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Sumário

Introdução 11

Capítulo 1
Escritos e escrita de Freud 13

Diversidade dos gêneros literários 14


0 fragmentário 18
Desvios e tateios 19

Capítulo II
A formação de Freud 23

Jean-Martin Charcot (1825-1893) 24


Hippolyte Bernheim (1840-1919) 29
Joseph Breuer (1842-1925) 31
Wilhelm Fliess (1858-1928) 34

Capítulo III
Os Estudos sobre a histeria 41

"Comunicação preliminar" 43
Primeira definição da histeria 45
Da teoria da sedução real à teoria da fantasia 52
Capítulo IV
A descoberta do infantil 55

Três ensaios sobre a teoria sexual 57


"As teorias sexuais infantis" 65
Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci 74

Capítulo V
Uma intuição freudiana:
a importância da temporalidade 81

Capítulo VI
Da transferência ao seu declínio 87

"0 tratamento psíquico" (1890) e a expectativa crente 88


Histeria e transferência 91
A neurose de transferência 101

Capítulo VII
A constrição de repetição 105

0 papel da repetição 106


A constrição: "0 motivo da escolha dos cofrinhos" 107
A constrição de repetição: "Rememorar, repetir, perlaborar" 108
0 familiar que se tornou estranho ou "A ínquietante estranheza" 109
"Para além do princípio do prazer" 111
A pulsão de morte 113

Capítulo VIII
O masoquismo 119

"Uma criança apanha" 119


"0 problema econômico do masoquismo" 126
0 masoquismo ordinário na relação analítica 135

Capítulo IX
A regra fundamental, espaço da cura 141

0 fracasso da anál ise de Dora 143


A teoria da interpretação 143
0 amor de transferência 144
O Homem dos ratos 146
A regra fundamental 148
Um espaço para duas psiques 151

Capítulo X
A eficácia da psicanálise,
um benefício secundário da doença? 155

Capítulo XI
Para introduzir o sujeito na psicanálise 163

História de uma palavra 163


História de uma noção 164
0 avanço freudiano 168
0 aparelho psíquico 170

Capítulo XII
O estatuto da psicanálise na sociedade.
Um texto atual: A questão da análise profana 175

A furor sanandidos médicos 176


"A delicada técnica da psicanálise" 177
As implicações políticas 178
A psicanálise fará da sé 179

Capítulo XIII
Mitologia, cultura e religioso 181

A mitologia freudiana 181


O mundo grego 184
Culto do pai, culto dos mortos 186
Entre dois mundos: a figura de Moisés 188
0 judeo-cristianismo 188
Cultura e repressão das pulsões 192
0 sentido da culpa 193
0 mal-estar na cultura 194
O desencantamento do mundo 198
Metapsicologia freudiana 198
Capítulo XIV
Ética e visão do mundo. A psicanálise:
espaço extraterritorial de enunciação 201

Ética e metafísica 201


Emergência da lei 203
Espaço de enunciação 205
Ética e método 206

Bibliografia 207

índice onomástico 213


Introdução

Parece que tudo já foi dito e rédito, visto e revisto, interpretado e reinter-
pretado a respeito da obra e das descobertas de Freud. Acrescentar mais
um trabalho ao catálogo mais que exaustivo dos incontáveis ensaios sobre
Freud parece, nesse contexto, estar mais ligado à "compulsão de repeti­
ção” ou à obstinação efêmera de querer se inscrever a qualquer preço ao
lado de ilustres exegetas da obra freudiana.
Esta abordagem de Freud é, pois, deliberadamente parcial, fragmen­
tada, seletiva. Minha própria prática e os longos anos consagrados a reler
Freud nas traduções francesas ou inglesas, confrontadas com a versão
original em alemão, fizeram com que eu me encontrasse, o que não deixa
de ser divertido, em uma posição muito bem definida por Freud: “Toda
descoberta não é senão uma redescoberta”.
O objetivo deste trabalho é, pois, o de compartilhar com o leitor a
riqueza dessas redescobertas com aspectos do percurso e do pensamento
freudianos que nem sempre foram suficientemente explorados, esclareci­
dos, até mesmo compreendidos, em certos campos fundamentais, em sua
invenção da psicanálise.
Recorri a diversas edições das obras de Freud de acordo com o con­
texto ou com a pertinência da tradução, sem necessariamente privilegiar
Compreender

a escolha de determinado termo. Daí a freqüente referência aos termos


alemães e à minha própria tradução.
Cada um dos capítulos que se seguem constitui uma espécie de enti­
dade autônoma. Eles podem ser lidos separadamente. Alguns aspectos são
retomados ou reintegrados de modo deliberado entre um capítulo e outro,
ou entre uma questão e outra. Esse método me pareceu o mais pertinente e
menos redutor para dar conta dessa complexa teia de aranha que caracte­
riza o percurso de Freud e cada uma de suas descobertas importantes.
Com efeito, até o fim Freud inventa, acrescenta, esquece, retoma, anula
ou redescobre incansavelmente, às vezes deixando o leitor desconcertado,
não o deixando procurar o conforto em respostas definitivas que estariam
mais ligadas à “expectativa crente" ou a um desejo de saber puramente in­
telectual que a uma autêntica conduta analítica. “A teoria é algo bom, mas
ela não impede algo de existir”: esse adágio de Charcot, que marcou Freud
a ponto de acompanhá-lo ao longo de seus trabalhos, será a esse título um
dos leitmotius do presente trabalho, pois ele deve permanecer como uma
baliza para a concepção do uso da teoria e da escrita em Freud.
Mesmo que a obra de Freud e o freudismo sejam objeto de contestações,
de interpretações desconfiadas ou de exploração mais ou menos honesta,
algumas de suas descobertas, que tento esclarecer aqui, ainda demonstram
sua indiscutível pertinência e sua audaciosa modernidade, o que não pode
senão suscitar em psicanalistas e em psicoterapeutas uma grande vigilân­
cia em suas práticas.
Esse percurso é que eu gostaria de tentar lembrar, de 1890 a 1939, sem
necessariamente retomar por minha própria conta todos os argumentos de
Freud. Baseando-se nos tateios, nas dificuldades sucessivas com as quais
ele se encontrou e sobre as quais ele trabalhou com sua honestidade habi­
tual, o presente trabalho visa principalmente historicizar o pensamento de
Freud e situar-me como historiador do freudismo. Um paleofreudiano, diga­
mos, que quer sobretudo dar voz às palavras e aos escritos de Freud, mais
que procurar afogar seu percurso em um esperanto psicanalítico geral.

“Não, o dia ainda não está amanhecendo. Devemos velar com cuidado nossa
pequena luz; a noite ainda durará bastante’’1.

1 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance I, Carta de 29 de novembro de 1908, p. 251.


Capítulo I

Escritos e escrita de Freud

Certamente não é indiferença pelas pessoas ou


pelas coisas o fato de que nada saia de minha
pena. Isso fermenta e borbulha em mim, só me
resta esperar por um novo impulso (Schub)'.
Carta a Fliess

Freud teria adorado ser romancista, ele possuía uma grande cultura poética,
teatral e filosófica e lia muito. Escrever e pensar parecem ser duas coisas indis-
soluvelmente ligadas nele, que raramente passava um dia sem escrever, mes­
mo que fosse uma carta. Ele encontrava nisso um complemento indispensável
às longas horas passadas ouvindo seus pacientes e uma forma de explorar
todo o material acumulado por sua experiência, suas leituras e suas trocas.
O que salta aos olhos logo de saída na escrita de Freud é sua abundân­
cia e sua diversidade. Para desenvolver suas interrogações e suas descober­
tas sobre a nova técnica que está inventando, ele recorre a todo um leque
de estilos e de gêneros literários, todos eles modos diversos de escrita que
respondem e frequentemente se prolongam uns aos outros.
Para compreender melhor a maneira pela qual Freud elabora seus pen­
samentos, eis um trecho da carta que ele dirigiu a Fliess em 25 de maio de
1895, desculpando-se por não ter respondido antes à sua última carta: “Eu ti­
nha uma quantidade inumana de coisas para resolver e depois de dez a onze 1

1 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess 1887-1904. Carta 127 (16 de maio de 1897), PUF, 2006,
p. 308.
Compreender ; ;

horas de trabalho com as neuroses, eu estava constantemente incapacitado


para pegar a pena e escrever para você um pouco, quando eu teria muito a
dizer. A principal razão, no entanto, é a seguinte: um homem como eu não
pode viver sem uma mania, sem uma paixão dominante, sem um tirano,
para falar como Schiller*, tal como o que se tomou o meu. Doravante, por
minha vez, quando estou ao seu serviço não conheço nenhuma pondera­
ção. Trata-se da psicologia, desde sempre o objetivo que me chama de longe
e que, agora que encontrei as neuroses, se aproximou ainda mais”3. Aliás,
Freud havia tomado como emblema o de Claude Bernard: "trabalhar como
uma besta". E de fato ele nunca parava.

Diversidade dos gêneros literários

Os escritos de Freud podem ser agrupados em tomo de vários gêneros prin­


cipais, adotados em função do público visado, do assunto abordado ou das
circunstâncias que o levam a redigir um texto.
Mesmo que possa parecer paradoxal, os textos consagrados à história
da psicanálise não constituem a categoria de textos mais rica para o conhe­
cimento da psicanálise. São frequentemente textos políticos que respon­
dem a uma necessidade pontual e conjuntural de elaborar uma estratégia
ou uma resposta contra ataques ou incompreensões. Esse é o caso da Con­
tribuição à história do mouimento psicanalítico (1914d), que Freud escreveu para
afirmar sua oposição às teorizações de Jung e de Adler.
As histórias de doentes (Krcmkengeschichte) constituem outra forma de
escrita que Freud utiliza desde muito cedo, mesmo que às vezes ele se mos­
trasse cético sobre a capacidade dessa forma de escrita para relatar fielmen­
te os fatos clínicos observados. Essas histórias de doentes geralmente têm
como função confirmar ou infirmar contribuições ou descobertas teóricas.
Ao mesmo tempo, Freud se interessa deliberadamente pelo doente e por sua
história, mais que pela história da doença, que, segundo ele, diz respeito à
psiquiatria. O Caso Dora, que inicialmente se intitularia Sonho e histeria, reto­
ma o percurso de Ida Bauer durante as onze semanas de sua análise (a partir
de outubro de 1900), tendo em vista confirmar a teoria do sonho através dos 1

1 Alusão à Conjuração de Fiesco (I, 13), em que Bourgognino exclama "Tenho um tirano!”
quando se apaixona.
3 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, op, cit., Carta 64, p. 167.
Escritos e escrita de Freud

dois grandes sonhos de Dora; por fim, Freud escreveu esse texto na urgên­
cia de compreender o impasse em que ele se encontrou diante dela.
O caso do Homem dos ratos, que Freud tratou entre 1907 e 1908, permite-
lhe descobrir a neurose obsessiva ou neurose de coerção. Nesse texto, Freud
também confirma a verdadeira posição psíquica do analista, sobre a qual
ele tivera uma intuição nos Estudos sobre a histeria, mas que ele nem sem­
pre soube adotar diante do Homem dos ratos, o qual brutalmente recoloca
Freud em seu lugar de “terceira pessoa", esse terceiro, suporte da transfe­
rência, tal como Freud pressentira alguns anos antes, sem contudo poder
levá-lo realmente em consideração em sua prática analítica.
O caso do pequem Hans, que Freud acompanha durante o mesmo perío­
do, em 1908, apresenta a originalidade de desenvolver a fobia de uma crian­
ça de cinco anos que foi analisada por seu próprio pai, Max Graf. Freud re­
digiu esse texto baseando-se nas anotações de Max Graf e em suas próprias
observações, que confirmavam suas descobertas sobre as teorias sexuais
infantis e lhe permitiram descobrir o complexo de castração que precede o
complexo de Édipo.
Do mesmo modo, o caso do Homem dos lobos é a ocasião para Freud des­
tacar uma cena originária que teria um efeito traumático posterior (nachtrdg-
lich). Esse paciente se encontra assim considerado nas estratégias teóricas
de Freud e a serviço destas, logo ele que quer absolutamente opor-se aos
arquétipos de Jung, provando que houve essa cena originária para a criança,
no quarto de seus pais, enquanto o Homem dos lobos sustentará mais tarde
que era uma simples hipótese da qual ele não tinha nenhuma lembrança.
Esses textos ilustram em alguns pontos a sobredeterminação teórica
que está presente, enquanto estratégia teórica, na escrita de Freud. Eles
também evidenciam o fato, inédito na época, de que Freud instaura os su­
jeitos, os pacientes expostos à análise, na posição de descobridores e de
inventores da psicanálise. É a primeira vez que uma prática no campo da
psicopatologia precede a teoria.
Os escritos técnicos representam outra forma de escrita importante
para a compreensão da psicanálise e de sua prática. Esses textos, a maior
parte deles redigidos entre 1912 e 1914, destinam-se a permitir que o ana­
lista determine sua posição, o lugar psíquico que ele ocupa em relação ao
paciente. A maioria deles foi reunida em A técnica psicanalítica. Será particu­
larmente nesses textos que Freud questionará algumas de suas concepções
anteriores sobre a transferência e o desenrolar da cura. Sua redefinição da
Compreender f >

posição do analista, em “Conselhos aos médicos”, “A dinâmica da transferên­


cia” ou “Rememorar, repetir, perlaborar" será capital e determinante para a
prática da análise freudiana.
Outro grupo de escritos é constituído pelos escritos metapsicológicos.
Os cinco mais importantes foram redigidos por Freud no espaço de seis
semanas, após um período de descanso ou de latência impressionante. O
termo “metapsicologia” é uma invenção de Freud, que o emprega pela pri­
meira vez em uma carta a Fliess de 13 de fevereiro de 1896. Esse neologis-
mo, criado por analogia e em oposição à "metafísica”, é usado por ele para
designar tudo o que diz respeito à análise dos processos psíquicos segundo
três registros: dinâmico, tópico e econômico. Os escritos metapsicológicos
permitem, pois, que o analista confronte os processos psíquicos do paciente
com os próprios processos psíquicos do analista, o qual entretanto é porta­
dor de fragmentos de teorização. Como todos os neuróticos — e para Freud
não há ninguém que não seja neurótico —, o analista é portador de teorias
sexuais infantis, de teorização do complexo de castração, de teorização do
“declínio do complexo de Édipo”. O analista é portador de hipóteses, in­
dependentemente do que se poderia chamar de "conceitos fundamentais”,
segundo a expressão de Freud. Dentre essas hipóteses, que podem ser re­
vistas, pode-se evocar a passagem da constrição de repetição para a pulsão
de morte: toda a questão é a de saber se essa passagem da constrição de
repetição para a pulsão de morte pode ser considerada um avanço teórico
ou uma resistência intelectual diante da morte de “pessoas caras” e de levar
em consideração o feminino.
Esses escritos estão estreitamente relacionados com os textos de análi­
se da cultura, pois são portadores de teorias nas quais não se leva em conta
apenas uma teoria intrapsíquica da neurose ou dos processos psíquicos do
paciente, mas também é preciso articular a fatores culturais que intervém
no mal-estar do paciente. Em uma carta a Jung de 19 de dezembro de 1909,
Freud escreveu o seguinte: “O Senhor observou que as teorias sexuais infan­
tis são indispensáveis para a compreensão dos mitos?”. Por exemplo, o texto
sobre “As teorias sexuais infantis”, que Freud escreveu em 1908, no âmbito
de um diálogo com Jung, para mostrar a dimensão psicogenética das teo­
rias sexuais infantis, é contemporâneo de outro texto, “A moral sexual da
cultura e o nervosismo moderno" (1908): texto realmente moderno e quase
reichiano, em certos aspectos, mostra até que ponto elementos da cultura
são fatores de neurose.

16
Escritos e escrita de Freud

Totem e tabu também representa uma tentativa de esclarecer a ques­


tão das origens da sociedade, particularmente o sentimento de culpa ligado
à problemática do pai. Esse ensaio, concebido como um "mito científico”,
como um mito etiológico, não se situa em um ponto de vista histórico, ca­
racterística que foi bastante criticada. Freud se interessa não tanto pelos
acontecimentos, mas sim por aquilo que pôde constituir a origem da condi­
ção humana e a entrada na cultura, colocando em cena o mito da morte do
pai. O assassinato do pai é a condição do pacto dos irmãos, isto é, a condição
da vida em sociedade, porque ele permite a emergência da Lei, portanto a
proibição do incesto e a limitação das pulsões.
Do mesmo modo,"O declínio do complexo de Édipo”, de 1923, é de certa
forma um texto clínico que seria esclarecido pela observação das incidên­
cias da cultura sobre a constituição da subjetividade. É um texto que reflete
sobre o que Lévi-Strauss chama de "regras de parentesco", que não provêm
nem de leis positivas nem da simples consciência.
Por fim, em O mal-estar na cultura (1930), Freud mostra que a cultura en­
quanto tal (não se trata apenas da família e do complexo de Édipo) é fonte
de conflito, de um mal-estar. A cultura (Kultur) coloca a questão da relação
do homem com o homem, e da palavra que é condição para isso. Esses es­
critos, que focalizam fatores extrapsíquicos que intervém no mal-estar do
paciente, também devem ser levados em consideração na teoria psicanalíti-
ca e dizem respeito ao deciframento da cultura e às incidências desta sobre
a constituição do sujeito e da subjetividade.
Seria justo encerrar este inventário mencionando a enorme correspon­
dência de Freud com sua noiva, em primeiro lugar, e depois com seus amigos,
discípulos e colegas. Não há nenhuma carta que não aborde algum aspecto
teórico, uma questão, uma busca de intercâmbio e de aprofundamento das
pesquisas em curso para Freud. Jones cita a esse respeito as palavras de Marie
Bonaparte: "Falando evidentemente de si mesmo, mas expressando-se de um
modo geral, Freud declarou um dia: 'Ninguém escreve para obter fama, que é
algo transitório, em outras palavras, uma ilusão de imortalidade. Escrevemos
sobretudo para satisfazer algo dentro de nós mesmos, não para os outros.
Naturalmente, se os outros aprovarem nosso esforço, isso contribuirá para
aumentar nossa satisfação interior, mas apesar de tudo é sobretudo para nós
mesmos, para obedecer a uma pressão interna que escrevemos’'1. 4

4 E. Jones, La Vie et L’ceuvre de Sigmund Freud, tomo II, PUF, 1972, p. 421-422.

17
Compreender :iíj|t

O fragmentário

Essa diversidade de escritos e essa abundância de textos não deixam de


colocar problemas para quem quiser apreender a evolução das pesquisas
e das descobertas freudianas. Em seu livro de testemunho sobre Freud,
Hanns Sachs relata sua surpresa diante do fato de que Freud muito rara­
mente corrigia o que escrevia: "Quando ele começava a escrever, o processo
se desencadeava de modo quase automático sob o impulso interno de fra­
ses organizadas previamente”5 6 7.
Isso está de acordo com a reflexão que Freud comunicou a Braun, pre­
sidente americano da B'nai B’rith, e que este último relata: "Quando me
instalo em meu trabalho e pego meu lápis, eu sempre me pergunto o que
vai acontecer e é isso que me leva irresistivelmente a trabalhar”8.
Freud procede preferencialmente, segundo sua própria observação, por
“fragmentos”. A correspondência de Freud confirma a constância dessa ob­
servação. Em 29 de maio de 1908, escreve a Jung: “Tenho muitas coisas em
mãos, mas tudo é fragmentário, consigo efetuar as sínteses com muita difi­
culdade e somente em momentos particularmente favoráveis'’’. Do mesmo
modo, ele confidencia a Lou Andreas-Salomé em uma carta de 2 de abril de
1919: “Onde está minha Metapsicologia? Em primeiro lugar, ela não está es­
crita. A elaboração sistemática de um material é-me impossível, a natureza
fragmentária de minhas experiências e o caráter esporádico de minha ins­
piração não o permitem”8. Dois anos depois, escreve a Groddeck, em 17 de
abril de 1921: “Possuo um talento particular para encontrar contentamento
no fragmentário”9.
Esse talento particular, que não combina bem com a síntese e não pode
senão extraviar um leitor ávido de certezas, é precisamente o procedimento
que ele acaba de inventar e que ele assume, como enfatiza esta carta a Lou
Andreas-Salomé, em 1915: “Raramente sinto essa necessidade de síntese. A
unidade desse mundo me aparece evidente, não merecendo ser menciona­
da. O que me interessa é a separação e a organização daquilo que, de outro
modo, se perderia em um mingau originário. [...] Em suma, sou ao que tudo

5 Hanns Sachs, Freud, mon maitre et mon ami, Paris, Denoèl, 1977.
6 Apud H. Knoepfmacher, Freud and the B'nai B'rith, Journal of the American Psychoanalytic
Association, 27: 447 (1979).
7 S. Freud-C. G. Jung, Correspondence, tomo I, Gallimard, 1975, p. 221.
8 Lou Andreas-Salomé, Correspondance auec Sigmund Freud, Gallimard, 1970, p. 122-123.
9 Georg Groddeck, Ça et Moi, Lettres à Freud, Ferenczi et quelques autres, Gallimard, 1977, p. 70.
Escritos e escrita de Freud

indica um analista e creio que a síntese não apresenta nenhuma dificulda­


de desde que se esteja de posse da análise’,,°.
Jones relata o que Freud disse ao longo de um intercâmbio com Marie
Bonaparte a respeito de sua desconfiança comum por quem pede certezas:
“Os espíritos medíocres exigem da ciência que ela lhes traga um tipo de
certeza que ela não poderia oferecer, uma espécie de satisfação religiosa.
Somente as raras mentes genuinamente, realmente científicas mostram-se
capazes de suportar a dúvida que está ligada ao todos os nossos conheci­
mentos. Sempre sinto inveja dos físicos e dos matemáticos que têm certeza
de seus feitos. Eu, por assim dizer, plano nos ares. Os fatos psíquicos pa­
recem incomensuráveis e provavelmente permanecerão desse modo para
sempre”11. Encontra-se nessa passagem um eco do que Nietzsche escrevia:
“Não é a dúvida que deixa louco, é a certeza”.
Em uma carta a Groddeck, de 28 de novembro de 1920, Freud vai ainda
mais longe: “Eu sou, com efeito, um herético que ainda não se transformou
em fanático. Os fanáticos, as pessoas que são capazes de levar solenemente
a sério sua estreiteza de espírito, eu não os suporto. Se for conservada ape­
nas a sua superioridade e se souber o que se faz, poderão ser feitos todos os
tipos de coisas que saem da linha”10 11 12.

Desvios e tateios

De fato, Freud geralmente favorece uma abordagem prudente, expondo


descobertas que não puderam ser confirmadas, sem passar sob silêncio os
impasses ou as questões não resolvidas, e reservando-se o direito de modi­
ficar suas revelações se preciso. Ele prefere o questionamento e o diálogo à
teorização, do mesmo modo que Charcot, de quem ele retomou o adágio:
“A teoria é algo bom, mas não impede algo de existir”. Em uma de suas
Conferências de introdução à psicanálise intitulada “A fixação no trauma. O in­
consciente”, ele escreve:

Senhores, devo agora fazer-lhes esta pergunta: o que eu lhes digo aqui está ex­
cessivamente obscuro e complicado? Não terei eu semeado a confusão em suas

10 Carta de 30 de julho de 1915, op. dt., p. 43-44.


11 E. Jones, La Vie et 1‘ceuvre de Sigmund Freud, tomo II, PUF, 1972, p. 442.
12 Georg Groddeck, Ça et Moi, op. cit., p. 58.
Compreender

mentes ao retirar com tanta frequência coisas que eu disse e fazendo restrições,
esboçando caminhos de pensamento para abandoná-los logo em seguida? Isso
me deixaria desconsolado. Mas tenho uma grande aversão às simplificações
que são feitas em detrimento da fidelidade à verdade; não ficarei descontente se
vocês acabarem tendo uma ideia justa da multiplicidade e do entrelaçamento
dos aspectos do objeto em toda a sua amplitude, e também digo a mim mesmo
que não é algo tão grave assim se, a respeito de cada ponto, eu lhes disser mais
do que aquilo de que vocês puderem fazer uso imediatamente13.

Uma das características desorientadoras de seu procedimento é o fato


de que ele adianta uma ideia, esquece-a, retoma-a ou renuncia a ela sem
aviso, volta atrás, sem grande preocupação em anunciar quando muda de
direção. Do mesmo modo, seu estilo procede por esboços, por associações,
utilizando de bom grado a parataxe ou o anacoluto, introduzindo sem alar­
de um novo elemento em uma frase modificando completamente sua or­
dem original para chegar a uma organização totalmente diferente. Em um
mesmo texto, ele chega a adiantar um ponto, abandoná-lo durante algum
tempo e depois retomá-lo. Freud é, de fato, um "respigador" impenitente e
obstinado, segundo a expressão que ele utiliza em “Os atos falhos”14.
Patrick J. Mahony escreve com propriedade: “O estilo de Freud é essen­
cialmente centrado em uma série de asserções nucleares que formam uma
espécie de 'patchwork' com múltiplos motivos que cabe ao paciente, em úl­
tima análise, sistematizar. Seu pensamento não se apresenta sob uma forma
linear, em que 1 conduziria a 1.1,1.2 e assim por diante. Quando ele põe uma
ideia em ação, ele é capaz de impeli-la de modo hiperbólico até o ponto extre­
mo em que ela acaba por contradizer a si mesma para então passar para ou­
tra ideia, oposta ou paralela, e seguir novamente o mesmo procedimento”15.
Mais adiante, Mahony ilustra esse procedimento de modo ainda mais
saboroso:

Ocorre de a prosa, tomada por seu impulso, estabelecer uma assimilação implí­
cita entre idéias divergentes sem que a menor relação lógica venha indicar essa

13 S. Freud, Conferences (introduction à la psychanalyse (1916-1917), Gallimard, 1999, p. 359-


360.
14 “Talvez tenhamos ainda o ganho inesperado de fazer alguma respiga", diz ele a respeito
de suas observações sobre o lapso: Les actes manqués, in Conferences d'introduction à la psychana-
lyse (1916-1917), Gallimard, 1999, p. 89.
15 Patrick J. Mahony, Freud, lecriuain, Les Belles-lettres, 1990, p. 176.

20
Escritos e escrita de Freud

mudança de direção. Em outros momentos, o estilo de Freud evoca um peso pesa­


do que não se preocupa nem um pouco com o que se encontra em seu caminho,
como é o caso na história do homem que leva ao seu proprietário uma caldeira
que lhe havia sido emprestada, e que ele havia danificado, dizendo-lhe, em pri­
meiro lugar, que ele nunca a havia tomado emprestada, que, em segundo lugar, a
caldeira estava furada, e, em terceiro lugar, que ele a devolvia em bom estado16 *.

Freud está perfeitamente consciente desses caminhos tortuosos e de


suas oscilações, que são objeto de numerosas críticas e alimentam as cen­
suras de seus detratores. Em 6 de dezembro de 1906 ele escreve a Jung:

Tenho de lidar, como o Senhor bem sabe, com todos os demônios que podem ser
lançados contra o "inovador”; um deles, não o mais dócil, é a obrigação de apa­
recer aos meus próprios partidários como rabugento (Griesgram) ou como faná­
tico, incorrigível e que quer sempre ter razão, algo que não sou de modo algum.
É compreensível que, deixado tanto tempo sozinho com minhas opiniões, eu
tenha sido conduzido a ter aumentada a minha confiança em minhas próprias
decisões. Uma ocupação de quinze anos, sempre aprofundada e que chegou há
anos a uma exclusividade monótona, cria em mim além disso uma espécie de
resistência contra convites para aceitar coisas divergentes11.

E até o final ele reivindica seu método de abordagem e de escrita, como


mostram estas linhas escritas em 1939 em Moisés e a religião monoteísta: “A
força criadora de um autor infelizmente nem sempre obedece à sua von­
tade; a obra encontra seu caminho e posta-se frequentemente diante do
autor como uma coisa independente, até mesmo estranha”18.
Procedendo por justaposição, por elipse, Freud deixa espaços, deixa
coisas implícitas, o que obriga o leitor a preenchê-los, a detectar por conta
própria os vínculos possíveis entre diferentes segmentos do pensamento.
Em vez de encerrar suas formulações em uma malha de articulações lógi­
cas, que possuiriam o valor de verdade definitiva, irrefutável, Freud deixa
um espaço aberto, uma incitação à compreensão e à interpretação do leitor,
obrigando-o a colocar-se em uma postura de pesquisador.

16 Ibid., p. 179.
11 S. Freud-C. G. Jung, Correspondence, tomo I, Gallimard, 1975, p. 51.
18 S. Freud, L'Homme Moise et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 201.

21
Compreender FREIMl

Daí a importância de periodizar, de datar os diferentes textos de Freud


para não se perder em seus tateios e meandros, para seguir o que Mahony
corretamente chama de sua “técnica itinerante”, que o guia em sua prática
e em seus escritos, e para melhor definir o que constitui a lenta estratifi-
cação de uma descoberta tanto através dos longos silêncios de gestação
ou de dúvida quanto em sua formulação teórica mais estável, mas sempre
em evolução, obrigando o leitor a “gerar" seu próprio pensamento e suas
próprias teses, sem parar, a “respigar” como Freud as afirmações e os ques­
tionamentos, sem “venerar seus erros como relíquias”, como ele escreveu a
Jung, em 1° de dezembro de 1909: “Sua suposição de que após minha apo­
sentadoria meus erros poderiam ser venerados como relíquias me alegrou
bastante, mas não encontrou nenhuma crença dentro de mim. Pelo contrá­
rio, acredito que os jovens se apressarão em demolir tudo aquilo que não
estiver cravado nem pregado em minha herança. Com efeito, na psicanálise,
muitas coisas se desenrolam de modo inverso ao dos outros processos”19.

19 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance I, Gallimard, 1975, p. 361.


Capítulo II

A formação de Freud

Uma pessoa que partisse em busca do Graal sabendo que


o Graal não existe possuiria uma grande vantagem: ela
poderia andar bastante nos países e nos lugares que mais lhe
agradam (esse Graal seria a verdade absoluta e definitiva da
análise). Pode-se correr muito nessa floresta de Brocéliande.
O. Mannoni, Un commencement qui n'enfinit pas

Freud seguiu a formação de neurologista e, segundo o costume, a eletrote-


rapia era associada a banhos e massagens. No entanto, quando jovem ele
ficara com uma forte impressão de um magnetizador:

Ainda estudante assisti a uma apresentação pública do “magnetizador” Hansen


e pude observar que uma de suas cobaias humanas ficou pálida como um mor­
to quando caiu em rigidez cataléptica e que permaneceu desse modo enquanto
esteve nesse estado. O efeito que isso teve foi o de dar um sólido fundamento à
minha convicção da autenticidade dos fenômenos hipnóticos1.

Freud se interessou muito cedo pelo uso da hipnose em certos tratamen­


tos, o que o conduziu a se aproximar dos raros médicos que recorreram a ela
na época: Charcot na Salpêtrière, em Paris, a escola de Nancy com Liébeault e
Bemheim, e seu colega vienense Breuer. Esses encontros e tudo o que ele ob­
servou durante esses anos de formação pessoal lhe permitirão elaborar sua
própria abordagem, lançando mão dessa herança e superando-a. Superação

1 Sigmund Freud presente par lui-même (1925-1935), Gallimard, 1984, p. 28.


Compreender : i f H ki­

na qual o encontro de Freud com Fliess, assim como a correspondência que


eles mantiveram serão determinantes para a invenção da psicanálise

Jean-Martin Charcot (1825-1893)

A hipnose era então considerada nos meios médicos uma fraude, uma prá­
tica popular indigna de interesse, exceto por alguns médicos como Paul-
Julius Moebius2, que levou essa prática a sério, assim como por um cirurgião
de Bordeaux, Eugène Azam3. Tendo observado que a hipnose favorecia o
desdobramento da personalidade, este último a utilizou de modo puramen-
te instrumental, fazendo sob hipnose anestesias e intervenções cirúrgicas.
Charcot introduziu a prática da hipnose na Salpêtrière, primeiramente no
plano médico, e depois passou a utilizá-la nos casos de histeria quando ele
pôde constatar que um grande hipnotismo caracterizava o que ele chama­
va de uma grande histeria. Ela se tomou um meio de experimentar em al­
guém a capacidade de observar se se tratava de uma histeria enquanto afec-
ção neurológica.
Freud obteve uma bolsa pós-doutoral para ir a Paris e acompanhar os
trabalhos de Charcot na Salpêtrière, de outubro de 1885 a maio de 1886.
Médico muito famoso no grande mundo parisiense, Charcot tomou-se co­
nhecido por seus trabalhos em neurologia na Salpêtrière, onde ele se tomou
o patrono francês da neurologia e da anatomopatologia.
Além dos métodos terapêuticos em voga na época (eletroterapia, hidro-
terapia, magnetoterapia, metaloterapia etc.), mas também a suspensão de
Moutchotkowski que ele descreveu detalhadamente, esse psiquiatra antes
da hora fez a hipnose entrar no espaço da instituição. E ele a utilizou como
método de pesquisa. Em sua tentativa de separar o que está ligado ao orgâ­
nico e o que está vinculado ao psíquico, ele descreveu o grande e o pequeno
hipnotismo, a título de neurose experimental, e refletiu sobre a sugestão so­
bre o histérico. Essas experiências conduziram-no a reconsiderar a etiologia
e a levar em consideração o que ele chamou de “o choque nervoso”, "o abalo
psíquico” e a “autossugestão”.
Durante seu estágio, Freud começou com trabalhos de histologia do
sistema nervoso — a especialidade de Charcot na época — e depois, seguindo

2 Paul-Julius Moebius (1853-1907).


3 Eugène Azam (1822-1899).
A formação de Freud

sua consulta a cada manhã, assistindo a suas “Aulas da terça-feira” acompa­


nhadas por apresentações clínicas e as da sexta-feira, mais teóricas, ele se
interessou pela histeria, sobre a qual Charcot desenvolvia então pesquisas.
A invenção francesa da histeria à qual Freud assiste na verdade arranca
esta última da neurologia, mesmo que Charcot ainda invoque uma causali­
dade fisiológica do psiquismo, mas sem lesões neurológicas. Ela também a
afasta de toda ideia de degenerescência, que era sustentada pelos alienistas
da época, particularmente o principal rival de Charcot, Benjamin Ball, que
era então titular da cátedra de doenças mentais e do encéfalo. A utilização
que Charcot fez da hipnose reintroduziu na medicina um domínio que até
então pertencia aos charlatães e curandeiros. A simples sugestão hipnótica
podia curar paralisias histéricas induzidas pelo médico.
Freud foi notado por Charcot em virtude de sua inteligência e recebeu
deste a incumbência de acompanhar doentes junto com Gilles de La Touret-
te. Por fim, Freud lhe propôs a tradução de suas Lições sobre as doenças do
sistema nervoso (Tomo III), cuja tradução foi publicada em Viena em 1886
com um prefácio de Freud. Retomando a Viena, ele também publicou uma
tradução das “Aulas da terça-feira” na Salpêtrière (1887-1888) em 1894*, ain­
da que a tradução tenha sido feita em 1892, como demonstra o prefácio
datado de 1892.
Em uma carta à sua noiva Martha de 24 de novembro de 1885, Freud
fala dele com ardor:

Charcot, que é um dos maiores médicos e cuja razão beira a genialidade está
simplesmente demolindo minhas concepções e meus planos. Saio de seus cur­
sos como eu saía de Notre-Dame, cheio de novas idéias sobre a perfeição. Mas
ele me esgota e quando o deixo, não tenho mais nenhuma vontade de trabalhar
em meus próprios trabalhos, tão insignificantes. [...] Nenhum outro homem ja­
mais teve tanta influência sobre mimJ.

De fato, graças a Charcot, Freud deixará seu campo de estudos original,


a històlogia e a anatomopatologia, e aprenderá a diferenciar a patologia psí­
quica da patologia física. Ele aprendeu a estabelecer um diagnóstico dife­
rencial, a ter contato com os doentes e o diálogo que Charcot instaurou em 4 5

4 J.-M. Charcot, Leçons du mardi (1887-1888), reedição Jacques Sédat, Tchou, Les introuva-
bles, 2002, 2 vols.
5 S. Freud, Correspondance (1873-1939), Gallimard, 1991, p. 197.
Compreender :

suas famosas aulas da terça-feira. Essas “Aulas da terça-feira” são uma lon­
ga transcrição da parte teórica que ele podia defender, assim como reuniões
públicas com seus alunos diante de doentes. A de 17 de janeiro de 1888 (logo
após a estada de Freud em Paris), oferece-nos uma viva ilustração dessas
aulas. Charcot começa essa aula com uma curta exposição teórica sobre
as formas de tratamento para a histeria (hidroterapia, eletrização estática,
sugestão hipnótica eventual e prescrição de tônicos). Depois podemos ler in
uiuo e in situ o método de Charcot, com uma de suas doentes, uma mulher
jovem acompanhada por sua mãe:

— Sr. Charcot: Que idade a senhorita tem?


— A doente: Vinte e dois anos.
— Sr. Charcot: A senhorita tem ataques desde quando?
— A doente: Desde o dia 24 de dezembro.
— Sr. Charcot: Há alguma causa que a senhorita possa invocar?
— A mãe da doente: Não conhecemos nenhuma.
— Sr. Charcot: Sua filha foi contrariada?
— A mãe: Não, senhor, mas ela se contraria facilmente, ela fica nervosa com
qualquer coisa há algum tempo.
— Sr. Charcot: Ela teve alguma doença aguda recentemente?
— A mãe: Não, senhor.
— Sr. Charcot: Qual é a profissão dela?
— A mãe: Ela é lavadeira, ela passa roupa.
— Sr. Charcot: Ela trabalha muito?
— A mãe: Sim, senhor, há vários meses.
— Sr. Charcot: Senhores, eu posso dizer, graças a uma pequena nota que tenho
em mãos e que me foi repassada por meu chefe de clínica, que a doente apresen­
ta nas duas mãos, sobretudo na direita, certo grau de paresia e, ao mesmo tempo,
uma anestesia cutânea disposta como na doente que estudamos há pouco.

Nesse diálogo, pode-se observar que a mãe fala no lugar de sua filha e
que ela fala dela como se fosse um objeto. Estamos diante de um discurso
fusional, o da mãe, porta-voz da doente. Charcot, por sua vez, recorre a dois
tipos de discurso: um discurso alocutivo, quando ele se dirige à doente, e
um discurso delocutivo, quando fala de sua doente na terceira pessoa, quan­
do ela está presente, dirigindo-se diretamente ao seu público.
Mais adiante, ele pede à mãe que descreva essas famosas crises de
ataques:

26
A formação de Freud

— A mãe: Ela começa caindo no chão, ela rola, ela morde, ela rasga tudo o que
alcança, ela grita; seu olhar se toma fixo e depois ela se levanta, nos segue e se
joga sobre nós.
— Sr. Charcot: Eis uma boa descrição, e podemos reconhecer aqui as caracte­
rísticas do grande ataque de acordo com nossa descrição: 1) em primeiro lugar,
é o período dos grandes movimentos; depois, 2) o das atitudes passionais. Ela
rola, se rasga, e então repentinamente fixa seu olhar em um ponto: evidente­
mente uma visão se apresenta a ela, e os movimentos que ela executa nesse
momento estão de algum modo subordinados à alucinação.
— A mãe: Em alguns momentos ela parece feliz, ela ri e então parece ver algu­
ma coisa que a apavora.
— Sr. Charcot: Assim sucessivamente ela tem visões alegres, e depois visões
tristes: essa é de algum modo a regra. Ela fala?
— A mãe: Sim, ela fala de uma coisa e depois de outra; às vezes ela me chama,
ou então ela diz que vê um homem barbudo.
— Sr. Charcot: Um homem?
— A mãe: Sim, às vezes um homem, mas outras vezes uma mulher. O homem
que ela vê é feio, assustador!
— Sr. Charcot: Talvez haja aí uma história que é inútil aprofundar neste mo­
mento. Sabemos o suficiente para dizer que não se trata de epilepsia e sim de
histeria sob a forma de grande histeria ou histero-epilepsia com crises mistas6 7.

Charcot prescreverá então um dos tratamentos já evocados, pois para


ele, assim como para Janet pouco tempo depois, a histeria era uma forma
de psicastenia, de fraqueza associativa, na qual a pessoa se deixa sobrepu­
jar por representações que não são dela, mas sim corpos estranhos. Não
se sabe o que aconteceu com essa jovem, mas suas representações e suas
visões não foram levadas em consideração.
Eis o que Freud conta sobre sua estada com Charcot:

Dentre tudo o que vi com Charcot, o que mais me impressionou foram suas últi­
mas pesquisas sobre a histeria que foram conduzidas em parte ainda na minha
presença. Estou falando da demonstração da autenticidade e da regularidade
dos fenômenos histéricos (“Introite et hic dii sunt"1), da ocorrência freqüente da

6 Charcot, Leçons du mardi, sétima aula, p. 59-60.


7 A fórmula exata — "Introite, et mm hic dii sunt” (“Entre, aqui também há deuses") — havia
sido tomada de Aulo Gélio por Lessing, como epígrafe a Nothm, o sábio. Freud também cita essa

27
Compreender vi;

histeria nos homens, da produção de paralisias e de contraturas histéricas por


sugestão hipnótica, da conclusão de que esses produtos artificiais apresentam
até nos detalhes as mesmas características que desencadeamentos espontâneos,
frequentemente provocados por traumatismo. Muitas demonstrações de Charcot
inicialmente provocaram em mim, assim como em outros ouvintes, perplexidade
e uma tendência a uma contradição que procurávamos reforçar referindo-nos a
uma das teorias em voga. Ele refutava tais objeções, sempre com amabilidade e
paciência, mas também com muita determinação8.

No necrológio que escreveu em agosto de 1893, alguns dias após a mor­


te de Charcot, Freud volta a tratar daquilo que o marcou nesse encontro e
nesse ensinamento:

Charcot nunca se cansou tampouco de defender contra as usurpações da me­


dicina teórica os direitos do puro trabalho clínico que consiste em observar e
em ordenar. Éramos um pequeno grupo de estrangeiros reunidos que, criados
na fisiologia acadêmica alemã, o importunávamos questionando suas inovações
clínicas: "Mas não pode ser”, objetou-lhe uma vez um de nós, “isso contradiz a
teoria de Young-Helmhotz”. Ele não respondeu: “Tanto pior para a teoria, os fatos
da clínica têm preferência" etc., mas ele nos disse algo que nos deixou uma forte
impressão: “La théorie, c'est bon, mais ça nempêche pas d’exister”9 10.

Freud retém de Charcot essa lição do primado dos fatos sobre a teo­
ria, ideia que ele retomará particularmente em “Análise terminada, análise
infinita’’18, evocando ironicamente o recurso em certos casos difíceis à "feiti­
ceira metapsicologia”, isto é, a um uso defensivo da teoria durante as sessões.
Além disso, retomando a hipótese de Charcot segundo a qual “é sempre a
coisa genital" que está em jogo na "bela indiferença da histérica”, Freud abrirá
assim o caminho para uma teoria sexual das neuroses.

frase em uma carta a Fliess (4 de dezembro de 1896): “A respeito de meus trabalhos, já posso lhe
revelar as epígrafes. No começo da psicologia da histeria, ler-se-á esta altiva frase: Introite et hic
dii sunt (esse texto nunca foi escrito).
8 Sigmund Freud par lui-méme, op. cit., p. 22-23.
9 "A teoria é algo bom, mas não impede algo de existir”. S. Freud, Charcot (1893f), in Résul-
tats, idées, problèmes, tomo 1, PUF, 1984, p. 63 (a frase de Charcot é citada por Freud em francês).
10 “Analyse finie, analyse infinie” (1937c), cap. 3, in Résultats, idées, problèmes, tomo II, PUF,
1985, p. 240.

28
A formaçao de Freud

Mas Freud rapidamente se distancia da obra de Charcot que, preocupa­


do sobretudo em encontrar uma explicação fisiológica para os fenômenos
« histéricos, procura mais estabelecer diagnósticos do que levar emconside­
ração os efeitos da palavra de seus pacientes. Além disso, desde o trabalho
com Elisabeth von R., em 1892, Freud se separa definitivamente da neurolo­
gia com uma nova abordagem da histeria quando ele estabelece que "a his­
térica sofre essencialmente de reminiscências”. No fim de seu necrológio,
ele recapitula a contribuição e os limites de Charcot:

O estudo por Charcot dos fenômenos hipnóticos nas histéricas contribuiu mui­
to para o desenvolvimento do importante campo de fatos até então negligen­
ciados e desprezados, pois o peso de seu nome pôs fim de uma vez por todas
à dúvida sobre a realidade das manifestações hipnóticas. Mas a matéria pu­
ramente psicológica não suportava o tratamento exclusivamente nosográfico
que ela encontrava na Escola da Salpêtrière. A limitação do estudo da hipnose
às histéricas, a distinção entre o grande e o pequeno hipnotismo, o estabeleci­
mento de três estágios da "grande hipnose” e sua caracterização por fenômenos
somáticos, tudo isto desmoronou na apreciação dos contemporâneos quando
Bemheim, aluno de Liébeault, ediftcou a doutrina do hipnotismo sobre uma
base psicológica mais ampla e quando ele fez da sugestão o núcleo da hipnose.
Somente os adversários do hipnotismo, que se contentam em dissimular sua
falta de experiência pessoal pela referência a uma autoridade, ainda se agarram
às posições de Charcot e gostam de utilizar uma declaração de seus últimos
anos que nega todo poder curativo à hipnose”.

Hippolyte Bernheim (1840-1919)

Freud passou um período na escola de Nancy, em 1889, para acompanhar


os trabalhos de Bemheim, do qual ele traduziu o livro Da sugestão no estado
hipnótico e no estado de vigília (1884). Essa escola, então dirigida por Bemheim,
tinha como verdadeiro fundador Auguste Liébeault11 12, médico rural censurado
por seus colegas por praticar a hipnose abertamente e por não cobrar hono­
rários. Freud evoca seu encontro: "Com a intenção de aperfeiçoar minha téc-

11 S. Freud, Charcot, op. cit., p. 72-73.


12 Auguste Liébeault (1823-1904).

29
n
Compreender

nica hipnótica, no verão de 1889 fui para Nancy, onde passei várias semanas.
Vi o velho Liébeault, que comovia no trabalho que praticava com mulheres e
crianças pobres da população trabalhadora; fui testemunha de experiências
surpreendentes de Bemheim com pacientes hospitalares; e eu trouxe comigo
as impressões mais fortes da possibilidade de processos psíquicos podero­
sos, que não por isso deixam de fugir da consciência do homem’’13.
Liébeault fora marcado pelas teorias de Messmer (1734-1815) sobre o
magnetismo animal. Para esse médico austríaco, o fluido animal seria um
meio entre o homem e as forças energéticas do universo. O que ele também
chamava de “relação", termo que Freud guardará consigo. Essa relação en­
tre as forças cósmicas e o homem estaria tanto na origem da doença como
na origem da saúde ou da cura. Messmer utilizava tinas nas quais ele colo­
cava as pessoas e que supostamente concentravam o fluido animal e agiam
como um meio entre as forças cósmicas e o ser humano. Ele agia graças à
confiança que depositavam nele. Ele foi um dos primeiros a realizar uma
abordagem da histeria e da sugestão, observando a influência do psiquismo
sobre a neurofrsiologia.
Bemheim era uma sumidade médica muito respeitada, mas ele ousara
visitar Liébeault, que o curara de uma ciática, em 1882. A partir de então
ele decidiu aplicar o método hipnótico em seu trabalho e tornou-se o líder
da escola de Nancy.
Ele via no método de Liébeault uma interessante possibilidade de uti­
lizar a sugestão, não de modo experimental, mas para curar: “Tudo está na
sugestão”, isto é, tudo está na relação, na relação entre sujeitos. Os fenôme­
nos hipnóticos existem sem sono ou sono provocado. A hipnose coloca em
jogo a sugestibilidade, ela não está ligada de modo algum à histeria, ela é
apenas um procedimento terapêutico que recorre à sugestão verbal: “Defino
sugestão em seu sentido mais amplo: é o ato pelo qual uma ideia é introdu­
zida no cérebro e aceita por ele”. Em outras palavras, a palavra encontra sua
eficácia na sugestão que consiste em colocar outra pessoa em certa posição
física ou psíquica. Isso o diferencia de Charcot, para o qual a hipnose estava
ligada à fraqueza psicológica da histérica. O sono artificial possui a mesma
natureza que o sono natural.
Freud começou, ele também, a praticar a sugestão hipnótica a partir do
final do ano 1887:

13 S. Freud présenté par lui-même, op. cit., p. 30.

30
A formação de Freud

Em Paris, eu vira que a hipnose era usada sem nenhuma reserva como método
próprio para criar e para logo suprimir sintomas nos doentes. Depois nos che­
gou a notícia de que fora criada a escola de Nancy, uma escola que utilizava
com fins terapêuticos a sugestão com ou sem hipnose, e isto em uma grande
escala e com particular sucesso. Aconteceu de naturalmente, durante os pri­
meiros anos de minha atividade médica, e levando em consideração métodos
psicoterapêuticos antes ocasionais e não sistemáticos, de a sugestão hipnótica
se tomar meu principal instrumento de trabalhow.

Entretanto, Freud não chega a dominar a hipnose e se interroga sobre a


verdadeira eficácia dessa prática, perguntando-se se ela não mascara uma re­
sistência, impedindo desse modo o acesso à verdadeira causa da doença. Então
ele a usa de outra forma: “Eu a utilizava para explorar no paciente a história
da gênese de seu sintoma que, frequentemente em estado de vigília, ele não
podia comunicar de modo algum, ou somente de modo imperfeito. Esse proce­
dimento não apenas parecia mais eficaz que a simples injunção ou proibição
sugestiva, ele ainda satisfazia o desejo de saber do médico, que apesar de tudo
tinha o direito de saber algo sobre a origem do fenômeno que ele se esforçava
por suprimir pelo monótono procedimento sugestivo”14 15 16.
Além disso, enquanto Freud abandonava progressivamente o uso da hip­
nose em favor das associações livres, Bemheim, na mesma época, renunciava
à hipnose em favor da sugestão, declarando no Congresso internacional de
psicologia experimental que ocorreu em 1892 em Paris: “Não há hipnotismo,
há apenas sugestão”.

Joseph Breuer (1842-1925)

Freud, que se sentia isolado na comunidade médica de Viena, reticente em


levar a sério suas pesquisas, encontrou em Breuer um apoio e um amigo. Por
intermédio de Emst von Brücke®, com o qual ele trabalhou a partir de 1876,
Freud acaba por conhecer Joseph Breuer.

14 Ibid., p. 29.
15 Ibid., p. 33.
16 Emst von Brücke (1819-1892).

31
Compreender

Era um homem de uma inteligência eminente e que tinha quatorze anos a mais
que eu; nossas relações se estreitaram rapidamente, ele se tomou meu amigo
e me deu seu apoio em circunstâncias difíceis de minha existência. Tínhamos
o hábito de compartilhar todos os nossos centros de interesse científicos. Natu­
ralmente, quem mais tinha a ganhar com essa troca era eu. O desenvolvimento
da psicanálise acabou me custando sua amizade. Não foi fácil para mim pagar
esse preço, mas foi algo inevitável17.

Breuer, assim como Freud, se interessava pela hipnose, particularmen­


te no tratamento da histeria. E suas observações desempenharam um gran­
de papel nas descobertas de Freud sobre a histeria, embora Breuer tenha se
afastado dele após a escrita conjunta da “Comunicação preliminar” dos Es­
tudos sobre a histeria. As pesquisas de Breuer tomaram-se famosas graças ao
caso de Anna O., pseudônimo de Bertha Pappenheim. Breuer constatou que
os sintomas graves que sua paciente experimentava de modo intermitente
(paralisia, distúrbios da linguagem etc.) atenuavam-se ou desapareciam após
longas sessões em que Breuer a deixava falar à vontade. Ele também utilizava
a hipnose para fazê-la completar o relato de sua vida contando-lhe quando
desperta os elementos assim narrados. Ele o chamava de "método catártico”,
combinação de hipnose e fala espontânea do sujeito, que tinha o objetivo de
produzir uma ab-reação ou uma catarse sob a forma de uma descarga de emo­
ções reprimidas até então. Bertha Pappenheim falava por sua vez de “cura
pela fala” (talking cure) ou de "limpeza de chaminé”.

Breuer qualificava nosso procedimento de catártico; era-lhe atribuído a finalida­


de terapêutica de canalizar o quantum de afeto utilizado para manter o sintoma,
que se perdera em falsos caminhos e ali se tinha por assim dizer encantoado,
rumo a caminhos normais pelos quais ele pudesse ser descarregado (ab-reagido).
O sucesso prático do procedimento catártico era notável. Os defeitos que se reve­
laram posteriormente eram aferentes a todo tratamento hipnótico18.

Freud, muito impressionado por esse caso, apressou-se em comunicá-lo


a Charcot, durante sua estada na Salpêtrière:

1J Sigmund Freud présenté par lui-même, op. cit., p. 34.


18 Ibid., p. 38.

32
A formação de Freud

Desde antes de minha partida para Paris, Breuer me fizera algumas observações
sobre um caso de histeria que ele tratara de um modo particular nos anos 1880
a 1882 e que lhe permitira obter percepções profundas sobre a etiologia e a sig­
nificação dos sintomas histéricos. [...] Ele leu para mim várias vezes passagens
da história do caso e tive a impressão de que ele fazia avançar a compreensão
da neurose mais do que havia sido feito anteriormente. Decidi em meu foro
íntimo comunicar essas descobertas a Charcot quando eu chegasse a Paris, o
que não deixei de fazer. Mas o mestre não demonstrou nenhum interesse por
minhas primeiras alusões, de tal modo que eu não voltei ao assunto, que eu
próprio terminei abandonando10.

De volta a Viena, Freud retomou contato com Breuer e o encorajou a


dar a conhecer seus trabalhos sobre histeria e hipnose publicando o caso
de Anna 0. Breuer parece se sentir intimidado por aquilo que desencadeou
e hesita em prosseguir. Freud o apoia então colaborando estreitamente com
ele, tanto no tratamento conjunto de certas pacientes como na redação co­
mum da introdução ao que serão os Estudos sobre a histeria. O que interessa
a Freud é saber se os resultados clínicos observados na cura de Anna O.
podem ser generalizados.

Comecei, pois, a repetir as pesquisas de Breuer com meus pacientes, e sobretu­


do depois que a visita a Bemheim em 1889 me revelou os limites da eficácia da
sugestão hipnótica, eu passei a praticar somente isso. Quando, durante vários
anos, encontrei apenas novas confirmações, e como, para cada caso de histeria
que era acessível a tal tratamento, eu dispunha logo de saída de uma quanti­
dade imponente de observações análogas, eu lhe propus trabalhar em uma pu­
blicação comum, ideia que ele começou por rejeitar vigorosamente. Ele acabou
cedendo, ainda mais que os trabalhos de Janet haviam antecipado uma parte
dos resultados, a saber, a tese de que se pode fazer remontar os sintomas his­
téricos a impressões vividas e suprimi-los mediante sua reprodução hipnótica
no estado nascente19 20.

Mas após a publicação de sua "Comunicação preliminar", em 1892, Breuer


não ousou seguir Freud naquilo que o conduziria a descobrir a psicanálise

19 Ibid., p. 34-35.
20 Ibid., p. 37.

33
Compreender

e que, de fato, poria em xeque o método catártico na medida em que este


não levava em consideração a dimensão da resistência e da repressão. A
partir de 1894, Breuer preferiu proteger sua reputação arranhada pela má
recepção do caso Anna O. e deixou Freud prosseguir suas pesquisas sozinho.
Contudo, enquanto se afastava da hipnose, Freud se inspirava no “método
catártico”, do qual ele guardou o dispositivo da posição alongada no divã,
mas substituindo-o pelo procedimento da “livre associação”.
Freud escolhe, pois, se inscrever do lado não da psiquiatria científica,
mas da medicina popular, que, ela sim, levava a sério a palavra dos pacien­
tes. Seu método, que será sempre pragmático, consistirá em aprender do
paciente, em pôr-se à escuta do outro, à escuta da palavra. Em “Luto e me­
lancolia”21, ele escreveu, por exemplo: “O doente de algum modo deve ter
razão”. É sempre o paciente que tem razão, não o médico.
Da hipnose à sugestão, da sugestão à relação, o fio condutor que Freud
seguirá, frequentemente sem o saber, está aí, ainda invisível, fio este que o
conduzirá a definir “a expectativa crente" em “O tratamento psíquico”, an­
tes de por fim expor a importância da transferência.

Wilhelm Fliess (1858-1928)

Freud conheceu Wilhelm Fliess em 1887, durante uma estada em Viena, por
intermédio de Joseph Breuer, que o aconselhou a assistir às conferências de
neurologia apresentadas por Freud. Embora Fliess fosse um especialista em
doenças da garganta e do nariz, ele era um excêntrico erudito e ambicioso
cuja insaciável curiosidade fez com que se interessasse por outros campos
de pesquisa, misturando, entre outras, prática médica, astrologia, sexolo-
gia. Ele é autor de diversas teorias que curiosamente foram bem acolhidas
no meio médico da época: a teoria da neurose reflexa nasal, vinculando
a mucosa nasal às atividades sexuais, a teoria dos períodos, centrada na
observação dos períodos de menstruação na mulher e, no homem, pela nu-
merologia, a teoria sobre a bissexualidade, que influenciará Freud em suas
primeiras explorações da sexualidade.
Freud, que ficou muito impressionado com esse personagem, iniciou
uma correspondência com Fliess a partir de 24 de novembro de 1887. Essa

21 Deuil et mélancolie (1917e), in Métapsychologie (1915), Gallimard, 1968.

34
A formação de Freud

correspondência, da qual possuímos apenas as cartas de Freud, foi reunida


em La Naissance de Ia psychanalyse, sob uma forma truncada e em uma tra­
dução totalmente falha, até sua publicação completa em 2006a,
Fliess foi um dos poucos interlocutores que Freud tratará de “Caro ami­
go’’, no começo de suas cartas. Em suas trocas epistolares, que se estendem
por treze anos, Freud descobriu a possibilidade de falar de tudo o que o
preocupava em suas pesquisas e em sua vida privada. E foi graças a essa
escuta que esperava de Fliess que Freud pôde se deixar levar a desenvolver
sem freio todos os seus tateios e todas as hipóteses sobre a qual ele traba­
lhou. Quando Freud começou a evidenciar o papel da sexualidade na vida
psíquica, a importância da sexualidade infantil e a necessidade de elucidar
a sexualidade dos neuróticos, somente Fliess apoiou sua abordagem en­
quanto os colegas vienenses de Freud a rejeitavam energicamente. Freud
evocou do seguinte modo o clima de incompreensão reinante então, em seu
texto Sobre a história do movimento psicanalítico, em 1914:

Sacrifiquei sem hesitar minha reputação nascente de médico e a clientela de


neuróticos que afluíam ao meu consultório ao explicar com lógica a causa sexual
de suas neuroses, o que me permitiu fazer diversas experiências que me conven­
ceram definitivamente da importância prática do fator sexual. Sem desconfiar do
que resultaria disso, tomei a palavra na Sociedade vienense de psiquiatria e de
neurologia, então presidida por Krafft-Ebing22 23 * [...]. Falei de minhas descobertas
como de contribuições científicas impessoais e esperei a mesma atitude por parte
dos outros. Somente o silêncio se seguiu às minhas palavras, o vazio que se fez
em tomo da minha pessoa, as alusões que me foram relatadas pouco a pouco fi-
zeram-me compreender que não era possível esperar que asserções sobre o papel
da sexualidade na etiologia das neuroses fossem tratadas do mesmo modo que
outras comunicações. Compreendi que a partir daquele momento eu fazia parte
daqueles que “transtornaram o sono do mundo", segundo a expressão de Hebbel,
e que não deveria esperar nem objetividade, nem comedimento34

Em Io de janeiro de 1896, Freud escreveu a Fliess:

22 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006.


23 Comunicação de Freud sobre "A etiologia da histeria”, 2 de maio de 1896.
U S.Freud,Sur 1'histoiredumouuementpsychanalytique (1914d),Gallimard,Paris, 1991,p. 37-38.

35
Compreender : S

Os de sua espécie não deveriam desaparecer, caro amigo; precisamos demais


de pessoas como você. Quanto lhe devo! Consolação, compreensão, estímulo em
minha solidão, sentido da vida — que lhe atribuo, e também por fim saúde que
nenhum outro poderia ter me dado novamente. Foi essencialmente por seu
exemplo que adquiri intelectualmente a força de ter confiança em meus juízos,
mesmo quando isso me deixa sozinho — não você, porém —, e que, como você,
enfrento com soberana humildade tudo o que o futuro possa trazer de difícil.
Por tudo isso, portanto, meus humildes agradecimentos! Bem sei que você não
precisa de mim tanto quanto eu de você, mas bem sei também que tenho um
lugar garantido em sua afeição25.

No mesmo ano, em uma carta de 30 de junho de 1896, Freud lhe de­


clara: "Você me ensinou que por trás de toda insanidade (Volfesiuahniuitz)
popular está oculto um fragmento de verdade’’26 *. Freud empregará a mesma
expressão a respeito do delírio que comporta, ele também, um fragmento
de verdade.
O intercâmbio entre Fliess e Freud não se reduz à sua volumosa corres­
pondência. Eles se encontram regularmente em Viena ou em Berlim para
celebrar o que eles chamam de "congressos" durante os quais eles se entre­
gam à livre associação especulativa e científica.
Fliess representa para Freud um confidente, um interlocutor privilegia­
do que o estimula e o encoraja em suas pesquisas, seu "demônio” (no sen­
tido grego de daimôn) de Berlim que toma o lugar deixado vago pela ruptura
com Breuer. Freud lhe comunica todas as suas idéias e lhe envia as menores
observações ou esboços de manuscrito.
Está claro que Freud idealiza Fliess, como ilustram suas cartas. Em uma
carta de 21 de maio de 1894, Freud escreve: “Hoje eu quero passar uma hora
agradável e conversar apenas sobre ciência com você. Não é precisamente
um favor do destino ter por volta de cinco horas por ano para um inter­
câmbio de pensamentos com você, enquanto eu não posso de modo algum
abster-me do outro e você é o único outro, o alter'’21.
Em 1899, ele lhe escreve após um de seus "congressos”: “Agora, veja o
que ocorre. Eu vivo aqui, com o espírito pesaroso e na obscuridade, até que

25 S. Freud, Lettres de Freud à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 85, p. 204-205.
26 Ibid., Carta 101, p. 247.
2J Ibid., Carta 42, p. 97.

36
A formação de Freud

você chegue; digo o que carrego no coração, acendo minha luz vacilante na
sua, que é tranqüila, sinto-me bem novamente e depois da sua partida volto
a ter olhos para ver e o que vejo é belo e bom”28.
No ano seguinte, quando suas relações começaram a se degradar, Freud
lhe escreve, em 7 de maio de 1900: "Ninguém substituirá para mim o comér­
cio com o amigo que exige um lado particular — talvez feminino —, e vozes
interiores que tenho o hábito de ouvir recomendam-me uma avaliação do
meu trabalho muito mais modesta que a que você proclama"29 30.
Freud coloca Fliess em uma situação transferenciai, fazendo-o desem­
penhar, sem saber, o papel do analista. É assim que Freud empreende o que
ele chamará de sua autoanálise. Eis o que ele escreveu a Fliess em 14 de
agosto de 1897:

Após ter ficado aqui repleto de animação, vivo agora um período desagradável.
O principal paciente que me ocupa sou eu mesmo. Minha pequena histeria,
fortemente acentuada pelo trabalho, avançou pouco em sua solução. Outras
coisas ainda estão ocultas. Delas depende em primeiro lugar meu humor. Esta
análise é mais difícil que qualquer outra. É ela também que paralisa a força
psíquica de que preciso para apresentar e comunicar o que foi conquistado até
agora. Acredito, no entanto, que isso deve ser feito e que é uma peça interme­
diária necessária em meus trabalhos3".

Entretanto, essa autoanálise conduz Freud progressivamente a tomar


consciência de sua dependência em relação a Fliess. E quando, em 1900,
Fliess questiona a validade do procedimento psicanalítico eles brigam, em­
bora continuem se escrevendo durante algum tempo para acertar as con­
tas. Freud se pergunta então sobre a confiança cega que ele lhe atribuiu e
da qual ele quer se libertar medindo o caráter iluminado de Fliess: “Não po­
demos disfarçar que estamos ambos afastados um do outro. [...] Você tam­
bém atingiu os limites de sua perspicácia, você toma partido contra mim e
me diz, o que desvaloriza todos os meus esforços: 'O leitor de pensamentos
não faz senão ler nos outros seus próprios pensamentos”’, escreve Freud
em 7 de agosto de 1901. Mas isso não impede de acrescentar algumas li-

28 Ibid., Carta 188 (3 de janeiro de 1899), p. 431-432.


29 Ibid., Carta 244, p. 520.
30 Ibid., Carta 136, p. 331.

37
Compreender FREUD

nhas depois, a respeito de Psicopatologia da vida cotidiana, que ele acabara de


publicar: "Ela está cheia de coisas relacionadas a você — manifestas, para
as quais você forneceu o material, e ocultas, nas quais o motivo remete a
você. A epígrafe31 também é um presente seu. Se excetuarmos o conteúdo
de todo o resto, ela pode mostrar o papel que você desempenhou em mim
até agora’’32.
No entanto, outra carta a Fliess de 14 de novembro de 1897 ilustra a
dificuldade dessa autoanálise para Freud:

Minha autoanálise ainda permanece interrompida. Entendi por quê. Não posso
analisar a mim mesmo senão com conhecimentos objetivamente adquiridos
(como um estranho), a autoanálise propriamente dita é impossível, caso contrá­
rio não haveria doença. Como ainda lido com alguns enigmas em meus casos,
isso também deve necessariamente interromper minha autoanálise33.

A alusão feita por Freud — "como um estranho" (urie ein Fremder) — evi­
dencia que ele não pode analisar a si mesmo senão confrontado às desco­
bertas que pode fazer. E essa carta confirma toda a tradição da invenção do
sujeito por Messmer e outros, desde o fim do século XVIII: não há análise
sem relação, para retomar a fórmula de Bernheim.
Em seu texto, “L’analyse originelle”34, Octave Mannoni diz que é en­
quanto terceiro (essa terceira pessoa que Freud evoca a partir de seus Estu­
dos sobre a histeria, e com a qual ele não sabe o que fazer naquele momento),
considerando a si mesmo como doente e analisando a si mesmo que Freud
pôde fazer a sua autoanálise; foi nesse desdobramento que ele conseguiu
fazer sua própria análise. Ele mostra que Freud só conseguiu analisar a si
mesmo e inventar a psicanálise através de uma relação de transferência
com um outro. E essa relação foi bem-sucedida na medida em que ele li­
dava com Fliess, médico otorrino, que de qualquer modo não compreendia
nada de Freud e de suas teorias. Fliess era um grande paranoico, imbuído
das teorias biológicas delirantes e ele próprio produto de teorias biológicas
delirantes. Felizmente foi porque ele não compreendeu nada de Freud que

31 “O ar está agora todo preenchido por tal fantasma/Que ninguém sabe como evitar":
citação de Fausto II (ato V, cena 5).
32 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, op. cit. (Carta 270, 7 de agosto de 1901), p. 564.
33 Ibid., Carta 146, p. 357.
34 O. Mannoni, L’analyse originelle, in Un Commencement qui n'en finitpas, Seuil, 1980.

38
A formação de Freud

este, em sua insistência em se fazer entender por seu interlocutor, conse­


guiu instaurar sua autoanálise com Fliess.
A importância da correspondência com Fliess é capital: nela se podem
ver em germe idéias que Freud abandonará para voltar a encontrá-las ape­
nas anos depois. Isso nos permite localizar milimetricamente as intuições,
os esquecimentos e as retomadas ulteriores de descobertas deixadas sem
seguimento e provisoriamente inacabadas, em um caminho de pensamen­
to que não necessariamente corresponde à cronologia dos diversos textos
publicados por Freud.

39
Capítulo III

Os ístuüos sobre a histeria

Todos somos um pouco histéricos.


Paul-Julius Moebius

Na época em que Freud terminou sua formação, as causas e o tratamento da


histeria eram objeto de numerosos debates em toda a Europa e embaraçavam
muitos psiquiatras e médicos. Um progresso considerável havia sido conquis­
tado por Paul Briquet1, autor do Traité clinique et thérapeutique de 1'hystérie, de
1859, pois, pela primeira vez, o fator moral da histeria fora considerado, sem
se limitar a uma explicação de origem ovariana. “Eu reconheci por fim que a
histeria não era essa doença vergonhosa cujo nome lembra ao mundo estra­
nho à medicina e a muitos médicos esse verso de nosso grande poeta trágico:
É toda Vênus aferrada à presa1, mas que ela pelo contrário se devia à existência,
na mulher, dos sentimentos mais nobres e mais dignos de admiração, senti­
mentos que somente ela é capaz de experimentar1’1 2 3 4.
Para Hermann Oppenheim®, o grande patrono da psiquiatria berlinense,
que criou a noção de “neurose traumática”, a histeria é sobretudo uma des-

1 Paul Briquet (1796-1881).


2 Citação de J. Racine, Phèdre, I, 3.
3 P. Briquet, Traité clinique et thérapeutique de 1'hystérie, Baillière, 1859, p. VII.
4 Hermann Oppenheim (1858-1919).

41
Compreender

carga emotiva, “a intensificação de uma emoção’’. Segundo Charcot, é um


trauma fisiológico que desempenha um papel determinante na histeria. Suas
observações, aliás, conduzem-no a não reduzir a histeria a um fenômeno
especificamente feminino, contrariamente às idéias preconcebidas. Ele abor­
dou essa questão em março de 1885 no âmbito de suas ’’Aulas": "Tenho como
objetivo sobretudo fazê-los reconhecer e, por assim dizer, tocar com o dedo a
identidade da grande neurose nos dois sexos. Pois na comparação que fare­
mos dos sintomas da grande histeria na mulher e no homem encontraremos
em todo lugar as analogias mais surpreendentes e isso com apenas algumas
diferenças que, como veremos, são de ordem totalmente secundária”8. Ora,
quando, de volta a Viena, Freud quiser expor esse mesmo ponto de vista aos
seus colegas, durante uma conferência sobre a histeria masculina, em 1886,
ele receberá um verdadeiro grito de indignação.
Sua colaboração nas pesquisas de Breuer, particularmente no caso de
Anna 0., assim como sua estada na Salpêtrière conduzem Freud a se inter­
rogar sobre a verdadeira etiologia da histeria, seja ela masculina ou femini­
na. Nos primeiros tempos de suas pesquisas (1892-1895), Freud acreditava
que a causalidade sexual da histeria estava ligada a uma sedução real. Ele
segue nesse aspecto as teorias de Fliess, com o qual ele se corresponde e
que é adepto de uma teoria biológica da bissexualidade.
Mas pouco a pouco Freud se distancia de Charcot, que ainda invoca
uma causalidade fisiológica do psiquismo, e de Breuer, que se recusa a se­
guir Freud na hipótese de que o traumatismo pode ser de ordem sexual. E
serão necessários ainda alguns anos para que Freud renuncie à sua teoria
da sedução real no desencadeamento da histeria.
Freud publica os Estudos sobre a histeria5 6 em 1895, em que ele expõe
vários casos de histeria, particularmente o de Elisabeth von R. Em grande
parte graças a esse caso, nascerá o que será a concepção freudiana da histe­
ria e que dará nascimento à psicanálise como metodologia e como prática.
Pode-se compreender, in statu nascendi, como Freud se afasta da hipnose, e a
partir de que achados e com que termos ele inventa o método psicanalítico,
antes mesmo de forjar a palavra “psico-análise” em 1896.

5 Jean-Martin Charcot, À propos de cas dhystérie chezl'homme, (18aAula),inLeçons surles


maladies du système nerveux, tomo III, Lecrosnier et Babé, 1890, p. 253-254.
6 S. Freud, Études sur 1’hystérie (1895d), PUF, Paris, 1896. Todas as citações que se seguem
remetem a essa edição.

42
Os Estudos sobre a histeria

"Comunicação preliminar"

Os Estudos sobre a histeria comportam uma “Comunicação preliminar” que


Freud e Breuer escreveram juntos, em 1893, e que tem como subtítulo “Os
mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos". Na segunda edição, de
1909, J. Breuer renunciará a prosseguir sua colaboração no caminho da psi­
canálise e retirará seu capítulo “Considerações teóricas".
Nessa “Comunicação preliminar", ambos abordam a questão do trau­
ma enquanto choque e se interrogam sobre o efeito psíquico do choque re­
presentado pelo traumatismo. O trauma é a irrupção de um ato que terá
um efeito traumático, caso o afeto não tenha conseguido enfrentá-lo. Não
há um automatismo mecânico do traumatismo em relação ao trauma. Para
eles, o fator acidental, portanto o acontecimento, é determinante na patolo­
gia da histeria. Os sintomas histéricos que poderiam passar por produções
espontâneas (uma histeria poderia, pois, ser idiopática, criada pelo próprio
histérico) possuem uma relação estreita com o traumatismo. Eles fazem
então uma analogia entre histeria e neurose traumática, introduzindo o
conceito de histeria traumática, ideia que provém sobretudo de Breuer, mas
que Freud retoma então por sua própria conta. Na neurose traumática, a
doença não é realmente determinada por um ferimento do corpo, por uma
violência corporal, mas por uma emoção — medo, pavor — provocada pelo
trauma. Eles usam um termo francês: o trauma é um “agent provocateur" que
desencadeará automaticamente um sintoma. Ao mesmo tempo, o trauma­
tismo psíquico e, por conseguinte, sua lembrança agem à maneira de um
"corpo estranho" (Fremdkôrper). Esse termo será encontrado várias vezes nos
Estudos sobre a histeria, particularmente no caso de Elisabeth von R. O corpo
estranho é o que não é metabolizado, mas que entra no corpo por efra-
ção sem que possa haver uma elaboração psíquica em tomo disso. E muito
tempo após sua irrupção, esse corpo estranho continua a desempenhar um
papel ativo. Contrariamente ao que enuncia o adágio latino que eles citam'
— “cessante causa, cessat ejfectus" —, o incidente determinante continua, du­
rante anos, a agir diretamente, sem elos intermediários, como causa desen-
cadeadora, à maneira de um sofrimento psíquico que, rememorado, pode

J Os trabalhos médicos ainda eram redigidos em grande parte em latim, assim como as re­
ceitas, para que os pacientes não pudessem lê-las. Para as histéricas, a prescrição era a seguinte:
“penis normalis dosim repetatur" (pênis normal, repetir a dose)!

43
Compreender s■

ainda que tardiamente provocar uma secreção de lágrimas, modo de reati­


var o trauma inicial, como explica Freud na “Comunicação preliminar”:

O apagamento de uma lembrança ou a perda de um afeto que ele sofre depende


de vários fatores. Em primeiro lugar, é importante saber se a experiência8 de-
sencadeadora provocou ou não uma reação enérgica. Ao falar aqui de reação,
pensamos em toda uma série de reflexos voluntários ou involuntários graças
aos quais, como mostra a experiência, há uma descarga de afetos, desde lágri­
mas até o ato de vingança. Nos casos em que essa reação se dá em um grau su­
ficiente, uma grande parte do afeto desaparece. A esse fato de observação diária
chamamos aliviar-se das lágrimas, ou descarregar a raiva. Quando essa reação
é entravada, o afeto permanece ligado à lembrança9.

Freud ainda defende uma teoria segundo a qual a lembrança possui um


efeito traumático, e o afeto é que irá diminuir ou anular o efeito traumático
da lembrança ou da representação. Todo o problema será então o de saber
se o ataque histérico está ligado a uma dimensão pulsional ou se ele é uma
mensagem representativa, e se, portanto, ele depende de uma representação.

0 caso de Elisabeth von R.

Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando encontrou Freud depois de tentar
diferentes terapias para tratar sua abasia. A cura durará alguns meses, no
final de 1892. Ela perdera seu pai, do qual ela cuidara, sua mãe sofrerá uma
grave operação nos olhos, e uma de suas irmãs, casada, morrera de uma doen­
ça cardíaca depois de parir. “Ela parecia inteligente e psiquicamente normal
e suportava os sofrimentos, que restringiam suas relações e seus prazeres,
com aparência serena e, pensei eu, com Ta belle indifference' das histéricas"10.
Ela tinha dores (Schmerzen) e parestesias nas pernas, particularmente na coxa
direita. Freud rapidamente fez o diagnóstico de histeria, renunciando à hipó­
tese de uma afecção orgânica ou de neurastenia. Ele observou que a atenção

8 Termo mais fiel ao alemão Erlebnis que sua tradução por “acontecimento", escolhido nes­
ta edição.
9 S. Freud, Communication préliminaire (1893a), in Études sur 1'hystérie, op. cit., p. 5.
10 S. Freud, in Études sur 1'hystérie, op. cit., p. 106. Freud retoma aqui em francês a expressão
cara a Charcot.

44
Os Estudos sobre a histeria

de Elisabeth estava voltada, "para além de suas dores, para pensamentos e


sentimentos em relação com suas dores" (p. 107-108).
O primeiro elemento que emergiu foi a ligação de Elisabeth com seu pai e,
reciprocamente, o fato de que ele "a colocara no lugar (sie ersetze) de um filho
e de um amigo" (p. 110). Sie ersetze significa exatamente "ela substituía’’. Desse
modo, seu pai determinara para ela a residência, um lugar impossível para ela
— o do filho que ele não tivera e o de um amigo — por meio de uma fala prescri-
tiva. Aliás, é isso que dá todo o sentido à queixa que ela não cessava de repetir,
de não poder avançar. À expressão de sua abasia acrescenta-se sua impotência
em deixar o lugar no qual seu pai a colocara, que ele lhe atribuíra.
Freud encontrará a causa dessa abasia simplesmente perguntando a Elisa­
beth pela primeira vez: "De onde vêm as suas dores (Woher rühren die Schmerzen)
quando você anda, quando fica em pé, quando está deitada...?" (p. 119). Essa
pergunta faz ressurgir em Elisabeth a lembrança de que “o lugar originalmente
doloroso na coxa direita tinha relação com os cuidados dispensados ao pai, a
partir daí o domínio doloroso se estendera para novos traumatismos” (p. 118).
Neste caso, “esse lugar (Stelle) determinado era aquele em que a cada manhã
seu pai colocava sua perna inchada, quando ela trocava suas bandagens" (p. 117).
Foi assim que “as pernas começaram a falar”, acrescenta Freud.

Primeira definição da histeria

Já na “Comunicação preliminar” Freud adianta sua primeira definição da


histeria, graças àquilo que ele pôde observar em Elisabeth von R.: “A histéri­
ca sofre principalmente de reminiscências” (Die Hysterische lei de grõsstenteils
an Reminiszensen, p. 5). Essa primeira definição da histeria freudiana será
capital para as posteriores descobertas de Freud: a histérica sofre de pen­
samentos e não de dores. Com efeito, trata-se de .uma memória que escapa
da memória voluntária que pode ser convocada. São lembranças que agem
em nós, independentemente de nós. Não se trata mais aqui de interessar-se
pelas localizações nervosas das parestesias e sim do fato de que a histérica
sofre de “pensamentos” (p. 112), isto é, de representações que constrangem
seu corpo e o determinam. Freud retomará essa expressão no Diário do Ho­
mem dos ratos que “sofre de representações obsessivas”11.

11 S. Freud, L'Homme aux rats Journal dune analyse (1909d), 2a ed., PUF, Paris, 1984, p. 31.

45
Compreender ;: s ;

O segredo

Renunciando ao método catártico, Freud logo se interessa pelo “conteúdo


dos pensamentos que estão no pano de fundo dessa dor” (p. 108). E, como ele
se coloca a questão, ele percebe que “o fundamento desse sofrimento é que
ele tinha simplesmente um ‘segredo’ (Geheimnis), e não um ‘corpo estranho’
em seu consciente” (p. 109). O segredo remete à constituição de uma his­
tória e não a um traumatismo exterior que simplesmente criaria uma efra-
ção na psique, como um corpo estranho. Ele remete, pois, à fantasia, a um
roteiro, a uma cena psíquica na qual o sujeito se coloca em cena junto com
o outro, em relação ao outro, e eventualmente em uma posição sacrifical
em relação ao outro.
Tendo deixado de lado a dor física (Schmerz) em proveito da dor psí­
quica (Leiden), Freud procurará "a relação existente entre a história desse
sofrimento e o próprio sofrimento" (p. 109). É quando Freud lhe pergunta:
“De onde vêm as suas dores?” que Elisabeth von R. pode por fim falar, dizen­
do que “ela não pode avançar". A expressão alemã “sie komme nicht uon der
Stelle" possui um duplo sentido: ela não pode avançar, ela não pode andar e,
ao mesmo tempo, ela não pode deixar o lugar em que ela se encontra, em
que ela foi colocada. Isso desvela seu segredo: seu pai, do qual ela havia
sido enfermeira, colocava-a no lugar de um filho ou de um amigo, pois ele
possuía somente duas filhas, uma das quais acabara de morrer, deixando
um filho. Ela substituía (sie ersetze) para ele um filho e um amigo e não
era senão um ersatz. Ela estava, pois, em um lugar impossível, e por causa
disso ela não podia avançar, isto é, deixar o lugar que seu pai lhe atribuíra.
Essa parestesia, essas dificuldades em avançar na vida estavam ligadas às
palavras paternas: você é para mim um filho e um amigo. Descobre-se aqui
a onipotência da palavra, de uma palavra prescritiva que pode determinar a
residência de alguém e colocá-lo em um lugar (Stelle) impossível para ele
ou para ela. Essa abasia exprimia sua impotência em deixar a destinação
original na qual seu pai a colocara.
É nesse texto que aparece também pela primeira vez a expressão “his­
tória de um sofrimento” (p. 109), sofrimento subjetivo, singular e historici-
zado que Freud distinguirá da “história da doença”. Pela primeira vez ainda,
Freud partirá das camadas de lembranças do paciente mais próximas para
depois ter acesso às mais profundas, segundo a técnica da “exumação de
uma cidade sepultada”: primeira referência à metáfora arqueológica que

46
Os Estudos sobre a histeria

reaparece com frequência na última parte de sua obra, especialmente em


"Construções na análise”, de 1937.

0 corpo psíquico

Essa é a primeira revolução freudiana: que o corpo se ponha a falar graças


à pergunta feita por Freud e que ele possa ser ouvido. O corpo fala aqui da
relação incestuosa com o pai, que soldava de algum modo psiquicamente a
pema paterna à coxa direita de Elisabeth, fonte de hemorragia psíquica e de
sua impotência. E, como o incesto chama mais incesto, é para seu cunhado
que ela dirige seus primeiros olhares amorosos. Nesse sentido, essa queixa
de não poder deixar esse lugar também visa à impossibilidade para ela de
se subtrair ao mundo do incesto, do entre-si, do heimlich que ainda não se
tomou estranho, sua impossibilidade de sair da casa (Heim).
O corpo não é, pois, essencialmente definido de modo somático. A posição
psíquica do sujeito (Einstellung) é determinada pelo lugar (Stelle) que ele ocu­
pa e que toma possível a capacidade de escolher a saúde ou a doença. Para
Freud, o corpo psíquico é essencialmente um corpo determinado por repre­
sentações, ele está atado a estas, e essas representações podem vir do próprio
sujeito. Ele pode ser o produtor e o autor de suas representações. Inversamen­
te, essas representações podem vir de outras pessoas, como nos mostram as
do pai de Elisabeth von R., que a colocava em um lugar impossível.
Esse lugar não é de ordem geográfica, mesmo que ela se traduza aqui
em primeiro lugar pela dificuldade de andar. Ela é essencialmente uma po­
sição psíquica que a coloca na impossibilidade de não ficar presa ao seu
pai, por uma palavra que vincula e acorrenta. Ora, a saída do complexo de
Édipo que Freud abordará posteriormente consiste precisamente em sair do
lugar de outrem para estabelecer seu próprio lugar, que não existe ainda e
que ninguém pode designar para nós.
Freud não cessará de retomar ulteriormente essa questão do Woher,
essa questão da origem das representações. “As teorias sexuais infantis”,
de 1908, abordam a questão da origem das crianças. Em 1916, essa questão
volta a aparecer em dois textos “Os criminosos por consciência de culpa”’2 12

12 Les criminels par conscience de culpabilité (1916d), in Llnquiétante étrangeté et autres


essais, Gallimard, 1985.

47
Compreender

e “A inquietante estranheza"13 14 15, em que Freud escreve: ‘‘De onde provém o


obscuro sentimento de culpa anterior ao ato?". Tirata-se a cada vez de en­
contrar uma cena endoscópica que o sujeito suscita, cena que se opõe, pois,
a toda imputação do que sou a uma visão do mundo ou a um outro, ao Ou­
tro do qual eu me tomaria acusador. O capítulo VII do Mal-estar na cultura1*
desenvolve essa lógica de implicação do sujeito em relação ao sentimento
de culpa. Ele introduz a recusa do mal-estar da cultura para privilegiar o
mal-estar do sujeito, o que o sujeito inflige a si mesmo; o mal-estar, portan­
to, está ligado a uma psicogênese e não a uma sociogênese do sentimento
de culpa, o que Dostoiévski exprime por meio desta expressão: “O que nos
acontece se parece conosco".

0 papel da palavra

A primeira definição do corpo é a de que ele é marcado por palavras e de


que ele pode até mesmo ficar preso às palavras. As experiências antigas
ainda exercem uma ação intensa, e não há desgaste nem apagamento da
lembrança. Esta permanece intacta.
Nesta primeira teoria sobre a histeria, Freud julga que há duas mani­
festações possíveis: ora uma experiência corporal tal como as lágrimas, ora
a introdução de algo que anuncia a passagem para o ato18, expressando e
“esvaziando sua raiva" (sich austoben), o que pode passar por uma agressão
ao outro. Enquanto não houver uma reação catártica desse tipo, "o afeto per­
manecerá ligado à lembrança e ficará entravado” (p. 5).
Mas Freud prossegue abrindo um caminho determinante em sua busca
por um tratamento: “Não se lembra do mesmo modo de uma ofensa vinga­
da — mesmo que por meio de palavras — ou de uma ofensa que se foi obri­
gado a aceitar. A palavra também reconhece a diferença nas conseqüências
psíquicas e físicas dando, muito adequadamente, a esse sofrimento supor­
tado sem resposta possível o nome de humilhação16. A reação do sujeito

13 L'inquietante étrangeté (1919h), in L’inquietante étrangeté et autres essais, Gallimard, 1985,


p. 170.
14 Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, Quadrige, 1995.
15 Assim como Freud e Breuer nessa época, não faço diferenciação entre passagem para o
ato e agir, embora na clínica, hoje em dia, seja necessário fazer essa distinção.
16 nadução preferível a "mortificação" para o termo alemão Krünfeung.
Os Estudos sobre a histeria

que sofre algum dano possui efeito realmente "catártico" somente quando a
reação é realmente adequada, como na vingança. Mas o ser humano encon­
tra na palavra um equivalente do ato (die Tat), graças ao qual o afeto pode
ser ab-reagido aproximadamente do mesmo modo. Em outros casos, são as
próprias palavras que constituem o reflexo adequado, por exemplo as quei­
xas ou a revelação de um segredo pesado, confidência, isto é, a confissão”1’.
Mesmo que Freud se mantenha ligado à dimensão do ato, que aparece
como uma ação vinculada à impossibilidade de formular pela palavra o
que aconteceu, ele introduz aqui um elemento capital: a palavra (Sprache)
capaz de represar o agir ou de substituí-lo. A palavra possui a capacidade
de levar em conta a diferença nas conseqüências psíquicas ou corporais,
podendo dar nome a esse sofrimento e dando um sentido possível a essa
ofensa (Krünkung também quer dizer ferimento, humilhação). Isso significa
que a palavra é aqui de algum modo uma linguagem projetiva, justiceira,
paranoica. Já estamos, portanto, na emergência dessa dimensão da relação
e da palavra que cura, cujo esboço já aparecia em “O tratamento psíquico”.
Nessa época, Freud ainda está tateando às cegas e ele conseguirá especifi­
car sua intuição somente mais tarde.

A mésalliance

O capítulo conclusivo dos Estudos sobre a histeria, que se intitula “Psicote-


rapia da histeria", foi escrito por Freud sozinho, em 1894. Ali ele avança
em sua concepção da histeria, portanto da neurose. Toda essa última parte
trata das diferentes formas de obstáculos à cura, todos eles ligados à pes­
soa do médico. Freud evocou vários casos exemplares. O primeiro caso — o
menos grave — é o do doente que “se julga negligenciado, humilhado ou
ofendido”, experimentando de certa maneira uma decepção amorosa, a da
criança que se coloca em uma posição de dependência. Um segundo caso se
apresenta: do paciente que teme ficar ligado demais ao seu médico e desse
modo perder sua independência, o que o conduz a numerosas resistências,
por temor de deixar-se conduzir. O terceiro caso descrito é o mais freqüente:
aquele em que o doente teme projetar sobre o médico as representações
penosas nascidas do conteúdo da análise. A transferência para o médico *

1J S. Freud, Études sur 1'hystérie, op. cit., p. 5-6 (trad, revisada).

49
Compreender

realiza-se então por meio de uma "falsa relação” sobre a qual Freud passa a
desenvolver vários exemplos, antes de especificar:

O desejo atual será vinculado, por constrição associativa18, à minha pessoa, que
evidentemente passou para o primeiro plano das preocupações do doente. Nes­
sa mesalliance19 — à qual dou o nome de falsa relação —, o afeto que entra em
jogo é idêntico àquele que outrora incitara minha paciente a repelir um desejo
proibido. A partir do momento que sei isso, posso, a cada vez que minha pessoa
se encontra implicada desse modo, postular a existência de uma transferência,
de uma falsa relação. Coisa estranha, os doentes nesse caso são sempre ingê­
nuos (p. 245-246).

Freud começa então a perceber que a transferência é essencialmente


uma repetição: repetição de um desejo proibido, na intemporalidade da ses­
são analítica, na qual, por falsa ligação, será reencenada com a análise uma
situação em que houve tentativa de sedução.
Freud chega então a uma noção importante: “Era preciso fazer a doente
falar, quando certas relações pessoais pareciam entrar em jogo e uma ter­
ceira pessoa se confundia com a do médico” (p. 246). Quando o analisando
se dirige ao analista, ele se dirige na verdade a uma “terceira pessoa” (dritte
Person) que é confundida (zusammenfallen significa literalmente colocar jun­
to, coincidir) com a pessoa do analista. Este último é sempre posto como
terceira pessoa. Por sua posição, ele é excluído de sua subjetividade pelo
analisando, que o restitui na história de sua própria existência e em um
momento em que se reencenava um acontecimento ligado à sedução.

"Tudo é imputado ao outro"

Por fim, em 1896 Freud definirá sua concepção de histeria, rompendo total­
mente com a da psiquiatria de sua época, em uma carta a Fliess de 6 de de­
zembro de 1896: “O acesso histérico não é uma descarga mas sim uma ação.

18 A tradução de Zurang por “constrição" é preferível à de "compulsão" escolhida na tradu­


ção, pois o termo “compulsão” se presta a equívoco. A constrição é sofrida, ela é desprovida de
intencionalidade consciente. Ver o capítulo sobre “a constrição de repetição".
19 Em francês no texto de Freud.

50
Os Estudos sobre a histeria

e ele conserva o caráter original de toda ação: ser um meio de reproduzir


o prazer. Isso ao menos é o que ele é na raiz, senão ele se motiva diante do
pré-consciente por todos os tipos de razões diferentes. Têm assim um aces­
so de sono os doentes aos quais algo sexual foi infligido no sono; eles ador­
mecem novamente para viver a mesma coisa, desse modo frequentemente
provocando o desmaio histérico; o acesso de vertigem, o choro convulsivo,
tudo é imputado ao outro, mas geralmente a esse outro pré-histórico e ines­
quecível que ninguém, mais tarde, conseguirá igualar”20.
Quando Freud afirma “tudo é imputado ao outro”, está-se ainda na
queixa ou, ao menos, em uma lógica de imputação que coloca por conta
do outro o que acontece conosco e não em uma lógica de implicação que
admite que aquilo que nos acontece se parece conosco. Ele acrescenta: “Até
mesmo o sintoma crônico da mania da cama se explica. Um de meus pa­
cientes geme até hoje durante o sono, como outrora (para que sua mãe,
falecida quando ele tinha 22 meses, o pegasse junto a si); o acesso como
‘expressão aumentada da emoção' não se encontra aqui de modo algum, ao
que parece”21. O modelo da histeria e o da transferência são estabelecidos
conjuntamente nessa carta. Com efeito, se o ataque histérico não é apenas
um acréscimo, uma sobrecarga libidinal que seria preciso descarregar para
o exterior, e sim um requerimento ao outro, ele coloca imediatamente em
jogo uma “terceira pessoa”. O histérico é um emissor em busca de um re­
ceptor, de um ouvido que possa ouvir o que ele ou ela quer dizer. A pessoa
do médico jamais deve, pois, ser obstáculo para essa “terceira pessoa” à qual
a mensagem se dirige.
A histeria não é, portanto, “a expressão aumentada da emoção”, como
afirmava Oppenheim, e não é suficiente uma terapia pelo grito para despa­
char a histeria. Ela constitui uma mensagem, um apelo ao outro. O que está
em causa na histeria não é assim um trauma físico, fonte de traumatismo
psíquico, mas um apelo ao amor que só pode ser encontrado passando pelo
outro, e por esse primeiro outro que foi a mãe. Desse modo, Freud de algum
modo nos faz sair do autismo como cura perfeita do sujeito que não sofre
mais com os outros porque possui um corpo-fortaleza. Se o sujeito está so­
frendo é porque ele está em uma situação de demanda em relação ao outro
e em relação aos outros que podem substituir o primeiro outro materno,

20 S. Freud, Lettres a Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 112, p. 270-271 (tradução revista).
21 Ibid., p. 271.

51
Compreender

no palco da realidade, que podem fazê-lo ter acesso à capacidade de amar.


Encontramos, pois, a dimensão da expectativa crente: a histeria freudiana é
essa espera pelo outro para sair disso.

Da teoria da sedução real à teoria da fantasia

Essa nova teoria da histeria ainda era determinada pela explicação de uma
sedução real do pai. Mas muito rapidamente Freud percebe que tal "perver­
são do pai" não pode ser generalizada e que convém examinar as fantasias
organizadoras de tais cenas.
Essa renúncia à teoria da sedução, que aparecerá em seus textos so­
mente mais tarde, já aparece, porém, como uma descoberta que Freud co­
munica a Fliess durante sua autoanálise. Isso é atestado por sua carta de 21
de setembro de 1897, em que ele diz renunciar à sua neurotica, isto é, à sua
teoria do trauma ligado a uma sedução sexual efetiva:

Preciso confiar-lhe imediatamente o grande segredo que se revelou lentamente


nos últimos meses: não creio mais em minha neurotica. Isso não pode ser en­
tendido sem uma explicação. Começarei, pois, pelo começo e exporei o modo
pelo qual se apresentaram os motivos para que eu não mais acreditasse nela.
Houve em primeiro lugar as repetidas decepções que sofri em minhas tenta­
tivas de conduzir minhas análises até seu verdadeiro fim. A fuga das pessoas
cujos casos pareciam se prestar melhor a certos tratamentos, a ausência do
sucesso com o qual eu contava e a possibilidade de explicar-me de outro modo,
mais simplesmente, esses sucessos parciais, tudo isso constituiu um primeiro
grupo de razões. Em segundo lugar, a surpresa de constatar que em cada um
dos casos era preciso acusar o pai de perversão. A própria noção de frequência
inesperada da histeria em que se encontra a cada vez a mesma causa determi­
nante enquanto tal generalização de atos perversos cometidos contra as crian­
ças parecia pouco crível. [...] Em terceiro lugar, a convicção de que não existe
no inconsciente nenhum indício de realidade, de tal modo que é impossível
distinguir a verdade da ficção investidas de afetos. [...] Em quarto lugar, fui le­
vado a constatar que nas psicoses mais avançadas a lembrança inconsciente
não ressurge, de tal modo que o segredo do incidente de juventude, mesmo nos
estados mais delirantes, não se revela. Quando se constata que o inconsciente
nunca conseguirá vencer a resistência do consciente, deixa-se de esperar que

52
Os Estudos sobre a histeria

durante a análise o processo inverso possa se produzir e resultar em uma domi­


nação completa do inconsciente pelo consciente22.

Freud renuncia à sua teoria da sedução real por perceber que nem to­
dos os pais são violadores, ao mesmo tempo em que reconhece, no entanto,
que as histéricas não mentem. Ora as mulheres inventam sem mentir ou
simular cenas de sedução que não ocorreram, ora essas cenas ocorreram
e, no entanto, mesmo quando houve trauma, elas não estão na origem da
eclosão de uma neurose. Ele então fará a distinção entre trauma físico e
traumatismo psíquico, já consciente do fato de que não é a realidade do
acontecimento que está em causa e sim sua representação vivida e seu
efeito psíquico. Freud não crê mais em um traumatismo psíquico que seria
a transcrição imediata de um trauma que sofreu efração como "corpo es­
tranho" (Fremdkòrper) na psique do sujeito e ele opera então a passagem da
teoria da sedução real para a teoria da fantasia.

0 papel da fantasia e do infantil

Freud reconhece a partir desse momento que é impossível verificar e dis­


tinguir nas falas dos pacientes e em seus sonhos o que seria da ordem de
uma verdade e aquilo que, com um traço de realidade, seria da ordem da
fantasia. Em outras palavras, Freud descobre que é a fantasia que organiza
a realidade exterior, pois é a fantasia enquanto tal que está aí para elabo­
rar subjetivamente, caso por caso, o modo pelo qual pudemos introjetar,
perlaborar os acontecimentos que ocorreram. São a fantasia, as próprias
elaborações fantasmáticas infantis, que organizam uma cena de sedução
para a criança: a fantasia elabora a realidade psíquica e se interpõe entre
cada sujeito e a realidade exterior.
A carta a Fliess de 21 de setembro de 1897 constitui, pois, uma etapa
importante, já que ela inscreve o infantil no centro da constituição da psi­
que, ao mesmo título que o complexo de Édipo. Dois elementos que passa­
riam a figurar no âmago de todo procedimento psicanalítico.
Freud volta a tratar da importância do infantil em outra carta a Fliess
em 3 de janeiro de 1899: “Em primeiro lugar, um pequeno fragmento de au-

22 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, op. cit. (Carta 139), p. 334-335.

53
Compreender

toanálise acabou por se impor e confirmou que as fantasias são produtos de


épocas ulteriores que são reprojetados a partir do presente até a primeira
infância”23. São, pois, as fantasias que pensam as primeiras satisfações se­
xuais infantis, às quais não se tem nenhum acesso fora de sua elaboração
fantasmática.
Em 1905, no fim do primeiro dos Três ensaios sobre a teoria sexual, Freud
retoma ao seu erro. Há ali uma nota — muito pouco citada — sobre o in-
fantilismo da sexualidade e que remete ao caso de Elisabeth von R., cuja
relação com o pai estava sob a égide da sexualidade infantil. "Ao demons­
trar o papel das moções perversas como agentes da formação de sintomas
nas psiconeuroses, aumentamos de modo extraordinário o número de hu­
manos suscetíveis de serem considerados como perversos. Não apenas os
neuróticos constituem uma classe muito numerosa, mas também é preciso
considerar que as neuroses se dissipam ao longo de uma cadeia ininterrup­
ta que vai desde suas diversas manifestações até a saúde.”24

Da histeria à transferência

Freud opera aqui uma mudança radical. Ele pode então dizer que a histeria
se torna o modelo de toda relação com o outro. A histeria não é mais uma
descarga e sim uma mensagem, um apelo dirigido ao Outro. A transferência
não é nada além de um deslocamento, um deslocamento temporal sobre
outros daquilo que se viveu e se quer reencontrar, ou pelo contrário daquilo
que não se suportou e que é repetido para eliminar essa doença da repeti­
ção à qual todos somos destinados. A transferência está ligada à estrutura
histérica que visa imputar ao outro, à “terceira pessoa”, a possibilidade de
reencontrar o prazer perdido. Será desse outro, "o outro inesquecível, pré-
histórico, que depois ninguém conseguirá igualar no palco da realidade”,
que Lacan extrairá o “grande Outro”.

23 Ibid., Carta 188, p. 430.


24 S. Freud, Trais essais sur Ia théorie sexuelle, Gallimard, 1987, p. 88.

54
Capítulo IV

A descoberta do Infantil

Minhas considerações sobre a sexualidade infantil


fundamentaram-se de início quase exclusivamente nos
resultados das análises feitas com adultos por regressão no
passado. Eu não tivera oportunidade ie fazer observações diretas
sobre a criança1. Foi, portanto, um grande triunfo quando
consegui, anos depois, confirmar a maior parte do que havia
sido descoberto pela observação e pela análise diretas de
crianças muito novas, triunfo que pouco a pouco minimizou o
pensamento de que havia no fundo do que sentir vergonha por
ter feito tal descoberta. Quanto mais se observavam as crianças,
mais o fato se tomava evidente, mas também mais se tomava
singular que tivesse havido tanto trabalho para não vê-lo1 2.

Freud foi o primeiro a ter se debruçado sobre a importância do período in­


fantil na formação do psiquismo. Pode-se até mesmo afirmar que foi ele
que descobriu o infantil e suas repercussões sobre a evolução de cada pes­
soa. Ele explorou todos os seus registros e todas as suas fases. Com efeito, o
infantil não é apenas o pré-edipiano enquanto leitura retroativa do infantil,
a partir do édipo e da saída do édipo, mas sobretudo desse infantil não pré-
edipiano que escapa à repressão.
Já em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria sexual3, Freud constatou que
o infantil havia sido completamente negligenciado até então, sem dúvida
porque não se considerava que as crianças pequenas pudessem ter uma

1 Itálicos nossos.
2 S. Freud, Sur I'histoire du mouuement psychmaiytique (1914d), Paris, Gallimard, 1991, p. 33.
3 S. Freud, Hois Essais sur la théorie sexuelle (1905d), Paris, Gallimard, 1985.

55
Compreender i . : 1>:

atividade sexual. Essa afirmação não poderia senão escandalizar seus cole­
gas e contemporâneos. "Ao meu conhecimento, nenhum autor reconheceu
claramente a regularidade de uma pulsão de gênero (Geschlechtstrieb) du­
rante a infância. [...] Uma vez adultos, não sabemos de nada disso por nós
mesmos. Como nossa memória permanece tão negligenciada em relação
às nossas outras atividades psíquicas? Temos razões, no entanto, para crer
que em nenhum outro período da vida ela será mais capaz de registrar e de
reproduzir precisamente os anos de infância”. Freud já anuncia que essas
teorias e essa vida sexual escaparão das "formas repulsivas da repressão”4.
O que será reprimido será o édipo, enquanto as teorias sexuais, por sua vez,
assim como o zeitlos da atemporalidade do inconsciente, agem em nós de
tal modo que estão presentes sem que estejamos presentes para elas.
Longe de ser uma escória, o infantil está na origem, no fundamento da
humanidade futura da criança. Freud compara o infantil à pré-história, isto
é, àquilo que precedeu a entrada na história, mas que, no entanto, marca
profundamente a humanidade. Para Freud, o estado de natureza infantil, o
pré-edipiano, não deve ser rejeitado. Pelo contrário, ele é a própria condi­
ção da atividade de pensar e não se separará, aliás, dessa primeira forma,
pois nunca poderemos nos desvincular de nossas origens: as modalidades
de nossos pensamentos serão determinadas pelo modo como conseguimos
elaborar essas teorias sexuais infantis. Em outras palavras, os destinos da
atividade de pensar ou da pulsão de saber (Wisstrieb) são determinados pe­
las modalidades segundo as quais a criança pré-edipiana pôde pensar ou­
trem, seguindo os limites de sua condição corporal.
As descobertas de Freud sobre o infantil são desenvolvidas em três tex­
tos principais: Três ensaios sobre a teoria sexual, escrito em 1905, e acrescido
de notas nas edições seguintes; "As teorias sexuais infantis", em 19085 6, e
Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, em 1910°. Esses textos eviden­
ciam a dimensão essencial do infantil na medida em que é a elaboração
fantasmática do modo pelo qual o corpo foi afetado pela mãe.

4 Ibid., p. 97.
5 S. Freud, Les théories sexuelles infantiles (1908c), in La Vie sexuelle, PUF, 1969.
6 S. Freud, Un souvenir d'enfance de Leonard de Vinci (1910c), Paris, Gallimard, 1987.

56
A descoberta do infantil

Três ensaios sobre a teoria sexual1

O título alemão desse texto, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, foi suces­
sivamente traduzido em francês por Ttês ensaios sobre a teoria da sexualida­
de (Blanche Reverchon-Jouve) e depois por Três ensaios sobre a teoria sexual
(Philippe Koeppel). Os obras completas mantêm o mesmo título (tradução de
Pierre Cotet e Frank Rexand-Galais). No entanto, seria mais correto tradu­
zir Abhandlung por “tratado", pois o termo alemão não possui o sentido de
"ensaio” com a dimensão de aproximação subjetiva que esse termo impli­
ca. Com efeito, esse trabalho é uma exposição sistemática e sustentada da
teoria sexual, mesmo que ele a apresente de um modo fenomenológico.
Freud reeditou esse livro cinco vezes com numerosos acréscimos, especial­
mente nas edições de 1915 e de 1920. Isso mostra a importância que ele
atribuía a esse livro, que modificava completamente a concepção da se­
xualidade compartilhada por seus contemporâneos, inclusive os que se in­
teressavam pelos desvios ou pelas formas diversas da sexualidade, ances­
trais dos sexólogos contemporâneos, notadamente Havelock Ellis, Richard
von Krafft-Ebing e Albert Moll. Freud afirma que a sexualidade infantil é
uma realidade, enquanto seus contemporâneos não concebiam a sexuali­
dade senão a partir da puberdade. Para além da pudicícia dos adultos,
Freud sustenta que se estes últimos não falam de sexualidade com as
crianças, é porque eles não conseguem imaginar que exista uma sexuali­
dade infantil. Nos Três ensaios, Freud não se contenta com simples hipóte­
ses teóricas, ele desvela o que está oculto e que, no entanto, sempre exis­
tiu: a sexualidade infantil.
Até agora, as traduções francesas (assim como a The Standard Edition)
não diferenciavam os termos alemães Sexualtrieb — que Freud emprega pa­
ra designar a pulsão sexual adulta ou pulsão sexual que se tomou autôno­
ma7 8 — e Geschlechtstrieb, que Freud utiliza em suas obras sobre a sexuali­
dade infantil. Esses dois termos eram traduzidos indistintamente por "pul-
são sexual” ou “sexual instinct” em inglês. A primeira edição a diferenciar
os dois tipos de pulsão foi a tradução das obras completas que traduziu
Geschlechtstrieb por “pulsão sexuada”. Contudo, podemos pensar na hipótese

7 S. Freud, Trois Essais sur 1 a théorie sexuelle (1905d), Gallimard, 1985. As páginas indicadas
nas citações remetem a essa edição.
8 S. Freud, ibid., p. 69.

57
Compreender

de que se Freud tomou o cuidado de diferenciar Sexualtrieb e Geschlechts-


trieb foi porque ele considerou que a pulsão sexual infantil não reconhece
a diferença dos sexos e a sexualidade adulta e que ela é, em conseqüência
do narcisismo primário, orientada para o gênero humano (Geschlecht), como
busca de identidade, anterior à sexuação. Desse modo, optaremos pela es­
colha prudente de traduzir Geschlechtstrieb por “pulsão de gênero”.
Para Freud, a vida sexual do adulto deriva da criança que ele foi. Ele
mostrará, portanto, que através das errâncias das pulsões sexuais e da mul­
tiplicidade dos recortes da atração sexual no objeto sexual "a criança é o pai
do homem”.

Primeiro tratado: Os tateamentos sexuais

O primeiro tratado é intitulado: “As aberrações sexuais” (die sexuellen Abir-


rungen). Ora, o termo Abtrrung é tomado assim em sentido figurado e moral,
o que inflecte bastante o pensamento de Freud. Trata-se antes de errâncias
sexuais, de tateamentos sexuais, entre a prevalência atribuída à pulsão se­
xual e a que é atribuída ao objeto sexual. Freud põe em xeque a ideia de
uma sexualidade madura e genital expondo dois aspectos da sexualidade,
por um lado, os desvios em relação ao objeto sexual, a fonte de atração e o
charme sexual (Reiz), e, por outro lado, os desvios quanto ao objetivo sexual,
isto é, o ato que coloca em jogo a pulsão de gênero. Em seu último prefácio,
datado de 1920, Freud responde às acusações de “pansexualismo” feitas a
ele colocando seu trabalho sob os auspícios de Platão: “No que diz respeito à
extensão do conceito de sexualidade exigida pela análise das crianças e dos
pervertidos..., a sexualidade ampliada da psicanálise se aproxima do Eros
do divino Platão” (p. 33). Desse modo, Freud situa sua pesquisa científica da
sexualidade humana não do lado de uma sexologia objetivante e cientifi-
cista, mas em referência à cultura grega e à mitologia. A cultura grega, com
efeito, valoriza a pulsão em relação ao objeto, enquanto a cultura judaico-
cristã ocidental supervaloriza o objeto sexual ao qual a pulsão de gênero
está sujeita. Além disso, Freud situa o dimorfismo sexual, a diferenciação
sexual homem/mulher, em referência ao mito da díade originária separada
em duas metades, masculina e feminina, tal como Platão o evoca em O ban­
quete, ilustrando o desejo de unir-se no amor entre dois seres com o fim de
reencontrar essa completude originária.

58
A descoberta do infantil

Na primeira seção consagrada aos desvios em relação ao objeto se­


xual, Freud toma como primeiro exemplo a inversão. Enquanto os autores
de sua época consideravam as diferentes formas da inversão como cate­
gorias separadas e isoladas de um ponto de vista fenomenológico (inverti­
dos absolutos, invertidos bissexuais ou invertidos ocasionais), Freud consi­
dera que "a constituição de uma série se impõe por si mesma” (p. 41). Além
dessa classificação dos invertidos, ele rejeita a compreensão da inversão
pelo recurso à teoria da degenerescência: “Alguns dos homens mais notá­
veis de que já se ouviu falar eram invertidos, talvez até mesmo invertidos
absolutos” (p. 42). Ele tampouco aceita o caráter inato da inversão, que é
um caráter “adquirido da pulsão de gênero” (p. 43). Também, na interpre­
tação da inversão, “os pontos de vista patológicos foram substituídos pelos
pontos de vista antropológicos" (p. 43). Baseando-se na homossexualidade
grega, Freud observa que os homens mais viris encontravam-se entre “os
invertidos que se apaixonavam não pelo caráter viril do jovem", mas por
“qualidades psíquicas femininas", o que prova que o objeto sexual não é do
mesmo sexo, mas "o reflexo da própria natureza bissexual do interessado"
(p. 50). Essa interpretação nova da homossexualidade conduziu Freud a
uma conclusão mais geral sobre a natureza da sexualidade: “A pulsão de
gênero inicialmente é independente de seu objeto” (p. 54). Isso significa que
a pulsão de gênero, assim como a pulsão sexual, existe anteriormente aos
objetos sobre os quais ela investe, e que ela possui até mesmo o poder de
determinar parcialmente o objeto investido.
Na segunda seção, que trata dos desvios em relação ao objetivo sexual,
Freud procura detectar os fatores que permitem “relacionar as perversões à
vida sexual normal” (p. 57). Ele observa “a exploração das fronteiras anatô­
micas da geografia corporal”, tradução mais fiel ao espírito que Freud que
o título adotado de “transgressões anatômicas”, excessivamente conotado
pela estrutura perversa que ele implica. Por sua prevalência sobre o objeto, a
pulsão superestima na totalidade ou parcialmente, mas não necessariamen­
te, as partes genitais. Essa superestimação não provém do próprio objeto e
sim da obrigação de fidelidade que a crença saída do amor atribui ao objeto.
Essa crença saída do amor é a fonte da transferência, da expectativa crente:
pode-se esperar a própria salvação vinda de outrem. Isso acarreta tanto uma
desvalorização de si quanto uma deformação do objeto. É ela também que
“contribui para elevar à categoria de objetivos sexuais atividades ligadas a
outras partes do corpo” (p. 59). O fetichismo que Freud analisa nessa seção

59
Compreender

ilustra bem o fato de que o substituto do objeto sexual pode ser em si mes­
mo pouco sexual (pé, calçado, cabelos, roupas íntimas).

Fixações dos objetivos sexuais preliminares

A superestimação do objeto sexual toma possíveis novos objetivos sexuais,


particularmente a interrupção da fixação em preliminares que podem cons­
tituir etapas rumo a esses objetivos. A primeira dessas etapas é o par tocar/
olhar ou mais exatamente a seqüência tocar-olhar. Com efeito, a visão de­
riva do tocar ao mesmo tempo em que se desvia dele. A primeira maneira
pela qual a criança apreende seu próprio corpo não é o olhar e sim o contato
corporal. Toda pulsão de busca se alicerça no corpo, na sublimação da pul-
são de domínio e no afastamento do tato. Enquanto o tato constitui para a
criança uma apropriação do objeto, a visão coloca o objeto em perspectiva,
ela é uma "sublimação” do tato, que permite ter acesso à beleza do corpo
em sua totalidade e dirige a libido para objetivos artísticos elevados.
Mas a visão e o prazer da visão (Schaulust) apresentam-se sob um duplo
modo: ver e ser visto. O par ativo/passivo não cessa de atravessar a obra freu­
diana; ele de início não determina uma posição subjetiva ou psíquica, mas o
objetivo de uma pulsão de vocação ativa ou passiva. Freud precisará poste­
riormente o que entende por "passivo” e “ativo”: "O que chamamos na vida de
'masculino’ ou de ‘feminino’ reduz-se para o exame psicológico às caracterís­
ticas da atividade e da passividade, isto é, a propriedades que não devem ser
atribuídas às pulsões e sim aos objetivos destas”9. Uma das modalidades do
par ativo/passivo é o par sadismo/masoquismo. Ele demonstra a dor inerente
à relação com o objeto no masoquista e, no sadismo, com um componente
de agressão como “inclinação a forçar as coisas" (p. 69) para superar a resis­
tência do objeto sexual. Freud reservou o termo “perversão” para um tipo de
relação em que a satisfação é possível exclusivamente em caso “de sujeição
e de maltrato do objeto” (p. 69). A perversão se caracteriza, portanto, pela ins­
tauração de um vínculo fixo com o objeto que assegura uma permanência da
relação, excluindo toda aleatoriedade subjetiva do objeto.

9 S. Freud, L'intérêt de la psychanalyse (1913j), in Résultats, idées, problèmes 1, PUF, p. 205.

60
A descoberta do infantil

Segundo tratado: A sexualidade infantil

Esse segundo tratado afirma a necessidade de levar em consideração a se­


xualidade infantil. Freud desenvolve aqui um elemento deixado de lado no
primeiro tratado: "a vida amorosa das crianças”.

Da sucção ao chupamento

Constatou-se que além da sucção do seio no bebê se enxerta uma atividade


de chupamento após a satisfação alimentar; essa atividade de chupamento
que se satisfaz com o corpo da própria criança é qualificada por Freud de au-
toerotismo (p. 104) e pode conduzir a uma forma de orgasmo. Desse modo, “a
atividade sexual se apoia em uma função que está a serviço da manutenção
da vida e que se autonomiza desta última somente mais tarde” (p. 105). Essa
é a leitura que Freud faz do que ele designa como autoerotismo. A pulsão de
gênero não é autônoma em relação às pulsões de autoconservação, mas ela
se escora nestas últimas. A noção de escoramento (Anlehnung) indica que as
pulsões de autoconservação (fome, sede, sono) são o protótipo das pulsões
sexuais; o modelo do objetivo da pulsão de gênero não visa inicialmente à
busca, à procura do prazer, e sim à cessação do desprazer, ligada a tensões
internas do organismo ou do psiquismo. Paradoxalmente, a busca do prazer
é, pois, marcada pelo acúmulo de um desprazer que depois precisa ser in­
terrompido. Nesse estágio, a pulsão de gênero ainda não conhece nenhum
objeto sexual exterior, pois ela toma como objeto sexual uma parte do pró­
prio corpo, o dedão, por exemplo, que vem apaziguar a tensão dos lábios. Ao
mesmo tempo aparece o primeiro fenômeno de repetição, a necessidade de
repetição da satisfação sexual, que pode se libertar do prazer da autoconser­
vação. Entretanto, é o traço dessa primeira experiência de prazer que toma
possível, até mesmo exigível, a repetição da busca de satisfação.

A criança polimorficamente perversa

As características da sexualidade infantil conduzem Freud a generalizar a


predisposição “polimorficamente perversa” dessa sexualidade. Ele acres­
centa até mesmo que no adulto "a igual predisposição a todas as perversões
é um traço universalmente humano e originário” (p. 119).

61
Compreender

Na "Nota sobre o infantilismo da sexualidade” que encerra o primeiro


Ensaio, Freud já abordava a questão da perversão: "Ao demonstrar o papel das
moções perversas como agentes da formação de sintomas nas psiconeuro-
ses, aumentamos de modo totalmente extraordinário o número de humanos
suscetíveis de serem considerados perversos. Não são apenas os neuróticos
que constituem uma classe muito numerosa, é preciso considerar também
que as neuroses se distribuem ao longo de uma corrente ininterrupta que
vai desde suas manifestações até a saúde; por meio disso Moebius’0 disse a
justo título: todos somos um pouco histéricos. A propagação extraordinária
das perversões nos obriga a admitir que a predisposição às perversões não é,
ela tampouco, um traço excepcional, e sim que ela é um elemento daquilo
que se considera como a constituição normal” (p. 88). Com efeito, a histeria
é estrutural, ela de algum modo organiza o primeiro modo de relação com o
outro: é a aspiração ao outro, presente notadamente na aspiração ramo ao
pai. Freud acrescenta mais adiante: "Podemos concluir que há de fato algo
inato na base das perversões, mas algo que todos os homens compartilham”
e que, enquanto predisposição, pode variar em sua intensidade e espera ser
salientado pelas influências da existência” (p. 88 89). Quando Freud fala de
perversão, ele não tem em mente o que designamos por “perverso”. A ex­
pressão que ele emprega nos Três ensaios merece ser examinada de perto: ele
não deüne a criança como uma perversa (substantivo), mas como sendo “po-
limorflcamente perversa”: advérbio e adjetivo são aqui inseparáveis. O que
ele chama então de traço perverso é o fato de que não há objeto adequado à
pulsão de gênero. O donjuanismo nos oferece um exemplo esclarecedor des­
sa busca sem fim, nessa necessidade de mudar constantemente de objeto,
sendo sucessivamente decepcionado pelos objetos encontrados, por não ter
acesso ao objeto originário, irremediavelmente perdido.

,4s investigações sexuais infantis

Além da inadequação entre a pulsão de gênero e seus objetos possíveis e


múltiplos de investimento, Freud observa uma independência total tanto 10 11

10 Paul-Julius Moebius, neurologista (1853-1907).


11 O que Freud entende por "inato" corresponde ao que chamaríamos de fator estrutural
ou constitucional.

62
A descoberta do infantil

das pulsões de gênero como das pulsões sexuais em relação a zonas eróge-
nas a partir das pulsões parciais. O par tocar/ver já foi evocado, mas Freud
introduz a crueldade como marca de independência ainda maior em rela­
ção à sexualidade. Essa crueldade assume a forma de uma pulsão de do-
mínio, que consiste em fazer sofrer, até mesmo em destruir o outro, ou em
apossar-se de seus objetos de modo clássico, para destruí-los, como primei­
ro modo de conhecimento, fase que, na criança, é marcada pela incapacida­
de de se compadecer, por falta de identificação com o outro.
Assim como as pulsões sexuais não são originariamente autônomas
das pulsões de autoconservação, a pulsão de saber tampouco é indepen­
dente de outras pulsões, notadamente das pulsões parciais, que, no entan­
to, são as mais afastadas das pulsões sexuais. A esse título, a pulsão de
saber deriva da pulsão de domínio que quebra o mundo para conhecê-lo, e
ela trabalha com o prazer da visão, ele próprio derivado do tato, como outro
modo de conhecer da criança, à distância, sem o contato do tato.
Além disso, as investigações da criança estão ligadas a interesses egoís­
tas e narcisistas, à necessidade urgente de responder ao enigma da origem:
“De onde vêm as crianças?”. Freud desenvolverá o tema três anos depois em
“As teorias sexuais infantis", depois em Uma recordação de infância de Leonardo
da Vinci, em 1910.

Terceiro tratado: As metamorfoses da puberdade

Freud aborda aqui as “reconfigurações”12 libidinais ligadas à entrada na pu­


berdade, que é marcada pela busca de um objeto exterior a si. Uma seção é
consagrada à “descoberta do objeto” (Objektfindung) ou mais exatamente ao
“achado” do objeto. Freud divide esse achado em três tempos. No primeiro,
correspondente ao estágio oral, a criança encontra no seio matemo um prb
meiro objeto exterior ao seu próprio corpo. Esse objeto logo se toma objeto
perdido, no momento em que a criança toma como objeto substitutivo seu
polegar, em uma fase autoerótica. A terceira etapa é a da redescoberta de
um objeto (Wiederfmdung). A perda do objeto, constituindo o objeto perdido
como traço dessa primeira experiência de prazer, é, no entanto, correlativa da

12 TYadução mais exata do termo alemão Umgestaltungen, empregado por Freud no título. A
edição das obras completas em francês também traduz por “reconfigurações”.

63
Compreender |R|||

constituição, fora da criança, “de uma representação global da pessoa à qual


pertencia o órgão que lhe proporcionava satisfação" (p. 165). Na relação mãe/
filho, seio/boca, está em jogo um duplo registro tanto para a criança como
para a mãe. A ternura e o cuidado corporal da criança favorecem nela fontes
de satisfação que despertam a pulsão de gênero. No que diz respeito à mãe, o
cuidado afetuoso dispensado à criança remete a uma dimensão mais sexual:
“Ela o toma como substituto de um objeto sexual por inteiro” (p. 166). Esse
despertar coloca a criança, na puberdade, em uma posição eminentemente
ativa para reencontrar em um objeto substitutivo do objeto perdido um ob­
jeto que possa “restaurar13 a felicidade perdida" (p. 165). Pois, na perspectiva
freudiana, todo objeto é substitutivo de outro enquanto suporte dos traços do
objeto perdido. Também parece preferível retraduzir a frase seguinte: “A des­
coberta do objeto é uma redescoberta” (p. 165), em uma frase que marca mais
a investigação ativa e dinâmica da criança: Die Objektfindung ist eigentlich eine
Wiederjindung: “O achado do objeto não é na verdade senão um reencontro".
Todo objeto é, pois, substituível por outro, ele não representa senão um
ersatz, um substituto do grande Outro. Durante toda a nossa vida, estare­
mos à procura de tais “reencontros”, em busca de algo que poderia com­
portar traços desse primeiro objeto perdido, o objeto materno, o que Freud
generaliza em uma expressão concisa: “A figura da criança que mama no
seio de sua mãe tornou-se o modelo de toda relação amorosa” (p. 165).
Esse objeto materno também pode, nesse nível, designar o pai, pois a
Urmutter (a mãe originária) ou o Urvater (o pai originário) representam in­
diferentemente os grandes personagens de nossa primeira infância. Todo
objeto que pensamos encontrar no presente, cada um deles segundo sua
singularidade própria, comporta traços que nos permitem reencontrar algo
do objeto irremediavelmente perdido. Desse modo, toda a predisposição in­
fantil do neurótico exprime essa aspiração à representação do que o pai ou
a mãe puderam representar, singularmente, para cada um de nós.

A pulsão de saber

Na reedição dos Três ensaios, em 1915, Freud acrescentou um texto intitula­


do “As investigações sexuais infantis”, em que ele definiu mais claramente

13 Tradução preferível a “restabelecer" para o verbo alemão u/iederherstellen.

64
A descoberta do infantil

a pulsão de saber: "Na mesma época, enquanto a vida sexual da criança co­
nhece seu primeiro florescimento, entre o terceiro e o quinto ano de idade,
também aparecem nela os inícios da atividade atribuída à pulsão de saber
ou pulsão do investigador (Wiss-oder Forschertrieb). A pulsão de saber não
pode ser considerada um dentre os componentes pulsionais elementares,
nem tampouco pode ser subordinada exclusivamente à sexualidade. Sua
ação corresponde, por um lado, a um aspecto sublimado do poder e, por
outro, ela trabalha com a energia do prazer de ver’’14 (p. 123).
Portanto, a pulsão de saber não é autônoma. Ela se articula totalmente
sobre o desenvolvimento e a evolução do corpo, pois é o corpo que conhece.
A pulsão de saber é composta de dois fatores: "um aspecto sublimado do
poder” e “a energia do prazer de ver". O termo pulsão de domínio aparece,
pois, pela primeira vez em 1915, como pulsão de dominação sobre outrem
ou sobre o mundo, mesmo que ela esteja presente implicitamente nas teo­
rias sexuais infantis. Trata-se da violência contra o real, o que Freud de­
senvolverá mais tarde com o jogo do Fort-Da de seu neto, em “Para além do
princípio do prazer”. A pulsão de saber é em parte sublimação dessa pulsão
de agressão em relação ao real.

"As teorias sexuais infantis"

Em “As teorias sexuais infantis”15, Freud prolonga e confirma suas descober­


tas sobre a realidade da sexualidade infantil. Além disso, suas observações
são enriquecidas pela análise do pequeno Hans, que ocorre durante esse
mesmo período, de janeiro a maio de 1908: seguindo os conselhos de Freud,
Max Graf empreende a análise de seu próprio filho, Herbert, de cinco anos e
atingido por uma fobia. O texto dedicado a esse caso (O pequeno Hans) será
publicado no ano seguinte16.
“A criança conhece a partir de seu próprio corpo”, diz Freud (p. 19).
E as teorias que ele elaborará serão as fantasias infantis que estruturam

14 E não "plaisir scopique", como propõe a tradução: Freud emprega aqui o termo corrente
Schaulust, que não é do vocabulário científico.
15 S. Freud, Les théories sexuelles infantües (1908c), in La Vie sexuelle, PUF, 1969. As páginas
citadas remetem a essa edição.
16 S. Freud, Analyse de la phobie d'un enfant de cinq ans. Le petit Hans (1909b), PUF, 2006
(Quadrige).

65
Compreender

progressivamente e constroem sua imagem do corpo. Freud observa que a


elaboração das teorias sexuais pela criança anda lado a lado com a cons­
trução da imagem do corpo e com o nascimento do pensamento, dois pro­
cessos totalmente imbricados. As teorias sexuais infantis organizarão e
pontuarão progressivamente nossa imagem do corpo, a do corpo infantil
em primeiro lugar, na medida em que elas não são objeto de repressão:
tudo permanece no nível da sexualidade infantil pré-edipiana. As teorias
sexuais infantis dizem respeito à satisfação de um ímpeto de saber (Wis-
sendrang) sobre o sexual.
Essas construções sucessivas do corpo são elaboradas pela psique da
criança e são inscritas na imago do corpo fantasiado. Elas são o único co­
nhecimento possível do corpo pela psique sem influência proveniente de
fora, apenas sob a influência dos componentes pulsionais sexuais.

A questão da origem

O nascimento do pensamento não é de modo algum uma pulsão de in­


vestigação independente. Freud evidencia na criança o que ele ora chama
de pulsão de saber (Wisstrieb), ora ímpeto de saber (Wissendrang), desejo de
saber (Wissbegierde) ou curiosidade (Neugierde) — termos sinônimos para
Freud, que exprimem o despertar e a precocidade impaciente da inteligên­
cia da criança. Essa pulsão é ditada pela necessidade de saber: “Não é de
modo algum espontaneamente, como se se tratasse de uma necessidade
inata de causalidade, que desperta neste caso o ímpeto de saber das crian­
ças, mas sob o aguilhão de pulsões egoístas que as dominam, quando elas
se encontram — digamos após o fim do segundo ano de idade — diante da
chegada de uma nova criança” (p. 16).
Essas pulsões egoístas remetem ao Geschlechtstrieb, “pulsão de gênero”
que caracteriza a busca identitária da sexualidade infantil e não pode ser
confundida — é preciso recordar — com a pulsão sexual (do adulto). O que
está no centro dessas pulsões egoístas é o narcisismo. Trata-se aqui do nar-
cisismo primário, que tem como função a elaboração da imago do corpo.
Através de todas as interrogações que a criança pode fazer a si mesma
e às quais se responde de modo dilatório, permanece uma pergunta essen­
cial: de onde vêm as crianças? Woher die Kinder kommenF. Para além de sua
dimensão espacial — de que parte do corpo eu nasci —, essa preocupação

66
A descoberta do infantil

fundamental suscita a interrogação pela origem: qual é o fundamento sobre


o qual se baseia meu ser?. É uma pergunta que remete não a uma enerva-
ção corporal e sim a uma cena fantasmática. A essa questão vital da origem
de seu ser não são propostas pelos adultos senão explicações mitológicas
ou religiosas, não respondendo a essa pulsão de saber identitário (Geschle-
chtstrieb), que não tem nada a ver com a diferença sexual, nesse nível.
É uma interrogação para a qual não há resposta porque ela é informu-
lável pela criança enquanto tal e porque ela exprime a primeira angústia
metafísica da criança: como posso ser se não existi antes?. É, pois, uma in­
terrogação que diz respeito não ao começo, mas sim ao ser, à identidade. As
explicações por trás das quais se refugiam habitualmente os adultos, que
evocam a cegonha ou o paraíso, não são respostas suficientes para a angús­
tia então experimentada pela criança. Interrogações análogas são encon­
tradas em Santo Agostinho que, nas Confissões, se dirige a Deus: “Dizei-me,
dizei ao vosso suplicante se minha infância se seguiu a alguma vida minha
já expirada... Mas o que era eu antes desse tempo, meu Deus? Estiue em al­
gum lugar ou fui alguém?15. Não tenho ninguém que possa me responder, nem
meu pai, nem minha mãe, nem a experiência dos outros, nem minhas pró­
prias lembranças”18. Essa interrogação sobre a origem não possui resposta
porque estamos ligados a um começo, e não a uma origem fora do tempo.

Prevenir o retorno de acontecimentos temidos

Diante dessa “urgência vital", o funcionamento das teorias sexuais infantis


não pode estar ligado ao simples registro de uma pulsão de investigação
independente: “A própria questão é, como toda investigação, um produto
da urgência da vida como se se tivesse atribuído ao pensamento essa tarefa
de prevenir o retorno de acontecimentos tão temidos” (p. 17). Sob sua pri­
meira modalidade, essa pulsão assume, pois, uma dimensão defensiva cuja
função é organizar a defesa do corpo, elaborar o corpo, contra a ausência do
outro. Ao mesmo tempo, ela é dependente desses componentes pulsionais
e é incapaz de antecipar as respostas que ela dará aos estados sucessivos
do corpo. “Prevenir o retomo de acontecimentos temidos” é funcionar se­

tt Itálicos nossos.
18 Santo Agostinho, Confessions, I, VI, 9, tradução de P. de Labriolle, Budé, 1969, p. 8.

B7
Compreender \

gundo um sistema de pensamento racista que consiste em afastar o outro


para permanecer como o único filho dos pais, para ser o único, o Uno. Freud
inscreve isso diretamente na angústia e no tormento do pequeno Hans no
nascimento de sua irmã, quando ele tinha três anos e meio. A pulsão de
saber inicialmente está a serviço da negação de outrem, a serviço de uma
posição defensiva diante dos acontecimentos, diante dos pais embaraçados
diante de suas perguntas, diante do mundo exterior e do céu, nessa busca
para verificar que ninguém virá tirar seu lugar.
Além disso, essa pulsão de saber está a serviço do controle, sob a con­
dição de que não haja inibição e de que ela não seja contrariada a partir do
exterior. A definição psicanalítica e freudiana da inibição é essencialmente
a obediência ao pai, ao saber do outro, sujeição que pode ser encontrada em
todas as situações transferenciais. Enquanto se estiver nessa dependência
em relação a outrem como emissor de mensagens a serem decifradas, é-se
incapaz de viver a si mesmo como intérprete do saber do outro e não sujeito
ao saber deste. A pulsão de saber está, pois, a serviço de certo controle que
permitirá a autonomização do outro, caso não haja entrave pela inibição
que não é senão a sobrevivência de uma dependência infantil em relação
ao saber de outrem.
Sobre esse pano de fundo é que serão elaboradas as teorias sexuais in­
fantis, três teorias que se engendram logicamente uma em relação à outra,
para tentar explicar de onde vêm as crianças e "prevenir o retomo de acon­
tecimentos tão temidos”. Mesmo que sejam “falsas teorias”, Freud apresen­
ta uma precisão importante: “Embora elas se enganem de modo grotesco,
cada uma delas contém um fragmento de pura verdade; desse ponto de
vista, elas são análogas às soluções qualificadas de ‘geniais’ que os adultos
tentam dar aos problemas postos pelo mundo e que ultrapassam o enten­
dimento humano. O que nelas há de correto e de pertinente se explica pelo
fato de que encontram sua origem nos componentes da pulsão sexual que
já estão em ação no organismo da criança; não são a arbitrariedade de uma
decisão psíquica ou o acaso das impressões que fazem nascer tais hipóte­
ses, mas sim as necessidades da constituição psicossexual” (p. 19).
Essas teorias que contêm “um fragmento de pura verdade”, assim como
o delírio para o qual Freud retoma a mesma formulação, exprimem, pois,
na urgência vital da busca, uma verdade do sujeito, mas de um sujeito con­
siderado em certa época, em determinado momento, nessa teoria sexual
infantil, que lhe permite chegar a pensar.

68
A descoberta do infantil

Freud identifica três teorias sexuais infantis pelas quais a criança passa
e que são diferentes organizações pré-fantasmáticas que têm como obje­
tivo dar uma resposta parcial e ao mesmo tempo elaborar a imagem do cor­
po — a imagem inconsciente do corpo, segundo a formulação de Françoise
Dolto. Elas se encadeiam logicamente seguindo o desenvolvimento somáti-
co-psíquico do corpo e segundo os componentes da pulsão sexual infantil.

A teoria da "mulher com pênis"

A primeira teoria é a da "mulher com pênis" ou a teoria “hermafrodita”, que


“consiste em atribuir um pênis a todos os seres humanos, inclusive aos seres
femininos”. Numerosas estátuas da antiguidade clássica representam essa
figura hermafrodita que corresponde a uma fantasia de plenitude. A teoria
hermafrodita evita que a criança se interrogue sobre a diferença de gênero
(Geschletsunterschiede). O corpo hermafrodita é um corpo que ignora os bu­
racos, as cavidades, e ao mesmo tempo o hermafrodita postula que o outro
não é desejável — esse é o caso sobretudo para o homem — a não ser que ele
possa nos trazer uma plenitude que evite a angústia de nossa própria castra­
ção. Freud deduz disso que a teoria hermafrodita é uma espécie de engrama
na criança que pode conduzir ao homossexualismo: “As partes genitais da
mulher quando, mais tarde, são percebidas e concebidas como mutiladas19,
evocam essa ameaça e, por essa razão, provocam no homossexual horror em
vez de prazer”. Essa ameaça de castração não deixa de recordar o caso do pe­
queno Hans e a ameaça que sua mãe fazia quando ela lhe dizia que o doutor
iria lhe cortar seu wiwimacher, caso ele continuasse a brincar com ele.
Trata-se aqui de uma fase de errância sexual (sexuelle Abirrunge) ou de
desorientação sexual, segundo a expressão de Freud nos Três ensaios. Poder-
se-ia desse modo prolongar o que Freud diz a respeito da teoria hermafrodi­
ta: ela está de acordo com a pulsão que vai fazer com que não se seja con­
frontado com o vazio, com o buraco. Nada é mais angustiante que o buraco
para um esquizofrênico que vive seu corpo como um corpo-peneira, no qual
tudo pode entrar, o que o obriga a proteger-se das relações. Como ele conhe­
ce apenas buracos, ele não sabe o que é um orifício. A teoria hermafrodita

19 Correção do que provavelmente é um erro tipográfico, e não um erro de tradução, no


texto que emprega o adjetivo "inúteis".

69
Compreender

permite que a criança evite pensar nos orifícios, supondo que poderia haver
buracos no lugar dos orifícios: é isto que está em jogo e que é seu momento
estruturante. Nesse momento de excitação da criança, Freud assinala que
seu corpo está tão repleto que quer penetrar o mundo exterior. “A essa ex­
citação estão ligados impulsos que a criança não sabe interpretar, impulsos
obscuros com uma ação violenta: penetrar, quebrar, fazer buracos em todo
lugar” (p. 21). É isso que fazem as crianças que querem olhar o que há em
um automóvel, em um relógio ou no interior de uma boneca. Ulteriormente,
isso pode gerar vocações de mecânico, de relojoeiro ou de cirurgião, isto é,
manipular as entranhas para explorar o que há dentro, até mesmo sua casa
de origem, o corpo materno20.
Para Freud, a teoria hermafrodita está absolutamente de acordo com
sua teoria da pulsão: a pulsão precede, ela constitui os objetos sobre os
quais investiremos. Ela funciona segundo o mesmo modelo que a transfe­
rência: a transferência, com efeito, precede os objetos sobre os quais inves­
tiremos e ela não pode escolher senão objetos que possuem esse traço de
excitação, de charme (Reiz) que podemos encontrar e que podemos deposi­
tar neles. Iremos atribuir uma atração qualquer, um charme ao objeto sobre
o qual investiremos porque não é o objeto que carrega essa atração, somos
nós que a carregamos, é a pulsão que a carrega.
Essa primeira teoria sexual infantil coloca em jogo uma pulsão pró­
pria do corpo como motricidade e como “aparelho de músculos”, segundo
a expressão de Freud. Desse aparelho de músculos dependerá a motilidade
psíquica, a agilidade psíquica da criança, sua não inibição — é preciso que a
criança seja agressiva, a criança de três anos não tem nada de anjo. Dessa
motricidade corporal é que dependerá o despertar de sua inteligência, e
será ela que transformará o pulsional em atividade de pensamento pela
motilidade psíquica.

A "teoria cloacal" do nascimento

A segunda teoria sexual infantil, a teoria cloacal do nascimento, se constrói


como prolongamento da primeira, pela ignorância da vagina. Nessa teoria,

20 Numerosos romances noirs declinam o tema da evisceração, particularmente, para citar


somente um dos mais conhecidos, A Dália negra, de James Ellroy, que se inspira em um fato real.

70
A descoberta do infantil

há apenas um orifício, o orifício intestinal pelo qual “a criança tem de ser


expulsa como um excremento, uma evacuação” (p. 21). Freud frequente­
mente retoma a fórmula latina que Santo Agostinho cita nas Confissões: “In­
ter urinas et faeces nascimur"21 ("nascemos em meio a urina e fezes”). A teoria
cloacal também ignora a separação: a criança é um pedaço do corpo defe-
cado. Na Provença, não era raro ouvir das amas de leite “meu pintinho” para
falar das crianças — meninos ou meninas — de que elas tomavam conta, o
que remete à teoria cloacal. Nessa hipótese elaborada pela criança, não há
separação, a criança não é senão um fragmento do corpo materno.
No plano psíquico, o fato de se considerar como um fragmento do corpo
materno corresponde ao estado de mania. No estado de mania não há sepa­
ração dos corpos, não há separação dos pensamentos entre mim e outrem.
Freud ilustra isso inspirando-se em sua experiência clínica: “Uma maníaca,
por exemplo, levará o médico que está fazendo uma visita até um pequeno
monte de lama que ela depositou em um canto de seu quarto e lhe dirá,
rindo: ‘Aqui está o filho que tive hoje’” (p. 22). O estado de mania é precisa­
mente, nesse momento cloacal, a impossibilidade de separar os corpos e de
separar os pensamentos. Há um corpo para duas psiques, ou inversamente
uma psique para dois corpos.
A unidade do corpo reivindicada na primeira teoria sexual infantil pro-
longa-se, pois, com o estado de mania da teoria cloacal: refazer o uno. Desse
"uno” sofria Elisabeth von R., na medida em que ela se sentia una com seu
pai, mais exatamente, seu pai se sentia uno com ela, ao lhe dizer que ela
substituía para ele um filho e um amigo. Havia essa solda entre eles: a per­
na de Elisabeth fixada ao corpo paterno.
O estado de mania não faz a diferenciação entre si mesmo e o outro, é
um estado de indistinção, uma negação da separação dos pensamentos e
dos corpos, enquanto todo o trabalho de luto nesse quesito será conseguir
chegar a admitir um corpo separado e uma atividade de pensamento sepa­
rada. Essa mesma negação da separação entre si mesmo e o outro pode ser
encontrada no comportamento paranoico que quer controlar os pensamen­
tos de outrem, até mesmo estar na origem destes.

21 Essa expressão, que provém de Porfirio (233-304), foi frequentemente citada por autores
latinos e retomada por Santo Agostinho em suas Conjissões. Freud, por sua vez, refere-se a ela em
vários textos: 0 mal-estar na cultura, “Do rebaixamento generalizado da vida amorosa", e no caso
Dora (Análise fragmentária de uma histeria).

71
Compreender

A "teoria sádica do coito"

A terceira teoria sexual infantil é a "teoria sádica do coito’’. É uma teoria que
Freud quis verificar a qualquer preço em sua preocupação de marcar sua
separação em relação a Jung, que se preocupava somente com o presente do
paciente22, sem levar em consideração a sexualidade infantil, na época da
análise do Homem dos lobos. Com efeito, este último relatava que quando
era criança ele assistira a três coitos entre seus pais, enquanto ele fazia a
sesta no quarto deles, declaração que não parecia pensável pois eles viviam
em um grande castelo e sobre a qual, aliás, ele voltou depois.
A teoria sádica do coito demonstra a impossibilidade ainda existente
de elaborar a diferença entre os sexos, a diferença homem/mulher. Ela dife­
rencia apenas entre ativo e passivo, mas de modo extraposto e não mais in-
trapsíquico. O que aparece como ativo/passivo é primeiramente experimen­
tado subjetivamente como forte/fraco, agressor/agredido, única maneira de
pensar a diferença entre masculino e feminino, homem e mulher. É uma
teoria que deixa de lado o par masculino/feminino e a diferença homem/
mulher. Eu sou forte, portanto sou ativo, portanto sou masculino; sou fraco,
portanto sou passivo, portanto sou feminino.
Isso vai ao encontro da bissexualidade psíquica, a saber, que o forte, o
fraco, o ativo e o passivo não procedem do dimorfismo sexual, mas não são
mais que qualidades psíquicas que existem em todos os humanos. Pode-se
encontrar aqui a reivindicação da unicidade do corpo, portanto a negação
das diferenças sexuais e da sexualidade. Não se trata de afirmar uma posi­
ção identitária absolutamente conforme ao que Freud anuncia nas prelimi­
nares desse texto (Geschlechtstrieb). Trata-se de uma pulsão identitária e não
de uma pulsão sexual.

Do segredo à separação

Para tentar responder à questão "de onde vêm as crianças?’’, a criança orga­
nizará essas teorias no maior segredo, mobilizando sua reflexão em provei-

22 Partir da neurose infantil é uma atitude deliberada de Freud, em oposição a Jung, para
afirmar sua posição, a do analista que privilegiará a neurose infantil como organizadora da
neurose adulta.

72
A descoberta do infantil

to de fantasias. O segredo (Geheitnnis) já representa uma encenação interior,


é o que se opõe enquanto atividade psíquica ao corpo estranho, isto é, um
saber que viria do exterior e que estaria enquistado em nós. Além disso,
a primeira descoberta feita por Freud no caso de Elisabeth von R. foi que,
contrariamente ao que ele pensara no começo dessa cura, ela não sofria
de um "corpo estranho” (Fremdkôrper) que teria funcionado como um isola­
mento, mas que ela possuía um segredo, isto é, uma cena de fantasia, um
roteiro que dirigia seu corpo. O segredo enquanto roteiro fantasmático pre­
para, elabora a imagem do corpo da criança. As três teorias sexuais infantis
referem-se, pois, a uma cena privada, uma cena que separa os pensamentos
da criança dos de seu pai ou de sua mãe. É tentador fazer o paralelo com
o que Montaigne chamava de seu “pensoir" ou "os pensamentos de trás da
cabeça”, evocados por Pascal23.
Esse segredo gerará um conflito psíquico na criança entre o saber de
seu corpo próprio e o saber das pessoas grandes, conflito que pode resultar
em uma "clivagem psíquica” (Spaítung) na criança, dividida entre a tentação
consciente de agradar os adultos não refletindo mais por si mesma ou a
de reprimir inconscientemente suas investigações. Isso é comentado por
Octave Mannoni em um texto intitulado "Je sais bien, mais quand même”:
“Essa fórmula 'eu bem sei, mas mesmo assim’ nem sempre nos parece tão
surpreendente, pois estamos acostumados a ela; em um sentido ela é cons-
tituidora da situação analítica, poder-se-ia dizer que antes da análise a psi­
cologia não queria ligar-se ao 'eu bem sei’, esforçando-se por livrar-se do
'mas mesmo assim’. Uma certa duplicidade, prefiguração vaga da clivagem
do Eu, era bem conhecida, ao menos desde São Paulo, mas jamais se sou­
bera o que fazer com ela senão um escândalo diante das concepções unitá­
rias e moralizantes do Eu”24.
É nessa clivagem psíquica vivida pela criança que Freud situa o “com­
plexo nuclear da neurose" (p. 18). 0 “complexo nuclear da neurose” é essen­
cialmente uma proibição de pensar a situação na qual eu me encontro. Se
a criança se ativer às futilidades mitológicas que seus pais lhe contam, se
ela não confiar em seu sentimento corporal, ela entrará na neurose e será
incapaz de se libertar do discurso das pessoas grandes. Freud voltará a esse

23 “Rei e tirano. Eu também terei meus pensamentos de trás da cabeça" (Pensamento 650),
in Pensées, ed. Ph. Sellier, 1991 (Classiques Gamier).
24 O. Mannoni, "Je sais bien, mais quand même'' (1963), in Clefs pour Vlmagimire ou i'Autre
Scène, Seuil, 1969, p. 9-33.

73
Compreender .

ponto em 0 mal-estar na cultura (capítulo VII) ao evocar a impossibilidade de


se separar dos grandes homens. Do mesmo modo, O homem Moisés e a religião
monoteísta aborda novamente a obediência da humanidade aos grandes ho­
mens, obediência que impede a liberdade de pensamento.
Pode-se perceber aqui o principal fator de toda inibição intelectual: ouvir
os grandes homens, obedecer-lhes, obedecer ao pai. Isso se prolonga também
em cada um de nós por essa reação que nos conduz a nos interrogarmos sobre
o porquê de determinado olhar, determinada palavra, ou gesto em relação a
nós. Enquanto permanecermos em suspensão obediente ao olhar, às palavras,
aos resmungos das outras pessoas, estaremos vivendo uma interrupção de
pensamento, estaremos obedecendo ao pai e em um estado de "expectativa
crente”. No limite, essa colocação em suspenso pode fazer com que nos con­
tentemos com a expectativa para evitar o enfrentamento com o outro. É isso
que caracteriza as análises infinitas que provocam a suspensão do agir.

Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci

Em Uma lembrança de infância de Leonard o da Vinci28, texto publicado em 1910,


ou seja, um ano após o caso do pequeno Hans, Freud retoma a questão das
teorias sexuais infantis, evocando o período de investigação sexual infantil
que a criança atravessa por volta dos três anos de idade: "Mas como sua
própria constituição sexual ainda não é capaz de assumir a tarefa de pro-
criar, sua investigação para saber de onde provêm as crianças deve neces­
sariamente perder-se na areia e, por não poder ser levada a termo, deve ser
abandonada. A impressão produzida por esse insucesso, durante a primeira
tentativa de autonomia intelectual, parece ser persistente e profundamen­
te deprimente" (p. 83).
Quando se encerra esse período de investigação, a pulsão de saber
(Wisstrieb), que está totalmente imbricada com a sexualidade e com a orga­
nização da imagem do corpo, pode encontrar três tipos de destino, segundo
a evolução da criança.
Em um primeiro caso, se a investigação compartilha o destino da se­
xualidade, a pulsão de saber (Wisstrieb) será inibida, ao mesmo tempo em 25

25 S. Freud, Un souuenir de Leonard de Vinci (1910c), Paris, Gallimard, 1987. Todas as páginas
citadas remetem a essa edição.

74
A descoberta do infantil

que será inibida a própria sexualidade infantil. A inibição do pensamento é


a proibição de pensar, é colocar-se diante de um pai idealizado que não se
poderá ou que não se ousará igualar. Freud indica que essa poderosa inibi­
ção do pensamento se deve à religião, religião que pode ser a religião do pai,
isto é, do grande homem de nossa infância, e não obrigatoriamente uma
religião instituída enquanto sistema de representações. A criança coloca
para si mesma uma proibição diante de um pai idealizado que sabe mais e
que introduz a criança nessa clivagem psíquica que Freud evocava em “As
teorias sexuais infantis”: clivagem entre suas próprias sensações, seus bal-
bucios na experiência de pensamento e esse saber proveniente do exterior
que constitui uma espécie de corpo estranho para ela, pois não corresponde
àquilo que ela experimenta e sente. Freud retoma aqui a questão da inibi­
ção de modo um pouco diferente que o que ele introduzira em “As teorias
sexuais infantis”, ao evocar o luto a ser feito em relação ao grande homem
para ter acesso ao assassinato do pai que é o pai simbólico.
Uma segunda possibilidade pode se apresentar quando o desenvolvi­
mento intelectual da criança é suficientemente vigoroso para resistir à re­
pressão, mas quando a inteligência conserva os traços da primeira investi­
gação sexual que permanecera em xeque, porque a criança ainda não tem a
resposta para a pergunta Woher die Kinder kommen?. Ela se sente então em es­
tado de desespero, sem ponto de apoio ou base (Hiljlõsigkeit). Freud cita fre­
quentemente o seguinte provérbio alemão: Cristofer carrega Cristo, Cristo
carrega o mundo, onde Cristofer apoia os pés?. Esse provérbio um tanto
vertiginoso traduz de modo exato a Hilflõsigkeit que a criança experimenta,
em sua confusão adiante da questão do Woher: onde posso apoiar minha
identidade? Que lugar eterno pode garantir meu ser?. Ora, não há outro
lugar etemo além daquele que eu obtiver por meio de minha atividade de
pensamento, separada das grandes pessoas e dos grandes homens. Caso
contrário, sofrerei de inibição intelectual.
Esse segundo tipo de destino escapa da repressão, mas ao mesmo tem­
po ele se transforma em ruminação de pensamento (Grubelzuiang), rumina­
ção obsessiva que mantém a dúvida de modo permanente para impedir-se
de concluir. Manter a dúvida é deixar em suspenso o pensamento, outro
modo de não ter acesso ao livre-pensamento. Mas sobretudo é assegurar-se
de existir nunca deixando de pensar: não há repouso para o pensamento!
Pode-se perceber até que ponto os obsessivos têm a tendência a verificar
cinqüenta vezes se desligaram o gás, se apagaram a luz etc., incapazes de

75
Compreender

considerar uma verificação como uma conclusão satisfatória, sempre pron­


tos a verificar mais uma vez, na dúvida que toma o lugar do pensamento e
os mantém vivos por meio de uma atividade de pensamento permanente.
O terceiro tipo de destino que a pulsão de investigação pode conhe­
cer é, segundo Freud, “o mais raro e o mais perfeito”. Ele escapa tanto da
inibição do pensamento como da compulsão neurótica de pensar, porque
a libido, tudo o que é do registro do corpo erógeno, se transforma em su-
blimação. Nesse terceiro tipo de destino, a repressão não consegue enviar
para o inconsciente uma pulsão parcial do prazer sexual, ela não consegue
reprimir o corpo de prazer erógeno da criança, que permanece. A tradução
francesa dessa passagem também comete um contrassenso, pois fala de
“desejo sexual” (p. 85), quando se trata do prazer sexual (Sexualllust), isto é,
do corpo erógeno da criança. E é precisamente a permanência desse corpo
erógeno da criança que conduzirá a libido adulta a se sublimar, em vez de
ser reprimida. A libido da criança se subtrai à repressão sublimando-se des­
de o início em “vontade de saber” (Wissbegierde).
O problema, aqui, é que aparecerá um defeito na medida em que o cor­
po erógeno da criança não foi reprimido e em que a libido se sublima desde
o início em pulsão de saber. Com efeito, não haverá vida sexual, mas um
enfraquecimento da vida sexual.
Freud atribui esse modelo “mais perfeito” de sublimação a Leonardo da
Vinci, no qual, segundo ele, a libido se transforma imediatamente em subli­
mação, criando um impasse para a sexualidade adulta. Resta apenas uma
sublimação e uma pulsão de investigação poderosa que se limita a uma
“homossexualidade ideal”. Ora, esse modelo que Leonardo representa para
Freud nunca teve acesso ao corpo da mulher, ele provavelmente sempre
viveu em uma homossexualidade sublimada, mas na impossibilidade de
ter acesso a algo diferente do primado do saber. Leonardo da Vinci exprime
esse primado em uma bela expressão citada por Freud: “Nessuna cosa si può
amare nè odiare, se prima non si ha cognition di quella” (p. 73), o que significa
literalmente: "Nenhuma coisa pode ser amada ou odiada se antes não se
tiver tido conhecimento dela”.
Nele, a investigação toma o lugar da ação, o lugar da criação e o do
amor. É preciso conhecer a coisa antes de poder amá-la. Ora, amar é amar
no outro o que não se conhece, é aceitar o que há de enigmático no outro,
que nunca será totalmente desvelado. O primado, a preeminência do saber
sobre o amor é precisamente o que impede de amar ou, para usar um termo

76
A descoberta do infantil

familiar, o que impede de "perder o pé”. É fundamentalmente o contrário do


que Leonardo escreve. Se se colocar o saber nessa posição, nunca se chegará
à fraqueza do amor.
Aliás, Leonardo da Vinci nunca conseguia terminar uma obra. E quan­
do de sua estada na França a convite de Francisco I ele veio com todas as
suas telas, porque ele não podia se separar delas — razão pela qual o Louvre
possui tantas obras de Leonardo da Vinci. A análise que foi feita de todas as
camadas sucessivas de pintura que se sobrepunham sobre suas telas con­
firma que ele as retomava incessantemente. Leonardo da Vinci mantinha o
inacabamento porque suas obras faziam parte dele mesmo, elas eram um
fragmento de seu corpo ou um prolongamento dele mesmo. Terminar uma
obra o teria levado a separar-se dela, o que é próprio da obra de arte. Pelo
contrário, Picasso nos oferece um exemplo de verdadeira criação: apesar de
se queixar toda manhã de males diversos, ele pintava o dia inteiro. Ele sabia
desafeiçoar-se de suas obras e separar-se delas. Vê-se neste exemplo que
Leonardo está mais próximo da segunda teoria sexual infantil e do estado
de mania que da sublimação perfeita, tal como Freud imaginava.
Pode-se, pois, formular uma versão da sublimação diferente da que foi
proposta por Freud. Com efeito, o que caracteriza a sublimação não é a re­
pressão do infantil e sim o fato de que as pulsões parciais da sexualidade
infantil podem se deslocar livremente — pois elas não são arrazoadas pela
repressão — e como são “polimorficamente perversas” elas podem ir para
o lado da criatividade. O que deve ser reprimido, no fim das contas, não é
a sexualidade infantil e sim o corpo da mãe, a perigosa proximidade com
o corpo temível de outrem, para que haja separação, para que haja dois, e
não mais um só.
Em O homem Moisés e a religião monoteísta26, Freud retoma claramente
esse ponto, na última seção: "Sabemos que Moisés conferira aos judeus o
orgulho de ser um povo eleito”. Ora, toda eleição comporta uma dimensão
de interpelação e cria a diferença entre um “eu” e um “tu". “Ouça Israel”
representa a interpelação de um povo em relação a um Deus invisível que
não está na terra, diferentemente das divindades do paganismo greco-ro-
mano, que se encontravam em todos os lugares, nas fontes, chafarizes, nas
encruzilhadas etc., porque o cosmos era sagrado, divino — Deus sive natura.
O que caracteriza o judaísmo é, pois, a "desmaterialização de Deus” (p. 214).

26 S. Freud, L’Homme Moíse et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986.

77
Compreender .

E é isso que faz com que o eu “possa se manter à disposição do aparelho


de pensamento e de músculos para satisfazê-lo por meio de uma ação”2'.
A separação do corpo da mãe permitirá que saiamos do estado de mania
de pensamento para passarmos a possuir um aparelho de pensamento e de
músculos, isto é, um corpo limitado que nos separa do outro e torna pos­
sível a autonomia.
Aqui Freud opõe a motilidade psíquica à motricidade corporal que, no
entanto, é correlativa a ela. A motilidade psíquica é necessária para que o
corpo possa começar a agir livremente, longe do Outro (sob todas as formas
que ele possa assumir). Contrariamente ao que Leonardo diz, o pensamento
não é a condição do amor ou do ódio, isto é, do lado do controle. Ele é antes
da ordem da hospitalidade intelectual. A atividade de pensar é côncava,
e não convexa. Assim que escapamos da “urgência de pensar”, cuja prin­
cipal função é a de eliminar o outro da cena da realidade, passamos para
outro registro. Esse outro registro apresenta uma grande semelhança com
o que Freud definiu no quadro da cura psicanalítica: passar de uma “po­
sição intelectualista de saber” (inteüektualistischer Denkeinstellung), na qual
se encerram alguns psicanalistas, para uma “posição psíquica” (psychische
Einstellung) que implica uma verdadeira disponibilidade para acolher o ou­
tro, mobilidade que consiste em passar de uma posição psíquica para outra
segundo as necessidades do paciente.
Entretanto, o pensamento conserva um vínculo estreito com a sexua­
lidade em ambos os casos, que são igualmente empreendimentos de con­
trole: no perverso e no paranoico. O perverso (não se trata mais aqui do
“polimorficamente perverso”) visa controlar e apossar-se do prazer do outro,
como ilustra o romance de Laclos, As ligações perigosas, que é construído so­
bre as trocas epistolares de diversos personagens. As cartas de Valmont à
marquesa de Merteuil apresentam um roteiro imutável e repetitivo: Valmont
acumula as conquistas como se se tratasse de conquistas militares (o pró­
prio Laclos era militar): “A. senhora pode perceber que preciso aqui de um
triunfo completo e que não quero deixar nada ao acaso”. Isso é um modo de
conjurar o acaso em todo encontro. Ele coleciona as mulheres para humi­
lhá-las, dominá-las, vencê-las, antes de deixá-las cair. “Ei-la, pois, vencida,
essa mulher soberba que ousara pensar que poderia resistir a mim!” Além
da libertinagem sexual, o perverso visa, pois, provocar a queda e o avilta- 21

21 Ibid., p. 215.

78
A descoberta do infantil

mento do outro, substituir o amor pela força. Desse modo, ele se situa no
registro forte/fraco, o da terceira das teorias sexuais infantis.
No paranoico, o pensamento visa controlar o pensamento do outro, co­
nhecer seus pensamentos e dirigi-los. Estamos aqui no registro da segunda
das teorias sexuais infantis, que corresponde ao estado de mania, uma ati­
vidade de pensar para dois corpos, de tal modo que o outro não me escape.
Dois textos da Antiguidade ilustram esses componentes da sexualida­
de infantil. Em primeiro lugar, As Confissões, em que Santo Agostinho des­
creve sutilmente, ao seu modo, o procedimento que consiste em “esconju-
rar a volta de acontecimentos temidos": “Assim, o que há de inocente na
criança é a fraqueza de seus órgãos. Mas não sua alma. Uma criança que eu
vi e que observei era ciumenta. Ela ainda não falava. Ela olhava fixamente,
pálida e amarga, seu irmão de leite. Esse é um fato conhecido. As mães e
amas de leite pretendem esconjurar esse mal não sei com que práticas.
Chamaremos também de inocência, quando a fonte do leite materno é tão
abundante, não tolerar perto de si um irmão que tem tanta necessidade e
só com esse alimento para sustento da vida”26. Trata-se certamente de uma
lembrança pessoal, ele próprio talvez fosse a criança que olhava e tentava
afastar o outro, a saber, seu irmão Alípio.
Por fim, no Banquete, Platão coloca em cena diversos oradores, parti­
cularmente Aristófanes, que, em seu famoso discurso sobre o amor, expõe
o mito do hermafrodita, tal como o transmitiram as narrativas homéricas,
para mostrar que cada metade separada pela vontade dos deuses procura
incansavelmente sua outra metade, homem ou mulher. Ele conclui: “Eis a
razão para isso: nossa antiga natureza era a que já contei e éramos feitos
de uma única peça (oloi)! Também ao amor e à busca dessa natureza de
uma única peça (olou) se dá o nome de amor”20. O adjetivo grego olos, que
não possui equivalente em francês, significa por inteiro, completo, o todo.
Vemos, pois, nessas frases que o amor é uma mistura de aspiração (epithu-
mia) de formar um todo com o outro e de desejo na direção da falta (penía)
desse “todo”. Aristófanes termina com as seguintes palavras: “O meio de
nossa espécie chegar à felicidade seria, para nós, o de dar ao amor seu aca­
bamento, isto é, que cada um tivesse comércio com um amado que fosse
propriamente o seu; o que é, para cada um, retomar à sua antiga natureza. 28 29

28 Santo Agostinho, Les Confessions, Livro I, VII, 11, op. cit.


29 Platão, Le Banquet (192e), trad, de L. Robin, Gallimard (La Pléiade).

79
Compreender ||H|D

E se esta for a perfeição, então o que há de mais perfeito entre as realidades


de nossa experiência presente necessariamente é também o que mais se
aproxima dela”30.
Em uma carta a Jung de 19 de dezembro de 1909, Freud escrevia: “Ad
uocem mitologia: você observou que as teorias infantis da sexualidade são
indispensáveis para os mitos?".
Elas são indispensáveis para a compreensão dos mitos. Elas são indis­
pensáveis, em sua dimensão fantasmática, para a elaboração da psique e
deixam sua marca indelével em todas essas buscas de "encontros” que não
são senão "reencontros" e que participam da construção do sujeito.
O que constitui a descoberta capital de Freud, em sua exploração do in­
fantil, é que a sexualidade infantil nasce da busca do "gênero”, da pulsão iden-
titária, pulsão identitária que determinará na criança todas as suas relações
com os objetos. E, na medida em que ela é pulsão identitária — Geschlechts-
trieb —, a sexualidade infantil é assexuada, ela é essencialmente autoerótica,
no sentido do prazer erógeno experimentado ao descobrir a geografia de seu
próprio corpo, ao explorar seu contorno para que ele se tome uma unidade
significante. Naturalmente, ela tropeça no que poderia ser o ponto arquime-
diano sobre o qual eu poderia repousar, porque não há outro apoio senão o
de continuar a pensar. A identidade é perseguida na continuidade do ser, que
se fundamenta na continuidade do pensamento e não na continuidade de
atividade de pensamento como é o caso para o obsessivo.

30 Ibid., 193c.

80
Capítulo V

Uma intuição freudiana:


a importância da temporalidade

Fouille, fouille, fouille,


Dans la marmite de son ventre est un grand secret
Mégères alentour qui pleurez dans vos mouchoirs;
Et on vous regarde
On cherche aussi, nous autres, le Grand Secret1.
Henri Michaux

O papel da temporalidade na estrutura psíquica emerge muito cedo duran­


te a formação de Freud e assumirá um lugar decisivo em suas descobertas
ulteriores. Apesar de seu ateísmo, seu conhecimento da cultura judaica e
seu pertencimento a essa comunidade conduzem Freud a refletir sobre a
revolução introduzida pelo judaísmo que fez o homem passar da dimensão
espacial para a dimensão temporal.
Já em 1882, quando tinha apenas 26 anos, Freud relata à sua noiva
Martha sua reflexão sobre as mudanças introduzidas pelo judaísmo, pre­
cisamente quanto à concepção da temporalidade. Ele aborda essa questão
em uma carta do dia 23 de julho de 1882, data em que ocorria a festa das
tendas, comemoração da destruição do templo de Jerusalém. Quando ele
próprio se encontrava em Flamburgo, onde vivia Martha Bernays (que per­
tencia a uma antiga família judia de Hamburgo), essa celebração o impe­
dira de ver sua noiva. Ele lhe escreveu então: "Porque Jerusalém fora des­
truída, há muito tempo por volta dessa época do ano — seguindo, aliás,
um cálculo errado—, eu não iria ter o direito de falar com minha noiva no

1 H. Michaux, Le Grand Combat, in L’Espace du dedans, Gallimard, 1944.

81
Compreender

último dia de minha estada aqui. [...] Jerusalém está destruída, mas mi­
nha pequena Martha e eu vivemos e somos felizes. [...] E os historiadores
dirão que se Jerusalém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos de­
saparecido como tantos outros povos antes e depois de nós. Foi somente
após a destruição do templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde
ser construído”2.
O que surpreendia Freud naquele momento era que tinha sido neces­
sária a passagem pela destruição do edifício feito de pedras para que o tem­
plo invisível do judaísmo pudesse existir, em um tempo desterritorializado
em que a história e o sujeito tinham de ser construídos por não haver ini­
cialmente um lugar no qual se estaria sob domínio. Esse “invisível edifício”
espiritual separa o homem da terra e do cosmo grego no qual ele não era
senão um microcosmo, um fragmento do universo e do Todo, fazendo-o en­
trar em uma nova dimensão temporal: a memória (Erirmerung) e a história.
O edifício invisível do judaísmo abre, pois, o homem para a temporalidade
e convida-o a se lembrar (Zafehor) e à memória. Como corolário dessa intui­
ção, Freud compreende que é preciso separar-se da terra para ter acesso a
uma posição que não seja mais a de uma sujeição: "Ouça Israel” representa
precisamente uma interpelação por um deus ausente, fora do mundo, que,
ao colocar um "eu” e um “tu” distintos, funda a subjetivação. O sujeito de
nossas sociedades deve escrever sua história, pois ele não tem um lugar
garantido no universo.
Freud evidencia desse modo que o fator temporal prevalece sobre o
elemento espacial, tanto no funcionamento da sociedade como na constru­
ção do indivíduo. O fato de que uma religião não se enraíze na terra como
era o caso do paganismo e das religiões da antiguidade grego-romana, mas
sim na memória e na celebração da memória da história, corresponde para
Freud à metáfora da psique, pois será a psique que organizará o corpo, um
corpo marcado, através da construção das diferentes etapas do corpo, pela
história de sua elaboração. Ora, a história da elaboração de cada corpo é
absolutamente singular e não se parece com nenhuma outra. Ela é marca­
da por angústias, por abandonos das separações exigíveis que conduzem
à capacidade de entrar em relação com outrem ao mesmo tempo em que
entra no relativo, pois não há relação senão no relativo, e só há relativo na
medida em que há relação.

2 S. Freud, Correspondence 1873-1939, Gallimard, 1991, p. 29-30.

82
Uma intuição freudiana: a importância da temporalídade

A memória da psique é que poderá assegurar uma continuidade entre


o tempo vivido e o espaço habitado, e não uma estrutura exterior ao sujeito.
Observando uma criança que aprende a andar, pode-se perceber que ela
avança lançando-se desajeitadamente de um ponto de apoio a outro. Ela
vive o espaço como descontínuo, como um puro vazio angustiante entre os
pontos de apoio graças aos quais ela existe, pois ela só pode viver agarrada
à ordem espacial da terra. Será a psique que, entre esses pontos de apoio
separados no espaço, organizará para ela uma continuidade temporal por
meio de sua atividade psíquica.
Toda a educação para a apreensão e para o domínio do espaço passa
pela separação em relação a este e à intuição interna de uma temporalídade
que permite estabelecer laços entre o que é do registro do descontínuo e
do rompido. Quando Freud observa o jogo do Fort-Da3 ao qual se dedica seu
neto, ele obtém a confirmação dessa passagem libertadora da dimensão es­
pacial para a consideração da temporalídade. Com efeito, quando sua mãe
está ausente, o pequeno Emst joga com raiva os objetos para longe de si,
acompanhando seu gesto com o som OOO, deformação infantil de Fort, que
significa “longe”. Essa atividade geocentrista responde a uma pulsão clássi­
ca: destruir os objetos para exprimir seu furor por não mais ter a mãe ao seu
lado. Depois ele descobre outro aspecto do jogo, graças a uma bobina que foi
amarrada à sua cama com um fio. Ele joga a bobina para longe dizendo Fort,
e então a traz de volta dizendo Da (Eis aqui). Assim ele pode controlar o afas­
tamento do objeto e de sua mãe, repetindo ao infinito esse jogo de ausência/
presença. Ele obtém assim a capacidade de ausentar a si mesmo do objeto e
de elaborar sua própria solidão sem vivê-la como uma ameaça de ausência
definitiva. Ele restitui ao objeto sua qualidade aleatória e toma possível um
encontro ulterior com este no eixo de um temporal vetorizado, o futuro.
A experiência vivida por Freud durante sua primeira análise, com Elisa­
beth von R., fornece outra ilustração disso. Essa jovem mulher, que sofria de
abasia, vivia sem o saber uma sutura entre seu corpo e o de seu pai, que lhe
atribuíra um lugar do qual ela não podia sair: um filho ou um amigo para ele
que tinha tido apenas filhas. Quando ela encontrou Freud, por ser incapaz
de andar, ela se exprimiu do seguinte modo: “Sie teomme nicht uon der Stelle”.
Ora, essa frase significa ao mesmo tempo: "não posso avançar” e “não posso

3 S. Freud, Au-delà du príncipe de plaisir (1920g), cap. 2, in Essais de psichanalyse, Payot,


1973.

83
Compreender

deixar este lugar”, lugar que lhe havia sido imposto por seu pai. Essa análise
evidencia precisamente que palavras podem fixar em uma residência, em
um lugar geográfico que impede o sujeito de se desenvolver em sua história.
Nos Estudos sobre a histeria, Freud se afasta definitivamente da psiquiatria
clássica ao reduzir a histeria à intensificação de uma emoção. Quando es­
creve: “A histérica sofre principalmente de reminiscências’’4, Freud inaugura
com essa simples observação uma nova concepção do homem: o homem é
um sujeito em sofrimento, sofrimento ligado à sua memória e à sua história,
sofrimento de subjetivação ligado à sua memória não historicizada.
O homem tem, pois, uma relação privilegiada com sua própria histó­
ria. Mas essa história é fonte de sofrimento na medida em que ela não é
senão reminiscência, sem ser historicizada. Quer se trate da memória sub­
jetiva quer da escrita e da relativização dessa memória, a língua francesa
exprime isso com um único termo: “história”, o que cria uma constante
ambigüidade, enquanto o alemão dispõe de dois termos diferentes: Historie
e Geschichte, assim como o latim: res gestae et historia rerum gestarum. Freud
prossegue com esta observação: “Nossas observações provam que, dentre
as lembranças (Erinnerungen), aquelas que provocaram o aparecimento de
fenômenos histéricos conservaram um extraordinário frescor e, durante
muito tempo, seu pleno valor emocional. No entanto, é preciso salientar,
como um fato notável, que essas lembranças, contrariamente a muitas ou­
tras, não ficam à disposição do sujeito’’5. Isso coloca Freud atrás da pista de
um inconsciente que é zeitlos, atemporal, isto é, que está em um tempo não
vetorizado historicamente. E, a partir desse texto, ele pressente o papel da
repetição (Wiederholung) e da constrição que ela introduz, sem poder ainda
levá-la realmente em consideração e sem poder apreender seus efeitos.
Do mesmo modo, na saída do complexo de Édipo, tal como Freud a
proporá posteriormente, o que está em jogo para a criança em relação ao
investimento e à identificação com seus pais é saber que lugar ela poderá
ocupar: um lugar geográfico ou um lugar psíquico?. Em vez de uma atitu­
de geocêntrica que consiste em tentar ocupar o lugar do pai ou da mãe,
aninhando-se no lugar de outrem, a passagem para o tempo como fator
essencial de identificação e de saída do édipo é o momento em que ela
pode pensar que é capaz de criar seu próprio lugar: “quando eu for grande,

4 S. Freud, Études sur 1'hystérie (1895d), PUF, 1956, p. 5.


5 Ibid., p. 6.

84
Uma intuição freudiana: a importância da temporalidade

eu serei...”. Ao empregar o futuro, a criança entra em um tempo que não


é mais retroativo e sim vetorizado por seu próprio tempo, por sua própria
temporalidade psíquica.
Assim, sem poder realmente formalizar nem explicitar isso, desde sua
carta a Martha em 1882, Freud privilegia o tempo em vez do espaço, a histó­
ria em vez do cosmos, a separação em vez da vontade de constituir apenas
um, específica do mundo grego. Ora, o corpo freudiano, o corpo na psicaná­
lise não é outra coisa além disso. Ele é um corpo que remete à história sin­
gular de um sujeito, sujeito que “sofre de reminiscências". Não se trata aqui
da reminiscência platônica, que consiste em entrar em acordo sobre um
saber incriado e etemo, mas dessa reminiscência que remte à construção
subjetiva de nossa história, sem vinculo direto com a inteligência divina. A
história é o inacabamento de si, enquanto o espaço é o refúgio para colocar-
se ao abrigo de si mesmo.
Essa prevalência do temporal sobre o espacial será um dos pontos que
oporão Freud a Jung, pois este último privilegia a experiência subjetiva em
vez da natureza, correndo o risco de se deixar engolir no espacial e no geo­
gráfico. O ponto de partida de Jung, ligado à sua experiência existencial de
uma mãe omissa e de um pai incapaz, é que o sentimento de existir não
pode nascer perto de um outro, mas, de algum modo, fundindo-se com a
natureza. Em Os devaneios do caminhante solitário, Jean-Jacques Rousseau ex­
prime um sentimento idêntico quando evoca sua felicidade ao passar horas
meditando ao lado do lago de Bienne: “O que se usufrui em tal situação?
Nada exterior a si, nada a não ser si mesmo e sua própria existência, e en­
quanto esse estado durar a pessoa basta a si mesma como Deus”6. Pode-se
observar em Jung uma evitação da individuação ao aspirar a uma fusão
com o espaço, enquanto a emergência da temporalidade constitui o fio ver­
melho que reaparecerá periodicamente na teoria freudiana. Toda relação
com o outro passa pelo tempo, e é o tempo que é simultaneamente separa­
dor em relação ao outro. A colocação à parte do espacial, do geográfico de
algum modo, conduzirá Freud a valorizar a relação, a relação com o outro,
em vez da experiência subjetiva evidenciada por Jung.
Toda a tarefa de Freud, em sua invenção da psicanálise, consiste em
chegar a um processo de individuação, arrancando o homem da terra e da

6 Jean-Jacques Rousseau, Les Reveries du promeneur solitaire, Cinquième promenade, Galli-


mard, tomo I, p. 1.047 (La Pléiade).

85
Compreender

"compacta maioria” segundo a expressão que ele toma de Henrik Ibsen (em O
inimigo do povo) e que ele cita em uma carta de 6 de maio de 1926, dirigida ao
B’nai B’rith (ao qual ele aderira em 1895): "O fato de que vocês sejam judeus
não poderia senão agradar-me, pois eu próprio era judeu e negar isso sempre
me pareceu ser não apenas indigno, mas também francamente insensato.
O que me vinculava ao judaísmo era não apenas a fé — devo confessar —
nem mesmo o orgulho nacional, pois sempre fui descrente, fui criado sem
religião, mas não sem o respeito daquilo que se chama de exigências ‘éticas’
da civilização humana. Cada vez que experimentei sentimentos de exalta­
ção nacional esforcei-me por repeli-los como funestos e injustos, advertido e
assustado pelo exemplo dos povos dentre os quais vivemos nós, judeus. Mas
ainda restavam suficientes coisas capazes de tomar irresistível a atração do
judaísmo e dos judeus, muitas obscuras forças emocionais — mais podero­
sas quanto menos puderem ser expressas em palavras —, assim como a cla­
ra consciência de uma identidade interior, o mistério de uma mesma construção
psíquica. A isso logo se acrescentou outro fato: compreendi que era somente
à minha natureza de judeu que eu devia as duas qualidades que haviam se
tornado indispensáveis para mim em minha difícil existência. Como eu era
judeu, fui libertado de muitos preconceitos que limitam nos outros o em­
prego de sua inteligência; enquanto judeu eu estava pronto a passar para a
oposição e a renunciar a me entender com a ‘compacta maioria’”7.
O que Freud retém é menos o pertencimento a uma comunidade do
que o fato de se referir a uma forma de temporalidade psíquica que permite
construir sua própria história, construir a si mesmo como sujeito.

J S. Freud, Correspondance 1873-1939, Gallimard, 1991, p. 398. Itálico meu.


Capítulo VI

Da transferência ao seu declínio

Não há para o homem preocupação mais constante


que a de procurar um Outro diante do qual se curvar.
Dostoiévski, Os irmãos Karamazou

Freud não descobriu a transferência, ele constatou sua presença, sua ação
e seus efeitos na vida de cada pessoa. Mas serão necessários anos, depois
de definir o papel da “expectativa crente” que prefigura sua abordagem da
transferência e depois de observar as relações entre histeria e transferên­
cia, para poder evidenciar sua função capital de dependência em relação
ao outro, até mesmo de alienação ao outro. A partir daí, no âmbito da cura
psicanalítica, ele poderá por fim definir a posição psíquica exigível do ana­
lista, permitindo assim acabar com a transferência na análise, chegar ao
“declínio da transferência”. Desse modo, a transferência não é de modo al­
gum valorizada pela psicanálise. Mas em um registro histérico há uma len­
ta hesitação, uma alternância permanente, permutativa, entre o registro
identificatório e o registro de investimento.
A teoria que Freud inventou não é a da transferência e sim a da "neu­
rose de transferência”, que intervém de modo determinante no estabeleci­
mento e na obtenção da cura. Durante mais de vinte anos, entre 1890 e 1914,
foi através de um caminho complexo constituído por descobertas, esqueci­
mentos e confusões que Freud conseguiu evoluir em sua compreensão da
transferência e elaborar o necessário declínio da transferência analítica.

87
Compreender

"O tratamento psíquico" (1890) e a expectativa crente

Em 1890, Freud escreveu um texto intitulado “O tratamento psíquico”' (psy-


chische Behandlung), no âmbito de uma enciclopédia médica popular sobre
a saúde, destinada às famílias. Esse texto extremamente rico, quase pré-
analítico, contém em germe numerosos elementos que Freud explorará e
prolongará em textos posteriores, até O homem Moisés e a religião monoteísta2.
Nessa época, Freud ainda era neurologista e tratava as doenças nervosas
com eletroterapia e indução hipnótica. Ele se encontrava ao mesmo tempo
em uma relação transferenciai com Fliess, no âmago da qual ele elaborou
um saber diferente do transmitido por Charcot e Bemheim, um saber menos
carregado pelo desejo consciente de saber, a pulsão de saber, que pelo enig­
ma que ele é para si mesmo na descoberta progressiva dos fatores transfe­
renciais em ação.
Um ano antes de ‘‘O tratamento psíquico”, Freud cuidou de Frau Emmy
von N. (na realidade a baronesa Fanny Moser, riquíssima viúva de um ban­
queiro vienense), que sofria de diferentes males histéricos após a morte de
seu marido. Ele tentou massagens de relaxamento antes de recorrer à hipno­
se como indução, por meio de sua palavra, da palavra de sua paciente. Nos
Estudos sobre a histeria3, ele descreve uma sessão durante a qual sua paciente
manifestou um terror evidente: "Não se mova, fique calmo, não diga nada,
não faça discurso, não me toque!”, exigiu ela. Três dias depois, quando Freud
obtemperou ao renunciar à indução hipnótica, ele observa que ela se en­
contra em uma posição de “expectativa desagradável”, estado de vigilância
relativa a todas as infelicidades que poderiam surgir. No dia seguinte, Freud
observa: “Contrariamente à minha expectativa...”. Ele não está mais então
em posição de saber o que induzirá algo para ela, mas em um estado de
passividade, de expectativa sobre o que pode emergir, nessa disposição sub­
jetiva que facilita as livres associações. Freud se inspirará particularmente
nas observações feitas ao longo dessa cura quando ele redigir “O tratamento
psíquico", um ano depois. As palavras de Frau Emmy von N. antecipam e
esboçam de algum modo a regra que Freud definirá depois: deixar-se sur­
preender pelo inesperado que vem durante as sessões.

t S. Freud, Le traitement psychique (1890a), in Résultats, idées, problèmes I, PUF, 1984.


2 S. Freud, L'Homme Moise et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986.
3 S. Freud, Études sur Vhystérie (1895d), PUF, 1956, p. 42-47.

88
Da transferência ao seu declínio

O "tratamento psíquico” designa não tanto o tratamento do psiquismo


ou do psíquico, mas sim o tratamento pela atividade psíquica que visa a um
efeito tanto sobre o corpo como sobre a psique:

Ao procurar a origem das manifestações mórbidas dos nervosos e dos neuró­


ticos, descobre-se nessa ocasião que pelo menos em certos doentes os sinais
do mal não têm outra origem além de uma mudança na influência de sua vida
psíquica sobre seu corpo e que, por conseguinte, a causa primeira do distúrbio
tem de ser procurada no psíquico11.

Freud observa que o fator e as condições da cura dependem de um es­


tado de “expectativa” (Enuartung) e da forma que essa expectativa assume
para o paciente:

O estado psíquico da expectativa, que pode colocar em movimento uma série


de forças psíquicas e tem o maior efeito sobre o desencadeamento e a cura das
afecções orgânicas, merece nosso interesse no mais alto grau. A expectativa
ansiosa (cmgstliclie Enuartung) certamente não é indiferença quanto à saída da
doença. Seria importante saber com certeza se ela intervém tanto quanto se diz
no desencadeamento da doença, se for verdade, por exemplo, que durante uma
epidemia os mais ameaçados são os que temem ser atingidos. O estado oposto, a
expectativa crente (glaubige Enuartung) e repleta de esperança é uma força ativa
com a qual devemos contar, a rigor, em todas as nossas tentativas de tratamento
e de cura. Vemos ainda se produzir sob nossos olhos curas milagrosas, sem o
concurso da arte médica, sob a influência da expectativa crente. As verdadeiras
curas miraculosas se produzem nos crentes sob a influência de preparativos pró­
prios para modificar sua possibilidade de receber outra coisa4 5.

A expectativa ansiosa define aqueles que pensam que nada de bom


pode acontecer, tudo o que pode acontecer com eles só faz confirmar sua
infelicidade inicial. Isso é ilustrado por Jean-Jacques Rousseau no começo
de suas Confissões quando escreve: "Eu custei a vida da minha mãe, e meu
nascimento foi a primeira de minhas infelicidades’’6. Ele confirma aqui a

4 Le traitement psychique, op. cit., p. 5.


5 Ibid., p. 8-10.
6 J.-J. Rousseau, Les Confessions, Livro I (1770), Gallimard, tomo 1,1959, p. 7 (La Pléiade).

89
Compreender

posição paranoica que poderá ter no desenvolvimento de sua existência


em relação a toda a humanidade e que fundamentará sua misantropia. A
expectativa ansiosa é aquela que pode intervir no desencadeamento, e até
mesmo na escolha de certas doenças, pois várias doenças funcionais são
desencadeadas por um estado de angústia, de ansiedade ou de terror no
qual o sujeito pode se encontrar.
A outra forma de expectativa, a “expectativa crente”, representa o prin­
cipal fator de cura no caso de neuroses não orgânicas. Glaube significa fé em
alemão e Glaubisch, credulidade, mas o campo semântico dessa palavra é
muito amplo. A expectativa crente é uma posição psíquica de confiança no
outro e ao mesmo tempo uma posição de confiança em si de tal ordem que
tem um efeito favorável sobre a mudança pela influência da vida psíquica
sobre o corpo, que permite confiar no outro. Essa confiança será o motor de
uma cura cujo meio, mediador ou catalisador de algum modo, pois ele não
é o responsável, é o personagem santo ou divino que se revelou aos homens
e quer trazer salvação.
Freud também observa um obstáculo a todo tratamento psíquico: é o
que ele chama de “autocratismo” (Selbstherrlichteeit) da vida psíquica, isto é,
uma posição de desafio em relação a todos, ao médico em particular, que
se traduz por um debruçamento sobre si mesmo, por uma autossuficiência
e um controle de si mesmo que consistem em desconfiar de tudo, e parti­
cularmente da influência do outro sobre si. Freud evocará ainda esse auto­
cratismo da vida psíquica, em 1924, a respeito da psicose: “A psicose toma o
caminho mais autocrático”7.
Nessa época Freud pensava que o autocratismo podia ser combatido
pela hipnose: “Na hipnose, o sujeito se comporta como alguém que dorme
para o mundo exterior e que fica desperto somente em relação à pessoa que
o mergulha em um estado segundo”8. Contrariamente a Charcot, que utiliza
a hipnose pelo olhar para atingir o estado sonambúlico, Freud utiliza a hip­
nose pela palavra, como indução da palavra do paciente, brincando com o
verbo einreden — composto de ein (dentro) e reden (falar), que significa “suge­
rir”, “persuadir”, mas também “colocar suas palavras dentro das palavras do
outro”, segundo a feliz expressão de Nathalie Zaltzmann. Além disso, três

7 S. Freud, La perte de la réalité dans la névrose et la psychose, (1924e), in Neurose, psychose


et perversion, PUF, 1973, p. 301.
8 S. Freud, Le traitement psychique, op. cit.

90
Da transferência ao seu declínio

anos mais tarde, Charcot, depois de ter visto os efeitos de sua palavra que
era sempre uma palavra de diagnóstico sem que ele se dirigisse à pessoa,
perceberá o efeito dessa palavra e intitulará, de modo surpreendente, seu
último texto de "A fé que cura”.
Freud prossegue indicando que na hipnose “se encontra então a atitude
da criança em relação aos pais amados”. E essa é precisamente uma das
razões pelas quais ele rapidamente renunciará à hipnose, consciente de que
o recurso à hipnose volta a colocar em uma situação de dependência “em
relação aos pais amados”. Essa atitude de abandono da criança em relação
aos pais se encontra no masoquismo que Freud define ulteriormente, em
1924: “O masoquista quer ser tratado como uma pequena criança angustia­
da e dependente”8. A atitude da expectativa crente, ela também, pode ser
uma expectativa alienante, na medida em que ela expressa a necessidade
de contar com o outro e ela pode conduzir a não querer sair de uma posi­
ção de dependência infantil.

Histeria e transferência

O que Freud pressentira na expectativa crente iria conduzi-lo a perceber


a presença da transferência, particularmente graças às suas observações
sobre a histeria. Esse termo aparece pela primeira vez em seu texto de con­
clusão dos Estudos sobre a histeria, “Psicopatologia da histeria”, escrito em
1894, em que ele define do seguinte modo a transferência (Übertragung): "O
desejo atual está vinculado por uma coibição representativa à minha pes­
soa, que evidentemente passou para o primeiro plano das preocupações da
doente” (p. 245). A transferência, como a expectativa crente, é um fenômeno
histérico: trata-se de um apelo ao outro, de uma busca de amor na qual, ao
mesmo tempo, há identificação com aquele no qual se investe.
Nas curas de seus pacientes e em seus diversos estudos de caso, Freud
acumulará observações e intuições às vezes fragmentárias, às vezes negli­
genciadas ou esquecidas, e cuja importância ele nem sempre percebe ime­
diatamente. Ele conseguirá elaborar uma abordagem mais teórica do papel
da transferência somente pouco a pouco, abordagem que ele desenvolverá 9

9 S. Freud, Le problème économique du masochisme (1924c), in Neurose, psychose, perver­


sion, PUF, 1973.

91
Compreender

em vários escritos técnicos: “A dinâmica da transferência" e “Conselhos aos


médicos", em 1912, “O começo do tratamento”, em 1913, e, por fim, “Reme­
morar, repetir, perlaborar”, em 1914’°.

Um erro sobre a pessoa

Em sua conclusão aos Estudos sobre a histeria, em 1894, Freud escreve:

Os doentes, aliás, aprendiam pouco a pouco que em tais transferências para a


pessoa do médico tratava-se de uma coibição (Zwang) e de um erro (Tauschung)
sobre a pessoa que o fim da análise dissiparia. (...) Na mesalliance” médico-doen-
te, à qual dou o nome de falsa relação, o afeto que entra em jogo é idêntico ao
que havia outrora incitado minha paciente a rejeitar um desejo proibido'2.

A expressão “falsa relação" não deixa de evocar o que Freud mantivera


de sua formação com Bemheim que, curado de uma ciática por Liébeault,
tinha como adágio: “Tudo está na sugestão, tudo está na relação do sujeito
com o sujeito, tudo está na relação”, inspirando-se nas teorias de Messmer
sobre o fluido animal, que havia sido o primeiro a declarar que "tudo está na
relação”'3. Freud acrescenta: “Desde que sei disso, eu posso, a cada vez que
minha pessoa se encontra implicada, postular a existência de uma trans­
ferência e de uma falsa relação. Coisa estranha, nesses casos os doentes
sempre são néscios” (p. 246).
Um pouco mais adiante, ele separa pela primeira vez a pessoa do mé­
dico do investimento que é feito nele pela paciente ao entrever que não é ao
médico que ela se dirige, mas a uma “terceira pessoa" (dritte Person), que ela
tende a confundir com o médico.
Esse “erro sobre a pessoa” que caracteriza a transferência será experi­
mentado por Freud durante os anos seguintes, sem, no entanto, poder explo­
rar imediatamente seu alcance. Em 1907, no Diário que ele manteve sobre a 10 11 12 13

10 S. Freud, La dynamique du transferi (1912b), Conseils aux médecins (1912d), Le début


du traitement (1913c), Remémorer, répéter, perlaborer (1914g), in La Technique psychanalytique,
PUF, 1970.
11 Em francês, no original alemão.
12 Pychothérapie de 1'hystérie, in Études sur 1’hystérie (189Sd), op. cit.
13 Cf. capítulo "Formação de Freud".

92
Da transferência ao seu declínio

cura do “Homem dos ratos” e em que ele consigna as primeiras sessões, ele
assinala um episódio eloqüente (não publicado no texto das Cinco psicanáli­
ses ): "Em um dado momento, quando eu fiz a observação de que eu não sou
cruel, ele reagiu chamando-me de 'Meu capitão’”14. Esse incidente ilustra,
sem que Freud perceba isso realmente na ocasião, que não foi o doutor Freud
que ele foi encontrar. Ele foi encontrar uma testemunha que ele pudesse, na
transferência, colocar no lugar de onde ele, o homem dos ratos, pode ser ou­
vido: essa "terceira pessoa” já entrevista nos Estudos sobre a histeria.
Três anos depois, a respeito da análise de Serguei Pankejeff, que se tor­
nará O homem dos lobos, Freud escreveu a Ferenczi: “Um jovem russo rico que
trato por causa de uma paixão amorosa compulsiva me confessou, depois
da primeira sessão, as seguintes transferências: judeu escroque, ele gosta­
ria de me pegar por trás e cagar na minha cabeça. Aos seis anos de idade,
o primeiro sintoma manifesto consistia em injúrias blasfematórias contra
Deus: porco, cão etc.”15. Pode-se enfatizar que Freud não emprega o termo
“palavra” e sim "transferência” para evocar essa violenta interpelação por
parte do homem dos ratos. Ele pressente então que essas falas injuriosas
emergem do infantil de Serguei que, sem ter consciência disso, coloca Freud
em um lugar paterno, esse pai a quem Serguei quer fazer reviver o coito a
tergo que ele fez sua esposa viver.
A "falsa relação” que aparece na transferência é, pois, uma "mesalliance”
essencialmente temporal. O que surge como vontade do analisando de im­
plicar o analista não é na verdade senão o afeto que ressurge de um passado
proibido e inconfessável. Freud tem então a sensação de que é preciso sepa­
rar a pessoa do médico do investimento que é feito pelo paciente, introdu­
zindo o que ele chama de “terceira pessoa”. A análise está aí para represen­
tar um terceiro ausente no qual o paciente confia.
Em uma carta a Jung de 6 de dezembro de 1906, Freud volta a tratar
desse ponto:

Não se podem dar explicações a pessoas mal-intencionadas; desse modo, guar­


dei para mim mesmo muitas coisas que seria necessário dizer sobre os limites
da terapêutica e sobre seu mecanismo, ou então eu as apresentei de tal modo
que somente o iniciado as reconheceria. O senhor deve ter percebido que nossas

14 S. Freud, L’Homme aux rats. Journal d’une analyse, PUF, 1974, p. 53.
15 S. Freud-S. Ferenczi, Correspondance, tomo I, Calmann-Lévy, 2000, p. 148-149.

93
Compreender fff||jl|

curas se produzem graças à fixação de uma libido que reina no inconsciente


(transferência), que geralmente pode ser encontrada na histeria. É ela que for­
nece a força pulsional necessária à apreensão e à tradução do inconsciente;
quando ela própria se recusa, o paciente não tem o trabalho e não ouve quando
lhe propomos a tradução que encontramos. É de fato uma cura pelo amor. Há
também na transferência, portanto, a prova mais forte, a única que é inatacável,
de que as neuroses dependem da vida amorosa’8.

Assim como "a histérica sofre de reminiscências”, a transferência mos­


tra o sofrimento de representações que não chegam a ser entendidas, que
também estão em sofrimento, como algumas cartas. São representações,
mas também fragmentos de uma história passada que tentam voltar à luz
do dia para por fim serem entendidos.

Deslocamento de objeto

Na transferência, ao obrigar o analista a reviver seqüências do passado de


modo intemporal, tal como elas se produziram, o analisando tenta necessá­
ria e exigivelmente situar-se ao lado de um deslocamento de objeto. Em "A
dinâmica da transferência””, Freud diz: “A admissão de um desejo proibido
toma-se particularmente incômoda quando deve ser feita à própria pessoa
que é objeto desse desejo. Tal obrigação faz nascerem situações que mal po­
dem ser concebidas na vida real. No entanto, é justamente aí que o paciente
procura chegar quando faz coincidirem (zusammenfallen) o médico e o objeto
de suas moções efetivas”: etimologicamente, o verbo alemão significa “colo­
car junto”. Trata-se aqui de uma “falsa relação”. Essa vontade de simbiose,
de reproduzir o uno, tem de ser aproximada do estado fusional mãe/filho
originário, relação de reciprocidade.
O analista é, pois, totalmente “manipulado". TVata-se de uma lógica da
transferência que não é uma lógica de implicação e sim uma lógica de impu-
tação. Na transferência, assim como na histeria, o paciente põe o que sente
na conta do outro, ele não faz senão responder à palavra do outro e pede ape­
nas uma coisa: que o outro venha ao seu encontro para interpretá-lo. 16

16 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance 1, Gallimard, 1975, p. 52.


1J Op. cit., p. 56-57 (tradução revisada).

94
Da transferência ao seu declínio

Freud explicita: "Conhecemos, originariamente, somente objetos se­


xuais: a psicanálise nos mostra que pessoas que acreditamos apenas respei-
i' tar e estimar podem ainda, para nosso inconsciente, ser objetos sexuais”'8.
A transferência representa, pois, esse retomo exigível ao infantil. Quer seja
a transferência com a criança, com o psicótico ou com o adulto, sempre se
coloca a questão dos objetos sexuais.
Na perspectiva freudiana, se a significação última da expectativa cren­
te, que é a própria essência da transferência, é o fato de reencontrar a ati­
tude do "filho em relação aos pais amados, em um total abandono de si”,
pode-se dizer que o lugar psíquico do analisando, aquele em que ele se
coloca no início da análise e que também pode ser o da criança em relação
a nós, é o que Freud define em seu texto sobre “O problema econômico do
masoquismo”, em 192418 19 20: “O masoquista quer ser tratado como uma peque­
na criança angustiada e dependente". Desse modo, em toda análise na qual
o analista deixa aberta para o analisando a possibilidade de regredir, pro-
duzem-se reencontros deste último com sua própria infância e com seus
primeiros objetos. Portanto, em toda transferência há uma dimensão quase
psicótica, desde que se ouse ouvir o que é dito na análise.
Para Freud, não se trata de analisar a neurose infantil, mas sim o efeito
da neurose infantil no adulto, e isso a partir da mediação da lembrança que
o adulto pode ter dela. "As análises de neuroses infantis [...] permitem a
exata compreensão das neuroses adultas, mais ou menos do mesmo modo
que os sonhos infantis permitem a dos sonhos de adultos”28, diz Freud a
respeito do caso do Homem dos lobos. Essa análise da neurose infantil é, pois,
facilitada pela mediação da neurose que pode ser encontrada no adulto.
Nessa regressão que se faz até o infantil, trata-se de uma transferência
erótica, com a vontade de fusão, de constituir um só com o outro: confundir
o médico com o objeto de suas moções afetivas e constituir um só com ele.
A cena da transferência é, pois, uma cena de simbiose, a da simbiose in­
fantil. O paciente tenta “constituir uma multidão de dois”, hipnotizando seu
analista, precisamente por não sair da cena do passado. Quando o homem
dos ratos chamou Freud de “meu capitão”, ele estava em plena regressão,
em busca de reencontros com o capitão cmel. Ele quer então reencontros

18 Ibid., p. 57.
19 Op. cit.
20 S. Freud, Extrait de l’histoire d'une rrévrose infantile, em Cinq psychanalyses, p. 328-329.

95
Compreender j'i

com a cena do crime, com o personagem de sua história que o afetou no


passado. A transferência constitui, pois, uma regressão, um abandono à po­
sição de pequena criança para a qual tudo deve ser feito, e que, além disso,
impõe o que devem fazer para ela.

Repetição do passado

O que conta é, pois, o modo pelo qual as lembranças foram organizadas e


metabolizadas por uma criança sob a forma de constrição de repetição, o
que surge através dos protótipos de relações e das encenações da infância.
Quando Serguei diz no final de sua primeira sessão “judeu escroque etc”,
Freud compreende imediatamente que se trata de um protótipo, de uma
lembrança de infância que Serguei não pode de modo algum temporalizar
na história e que ele vive no presente. A constrição de repetição (Wiederho-
lungszwang) é viver no presente essa constrição que Freud qualifica de "de­
moníaca” em “Para além do princípio do prazer”21 e que nos conduz repetiti­
vamente a reproduzir encenações permanentes com os outros.
O que surge é essencialmente uma repetição do passado. Mas Freud
explicita que o que conta então não é tanto o que se contou à criança em
sua infância, mas o que ela sabia por si mesma, sem coerência de tempo e
de conteúdo. É preciso, pois, concentrar-se apenas na história, nos relatos
do paciente e não atribuir importância às comunicações do exterior, porque
isso seria de algum modo uma instância acima da análise, acima do dizer e
da lembrança. O que importa não é a história da doença nem tampouco a
anamnese histórica, é a maneira pela qual as coisas vêm ou podem retor­
nar na lembrança.

Resistência à rememoração

Em “A dinâmica da transferência”, Freud pode identificar transferência


e resistência na medida em que a transferência é a arma mais poderosa
da resistência:

21 S. Freud, Au-delà du príncipe de plaisir (1920g), em Essais de psychanalyse, Payot, 1973


(as únicas ocorrências do termo "demoníaco" (dõmonisch) em Freud estão ligadas à inquietante
estranheza e à constrição de repetição).

96
Da transferência ao seu declínio

De onde provém o fato de que a transferência se preste tão bem ao jogo da re­
sistência? De início, a resposta pode parecer fácil; está claro que a admissão de
um desejo proibido torna-se particularmente incômoda quando deve ser feita à
própria pessoa que é objeto desse desejo. Tãl obrigação faz nascerem situações
que mal podem ser concebidas na vida real. No entanto, é justamente aí que o
paciente procura chegar quando faz coincidirem (zusammen/allen) o médico e o
objeto de suas moções efetivas22.

Em “Rememorar, repetir, perlaborar", Freud explica em que consiste a


ação dessa resistência: “O analisado repete em vez de se lembrar". À pergun­
ta: “O que exatamente ele repete, o que ele age (er agiert)?", Freud responde:

TUdo aquilo que, emanado das fontes do reprimido, já impregna toda a sua per­
sonalidade: suas inibições, suas atitudes inadequadas, seus traços de caráter
patológicos. Ele também repete, durante o tratamento, todos os seus sintomas.
Podemos agora observar que, ao evidenciar essa constrição de repetir, não des­
cobrimos nenhum fato novo, mas simplesmente adquirimos uma concepção
mais coerente do estado das coisas. Constatamos claramente que o estado
mórbido do analisado não poderia se interromper já no começo do tratamento
e que devemos tratar sua doença não como um evento do passado e sim como
uma força atualmente em ação. Esse estado mórbido é trazido, fragmento por
fragmento, para o campo de ação do tratamento e enquanto o paciente o ex­
perimentar como real e atual, nossa tarefa consistirá principalmente na re­
condução ao passado23.

A transferência constitui, pois, uma resistência, resistência à rememo-


ração, isto é, a poder temporalizar, historicizar o que surge no espaço da
sessão e no da cura. Mas a condição da transferência é a de que haja re-
memoração e resistência. Com efeito, se a transferência não for o desloca­
mento temporal de cenas passadas para a cena psicanalítica, a sexualidade
infantil não poderá ressurgir e a neurose infantil não poderá se manifes­
tar senão sob a forma de resistência: o esquecimento no qual se encontra
o paciente, a insistência em reviver cenas passadas para fazer com que o

22 Op. cit., p. 56.


23 S. Freud, Remémorer, répéter, perlaborer (1914g), in La Technique psychanalytique, PUF,
1970, p. 110.

97
Compreender

analista as reviva enquanto terceira pessoa obrigam-no a se colocar em de­


terminada posição (responder “sim, meu capitão" e não “sim, doutor Freud”
com o qual ele não tem nada a fazer).

Da repetição do passado à rememoração

O analista não deve se enganar a respeito das demandas de amor por parte
do analisando, que não são amores do presente e sim a possibilidade de
reencontrar velhos amores passados. O que o analisando vive como real e
atual nessa dimensão de deslocamento de objeto, de relação de objeto com
o analista, deve ser reconduzido ao passado pelo analista, graças ao traba­
lho de rememoração.
A rememoração é o contrário da constrição de repetição que revive o
passado como se fosse presente, sob a forma de “reminiscências" ou de “re­
presentações”, isto é, de lembranças atemporais. Rememorar é passar da re-
miniscência para a revivescência, é remeter o passado para o passado, avaliar
as cenas do passado por meio de um trabalho psíquico sobre o seu próprio
passado. É preciso, pois, sair do deslocamento de objeto, deixar a transferên­
cia espacial de uma relação de objeto com objeto desejada pelo analisando,
para restabelecer o analista no interior de um eixo temporal. Se a transferên­
cia for vetorizada na direção do passado, ela também será temporal e desse
modo tomará possível o ressurgimento de experiências passadas.
Com isso, pode-se dizer que tampouco se trata de uma relação de obje­
to com o analista, mas sim de tornar o analista o suporte de suas represen­
tações, de deslocar para o analista as representações do que foi vivido no
passado e que organizou a neurose. Em sua determinação inicial, a transfe­
rência não é um amor de transferência, um amor pelo analista, e sim a pos­
sibilidade, pela negativação de singularidades idiossincrásicas do analista,
de tomá-lo o suporte de cenas passadas. Se for seguido esse eixo temporal,
pode-se perceber que ele pontua diferentes construções teóricas de Freud,
todas elas referentes à elaboração do objeto.
A rememoração evidencia o que ocorreu. Não se está, portanto, na his­
tória histórica e sim na história psíquica, na história de uma alma, a histó­
ria tal como ela ressurge pela rememoração e por seus efeitos na vida sob
a forma de repetição. É esse conhecimento que pode remeter o paciente à
sua própria história em uma lógica de implicação — e não mais de impu-

98
Da transferência ao seu declínio

tação — na qual ele se toma parte interessada de seu passado. Para retomar
a frase de Dostoiévski: "O que nos acontece se parece conosco”.

Posição psíquica do analista

Quando o analisando demonstra alguma confiança em se entregar e des­


locar-se de si no outro, isso implica que o analista deve se deslocar no tem­
po para ouvir o que lhe é dito. A aptidão para ser analista é, pois, deslocar-
se de si mesmo para poder se colocar no lugar do qual o analisando pode
ser ouvido.
Em seus “Conselhos aos médicos”, Freud já esboçara o que se tomaria a
regra fundamental: do lado do paciente, mais expectativa ansiosa ou mais
autocratismo de suficiência narcísica em um retraimento obstinado diante
do resto do mundo, mas um deixar-se levar para que as idéias surjam, “para
deixar-se surpreender por todo fato inesperado”.
Mas a essa regra Freud acrescenta uma “contrapartida”, um correlato
(Gegenstück) que geralmente foi deixado de lado ou até mesmo passou des­
percebido: “Ele deverá, segundo as necessidades do paciente, oscilar ou des­
locar-se (zwingen em alemão, swing em inglês) de uma posição psíquica para
outra, evitar toda especulação”211. A expressão “posição psíquica" (psychische
Einstellung) é capital para determinar a clínica freudiana: ela remete ao ter­
mo Stelle, que significa “lugar”. A posição psíquica é, pois, o lugar no qual
se foi colocado na infância, é o lugar que eventualmente se pode escolher
mais tarde, também é o lugar no qual se colocará o analista. Ela é o efeito
psíquico produzido pelo lugar em que se está.
Essa descoberta permitiu que Freud opusesse radicalmente duas posi­
ções em “O início do tratamento”: “Nos primeiros começos da psicanálise,
ao considerar as coisas a partir de uma posição de pensamento intelectua-
lista (intellektualisticher Denkeinstellung), atribuímos um grande valor em dar
a conhecer ao paciente (portanto do exterior, de uma posição de saber hege­
mônica) aquilo que ele havia esquecido. Ao fazer isso, não diferenciávamos
mais nosso saber e o dele”24 25. Freud avança aqui que, quando o analista se
situa em uma situação de saber e apresenta a teoria ao analisando, ele ter-

24 Op. cit., p. 65.


25 S. Freud, Le début du traitement (tradução revisada), op. cit, p. 101.

99
Compreender

mina fazendo o mesmo que faz o analisando de outro modo: o analisando


quer constituir um só com o analista, em uma posição psíquica na qual ele
o coloca em certo lugar. Ambos se encontram no que poderia ser chamado
de uma forma de estado de mania, no qual não se sabe mais qual é a dife­
rença entre os pensamentos de um e os pensamentos do outro. Não se sabe
mais quais são as produções do sujeito. Estamos lidando aqui com pensa­
mentos apátridas que vêm se alojar em um sujeito desterritorializado.
Aliás, no começo dos anos 1920, quando Freud iniciou a análise da poe­
tisa Hilda Doolittle, ele se confrontou mais uma vez com essa dificulda­
de. Quando ela lhe disse: “Venho aqui procurar por minha mãe", Freud lhe
respondeu: “É preciso que eu lhe diga (você foi franca comigo, portanto eu
também serei com você) que eu não gosto de ser a mãe em uma transfe­
rência. Isso me surpreende e sempre me choca um pouco. Eu me sinto tão
masculino’’26 27. Ao responder desse modo, Freud se situa precisamente em
uma posição de pensamento intelectualista, sem chegar a outro modo de
posição para poder diferenciar os conhecimentos do paciente dos conheci­
mentos do analista e para poder se colocar na posição de “terceira pessoa"
no espaço da cura.
Essa "posição de pensamento intelectualista’’ não se distingue, com
efeito, da do hipnotizador que “coloca suas palavras nas do outro", pois o
analista introduz, introjeta sua teoria no espaço psíquico do analisando. Em
cada um desses casos, ouve-se o outro arrazoar para então colocá-lo em um
lugar determinado, em uma posição de saber paranoico.
O analista deve, pois, deixar toda especulação em sua biblioteca e em
seu sofá e deve esquecer toda ruminação mental durante seu trabalho e
mobilizar-se de modo que possa, no estrito espaço da sessão, ouvir as coi­
sas no lugar e no momento em que elas foram vividas ou enunciadas pela
primeira vez e frequentemente não ouvidas, inauditas; daí a insistência da
repetição em sua existência.
Pode-se, assim, dizer sobre a transferência o que se pode dizer sobre
a crença ou sobre a paixão: a transferência, em todo o seu poder, constitui
os objetos sobre os quais ela investe, ela precede os objetos sobre os quais
ela investe e que ela constituirá. A quinta carta da religiosa portuguesa nos
oferece uma bela ilustração disso. Nesse romance, Les Lettres portugaises21,

26 Hilda Doolittle, Visage de Freud, Denoèl, 1977, p. 65.


27 Lettres portugaises (1669), Gallimard, 1990 (Folio classique).

100
Da transferência ao seu declínio

escrito por um homem, o conde de Guilleragues, ele faz a religiosa dizer,


após a partida do oficial francês: “Percebi que você era menos caro para
mim que minha paixão e tive uma estranha dificuldade em combatê-la de­
pois que suas ações injuriosas tomaram odiosa a sua pessoa".
A transferência se instaura sem que se tenha de forçar a situação, na
maneira pela qual o analisando aborda o analista. É inútil, portanto, querer
suscitar a transferência para que ela exista. TVata-se de adivinhá-la (erraten),
isto é, de adivinhar a posição em que o analisando pretende colocar o analis­
ta. “O analista deve então, antes de mais nada, começar descobrindo essa
transferência"28. Em virtude da própria posição do analista, a atividade psi-
canalítica inaugura de algum modo o declínio da interpretação, o que Freud
diz em outras palavras em “Luto e melancolia": “O doente deve de algum mo­
do ter razão”. Com efeito, é sempre o doente que tem razão, não o analista.
A palavra do analisando possui, pois, uma dimensão performativa, no
sentido em que essa palavra pode deslocar o analista para o lugar de onde
seu passado pode ser ouvido. É a palavra que possui essa capacidade, como
todas as palavras que nos marcaram em nossa infância, de colocar o outro
em um lugar psíquico do qual o analisando pode ser ouvido.
A partir dessa descoberta fundamental, a transferência não é mais para
Freud uma transferência rumo ao objeto-analista e sim um deslocamento
de representações rumo ao analista, que é apenas seu suporte. O analista é
uma pessoa fundamentalmente deslocada, deslocável. Ele deve ser um "ho­
mem sem qualidades” que está ali apenas para representar os ausentes da
história do sujeito.

A neurose de transferência

As transferências são tratáveis pelo analista somente na medida em que


o analista postula que o que analisando sente como real e atual tem de
ser reconduzido ao passado. Desse modo, Freud passa a definir a situação
transferenciai na cura analítica como uma “neurose de transferência”, em
“Rememorar, repetir, perlaborar”, isto é, uma organização sintomática, uma
“doença artificial”, intermediária entre sua doença e a vida real:

28 Le début du traitement, (1913c), op. cit., p. 98.

101
Compreender

No caso em que o paciente se limita principalmente a respeitar as regras ne­


cessárias da análise, certamente conseguimos conferir a todos os sintomas
mórbidos uma significação de transferência, e substituir sua neurose ordinária
por uma neurose de transferência, que o trabalho terapêutico curará. A trans­
ferência cria desse modo um reino intermediário entre a doença e a vida real,
domínio através do qual se efetua a passagem entre um e outro. O novo estado
instaurado assumiu todos os aspectos de uma doença artificial29.

A neurose de transferência é de algum modo uma interface que permi­


tirá a comunicação da doença com a vida real. Freud observa, aliás, que sob
a transferência as pessoas perdem completamente o senso da realidade. O
conjunto das relações escapa completamente do mundo real. Isso fará com
que Lacan defina a transferência do seguinte modo: “A transferência não é
nada real no sujeito, é o aparecimento, em um momento de estagnação da
dialética analítica, dos modos permanentes segundo os quais ele constitui
seus objetos”30.
O trabalho da transferência, sua elaboração e seu declínio abrem para
a aptidão de poder investir sobre novos objetos e de não pedir aos novos
objetos o que os antigos objetos nos haviam dado.
Freud retoma esse ponto em sua conferência sobre ‘‘A evolução da li-
bido”: “O indivíduo humano deve se consagrar à grande tarefa de se des­
prender (Ablõsung) de seus pais, única solução que lhe permite deixar de
ser uma criança para tomar-se um membro da comunidade social. Para o
filho, a tarefa consiste em se desprender [...], essas tarefas são incumbência
de cada um”31. Ora, o amor de transferência é precisamente a recusa dessa
tarefa que é incumbência de cada um de se desprender do outro e nesse es­
quecimento apaixonado e desenfreado da relação inicial, de querer revivê-
la na análise, nessa seqüência de deslocamento de objeto.
Do mesmo modo, em O mal-estar na cultura, em 1930, Freud explica que
todo o mal-estar da cultura (isto é, a relação do ser humano com o ser hu­
mano, o registro do político) consiste no fato de que o ser humano não quer
sair da indivisão e que, pelo contrário, esse eu permanece “ainda indiviso”32

29 Op. cit., p. 110.


30 J. Lacan, Intervention sur le transfert (1952), in Écrits, Seuil, 1956, p. 225 (trad, bras.:
Zahar, 1998).
31 S. Freud, Conferences d'introduction à Ia psychanalyse (1915-1917), Gallimard, 1984.
32 S. Freud, Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, 1995, p. 73 (Quadrige).

102
Da transferência ao seu declínio

com um objeto externo, quer seja um ideal, um grupo e tudo o que o impede
de ser sujeito. Ele insiste na necessidade de sair dessa doença humana que
é o horror da individuação e da separação para ter acesso à subjetivação: a
corpos separados, pensamentos separados.
Um pouco mais tarde, em sua XXXI conferência33, intitulada “A decom­
posição da personalidade psíquica”, Freud retoma essa ideia nos seguin­
tes termos: “A intenção [da psicanálise] é, com efeito, a de fortalecer o Eu,
tomá-lo mais independente do Supereu, ampliar seu campo de percepção
e consolidar sua organização de tal modo que ele possa se apropriar de
novos pedaços do Isso. Onde havia Isso, deve advir mais Eu. É um trabalho
de cultura, um pouco como a secagem do Zuiderzee", o que confirma uma
formulação já presente em A questão da análise profana: “Queremos restaurar
o Eu, libertá-lo de seus entraves, restituir o seu controle sobre o Isso, perdido
depois de suas primeiras repressões”34.
Sair da transferência é precisamente sair do indiviso. É isso que permi­
te produzir o íntimo e o sujeito, um sujeito diferenciado do grupo, capaz de
contar consigo mesmo e, portanto, doravante com o outro.

33 S. Freud, La décomposition de la personnalité psychique (1933a), in Nouuelles conferences


d'introduction à la psychanalyse, Gallimard, 1984, p. 110.
34 S. Freud, La Question de 1'analyse profane (1926e), Gallimard, 1985, p. 62.

103
Capítulo VII

A constrição de repetição

E algo parecia ter começado a estremecer em suas


lembranças, tal como uma palavra conhecida, mas
repentinamente, não se sabe por quê, esquecida e que
se procura lembrar com todas as forças: ela é bastante
conhecida e sabe-se que ela é conhecida, anda-se lado
a lado com ela, mas essa palavra não pode voltar à
memória, qualquer que seja a maneira de lutar com ela!
Dostoiévski, O etemo marido1

A descoberta da constrição de repetição representa uma mudança consi­


derável na perspectiva técnica e clínica da cura freudiana. Ela está no âma­
go de uma nova concepção do tempo, para o tempo psíquico do sujeito e
para a temporalidade da cura. Essa noção modificará totalmente a concep­
ção da prática psicanalítica. Mas como ocorre com a maior parte das des­
cobertas de Freud, ele a expôs pouco a pouco, por meio de fragmentos de
tateios, ainda que ele tenha se interessado muito cedo pela importância
da temporalidade.
Um esclarecimento essencial deve ser feito previamente. O termo Wie-
derholungszwang geralmente é traduzido por "compulsão de repetição”, o
que sugere um vínculo com a pulsão. Ora, Freud não emprega o termo Trieb
(pulsão) e sim Zwang, que significa "constrição”: trata-se, pois, de uma cons­
trição de repetição, mecânica, não pulsional, apulsional. Quanto ao “auto-
matismo de repetição”, ele existe apenas em algumas traduções aproxima-
tivas francesas.

1 Dostoiévski, L'Etemel man, L’Age d’homme, 1988, p. 18.

105
Compreender ítlfe

0 papel da repetição

Já nos Três ensaios, Freud insistia no sentido da repetição que ainda era mis­
terioso para ele alguns anos antes, quando escrevia: "A histérica sofre prin­
cipalmente de reminiscências1'. Essa intuição pré-analítica já apresentava
uma nova concepção do sujeito: o ser humano possui uma relação privile­
giada com sua história que é fonte de sofrimento na medida em que ela é
apenas memória e na medida em que ela não é historicizada.
Na quinta seção do terceiro dos Ensaios, Freud volta a tratar da im­
portância da repetição. Uma repetição inerente ao funcionamento psíquico,
uma repetição que visa reencontrar uma primeira experiência de satisfa­
ção. “Quando a primeira satisfação sexual ainda estava ligada à ingestão
de alimentos, a pulsão sexual tinha no seio materno um objeto sexual fora
do próprio corpo; ela não o perdeu senão mais tarde, talvez precisamente
na época em que se tomou possível para a criança formar a representação
global da pessoa à qual pertencia o órgão que lhe proporcionava satisfação.
Como regra geral, a pulsão sexual torna-se autoerótica e somente depois
que o tempo de latência passa é que a relação original se restabelece.’’2
Freud faz aqui uma observação essencial: não pode haver repetição
senão sobre o fundo de uma primeira experiência de satisfação. E ele con­
clui com um comentário que fundamentará toda a sua pesquisa sobre a
repetição: "Die Objefet/indung ist eigentlich eine Wiederfindung"3. Mesmo que os
tradutores franceses tenham o costume de traduzir essa fórmula por “a
descoberta do objeto não é na verdade senão uma redescoberta”, é mais
exato traduzi-la assim: “O achado do objeto não é na verdade senão um
reachado”, isto é, uma repetição do achado inicial. Em outras palavras, na
busca do objeto, trata-se essencialmente de “restabelecer a felicidade per­
dida” (das verlorene Glücfe also udederherstellen), de restaurá-la. Restabelecer a
felicidade perdida é reencontrar a relação com a mãe que nunca se deixa
para trás, que, no limite, não se pode deixar, e da qual se tende a reencon­
trar traços em todos os objetos substitutivos de nossa existência. Nunca
se deixa, pois, verdadeiramente a mãe, mesmo que a contragosto. É assim
que a sexualidade infantil não desaparece, ela permanece o modelo de toda
pulsão sexual, na medida em que houve experiência de satisfação: “Essa

2 TVois essais surla théorie sexuelle (1905d), Gallimard, 1987, p. 164-165.


3 Ibid., p. 165.

106
A constrição de repetição

satisfação deve ter sido vivida anteriormente para deixar atrás de si a ne­
cessidade de sua repetição”1.

A constrição: ”0 motivo da escolha dos cofrinhos"

Em 1913 Freud introduziu pela primeira vez a noção de constrição


(Zwang), em um texto que prefigura o inelutável que conduz o ser humano
a escolher o destino e a fatalidade sem o saber: “O motivo da escolha dos
cofrinhos”4 5. Ao analisar esse tema que aparece na mitologia e que Shakes­
peare retomou, Freud observa o seguinte: quando o ser humano é colocado
adiante da escolha entre três cofrinhos (o ouro, a prata e o chumbo), em 0
mercador de Veneza, ou à escolha entre suas três filhas para O rei Lear, inexora­
velmente ele opta pela terceira escolha, a que prefigura a morte, assim como
entre as três Parcas sempre escolhemos a terceira, a inflexível: "A terceira
de nossas irmãs entre as quais ocorreu a escolha seria uma morta. Mas ela
também pode ser outra coisa, a saber, a própria morte, a deusa da morte. [...]
A terceira das irmãs é a deusa da morte, então conhecemos as três irmãs. São
os símbolos do destino, as Parcas, e a terceira delas chama-se Átropos: a ine­
xorável” (p. 73-74). Freud prossegue do seguinte modo sua reflexão sobre esse
tema: “A escolha é colocada no lugar da necessidade, da fatalidade. Desse
modo, o ser humano supera a morte que ele reconheceu em seu pensamento.
Não se pode conceber um triunfo maior que a realização do desejo. Escolhe-
se justamente onde, na verdade, se obedece à constrição (Zurang)” (p. 79).
Freud encerra esse texto salientando que essa situação é marcada pela
inquietante estranheza (Unheimlich), retomando uma expressão que ele
usara pela primeira vez no ano anterior em Totem e tabu (capítulo III), a
respeito da onipotência do pensamento: ‘‘Parece que conferíamos o caráter
do Unheimlich às impressões que, de um modo geral, tendem a confirmar a
onipotência dos pensamentos e o modo de pensamento animista, enquanto
em nosso juízo já nos desviamos deles’’6.
O termo alemão Unheimlich é intraduzível em francês, mas ele pode
ser parafraseado do seguinte modo: o familiar que se tomou estranho. Ele

4 Ibid., p. 165.
5 Le motif du choix des coffrets (1913f), in LTnquiétante étrangeté et autres essais, Gallimard,
1985.
6 S. Freud, Totem et tabou, III, 3, Gallimard, 1993, p. 205.

107
Compreender ;

é construído sobre a raiz Heim (casa), e Un, partícula negativa, que remete
à censura ou à repressão dessa primeira relação familiar que se tomou,
em um segundo momento, insuportável, angustiante. Em outras palavras, a
mãe que é nossa primeira casa é aquela que, posteriormente, no encontro
com a cena da realidade, se tornará inquietante. O incesto, em sua dimen­
são psíquica, representa esse risco de dissolução subjetiva no outro. Freud
termina esse texto evocando as figuras de três mulheres, as únicas três que
o ser humano pode conhecer em sua vida: "a genitora, a companheira e a
destruidora” (p. 81). As três formas pelas quais passa para ele a imagem da
mãe ao longo de sua vida são, pois, a própria mãe, a amante que se escolhe
à imagem da primeira, a Terra-mãe que acolhe novamente o homem em
seu colo. Tudo ocorre então como se a constrição de repetição agisse rniste-
riosamente desde o berço até o túmulo, impedindo o homem de escapar da
mãe e do materno, fonte primeira desse “familiar que se tomou estranho".
Curioso modo de assimilar a tumba à mãe pelo viés da Terra-mãe...

A constrição de repetição:
"Rememorar, repetir, perlaborar"

Em 1914, quando aproveita seu isolamento devido ao começo da guerra


para redigir seus escritos técnicos, Freud introduz pela primeira vez a ex­
pressão “constrição de repetição” (Wiederholungszwang) em um texto sobre a
prática analítica, “Rememorar, repetir, perlaborar”), no qual ele volta a tra­
tar da procura do objeto perdido. "Essa visada retrógrada aparece na vida e
se encontra na cura analítica [...] Enquanto ele prossegue o tratamento, ele
não pode se libertar dessa constrição de repetição; compreende-se afinal
de contas que é seu modo de rememorar”. Freud enfatiza aqui a equação
entre o agir e a constrição de repetição: "Quanto maior for a resistência, mais
a rememoração será substituída pelo agir".
A constrição de repetição visa, pois, ao reencontro com experiências
vividas no passado. A educação sentimental de Flaubert oferece uma ilus­
tração implacável disso com o personagem de Frédéric Moreau. O leitor
acompanhará os sonhos, os encontros femininos e as desilusões antes de 7

7 S. Freud, Remémorer, répéter, perlaborer (1914g), in La Technique psychanalytique, PUF,


1970.

108
A constrição de repetição

reencontrá-lo, trinta anos e quatrocentas e cinqüenta páginas depois, de


volta para a casa de sua mãe... A constrição de repetição apresenta-se so­
bretudo e essencialmente como uma injunção para esquecer, injunção para
não diferenciar o presente do passado, injunção para trazer para o presente
as formas e os protótipos das relações mantidas no passado, para esquecer
o passado para tomá-lo presente.
Esse texto de 1914 representa um ponto de inflexão na evolução de Freud
e em sua compreensão ainda tateante de fenômenos psíquicos que ele des­
cobre progressivamente em sua prática. “O analisado não se lembra de modo
algum do que esqueceu e reprimiu, mas ele o age [isto é, ele o traduz em ato:
er agiert]. Ele não reproduz isso como uma lembrança, mas como um ato [ais
Tat], Naturalmente, ele repete isso sem saber que repete.” A constrição de re­
petição produz seqüências, encenações do passado que insistem e que, para
o analisado, aparecem como presente. É precisamente essa a definição que
se pode dar do agir, do ato.
Isso conduz Freud a uma nova concepção da transferência: “A transfe­
rência não é ela própria senão um fragmento de repetição e a repetição, a
transferência de um passado esquecido, não apenas em relação ao médico,
mas também em todos os outros domínios da situação presente”. A trans­
ferência não é, pois, uma questão de sentimento, de um pulsional extático
em relação ao analista, mas, proveniente do fundo dos tempos, ela exprime
uma tentativa de reencontro com um passado enterrado, esquecido, repri­
mido, e isso sem que o paciente ou a paciente o saibam.

0 familiar que se tornou estranho


ou "A inquietante estranheza"

Uma nova etapa se situa no texto de 1919, “A inquietante estranheza” (das


Unheimliche)8, em que Freud retoma o termo Unheimlich que ele introduzira
em 1913 articulando-o à constrição de repetição.
Em um primeiro momento, ele passa em revista os dicionários de lín­
guas modernas e antigas sobre o termo Unheimlich (o familiar que se tomou
estranho) e Heimlich (o familiar), para concluir que Unheimlich remete a “tudo

8 Einquiétante étrangeté (1919h), in [..'inquietante étrangeté et autres essais, Gallimard, 1985,


p. 213-263.

109
Compreender i

o que deveria permanecer secreto e sai da sombra” (p. 222), enquanto Heim­
lich "evolui na direção de uma ambivalência e acaba por coincidir com seu
contrário Unheimlich” (p. 223). Em seguida, passa em revista estudos literá­
rios sobre o duplo, garantia contra “o declínio (der Untergang) do eu que se
toma inquietante sinal precursor da morte” (p. 237), ou o fator de repetição
não intencional. Der Untergang remete à imagem do declínio do sol que não
desaparece, mas muda de posição. Aliás, é por isso que o texto de 1924, “O
desaparecimento do complexo de Édipo”, publicado em A vida sexual, seria
mais corretamente traduzido por “O declínio do complexo de Édipo”, pois o
complexo de Édipo não desaparece, ele é reprimido. Ele muda de posição ao
se tomar inconsciente, por conseqüência da repressão.
Em um belo parágrafo autobiográfico, Freud expõe a conjunção entre
a constrição de repetição e a inquietante estranheza: "Um dia eu flanava
em uma tarde quente em ruas desconhecidas e desertas de uma pequena
cidade da Itália e caí por acaso em uma zona sobre cujo caráter eu não
pude ficar em dúvida durante muito tempo. Nas janelas das casinhas po­
diam-se ver mulheres maquiadas. E eu me apressei em deixar a ruela no
primeiro cruzamento. Mas depois de vaguear durante um tempo, sem guia,
encontrei-me repentinamente na mesma rua". Essa experiência se repete
uma terceira vez, o que não pode senão impressionar Freud, que tem uma
relação muito supersticiosa com os números, particularmente o número 3.
“E fui tomado por um sentimento que não posso qualificar senão de inquie­
tante estranheza”. Ele conclui: “O retomo não intencional provoca o mesmo
sentimento de angústia e de inquietante estranheza, conjunção, neste caso,
de um sentimento de angústia e da confrontação exterior com a mãe. A
constrição de repetição está ligada, pois, ao não intencional e, inelutavel-
mente, nos confronta com o angustiante prazer de reencontrar o elemento
materno" (p. 239-240). Em outros termos, por trás da mulher fálica, a pros­
tituta, dissimula-se sempre a mãe cuja dissolução subjetiva tememos após
nosso encontro com ela.
A partir dessa experiência angustiante que viveu na Itália, Freud escre­
ve: “O fator de repetição do mesmo talvez não seja reconhecido por todos
como fonte do sentimento de inquietante estranheza" (p. 239). Freud passa
então a mostrar o vínculo entre a constrição de repetição e a inquietante es­
tranheza: “Segundo minhas observações, é indubitável que sob certas con­
dições, e combinado com circunstâncias precisas, esse fator de repetição
provoca um sentimento tal que lembra igualmente a angústia (Hil/losigfeeit)

110
A constrição de repetição

de muitos estados de sonho” (p. 239). Hilflosigkeit é um termo que exprime


a angústia provocada pela perda do apoio materno, a ausência da mãe, a
ausência de ajuda.
Isso o conduz a discernir a dominação de uma "constrição de repetição
que emana de moções pulsionais”, para além do princípio do prazer, e que
“confere à vida psíquica um caráter demoníaco” (p. 242). A palavra "demo­
níaco” merece ser salientada, pois toda constrição de repetição remete a
esse familiar que se tomou estranho; ela conota a permanência do religio­
so, da crença, até mesmo da superstição, no âmago de toda relação com o
outro. O animismo, a onipotência dos pensamentos, a relação com a mor­
te, a repetição não intencional e o complexo de castração são fatores que
transformam a angústia em familiar que se tomou estranho na medida em
que todos esses elementos remetem ao “declínio do eu” (p. 236), à perda dos
limites desse eu e à angústia de uma excessiva proximidade com o elemen­
to materno, até mesmo à “fantasia de viver no seio materno” (p. 250).
O final do texto extrai algumas conseqüências dos fatos apresentados,
a primeira delas sendo “o fator de insegurança intelectual” (p. 255), trazida
pela angústia infantil cujas fontes são a solidão, o silêncio e a obscuridade.

"Para além do princípio do prazer"

Esse texto foi redigido a partir de março de 1919, ao mesmo tempo em que
“A inquietante estranheza", mas Freud o terminou somente em maio de
1920. Curiosamente, a partir da constrição de repetição que Freud evoca no
capítulo II, ao descrever o jogo Fort-Da ao qual se dedicava seu neto, ele in­
troduzirá a controversa noção de “pulsão de morte”, alguns meses depois,
no capítulo VI.
Freud observara seu neto, Ernst Wolfgang, filho de Sophie Halberstadt,
enquanto ele brincava em seu berço. Esse jogo, que se tomou famoso sob o
nome de Fort-Da, é marcado por dois tempos, ambos tratando da passagem
de uma posição passiva para uma posição ativa em dois modos. Durante as
ausências da mãe, o pequeno Ernst não chorava, mas pegava todos os seus
brinquedos para jogá-los longe, pronunciando o fonema O O O , que remete
a Fort ("longe”). Freud observou primeiramente que Emst joga para longe de
si todos seus brinquedos presentes para afastá-los de si, isso em um modo
ativo que visa superar a ausência da mãe. Ao quebrar seus brinquedos e

111
Compreender

ao jogá-los, ele consegue em um primeiro momento destruir a mãe ausen­


te. Ele obedece aqui à pulsão de domínio (Bemcichtigungstrieb) que consiste
em controlar o objeto pegando-o de modo violento, elástico, por não poder
separar-se dele ou não suportar a ausência que ele representa.
Mas após o Fort elástico intervém outra etapa, um segundo momento
que nem sempre foi notado pelos comentadores. No berço encontrava-se
uma bobina que estava amarrada à cama por um fio. Ele brincava de jogá-la
e pronunciava o O O O Fort ("longe”), e depois ele a trazia de volta com um
alegre Da (“Eis aqui”). Esse jogo completo marcava o desaparecimento e o
retomo do objeto. Nessa segunda seqüência, já não se trata de destruição,
de pulsão de domínio, mas de superar de outro modo a experiência de des-
prazer provocada pela mãe ausente: a criança não destrói mais o objeto,
ela o faz retomar e o restaura.
Ernst não tinha mais necessidade de jogar nem de quebrar os objetos
que representavam a mãe: ele podia controlar a ausência do objeto por meio
desse jogo de ausência/presença repetido. Ele ficava sem o objeto consti-
tuindo-o como objeto perdido; ele passava da ausência do objeto para a ca­
pacidade de ausentar a si próprio do objeto. A repetição parece estar aqui a
serviço do princípio do prazer. Freud mostra que através desse ritual a cons-
trição de repetição não está a serviço do princípio do Nirvana ou do retorno
ao idêntico, até mesmo ao orgânico, mas a serviço da capacidade da criança
de elaborar a ausência imprevisível e incontrolável da mãe.
O que Freud chama de elaboração psíquica (Beruâltigung)9 opõe-se à
pulsão de domínio (Bemachtigungstrieb). Pela elaboração psíquica, pode-se
não apenas elaborar a ausência da mãe, mas também ausentar-se da mãe
para ficar sozinho, ter acesso à solidão, sem ficar em um estado de perda de
apoio (Hilflosigkeit). Essa observação freudiana é, pois, de uma grande rique­
za para a clínica: a constrição de repetição não remete inelutavelmente ao
matemal mortífero, mas sim, pela elaboração psíquica, é possível escapar
dele elaborando a separação em relação à mãe.
Freud também retoma nesse capítulo a constrição de repetição que é
encontrada na transferência e nos neuróticos. Não se pode esquecer que
esses dois textos, "A inquietante estranheza” e “Para além do princípio do
prazer”, foram escritos após a guerra de 1914-1918, que gerou muitas neu-

9 S. Freud, Au-delà du príncipe de plaisir (1920g), in Vlnquiétante étrangeté de Vêtre, op. cit.,
A constrição de repetição

roses traumáticas a respeito das quais um trabalho coletivo (com Ferenczi,


Abraham, Jones...), prefaciado por Freud, foi publicado em 1919. Os doentes
que sofrem de neuroses de guerra parecem fixados no traumatismo que não
ocupa seu dia, mas retoma à noite sob a forma de pesadelo. Eles sonham
com a situação desagradável, que é interrompida com seu despertar, pois
essa é a função do pesadelo, um sonho que pode ser interrompido pelo des­
pertar, para tentar domesticar o traumatismo. Observemos, contudo, que
ao propor “abandonar o tema obscuro da neurose traumática" (p. 51) Freud
parece esquecer aqui que ele analisou o pesadelo em A interpretação dos
sonhos como não contradizendo a tendência do sonho a realizar o desejo,
pois se sonha com a situação traumática para domesticá-la e suprimi-la ou
interrompê-la pelo despertar. Estranho lapso por parte de Freud.

A pulsão de morte

É no capítulo VI que aparece pela primeira vez a “pulsão de morte". Ora, em­
bora Freud sempre tenha negado que um “elemento subjetivo" tenha podido
desempenhar um papel na redação definitiva desse ensaio, o estudo dos ma­
nuscritos e das edições do texto nos faz constatar que esse longo capítulo na
verdade foi escrito apenas em maio de 1920, após a morte de sua filha Sofia,
no dia 25 de janeiro de 1920, levada pela gripe espanhola, e depois da de An­
ton von Freund, seu amigo e benfeitor que mantinha a editora psicanalítica'8
e que Freud acompanhou no fim de sua vida em Viena, em janeiro de 1920.
Freud oporá dois tipos de pulsões: as pulsões do eu que compelem para
a morte e as pulsões sexuais que compelem para a vida (p. 90). Ao estabele­
cer essa oposição, Freud parece esquecer todo o trabalho do capítulo II, no
qual ele mostra que a elaboração psíquica visa à separação e à autonomia
do eu, sem compelir para a morte. Nesse capítulo, Freud até mesmo qualifi­
ca a constrição de repetição de “demoníaca": “O que a psicanálise revela nos
fenômenos de transferência nos neuróticos pode ser encontrado na vida de
certas pessoas não neuróticas. Estas dão a impressão de um destino que as
persegue, de uma orientação demoníaca de sua existência, e a psicanálise
logo de início sustentou que tal destino era em grande parte preparado pelo 10

10 Sobre a crítica genética e o estudo dos manuscritos, ver llse Grubrich-Símitis, Freud:
retour aux manuscrits. Faire parler les documents muets, PUF, 1997, p. 227-239.

113
Compreender

próprio sujeito e determinado pela influência da primeira infância’’ (p. 61).


Freud situa aqui a constrição de repetição sob o signo do "étemel retour du
même” (em francês no original): seria para apagar os traços de Nietzsche e
de seu etemo retomo do campo de sua reflexão?
Entretanto, é essencial observar que Freud não apresenta a oposição en­
tre pulsão de vida e pulsão de morte como uma “hipótese”, em outras pa­
lavras, como uma teoria psicanalítica, e sim como uma “crença" (Glaube), o
que também remete ao registro do religioso: “Se apresentamos a hipótese
da pulsão de morte sem maiores questionamentos, foi justamente porque
ela não nos parece uma hipótese. Ela não faz senão retomar uma ideia que é
habitual para nós e que nossos poetas confirmam. Talvez tenhamos adotado
essa crença porque nela encontramos algum reconforto. Se, de qualquer ma­
neira, devemos morrer e antes disso perder pela morte aqueles que nos são
mais caros, nós nos submeteremos de bom grado à lei natural inexorável, à
grande Anankè, que a um acaso do qual talvez pudéssemos ter escapado. Mas
pode ser que essa crença na necessidade interna da morte seja apenas uma
das ilusões que forjamos para 'suportar o fardo da existência'11” (p. 90).
Essa “crença" aproxima-se muito das teorias sexuais infantis, cujo obje­
tivo é o de “prevenir o retomo de acontecimentos temidos". A constrição de
repetição perde aqui sua função de restabelecer a felicidade perdida e de po­
der elaborar a ausência da mãe. Ela intemaliza a morte, sob a forma de pul­
são de morte, para escapar da mãe mortífera e da aleatoriedade da existên­
cia e, justamente por isso, da ausência de domínio do ser humano sobre sua
própria morte e sobre a dos outros.
Freud, que era profundamente supersticioso, ainda que ele não quises­
se, sempre acreditou que morreria aos 63 anos de idade (mais uma vez o
número 3). O ano de 1919 representa uma vitória para ele, pois ele estava
inquieto antes desse aniversário... Pode-se perguntar se esse caráter "de­
moníaco” com o qual ele repentinamente enfeita a constrição de repetição,
nessa época dolorosa de sua vida, não o assusta ao ponto de biologizar esse
mecanismo inquietante, fonte de numerosos fracassos psicanalíticos, em
uma pulsão de morte. Renunciar a uma hipótese científica em proveito
de uma crença é evitar confrontar-se com o angustiante encontro com o
originário e o materno, o que representa um impasse ou uma deriva diante
de uma temporalidade inelutavelmente voltada para o futuro.

11 Citação de Schiller.
A constrição de repetição

Além disso, não se voltará a tratar dessa pulsão de morte, da qual se


pode prescindir na teoria e na prática psicanalítica. Em “O problema econô­
mico do masoquismo”, texto contemporâneo do "Declínio do complexo de
Édipo”, em 1924, Freud passa da dependência em relação à mãe para a de­
pendência em relação ao pai, como se a única maneira de encontrar o pai
fosse a de se colocar em uma posição de dependência infantil e, além disso,
masoquista, a da fantasia “Uma criança é castigada”: "A primeira interpreta­
ção, descoberta sem dificuldade, é que o masoquista quer ser tratado como
uma criança pequena angustiada e dependente, mas que quer sobretudo ser
tratado como uma criança má”12.
Estranho percurso o de Freud através desses textos. A constrição de re­
petição deixa a função que lhe é inicialmente atribuída nos Dês ensaios, e que
consiste em reencontrar a pista das primeiras experiências de prazer e em
“restabelecer a felicidade perdida" (p. 165), para ter acesso a uma nova di­
mensão. Dimensão a partir de um olhar metafísico dirigido para o campo da
biologia e essa afirmação surpreendente de uma tendência à “supressão de
excitações internas” na qual “encontramos um dos mais poderosos motivos
para crer na existência da pulsão de morte” (“Au-delà du príncipe de plaisir”,
p. 104). Afirmação de uma “crença” que coexiste com o retomo a uma expe­
riência infantil com sua mãe, relatada em A interpretação dos sonhos, em que
as Parcas remetem ao mesmo tempo à mãe e à morte:

Quando eu tinha seis anos de idade e recebia de minha mãe os primeiros ensi­
namentos, eu supostamente deveria acreditar que éramos feitos de terra e de­
veríamos, por conseguinte, voltar à terra. Mas isso não me agradava e coloquei
a doutrina em dúvida. Então minha mãe esfregou as mãos, palma contra palma,
exatamente como se ela fizesse Knõdels, salvo pelo fato de que não havia nenhu­
ma massa entre suas mãos, e ela me mostrou as pequenas películas enegreci­
das de epiderme que se soltam sob o efeito da fricção como uma amostra dessa
terra de que somos feitos. Meu espanto diante dessa demonstração ad oculos foi
ilimitado e eu me submeti àquilo que mais tarde eu deveria ouvir expresso com
as seguintes palavras: Você é devedor de uma morte à natureza13.

12 Le problème économique du masochisme (1924c), in Neurose, psydiose et perversion, PUF,


1973, p. 290.
13 S. Freud, VInterpretation du rêve (1900a), em OCR FIV, PUF, 2003, p. 243. A última frase cor­
responde a uma réplica, remanejada por Freud, do Príncipe Hal em Henrique IV de Shakespeare

115
Compreender

A conjunção de considerações metafísicas com a biologia e o recurso


ao mito conduzem Freud a operar uma assimilação entre a mulher, a mãe
e a morte, sob o disfarce da recorrência do “demoníaco” através desses
diversos textos. A única maneira de suportar a morte do próximo ligada
ao acaso da existência é transformá-la em "necessidade interna ao or­
ganismo” de ordem estritamente biológica. Nesse ponto de seu itinerário
intelectual e de sua obra, Freud não pode se representar nem a morte nem
a mulher, a não ser no materno mortífero. Ele negativa desse modo a re­
presentação da morte pela intemalização desta. Na posteridade analítica,
a pulsão de morte é considerada por numerosos analistas não como um
avanço psicanalítico e como um conceito analítico, mas como um impasse
teórico no qual Freud não podia dissociar a mulher da mãe sempre mortí­
fera para ele. Isso ilustra a inscrição subjetiva e o fator pessoal presentes
em toda escrita psicanalítica.
Ainda que coloquemos entre parênteses essa curiosa deriva de Freud
rumo à pulsão de morte, nessa época, não é menos verdade que para ele a
constrição de repetição é o que força o ser humano a não se separar do uni­
verso materno, a tentar restaurar a felicidade perdida, mas que por outro
lado conduz a repetir uma busca “esperando algo que não vinha”, segundo
a expressão que Freud toma de Zola, em Germinal14, em um de seus últimos
textos, de 1938.
A transferência é precisamente essa crença na onipotência do pensa­
mento, de por fim reencontrar o objeto perdido. E na cura analítica a cons­
trição de repetição está presente não como resistência ao analista — con­
trariamente a uma ideia muito difundida —, mas como resistência à re-
memoração, resistência a sair do círculo infernal da repetição, chegando a
avaliar as cenas do passado para desligar-se delas, remeter por fim o pas­
sado ao passado, aliviar-se do passado em uma alegria que poderia tornar
possível um presente, na medida em que só há presente por e na presença
diante do outro e de si mesmo.
A cada vez que o analista acolhe a transferência no presente, ele omi­
te colocar-se na posição do objeto perdido. Mas se ele se identifica com o
objeto perdido e a ser perdido surge o risco de reencontros mortíferos para
o analisando, em que se revive para além da angústia infantil a dissolução

("você deve uma morte a Deus", I, ato V, 1). Freud a retoma em uma carta a Fliess. Cf. OCR FIV,
nota c., p. 243.
14 Résultuts, idées, problèmes II, PUF, 1985, p. 288.

116
A constrição de repetição

de seus limites subjetivos. O analista não pode acolhê-la in propria persona,


como se dissesse respeito a ele, mas na história própria do analisando.
Toda a tarefa da cura é, pois, a de historicizar (Geschichte) essa memória
imemorial (Historie) que, para cada um de nós, constitui um grupo, uma mas­
sa com o encontro primordial de nosso passado, em que contudo a primeira
experiência de prazer teve a capacidade de fazer o nosso corpo nascer pelo
encontro com o outro.
Passar do reencontro para o encontro pressupõe que se remeta para
o passado o que passou definitivamente e assumir o risco de encontrar-se
como sujeito, contrariamente ao que declarava um esquizofrênico: "Eu po­
deria acabar morrendo se eu quisesse encontrar alguém vivo". Do mesmo
modo em "Luto e melancolia", Freud diz sobre o melancólico: “Ele sem dúvi­
da sabe quem ele perdeu, mas não o que ele perdeu nessa pessoa”18.
O questionamento analítico sobre o encontro poderia se prolongar nos
seguintes termos: não sabemos o que amamos em quem amamos, não sa­
bemos o que encontramos naquele que encontramos. Ou, para retomar as
palavras de André Breton em L’Amourfou: “É realmente como se eu tivesse me
perdido e viessem repentinamente dar-me notícias sobre mim mesmo”. 15

15 S. Freud, Deuil et mélancolie (1916-1917g), in Métopsychologie, Gallimard, 1968, p. 151.

117
Capítulo VIII

0 masoquismo

Gosto invencível da prostituição no coração


do homem, de onde nasce seu horror pela
solidão. — Ele quer ser dois. O homem de
gênio quer ser um, portanto solitário.
A glória é permanecer um, e prostituir-se
de uma maneira particular.
É esse horror pela solidão, a necessidade de
esquecer seu eu na came exterior que o homem
chama nobremente de necessidade de amar1.

Essa reflexão que Baudelaire faz em seus Diários íntimos parece indicar que
o masoquismo representa uma solução. Essa é precisamente a questão
que Freud coloca em diversos textos. Em que o masoquismo é uma '‘solu­
ção’’ para certas questões? Freud procurará especificar isso diferencian­
do os masoquismos primário, secundário, moral, erógeno, feminino... Mas
pode-se tentar extrair um sentido geral do masoquismo, que poderia ser
chamado de ordinário.

"Uma criança apanha"

Antes mesmo de escrever “O problema econômico do masoquismo”, em


1924, Freud abordou a questão do masoquismo, em 1919, em um texto
que foi traduzido com o título “On bat un enfant”1 2 em sua versão francesa,

1 Charles Baudelaire, Joumaux intimes, in CEuures complètes, tome I, Gallimard, 1966, p. 700
(La Pléiade).
2 S. Freud, Un enfant est battu (1919e), in OCP.F XV, PUF, 1996.

119
Compreender

mas que é mais exato traduzir por “Uma criança apanha’’: “Ein Kind wird
geschlagen" seria até mesmo com um sentido incoativo “Uma criança está
sendo castigada”.
Esse texto riquíssimo é alimentado pela experiência clínica que Freud
adquiriu progressivamente e por tudo o que ele descobriu sobre a impor­
tância da sexualidade infantil nos Três ensaios. Além disso, esse texto possui
uma importância capital, pois contribui para salientar o papel ou o lugar da
sexualidade infantil, portanto pré-edipiana, aquém do complexo de Édipo,
mas também além, nessa permanência que ela desempenha ao lado da
escolha do objeto, assim como do lado das pulsões parciais.
Nesse texto que aborda o masoquismo, Freud se baseia na análise de
seis diferentes casos. Mas pode-se dizer que ele diversificou sob vários casos
o de sua filha Anna, que começara uma análise com seu pai em 1918. Anna
era muito ligada ao seu pai, que mantinha em relação a ela uma posição
de pai "uxorioso”, isto é, ele se considerava de algum modo o esposo de sua
filha, o que é ilustrado pela vigilância imperiosa demonstrada por Freud a
respeito de todas as escolhas da filha, afastando até mesmo pretendentes
como Ernest Jones.
Freud constatou a importância e a frequência das fantasias que surgem
na vida diuma e nos sonhos em todas as crianças, notadamente as fantasias
de fustigação. Mesmo que, neste caso, Freud se baseie sobretudo em casos fe­
mininos, ele emprega o termo neutro das Kind, portanto indeterminado quan­
to ao sexo, para enfatizar a indeterminação absoluta da criança na fantasia.

As três fases da fantasia de fustigação

Freud se interessa pelas transformações sofridas por essa fantasia de fus­


tigação, particularmente nos casos femininos que ele observou. Transfor­
mações que ocorrerão em três fases sucessivas — assim como os sonhos
recorrentes podem se transformar no meio do caminho.
1) Na primeira fase o pai bate na criança. A criança apenas olha de fora
sem colocar a si mesma na cena. Trata-se de uma fantasia que não é nem
sádica, nem masoquista.
2) A segunda fase possui uma dimensão masoquista: ainda é o pai que
bate, mas a criança que apanha é a que até então fantasiava, e ela expe­
rimenta um grande prazer nisso. A fantasia toma-se então: eu apanho do
pai. É, pois, exclusivamente no masoquismo que pode haver acesso ao pai e

120
0 masoquismo

ao prazer proveniente do pai. Este ponto merece ser salientado porque esta
segunda fase é totalmente inconsciente, nunca foi vivida, e ela organizará
essa forma de relação com o pai. Freud desenvolverá novamente essa di­
mensão em O homem Moisés e a religião monoteísta, ampliando-a para a cultu­
ra: "A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde provém essa necessidade
da massa. É a nostalgia do pai que habita em cada um desde sua infância,
desse mesmo pai que o herói da lenda se orgulha de ter superado. E então
podemos ver que todos os traços com os quais ornamos o grande homem
são traços paternos, que é nessa concordância que consiste a essência do
grande homem que procurávamos em vão”3. Freud expõe desse modo a fan­
tasia original, sem origem: o acesso ao pai, o acesso do prazer rumo ao pai
não pode ser encontrado senão em uma posição masoquista.
Essa fase da fantasia de fustigação, que é a mais importante, é ao mes­
mo tempo uma fase que nunca foi vivida. Triata-se de uma construção do
sujeito, uma construção fantasmática da criança. Não há origem exterior a
essa fantasia porque ela é a via inconsciente pela qual se procura encontrar
o pai, sem que nenhum acontecimento exterior venha a ser o catalisador da
formação dessa fantasia; ela permanece puramente inconsciente.
3) Na terceira fase, a pessoa própria da criança que fantasia não aparece.
Ela se mantém no anonimato e olha como espectador ou espectadora nume­
rosas crianças apanharem. Essa terceira fase é portadora de uma excitação
extremamente forte e conduz a uma satisfação onanista. É o fundo de co­
mércio da primeira orientação libidinal dos meninos e das meninas. Muitas
crianças divertem-se ao capturar insetos para cortar-lhes as asas ou as pa­
tas. A condessa de Ségur nos apresenta uma ilustração disso em Les Malheurs
de Sophie, em que uma menina corta em pedaços peixinhos vermelhos ao
mesmo tempo em que se chama Sofia, que em grego significa sabedoria...

Fantasia e pré-história infantil

Essa fantasia — uma criança apanha — é uma fonte do sentimento de pra­


zer. Ela se repete de modo recorrente nos sonhos e é acompanhada por
uma satisfação onanística (o onanismo infantil, não o da puberdade). Mas é
impossível datar a origem dessa fantasia, demarcar quando ela aparece pela
primeira vez, mesmo que seja sempre muito precoce, anterior aos cinco anos

3 S. Freud, L'Homme Moíse et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 207.

121
Compreender

de idade. Freud acrescenta que essa fantasia pode ser reforçada pela expe­
riência de crianças que apanham do professor na escola, prática que não era
incomum nessa época. Ela também é reforçada pela leitura de obras de fic­
ção: Freud cita A cabana do pai Tomás, assim como as obras da Biblioteca rosa
com todas as fantasias de fustigação que também podem ser encontradas
nos romances da condessa de Ségur.
Como não estabelecer um paralelo com o depoimento de Jean-Jacques
Rousseau, em suas Confissões, quando evoca a correção merecida que lhe foi
“infligida" pela senhorita Lambercier. Em um dia no qual a srta. Lambercier o
chicoteara, ele percebeu que a dor experimentada era menor que a “vontade
de procurar a volta do mesmo tratamento merecido: pois eu encontrara na
dor, na própria vergonha, uma mescla de sensualidade que deixara em mim
mais desejo que temor de experimentá-la novamente pela mesma mão’’. Ele
concluiu esse episódio de sua primeira experiência de prazer, que ele procu­
rará repetir durante toda a sua vida, com uma grande perspicácia: “Quem
acreditaria que um castigo sofrido aos oito anos de idade através da mão de
uma moça de trinta anos teria decidido meus gostos, meus desejos, minhas
paixões, teria me decidido pelo resto da vida, e isso precisamente no sentido
contrário ao que deveria se dar naturalmente ? Ao mesmo tempo em que
meus sentidos foram acendidos, meus desejos aceitaram tão bem a mudan­
ça que, limitados ao que eu experimentara, eles não procuraram por nada
mais. Com um sangue ardente de sensualidade quase desde meu nascimen­
to conservei-me puro de toda mácula até a idade em que os temperamentos
mais frios e mais tardios se desenvolvem. Atormentado durante muito tem­
po, sem saber por quê, eu devorava com um olhar impetuoso as pessoas be­
las; minha imaginação recordava-as incessantemente; apenas para colo-
cá-las em ação ao meu modo e fazer delas outras senhoritas Lambercier’’4.
Esse relato, que possui um tom surpreendentemente freudiano, eviden­
cia claramente a estrutura da fantasia e como ela precede absolutamente to­
dos os objetos sobre os quais investiremos. Ela é de algum modo a chave que
nos dá acesso aos objetos. E ela é sempre perversa no sentido em que está do
lado da errância sexual, sob uma forma errática, nunca normal.
Nessa cena, assim como nas cenas de fustigação que Freud descreve
em “Uma criança apanha”, é preciso observar que nenhum dano é sofrido,
as crianças que apanham não sofrem nenhum ferimento. Além disso, tanto

4 Jean-Jacques Rousseau, Confessions, Livro I, Gallimard, p. 15-16 (La Pléiade).

122
0 masoquismo

nessa fantasia como nas encenações perversas, encontra-se sempre uma


forma de anonimato: é "uma” criança que apanha, neutra, indeterminada,
assim como é indeterminado o prazer ligado a essas fantasias que podem
se situar ora em uma vertente sádica, ora em uma vertente masoquista.

Destinos da fantasia de fustigação

Freud observa quatro destinos para essa fantasia de perversão infantil: não
cessar de subsistir para o resto da vida; sucumbir à repressão; ser subs­
tituída por uma formação reacional; transmutar-se em uma sublimação.
Quando persistem no adulto, essas fantasias se traduzem sob a forma de
errância, de erratismo sexual, nas perversões, no fetichismo ou em diferen­
tes formas de inversão. Essas escolhas são, pois, fixadas na infância, muito
antes do édipo, como demonstra o caso de Jean-Jacques Rousseau, para o
qual tudo estava determinado aos oito anos de idade.
As fantasias posteriores serão sempre sobrevivências de fantasias in­
fantis da pré-história. É por esse motivo que sempre subsiste o infantil no
sonho. Freud também observa (e talvez haja nisso uma alusão a Anna) que
quando essas fantasias se elaboram e se destacam um pouco da infância
elas podem estar na origem de uma neurose obsessiva. Pode-se encontrar
então essa dimensão de retenção, de controle sádico anal exercido sobre si
mesmo e sobre o outro.
Qual é a origem dessas encenações? Assim como coloca a questão da
origem em diferentes momentos de sua obra, Freud se interroga sobre este
ponto já que se trata de um verdadeiro problema. Com efeito, as fantasias
provêm de uma pré-história, anterior à saída final pela qual elas se mani­
festam. E é impossível encontrar sua origem, embora Freud tenha procurado
interrogar-se sobre a relação com a pessoa que fantasia, a relação com seu
objeto, a relação com seu conteúdo e a relação com a própria significação des­
sa modalidade de atividade e de componente sexual. Somente uma análise
correta pode encerrar a amnésia infantil sobre a origem dessas encenações.

Conteúdo e implicações

Freud também analisa o conteúdo e as implicações psíquicas dessas três


fases da fantasia na medida em que as fantasias sempre estão a serviço de

123
Compreender

algo, de uma posição que desejamos manter. Não somos objetos de nossas
fantasias, somos os sujeitos que organizam as próprias fantasias. Em ou­
tras palavras, a situação em que me encontro é a situação na qual eu me
coloco. A situação que construo em minha fantasia é aquela à qual quero
chegar. Isso nos conduz à distinção que Freud estabelece entre dois ter­
mos fundamentais em suas análises: o lugar (Stelle) e a posição (Einstellung).
O lugar no qual eu me coloco determina minha posição psíquica. Com efei­
to, é importante lembrar que há sempre uma dimensão muito ativa na
fantasmatização.
1) Na primeira fase, a fantasia está a serviço do ciúme da criança. Ela
se dá na vertente narcísica da criança, em seu amor, pois satisfaz seu ciú­
me em relação ao outro. Como a criança está fora de cena, não há nem
excitação sexual, nem prazer, caso contrário o sentimento de ciúme, ambi­
valente de ser poupado pelo pai, que ao mesmo tempo se ocupa do outro.
Trata-se de um estado incestuoso que permite uma identificação com o
pai, um estado dessexualizado. Ele gosta apenas de mim e não da criança
que ele castiga.
Nesta primeira fase da fantasia já está presente toda a dimensão ero-
tomaníaca que surgirá depois em alguns, dimensão surgida do narcisismo,
a saber, que a erotomania não pode ser senão um amor a distância, como o
amor cortês: ser o(a) escolhido(a) do outro, do pai, basta-me, e é porque ele
me ama em primeiro lugar que posso responder ao seu amor. Freud expli­
cita aqui que esse elemento psíquico da primeira fase pode sucumbir ora
por razões exteriores, depois de uma decepção provocada pelo pai, ora por
razões internas, pela ausência persistente da "realização desejada”.
2) Na segunda fase — eu apanho do pai — intervém um fator interno
à psique, que é o sentimento inconsciente de culpa. Sentimento que, assim
como o masoquismo, é de proveniência desconhecida, sem acontecimento
exterior que possa ser o seu desencadeador.
Esse sentimento age sobre a psique, com a seguinte convicção: não, ele
não ama você, ele bate em você. Está-se aqui no nível da essência do ma­
soquismo, em toda a sua complexidade: essa punição do amor proibido em
uma vertente sádica, e, por outro lado, coextensivamente, uma excitação
libidinal masoquista, por substituição regressiva do sadismo.
Nessa fase totalmente inconsciente, não se trata de uma repressão
secundária e edipiana, mas de um inconsciente originário, operado pela
ação do sentimento inconsciente de culpa, ele próprio “de origem desco­
nhecida”, portanto reprimido desde o início, e que é cognoscível apenas

124
0 masoquismo

pelos efeitos gerados por ele. É o estatuto do inconsciente sem a repressão,


um inconsciente originário.
3) A terceira fase, na qual o pai possui múltiplos substitutos no palco da
realidade (o mestre, o superior, toda pessoa que represente alguma forma
de autoridade), declina-se do seguinte modo: o pai castiga a outra criança,
ele ama apenas a mim. Na verdade, pode-se dizer que todas as crianças que
aparecem nessa fantasia não são senão substitutos do eu. E mesmo que a
fantasia apareça como sádica sua satisfação é masoquista, pois é pelo maso­
quismo que se pode atingir o amor do pai. Para as meninas, o desvio do amor
incestuoso em relação ao pai se dá mediante um complexo de masculinida­
de: trata-se então de uma identificação e não mais de um investimento.

Gênese das perversões

No final de "Uma criança apanha”, Freud se interroga sobre a gênese das


perversões, na medida em que as perversões infantis não são algo isolado,
mas um elemento constitutivo do desenvolvimento da criança. Como expôs
nos Três ensaios sobre a teoria sexual, Freud lembra que toda a sexualidade
infantil enquanto infantil é errância, desorientação, até mesmo desanimo
no sentido em que desarrimo é a ausência de arrimo, de capacidade de se
fixar sobre algo.
A sexualidade infantil apresenta-se, pois, como uma oscilação perma­
nente entre diversos elementos: o amor por si mesmo, o amor pelo objeto
que pode se apresentar, o amor pelo objeto a ser encontrado, a valorização
da pulsão (característica da cultura greco-latina) com o onanismo infantil
que organiza o narcisismo e a tomada de consciência do próprio corpo, a
sobrevalorização do objeto (que pode ser encontrado sobretudo no registro
sadomasoquista forte-fraco, ativo-passivo).
Em todos esses casos, o que é valorizado na sexualidade infantil é a
nostalgia do pai como objeto de amor, mais que da mãe. O masoquista se
origina mais do lado do pai que da mãe porque se pode observar uma exi-
gível autonomização do corpo da criança, da pele da criança, em relação ao
corpo da mãe, à pele da mãe.
Freud também observa que a gênese das perversões é totalmente autô­
noma e anterior ao édipo. Ao mesmo tempo, o édipo será a fonte da neurose,
reprimindo a sexualidade infantil porque, no fim das contas, a neurose é uma
escolha de entrar em um conflito que é uma “situação psíquica determina-

125
Compreender

da": esperar tudo do objeto. Freud aborda esse ponto no texto “Dos tipos de
entrada na neurose”, em 1912: “A psicanálise nos exortou a abandonar a opo­
sição estéril entre fatores externos e internos, entre destino e constituição, e
nos ensinou a encontrar regularmente a causação da entrada na neurose em
uma situação psíquica determinada que pode ser instaurada por diferentes
caminhos”5. Não há uma causação interna ou externa e sim um fator subjeti­
vo determinante: a escolha psíquica em um momento dado. E esse fator sub­
jetivo que determina a escolha de entrar no conflito, na neurose, é de origem
tão desconhecida e incognoscível quanto o masoquismo ordinário.

"0 problema econômico do masoquismo"

Freud retoma e desenvolve essa questão do masoquismo, que interroga no­


vamente a origem e o sentido das pulsões em 1924, após a introdução da
pulsão de morte, em seu texto “O problema econômico do masoquismo”6.

A montagem do pulsional

Para Freud, todo o pulsional não é sexual, a começar pelo comer, pelo beber e
pelo dormir; e o sexual sempre se enxerta, se une, se apoia, sobre o pulsional.
Daí o estatuto das pulsões parciais, ligadas a órgãos e neste caso a orifícios
específicos que não têm objetivos sexuais. Desse modo, o masoquismo pode
se encontrar ora em uma vertente sexual, ora em uma vertente não sexual.
A esse título, o primeiro filão se organiza em tomo do par ativo/passivo,
e das duas primeiras organizações do corpo, a organização oral e a organi­
zação sádica/anal, que inicialmente não estão na vertente sexual. A orga­
nização oral, em sua dimensão canibalesca, visa constituir o uno a partir do
dois, isto é, ingerir, incorporar o outro. Através da absorção do leite, através
do encontro boca/seio, origina-se o primeiro modelo de encontro com o ex­
terior, que é a ingestão, a incorporação, e isso se dá por meio da destruição.
Modelo inicial, até mesmo iniciático, de todas as identificações posteriores:
tomar do outro para dele fazer o si mesmo.

5 S. Freud, Des types d'entrée dans la névrose (1912c), in Neurose, psychose et peruersion, PUF,
1973, p. 82.
6 S. Freud, Le problème économique du masochisme (1924c), in OCP. F XVÍI, PUF, 1992.

126
0 masoquismo

A segunda organização do corpo, a organização sádica/anal, não se


situa no intersubjetivo, no encontro de dois órgãos que representam dois
fragmentos de corpos diferentes, a boca e o seio, mas representa uma difra-
ção no seio do corpo próprio de uma dupla polaridade, ativa e passiva, que
remete ao masculino e ao feminino. A organização sádica/anal é uma das
modalidades da pulsão de domínio e estabelece um "aparelho de músculos”
que precede o "aparelho de pensamento” (que Freud definirá em O homem
Moisés e a religião monoteísta1) e cuja função é a de controlar uma mucosa
interna, erógena, a mucosa intestinal, que aparece nesse momento para o
corpo/psique ainda incoativa, como tendo um objetivo passivo. A primeira
modalidade de aparecimento da pulsão de domínio, na medida em que está
ligada ao registro do controle, remete, pois, ao aparelho de músculos, do
controle do interno. O aparelho de pensamento conservará traços do apare­
lho de músculos sobre o qual ele se apoia.

0 sadomasoquismo

A primeira dimensão sadomasoquista se exerce sobre o próprio corpo atra­


vés do muscular a serviço do controle de um órgão erógeno interno, a zona
anal: a primeira dimensão ativa/passiva se encontra em seu próprio corpo,
ela é intrassubjetiva e não intersubjetiva. A pulsão de domínio, sempre não
sexual, também pode se transformar em pulsão de destruição.
No jogo do Fort-Da8 que Freud descreve em “Para além do princípio de
prazer”, seu neto de dezesseis meses coloca duas dimensões em ação. Em
primeiro lugar, quebrar, jogando a bobina longe, é uma maneira de conhe­
cer no próprio fato de quebrar. Esse primeiro modo de conhecimento para
a psique consiste em quebrar o mundo exterior, quebrar para tentar co­
nhecer e, portanto, controlar o vínculo ou a perda do vínculo, pois a bobina
serve para controlar a ausência da mãe. O segundo tempo dessa pulsão de
domínio, enquanto pulsão de destmição, é uma pulsão que, para além da
destruição do outro e do mundo exterior, chega a elaborar o vínculo, a rela­
ção, isto é, de fato, a elaborar a ausência. A única maneira pela qual se pode
fazer cessar nossa dependência em relação ao objeto exterior é ter acesso à

J S, Freud, L’Homme Moise et Ia religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 215.


8 S. Freud, Au-delà du príncipe de plaisir (1920g), cap. 2, in Essais de psychanalyse, Payot,
1973.

127
Compreender

nossa independência. Essa fase abre a criança para a dimensão do tempo,


para uma temporalidade vetorizada e para o momento do autoerotismo, no
qual há o encontro dessa dimensão ativo/passivo no próprio corpo, que ma­
nifesta uma primeira independência em relação ao objeto. O dedão, assim
como diversos bichos de pelúcia ou soft toys, desempenham o papel de ob­
jetos transicionais como substitutos do seio materno. Essa independência
adquirida em um desdobramento de si em que a angústia remete à passi­
vidade pode ser autoacalmada por essa dimensão de controle.
Esses são os primeiros delineamentos a partir dos quais pode ser ela­
borada uma solução masoquista como modo de escapar do outro. O pri­
meiro fio vermelho da solução masoquista é o par ativo/passivo que Freud
explicita, em “O interesse da psicanálise” — no sentido de interesse que
as outras disciplinas podem ter em relação à psicanálise: "O inconsciente
não conhece nem o masculino, nem o feminino, ele conhece apenas o ativo
e o passivo”9, na medida em que nem o masculino nem o feminino, que
remetem a diferenças anatômicas, não são imediatamente inscritíveis no
aparelho psíquico enquanto representações psíquicas. Em outras palavras,
a primeira coisa que o inconsciente conhece é o objetivo de certas pulsões,
objetivo ativo ou objetivo passivo.

As teorias sexuais infantis

Isso remete às "teorias sexuais infantis’’10 na medida em que elas são as


primeiras elaborações do corpo/psique e constituem de algum modo a ati­
vidade de pré-fantasmatização. Elas podem ser encontradas em toda orga­
nização psíquica, modalidades pelas quais, em seu desenvolvimento, a
criança (das Kind) pode tomar consciência de seu corpo. Essas teorias pos­
suem como função “evitar o retomo de acontecimentos temidos", portanto
prevenir o risco de angústia, de abandono pelo objeto e de perda do objeto;
a primeira atividade de saber que se desenvolve está ligada “aos componen­
tes pulsionais do corpo” e dependente destes últimos. Essas construções
sucessivas do corpo são elaboradas pela psique da criança e são inscritas na
imago do corpo fantasiado. Elas são o único conhecimento possível do corpo

9 S. Freud, Eintérêt de la psychanalyse (1913j), in Résultats, idées, problèmes, tomo I, PUF,


1984, p. 205.
10 Cf. capítulo IV, “A descoberta do infantil”.

128
0 masoquismo

pela psique, sem influência exterior, mas apenas sob a influência dos com-
ponentes pulsionais sexuais. A pulsão de saber, sob sua primeira forma, tem
como objetivo conjurar os acontecimentos temidos, como já observamos.
Ela é uma modalidade defensiva contra a ausência do outro, a serviço de
um controle que permitirá a autonomização em relação ao outro, sob a con­
dição de que ela não seja objeto de uma inibição ou de que ela não seja
contrariada a partir do exterior.

A experiência de prazer

Nesta primeira manifestação do ativo/passivo, forte/fraco, masculino/fe-


minino, sado/masoquismo, o sexual ainda não está posto, o corpo ainda
ignora a diferença sexual e ainda não está eroticamente sexuado. A questão
primordial que se coloca a psique nascente ou “o infans” é a do controle da
experiência de prazer: como ter acesso a reencontros com uma experiência
de prazer cuja causa provém primeiramente do outro, e particularmente
desse primeiro outro que é o outro materno?
O segundo filão da organização da vida psíquica a partir do par prazer/
desprazer, Lust/Unlust, será parasitado pela irrupção de outra coisa, o gozo.
O modelo do prazer na perspectiva freudiana, na medida em que não é o
prazer sexual, mas o prazer ligado ao apaziguamento das tensões do or­
ganismo, é a cessação do desprazer. Todo o modelo freudiano ulterior do
prazer procura fazer cessar esse desprazer, efeito de tensões internas, de
excitações externas que é preciso poder acalmar. Estamos aqui na presen­
ça de um modelo de prazer de órgão produzido pela descarga de tensões.
No modelo do autoerotismo, a masturbação, enquanto prazer de órgão, é
justamente esse fim das tensões e da angústia, angústia que, ao contrário
do medo, é "sem objeto” segundo a expressão de Lacan, que envolve todo o
sujeito e da qual não se sabe como livrar-se dela.
Nesse primeiro modelo de prazer, pode-se dizer que o prazer é anobje-
tal; ele visa ao narcisismo primário e ao autoerotismo, mas ainda diz pouco
respeito ao narcisismo secundário na medida em que este último é a aptidão
de investir o outro e de desinvesti-lo em um vaivém entre si mesmo e o ou­
tro, sem que isso provoque uma hemorragia narcísica. Esse primeiro modelo
de prazer baseia-se em um modelo de necessidade fisiológica e comporta
essa dimensão anobjetal de assegurar um processo autocalmante ao corpo-

129
Compreender

couraça (“o aparelho de músculos”) que procuramos proteger de todas as ex­


citações exteriores e que também tentamos dominar através das excitações
internas na erótica sádica-anal. O prazer, em si mesmo, enquanto cessação
do desprazer, apresenta uma ambivalência, pois ao mesmo tempo vem se
enxertar imediatamente um duplo fenômeno no nível da compulsão de re­
petição: para reencontrar o prazer, procura-se criar situações de excitação,
já que o único prazer possível é a cessação da excitação como desprazer.
Encontra-se aqui o problema do masoquismo: criar uma excitação,
uma tensão, uma situação desagradável para poder fazê-la cessar. Uido
isso permanece em um registro de controle, isto é, de uma dialética depen-
dência/independência que visa colocar-se ao máximo em uma situação de
independência em relação a outrem.

Angústia e gozo

Mas esse par prazer/desprazer abre também para outra coisa, em razão do
próprio fato desse mistério do funcionamento psíquico que implica justa-
mente provocar um sofrimento para que se possa interromper o sofrimento.
E constatamos que esse sofrimento orgânico ou psico-orgânico provoca an­
gústia, isto é, um registro de perda de representações. Ora, a única situação
homóloga à angústia como perda de representações é justamente o gozo,
que terminologicamente não é em Freud do registro do Lust (prazer) e sim
do Genuss: gozar do outro de modo subjetivo ou objetivo, com uma dimen­
são possessiva (ocupar ou apossar-se do outro) e uma dimensão jurídica de
direito ao gozo absoluto. “Jus utendi et abutendi", como diz o direito romano,
usar e abusar, direito de consumir e de destruir o que me pertence. O gozo
reintroduz aqui a dimensão do outro e sai-se com ele do teatro do corpo e
desse sadomasoquismo intrassubjetivo para reencontrar o outro que para
nós é sempre “enigmático” (die Ratsel in Wesen, o enigma por essência do
outro'1), desconhecido, aleatório, o outro que esteve na origem da primeira
experiência de prazer. Chegamos aqui àquilo que parasita completamente
o modelo prazer/desprazer pelo retomo do outro como exterior à psique.
Esses mistérios do gozo e do masoquismo não deixam de lembrar as
primeiras observações de Freud, particularmente o que ele escreve em sua 11

11 S. Freud, Pour introduire le narcissisme (1914c), in La Vie sexuelle, PUF, p. 95.

130
0 masoquismo

conhecida carta a Fliess de 6 de dezembro de 189612: “O acesso histérico


não é uma descarga e sim uma ação, e ele conserva o caráter original de
toda ação: ser um meio de reproduzir prazer. Ao menos é o que ele é na
raiz...”. Freud enfatiza aqui a dimensão de repetição inerente ao prazer e
sua ambivalência porque é preciso passar pelo desprazer para ter acesso
ao prazer. Ele prossegue: “Os ataques de vertigem, os soluços, tudo é impu­
tado na conta de outro, mas sobretudo do outro pré-histórico, inesquecí­
vel, que ninguém depois conseguirá igualar”. Através dessa nova definição
de histeria, Freud sustenta que ela não é uma descarga e sim uma ação,
um apelo, um requerimento ao outro para que ele venha enquanto pessoa
tirar-me de minha posição de angústia infantil, a menos que se trate de
mantê-la e de alimentá-la. Essa é, para além da histeria freudiana, a en­
cenação fundamental do pedido de amor ao outro, e desse primeiro outro
que é o outro materno.

Gozo e feminilidade

Nesse modelo da histeria, modelo de apelo ao outro, encontram-se extra-


postos o forte e o fraco, "o outro pré-histórico, inesquecível, que ninguém
depois conseguirá igualar’’, e a angústia da criança que não tem a possibi­
lidade de sair de sua insatisfação senão pelo grito que convocará a mãe ou
o substituto da mãe. A angústia é aqui imediatamente articulada ao gozo,
que é ele próprio de essência feminina. Aliás, é aí que chega Lacan no final
de sua vida, pois em seu seminário “Encore” ele definiu o gozo feminino
como um gozo suplementar, entrega ao outro. Ele tomou como modelo a
famosa estátua de Bernini sobre a Transverberação de Santa Teresa, em
Santa Maria della Victoria em Roma, em que ela é representada em um
estado de oferenda ao outro, pronta a receber a flecha divina que irá pene­
trá-la e atravessá-la.

Gozo e horror

Mas o gozo também é da ordem do horror, como lembra uma sessão em que
“o homem dos ratos” salta do divã diante de uma cena para ele insuportável

12 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 112, p. 270-271.

131
Compreender

e sobre a qual ele não pode falar, e ele pede a Freud que o poupe de contar
essa cena. Freud lhe diz que ele não pode poupá-lo, privando-o de seus pen­
samentos. Quando relata esse instante em seu Diário de uma análise, Freud
salienta a expressão estranha do homem dos ratos que ele interpreta como “o
horror de um gozo que ele próprio ignora”13, diante de uma cena que remete
ao passivo, ao feminino, a uma seqüência precisa de um suplício chinês que
consistia em introduzir um instrumento no ânus de um homem.
O gozo toma-se então ruptura e efração corporal, ora do lado da ima­
gem do corpo e do corpo muscular, ora do lado da elaboração psíquica do
corpo — que Françoise Dolto chama de “imago do corpo fantasiado” —, em
que a imagem inconsciente do corpo remete a limites subjetivos perdidos,
particularmente no orgasmo que, como a angústia, é uma experiência de
perda de representações. Esse exemplo demonstra o estatuto ambivalente
do gozo sobre o qual se organizará a modalidade do prazer masoquista. O
outro (o outro materno), no início, garante a primeira experiência de prazer,
experiência necessária, pois, se esta não existisse na relação com a mãe,
algo que se vê na anorexia, a criança correria o risco de se fechar para o
mundo exterior no autismo.
Em contrapartida, embora o outro garanta a primeira experiência de
prazer, pode-se evidentemente reconduzir, e é aqui que se engrena a cons-
trição de repetição que em Freud terá vários sentidos, mas dos quais o pri­
meiro é a repetição dessa primeira experiência de prazer, em que se deve
absolutamente obter a garantia do outro para poder tentar repetir uma ex­
periência na qual o prazer prima sobre as pulsões de autoconservação. Esse
caráter de constrição conduz a uma conseqüência na qual a essência do
masoquismo se traduz em uma solução não sexual, uma solução narcísica
para a sexualidade. A conjuração do aleatório do outro que poderia vir a
faltar pela organização de uma relação segundo um modo intrassubjetivo,
e não intersubjetivo, e portanto segundo o modelo mãe/filho.
O que fazer diante desse gozo angustiante a não ser tentar reprimi-lo?
No "Manuscrito M”, de 22 de maio de 1897, Freud fala da repressão sobre­
tudo como repressão do feminino: “É preciso ter a suspeita de que o essen­
cial do que é reprimido é a feminilidade. Isso pode ser confirmado pelo fato
de que as mulheres, não menos que os homens, são menos reticentes quan­
to às suas experiências com as mulheres do que com os homens. O que os

13S. Freud, L'Homme aux rats. Journal d’une analyse (1909d), PUF, 1974.

132
0 masoquismo

homens reprimem principalmente é o seu componente pederástico”’4. O


que Freud quer dizer com isso é que tudo aquilo que é da ordem do gozo
remete a dois tipos de experiência: ora à efração do corpo como “o horror
de um gozo que ele próprio desconhece” do homem dos ratos enquanto
penetração anal, ora à perda dos limites subjetivos. Em outras palavras, o
outro é ao mesmo tempo a garantia da repetição da primeira experiência
de prazer, mas ele também é o lugar de um transbordamento mortífero de
prazer, mortífero na medida em que ele faz perder os limites corporais,
penetrando por efração no corpo psique, por oposição a esse corpo-coura-
ça, esse aparelho de músculos que nos protege inicialmente das excitações
provenientes do exterior.

0 aparelho de músculos

Freud volta a tratar do corpo muscular em O homem Moisés e a religião mo-


noteísta’5 utilizando a metáfora do “aparelho de músculos” para designar o
que precede o aparelho psíquico, a elaboração psíquica do corpo. Ao mesmo
tempo, ele é perda dos limites psíquicos enquanto perda do controle das re­
presentações. Nós nos encontramos diante da perspectiva segundo a qual o
orgasmo repetido e a descarga orgástica não são o gozo, enquanto perda dos
limites entre o eu e o outro, ou perda dos limites psíquicos. 0 adágio “para
se encontrar é preciso perder-se” ilustra com pertinência que o registro do
gozo não é de modo algum da mesma natureza que o registro do orgasmo
enquanto prazer de órgão.

A dor

Qual é a experiência que, ao conjurar a angústia e o gozo como duas instân­


cias de perda de representações, pode remeter à existência do corpo próprio, 14 15

14 S. Freud, “Manuscrit M", tradução proposta por Wladimir Granoff, in Filiations, Minuit,
1975, p. 295-296. Esse texto é integrado à nova tradução das cartas a Fliess, com a seguinte tradu­
ção: “Pode-se supor que o elemento realmente repressor é sempre o feminino, e isso é confirma­
do pelo fato de que as mulheres, assim como os homens, entregam mais facilmente as experiên­
cias que viveram com mulheres que as que viveram com homens. O que os homens realmente
reprimem é o elemento pederástico". S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, p. 313.
15 S. Freud, L'Homme Moi'se et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 215.

133
Compreender

à existência do aparelho de músculos como modelo defensivo da psique? É


a dor. A dor física ou moral remete aos limites corporais, e poder-se-ia dizer
que a experiência da dor, “eu sofro, portanto sou", opõe-se à experiência do
gozo em que “eu gozo, portanto me perco". Eis que estamos no caminho da
solução masoquista: na experiência da dor, tenho consciência de não per­
der minha identidade e até mesmo de reencontrar a relação indiferenciada
mãe/filho, reencontrar modalidades de relação indiferenciada mãe/filho, ora
segundo o modo intrassubjetivo de uma dor moral ou física que posso impor
a mim mesmo, ora segundo o modo intersubjetivo de uma relação na qual,
com base em modalidades histéricas de apelo ao outro, evitarei o encon­
tro do outro, fazendo dessa relação uma recondução do modelo mãe/in/ans,
uma forma de estado fusional evocado no estado de mania, que permite
evitar que se ame um objeto, ou ser amado por um objeto exterior, com o
risco de que cesse a relação de vínculo fixo sujeito/objeto que está inscrito
na psique como primeiro encontro entre a boca e o seio, a mãe e o infans.

0 masoquismo ordinário e o sentido da repetição

O que distinguirá um masoquismo perverso de um masoquismo ordinário


enquanto evitação do encontro com o outro é que a solução do masoquis­
mo ordinário nunca é totalmente bem-sucedida, enquanto a do masoquismo
perverso é bem-sucedida. Com efeito, o que caracteriza este último é a pos­
sibilidade absoluta de controlar o gozo do outro, sendo, se necessário, exte­
rior a esse gozo ao mesmo tempo em que é seu ordenador. Daí os rituais sa-
domasoquistas nos quais, no controle perfeito da dor/gozo do outro, o sujeito
ativo permanece de fora. Esse, aliás, é o ponto pelo qual a paranoia se apro­
xima da estmtura perversa, mesmo que a visada do paranoico não seja o
gozo do outro e sim o controle dos pensamentos e de um saber sobre o ou­
tro. Em ambos os casos, o que se obtém é um vínculo fixo com o objeto.
É preciso então dissociar adequadamente o masoquismo sexual do
masoquismo não sexual, que pode ser designado como masoquismo or­
dinário. O masoquismo só se toma realmente sexual na medida em que
ele se transforma em perversão sexual, isto é, quando ele faz coincidir em
um único momento a dor como última forma de excitação e algo que está
ligado ao prazer do órgão, prazer de órgão nascísico que tem como objetivo,
justamente, escapar do gozo.

134
0 masoquismo

As manifestações do masoquismo ordinário são da ordem da regres­


são, da depressão, da desvalorização de si mesmo, diz Freud em Inibição,
sintoma e angústia'6. E essas três figuras, regressão, depressão e desvaloriza­
ção de si mesmo, remetem a uma libido do eu, e em nenhum caso a uma
libido de objeto. Aparece algo aqui que é da ordem dessa primeira manifes­
tação da transferência, "a expectativa crente", uma disposição psíquica in­
terior de expectativa no outro, e correlativamente o que está ligado a um
anseio, como no sonho, um anseio da ordem do preenchimento do voto
mais que do encontro real, efetivo, com o outro. Naturalmente, isso nos
conduz a fazer a distinção entre o que diz respeito ao Lustprinzip, a busca de
satisfação, o que diz respeito ao Wunscherfüllung, a realização do voto, que é
o objeto do sonho, e o que diz respeito ao Begierde, ao desejo, na medida em
que o desejo em Freud não é, como em Hegel, um desejo de ser reconhecido
pelo outro (no quadro da dialética do reconhecimento evocada na Feuome-
nologia do espírito), mas um desejo sexual, um encontro sexual com o outro.
Freud pode dizer que o masoquista "quer ser tratado como uma crian­
ça angustiada e dependente", isto é, quer reencontrar o vínculo para evitar
a relação. Essa relação que poderia ser chamada de masoquismo ordinário,
relação de sofrimento com o outro, enquanto evitação do encontro do outro,
possui, portanto, um caráter aleatório, nunca definitivo. Ela tem de reco­
meçar o tempo todo, é preciso constantemente renovar-se para evitar ser
confrontado com o gozo.

0 masoquismo ordinário na relação analítica

Embora em geral se tenha insistido muito na estrutura histérica da relação


analítica, abordou-se menos a dimensão masoquista que, no entanto, lhe é
inerente: masoquista no sentido em que, em grande parte, a relação analí­
tica pode ser entendida como proveniente não de uma libido de objeto, do
analisando em relação ao analista, mas sim de uma libido do eu.
É, pois, pertinente reinterrogar o que acontece com esse amor de trans­
ferência, na perspectiva desse anseio do masoquista de ser uma pequena
criança angustiada e dependente, e ao mesmo tempo “má”. Por que uma
dimensão da posição masoquista está sempre presente na transferência?

IB S. Freud, Inhibition, symptõme et ctngoisse (1926d), PUF, 1993 (Quadrige).

135
Compreender

Fundamentalmente porque temos horror da individuação e da separação.


Recorde-se o filme Porteiro da noite em que se pode ver como é difícil sepa-
rarse de seus perseguidores, o que também foi designado posteriormente
como a síndrome de Estocolmo. Prefere-se fundir-se em uma multidão fu-
sional antes de ser um sujeito que confia em si mesmo1’.
Em um capítulo de seu livro, A criança imaginária, consagrado à trans­
ferência e à contratransferência, Conrad Stein relata a reflexão de uma de
suas pacientes: "Não quero que você saia ileso de mim, isto é, quero poder
ter um efeito sobre você”18. Aparece algo aqui da ordem dessa primeira ma­
nifestação da transferência, "a expectativa crente”, uma disposição psíquica
interior de expectativa em relação ao outro, e correlativamente o que diz
respeito a um anseio, como no sonho, um anseio que é da ordem da reali­
zação do voto mais que do encontro real, efetivo, com o outro, assim como
explicita o capítulo VII da Interpretação dos sonhos.
Como determinar a maneira pela qual o masoquismo ordinário surge
na situação analítica e pela qual ele se revela? Antes disso é capital — o
que nem sempre é feito — diferenciar adequadamente, no nível do sexual,
a libido do eu, retomada das pulsões parciais, que está ligada ao narcisismo
primário e, em certa medida, não é sexual, e a libido de objeto, que por sua
vez visa à pessoa global e sua representação. Ora, o problema do maso­
quismo em seu conjunto cobre um campo que não diz respeito à pessoa
global, ao menos sob o ponto de vista que Freud enfatizou em “O problema
econômico do masoquismo”: “A primeira interpretação descoberta sem di­
ficuldade é que o masoquista quer ser tratado como uma criança pequena
angustiada e dependente. Mas ele quer sobretudo ser tratado como uma
criança má”. Por que parece tão simples e evidente para Freud que o maso­
quista queira ser tratado como uma “criança má”?

0 sentimento inconsciente de culpa

A raiz do masoquismo é esse sentimento inconsciente de culpa, e a criança


má é essa criança megalômana que se sente absolutamente culpada por

1J Para ilustrar o desejo de fundir-se em uma multidão, Freud cita várias vezes a expressão
"compacta maioria”, que ele toma de Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen (1882). Cf. capítulo
sobre “A importância da temporalidade”.
18 C. Stein, L'Enfant imagimire (1971), Denoêl, 1987, p. 42.

136
0 masoquismo

tudo o que acontece: ‘‘Se meu pai ou minha mãe não me amam, é porque
ele ou ela não saiu ileso de mim; a retração do amor está ligada a alguma
coisa que lhes fiz’’. Essa posição masoquista de onipotência culpada permite
por sua lógica (é culpa minha que eles não me amem) manter um vínculo
permanente com o outro. Eles não se livram de mim, mas eu é que fiz algu­
ma coisa que os atingiu; como eu existo unicamente nesse ato de atingi-los,
é preciso que eu me mantenha nessa posição. Observa-se aqui a racionali­
zação de uma onipotência em razão do fato de que o outro, a pessoa grande,
nunca poderá escapar de mim. O masoquismo ordinário só pode funcionar
do seguinte modo: nunca largar o outro.
Em O mal-estar na cultura, Freud procura estabelecer a gênese do senti­
mento de culpa: “Conhecemos duas origens para o sentimento de culpa, a
que provém da angústia diante da autoridade, e a ulterior, proveniente da
angústia diante do supereu"19. Na medida em que o supereu é a introjeção
da autoridade. “O primeiro sentimento de culpa constrange a renunciar às
satisfações pulsionais”, é a angústia diante da autoridade que proíbe o pra­
zer, "o outro, além disso, conduz à punição, dado que não se pode ocultar do
supereu a persistência de anseios proibidos” (o termo aqui não é o desejo, Be-
gierde, mas o voto, Wunsch). O paradoxo do sentimento de culpa se traduz por
um duplo efeito: renunciar ao prazer e punir-se por almejar prazeres. Quanto
mais se renuncia ao prazer, mais há culpa por pensamentos de prazer.
Mais adiante Freud evoca uma das descobertas da psicanálise: “A rela­
ção entre supereu e eu é o retomo deformado pelo anseio das relações reais
entre o eu ainda indiviso e um objeto externo” (p. 73). Ele emprega proposital-
mente o termo ungeteilten, a indivisão, a não separação em relação ao objeto
exterior. Ora, essa indivisão é a própria essência do masoquismo: a impossi­
bilidade, a incapacidade de separar-se do outro. A criança não está apenas
angustiada e dependente, ela quer sobretudo ser tratada a mais de um título
como uma criança má; por causa de seu sentimento de culpa, mas também
pelo próprio fato dessa relação que permuta ao infinito de uma psique para
outra. Nessa indivisão em relação ao objeto, ela se vive como onipotente em
relação ao objeto e pode então tomar deste essa perda de amor que é vivida
como se ela própria fosse sua origem porque ela seria má. A criança quer ou
deve ser sancionada e punida porque toda perda de amor é vivida como es­
tando ligada à sua culpada onipotência em relação ao adulto.

19S. Freud, Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, Quadrige, 1995.

137
Compreender

A formulação da paciente de Conrad Stein — “não quero que você saia


ileso de mim” — coloca logo de saída a cena analítica como uma cena na
qual, totalmente dependente da outra, ela convoca o outro tomando-o ao
seu serviço, um outro totalmente sujeito a essa vontade de dependência
que é a sua. Essa pode ser a posição masoquista na psicanálise, na sessão
analítica e na cena que se desenrola no tempo da sessão.

0 acesso à transferência

O texto “Rememorar, repetir, perlaborar” permite entender a dimensão ma­


soquista presente na cura analítica: “É no manejo da transferência que se
abre o principal meio para interromper a constrição de repetição e para
transformá-la em uma razão para se lembrar”20. Na medida em que esse
sentimento de culpa é totalmente inconsciente, ele procurará se traduzir
na cura essencialmente por meio de “agires” e particularmente por moda­
lidades que serão atribuições à residência do analista em uma posição na
qual o analisando se viveria como uma criança angustiada e má, como um
sujeito que não é amado por seu analista. Freud prossegue: “Tomamos essa
constrição de repetição inofensiva, até mesmo utilizável, limitando os seus
direitos, deixando-a subsistir apenas em um domínio circunscrito. Nós lhe
permitimos o acesso à transferência, esta espécie de arena em que lhe será
permitido manifestar-se com uma liberdade quase total, e na qual lhe pe­
dimos para revelar tudo o que de patogênico se dissimula no psiquismo
do sujeito. Mesmo no caso em que o paciente se limite simplesmente a
respeitar as regras necessárias da análise, certamente conseguimos atri­
buir a todos os sintomas mórbidos uma nova significação de transferência e
substituir sua neurose ordinária por uma neurose de transferência e desse
modo criar um reino intermediário entre a doença e a vida real, domínio
através do qual se efetua a passagem entre uma e outra"21.
A verdade do masoquismo é a de não estar sozinho, é a angústia, até
mesmo o terror de não ser identificado, o que conduz a verificar o senti­
mento de existência no sofrimento: eu sofro, portanto sou. Ele não é uma

20 S. Freud, Remémorer, répéter, perlaborer (1914g), in La Technique psychanalytique, PUF,


p. 113 (tradução revista).
21 Ibid., p. 113-114.

138
0 masoquismo

manifestação pulsional primária; ele é a volta do sadismo contra a própria


pessoa, e portanto regressão do objeto rumo ao eu. O masoquismo pode,
pois, ser considerado uma formação cicatricial da consciência de culpa
confrontada à escolha incestuosa e ao sadismo daí decorrente.
O relato autobiográfico escrito pelo coronel T. E. Lawrence, A matriz, nos
oferece uma das mais belas ilustrações do masoquismo. Em seu retomo
da Arábia, em 1922, ele se toma o soldado Ross, na R.A.F., sob a matrícula
352087, desejoso de se fundir no anonimato de uma massa. O título inglês,
The Mint, remete ao termo que designa a Casa das Moedas, na Inglaterra (o
verbo to mint significa "cunhar” uma peça ou medalha). Do mesmo modo, na
linguagem dos impressores franceses, a "matriz" designa um molde em bai-
xo-relevo destinado a criar relevo. A escolha desse título remete, pois, a uma
marca que viria obliterá-lo de modo definitivo para garantir sua nova iden­
tidade. T. E. Lawrence narra a experiência radical de dessubjetivação que ele
vive então: “Passamos a desejar ser uma unidade, não mais indivíduos. [...]
Éramos tão dóceis ao cabo Abner que havíamos perdido o costume de decidir.
[...] A necessidade de um mestre gritava muito forte em nós. [... ] Comungáva­
mos nela (na tropa) mediante nossa igual servidão. [...] Eu quis me assegurar
de que todo exercício, toda exibição deliberada do corpo é uma prostituição;
nossas formas criadas não são senão acidentes até que, pelo prazer ou pelo
sofrimento que associamos a elas, elas se tomam nossa falta”22.

22 T. E. Lawrence, La Matrice (trad. Étiemble), Gallimard, 1955.

139
Capítulo IX

A regra fundamental, espaço da cura

Que estudo não será preciso fazer


para cessar de ser si mesmo1.
Senhorita Clairon

A regra fundamental (Grundregel) que organiza o espaço da cura analítica


não pôde ser enunciada e elaborada por Freud senão a partir de 1912, mais
de vinte anos depois que ele começara a inventar seu método de análise.
Podemos nos perguntar por que ele precisou de tanto tempo para chegar a
elaborar e a formular essa regra fundamental que permite ao mesmo tem­
po pensar o f m do amor da transferência e não apenas do amor de trans­
ferência, pensar o problema da separação, pensar o problema da imago do
corpo, pensar, através da questão da separação, a do masoquismo e, por fim,
pensar ao mesmo tempo uma teoria da língua e da linguagem e a teoria da
interpretação na análise.
Não se deve perder de vista que existe um paralelo entre as teorias
sexuais infantis e as teorias psicanalíticas: elas respondem a uma "urgên­
cia de pensar”. Aquilo que, no espaço da sessão, está ligado a uma urgência
de pensar é análogo a pensar as teorias sexuais infantis, cuja função era a de
"evitar o retorno de acontecimentos temidos”, a saber: como pensar o obje­
to de amor quando outras crianças surgem no espaço da família ?

1 Mémoires, Genebra, Slatkine Reprints, 1968, p. 234.

141
Compreender

As teorias psicanalíticas, com exemplos extraídos de Jung, de Rank ou


de Anna Freud, também mostram que elas podem ser portadoras, sob uma
forma defensiva, de teorias da imago do corpo, assim como as teorias se-
xuais infantis, enquanto organizações fantasmáticas, são, elas também,
teorias da imago do corpo.
Na origem das teorias psicanalíticas, o problema é o de saber em que
medida a transferência e sua teorização levarão em consideração esta ou
aquela teoria da imago do corpo. Em um de seus últimos textos, "Análise
finita, análise infinita", Freud lembra que quando o analista se sente des-
munido na situação analítica ele tende a se refugiar atrás da "feiticeira
metapsicologia”2. Em um de seus últimos seminários, Jean Laplanche tam­
bém vai nesse sentido: “O que se toma esquema de interpretação são os
próprios quadros teóricos: os princípios de ligação e de desligamento sob o
nome de amor e de ódio tornaram-se interpretantes passe-partout que são
impostos ao paciente"3. Essa observação muito justa de Laplanche permite
diferenciar os quadros analítico e teórico do próprio conteúdo da interpre­
tação. Ao mesmo tempo, o que ele enfatiza nessa posição é que a palavra do
analista na sessão não poderia provir do âmbito teórico. Quando o analista
em desespero recorre à “feiticeira metapsicologia”, ele utiliza a teoria como
posição defensiva, em detrimento da regra fundamental.
Com isso volta a se colocar a questão da diferenciação entre a hipno­
se e a psicanálise. O hipnotizador desloca o paciente para uma situação
anterior, enquanto o analista mantém a transferência até que ela possa
ser tratável analiticamente, isto é, até que ela apareça como resistência à
rememoração e que ela apareça sob a forma não de lembrança e sim de
agir. A diferença entre a hipnose e a psicanálise diz respeito precisamente
aos deslocamentos das pessoas. Isso toca a questão colocada pela polêmica
entre Freud e Ferenczi: a transferência recai, como afirma Ferenczi, sobre
a pessoa do analista enquanto processo introjetivo de seus traços ou ela é,
como para Freud, um deslocamento de representação na relação?

2 S. Freud, Analyse fnie, analyse infinie (1937c), in Résultuts, idées, problèmes II, PUF, 1985,
p. 240.
3 ). Laplanche: Le fourvoiement biologisant de la sexualité II, fev. 1992, in Psychanalyse à
1'Umuersité, PUF, jan. 1993, T.18, n° 69, p. 33,

142
A regra fundamental, espaço da cura

O fracasso da análise de Dora

O fracasso da análise de Dora, que durou apenas dez semanas, em 1900,


está ligado ao fato de que Freud não sabia levar em consideração a trans­
ferência, como demonstra o que ele escreveu cinco anos depois, ao redigir
a história desse caso: "A parte mais difícil do trabalho técnico não pôde ser
abordada nessa doente porque o fator transferência que surgiu no final da
observação não apareceu durante esse curto tratamento"4. Em 1900, Freud
ainda tentou fazer uma análise sem transferência e ele se deu conta, no
momento em que escrevia o caso Dora, que ele não havia visto o lugar que
Dora lhe atribuía na transferência. É verdade que “o fragmento de uma aná­
lise de histeria" que deveria se chamar “Sonho e histeria" visava sobretudo
a verificar e confirmar um texto contemporâneo, A interpretação dos sonhos.
Dora colocava Freud na situação e no lugar de M. K., amigo da família que
a beijara dizendo: “Minha mulher não é nada para mim". Enquanto Dora
esperava essencialmente poder deduzir seu corpo do da senhora K., por não
poder fazer isso do corpo de sua mãe, vítima da “psicose da dona de casa".
Esse caso ilustra a dificuldade enfrentada por certas teorizações em disso­
ciar o analista de sua posição, de sua intervenção, de seu lugar na transfe­
rência (quer ele seja colocado, quer ele se coloque nela). É evidente que, se
Freud tivesse compreendido que ele fora colocado na situação e no lugar de
M. K., Dora não o teria dispensado. Ela poderia ter desenrolado sua história
com M. K. e elaborado o sentido de seu investimento em relação à sra. K.

A teoria da interpretação

Um dos objetos aos quais a regra fundamental terá de responder será a


teoria da interpretação, ela própria correlativa de uma teoria da língua e
da linguagem. Desse modo, em 1950, três anos antes do discurso de Roma
de Lacan, em um belo texto consagrado a Hõlderlin, “...poeticamente o ho­
mem habita...’’, Fíeidegger parte de um pressuposto segundo o qual não se
pode realmente diferenciar a língua, a linguagem e a fala:

4 S. Freud, Fragment d'une analyse d'hystérie (Dora) (1905e), in Cinq psychanalyses, PUF,
1954, p. 6.

143
Compreender

O homem se comporta como se fosse criador e mestre da linguagem, como se


fosse autor e produtor de linguagem, quando é esta última, pelo contrário, que é
e permanece sua soberana. Quando essa relação de soberania é invertida, estra­
nhas maquinações vêm ao espírito do homem. A linguagem toma-se um meio
de expressão. Enquanto expressão, a linguagem pode cair ao nível de um sim­
ples meio de expressão. Convém que mesmo em tal utilização da linguagem
ainda se cuide do próprio falar; mas esse cuidado, por si só, nunca nos ajudará
a remediar a inversão da verdadeira relação de soberania entre a linguagem e o
homem. Pois no sentido próprio dos termos é a linguagem que fala. O homem
fala somente na medida em que responde à linguagem ao ouvir tudo o que esta
lhe diz. Dentre todos os apelos que nós os outros homens podemos contribuir
para fazer falar, o da linguagem é o mais elevado e em todos os lugares ele é o
primeiro. A linguagem nos faz um sinal e é ela que, a primeira e a última, con­
duz até nós o ser das coisas5.

Se for postulada uma anterioridade absoluta da linguagem sobre o ho­


mem, e se a palavra que sai deste não é uma produção própria, evidente­
mente não se poderá pensar a psique como separada. Ao mesmo tempo,
pode-se dizer que de certa maneira, se é a linguagem que fala em nós como
fiadora de nossa identidade, ela é um meio radical de virar as costas à psi­
cose. A posição de Heidegger faz uma economia absoluta da psicose para
o homem na medida em que se pode dizer que o que a caracteriza é essa
vacilação da linguagem e da palavra que conduz o homem a recorrer a um
terceiro fiador de sua identidade, a língua, ao título dessa “terceira pessoa”
(dritte Person) que Freud entreviu já desde seus primeiros textos6.

0 amor de transferência

Para compreender bem a regra fundamental, é preciso voltar ao amor da


transferência e introduzir a questão do amor de transferência, tal como Freud
a coloca em seus escritos técnicos. Desde os Estudos sobre a histeria, Freud es­
tabelece essa primeira formulação que ele percebe ser o nó da situação ana­
lítica: “Cada vez que minha pessoa se encontra implicada desse modo, posso

5 M. Heidegger, Essais et conferences, Gallimard, 1958, p. 227-228.


6 Cf. capítulo "Os Estudos sobre a histeria".
A regra fundamental, espaço da cura

postular a existência de uma transferência”1 *. Ele enuncia então sua pri­


meira definição da transferência: "A existência de uma transferência é a de
uma falsa relação, de uma falsa ligação [...] Nossa tarefa é a de reconduzir
o obstáculo para o consciente do doente”8. Nessa mesma passagem, Freud
evoca uma "terceira pessoa” que se confunde, coincide (zusammenfallen)
com a do médico. Ora, é o analisando que tenta fazer coincidir essa terceira
pessoa com a do analista. Desse modo, para Freud, em 1893, a transferên­
cia parece introduzir uma confusão com a dritte Person e constituir uma
vontade de coincidência.
Freud pressente então, de um modo mais ou menos cego, sem entrever
as conseqüências que ele extrairá disso mais tarde, que a própria natureza
da transferência é uma paixão, uma pulsão de coincidência, uma paixão de
constituir o uno, coincidência sendo entendida aqui essencialmente como
negação da separação e da identidade do outro. Ora, nos casos de trauma­
tismo — quer se trate de traumatismo vivido na infância, de incesto ou de
estupro —, observa-se frequentemente que o modo de escapar do trauma­
tismo é anulando-o em uma tentativa de reencontrar essa coincidência.
Desse modo, pode-se dizer, junto com Ferenczi, que há uma traumatofilia do
traumatismo, pois o traumatizado procura retomar contato com a situação
traumática. É precisamente desse modo que Freud define o amor de trans­
ferência: "Em suma, não se tem o direito de contestar no estado amoroso
(Verliebtheit) que aparece abertamente no tratamento analítico o caráter de
um amor autêntico”9. Freud estabelece a seguir uma precisão importante a
respeito desse amor de transferência que frequentemente é esquecida: "Ele
se manifesta de modo tão pouco normal porque o estado amoroso, mesmo
fora da cura psicanalítica, lembra mais os fenômenos psíquicos anormais
que os normais. [...] Não devemos nos esquecer de que são esses traços des-
viantes da norma que constituem o essencial do estado amoroso”111.
A definição de Freud para o estado amoroso dada em 1915 corresponde
assim a essa paixão de coincidência e a esse horror da separação que ele
observava desde 1893 nos Estudos sobre a histeria. Quando, no espaço analí­
tico, alguém postula teoricamente que pode nascer um inconsciente a dois,

I S. Freud, Études sur 1'hystérie (1895d), PUF, 1956, p. 286.


8 Ibid.
9 S. Freud, Observations sur l’amour de transfert (1915a), in La Technique psychanalytique,
PUF, 1970, p. 127 (texto retraduzido).
10 Ibid., p. 127 (texto retraduzido).

145
Compreender

toma-se evidente que, em relação aos critérios de Freud, fica-se em uma


situação de paixão de coincidência e de negação da separação.

0 Homem dos ratos

Isso nos introduz à regra fundamental como profilaxia da necessidade de


coincidência. Também é importante observar aqui a confusão entre o pen­
samento que surge (Ein/all) e a associação (Assoziation), mesmo que seja a
livre. Esta devendo ser entendida em sua acepção junguiana ou freudiana,
se nos ativermos à primeira técnica psicanalítica, com o caso de Elisabeth
von R.: o convite, a solicitação do analista àquilo que a paciente associa com
o que ele próprio induz, por exemplo, perguntando-lhe: "De onde provêm
suas dores quando você está em pé, quando você está sentada, quando você
caminha?”. Neste caso, pode-se sem dúvida falar em livre-associação, mas
não se trata realmente da regra fundamental, no sentido em que esta privi­
legia o Ein/all, o que surge.
No caso do Homem dos ratos, constatamos que a regra fundamental
nasceu já na segunda sessão. Com efeito, Freud faz uma observação, no
texto que ele redigiu sobre esse caso dois anos depois, em 1909, mostrando
que a regra fundamental não pode ser aplicada se seu correlato de con­
dição de escuta pelo analista não for formulado ou não estiver presente:
"No dia seguinte, ele concordou em respeitar a única condição à qual a
cura o engaja: dizer tudo o que lhe vier à mente, mesmo que isso seja di­
fícil para ele, mesmo se seu pensamento lhe parecer sem importância, in­
sensato e sem relação com o assunto. Deixo-lhe a escolha do assunto pelo
qual ele deseja começar. Ele começou então...”1’. Trata-se aqui do primeiro
esboço de formulação de um dos lados da regra fundamental, o que se
refere ao analisando.
Ora, Freud manteve um “Diário” ao longo de toda essa análise, do qual
ele não retomou tudo no texto de 1909. Esse texto é totalmente único da
obra de Freud e, a respeito dessas primeiras sessões, podem ser encontra­
dos alguns elementos importantes que confirmam a hipótese do correlato
ausente da regra fundamental, do lado do analista. Pode-se primeiramente 11

11 Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle. L'homme aux rats (1909d), Sessão de
2 de outubro, em Cinq psychanalyses, PUF, 1954, p. 202.

146
A regra fundamental, espaço da cura

notar uma pequena imprecisão sobre a segunda sessão: em seu texto con­
sagrado ao homem dos ratos, Freud fala de uma única condição do trata­
mento, enquanto ele anota duas em seu “Diário”, sem, no entanto, descrevê-
las: “Depois de lhe comunicar as duas principais condições do tratamento,
eu o deixei livre em relação ao seu começo. Ele tem, disse ele, um amigo12
pelo qual tem uma estima extraordinária...”13
Freud observa então e privilegia imediatamente uma idealização dos
homens e uma forte homossexualidade latente, conformada a seguir quan­
do o Homem dos ratos aborda a questão de suas babás, cujo primeiro nome
lhe escapa, lembrando-se apenas do patronímico, o de um prenome mas­
culino: Srta. Peter. Freud acrescenta em suas notas as reflexões rápidas que
ele fazia durante a sessão: Peter, esquecimento do feminino e acentuação
do masculino, que “o identifica como homossexual'’.
A cena da segunda sessão é bem conhecida, na evocação de um castigo
oriental terrível: “Aqui ele se interrompe, levanta-se e pede-me que o poupe
da descrição dos detalhes". Freud lhe explica então que não pode dispen­
sá-lo de uma coisa sobre a qual ele não tem poder e pede-lhe que supere sua
resistência: “Superar as próprias resistências é um mandamento do trata­
mento, ao qual não podemos, naturalmente, nos subtrair”. Ora, pouco an­
tes, falou-se de um capitão cruel que lhe dava ordens. Freud questionou
então: “Ele quer, por acaso, falar de empalamento? — Não, não disso. Mas o
condenado está amarrado [...] e sobre seu posterior é fixado um pote vira­
do, no qual fazem entrar ratos, e então... Ele se levanta novamente e apre­
senta todos os sinais do horror e da resistência; — estes penetram como
brocas... — No ânus, eu me permiti completar. Eu não reconhecera o com­
ponente homossexual desde suas declarações da primeira sessão?”. O Ho­
mem dos ratos retoma a seguir a questão do capitão que lhe ordenara pa­
gar as 3,80 coroas ao tenente por um pacote que continha os óculos que ele
encomendara. Ele prosseguiu alternando as duas cenas, todo o cenário ob­
sessivo do trajeto da dívida que remete à dívida real de seu pai e que denun­
cia o fato de que ele recai sempre sobre homens pouco compreensivos; e
Freud acrescenta: "Em um dado momento, como eu observei que eu próprio
não era cruel, ele reagiu chamando-me de 'meu capitão’”14.

12 Sublinhado por Freud.


13 S. Freud, L’Homme aux rats Journal dune analyse, PUF, 1984, p. 33.
14 Ibid., p. 53; Cinq psychanalyses, op. cit., p. 209.

147
Compreender

Em duas sessões Freud revelou a homossexualidade latente de seu pa-


ciente baseado apenas no indício do nome Peter e na necessidade constante
de uma referência a um terceiro masculino garantidor (parecendo esquecer
a fraqueza do pai). Mais por sua escuta que por suas intervenções, Freud
sobredetermina as posições homossexuais do Homem dos ratos — que são
essencialmente identificatórias e não objetais — em relação ao seu pai mor­
to, isto é, ligadas a uma idealização exigível da autoridade de um terceiro.
Freud situa-se então imediatamente fora da transferência, não suportando
a ideia de uma transferência homossexual sobre sua própria pessoa, e lhe
diz: "Não sou cruel1', em outras palavras, implicitamente: “Não sou o capitão
cruel por quem você me toma”.
Mesmo que Freud tenha enunciado intuitivamente o que se tomará
uma das vertentes da regra fundamental no que diz respeito ao analisando
— deixar surgir os pensamentos e as representações —, o caso do Homem
dos ratos evidencia claramente o fato de que, quando o quadro da análise
não é colocado em seu lugar próprio, o analista é obrigado a se servir da
teorização do próprio quadro como elemento de interpretação porque ele
não sabe em que espaço ele próprio se situa, isto é, ele ainda não sabe que
está situado em um espaço de transferência.

A regra fundamental

Dois textos tratam essencialmente da regra fundamental: "Conselhos aos


médicos no tratamento analítico’’18 em 1912, e "O início do tratamento”18 em
1913. A partir das próprias palavras de Freud, pode-se perceber a que ponto
eles estão diretamente ligados à possibilidade de pensar o fim do amor de
transferência e o fim do amor da transferência aceitando a separação, de pen­
sar uma teoria do aparelho psíquico e a condição do fim da análise.
O termo alemão Ratschlâge é traduzido em francês por "conseils", mas,
no contexto, trata-se mais de "prescrições" que de “conselhos”, pois esse ter­
mo introduz uma orientação, uma conduta a ser seguida, que não deixa de
lembrar a hipnose. A contrario, a dimensão do prescritivo sustenta não o que 15 16

15 S. Freud, Conseils aux médecins (1912e), in OCPF XI, PUF, 1998, p. 144-154.
16 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanaly tique, PUF, 1970; texto re-
traduzido sob o título Sur lengagement du traitement (1913c), in OCPF X I I , PUF, 2005, p. 162-184.

148
A regra fundamental, espaço da cura

se referiria ao conteúdo, mas sim uma modalidade de funcionamento, um


quadro vazio. A prescrição marca a possibilidade do espaço analítico como
espaço de enunciação sem enunciado porque esse espaço é puramente for­
mal, sem conteúdo.
Nesse texto, Freud define a posição do analista por meio de uma expres­
são que aparece aqui pela primeira vez: “No entanto, essa técnica é simples.
Ela recusa todos os meios auxiliares, como veremos, até mesmo o da toma­
da de notas e consiste simplesmente em não querer dirigir sua atenção so­
bre nada em particular e em atribuir a tudo o que nos é dado ouvir a mesma
'atenção em igual suspensão’ (gleichschwebende Aufmerksamkeit)"1’. Freud já
empregava uma fórmula muito próxima em seu texto sobre o caso do pe­
queno Hans, em 1909: “Deixemos provisoriamente nosso juízo em suspenso
e aceitemos com uma igual atenção tudo o que pode ser observado',,B. O
termo alemão schwebende, que significa suspensão, também evoca a metá­
fora da balança. O travessão da balança oscila sem privilegiar, a suspensão
sugere a atitude de aguçar o ouvido: “Essa técnica é simples, ela proscreve
todo meio subsidiário, até mesmo o da tomada de notas". O analista tra­
balha, pois, sem rede: “De acordo com ela, não devemos atribuir nenhuma
importância particular a nada do que ouvimos e convém que prestemos
a tudo a mesma atenção ‘igualmente em suspenso’, segundo a expressão
que adotei. Economiza-se desse modo um esforço de atenção que não se
conseguiria manter cotidianamente durante horas e escapa-se também ao
perigo inseparável de toda atenção desejada, que é o de escolher entre os
materiais fornecidos. Não nos esqueçamos nunca de que a significação das
coisas ouvidas frequentemente se revela apenas posteriormente’’.
Freud dá a si mesmo o tempo de nada sobreavaliar e prossegue com
uma fórmula significativa, frequentemente ignorada: “Como deve então pro­
ceder o analista? Ele deverá, de acordo com as necessidades do paciente,
balançar — oscilar — de uma posição psíquica — psychische Einstellung — pa­
ra outra, e evitar toda especulação". Einstellung remete etimologicamente a
Stelle (lugar), termo que Freud empregara desde o caso de Elisabeth von R.,
a respeito de seu lugar impossível de amigo e de filho em que seu pai a colo­
cara. A histérica, poder-se-ia dizer, sofre de prescrições psíquicas, de atribui- 17

17 S. Freud, Conseils aux médecins,in OCPF XI, op. cit., p. 145-146.


16 S. Freud, Analyse de la phobie d’un enfant de cinq ans. Le petit Hans (1909b), PUF, 2006
(Quadrige).

149
Compreender

ção a lugares. Quando, vinte anos depois desse caso, Freud definiu a posição
do analista, ele se inspirou no modo de agir do pai que prescreveu à sua filha
Elisabeth o lugar de filho e de amigo. 0 analista deve se deixar prescrever um
lugar pelas indicações do paciente e deslocar-se de um lugar psíquico para
outro, de acordo com a necessidade.
Em “O início do tratamento”, em 1913, Freud vai mais longe ao afirmar
que o analista deve se deslocar na transferência: "O analista deve antes de
tudo começar pela descoberta da transferência”. Tudo o que diz respeito à
situação presente corresponde a uma transferência sobre a pessoa do mé­
dico e pode servir como resistência. “O doente vincula-se por si mesmo ao
analista e o coloca entre as imagos daqueles pelos quais ele costumava ser
amado”19 20. Descobrir, determinar a transferência, é descobrir o lugar em que
o analista é situado na transferência.
Do lado do analisando, Freud caracteriza do seguinte modo “a regra fun­
damental à qual o paciente deve obedecer”: “É preciso desde o início fazer
o analisado conhecer essa regra. Uma coisa ainda antes que você comece:
sua fala deve diferir, em um ponto, de uma conversa comum. Enquanto ge­
ralmente você procura, como deve ser, não perder o fio de sua fala e elimi­
nar todos os pensamentos que surgem, todos os pensamentos secundários
que atrapalhariam sua exposição e fariam você remontar até o dilúvio, na
análise, você procederá de outro modo. Você observará que, durante sua
fala, diversas idéias surgirão, idéias que você gostaria de rejeitar, porque pas­
saram pelo crivo de sua crítica. Você ficará tentado a dizer: 'isto ou aquilo
não tem nada a ver aqui’ ou então ‘isto não tem nenhuma importância’ ou
ainda ‘não faz sentido, não há motivo para falar disso’. Não ceda a essa crí­
tica e fale apesar de tudo, mesmo quando você tiver repugnância a fazê-lo
ou justamente por causa disso. Você verá e compreenderá mais tarde por
que eu lhe imponho essa regra, a única, aliás, que você deveria seguir. [...]
Comporte-se como um viajante que, sentado perto da janela de seu compar­
timento, descreve a paisagem tal como ela passa para uma pessoa sentada
atrás dele”so. Não se trata aqui de modo algum de atividade associativa, mas
da passividade que consiste em "deixar surgir os pensamentos e deixar as
representações se imporem a si mesmo”.

19 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanaiytique, PUF, p. 98-100.


20 Ibid., p. 94-95.

150
A regra fundamental, espaço da cura

Um espaço para duas psiques

Nesse texto, Freud estabelece uma distinção importante que nos ajuda a
determinar a teoria da psique, correlativa à regra fundamental: “Nos pri­
meiros tempos da técnica psicanalítica, do ponto de vista de um pensamen­
to intelectualista, atribuímos um grande valor a dar a conhecer ao paciente
o que ele havia esquecido. Com isso, não diferenciávamos nosso saber do
seu’’21. Freud chama isso de “diagnósticos fulminantes" aos quais ele não
adere mais: “O sucesso esperado não ocorrerá, e aquilo que às vezes conse­
guíamos realizar era para nós uma cruel decepção! Como explicar que o
doente, uma vez informado do evento traumatizante, se comportava como
se não tivesse aprendido nada de novo? Mais que isso, mesmo depois de ter
sido reencontrado e descrito, a lembrança do traumatismo não ressurgia
na memória’’22 23.
Ele apresenta o seguinte exemplo: “Em um caso particular, a mãe de uma
jovem histérica confiara-me o incidente de ordem homossexual que influen­
ciara a fixação dos ataques da doente. A própria mãe vira essa cena sobre a
qual, embora tivesse ocorrido na época de sua pré-puberdade, a doente não
guardara nenhuma lembrança. Fiz então uma experiência das mais instruti­
vas. Cada vez que eu falava do relato feito por sua mãe, a doente reagia com
um ataque de histeria e por fim essa história caía, mais uma vez, no esqueci­
mento. Sem dúvida, a paciente resistia com violência ao conhecimento im­
posto desse modo, ou, mais precisamente, a esse saber imposto do exterior.
Ela acabou por simular uma imbecilidade e uma amnésia total para defen­
der-se contra o que eu lhe dizia. Foi preciso então resignar-se a não mais
acreditar, como se fizera até então, na importância da tomada de conheci­
mento em si e colocar a ênfase nas resistências às quais se devia original­
mente a ignorância, e que ainda estavam prontas a garantir esta última”28.
Ao questionar esse “saber imposto do exterior" e uma “posição de pen­
samento intelectualista", que supõe uma indistinção entre nossos próprios
pensamentos e os do outro, Freud leva em consideração o fato de que, na
análise, existe um espaço para duas psiques. Ao "oscilar de uma posição
psíquica para outra" e ao “evitar toda especulação", o analista não pode

21 Ibid., p. 101 (texto retraduzido).


22 Ibid., p. 100 (texto retraduzido).
23 Ibid., p. 101-102.

151
Compreender

mais agir como se houvesse um conhecimento comum, compartilhado,


portanto uma língua comum. É com base nesse postulado de dois apare­
lhos psíquicos separados e de duas línguas diferentes que o processo psica-
nalítico pode ser operativo. A regra fundamental tal como Freud a definiu
baseia-se na diferenciação de dois saberes correlativos dos dois aparelhos
psíquicos em presença.
Impõe-se então uma questão: quem é o analista? O representante do
ancestral ou do morto, o que permite compreender a fórmula de Freud no
final de "A dinâmica da transferência”: “Ninguém pode ser morto in absentia
ou in effigie". Ao determinar o paradigma da cura analítica, a regra funda­
mental também nos esclarece sobre o que é um analista e sobre sua posi­
ção, posição muito bem definida por François Perrier em um texto sobre a
relação do analista com o esquizofrênico: “Para compreender os esquizofrê­
nicos, é preciso ser histérico. Para falar de modo válido dos esquizofrênicos,
é preciso identificar-se histericamente com sua negatividade; é, pois, uma
mensagem que não pode ser formulada senão no momento em que vai
embora, no momento em que se esquece e em que se renuncia a si mesmo
para tomar-se o arauto da mensagem de um sujeito que se quer pessoa no
sentido negativo do termo”24. Aqui se encontra sem dúvida uma das cha­
ves da função analítica, essa aptidão para "ser pessoa”, para exilar-se de
si mesmo no momento em que se vai embora, em que há esquecimento e
renúncia de si mesmo. Diderot sustenta a mesma hipótese em seus Parado­
xos sobre o ator. É totalmente justificado o paralelo entre a cena de teatro e
a cena analítica, como ilustra a observação da senhorita Clairon, a grande
atriz do século XVIII: “Que estudo não é preciso fazer primeiramente para
deixar de ser si mesmo?”25.
Esses são os elementos constitutivos da regra fundamental que Freud
elaborou pouco a pouco: do lado do analisando, deixar surgirem os pensa­
mentos e as representações; do lado do analista, regrar sua fala com base
na do paciente, deixar-se situar por ele deslocando-se de uma posição psí­
quica para outra em uma oscilação e em uma atenção que permaneça “em
suspenso”, o que afasta toda tentação de "posição intelectualista” do saber.
Daí a importância dessa precisão que Freud apresenta em seus “Conselhos
aos médicos”. Com efeito, ele lembra a necessidade, para o analista, de

24 F. Perrier, La Chaussée d'Antin, Albin Michel, 1994, p. 297.


25 Mémoires, Genebra, Slatkine Reprints, 1968, p. 234.

152
A regra fundamental, espaço da cura

“submeter-se a uma purificação psicanalítica”!a. Essa “purificação”, ligada


ao trabalho analítico, é o elemento exigível para adquirir a capacidade de
dessubjetivação experimental e para ter acesso ao estatuto de dritte Person.
Da definição da regra fundamental dependem desse modo as posições
do analista e aquilo que disso decorre, o problema e o estatuto da interpre­
tação analítica.

26 S. Freud, Conseils aux médecins, op. cit., p. 67.

153
Capítulo X

A eficácia da psicanálise,
um benefício secundário da doença?

Não há nada mais oneroso


na vida que a doença e... a tolice.
"O início do tratamento”1

A eficácia da psicanálise é uma questão recorrente que suscita tentativas


audaciosas ou recusas prudentes de responder, desde a invenção da psi­
canálise por Freud, que faz dela uma problemática permanente em sua
reflexão. Freud frequentemente evoluiu em suas teorias sem nunca ter tido
a preocupação de renunciar a uma teoria anterior nem de indicar isso, por­
que ele se lembrava da tirada de Charcot — “A teoria é algo bom, mas ela
não impede que algo exista” —, tirada que o havia deixado siderado e que
lhe permitira relativizar toda tentativa de teorização. Entretanto, é forçoso
constatar um ponto fundamental que percorre toda a sua obra: a ineficá­
cia do psicanalista diante de toda tentativa de cura. Freud percebe muito
cedo, em certos casos, a recusa da cura, e com isso a própria ineficácia da
psicanálise e portanto do psicanalista. Em seu ceticismo metodológico, ele é
obrigado a constatar a eficácia muito relativa da análise adiante da neurose
que poderia por fim ser designada sob o termo “doença humana” ou de mal-
estar fundamental inerente à própria cultura.

1 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanalytique, PUF, 1970, p. 93


(tradução modificada).

155
Compreender

A análise de Emst Lanzer constitui uma primeira etapa nessa investi­


gação. Será graças àquele que Freud chamará de “o Homem dos ratos” que
Freud descobrirá a neurose obsessiva (Zwangneurose) e inventará uma nova
categoria nosológica. A primeira sessão ocorre em 2 de outubro de 1907, e
Freud observa então: “Depois de deixá-lo livre para escolher pelo qual ele
iria abrir suas comunicações, ele começou do seguinte modo”. Em 1909, no
Diário da análise do Homem dos ratos, em que Freud retoma de modo mais
denso todas as sessões dessa análise que durou nove meses, Freud refor­
mula assim essa primeira sessão: “Depois de lhe comunicar as duas prin­
cipais condições do tratamento, eu o deixei livre para o seu começo”2. Será,
pois, o analisando que determinará o modelo da cura e que Justamente por
isso, ensinará a Freud certas coisas. O próprio dispositivo teórico da cura é
determinado por aquilo que o doente construirá, a partir dessa abertura:
“eu o deixei livre para o seu começo”. Com o Homem dos ratos, Freud se
desapossa de uma posição de eficácia para confiar ao próprio analisando o
desenvolvimento, o desenrolar da cura. Essa sessão de 2 de outubro de 1907
possui uma dimensão histórica capital porque Freud, pela primeira vez, in­
troduz a regra fundamental da psicanálise em sua dupla dimensão, que ele
desenvolverá posteriormente em seus “Conselhos aos médicos”, em 1912.
Essa sessão marca o fim do que se convencionou chamar de “a condução da
cura" na vulgata psicanalítica.
Freud procede desse modo porque ele tem consciência de que a psica­
nálise abre um campo para a possibilidade de reconhecer que a doença, a
entrada na doença, é uma escolha subjetiva do doente. Esse é um ponto que
ele enfatiza em seu texto “Sobre os tipos de entrada na neurose”3, em 1912:
“A psicanálise nos exortou a abandonar a oposição estéril entre fatores ex-
temos e internos, entre destino e constituição, e nos ensinou a encontrar
regularmente a causação da entrada na neurose em uma situação psíquica
determinada que pode ser instaurada por diferentes caminhos”.
Alguns anos antes, Freud tratara Ida Bauer, em 1900. O “caso Dora”,
contemporâneo da Traumdeutung, relata essa análise que durou aproxima­
damente setenta sessões, até o dia em que Ida Bauer declarou a Freud que
ela iria despedir-se dele, com um aviso prévio de quinze dias. Efetivamente,

2 S. Freud, L'Ho mme aux rats. Journal d 'une analyse (1909d), PUF, 1984, p. 33.
3 S. Freud, Sur les types d'entrée dans la névrose (1912c), in Neurose, psychose, perversion,
PUF, 1973, p. 182.

156
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?

ela foi embora no final de dezembro, e Freud salientou que ele se sentiu
despedido como um empregado doméstico. Diante desse fracasso, Freud
passou quinze dias interrogando-se sobre o que ocorrera e sobre o fracasso
dessa análise, escrevendo ‘‘o caso Dora" no começo de 1901, e que será publi­
cado apenas em 1905 sob o título “Fragmento de uma análise de histeria”4 5.
Nesse texto ele mencionou pela primeira vez o "benefício secundário da
doença” (Krankheitsgewinn) como principal obstáculo à cura e à vontade de
curar-se. Não se trata aqui de retomar os tateios de Freud e sua incapaci­
dade de perceber na transferência o lugar em que ele havia sido colocado
nessa tentativa de cura psicanalítica. Retenhamos sobretudo a descoberta
desse “benefício” — ou ganho — da doença e a impotência do analista que
gera a ineficácia da análise.

Aquele que quer curar o doente choca-se, para sua grande surpresa, com uma
forte resistência que lhe ensina que o doente não tem tão formalmente, tão
seriamente quanto parece, a intenção de renunciar à sua doença.
[...] Os motivos do ser doente [Kranfesein] começam a despontar desde a
infância. A criança ávida de amor, e que compartilha com pouca vontade com
seus irmãos e irmãs a ternura de seus pais, percebe que essa ternura lhe é diri­
gida por inteiro se, por causa de sua doença, os pais ficarem preocupados. Essa
criança conhece então um meio de solicitar o amor dos pais e o usará assim que
tiver à sua disposição material psíquico capaz de produzir um estado mórbido.
A aparência de objetividade, de não desejado, do estado mórbido, do qual o mé­
dico encarregado é obrigado a se tomar fiador, permite à doente, sem remorsos
conscientes, o uso oportuno de um meio que ela vira ser eficaz na infância.
E, no entanto, esse ser doente é produto da intenção. Os estados de doença
são, como regra geral, destinados a uma pessoa, de tal modo que eles desapa­
recem com o afastamento desta última. [...] Por isso todas as suas garantias
dizem que é apenas uma questão de vontade, todos os encorajamentos e todas
as invectivas não são de nenhuma utilidade para a doente. Deve-se primeira­
mente tentar convencê-la por si mesma, pelo desvio da análise, da existência
da intenção de sua doença8.

Freud enfatiza aqui vários pontos importantes. Os motivos da doen­


ça dependem sobretudo da posição psíquica do doente, neste caso, Dora,

4 S. Freud, Fragment d'une analyse d'hysterie (1905e), in OCPF VI, PUF, 2006, p. 223.
5 Ibid., p. 223-225 (tradução modificada).
Compreender

uma posição de enfermidade psíquica. 0 doente que apresenta um estado


mórbido “não desejado, portanto sofrido, acredita não ter nada a ver com o
que lhe ocorre, e utiliza esse estado mórbido em sua vida sem se perguntar
sobre sua origem. Essa recusa em interrogar-se sobre sua própria história
permite repetir, reviver essa doença que é dirigida contra uma pessoa deter­
minada. Estar doente é sim produto de uma intenção (Absicht), é, pois, um
estado que, em algum lugar, é desejado.
Em um texto de 1923, “Psicanálise e teoria da libido”1', Freud prossegue
sua reflexão sobre esse ponto: “A eliminação dos sintomas de sofrimento
não é procurada como um objetivo particular, mas sob a condição de uma
condução rigorosa da análise, ela se dá por assim dizer como benefício ane­
xo”. Nebengewinner que também pode ser traduzido por “ganho marginal”
representa precisamente um eco ao "benefício secundário da doença” de
1901. Esse ganho é marginal na medida em que os sintomas estão ligados à
posição psíquica do paciente e em que eles não podem desaparecer senão
por uma mudança de posição psíquica que os toma caducos, inúteis.
Freud prossegue: “O analista respeita a singularidade do paciente, não
procura modelá-lo segundo seus ideais pessoais de médico, e se alegra se
puder se poupar dos conselhos e se puder despertar, em contrapartida, a
iniciativa do analisado”. Isso é coerente com a posição adotada por Freud
na primeira sessão com o Homem dos ratos: “Eu o deixei livre em relação
ao seu começo”.
É preciso, pois, que nos demoremos um pouco mais sobre essa posição
psíquica escolhida que é a doença, o ser doente (Kranksein), que se pode cha­
mar de “doença humana”, mesmo que esse termo não faça parte da língua
freudiana.
Já em 1892, no caso de Elisabeth von R. que Freud tratou em uma clínica,
aparece o termo “disposição psíquica” ou "posição psíquica” na própria boca
de Elisabeth von R. Essa paciente, que sofria de abasia e vivia isolada desde
a morte de seu pai, dizia que ela não podia se “manter em pé sozinha”: o
termo alemão Ihr Alleinstehen significa etimologicamente “estar em postura
em pé”. Ao longo de sua análise, ela observou que suas dores mais violentas
se situavam no lugar de sua coxa em que seu pai apoiava a sua, na época
em que ela trocava suas bandagens. Freud observa então que "curiosamen-

6 S. Freud, Psychanalyse et théorie de la libido (1923a), in Résultats, idées, problèmes, tomo


II, PUF, 1985, p. 69.

158
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?

te” ela não pensara nisso até aquele dia. Surgiu então algo que não era da
ordem do conhecimento, mas de uma tomada de consciência (annerkennen).
Com isso, Freud pode deixar de lado as localizações físicas e fazer-lhe uma
pergunta sobre a origem representativa de suas dores: “De onde provêm
suas dores, quando você anda, quando você está em pé?”. Naturalmente, a
origem das dores é psíquica, ela está ligada a uma representação que Eli­
sabeth tem de si mesma. “A histérica”, diz Freud, “sofre principalmente de
reminiscências", isto é, de representações, de encenação de si mesma. Essa
interrogação sobre seu corpo psíquico permite que Elisabeth diga então que
ela não pode sair desse estado de abasia, de isolamento, de impotência. Sie
komme nicht von der Stelle: ela não pode sair, ou ela não pode deixar o lugar
no qual seu pai a colocara dizendo-lhe que ela "substituía (sie ersetze) para
ele um filho e um amigo”. Ela era, pois, um ersatz no sentido etimológico de
substituto, de sucedâneo.
Nossa posição psíquica é determinada, ela é encarcerada pelo lugar em
que somos colocados, ou pelo lugar em que nós nos colocamos e no qual con­
tinuamos a nos colocar por obediência ao pai, ao Urvater, ao grande homem,
e eventualmente ao analista, se ele for tomado por um grande homem.
Será em sua própria análise que Freud descobrirá a intencionalidade
da doença enquanto dirigida ao outro, como mostra a conhecida carta que
ele escreveu a Fliess em 6 de dezembro de 1896: “O acesso histérico não
é uma descarga e sim uma ação, e ele conserva o caráter original de toda
ação: ser um meio de reproduzir o prazer. [...] Desse modo, têm um acesso
de sono os doentes aos quais algo de sexual foi infligido durante o sono; eles
adormecem novamente para viver a mesma coisa, frequentemente provo­
cando, desse modo, o desvanecimento histérico; o acesso de vertigem, de
choro convulsivo, tudo é colocado na conta do outro (aufden Anderen), mas
na maior parte das vezes esse outro pré-histórico e inesquecível que mais
ninguém atinge posteriormente’,?. A expressão auf den Anderen é grifada por
Freud. Essa carta, que, aliás, será longamente comentada por Lacan, está na
origem de seu "grande Outro”.
Alguns meses depois, Freud extrai outra conseqüência de sua autoaná-
lise em uma carta a Fliess de 14 de novembro de 1897: "Minha autoanálise
foi interrompida. Entendi por quê. Não posso analisar a mim mesmo senão
com conhecimentos objetivamente adquiridos (como um estranho). A au-

J S. Freud, Carta 112, in Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, p. 270-271 (tradução modificada).

159
Compreender

toanálise é impossível, caso contrário não haveria doença”8 9. Freud não pode
analisar a si mesmo senão como outro. E no final de sua vida Lacan se dizia
cioso de ser “por fim outro”.
É essa fase capital de sua autoanálise, wie ein Fremder “como um estra­
nho”, que autoriza a considerar a doença, a neurose, esse ser doente (Krank-
sein) como sendo estruturalmente a “doença humana”. Essa doença, com
efeito, é uma doença de transferência, portanto de repetição. A transferência
é uma doença de constrangimento a repetir (Wiedersholungszwang). É preciso
observar, aliás, que o constrangimento a repetir nasce no momento em que
Freud pode pensar conjuntamente a perlaboração, em 1914, no texto "Reme-
morar, repetir, perlaborar”: “Constatamos claramente que o estado mórbido
do analisado não poderia cessar desde o início do tratamento e que devemos
tratar a doença não como um acontecimento do passado, mas sim como
uma força atualmente em ação. Esse estado mórbido é trazido para o cam­
po de ação do tratamento fragmento por fragmento e, enquanto o doente o
sente como algo real e atual, nossa tarefa consiste principalmente na recon­
dução ao passado"0 (Zurückfürhung auf die Vergangenheit). O eixo da perlabo­
ração que se opõe à resistência e à rememoração consiste em transformar
temporalmente a transferência. A tarefa do analista é, pois, a de reconduzir
ao passado o que surge no presente como real e atual. Ele deve tomar pos­
sível que o paciente coloque o carimbo do tempo e a data sobre um passado
que não passa, na medida em que ele é intemporal (zeitlos). Reconduzir ao
passado é, com efeito, despachar o analisando da pessoa própria do analista
sobre a qual a transferência se fixa repetitivamente e intemporalmente, em
um amor da transferência que se confunde com o amor de transferência.
Dar a palavra ao paciente, deixá-lo livre para começar no espaço da
cura é, pois, um artefato, uma situação artificial na qual o paciente, o doen­
te “age” (er agiert) seu passado dirigindo-o ao analista. E esse agir eviden­
temente contém o risco de fuga da análise enquanto fuga na doença, no
agravamento dos sintomas, no agravamento da situação transferenciai sob
o efeito do constrangimento a repetir, durante a cura.
Essa temporalização da transferência e da doença permite reconhecer
que o direcionamento ao outro pode ser interpretado segundo duas moda-

8 Ibid., Carta 147, op. cit.,p. 357.


9 S. Freud, “Remémorer, répéter, perlaborer”, em La Technique psychanalytique, PUF, 1970,
p. 110-111 (tradução modificada).

160
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?

lidades: uma lógica de imputação e uma lógica de implicação. A lógica de


imputação é aquela em que Elisabeth von R. se encontra: como você me pede
para ter esta posição psíquica eu consinto e me submeto a ela. Na lógica
de implicação, eu posso reconhecer que me coloco nesse lugar de oferenda
sacrificial por amor por um outro. Dostoiévski ilustra isso por meio de uma
fórmula admirável: "O que nos acontece se parece conosco". As últimas pa­
lavras de O Homem Moisés e a religião monoteísta, publicado em Amsterdã em
fevereiro de 1939, nos recordam essa lógica de imputação à qual aspiramos:

Sabemos que existe na massa humana a forte necessidade de uma autoridade


que se possa admirar, diante da qual se inclinar, pela qual ser dominado, e até
mesmo eventualmente maltratado. A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde
provém essa necessidade da massa. Ê a nostalgia do pai [ou a aspiração rumo ao
pai] que habita cada um desde sua infância... Desse modo, podemos entrever que
todos os traços com os quais ornamos o grande homem são os traços paternos10 11.

Os traços com os quais ornamos o grande homem provêm da transfe-


rência. Na transferência, ornamos o analista com traços que desejamos en­
contrar e manter com as figuras do passado. Por trás do “grande homem”
que Freud evoca em 1939, esboça-se evidentemente a figura de Hitler. Co­
mo eco a isso, em 24 de junho de 1964, Lacan denunciará, para além do
holocausto, essa ressurgência que visa aqui aos estados totalitários, aos es­
tados comunistas:

Sustento que nenhum sentido da história baseado em premissas hegeliano-


manristas é capaz de dar conta dessa ressurgência pela qual se patenteia que
a oferenda a deuses obscuros de um objeto de sacrifício é algo a que poucos
sujeitos podem não sucumbir, em uma monstruosa captura11.

0 mal-estar na cultura, em 1930, já definia o que constitui a essência da


doença humana quando Freud evocava a vontade de ser “indiviso com um
objeto exterior’’12.
Essa "monstruosa captura" de que fala Lacan, magnífica interpretação
do ser em indivisão, pode ser encontrada durante o tratamento enquanto

10 S. Freud, L'Homme Moíse et Ia religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 207.


11 J. Lacan, Les quatre concepts, Livro XI, Seuil, 1973, p. 247.
12 S. Freud, Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, 1995, p. 73 (Quadrige).

161
Compreender

doença às vezes incurável da repetição. E diante dessa doença da repeti­


ção a tarefa do analista é a de reconduzir ao passado o que surge na cena
analítica como real e atual com o üm de destacar o analisando do médico
para remetê-lo ao seu passado e para que o analista possa por sua vez ser
um estranho, um outro, essa "terceira pessoa” inventada por Freud em 1895,
nos Estudos sobre a histeria. É isso que Freud desenvolve em uma passagem
importante de "Conselhos aos médicos”'3, em 1912, quando ele diz que o
médico “deve ter se submetido a uma purificação psicanalítica, ter tomado
conhecimento de seus próprios complexos que poderiam atrapalhar sua
compreensão das falas do analisado. Não há dúvida de que essas imper­
feições bastam para desqualificar um analista”. E mais adiante Freud de­
senvolve a importância da análise do analista: “Qualquer um que leve seu
trabalho a sério deveria escolher esse caminho, que oferece mais de uma
vantagem. Por mais penoso que seja o fato de entregar, sem ser obrigado
pela doença, todos os seus pensamentos a um estranho, é um sacrifício que
é amplamente compensado” (p. 67). Freud descobre no “u;ie ein Fremder” que o
analista não deve ser pessoa, ele deve “ter se submetido a uma purificação
psicanalítica” para ocupar um lugar psíquico segundo as necessidades do
paciente e não para encarnar o psicanalista.
Então, a psicanálise é eficaz? Certamente pode-se falar da eficácia da
cura, na medida em que permitimos que um sujeito possa reescrever sua
história ao compreendê-la. Talvez seja aqui que Freud se junte à tragédia
antiga através das palavras pronunciadas por Agamenon na tragédia de
Ésquilo: “Zeus abriu para os homens o caminho da prudência, dando-lhes
como lei o sofrimento para compreender” (to pathei mathos)M.
A tradução por “sofrimento” do substantivo pathei é exata, no contexto
dessa tragédia de Ésquilo. Mas como não lembrar que a raiz grega da pala­
vra pathos designa originalmente o que se experimenta — emoção ou sensa­
ção — por oposição ao drama, ao agir. Pathos remete, pois, tanto à provação
quanto à experiência ou aos acontecimentos e mudanças que se produzem.
Compreender ao experimentar: estamos aqui, com o pathei mathos, no âma­
go do processo psicanalítico.

13 S. Freud, Conseils aux médecins (1912e), in La Technique psychanaiytique, PUF, 1970, p. 67.
14 Ésquilo, Agamemnon, tradução de Paul Mazon, Les Belles-lettres, 1968, verso 176.

162
Capítulo XI

Para introduzir o sujeito na psicanálise

O homem é um sujeito maravilhosamente


vão, diverso e ondulante.
Montaigne, Ensaios

Ao que tudo indica, o sujeito nem sempre existiu, ainda menos em sua uni­
versalidade. O "sujeito” é uma invenção recente, lançada no século XVI, es­
tabelecida teoricamente por Kant, retomada e enriquecida por Freud. Mas a
história dessa noção (mesmo que ela tenha sido designada por outros termos)
toma-se rica em ensinamentos assim que nos debruçamos sobre as culturas
e correntes filosóficas sucessivas que tentaram definir o lugar do homem no
universo. Antes de abordar a construção e a problemática do sujeito freudia­
no, não é, pois, supérfluo debruçar-se sobre a história dessa palavra e desse
conceito, pois ela traz um esclarecimento precioso sobre o que alimentou a
mente de Freud em sua própria elaboração do sujeito e da subjetivação.

História de uma palavra

O termo “sujeito” e seu equivalente alemão Subjefet derivam do latim subjec­


tion (formado pelo prefixo sub, “sobre”, e por jacio, “jogar”), que significa su­
jeitado, submetido, exposto. O grego possui um termo quase equivalente:
upokeimenon, que designa o que está estendido sobre, exposto. É importante

163
Compreender

especificar que nenhum desses termos é empregado na literatura antiga


para designar o ser, portanto o “sujeito”, em sua acepção moderna.
Se nos debruçarmos sobre a história da língua francesa, veremos que a
palavra “sujet” serve primeiramente para designar do mesmo modo o que
está submetido, sujeitado, exposto, suporte, tema de estudo ou de reflexão.
Somente no século XVI começa a emergir em certos autores outra acepção
desse termo para designar um ser individuado, por oposição a “objeto”. Esse
deslizamento progressivo do “sujeito de que se fala” para o “sujeito que fala”
ou “sujeito que pensa” será chancelado pelo seu uso por Kant, no século
XVIII, que definiu o termo Subjekt como o ser — sede do conhecimento e ca­
paz de representações, o que Freud retomará por sua própria conta.

História de uma noção

O termo latino subjectum, que originou o nosso “sujeito”, nunca é empregado


para designar a categoria do ser, e a problemática do sujeito é ignorada pela
filosofia antiga, o que não significa que se desconheça a pessoa: faz-se a di­
ferenciação entre os homens livres e os escravos, que não são reconhecidos
como pessoas, pois fazem parte da/amilia, isto é, dos bens, dos móveis de
algum modo. Eles não são sujeitos em nenhum caso, ainda menos sujeitos
de direito. Será preciso esperar pela Declaração dos direitos humanos de
1948, ligada às conseqüências do nazismo, para que se estenda a todos os
humanos o estatuto de sujeito de direito.
No mundo antigo, quaisquer que sejam os campos filosóficos examina­
dos, o homem é considerado um fragmento do universo. É um microcosmo
que é apenas um fragmento do macrocosmo, como ilustra o Hino a Zeus do
filósofo estoico Cleanto: “Zeus, Princípio e Mestre da Natureza, que governa
tudo conforme à Lei, é a Você que todo esse universo que gira em tomo da
Terra obedece, para onde Você o conduzir, e de bom grado, ele se submete
ao Seu poder, nenhuma obra se realiza sem Você’’,. Toda a tarefa do homem
no universo antigo consiste, pois, em sujeitar, em consentir com a ordem
do mundo.
As implicações dessa submissão ao cosmos manifestam-se ao menos
em dois níveis. Em primeiro lugar, no nível do conhecimento, pois na filoso- 1

1 Cleanto, Hymne à Zeus, in Les Stoiciens, Gallimard, 1962, p. 7-8 (La Pléiade).

164
Para introduzir o sujeito na psicanálise

fia grega não há processo de conhecimento, por mais escandaloso que isso
possa nos parecer hoje em dia; há apenas um processo de re-conhecimento
daquilo que já está aí desde sempre. O conhecimento passa essencialmente
por uma purificação do corpo, um desprendimento em relação a este último
para encontrar o mundo das idéias por meio de uma ascese intelectual que
começa com as matemáticas, o que dá acesso a um desapego em relação
ao sensível, às imagens e às fantasias — as fantasias existem em Platão —,
para coincidir com o universo das idéias que são incriadas, portanto eter-
nas como o mundo. No campo da filosofia grega, a reminiscência consiste
justamente em encontrar em si mesmo essa parcela divina que está oculta
em nosso corpo, nosso corpo que é uma tumba, segundo a expressão soma
sema: "O corpo é um túmulo”.
A segunda conseqüência para a subjetividade é que o homem grego
conhece o trágico, mas não conhece o patético (pathos). Nesse universo, o
homem não pode ser senão um joguete dos deuses, sem liberdade, sem
responsabilidade, ele é conduzido cegamente por vontades exteriores, como
ilustra o Hino a Zeus de Cleanto. Desse modo, Édipo e Orestes, por exemplo,
representam a condição trágica da existência, uma existência na qual eles
não respondem pelo que lhes acontece e onde a única coisa que eles podem
fazer não é usar a sua liberdade e sim procurar conformar-se à ordem do
mundo, ao costume e às tradições.
Do mesmo modo, para Cícero e os filósofos estoicos da época roma­
na, não pode haver um imperativo que se imponha ao homem a partir do
exterior e que estaria ligado à sua própria liberdade. Como a natureza é
de essência divina, somos apenas um fragmento desse universo: Deus sive
Natura — Deus ou a Natureza. A dessubjetivação que isso representa será
retomada por Spinoza, no ateísmo provavelmente mais radical da filosofia.
No universo antigo, a subjetividade, seja ela intelectual ou afetiva, tem
de ser eliminada progressivamente em proveito de uma alma intelectual.
Quer seja o nous grego, o mens latino, ou até mesmo o "despertar” do campo
oriental do budismo ou do hinduísmo, trata-se de eliminar o ego ao máximo
para que a abertura para a iluminação possa surgir, de apagar-se na abertu­
ra para o Todo para aproximar-se da faísca do vivente, do divino.
Essa indistinção entre o homem e o cosmos e essa sujeição à vonta­
de dos deuses serão perturbados e postos em xeque com o aparecimento
do judaísmo, e depois de toda a filosofia judaico-cristã, em que se instaura
uma separação radical entre Deus e o homem, rica de conseqüências. Essa

165
Compreender

mudança de perspectiva constitui uma revolução decisiva na percepção do


homem, que se toma um ser inscrito em um espaço e em uma temporalida-
de limitados. Ainda que seja ateu, Freud percebe muito cedo esse avanço do
judaísmo, o que o conduzirá a descobertas decisivas sobre o sujeito. Em uma
carta à sua noiva, de 23 de julho de 1882, Freud salienta pela primeira vez a
originalidade e a especificidade da nova relação entre Deus e o homem:"[...]
os historiadores dizem que se Jerusalém não tivesse sido destmída, nós, ju­
deus, teríamos desaparecido como tantos outros povos antes e depois de nós.
Foi somente após a destruição do templo visível que o invisível edifício do
judaísmo pôde ser construído”2. Ao evocar “o invisível edifício do judaísmo",
Freud lembra que o homem judeu não possui uma relação com a natureza,
não é um fragmento da natureza, e que a relação que um judeu pode ter com o
universo é uma relação com o tempo e com a palavra, e uma relação com um
Deus fora do universo. Não é mais Deus siue Natura, o cosmos que representa
a divindade, coincidindo de algum modo com as estruturas do universo, mas
é um Deus separado do mundo, que pode instaurar algo da ordem de uma
separação do homem com a terra, do homem com o universo.
Trata-se de uma verdadeira revolução na percepção do ser, que intro­
duz a relação com a história, uma história vetorizada na direção do futuro,
que não é mais o tempo cíclico dos gregos, em que o feairós (o momento fa­
vorável) consistia simplesmente em se reconciliar com as estruturas inteli­
gíveis do mundo. A separação entre o homem e a natureza faz surgirem
duas novas categorias, o “eu” e o “tu". O Eu de Yahvé (eu sou quem sou) que
diz “Escute Israel” interpela o homem em sua finitude, em sua separação
do cosmos, e que permite esboçar a primeira forma de subjetivação.
O primeiro sujeito que nasce é, pois, o sujeito judeu, isto é, aquele que
não é mais sujeitado ao mundo e sim separado do mundo. Isso foi muito
bem apreendido por Alexandre Kojève, que, em um artigo sobre “L’origine
chrétienne de la science”3, observa que a ciência só pôde se constituir den­
tro do campo judaico-cristão, isto é, a partir do momento em que o mundo
deixou de ser sagrado, e que foi possível agredi-lo. O mundo já não é esse
jardim em que o homem se refugia, mas é a agressão da natureza que se
trabalha e a matematização possível da natureza que permitem que a ciên­
cia, e, portanto, a técnica, se desenvolva.

2 S. Freud, Carta de 23 de julho de 1882, in Correspondence 1873-1939, Gallimard, 1991.


3 A. Kojève, in Melanges Alexandre Koyré (obra coletiva), Hermann, 2 vols.

166
Para introduzir o sujeito na psicanálise

Essa novidade absoluta da separação do homem em relação ao universo


será prolongada no pensamento judaico-cristão, que, em etapas sucessivas,
* instaurará o reconhecimento de um “sujeito”. Pode-se situar uma primeira
etapa na tomada de consciência do que é o sujeito na Idade Média, com um
debate que atravessou todo o século XIII em tomo de um texto de Tomás de
Aquino, escrito em 1270, De imitate intellectus contra averroístas'1. Nesse texto
que trata da unidade do intelecto, Tomás de Aquino critica os aristotélicos
árabes e os discípulos de Averróis que defendem uma concepção da alma
intelectual, do nous grego irredutivelmente dependente do divino. O debate
se situa entre duas concepções do intelecto: o intelecto-agente ou o intelec-
to-passivo. Os aristotélicos árabes e os averroístas sustentam uma concep­
ção do intelecto passivo, de uma alma intelectual reduzida a ser o lugar de
engramas, de impressões, da inteligência divina que se inscreve em nós, e
sobre a qual não temos controle. Tomás de Aquino e os aristotélicos cristãos
situam-se do lado do intelecto-agente, de uma alma intelectual ativa, de
um nous produtor de conhecimento. O epílogo desse debate será a condena­
ção dos averroístas pelo bispo de Paris, Étienne Tempier, em 1272. Com essa
conquista tomista, que constitui uma das grandes revoluções intelectuais
de nossa cultura e de nossa civilização, a alma intelectual passa a não ser
mais formada e informada pelo mundo etemo e imutável das idéias, mas
ela se toma produtora de pensamento e de idéias.
A segunda revolução intelectual referente ao aparecimento e à cons­
tituição do sujeito é operada de certa maneira pela racionalização e pela
lacização do pensamento tomista, através do postulado cartesiano: Cogito,
ergo sum — "penso, logo sou”. Isso ele também formula do seguinte modo:
sum res cogitans: “eu sou uma substância pensante”, portanto um sujeito
que pensa. A descoberta e a originalidade de Descartes é a de manifestar a
coincidência entre a atividade de pensamento — um pensamento que é
ativo, produtor — e a substância, identificação entre a atividade de pen­
samento e o ser, coincidência que permitirá esse primeiro desencantamen-
to do mundo e essa matematização do universo, na origem do desenvolvi­
mento da física modema e da matemática.
Essa revolução é definitivamente ratificada com Kant, que, embora
combata Descartes de certa maneira, o prolonga ao definir claramente o

4 Tomás de Aquino, L'unite de Vintellect contre les Averroístes, Gamier-Flammarion, 1994. Ex­
celente edição crítica bilíngüe (estabelecida por Alain de Libera) desse texto fundamental que
diferencia a interpretação cristã de Aristóteles (De anima) da interpretação árabe de Averróis.

167
Compreender

que ele entende porSubjefet. Em uma conhecida passagem da Crítica da razão


pura, intitulada "Da unidade originalmente sintética da apercepção”, Kant
diz: “O 'eu penso’ deve poder acompanhar todas as minhas representações;
pois caso contrário seria representada em mim alguma coisa que não pode­
ria de modo algum ser pensada, o que eqüivale a dizer ou que a represen­
tação seria impossível, ou que, ao menos, ela não seria nada para mim"s. O
caminho aberto por Kant e pela filosofia alemã conduzirá Freud a aprofun­
dar essa abordagem moderna do sujeito.
Esse rápido percurso do campo semântico e filosófico coloca, pois, em
evidência duas tendências fundamentais, diante das quais todas as filoso­
fias foram obrigadas a fazer uma escolha. Em primeiro lugar, o pensamento
antigo que absorve o homem no cosmos e dissolve a subjetividade na sujei­
ção a uma ordem intelectual. Em segundo lugar, a atitude proveniente do
judaísmo e do cristianismo que tendem, sob modalidades diversas, a pensar
um sujeito separado, a uma inteligência unificada e à imagem de um Deus
fora do mundo e fora das leis do cosmos. Não estamos mais aqui do lado da
sujeição, mas do lado de uma subjetivação ativa que permite constituir-se
como unidade significante, para retomar uma expressão lacaniana.
É no contexto intelectual e cultural do judeo-cristianismo e da civiliza­
ção ocidental que nasce a psicanálise, como se tentou mostrar neste breve
resumo da história do pensamento. O pensamento psicanalítico tampouco
é assimilável ao pensamento chinês ou japonês, o que é tema para outro
campo de discussão...

0 avanço freudiano

O que aproxima Freud de Kant, e aquilo pelo que Freud se aproxima de Kant,
é que o conhecimento para Kant passa pelo corpo e não apenas pela intuição
de si a partir de si, como em Descartes no cogito. Nosso único modo de co­
nhecimento das coisas é espaçotemporal; esse é o objeto da “Estética trans­
cendental’’ da Crítica da razão pura. Além disso, para Freud, nosso único modo
de conhecimento é fantasmático, ele passa pelo sistema de representações
iniciado a partir da primeira experiência da relação boca-seio, que é a matriz
em si pré-fantasmática a partir da qual será possível reconhecer-se como

5 E. Kant, Critique de la raison pure, PUF, 1971, p. 110.

168
Para introduzir o sujeito na psicanálise

sujeito, ligado a um objeto, em que será necessária a perda do objeto no pal­


co da realidade para que depois haja reencontros nos palco da realidade.
Freud refere-se a Kant e o cita várias vezes porque para ambos não há
sujeito, “eu", que possa se retirar para algum local e que escaparia das repre­
sentações da psique. “O 'eu penso’ (Ich denfee) deve poder acompanhar todas
as minhas representações”: esta afirmação de Kant se inscreve na perspecti­
va do intelecto-agente ou intelecto ativo, já evocada, segundo a qual o pensa­
mento é efetivamente produtor de representações, ele não é uma tábula de
cera sobre a qual seriam impressas apesar de mim, contra mim, representa­
ções. Isso significa que nossos pensamentos são idênticos a nós, e idênticos
ao nosso corpo. A revolução kantiana na filosofia é que um sujeito é essen­
cialmente limitado em seu modo de conhecimento por categorias que são o
espaço e o tempo como formas a priori da sensibilidade. Kant desenvolve a
dimensão espaçotemporal do sujeito e do conhecimento na “Estética trans­
cendental" da Crítica da razão pura, o que toma possível a diferenciação entre
conhecer (feennen) e pensar (denken). Isso será decisivo no método de Freud.
Com efeito, se nos referirmos à fórmula de Kant, constataremos que o
inconsciente freudiano se inscreve diretamente na aventura de Kant e na do
Sujeito. Para Freud, “o inconsciente não é em nós isolado das representações
que ele produz e que ao mesmo tempo o instituem”, assim como para Kant “O
'eu penso’ deve poder acompanhar todas as minhas representações”. Quan­
do, em 1883, na “Comunicação preliminar’’ aos seus Estudos sobre a histeria,
Freud faz esta observação: “A histérica sofre principalmente de reminiscên-
cias", ele abre o caminho para todas as suas pesquisas futuras, enunciando
que o sujeito freudiano sofre de representações. Além disso, Freud retomará
a mesma fórmula no caso do homem dos ratos: “O homem dos ratos sofre de
Zwangvorstellungen”, isto é, de “compulsões de representações".
O sentido que Freud dará ao inconsciente se distancia da concepção
romântica do inconsciente que sofremos do exterior sob um modo coletivo.
Pelo contrário, depois de Freud, produzimos esse inconsciente que consti­
tuirá o sujeito freudiano.
O postulado de Freud é que as fantasias é que irão dar forma ao corpo
e organizá-lo, até mesmo encerrá-lo em posturas que o inibem e que po­
dem chegar até a impedi-lo de agir. Isso é o que experimenta Elisabeth von
R., confrontada à injunção permanente de seu pai: “Você substitui (ersetze)
para mim um filho e um amigo". Ela consagrara sua vida a cuidar de seu
pai e tratava de sua perna direita colocando-a sobre a sua própria. Sofrendo

169
Compreender üllll (

de abasia, ela tentara sem sucesso vários tratamentos antes de procurar


Freud. Quando Freud a interrogou sobre a origem de seus sofrimentos, ela
respondeu: “não posso deixar este lugar”, o que em alemão também signi­
fica “Não posso sair disso”. Ela não podia deixar esse lugar de filho ou de
amigo na qual seu pai a colocara.
Ora, o que permite que Elisabeth formule sua queixa é uma pergunta
que Freud lhe faz: “De onde provêm suas dores (Woher rühen die SchmerzenP),
quando você está em pé, quando você anda, quando você está sentada?”.
Freud não a interroga sobre as localizações somáticas de suas dores, mas
sobre sua origem: de que origem representativa suas dores surgem? Essa
questão sobre as representações é uma questão que negativa imediata­
mente o corpo somático para remeter à outra cena, segundo a expressão que
pode ser encontrada em A interpretação dos sonhos6 7, essa cena que é diferente
da cena do consciente, que é a cena da fantasia. E a dessa outra cena da
fantasia que o corpo de Elisabeth von R. foi ligado a partir da fala prescritiva
de seu pai. O corpo responde, o corpo obedece à palavra ou à fantasia.

0 aparelho psíquico

A pergunta feita em 1892 a Elisabeth von R., durante sua cura analítica, ge­
rará outra pergunta, a dos lugares psíquicos, das localidades psíquicas e das
instâncias psíquicas que, por sua vez, não remetem absolutamente a uma
localização corporal somática e sim a instâncias de funcionamento sepa­
radas e a traços mnésicos que sofrem um tratamento diferente, caso elas
sejam tratadas por um ou outro sistema de inscrição dos traços. Em uma
carta endereçada a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, encontramos a primeira
descrição do aparelho psíquico: “O que há de essencialmente novo em minha
teoria é, pois, a afirmação segundo a qual a memória não está presente uma
vez, mas várias vezes, consignada em diversos tipos de signos’''1.
Freud detalha três tipos de inscrição dos traços mnésicos:
— A inscrição das percepções (Warhenehmungzeichen), que se inscrevem
por continuidade ou por simultaneidade, que partem do corpo, da epiderme.

6 S. Freud, Vinterpretation du rêve (1900a), PUF, 1971. A outra cena é uma expressão que
Freud toma de Fechner.
7 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 112, p. 264.

170
Para introduzir o sujeito na psicanálise

— A inscrição dos traços mnésicos sobre um modelo causal no sistema


inconsciente. Freud fala então do “ser inconsciente” (Unbewusstsein), e não
do sistema inconsciente.
— As representações de palavras que representam o pré-consciente (Vor-
beiuusstsein) e correspondem ao que Freud desdobrará em seguida ao lado do
“eu" ou do mim (é impossível, em Freud, dissociar o eu e o mim — Ich, Mir—,
senão como caso sujeito ou objeto), enquanto instância do presente.
Essa tripla inscrição será unificada no nível do que Freud chamará de
aparelho psíquico (invenção que ele modificará de múltiplas maneiras com
as diferentes tópicas). O funcionamento do aparelho psíquico, a partir do
qual se construirá o sujeito freudiano, integra essas três instâncias e esses
três lugares, da percepção, até mesmo das palavras, até a motricidade, co­
locando em jogo a realidade do corpo e a possibilidade de reencontrar os
primeiros traços em que se inscreveu a experiência de prazer. Em seus Thês
ensaios Freud aborda a “descoberta do objeto", descoberta que, para Freud,
correlativamente constituirá o sujeito: “Não foi sem boas razões que a fi­
gura da criança que mama no seio de sua mãe se tomou o modelo de toda
relação amorosa. A descoberta do objeto é na verdade uma redescoberta”8.
Em outras palavras, a constmção do objeto não é na verdade senão uma
reconstrução do objeto perdido. A tarefa da psique será a de “restaurar a
felicidade perdida”. Percebe-se aqui toda a dimensão ativa da psique que
terá de reconstruir no palco da realidade uma das primeiras experiências
de prazer que se inscreveram nela, e que fazem com que o modelo de toda
relação amorosa continue sendo, no plano da fantasia, “a figura da criança
que mama no seio de sua mãe”.
Ora, o que fará funcionarem essas três instâncias, esses três lugares no
aparelho psíquico não será sua articulação mútua e sim um quarto termo,
que é o Wunsch. Esse termo que certas traduções desastradamente con­
fundiram com o desejo (Begierde) exprime o que é da ordem do “voto" (no
sentido de realização de um voto) ou do “anseio”. Toda a repetição, o cons­
trangimento a repetir, no início, está a serviço do reencontro desse prazer, e
será o Wunsch que moverá essas três instâncias e fará com que elas possam
funcionar entre si. Pois para Freud não pode haver um sujeito do incons­
ciente que seja autônomo e unifique o resto. Somente sob a intervenção do
Wunsch o sistema começa a funcionar, o que significa que, em certa medida,

8 S. Freud, TYois essais sur Ia théorie sexuelle (1905d), Gallimard, 1985, p. 165.

171
Compreender

o sujeito freudiano é retrógrado, e que ele visa a restaurar a felicidade per­


dida. Mas é a perda do objeto primordial, o irremediavelmente perdido, que
toma possíveis os reencontros dos traços da felicidade proporcionada por
esse objeto, no palco da realidade.
O aparelho psíquico é, pois, o sujeito freudiano, a não confundir com a
pessoa. Ele é produtor de fantasias, que por sua vez, sucessivamente, elabo­
rarão o corpo e metabolizarão permanentemente a realidade exterior. Por
conseguinte, ele é ativo, assim como o intelecto-agente dos tomistas, o cogito
de Descartes, e o Ich denke de Kant. O aparelho psíquico também possui uma
unidade, isto é, ele é totalmente separado das representações coletivas. Ele
é um sistema de representações enquanto tal, o de um sujeito particular,
que permanentemente metabolizará o conjunto dos sistemas coletivos de
representações próprias de cada sociedade: as estmturas de parentesco, a
religião, os ideais, a civilidade comum. Isso significa que está excluído do
sujeito freudiano um inconsciente coletivo. O inconsciente é essencialmen­
te subjetivo e particular, segundo a singularidade de cada história.
Por fim, com o exemplo de Elisabeth von R., podemos constatar que o
sujeito freudiano é singular e que os acontecimentos psíquicos são por sua
vez não necessários, pois o sistema de representações é que irá geri-los de
modo aleatório e subjetivo. Com efeito, ele não é necessário nem inelutável
senão a partir desta prescrição: "você substitui para mim um filho e um
amigo". Elisabeth von R se coloca, fica, nesse lugar psíquico que significa
para ela ao mesmo tempo ser o filho que o pai não teve (ele teve duas filhas)
e o companheiro de seu pai.
Para compreender melhor como o sujeito freudiano construirá o corpo
psíquico, podemos nos basear no que Freud expõe no terceiro dos Três en­
saios. A primeira relação vivida é a relação com o seio pela sucção: não se
trata então de uma relação de sujeito com sujeito, ainda menos do encontro
de uma pessoa, mas do encontro de dois objetos parciais, uma boca e um
seio. Na vivência subjetiva da criança, o encontro boca-seio é o encontro
não de dois objetos parciais, mas o encontro de um sujeito com um obje­
to, pelo chupamento. A partir dessa primeira experiência do prazer que é
chupar (lutschen) o seio (ou o polegar ou um bicho de pelúcia), que substitui
a sucção (saugen), percebemos que irá se inscrever como pré-fantasia no
inconsciente, como primeira inscrição pré-fantasmática, a ideia de que é o
encontro da boca com o seio que constitui o subjetivo. Daí essa deiscência
permanente — Lacan a denominará “divisão do sujeito” —, que faz com que

172
Para introduzir o sujeito na psicanálise

na realização fantasmática da plenitude de prazer o sujeito não possa se


apreender senão como sendo satisfeito com e por este ou aquele objeto.
Para além da perspectiva psicanalítica, a questão do sujeito toca a di­
mensão cultural e antropológica da evolução que foi evocada, desde a Anti-
guidade que ignorava o sujeito até o aparecimento de um sujeito separado,
particularmente com o judaísmo. No mundo antigo, o saber é essencialmente
inato e depende da reminiscência, o que não tem nada a ver com a reminis-
cência no sentido freudiano. É um processo de reconhecimento de um saber
que está ali desde toda a eternidade. Tem-se acesso às idéias por meio de
uma ascese intelectual, em particular graças às matemáticas que constituem
uma purificação, um desligamento em relação ao corpo e a uma subjetivida­
de sensível. Não há, pois, lugar para o conhecimento ou para a invenção.
Freud se inscreve em outra tradição cultural, e sua abordagem clínica
poderia ser caracterizada nos seguintes termos: a corpos separados corres­
pondem psiques separadas. Estamos aqui no oposto do estado maníaco, no
qual não se sabe a quem atribuir os pensamentos que surgem: a si mesmo
ou ao outro. Freud foi o primeiro a ter se interrogado em seu trabalho clíni­
co e terapêutico sobre a contribuição da reflexão filosófica alimentada por
Tomás de Aquino, depois Descartes e Kant. Com efeito, ele se interessou
pela questão do Woher, quando ele perguntou a Elisabeth von R.: “De onde
provêm seus pensamentos?”. Ele se interrogou sobre qual era a instância
produtora, em nós, qual era o autor de nossos pensamentos, pensamentos
que Freud considera em um primeiro momento como um “corpo estranho”
(Fremkõrper), no caso de Elisabeth von R. Mas ele rapidamente descobrirá
que não se trata de um corpo estranho e sim de algo da ordem do segredo
(Geheimnis), o que será a primeira formulação a partir da qual Freud poderá
abordar a questão da fantasia, de uma cena privada e da elaboração psíqui­
ca. Ele se concentrará na continuidade subjetiva dos pensamentos de um
sujeito. E, no final dessa primeira análise com Elisabeth von R., Freud dife­
renciará assim a psiquiatria de sua época e a psicanálise nascente: a psi­
quiatria se interessa pela história da doença (Krankeitsgeschichte), enquanto
a psicanálise se concentrará sobretudo na história do doente (Kranfeengeschi-
chte), portanto na história e na construção do sujeito.
Em uma de suas Novas conferências sobre “A decomposição da perso­
nalidade psíquica", em que ele aborda a segunda tópica, Freud diz: "O eu é o
sujeito no sentido mais próprio”, o que lhe permite encerrar com um adágio
sobre o trabalho da cultura e a drenagem do Zuydersee: “Admitimos, en-

173
Compreender

tretanto, que os esforços terapêuticos da psicanálise escolheram um ponto


de ataque similar. Sua intenção, com efeito, é a de fortalecer o eu, tomá-lo
mais independente do supereu, de ampliar seu campo de percepção e de
consolidar sua organização de tal modo que ele possa se apropriar de novos
pedaços do isso. Onde havia o isso deve advir o eu. Trata-se de um trabalho
de cultura, um pouco como a drenagem do Zuydersee”9.

9 S. Freud, La décomposition de la personalité psychique, in Nouuelles Conferences d’introduc­


tion à Ia psychamlyse (1933a), Gallimard, 1984, p. 110.

174
Capítulo XII

O estatuto da psicanálise
na sociedade. Um texto atual:
ã questão da análise urotuaa

Em termos de arte, não sou um


conhecedor, mas um profano1.
S. Freud

Em julho de 1926, Freud publicou A questão da análise profana (Die Frage des
Laienanalyse)2. O termo Laie também exprime tanto o que é profano por opo­
sição ao sagrado, diante de todo clericato, quer ele seja religioso ou médico,
como o que define o amador, em relação ao especialista.
Essa obra foi escrita conjunturalmente com o objetivo de apoiar Theo­
dor Reik contra o qual se abriu um processo por exercício ilegal da medi­
cina, em uma época na qual os americanos acabavam de tomar a decisão
de vincular a prática da psicanálise à formação médica. Mas Freud coloca de
modo mais amplo o problema da situação da análise no campo das disci­
plinas e, por outro lado, o estatuto do psicanalista na sociedade.
Freud tenta responder a essa dupla interrogação dando ao seu livro a
forma de um diálogo imaginário com um interlocutor imparcial. Esse inter­
locutor pode ser o professor de medicina Durig, membro do Conselho supe-

t S. Freud, Le Moise de Michel-Ange (1914b), in L'Inquiétante étrangeté et autres essais, Galli-


mard, 1985, p. 87.
2 La question de Vanalyse profane (1926e), Gallimard, 1985, com uma introdução de J.-B. Pon-
talis e um dossiê histórico apresentado por Michel Schneider. As citações que se seguem reme­
tem a essa edição.

175
Compreender

rior de Medicina, mas também se pode postular que seja o professor Julius
Tandler, relator do conselho municipal de Viena para a saúde, ao qual Freud
escrevera uma carta a respeito do caso Reik, em 8 de março de 1925. Evo­
cando sua conversa, Freud escreve: "O senhor parece aprovar minha decla­
ração de que na psicanálise devem ser considerados como profanos todos
aqueles que não podem justificar um conhecimento satisfatório, teórico e
prático, dessa ciência, quer eles possuam ou não um diploma de médico”2.
Essa carta merece ser citada porque aqui o termo ‘'Profano" (laie) é efetiva­
mente empregado no sentido de amador e porque ele coloca lado a lado
médicos e não médicos em relação à incompetência analítica.
Freud acredita conduzir um duplo combate. Em primeiro lugar, contra
os médicos: “A psicanálise não é a empregada faz-tudo da psiquiatria”, diz
ele. Recordemos que Freud não era psiquiatra e sim neurologista, depois
de uma formação prolongada em medicina interna com J. Breuer. Por ou­
tro lado, contra a psicanálise selvagem, contra os psicanalistas selvagens
que interpretam tudo, imediatamente. Freud já levantara essa questão, em
1913, em “O início do tratamento”: ‘‘Disseram-me que certos analistas se
gabam de tais diagnósticos fulminantes e de tais tratamentos rápidos, mas
previno todo analista contra a tentação de seguir tais exemplos”3 4.

A furor sanandi dos médicos

Nesse diálogo com um interlocutor fictício, Freud aborda algumas questões


tais como a importância da sexualidade infantil, a importância do fator se­
xual nas neuroses. Mas seu objetivo essencial é o de definir a análise profa­
na, com os profanos sendo definidos no começo (p. 25) como não médicos.
Freud começa primeiramente dizendo que a formação médica é um critério
totalmente secundário para a prática psicanalítica, antes de tomar-se mais
incisivo no plano epistemológico, enfatizando até que ponto a formação
médica “não diz respeito em nada ao analista” (p. 134). Ele se lança até mes­
mo em um ataque geral contra os médicos, com um tom muito polêmico:
“Para a lei, é charlatão aquele que trata dos doentes sem poder provar que
possui um diploma médico de Estado. Eu preferiria outra definição: é char-

3 S. Freud, Correspondance 1873-1939, Gallimard, 1991, p. 389.


4 Le début du traitement (1913c), in La technique psychanalytique, PUF, 1970, p. 100.

176
0 estatuto da psicanálise na sociedade

latão aquele que empreende um tratamento sem possuir os conhecimentos


e as capacidades requeridas. Baseando-me nessa definição, arrisco-me a
afirmar que — não apenas nos países da Europa — os médicos fornecem
à psicanálise seu maior contingente de charlatães. Muito frequentemente
eles praticam o tratamento analítico sem tê-lo aprendido e sem compreen-
dê-lo” (p. 106). Além disso, Freud faz observar que a vontade de curar (furor
sanandi) que anima certos médicos pode ser um obstáculo à própria cura
psicanalítica. É preciso “impedir a terapêutica de matar a ciência" (p. 147),
pois a análise “nâo possui nenhum outro material além dos processos psí­
quicos do homem” (p. 147), tanto os do analista como os do paciente.

"A delicada técnica da psicanálise"

À primeira pergunta do interlocutor que pergunta o que o analista “em­


preende com o paciente para o qual o médico não foi de nenhuma ajuda”,
Freud responde: “Não ocorre entre eles nada além do seguinte: eles falam
juntos... O analista convoca o paciente em certa hora do dia, deixa-o falar,
ouve-o, depois lhe dirige a palavra e deixa-o escutar” (p. 33). A psicanálise é,
pois, essencialmente uma questão de palavra e de interlocução. De dirigir a
palavra a alguém, na pessoa do psicanalista.
Embora julgue secundária a questão de ter recebido ou não uma for­
mação médica, Freud, em compensação, enuncia nesse texto uma dupla
exigência à qual devem se conformar todos os psicanalistas: seguir uma
formação nos institutos de psicanálise e fazer uma análise pessoal, para
que eles "experimentem em seu próprio corpo — mais exatamente em sua
própria alma — os processos cuja existência é afirmada pela análise” (p. 52).
“Aquele que tiver se submetido a tal ensinamento, que tiver sido analisado
[...] e tiver adquirido a delicada técnica da psicanálise, arte da interpreta­
ção, lutado contra as resistências e manejado a transferência, esse não será
mais um profano no domínio da psicanálise” (p. 103). Aqui, Freud brinca com
a anfibologia da palavra “profano”, que ele não opõe mais a “médico”, mas a
“sábio” ou “clérigo”.
O apelo à experiência sobre si mesmo é necessário para colocar à pro­
va a teoria dos processos psíquicos. A psicanálise é principalmente uma
“questão de tato” por parte do analista, no manejo da interpretação: “Você
cometerá uma falta grave se, por exemplo, em sua preocupação de abre-

177
Compreender

viar a análise, você jogar suas interpretações sobre o paciente assim que as
tiver encontrado” (p. 89). Além disso, a relação com o analista diz respeito
à crença. Aqui Freud retoma o termo Glaube — crença —, que ele introdu­
zira em 1890, em “O tratamento psíquico”: “O neurótico começa o trabalho
porque ele atribui uma crença ao analista e acredita nele porque adquire,
em relação à pessoa do analista, uma posição afetiva particular. A criança,
ela também, acredita apenas nas pessoas das quais depende" (p. 97). Essa
influência sugestiva não serve para “reprimir os sintomas” — é o que dife­
rencia o método analítico dos outros procedimentos psicoterápicos — e sim
como “força de pulsão para superar as resistências” (p. 97).
O objetivo terapêutico da análise é "restaurar o eu, libertá-lo de seus
entraves, dar-lhe novamente o controle sobre o isso, que ele perdeu depois
de suas primeiríssimas repressões" (p. 62). Essa formulação antecipa o fa­
moso adágio das Novas Conferências de introdução à psicanálise, em 1930: "Wo
Es tuar, soil Ich werden”, “Onde havia isso, eu deve advir”.

As implicações políticas

Freud enuncia, portanto, as condições de regulamentação para o exercício


da psicanálise. Não se trata de proibir aos não médicos a prática da aná­
lise, é preciso “fixar as condições segundo as quais o exercício da prática
analítica será permitido a todos aqueles que quiserem, instaurar alguma
autoridade junto à qual seja possível informar-se sobre o que é a análise e
o que é possível exigir para preparar-se para o seu exercício” (p. 120). Essa
passagem não é muito clara sobre suas conseqüências jurídicas. De fato,
parece que Freud pensa que somente as Sociedades psicanalíticas podem
representar essa “alguma autoridade” (irgendeine Autoritât) capaz de dizer e
de formar. Em outras palavras, ele permanece em um quadro privado e não
regulamentar ou ordinal das condições de exercício da psicanálise.
Freud esboça então o retrato ideal de uma “escola superior de psicanáli­
se” que ensinaria “a psicologia das profundezas, a biologia, a ciência da vida
sexual, uma iniciação aos quadros clínicos da psiquiatria [...] mas também
a história da cultura, a mitologia, a.psicologia das religiões e a literatura” (p.
133). Um programa que nenhuma faculdade de medicina poderia realizar.
As implicações desse texto foram consideráveis. Durante o congresso da
Associação psicanalítica internacional em Innsbruck em 1927, Ernest Jones,

178
0 estatuto da psicanálise na sociedade

seu presidente, organizou uma discussão sobre o exercício da psicanálise pe­


los não médicos, na qual a maior parte das sociedades fica dividida. Pode-se
consultar a análise desse debate em La "Question” en débat, de Michel Schnei­
der, no final da tradução francesa de La question de I'analyse profane, e na Reuue
Internationale d’histoire de la psychanalyse, n° 3, PUF, 1990, Histoire de 1'exercice de
1 a psychanalyse par les non-médecms, sob a organização de Alain de Mijolla, que
contém as cartas e os documentos inéditos de Freud e de outros sobre o as­
sunto. Por fim, nada na argumentação freudiana permite pensar que em sua
época ele era favorável a um estatuto legal da psicanálise ou do psicanalista.
“A autoridade qualquer” desejada parece se adequar mais à autoridade da
Associação psicanalítica internacional que a uma instância jurídica.

A psicanálise fará da sé

Freud mantém até o final, em sua pouca diplomacia, sua oposição a uma
psicanálise sob a cobertura médica. De Londres, em 5 de julho de 1938, em
uma carta a M. Schnier, ele escreve: “Eu não posso imaginar de onde pode
provir esse estúpido rumor referente à minha mudança de opinião sobre a
questão da análise praticada pelos não médicos. O fato é que eu jamais re­
pudiei meus pontos de vista e que eu os sustento com maior vigor ainda que
antes, diante da evidente tendência que os americanos têm de transformar
a psicanálise em empregada faz-tudo da psiquiatria"8. É uma constante no
pensamento de Freud manter a autonomia intelectual e prática da psicaná­
lise, o que ele enunciava já em 1911 a Jung, retomando por sua própria conta
a palavra de ordem de Garibaldi em favor da unidade italiana (Italia Jard da
sé): “A Spielrein quer subordinar o material psicológico a pontos de vista bio­
lógicos; essa dependência deve ser rejeitada tanto quanto a dependência
filosófica, fisiológica, ou da anatomia do cérebro. A psicanálise fará da sé”5 6.
Em sua introdução a A questão da análise profana, J.-B. Pontalis observa­
va, em 1985, que para Freud "a questão da análise profana é a questão da
própria análise”. Essa questão continua atual...

5 Reflexão citada por E. Jones, III, p. 342.


6 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance, t. II, Gallimard, 1975, p. 230.

179
'■j
! Capítulo XIII

Mitologia, cultura e religioso

Somos um signo à espera de interpretação1.


Hõlderlin, Mnemósina

Associações dirigiram-me para


a mitologia, e suspeito que o núcleo do
mito é o mesmo que o da neurose.
S. Freud, Carta a Jung2

A “mitologia’’ que Freud organizará em Totem e tabu e que ele prossegue até
O homem Moisés e a religião monoteísta não deve ser entendida de modo pejo­
rativo como um discurso ingênuo, mas essencialmente como uma visão do
mundo, que assegura ao homem um lugar no universo.

A mitologia freudiana

O Leuiatã de Hobbes é, ele também, uma “mitologia”, um mito do político e


da sociedade. Do mesmo modo, quando Jean-Jacques Rousseau escreveu seu
Discurso sobre a origem da desigualdade, ele construiu uma “mitologia”, porque
ele declarou já nas primeiras páginas: “Comecemos por deixar de lado todos
os fatos, pois eles não dizem respeito à questão. Não devem ser tomadas
as Pesquisas, nas quais se pode entrar nesse tema, por verdades históricas,

1 "Ein Zeichen sind luir deutunglos”.


2 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance, tomo I, carta de 13 de agosto de 1908, Gallimard, 1975,
p. 237.

181
Compreender

mas somente por raciocínios hipotéticos e condicionais; mais próprios para


esclarecer a Natureza das coisas que para mostrar a verdadeira origem, e
semelhantes àqueles feitos todos os dias por nossos Físicos sobre a forma­
ção do Mundo”3. Ele então construirá uma concepção do mundo racional
da origem da sociedade, mas definindo a condição de possibilidade de toda
forma de sociedade.
A revolução freudiana marca antes de tudo o fim do patriarcado, o fim
da dívida em relação ao pai. Totem e tabu tem de ser entendido como um mito,
um mito etiológico que permite que Freud explore o que são as condições
da humanidade e da cultura. Não se deve esquecer a oposição retomada por
Freud entre "cultura" e "civilização”. Kultur, na sociologia alemã, indica a re­
lação do homem com o homem. Quando Freud definir, portanto, “o mal-estar
da cultura”, ele abordará a relação do homem com o homem, a relação com
a palavra, em sua dimensão do político. Ziuilisation designa a relação do ho­
mem com a natureza, e portanto a relação do homem com o trabalho e com
o econômico. E, quando Lévi-Strauss critica Freud porque ele não dá conta
da história do totemismo, ele não leva em consideração o fato de que Freud
não se situa em um ponto de vista histórico que procuraria saber como as
coisas ocorreram no início, mas que ele se situa em uma mitologia, isto é, em
uma teoria que atribui ao homem a sua condição. Do mesmo modo, a narra­
tiva do Gênesis se situa fora da história, ela determina a condição do homem,
a origem do homem, ela lhe atribui um lugar no universo.
A origem não é um começo. Totem e tabu não deve de modo algum ser
entendido como um começo, mas como a entrada na cultura, e desse ponto
de vista o mito do assassinato do pai tem de ser lido não como um aconteci­
mento histórico, mas sim postulado no ponto de partida pela cultura como
condição para limitar a vontade de onipotência entre os homens, a de um
pai possuidor de todas as mulheres, o pai da horda, o Urvater que representa
o pai originário. Não sem ecoar o Gênesis, Totem e tabu indica a saída do pa­
raíso terrestre no qual não pode haver realização plena de si, com a abertura
para um mundo no qual há uma possibilidade de realização parcial, somen­
te no encontro com o outro. Freud constrói então o que se pode chamar de
“mitologia”, na qual é exigível matar o pai para que os viventes possam viver,
em que matar o pai é a condição exigível do pacto dos irmãos, isto é, a con­
dição da vida em sociedade e da emergência da Lei.

3 Jean-Jacques Rousseau, CEuvres completes, Gallimard, tomo III, p. 132-133 (La Pléiade).

182
Mitologia, cultura e religioso

Nessa perspectiva freudiana, as religiões não são examinadas de um pon­


to de vista de adesão subjetiva, mas como sistemas de representações que re­
metem a mitos de origem, mitos estes que possuem a função de atribuir um
lugar no universo. Disso decorre uma antropologia que, segundo as culturas
e as religiões, é mais ou menos solidária de uma cosmologia assim como de
uma construção do sexual. TVata-se, pois, de descobrir as implicações de uma
religião particular sobre essa construção do sexual. Toda concepção religio­
sa comporta implicitamente uma construção do corpo, como diz Françoise
Héritier: "O homem começou a pensar olhando para seu corpo”4 5. Mas pode-se
dizer, inversamente, que a concepção do corpo e da sexualidade determina a
ideia de pensar o outro e a diferença dos sexos. O tipo de pensamento religio­
so delimitado aqui determina, pois, uma concepção do corpo e do sexual
A psicanálise, por sua vez, não é um sistema de representações, caso
contrário ela marcaria o retomo a uma visão do mundo. Mas ela é uma pos­
sibilidade, em uma cura singular, de interrogar as modalidades subjetivas,
pessoais, históricas, por meio das quais sistemas de representações religio­
sos, políticos e outros puderam ser investidos por um sujeito ou pelo contrá­
rio investiram um sujeito. Por isso a psicanálise não tem de transmitir algo
e sim tornar possível interrogar-se sobre a maneira pela qual uma subjeti­
vidade particular se construiu em uma história. Enquanto método, ela não
é nem a favor, nem contra a religião, e ela não propõe nem assume nenhu­
ma forma de ideal, e ainda menos de idealização.
Em uma carta de 2 de fevereiro de 1910 endereçada a Jung, Freud diz:
“Sua concepção aprofundada da simbólica tem minha inteira simpatia. Tal­
vez você se lembre de como eu ficava pouco satisfeito enquanto você não
sabia dizer sobre a simbólica, com Bleuer, nada mais que uma espécie de
‘pensar sem clareza'. O que você escreve agora é apenas uma alusão, mas
ela vai em uma direção na qual eu também procuro, quero dizer, rumo ao
arcaico regressivo, que eu gostaria de dominar por meio da mitologia e do
desenvolvimento da linguagem"s. Evidentemente, o arcaico regressivo é o reino
do isso. O que é divertido é a resposta de Jung, em uma carta de 11 de feve­
reiro de 1910: “Não se pode substituir a religião senão pela religião. [...] Mas
os 2.000 anos do cristianismo querem ser substituídos por um equivalente.

4 Françoise Héritier, Mascu!in,/éminm. La pensée de la difference, Odile Jacob, 1996.


5 S. Freud-C. G. Jung, Correspondance, tomo II, Gallimard, 1975, p. 21 (as passagens em itálico
foram sublinhadas por Freud).

183
Compreender í|§}fl

Ora, uma ordem ética, com sua nulidade mítica, que não é habitada por
nenhuma força pulsional arcaica e infantil, é um puro vazio e nunca po­
derá despertar no homem o que quer que seja da antiga força animal que
leva a ave migradora a atravessar o oceano, e sem a qual não se faz nenhum
dos irresistíveis movimentos de manadas. Imagino para a psicanálise uma
tarefa muito mais bela e mais vasta que desembocar em uma ordem ética.
Creio que é preciso dar tempo à psicanálise, infiltrar os povos a partir de
vários centros, reavivar no intelectual o sentido do simbólico e do mítico,
retransformar suavemente Cristo nesse deus-adivinho da vinha que ele era,
e canalizar desse modo as antigas forças pulsionais extáticas do cristianis­
mo, tudo isso com o fim único de tomar o culto e o mito santo o que eles
eram: uma festa de alegria embriagada, em que o homem tem o direito de
ser animal no ethos e na santidade. Essa era a grande beleza e a função da
religião antiga, que, por Deus sabe que necessidades biológicas temporá­
rias, tornou-se uma instituição de lamentação"6. Aqui aparece o retomo ao
paganismo e a Dionísio, o “deus-adivinho da vinha”.
Para Freud, que definiu a ética, em O homem Moisés e a religião monoteís-
ta, como a "limitação das pulsões”7, a ética reside no controle do arcaico pela
linguagem e pelo que ele chamará de "a ditadura da razão” em uma carta a
Einstein, de julho de 19328.

0 mundo grego

Toda a reflexão de Freud se enriqueceu com seu conhecimento da antigui­


dade clássica, mais particularmente da Grécia, e da cultura judaico-cristã
para fazer emergir um novo lugar do homem no universo.
O mundo grego é definido como “pagão" por Alexandre Kojève, que fala
de filosofia pagã em vez de filosofia grega. No universo grego, o indivíduo
pertence ao cosmos, não é separado deste último, é um fragmento do uni­
verso, e sua alma intelectual, o nous (ou noos) não é senão um fragmen­
to da inteligência divina. O microcosmo Homem é, pois, um fragmento do
macrocosmo Cosmos-Mundo, pela mediação do nous, sua alma intelectual.
Portanto, não há processo de conhecimento e sim um simples processo de

6 Ibid., p. 24.
J Op. cit., p. 219.
8 S. Freud, “Pourquoi la guerre?" (1933b), em OCPF X I X , p. 79.

184
Mitologia, cultura e religioso

re-conhecimento concordando novamente pela reminiscência com a ordem


grega, com a inteligência divina, com um saber incriado. Em Platão, no Mê-
non, por exemplo, é por reminiscência que o jovem escravo pode encontrar
a matemática. E em um artigo sobre "A origem cristã da ciência"0 Kojève
mostra que os gregos não puderam inventar a ciência moderna, isto é, a
matematização do universo que conduziu a transformá-lo, porque o cos­
mos era divino e sagrado, portanto intocável, não podendo ser modificado.
Os gregos não puderam desenvolver senão ciências teóricas, sem aplicações
físicas sobre a transformação do mundo, como a cosmologia.
Nesse universo que ignora a individuação, um homem separado do uni­
verso, do cosmos, não pode emergir, não mais que a diferença dos sexos, no
sentido em que a entendemos hoje em dia, enquanto dimorfismo sexual e
diferença sexual. A conseqüência disso é o primado do Eros sobre a pessoa
sexuada, que faz com que toda pessoa seja suporte do Eros, e que ela seja
relativa em relação ao primado da pulsão. Isso, aliás, foi observado por Freud
quando, na quarta edição dos Três ensaios, ao retomar por sua própria conta
a tradição grega, ele indicava que a sexualidade ampliada da psicanálise se
aproxima do Eros divino de Platão. O amor-Eros antigo pode se posicionar
por meio de quatro modalidades que são de certa maneira pouco diferen­
ciadas: em primeiro lugar, a physike (de physis, a natureza) que é o amor
entre as pessoas do mesmo sangue, quer se trate de ascendentes ou de des­
cendentes; a xeniké (de xenos, o estrangeiro), que é o amor pelos “metecos”,
aqueles que estão ao lado da cidade; a hetairike, que é o amor pelas heteras,
no qual conta mais a troca de palavras que a troca dos corpos; e, por fim,
há a erotifee, o amor propriamente físico com uma pessoa, quer seja ela do
mesmo sexo ou de sexo diferente, sem que haja diferença radical do ponto
de vista do universo grego. Entretanto, com uma pessoa do mesmo sexo,
não pode ser amor senão com um adolescente (trata-se da homossexuali­
dade grega masculina), mas em nenhum caso há amor com outro cidadão.
Portanto, o amor grego se situa em uma perspectiva de primado fálico, na
oposição forte/fraco, que abarca a diferença homem/mulher, ativo/passivo
e anula de fato a diferença entre os sexos. Isto corresponde precisamente
à terceira das teorias sexuais infantis de Freud9 10: a teoria sádica do coito, a

9 A. Kojève, L'origine chrétienne de la science, in Les Melanges Alexandre Koyré, Hermann,


1964. **■
10 S. Freud, Les theories sexuelles infantiles (1908c), in La Vie sexuelle, PUF, 1969.

185
Compreendar

teoria que poderíamos denominar sadomasoquista, na qual a prevalência


não é a diferença entre os sexos, mas o encontro baseado em uma diferen­
ça forte/fraco. Essa teoria, que corresponde ao amor grego, remete precisa­
mente à nostalgia do homem total, o homem hermafrodita.
Um dos melhores modos de entrada no mundo grego talvez seja a lei­
tura do Hipérion ou o eremita na Grécia, de Hõlderlin, que evoca um mundo sa­
turado de deuses e de presença divina. Nesse universo divino, a construção
do sexual está ligada ao mito do hermafrodita. "A bissexualidade universal
é uma conseqüência necessária da ideia de bissexualidade divina, tudo o
que é por excelência deve ser total", diz Mircea Eliade em seu livro sobre O
andrógino. E o bissexual aparece como completo, enquanto a atribuição a
um sexo determinado, homem ou mulher, priva o humano da totalidade.
Essa ideia de ser total talvez vise menos à superação de uma diferença en­
tre os sexos que a preservar-se dos efeitos desta. Em seu livro sobre o Herma-
/rodita, Marie Delcourt lembra que o vocabulário grego e latino do ato sexual
sempre remete a essa dimensão de um ferimento. Ferimento do homem de
não ser total e ferimento fálico dirigido à mulher.
No mundo antigo, o conceito de liberdade, essa autonomia em relação
à ordem da natureza e do cosmos, não existe: foi a revolução kantiana que o
introduziu. O homem sofre um destino no qual ele não decide nada, pois não
é livre enquanto fragmento de um cosmos, e sua única liberdade se dá por
meio da ananfeé, o/atum, de tentar coincidir com o lugar que lhe é atribuído
pelo universo. Com efeito, o mundo grego é organizado em tomo de uma vi­
são do mundo na qual o sujeito é simplesmente um suporte (hypofeeimenorí)
constituído de traços particulares que provêm da cultura. O sujeito não é se­
não um microcosmo, uma parcela da inteligência divina, não separada des­
ta. A liberdade no mundo grego é apenas o consentimento para se sujeitar ao
que aí está, a impossibilidade de imaginar ou de antecipar outra coisa.

Culto do pai, culto dos mortos

As civilizações antigas são edificadas sobre o culto do pai, que se sobrepõe ao


culto dos mortos. Pode-se falar de uma cultura da morte mais que de uma
cultura do vivente. Freud se concentra nessa dívida em relação ao pai, esse
pai que domina a cultura antiga. Em alemão, o mesmo termo — Schuldge-
fühl — serve para exprimir o sentimento de dívida e o sentimento de culpa.

186
Mitologia, cultura e religioso

Nas sociedades tradicionais e na antiguidade clássica, a palavra “pai"


(Pater) não está ligada a uma paternidade pessoal. Émile Benveniste consa­
gra um capítulo à paternidade em seu Vocabulaire des institutions européen-
nes", em que ele observa que em todas as línguas indo-europeias o termo
pater nunca remete a uma paternidade física ou camal tal como a entende­
mos hoje em dia, e que estaria ligada à procriação. Pater remete a um termo
que qualifica Deus: etimologicamente, Júpiter provém de Diu Pater, isto é,
o pai do dia, o pai do céu, da luz, e o Dies latino remete ao Diu de Júpiter.
Isso permite pensar que a palavra pater, que gerou “pai”, deriva da figura de
Deus. Para designar o pai pessoal, o latim arcaico utiliza outro termo, Atta, o
pai que alimenta, o pai que cria a criança. Essa prevalência do pai divino em
relação ao pai que alimenta permite compreender o adágio do direito latino,
Pater is est quem nuptioe demonstrant: o pai não é o genitor, e sim aquele que
é atestado, demonstrado pelas núpcias. Antes de ser o pai biológico, o pai é
o esposo da mãe. Observa-se, pois, na cultura clássica uma prevalência da
vida (zoé) sobre o vivente (bios). Aqui já se afirma algo da vitória do vitalismo,
da vida impessoal, da vida sacralizada (à qual talvez se retome hoje com as
biotecnologias), sobre o vivente como sujeito.
Ao mesmo tempo, o pai possui uma função essencialmente sacerdo­
tal em relação ao culto dos mortos. Ele é o primeiro sacerdote da primeira
unidade, e são os pais que organizam a vida da cidade, onde não se fala de
cidadania e sim dos pais, dos antigos, que cada um em sua família, diante
do altar dos ancestrais, apresenta oferendas aos manes dos mortos. Pode-se
constatar — e isso também vale para a sociedade chinesa, votada também
ao culto dos mortos — que o pai tem como função velar para que o ancestral
não seja condenado à fome, que o pai está a serviço do morto. No entanto,
o pai morto, na medida em que é celebrado enquanto ancestral, deve sua
sobrevivência aos vivos. E é aí que se opera uma estranha inversão, porque
o ancestral é frágil e ao mesmo tempo ele fragiliza o pai que não é senão o
suporte de uma função a serviço do morto. O pai-ancestral é frágil porque em
sua oralidade devorante que sempre exige mais vida dos viventes e se recusa
a morrer, exigência imperiosa e exigente do ancestral, ele também depende
do vivente. O adágio do direito francês: “o morto agarra o vivo", encontra aqui
todo o seu sentido: o ancestral fagocita, vampiriza o vivo. Nessa perspectiva, 11

11 E. Benveniste, Le concept de patemité, in Vocabulaire des institutions européennes, Minuit,


1969 (2 vols.), tomo I, p, 209-215.

187
Compreender

o parricídio por parte do filho não corresponderia a matar o pai e sim a não
mais alimentar o ancestral, sair do mundo da dívida e da culpa.

Entre dois mundos: afigura de Moisés

Quer se trate da primeira figura de Moisés, em 0 Moisés de Michelangelo12, ou


do segundo Moisés do fim de sua vida, em O homem Moisés e a religião mo-
noteísta, Freud criou nesses dois casos um personagem contrário à verdade
histórica. Freud, que frequentemente ia a San Pietro in Vincoli, quando se
hospedava em Roma, esse Moisés destinado à tumba do papa Júlio II, era
fascinado pela desmedida dessa cabeça portadora de ira, evocando o Urva-
ter, o pai originário, o pai onipotente. Freud se interrroga então para saber
se Moisés vai quebrar as tábuas da Lei, que estão em sua mão esquerda, em
reação contra um povo que fez sacrifícios ao Bezerro de Ouro, ou se não se
deve ler nesse gesto uma postura diferente da do Urvater onipotente. Freud
expõe sua fantasia nesse pequeno texto: ele vê nesse Moisés alguém que
está na retenção do ato, que controla sua ira e o agieren, "o agir”. Ora, agieren
significa em alemão tanto o ato como o crime. Freud vê então nesse Moisés
aquele que interrompe o crime contra o filho, que interrompe o infanticídio
e o culto dos mortos que não cessava de fazer correr o sangue dos filhos.
O Moisés que se tomou egípcio em O homem Moisés e a religião monoteísta
também representa a morte do grande homem, o que pode ser encontrado
sob uma modalidade diferente em Totem e tabu: a morte do pai postulada
no começo da cultura, a morte do pai necessária para limitar a vontade de
gozo infinita do pai possuidor de todas as mulheres.
Esse assassinato não deve, pois, ser entendido em um sentido cronoló­
gico, ele não se situa em um começo histórico, ele é um mito de origem. Ele
marca as condições de possibilidade da existência.

0 judeo-cristianismo

Os escritos bíblicos referentes ao Gênesis são contemporâneos tanto do poli-


teísmo grego como das religiões orientais dos mistérios, por exemplo, a que

12 Publicação anônima publicada em Imago em 1914 (o anonimato só foi dissipado em


1924).

188
Mitologia, cultura e religioso

está ao lado do culto de Mitra. O Gênesis não é um livro de história, mas um


livro das Origens, sobre as condições de possibilidade da história humana,
a saber, que não se vive no paraíso na terra, que não se pode existir senão
na finitude, no trabalho e no crime (Abel morto por Caim), fora do paraíso
terrestre no qual haveria plena realização de si e plenitude no encontro de
si com o outro, reconciliação total de si, sem deiscência, sem desejo.
A primeira categoria do universo bíblico, totalmente estranha ao pa­
ganismo, é a noção de criação. Deus, um deus monoteísta, cria o mundo e
cria o homem e a mulher. Ele é, pois, exterior ao mundo e separado dele:
não há mais cosmos sagrado. Deus deserta do mundo. Pode-se evocar a esse
respeito um texto citado no âmbito do seminário de François Perrier sobre
o amor, em 1970-1971, que é extraído de A Teologia do Antigo Testamento, de
Gerhard von Rad: “O que há de mais extraordinário aos olhos do historiador
das religiões é a maneira pela qual o culto de Yahvé se comportou diante
de toda mitologia sexual. Nos cultos orientais, dos quais o judaísmo se se­
parou, o acasalamento e a geração eram vistos miticamente como acon­
tecimentos divinos. Disso resultava uma atmosfera religiosa, saturada de
imagens míticas sexuais. Mas Israel não participou da divinização do sexo.
Yahvé mantinha-se totalmente afastado da polaridade sexual, o que signifi­
caria que Israel jamais considerou a sexualidade um mistério sacro. Ela era
excluída do culto porque pertencia à ordem criatural, portanto à ordem da
criação, separada de Deus. Mas mesmo sua posição polêmica contra toda
discriminação da sexualidade, seu modo de relegar todo esse domínio vital
para fora do culto e da realidade sacra mostra que Israel teve muito cedo
uma doutrina clara da criação, ao menos in nuce, ela logo de saída andou
lado a lado com a dessacralização do sexo, pode-se até mesmo considerá-la
como a força que a provocou”13.
Correlativamente, a dessacralização do mundo, o que Max Weber, em
seus Estudos sobre o judaísmo antigo, chamava de “o desencantamento do
mundo”, teve duas conseqüências antropológicas comuns ao universo ju­
deu e ao universo cristão: a afirmação da diferença sexual e a afirmação da
separação das gerações. A afirmação da diferença sexual aparece no Gênesis
(1, 27): “Homem e mulher, Ele os criou”. Não há aqui o unissexo como no
mundo grego. A humanidade em sua plenitude depende da diferença se­
xual e não de um andrógino hermafrodita para quem a secção, em todos

13 Gerhard von Rad, Théologie de I'AncienTestament, Genebra, Labor et Fides, 1972, 2 vols.

189
Compreender

os sentidos do termo, do humano, em homem e mulher como nos gregos,


provém de uma nostalgia da unidade originária. Outra passagem do Gênesis
afirma: “Não é bom para o homem ficar sozinho. Quero fazer para ele uma
ajuda que lhe seja adequada” (2,18). É aqui que se funda a diferença entre
os sexos, isto é, uma alteridade que é ao mesmo tempo a condição da vida
em sociedade e que se exprime e se exerce primeiramente no casal homem-
mulher como primeira modalidade do vínculo social. Em segundo lugar, a
afirmação da separação das gerações se inscreve na Bíblia através da rela­
ção de Abraão e de Isaac com Yahvé: pode-se ouvir o apelo ao sacrifício de
Isaac como não pertencimento do filho ao pai, como não poder absoluto do
pai sobre sua progenitura. Isso corresponde à superação da segunda teoria
sexual infantil exposta por Freud. Em outras palavras, Abraão e Isaac são
iguais diante de Yahvé enquanto pessoas, enquanto sujeitos. O Deus da Bí­
blia restabelece desse modo uma igualdade entre o pai e o filho como hu­
manos, apesar da diferença biológica das gerações, marcando desse modo o
primado do simbólico sobre o biológico.
Esses dois momentos míticos da Bíblia, a criação do homem e o sacri­
fício da filiação imposto a Abraão, possuem conseqüências antropológicas
consideráveis. Como os deuses deixaram a terra, esta se tomou uma tarefa
do homem. A noção de criação e a de filiação simbólica inauguram uma
nova categoria, a de liberdade, noção totalmente estranha ao mundo grego
da ananke, em que o trágico surge da ausência de um sentido já existente e
pode afetar o homem.
O correlato da liberdade é a responsabilidade, e a responsabilidade se
exerce primeiramente em relação a outrem. É no terreno da responsabi­
lidade que pode nascer essa excrescência patológica da culpa, categoria
que não se encontra no universo grego, enquanto tentativa de homem de
se manter indiviso em relação ao seu criador para não ousar separar-se ou
desligar-se, por horror à individuação ou em uma posição nostálgica de co­
locar-se ao abrigo de si na massa compacta de uma multidão. Freud analisa
muito finamente esse processo no capítulo VII do Mal-estar na cultura, sobre
a origem do sentimento de culpa.
A sexualidade, então, não é mais valorização unilateral da pulsão, como
nos gregos, mas valorização da alteridade e do vínculo social com o outro e
com o outro sexo. Na medida em que não pertencemos mais ao cosmos, em
que somos apenas um fragmento, o outro é separado e doravante pode ser
encontrado em sua diferença. A dessacralização do universo e da sexuali-
Mitologia, cultura e religioso

dade faz, pois, com que surjam categorias do puro e do impuro, do sagrado
e do profano. Deus não é mais encontrável na relação humana, ele está
ausente dela, assim como ele se ausenta da esfera da sexualidade.
Uma nova categoria aparece, a do desejo, e do desejo necessariamente
ilimitado. Com efeito, nenhum objeto na cena da realidade pode satisfazer
um desejo que sempre ressurge. Freud já pressentira isso em uma carta
a Martha, de 23 de julho de 1882, na qual ele evoca as conseqüências da
destruição do templo de Jerusalém: “[...] os historiadores dizem que se Jeru­
salém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos desaparecido, como
tantos outros povos antes e depois de nós. Foi somente após a destruição do
Templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde ser construído””.
Intuitivamente, sem formalizá-lo nem explicitá-lo, Freud privilegia o
tempo em vez do espaço, a história em vez do cosmos, a separação em vez
dessa vontade de constituir um só ou de ser uno, do mundo grego. E o corpo
freudiano, o corpo na psicanálise não é nada além disso. É um corpo que re­
mete à história singular de um sujeito, é por isso que ele “sofre de reminis-
cências”. Não se trata aqui da reminiscência platônica que consiste em re­
cordar um saber incriado e eterno, mas dessa reminiscência da construção
subjetiva de nossa história, sem vínculo direto com a inteligência divina. A
história é o inacabamento de si, enquanto o espaço é o refúgio para colocar-
se ao abrigo de si mesmo. A relação com o outro não é mais mediada por
uma transcendência, mas pela ilimitação da própria relação.
De acordo com essa perspectiva, poder-se-ia sustentar, em uma leitura
hegeliana das coisas, que o cristianismo não fez senão universalizar para
toda a humanidade a eleição judia pela qual Yahvé arrancou o povo judeu
da idolatria e das religiões orientais que vinculavam a sexualidade e o reli­
gioso. É isso que São Paulo diz em sua Carta aos Gálatas (3,28): “Não há mais
judeu nem grego; já não há nem escravo nem homem livre, já não há o ho­
mem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”. Em outras pa­
lavras, há uma única raça humana, a humanidade.
Deixamos a terra natal grega da verdade e passamos para o aleatório
da palavra e da Aliança, e portanto estamos fora de toda dinâmica autor-
referencial e fora de toda hipótese de fundamento. Isso diz respeito tanto
à economia, à teologia como à estética, na sociedade pós-modema. Há ao
mesmo tempo uma extrema liberdade, sem limites, no caráter ilimitado do 14

14 S. Freud, Correspondance 1873-1939, Gallimard, 1991, p. 30.

191
Compreender

desejo, e na busca de um sentido a ser inventado mais que a ser encontrado.


O sentido tem de ser constituído, ele não está dado.

Cultura e repressão das pulsões

Já em um texto de 1908, Freud abordara uma reflexão sobre a cultura, em


um texto às vezes considerado reichiano, “A moral sexual cultural”15, em que
Freud se coloca a questão de saber como é possível situar-se na cultura, e em
que medida a cultura estaria apenas a serviço da repressão das pulsões16 *:
“Cada indivíduo cedeu um pedaço de sua propriedade, de seu poder sobera­
no, as tendências agressivas e vindicativas de sua personalidade. Dessas
contribuições provém a propriedade cultural comum em bens materiais e
em bens ideais. Para além das exigências da vida [...], aquele que por sua
constituição inflexível não pode participar dessa repressão da pulsão se
opõe à sociedade como criminoso, fora da lei, na medida em que não pode
se impor a ela (a cultura) como grande homem, como herói, por sua posição
social ou por suas aptidões eminentes para a sublimação”. Neste texto,
Freud faz uma diferenciação entre o criminoso, o fora da lei e o grande ho­
mem cujo modelo será encontrado por ele em Moisés, Goethe, Leonardo da
Vinci ou Beethoven, isto é, homens capazes de mostrar aos outros essa res­
trição das pulsões, graças às suas aptidões eminentes para a sublimação.
São aqueles que, simultaneamente, nos separam do culto do pai. Essa nos­
talgia do pai à qual Freud coloca fim por meio do que doravante será cha­
mado de sua “mitologia" nos é desvelado em seu Moisés: “Sabemos que exis­
te na massa humana a forte necessidade de uma autoridade que se possa
admirar, diante da qual inclinar-se, pela qual se é dominado e até mesmo
eventualmente maltratado. A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde
provém essa necessidade da massa. É a nostalgia do pai (die Sehnsucht nacla
dem Vater) que habita em cada um de nós desde a infância, desse mesmo pai
que o herói da lenda se orgulha de ter superado”11. Nostalgia que propicia
um sentimento de culpa permanente.

15 La morale sexuelle culturelle et la maladie nerveuse des temps modemes (1908d), in La


vie sexuelle, PUF, 1969, p. 33.
16 Essa questão foi retomada em 1968 por Marcuse em Eras e civilização, em que é preciso
salientar, no entanto, que ele confunde repressão e recalcamento.
11 S. Freud, L'Homme Moise et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 207.

192
Mitologia, cultura e religioso

O sentido da culpa

Em 1899, em um sonho denominado de "O sonho do revolucionário”, o so­


nho do conde Thun (ministro de Francisco-José, que era apelidado de “a ina­
ção" por causa de sua ineficiência, "Thun" confundindo-se foneticamente
em alemão com "Tun", "a ação"), Freud vê este último em sua caleche e pen­
sa então: "Prefiro ser um antepassado, um ancestral". Isso marca simbolica­
mente A interpretação dos sonhos, cujo capítulo VII foi redigido após a morte
de seu pai, onde se trata de um começo na história do pensamento que não
se refere ao Urvater. “É absurdo glorificar-se pelos antepassados, gosto mais
de ser eu próprio um antepassado, um ancestral”, diz ele'8. Ele não faz senão
concordar com Chateaubriand, que em La Vie de l’abbé de Rance escrevia a
respeito da decadência da aristocracia: “Contamos nossos próprios ante­
passados quando não contamos mais”. Desse modo estamos na revolução
freudiana, com uma culpa que muda completamente de sentido, pois ela
não é mais ditada pela impossibilidade de nos separarmos de nossos ances­
trais, ao serviço dos quais estamos, ou da causa que servimos.
Antes mesmo de desenvolver essa questão da culpa em 0 mal-estar na
cultura, Freud a aborda em um texto de 1916: “Os criminosos por consciên­
cia de culpa”18 19, que remete a Nietzsche e no qual ele descreve o segredo
da culpa, que é um sentimento de "dívida em relação à origem”, como ele
escreve em A genealogia da moral, dívida impagável que pode conduzir a
tomar-se um criminoso. Certos criminosos podem estar a tal ponto sujeitos
à moral que jamais poderão pagar uma dívida que os libertaria desta; e a
única maneira de libertar-se dela é cometer um crime, para verificar que no
fim das contas eles são culpados na cena da realidade e não apenas na cena
imaginária de suas fantasias.
Freud coloca então o problema da “origem desconhecida” desse sen­
timento de culpa extremo, que não é senão uma representação do sujeito.
Sua origem não é cultural, foi o sujeito que a fabricou, organizou por si mes­
mo e para si mesmo. Ela tem de ser procurada do lado do sujeito, e não do
lado do exterior, pois seu postulado é o de que a atividade psíquica tem de
ser interrogada a partir do interior e não segundo uma causalidade externa,
sociocultural. Freud não se situa na sociogênese, mas sim na psicogênese.

18 S. Freud, ^Interpretation du rêue (1900a), PUF, 1967, p. 369.


19 S. Freud, Les criminels par conscience de culpabilité, in I/inquiétante étrangeté et autres
essais, Gallimard, 1985, p. 169-171.

193
Compreender .

O obscuro sentimento de culpa tem, pois, de ser entendido como uma re­
presentação, isto é, como um investimento. Toda representação, com efeito,
é um investimento, uma representação de uma realidade exterior, certa-
mente, mas transformada de tal modo que seja reconhecível pela psique na
cena interior. Ao mesmo tempo, o segundo sentido de uma representação
é uma forma de identificação com um voto de adulto, de grandes pessoas,
de grandes homens, que atribuem um lugar ao sujeito, quando ele se põe
à escuta da palavra, ou à escuta do pai, quando ele é obediente à palavra
do outro. Nesse momento, ele atribui a si mesmo um lugar que não provém
de si, mas do outro. Percebe-se aqui também que a identificação pode ser
identificação com o passado ou com o futuro. Todo o problema é então o de
saber como balizar o tempo, marca dessas identificações.

0 mal-estar na cultura

Em seu ensaio O mafestar na cultura, publicado em 1930, Freud volta a tra­


tar do sentimento de culpa e o define como a incapacidade de se separar
de um objeto exterior; é o eu “ainda indiviso”, não separado "de um objeto
externo”20. Esse texto não deve ser entendido como um trabalho de inter­
pretação da cultura e sim como uma leitura metapsicológica que proporá a
gênese psíquica do sentimento de culpa.
Para Freud, o termo Kultur designa o que diz respeito à relação do ho­
mem com o homem, em outras palavras, o que diz respeito à linguagem,
à palavra e ao político, pois o político é originalmente palavra, palavra in-
tercambiada que resulta na unanimidade nas sociedades primitivas, ou a
palavra na ágora entre os homens políticos. O mal-estar na cultura é, pois,
para Freud a doença humana, enquanto a “civilização” remete à relação do
homem com a natureza, isto é, ao registro do econômico e da técnica. Quan­
do Freud emprega Kultur, é precisamente para falar da doença humana. Ele
replica desse modo a Romain Rolland, que pensava que no fundamento da
cultura estava a religiosidade, o sentimento religioso como permitindo a
comunicação com a eternidade: “Oceano de alegria inefável, eu tinha cons­
ciência da presença da divina mãe em mim”21. Freud se oporá a essa visão
da cultura, de modo cortês, mas firme.

20 S. Freud, Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, 1995, p. 73 (Quadrige).


21 R. Rolland, La uie de Ramakrishna, Stock, 1930.

194
Mitologia, cultura e religioso

Enquanto na cultura clássica a culpa nascia do fato de não prover o pai


(ou a mãe), de não estar em posição sacrifical permanente em relação a ele,
Freud demonstra que a culpa provém do fato de não ousar separar-se desse
pai. O mal-estar da cultura será, pois, para ele constatar o horror da sepa­
ração, o horror da individuação na humanidade, a impossibilidade de fazer
cessar um vínculo permanente e indissolúvel com uma das modalidades da
cultura, que pode ser a religião, a metafísica.isto é, a existência de um eu
protético que não pode existir senão apoiado, escorado, indiviso em relação
ao objeto exterior (que evidentemente pode ser um objeto ideal). A mitologia
freudiana ratifica o fim do mundo clássico, o fim de um sistema de repre­
sentações ao qual o sujeito estava submetido, com seu correlato lógico, a
destruição do culto do ancestral e do patriarcado à imagem de Deus.
No capítulo I, Freud constata em primeiro lugar que “nada para nós é
mais seguro que o sentimento de nosso eu, de nosso eu próprio”22. Na verda­
de, numerosos fatores tomam difícil "a delimitação do eu diante do mundo
exterior, delimitação essa que se torna incerta”. Isso para Freud é fonte de
patologia. Essa difícil delimitação do eu é acompanhada por outra dificul­
dade: “o reconhecimento de um fora, de um mundo exterior, diferenciado
de um interior”. Todo o trabalho da cultura, para Freud, é o de sair desse
sentimento oceânico no qual os limites do eu não permitem diferenciar o
interior do exterior para o sujeito, ele próprio e o outro, o que pode ser en­
contrado, evidentemente, no estado amoroso, na hipnose e na psicose.
Baudelaire já apresentava isso em Mon coeur mis à nu: "Da vaporização e
da centralização do eu. Túdo está aqui”23.
No capítulo VII, Freud começa assinalando que o sentimento de culpa
não é nada mais, inicialmente, que a angústia socializada diante da perda
do amor. Em um primeiro momento, a consciência moral aparece como a
interiorização da angústia da perda do amor e evidentemente da perda do
amor dos pais.
Ora, isso condicionará duas particularidades: quanto mais virtuoso for
o sujeito, mais ele aumentará sua renúncia pulsional e mais a consciên­
cia moral se tomará severa. Freud dá aqui o exemplo do povo judeu e da
eleição: “Isso se toma particularmente claro quando, em um sentido estri­
tamente religioso, não se reconhece no destino senão a vontade divina. O

22 S. Freud, Le Malaise dans la culture (1930a), PUF, 1995 (Quadrige).


23 Ch. Baudelaire, CEuvres completes, tomo 1,1975, p. 676 (La Pléiade).

195
Compreender

povo de Israel se considerava filho preferido de Deus e quando o Pai, em sua


grandeza, fez cair desgraça após desgraça sobre esse povo que era o seu,
este último, contudo, não ficou desorientado nessa relação, nem duvidou
do poder e da justiça de Deus, ele gerou os profetas que lhe reprovaram
seu estado de pecado e criou a partir da consciência de culpa os preceitos
extremamente severos de sua religião de sacerdotes. Que notável diferença
em relação ao comportamento primitivo!”24.
Outra particularidade: toda desgraça deve ter uma causa, e essa causa
é a retração do amor de uma autoridade onipotente. A consciência moral
chega a interpretar tudo o que acontece como tendo uma causa, um delí­
rio causalista, isto é, tanto uma causalidade absoluta do bem como uma
causalidade absoluta do mal, e portanto a recusa de todo acaso. O sujeito
atingido pela consciência moral prefere um sentido a qualquer preço a pen­
sar que pode haver aleatoriedade em sua desgraça. A consciência moral é
essencialmente causalista. Poder-se-ia dizer que ela é serniófora, portadora
de signos: procuro uma significação para tudo o que me acontece. Ou ain­
da semiófila: adoro o sentido. Essa gênese da consciência moral faz Freud
se colocar o seguinte problema: a renúncia pulsional, longe de atenuar o
sentimento de culpa, aumenta-o. A abstinência não é mais recompensada
pela garantia de conservar o amor. Pode-se até mesmo dizer que com Jó a
consciência moral se reforça na desgraça. Quanto mais dócil e melhor for o
sujeito, mais ele será rigoroso de modo exacerbado em relação a si mesmo:
é o ódio a si mesmo do homem virtuoso.
É aqui que Freud apresenta sua concepção psicanalítica, que ele con­
sidera “estranha ao pensamento humano tradicional”. Ele se opõe à cons­
ciência moral e a essa busca do sentido. "Na origem, a consciência é de fato
a causa da renúncia à pulsão. Depois, a relação será inversa, toda renúncia
pulsional se tomará então fonte de energia para a consciência moral”. Freud
mira o fato de que a consciência moral se identifica com o supereu paterno,
de que ela é conseqüência da renúncia pulsional, e também conseqüên­
cia do desinvestimento da realidade exterior. Esse texto realmente tem de
ser compreendido como uma interpretação metapsicológica da consciência
moral. A cultura judaico-cristã à qual Freud pertencia, ao sobreimpor ao
amor dos pais o amor de um deus com essa noção de eleição, de seleção,
de sobrevalorização narcísica, socializa um sentimento de dívida infinito

24 Op. cit., p. 70.

196
Mitologia, cultura e religioso

e portanto impagável em relação ao seu criador, sentimento que constitui


um obstáculo à possibilidade de afirmação de um desejo, em tudo o que a
afirmação de um desejo possa ter de separador. Reencontramos aqui o que
já foi abordado no primeiro capítulo: a in diferenciação entre o eu e o mundo
exterior em que as representações sociais estão no princípio da metapsico-
logia freudiana. Libertar-se dessa dívida seria por fim poder se separar de
seu criador. Percebe-se, pois, o vínculo sutilmente mantido entre o reconhe­
cimento dessa dívida infinita transformando-se em sentimento de culpa que
não é pagável.
Freud também salienta outro ponto: a minimização da sorte e da des­
graça toma impossível o acaso e torna insuportável a desgraça. Em seu Uma
lembrança de infância de Leonardo da Vinci, em 1911, Freud já dizia: “Considerar
o acaso indigno de decidir nosso destino não é nada mais que uma recaída
na concepção piedosa do mundo”25 26. Mundo do qual está excluída toda alea-
toriedade e onde toda causalidade nos coloca ao abrigo de nossa subjetivi­
dade e de uma infelicidade subjetiva para a qual não se poderia dar sentido.
Se tudo o que nos acontece possui um sentido, não há mais tragédia na
existência. O trágico é aquilo que cai sobre nós, sem que nós mesmos ou
os outros tenhamos qualquer responsabilidade sobre isso. Freud prossegue:
“Naturalmente, ficamos mortificados quando um Deus justo e uma Provi­
dência clemente não nos protegem melhor de tais incidências na época
mais desfavorecida de nossa vida. Nós nos comprazemos em esquecer que
na verdade tudo em nossa vida é acaso, desde o nosso começo...”. Se con­
siderarmos acaso o que nos acontece, desgraça sem sentido, isso pode nos
permitir um trabalho de subjetivação de nós mesmos em vez de relacionar
o que ocorre a uma causa que remeteria a um criador depositário de toda
a significação do que nos acontece. A piedade tem a ver com a obediência
ao pai, assim como a entendia Heidegger. A piedade é a espera crente de
mensagens que me interpretarão, é o que me impede de me interpretar, é o
que faz com que eu possa colocar minha própria subjetividade de lado. Em
um grito patético, Hõlderlin lança o apelo: “Somos um signo à espera de ser
interpretado” (Ein Zeichen sind wir deutungloss)28.

25 S. Freud, Un Souuenir d’enfance âe Léonard de Vinci (1910c), Gallimard, 1987, p. 178, “Voca­
tion de poète".
26 Hõlderlin, Mnémosyne, CEuure poétique complète, La Différence, 2005,p. 802-803.

197
Compreender

O desencantamento do mundo

Em outras palavras, a abertura freudiana pode ser enunciada do seguinte


modo: não há correlato entre o cosmos e o indivíduo. Freud se situa aqui na
linha daqueles que Max Weber chamou de iniciadores do “desencantamen­
to do mundo”, que desdivinizam o mundo, que caçam os deuses da Grécia,
o que Hõlderlin, em seu Hipérion ou o eremita na Grécia, associava a uma
plenitude total, uma reconciliação total do homem com o homem e do ho­
mem com a natureza. Foi Hõlderlin que em sua loucura por presença real,
por parusia, foi mais longe no fascínio por essa reconciliação, que faria com
que não houvesse mais deiscência para o homem. No entanto, foi o próprio
Hõlderlin que no final de sua vida, em um poema intitulado Vocação de poeta,
nos faz viver a passagem para o “viver na proximidade dos deuses”:

Mas sem medo permanece, como deve, o homem


Só diante de Deus, sua inocência o protege,
E não precisa de armas ou artimanhas
Antes que o ajude a falta de Deus21.

Metapsicologia freudiana

Freud inaugurou uma metapsicologia que não é mais solidária de uma


visão do mundo, nem de uma metafísica. Isso nos remete ao texto capital
de 1913, "O início do tratamento”, em que Freud escreve: “Nos primeiros
começos da psicanálise, nós, é verdade que considerando as coisas de um
ponto de vista intelectual (de uma posição de pensamento intelectualis-
ta), nos esquecemos de que não podemos mais diferenciar os conheci­
mentos do paciente dos nossos”27 28. Em outras palavras, foi preciso sair de
uma posição de pensamento intelectualista para dar-se conta de que não
há inconsciente comum entre o analista e o analisado e que o estatuto do
sujeito freudiano é o seguinte: a corpos separados correspondem psiques
separadas e saberes separados.

27 Hõlderlin, Vocation de poète (segunda versão), in (Euure poétique complete, op. cit., p. 622-
623.
28 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanalytique, PUF, 1953, p. 101-
102.

198
Mitologia, cultura e religioso

O analista tem absoluta ignorância do que se passa na cabeça do pa­


ciente, e Freud observa nesse momento que, quando ele estava na não dife­
renciação de seu saber em relação ao de seu paciente, ele emprenhava este
último com um saber estranho, imposto, inculcado, introjetado a partir do
exterior. Desse ponto de vista, a psicanálise, enquanto permaneceu em uma
posição de pensamento intelectualista, se resumia a uma cura de hipnose e
a uma lavagem do cérebro do paciente. Nesse contexto e para parafrasear o
famoso "onde havia isso, eu deve advir”, poder-se-ia dizer “onda havia o isso
do analista, o eu do paciente deve advir”.
É preciso poder pensar essa disjunção radical entre mitologia e metap­
sicologia para sair do universo no qual opera tal conaturalidade de conhe­
cimento entre o analista e o analisando.

199
Capítulo XIV

Ética e visão do mundo.


A psicanálise: um espaço
extraterritorial de enunciação

Se você não esperar o inesperado, você não o


encontrará, pois é penoso e difícil encontrá-lo.
Heráclito, Fragmento 18

Para concluir este percurso da obra de Freud, situado na própria gênese


de suas descobertas, pode-se tentar, a partir do próprio Freud, responder à
seguinte pergunta: a psicanálise pode existir sem ética?.
Pode-se dizer que toda a metapsicologia freudiana será construída so­
bre um espaço psíquico interior, marcado pela dimensão da temporalidade,
uma temporalidade cujo eixo não está dirigido ao passado e sim rumo a um
futuro. A própria saída do "declínio do complexo de Édipo" é a aptidão a não
mais se identificar com um dos pais, e toda a metapsicologia freudiana se
fundará no que depende da separação, de uma tentativa de separação radi­
cal entre o registro do ético e o registro da visão do mundo.

Ética e metafísica

Nas intuições freudianas que organizam sua metapsicologia, manifesta-se


uma preocupação permanente de afirmar a autonomização do indivíduo
em relação a toda visão do mundo. Saber se uma ética pode existir sob uma
forma separada, isto é, diferenciada de uma religião ou de uma visão do
mundo (de uma Weltanschauung), é um debate que está longe de ser novo.

201
Compreender

Com Kant, pode-se responder que existe uma ética separada de toda
visão do mundo. "É prático tudo o que é possível graças à liberdade”1, diz
ele na conclusão de sua Crítica da razão pura. Kant foi o primeiro moderno
a afirmar a autonomia do sujeito em relação ao mundo, em relação a uma
visão metafísica, e o primeiro a extrair as conseqüências disso: é prático
tudo o que o é por liberdade, tudo o que é possível graças à autonomia do
sujeito em relação às formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo.
Para Kant, a ética é a faculdade de fazer existir uma liberdade transcenden­
tal, isto é, uma causalidade da razão na determinação de uma vontade que
não seja patologicamente afetada pela ordem dos fenômenos na qual reina
a causalidade da natureza e da ciência, ao mesmo tempo em que ela está
desligada de toda visão do mundo.
Para Hegel, pelo contrário, não há moral sob uma forma separada, por­
que a consciência, na Fenomenologia do espírito, esposa sucessivamente todas
as modalidades da cultura, todos os momentos da cultura. A consciência é,
pois, imersa em uma razão “astuciosa”, que coincide por fim com o saber
absoluto; ela nunca emerge dos momentos da cultura com os quais ela
tem contato e na qual ela se inscreve. Desse modo, Hegel em certa medida
anunciou que o saber absoluto, quando coincide com a sabedoria (a metafí­
sica coincide então com a ética), nos faz entrar no fim da história, segundo
a interpretação de Kojève.
Poder-se-ia também atravessar a filosofia grega para mostrar que exis­
tem posições fundamentadas e argumentadas em que a ética pode ou não
se autonomizar de uma visão do mundo e para recordar que no mundo
antigo não há liberdade. Nele, a moral não pode ser senão assentimento à
ordem do mundo, seguir o que é conveniente, o costume. Há, por um lado,
as ta kathékonta, as coisas que são convenientes, e, por outro lado, as ta ouk
teathéfeonta, as coisas que não são convenientes. A moral (ethike) reduz-se, no
fim das contas, ao ethos, o costume. É ético o que é consentimento à ordem
do mundo, ao costume, sem emergência do sujeito em relação ao cosmos,
à lei da cidade. Daí o conflito singular de Antígona que opõe outra lei, a da
consciência (syneidesis), à lei da cidade.
É esse mundo da coerência entre a metafísica, a ética e a religião que
Freud constata estar acabado com a condição do homem moderno e ao qual
ele responde com sua própria mitologia. Já em 1882 Freud expressa essa in-

t E. Kant, Canon de la raison pure, in Critique de la raison pure. PUF, p. 540.

202
Ética e visão do mundo

tuição em uma carta dirigida à sua noiva, Martha: "Os historiadores dirão que
se Jerusalém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos desaparecido
como tantos outros povos antes de nós e depois de nós. Foi somente após
a destruição do templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde ser
construído”. Freud marca, já nessa época, a oposição entre a sujeição a um
cosmos do qual não se pode escapar e a dimensão da temporalidade, portan­
to de um futuro que permite separar-se do mundo, da terra e da raça.

Emergência da lei

O assassinato do pai é a exigência primeira para o pacto dos irmãos, porque


ele impede para sempre que a onipotência ressurja na cena da realidade,
e ele está aí para marcar uma lei que está no princípio da proibição do in­
cesto e no princípio da limitação das pulsões. Essa é precisamente a defini­
ção que Freud apresenta da ética em O homem Moisés e a religião monoteísta:
“Ora, a ética significa a limitação das pulsões (Triebeinschranfeung)’’2. A ética,
portanto, não está de modo algum ligada a uma visão do mundo; ela está
ligada a um trabalho psíquico sobre si mesmo, como ele escrevera algumas
páginas antes: “A retração da percepção sensorial em proveito de uma re­
presentação que convém chamar de abstrata, um triunfo da vida do espírito
sobre a vida sensorial, estritamente falando uma renúncia às pulsões com
suas necessárias conseqüências no plano psicológico"3.
Desse modo, há uma continuidade lógica em Freud entre Totem e tabu
(1913) e seu último livro, O homem Moisés e a religião monoteísta (1939). A emer­
gência da Lei que apaga a onipotência do Uruater carrega em si ao mesmo
tempo a anulação dessa relação de dívida permanente com os ascendentes
e permite a abertura de um tempo vetorizado rumo ao futuro, isto é, rumo
a uma posteridade.
Para Freud, a ética é essencialmente o controle do arcaico pela lingua­
gem e por aquilo que ele chamará de “a ditadura da razão”, em sua carta a
Einstein: "O estado ideal seria naturalmente uma comunidade de homens
que tivessem submetido sua vida pulsional à ditadura da razão”4. Isso é
confirmado pela epígrafe da Interpretação dos sonhos, na qual Freud retoma

2 S. Freud, L’Homme Moíse et Ia religion monothéiste, Gallimard, 1986, p. 219.


3 Ibid., p. 212.
4 S. Freud, Pourquoi la guerre?, Carta a Einstein (1933b), OCPF XIX, PUF, 1995, p. 79.

203
Compreender

um verso da Eneida de Virgílio (VII, 312): Flectere si nequeo superos, Acheronta


movebo: "Se não puder dobrar os de cima, irei até o Aqueron”. Em 1900, por­
tanto, o caminho de Freud já visava à reconquista do arcaico.
A façanha freudiana inverte aqui a posição da cultura clássica ao intro­
duzir uma metapsicologia que não é mais solidária de uma visão do mundo
nem tampouco de uma metafísica. Nesse sentido, o texto escrito em 1913,
“O início do tratamento”, representa um avanço capital, às vezes negligen­
ciado, que confirma esta descoberta de Freud: "Nos primeiros começos da
psicanálise, nós, é verdade que considerando as coisas de uma posição de
pensamento intelectualista, nos esquecemos de que não podemos mais di-
ferenciar os conhecimentos do paciente dos nossos”8. Desse modo, foi preci­
so sair de uma posição intelectualista de saber para dar-se conta de que não
há nenhum inconsciente entre o analista e o analisando e que o estatuto do
sujeito freudiano é o seguinte: a corpos separados correspondem psiques
separadas e saberes separados. O analista ignora absolutamente o que se
passa na cabeça do paciente.
A intenção de Freud e o que ele sustentará será que a prática analítica
pode se autonomizar tanto de uma visão do mundo como da ética. Isso
Freud desenvolve como conclusão de sua 35a Conferência de introdução à
psicanálise, sobre “A decomposição da personalidade psíquica”, quando ele
evoca a necessidade de arrancar o sujeito do mundo do inconsciente por
meio da psicanálise: "Com efeito, a intenção é a de fortalecer o eu, de tomá-
lo mais independente do supereu, de ampliar seu campo de percepção e de
consolidar sua organização de tal modo que ele possa se apropriar de novos
pedaços do isso. Onde havia isso, eu deve advir. É um trabalho de cultura,
um pouco como a drenagem do Zuydersee”5 6 (Wo Es war, soil Ich werden. Es ist
Kulturarbeit etwa urie dieTrockenlegung der Zuydersee).
A interpretação dessa famosa frase por Lacan pode eventualmente re­
presentar um contrassenso do pensamento freudiano quando ele a parafra­
seia do seguinte modo: "Onde Isso era, é meu dever que eu venha a ser”7 8 ou:
“Onde foi Isso, preciso advir”8. Essas interpretações que remetem o eu rumo

5 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanalytique, PUF, 1970, p.


101-102.
6 S. Freud, La décomposition de la personnalité psychique, in Nouuelles conferences
d’introduction à !a psychanalyse, Gallimard, 1984, p. 110.
7 J. Lacan, Écriís, Seuil, 1966, p. 417-418.
8 Ibid., p. 524.

204
Ética e visão do mundo

ao isso são estranhas ao pensamento freudiano, tal como ele o formula


também em A questão da análise profana, em 1926: "Queremos restaurar o eu,
libertá-lo dos entraves, devolver-lhe o controle sobre o isso”9.

Espaço de enunciação

A conseqüência disso para a técnica psicanalítica é uma total inversão, pois


até então era o analista que hipnotizava e alimentava o paciente com seu
saber, enquanto a posição técnica analítica permite que o analisando re­
gule a cura e encontre nela um espaço de enunciação. Freud descreve do
seguinte modo essa inversão hipnótica na qual o analisando “hipnotizará" o
analista, em “Conselhos aos médicos”: “Como deve proceder o analista? Ele
deverá passar, segundo as necessidades do paciente, de uma posição psíqui­
ca para outra, evitando toda especulação, toda ruminação mental durante
o tratamento...”10. Freud questiona claramente a posição intelectualista do
saber (intellektualistischer Denfeeinstellung) que ele adotara inicialmente, pas­
sando a afirmar que o papel do analista é o de se deslocar, de oscilar de um a
posição psíquica (psychische Einstellung) para outra, posição psíquica que é
determinada pelas necessidades do paciente.
Na perspectiva freudiana, a relação analítica se baseia em uma tem-
poralidade psíquica que não possui nenhuma relação com o meridiano de
Greenwich que rege nossa temporalidade vetorizada. Trata-se, pois, para o
analista de estar em sincronia com o inconsciente do outro e de estar em
sintonia com os afetos do paciente. A passagem para a posição psíquica,
a determinação da posição psíquica do analista pelo analisando, inverte o
que se encontra na vida das pessoas. A análise é o local em que um paciente
pode se desassujeitar das palavras prescritivas que o colocaram em lugares
impossíveis, tal como o que foi determinado a Elisabeth von R. por seu pai
ao lhe dizer: “Você é para mim um filho e um amigo”. É um lugar em que
o paciente deve ter a possibilidade de reproduzir essa violência prescritiva
sobre o analista de modo que possa sair ao mesmo tempo dessas determi­
nações originárias mortíferas.

9 S. Freud, La Question de lamlyse profane (1926e), Gallimard, p. 62.


19 S. Freud, Conseils aux médecins dans le traitement analytique (1912e), in La Technique
psychanalytique, PUF, 1970, p. 65.

205
Compreender

Ética e método

Se toda ética hoje em dia é o reconhecimento da alteridade, pode-se dizer


que a relação analítica não é de modo algum regulada por uma ética, pois
ela postula a negação de todas as singularidades que caracterizam o analis­
ta. O analista está ali não in propria persona, mas no lugar de um outro que
falta ou que falha na existência do paciente, está ali como “terceira pessoa”.
A psicanálise, portanto, não realiza a ética da relação, no sentido em que
ela não é possível e viável para alguém senão nessa “atribuição de residên­
cia” do analista em um lugar exigível pelo analisando. Mas isso constitui a
condição para libertar-se das dívidas em relação ao seu criador. Em outras
palavras, a psicanálise é mais um método — método de interlocução singu­
lar — que uma ética. A psicanálise marca o fim da culpa, realiza o acerto de
contas, e justamente com isso pode abrir para o respeito ao outro, longe do
ressentimento e de uma dívida constante em relação aos ancestrais e aos
grandes homens. A psicanálise não é a transmissão de um sistema de repre­
sentações, mas ela permite, no passo a passo singular, interrogar as moda­
lidades segundo as quais um sujeito encontrou a história de sua cultura, de
sua família, e como ele soube, bem ou mal, transformá-las. Ou reavaliá-las
nesse espaço extraterritorial de enunciação que é uma cura analítica.

206
Bibliografia

Obras de Freud

Edição alemã: Gesammelte Werke. Frankfurt, S. Fisher Verlag, 1940-1968. 18


vols., edição cronológica segundo a publicação das obras, sem notas nem
estabelecimento critico do texto.

Edição inglesa: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sig­
mund Freud. 24 vols., com índice, Londres, The Hogarth Press, 1966-1974, edi­
ção cronológica, modelo de edição e de notas críticas para a época, sob a
organização de James Strachey.

Edição francesa: CEuvres complètes (OCP.F). PUF, tradução, edição e notas crí­
ticas sob a organização crítica de Jean Laplanche. 21 vols. previstos, 17 publi­
cados em 2007 (indispensável, melhor estabelecimento crítico do texto que
o da Standard Edition).

Os livros de Freud na França estão divididos entre três editoras: Galli-


mard, Payot e PUF. As novas traduções da Gallimard são notáveis. As da PUF,
col. Quadrige, retomam as traduções das obras completas PUF.

207
Compreender

Obras por ordem cronológica

Études sur 1’hystérie (1895d). PUF, 1956.


^interpretation du rêve (1900a). PUF, 1967.
Hois essais sur Ia théorie sexuelle (1905d). Gallimard, 1987.
Le Mot d’esprit et sa relation à 1'inconscient (1905c). Gallimard, 1988.
Sur I a psychanalyse (cinq conferences) (1910a). Gallimard, 1991.
L’Homme aux rats. Journal d ‘une analyse (1909). PUF, 1996.
Le petit Hans. Analyse de la phobie d’un garçon de cinq ans (1909b). PUF, 2006
(Quadrige).
L’Homme aux rats (1909d). PUF, 2000 (Quadrige).
Un souuenir d’enfance de Leonard de Vinci (1910c). Gallimard, 1987.
Totem et tabou (1912-1913a). Gallimard, 1993.
Sur 1'histoire du mouuement psychanalytique (1914d). Gallimard, 1991.
Vue d'ensemble des neuroses de transfert (1915). Gallimard, 1985.
Conferences d’introduction à la psychanalyse (1916-1917a). Gallimard, 1999.
L'Homme aux hups (1918b). PUF, 1990 (Quadrige).
Sigmund Freud presente par lui-même (1925d). Gallimard, 1984.
Inhibition, symptôme et angoisse (1926d). PUF, 1993 (Quadrige).
La question de 1'analyse profane (1926e). Gallimard, 1985.
Le Malaise dans la culture (1930a). PUF, 1995 (Quadrige).
Nouuelles Conferences d’introduction à la psychanalyse (1933a). Gallimard, 1984.
Abrégé de psychanalyse (1940a). PUF, 1975.

Coletâneas de artigos ou textos diversos de Freud

São indicados os textos citados neste livro.

Cinq psychanalyses. PUF, 1954: “Fragment dune analyse d’hystérie — Dora”


(1905e).
La Technique psychanalytique. PUF, 1970: “La dynamique du transfert" (1912b),
“Conseils aux médecins” (1912e), “Le début du traitement” (1913c), "Re-
mémorer, répéter, perlaborer” (1914g).
La Vie sexuelle. PUF, 1969: “Les théories sexuelles infantiles” (1908c), “Contri­
bution à la psychologie de la vie amoureuse” (1918a), “La disparition du
complexe d’Oedipe” (1924d).

208
Bibliografia

Métapsychologie. Gallimard, 1968: “Deuil et mélancolie” (1916-1917g).


Neurose, psychose et peruersion. PUF, 1973: “Des types d'entrée dans la psycho-
se" (1912c), “Un enfant est battu” (1919e), “Le problème économique du
masochisme” (1924c).
Essais de psychanalyse. Payot, 1981: “Au-delà du príncipe de plaisir” (1920b).
Résultats, idées.problèmes. PUF.T.1,1984 (1890-1920),T. II, 1985 (1921-1938): “Le
traitement psychique” (1890a), "Analyse finie, analyse infinie” (1937c),
"L’intérêt de la psychanalyse" (1913j).
Ulnquiétante étrangeté et autres essais. Gallimard, 1985: “Le motif du choix des
coffrets” (1913f), "Le Moíse de Michel-Ange” (1914b), "Les criminels par
conscience de culpabilité" (1916d), “L’inquiétante étrangeté” (1919h).
La premiere théorie des neuroses. PUF, 1995 (Quadrige).

Correspondência

Correspondance 1873-1939. Gallimard, 2a ed., 1979.


Sigmund Freud. Lettres à Wilhelm Fliess (1887-1904). PUF, 2006 (esta coletânea
substitui La Naissance de la psychanalyse, PUF, que era uma edição muito
incompleta dessa correspondência).
Sigmund Freud, Karl Abraham. Correspondance (1901-1925). Gallimard, 2006.
Sigmund Freud, Carl Gustav Jung. Correspondance T. I (1906-1909), T II (1910-
1914). Gallimard, 1975.
Sigmund Freud, Pasteur Pfister. Correspondance (1909-1939). Gallimard, 1969.
Sigmund Freud-Ludwig Binswanger. Correspondance (1908-1938). Calmann-Lé-
vy, 1995.
Lou Andreas-Salomé. Correspondance auec Freud (1912-1936), suiuie du journal
d'une année, 1912-1913. Gallimard, 1970.
Sigmund Freud-Emest Jones. Correspondance complete (1908-1939). PUF, 1998.
Theodor Reik. Trente and auec Freud, seguido por cartas inéditas de S. F. a Reik,
complexe, 1975.
Sigmund Freud-Arnold Zweig. Correspondance (1927-1939). Gallimard, 1973.
Sigmund Freud-Stefan Zweig. Correspondance (1908-1939). Rivages, 1991.
Sigmund Freud-Sandor Ferenczi. Correspondance, T. I (1908-1914), 1992, T. II
(1914-1919), 1996, T. Ill (1920-1933). Calmann-Lévy, 2000.
Lettres defamille de Sigmund Freud et des Freud de Manchester (1911-1938). PUF,
1996.

209
Compreender

Georg Groddeck. Ça et Moi. Gallimard, 1977 (contém sua correspondência


com Freud).
Sigmund Freud-Edoardo Weiss. Lettres sur la pratique psychanalytique (1919-
1935). Privat, “Rhadamanthe”, 1975.
Sigmund Freud. Notre coeur tend uers le Sud, Correspondance de voyage (1895-
1923). Fayard, 2002.

Documentos

GRUBRICH-SIMITIS, Use. Freud: retour aux manuscrits (1993). PUF, 1997.


MIJOLLA, Alain de. Les Mots de Freud. Belles-Lettres, 1989.
NUNBERG, Flermann; FEDERN, Ernst. Les Premiers Psychanalystes. Minutes de
la Société psychanalytique de Vienne. 4 vols., Gallimard, 1976-1979.

Obras sobre Freud

ANZIEU, Didier. L’Auto-analyse de Freud et la découverte de la psychanalyse. PUF,


3a ed., 1988.
DELRIEU, Alain. Sigmund Freud. Index thématique. Anthropos, 1997, 2a ed. re­
vista, 2001.
GAY, Peter. Unjuifsans dieu (1987). PUF, 1989.
GAY, Peter. Freud, une uie. Hachette, 1991 (a biografia mais completa e mais
atual) (trad, bras., Companhia das Letras, 1989).
JONES, Ernest. La Vie et Veeuvre de Freud (1953-1957). 3 vols., PUF, 1959-1968
(trad, bras., 3 vols., Imago, 1989).
MAHONY, Patrick J. Freud, 1’écriuain. Les Belles-Lettres, 1990.
MANNONI, Octave. Freud. Seuil, "Écrivains de toujours”, 1968.
MIJOLLA, Alain de (org.). Histoire de l’exercise de la psychanalyse par les
non-médecins. Reuue internationale d'histoire de la psychanalyse, n° 3, PUF,
1990.
MIJOLLA-MELLOR, Sophie de. Le Besoin de croire. Métapsychologie dufait reli-
gieux. Dunod, 2004.
SÉDAT, Jacques. Freud. Col. Synthèse, Armand Colin, 2006.
Traduire Freud. PUF, 1989 (obra técnica sobre a terminologia freudiana dos res­
ponsáveis pelas obras completas da PUF).

210
Bibliografia

História da psicanálise

ELLENBERGER, Henri. Histoire de Ia découverte de 1’inconscient (1970). Fayard,


1994.
ROUDINESCO, Elisabeth. Histoire de 1 a psychanalyse en France, I (1885-1939)
— a primeira seção trata de Freud—, Histoire de la psychanalyse en France,
II (1925-1985). Fayard, 1984.

Dicionários

CHEMAMA, Roland; VANDERMERSCH, Bernard (orgs.). Dictionnaire de la psy­


chanalyse (1995). Larousse-Bordas, 2a ed., 1998.
KAUFMANN, Pierre (org.). VApport freudien (1993). Larousse, 1997.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulaire de la psychanalyse.
PUF, 1967.
MIJOLLA, Alain de (org.). Dictionnaire international de la psychanalyse. Calmann-
Lévy, 2002 (mais de 2000 páginas, o mais exaustivo), 2a ed. revisada, Ha-
chette Littératures, col. Grand pluriel, 2005.
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dictionnaire de la psychanalyse (1997).
Fayard, 3a ed., 2006.

211
---......
índice onomástico

Adler, Alfred 14 Dolto, Françoise 69,132


Andreas-Salomé, Lou 18 Doolittle, Hilda 100
Azam, Eugène 24 Einstein, Albert 184, 203
Baudelaire, Charles 119,195 Eliade, Mircea 186
Bemheim, Hippolyte 23, 29-31, 33, 38, Ésquilo 162
88,92 Ferenczi, Sandor 18,93,113,142,145,209
Bonaparte, Marie 17,19 Flaubert, Gustave 108
Breton, André 117 Fliess, Wilhelm 13,14,16, 24, 28,34-39,
Breuer, Joseph 23, 31-34, 36,42, 43,48, 42, 50-53, 88, 116,131, 133,159,170,
176 209
Briquet, Paul 41 Freud, Anna 142
Charcot, Jean-Martin 12,19, 23-30,32, Graf, Max 15,65
33,42,44, 88,90, 91,155 Granoff, Wladimir 133
Chateaubriand, François René de 193 Groddeck, Georg 18,19,210
Cleanto 164,165 Grubrich-Simitis, Use 113, 210
Delcourt, Marie 186 Guilleragues, Conde de 101
Descartes, René 167,168,172,173 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich 135, 202
Diderot, Denis 152 Heidegger, Martin 143,144,197

213
Compreender

Heráclito 201
Héritier, Françoise 183
Hobbes, Thomas 181
Hõlderlin, Friedrich 143, 181,186,197,
198
Ibsen, Henrik 86,136
Jones, Ernest 17,19, 113,120,178,179,
209, 210
Jung, Carl Gustav 12,14-16,18,21, 22, 72,
80, 85, 93, 94,142,179,181,183, 209
Kant, Emmanuel 163,164,167-169,172,
173,202
Kojève, Alexandre 166,184,185,202
Lacan, Jacques 54, 102,129,131,143,
159-161,172,204
Laplanche, Jean 142,207,211
Lawrence, Thomas Edward 139
Lévi-Strauss, Claude 17,182
Liébeault, Auguste 23,29,30,92
Mahony, Patrick 20, 22, 210
Mannoni, Octave 23,38,73,210
Messmer, Franz Anton 30,38,92
Michaux, Henri 81
Mijolla, Alain de 179, 210, 211

2'
Moebius, Paul-Julius 24, 41, 62
Montaigne, Michel de 73,163
Nietzsche, Friedrich 19,114,193
Oppenheim, Hermann 41, 51
Pascal, Blaise 73
Perrier, François 152,189
Platão 58,79,165,185
Pontalis.Jean-Bertrand 175,179,211
Racine, Jean 41
Rank, Otto 142
Rolland, Romain 194
Rousseau, Jean-Jacques 85, 89,122,123,
181,182
Sachs, Hanns 18
Santo Agostinho 67, 71, 79
Schneider, Michel 175,179
Ségur, Condessa de 121, 122
Shakespeare, William 107,115
Spinoza, Baruch 165
Stein, Conrad 136,138
Tomás de Aquino 167,173
Virgílio 204
Weber, Max 189,198
Zola, Émile 116

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