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Resumo
O sambista nasceu em 1928, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, e
se mudou para a capital ainda pequeno, habitando, durante a maior parte de sua vida, a
Barra Funda1, um dos principais bairros onde se concentrou um grande número de
pessoas migradas do campo, de maioria negra. Morreu em 1995.
Sua trajetória se inseriu, portanto, em um período de muitas mudanças
estruturais no Brasil e, sobretudo, em São Paulo, cidade que se tornava economicamente
mais importante que o Rio de Janeiro, até então o centro dos interesses do país:
migração de uma grande quantidade de trabalhadores rurais para os principais centros
econômicos do país, rompendo com as antigas estruturas que restavam do Brasil
colônia, incorporação dos negros à sociedade livre e, na década de 1950, o auge do
1
Segundo o depoimento dado por ele em 1981, arquivado no MIS, seu bairro era a Barra Funda. No
entanto, Osvaldinho da Cuíca (2009) afirmou que ele habitou Campos Elíseos, bairro vizinho da Barra
Funda. Estou levando em consideração o bairro que Geraldo afirmou ser o seu lugar.
crescimento da cidade de São Paulo. Sua vivência do período não foi a de mero
observador das mudanças. Geraldo Filme refletiu criticamente sobre a modernização do
país e, principalmente, da metrópole que habitava, em sua obra musical e em sua
atuação como um dos grandes representantes da vida cultural de São Paulo.
“Samba tá no sangue, por isso sou compositor. Eu conheço umas poucas notas. Agora,
se eu tiver que acompanhar, eu não sei. Minhas músicas são consideradas sem praxe,
tenho criatividade bastante.” 2
Seu pai era “daqueles músicos antigos, boêmios.” Levava outros músicos para
sua casa, que era uma pensão administrada por sua mãe, e fazia serenatas que duravam,
às vezes, dias.
Sua mãe, dona Augusta Geralda de Souza, nascida em 1901, havia viajado, na
década de 1920, para a Europa, em companhia de uma das famílias para quem
trabalhava como cozinheira. Lá, segundo conta o sambista amigo de Geraldo,
Osvaldinho da Cuíca (2009), ela entrou em contato com organizações sindicais, que
ainda eram pouco conhecidas dos brasileiros. De volta a São Paulo, em companhia de
outras mulheres negras cozinheiras, fundou a gafieira e o cordão carnavalesco
Paulistano da Glória, que eram entendidos como importantes espaços de congregação
da população de baixa renda de São Paulo.
Neto de escrava africana, filho de músico e de mulher batalhadora, Geraldo
Filme atestou, em seus depoimentos, a importância de sua formação familiar para o
papel que lhe coube representar. Ele conta que, desde pequeno, frequentava com seu pai
as rodas de samba do Bexiga, do centro da cidade e da Barra Funda. Também
participava dos eventos religiosos da Festa do Bom Jesus de Pirapora, procissão que
reunia crentes de diversas cidades do interior do Estado creditada, não só pela literatura
sobre o assunto, como pelos próprios sambistas, como um dos principais locais de
consolidação do samba paulista.
Teve grande importância para o carnaval paulistano, através da participação
como compositor de samba-enredo em muitas das escolas de samba, sem esconder, no
entanto, sua preferência pela Vai-Vai. Foi, ainda, presidente da UESP – União das
Escolas de Samba de São Paulo -, criada em 1973, e presidida por ele de 1977 a 1979.
2
Todas as falas de Geraldo Filme, colocadas entre aspas, contidas neste trabalho, são trechos do
depoimento arquivado no MIS – Museu da Imagem e Som - de São Paulo, colhido em 1981.
Como compositor de sambas-enredos, ele foi o responsável pelo sucesso do desfile das
escolas em que atuou e, como membro da UESP, defendeu o afastamento das escolas de
politicagens que, segundo ele, envolviam as escolas cariocas: “Quem manda agora
somos nós, eles só fiscalizam.”
Nesse tempo, ele também diz ter sido o responsável por transformar o restante
dos cordões carnavalescos, que ainda existiam em São Paulo, em escolas de samba, não
sem pesar, pois os cordões eram manifestações de origem negra e tipicamente
paulistanas que deveriam, segundo ele, ser preservados. As escolas se moldavam de
acordo com as manifestações cariocas. Porém, conhecedor da realidade e do meio
político, não pôde deixar de notar que, insistindo na não-transformação dos cordões,
corriam as organizações o risco de desaparecerem já que, ao contrário das escolas, os
cordões não recebiam apoio oficial.
Sobre sua atuação na briga pela independência dos cordões de interesses
políticos, conta ele que, diversas vezes, foi avisado do perigo que corria de perseguição
das autoridades, o que se revelou real quando ele foi preso pela ditadura militar. Outro
acontecimento da perseguição política de músicos populares durante a ditadura militar
se deu com a morte de Pato N'Água, apitador da Vai-Vai que foi assassinado pelos
militares e posteriormente homenageado na canção “Silêncio no Bexiga”, de Geraldo
Filme:
“Silêncio
O sambista está dormindo
Ele foi, mas foi sorrindo
A notícia chegou quando anoiteceu
Escolas
Eu peço o silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de Pato N´Água emudeceu (...)”
Os problemas da modernização
3
Sobre estas teorias, ver Darcy Ribeiro (1978) e Hermano Vianna (2010).
4
Destaco, aqui, os estudos sobre o samba de Hermano Vianna (2010), José Ramos Tinhorão (1998) e
Muniz Sodré (2003). Os depoimentos de Geraldo Filme, Germano Mathias e Osvaldinho da Cuíca
atestam a mesma crença na democracia racial do samba.
Esses eventos, segundo uma ampla literatura e os depoimentos dos sambistas,
eram bastante democráticos. Mesmo no carnaval, segundo contou Geraldo Filme, havia
mistura entre negros e, principalmente, italianos, para a realização da festa, apesar de
haverem, também, alguns blocos só de brancos e outros só de negros.
Segundo Hermano Vianna (2010), as relações entre membros da elite – políticos,
músicos eruditos, escritores, entre outros – e músicos populares ocorriam já há alguns
séculos antes da adoção do samba como ritmo nacional, no início do século XX. Ele
denomina esses membros que circulavam entre as duas esferas sociais de “mediadores
culturais”, ao possibilitarem a hibridação dos dois pólos e a construção de uma
sociedade mista que caracterizou o brasileiro tão sonhado por Gilberto Freyre.
Segundo Geraldo, essa mediação já acontecia desde o tempo da escravidão,
quando os senhores levavam seus escravos mais talentosos – na música e na capoeira –
para disputarem entre si: “era que nem briga de galo, eles apostavam nos escravos
deles.” Ou seja, parece ter sempre havido, por parte da elite, uma admiração admitida
pela música popular. Geraldo Filme também exerceu esse papel de mediador, ao atuar
na mediação entre comunidades negras de São Paulo, como ele mesmo afirma, e a
esfera política e ao realizar trabalhos em parceria com artistas de uma elite intelectual,
como Plínio Marcos.
Com a intensificação do processo de modernização arquitetônica da cidade, estes
eventos culturais acabaram por se tornarem cada vez mais centrais na vida das
populações migradas do campo, já que a demolição de antigos cortiços e malocas
obrigava as populações a se movimentarem, dispersando as relações de vizinhança.
Talvez a criação da gafieira e do cordão pela mãe de Geraldo em conjunto com outras
cozinheiras tenha levado em conta a necessidade destes espaços de encontro, que
tornavam o cotidiano da metrópole menos rígido. A bibliografia sobre o assunto destaca,
entre os principais espaços e eventos, a festa de Nossa Senhora de Achiropita, no
Bexiga, as rodas de samba e tiririca do Largo da Banana, na Barra Funda, as festa
juninas e os cordões carnavalescos.
A imagem que as autoridades públicas e a mídia propagavam da modernização
da cidade era bastante otimista, como se observa no conjunto de eventos que
caracterizou as comemorações do IV Centenário da cidade, em 1954, ano, também, de
inauguração do Parque do Ibirapuera, um dos marcos arquitetônicos do rompimento
com o passado. Os sambas compostos nessa época por Adoniran Barbosa eram o
contraponto de tal imagem, denunciando a existência dos cortiços – ou malocas – e das
constantes desapropriações que deixavam famílias de baixa-renda desabrigadas5.
No entanto, esse abandono sofrido pelos bairros periféricos e pelos cortiços era
valorizado por Geraldo Filme, que via nestes espaços, assim como na prática musical,
uma fuga desejada da realidade: estando distantes das autoridades, estes bairros davam
maior liberdade para seus moradores e possibilitavam, segundo o sambista, que uma
cultura de origem negra se mantivesse viva. É nestes termos que ele demonstra o seu
amor pela escola de samba Vai-Vai, do Bexiga: “gosto daquele povo, daquela raiz, pena
que ali é o centro da cidade e aquela gente mudou, acabaram os cortiços. Antigamente,
eu entrava no Bexiga numa sexta e saía de lá no domingo, na segunda de manhã. Era
festa, era música, come na casa de fulano, dorme aqui, dorme ali, era um território livre
aquilo, um não cuidava da vida do outro, um bairro alegre.” No mesmo depoimento, ele
ainda falou do Bexiga como sendo um dos poucos redutos negros que restaram na
cidade: “Eu fui pro Bexiga e me dei bem no meio daquela negrada toda!”.
No entanto, apesar desse elogio da negritude, ele acreditava firmemente na
democracia racial existente no samba, dizendo que havia blocos de carnaval só de
brancos, como o bloco “21 de Abril”, do Brás, que era “muito bom, por sinal!”. Ele
ainda relata que, a partir de 1968, com a oficialização do carnaval, mais brancos,
principalmente estudantes, passaram a frequentar o samba e que, em São Paulo, estes
brancos participavam em pé de igualdade, queriam ser sambistas, diferentemente do
Rio, onde os brancos queriam dirigir a festa.
Ele ainda critica o radicalismo de alguns grupos militantes de negros em
quererem defender, ao contrario de uma miscigenação, uma pureza racial: “Escrevi um
artigo para a revista do movimento negro unificado (…) eles são bem radicais. Eu disse
pra eles que o branco veio pra contribuir, veio somar com a gente, pra gente não
apanhar sozinho.” Em sua canção Vá cuidar da sua vida, ele define a barreira racial
como uma construção ideológica mostrando, com ironia, como as práticas culturais e as
identidades são fluidas, passíveis de inversões e de transformações:
5
Um dos sambas mais famosos de Adoniran, que trata da questão, é Saudosa maloca, composto em
1951.
Crioulo cantando samba
Era coisa feia
Esse negro é vagabundo
Bota ele na cadeia
E hoje o branco vai ao samba
Quero ver como é que fica
Todo mundo bate palma
Quando ele toca a cuíca
(…)
6
Antes do lançamento no rádio de Pelo Telefone, em 1916, canção cuja composição foi atribuída a
Donga, o termo samba designava qualquer batuque negro sincopado.
Enfim, diante destes relatos, vê-se que no processo de modernização do país há,
ora uma continuidade entre o discurso oficial e o da classe artística popular, ora
descontinuidade. No primeiro aspecto, parece ter sido consenso a ideia da democracia
racial existente na prática musical. A descontinuidade aparece quando os músicos
colocam essa prática musical como uma fuga, um momento mágico, apartado da
realidade cotidiana.
Diz-se que o termo samba surgiu da palavra semba. De acordo com Muniz Sodré
(2003), a palavra era utilizada por africanos vindos de Angola e do Congo para designar
qualquer dança acompanhada de batuque e passou a denotar os diversos ritmos
populares onde havia participação de negros no Brasil. Não havia, no entanto, uma
uniformidade estilística entre todos estes ritmos que eram abarcados pelo termo samba.
Na década de 1920, o termo foi apropriado para designar o ritmo praticado em
um espaço específico do Rio de Janeiro, as casas das tias baianas, com destaque para a
tia Ciata e, posteriormente, o samba praticado no morro do Estácio. O samba do Estácio
iria moldar as composições que queriam se dizer sambísticas, ganhando o ritmo uma
aura de raiz do samba, quando na verdade ele era apenas o resultado do projeto
nacionalista de Getúlio Vargas, de intelectuais e de sambistas que queriam para si o
título de inventores do samba7.
Segundo Geraldo Filme, o samba de São Paulo não tinha nada a ver, em sua
origem, com o samba baiano e o samba carioca. Seus principais elementos eram a
integração entre as violas caipiras, o cateretê indígena, elementos do jongo e do carimbó
maranhense. Mas a principal característica deste samba não seria o ritmo em si, já que
ele era, antes de um gênero musical bem-definido, a mistura arbitrária de ritmos de
origens diversas. O que caracterizava este samba era o encontro: festa com música e
dança, que podia acontecer em momentos de puro lazer ou em momentos que seguiam
alguma cerimônia religiosa.
Ainda segundo ele, este samba não tem ligação nenhuma com o candomblé, ao
contrário do samba baiano, o qual parece ser a raiz do samba carioca, já que o último
era praticado, inicialmente, nas casas das tias baianas: negras migradas para a capital do
7
Sobre isso, ver Hermano Vianna (2009).
país após a Abolição. Osvaldinho também afirmou que o samba paulista é “bem menos
negro”.
Geraldo ainda fala de certa superstição dos sambistas de São Paulo, que está
bem longe do que ele chama de doutrina ou de uma prática religiosa. Conta que já
compôs sambas em homenagem aos orixás, mas ressaltando-os como prática cultural, e
não como sua crença.
“Nosso samba não tem nada a ver com o samba do Rio. É tão diferente! Em tudo! Nos
tipos de manifestação da gente, no andamento, porque o nosso vem mesmo daqueles
batuques, daquelas festas rurais, festas que eram dadas aos escravos quando tinha boas
colheitas (...)”.
“Eu, com meus 20 anos de idade, era um menino ou pouco mais que isso, extasiado com
a oportunidade de viver profissionalmente daquilo que fazia por puro prazer nas ruas de
São Paulo desde a infância: batucar.” (Cuíca, 2009, p.19)
Geraldo Filme, por sua vez, parecia não enxergar a midiatização do samba com
bons olhos. Sobre os desfiles das escolas-de-samba, ele dizia que isso era “espetáculo
(…) e não carnaval”.
8
O termo cancionista, derivado de cancioneiro, foi inventado por Luiz Tatit (2002) para designar o que
ele considera os três pilares da composição de música popular: o compositor, o intérprete e o
arranjador.
funciona como formador de opinião, ao se constituir a canção como instrumento eficaz
de transmissão da mensagem, já que possui o poder de mobilizar o ouvinte de maneira
mágica e, ao mesmo tempo, aproximá-lo do cotidiano, do familiar (Tatit, 2002).
Uma antropologia musical que busca, segundo a definição de Seeger (1987),
conhecer a sociedade através da música e não o contrário, é uma ciência capaz de
revelar verdades externas às intenções do compositor, visto que este se utiliza de
material sonoro que ele domina, pelo estudo técnico ou pela vivência, conferindo-lhe
pequena intervenções criativas. Assim, quando Geraldo Filme afirma que seu samba
tem influência do carimbó, do cateretê indígena e da moda de viola, pode-se investigar a
realidade desta afirmação através da análise comparativa do material sonoro transcrito
em partitura – ritmos e padrões melódicos – de suas composições e dos outros ritmos,
buscando-se compatibilidades sonoras, trabalho que apenas o músico pode realizar.
Através da análise de materiais musicais, foi possível, aos musicólogos, chegar a
um consenso sobre a sincopa existente nos batuques africanos que eram praticados no
Brasil ser a principal característica rítmica do samba, enquanto que a harmonia da
música portuguesa foi a contribuição do branco, o que atesta que realmente houve a
participação de ambos os grupos na formação da nossa música popular, a meu ver.
Assim, o material colhido pelo músico serve de base etnográfica para uma análise
antropológica sincrônica e diacrônica da sociedade.
As letras de Geraldo Filme teceram uma critica à modernidade, à imposição por
parte do Estado de uma nacionalidade padronizante e aos estereótipos que se
construíram sobre negros e brancos no Brasil. Sua busca se dava por uma construção
identitária híbrida, através da manutenção de práticas artísticas e culturais que
caracterizassem São Paulo enquanto espaço único, de tradições próprias.
Como faz o antropólogo, o músico conheceu a si mesmo e ao que ele considerou
a sua identidade - a negritude de bairros como o Bexiga e a Barra Funda - através de sua
percepção do outro: a intervenção do Estado e do dinheiro nas práticas artísticas deu-lhe
a noção do que são, para ele, as verdadeiras práticas artísticas. O contato com os
padrões culturais cariocas fez-lhe elaborar o que era São Paulo, o samba paulista e o que
é a verdadeira identidade: uma realidade heterogênea, sendo o brasileiro uma mera
construção, uma uniformização ideal das diferenças. A percepção das instituições
religiosas fê-lo chegar ao que era a doutrina em contraposição ao que era a verdadeira
crença.
“Eu era menino
Mamãe disse vamo embora
Você vai ser batizado
No samba de Pirapora
Lá no barraco
Tudo era alegria
Negro batia
Na zabumba e o boi gemia.”
9
A crítica endereçada a Carmem Miranda surgiu quando ela regressou de sua turnê nos Estados Unidos,
quando se acreditou que a cantora, representante do Brasil e do samba, havia se americanizado.
Percebe-se, assim, como a intenção patriótica de Getúlio Vargas teve efeito no imaginário brasileiro.
Bibliografia
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MATOS, Maria Izilda Santos de. A cidade, a noite e o cronista. Bauru: Edusc, 2007.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
TINHORÃO, José Ramos de. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo:
Ed.34, 1998.
ULHÔA, Martha e OCHOA, Ana Maria (org.). Música Popular na América Latina.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar: Ed. UFRJ, 2010.
Material fonográfico
Geraldo Filme – Arquivo fonográfico do MIS – Museu da Imagem e Som de São Paulo
– 1981.
Geraldo Filme - A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes - SESC,
1982.
Germano Mathias – A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes -
SESC, 1975.