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NITERÓI
2021
MARIANNA PEREIRA COSTA MENDES
Orientador
Jorge de La Barre
NITERÓI
2021
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC)
Matrícula: 617057057
TÍTULO
PARECER
O trabalho de Marianna Pereira Costa Mendes, intitulado “A representação dos Nativos
Americanos no filme Pocahontas” propõe uma leitura muito interessante sobre a questão da
representação do Outro (o Nativo Americano) na indústria de entretenimento, a partir de
uma análise do filme Pocahontas, de Walt Disney (1995). O trabalho é bem escrito e bem
estruturado. A banca recomenda a publicação do trabalho.
ASSINATURAS DA BANCA
Prof. Orientador
Examinador 1
Examinador 2
Dedico este trabalho à minha mãe, que em sua
breve vida, me marcou de afeto e me incentivou
a ir em busca dos meus sonhos.
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Iris, por todo o afeto, inspiração e incentivo aos estudos e realizações
profissionais. Saudades imensas!
Ao meu avô, Antônio, e a minha tia, Adjane, por proporcionarem apoio emocional e
condições de estudo.
Ao meu companheiro, Sergio, por toda paciência, carinho e zelo durante esse período.
Ao meu orientador, Jorge, por toda dedicação e auxílio durante o processo de feitura do
trabalho de conclusão de curso.
A todo o corpo docente do Departamento de Cinema e Audiovisual, por todo esforço e
dedicação para formar licenciados em cinema.
Aos meus colegas da turma 2017.1 que dividiram momentos maravilhosos e tornaram
a faculdade um lugar ainda mais especial.
RESUMO
A recriação do mito de Pocahontas pelos Estúdios de animação Walt Disney trouxe novas
representações e perspectivas sobre a colonização americana e a cultura dos nativos americanos.
O presente trabalho tenta entender e reconstituir tal processo de estereotipagem etnocêntrico de
personagens não brancos, a partir da análise descritiva qualitativa crítica do filme Pocahontas,
de 1995, que atingiu divulgação mundial. Trata-se de questionar o discurso hegemônico sobre
povos marginalizados acerca de suas próprias culturas, e o impacto dessa representação numa
mídia de abrangência global.
ABSTRACT
The recreation of the myth of Pocahontas by the Walt Disney Animation Studios brought new
representations and perspectives on American colonization and Native American culture. The
present work seeks to understand and reconstitute such process of ethnocentric stereotyping of
non-white characters, based on the critical descriptive qualitative analysis of the 1995 film
Pocahontas, which reached worldwide dissemination. It is about questioning the hegemonic
discourse about marginalized people about their own cultures, and the impact of such
representation in a global media.
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1. O FILME POCAHONTAS .................................................................................................. 13
2. ANÁLISE DO FILME POCAHONTAS ............................................................................. 20
2.1 Apresentação dos dois mundos ................................................................................. 20
2.2 Conhecendo Pocahontas e seus dilemas ................................................................... 23
2.3 Primeiro contato com o “Outro” .................................................................................. 26
2.4 O “bom selvagem” e o “mau selvagem” ...................................................................... 29
2.5 Prelúdio do confronto ................................................................................................. 31
2.6 Confronto e despedidas ............................................................................................. 33
3. RECEPÇÃO DO FILME E CRÍTICAS ............................................................................... 36
4. LEGITIMANDO UMA NARRATIVA ............................................................................... 40
CONCLUSÃO.......................................................................................................................... 45
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 47
11
INTRODUÇÃO
estimular o merchandising e atingir o público familiar, mesmo que para isso fosse preciso se
distanciar do mito, e deturpar a cultura da comunidade Powhatan e sua imagem.
Desta forma, se faz necessário ampliar o estado da arte sobre representações de outros
povos pelo maior estúdio de animação norte-americano, através de um objeto icônico da
indústria cultural, como é o caso de Pocahontas. Entender o processo de estereotipagem e
representação etnocêntrica de personagens não brancos por um estúdio estadunidense que
atinge divulgação mundial parece importante, a fim de questionar o discurso hegemônico sobre
povos marginalizados acerca de suas próprias culturas.
Para tal, será utilizado uma metodologia descritiva qualitativa crítica, mesclando de
forma dialética a análise do objeto, com uma base teórica acerca de pós-colonialismo,
representação e hegemonia cultural, pautada em autores como Stuart Hall, Alan Bryman, Denis
de Moraes, Jeffrey Jerome Cohen e Edward Said.
Assim, ao longo dos capítulos, utilizarei o filme Pocahontas: O Encontro de Dois
Mundos (1995) como objeto de estudo, para tratar de diversas questões como: a adaptação do
mito para o público infantil e para o perfil da empresa; as representações de povos nativos
americanos no cinema; a visão dos próprios nativos americanos sobre o filme; o uso de
estereótipos como estratégia para legitimar uma narrativa dominante, contribuindo para
preservar a hegemonia cultural norte-americana.
13
1. O FILME POCAHONTAS
O estúdio de animação percebeu que existia na sociedade uma demanda por trazer obras
audiovisuais conectadas com as pautas ligadas ao movimento feminista, a preservação da
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natureza e que levantasse debates sobre discriminação racial. Assim, Pocahontas se torna a
principal aposta do estúdio na época, já que o filme lida com todos esses assuntos.
A Disney é reconhecida por trazer verossimilhança em suas produções, e com
Pocahontas, não seria diferente. Dessa forma, os produtores investiram bastante no projeto, e
fizeram com que a equipe buscasse realizar uma pesquisa aprofundada sobre o mito de
Pocahontas. Analisando as documentações disponíveis que contam a história da nativa-
americana, tiveram o cuidado de fazer uma pesquisa local minuciosa para conhecer a região
onde a história se passava, sua fauna e flora. Notadamente, foram em busca de conhecer os
Powhatans e sua cultura.
Assim, o estúdio de animação se preocupou em tentar criar personagens que não
ofendessem a cultura dos Powhatans, oferendo uma representação digna do povo, levando
eventualmente a uma certa identificação do público com os nativos americanos. A Disney
percebeu que para vender o filme e não se tornar alvo de críticas, ao retratar nativos americanos,
seria necessário trazer representatividade para o filme; assim convidou atores de descendência
indígena para serem as vozes dos personagens, e servirem também de referência visual para o
rosto e o corpo dos personagens. A atriz Irene Bedard, de descendência indígena, foi convidada
para interpretar a personagem principal; Russel Means, ativista indígena, interpretou o chefe
Powhatan; e Gordon Tootoosis interpretou Kekata, o xamã da comunidade de Pocahontas.
Apesar da preocupação da Disney em trazer pluralidade e autenticidade para sua
animação, trazendo atores indígenas e abordando a questão racial no contexto da demanda
popular, ampliaram-se durante a década de 1990, os movimentos sociais e pelos direitos civis.
De fato, o filme sofreu duras críticas – pela representação dos indígenas e pela imprecisão
histórica –, chegando a ser acusado de reforçar estereótipos racistas e do tipo “o bom selvagem”.
Isto, porque o filme recria o mito de Pocahontas, diminuindo as mazelas causadas pelo
colonialismo na América, passando a ideia de que ambos os lados – colonizados e colonizadores
–, teriam tido membros justos e ambiciosos, motivados por ganância ou por benevolência. Em
suma, uma simplificação maniqueísta da violência da colonização.
Ainda que tenha existido a preocupação de não prejudicar a imagem dos indígenas e de
trazer mais representatividade através da escolha de intérpretes nativos americanos, ela não foi
muito bem-sucedida. O filme foi criticado por levar uma representação no mínimo problemática
do povo Powhatan. (New York Times, 1995)
De fato, o filme reconfigura o mito de Pocahontas por completo, o deixando de acordo
com o ideal da Disney. Isto é, pronto para ser vendável para o público familiar. Ao criar uma
nova narrativa, modificando vários pontos chaves da história, abre-se então margem para a
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Importante salientar que a embarcação chama atenção por ser gigantesca, e ser
representada de um ponto de vista onde a câmera está abaixo do nível dos olhos, voltada para
cima, dando a sensação de ser uma embarcação imponente, isto é, grandiosa.
Aparece, então, ao som de tambores, o protagonista: Capitão John Smith. Os demais
marinheiros celebram, pois, a figura de Smith e seus feitos lendários. Smith é visto como um
grande explorador, conquistador de novas terras e responsável por trazer civilização aos povos
selvagens de terras inóspitas. O diálogo que se segue evidencia este ponto, bem como do próprio
prazer de Smith em ser tratado como conquistador:
Marinheiro 1: Já ouvi histórias sobre ele.
Marinheiro 2: Não há luta contra Índios sem John Smith.
John Smith: Isso mesmo. Não ia deixar vocês se divertirem sozinhos.
sugerindo abertamente que matariam os nativos que estivessem em seu caminho. A cena
claramente racista é levada em um tom de brincadeira entre os tripulantes, insistindo na ideia
de que o massacre indígena seria ato de bravura.
O personagem Thomas, num diálogo com John Smith, revela a ambição de colher os
frutos que a colonização renderá, como a conquista de ouro, a construção de uma casa grande;
adiciona que, caso tenha dificuldades de conquistar por conta de algum nativo, irá matá-lo para
atingir seu objetivo. Em outro diálogo entre os dois, há o questionamento sobre como será o
Novo Mundo, e conclui-se que ele deverá ser igual a todos os outros, uma vez que o colono já
tinha visto centenas de Novos Mundos. Por que aquele em específico seria diferente?
A diminuição de outros povos pelo núcleo dos Ingleses, na animação da Disney, não é
à toa. Ela retrata o período de conquista e dominação colonial, na qual a Europa ocidental se
colocou como o centro do mundo. A própria noção de continente europeu surge a partir do
processo de colonização, no qual é construída uma visão de alteridade sobre a América. Desta
forma, a identidade europeia se molda a partir da distinção entre “Nós” e os “Outros”, elegendo
“a cor como a característica principal na diferenciação racial” (MAIA e FARIAS, 2020), e
colocando “o eurocentrismo enquanto promulgação da normalidade e racionalidade, bem como
a objetificação e negação das outras culturas e pessoas.” (MAIA e FARIAS, 2020). Desta
maneira, cria-se um sistema de dominação social hegemônico, através da distinção entre as
raças, na qual povos não-brancos são inferiorizados, naturalizando essa relação de poder.
Na animação isto fica claro; o discurso dos ingleses, sempre carregado de ódio à raça,
tenta ligar a imagem dos nativos americanos a “selvagens”, “bárbaros”, “animais”, “não-
humanos”, como uma forma de tornar verdadeiro esse estereótipo, isto é, sem possibilidade de
mudança uma vez que a cultura dos indígenas passa a ser considerada inerente aos ingleses.
Como explica Corbisier:
Ao tentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é puramente circunstancial e
histórica, o colonizador desemboca inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste
o racismo? Em converter em "natureza" o que é apenas "cultural", ou, com outras
palavras, em converter o fato social em objeto metafísico, em "essência" intertemporal.
Para justificar, para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador precisa
estabelecer que o colonizado é por "natureza", ou por "essência", incapaz, preguiçoso,
indolente, ingrato, desleal, desonesto, em suma, inferior" (CORBISIER apud
MIGUEL, 2011).
caiaques no rio, colhendo nas plantações, mostrando a divisão de tarefas na tribo, a conexão
com a religião da comunidade, entre outras imagens que passam a ideia de uma aldeia
equilibrada, convivendo em harmonia. Também é importante enfatizar a música que toca para
apresentar esse núcleo, “Ao compasso do tambor”, pois traz a valorização da natureza na letra,
num tom de respeito do nativo para com a terra em que habita.
Os guerreiros, liderados pelo chefe da tribo Powhatan, são mostrados retornando
vitoriosos de uma batalha contra a tribo rival. O líder Powhatan aparece como figura central,
frente aos guerreiros da tribo nos caiaques, sugerindo o papel de importância e grandiosidade
naquele núcleo. Ao pisar em terra firme, eles são bem recebidos pela aldeia. O chefe da tribo é
respeitado, e gera identificação com os integrantes da comunidade. O chefe Powhatan aproveita
a reunião para fazer um comunicado, elogiando os grandes feitos do guerreiro Kocoum, que se
sobressaiu na guerra, mostrou coragem e uma bravura ímpar.
Conversando com Kekata, xamã da tribo, o Chefe Powhatan pergunta sobre sua filha, e
Kekata responde: “Você sabe como é Pocahontas, ela tem o espírito da mãe, ela vai aonde o
vento lhe chama”. Neste momento o vento, que no filme é tratado quase como um personagem,
entra em cena movendo-se até chegar em Pocahontas. Este é o primeiro momento de aparição
da personagem. Pocahontas aparece em cena no alto de um penhasco, num cenário grandioso
de beleza natural, dando ênfase ao horizonte.
A melhor amiga de Pocahontas, Nakoma, surge para avisá-la da chegada de seu pai, e
Pocahontas decide ir ao encontro dele. Para encurtar o caminho até a aldeia, ela então salta do
penhasco, mergulhando na água. Essa cena demonstra algumas características da personagem
que serão afirmadas ao longo do filme, como a bravura, e o espírito aventureiro.
Pocahontas vai de encontro ao pai e lá, ela tenta contar para ele sobre um sonho curioso
que teve e da qual ela ainda não tinha conseguido compreender seu significado, apenas
entendendo, naquele momento, que o sonho sugere que ela passaria por uma aventura. Mas é
interrompida prontamente quando o pai entrega a ela um presente bastante simbólico: o colar
que sua mãe usou no casamento deles. O presente vem como um chamado de responsabilidade,
pois ele aproveita para pedir que a filha se case com Kocoum. Uma vez que, como filha do
chefe da tribo, Pocahontas precisaria se casar com um marido forte que não só pudesse protegê-
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la, mas também proteger a sua comunidade, Kocoum, que se destacou como guerreiro, aparece
como a única opção viável de pretendente.
A apresentação do núcleo indígena já nos mostra o que acabou por se tornar o ponto
central do filme da Disney: o destino amoroso de Pocahontas. Isto, porque o diálogo entre ela
e seu pai, sobre a intenção de casá-la com um dos membros de destaque da tribo, é um dos
pontos centrais da trama. Pocahontas demonstra desinteresse pelo pedido do pai, revelando mais
uma vez seu espírito livre.
Esse momento também é significativo, no papel de personagem feminina que adquire
demandas da pauta feminista dos anos 1990. Ao ser uma mulher que não aceita imposições,
sendo responsável por fazer escolhas sobre sua vida mesmo que precise desacatar o Chefe da
tribo para isso, Pocahontas levanta debates importantes e, acolhe discussões no que tange o
movimento feminista - mesmo que como tema transversal a narrativa. O fato de Pocahontas
questionar o direito à escolha sobre seu parceiro amoroso e seguir seu coração, se apaixonando
por outro homem que não o escolhido por seu pai, vai de encontro com as lutas emancipatórias
e de libertação da mulher que, mais do que lutavam pelo direito de “equiparar-se ao homem em
direitos jurídicos, políticos e econômicos”, queriam “afirmar a mulher como indivíduo
autônomo, independente” (ALVES apud BETTO, 2013, p. 2). Assim, a personagem, construída
em cima do mito de uma mulher que teve papel fundamental no que diz respeito à história da
construção da América, trouxe características que agradavam o movimento feminista - em sua
terceira onda nos anos 1990. No entanto, é importante pensar que mesmo trazendo uma
personagem mais ativa, há um apagamento de sua potência ao ligá-la a um romance para trazer
entretenimento à história, reduzindo o papel importante de Pocahontas enquanto diplomata que
queria evitar o confronto entre os dois povos, puxando sua motivação para salvar um amor
impossível entre a nativa e o capitão inglês.
Pocahontas, depois de conversar com seu pai, entra numa canoa e navega pelo rio. Num
dado momento, o rio bifurca, dando a opção à indígena de seguir por um caminho onde o rio
está calmo, e outro agitado. A personagem, que desde sua apresentação dá indícios de ter um
espírito aventureiro, escolhe o caminho agitado. A escolha por um caminho mais difícil, revela
muito do futuro que Pocahontas escolherá ao longo da história, recusando a proposta de
casamento, sendo sincera consigo própria ao ouvir seu coração e ir em busca da aventura
prometida em seu sonho.
A jovem, ainda com o sonho reverberando em sua mente, vai em busca da avó Willow
para desabafar. Ela conta que sonhou com uma flecha que gira, e ela não consegue compreender
o significado disso, e o que o sonho pode representar para o futuro dela. A personagem da avó
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é representada na figura de uma anciã dentro do esqueleto de uma mística árvore no interior da
floresta, e pode funcionar como o arquétipo de mentora da heroína. No caso Pocahontas,
seguindo os conceitos da Jornada do Herói de Campbell:
O herói (...) é uma personagem dotada de dons excepcionais. Frequentemente honrado
pela sociedade de que faz parte, também costuma não receber reconhecimento ou ser
objeto de desdém. Ele e/ou o mundo em que se encontra sofrem de uma deficiência
simbólica. Nos contos de fadas, essa deficiência pode ser tão insignificante como a falta
de um certo anel de ouro, ao passo que, na visão apocalíptica, a vida física e espiritual
de toda a terra pode ser representada em ruínas ou a ponto de se arruinar. (CAMPBELL,
1997, p. 21).
O primeiro contato dos Ingleses com o chamado Novo Mundo é feito da própria
embarcação, na qual eles observam as paisagens através das janelas. Já o de Pocahontas é
quando ela, de cima da árvore, avista a grande navegação, que gera estranhamento na moça.
Quando os Ingleses chegam em terra firme, Smith é incumbido pelo Governador da missão de
explorar a região, isto é, fazer o reconhecimento do terreno. Ele então adentra a floresta, mas
não percebe a presença de Pocahontas, que o observa escondida.
Enquanto os colonos se organizam na região e começam a escavar a área em busca de
ouro, os Índios na aldeia se reúnem para entender quem é esse grupo que chegou na região. O
Xamã Kekata revela, por meio de um ritual utilizando fogo, que os novos intrusos são diferentes
de tudo aquilo que os indígenas já lidaram antes, por utilizarem armas nunca antes vistas pelos
Powhatan, deixando-os aflitos com a situação.
A cena a seguir é emblemática, pois mostra finalmente o encontro dos dois
protagonistas, John Smith e Pocahontas. Este encontro é marcado por diversos elementos que
estereotipam a indígena. É o encontro do personagem branco, com a “Outra”. A criação do
“Outro”, no imaginário popular, está atrelada à perspectiva etnocêntrica, na qual os Europeus
“formaram um corpus analítico e descritivo do Outro permeado por estereótipos e figuras
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Essa representação tem um cunho racista, pois reforça a imagem de selvagem dos
nativos americanos e endossa esse estereótipo, o naturalizando. A naturalização é “uma
estratégia representacional que visa fixar a “diferença” e, assim, ancorá-la para sempre”
(HALL, 2016, p. 171). Desta forma, o homem branco europeu é beneficiado por esse discurso,
principalmente por ter o poder sobre a narrativa, controlando-a de forma a reforçar a sua
“superioridade” frente às demais raças. O controle da narrativa, vem desde a época da
colonização, na qual os povos dominantes retiravam o caráter humano de raças não-brancas,
contribuindo assim para perpetuar representações estereotipadas, percebidas como “reais” por
eles, como explica Fanon:
A própria ideologia colonial, fundou-se na hierarquização cultural em uma estrutura
de pensamento em que, para afiançar a superioridade do colonizador, é preciso
transformar o colonizado em bárbaro (CÉSAIRE, 2000). Esse tratamento dispensado
ao Outro, muitas vezes não se conforma em alocar a cultura e "raça" colonizadora em
status superior, passando para além da inferiorização do colonizado (dialética do
Superior-Inferior). É preciso mais: o colonizado é destituído do semblante humano e,
ato contínuo, é desumanizado e "animalizado" (perfazendo uma dialética entre
Humano-Bestial) (SARTRE, 1991, p. 45). "E, de fato, a linguagem do colono, quando
fala do colonizado, é a linguagem da zoologia" (FANON apud MIGUEL, 2011).
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Pocahontas foge para sua canoa. Smith corre atrás dela e, na tentativa de convencê-la a
travar um diálogo com ele, tenta acalmá-la, assegurando que não irá machucá-la. Pocahontas
se comunica em sua própria língua, e o capitão conclui que ela não entende a língua inglesa e
portanto, não compreende nada do que ele fala.
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A música Listen With Your Heart que já havia sido tocada anteriormente, ressurge, junto
com o vento. É o chamado para que Pocahontas escute o seu coração. Ela o faz e, magicamente,
passa a ter o dom da comunicação, compreendendo e falando inglês com o capitão. O vento,
que atua como um guia espiritual de Pocahontas, circula por eles e envolve as mãos de ambos.
Neste momento entendemos que John Smith e Pocahontas estão ligados espiritualmente (Figura
4).
A cena a seguir mostra os Ingleses destruindo a mata em busca de ouro. Vemos também
os nativos observando de longe a destruição da terra ocasionada pelos invasores. Os Índios são
descobertos, e ocorre uma movimentação dos Ingleses para pegar suas armas e proteger o local.
Eles disparam contra os Índios, e acabam atingindo um membro da aldeia. Um dos Ingleses se
aproxima do nativo ferido para matá-lo, mas é impedido por Kocoum que entra num embate
salvando a vida do amigo. Ele então socorre o amigo e o leva de volta para tribo, numa tentativa
de salvar o rapaz e, também, levar informações sobre os inimigos para o chefe. A partir desse
momento, a polarização entre nativos e Ingleses fica clara para o espectador.
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Nakoma vê a amiga em sofrimento e ajuda Pocahontas a entrar na tenda onde Smith foi
preso, ela se despede do amado. Enquanto isso, Thomas retorna para o forte e avisa aos
companheiros sobre a prisão de Smith. Ratcliffe se aproveita da situação e num discurso de
ódio inflamado convence os ingleses a irem batalhar contra os nativos.
A música Savage começa a tocar e ambos os lados se preparam para a batalha. A direção
de arte assume novas colorações, inundando a tela num misto de cor contrastantes, o vermelho
e o azul. A música é carregada por um forte discurso de ódio, palavras como malignos, não-
humanos, demônios, vermes são proferidas por ambos os lados, que num dueto cantam
marchando para a batalha (Figura 5).
Essa cena representa o climax do conflito entre os dois povos, na qual a música realça
o sentimento de ódio à raça abordada durante toda a animação. Apesar de ambos os lados
proferirem tais palavras, chama atenção a desumanização dos nativos americanos, que desde o
começo do filme, sofrem ataques, sendo vistos como seres malignos, isto é, monstros. Segundo
Cohen (2020), o corpo monstruoso nasce a partir de qualquer tipo de alteridade perante o outro,
mas geralmente costuma estar associado à diferença cultural, política, racial, econômica e/ou
sexual. Cohen mostra exemplos famosos dessa transformação do “Outro” em corpo
monstruoso, como os seguintes:
O processo pelo qual a exageração da diferença cultural se transforma em
aberração monstruosa é bastante familiar. A distorção mais famosa ocorre na
Bíblia, onde os habitantes aborígenes de Canaã, a fim de justificar a colonização
hebraica da Terra Prometida, são imaginados como gigantes ameaçadores.
Representar uma cultura prévia como monstruosa justifica seu deslocamento ou
extermínio, fazendo com que o ato de extermínio apareça como heróico. Na
França medieval as chansons de geste celebravam as cruzadas, ao transformar os
muçulmanos em caricaturas demoníacas, cuja ameaçadora falta de humanidade
podia ser lida a partir de seus bestiais atributos; ao definir culturalmente os
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levanta seu cajado, anunciando que a guerra estava suspensa por parte da tribo e ordena que
soltem o prisioneiro.
Esse momento histórico onde Pocahontas salva a vida de John Smith, já foi recriado de
diversas formas para diferentes mídias. A Disney, ao se utilizar desse momento, constrói seu
olhar sobre um pedaço da narrativa sobre a colonização inglesa nos Estados Unidos, na qual
Pocahontas assume também o papel de diplomata, que garantiu a paz entre os povos.
Smith é libertado, e todos entendem o sinal de que não haverá mais guerra, logo os
colonos abaixam a arma. Mas quando Ratcliffe percebe que não haverá mais guerra, ele atira
em direção ao Chefe Powhatan. Smith, num ato heroico, pula na frente do indígena, e cai ferido
no chão. Os Ingleses se revoltam com essa cena, e prendem Ratcliffe por traição.
Não havendo como curar Smith no Novo Mundo, os Ingleses se preparam para retornar
à Inglaterra e salvar o Capitão. Pocahontas, acompanhada de companheiros da aldeia, aparece
para se despedir de Smith, e leva suprimentos para a viagem de volta dos colonos, como forma
de retribuição por salvar a vida do líder da tribo. O chefe Powhatan reconhece o ato heroico de
Smith, e dá seu manto de presente para o Inglês.
Pocahontas escolhe sua tribo ao invés do amado, decidindo assim permanecer na aldeia,
ao invés de ir para Inglaterra com Smith. Ela se despede do Capitão com um beijo. Quando o
navio parte, Pocahontas vai até o penhasco observá-lo de longe; ela faz o sinal de despedida da
sua cultura, e Smith, do navio, faz o mesmo.
O final do filme imita seu começo, onde a imagem é congelada se transformando em
um quadro antigo, mas dessa vez vemos a imagem de Pocahontas de cima do penhasco, fazendo
com que a indígena se torne uma figura histórica.
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O filme Pocahontas teve uma recepção mista dos críticos. Elogiado por sua direção de
arte e por trazer temas transversais conectados com o contexto dos anos 1990, o filme conseguiu
conquistar uma parte do seu público-alvo, que considerou importante a criação de uma
personagem feminina mais independente, e fora do padrão norte-americano etnocêntrico, bem
como abordar a questão da importância do cuidado com a natureza.
O jornal New York Times, na época do lançamento do filme, trouxe algumas matérias
sobre a animação. Algumas delas relataram a grandiosidade da première do filme, que
aconteceu no Central Park, em Nova Iorque, e recebeu milhares de espectadores assistindo ao
evento no gramado do parque. A matéria intitulada “Thousands Jam Disney's Newest Park to
See 'Pocahontas’”, escrita por Felicia Lee (1995), também trouxe comentários de espectadores
como o de Art Proulx, que descreveu o filme como fabuloso, e complementou dizendo que ele
“atende tanto a crianças quanto a adultos. É baseado no tema de se relacionar com pessoas que
você não conhece, raças diferentes, culturas diferentes, protegendo o ambiente."
O New York Times também deu espaço para perspectivas mais críticas sobre o filme.
Janet Maslin (1995), no texto “FILM REVIEW: History as Buckskin-Clad Fairy Tale”,
enfatizou o revisionismo histórico sobre o mito de Pocahontas, e disse que a animação se
aproximou mais dos contos de fadas do que da história real, por se distanciar do mito. Ela ainda
tece críticas à escolha dos produtores em tornar o filme um romance entre Pocahontas e John
Smith, e chama atenção para o design sexualizado da personagem nativa americana. Simon
Schama (1995) também escreve sobre o filme, na matéria “The Princess of Eco-Kitsch”, na
qual ela sugere que a personagem Pocahontas tinha como objetivo ser uma criadora de
consciência ecológica, sendo o filme um grande defensor do meio ambiente.
O jornal The Washington Post dedicou uma matéria para falar sobre a imprecisão
histórica do filme, escrito por Anthony Faiola (1995). A matéria “Little Dove vs. Pocahontas”
trouxe a perspectiva de Shirley Little Dove, uma descendente de nativos americanos que serviu
como consultora do filme da Disney, Shirley conta a importância do mito de Pocahontas para
sua cultura; ela cresceu escutando histórias sobre Pocahontas, e dedicou sua vida a manter vivo
o mito da indígena, divulgando a história em escolas, museus e festivais de folclore. Ela revela
que ficou frustrada ao ver o retrato que a Disney fez de Pocahontas, pois para seu povo, “a
tradição oral de contar histórias é considerada um elo vital com seu passado. Assim, ao
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A peça, intitulada The One Called Pocahontas, foi apresentada nos dias 2, 3 e 4 de
agosto de 1996, para um público total de novecentos espectadores, na reserva da Nação
Powhatan Renape em Rancocas, New Jersey. A peça incorporou roupas, músicas e danças
tradicionais dos índios americanos, bem como personagens baseados em pessoas reais, como
Matoaka, Iopassus, Capitão Samuel Argall, Chefe Powhatan, John Rolfe, Opechancanough,
King James I e Thomas Rolfe, “criando um evento envolvente, educativo e dramático”
(GARDNER, 2003, p. 51). A peça trouxe de fato a perspectiva da comunidade Powhatan, ao
contar a história de seu povo e de seus heróis.
Na noite de abertura, o Chefe Roy fez um discurso, citado no site Powhatan Renape
Nation.
A Nação Powhatan Renape dá as boas-vindas a todos vocês neste evento de
compartilhamento. Fazemos com o mesmo espírito que sentiu o nosso povo quando
vieram visitantes de outras terras, há quase 400 anos. Em todos os lugares, olhamos
entre nós hoje e vemos família e amigos. Por termos confiança em nossa amizade,
podemos falar sobre a verdade sem medo de que nossa amizade seja prejudicada.
Compartilhamento, amizade e verdade são qualidades poderosas que constituem uma
base sólida sobre a qual podemos construir nosso futuro juntos. Essa brincadeira
começou a ganhar corpo quando soubemos que os estúdios Disney iam fazer um filme
sobre nós, um filme intitulado Pocahontas. Escrevemos imediatamente ao Sr. Roy
Disney para oferecer nossa ajuda. Já havíamos sido submetidos a 400 anos de mentiras
e distorções e achamos que essa era uma boa oportunidade para cooperar. A Disney nos
escreveu de volta dizendo que nossa ajuda não era necessária - eles já haviam decidido
o que iriam fazer. Estamos muito desapontados, surpresos e furiosos porque a Disney
seria tão insensível aos sentimentos, circunstâncias e história dos membros vivos da
Nação Powhatan - uma das nações mais devastadas deste continente. Tivemos uma
grande troca de correspondência: a Disney disse que tinha licença artística que lhe
permitia entreter, elevar e inspirar sem se importar com a verdade. E assim, outra
geração foi alimentada com um dos mitos mais queridos dos EUA - às nossas custas.
Foi então que decidimos fazer esta peça, nosso modesto esforço para usar nossa licença
artística sem prejudicar a verdade. A Disney pode ter seus mitos destrutivos, mas nós
temos nossa verdade e amizade. Mais uma vez, nossa nação dá as boas-vindas à Reserva
Indígena Rankokus e a este evento. Hoje, simplesmente apresentamos a verdade como
a conhecemos, para que possamos usar o passado como base para compreender o
presente e, a partir dessa base, seguir em frente como parceiros rumo ao futuro.
(CHEFE ROY apud GARDNER, 2003, p. 67)
Desta forma, Chef Roy deixa claro que a intenção da peça é justamente trazer a
perspectiva do povo Powhatan que, por tanto tempo, teve a história de sua tribo distorcida e
apagada. Além disso, Chef Roy chama atenção para a insensibilidade dos estúdios Disney para
com os descendentes de Pocahontas, ao recusarem a ajuda da comunidade para a construção de
uma visão correta acerca do mito da nativa americana.
A peça não conseguiu reverter o efeito do filme sobre os espectadores que assistiram à
animação da Disney. O imaginário popular sobre a nativa americana foi de fato formado a partir
da animação, que atingiu públicos de diversas idades e nacionalidades. Porém, para as
novecentas pessoas que assistiram à peça The One Called Pocahontas, o povo Powhatan
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conseguiu passar uma outra versão da história: a verdadeira história da vida de Pocahontas e do
seu povo Powhatan, oprimido na colonização norte-americana. Uma espectadora, de oito anos,
considerou a peça The One Called Pocahontas mais triste do que o filme da Disney, pois, ao se
sentir próxima dos atores, conseguiu se colocar no lugar dos indígenas, e entendeu as
dificuldades sentidas por eles e por Pocahontas (GARDNER, 2003).
Entendendo que os Powhatans são de tradição oral, na qual sua cultura é passada de
geração para geração através da fala e da contação de histórias, fica nítido que a Disney não
teve um cuidado, que diz ter, para com os nativos americanos. A Disney recriando o mito de
Pocahontas promoveu, de certa forma, um apagamento da história e da cultura do povo
Powhatan, que agora tem a imagem de sua tribo atrelada à animação da Disney, promovendo
assim uma distorção da sua cultura, e talvez da cultura indígena como um todo, para as gerações
futuras.
Na mídia brasileira, Pocahontas também recebeu críticas. A Folha de São Paulo
escreveu algumas matérias, como por exemplo: “Pocahontas é fábula `new age' sobre índios”
(1995), e “Disney disfarça passado politicamente incorreto” (1995). Ambas falavam sobre o
quanto a imprecisão histórica da animação era problemática; porém, nesta última matéria, ainda
era denunciado o racismo presente em diferentes filmes da Disney.
Apesar de receber críticas de racismo, nas décadas anteriores, somente em 2019 é que a
Disney decidiu por adotar em sua rede de streaming Disney+, a estratégia de avisos. Filmes
como Dumbo, Peter Pan, Aristogatas, já receberam esses avisos. A empresa, ao invés de
remover o conteúdo problemático das animações, adotou a postura de reconhecer que utilizou
representações hoje em dia consideradas racistas para criação de seus personagens, admitindo
que isto foi prejudicial para a sociedade. A Disney ainda comunica que está disposta a aprender
e a dialogar enquanto empresa para com seu público, e espera que, em conjunto, possam criar
um futuro mais responsável e inclusivo (Exame, 2020). Nesse sentido, era esperado que
Pocahontas também recebesse um alerta de preconceito na plataforma Disney+, porém até o
momento isso não aconteceu.
Como não poderia deixar de ser, a figura de Pocahontas tem um peso cultural e histórico
muito importante para a comunidade Powhatan, pois ela é um símbolo importante da
ancestralidade de seu povo. Ao recriar o mito de Pocahontas, transformando-o em
entretenimento para o público familiar, a Disney promoveu um apagamento da cultura dos seus
descendentes. Escutar a perspectiva de um povo que foi historicamente marginalizado se faz
necessário, para entender o quanto a criação de um imaginário popular ligado à figura de
Pocahontas foi de fato prejudicial para a comunidade Powhatan.
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Ao compararmos o filme da Disney com o mito da indígena, vemos que o Estúdio norte-
americano criou uma nova narrativa sobre o mito de Pocahontas, na qual conseguiu-se construir
uma imagem da colonização e da fundação dos Estados Unidos removendo as ranhuras da
história, e privilegiando a imagem de Ingleses “pacíficos” que, dentro da perspectiva da Disney,
desistiram da guerra.
A Disney, como já dito anteriormente, tem uma forma própria de fazer filmes. A
empresa constrói narrativas em cima de fábulas e histórias reais que higienizam a história para
o público familiar tradicional. Mais além, ela traz temáticas transversais, conectadas com as
pautas sociais da década de 1990, isto é, durante a Renaissance da empresa, e encantando novas
gerações de públicos. O sucesso que a Renaissance atingiu é inegável, visto que até hoje a
filmografia dessa época tem relevância mundialmente. São verdadeiros sucessos de bilheteria,
revistos pelo público até hoje, fazendo parte assim do imaginário popular de diversas gerações.
Os filmes da Disney, apesar de muitas vezes não serem ambientados nos Estados
Unidos, isto é não tratarem diretamente do país, eles ainda assim revelam muito sobre a cultura
norte-americana. O American Way of Life está sempre empregado, no qual são retirados todos
os aspectos pesados de contos e história reais, substituídos por uma carga de otimismo que
culmina sempre no encerramento do filme, com o inevitável happy end. Além disso, a cultura
punitivista está bastante presente; o vilão sempre sofre sanções após cometer atrocidades.
Assim como o herói é sempre recompensado de alguma forma, e terá um final feliz, depois de
passar por desafios e comprovar sua índole. O padrão de comportamento moral também aparece
em imagens que enaltecem a família tradicional e os personagens caucasianos, bem como
trazendo a questão do gênero como algo definido claramente e sem ambiguidades. (SANTOS,
2015, p. 33)
Com esses direcionamentos ideológicos e culturais inseridos de forma sutil em seus
filmes, “resguardados por uma imagem de inocência cuidadosamente edificada e
constantemente reforçada” (SANTOS, 2015, p. 28), as animações da Disney vão além do
entretenimento e assumem um papel na formação de um imaginário social enquanto mídia,
sendo, portanto, um grande influenciador dentro de uma sociedade globalizada. Assim, as
animações da Disney assumem um papel educativo para seu principal público, o infantil, como
explica Giroux:
É desnecessário dizer que a importância dos filmes animados opera em muitos
registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles exercem como novas
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“máquinas de ensinar”. (...) Esses filmes inspiram no mínimo tanta autoridade cultural
e legitimidade para ensinar papéis específicos, valores e ideais quanto locais mais
tradicionais de aprendizagem, tais como escolas públicas, instituições religiosas e a
família (GIROUX apud SANTOS, 2015, p. 4)
O cinema atua desta maneira como educador; através de sua linguagem e da utilização
de representações, consegue desenvolver visões acerca de valores morais, e ajuda na criação de
identidades. Desta maneira, a Disney se utiliza do seu poder de persuasão para moldar o
imaginário popular do que é o bem e o mal. “Através de estereótipos, produzem vilões e heróis,
revelam preconceitos raciais, de gênero e sociais, criando uma forma de pensar sobre ‘como a
paisagem cultural da América é imaginada’” (GIROUX apud ALMEIDA, 2020, p. 10).
A construção de uma identidade perpassa pelo embate de narrativas entre duas entidades
diferentes: “Nós”, e os “Outros”. O “Nós” representa países de maior poderio econômico, que
têm o controle da narrativa sobre os “Outros”. De acordo com Said (2007, p. 441), “Cada era e
sociedade recria os seus ‘Outros’. Longe de ser estática, portanto, a identidade do eu ou do
“outro” é um processo, histórico, social, intelectual e político muito elaborado que ocorre como
uma luta que envolve indivíduos e instituições em todas as sociedades.”
A Disney, enquanto um dos maiores conglomerados de comunicação e entretenimento
do mundo, possui o controle da narrativa, e se utiliza de um discurso alinhado com as ideias
ideologicamente dominantes, isto é, “empregando nos filmes representações estereotipadas -
racistas, sexistas ou classistas - que respondem ao imaginário social dominante em boa parte
das sociedades ocidentais” (NAVARRO apud SANTOS, 2015, p. 7). Representações
estereotipadas que são também reconhecidas pelo público como afirmações verdadeiras,
estando alinhadas com o pensamento majoritário dos Norte-americanos. Assim, cria-se o
“Outro”, uma figura que se distancia do padrão dos países dominantes que ocupam a região da
América do Norte e a Europa Ocidental. O “Outro” tem outros tipos costumes e crenças e, por
isso também, ele é considerado “inferior”.
Ter o controle da narrativa permite criar uma série de imagens positivas e/ou negativas
sobre determinados povos, que influenciam no sentido de compreensão da realidade, uma vez
que formam estereótipos, que atingem escala global. Sendo repetidas por diversas vezes, essas
representações acabam corroborando para a construção de uma visão sobre determinados
grupos, afetando, assim, o imaginário popular.
No imperialismo, nações ricas batalham para ter o controle e influenciar nas questões
políticas e econômicas de países mais pobres. A narrativa se faz necessária para conseguir
perpetuar o poder de dominação dos colonizadores sobre a colônia. Além da disputa pela terra,
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a disputa pelo “poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito
importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre
ambos.” (SAID, 2011, p. 11).
Impedir que o “Outro” fale, ajuda a nação imperialista a exaltar a sua cultura e se
sobrepor à dos países colonizados, criando um pensamento identitário para ambos, onde a nação
rica possui as características boas e as nações periféricas as ruins. A difusão desses pré-
conceitos nas narrativas sobre diferentes povos foi tão enraizada e exercida por tanto tempo,
que “Embora as colônias, em sua maioria, tenham conquistado a independência, muitas atitudes
imperiais concomitantes à conquista colonial ainda persistem.” (SAID, 2011, p. 53). Não é à
toa que os povos marginalizados acabam tomando como verdade as representações
estereotipadas das suas próprias culturas; mesmo que sejam caricaturas racistas, eles aceitam
essa imagem prejudicial, ou até mesmo não as enxergam como ruins, passando a naturalizá-las.
Apesar das críticas negativas ligadas ao filme, vindas principalmente de indígenas,
Russel Means, ativista indígena que interpretou o Chefe Powhatan na animação, em uma carta
aberta, defendeu o filme da Disney. Declarando que Pocahontas é um dos melhores filmes a
representar os indígenas na indústria cinematográfica americana. Means afirma que o as críticas
feitas pela mídia são “manifestações de racismo institucionalizado contra o povo indígena",
além de sugerir que as pessoas que reclamaram do filme "sofrem com a perda da inocência".
(STRIPES, 1999, p. 89)
Com opinião contraria, a comunidade Powhatan se manifestou em 2011, lançando uma
nota, expressa pelo Chefe Roy, na qual criticava a animação.
Nós, da nação Powhatan, discordamos das afirmações da Disney. O filme
apresenta uma visão distorcida que vai muito além da história original. Nossas
ofertas para ajudar a Disney em aspectos culturais e históricos foram
rejeitadas. Tentamos fazer com que a Disney corrigisse os erros ideológicos e
históricos do filme, mas fomos ignorados. É triste que essa história da qual
ingleses e americanos deveriam se envergonhar, tenha se tornado um meio de
entretenimento, perpetuando um mito irresponsável e falso sobre a nação
Powhatan. (CHEFE ROY apud ALMEIDA, 2020, p. 214).
Acredito que a opinião de Russel Means sobre o filme Pocahontas, esteja ligada à sua
visão sobre o período clássico do cinema, no qual o gênero Western era predominante. Este
gênero cinematográfico reforçou a imagem estereotipada dos nativos americanos, colocando os
indígenas como vilões que precisavam ser combatidos, enquanto o herói seria a figura do
cowboy, que de certa forma, gerava identificação “com o público masculino infanto-juvenil,
principalmente os de origem rural. Tais atores exibiam um padrão estético e de comportamento
43
na tela que desencadeava uma reação no imaginário popular, fazendo emergir legiões de fãs por
todo o país e para além dele.” (MATTOS apud OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010).
Antes mesmo do cinema representar os indígenas como seres selvagens, inferiores e
cruéis, os nativos americanos já ocupavam na literatura, o lugar de vilões. Desta forma, “os
cidadãos norte-americanos, brancos e cristãos, deveriam adentrar os cativeiros indígenas,
exterminá-los, para recuperar suas mulheres brancas que haviam sido sequestradas.”
(OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010). “O Medo de um povo de costumes e crenças diferentes,
alimentava o imaginário dos norte-americanos brancos, que criavam ou aumentavam histórias
sobre o perigo dos índios. Tais histórias eram passadas de geração para geração reproduzindo
ódio e temor por décadas.” (OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010).
Manter ainda hoje, tal manipulação de narrativa traz malefícios aos indígenas, pois
reforça estereótipos e cria uma imagem pública negativa sobre o grupo. Enquanto os indígenas
são colocados no lugar de povo marginalizado, outros grupos sociais se beneficiam dessa visão.
Logo:
A conquista do consenso em torno de determinadas visões do mundo torna-se o alvo
central das batalhas das ideias, travadas entre classes, frações de classes, instituições,
grupos e organismos representativos de múltiplos interesses no interior da sociedade
civil. (MORAES, 2016, p. 15)
Gramsci fez uma útil distinção analítica entre a sociedade civil e a política, na qual a
primeira é composta de associações voluntárias (ou, pelo menos, racionais e não
coercitivas), como escolas, famílias e sindicatos, e a última é constituída de
instituições estatais (o exército, a polícia, a burocracia central), cujo papel na vida
política é a dominação direta. A cultura, é claro, deve estar em operação dentro da
sociedade civil, onde a influência de ideias, instituições e pessoas não funciona pela
dominação, mas pelo que Gramsci chama consenso. Numa sociedade não totalitária,
portanto, certas formas culturais predominam sobre outras, assim como certas ideias
são mais influentes que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci
identificou como hegemonia, um conceito indispensável para qualquer compreensão
da vida cultural no Ocidente industrial. (GRAMSCI apud SAID, 2007, p. 34)
CONCLUSÃO
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