vá até o quintal
e faça um carinho nele. Somente depois de resolver as inquietu-
des, mergulhe no texto.
Mas, então, por que alguns animais vão para nossas camas e ou-
tros para nossas panelas? Será que o motivo é a carne de alguns ser
mais tenra e saborosa? Ou ainda, porque o ser humano digere melhor
a carne de alguns animais e de outros, não? É difícil validar essas hipó-
teses. O cachorro é um alimento em algumas regiões da Ásia; o cavalo
10 Antropologia Social
é um animal de estimação muito apreciado e valioso nos países árabes
e também em outras partes do mundo, mas na França é uma iguaria
alimentar. Afirmar que a qualidade da carne ou as propriedades do
sistema digestivo do ser humano explicam as diferenças entre animais
comestíveis e de estimação não dá conta dos múltiplos costumes en-
contrados em diferentes regiões, países e continentes.
12 Antropologia Social
Para a antropologia, absolutamente todas as atividades dos seres
humanos são culturais. Hábitos alimentares, modos de dormir e de
caminhar, arquitetura dos edifícios e design de objetos e móveis, ves-
tuário, linguagem, brincadeiras, cheiros, sabores, visões e audições.
Até mesmo uma complexa cirurgia no cérebro, o sistema bancário e as
negociações em torno da lei orçamentária anual do país no Congresso
Nacional são culturais. A cultura, para a antropologia, está em absolu-
tamente todas as atividades das nossas vidas. Na verdade, ela se con-
funde com a vida, já que, de acordo com a perspectiva antropológica,
molda indelevelmente nossos modos de existência.
Além das diferenças entre os animais, podemos tomar como exem-
plo para sustentar essa afirmação o tomate, ingrediente essencial da
culinária italiana. Sendo italiano ou não, quando se fala em comida tra-
dicional da Itália, logo vêm à mente deliciosos molhos à base de toma-
tes, os quais, quando bem-preparados, equilibram a acidez e a doçura
que o solo do país, conjugado com o clima mediterrâneo, fez surgir no
fruto ali plantado. Em suma, comida italiana é praticamente sinônimo
de suculentos molhos de tomate, na pizza, na lasanha ou no pappardel-
le. Pois bem, mas os tomates são originários da América. Como a batata
e o milho, não havia tomates no Velho Continente antes da colonização
europeia da América. Assim, um dos ingredientes determinantes da
“autêntica” culinária italiana é, originalmente, um estrangeiro ao país.
Então a culinária italiana é falsa? Ela perde valor por ser constituída,
dentre outros ingredientes, a partir de um fruto originalmente ameri-
cano? De modo algum. Contudo, o caso ilustra como a cultura, tal como
os antropólogos a entendem, moldou as atividades agrícolas no territó-
rio que é hoje o italiano e, consequentemente, os hábitos alimentares,
a culinária daquele país e até mesmo o simbolismo que a Itália guarda
na mente de qualquer aficionado por pizza.
Também podemos tomar como exemplo a microbiota que todos
nós alimentamos em nosso intestino grosso. Em nosso processo diges-
tório, depois da boca, do esôfago, do estômago e do intestino delgado,
o bolo alimentar chega ao intestino grosso, última etapa antes de se
transformar em bolo fecal para ser descartado. No intestino grosso, a
maior parte do esforço digestivo não é feita por nós e sim por bactérias,
ou seja, em resumo, o funcionamento do sistema digestivo humano de-
pende, em sua etapa final, de bactérias. Temos milhões delas no intes-
tino grosso, nascendo, se alimentando, se reproduzindo e morrendo
dentro de nós, literalmente.
14 Antropologia Social
vida naquela região do Canadá. Em uma dessas conversas, travada en-
quanto caminhavam pelas margens de um rio com seu leito repleto de
pedras, Hallowell, intrigado com a observação de que a palavra ojibwa
significava pedra e parecia pertencer à classe de palavras atribuídas
a seres animados e vivos, e não à de objetos inanimados, perguntou
diretamente ao seu amigo: “Todas as pedras que vemos aqui, ao nosso
redor, estão vivas?”. Após uma demorada reflexão, Berens respondeu:
“Não! Mas algumas estão” (INGOLD, 2019, p. 15).
Para nós, que não somos ojibwa e entendemos que pedras não es-
tão vivas, é fácil interpretar a resposta de Berens ao antropólogo como
produto de uma mente infantil, a qual atribui vida a objetos inanima-
dos. Assim, o postulado de Berens de que algumas pedras estão vivas,
mas outras não, seria concebido como uma ilusão de um povo selva-
gem, que ainda se encontraria nos estágios primitivos do desenvolvi-
mento intelectual da razão. Ou seja, seria uma crença comprovada pela
ciência sem deixar dúvidas de que é falsa. Muitos de nós daríamos uma
risada com o canto da boca à resposta de Berens e entenderíamos algo
como: “ele acha que algumas pedras estão vivas, mas nós sabemos que
nenhuma pedra vive”.
16 Antropologia Social
A antropologia é um saber que procura descrever as distintas for-
mas de cultivar a vida, elaboradas e praticadas pelos seres humanos
por métodos que lhe são próprios. A partir dessas descrições, na me-
dida do possível, é admissível sugerir algumas hipóteses de interpre-
tação da humanidade por meio da comparação dessas diferenças. Em
suma, a antropologia é um saber acerca das diferenças que marcam
as sociedades e culturas humanas e é por isso que o maior erro nessa
disciplina é o etnocentrismo. Ao classificar as culturas como piores ou
melhores do que a nossa, mais bonitas ou feias, mais certas ou erradas,
estamos aniquilando as diferenças, uma vez que elas acabam sendo
medidas pelas nossas próprias réguas.
Levar o outro a sério é procurar medi-lo pela régua dele. Não para
concluir se está certo ou errado, mas para entender o que é certo e er-
rado para ele. Por isso, não é responsabilidade do antropólogo definir
o que os outros são. Afinal, somente os outros têm autoridade para
estabelecer o que e quem eles são e, à antropologia, cabe a tarefa de
descrever, de acordo com o que os outros afirmam e fazem, como eles
cultivam seus modos particulares de vida.
E se, vivendo uma realidade em que o zero não existe, alguém apa-
rece propondo uma representação numérica para o vazio, podemos
imaginar que algumas vozes taxariam essa pessoa de lunática, afirman-
do que o vazio não existe e que é impossível aceitar tamanha sandice?
18 Antropologia Social
1.3 A aurora da antropologia
Vídeo Ao longo da história da espécie, as diferenças entre os humanos
sempre atraíram a curiosidade, despertaram o interesse ou geraram
preocupação. Há mais ou menos 10 mil anos, no Oriente Médio, quan-
do as primeiras civilizações, como a Mesopotâmia, se constituíram e os
agrupamentos humanos eram menores e mais dispersos, o estrangei-
ro era uma figura rara e que poderia trazer novidades desejáveis ou
prenúncios de guerra. No século XVI, nas primeiras décadas da chega-
da dos europeus na América, enquanto espanhóis e portugueses se
perguntavam se os nativos tinham alma, índios mergulhavam corpos
de europeus abatidos por dias, verificando se entravam em decom-
posição ou não, para decidir se seus donos eram mesmo humanos
(LÉVI-STRAUSS, 1976). E ainda, ao percebermos que ganhamos novos
vizinhos, que acabaram de se mudar para o apartamento ao lado do
nosso, muito provavelmente nos perguntaremos quem são esses des-
conhecidos. O estranho, o estrangeiro, o forasteiro, em suma, o outro
sempre foi um assunto que mobilizou as atenções dos humanos.
20 Antropologia Social
absoluto, melhores, mais sofisticadas ou evoluídas. Não há uma hie-
rarquia das espécies na teoria de Darwin, como se ele estivesse jul-
gando as diferentes formas de vida como inferiores ou superiores. O
mais forte não é o superior, mas, simplesmente, aquele que conse-
guiu se adequar melhor a um dado ambiente, levando a compreen-
der que uma espécie que se adaptou melhor em um ambiente pode
perecer em outro. Então, para Darwin, evolução não é um progresso
em direção a um melhoramento da vida, mas, sim, o processo de di-
versificação natural das espécies vivas. A evolução para Darwin é uma
história natural da vida que não caminha para um futuro sempre me-
lhor e mais sofisticado.
Mas então, você pode estar se perguntando por que estudamos so-
mente a antropologia social e cultural neste livro. A resposta é porque
essas áreas se distanciaram umas das outras ao longo dos últimos 150
anos, e para entender as razões que dividiram a antropologia em duas
(sendo uma física e outra social), precisamos entender as disputas en-
tre poligenistas e monogenistas que marcaram os primeiros desenvol-
vimentos teóricos da disciplina.
22 Antropologia Social
estatura é mais baixa, seu tipo é mais franzino e sua pele tem tom meio
marrom, meio vermelho. Você sabe que ele não domina escrita e leitu-
Glossário
ra e que também não compartilha a noção de família, já que, para ele, o
totem: objeto, animal ou
grupo doméstico é o clã, formado a partir do totem, que pode ser uma
planta cultuado como um
planta, um animal ou até mesmo um redemoinho. Para caçar, ele usa símbolo ou ancestral de uma
um instrumento estranho para você, o bumerangue. Além disso, seus coletividade.
rituais chegam a durar meses e sua religião não distingue nenhuma
entidade superior ou espiritual; para ele, todos os elementos da natu-
reza estão unidos numa força só. Como podemos explicar essa pessoa?
Como a interpretamos? Ela é completamente diferente de nós? Será
que representa outra humanidade? Se não, se nós e ele somos da mes-
ma espécie, como explicar tamanha diferença?
24 Antropologia Social
Os monogenistas não embarcaram na ideia de raça, pois como ad-
vogava um de seus principais defensores, o britânico Edward Burnett
Tylor (1832-1917), eles acreditavam na “unidade psíquica da humanida-
de” (CASTRO, 2005, p. 14). Postular essa unidade significa afirmar que
os humanos não diferem biologicamente e, portanto, suas potenciali-
dades mentais e comportamentais são, a princípio, idênticas.
26 Antropologia Social
Além disso, à exceção de alguns raros pesquisadores, como Mor-
gan, os evolucionistas não conviveram com os não ocidentais. Eram
antropólogos de gabinete, teorizando sobre os outros por meio de in-
formações que recebiam de militares, agentes do governo, comercian-
tes, colonizadores e missionários que tinham entrado em contato com
outras sociedades ao redor do mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo de sua história de mais ou menos 200 anos, a antropologia
refinou uma potente perspectiva de entendimento das diferenças huma-
nas. Esforçando-se para levar o outro a sério, os antropólogos ensinam
que qualquer ponto de vista que pretenda ser universal corre o constante
risco de reduzir a importância da riqueza da diversidade humana. Assim
fazendo, a antropologia tornou-se uma voz privilegiada de combate aos
preconceitos e de estímulo ao aprofundamento de uma noção de demo-
cracia que convida todos os outros para a participação política.
Contudo, como vimos nos dois últimos itens deste capítulo, na aurora
da disciplina, essas potências ainda não tinham se revelado plenamente.
É importante salientar que todo ramo de saber acadêmico é uma cons-
trução contínua, marcada por transformações dos modos de entender
e de produzir o conhecimento. Como Weber certa vez afirmou, a verda-
deira aspiração do cientista é ser esquecido e cair no ostracismo, já que,
se assim acontecer, significa que seu ramo de conhecimento foi refinado
posteriormente a ele.
No caso da antropologia, é possível sugerir que o paradigma evolu-
cionista, ao mesmo tempo em que representou uma sólida barreira para
a efetiva percepção da alteridade, acabou tendo uma função histórica
determinante para a disciplina: tal como um muro muito alto para ser
transpassado, estabeleceu um forte desafio para as gerações vindouras.
Para elas, se fosse possível desfazer as amarras do evolucionismo, a an-
tropologia poderia ter um futuro promissor. Analisando em retrospectiva,
pode-se afirmar que essa possibilidade se tornou uma realidade.
REFERÊNCIAS
CASTRO, C. (org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
DARWIN, C. O diário do Beagle. Curitiba: UFPR, 2006.
INGOLD, T. Antropologia – para que serve. Petrópolis: Vozes, 2019.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural II. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1976.
SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
28 Antropologia Social
2
Como produzir
conhecimento antropológico?
Se a antropologia social é um estudo das diferentes maneiras
de cultivar a vida, como os seus pesquisadores fazem para conhe-
cer e registrar essa diversidade? Afinal de contas, mesmo não sen-
do uma ciência nos moldes da física e da química, a antropologia
social ainda é um saber acadêmico que almeja produzir conheci-
mento empírico, ou seja, observável e real, que seja considerado
válido e legítimo.
Nas próximas páginas, entenderemos como a antropologia so-
cial produz esse tipo de conhecimento a respeito das culturas hu-
manas e teremos resposta às perguntas que envolvem esse tema.
30 Antropologia Social
perspectivas que emanam das páginas desses textos foram fiéis à rea-
lidade das sociedades que supostamente descreviam? Muitos dos que
preenchiam os questionários eram militares, funcionários do governo
e agentes do comércio, pessoas que estavam no além-mar preocupa-
das com a defesa do território ou com impostos e lucros, e não com a
feitura de uma descrição qualificada de um ritual ou de uma crença;
eles não haviam sido treinados para pesquisar sociedades. E a língua?
Será que eles realmente tinham aprendido a língua nativa, identifican-
do dialetos e considerando os variados significados e sentidos que as
palavras poderiam ter para seus falantes? E ainda, com quem teriam
entrado em contato? Com homens ou mulheres? Quais homens e quais
mulheres? Com quais posições sociais?
32 Antropologia Social
expedição mediante o recebimento de textos relatando a experiência,
partiu para uma viagem em junho de 1883, acompanhado unicamente
por um empregado da família (STOCKING JR., 2004).
Os dois ficaram por um ano na ilha, não só vivendo com, mas so-
bretudo vivendo como esquimós – uma experiência que certamente foi
fundamental para as críticas que Boas lançaria mais tarde contra o evo-
lucionismo. Podemos comparar, por exemplo, a ideia evolucionista de
que as sociedades não ocidentais eram simples e estavam em estágios
inferiores da evolução social humana com a seguinte observação de
Boas, de dezembro de 1883, em seu diário de viagem:
Frequentemente me pergunto que vantagens nossa “boa
sociedade” possui sobre aquela dos “selvagens” e descubro,
quanto mais vejo de seus costumes, que não temos o direito
de olhá-Ias de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder-
se-ia encontrar hospitalidade tão verdadeira quanto aqui?
[...] Nós, “pessoas altamente educadas”, somos muito piores,
relativamente falando [....]. Creio que, se esta viagem tem
para mim uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento
do ponto de vista da relatividade de toda formação, e que a
maldade, bem como o valor de uma pessoa, reside na formação
do coração, que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre
nós. (BOAS apud CASTRO, 2005, p. 9)
Figura 1 Apesar de não ter escrito nenhum livro, Boas publicou centenas de
Franz Boas artigos sobre diversos temas da antropologia social, como línguas indí-
genas, rituais, máscaras, arte primitiva, mitos e religião, dentre outros.
W ikimedia Commons
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Aparentemente avesso à formulação de postulados, não
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34 Antropologia Social
Ao conviver com tribos nativas da América por vários anos, em di-
versas ocasiões ao longo de sua carreira, Boas percebeu a validade do
trabalho de campo em suas próprias experiências e sensibilizou seus
alunos a fazerem o mesmo. Vale notar que, para ele, havia uma razão
política para o trabalho de campo dos antropólogos. Para o mestre, as
tribos nativas da América estavam sendo brutalmente transformadas
e/ou dizimadas pelo avanço da modernidade para dentro de suas ter-
ras e tribos. Elas estavam prestes a desaparecer e era preciso defen-
dê-las de algum modo. Se era praticamente impossível impedir esse
processo, os antropólogos poderiam, ao menos, contribuir registrando
a riqueza da diversidade dessas culturas para a humanidade.
Minissérie
O trabalho de campo é o método por excelência da antropologia
social até os dias de hoje. Como veremos a seguir, Malinowski, nos-
so próximo autor, é geralmente reconhecido como o antropólogo que
sistematizou esse método. Contudo, Boas, bem antes, já o praticava
e o ensinava. A riqueza desse método está em observar as pessoas
não só em seu habitat geográfico, mas, principalmente, em seus coti-
dianos sociais. A antropologia entende que é aí que as pessoas agem
normalmente, mostrando como realmente são. Em suas próprias ca-
A minissérie Olhos que
sas e fazendo o que seu grupo espera delas, as pessoas tenderiam a
condenam conta a história
não rebuscar suas respostas diante de um aplicador de questionário real de quatro adoles-
centes negros que foram
ou a tomar posturas defensivas ou tímidas fora dos ambientes que lhe
injustamente acusados
são familiares. Mais ainda, observando as pessoas em seus cotidianos, de estuprar uma mulher
no Central Park, em Nova
a vida de uma sociedade aparece ao pesquisador como efetivamente
York, em 1989. A trama
é: bagunçada, misturada, em que as esferas e práticas sociais que o acompanha o processo, o
destino dos adolescentes
intelecto separa – religião, política, economia, parentesco, arte, espor-
no sistema carcerário e o
te, dentre várias outras – estão inextricavelmente sobrepostas, uma contexto social do caso.
influenciando a outra, uma sendo a outra dependendo da ocasião. A Direção: Ava DuVernay. Estados
Unidos: Netflix, 2019.
postura da antropologia é, então, se perguntar: por que não procurar
descrever e analisar a vida cultural em sua totalidade, ao invés de sepa-
rar o que não é separado?
Se interpretarmos o potlat-
ch pelo ponto de vista capita-
lista, provavelmente seremos
levados a entender o ritual
como uma ocasião desconexa
s
on
ia
im
ed mentes desprovidas de suas facul-
/ Wik
tis
Edward
S. Cu
r
dades racionais. Os kwakiutl, observa-
dos por essa perspectiva, pareceriam seres
selvagens, primitivos e inferiores, que acreditam em uma ilu-
são distante da verdade dos fatos.
36 Antropologia Social
E se tentarmos entender o potlatch pelo ponto de vista dos kwa-
kiutl, de acordo com seus valores e suas regras? Foi essa a sugestão
de Boas. Para o antropólogo, o ritual compunha a cultura kwakiutl de
tal modo que não era possível entender um sem a outra e vice-versa.
Ele afirma que o potlatch é um sistema de crédito para os indígenas.
A derrota em uma cerimônia fazia com que o perdedor contraísse
uma dívida com o ganhador e que essa poderia ser paga de diversas
formas: submissão política, esposas para os filhos, colheitas, pescas e
até mesmo sacrifícios animais aos espíritos, clamando pela saúde do
ganhador. Ganhar um potlatch gerava um ativo não só para si mesmo,
mas para o clã. Ao explicar que as dívidas contraídas em um ritual
podiam ser pagas aos filhos do ganhador, Boas expõe que “assim, o
potlatch passa a ser considerado pelos índios como um meio de asse-
gurar o bem-estar de seus filhos, se por acaso ficarem órfãos ainda jo-
vens. É, poderíamos dizer, um seguro de vida” (BOAS apud STOCKING
JR., 2004, p. 137).
38 Antropologia Social
2.3 Bronislaw Malinowski
Vídeo e a magia do etnógrafo
No panteão dos fundadores da antropologia social, ao lado de Boas,
encontra-se Bronislaw Malinowski (1884-1942). Se o principal legado
do primeiro antropólogo, como vimos, reside em uma concepção
de cultura como percepção de mundo, com o segundo a disciplina
desenvolve técnicas para captar o “ponto de vista do nativo”. A
herança de Malinowski para a antropologia social é fundamentalmente
metodológica. A etnografia, isto é, o principal método de pesquisa da
antropologia social, não foi criada por ele, mas certamente teve em sua
obra o primeiro e mais refinado exemplo de como poderia ser praticada.
40 Antropologia Social
Contudo, antes de se lançar no kula, Malinowski apresenta os mé-
todos que utilizou em sua pesquisa na introdução do livro. Esse texto,
a introdução dos Argonautas, é referência obrigatória em antropologia
social, pois é nele que o autor elabora suas inovações metodológicas
em etnografia. Para termos uma noção da escrita de Malinowski, vale a
pena transcrever um dos trechos mais importantes de sua introdução.
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas de seu equipamen-
to, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lan-
cha ou o barco que o trouxe afastar-se no mar até desaparecer
de vista. Tendo encontrado um lugar para morar no alojamento
de algum homem branco – negociante ou missionário –, você
nada tem para fazer a não ser iniciar seu trabalho etnográfico
de imediato. Suponhamos, além disso, que você seja apenas um
principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem nin-
guém que possa auxiliá-lo – pois o homem branco está tempora-
riamente ausente ou, então, não se dispõe a perder tempo com
você. Trata-se da descrição exata de minha iniciação na pesquisa
de campo, no litoral sul da Nova Guiné. Lembro-me bem das lon-
gas visitas que fiz às aldeias durante as primeiras semanas, do
sentimento de desespero e desalento após inúmeras tentativas
obstinadas, embora inúteis, para tentar estabelecer contato real
com os nativos e deles conseguir material para minha pesquisa.
(MALINOWSKI, 2018, p. 58)
Livro com que sua observação direta fosse breve e superficial. É inviável cap-
tar a riqueza de significados da vida social nativa por meio desse tipo
de pesquisa. Malinowski, ao contrário, estendeu sua presença por anos
e, em vez de aplicar questionários, observou os nativos e participou de
suas atividades, na prática da vida social.
42 Antropologia Social
etnógrafo: participar da vida de outros, observando-os para identificar
seus pontos de vista.
Com Malinowski, a etnografia tornou-se fundamental para a prática
da antropologia social. Seu impacto foi tão determinante na configura-
ção da disciplina que, depois dele, qualquer estudante que desejasse
se formar em antropologia social precisava realizar uma etnografia, isto
é, conviver por um longo período de tempo com um grupo social, par-
ticipando de suas atividades e anotando suas vivências para, depois,
voltar ao país e redigir um texto apresentando seus relatos e análises.
Mais ainda, Malinowski literalmente ditou o tom do texto antropo-
lógico. Depois de Argonautas, o texto em primeira pessoa, repleto de
casos e histórias vividos em campo pelo pesquisador, transformou-se
em padrão para textos antropológicos. Viver essas aventuras enquanto
pratica a observação participante e depois relatar e analisar essas vi-
vências em um texto carregado de autoria, meio literário, meio realista,
em suma, fazer uma etnografia a la Malinowski, tornou-se um ritual de
iniciação para qualquer estudante de antropologia social.
44 Antropologia Social
muito bem definidas. Ela sugere que a etnografia é um método e, como
toda metodologia de pesquisa, deve seguir certos passos para que os
resultados de pesquisa sejam legitimamente aceitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quem diz o que o mundo é? Mais ainda, quem tem a autoridade para
dizer o que o mundo é? Para a antropologia social, cada sociedade hu-
mana responde essas perguntas a seu modo. Além de respeitar essas
respostas, é preciso reconhecê-las, ou seja, entendê-las de maneira ampla
e aceitar que são válidas e legítimas.
Partindo dessa premissa de reconhecimento, a antropologia social,
principalmente por meio das obras de Boas e Malinowski, constituiu um
modo de abordagem das diferentes formas de entender o mundo: a etno-
grafia. Como vimos ao longo do capítulo, a etnografia ultrapassa os concei-
tos de uma simples técnica de pesquisa; ela é uma maneira de conhecer o
outro reconhecendo sua autoridade para dizer o que o mundo é.
46 Antropologia Social
REFERÊNCIAS
CASTRO, C. Franz Boas: antropologia cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: UBU, 2018.
MARTINS, C. B. O que é sociologia. São Paulo: Brasiliense, 1982.
PEIRANO, M. Etnografia não é método. Horizontes antropológicos, ano 20, n. 42, p. 377-
391, jul./dez. 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015.
Acesso em: 21 jan. 2020.
STOCKING JR., G. W. (org). Franz Boas: a formação da antropologia americana (1883-1911).
Rio de Janeiro: Contraponto / Editora UFRJ, 2004.
48 Antropologia Social
ticando atividades físicas e cuidando da alimentação. Assim, quando
percebemos o dia passou, a semana acabou e, na verdade, já estamos
em dezembro, perto do Natal, comentando com nossos conhecidos
que “esse ano passou voando”. E, invariavelmente, cansados. Não é
mais ou menos assim que estamos vivendo?
O problema é que ,na vida fora das redes sociais, não estamos felizes.
Para Ehrenberg (2010), o culto da performance desencadeou sofrimen-
tos emocionais e psíquicos agudos. Pela frustração de não conseguir
dar conta de uma vida constantemente preenchida por atividades ou
pela insegurança de um futuro incerto, os indivíduos estão cada vez
mais cansados, depressivos e ansiosos. Para controlar esses sofrimen-
tos, ao invés de mudar os hábitos e repensar o cotidiano, as pessoas
tomam cada vez mais café e remédios para controlarem a sua tristeza,
estabilizarem o seu humor e conseguirem dormir. Com a autonomia,
ganhamos a liberdade, mas estamos cada vez mais doentes. Além disso,
como complementa o filósofo coreano Byung-Chul Han (2015, p. 71),
usando a expressão sociedade do desempenho para se referir ao culto
Figura 1 da performance, estamos cada vez mais solitários, o “cansaço da socie-
Indícios do ritmo extenuan- dade do desempenho é um cansaço solitário, que atua individualizando
te em que os sujeitos se
encontram na sociedade da e isolando”.
performance.
tterstock
Bojan Milinkov/ Shu
50 Antropologia social
Em suma, somos autônomos, empreendedores, tecnológicos, efica-
zes e eficientes, mas, como consequência, somos depressivos, ansio-
sos, tristes e solitários. Será que está valendo a pena?
52 Antropologia Social
nós. Se o sustento de todos é garantido por todos, a quantidade de
trabalho individual certamente diminui.
Depois de fazer o que consta nessa citação, Baniwa (2016, p. 66) ar-
remata seus argumentos elaborando duas perguntas que deveríamos
fazer para nós mesmos: “se a vida pode ser mais simples e ter menos
sofrimento, por que se matar de trabalhar até oito horas da noite? Por Vídeo
que criar doença: pressão, estresse e assim por diante?” No breve vídeo O valor
das coisas, publicado no
Ao considerar as ideias do antropólogo sobre as diferenças na con- canal marcos piangers, o
autor do livro O papai é
cepção de trabalho entre as sociedades indígenas e os brancos, é muito
pop faz uma bela reflexão
importante entender que não se trata de afirmar que uma é melhor do sobre as diferenças entre
presentes e presença na
que a outra, tampouco de sugerir que nos transformemos em índios.
relação entre pais e fi-
Afinal, todas as sociedades têm as suas singularidades, as suas qualida- lhos. Trata-se de uma ins-
tigante perspectiva para
des e os seus defeitos. Todavia, ao estabelecer essa comparação, pode-
avaliar como estamos
mos, sim, pensar sobre nossas próprias vidas sociais pela perspectiva equilibrando trabalho e
família em nossas vidas.
do outro. Tal como em uma sala de espelhos, podemos nos olhar tendo
como referência o modo como outras sociedades organizam sua exis- Disponível em: https://www.youtu-
be.com/watch?v=RYXeE0sGQlo.
tência. Eis aí o tipo de aprendizado que a antropologia oferece: perce- Acesso em: 21 jan. 2020.
ber nossos próprios mundos pelas lentes de outros mundos.
54 Antropologia Social
problemas com os quais temos de lidar atualmente talvez não estejam
em nossos modos de viver, de produzir, de distribuir as riquezas e de
cuidar da saúde. Parece que o Ocidente – o racional, científico e tecno-
lógico poderoso Ocidente – não é um bom professor para o momento
atual da humanidade. Com quem devemos aprender, portanto?
56 Antropologia Social
Produ
ção
Cu
lt u
muito sofrimento e dor, não só para a parcela subal- r
al
do
terna dessa relação, mas para toda a humanidade.
B
ras
il/W
Para Krenak, ao tratar uma parte de sua po-
ikime
pulação como obscurecida, a humanidade perde
dia Commons
uma imensa riqueza encontrada em outras for-
mas de pensar e viver a vida. Em seu livro, ele vai
elencando diversos exemplos de formas de pensar
e viver consideradas obscuras e “iludidas” para de-
pois arrematar afirmando que:
tem um monte de gente que fala com montanhas. No
Equador, na Colômbia, em algumas dessas regiões dos
Andes, você encontra lugares onde as montanhas formam
casais. Tem mãe, pai, filho, tem uma família de montanhas que
troca afeto, que faz trocas. E as pessoas que vivem nesses vales Figura 2
fazem festas, para essas montanhas, dão comida, dão presentes, Ailton Krenak, líder
ganham presentes das montanhas. Por que essas narrativas não indígena, em 2010
58 Antropologia Social
doras; as ondas de calor, mais graves; e as doenças provocadas pelo ar,
pela água e por alimentos poluídos, mais frequentes e fatais.
O exemplo dos wari’ indica que a questão não está em decidir entre
usar ou não a natureza, mas, antes de tudo, em como usufruir dos seus
recursos. E os modos de vida não ocidentais ensinam que esse usufruto
60 Antropologia Social
pode ser mais respeitoso. Esse respeito, por sua vez, começa pelo enten-
dimento de que a natureza, mais do que nosso lar, é nossa família.
ATIVIDADES
1. Considerando as reflexões elaboradas na seção 3.1, faça a seguinte
pesquisa: pergunte para pessoas do seu círculo de relações – família,
amigos, colegas de trabalho e de estudos, por exemplo – se elas
estão felizes com as suas vidas. Deixe a conversa fluir, é assim que
os antropólogos fazem pesquisa. Mais do que respostas afirmativas
ou negativas, procure perceber como elas descrevem condições e
estados de humor a respeito da vida e da felicidade. Depois disso,
elabore um texto ou grave um vídeo refletindo sobre o que conversou
com essas pessoas. Nessa produção, procure identificar o que faz as
pessoas felizes ou infelizes com as suas vidas. A partir daí, no texto
ou no vídeo, procure relacionar as narrativas das pessoas com quem
conversou com a nossa sociedade atual, identificando causas e razões
sociais e culturais para as alegrias e agruras de seus conhecidos.
62 Antropologia Social
2. Sugerimos a visita ao site do Instituto Socioambiental (ISA), que entre
seus recursos apresenta um breve histórico de todas as sociedades
indígenas do Brasil – conteúdo que pode ser acessado neste link:
https://pib.socioambiental.org/pt/Página_principal (Acesso em: 21
jan. 2020). Visite-o, escolha uma etnia indígena, clique em seu nome
e simplesmente leia tudo o que a página oferece. Você terá acesso a
informações meticulosas a respeito da etnia escolhida. Aprenda mais
sobre ela e, principalmente, perceba como cada etnia indígena é única
e específica ao seu modo. Depois da leitura, desenvolva um texto
resumindo o que aprendeu acerca da etnia escolhida.
REFERÊNCIAS
BANIWA, G. A inclusão da temática indígena na escola: desafios para a educação. In:
RUSSO, K.; PALADINO, M. (orgs.). Ciências, tecnologias, artes e povos indígenas no Brasil:
subsídios e debates a partir da Lei nº 11.645/2008. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.
DESCOLA, P. Outras naturezas, outras culturas. São Paulo: Editora 34, 2016.
EHRENBERG, A. O culto da performance: da aventura empreendedora à depressão nervosa.
Aparecida: Ideias & Letras, 2010.
HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
KRENAK, A. Histórias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2016.
VILAÇA, A. Comendo como gente. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1992.
64 Antropologia Social
4.1 Uma questão ética
Vídeo Em linhas gerais, a filosofia entende ética como o campo de investiga-
ção dos princípios, normas e valores que orientam as ações práticas das
pessoas, tanto no âmbito profissional quanto no pessoal. Na pesquisa
antropológica, a consideração ética é fundamental, já que estamos cons-
tantemente abordando a vida de outras pessoas e representando-as em
textos públicos, lidos por um considerável número de pessoas.
Assim como qualquer outro pesquisador, para completar minha formação em antropo-
logia, tive de fazer algumas etnografias. Uma delas foi em um projeto voluntário que
atendia crianças autistas e suas famílias. Neste projeto, por dois anos, uma vez por se-
mana, acompanhava profissionais diagnosticando crianças autistas e orientando pais e
familiares nos cuidados com os pequenos. Meu interesse com essa pesquisa era o de
refletir acerca de tópicos relacionados com a antropologia da saúde e da infância, o que
de fato fiz em minha tese de doutorado.
A vivência dessa pesquisa foi cognitiva e emocionalmente impactante. Acompanhar
crianças sofrendo e pais sem saber o que fazer para amenizar as agruras dos filhos foi
dilacerante. Além disso, todos os profissionais que atuavam no projeto, estavam nele para
ajudar. Eram especialistas em alguma área da saúde, como médicos e terapeutas, ou da
educação e do serviço social, presentes ali para contribuir com o desenvolvimento e a as-
sistência socioeconômica das famílias. Em suma, era um ambiente repleto de sofrimento,
mas, ao mesmo tempo, de profissionais sensíveis e dispostos a fazer o que estivesse ao
alcance deles para promover o bem-estar de crianças e adultos expostos às dores e às
vulnerabilidades do corpo e dos infortúnios da desigualdade social.
Por outro lado, minha presença no projeto era exclusivamente para fins de pesquisa. Eu
estava ali semanalmente angariando percepções e informações para elaborar reflexões
antropológicas sobre saúde e infância. Não era para oferecer atendimento às crianças e
suas famílias; não era para contribuir com a amenização do sofrimento; enfim, não estava
ali para ajudar. Eu estava participando do projeto para fazer antropologia e nada mais.
66 Antropologia Social
atendimento à criança autista. Para o autor, antiético é entrar nesses
mundos, recolher informações dessas pessoas – o que ele se refere
como “encher a mala” – e ir embora sem dar algo em retorno. Nós só
conseguimos alargar nossas concepções de cultura, de ser humano e
de vida a partir do que essas pessoas, esses professores do mundo,
nos permitiram perceber e vivenciar.
Felizmente, essa decisão tem sido tomada cada vez mais pelos,
pesquisadores em antropologia. A impressão de que se estava sendo
antiético com as pessoas com quem se estudou não é só de Ingold.
Muitos colegas também sentiram que poderiam fazer mais do que ob-
servar, anotar e escrever artigos e livros sobre a diversidade das dife-
renças humanas.
68 Antropologia Social
ele. O sofrimento parece ter, de fato, esse poder de encurtar distâncias
emocionais, borrando as fronteiras entre o eu e o outro. O que aconte-
ceu na antropologia foi justamente o processo de reconhecimento do
sofrimento das pessoas com quem seus pesquisadores estudam.
70 Antropologia Social
Como propor soluções antropológicas para o mundo em que vive-
mos atualmente? A primeira resposta é romper com a dicotomia entre
pensamento e prática. Pensar o outro é praticamente se responsabili-
zar por ele tanto quanto nos comprometemos com nós mesmos. Geo-
graficamente, esses outros podem estar bem longe de nossas casas,
como podem ser nossos vizinhos; social e culturalmente, podem ser
muito diferentes, assim como podem ser relativamente parecidos co-
nosco. De todo modo, próximos ou distantes, eles são humanos como
nós. Além disso, eles são humanos vivendo vidas que poderiam ser as
nossas. O que você faz diante da dor deles? A antropologia sugere que
você saia de si mesmo.
72 Antropologia Social
Para elaborar o argumento, Segato (2006) distingue lei e moral de
ética. Enquanto as duas primeiras representam os princípios estabele-
cidos de uma comunidade, isto é, as regras que explicitam os valores
de um grupo social, a ética, para a autora, é um impulso crítico que
permite contestar e modificar a lei e a moral. Segato (2006) ressalta que
as regras e os valores de uma sociedade, ao longo da história, podem
se desvirtuar, tornarem-se obsoletas ou até mesmo serem esquecidas
pelas pessoas. A lei e a moral, portanto, distanciam-se da realidade prá-
tica, a qual, por experiência própria, sabemos que se altera constan-
temente. A ética seria uma espécie de lembrete, portanto, criticando,
revisando e atualizando as regras e os valores de uma comunidade. A
ética, como impulso, é um desejo por um futuro distinto do presente,
por um mundo em que as regras são outras ou em que os significados
daquelas que já temos fazem sentido para as pessoas.
O que Ingold (2014) está sugerindo é que esse diálogo não se res-
trinja ao que é factível, ou seja, a uma descrição do que é real e presen-
te. Conversando com outras pessoas e diante de outras perspectivas
culturais, podemos também imaginar novos mundos com eles. Um en-
contro, portanto, no qual ao mesmo tempo em que praticamos diligen-
temente a responsabilidade com o outro, somos autores de palavras,
ideias, argumentos e imagens de futuros que podem responder os de-
safios que espreitam a espécie humana. Como Ingold (2019, p. 63) es-
74 Antropologia Social
creve, o objetivo da antropologia não é só descrever a realidade, mas,
também,
valer-se do que aprendemos de nossa experiência com outros
povos e especular quais poderiam ser as condições e as possibili-
dades de vida. Como antropólogos, creio eu, deveríamos estimar
esta liberdade de especular, de dizer o que nós pensamos, sem
fingir que as nossas palavras são, na verdade, destilações das
opiniões das pessoas entre as quais estudamos.
Stokkete/Shutterstock
Vídeo Nesse sentido, que tal conceber a vida humana como um concerto?
Na execução da Nona Uma só música, uma só espécie, tocada por diferentes instrumentos,
Sinfonia de Beethoven,
da Filarmônica de Viena, composta por diferentes culturas? A um só tempo, conceber a vida
observe como diferen- como um concerto nesse molde é a aposta e o clamor da antropologia.
tes ritmos e melodias,
quando tocados em Entendemos que assim, juntos e diferentes, temos mais chance de ser
conjunto, produzem uma felizes até o momento em que desaparecermos enquanto espécie. A
só música. Uma metáfora
exemplar do que é viver mesma mensagem pode ser concebida por meio das belas palavras de
juntos sendo diferentes. Krenak (2019, p. 30):
Disponível em: https://www.
Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A
youtube.com/watch?v=NMUGGa-
QHmGA. Acesso: 21 jan. 2020. gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despen-
car. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com
a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e
criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no
espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde
a gente pode despencar em paraquedas coloridos.
76 Antropologia Social
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há respostas exatas na antropologia. A disciplina não oferece fór-
mulas para serem diretamente aplicadas em nossas práticas pessoais e pro-
fissionais. Assim, as respostas oferecidas ao longo do capítulo servem como
orientações para o desenvolvimento de suas soluções antropológicas.
ATIVIDADES
1. A seção 4.2 deste capítulo sugere reconhecer o sofrimento alheio.
Pesquise, em sites de jornais e revistas, matérias que tratam das
demandas das etnias indígenas que habitam o território brasileiro pelo
direito à terra e reflita acerca do seguinte questionamento: Por que
a garantia do acesso à terra pode amenizar o sofrimento das etnias
indígenas no Brasil?
78 Antropologia Social
5
Como conhecer o Brasil
antropologicamente?
Certa vez, o historiador inglês Peter Burke escreveu que dois mitos
sobre o Brasil convivem nas mentes de estrangeiros e nas dos próprios
brasileiros. Eles são os mitos do Brasil como paraíso e do Brasil como
inferno. Enquanto as imagens de praias idílicas e de uma população
hospitaleira, sem preconceitos e de beleza exuberante compõem o
mito do paraíso, ideias como antro de corrupção e principalmente de
criminalidade e violência generalizadas recheiam o mito do Brasil como
um inferno.
No sentido antropológico, mitos, como Claude Lévi-Strauss ensina,
não são nem verdades, nem mentiras. São conjuntos de alegorias, de
metáforas e de imagens por meio das quais o pensamento é exercitado.
O mito produz conhecimento e sua elaboração se realiza em experimen-
tações e observações da realidade que geram, por sua vez, especulações
e reflexões a respeito de absolutamente qualquer esfera da existência
humana, isto é, a natureza, o amor e o ódio, o poder e a violência, por
exemplo. Em suma, o mito dá sentido à vida.
Neste capítulo, dedicado ao Brasil, acompanharemos as observações
e reflexões que, de alguma forma, deram sentido ao país, procurando en-
tender, na esteira de Burke, como os mitos de paraíso e de inferno foram
e são formados. Contudo, em vez de investigar as imagens propostas pelo
inglês – praias, libido, violência e afins –, abordaremos o tópico que quase
todos os antropólogos indicam como o que mais mobiliza a atenção do e
sobre o Brasil: a questão racial.
Ao longo de sua história e ainda hoje, o Brasil foi e é pensado por
meio do que se pode entender por raça. Mais precisamente, nossos mi-
tos são extensas e intensas especulações acerca do que parece ser a
principal marca da nossa realidade: a miscigenação. Isto é, a mistura de
gentes que ora é lida como racial e étnica, ora é entendida como cultural
e social. Portanto, as perguntas que procuraremos explorar são: o que foi
entendido sobre o Brasil a partir da miscigenação? O que as diferentes
interpretações sobre a miscigenação fizeram ao Brasil? Para tanto, vamos
ter de começar a nossa jornada pelo inferno.
80 Antropologia Social
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), que pediu aos candi-
datos para responder à pergunta: como se deve escrever a história do
Brasil? O naturalista desenvolveu uma dissertação sugerindo que nos-
sa história deveria ser contada a partir do encontro das “três raças hu-
manas”: a branca, representada pelos portugueses; a índia, dos nativos;
Figura 1
e a, em suas palavras, “etiópica”, a dos africanos trazidos para o país
Karl von Martius, um dos
como escravos. Martius afirmava que as “três raças” teriam se mistura- mais importantes pesqui-
sadores que vieram ao
do ao longo da formação do Brasil de um modo jamais acontecido em
Brasil na Missão Artística
outro momento da espécie humana. Seu texto venceu o concurso. Austro-Alemã (1817-1820)
82 Antropologia Social
te capítulo. Segunda ressalva: também é importante assinalar que a
teoria do darwinismo social é uma falácia científica, que serviu muito
mais como roupagem intelectual para a manutenção e o aprofunda-
mento de desigualdades e hierarquias do que ao conhecimento social
e cultural da humanidade. Ao trazer a história do darwinismo social no
Brasil, o objetivo também é o de aprender com os erros do passado
para tentarmos não os cometer novamente no presente e no futuro,
está bem? Voltemos à narrativa.
Publicado em 1890, O
Passos, como ficou conhecida, levando o nome do prefeito da cidade
cortiço retratou a vida nos à época. Os cortiços eram o principal alvo das mudanças. Ao mesmo
casarões cariocas e uma
imagem pungente da ex-
tempo em que a derrubada dos casarões avançava, o governo federal
ploração e das péssimas lançou um programa de vacinação obrigatória da população, liderado
condições que sofriam
os seus moradores entre
por Oswaldo Cruz, então ministro da saúde.
o fim do XIX e início do XX.
Imaginem como as pessoas mais pobres e afetadas por essas medi-
AZEVEDO, A T. B. G. de. São Paulo:
das estavam se sentindo; a vida já era difícil para elas. Sem escolaridade
Panda Books, 2017.
e formação, lhes restava a batalha pela sobrevivência na informalidade.
Nesse cenário, perderam suas moradias sem que o governo ofertas-
se alguma alternativa e ainda foram obrigadas a tomar uma injeção
sabe-se lá do quê! Não deu outra: o que você estudou nas aulas de
história como Revolta da Vacina (1904) foi um quebra-quebra generali-
zado, protagonizado pela parcela da população afetada pelas reformas
modernizantes do Rio de Janeiro.
84 Antropologia Social
Em 1904, no início da experiência republicana, o Brasil, ao invés de
incluir, excluiu ainda mais. Solução bastante contraditória quando se
considera que a República é um modelo de Estado baseado na liber-
dade e na igualdade. Com uma população composta majoritariamente
por pessoas pobres, muitas delas libertadas da escravidão alguns anos
antes, a desigualdade no país é assim reproduzida. Portanto, pode-se
afirmar que a reforma de Pereira Passos foi um processo de moderni-
zação conservadora: atualizou a cidade, mas manteve a estrutura social
inalterada.
Pessoas que já não tinham nada, perderam ainda mais com o em-
belezamento “para inglês ver” do Rio de Janeiro. Para essas pessoas, o
estado brasileiro ofereceu a repressão, gerando a impressão de que o
país não estava interessado em construir uma República digna desse
nome com pobres e mestiços.
[…]
Da morena sestrosa
De olhar indiscreto
Mulato era uma palavra para mestiço. Inzoneiro significa que brinca,
que faz zona no sentido de festa. Já a morena, também outra palavra
muito usada para se referir à mestiça, é sestrosa, isto é, graciosa e cati-
vante, de olhar indiscreto, como se fitasse convidando à diversão.
86 Antropologia Social
tação bem diferente das que condenavam a figura do mestiço algumas
décadas antes. Contudo, não é um herói à europeia, desses que lutam,
vencem e casam com a princesa. Ele é um herói brasileiro ou, como o
subtítulo do livro propõe, um herói sem nenhum caráter, isto é, sem
regras nem morais definidas, em uma nação muito nova e pouco co-
nhecida por seus habitantes para ter um caráter nacional próprio.
88 Antropologia Social
a ênfase da cultura brasileira não estaria nem no português senhor de
terras, morador da Casa-grande, nem no africano escravizado dormin-
do na senzala, nem no índio em sua aldeia. Estaria no meio deles três,
nas trocas linguísticas, culinárias, técnicas, corporais, dentre outras,
tecidas entre os três personagens da nossa colonização. Em outras pa-
lavras, o Brasil era produto de uma miscigenação cultural e é dela que
viria nossa originalidade.
Além de formular a miscigenação como tese antropológica sobre o
Brasil, Freyre disserta longamente sobre a contribuição do negro para
a formação do Brasil. Nessas linhas, o autor recusa o argumento racia-
lista de que o africano ocuparia um degrau inferior na escala evolutiva
humana para demonstrar como suas ideias, práticas e produções eram
absolutamente ricas e inteligentes ao seu modo.
Contudo, por outro lado, ao mesmo tempo em que Freyre exalta a
cultura negra e a miscigenação brasileira, seu argumento parece que-
rer abrandar a violência da escravidão e também do senhor branco
com a negra escravizada. Em certas passagens do livro, a impressão
que o leitor tem é a de um saudosismo benevolente com a época em
que a escravidão era vigente em nossas terras. Daí, podemos classificar
a obra de Freyre como ambivalente: critica o racismo da degeneração
ao mesmo tempo em que parece querer suavizar o horror da escra-
vidão. Vale a pena acompanhar um dos trechos mais significativos de
Casa-grande e senzala para notar a ambiguidade do seu argumento:
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma,
quando não na alma e no corpo [...], a sombra, ou pelo menos
a pinta do indígena e do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio
Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A
influência direta, ou vaga e remota, do africano [...] na ternura,
na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos
sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar me-
nino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, traze-
mos quase todos a influência negra. Da escrava ou sinhama que
nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer,
ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra
velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-
-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé́
de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos
transmitiu, ao ranger da cama de vento, a sensação completa de
homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de
brinquedo. (FREYRE, 2002, p. 301)
90 Antropologia Social
uma transformação significativa no Brasil, Vargas e seus ideólogos se
apropriaram das perspectivas que identificavam na miscigenação uma
marca identitária do brasileiro para gerar novos símbolos nacionais.
Seu objetivo era o de unificar o país, abrandando os conflitos de classe
entre capital e trabalho e, assim, gerar aprovação social ao seu gover-
no. Com Vargas e o Estado Novo, a miscigenação tornou-se símbolo
nacional promovido oficialmente. Dentre as medidas de Vargas, estão
o financiamento dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro,
a liberação de recursos para a construção do Maracanã, a legalização
dos até então proibidos terreiros de Candomblé e Umbanda, o ensino
de capoeira nas escolas públicas e até mesmo a invenção da feijoada
como símbolo nacional e a criação do Zé Carioca, personagem da Dis-
ney que representa o brasileiro. Todas essas ações estavam vinculadas
a ações e medidas do Estado Novo (SCHWARCZ, 2013).
92 Antropologia Social
Segundo o relatório do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada), a despeito do aumento geral da expectativa de vida
entre os brasileiros, os indicadores que cobrem o período que
vai de 1993 a 2007 mostram como a população branca continua
vivendo mais do que a negra. Nesse período, o grupo de homens
brancos em torno de sessenta anos de idade passou de 8,2%
para 11,1%, ao passo que o de negros na mesma faixa etária au-
mentou de 6,5% para 8%.
Mais preocupantes são os índices de mortalidade de homens de
uma forma geral e, em particular, de jovens homens negros: as
maiores vítimas da violência urbana e do acesso precário a re-
cursos médicos. Se, no ano de 2010, a taxa de homicídios foi da
ordem de 28,3 a cada 100 mil jovens brancos, a de jovens negros
chegou a 71,7 a cada 100 mil, sendo que em alguns estados a taxa
ultrapassa cem por 100 mil jovens negros. Por sinal, segundo a
Anistia Internacional, um jovem negro no Brasil tem, em média,
2,5 vezes mais chances de morrer do que um jovem branco. [...]
Se elegermos apenas o ano de 2012, quando um pouco mais de
56 mil pessoas foram assassinadas no Brasil, desse total 30 mil
eram jovens entre quinze e 29 anos, e desses, 77% eram negros.
94 Antropologia Social
car em prática essas alternativas. É com esse objetivo que estudamos
antropologia. Não é para aceitar o mundo como ele é, mas, antes, para
imaginá-lo, sempre, mais livre, mais igual e mais respeitoso para todos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos entender cidadania como um princípio político de afirma-
ção da liberdade, da igualdade e do respeito às diferenças. Contudo, ao
estudarmos o Brasil pelo ponto de vista da antropologia, conhecemos os
mecanismos que produzem uma abissal e dilacerante desigualdade que
também provoca cerceamento da liberdade e desrespeito às singularida-
des sociais.
Em vez de deixar o pessimismo tomar conta dos nossos ânimos, esse
conhecimento pode muito bem nos incitar à transformação. A antropo-
logia pode ser o combustível de sua disposição por fazer a sua parte por
um Brasil mais justo para todos. Assim, deixamos uma palavra final é qua-
se uma convocação: use a antropologia como instrumento por um Brasil
mais livre, igual e respeitoso. Essa é a vocação da antropologia, a de ser
um instrumento de aprofundamento da justiça, quase sempre contra os
poderes estabelecidos e em favor de todas e todos, independentemen-
te de suas diferenças. Se o estudo deste livro sensibilizou você de algu-
ma forma, por gentileza, retribua contribuindo para que nossa vocação
se realize. Não só por mim, mas por você também. Afinal, um país mais
justo oferece uma vida, se não melhor e mais saudável, certamente mais
significativa.
ATIVIDADES
1. Considere o texto a seguir:
Supunha-se que as raças correspondiam a dados essenciais e fixos,
e que a humanidade se dividia a partir delas em hierarquias na-
turais. Ou seja, cada raça teria potenciais distintos e inalteráveis,
estando os brancos caucasianos no topo da pirâmide social e evo-
lutiva, e os negros na base. Contudo, piores que as raças puras
seriam as mestiçadas, as quais, de acordo com esses mesmos te-
óricos, eram passíveis de todo tipo de “degeneração hereditária”.
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 329)
96 Antropologia Social
REFERÊNCIAS
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98 Antropologia Social
2. Ao indicar as “questões difíceis colocadas pela diversidade cultural”,
Celso Castro está se referindo aos preconceitos e racismos que os
humanos criam para lidar com as suas diferenças. De fato, trata-se de
um sério problema, uma vez que um preconceito inferioriza o outro
e pode ser a causa das mais variadas violências, como a história da
humanidade atesta. A concepção de cultura de Boas oferece uma
solução ao sugerir que se perceba o mundo pelo ponto de vista
de cada cultura. Sua aposta era a de que, pelo que Castro define
como relativismo, os preconceitos tendessem a perder força, se não
socialmente, ao menos, na perspectiva do observador.
Gabarito 99
texto permite a ele assimilar de maneira mais efetiva o que aprendeu
em sua pesquisa.
2. Não há gabarito para essa pergunta. O ideal é que você exercite sua
capacidade argumentativa ao defender um dos direitos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Gabarito 101
Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico
ISBN 978-85-387-6542-4