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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

DEPARTAMENTO DE CINEMA E AUDIOVISUAL


LICENCIATURA EM CINEMA E AUDIOVISUAL

MARIANNA PEREIRA COSTA MENDES

A REPRESENTAÇÃO DOS NATIVOS AMERICANOS NO FILME POCAHONTAS

NITERÓI
2021
MARIANNA PEREIRA COSTA MENDES

A REPRESENTAÇÃO DOS NATIVOS AMERICANOS NO FILME POCAHONTAS

Monografia apresentada à Faculdade de Cinema e


Audiovisual, da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a
Conclusão do Curso de Licenciatura em Cinema
e Audiovisual.

Orientador
Jorge de La Barre

NITERÓI
2021
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC)

Instituto de Arte e Comunicação Social

Departamento de Cinema e Vídeo

PARECER DA BANCA EXAMINADORA

Aluno(a): Marianna Pereira Costa Mendes

Matrícula: 617057057

TÍTULO

A representação dos nativos-americanos no filme Pocahontas

NOME DOS MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA

Prof. Orientador Jorge de La Barre

Examinador 1 José Valter Pereira

Examinador 2 Daniel Moreira de Sousa Pinna

PARECER
O trabalho de Marianna Pereira Costa Mendes, intitulado “A representação dos Nativos
Americanos no filme Pocahontas” propõe uma leitura muito interessante sobre a questão da
representação do Outro (o Nativo Americano) na indústria de entretenimento, a partir de
uma análise do filme Pocahontas, de Walt Disney (1995). O trabalho é bem escrito e bem
estruturado. A banca recomenda a publicação do trabalho.

DATA APROVADO APROVADO COM REPROVADO


LOUVOR
26 /04 /2021 (___) (___)
(X)

ASSINATURAS DA BANCA

Prof. Orientador

Examinador 1

Examinador 2
Dedico este trabalho à minha mãe, que em sua
breve vida, me marcou de afeto e me incentivou
a ir em busca dos meus sonhos.
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Iris, por todo o afeto, inspiração e incentivo aos estudos e realizações
profissionais. Saudades imensas!
Ao meu avô, Antônio, e a minha tia, Adjane, por proporcionarem apoio emocional e
condições de estudo.
Ao meu companheiro, Sergio, por toda paciência, carinho e zelo durante esse período.
Ao meu orientador, Jorge, por toda dedicação e auxílio durante o processo de feitura do
trabalho de conclusão de curso.
A todo o corpo docente do Departamento de Cinema e Audiovisual, por todo esforço e
dedicação para formar licenciados em cinema.
Aos meus colegas da turma 2017.1 que dividiram momentos maravilhosos e tornaram
a faculdade um lugar ainda mais especial.
RESUMO

A recriação do mito de Pocahontas pelos Estúdios de animação Walt Disney trouxe novas
representações e perspectivas sobre a colonização americana e a cultura dos nativos americanos.
O presente trabalho tenta entender e reconstituir tal processo de estereotipagem etnocêntrico de
personagens não brancos, a partir da análise descritiva qualitativa crítica do filme Pocahontas,
de 1995, que atingiu divulgação mundial. Trata-se de questionar o discurso hegemônico sobre
povos marginalizados acerca de suas próprias culturas, e o impacto dessa representação numa
mídia de abrangência global.

PALAVRAS-CHAVE: Disney; Hegemonia; Nativos Americanos; Pocahontas; Representação

ABSTRACT

The recreation of the myth of Pocahontas by the Walt Disney Animation Studios brought new
representations and perspectives on American colonization and Native American culture. The
present work seeks to understand and reconstitute such process of ethnocentric stereotyping of
non-white characters, based on the critical descriptive qualitative analysis of the 1995 film
Pocahontas, which reached worldwide dissemination. It is about questioning the hegemonic
discourse about marginalized people about their own cultures, and the impact of such
representation in a global media.

KEYWORDS: Disney; Hegemony; Native Americans; Pocahontas; Representation


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Quadro ganhando movimento. .................................................................................. 20


Figura 2: Pocahontas e John Smith se esgueirando. ................................................................. 27
Figura 3: Design sexualizado das personagens indígenas. ....................................................... 28
Figura 4: Barreira da linguagem é quebrada. ........................................................................... 29
Figura 5: Indígenas e Ingleses marcham para a guerra. .......................................................... 33
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 11
1. O FILME POCAHONTAS .................................................................................................. 13
2. ANÁLISE DO FILME POCAHONTAS ............................................................................. 20
2.1 Apresentação dos dois mundos ................................................................................. 20
2.2 Conhecendo Pocahontas e seus dilemas ................................................................... 23
2.3 Primeiro contato com o “Outro” .................................................................................. 26
2.4 O “bom selvagem” e o “mau selvagem” ...................................................................... 29
2.5 Prelúdio do confronto ................................................................................................. 31
2.6 Confronto e despedidas ............................................................................................. 33
3. RECEPÇÃO DO FILME E CRÍTICAS ............................................................................... 36
4. LEGITIMANDO UMA NARRATIVA ............................................................................... 40
CONCLUSÃO.......................................................................................................................... 45
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 47
11

INTRODUÇÃO

Presentes em praticamente todas as sociedades, os mitos são narrativas que costumam


provocar a curiosidade da população em geral, isto porque eles funcionam como uma
explicação para fenômenos e acontecimentos do mundo, como uma interpretação do real a partir
da criação de narrativos reais, utilizando por vezes heróis nesses contextos, e despertando assim
interesse sobre essas histórias.
O mito, nas sociedades indígenas, é usado para contar histórias de seu povo, isto é,
passar mensagens preservando a memória histórica daquela comunidade específica. Assim, o
mito se torna constituinte da sociedade ao levar reflexões sobre “como foi o passado da
sociedade em questão, de como ela é no presente e como pode ser no futuro.” (RIBEIRO;
LUNA; ALMEIDA apud MUSSI)
Segundo Schargel (2020), “o mito é uma forma de apreensão da realidade, de
interpretação dessa realidade, que a dobra, recriando-a. Tornando o irreal, real, transformando
o imaginário em factível.” Assim, o mito é uma narrativa contada por diversas vozes e por
diferentes pessoas - não sendo uma cópia, mas sim uma narrativa que absorve fragmentos da
realidade, cria um novo real e se perpetua, conforme é passada de narrador a narrador.
Longe de ser uma mentira como muitos imaginam, o mito é tomado como uma verdade
para quem o vive, indo além do que um simples contar de história. O mito não segue à verdade
da lógica, ele é um relato do que se quer explicar, sendo uma forma de registro de
acontecimentos ocorridos em comunidades indígenas. (RIBEIRO; LUNA; ALMEIDA).
Com múltiplas representações nas artes, a nativa americana, conhecida como
Pocahontas, oriunda da tribo Powhatan, teve sua história imortalizada ao protagonizar o papel
de diplomata, garantindo a paz entre indígenas e ingleses durante o período de colonização na
América do Norte, assumindo o caráter de mito.
Após o lançamento da versão da Disney nos anos 1990, o debate sobre o mito da nativa
americana é reacendido e, mais do que isso, a narrativa criada por um dos maiores
conglomerados de comunicação e entretenimento do mundo, a The Walt Disney Company,
acaba adentrando o imaginário popular e se estabelecendo como a narrativa verdadeira sobre o
mito.
Como parte de um produto da indústria cultural, o filme Pocahontas: O Encontro de
Dois Mundos (1995), desenvolveu uma narrativa focada no entretenimento, que pudesse
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estimular o merchandising e atingir o público familiar, mesmo que para isso fosse preciso se
distanciar do mito, e deturpar a cultura da comunidade Powhatan e sua imagem.
Desta forma, se faz necessário ampliar o estado da arte sobre representações de outros
povos pelo maior estúdio de animação norte-americano, através de um objeto icônico da
indústria cultural, como é o caso de Pocahontas. Entender o processo de estereotipagem e
representação etnocêntrica de personagens não brancos por um estúdio estadunidense que
atinge divulgação mundial parece importante, a fim de questionar o discurso hegemônico sobre
povos marginalizados acerca de suas próprias culturas.
Para tal, será utilizado uma metodologia descritiva qualitativa crítica, mesclando de
forma dialética a análise do objeto, com uma base teórica acerca de pós-colonialismo,
representação e hegemonia cultural, pautada em autores como Stuart Hall, Alan Bryman, Denis
de Moraes, Jeffrey Jerome Cohen e Edward Said.
Assim, ao longo dos capítulos, utilizarei o filme Pocahontas: O Encontro de Dois
Mundos (1995) como objeto de estudo, para tratar de diversas questões como: a adaptação do
mito para o público infantil e para o perfil da empresa; as representações de povos nativos
americanos no cinema; a visão dos próprios nativos americanos sobre o filme; o uso de
estereótipos como estratégia para legitimar uma narrativa dominante, contribuindo para
preservar a hegemonia cultural norte-americana.
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1. O FILME POCAHONTAS

Lançado em 23 de junho de 1995 nos Estados Unidos, Pocahontas é a primeira


animação criada pelos estúdios Disney, baseada numa personagem histórica que se tornou mito.
Até então, os filmes da empresa eram obras originais, ou haviam sido inspirados em contos.
O filme faz parte da época de renascimento da Disney, a Disney Renaissance, que
começa no final da década de 1980. Em um projeto de se reinventar, a empresa passou a apostar
em trazer narrativas mais plurais, com personagens femininas, para conquistar um público
maior. Essa mudança foi necessária pois existia uma dificuldade da empresa em emplacar novos
sucessos de animação. Com os lançamentos fracassando e sem a aderência do público, a Disney
foi obrigada a repensar a sua fórmula. Ela acertou de fato, ao aliar qualidade técnica,
personagens fortes, narrativas envolventes, e tramas que trazem questões da atualidade.
A era de renascimento da Disney teve o seu marco com A Pequena Sereia (1989); mas
outros títulos compõem essa época: A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992), O Rei Leão (1994),
O Corcunda de Notre Dame (1996), Hércules, (1997), Mulan (1998), e Tarzan (1999).
Muitos desses títulos chegaram a atingir recordes de bilheterias, e algumas produções
chegaram a ser indicadas ao Oscar, como é o caso de A Bela e a Fera. Pocahontas também,
obteve relevância nesse aspecto, ao conquistar a estatueta do Oscar de melhor canção original,
com Colours of the Wind - sendo a primeira animação a atingir tal feito.
Os produtores do filme apostaram tanto no sucesso de Pocahontas, que criaram um
grande evento de estreia. O Central Park foi recheado com quatro telões para a première do
evento. O “buzz” gerado em torno do marketing de lançamento do filme foi tanto, que levou
cerca de 100 mil pessoas a disputarem os ingressos, e lotarem o extenso gramado do principal
parque de Nova Iorque. Enquanto não começava a projeção do filme, houveram shows de dança,
músicas para animar os espectadores, e tendas distribuídas pelo gramado, que vendiam
souvenirs da personagem principal.
Pocahontas era a grande aposta dos estúdios Disney. Por retratar um dos mitos
fundadores dos Estados Unidos, assim como trazer a primeira heroína nativa americana da
Disney, esperava-se que o filme fosse um dos maiores sucessos da empresa - o que não
aconteceu. O Rei Leão, que não era prioridade da empresa e foi classificado para preencher o
espaço de tempo deixado pela espera do lançamento de Pocahontas, tomou a frente, e foi
surpreendentemente o principal sucesso dos anos 1990. Ainda que tenha tido boa bilheteria,
arrecadando US$ 346 milhões no mundo todo, a história da jovem indígena que chama atenção
por ter um espírito livre e se apaixonar por um invasor inglês - uma espécie de romance
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impossível nos moldes de Romeu e Julieta, contextualizado à colonização estadunidense -, teve


uma recepção mista.
O filme foi elogiado por sua direção de arte, que promovia um imenso realce na beleza
das paisagens; ao trabalhar com as cores na construção do cenário; por suas canções; por trazer
uma personagem feminina independente e fora do padrão norte-americano etnocêntrico - se
comparado com as princesas da época de ouro da Disney -, e por trazer a temática do cuidado
com a natureza. (New York Times, 1995)
Nos anos 1990, havia uma preocupação mundial com o meio ambiente e a
sustentabilidade e, na II Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, mais conhecida como a Eco 92, os EUA ocupavam “um lugar central na
discussão sobre a emissão de gases poluentes.” (ALMEIDA, 2017, p. 255). Esse tema ficou
ainda mais em voga na sociedade americana, onde discursos que contemplassem a preservação
da natureza eram valorizados.
As outras temáticas trabalhadas no filme estão dentro de uma pressão popular não
diretamente ligada à Disney, mas fazem parte das pautas dos movimentos sociais da época.
Segundo Almeida (2017), os Estados Unidos passaram, durante as décadas de 1960 e 1970, por
importantes avanços no que diz respeito aos direitos civis. Tais conquistas vieram a partir do
movimento feminista, do movimento negro, e da luta das minorias étnicas. Logo, debates sobre
racismo inundaram as décadas de 1980 e 1990, impulsionados pelos movimentos de direitos
civis dos anos anteriores, e outros movimentos, como o dos ativistas indígenas, começaram a
ser ouvidos.
O processo de produção e lançamento do filme Pocahontas: O Encontro de Dois
Mundos se dá nesse cenário de resgate de certas identidades. O mito de Pocahontas traz
vários elementos que atendem aos anseios de legitimação de algumas minorias, e ao
movimento feminista. (ALMEIDA, 2017, p. 255).

Ainda, diante das pautas sociais levantadas na época:


Os pesquisadores também modificaram o seu olhar sobre o passado indígena através da
etno-história, baseados em Clifford Geertz e Marshall Sahlins, surgindo assim a Nova
História Indígena, com uma visão mais ativa e menos vitimista dos indígenas, passando
a revisitar temas. Segundo Dornelles, com políticas estatais, questões jurídicas,
responsabilidade de Estado, perda de terras indígenas e seus efeitos, questões de gênero,
educação e fronteira, os avanços nas pesquisas e nos movimentos sociais indígenas
mostraram um crescimento das comunidades e a luta pelos seus direitos e
reconhecimento. (DORNELLES apud ALMEIDA, 2017, p. 257).

O estúdio de animação percebeu que existia na sociedade uma demanda por trazer obras
audiovisuais conectadas com as pautas ligadas ao movimento feminista, a preservação da
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natureza e que levantasse debates sobre discriminação racial. Assim, Pocahontas se torna a
principal aposta do estúdio na época, já que o filme lida com todos esses assuntos.
A Disney é reconhecida por trazer verossimilhança em suas produções, e com
Pocahontas, não seria diferente. Dessa forma, os produtores investiram bastante no projeto, e
fizeram com que a equipe buscasse realizar uma pesquisa aprofundada sobre o mito de
Pocahontas. Analisando as documentações disponíveis que contam a história da nativa-
americana, tiveram o cuidado de fazer uma pesquisa local minuciosa para conhecer a região
onde a história se passava, sua fauna e flora. Notadamente, foram em busca de conhecer os
Powhatans e sua cultura.
Assim, o estúdio de animação se preocupou em tentar criar personagens que não
ofendessem a cultura dos Powhatans, oferendo uma representação digna do povo, levando
eventualmente a uma certa identificação do público com os nativos americanos. A Disney
percebeu que para vender o filme e não se tornar alvo de críticas, ao retratar nativos americanos,
seria necessário trazer representatividade para o filme; assim convidou atores de descendência
indígena para serem as vozes dos personagens, e servirem também de referência visual para o
rosto e o corpo dos personagens. A atriz Irene Bedard, de descendência indígena, foi convidada
para interpretar a personagem principal; Russel Means, ativista indígena, interpretou o chefe
Powhatan; e Gordon Tootoosis interpretou Kekata, o xamã da comunidade de Pocahontas.
Apesar da preocupação da Disney em trazer pluralidade e autenticidade para sua
animação, trazendo atores indígenas e abordando a questão racial no contexto da demanda
popular, ampliaram-se durante a década de 1990, os movimentos sociais e pelos direitos civis.
De fato, o filme sofreu duras críticas – pela representação dos indígenas e pela imprecisão
histórica –, chegando a ser acusado de reforçar estereótipos racistas e do tipo “o bom selvagem”.
Isto, porque o filme recria o mito de Pocahontas, diminuindo as mazelas causadas pelo
colonialismo na América, passando a ideia de que ambos os lados – colonizados e colonizadores
–, teriam tido membros justos e ambiciosos, motivados por ganância ou por benevolência. Em
suma, uma simplificação maniqueísta da violência da colonização.
Ainda que tenha existido a preocupação de não prejudicar a imagem dos indígenas e de
trazer mais representatividade através da escolha de intérpretes nativos americanos, ela não foi
muito bem-sucedida. O filme foi criticado por levar uma representação no mínimo problemática
do povo Powhatan. (New York Times, 1995)
De fato, o filme reconfigura o mito de Pocahontas por completo, o deixando de acordo
com o ideal da Disney. Isto é, pronto para ser vendável para o público familiar. Ao criar uma
nova narrativa, modificando vários pontos chaves da história, abre-se então margem para a
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criação de uma nova imagem da indígena. Quando pensamos em Pocahontas, lembramos


automaticamente do filme da Disney; a personagem já faz parte do imaginário popular, e
antecede até mesmo a imagem do mito que serviu de inspiração para a animação referida.
Notemos, a Disney não foi a primeira a contar a história de Pocahontas. Desde o século
19, ela já circulava em outras mídias, seu mito ganhando força através de múltiplas
representações recriando e mantendo viva a memória da nativa americana nas artes visuais, em
peças teatrais, músicas, livros, exposições, entre outros. Apesar da história da indígena da
comunidade Powhatan ter sido reproduzida de diversas formas ao longo dos séculos 19 e 20, a
versão do mito que ganhou destaque não é contada através da visão indígena. Isso, porque a
comunidade Powhatan era de cultura oral e com o processo do colonialismo europeu nas
Américas, grande parte de traços culturais e registros foram perdidos à medida em que as tribos
indígenas foram sendo dizimadas pelos colonos ingleses (ALMEIDA, 2020).
Assim, as informações disponíveis sobre Pocahontas e os nativos americanos que
viviam na região da Virgínia naquela época, são através de cartas escritas pelo próprio Capitão
John Smith, que narram o primeiro assentamento inglês na região de Jamestown, e destacam a
versão dos povos dominantes sobre o mito da indígena.
Pocahontas era filha do chefe da comunidade indígena Powhatan, e tinha apenas 12 anos
quando conheceu John Smith, que tinha cerca de 30 anos. John era um dos colonos líderes que
invadiram as terras da tribo Powhatan; ele desempenhava um papel importante no
estabelecimento do primeiro assentamento inglês permanente na América no início do século
XVII. Porém, em 1607, ele acaba sendo capturado pela tribo Powhatan. A indígena interviu
então e salvou a vida do capitão, convencendo o pai que a morte de John Smith traria revolta
dos colonos. Este recorte do mito é conhecido, sendo retratado em diversos quadros, assim
como na própria animação da Disney, na qual esse episódio constitui o clímax do filme.
Os registros ainda indicam que o capitão John Smith se tornou tutor da língua e cultura
inglesas, enquanto Pocahontas o ensinava a língua e cultura indígenas. Não tenha assim,
nenhum indício de romance entre os dois (ALMEIDA, 2017). Pocahontas assumiu o papel de
diplomata ao ajudar a manter a paz entre índios e ingleses, absorvendo a cultura dos
colonizadores, e ensinando a cultura de sua tribo. Quando John Smith é ferido por pólvora, e
retorna à Inglaterra para se tratar, a paz antes selada entre nativos e ingleses cessa, e retoma a
guerra entre eles. Pocahontas é capturada, e presa em um cativeiro em Jamestown, onde ela
conhece um dos mais importantes comerciantes ingleses no setor do tabaco, John Rolfe, que
oferece a liberdade da indígena se ela aceitasse casar-se com ele.
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Havia uma pressão do comerciante, para que Pocahontas abandonasse o paganismo e se


convertesse ao cristianismo. Ela então aprende sobre a religião cristã, e aceita ser batizada. No
processo, ela passa a se chamar Rebecca, e se torna apta para casar-se com John Rolfe em 1614;
ela terá um filho com ele.
O casamento de Pocahontas com John Rolfe conseguiu trazer relativa paz entre os
colonos e a tribo Powhatan. Depois de batizada, Pocahontas é levada para a Inglaterra, e começa
a frequentar a alta corte, sendo "recebida pelo próprio rei, envolvida pela mística de uma
‘princesa indígena’ na corte Stuart" (KARNAL apud PANIAGO, 2013). É, portanto,
apresentada como uma “boa selvagem”, em uma estratégia de convencer que os nativos
americanos eram domesticáveis e, assim, reviver o interesse dos colonos pela Virgínia.
Meses depois, Rolfe decide retornar à colônia, mas o percurso é alterado no meio do
caminho, pois Pocahontas é acometida por uma doença, e eles voltam para Inglaterra. Ela não
resiste e acaba falecendo ao desembarcar, com cerca de 17 anos. Um ano depois, o Chefe
Powhatan acaba falecendo também, e a comunidade indígena nativa americana tem suas terras
tomadas pelos colonos, e seu povo dizimado.
O mito de Pocahontas se difere completamente da animação criada pela Disney que
ameniza os acontecimentos, e cria um tipo de romance proibido entre colonizador e colonizada,
remetendo à obra shakespeariana Romeu e Julieta, num contexto de colonização.
Por ser um mito - diferente de contos de fadas que a Disney em geral adaptava até então
-, o fato de alterar a narrativa histórica do contexto de colonização, e optar por uma narrativa
justificando violência e benevolência entre indígenas e ingleses, isso sim gerou repercussão
negativa. O colonialismo passa assim por uma repaginada, não mostrando os males causados
aos povos originários da América, como veremos nos próximos capítulos.
O mito de Pocahontas sofreu uma “Disneyficação”: um processo em que a Disney
adapta, para o formato de sua marca, histórias reais e contos de fada. É comum de fato, a criação
de um formato padronizado utilizado pela empresa em todos os filmes, conferindo às suas
produções um tom de fantasia. Ao mesmo tempo, ela faz uma “limpeza” na história real,
eliminando conflitos, com o intuito de tornar a animação palatável para o público infantil e
familiar (BRYMAN, 2007, p. 20). Segundo Wasko:
A manipulação de histórias infantis pela Disney normalmente envolve profundas
mudanças no tema original e nos personagens, bem como no aspecto cultural e
configurações geográficas. A Disneyficação de contos de fadas e histórias infantis
levou à condenação de folcloristas, especialistas em literatura infantil e educadores, que
argumentaram que as mudanças tendem a higienizar as histórias e negar a essência e a
motivação dos contos originais. Além disso, críticos afirmam que a estrutura narrativa
e o equilíbrio nas versões da Disney super enfatizaram algumas partes de histórias ou
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certos personagens para fins de entretenimento e, portanto, distorceu a intenção original


dos contos.(WASKO, 2001, p. 210)

Pocahontas é um exemplo claro de Disneyficação, na qual o mito é recriado,


enfatizando um romance inexistente na história original, entre colonizador e colonizada. Como
vimos, a própria idade da personagem foi alterada, para transformá-la em jovem adulta.
Wasko (2001) também cita Colin Sparks, para endossar que, além do saneamento das
histórias, a Disney promove a sua americanização, porque a Disney tem o costume de colher
histórias e contos de outros países, para transformá-los de modo que sigam o ideal americano.
Assim, por exemplo, Sparks cita o caso do clássico ursinho Pooh, e como a versão criada pela
Disney modificou, entre outras características, a aparência, a localização e o idioma, para que
o personagem se tornasse comercializável mundialmente. “A Disney transforma os produtos
que adquire, não em produtos globais, mas em produtos americanos. São produtos americanos
que vendem em todo o mundo." (SPARKS apud WASKO, 2001, p. 211).Assim, a Disney
adapta os clássicos infantis da literatura e eventos históricos para o mercado, pensando no lucro
que ela poderá gerar através do merchandising dos personagens e a comercialização global de
toda uma linha de produtos que pode ser gerada através das animações infantis.
A Disney também se utiliza da “jornada do herói”, conceito de narratologia criado por
Joseph Campbell. No livro O Herói de Mil Faces, Campbell sugere que a jornada do herói é
composta por três partes: a partida, mostrando o herói aspirando à sua jornada; a iniciação, onde
o herói se depara com diversas aventuras ao longo do seu caminho; e o retorno, momento em
que o herói retorna com conhecimentos que adquiriu ao longo da jornada. Pocahontas também
se utiliza dessa estrutura para a construção da narrativa de seus personagens. Tanto Pocahontas
quanto John Smith têm o arquétipo de herói; ao mesmo tempo suas narrativas cruzadas ecoam
a estrutura descrita acima.
Pocahontas é uma das poucas mulheres nativas americanas a ser tratada como fazendo
parte da história americana, considerada um dos mitos fundadores dos Estados Unidos, e tendo
sido representada por diferentes tipos de mídias. Mas, por conta de registros escassos sobre sua
vida, muitas contradições são geradas em torno da sua figura – o que se verifica com a adaptação
dos Estúdios Disney.
Apesar da animação ter resgatado a história de Pocahontas e levantado questões sobre
o colonialismo, o filme acabou transformando as aspirações por trás do colonialismo como algo
pessoal, retirando o peso político do momento histórico que viu a apreensão das terras indígenas
por parte dos colonos, e o massacre aos nativos americanos. Essa carga histórica foi higienizada
19

na produção da Disney, e convertida numa história pessoal de autodescoberta e amor mútuo,


entre Pocahontas e John Smith.
No contexto dos anos 1990, com o crescimento de movimentos sociais feministas e
antirracistas, o filme Pocahontas gerou críticas por parte da mídia e dos ativistas indígenas por
recriar o mito de Pocahontas de forma romantizada. O filme foi acusado de reducionismo da
história da nativa americana, e do povo Powhatan. (New York Times, 1995). Ainda mais,
porque a versão foi difundida a nível global, e a personagem da Disney se alastrou no imaginário
popular.
Pocahontas foi representada diversas vezes; em sua maioria teve sua história
modificada, quase sempre reduzida ao romance com John Smith que, como vimos, talvez nunca
tenha acontecido. A versão da Disney também comete esse erro, priorizando o entretenimento
ao invés do relato histórico.
Para entender um pouco melhor como a Disney recriou o mito de Pocahontas, iremos
dedicar o próximo capítulo à análise fílmica do filme Pocahontas: O Encontro de Dois Mundos
(1995).
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2. ANÁLISE DO FILME POCAHONTAS

2.1 Apresentação dos dois mundos

Pocahontas se inicia com a imagem de um quadro de tom amarelado, criando uma


aparência de antigo, representando a cidade de Londres vista de cima, ilustrando além das
construções, os navios e embarcações nos portos da cidade (Figura 1). Essa imagem
rapidamente ultrapassa seu estado estático e se torna animada, dando a ideia de que o filme se
inspirou numa história real, legitimando a narrativa histórica da animação.

Figura 1: Quadro ganhando movimento.


Fonte: Pocahontas (1995)

De fato, o filme se inspira no mito da nativa americana Matoaka, nome verdadeiro de


Pocahontas. Todavia, isso não implica que a empresa fosse fiel à historiografia da indígena.
Embora a Disney não se afaste completamente da contraparte real de Pocahontas, a maior parte
do filme inventa novas narrativas, distintas do mito. Transformando a história na prática, num
romance épico entre colonizador e colonizada - o que levou a empresa a ser acusada por ativistas
indígenas de imprecisão histórica.
A seguir, ainda na Inglaterra, a tripulação da Companhia da Virgínia se despede dos
familiares e embarca com destino ao Novo Mundo. A música e o diálogo dos personagens dão
o tom e entregam para os espectadores o contexto da colonização europeia sobre as Américas
sob a perspectiva dos Ingleses. A música contextualiza a época, e deixa evidente quais eram os
interesses dos Ingleses ao explorar o Novo Mundo, como no trecho: “Em 1607 a nossa nau
partia/Em busca de ouro e glória/Pra Virginia Companhia/.../É a glória Deus e ouro e a Virginia
Companhia.”
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Importante salientar que a embarcação chama atenção por ser gigantesca, e ser
representada de um ponto de vista onde a câmera está abaixo do nível dos olhos, voltada para
cima, dando a sensação de ser uma embarcação imponente, isto é, grandiosa.
Aparece, então, ao som de tambores, o protagonista: Capitão John Smith. Os demais
marinheiros celebram, pois, a figura de Smith e seus feitos lendários. Smith é visto como um
grande explorador, conquistador de novas terras e responsável por trazer civilização aos povos
selvagens de terras inóspitas. O diálogo que se segue evidencia este ponto, bem como do próprio
prazer de Smith em ser tratado como conquistador:
Marinheiro 1: Já ouvi histórias sobre ele.
Marinheiro 2: Não há luta contra Índios sem John Smith.
John Smith: Isso mesmo. Não ia deixar vocês se divertirem sozinhos.

Descendo da carruagem, o vilão da história é apresentado trazendo um semblante de


soberba perante os outros marinheiros. O Governador Ratcliffe chama atenção por sua
vestimenta carregada de cores vibrantes, num roxo predominante, trazendo a ideia de luxo e
ostentação. Logo depois desce da carruagem o assistente da coroa, Wiggs, carregando o
mascote Percy em uma almofada. Ratcliffe aparece cercado por guardas reais, evidenciando
seu cargo influente.
Alguns dias depois, quando os marinheiros estão em alto mar, uma tempestade surge e
coloca o marinheiro Thomas em perigo. As ondas tomam o navio e ele cai da embarcação. John
Smith, em ato de bravura, pula do barco na tentativa de salvar o colega. É possível perceber
como a Disney impõe traços benevolentes de heroísmo à figura do capitão, bem como a lealdade
para com seus companheiros. Ademais, é preciso destacar a fisionomia diferente adotada no
design do personagem, que se destaca por ser loiro e de porte atlético, quando comparado com
os companheiros da tripulação.
Criando um atrito junto à imagem de herói apresentada por John Smith, o Governador
Ratcliffe aparece em cena em meio a raios e trovões, reforçando a sua imagem de vilão. Num
discurso destinado à tripulação, ele encoraja a ida da tropa ao Novo Mundo, apontando as
vantagens que essa viagem poderá gerar para eles. Ele levanta pontos como a liberdade, a
prosperidade e as aventuras que serão geradas nesse desafio, mas logo em seguida mostra que
está mais interessado na conquista do ouro, revelando sua ganância.
Nesse momento é instaurada uma brincadeira em meio à tripulação, onde é exaltada
novamente a fama de John Smith. Eles se divertem numa espécie de cantoria sobre o Novo
Mundo, revelando o que fariam caso um nativo impedisse eles de conquistarem a missão,
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sugerindo abertamente que matariam os nativos que estivessem em seu caminho. A cena
claramente racista é levada em um tom de brincadeira entre os tripulantes, insistindo na ideia
de que o massacre indígena seria ato de bravura.
O personagem Thomas, num diálogo com John Smith, revela a ambição de colher os
frutos que a colonização renderá, como a conquista de ouro, a construção de uma casa grande;
adiciona que, caso tenha dificuldades de conquistar por conta de algum nativo, irá matá-lo para
atingir seu objetivo. Em outro diálogo entre os dois, há o questionamento sobre como será o
Novo Mundo, e conclui-se que ele deverá ser igual a todos os outros, uma vez que o colono já
tinha visto centenas de Novos Mundos. Por que aquele em específico seria diferente?
A diminuição de outros povos pelo núcleo dos Ingleses, na animação da Disney, não é
à toa. Ela retrata o período de conquista e dominação colonial, na qual a Europa ocidental se
colocou como o centro do mundo. A própria noção de continente europeu surge a partir do
processo de colonização, no qual é construída uma visão de alteridade sobre a América. Desta
forma, a identidade europeia se molda a partir da distinção entre “Nós” e os “Outros”, elegendo
“a cor como a característica principal na diferenciação racial” (MAIA e FARIAS, 2020), e
colocando “o eurocentrismo enquanto promulgação da normalidade e racionalidade, bem como
a objetificação e negação das outras culturas e pessoas.” (MAIA e FARIAS, 2020). Desta
maneira, cria-se um sistema de dominação social hegemônico, através da distinção entre as
raças, na qual povos não-brancos são inferiorizados, naturalizando essa relação de poder.
Na animação isto fica claro; o discurso dos ingleses, sempre carregado de ódio à raça,
tenta ligar a imagem dos nativos americanos a “selvagens”, “bárbaros”, “animais”, “não-
humanos”, como uma forma de tornar verdadeiro esse estereótipo, isto é, sem possibilidade de
mudança uma vez que a cultura dos indígenas passa a ser considerada inerente aos ingleses.
Como explica Corbisier:
Ao tentar estabelecer a tese da sua superioridade, que é puramente circunstancial e
histórica, o colonizador desemboca inevitavelmente no racismo. Ora, em que consiste
o racismo? Em converter em "natureza" o que é apenas "cultural", ou, com outras
palavras, em converter o fato social em objeto metafísico, em "essência" intertemporal.
Para justificar, para legitimar o domínio e a espoliação, o colonizador precisa
estabelecer que o colonizado é por "natureza", ou por "essência", incapaz, preguiçoso,
indolente, ingrato, desleal, desonesto, em suma, inferior" (CORBISIER apud
MIGUEL, 2011).

A cena que se segue é de introdução ao núcleo indígena. A imagem prioriza a paisagem


local da região da Virginia, mostrando a comunidade organizada e conectada com a natureza.
O jogo de luz e cores nas cenas que apresentam o Novo Mundo reforça a grandiosidade da
natureza, e segue com cenas onde os nativos integram a natureza de alguma forma - seja em
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caiaques no rio, colhendo nas plantações, mostrando a divisão de tarefas na tribo, a conexão
com a religião da comunidade, entre outras imagens que passam a ideia de uma aldeia
equilibrada, convivendo em harmonia. Também é importante enfatizar a música que toca para
apresentar esse núcleo, “Ao compasso do tambor”, pois traz a valorização da natureza na letra,
num tom de respeito do nativo para com a terra em que habita.
Os guerreiros, liderados pelo chefe da tribo Powhatan, são mostrados retornando
vitoriosos de uma batalha contra a tribo rival. O líder Powhatan aparece como figura central,
frente aos guerreiros da tribo nos caiaques, sugerindo o papel de importância e grandiosidade
naquele núcleo. Ao pisar em terra firme, eles são bem recebidos pela aldeia. O chefe da tribo é
respeitado, e gera identificação com os integrantes da comunidade. O chefe Powhatan aproveita
a reunião para fazer um comunicado, elogiando os grandes feitos do guerreiro Kocoum, que se
sobressaiu na guerra, mostrou coragem e uma bravura ímpar.

2.2 Conhecendo Pocahontas e seus dilemas

Conversando com Kekata, xamã da tribo, o Chefe Powhatan pergunta sobre sua filha, e
Kekata responde: “Você sabe como é Pocahontas, ela tem o espírito da mãe, ela vai aonde o
vento lhe chama”. Neste momento o vento, que no filme é tratado quase como um personagem,
entra em cena movendo-se até chegar em Pocahontas. Este é o primeiro momento de aparição
da personagem. Pocahontas aparece em cena no alto de um penhasco, num cenário grandioso
de beleza natural, dando ênfase ao horizonte.
A melhor amiga de Pocahontas, Nakoma, surge para avisá-la da chegada de seu pai, e
Pocahontas decide ir ao encontro dele. Para encurtar o caminho até a aldeia, ela então salta do
penhasco, mergulhando na água. Essa cena demonstra algumas características da personagem
que serão afirmadas ao longo do filme, como a bravura, e o espírito aventureiro.
Pocahontas vai de encontro ao pai e lá, ela tenta contar para ele sobre um sonho curioso
que teve e da qual ela ainda não tinha conseguido compreender seu significado, apenas
entendendo, naquele momento, que o sonho sugere que ela passaria por uma aventura. Mas é
interrompida prontamente quando o pai entrega a ela um presente bastante simbólico: o colar
que sua mãe usou no casamento deles. O presente vem como um chamado de responsabilidade,
pois ele aproveita para pedir que a filha se case com Kocoum. Uma vez que, como filha do
chefe da tribo, Pocahontas precisaria se casar com um marido forte que não só pudesse protegê-
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la, mas também proteger a sua comunidade, Kocoum, que se destacou como guerreiro, aparece
como a única opção viável de pretendente.
A apresentação do núcleo indígena já nos mostra o que acabou por se tornar o ponto
central do filme da Disney: o destino amoroso de Pocahontas. Isto, porque o diálogo entre ela
e seu pai, sobre a intenção de casá-la com um dos membros de destaque da tribo, é um dos
pontos centrais da trama. Pocahontas demonstra desinteresse pelo pedido do pai, revelando mais
uma vez seu espírito livre.
Esse momento também é significativo, no papel de personagem feminina que adquire
demandas da pauta feminista dos anos 1990. Ao ser uma mulher que não aceita imposições,
sendo responsável por fazer escolhas sobre sua vida mesmo que precise desacatar o Chefe da
tribo para isso, Pocahontas levanta debates importantes e, acolhe discussões no que tange o
movimento feminista - mesmo que como tema transversal a narrativa. O fato de Pocahontas
questionar o direito à escolha sobre seu parceiro amoroso e seguir seu coração, se apaixonando
por outro homem que não o escolhido por seu pai, vai de encontro com as lutas emancipatórias
e de libertação da mulher que, mais do que lutavam pelo direito de “equiparar-se ao homem em
direitos jurídicos, políticos e econômicos”, queriam “afirmar a mulher como indivíduo
autônomo, independente” (ALVES apud BETTO, 2013, p. 2). Assim, a personagem, construída
em cima do mito de uma mulher que teve papel fundamental no que diz respeito à história da
construção da América, trouxe características que agradavam o movimento feminista - em sua
terceira onda nos anos 1990. No entanto, é importante pensar que mesmo trazendo uma
personagem mais ativa, há um apagamento de sua potência ao ligá-la a um romance para trazer
entretenimento à história, reduzindo o papel importante de Pocahontas enquanto diplomata que
queria evitar o confronto entre os dois povos, puxando sua motivação para salvar um amor
impossível entre a nativa e o capitão inglês.
Pocahontas, depois de conversar com seu pai, entra numa canoa e navega pelo rio. Num
dado momento, o rio bifurca, dando a opção à indígena de seguir por um caminho onde o rio
está calmo, e outro agitado. A personagem, que desde sua apresentação dá indícios de ter um
espírito aventureiro, escolhe o caminho agitado. A escolha por um caminho mais difícil, revela
muito do futuro que Pocahontas escolherá ao longo da história, recusando a proposta de
casamento, sendo sincera consigo própria ao ouvir seu coração e ir em busca da aventura
prometida em seu sonho.
A jovem, ainda com o sonho reverberando em sua mente, vai em busca da avó Willow
para desabafar. Ela conta que sonhou com uma flecha que gira, e ela não consegue compreender
o significado disso, e o que o sonho pode representar para o futuro dela. A personagem da avó
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é representada na figura de uma anciã dentro do esqueleto de uma mística árvore no interior da
floresta, e pode funcionar como o arquétipo de mentora da heroína. No caso Pocahontas,
seguindo os conceitos da Jornada do Herói de Campbell:
O herói (...) é uma personagem dotada de dons excepcionais. Frequentemente honrado
pela sociedade de que faz parte, também costuma não receber reconhecimento ou ser
objeto de desdém. Ele e/ou o mundo em que se encontra sofrem de uma deficiência
simbólica. Nos contos de fadas, essa deficiência pode ser tão insignificante como a falta
de um certo anel de ouro, ao passo que, na visão apocalíptica, a vida física e espiritual
de toda a terra pode ser representada em ruínas ou a ponto de se arruinar. (CAMPBELL,
1997, p. 21).

No caso da personagem de Pocahontas, ela carrega características de coragem, espírito


aventureiro, e senso de justiça que tornam a personagem diferenciada, assumindo o
protagonismo na história. Ela sente a necessidade de se aventurar, ir em busca de novos
caminhos, mesmo que eles sejam mais complexos e difíceis. Nesse sentido, Pocahontas será a
responsável por conseguir manter a paz entre Ingleses e a tribo Powhatan, assumindo o papel
de mediadora, realizando o maior feito da história.
O mesmo acontece com John Smith. O capitão possui traços de lealdade, coragem e
senso de justiça. A jornada de Smith é marcada pelo encontro com Pocahontas, que o faz mudar
de perspectiva sobre a imagem dos nativos americanos e, assim como a indígena, ele assume o
papel de mediador dentro do núcleo dos ingleses, ao tentar promover uma aproximação entre
os povos. Segundo Oliveira e Camargo (2018), “O Herói é o personagem principal da narrativa
que possui os poderes para transpor um determinado obstáculo, embarcando em uma jornada
pelo Mundo Especial, disposto a sacrifícios e aprendizados e que consegue transcender sua
visão de mundo à uma entidade equilibrada.” Sendo assim, tanto Pocahontas como John Smith,
têm uma jornada que se encaixa no arquétipo de herói.
Já o arquétipo de mentora está ligado a “uma figura protetora (que, com frequência, é
uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protegem contra as forças
titânicas com que ele está prestes a deparar-se.” (CAMPBELL apud OLIVEIRA; CAMARGO,
2018, p. 9). Certamente, vovó Willow ocupa esse lugar na narrativa, ao ser a pessoa com que
Pocahontas busca conselhos.
A Disney enfatiza a importância da ancestralidade e respeito para com os anciãos da
aldeia, quando mostra a relação das duas. Mais do que isso, Vovó Willow, assim como a
comunidade Powhatan, representam a família, um dos principais valores que a empresa carrega.
Para Santos (2015, p. 31):
Um referente-chave dos filmes da empresa é a instituição família, tomada em sua
concepção burguesa, ou seja, não como uma relação social que assume variadas formas
e funções em decorrência das determinações históricas e de classe. Para a Disney, a
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família é uma formação atemporal, universal, sagrada e representa a única configuração


moralmente correta de vivência social.

Assim, vemos em diversos trechos do filme, como a instituição família é valorizada.


Seja no fato do desejo do Chefe Powhatan em realizar a união de Pocahontas e Kocoum, seja
na ideia de unidade da aldeia, que vive em harmonia e respeita o Chefe como uma figura paterna
que zela pelo bem da comunidade, ou seja até mesmo no final, onde esse aspecto aparece com
mais enfoque, Pocahontas optando por permanecer no seu núcleo familiar, ao invés de ir para
Inglaterra com o homem que ela ama.
A personagem Vovó Willow também, é capaz de conectar Pocahontas com a natureza,
ao ser representada enquanto uma árvore mágica. Essa conexão da personagem com a natureza
fica ainda mais clara, quando começa a tocar a música Voice of the Wind, e Vovó Willow orienta
Pocahontas a ouvir a voz da natureza, isto é, se conectar verdadeiramente com ela e deixar com
que a natureza possa desempenhar um papel de guia espiritual ajudando para a jovem, em sua
jornada.

2.3 Primeiro contato com o “Outro”

O primeiro contato dos Ingleses com o chamado Novo Mundo é feito da própria
embarcação, na qual eles observam as paisagens através das janelas. Já o de Pocahontas é
quando ela, de cima da árvore, avista a grande navegação, que gera estranhamento na moça.
Quando os Ingleses chegam em terra firme, Smith é incumbido pelo Governador da missão de
explorar a região, isto é, fazer o reconhecimento do terreno. Ele então adentra a floresta, mas
não percebe a presença de Pocahontas, que o observa escondida.
Enquanto os colonos se organizam na região e começam a escavar a área em busca de
ouro, os Índios na aldeia se reúnem para entender quem é esse grupo que chegou na região. O
Xamã Kekata revela, por meio de um ritual utilizando fogo, que os novos intrusos são diferentes
de tudo aquilo que os indígenas já lidaram antes, por utilizarem armas nunca antes vistas pelos
Powhatan, deixando-os aflitos com a situação.
A cena a seguir é emblemática, pois mostra finalmente o encontro dos dois
protagonistas, John Smith e Pocahontas. Este encontro é marcado por diversos elementos que
estereotipam a indígena. É o encontro do personagem branco, com a “Outra”. A criação do
“Outro”, no imaginário popular, está atrelada à perspectiva etnocêntrica, na qual os Europeus
“formaram um corpus analítico e descritivo do Outro permeado por estereótipos e figuras
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retóricas para assentar a supremacia geoeconômica e político-cultural do imperial, facilitando


e permitindo o esbulho colonial.” (MIGUEL, 2011)
Pocahontas observa de longe John Smith, bebendo água na cachoeira, e quando ele sai
do seu campo de visão, a personagem se aproxima do local se esgueirando pela floresta para
não ser notada. O Inglês percebe então a presença da nativa e se esconde, numa tentativa de se
preparar para atacar o inimigo - uma vez que os indígenas são vistos por ele como “selvagens”
(Figura 2). O andar animalesco conferido à personagem chama bastante atenção. Andando com
mãos e pés apoiados no chão, a personagem mais se parece um animal do que um humano,
diferente de John que, mesmo buscando se esconder, em nenhum momento passa a ideia de ser
um animal.

Figura 2: Pocahontas e John Smith se esgueirando.


Fonte: Pocahontas (1995)

Essa representação tem um cunho racista, pois reforça a imagem de selvagem dos
nativos americanos e endossa esse estereótipo, o naturalizando. A naturalização é “uma
estratégia representacional que visa fixar a “diferença” e, assim, ancorá-la para sempre”
(HALL, 2016, p. 171). Desta forma, o homem branco europeu é beneficiado por esse discurso,
principalmente por ter o poder sobre a narrativa, controlando-a de forma a reforçar a sua
“superioridade” frente às demais raças. O controle da narrativa, vem desde a época da
colonização, na qual os povos dominantes retiravam o caráter humano de raças não-brancas,
contribuindo assim para perpetuar representações estereotipadas, percebidas como “reais” por
eles, como explica Fanon:
A própria ideologia colonial, fundou-se na hierarquização cultural em uma estrutura
de pensamento em que, para afiançar a superioridade do colonizador, é preciso
transformar o colonizado em bárbaro (CÉSAIRE, 2000). Esse tratamento dispensado
ao Outro, muitas vezes não se conforma em alocar a cultura e "raça" colonizadora em
status superior, passando para além da inferiorização do colonizado (dialética do
Superior-Inferior). É preciso mais: o colonizado é destituído do semblante humano e,
ato contínuo, é desumanizado e "animalizado" (perfazendo uma dialética entre
Humano-Bestial) (SARTRE, 1991, p. 45). "E, de fato, a linguagem do colono, quando
fala do colonizado, é a linguagem da zoologia" (FANON apud MIGUEL, 2011).
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A desumanização do nativo utiliza como base a criação do estereótipo para firmar a


diferença entre as raças, pois é o estereótipo o responsável por retirar a diferença cultural e
associar a natureza, sendo assim intrínseca à raça. O estereótipo se apossa “das poucas
características ‘simples, vividas, memoráveis, facilmente compreendidas e amplamente
reconhecidas’ sobre uma pessoa; tudo sobre ela é reduzido a esses traços que são, depois,
exagerados e simplificados” (HALL, 2016, p. 191). Quando envoltos em um discurso,
inferiorizam determinada raça em detrimento de outra, a ponto de excluir tudo aquilo que se
difere do padrão etnocêntrico, criando assim um poder simbólico.
Quando se prepara para atirar, o Capitão se depara com a silhueta de Pocahontas envolta
pela névoa, aos poucos revelando a indígena. Ela tem um semblante que passa a sensação de
segurança, mesmo numa situação de perigo. Sua imagem em pé demonstra imponência, e faz
Smith instantaneamente abaixar sua arma e se aproximar da jovem.
Neste momento, também chama atenção o design conferido a personagem de
Pocahontas. A indígena foi desenhada de forma hipersexualizada, com roupas justas, as curvas
do corpo da personagem são ainda mais ressaltadas. O mesmo acontece com a personagem
Nakoma, amiga de Pocahontas, que aparece no início do filme (Figura 3). A sexualização
também é uma forma de estereotipagem do indivíduo e costuma estar ligado a raças
marginalizadas e ao gênero feminino como forma de perpetuar um poder simbólico sobre elas.

Figura 3: Design sexualizado das personagens indígenas.


Fonte: Pocahontas (1995)

Pocahontas foge para sua canoa. Smith corre atrás dela e, na tentativa de convencê-la a
travar um diálogo com ele, tenta acalmá-la, assegurando que não irá machucá-la. Pocahontas
se comunica em sua própria língua, e o capitão conclui que ela não entende a língua inglesa e
portanto, não compreende nada do que ele fala.
29

A música Listen With Your Heart que já havia sido tocada anteriormente, ressurge, junto
com o vento. É o chamado para que Pocahontas escute o seu coração. Ela o faz e, magicamente,
passa a ter o dom da comunicação, compreendendo e falando inglês com o capitão. O vento,
que atua como um guia espiritual de Pocahontas, circula por eles e envolve as mãos de ambos.
Neste momento entendemos que John Smith e Pocahontas estão ligados espiritualmente (Figura
4).

Figura 4: Barreira da linguagem é quebrada.


Fonte: Pocahontas (1995)

A forma como a espiritualidade da indígena é retratada nessa cena, carrega um peso


pejorativo. A cena da primeira tentativa de diálogo entre o Inglês e a indígena ilustra bem esse
ponto, uma vez que o vento, enquanto uma materialização da espiritualidade da indígena,
resolve magicamente o problema da barreira da linguagem entre Pocahontas e Smith, ao pedir
que Pocahontas ouça seu coração. Este ato "genuíno", de se conectar e ser guiada pelo seu
coração, faz com que a indígena deixe de falar em seu idioma e passe a se comunicar em inglês
com o colonizador. Por mais que seja uma forma rápida de resolver este problema na narrativa,
mais uma vez a Disney opta por colocar a cultura inglesa como prioridade sobre a cultura dos
Powhatan.

2.4 O “bom selvagem” e o “mau selvagem”

A cena a seguir mostra os Ingleses destruindo a mata em busca de ouro. Vemos também
os nativos observando de longe a destruição da terra ocasionada pelos invasores. Os Índios são
descobertos, e ocorre uma movimentação dos Ingleses para pegar suas armas e proteger o local.
Eles disparam contra os Índios, e acabam atingindo um membro da aldeia. Um dos Ingleses se
aproxima do nativo ferido para matá-lo, mas é impedido por Kocoum que entra num embate
salvando a vida do amigo. Ele então socorre o amigo e o leva de volta para tribo, numa tentativa
de salvar o rapaz e, também, levar informações sobre os inimigos para o chefe. A partir desse
momento, a polarização entre nativos e Ingleses fica clara para o espectador.
30

Sentados embaixo de uma árvore, Pocahontas aparece refletida no elmo do Capitão.


Eles continuam a se conhecer e apresentam elementos de suas culturas um para o outro. Smith
mostra elementos da cultura dele, como o elmo e a bússola, e também ensina a cumprimentar à
inglesa, enquanto Pocahontas ensina a cultura local. A bússola apresentada por Smith tem um
significado chave para a trama, pois ela é a materialização do sonho de Pocahontas - a flecha
que gira -, mas a jovem ainda não liga a bússola ao seu sonho.
Smith conta para Pocahontas sobre as construções e casas da sua cidade natal, elogiando
Londres, e emenda dizendo que os Ingleses irão ensinar os nativos a usarem melhor a terra e
construir casas bonitas e confortáveis. Pocahontas logo se mostra ofendida, e argumenta que
sua comunidade não é selvagem e que suas casas são boas. O Inglês, ao perceber o desconforto
que criou, tenta amenizar a situação, dizendo que ele não a considerava selvagem, mas ela não
confia no rapaz e rebate, dizendo: “Só o meu povo”.
Se por um lado a Disney se afasta um pouco da visão clássica dos países dominantes,
que interpretava o processo de colonização como um ato de puramente trazer civilização a
povos selvagens, por outro ela incorre ao clichê de apontar violência e benevolência a ambos
os lados. Desta forma, deixa subentendido que a despeito de existir colonizadores motivados
pela ambição, existiam aqueles motivados por justiça. Uma visão capturada e criticada na obra
clássica de Joseph Conrad, Coração das trevas, por exemplo, em que o protagonista se vê
forçado a lembrar sua tia que a exploração das colônias tinha função prioritária de lucro. Albert
Memmi (2003, p. 47) aponta essa imagem antitética criada pelo colonizador, ao interpretar a si
próprio como um missionário benevolente ávido por aventuras em uma terra exótica, e não
motivado prioritariamente por lucro.
O personagem John Smith é a personificação da imagem trazida por Memmi. Smith, ao
contrário de Governador John Ratcliffe, não é abertamente motivado pela ganância, mas pelo
desejo de aventura e exploração. O dinheiro é secundário para ele. A ideia de visitar novos
mundos é o que o atrai, ao ponto de minimizar, no início do filme, aquela viagem como apenas
mais um mundo novo a ser descoberto, entre tantos outros que já visitou. Chama a atenção
ainda, a caracterização do protagonista não apenas como benevolente, mas também como
fisicamente belo, ao passo que o antagonista é retratado como um espalhafatoso homem de
negócios.
Pocahontas então, numa tentativa de mudar a visão colonizadora de Smith, ensina sobre
a importância do respeito para com a natureza. A música Color Of The Wind, ganhadora do
Oscar de melhor canção, toca ao fundo desta cena e traz, justamente em sua letra uma exaltação
à natureza, valorizando-a. Alinhada com as imagens da fauna e flora da região da Virgínia, essa
31

sequência se tornou um símbolo de preservação ambiental (ALMEIDA, 2020, p. 169). Para


alguns espectadores, a temática mais forte do filme é a preservação da natureza (ALMEIDA,
2020, p. 24); para outros é o romance entre Pocahontas e John Smith. De toda forma, todos os
elementos inseridos na animação contribuem para o apagamento da história dos Powhatan, e
colocam o colonialismo como um elemento pouco importante na narrativa, podendo ser até
mesmo esquecido.

2.5 Prelúdio do confronto

A próxima cena tem um tom sombrio. O enquadramento destaca o desmatamento da


floresta, causado pelos Ingleses, que utilizaram a matéria prima para construir fortes e se
protegerem de possíveis ataques indígenas. Os tripulantes da Companhia da Virgínia contam
para o Capitão John Smith o conflito que ocorreu mais cedo com os indígenas, e reclamam da
situação de exploração em que vivem.
Dentro do forte, Ratcliffe está em sua tenda, angustiado por ainda não ter encontrado
ouro naquela região. Wiggins, seu assistente, entra no ambiente fingindo ter sido atingido por
uma flecha, despertando uma ideia em Ratcliffe: os Índios atacaram os Ingleses para proteger
o ouro da região. Ele então pergunta para seu assistente o que ele achava que tinha ocasionado
o ataque indígena, e Wiggins responde: “Porque nós invadimos a terra deles, cortamos as
árvores e desenterramos a terra?” A fala irônica de Wiggins revela o pensamento da Disney
quanto às invasões coloniais; a empresa se preocupou em tentar abordar o mito de Pocahontas
de uma maneira justa, cuidando para não depreciar os povos nativos americanos, mas isso
acabou acontecendo em alguns momentos da animação.
Ratcliffe ignora a resposta do assistente, e corre para espalhar, aos companheiros, a ideia
de que os Índios os atacaram com a intenção de esconder o ouro. O Governador então ordena
que o Capitão Smith descubra, com os Índios, se existe ouro na região.
Pocahontas e Smith se reúnem embaixo da árvore mágica. O Capitão revela que
procurou Pocahontas para saber se havia ouro naquela região, mas Pocahontas mostrou não ter
conhecimento sobre o que era isto, logo Smith o descreve, dizendo que “Ele é amarelo e brota
da terra”, fazendo Pocahontas confundir com um milho. Ele então mostra uma moeda e ela
afirma não existir ouro naquela região. Ele ri da situação, e diz que os companheiros não vão
acreditar que a terra prometida não tinha o ouro que eles procuravam.
32

As tribos aliadas chegam na Virgínia para ajudar a combater os invasores ingleses.


Pocahontas vai ao encontro de seu pai para tentar convencê-lo a mudar de ideia e desistir da
guerra, mas o Chefe Powhatan está certo da sua decisão. O papel de diplomacia embutido na
figura do mito de Pocahontas também é apresentado na animação, a indígena tenta interceder
tentando resolver a situação na base do diálogo, evitando a todo custo o embate físico.
Enquanto Pocahontas tenta convencer o pai a desistir da guerra, Smith tenta fazer o
mesmo com seus companheiros. Ele chega ao forte, argumentando que uma aliança com os
indígenas poderia ser positiva, pois os nativos podem fornecer comida a eles e ensinar sobre os
rios da região. Mas Ratcliffe rebate a proposta e o ameaça, dizendo que todos aqueles que forem
vistos com os Índios serão considerados traidores da Coroa e seu destino será a forca. Smith
então vai ao encontro de Pocahontas, e Ratcliffe pede para Thomas ir atrás do Capitão.
Percebendo que a guerra iria acontecer, Pocahontas decide avisar Smith. Nakoma, amiga
de Pocahontas, repreende a jovem, dizendo que se ela for ao encontro do invasor, ela estará
dando as costas para o seu povo e Pocahontas rebate dizendo que pelo contrário, ela estaria
tentando ajudar a sua comunidade. Pocahontas foge, e Nakoma procura Kocoum para avisar
que Pocahontas corre perigo.
Pocahontas e Smith se encontram e conversam sobre como poderiam impedir a guerra.
Smith chega à conclusão que seria impossível, pois ambos os lados querem lutar, mas depois é
convencido de que ele poderia tentar argumentar com o Chefe Powhatan.
O casal então troca o seu primeiro beijo, mas ele é interrompido de súbito por Kocoum
que presencia a cena, e com ciúmes de sua prometida, avança sobre Smith com uma faca na
mão. Thomas, tripulante da Companhia da Virgínia, vê o amigo em apuros, e atira em Kocoum
que morre na hora. A morte foi feita em câmera lenta para aumentar a dramaticidade, Kocoum
ao ser atingido, segura o colar de Pocahontas, e em sua queda acaba o rompendo. Thomas foge,
e John Smith é capturado e levado ao Chefe Powhatan que, ao ver Kocoum morto, busca logo
saber quem foi o responsável por essa barbaridade. Smith é apresentado e logo, é levado para
uma tenda. Powhatan decide que no dia seguinte, ao raiar do sol, Smith seria morto. Pocahontas
tenta mudar a sentença do pai, mas ele diz que a filha o desobedeceu, e como consequência
Kocoum foi morto.
33

2.6 Confronto e despedidas

Nakoma vê a amiga em sofrimento e ajuda Pocahontas a entrar na tenda onde Smith foi
preso, ela se despede do amado. Enquanto isso, Thomas retorna para o forte e avisa aos
companheiros sobre a prisão de Smith. Ratcliffe se aproveita da situação e num discurso de
ódio inflamado convence os ingleses a irem batalhar contra os nativos.
A música Savage começa a tocar e ambos os lados se preparam para a batalha. A direção
de arte assume novas colorações, inundando a tela num misto de cor contrastantes, o vermelho
e o azul. A música é carregada por um forte discurso de ódio, palavras como malignos, não-
humanos, demônios, vermes são proferidas por ambos os lados, que num dueto cantam
marchando para a batalha (Figura 5).

Figura 5: Indígenas e Ingleses marcham para a guerra.

Fonte: Pocahontas (1995)

Essa cena representa o climax do conflito entre os dois povos, na qual a música realça
o sentimento de ódio à raça abordada durante toda a animação. Apesar de ambos os lados
proferirem tais palavras, chama atenção a desumanização dos nativos americanos, que desde o
começo do filme, sofrem ataques, sendo vistos como seres malignos, isto é, monstros. Segundo
Cohen (2020), o corpo monstruoso nasce a partir de qualquer tipo de alteridade perante o outro,
mas geralmente costuma estar associado à diferença cultural, política, racial, econômica e/ou
sexual. Cohen mostra exemplos famosos dessa transformação do “Outro” em corpo
monstruoso, como os seguintes:
O processo pelo qual a exageração da diferença cultural se transforma em
aberração monstruosa é bastante familiar. A distorção mais famosa ocorre na
Bíblia, onde os habitantes aborígenes de Canaã, a fim de justificar a colonização
hebraica da Terra Prometida, são imaginados como gigantes ameaçadores.
Representar uma cultura prévia como monstruosa justifica seu deslocamento ou
extermínio, fazendo com que o ato de extermínio apareça como heróico. Na
França medieval as chansons de geste celebravam as cruzadas, ao transformar os
muçulmanos em caricaturas demoníacas, cuja ameaçadora falta de humanidade
podia ser lida a partir de seus bestiais atributos; ao definir culturalmente os
34

“sarracenos” como monstra, os propagadores tornavam retoricamente admissível


a anexação do Oriente pelo Ocidente. Esse projeto representacional era parte de
todo um dicionário de definições estratégicas nas quais os monstra facilmente se
transformavam em significações do feminino e do hipermasculino. (COHEN,
2020, p. 33).

Em Pocahontas, a Disney consegue representar bem a transformação dos nativos em


corpo monstruoso, mostrando a figura dos nativos no imaginário dos Ingleses, principalmente
do personagem do Governador Ratcliffe, que convenientemente criava representações dos
indígenas, afirmando sempre o caráter “selvagem” dos nativos. Esse discurso desumanizador
servia como forma de validar o processo de saque de terras, e ataques aos nativos americanos.
O critério de divisão entre “Nós” e os “Outros”, “pode ir desde a anatomia ou a cor da pele até
à crença religiosa, ao costume e à ideologia política.” (COHEN, 2020, p. 46). No filme, é
reforçada a alteridade na questão racial; a própria música Savage, faz a ligação da pele vermelha
dos indígenas ao inferno. Esse recurso como vimos, já foi muito utilizado na história da
civilização, e reforça o eurocentrismo, privilegiando o homem branco europeu perante outras
raças.
A cena termina com uma fumaça simulando uma explosão e um raio que divide a tela
entre os dois lados. A cena gera uma reflexão para além da relação entre Nós e os Outros posta
por Said (2011), que foi discutido ao longo do texto. A cena da Disney traz a ideia de que ambos
os lados estão nivelados na batalha, podendo qualquer um dos dois ser “vencedor”. No entanto,
a história mostra que os indígenas sofreram um massacre do seu povo pelos colonos. A
imprecisão histórica no filme gera um turbilhão de críticas que compactuam para que a obra
seja vista com um teor racista, privilegiando uma narrativa branca da colonização europeia.
Pocahontas se sentindo perdida por não conseguir impedir seu povo de guerrear, busca
um conselho com Vovó Willow. Em seguida, Meeko, o guaxinim, entrega à jovem a bússola
de Smith. Pocahontas liga a bússola ao seu sonho, e com ajuda dos espíritos da floresta como
guias, corre contra o tempo para tentar impedir que a guerra entre os povos comece, e salvar
seu amado.
As imagens vão se alternando entre a corrida de Pocahontas e o ritual de decapitação de
Smith, e a música Savage II dá o tom dramático à cena. Quando seu pai levanta o cajado para
decapitar o Capitão inglês, Pocahontas corre e se joga por cima de Smith numa tentativa de
salvá-lo, e diz: “Se você matá-lo, terá que me matar também”. Ela revela ao pai que ama o
colono, e argumenta que a decapitação gerará a guerra e ódio entre os povos.
O Chefe Powhatan é tocado não só pelas sábias palavras da filha, mas também pelo
vento, que aqui é tido como uma representação de forças da natureza e num gesto grandioso,
35

levanta seu cajado, anunciando que a guerra estava suspensa por parte da tribo e ordena que
soltem o prisioneiro.
Esse momento histórico onde Pocahontas salva a vida de John Smith, já foi recriado de
diversas formas para diferentes mídias. A Disney, ao se utilizar desse momento, constrói seu
olhar sobre um pedaço da narrativa sobre a colonização inglesa nos Estados Unidos, na qual
Pocahontas assume também o papel de diplomata, que garantiu a paz entre os povos.
Smith é libertado, e todos entendem o sinal de que não haverá mais guerra, logo os
colonos abaixam a arma. Mas quando Ratcliffe percebe que não haverá mais guerra, ele atira
em direção ao Chefe Powhatan. Smith, num ato heroico, pula na frente do indígena, e cai ferido
no chão. Os Ingleses se revoltam com essa cena, e prendem Ratcliffe por traição.
Não havendo como curar Smith no Novo Mundo, os Ingleses se preparam para retornar
à Inglaterra e salvar o Capitão. Pocahontas, acompanhada de companheiros da aldeia, aparece
para se despedir de Smith, e leva suprimentos para a viagem de volta dos colonos, como forma
de retribuição por salvar a vida do líder da tribo. O chefe Powhatan reconhece o ato heroico de
Smith, e dá seu manto de presente para o Inglês.
Pocahontas escolhe sua tribo ao invés do amado, decidindo assim permanecer na aldeia,
ao invés de ir para Inglaterra com Smith. Ela se despede do Capitão com um beijo. Quando o
navio parte, Pocahontas vai até o penhasco observá-lo de longe; ela faz o sinal de despedida da
sua cultura, e Smith, do navio, faz o mesmo.
O final do filme imita seu começo, onde a imagem é congelada se transformando em
um quadro antigo, mas dessa vez vemos a imagem de Pocahontas de cima do penhasco, fazendo
com que a indígena se torne uma figura histórica.
36

3. RECEPÇÃO DO FILME E CRÍTICAS

O filme Pocahontas teve uma recepção mista dos críticos. Elogiado por sua direção de
arte e por trazer temas transversais conectados com o contexto dos anos 1990, o filme conseguiu
conquistar uma parte do seu público-alvo, que considerou importante a criação de uma
personagem feminina mais independente, e fora do padrão norte-americano etnocêntrico, bem
como abordar a questão da importância do cuidado com a natureza.
O jornal New York Times, na época do lançamento do filme, trouxe algumas matérias
sobre a animação. Algumas delas relataram a grandiosidade da première do filme, que
aconteceu no Central Park, em Nova Iorque, e recebeu milhares de espectadores assistindo ao
evento no gramado do parque. A matéria intitulada “Thousands Jam Disney's Newest Park to
See 'Pocahontas’”, escrita por Felicia Lee (1995), também trouxe comentários de espectadores
como o de Art Proulx, que descreveu o filme como fabuloso, e complementou dizendo que ele
“atende tanto a crianças quanto a adultos. É baseado no tema de se relacionar com pessoas que
você não conhece, raças diferentes, culturas diferentes, protegendo o ambiente."
O New York Times também deu espaço para perspectivas mais críticas sobre o filme.
Janet Maslin (1995), no texto “FILM REVIEW: History as Buckskin-Clad Fairy Tale”,
enfatizou o revisionismo histórico sobre o mito de Pocahontas, e disse que a animação se
aproximou mais dos contos de fadas do que da história real, por se distanciar do mito. Ela ainda
tece críticas à escolha dos produtores em tornar o filme um romance entre Pocahontas e John
Smith, e chama atenção para o design sexualizado da personagem nativa americana. Simon
Schama (1995) também escreve sobre o filme, na matéria “The Princess of Eco-Kitsch”, na
qual ela sugere que a personagem Pocahontas tinha como objetivo ser uma criadora de
consciência ecológica, sendo o filme um grande defensor do meio ambiente.
O jornal The Washington Post dedicou uma matéria para falar sobre a imprecisão
histórica do filme, escrito por Anthony Faiola (1995). A matéria “Little Dove vs. Pocahontas”
trouxe a perspectiva de Shirley Little Dove, uma descendente de nativos americanos que serviu
como consultora do filme da Disney, Shirley conta a importância do mito de Pocahontas para
sua cultura; ela cresceu escutando histórias sobre Pocahontas, e dedicou sua vida a manter vivo
o mito da indígena, divulgando a história em escolas, museus e festivais de folclore. Ela revela
que ficou frustrada ao ver o retrato que a Disney fez de Pocahontas, pois para seu povo, “a
tradição oral de contar histórias é considerada um elo vital com seu passado. Assim, ao
37

reinventar Pocahontas - a figura mais famosa da tribo -, a Disney está reinventando e


distorcendo sua cultura para as gerações futuras”.
Shirley chama atenção para o fato de a animação ignorar eventos significativos do mito
de Pocahontas, como o seu sequestro por colonos britânicos, a conversão da nativa americana
ao cristianismo, o casamento com o colono britânico John Rolfe, ou a mudança da idade de
Pocahontas. No filme, a personagem sofre uma adultização, passando de uma menina de cerca
de onze anos para uma mulher próxima aos vinte. Shirley também revela que os primeiros
esboços da personagem seguiam a idade original de Pocahontas, isto é, os desenhos retratavam
uma criança de onze anos, mas depois a Disney mudou de ideia, alterando a aparência da
personagem.
Os executivos da Disney negam essa afirmação, e argumentam que por se tratar de um
mito sem registros históricos precisos, foi possível ter liberdade para recriar a história de
Pocahontas de forma a realizar “um lindo filme sobre a experiência dos índios americanos",
trazendo uma “visão muito respeitosa de uma cultura que não existe mais” (SCNEIDER apud
FAIOLA, 1995). Shirley rebate esse argumento, dizendo que “Nossa cultura existe; ela vive
por meio de nossas histórias (...). E é por isso que nossas histórias são tão importantes para
nós." Dessa forma, Shirley traz um contraponto à visão da Disney sobre a cultura de seu povo,
e revela uma insatisfação, uma vez que o filme reformula o mito da Pocahontas de forma a
realizar um apagamento da história da comunidade Powhatan.
Outra figura importante do ativismo indígena, o Chefe Roy Crazy Horse, veio também
a público mostrar sua insatisfação com o filme. Após perceber que Pocahontas era
completamente distinto do mito original, o Chefe Roy escreveu um breve resumo sobre a
história real de Pocahontas no site da Powhatan Renape Nation, e concluiu: “É lamentável que
essa história triste, que os euro-americanos deveriam achar embaraçosa, a Disney torne
“entretenimento” e perpetue um mito desonesto e egoísta às custas da nação Powhatan.”
(CHEFE ROY apud Gardner, 2003, p. 42).
Para tentar frear a imagem falaciosa construída pela Disney sobre o colonialismo
europeu na América e a história do povo Powhatan, Chefe Roy criou uma peça para contar o
mito de Pocahontas. Apesar de entender que o teatro não tem um alcance global e fica limitado
a um número de pessoas, a comunidade indígena escolheu o teatro como plataforma de protesto.
Pois, para a sua cultura, o teatro é uma forma de arte que pode efetivamente reformular
percepções, tendo um grande potencial educacional e político, e permitindo aproximação com
o público e ainda, num custo econômico viável. (GARDNER, 2003).
38

A peça, intitulada The One Called Pocahontas, foi apresentada nos dias 2, 3 e 4 de
agosto de 1996, para um público total de novecentos espectadores, na reserva da Nação
Powhatan Renape em Rancocas, New Jersey. A peça incorporou roupas, músicas e danças
tradicionais dos índios americanos, bem como personagens baseados em pessoas reais, como
Matoaka, Iopassus, Capitão Samuel Argall, Chefe Powhatan, John Rolfe, Opechancanough,
King James I e Thomas Rolfe, “criando um evento envolvente, educativo e dramático”
(GARDNER, 2003, p. 51). A peça trouxe de fato a perspectiva da comunidade Powhatan, ao
contar a história de seu povo e de seus heróis.
Na noite de abertura, o Chefe Roy fez um discurso, citado no site Powhatan Renape
Nation.
A Nação Powhatan Renape dá as boas-vindas a todos vocês neste evento de
compartilhamento. Fazemos com o mesmo espírito que sentiu o nosso povo quando
vieram visitantes de outras terras, há quase 400 anos. Em todos os lugares, olhamos
entre nós hoje e vemos família e amigos. Por termos confiança em nossa amizade,
podemos falar sobre a verdade sem medo de que nossa amizade seja prejudicada.
Compartilhamento, amizade e verdade são qualidades poderosas que constituem uma
base sólida sobre a qual podemos construir nosso futuro juntos. Essa brincadeira
começou a ganhar corpo quando soubemos que os estúdios Disney iam fazer um filme
sobre nós, um filme intitulado Pocahontas. Escrevemos imediatamente ao Sr. Roy
Disney para oferecer nossa ajuda. Já havíamos sido submetidos a 400 anos de mentiras
e distorções e achamos que essa era uma boa oportunidade para cooperar. A Disney nos
escreveu de volta dizendo que nossa ajuda não era necessária - eles já haviam decidido
o que iriam fazer. Estamos muito desapontados, surpresos e furiosos porque a Disney
seria tão insensível aos sentimentos, circunstâncias e história dos membros vivos da
Nação Powhatan - uma das nações mais devastadas deste continente. Tivemos uma
grande troca de correspondência: a Disney disse que tinha licença artística que lhe
permitia entreter, elevar e inspirar sem se importar com a verdade. E assim, outra
geração foi alimentada com um dos mitos mais queridos dos EUA - às nossas custas.
Foi então que decidimos fazer esta peça, nosso modesto esforço para usar nossa licença
artística sem prejudicar a verdade. A Disney pode ter seus mitos destrutivos, mas nós
temos nossa verdade e amizade. Mais uma vez, nossa nação dá as boas-vindas à Reserva
Indígena Rankokus e a este evento. Hoje, simplesmente apresentamos a verdade como
a conhecemos, para que possamos usar o passado como base para compreender o
presente e, a partir dessa base, seguir em frente como parceiros rumo ao futuro.
(CHEFE ROY apud GARDNER, 2003, p. 67)

Desta forma, Chef Roy deixa claro que a intenção da peça é justamente trazer a
perspectiva do povo Powhatan que, por tanto tempo, teve a história de sua tribo distorcida e
apagada. Além disso, Chef Roy chama atenção para a insensibilidade dos estúdios Disney para
com os descendentes de Pocahontas, ao recusarem a ajuda da comunidade para a construção de
uma visão correta acerca do mito da nativa americana.
A peça não conseguiu reverter o efeito do filme sobre os espectadores que assistiram à
animação da Disney. O imaginário popular sobre a nativa americana foi de fato formado a partir
da animação, que atingiu públicos de diversas idades e nacionalidades. Porém, para as
novecentas pessoas que assistiram à peça The One Called Pocahontas, o povo Powhatan
39

conseguiu passar uma outra versão da história: a verdadeira história da vida de Pocahontas e do
seu povo Powhatan, oprimido na colonização norte-americana. Uma espectadora, de oito anos,
considerou a peça The One Called Pocahontas mais triste do que o filme da Disney, pois, ao se
sentir próxima dos atores, conseguiu se colocar no lugar dos indígenas, e entendeu as
dificuldades sentidas por eles e por Pocahontas (GARDNER, 2003).
Entendendo que os Powhatans são de tradição oral, na qual sua cultura é passada de
geração para geração através da fala e da contação de histórias, fica nítido que a Disney não
teve um cuidado, que diz ter, para com os nativos americanos. A Disney recriando o mito de
Pocahontas promoveu, de certa forma, um apagamento da história e da cultura do povo
Powhatan, que agora tem a imagem de sua tribo atrelada à animação da Disney, promovendo
assim uma distorção da sua cultura, e talvez da cultura indígena como um todo, para as gerações
futuras.
Na mídia brasileira, Pocahontas também recebeu críticas. A Folha de São Paulo
escreveu algumas matérias, como por exemplo: “Pocahontas é fábula `new age' sobre índios”
(1995), e “Disney disfarça passado politicamente incorreto” (1995). Ambas falavam sobre o
quanto a imprecisão histórica da animação era problemática; porém, nesta última matéria, ainda
era denunciado o racismo presente em diferentes filmes da Disney.
Apesar de receber críticas de racismo, nas décadas anteriores, somente em 2019 é que a
Disney decidiu por adotar em sua rede de streaming Disney+, a estratégia de avisos. Filmes
como Dumbo, Peter Pan, Aristogatas, já receberam esses avisos. A empresa, ao invés de
remover o conteúdo problemático das animações, adotou a postura de reconhecer que utilizou
representações hoje em dia consideradas racistas para criação de seus personagens, admitindo
que isto foi prejudicial para a sociedade. A Disney ainda comunica que está disposta a aprender
e a dialogar enquanto empresa para com seu público, e espera que, em conjunto, possam criar
um futuro mais responsável e inclusivo (Exame, 2020). Nesse sentido, era esperado que
Pocahontas também recebesse um alerta de preconceito na plataforma Disney+, porém até o
momento isso não aconteceu.
Como não poderia deixar de ser, a figura de Pocahontas tem um peso cultural e histórico
muito importante para a comunidade Powhatan, pois ela é um símbolo importante da
ancestralidade de seu povo. Ao recriar o mito de Pocahontas, transformando-o em
entretenimento para o público familiar, a Disney promoveu um apagamento da cultura dos seus
descendentes. Escutar a perspectiva de um povo que foi historicamente marginalizado se faz
necessário, para entender o quanto a criação de um imaginário popular ligado à figura de
Pocahontas foi de fato prejudicial para a comunidade Powhatan.
40

4. LEGITIMANDO UMA NARRATIVA

Ao compararmos o filme da Disney com o mito da indígena, vemos que o Estúdio norte-
americano criou uma nova narrativa sobre o mito de Pocahontas, na qual conseguiu-se construir
uma imagem da colonização e da fundação dos Estados Unidos removendo as ranhuras da
história, e privilegiando a imagem de Ingleses “pacíficos” que, dentro da perspectiva da Disney,
desistiram da guerra.
A Disney, como já dito anteriormente, tem uma forma própria de fazer filmes. A
empresa constrói narrativas em cima de fábulas e histórias reais que higienizam a história para
o público familiar tradicional. Mais além, ela traz temáticas transversais, conectadas com as
pautas sociais da década de 1990, isto é, durante a Renaissance da empresa, e encantando novas
gerações de públicos. O sucesso que a Renaissance atingiu é inegável, visto que até hoje a
filmografia dessa época tem relevância mundialmente. São verdadeiros sucessos de bilheteria,
revistos pelo público até hoje, fazendo parte assim do imaginário popular de diversas gerações.
Os filmes da Disney, apesar de muitas vezes não serem ambientados nos Estados
Unidos, isto é não tratarem diretamente do país, eles ainda assim revelam muito sobre a cultura
norte-americana. O American Way of Life está sempre empregado, no qual são retirados todos
os aspectos pesados de contos e história reais, substituídos por uma carga de otimismo que
culmina sempre no encerramento do filme, com o inevitável happy end. Além disso, a cultura
punitivista está bastante presente; o vilão sempre sofre sanções após cometer atrocidades.
Assim como o herói é sempre recompensado de alguma forma, e terá um final feliz, depois de
passar por desafios e comprovar sua índole. O padrão de comportamento moral também aparece
em imagens que enaltecem a família tradicional e os personagens caucasianos, bem como
trazendo a questão do gênero como algo definido claramente e sem ambiguidades. (SANTOS,
2015, p. 33)
Com esses direcionamentos ideológicos e culturais inseridos de forma sutil em seus
filmes, “resguardados por uma imagem de inocência cuidadosamente edificada e
constantemente reforçada” (SANTOS, 2015, p. 28), as animações da Disney vão além do
entretenimento e assumem um papel na formação de um imaginário social enquanto mídia,
sendo, portanto, um grande influenciador dentro de uma sociedade globalizada. Assim, as
animações da Disney assumem um papel educativo para seu principal público, o infantil, como
explica Giroux:
É desnecessário dizer que a importância dos filmes animados opera em muitos
registros, mas um dos mais persuasivos é o papel que eles exercem como novas
41

“máquinas de ensinar”. (...) Esses filmes inspiram no mínimo tanta autoridade cultural
e legitimidade para ensinar papéis específicos, valores e ideais quanto locais mais
tradicionais de aprendizagem, tais como escolas públicas, instituições religiosas e a
família (GIROUX apud SANTOS, 2015, p. 4)

O cinema atua desta maneira como educador; através de sua linguagem e da utilização
de representações, consegue desenvolver visões acerca de valores morais, e ajuda na criação de
identidades. Desta maneira, a Disney se utiliza do seu poder de persuasão para moldar o
imaginário popular do que é o bem e o mal. “Através de estereótipos, produzem vilões e heróis,
revelam preconceitos raciais, de gênero e sociais, criando uma forma de pensar sobre ‘como a
paisagem cultural da América é imaginada’” (GIROUX apud ALMEIDA, 2020, p. 10).
A construção de uma identidade perpassa pelo embate de narrativas entre duas entidades
diferentes: “Nós”, e os “Outros”. O “Nós” representa países de maior poderio econômico, que
têm o controle da narrativa sobre os “Outros”. De acordo com Said (2007, p. 441), “Cada era e
sociedade recria os seus ‘Outros’. Longe de ser estática, portanto, a identidade do eu ou do
“outro” é um processo, histórico, social, intelectual e político muito elaborado que ocorre como
uma luta que envolve indivíduos e instituições em todas as sociedades.”
A Disney, enquanto um dos maiores conglomerados de comunicação e entretenimento
do mundo, possui o controle da narrativa, e se utiliza de um discurso alinhado com as ideias
ideologicamente dominantes, isto é, “empregando nos filmes representações estereotipadas -
racistas, sexistas ou classistas - que respondem ao imaginário social dominante em boa parte
das sociedades ocidentais” (NAVARRO apud SANTOS, 2015, p. 7). Representações
estereotipadas que são também reconhecidas pelo público como afirmações verdadeiras,
estando alinhadas com o pensamento majoritário dos Norte-americanos. Assim, cria-se o
“Outro”, uma figura que se distancia do padrão dos países dominantes que ocupam a região da
América do Norte e a Europa Ocidental. O “Outro” tem outros tipos costumes e crenças e, por
isso também, ele é considerado “inferior”.
Ter o controle da narrativa permite criar uma série de imagens positivas e/ou negativas
sobre determinados povos, que influenciam no sentido de compreensão da realidade, uma vez
que formam estereótipos, que atingem escala global. Sendo repetidas por diversas vezes, essas
representações acabam corroborando para a construção de uma visão sobre determinados
grupos, afetando, assim, o imaginário popular.
No imperialismo, nações ricas batalham para ter o controle e influenciar nas questões
políticas e econômicas de países mais pobres. A narrativa se faz necessária para conseguir
perpetuar o poder de dominação dos colonizadores sobre a colônia. Além da disputa pela terra,
42

a disputa pelo “poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito
importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre
ambos.” (SAID, 2011, p. 11).
Impedir que o “Outro” fale, ajuda a nação imperialista a exaltar a sua cultura e se
sobrepor à dos países colonizados, criando um pensamento identitário para ambos, onde a nação
rica possui as características boas e as nações periféricas as ruins. A difusão desses pré-
conceitos nas narrativas sobre diferentes povos foi tão enraizada e exercida por tanto tempo,
que “Embora as colônias, em sua maioria, tenham conquistado a independência, muitas atitudes
imperiais concomitantes à conquista colonial ainda persistem.” (SAID, 2011, p. 53). Não é à
toa que os povos marginalizados acabam tomando como verdade as representações
estereotipadas das suas próprias culturas; mesmo que sejam caricaturas racistas, eles aceitam
essa imagem prejudicial, ou até mesmo não as enxergam como ruins, passando a naturalizá-las.
Apesar das críticas negativas ligadas ao filme, vindas principalmente de indígenas,
Russel Means, ativista indígena que interpretou o Chefe Powhatan na animação, em uma carta
aberta, defendeu o filme da Disney. Declarando que Pocahontas é um dos melhores filmes a
representar os indígenas na indústria cinematográfica americana. Means afirma que o as críticas
feitas pela mídia são “manifestações de racismo institucionalizado contra o povo indígena",
além de sugerir que as pessoas que reclamaram do filme "sofrem com a perda da inocência".
(STRIPES, 1999, p. 89)
Com opinião contraria, a comunidade Powhatan se manifestou em 2011, lançando uma
nota, expressa pelo Chefe Roy, na qual criticava a animação.
Nós, da nação Powhatan, discordamos das afirmações da Disney. O filme
apresenta uma visão distorcida que vai muito além da história original. Nossas
ofertas para ajudar a Disney em aspectos culturais e históricos foram
rejeitadas. Tentamos fazer com que a Disney corrigisse os erros ideológicos e
históricos do filme, mas fomos ignorados. É triste que essa história da qual
ingleses e americanos deveriam se envergonhar, tenha se tornado um meio de
entretenimento, perpetuando um mito irresponsável e falso sobre a nação
Powhatan. (CHEFE ROY apud ALMEIDA, 2020, p. 214).

Acredito que a opinião de Russel Means sobre o filme Pocahontas, esteja ligada à sua
visão sobre o período clássico do cinema, no qual o gênero Western era predominante. Este
gênero cinematográfico reforçou a imagem estereotipada dos nativos americanos, colocando os
indígenas como vilões que precisavam ser combatidos, enquanto o herói seria a figura do
cowboy, que de certa forma, gerava identificação “com o público masculino infanto-juvenil,
principalmente os de origem rural. Tais atores exibiam um padrão estético e de comportamento
43

na tela que desencadeava uma reação no imaginário popular, fazendo emergir legiões de fãs por
todo o país e para além dele.” (MATTOS apud OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010).
Antes mesmo do cinema representar os indígenas como seres selvagens, inferiores e
cruéis, os nativos americanos já ocupavam na literatura, o lugar de vilões. Desta forma, “os
cidadãos norte-americanos, brancos e cristãos, deveriam adentrar os cativeiros indígenas,
exterminá-los, para recuperar suas mulheres brancas que haviam sido sequestradas.”
(OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010). “O Medo de um povo de costumes e crenças diferentes,
alimentava o imaginário dos norte-americanos brancos, que criavam ou aumentavam histórias
sobre o perigo dos índios. Tais histórias eram passadas de geração para geração reproduzindo
ódio e temor por décadas.” (OLIVEIRA E AZEVEDO, 2010).
Manter ainda hoje, tal manipulação de narrativa traz malefícios aos indígenas, pois
reforça estereótipos e cria uma imagem pública negativa sobre o grupo. Enquanto os indígenas
são colocados no lugar de povo marginalizado, outros grupos sociais se beneficiam dessa visão.
Logo:
A conquista do consenso em torno de determinadas visões do mundo torna-se o alvo
central das batalhas das ideias, travadas entre classes, frações de classes, instituições,
grupos e organismos representativos de múltiplos interesses no interior da sociedade
civil. (MORAES, 2016, p. 15)

Em Orientalismo, Edward Said explica a conquista do consenso, trazendo como


exemplo “a ideia de Europa”, uma noção coletiva que diferencia europeus de outros povos, e
os coloca como superiores frente a outras culturas. Para isso ele utiliza o seguinte argumento:

Gramsci fez uma útil distinção analítica entre a sociedade civil e a política, na qual a
primeira é composta de associações voluntárias (ou, pelo menos, racionais e não
coercitivas), como escolas, famílias e sindicatos, e a última é constituída de
instituições estatais (o exército, a polícia, a burocracia central), cujo papel na vida
política é a dominação direta. A cultura, é claro, deve estar em operação dentro da
sociedade civil, onde a influência de ideias, instituições e pessoas não funciona pela
dominação, mas pelo que Gramsci chama consenso. Numa sociedade não totalitária,
portanto, certas formas culturais predominam sobre outras, assim como certas ideias
são mais influentes que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci
identificou como hegemonia, um conceito indispensável para qualquer compreensão
da vida cultural no Ocidente industrial. (GRAMSCI apud SAID, 2007, p. 34)

Busca-se, então, uma hegemonia cultural, que é adquirida e consolidada através de


disputas em diversas frentes, que vão desde o campo da economia até o plano ético-cultural.
(GRASMCI apud MORAES, 2016, p. 15).
Para atingir êxito nessa disputa, é necessário controlar a narrativa e difundi-la por meio
de aparelhos de hegemonia. De acordo com Moraes (2016, p. 20):
44

Os aparelhos de hegemonia atuam como difusores de concepções particulares de


mundo, que almejam legitimar-se na sociedade civil. É o caso precípuo dos meios de
comunicação, atores políticos diferenciados, tendo em vista o seu raio de alcance
massivo, a capacidade persuasiva e a interferência desmedida na conformação do
imaginário coletivo.

O ambiente educacional também atua na construção da hegemonia ao estimular, desde


cedo, que crianças e adolescentes aprendam sobre suas culturas e tradições, colocando-os para
lerem “seus clássicos nacionais antes de lerem os outros, espera-se que amem e pertençam de
maneira leal, e muitas vezes acrítica, às suas nações e tradições, enquanto denigrem e combatem
as demais.” (SAID, 2011, p. 12). Obtendo só uma narrativa, a população toma como verdade a
representação de pessoas, lugares e experiências que foram descritas por um livro, utilizando-
o como autoridade frente a realidade que descreve. (SAID, 2007, p. 141). O mesmo acontece
em músicas, filmes ou qualquer outro meio de entretenimento e comunicação que possa ter sua
narrativa difundida.
Deslocando as ideias de Dênis de Moraes para entender Pocahontas, portanto, a arte se
funde à hegemonia como ferramenta útil de disseminação, produzindo verdades. Em suma, a
Disneyficação, como visto antes, produz um discurso simplista e maniqueísta, que retira a
cunho político da história de Pocahontas, colocando no processo, colonizador e colonizado
como igualmente vítimas e perpetradores. Bem distante da realidade de extermínio dos povos
indígenas estadunidenses pelos invasores.
Desta maneira, podemos afirmar que a Disney é um agente importante no que diz
respeito à perpetuação dos discursos dominantes e da hegemonia cultural. A empresa, envolta
na imagem de pureza e inocência, se apropria da história de Pocahontas, reconfigurando o mito
de acordo com seu interesse ideológico, e endereça essas novas perspectivas ao público infantil.
Se aproveitando do seu poder enquanto um dos maiores estúdios de animação do mundo, a
Disney dispõe de uma credibilidade que é capaz de ultrapassar as inspirações utilizadas para a
criação de seus filmes e, conquista o imaginário popular com suas narrativas, legitimando-a
frente as demais.
45

CONCLUSÃO

Através da discussão levantada neste trabalho, buscou-se mostrar que a reconfiguração


do mito de Pocahontas pelo Estúdio Disney vai muito além de uma mera adaptação para o
público infantil: ela está intrinsecamente ligada aos formatos contemporâneos do imperialismo.
Mesmo acertando em trazer temas transversais ligados a pautas de movimentos sociais,
como o movimento feminista e o ambientalismo, numa tentativa de se adequar à visão da
sociedade da época e cativar o público, a Disney acabou tirando a potência da história de
Pocahontas. Ao privilegiar a narrativa do romance entre colonizada e colonizador, a Disney
optou por fazer com que a colonização norte-americana seja vista como um elemento pouco
relevante da história, podendo ser esquecido pelos espectadores, principalmente pelo público
infantil. Desta forma, a empresa apaga um dos capítulos mais sombrios da história humana, e
ajuda a criar no imaginário popular uma ideia pacifista sobre a formação dos Estados Unidos,
beneficiando interesses ideológicos de grupos dominantes e mantendo a hegemonia cultural.
Segundo Santos (2015), “no âmbito da cultura midiática orientada para as crianças - e
na indústria cultural como um todo - não há textos inocentes em sentido absoluto, mas apenas
leituras que, infelizmente, insistem em tratá-los enquanto tal.” (SANTOS, 2015, p. 39). Assim,
cada elemento e representação posta na narrativa tem uma simbologia por trás, mesmo que o
espectador não consiga decifrar na hora.
Partindo desse ponto, entendemos que as representações dos nativos americanos no
filme contribuem para reforçar uma visão prejudicial das comunidades indígenas, que foram
marginalizadas ao longo da história dos Estados Unidos. Na animação, elas são apresentadas
como “selvagens”, adquirindo em alguns momentos trejeitos animalescos, reduzindo sua
religiosidade a uma conexão mágica com a natureza, sendo vistos como contraposto para o
termo civilizado, vinculando a imagem dos nativos americanos à ideia de inferioridade.
De acordo com Hall (2016), “A estereotipagem facilita a ‘vinculação’, os laços, de todos
nós que somos ‘normais’ em uma ‘comunidade imaginária’; e envia para o exílio simbólico
todos Eles, os ‘Outros’, que são de alguma forma diferentes, ‘que estão fora dos limites’.”
(HALL, 2016, p. 192). Isso contribui para a institucionalização do racismo na sociedade e,
levando em conta que as crianças são o público-alvo das animações da Disney, o filme
raramente é visto de uma maneira crítica por elas. Desta forma, os conceitos e valores presentes
nos filmes são absorvidos pelas crianças, e acabam contribuindo na formação do imaginário
delas.
46

Afinal, a Disney assume um papel educativo, de maneira que os valores empregados em


seus filmes são assimilados pelo público de modo a formarem um imaginário popular no qual
predomina a visão do homem branco, reforçando estereótipos sobre outras culturas,
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