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Introdução 11
Capítulo 1
Escritos e escrita de Freud 13
Capítulo II
A formação de Freud 23
Capítulo III
Os Estudos sobre a histeria 41
"Comunicação preliminar" 43
Primeira definição da histeria 45
Da teoria da sedução real à teoria da fantasia 52
Capítulo IV
A descoberta do infantil 55
Capítulo V
Uma intuição freudiana:
a importância da temporalidade 81
Capítulo VI
Da transferência ao seu declínio 87
Capítulo VII
A constrição de repetição 105
Capítulo VIII
O masoquismo 119
Capítulo IX
A regra fundamental, espaço da cura 141
Capítulo X
A eficácia da psicanálise,
um benefício secundário da doença? 155
Capítulo XI
Para introduzir o sujeito na psicanálise 163
Capítulo XII
O estatuto da psicanálise na sociedade.
Um texto atual: A questão da análise profana 175
Capítulo XIII
Mitologia, cultura e religioso 181
Bibliografia 207
Parece que tudo já foi dito e rédito, visto e revisto, interpretado e reinter-
pretado a respeito da obra e das descobertas de Freud. Acrescentar mais
um trabalho ao catálogo mais que exaustivo dos incontáveis ensaios sobre
Freud parece, nesse contexto, estar mais ligado à "compulsão de repeti
ção” ou à obstinação efêmera de querer se inscrever a qualquer preço ao
lado de ilustres exegetas da obra freudiana.
Esta abordagem de Freud é, pois, deliberadamente parcial, fragmen
tada, seletiva. Minha própria prática e os longos anos consagrados a reler
Freud nas traduções francesas ou inglesas, confrontadas com a versão
original em alemão, fizeram com que eu me encontrasse, o que não deixa
de ser divertido, em uma posição muito bem definida por Freud: “Toda
descoberta não é senão uma redescoberta”.
O objetivo deste trabalho é, pois, o de compartilhar com o leitor a
riqueza dessas redescobertas com aspectos do percurso e do pensamento
freudianos que nem sempre foram suficientemente explorados, esclareci
dos, até mesmo compreendidos, em certos campos fundamentais, em sua
invenção da psicanálise.
Recorri a diversas edições das obras de Freud de acordo com o con
texto ou com a pertinência da tradução, sem necessariamente privilegiar
Compreender
“Não, o dia ainda não está amanhecendo. Devemos velar com cuidado nossa
pequena luz; a noite ainda durará bastante’’1.
Freud teria adorado ser romancista, ele possuía uma grande cultura poética,
teatral e filosófica e lia muito. Escrever e pensar parecem ser duas coisas indis-
soluvelmente ligadas nele, que raramente passava um dia sem escrever, mes
mo que fosse uma carta. Ele encontrava nisso um complemento indispensável
às longas horas passadas ouvindo seus pacientes e uma forma de explorar
todo o material acumulado por sua experiência, suas leituras e suas trocas.
O que salta aos olhos logo de saída na escrita de Freud é sua abundân
cia e sua diversidade. Para desenvolver suas interrogações e suas descober
tas sobre a nova técnica que está inventando, ele recorre a todo um leque
de estilos e de gêneros literários, todos eles modos diversos de escrita que
respondem e frequentemente se prolongam uns aos outros.
Para compreender melhor a maneira pela qual Freud elabora seus pen
samentos, eis um trecho da carta que ele dirigiu a Fliess em 25 de maio de
1895, desculpando-se por não ter respondido antes à sua última carta: “Eu ti
nha uma quantidade inumana de coisas para resolver e depois de dez a onze 1
1 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess 1887-1904. Carta 127 (16 de maio de 1897), PUF, 2006,
p. 308.
Compreender ; ;
1 Alusão à Conjuração de Fiesco (I, 13), em que Bourgognino exclama "Tenho um tirano!”
quando se apaixona.
3 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, op, cit., Carta 64, p. 167.
Escritos e escrita de Freud
dois grandes sonhos de Dora; por fim, Freud escreveu esse texto na urgên
cia de compreender o impasse em que ele se encontrou diante dela.
O caso do Homem dos ratos, que Freud tratou entre 1907 e 1908, permite-
lhe descobrir a neurose obsessiva ou neurose de coerção. Nesse texto, Freud
também confirma a verdadeira posição psíquica do analista, sobre a qual
ele tivera uma intuição nos Estudos sobre a histeria, mas que ele nem sem
pre soube adotar diante do Homem dos ratos, o qual brutalmente recoloca
Freud em seu lugar de “terceira pessoa", esse terceiro, suporte da transfe
rência, tal como Freud pressentira alguns anos antes, sem contudo poder
levá-lo realmente em consideração em sua prática analítica.
O caso do pequem Hans, que Freud acompanha durante o mesmo perío
do, em 1908, apresenta a originalidade de desenvolver a fobia de uma crian
ça de cinco anos que foi analisada por seu próprio pai, Max Graf. Freud re
digiu esse texto baseando-se nas anotações de Max Graf e em suas próprias
observações, que confirmavam suas descobertas sobre as teorias sexuais
infantis e lhe permitiram descobrir o complexo de castração que precede o
complexo de Édipo.
Do mesmo modo, o caso do Homem dos lobos é a ocasião para Freud des
tacar uma cena originária que teria um efeito traumático posterior (nachtrdg-
lich). Esse paciente se encontra assim considerado nas estratégias teóricas
de Freud e a serviço destas, logo ele que quer absolutamente opor-se aos
arquétipos de Jung, provando que houve essa cena originária para a criança,
no quarto de seus pais, enquanto o Homem dos lobos sustentará mais tarde
que era uma simples hipótese da qual ele não tinha nenhuma lembrança.
Esses textos ilustram em alguns pontos a sobredeterminação teórica
que está presente, enquanto estratégia teórica, na escrita de Freud. Eles
também evidenciam o fato, inédito na época, de que Freud instaura os su
jeitos, os pacientes expostos à análise, na posição de descobridores e de
inventores da psicanálise. É a primeira vez que uma prática no campo da
psicopatologia precede a teoria.
Os escritos técnicos representam outra forma de escrita importante
para a compreensão da psicanálise e de sua prática. Esses textos, a maior
parte deles redigidos entre 1912 e 1914, destinam-se a permitir que o ana
lista determine sua posição, o lugar psíquico que ele ocupa em relação ao
paciente. A maioria deles foi reunida em A técnica psicanalítica. Será particu
larmente nesses textos que Freud questionará algumas de suas concepções
anteriores sobre a transferência e o desenrolar da cura. Sua redefinição da
Compreender f >
16
Escritos e escrita de Freud
4 E. Jones, La Vie et L’ceuvre de Sigmund Freud, tomo II, PUF, 1972, p. 421-422.
17
Compreender :iíj|t
O fragmentário
5 Hanns Sachs, Freud, mon maitre et mon ami, Paris, Denoèl, 1977.
6 Apud H. Knoepfmacher, Freud and the B'nai B'rith, Journal of the American Psychoanalytic
Association, 27: 447 (1979).
7 S. Freud-C. G. Jung, Correspondence, tomo I, Gallimard, 1975, p. 221.
8 Lou Andreas-Salomé, Correspondance auec Sigmund Freud, Gallimard, 1970, p. 122-123.
9 Georg Groddeck, Ça et Moi, Lettres à Freud, Ferenczi et quelques autres, Gallimard, 1977, p. 70.
Escritos e escrita de Freud
Desvios e tateios
Senhores, devo agora fazer-lhes esta pergunta: o que eu lhes digo aqui está ex
cessivamente obscuro e complicado? Não terei eu semeado a confusão em suas
mentes ao retirar com tanta frequência coisas que eu disse e fazendo restrições,
esboçando caminhos de pensamento para abandoná-los logo em seguida? Isso
me deixaria desconsolado. Mas tenho uma grande aversão às simplificações
que são feitas em detrimento da fidelidade à verdade; não ficarei descontente se
vocês acabarem tendo uma ideia justa da multiplicidade e do entrelaçamento
dos aspectos do objeto em toda a sua amplitude, e também digo a mim mesmo
que não é algo tão grave assim se, a respeito de cada ponto, eu lhes disser mais
do que aquilo de que vocês puderem fazer uso imediatamente13.
Ocorre de a prosa, tomada por seu impulso, estabelecer uma assimilação implí
cita entre idéias divergentes sem que a menor relação lógica venha indicar essa
20
Escritos e escrita de Freud
Tenho de lidar, como o Senhor bem sabe, com todos os demônios que podem ser
lançados contra o "inovador”; um deles, não o mais dócil, é a obrigação de apa
recer aos meus próprios partidários como rabugento (Griesgram) ou como faná
tico, incorrigível e que quer sempre ter razão, algo que não sou de modo algum.
É compreensível que, deixado tanto tempo sozinho com minhas opiniões, eu
tenha sido conduzido a ter aumentada a minha confiança em minhas próprias
decisões. Uma ocupação de quinze anos, sempre aprofundada e que chegou há
anos a uma exclusividade monótona, cria em mim além disso uma espécie de
resistência contra convites para aceitar coisas divergentes11.
16 Ibid., p. 179.
11 S. Freud-C. G. Jung, Correspondence, tomo I, Gallimard, 1975, p. 51.
18 S. Freud, L'Homme Moise et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 201.
21
Compreender FREIMl
A formação de Freud
A hipnose era então considerada nos meios médicos uma fraude, uma prá
tica popular indigna de interesse, exceto por alguns médicos como Paul-
Julius Moebius2, que levou essa prática a sério, assim como por um cirurgião
de Bordeaux, Eugène Azam3. Tendo observado que a hipnose favorecia o
desdobramento da personalidade, este último a utilizou de modo puramen-
te instrumental, fazendo sob hipnose anestesias e intervenções cirúrgicas.
Charcot introduziu a prática da hipnose na Salpêtrière, primeiramente no
plano médico, e depois passou a utilizá-la nos casos de histeria quando ele
pôde constatar que um grande hipnotismo caracterizava o que ele chama
va de uma grande histeria. Ela se tomou um meio de experimentar em al
guém a capacidade de observar se se tratava de uma histeria enquanto afec-
ção neurológica.
Freud obteve uma bolsa pós-doutoral para ir a Paris e acompanhar os
trabalhos de Charcot na Salpêtrière, de outubro de 1885 a maio de 1886.
Médico muito famoso no grande mundo parisiense, Charcot tomou-se co
nhecido por seus trabalhos em neurologia na Salpêtrière, onde ele se tomou
o patrono francês da neurologia e da anatomopatologia.
Além dos métodos terapêuticos em voga na época (eletroterapia, hidro-
terapia, magnetoterapia, metaloterapia etc.), mas também a suspensão de
Moutchotkowski que ele descreveu detalhadamente, esse psiquiatra antes
da hora fez a hipnose entrar no espaço da instituição. E ele a utilizou como
método de pesquisa. Em sua tentativa de separar o que está ligado ao orgâ
nico e o que está vinculado ao psíquico, ele descreveu o grande e o pequeno
hipnotismo, a título de neurose experimental, e refletiu sobre a sugestão so
bre o histérico. Essas experiências conduziram-no a reconsiderar a etiologia
e a levar em consideração o que ele chamou de “o choque nervoso”, "o abalo
psíquico” e a “autossugestão”.
Durante seu estágio, Freud começou com trabalhos de histologia do
sistema nervoso — a especialidade de Charcot na época — e depois, seguindo
Charcot, que é um dos maiores médicos e cuja razão beira a genialidade está
simplesmente demolindo minhas concepções e meus planos. Saio de seus cur
sos como eu saía de Notre-Dame, cheio de novas idéias sobre a perfeição. Mas
ele me esgota e quando o deixo, não tenho mais nenhuma vontade de trabalhar
em meus próprios trabalhos, tão insignificantes. [...] Nenhum outro homem ja
mais teve tanta influência sobre mimJ.
4 J.-M. Charcot, Leçons du mardi (1887-1888), reedição Jacques Sédat, Tchou, Les introuva-
bles, 2002, 2 vols.
5 S. Freud, Correspondance (1873-1939), Gallimard, 1991, p. 197.
Compreender :
suas famosas aulas da terça-feira. Essas “Aulas da terça-feira” são uma lon
ga transcrição da parte teórica que ele podia defender, assim como reuniões
públicas com seus alunos diante de doentes. A de 17 de janeiro de 1888 (logo
após a estada de Freud em Paris), oferece-nos uma viva ilustração dessas
aulas. Charcot começa essa aula com uma curta exposição teórica sobre
as formas de tratamento para a histeria (hidroterapia, eletrização estática,
sugestão hipnótica eventual e prescrição de tônicos). Depois podemos ler in
uiuo e in situ o método de Charcot, com uma de suas doentes, uma mulher
jovem acompanhada por sua mãe:
Nesse diálogo, pode-se observar que a mãe fala no lugar de sua filha e
que ela fala dela como se fosse um objeto. Estamos diante de um discurso
fusional, o da mãe, porta-voz da doente. Charcot, por sua vez, recorre a dois
tipos de discurso: um discurso alocutivo, quando ele se dirige à doente, e
um discurso delocutivo, quando fala de sua doente na terceira pessoa, quan
do ela está presente, dirigindo-se diretamente ao seu público.
Mais adiante, ele pede à mãe que descreva essas famosas crises de
ataques:
26
A formação de Freud
— A mãe: Ela começa caindo no chão, ela rola, ela morde, ela rasga tudo o que
alcança, ela grita; seu olhar se toma fixo e depois ela se levanta, nos segue e se
joga sobre nós.
— Sr. Charcot: Eis uma boa descrição, e podemos reconhecer aqui as caracte
rísticas do grande ataque de acordo com nossa descrição: 1) em primeiro lugar,
é o período dos grandes movimentos; depois, 2) o das atitudes passionais. Ela
rola, se rasga, e então repentinamente fixa seu olhar em um ponto: evidente
mente uma visão se apresenta a ela, e os movimentos que ela executa nesse
momento estão de algum modo subordinados à alucinação.
— A mãe: Em alguns momentos ela parece feliz, ela ri e então parece ver algu
ma coisa que a apavora.
— Sr. Charcot: Assim sucessivamente ela tem visões alegres, e depois visões
tristes: essa é de algum modo a regra. Ela fala?
— A mãe: Sim, ela fala de uma coisa e depois de outra; às vezes ela me chama,
ou então ela diz que vê um homem barbudo.
— Sr. Charcot: Um homem?
— A mãe: Sim, às vezes um homem, mas outras vezes uma mulher. O homem
que ela vê é feio, assustador!
— Sr. Charcot: Talvez haja aí uma história que é inútil aprofundar neste mo
mento. Sabemos o suficiente para dizer que não se trata de epilepsia e sim de
histeria sob a forma de grande histeria ou histero-epilepsia com crises mistas6 7.
Dentre tudo o que vi com Charcot, o que mais me impressionou foram suas últi
mas pesquisas sobre a histeria que foram conduzidas em parte ainda na minha
presença. Estou falando da demonstração da autenticidade e da regularidade
dos fenômenos histéricos (“Introite et hic dii sunt"1), da ocorrência freqüente da
27
Compreender vi;
Freud retém de Charcot essa lição do primado dos fatos sobre a teo
ria, ideia que ele retomará particularmente em “Análise terminada, análise
infinita’’18, evocando ironicamente o recurso em certos casos difíceis à "feiti
ceira metapsicologia”, isto é, a um uso defensivo da teoria durante as sessões.
Além disso, retomando a hipótese de Charcot segundo a qual “é sempre a
coisa genital" que está em jogo na "bela indiferença da histérica”, Freud abrirá
assim o caminho para uma teoria sexual das neuroses.
frase em uma carta a Fliess (4 de dezembro de 1896): “A respeito de meus trabalhos, já posso lhe
revelar as epígrafes. No começo da psicologia da histeria, ler-se-á esta altiva frase: Introite et hic
dii sunt (esse texto nunca foi escrito).
8 Sigmund Freud par lui-méme, op. cit., p. 22-23.
9 "A teoria é algo bom, mas não impede algo de existir”. S. Freud, Charcot (1893f), in Résul-
tats, idées, problèmes, tomo 1, PUF, 1984, p. 63 (a frase de Charcot é citada por Freud em francês).
10 “Analyse finie, analyse infinie” (1937c), cap. 3, in Résultats, idées, problèmes, tomo II, PUF,
1985, p. 240.
28
A formaçao de Freud
O estudo por Charcot dos fenômenos hipnóticos nas histéricas contribuiu mui
to para o desenvolvimento do importante campo de fatos até então negligen
ciados e desprezados, pois o peso de seu nome pôs fim de uma vez por todas
à dúvida sobre a realidade das manifestações hipnóticas. Mas a matéria pu
ramente psicológica não suportava o tratamento exclusivamente nosográfico
que ela encontrava na Escola da Salpêtrière. A limitação do estudo da hipnose
às histéricas, a distinção entre o grande e o pequeno hipnotismo, o estabeleci
mento de três estágios da "grande hipnose” e sua caracterização por fenômenos
somáticos, tudo isto desmoronou na apreciação dos contemporâneos quando
Bemheim, aluno de Liébeault, ediftcou a doutrina do hipnotismo sobre uma
base psicológica mais ampla e quando ele fez da sugestão o núcleo da hipnose.
Somente os adversários do hipnotismo, que se contentam em dissimular sua
falta de experiência pessoal pela referência a uma autoridade, ainda se agarram
às posições de Charcot e gostam de utilizar uma declaração de seus últimos
anos que nega todo poder curativo à hipnose”.
29
n
Compreender
nica hipnótica, no verão de 1889 fui para Nancy, onde passei várias semanas.
Vi o velho Liébeault, que comovia no trabalho que praticava com mulheres e
crianças pobres da população trabalhadora; fui testemunha de experiências
surpreendentes de Bemheim com pacientes hospitalares; e eu trouxe comigo
as impressões mais fortes da possibilidade de processos psíquicos podero
sos, que não por isso deixam de fugir da consciência do homem’’13.
Liébeault fora marcado pelas teorias de Messmer (1734-1815) sobre o
magnetismo animal. Para esse médico austríaco, o fluido animal seria um
meio entre o homem e as forças energéticas do universo. O que ele também
chamava de “relação", termo que Freud guardará consigo. Essa relação en
tre as forças cósmicas e o homem estaria tanto na origem da doença como
na origem da saúde ou da cura. Messmer utilizava tinas nas quais ele colo
cava as pessoas e que supostamente concentravam o fluido animal e agiam
como um meio entre as forças cósmicas e o ser humano. Ele agia graças à
confiança que depositavam nele. Ele foi um dos primeiros a realizar uma
abordagem da histeria e da sugestão, observando a influência do psiquismo
sobre a neurofrsiologia.
Bemheim era uma sumidade médica muito respeitada, mas ele ousara
visitar Liébeault, que o curara de uma ciática, em 1882. A partir de então
ele decidiu aplicar o método hipnótico em seu trabalho e tornou-se o líder
da escola de Nancy.
Ele via no método de Liébeault uma interessante possibilidade de uti
lizar a sugestão, não de modo experimental, mas para curar: “Tudo está na
sugestão”, isto é, tudo está na relação, na relação entre sujeitos. Os fenôme
nos hipnóticos existem sem sono ou sono provocado. A hipnose coloca em
jogo a sugestibilidade, ela não está ligada de modo algum à histeria, ela é
apenas um procedimento terapêutico que recorre à sugestão verbal: “Defino
sugestão em seu sentido mais amplo: é o ato pelo qual uma ideia é introdu
zida no cérebro e aceita por ele”. Em outras palavras, a palavra encontra sua
eficácia na sugestão que consiste em colocar outra pessoa em certa posição
física ou psíquica. Isso o diferencia de Charcot, para o qual a hipnose estava
ligada à fraqueza psicológica da histérica. O sono artificial possui a mesma
natureza que o sono natural.
Freud começou, ele também, a praticar a sugestão hipnótica a partir do
final do ano 1887:
30
A formação de Freud
Em Paris, eu vira que a hipnose era usada sem nenhuma reserva como método
próprio para criar e para logo suprimir sintomas nos doentes. Depois nos che
gou a notícia de que fora criada a escola de Nancy, uma escola que utilizava
com fins terapêuticos a sugestão com ou sem hipnose, e isto em uma grande
escala e com particular sucesso. Aconteceu de naturalmente, durante os pri
meiros anos de minha atividade médica, e levando em consideração métodos
psicoterapêuticos antes ocasionais e não sistemáticos, de a sugestão hipnótica
se tomar meu principal instrumento de trabalhow.
14 Ibid., p. 29.
15 Ibid., p. 33.
16 Emst von Brücke (1819-1892).
31
Compreender
Era um homem de uma inteligência eminente e que tinha quatorze anos a mais
que eu; nossas relações se estreitaram rapidamente, ele se tomou meu amigo
e me deu seu apoio em circunstâncias difíceis de minha existência. Tínhamos
o hábito de compartilhar todos os nossos centros de interesse científicos. Natu
ralmente, quem mais tinha a ganhar com essa troca era eu. O desenvolvimento
da psicanálise acabou me custando sua amizade. Não foi fácil para mim pagar
esse preço, mas foi algo inevitável17.
32
A formação de Freud
Desde antes de minha partida para Paris, Breuer me fizera algumas observações
sobre um caso de histeria que ele tratara de um modo particular nos anos 1880
a 1882 e que lhe permitira obter percepções profundas sobre a etiologia e a sig
nificação dos sintomas histéricos. [...] Ele leu para mim várias vezes passagens
da história do caso e tive a impressão de que ele fazia avançar a compreensão
da neurose mais do que havia sido feito anteriormente. Decidi em meu foro
íntimo comunicar essas descobertas a Charcot quando eu chegasse a Paris, o
que não deixei de fazer. Mas o mestre não demonstrou nenhum interesse por
minhas primeiras alusões, de tal modo que eu não voltei ao assunto, que eu
próprio terminei abandonando10.
19 Ibid., p. 34-35.
20 Ibid., p. 37.
33
Compreender
Freud conheceu Wilhelm Fliess em 1887, durante uma estada em Viena, por
intermédio de Joseph Breuer, que o aconselhou a assistir às conferências de
neurologia apresentadas por Freud. Embora Fliess fosse um especialista em
doenças da garganta e do nariz, ele era um excêntrico erudito e ambicioso
cuja insaciável curiosidade fez com que se interessasse por outros campos
de pesquisa, misturando, entre outras, prática médica, astrologia, sexolo-
gia. Ele é autor de diversas teorias que curiosamente foram bem acolhidas
no meio médico da época: a teoria da neurose reflexa nasal, vinculando
a mucosa nasal às atividades sexuais, a teoria dos períodos, centrada na
observação dos períodos de menstruação na mulher e, no homem, pela nu-
merologia, a teoria sobre a bissexualidade, que influenciará Freud em suas
primeiras explorações da sexualidade.
Freud, que ficou muito impressionado com esse personagem, iniciou
uma correspondência com Fliess a partir de 24 de novembro de 1887. Essa
34
A formação de Freud
35
Compreender : S
25 S. Freud, Lettres de Freud à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 85, p. 204-205.
26 Ibid., Carta 101, p. 247.
2J Ibid., Carta 42, p. 97.
36
A formação de Freud
você chegue; digo o que carrego no coração, acendo minha luz vacilante na
sua, que é tranqüila, sinto-me bem novamente e depois da sua partida volto
a ter olhos para ver e o que vejo é belo e bom”28.
No ano seguinte, quando suas relações começaram a se degradar, Freud
lhe escreve, em 7 de maio de 1900: "Ninguém substituirá para mim o comér
cio com o amigo que exige um lado particular — talvez feminino —, e vozes
interiores que tenho o hábito de ouvir recomendam-me uma avaliação do
meu trabalho muito mais modesta que a que você proclama"29 30.
Freud coloca Fliess em uma situação transferenciai, fazendo-o desem
penhar, sem saber, o papel do analista. É assim que Freud empreende o que
ele chamará de sua autoanálise. Eis o que ele escreveu a Fliess em 14 de
agosto de 1897:
Após ter ficado aqui repleto de animação, vivo agora um período desagradável.
O principal paciente que me ocupa sou eu mesmo. Minha pequena histeria,
fortemente acentuada pelo trabalho, avançou pouco em sua solução. Outras
coisas ainda estão ocultas. Delas depende em primeiro lugar meu humor. Esta
análise é mais difícil que qualquer outra. É ela também que paralisa a força
psíquica de que preciso para apresentar e comunicar o que foi conquistado até
agora. Acredito, no entanto, que isso deve ser feito e que é uma peça interme
diária necessária em meus trabalhos3".
37
Compreender FREUD
Minha autoanálise ainda permanece interrompida. Entendi por quê. Não posso
analisar a mim mesmo senão com conhecimentos objetivamente adquiridos
(como um estranho), a autoanálise propriamente dita é impossível, caso contrá
rio não haveria doença. Como ainda lido com alguns enigmas em meus casos,
isso também deve necessariamente interromper minha autoanálise33.
A alusão feita por Freud — "como um estranho" (urie ein Fremder) — evi
dencia que ele não pode analisar a si mesmo senão confrontado às desco
bertas que pode fazer. E essa carta confirma toda a tradição da invenção do
sujeito por Messmer e outros, desde o fim do século XVIII: não há análise
sem relação, para retomar a fórmula de Bernheim.
Em seu texto, “L’analyse originelle”34, Octave Mannoni diz que é en
quanto terceiro (essa terceira pessoa que Freud evoca a partir de seus Estu
dos sobre a histeria, e com a qual ele não sabe o que fazer naquele momento),
considerando a si mesmo como doente e analisando a si mesmo que Freud
pôde fazer a sua autoanálise; foi nesse desdobramento que ele conseguiu
fazer sua própria análise. Ele mostra que Freud só conseguiu analisar a si
mesmo e inventar a psicanálise através de uma relação de transferência
com um outro. E essa relação foi bem-sucedida na medida em que ele li
dava com Fliess, médico otorrino, que de qualquer modo não compreendia
nada de Freud e de suas teorias. Fliess era um grande paranoico, imbuído
das teorias biológicas delirantes e ele próprio produto de teorias biológicas
delirantes. Felizmente foi porque ele não compreendeu nada de Freud que
31 “O ar está agora todo preenchido por tal fantasma/Que ninguém sabe como evitar":
citação de Fausto II (ato V, cena 5).
32 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, op. cit. (Carta 270, 7 de agosto de 1901), p. 564.
33 Ibid., Carta 146, p. 357.
34 O. Mannoni, L’analyse originelle, in Un Commencement qui n'en finitpas, Seuil, 1980.
38
A formação de Freud
39
Capítulo III
41
Compreender
42
Os Estudos sobre a histeria
"Comunicação preliminar"
J Os trabalhos médicos ainda eram redigidos em grande parte em latim, assim como as re
ceitas, para que os pacientes não pudessem lê-las. Para as histéricas, a prescrição era a seguinte:
“penis normalis dosim repetatur" (pênis normal, repetir a dose)!
43
Compreender s■
Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando encontrou Freud depois de tentar
diferentes terapias para tratar sua abasia. A cura durará alguns meses, no
final de 1892. Ela perdera seu pai, do qual ela cuidara, sua mãe sofrerá uma
grave operação nos olhos, e uma de suas irmãs, casada, morrera de uma doen
ça cardíaca depois de parir. “Ela parecia inteligente e psiquicamente normal
e suportava os sofrimentos, que restringiam suas relações e seus prazeres,
com aparência serena e, pensei eu, com Ta belle indifference' das histéricas"10.
Ela tinha dores (Schmerzen) e parestesias nas pernas, particularmente na coxa
direita. Freud rapidamente fez o diagnóstico de histeria, renunciando à hipó
tese de uma afecção orgânica ou de neurastenia. Ele observou que a atenção
8 Termo mais fiel ao alemão Erlebnis que sua tradução por “acontecimento", escolhido nes
ta edição.
9 S. Freud, Communication préliminaire (1893a), in Études sur 1'hystérie, op. cit., p. 5.
10 S. Freud, in Études sur 1'hystérie, op. cit., p. 106. Freud retoma aqui em francês a expressão
cara a Charcot.
44
Os Estudos sobre a histeria
11 S. Freud, L'Homme aux rats Journal dune analyse (1909d), 2a ed., PUF, Paris, 1984, p. 31.
45
Compreender ;: s ;
O segredo
46
Os Estudos sobre a histeria
0 corpo psíquico
47
Compreender
0 papel da palavra
que sofre algum dano possui efeito realmente "catártico" somente quando a
reação é realmente adequada, como na vingança. Mas o ser humano encon
tra na palavra um equivalente do ato (die Tat), graças ao qual o afeto pode
ser ab-reagido aproximadamente do mesmo modo. Em outros casos, são as
próprias palavras que constituem o reflexo adequado, por exemplo as quei
xas ou a revelação de um segredo pesado, confidência, isto é, a confissão”1’.
Mesmo que Freud se mantenha ligado à dimensão do ato, que aparece
como uma ação vinculada à impossibilidade de formular pela palavra o
que aconteceu, ele introduz aqui um elemento capital: a palavra (Sprache)
capaz de represar o agir ou de substituí-lo. A palavra possui a capacidade
de levar em conta a diferença nas conseqüências psíquicas ou corporais,
podendo dar nome a esse sofrimento e dando um sentido possível a essa
ofensa (Krünkung também quer dizer ferimento, humilhação). Isso significa
que a palavra é aqui de algum modo uma linguagem projetiva, justiceira,
paranoica. Já estamos, portanto, na emergência dessa dimensão da relação
e da palavra que cura, cujo esboço já aparecia em “O tratamento psíquico”.
Nessa época, Freud ainda está tateando às cegas e ele conseguirá especifi
car sua intuição somente mais tarde.
A mésalliance
49
Compreender
realiza-se então por meio de uma "falsa relação” sobre a qual Freud passa a
desenvolver vários exemplos, antes de especificar:
O desejo atual será vinculado, por constrição associativa18, à minha pessoa, que
evidentemente passou para o primeiro plano das preocupações do doente. Nes
sa mesalliance19 — à qual dou o nome de falsa relação —, o afeto que entra em
jogo é idêntico àquele que outrora incitara minha paciente a repelir um desejo
proibido. A partir do momento que sei isso, posso, a cada vez que minha pessoa
se encontra implicada desse modo, postular a existência de uma transferência,
de uma falsa relação. Coisa estranha, os doentes nesse caso são sempre ingê
nuos (p. 245-246).
Por fim, em 1896 Freud definirá sua concepção de histeria, rompendo total
mente com a da psiquiatria de sua época, em uma carta a Fliess de 6 de de
zembro de 1896: “O acesso histérico não é uma descarga mas sim uma ação.
50
Os Estudos sobre a histeria
20 S. Freud, Lettres a Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 112, p. 270-271 (tradução revista).
21 Ibid., p. 271.
51
Compreender
Essa nova teoria da histeria ainda era determinada pela explicação de uma
sedução real do pai. Mas muito rapidamente Freud percebe que tal "perver
são do pai" não pode ser generalizada e que convém examinar as fantasias
organizadoras de tais cenas.
Essa renúncia à teoria da sedução, que aparecerá em seus textos so
mente mais tarde, já aparece, porém, como uma descoberta que Freud co
munica a Fliess durante sua autoanálise. Isso é atestado por sua carta de 21
de setembro de 1897, em que ele diz renunciar à sua neurotica, isto é, à sua
teoria do trauma ligado a uma sedução sexual efetiva:
52
Os Estudos sobre a histeria
Freud renuncia à sua teoria da sedução real por perceber que nem to
dos os pais são violadores, ao mesmo tempo em que reconhece, no entanto,
que as histéricas não mentem. Ora as mulheres inventam sem mentir ou
simular cenas de sedução que não ocorreram, ora essas cenas ocorreram
e, no entanto, mesmo quando houve trauma, elas não estão na origem da
eclosão de uma neurose. Ele então fará a distinção entre trauma físico e
traumatismo psíquico, já consciente do fato de que não é a realidade do
acontecimento que está em causa e sim sua representação vivida e seu
efeito psíquico. Freud não crê mais em um traumatismo psíquico que seria
a transcrição imediata de um trauma que sofreu efração como "corpo es
tranho" (Fremdkòrper) na psique do sujeito e ele opera então a passagem da
teoria da sedução real para a teoria da fantasia.
53
Compreender
Da histeria à transferência
Freud opera aqui uma mudança radical. Ele pode então dizer que a histeria
se torna o modelo de toda relação com o outro. A histeria não é mais uma
descarga e sim uma mensagem, um apelo dirigido ao Outro. A transferência
não é nada além de um deslocamento, um deslocamento temporal sobre
outros daquilo que se viveu e se quer reencontrar, ou pelo contrário daquilo
que não se suportou e que é repetido para eliminar essa doença da repeti
ção à qual todos somos destinados. A transferência está ligada à estrutura
histérica que visa imputar ao outro, à “terceira pessoa”, a possibilidade de
reencontrar o prazer perdido. Será desse outro, "o outro inesquecível, pré-
histórico, que depois ninguém conseguirá igualar no palco da realidade”,
que Lacan extrairá o “grande Outro”.
54
Capítulo IV
A descoberta do Infantil
1 Itálicos nossos.
2 S. Freud, Sur I'histoire du mouuement psychmaiytique (1914d), Paris, Gallimard, 1991, p. 33.
3 S. Freud, Hois Essais sur la théorie sexuelle (1905d), Paris, Gallimard, 1985.
55
Compreender i . : 1>:
atividade sexual. Essa afirmação não poderia senão escandalizar seus cole
gas e contemporâneos. "Ao meu conhecimento, nenhum autor reconheceu
claramente a regularidade de uma pulsão de gênero (Geschlechtstrieb) du
rante a infância. [...] Uma vez adultos, não sabemos de nada disso por nós
mesmos. Como nossa memória permanece tão negligenciada em relação
às nossas outras atividades psíquicas? Temos razões, no entanto, para crer
que em nenhum outro período da vida ela será mais capaz de registrar e de
reproduzir precisamente os anos de infância”. Freud já anuncia que essas
teorias e essa vida sexual escaparão das "formas repulsivas da repressão”4.
O que será reprimido será o édipo, enquanto as teorias sexuais, por sua vez,
assim como o zeitlos da atemporalidade do inconsciente, agem em nós de
tal modo que estão presentes sem que estejamos presentes para elas.
Longe de ser uma escória, o infantil está na origem, no fundamento da
humanidade futura da criança. Freud compara o infantil à pré-história, isto
é, àquilo que precedeu a entrada na história, mas que, no entanto, marca
profundamente a humanidade. Para Freud, o estado de natureza infantil, o
pré-edipiano, não deve ser rejeitado. Pelo contrário, ele é a própria condi
ção da atividade de pensar e não se separará, aliás, dessa primeira forma,
pois nunca poderemos nos desvincular de nossas origens: as modalidades
de nossos pensamentos serão determinadas pelo modo como conseguimos
elaborar essas teorias sexuais infantis. Em outras palavras, os destinos da
atividade de pensar ou da pulsão de saber (Wisstrieb) são determinados pe
las modalidades segundo as quais a criança pré-edipiana pôde pensar ou
trem, seguindo os limites de sua condição corporal.
As descobertas de Freud sobre o infantil são desenvolvidas em três tex
tos principais: Três ensaios sobre a teoria sexual, escrito em 1905, e acrescido
de notas nas edições seguintes; "As teorias sexuais infantis", em 19085 6, e
Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, em 1910°. Esses textos eviden
ciam a dimensão essencial do infantil na medida em que é a elaboração
fantasmática do modo pelo qual o corpo foi afetado pela mãe.
4 Ibid., p. 97.
5 S. Freud, Les théories sexuelles infantiles (1908c), in La Vie sexuelle, PUF, 1969.
6 S. Freud, Un souvenir d'enfance de Leonard de Vinci (1910c), Paris, Gallimard, 1987.
56
A descoberta do infantil
O título alemão desse texto, Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, foi suces
sivamente traduzido em francês por Ttês ensaios sobre a teoria da sexualida
de (Blanche Reverchon-Jouve) e depois por Três ensaios sobre a teoria sexual
(Philippe Koeppel). Os obras completas mantêm o mesmo título (tradução de
Pierre Cotet e Frank Rexand-Galais). No entanto, seria mais correto tradu
zir Abhandlung por “tratado", pois o termo alemão não possui o sentido de
"ensaio” com a dimensão de aproximação subjetiva que esse termo impli
ca. Com efeito, esse trabalho é uma exposição sistemática e sustentada da
teoria sexual, mesmo que ele a apresente de um modo fenomenológico.
Freud reeditou esse livro cinco vezes com numerosos acréscimos, especial
mente nas edições de 1915 e de 1920. Isso mostra a importância que ele
atribuía a esse livro, que modificava completamente a concepção da se
xualidade compartilhada por seus contemporâneos, inclusive os que se in
teressavam pelos desvios ou pelas formas diversas da sexualidade, ances
trais dos sexólogos contemporâneos, notadamente Havelock Ellis, Richard
von Krafft-Ebing e Albert Moll. Freud afirma que a sexualidade infantil é
uma realidade, enquanto seus contemporâneos não concebiam a sexuali
dade senão a partir da puberdade. Para além da pudicícia dos adultos,
Freud sustenta que se estes últimos não falam de sexualidade com as
crianças, é porque eles não conseguem imaginar que exista uma sexuali
dade infantil. Nos Três ensaios, Freud não se contenta com simples hipóte
ses teóricas, ele desvela o que está oculto e que, no entanto, sempre exis
tiu: a sexualidade infantil.
Até agora, as traduções francesas (assim como a The Standard Edition)
não diferenciavam os termos alemães Sexualtrieb — que Freud emprega pa
ra designar a pulsão sexual adulta ou pulsão sexual que se tomou autôno
ma7 8 — e Geschlechtstrieb, que Freud utiliza em suas obras sobre a sexuali
dade infantil. Esses dois termos eram traduzidos indistintamente por "pul-
são sexual” ou “sexual instinct” em inglês. A primeira edição a diferenciar
os dois tipos de pulsão foi a tradução das obras completas que traduziu
Geschlechtstrieb por “pulsão sexuada”. Contudo, podemos pensar na hipótese
7 S. Freud, Trois Essais sur 1 a théorie sexuelle (1905d), Gallimard, 1985. As páginas indicadas
nas citações remetem a essa edição.
8 S. Freud, ibid., p. 69.
57
Compreender
58
A descoberta do infantil
59
Compreender
ilustra bem o fato de que o substituto do objeto sexual pode ser em si mes
mo pouco sexual (pé, calçado, cabelos, roupas íntimas).
60
A descoberta do infantil
Da sucção ao chupamento
61
Compreender
62
A descoberta do infantil
das pulsões de gênero como das pulsões sexuais em relação a zonas eróge-
nas a partir das pulsões parciais. O par tocar/ver já foi evocado, mas Freud
introduz a crueldade como marca de independência ainda maior em rela
ção à sexualidade. Essa crueldade assume a forma de uma pulsão de do-
mínio, que consiste em fazer sofrer, até mesmo em destruir o outro, ou em
apossar-se de seus objetos de modo clássico, para destruí-los, como primei
ro modo de conhecimento, fase que, na criança, é marcada pela incapacida
de de se compadecer, por falta de identificação com o outro.
Assim como as pulsões sexuais não são originariamente autônomas
das pulsões de autoconservação, a pulsão de saber tampouco é indepen
dente de outras pulsões, notadamente das pulsões parciais, que, no entan
to, são as mais afastadas das pulsões sexuais. A esse título, a pulsão de
saber deriva da pulsão de domínio que quebra o mundo para conhecê-lo, e
ela trabalha com o prazer da visão, ele próprio derivado do tato, como outro
modo de conhecer da criança, à distância, sem o contato do tato.
Além disso, as investigações da criança estão ligadas a interesses egoís
tas e narcisistas, à necessidade urgente de responder ao enigma da origem:
“De onde vêm as crianças?”. Freud desenvolverá o tema três anos depois em
“As teorias sexuais infantis", depois em Uma recordação de infância de Leonardo
da Vinci, em 1910.
12 TYadução mais exata do termo alemão Umgestaltungen, empregado por Freud no título. A
edição das obras completas em francês também traduz por “reconfigurações”.
63
Compreender |R|||
A pulsão de saber
64
A descoberta do infantil
a pulsão de saber: "Na mesma época, enquanto a vida sexual da criança co
nhece seu primeiro florescimento, entre o terceiro e o quinto ano de idade,
também aparecem nela os inícios da atividade atribuída à pulsão de saber
ou pulsão do investigador (Wiss-oder Forschertrieb). A pulsão de saber não
pode ser considerada um dentre os componentes pulsionais elementares,
nem tampouco pode ser subordinada exclusivamente à sexualidade. Sua
ação corresponde, por um lado, a um aspecto sublimado do poder e, por
outro, ela trabalha com a energia do prazer de ver’’14 (p. 123).
Portanto, a pulsão de saber não é autônoma. Ela se articula totalmente
sobre o desenvolvimento e a evolução do corpo, pois é o corpo que conhece.
A pulsão de saber é composta de dois fatores: "um aspecto sublimado do
poder” e “a energia do prazer de ver". O termo pulsão de domínio aparece,
pois, pela primeira vez em 1915, como pulsão de dominação sobre outrem
ou sobre o mundo, mesmo que ela esteja presente implicitamente nas teo
rias sexuais infantis. Trata-se da violência contra o real, o que Freud de
senvolverá mais tarde com o jogo do Fort-Da de seu neto, em “Para além do
princípio do prazer”. A pulsão de saber é em parte sublimação dessa pulsão
de agressão em relação ao real.
14 E não "plaisir scopique", como propõe a tradução: Freud emprega aqui o termo corrente
Schaulust, que não é do vocabulário científico.
15 S. Freud, Les théories sexuelles infantües (1908c), in La Vie sexuelle, PUF, 1969. As páginas
citadas remetem a essa edição.
16 S. Freud, Analyse de la phobie d'un enfant de cinq ans. Le petit Hans (1909b), PUF, 2006
(Quadrige).
65
Compreender
A questão da origem
66
A descoberta do infantil
tt Itálicos nossos.
18 Santo Agostinho, Confessions, I, VI, 9, tradução de P. de Labriolle, Budé, 1969, p. 8.
B7
Compreender \
68
A descoberta do infantil
Freud identifica três teorias sexuais infantis pelas quais a criança passa
e que são diferentes organizações pré-fantasmáticas que têm como obje
tivo dar uma resposta parcial e ao mesmo tempo elaborar a imagem do cor
po — a imagem inconsciente do corpo, segundo a formulação de Françoise
Dolto. Elas se encadeiam logicamente seguindo o desenvolvimento somáti-
co-psíquico do corpo e segundo os componentes da pulsão sexual infantil.
69
Compreender
permite que a criança evite pensar nos orifícios, supondo que poderia haver
buracos no lugar dos orifícios: é isto que está em jogo e que é seu momento
estruturante. Nesse momento de excitação da criança, Freud assinala que
seu corpo está tão repleto que quer penetrar o mundo exterior. “A essa ex
citação estão ligados impulsos que a criança não sabe interpretar, impulsos
obscuros com uma ação violenta: penetrar, quebrar, fazer buracos em todo
lugar” (p. 21). É isso que fazem as crianças que querem olhar o que há em
um automóvel, em um relógio ou no interior de uma boneca. Ulteriormente,
isso pode gerar vocações de mecânico, de relojoeiro ou de cirurgião, isto é,
manipular as entranhas para explorar o que há dentro, até mesmo sua casa
de origem, o corpo materno20.
Para Freud, a teoria hermafrodita está absolutamente de acordo com
sua teoria da pulsão: a pulsão precede, ela constitui os objetos sobre os
quais investiremos. Ela funciona segundo o mesmo modelo que a transfe
rência: a transferência, com efeito, precede os objetos sobre os quais inves
tiremos e ela não pode escolher senão objetos que possuem esse traço de
excitação, de charme (Reiz) que podemos encontrar e que podemos deposi
tar neles. Iremos atribuir uma atração qualquer, um charme ao objeto sobre
o qual investiremos porque não é o objeto que carrega essa atração, somos
nós que a carregamos, é a pulsão que a carrega.
Essa primeira teoria sexual infantil coloca em jogo uma pulsão pró
pria do corpo como motricidade e como “aparelho de músculos”, segundo
a expressão de Freud. Desse aparelho de músculos dependerá a motilidade
psíquica, a agilidade psíquica da criança, sua não inibição — é preciso que a
criança seja agressiva, a criança de três anos não tem nada de anjo. Dessa
motricidade corporal é que dependerá o despertar de sua inteligência, e
será ela que transformará o pulsional em atividade de pensamento pela
motilidade psíquica.
70
A descoberta do infantil
21 Essa expressão, que provém de Porfirio (233-304), foi frequentemente citada por autores
latinos e retomada por Santo Agostinho em suas Conjissões. Freud, por sua vez, refere-se a ela em
vários textos: 0 mal-estar na cultura, “Do rebaixamento generalizado da vida amorosa", e no caso
Dora (Análise fragmentária de uma histeria).
71
Compreender
A terceira teoria sexual infantil é a "teoria sádica do coito’’. É uma teoria que
Freud quis verificar a qualquer preço em sua preocupação de marcar sua
separação em relação a Jung, que se preocupava somente com o presente do
paciente22, sem levar em consideração a sexualidade infantil, na época da
análise do Homem dos lobos. Com efeito, este último relatava que quando
era criança ele assistira a três coitos entre seus pais, enquanto ele fazia a
sesta no quarto deles, declaração que não parecia pensável pois eles viviam
em um grande castelo e sobre a qual, aliás, ele voltou depois.
A teoria sádica do coito demonstra a impossibilidade ainda existente
de elaborar a diferença entre os sexos, a diferença homem/mulher. Ela dife
rencia apenas entre ativo e passivo, mas de modo extraposto e não mais in-
trapsíquico. O que aparece como ativo/passivo é primeiramente experimen
tado subjetivamente como forte/fraco, agressor/agredido, única maneira de
pensar a diferença entre masculino e feminino, homem e mulher. É uma
teoria que deixa de lado o par masculino/feminino e a diferença homem/
mulher. Eu sou forte, portanto sou ativo, portanto sou masculino; sou fraco,
portanto sou passivo, portanto sou feminino.
Isso vai ao encontro da bissexualidade psíquica, a saber, que o forte, o
fraco, o ativo e o passivo não procedem do dimorfismo sexual, mas não são
mais que qualidades psíquicas que existem em todos os humanos. Pode-se
encontrar aqui a reivindicação da unicidade do corpo, portanto a negação
das diferenças sexuais e da sexualidade. Não se trata de afirmar uma posi
ção identitária absolutamente conforme ao que Freud anuncia nas prelimi
nares desse texto (Geschlechtstrieb). Trata-se de uma pulsão identitária e não
de uma pulsão sexual.
Do segredo à separação
Para tentar responder à questão "de onde vêm as crianças?’’, a criança orga
nizará essas teorias no maior segredo, mobilizando sua reflexão em provei-
22 Partir da neurose infantil é uma atitude deliberada de Freud, em oposição a Jung, para
afirmar sua posição, a do analista que privilegiará a neurose infantil como organizadora da
neurose adulta.
72
A descoberta do infantil
23 “Rei e tirano. Eu também terei meus pensamentos de trás da cabeça" (Pensamento 650),
in Pensées, ed. Ph. Sellier, 1991 (Classiques Gamier).
24 O. Mannoni, "Je sais bien, mais quand même'' (1963), in Clefs pour Vlmagimire ou i'Autre
Scène, Seuil, 1969, p. 9-33.
73
Compreender .
25 S. Freud, Un souuenir de Leonard de Vinci (1910c), Paris, Gallimard, 1987. Todas as páginas
citadas remetem a essa edição.
74
A descoberta do infantil
75
Compreender
76
A descoberta do infantil
77
Compreender .
21 Ibid., p. 215.
78
A descoberta do infantil
mento do outro, substituir o amor pela força. Desse modo, ele se situa no
registro forte/fraco, o da terceira das teorias sexuais infantis.
No paranoico, o pensamento visa controlar o pensamento do outro, co
nhecer seus pensamentos e dirigi-los. Estamos aqui no registro da segunda
das teorias sexuais infantis, que corresponde ao estado de mania, uma ati
vidade de pensar para dois corpos, de tal modo que o outro não me escape.
Dois textos da Antiguidade ilustram esses componentes da sexualida
de infantil. Em primeiro lugar, As Confissões, em que Santo Agostinho des
creve sutilmente, ao seu modo, o procedimento que consiste em “esconju-
rar a volta de acontecimentos temidos": “Assim, o que há de inocente na
criança é a fraqueza de seus órgãos. Mas não sua alma. Uma criança que eu
vi e que observei era ciumenta. Ela ainda não falava. Ela olhava fixamente,
pálida e amarga, seu irmão de leite. Esse é um fato conhecido. As mães e
amas de leite pretendem esconjurar esse mal não sei com que práticas.
Chamaremos também de inocência, quando a fonte do leite materno é tão
abundante, não tolerar perto de si um irmão que tem tanta necessidade e
só com esse alimento para sustento da vida”26. Trata-se certamente de uma
lembrança pessoal, ele próprio talvez fosse a criança que olhava e tentava
afastar o outro, a saber, seu irmão Alípio.
Por fim, no Banquete, Platão coloca em cena diversos oradores, parti
cularmente Aristófanes, que, em seu famoso discurso sobre o amor, expõe
o mito do hermafrodita, tal como o transmitiram as narrativas homéricas,
para mostrar que cada metade separada pela vontade dos deuses procura
incansavelmente sua outra metade, homem ou mulher. Ele conclui: “Eis a
razão para isso: nossa antiga natureza era a que já contei e éramos feitos
de uma única peça (oloi)! Também ao amor e à busca dessa natureza de
uma única peça (olou) se dá o nome de amor”20. O adjetivo grego olos, que
não possui equivalente em francês, significa por inteiro, completo, o todo.
Vemos, pois, nessas frases que o amor é uma mistura de aspiração (epithu-
mia) de formar um todo com o outro e de desejo na direção da falta (penía)
desse “todo”. Aristófanes termina com as seguintes palavras: “O meio de
nossa espécie chegar à felicidade seria, para nós, o de dar ao amor seu aca
bamento, isto é, que cada um tivesse comércio com um amado que fosse
propriamente o seu; o que é, para cada um, retomar à sua antiga natureza. 28 29
79
Compreender ||H|D
30 Ibid., 193c.
80
Capítulo V
81
Compreender
último dia de minha estada aqui. [...] Jerusalém está destruída, mas mi
nha pequena Martha e eu vivemos e somos felizes. [...] E os historiadores
dirão que se Jerusalém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos de
saparecido como tantos outros povos antes e depois de nós. Foi somente
após a destruição do templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde
ser construído”2.
O que surpreendia Freud naquele momento era que tinha sido neces
sária a passagem pela destruição do edifício feito de pedras para que o tem
plo invisível do judaísmo pudesse existir, em um tempo desterritorializado
em que a história e o sujeito tinham de ser construídos por não haver ini
cialmente um lugar no qual se estaria sob domínio. Esse “invisível edifício”
espiritual separa o homem da terra e do cosmo grego no qual ele não era
senão um microcosmo, um fragmento do universo e do Todo, fazendo-o en
trar em uma nova dimensão temporal: a memória (Erirmerung) e a história.
O edifício invisível do judaísmo abre, pois, o homem para a temporalidade
e convida-o a se lembrar (Zafehor) e à memória. Como corolário dessa intui
ção, Freud compreende que é preciso separar-se da terra para ter acesso a
uma posição que não seja mais a de uma sujeição: "Ouça Israel” representa
precisamente uma interpelação por um deus ausente, fora do mundo, que,
ao colocar um "eu” e um “tu” distintos, funda a subjetivação. O sujeito de
nossas sociedades deve escrever sua história, pois ele não tem um lugar
garantido no universo.
Freud evidencia desse modo que o fator temporal prevalece sobre o
elemento espacial, tanto no funcionamento da sociedade como na constru
ção do indivíduo. O fato de que uma religião não se enraíze na terra como
era o caso do paganismo e das religiões da antiguidade grego-romana, mas
sim na memória e na celebração da memória da história, corresponde para
Freud à metáfora da psique, pois será a psique que organizará o corpo, um
corpo marcado, através da construção das diferentes etapas do corpo, pela
história de sua elaboração. Ora, a história da elaboração de cada corpo é
absolutamente singular e não se parece com nenhuma outra. Ela é marca
da por angústias, por abandonos das separações exigíveis que conduzem
à capacidade de entrar em relação com outrem ao mesmo tempo em que
entra no relativo, pois não há relação senão no relativo, e só há relativo na
medida em que há relação.
82
Uma intuição freudiana: a importância da temporalídade
83
Compreender
deixar este lugar”, lugar que lhe havia sido imposto por seu pai. Essa análise
evidencia precisamente que palavras podem fixar em uma residência, em
um lugar geográfico que impede o sujeito de se desenvolver em sua história.
Nos Estudos sobre a histeria, Freud se afasta definitivamente da psiquiatria
clássica ao reduzir a histeria à intensificação de uma emoção. Quando es
creve: “A histérica sofre principalmente de reminiscências’’4, Freud inaugura
com essa simples observação uma nova concepção do homem: o homem é
um sujeito em sofrimento, sofrimento ligado à sua memória e à sua história,
sofrimento de subjetivação ligado à sua memória não historicizada.
O homem tem, pois, uma relação privilegiada com sua própria histó
ria. Mas essa história é fonte de sofrimento na medida em que ela não é
senão reminiscência, sem ser historicizada. Quer se trate da memória sub
jetiva quer da escrita e da relativização dessa memória, a língua francesa
exprime isso com um único termo: “história”, o que cria uma constante
ambigüidade, enquanto o alemão dispõe de dois termos diferentes: Historie
e Geschichte, assim como o latim: res gestae et historia rerum gestarum. Freud
prossegue com esta observação: “Nossas observações provam que, dentre
as lembranças (Erinnerungen), aquelas que provocaram o aparecimento de
fenômenos histéricos conservaram um extraordinário frescor e, durante
muito tempo, seu pleno valor emocional. No entanto, é preciso salientar,
como um fato notável, que essas lembranças, contrariamente a muitas ou
tras, não ficam à disposição do sujeito’’5. Isso coloca Freud atrás da pista de
um inconsciente que é zeitlos, atemporal, isto é, que está em um tempo não
vetorizado historicamente. E, a partir desse texto, ele pressente o papel da
repetição (Wiederholung) e da constrição que ela introduz, sem poder ainda
levá-la realmente em consideração e sem poder apreender seus efeitos.
Do mesmo modo, na saída do complexo de Édipo, tal como Freud a
proporá posteriormente, o que está em jogo para a criança em relação ao
investimento e à identificação com seus pais é saber que lugar ela poderá
ocupar: um lugar geográfico ou um lugar psíquico?. Em vez de uma atitu
de geocêntrica que consiste em tentar ocupar o lugar do pai ou da mãe,
aninhando-se no lugar de outrem, a passagem para o tempo como fator
essencial de identificação e de saída do édipo é o momento em que ela
pode pensar que é capaz de criar seu próprio lugar: “quando eu for grande,
84
Uma intuição freudiana: a importância da temporalidade
85
Compreender
"compacta maioria” segundo a expressão que ele toma de Henrik Ibsen (em O
inimigo do povo) e que ele cita em uma carta de 6 de maio de 1926, dirigida ao
B’nai B’rith (ao qual ele aderira em 1895): "O fato de que vocês sejam judeus
não poderia senão agradar-me, pois eu próprio era judeu e negar isso sempre
me pareceu ser não apenas indigno, mas também francamente insensato.
O que me vinculava ao judaísmo era não apenas a fé — devo confessar —
nem mesmo o orgulho nacional, pois sempre fui descrente, fui criado sem
religião, mas não sem o respeito daquilo que se chama de exigências ‘éticas’
da civilização humana. Cada vez que experimentei sentimentos de exalta
ção nacional esforcei-me por repeli-los como funestos e injustos, advertido e
assustado pelo exemplo dos povos dentre os quais vivemos nós, judeus. Mas
ainda restavam suficientes coisas capazes de tomar irresistível a atração do
judaísmo e dos judeus, muitas obscuras forças emocionais — mais podero
sas quanto menos puderem ser expressas em palavras —, assim como a cla
ra consciência de uma identidade interior, o mistério de uma mesma construção
psíquica. A isso logo se acrescentou outro fato: compreendi que era somente
à minha natureza de judeu que eu devia as duas qualidades que haviam se
tornado indispensáveis para mim em minha difícil existência. Como eu era
judeu, fui libertado de muitos preconceitos que limitam nos outros o em
prego de sua inteligência; enquanto judeu eu estava pronto a passar para a
oposição e a renunciar a me entender com a ‘compacta maioria’”7.
O que Freud retém é menos o pertencimento a uma comunidade do
que o fato de se referir a uma forma de temporalidade psíquica que permite
construir sua própria história, construir a si mesmo como sujeito.
Freud não descobriu a transferência, ele constatou sua presença, sua ação
e seus efeitos na vida de cada pessoa. Mas serão necessários anos, depois
de definir o papel da “expectativa crente” que prefigura sua abordagem da
transferência e depois de observar as relações entre histeria e transferên
cia, para poder evidenciar sua função capital de dependência em relação
ao outro, até mesmo de alienação ao outro. A partir daí, no âmbito da cura
psicanalítica, ele poderá por fim definir a posição psíquica exigível do ana
lista, permitindo assim acabar com a transferência na análise, chegar ao
“declínio da transferência”. Desse modo, a transferência não é de modo al
gum valorizada pela psicanálise. Mas em um registro histérico há uma len
ta hesitação, uma alternância permanente, permutativa, entre o registro
identificatório e o registro de investimento.
A teoria que Freud inventou não é a da transferência e sim a da "neu
rose de transferência”, que intervém de modo determinante no estabeleci
mento e na obtenção da cura. Durante mais de vinte anos, entre 1890 e 1914,
foi através de um caminho complexo constituído por descobertas, esqueci
mentos e confusões que Freud conseguiu evoluir em sua compreensão da
transferência e elaborar o necessário declínio da transferência analítica.
87
Compreender
88
Da transferência ao seu declínio
89
Compreender
90
Da transferência ao seu declínio
anos mais tarde, Charcot, depois de ter visto os efeitos de sua palavra que
era sempre uma palavra de diagnóstico sem que ele se dirigisse à pessoa,
perceberá o efeito dessa palavra e intitulará, de modo surpreendente, seu
último texto de "A fé que cura”.
Freud prossegue indicando que na hipnose “se encontra então a atitude
da criança em relação aos pais amados”. E essa é precisamente uma das
razões pelas quais ele rapidamente renunciará à hipnose, consciente de que
o recurso à hipnose volta a colocar em uma situação de dependência “em
relação aos pais amados”. Essa atitude de abandono da criança em relação
aos pais se encontra no masoquismo que Freud define ulteriormente, em
1924: “O masoquista quer ser tratado como uma pequena criança angustia
da e dependente”8. A atitude da expectativa crente, ela também, pode ser
uma expectativa alienante, na medida em que ela expressa a necessidade
de contar com o outro e ela pode conduzir a não querer sair de uma posi
ção de dependência infantil.
Histeria e transferência
91
Compreender
92
Da transferência ao seu declínio
cura do “Homem dos ratos” e em que ele consigna as primeiras sessões, ele
assinala um episódio eloqüente (não publicado no texto das Cinco psicanáli
ses ): "Em um dado momento, quando eu fiz a observação de que eu não sou
cruel, ele reagiu chamando-me de 'Meu capitão’”14. Esse incidente ilustra,
sem que Freud perceba isso realmente na ocasião, que não foi o doutor Freud
que ele foi encontrar. Ele foi encontrar uma testemunha que ele pudesse, na
transferência, colocar no lugar de onde ele, o homem dos ratos, pode ser ou
vido: essa "terceira pessoa” já entrevista nos Estudos sobre a histeria.
Três anos depois, a respeito da análise de Serguei Pankejeff, que se tor
nará O homem dos lobos, Freud escreveu a Ferenczi: “Um jovem russo rico que
trato por causa de uma paixão amorosa compulsiva me confessou, depois
da primeira sessão, as seguintes transferências: judeu escroque, ele gosta
ria de me pegar por trás e cagar na minha cabeça. Aos seis anos de idade,
o primeiro sintoma manifesto consistia em injúrias blasfematórias contra
Deus: porco, cão etc.”15. Pode-se enfatizar que Freud não emprega o termo
“palavra” e sim "transferência” para evocar essa violenta interpelação por
parte do homem dos ratos. Ele pressente então que essas falas injuriosas
emergem do infantil de Serguei que, sem ter consciência disso, coloca Freud
em um lugar paterno, esse pai a quem Serguei quer fazer reviver o coito a
tergo que ele fez sua esposa viver.
A "falsa relação” que aparece na transferência é, pois, uma "mesalliance”
essencialmente temporal. O que surge como vontade do analisando de im
plicar o analista não é na verdade senão o afeto que ressurge de um passado
proibido e inconfessável. Freud tem então a sensação de que é preciso sepa
rar a pessoa do médico do investimento que é feito pelo paciente, introdu
zindo o que ele chama de “terceira pessoa”. A análise está aí para represen
tar um terceiro ausente no qual o paciente confia.
Em uma carta a Jung de 6 de dezembro de 1906, Freud volta a tratar
desse ponto:
14 S. Freud, L’Homme aux rats. Journal d’une analyse, PUF, 1974, p. 53.
15 S. Freud-S. Ferenczi, Correspondance, tomo I, Calmann-Lévy, 2000, p. 148-149.
93
Compreender fff||jl|
Deslocamento de objeto
94
Da transferência ao seu declínio
18 Ibid., p. 57.
19 Op. cit.
20 S. Freud, Extrait de l’histoire d'une rrévrose infantile, em Cinq psychanalyses, p. 328-329.
95
Compreender j'i
Repetição do passado
Resistência à rememoração
96
Da transferência ao seu declínio
De onde provém o fato de que a transferência se preste tão bem ao jogo da re
sistência? De início, a resposta pode parecer fácil; está claro que a admissão de
um desejo proibido torna-se particularmente incômoda quando deve ser feita à
própria pessoa que é objeto desse desejo. Tãl obrigação faz nascerem situações
que mal podem ser concebidas na vida real. No entanto, é justamente aí que o
paciente procura chegar quando faz coincidirem (zusammen/allen) o médico e o
objeto de suas moções efetivas22.
TUdo aquilo que, emanado das fontes do reprimido, já impregna toda a sua per
sonalidade: suas inibições, suas atitudes inadequadas, seus traços de caráter
patológicos. Ele também repete, durante o tratamento, todos os seus sintomas.
Podemos agora observar que, ao evidenciar essa constrição de repetir, não des
cobrimos nenhum fato novo, mas simplesmente adquirimos uma concepção
mais coerente do estado das coisas. Constatamos claramente que o estado
mórbido do analisado não poderia se interromper já no começo do tratamento
e que devemos tratar sua doença não como um evento do passado e sim como
uma força atualmente em ação. Esse estado mórbido é trazido, fragmento por
fragmento, para o campo de ação do tratamento e enquanto o paciente o ex
perimentar como real e atual, nossa tarefa consistirá principalmente na re
condução ao passado23.
97
Compreender
O analista não deve se enganar a respeito das demandas de amor por parte
do analisando, que não são amores do presente e sim a possibilidade de
reencontrar velhos amores passados. O que o analisando vive como real e
atual nessa dimensão de deslocamento de objeto, de relação de objeto com
o analista, deve ser reconduzido ao passado pelo analista, graças ao traba
lho de rememoração.
A rememoração é o contrário da constrição de repetição que revive o
passado como se fosse presente, sob a forma de “reminiscências" ou de “re
presentações”, isto é, de lembranças atemporais. Rememorar é passar da re-
miniscência para a revivescência, é remeter o passado para o passado, avaliar
as cenas do passado por meio de um trabalho psíquico sobre o seu próprio
passado. É preciso, pois, sair do deslocamento de objeto, deixar a transferên
cia espacial de uma relação de objeto com objeto desejada pelo analisando,
para restabelecer o analista no interior de um eixo temporal. Se a transferên
cia for vetorizada na direção do passado, ela também será temporal e desse
modo tomará possível o ressurgimento de experiências passadas.
Com isso, pode-se dizer que tampouco se trata de uma relação de obje
to com o analista, mas sim de tornar o analista o suporte de suas represen
tações, de deslocar para o analista as representações do que foi vivido no
passado e que organizou a neurose. Em sua determinação inicial, a transfe
rência não é um amor de transferência, um amor pelo analista, e sim a pos
sibilidade, pela negativação de singularidades idiossincrásicas do analista,
de tomá-lo o suporte de cenas passadas. Se for seguido esse eixo temporal,
pode-se perceber que ele pontua diferentes construções teóricas de Freud,
todas elas referentes à elaboração do objeto.
A rememoração evidencia o que ocorreu. Não se está, portanto, na his
tória histórica e sim na história psíquica, na história de uma alma, a histó
ria tal como ela ressurge pela rememoração e por seus efeitos na vida sob
a forma de repetição. É esse conhecimento que pode remeter o paciente à
sua própria história em uma lógica de implicação — e não mais de impu-
98
Da transferência ao seu declínio
tação — na qual ele se toma parte interessada de seu passado. Para retomar
a frase de Dostoiévski: "O que nos acontece se parece conosco”.
99
Compreender
100
Da transferência ao seu declínio
A neurose de transferência
101
Compreender
102
Da transferência ao seu declínio
com um objeto externo, quer seja um ideal, um grupo e tudo o que o impede
de ser sujeito. Ele insiste na necessidade de sair dessa doença humana que
é o horror da individuação e da separação para ter acesso à subjetivação: a
corpos separados, pensamentos separados.
Um pouco mais tarde, em sua XXXI conferência33, intitulada “A decom
posição da personalidade psíquica”, Freud retoma essa ideia nos seguin
tes termos: “A intenção [da psicanálise] é, com efeito, a de fortalecer o Eu,
tomá-lo mais independente do Supereu, ampliar seu campo de percepção
e consolidar sua organização de tal modo que ele possa se apropriar de
novos pedaços do Isso. Onde havia Isso, deve advir mais Eu. É um trabalho
de cultura, um pouco como a secagem do Zuiderzee", o que confirma uma
formulação já presente em A questão da análise profana: “Queremos restaurar
o Eu, libertá-lo de seus entraves, restituir o seu controle sobre o Isso, perdido
depois de suas primeiras repressões”34.
Sair da transferência é precisamente sair do indiviso. É isso que permi
te produzir o íntimo e o sujeito, um sujeito diferenciado do grupo, capaz de
contar consigo mesmo e, portanto, doravante com o outro.
103
Capítulo VII
A constrição de repetição
105
Compreender ítlfe
0 papel da repetição
Já nos Três ensaios, Freud insistia no sentido da repetição que ainda era mis
terioso para ele alguns anos antes, quando escrevia: "A histérica sofre prin
cipalmente de reminiscências1'. Essa intuição pré-analítica já apresentava
uma nova concepção do sujeito: o ser humano possui uma relação privile
giada com sua história que é fonte de sofrimento na medida em que ela é
apenas memória e na medida em que ela não é historicizada.
Na quinta seção do terceiro dos Ensaios, Freud volta a tratar da im
portância da repetição. Uma repetição inerente ao funcionamento psíquico,
uma repetição que visa reencontrar uma primeira experiência de satisfa
ção. “Quando a primeira satisfação sexual ainda estava ligada à ingestão
de alimentos, a pulsão sexual tinha no seio materno um objeto sexual fora
do próprio corpo; ela não o perdeu senão mais tarde, talvez precisamente
na época em que se tomou possível para a criança formar a representação
global da pessoa à qual pertencia o órgão que lhe proporcionava satisfação.
Como regra geral, a pulsão sexual torna-se autoerótica e somente depois
que o tempo de latência passa é que a relação original se restabelece.’’2
Freud faz aqui uma observação essencial: não pode haver repetição
senão sobre o fundo de uma primeira experiência de satisfação. E ele con
clui com um comentário que fundamentará toda a sua pesquisa sobre a
repetição: "Die Objefet/indung ist eigentlich eine Wiederfindung"3. Mesmo que os
tradutores franceses tenham o costume de traduzir essa fórmula por “a
descoberta do objeto não é na verdade senão uma redescoberta”, é mais
exato traduzi-la assim: “O achado do objeto não é na verdade senão um
reachado”, isto é, uma repetição do achado inicial. Em outras palavras, na
busca do objeto, trata-se essencialmente de “restabelecer a felicidade per
dida” (das verlorene Glücfe also udederherstellen), de restaurá-la. Restabelecer a
felicidade perdida é reencontrar a relação com a mãe que nunca se deixa
para trás, que, no limite, não se pode deixar, e da qual se tende a reencon
trar traços em todos os objetos substitutivos de nossa existência. Nunca
se deixa, pois, verdadeiramente a mãe, mesmo que a contragosto. É assim
que a sexualidade infantil não desaparece, ela permanece o modelo de toda
pulsão sexual, na medida em que houve experiência de satisfação: “Essa
106
A constrição de repetição
satisfação deve ter sido vivida anteriormente para deixar atrás de si a ne
cessidade de sua repetição”1.
4 Ibid., p. 165.
5 Le motif du choix des coffrets (1913f), in LTnquiétante étrangeté et autres essais, Gallimard,
1985.
6 S. Freud, Totem et tabou, III, 3, Gallimard, 1993, p. 205.
107
Compreender ;
é construído sobre a raiz Heim (casa), e Un, partícula negativa, que remete
à censura ou à repressão dessa primeira relação familiar que se tomou,
em um segundo momento, insuportável, angustiante. Em outras palavras, a
mãe que é nossa primeira casa é aquela que, posteriormente, no encontro
com a cena da realidade, se tornará inquietante. O incesto, em sua dimen
são psíquica, representa esse risco de dissolução subjetiva no outro. Freud
termina esse texto evocando as figuras de três mulheres, as únicas três que
o ser humano pode conhecer em sua vida: "a genitora, a companheira e a
destruidora” (p. 81). As três formas pelas quais passa para ele a imagem da
mãe ao longo de sua vida são, pois, a própria mãe, a amante que se escolhe
à imagem da primeira, a Terra-mãe que acolhe novamente o homem em
seu colo. Tudo ocorre então como se a constrição de repetição agisse rniste-
riosamente desde o berço até o túmulo, impedindo o homem de escapar da
mãe e do materno, fonte primeira desse “familiar que se tomou estranho".
Curioso modo de assimilar a tumba à mãe pelo viés da Terra-mãe...
A constrição de repetição:
"Rememorar, repetir, perlaborar"
108
A constrição de repetição
109
Compreender i
o que deveria permanecer secreto e sai da sombra” (p. 222), enquanto Heim
lich "evolui na direção de uma ambivalência e acaba por coincidir com seu
contrário Unheimlich” (p. 223). Em seguida, passa em revista estudos literá
rios sobre o duplo, garantia contra “o declínio (der Untergang) do eu que se
toma inquietante sinal precursor da morte” (p. 237), ou o fator de repetição
não intencional. Der Untergang remete à imagem do declínio do sol que não
desaparece, mas muda de posição. Aliás, é por isso que o texto de 1924, “O
desaparecimento do complexo de Édipo”, publicado em A vida sexual, seria
mais corretamente traduzido por “O declínio do complexo de Édipo”, pois o
complexo de Édipo não desaparece, ele é reprimido. Ele muda de posição ao
se tomar inconsciente, por conseqüência da repressão.
Em um belo parágrafo autobiográfico, Freud expõe a conjunção entre
a constrição de repetição e a inquietante estranheza: "Um dia eu flanava
em uma tarde quente em ruas desconhecidas e desertas de uma pequena
cidade da Itália e caí por acaso em uma zona sobre cujo caráter eu não
pude ficar em dúvida durante muito tempo. Nas janelas das casinhas po
diam-se ver mulheres maquiadas. E eu me apressei em deixar a ruela no
primeiro cruzamento. Mas depois de vaguear durante um tempo, sem guia,
encontrei-me repentinamente na mesma rua". Essa experiência se repete
uma terceira vez, o que não pode senão impressionar Freud, que tem uma
relação muito supersticiosa com os números, particularmente o número 3.
“E fui tomado por um sentimento que não posso qualificar senão de inquie
tante estranheza”. Ele conclui: “O retomo não intencional provoca o mesmo
sentimento de angústia e de inquietante estranheza, conjunção, neste caso,
de um sentimento de angústia e da confrontação exterior com a mãe. A
constrição de repetição está ligada, pois, ao não intencional e, inelutavel-
mente, nos confronta com o angustiante prazer de reencontrar o elemento
materno" (p. 239-240). Em outros termos, por trás da mulher fálica, a pros
tituta, dissimula-se sempre a mãe cuja dissolução subjetiva tememos após
nosso encontro com ela.
A partir dessa experiência angustiante que viveu na Itália, Freud escre
ve: “O fator de repetição do mesmo talvez não seja reconhecido por todos
como fonte do sentimento de inquietante estranheza" (p. 239). Freud passa
então a mostrar o vínculo entre a constrição de repetição e a inquietante es
tranheza: “Segundo minhas observações, é indubitável que sob certas con
dições, e combinado com circunstâncias precisas, esse fator de repetição
provoca um sentimento tal que lembra igualmente a angústia (Hil/losigfeeit)
110
A constrição de repetição
Esse texto foi redigido a partir de março de 1919, ao mesmo tempo em que
“A inquietante estranheza", mas Freud o terminou somente em maio de
1920. Curiosamente, a partir da constrição de repetição que Freud evoca no
capítulo II, ao descrever o jogo Fort-Da ao qual se dedicava seu neto, ele in
troduzirá a controversa noção de “pulsão de morte”, alguns meses depois,
no capítulo VI.
Freud observara seu neto, Ernst Wolfgang, filho de Sophie Halberstadt,
enquanto ele brincava em seu berço. Esse jogo, que se tomou famoso sob o
nome de Fort-Da, é marcado por dois tempos, ambos tratando da passagem
de uma posição passiva para uma posição ativa em dois modos. Durante as
ausências da mãe, o pequeno Ernst não chorava, mas pegava todos os seus
brinquedos para jogá-los longe, pronunciando o fonema O O O , que remete
a Fort ("longe”). Freud observou primeiramente que Emst joga para longe de
si todos seus brinquedos presentes para afastá-los de si, isso em um modo
ativo que visa superar a ausência da mãe. Ao quebrar seus brinquedos e
111
Compreender
9 S. Freud, Au-delà du príncipe de plaisir (1920g), in Vlnquiétante étrangeté de Vêtre, op. cit.,
A constrição de repetição
A pulsão de morte
É no capítulo VI que aparece pela primeira vez a “pulsão de morte". Ora, em
bora Freud sempre tenha negado que um “elemento subjetivo" tenha podido
desempenhar um papel na redação definitiva desse ensaio, o estudo dos ma
nuscritos e das edições do texto nos faz constatar que esse longo capítulo na
verdade foi escrito apenas em maio de 1920, após a morte de sua filha Sofia,
no dia 25 de janeiro de 1920, levada pela gripe espanhola, e depois da de An
ton von Freund, seu amigo e benfeitor que mantinha a editora psicanalítica'8
e que Freud acompanhou no fim de sua vida em Viena, em janeiro de 1920.
Freud oporá dois tipos de pulsões: as pulsões do eu que compelem para
a morte e as pulsões sexuais que compelem para a vida (p. 90). Ao estabele
cer essa oposição, Freud parece esquecer todo o trabalho do capítulo II, no
qual ele mostra que a elaboração psíquica visa à separação e à autonomia
do eu, sem compelir para a morte. Nesse capítulo, Freud até mesmo qualifi
ca a constrição de repetição de “demoníaca": “O que a psicanálise revela nos
fenômenos de transferência nos neuróticos pode ser encontrado na vida de
certas pessoas não neuróticas. Estas dão a impressão de um destino que as
persegue, de uma orientação demoníaca de sua existência, e a psicanálise
logo de início sustentou que tal destino era em grande parte preparado pelo 10
10 Sobre a crítica genética e o estudo dos manuscritos, ver llse Grubrich-Símitis, Freud:
retour aux manuscrits. Faire parler les documents muets, PUF, 1997, p. 227-239.
113
Compreender
11 Citação de Schiller.
A constrição de repetição
Quando eu tinha seis anos de idade e recebia de minha mãe os primeiros ensi
namentos, eu supostamente deveria acreditar que éramos feitos de terra e de
veríamos, por conseguinte, voltar à terra. Mas isso não me agradava e coloquei
a doutrina em dúvida. Então minha mãe esfregou as mãos, palma contra palma,
exatamente como se ela fizesse Knõdels, salvo pelo fato de que não havia nenhu
ma massa entre suas mãos, e ela me mostrou as pequenas películas enegreci
das de epiderme que se soltam sob o efeito da fricção como uma amostra dessa
terra de que somos feitos. Meu espanto diante dessa demonstração ad oculos foi
ilimitado e eu me submeti àquilo que mais tarde eu deveria ouvir expresso com
as seguintes palavras: Você é devedor de uma morte à natureza13.
115
Compreender
("você deve uma morte a Deus", I, ato V, 1). Freud a retoma em uma carta a Fliess. Cf. OCR FIV,
nota c., p. 243.
14 Résultuts, idées, problèmes II, PUF, 1985, p. 288.
116
A constrição de repetição
117
Capítulo VIII
0 masoquismo
Essa reflexão que Baudelaire faz em seus Diários íntimos parece indicar que
o masoquismo representa uma solução. Essa é precisamente a questão
que Freud coloca em diversos textos. Em que o masoquismo é uma '‘solu
ção’’ para certas questões? Freud procurará especificar isso diferencian
do os masoquismos primário, secundário, moral, erógeno, feminino... Mas
pode-se tentar extrair um sentido geral do masoquismo, que poderia ser
chamado de ordinário.
1 Charles Baudelaire, Joumaux intimes, in CEuures complètes, tome I, Gallimard, 1966, p. 700
(La Pléiade).
2 S. Freud, Un enfant est battu (1919e), in OCP.F XV, PUF, 1996.
119
Compreender
mas que é mais exato traduzir por “Uma criança apanha’’: “Ein Kind wird
geschlagen" seria até mesmo com um sentido incoativo “Uma criança está
sendo castigada”.
Esse texto riquíssimo é alimentado pela experiência clínica que Freud
adquiriu progressivamente e por tudo o que ele descobriu sobre a impor
tância da sexualidade infantil nos Três ensaios. Além disso, esse texto possui
uma importância capital, pois contribui para salientar o papel ou o lugar da
sexualidade infantil, portanto pré-edipiana, aquém do complexo de Édipo,
mas também além, nessa permanência que ela desempenha ao lado da
escolha do objeto, assim como do lado das pulsões parciais.
Nesse texto que aborda o masoquismo, Freud se baseia na análise de
seis diferentes casos. Mas pode-se dizer que ele diversificou sob vários casos
o de sua filha Anna, que começara uma análise com seu pai em 1918. Anna
era muito ligada ao seu pai, que mantinha em relação a ela uma posição
de pai "uxorioso”, isto é, ele se considerava de algum modo o esposo de sua
filha, o que é ilustrado pela vigilância imperiosa demonstrada por Freud a
respeito de todas as escolhas da filha, afastando até mesmo pretendentes
como Ernest Jones.
Freud constatou a importância e a frequência das fantasias que surgem
na vida diuma e nos sonhos em todas as crianças, notadamente as fantasias
de fustigação. Mesmo que, neste caso, Freud se baseie sobretudo em casos fe
mininos, ele emprega o termo neutro das Kind, portanto indeterminado quan
to ao sexo, para enfatizar a indeterminação absoluta da criança na fantasia.
120
0 masoquismo
ao prazer proveniente do pai. Este ponto merece ser salientado porque esta
segunda fase é totalmente inconsciente, nunca foi vivida, e ela organizará
essa forma de relação com o pai. Freud desenvolverá novamente essa di
mensão em O homem Moisés e a religião monoteísta, ampliando-a para a cultu
ra: "A psicologia do indivíduo nos ensinou de onde provém essa necessidade
da massa. É a nostalgia do pai que habita em cada um desde sua infância,
desse mesmo pai que o herói da lenda se orgulha de ter superado. E então
podemos ver que todos os traços com os quais ornamos o grande homem
são traços paternos, que é nessa concordância que consiste a essência do
grande homem que procurávamos em vão”3. Freud expõe desse modo a fan
tasia original, sem origem: o acesso ao pai, o acesso do prazer rumo ao pai
não pode ser encontrado senão em uma posição masoquista.
Essa fase da fantasia de fustigação, que é a mais importante, é ao mes
mo tempo uma fase que nunca foi vivida. Triata-se de uma construção do
sujeito, uma construção fantasmática da criança. Não há origem exterior a
essa fantasia porque ela é a via inconsciente pela qual se procura encontrar
o pai, sem que nenhum acontecimento exterior venha a ser o catalisador da
formação dessa fantasia; ela permanece puramente inconsciente.
3) Na terceira fase, a pessoa própria da criança que fantasia não aparece.
Ela se mantém no anonimato e olha como espectador ou espectadora nume
rosas crianças apanharem. Essa terceira fase é portadora de uma excitação
extremamente forte e conduz a uma satisfação onanista. É o fundo de co
mércio da primeira orientação libidinal dos meninos e das meninas. Muitas
crianças divertem-se ao capturar insetos para cortar-lhes as asas ou as pa
tas. A condessa de Ségur nos apresenta uma ilustração disso em Les Malheurs
de Sophie, em que uma menina corta em pedaços peixinhos vermelhos ao
mesmo tempo em que se chama Sofia, que em grego significa sabedoria...
121
Compreender
de idade. Freud acrescenta que essa fantasia pode ser reforçada pela expe
riência de crianças que apanham do professor na escola, prática que não era
incomum nessa época. Ela também é reforçada pela leitura de obras de fic
ção: Freud cita A cabana do pai Tomás, assim como as obras da Biblioteca rosa
com todas as fantasias de fustigação que também podem ser encontradas
nos romances da condessa de Ségur.
Como não estabelecer um paralelo com o depoimento de Jean-Jacques
Rousseau, em suas Confissões, quando evoca a correção merecida que lhe foi
“infligida" pela senhorita Lambercier. Em um dia no qual a srta. Lambercier o
chicoteara, ele percebeu que a dor experimentada era menor que a “vontade
de procurar a volta do mesmo tratamento merecido: pois eu encontrara na
dor, na própria vergonha, uma mescla de sensualidade que deixara em mim
mais desejo que temor de experimentá-la novamente pela mesma mão’’. Ele
concluiu esse episódio de sua primeira experiência de prazer, que ele procu
rará repetir durante toda a sua vida, com uma grande perspicácia: “Quem
acreditaria que um castigo sofrido aos oito anos de idade através da mão de
uma moça de trinta anos teria decidido meus gostos, meus desejos, minhas
paixões, teria me decidido pelo resto da vida, e isso precisamente no sentido
contrário ao que deveria se dar naturalmente ? Ao mesmo tempo em que
meus sentidos foram acendidos, meus desejos aceitaram tão bem a mudan
ça que, limitados ao que eu experimentara, eles não procuraram por nada
mais. Com um sangue ardente de sensualidade quase desde meu nascimen
to conservei-me puro de toda mácula até a idade em que os temperamentos
mais frios e mais tardios se desenvolvem. Atormentado durante muito tem
po, sem saber por quê, eu devorava com um olhar impetuoso as pessoas be
las; minha imaginação recordava-as incessantemente; apenas para colo-
cá-las em ação ao meu modo e fazer delas outras senhoritas Lambercier’’4.
Esse relato, que possui um tom surpreendentemente freudiano, eviden
cia claramente a estrutura da fantasia e como ela precede absolutamente to
dos os objetos sobre os quais investiremos. Ela é de algum modo a chave que
nos dá acesso aos objetos. E ela é sempre perversa no sentido em que está do
lado da errância sexual, sob uma forma errática, nunca normal.
Nessa cena, assim como nas cenas de fustigação que Freud descreve
em “Uma criança apanha”, é preciso observar que nenhum dano é sofrido,
as crianças que apanham não sofrem nenhum ferimento. Além disso, tanto
122
0 masoquismo
Freud observa quatro destinos para essa fantasia de perversão infantil: não
cessar de subsistir para o resto da vida; sucumbir à repressão; ser subs
tituída por uma formação reacional; transmutar-se em uma sublimação.
Quando persistem no adulto, essas fantasias se traduzem sob a forma de
errância, de erratismo sexual, nas perversões, no fetichismo ou em diferen
tes formas de inversão. Essas escolhas são, pois, fixadas na infância, muito
antes do édipo, como demonstra o caso de Jean-Jacques Rousseau, para o
qual tudo estava determinado aos oito anos de idade.
As fantasias posteriores serão sempre sobrevivências de fantasias in
fantis da pré-história. É por esse motivo que sempre subsiste o infantil no
sonho. Freud também observa (e talvez haja nisso uma alusão a Anna) que
quando essas fantasias se elaboram e se destacam um pouco da infância
elas podem estar na origem de uma neurose obsessiva. Pode-se encontrar
então essa dimensão de retenção, de controle sádico anal exercido sobre si
mesmo e sobre o outro.
Qual é a origem dessas encenações? Assim como coloca a questão da
origem em diferentes momentos de sua obra, Freud se interroga sobre este
ponto já que se trata de um verdadeiro problema. Com efeito, as fantasias
provêm de uma pré-história, anterior à saída final pela qual elas se mani
festam. E é impossível encontrar sua origem, embora Freud tenha procurado
interrogar-se sobre a relação com a pessoa que fantasia, a relação com seu
objeto, a relação com seu conteúdo e a relação com a própria significação des
sa modalidade de atividade e de componente sexual. Somente uma análise
correta pode encerrar a amnésia infantil sobre a origem dessas encenações.
Conteúdo e implicações
123
Compreender
algo, de uma posição que desejamos manter. Não somos objetos de nossas
fantasias, somos os sujeitos que organizam as próprias fantasias. Em ou
tras palavras, a situação em que me encontro é a situação na qual eu me
coloco. A situação que construo em minha fantasia é aquela à qual quero
chegar. Isso nos conduz à distinção que Freud estabelece entre dois ter
mos fundamentais em suas análises: o lugar (Stelle) e a posição (Einstellung).
O lugar no qual eu me coloco determina minha posição psíquica. Com efei
to, é importante lembrar que há sempre uma dimensão muito ativa na
fantasmatização.
1) Na primeira fase, a fantasia está a serviço do ciúme da criança. Ela
se dá na vertente narcísica da criança, em seu amor, pois satisfaz seu ciú
me em relação ao outro. Como a criança está fora de cena, não há nem
excitação sexual, nem prazer, caso contrário o sentimento de ciúme, ambi
valente de ser poupado pelo pai, que ao mesmo tempo se ocupa do outro.
Trata-se de um estado incestuoso que permite uma identificação com o
pai, um estado dessexualizado. Ele gosta apenas de mim e não da criança
que ele castiga.
Nesta primeira fase da fantasia já está presente toda a dimensão ero-
tomaníaca que surgirá depois em alguns, dimensão surgida do narcisismo,
a saber, que a erotomania não pode ser senão um amor a distância, como o
amor cortês: ser o(a) escolhido(a) do outro, do pai, basta-me, e é porque ele
me ama em primeiro lugar que posso responder ao seu amor. Freud expli
cita aqui que esse elemento psíquico da primeira fase pode sucumbir ora
por razões exteriores, depois de uma decepção provocada pelo pai, ora por
razões internas, pela ausência persistente da "realização desejada”.
2) Na segunda fase — eu apanho do pai — intervém um fator interno
à psique, que é o sentimento inconsciente de culpa. Sentimento que, assim
como o masoquismo, é de proveniência desconhecida, sem acontecimento
exterior que possa ser o seu desencadeador.
Esse sentimento age sobre a psique, com a seguinte convicção: não, ele
não ama você, ele bate em você. Está-se aqui no nível da essência do ma
soquismo, em toda a sua complexidade: essa punição do amor proibido em
uma vertente sádica, e, por outro lado, coextensivamente, uma excitação
libidinal masoquista, por substituição regressiva do sadismo.
Nessa fase totalmente inconsciente, não se trata de uma repressão
secundária e edipiana, mas de um inconsciente originário, operado pela
ação do sentimento inconsciente de culpa, ele próprio “de origem desco
nhecida”, portanto reprimido desde o início, e que é cognoscível apenas
124
0 masoquismo
125
Compreender
da": esperar tudo do objeto. Freud aborda esse ponto no texto “Dos tipos de
entrada na neurose”, em 1912: “A psicanálise nos exortou a abandonar a opo
sição estéril entre fatores externos e internos, entre destino e constituição, e
nos ensinou a encontrar regularmente a causação da entrada na neurose em
uma situação psíquica determinada que pode ser instaurada por diferentes
caminhos”5. Não há uma causação interna ou externa e sim um fator subjeti
vo determinante: a escolha psíquica em um momento dado. E esse fator sub
jetivo que determina a escolha de entrar no conflito, na neurose, é de origem
tão desconhecida e incognoscível quanto o masoquismo ordinário.
A montagem do pulsional
Para Freud, todo o pulsional não é sexual, a começar pelo comer, pelo beber e
pelo dormir; e o sexual sempre se enxerta, se une, se apoia, sobre o pulsional.
Daí o estatuto das pulsões parciais, ligadas a órgãos e neste caso a orifícios
específicos que não têm objetivos sexuais. Desse modo, o masoquismo pode
se encontrar ora em uma vertente sexual, ora em uma vertente não sexual.
A esse título, o primeiro filão se organiza em tomo do par ativo/passivo,
e das duas primeiras organizações do corpo, a organização oral e a organi
zação sádica/anal, que inicialmente não estão na vertente sexual. A orga
nização oral, em sua dimensão canibalesca, visa constituir o uno a partir do
dois, isto é, ingerir, incorporar o outro. Através da absorção do leite, através
do encontro boca/seio, origina-se o primeiro modelo de encontro com o ex
terior, que é a ingestão, a incorporação, e isso se dá por meio da destruição.
Modelo inicial, até mesmo iniciático, de todas as identificações posteriores:
tomar do outro para dele fazer o si mesmo.
5 S. Freud, Des types d'entrée dans la névrose (1912c), in Neurose, psychose et peruersion, PUF,
1973, p. 82.
6 S. Freud, Le problème économique du masochisme (1924c), in OCP. F XVÍI, PUF, 1992.
126
0 masoquismo
0 sadomasoquismo
127
Compreender
128
0 masoquismo
pela psique, sem influência exterior, mas apenas sob a influência dos com-
ponentes pulsionais sexuais. A pulsão de saber, sob sua primeira forma, tem
como objetivo conjurar os acontecimentos temidos, como já observamos.
Ela é uma modalidade defensiva contra a ausência do outro, a serviço de
um controle que permitirá a autonomização em relação ao outro, sob a con
dição de que ela não seja objeto de uma inibição ou de que ela não seja
contrariada a partir do exterior.
A experiência de prazer
129
Compreender
Angústia e gozo
Mas esse par prazer/desprazer abre também para outra coisa, em razão do
próprio fato desse mistério do funcionamento psíquico que implica justa-
mente provocar um sofrimento para que se possa interromper o sofrimento.
E constatamos que esse sofrimento orgânico ou psico-orgânico provoca an
gústia, isto é, um registro de perda de representações. Ora, a única situação
homóloga à angústia como perda de representações é justamente o gozo,
que terminologicamente não é em Freud do registro do Lust (prazer) e sim
do Genuss: gozar do outro de modo subjetivo ou objetivo, com uma dimen
são possessiva (ocupar ou apossar-se do outro) e uma dimensão jurídica de
direito ao gozo absoluto. “Jus utendi et abutendi", como diz o direito romano,
usar e abusar, direito de consumir e de destruir o que me pertence. O gozo
reintroduz aqui a dimensão do outro e sai-se com ele do teatro do corpo e
desse sadomasoquismo intrassubjetivo para reencontrar o outro que para
nós é sempre “enigmático” (die Ratsel in Wesen, o enigma por essência do
outro'1), desconhecido, aleatório, o outro que esteve na origem da primeira
experiência de prazer. Chegamos aqui àquilo que parasita completamente
o modelo prazer/desprazer pelo retomo do outro como exterior à psique.
Esses mistérios do gozo e do masoquismo não deixam de lembrar as
primeiras observações de Freud, particularmente o que ele escreve em sua 11
130
0 masoquismo
Gozo e feminilidade
Gozo e horror
Mas o gozo também é da ordem do horror, como lembra uma sessão em que
“o homem dos ratos” salta do divã diante de uma cena para ele insuportável
131
Compreender
e sobre a qual ele não pode falar, e ele pede a Freud que o poupe de contar
essa cena. Freud lhe diz que ele não pode poupá-lo, privando-o de seus pen
samentos. Quando relata esse instante em seu Diário de uma análise, Freud
salienta a expressão estranha do homem dos ratos que ele interpreta como “o
horror de um gozo que ele próprio ignora”13, diante de uma cena que remete
ao passivo, ao feminino, a uma seqüência precisa de um suplício chinês que
consistia em introduzir um instrumento no ânus de um homem.
O gozo toma-se então ruptura e efração corporal, ora do lado da ima
gem do corpo e do corpo muscular, ora do lado da elaboração psíquica do
corpo — que Françoise Dolto chama de “imago do corpo fantasiado” —, em
que a imagem inconsciente do corpo remete a limites subjetivos perdidos,
particularmente no orgasmo que, como a angústia, é uma experiência de
perda de representações. Esse exemplo demonstra o estatuto ambivalente
do gozo sobre o qual se organizará a modalidade do prazer masoquista. O
outro (o outro materno), no início, garante a primeira experiência de prazer,
experiência necessária, pois, se esta não existisse na relação com a mãe,
algo que se vê na anorexia, a criança correria o risco de se fechar para o
mundo exterior no autismo.
Em contrapartida, embora o outro garanta a primeira experiência de
prazer, pode-se evidentemente reconduzir, e é aqui que se engrena a cons-
trição de repetição que em Freud terá vários sentidos, mas dos quais o pri
meiro é a repetição dessa primeira experiência de prazer, em que se deve
absolutamente obter a garantia do outro para poder tentar repetir uma ex
periência na qual o prazer prima sobre as pulsões de autoconservação. Esse
caráter de constrição conduz a uma conseqüência na qual a essência do
masoquismo se traduz em uma solução não sexual, uma solução narcísica
para a sexualidade. A conjuração do aleatório do outro que poderia vir a
faltar pela organização de uma relação segundo um modo intrassubjetivo,
e não intersubjetivo, e portanto segundo o modelo mãe/filho.
O que fazer diante desse gozo angustiante a não ser tentar reprimi-lo?
No "Manuscrito M”, de 22 de maio de 1897, Freud fala da repressão sobre
tudo como repressão do feminino: “É preciso ter a suspeita de que o essen
cial do que é reprimido é a feminilidade. Isso pode ser confirmado pelo fato
de que as mulheres, não menos que os homens, são menos reticentes quan
to às suas experiências com as mulheres do que com os homens. O que os
13S. Freud, L'Homme aux rats. Journal d’une analyse (1909d), PUF, 1974.
132
0 masoquismo
0 aparelho de músculos
A dor
14 S. Freud, “Manuscrit M", tradução proposta por Wladimir Granoff, in Filiations, Minuit,
1975, p. 295-296. Esse texto é integrado à nova tradução das cartas a Fliess, com a seguinte tradu
ção: “Pode-se supor que o elemento realmente repressor é sempre o feminino, e isso é confirma
do pelo fato de que as mulheres, assim como os homens, entregam mais facilmente as experiên
cias que viveram com mulheres que as que viveram com homens. O que os homens realmente
reprimem é o elemento pederástico". S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, p. 313.
15 S. Freud, L'Homme Moi'se et la religion monothéiste (1939a), Gallimard, 1986, p. 215.
133
Compreender
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0 masoquismo
135
Compreender
1J Para ilustrar o desejo de fundir-se em uma multidão, Freud cita várias vezes a expressão
"compacta maioria”, que ele toma de Um inimigo do povo, de Henrik Ibsen (1882). Cf. capítulo
sobre “A importância da temporalidade”.
18 C. Stein, L'Enfant imagimire (1971), Denoêl, 1987, p. 42.
136
0 masoquismo
tudo o que acontece: ‘‘Se meu pai ou minha mãe não me amam, é porque
ele ou ela não saiu ileso de mim; a retração do amor está ligada a alguma
coisa que lhes fiz’’. Essa posição masoquista de onipotência culpada permite
por sua lógica (é culpa minha que eles não me amem) manter um vínculo
permanente com o outro. Eles não se livram de mim, mas eu é que fiz algu
ma coisa que os atingiu; como eu existo unicamente nesse ato de atingi-los,
é preciso que eu me mantenha nessa posição. Observa-se aqui a racionali
zação de uma onipotência em razão do fato de que o outro, a pessoa grande,
nunca poderá escapar de mim. O masoquismo ordinário só pode funcionar
do seguinte modo: nunca largar o outro.
Em O mal-estar na cultura, Freud procura estabelecer a gênese do senti
mento de culpa: “Conhecemos duas origens para o sentimento de culpa, a
que provém da angústia diante da autoridade, e a ulterior, proveniente da
angústia diante do supereu"19. Na medida em que o supereu é a introjeção
da autoridade. “O primeiro sentimento de culpa constrange a renunciar às
satisfações pulsionais”, é a angústia diante da autoridade que proíbe o pra
zer, "o outro, além disso, conduz à punição, dado que não se pode ocultar do
supereu a persistência de anseios proibidos” (o termo aqui não é o desejo, Be-
gierde, mas o voto, Wunsch). O paradoxo do sentimento de culpa se traduz por
um duplo efeito: renunciar ao prazer e punir-se por almejar prazeres. Quanto
mais se renuncia ao prazer, mais há culpa por pensamentos de prazer.
Mais adiante Freud evoca uma das descobertas da psicanálise: “A rela
ção entre supereu e eu é o retomo deformado pelo anseio das relações reais
entre o eu ainda indiviso e um objeto externo” (p. 73). Ele emprega proposital-
mente o termo ungeteilten, a indivisão, a não separação em relação ao objeto
exterior. Ora, essa indivisão é a própria essência do masoquismo: a impossi
bilidade, a incapacidade de separar-se do outro. A criança não está apenas
angustiada e dependente, ela quer sobretudo ser tratada a mais de um título
como uma criança má; por causa de seu sentimento de culpa, mas também
pelo próprio fato dessa relação que permuta ao infinito de uma psique para
outra. Nessa indivisão em relação ao objeto, ela se vive como onipotente em
relação ao objeto e pode então tomar deste essa perda de amor que é vivida
como se ela própria fosse sua origem porque ela seria má. A criança quer ou
deve ser sancionada e punida porque toda perda de amor é vivida como es
tando ligada à sua culpada onipotência em relação ao adulto.
137
Compreender
0 acesso à transferência
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0 masoquismo
139
Capítulo IX
141
Compreender
2 S. Freud, Analyse fnie, analyse infinie (1937c), in Résultuts, idées, problèmes II, PUF, 1985,
p. 240.
3 ). Laplanche: Le fourvoiement biologisant de la sexualité II, fev. 1992, in Psychanalyse à
1'Umuersité, PUF, jan. 1993, T.18, n° 69, p. 33,
142
A regra fundamental, espaço da cura
A teoria da interpretação
4 S. Freud, Fragment d'une analyse d'hystérie (Dora) (1905e), in Cinq psychanalyses, PUF,
1954, p. 6.
143
Compreender
0 amor de transferência
145
Compreender
11 Remarques sur un cas de névrose obsessionnelle. L'homme aux rats (1909d), Sessão de
2 de outubro, em Cinq psychanalyses, PUF, 1954, p. 202.
146
A regra fundamental, espaço da cura
notar uma pequena imprecisão sobre a segunda sessão: em seu texto con
sagrado ao homem dos ratos, Freud fala de uma única condição do trata
mento, enquanto ele anota duas em seu “Diário”, sem, no entanto, descrevê-
las: “Depois de lhe comunicar as duas principais condições do tratamento,
eu o deixei livre em relação ao seu começo. Ele tem, disse ele, um amigo12
pelo qual tem uma estima extraordinária...”13
Freud observa então e privilegia imediatamente uma idealização dos
homens e uma forte homossexualidade latente, conformada a seguir quan
do o Homem dos ratos aborda a questão de suas babás, cujo primeiro nome
lhe escapa, lembrando-se apenas do patronímico, o de um prenome mas
culino: Srta. Peter. Freud acrescenta em suas notas as reflexões rápidas que
ele fazia durante a sessão: Peter, esquecimento do feminino e acentuação
do masculino, que “o identifica como homossexual'’.
A cena da segunda sessão é bem conhecida, na evocação de um castigo
oriental terrível: “Aqui ele se interrompe, levanta-se e pede-me que o poupe
da descrição dos detalhes". Freud lhe explica então que não pode dispen
sá-lo de uma coisa sobre a qual ele não tem poder e pede-lhe que supere sua
resistência: “Superar as próprias resistências é um mandamento do trata
mento, ao qual não podemos, naturalmente, nos subtrair”. Ora, pouco an
tes, falou-se de um capitão cruel que lhe dava ordens. Freud questionou
então: “Ele quer, por acaso, falar de empalamento? — Não, não disso. Mas o
condenado está amarrado [...] e sobre seu posterior é fixado um pote vira
do, no qual fazem entrar ratos, e então... Ele se levanta novamente e apre
senta todos os sinais do horror e da resistência; — estes penetram como
brocas... — No ânus, eu me permiti completar. Eu não reconhecera o com
ponente homossexual desde suas declarações da primeira sessão?”. O Ho
mem dos ratos retoma a seguir a questão do capitão que lhe ordenara pa
gar as 3,80 coroas ao tenente por um pacote que continha os óculos que ele
encomendara. Ele prosseguiu alternando as duas cenas, todo o cenário ob
sessivo do trajeto da dívida que remete à dívida real de seu pai e que denun
cia o fato de que ele recai sempre sobre homens pouco compreensivos; e
Freud acrescenta: "Em um dado momento, como eu observei que eu próprio
não era cruel, ele reagiu chamando-me de 'meu capitão’”14.
147
Compreender
A regra fundamental
15 S. Freud, Conseils aux médecins (1912e), in OCPF XI, PUF, 1998, p. 144-154.
16 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanaly tique, PUF, 1970; texto re-
traduzido sob o título Sur lengagement du traitement (1913c), in OCPF X I I , PUF, 2005, p. 162-184.
148
A regra fundamental, espaço da cura
149
Compreender
ção a lugares. Quando, vinte anos depois desse caso, Freud definiu a posição
do analista, ele se inspirou no modo de agir do pai que prescreveu à sua filha
Elisabeth o lugar de filho e de amigo. 0 analista deve se deixar prescrever um
lugar pelas indicações do paciente e deslocar-se de um lugar psíquico para
outro, de acordo com a necessidade.
Em “O início do tratamento”, em 1913, Freud vai mais longe ao afirmar
que o analista deve se deslocar na transferência: "O analista deve antes de
tudo começar pela descoberta da transferência”. Tudo o que diz respeito à
situação presente corresponde a uma transferência sobre a pessoa do mé
dico e pode servir como resistência. “O doente vincula-se por si mesmo ao
analista e o coloca entre as imagos daqueles pelos quais ele costumava ser
amado”19 20. Descobrir, determinar a transferência, é descobrir o lugar em que
o analista é situado na transferência.
Do lado do analisando, Freud caracteriza do seguinte modo “a regra fun
damental à qual o paciente deve obedecer”: “É preciso desde o início fazer
o analisado conhecer essa regra. Uma coisa ainda antes que você comece:
sua fala deve diferir, em um ponto, de uma conversa comum. Enquanto ge
ralmente você procura, como deve ser, não perder o fio de sua fala e elimi
nar todos os pensamentos que surgem, todos os pensamentos secundários
que atrapalhariam sua exposição e fariam você remontar até o dilúvio, na
análise, você procederá de outro modo. Você observará que, durante sua
fala, diversas idéias surgirão, idéias que você gostaria de rejeitar, porque pas
saram pelo crivo de sua crítica. Você ficará tentado a dizer: 'isto ou aquilo
não tem nada a ver aqui’ ou então ‘isto não tem nenhuma importância’ ou
ainda ‘não faz sentido, não há motivo para falar disso’. Não ceda a essa crí
tica e fale apesar de tudo, mesmo quando você tiver repugnância a fazê-lo
ou justamente por causa disso. Você verá e compreenderá mais tarde por
que eu lhe imponho essa regra, a única, aliás, que você deveria seguir. [...]
Comporte-se como um viajante que, sentado perto da janela de seu compar
timento, descreve a paisagem tal como ela passa para uma pessoa sentada
atrás dele”so. Não se trata aqui de modo algum de atividade associativa, mas
da passividade que consiste em "deixar surgir os pensamentos e deixar as
representações se imporem a si mesmo”.
150
A regra fundamental, espaço da cura
Nesse texto, Freud estabelece uma distinção importante que nos ajuda a
determinar a teoria da psique, correlativa à regra fundamental: “Nos pri
meiros tempos da técnica psicanalítica, do ponto de vista de um pensamen
to intelectualista, atribuímos um grande valor a dar a conhecer ao paciente
o que ele havia esquecido. Com isso, não diferenciávamos nosso saber do
seu’’21. Freud chama isso de “diagnósticos fulminantes" aos quais ele não
adere mais: “O sucesso esperado não ocorrerá, e aquilo que às vezes conse
guíamos realizar era para nós uma cruel decepção! Como explicar que o
doente, uma vez informado do evento traumatizante, se comportava como
se não tivesse aprendido nada de novo? Mais que isso, mesmo depois de ter
sido reencontrado e descrito, a lembrança do traumatismo não ressurgia
na memória’’22 23.
Ele apresenta o seguinte exemplo: “Em um caso particular, a mãe de uma
jovem histérica confiara-me o incidente de ordem homossexual que influen
ciara a fixação dos ataques da doente. A própria mãe vira essa cena sobre a
qual, embora tivesse ocorrido na época de sua pré-puberdade, a doente não
guardara nenhuma lembrança. Fiz então uma experiência das mais instruti
vas. Cada vez que eu falava do relato feito por sua mãe, a doente reagia com
um ataque de histeria e por fim essa história caía, mais uma vez, no esqueci
mento. Sem dúvida, a paciente resistia com violência ao conhecimento im
posto desse modo, ou, mais precisamente, a esse saber imposto do exterior.
Ela acabou por simular uma imbecilidade e uma amnésia total para defen
der-se contra o que eu lhe dizia. Foi preciso então resignar-se a não mais
acreditar, como se fizera até então, na importância da tomada de conheci
mento em si e colocar a ênfase nas resistências às quais se devia original
mente a ignorância, e que ainda estavam prontas a garantir esta última”28.
Ao questionar esse “saber imposto do exterior" e uma “posição de pen
samento intelectualista", que supõe uma indistinção entre nossos próprios
pensamentos e os do outro, Freud leva em consideração o fato de que, na
análise, existe um espaço para duas psiques. Ao "oscilar de uma posição
psíquica para outra" e ao “evitar toda especulação", o analista não pode
151
Compreender
152
A regra fundamental, espaço da cura
153
Capítulo X
A eficácia da psicanálise,
um benefício secundário da doença?
155
Compreender
2 S. Freud, L'Ho mme aux rats. Journal d 'une analyse (1909d), PUF, 1984, p. 33.
3 S. Freud, Sur les types d'entrée dans la névrose (1912c), in Neurose, psychose, perversion,
PUF, 1973, p. 182.
156
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?
ela foi embora no final de dezembro, e Freud salientou que ele se sentiu
despedido como um empregado doméstico. Diante desse fracasso, Freud
passou quinze dias interrogando-se sobre o que ocorrera e sobre o fracasso
dessa análise, escrevendo ‘‘o caso Dora" no começo de 1901, e que será publi
cado apenas em 1905 sob o título “Fragmento de uma análise de histeria”4 5.
Nesse texto ele mencionou pela primeira vez o "benefício secundário da
doença” (Krankheitsgewinn) como principal obstáculo à cura e à vontade de
curar-se. Não se trata aqui de retomar os tateios de Freud e sua incapaci
dade de perceber na transferência o lugar em que ele havia sido colocado
nessa tentativa de cura psicanalítica. Retenhamos sobretudo a descoberta
desse “benefício” — ou ganho — da doença e a impotência do analista que
gera a ineficácia da análise.
Aquele que quer curar o doente choca-se, para sua grande surpresa, com uma
forte resistência que lhe ensina que o doente não tem tão formalmente, tão
seriamente quanto parece, a intenção de renunciar à sua doença.
[...] Os motivos do ser doente [Kranfesein] começam a despontar desde a
infância. A criança ávida de amor, e que compartilha com pouca vontade com
seus irmãos e irmãs a ternura de seus pais, percebe que essa ternura lhe é diri
gida por inteiro se, por causa de sua doença, os pais ficarem preocupados. Essa
criança conhece então um meio de solicitar o amor dos pais e o usará assim que
tiver à sua disposição material psíquico capaz de produzir um estado mórbido.
A aparência de objetividade, de não desejado, do estado mórbido, do qual o mé
dico encarregado é obrigado a se tomar fiador, permite à doente, sem remorsos
conscientes, o uso oportuno de um meio que ela vira ser eficaz na infância.
E, no entanto, esse ser doente é produto da intenção. Os estados de doença
são, como regra geral, destinados a uma pessoa, de tal modo que eles desapa
recem com o afastamento desta última. [...] Por isso todas as suas garantias
dizem que é apenas uma questão de vontade, todos os encorajamentos e todas
as invectivas não são de nenhuma utilidade para a doente. Deve-se primeira
mente tentar convencê-la por si mesma, pelo desvio da análise, da existência
da intenção de sua doença8.
4 S. Freud, Fragment d'une analyse d'hysterie (1905e), in OCPF VI, PUF, 2006, p. 223.
5 Ibid., p. 223-225 (tradução modificada).
Compreender
158
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?
te” ela não pensara nisso até aquele dia. Surgiu então algo que não era da
ordem do conhecimento, mas de uma tomada de consciência (annerkennen).
Com isso, Freud pode deixar de lado as localizações físicas e fazer-lhe uma
pergunta sobre a origem representativa de suas dores: “De onde provêm
suas dores, quando você anda, quando você está em pé?”. Naturalmente, a
origem das dores é psíquica, ela está ligada a uma representação que Eli
sabeth tem de si mesma. “A histérica”, diz Freud, “sofre principalmente de
reminiscências", isto é, de representações, de encenação de si mesma. Essa
interrogação sobre seu corpo psíquico permite que Elisabeth diga então que
ela não pode sair desse estado de abasia, de isolamento, de impotência. Sie
komme nicht von der Stelle: ela não pode sair, ou ela não pode deixar o lugar
no qual seu pai a colocara dizendo-lhe que ela "substituía (sie ersetze) para
ele um filho e um amigo”. Ela era, pois, um ersatz no sentido etimológico de
substituto, de sucedâneo.
Nossa posição psíquica é determinada, ela é encarcerada pelo lugar em
que somos colocados, ou pelo lugar em que nós nos colocamos e no qual con
tinuamos a nos colocar por obediência ao pai, ao Urvater, ao grande homem,
e eventualmente ao analista, se ele for tomado por um grande homem.
Será em sua própria análise que Freud descobrirá a intencionalidade
da doença enquanto dirigida ao outro, como mostra a conhecida carta que
ele escreveu a Fliess em 6 de dezembro de 1896: “O acesso histérico não
é uma descarga e sim uma ação, e ele conserva o caráter original de toda
ação: ser um meio de reproduzir o prazer. [...] Desse modo, têm um acesso
de sono os doentes aos quais algo de sexual foi infligido durante o sono; eles
adormecem novamente para viver a mesma coisa, frequentemente provo
cando, desse modo, o desvanecimento histérico; o acesso de vertigem, de
choro convulsivo, tudo é colocado na conta do outro (aufden Anderen), mas
na maior parte das vezes esse outro pré-histórico e inesquecível que mais
ninguém atinge posteriormente’,?. A expressão auf den Anderen é grifada por
Freud. Essa carta, que, aliás, será longamente comentada por Lacan, está na
origem de seu "grande Outro”.
Alguns meses depois, Freud extrai outra conseqüência de sua autoaná-
lise em uma carta a Fliess de 14 de novembro de 1897: "Minha autoanálise
foi interrompida. Entendi por quê. Não posso analisar a mim mesmo senão
com conhecimentos objetivamente adquiridos (como um estranho). A au-
J S. Freud, Carta 112, in Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, p. 270-271 (tradução modificada).
159
Compreender
toanálise é impossível, caso contrário não haveria doença”8 9. Freud não pode
analisar a si mesmo senão como outro. E no final de sua vida Lacan se dizia
cioso de ser “por fim outro”.
É essa fase capital de sua autoanálise, wie ein Fremder “como um estra
nho”, que autoriza a considerar a doença, a neurose, esse ser doente (Krank-
sein) como sendo estruturalmente a “doença humana”. Essa doença, com
efeito, é uma doença de transferência, portanto de repetição. A transferência
é uma doença de constrangimento a repetir (Wiedersholungszwang). É preciso
observar, aliás, que o constrangimento a repetir nasce no momento em que
Freud pode pensar conjuntamente a perlaboração, em 1914, no texto "Reme-
morar, repetir, perlaborar”: “Constatamos claramente que o estado mórbido
do analisado não poderia cessar desde o início do tratamento e que devemos
tratar a doença não como um acontecimento do passado, mas sim como
uma força atualmente em ação. Esse estado mórbido é trazido para o cam
po de ação do tratamento fragmento por fragmento e, enquanto o doente o
sente como algo real e atual, nossa tarefa consiste principalmente na recon
dução ao passado"0 (Zurückfürhung auf die Vergangenheit). O eixo da perlabo
ração que se opõe à resistência e à rememoração consiste em transformar
temporalmente a transferência. A tarefa do analista é, pois, a de reconduzir
ao passado o que surge no presente como real e atual. Ele deve tomar pos
sível que o paciente coloque o carimbo do tempo e a data sobre um passado
que não passa, na medida em que ele é intemporal (zeitlos). Reconduzir ao
passado é, com efeito, despachar o analisando da pessoa própria do analista
sobre a qual a transferência se fixa repetitivamente e intemporalmente, em
um amor da transferência que se confunde com o amor de transferência.
Dar a palavra ao paciente, deixá-lo livre para começar no espaço da
cura é, pois, um artefato, uma situação artificial na qual o paciente, o doen
te “age” (er agiert) seu passado dirigindo-o ao analista. E esse agir eviden
temente contém o risco de fuga da análise enquanto fuga na doença, no
agravamento dos sintomas, no agravamento da situação transferenciai sob
o efeito do constrangimento a repetir, durante a cura.
Essa temporalização da transferência e da doença permite reconhecer
que o direcionamento ao outro pode ser interpretado segundo duas moda-
160
A eficácia da psicanálise, um benefício secundário da doença?
161
Compreender
13 S. Freud, Conseils aux médecins (1912e), in La Technique psychanaiytique, PUF, 1970, p. 67.
14 Ésquilo, Agamemnon, tradução de Paul Mazon, Les Belles-lettres, 1968, verso 176.
162
Capítulo XI
Ao que tudo indica, o sujeito nem sempre existiu, ainda menos em sua uni
versalidade. O "sujeito” é uma invenção recente, lançada no século XVI, es
tabelecida teoricamente por Kant, retomada e enriquecida por Freud. Mas a
história dessa noção (mesmo que ela tenha sido designada por outros termos)
toma-se rica em ensinamentos assim que nos debruçamos sobre as culturas
e correntes filosóficas sucessivas que tentaram definir o lugar do homem no
universo. Antes de abordar a construção e a problemática do sujeito freudia
no, não é, pois, supérfluo debruçar-se sobre a história dessa palavra e desse
conceito, pois ela traz um esclarecimento precioso sobre o que alimentou a
mente de Freud em sua própria elaboração do sujeito e da subjetivação.
163
Compreender
1 Cleanto, Hymne à Zeus, in Les Stoiciens, Gallimard, 1962, p. 7-8 (La Pléiade).
164
Para introduzir o sujeito na psicanálise
fia grega não há processo de conhecimento, por mais escandaloso que isso
possa nos parecer hoje em dia; há apenas um processo de re-conhecimento
daquilo que já está aí desde sempre. O conhecimento passa essencialmente
por uma purificação do corpo, um desprendimento em relação a este último
para encontrar o mundo das idéias por meio de uma ascese intelectual que
começa com as matemáticas, o que dá acesso a um desapego em relação
ao sensível, às imagens e às fantasias — as fantasias existem em Platão —,
para coincidir com o universo das idéias que são incriadas, portanto eter-
nas como o mundo. No campo da filosofia grega, a reminiscência consiste
justamente em encontrar em si mesmo essa parcela divina que está oculta
em nosso corpo, nosso corpo que é uma tumba, segundo a expressão soma
sema: "O corpo é um túmulo”.
A segunda conseqüência para a subjetividade é que o homem grego
conhece o trágico, mas não conhece o patético (pathos). Nesse universo, o
homem não pode ser senão um joguete dos deuses, sem liberdade, sem
responsabilidade, ele é conduzido cegamente por vontades exteriores, como
ilustra o Hino a Zeus de Cleanto. Desse modo, Édipo e Orestes, por exemplo,
representam a condição trágica da existência, uma existência na qual eles
não respondem pelo que lhes acontece e onde a única coisa que eles podem
fazer não é usar a sua liberdade e sim procurar conformar-se à ordem do
mundo, ao costume e às tradições.
Do mesmo modo, para Cícero e os filósofos estoicos da época roma
na, não pode haver um imperativo que se imponha ao homem a partir do
exterior e que estaria ligado à sua própria liberdade. Como a natureza é
de essência divina, somos apenas um fragmento desse universo: Deus sive
Natura — Deus ou a Natureza. A dessubjetivação que isso representa será
retomada por Spinoza, no ateísmo provavelmente mais radical da filosofia.
No universo antigo, a subjetividade, seja ela intelectual ou afetiva, tem
de ser eliminada progressivamente em proveito de uma alma intelectual.
Quer seja o nous grego, o mens latino, ou até mesmo o "despertar” do campo
oriental do budismo ou do hinduísmo, trata-se de eliminar o ego ao máximo
para que a abertura para a iluminação possa surgir, de apagar-se na abertu
ra para o Todo para aproximar-se da faísca do vivente, do divino.
Essa indistinção entre o homem e o cosmos e essa sujeição à vonta
de dos deuses serão perturbados e postos em xeque com o aparecimento
do judaísmo, e depois de toda a filosofia judaico-cristã, em que se instaura
uma separação radical entre Deus e o homem, rica de conseqüências. Essa
165
Compreender
166
Para introduzir o sujeito na psicanálise
4 Tomás de Aquino, L'unite de Vintellect contre les Averroístes, Gamier-Flammarion, 1994. Ex
celente edição crítica bilíngüe (estabelecida por Alain de Libera) desse texto fundamental que
diferencia a interpretação cristã de Aristóteles (De anima) da interpretação árabe de Averróis.
167
Compreender
0 avanço freudiano
O que aproxima Freud de Kant, e aquilo pelo que Freud se aproxima de Kant,
é que o conhecimento para Kant passa pelo corpo e não apenas pela intuição
de si a partir de si, como em Descartes no cogito. Nosso único modo de co
nhecimento das coisas é espaçotemporal; esse é o objeto da “Estética trans
cendental’’ da Crítica da razão pura. Além disso, para Freud, nosso único modo
de conhecimento é fantasmático, ele passa pelo sistema de representações
iniciado a partir da primeira experiência da relação boca-seio, que é a matriz
em si pré-fantasmática a partir da qual será possível reconhecer-se como
168
Para introduzir o sujeito na psicanálise
169
Compreender üllll (
0 aparelho psíquico
A pergunta feita em 1892 a Elisabeth von R., durante sua cura analítica, ge
rará outra pergunta, a dos lugares psíquicos, das localidades psíquicas e das
instâncias psíquicas que, por sua vez, não remetem absolutamente a uma
localização corporal somática e sim a instâncias de funcionamento sepa
radas e a traços mnésicos que sofrem um tratamento diferente, caso elas
sejam tratadas por um ou outro sistema de inscrição dos traços. Em uma
carta endereçada a Fliess, de 6 de dezembro de 1896, encontramos a primeira
descrição do aparelho psíquico: “O que há de essencialmente novo em minha
teoria é, pois, a afirmação segundo a qual a memória não está presente uma
vez, mas várias vezes, consignada em diversos tipos de signos’''1.
Freud detalha três tipos de inscrição dos traços mnésicos:
— A inscrição das percepções (Warhenehmungzeichen), que se inscrevem
por continuidade ou por simultaneidade, que partem do corpo, da epiderme.
6 S. Freud, Vinterpretation du rêve (1900a), PUF, 1971. A outra cena é uma expressão que
Freud toma de Fechner.
7 S. Freud, Lettres à Wilhelm Fliess, PUF, 2006, Carta 112, p. 264.
170
Para introduzir o sujeito na psicanálise
8 S. Freud, TYois essais sur Ia théorie sexuelle (1905d), Gallimard, 1985, p. 165.
171
Compreender
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Para introduzir o sujeito na psicanálise
173
Compreender
174
Capítulo XII
O estatuto da psicanálise
na sociedade. Um texto atual:
ã questão da análise urotuaa
Em julho de 1926, Freud publicou A questão da análise profana (Die Frage des
Laienanalyse)2. O termo Laie também exprime tanto o que é profano por opo
sição ao sagrado, diante de todo clericato, quer ele seja religioso ou médico,
como o que define o amador, em relação ao especialista.
Essa obra foi escrita conjunturalmente com o objetivo de apoiar Theo
dor Reik contra o qual se abriu um processo por exercício ilegal da medi
cina, em uma época na qual os americanos acabavam de tomar a decisão
de vincular a prática da psicanálise à formação médica. Mas Freud coloca de
modo mais amplo o problema da situação da análise no campo das disci
plinas e, por outro lado, o estatuto do psicanalista na sociedade.
Freud tenta responder a essa dupla interrogação dando ao seu livro a
forma de um diálogo imaginário com um interlocutor imparcial. Esse inter
locutor pode ser o professor de medicina Durig, membro do Conselho supe-
175
Compreender
rior de Medicina, mas também se pode postular que seja o professor Julius
Tandler, relator do conselho municipal de Viena para a saúde, ao qual Freud
escrevera uma carta a respeito do caso Reik, em 8 de março de 1925. Evo
cando sua conversa, Freud escreve: "O senhor parece aprovar minha decla
ração de que na psicanálise devem ser considerados como profanos todos
aqueles que não podem justificar um conhecimento satisfatório, teórico e
prático, dessa ciência, quer eles possuam ou não um diploma de médico”2.
Essa carta merece ser citada porque aqui o termo ‘'Profano" (laie) é efetiva
mente empregado no sentido de amador e porque ele coloca lado a lado
médicos e não médicos em relação à incompetência analítica.
Freud acredita conduzir um duplo combate. Em primeiro lugar, contra
os médicos: “A psicanálise não é a empregada faz-tudo da psiquiatria”, diz
ele. Recordemos que Freud não era psiquiatra e sim neurologista, depois
de uma formação prolongada em medicina interna com J. Breuer. Por ou
tro lado, contra a psicanálise selvagem, contra os psicanalistas selvagens
que interpretam tudo, imediatamente. Freud já levantara essa questão, em
1913, em “O início do tratamento”: ‘‘Disseram-me que certos analistas se
gabam de tais diagnósticos fulminantes e de tais tratamentos rápidos, mas
previno todo analista contra a tentação de seguir tais exemplos”3 4.
176
0 estatuto da psicanálise na sociedade
177
Compreender
viar a análise, você jogar suas interpretações sobre o paciente assim que as
tiver encontrado” (p. 89). Além disso, a relação com o analista diz respeito
à crença. Aqui Freud retoma o termo Glaube — crença —, que ele introdu
zira em 1890, em “O tratamento psíquico”: “O neurótico começa o trabalho
porque ele atribui uma crença ao analista e acredita nele porque adquire,
em relação à pessoa do analista, uma posição afetiva particular. A criança,
ela também, acredita apenas nas pessoas das quais depende" (p. 97). Essa
influência sugestiva não serve para “reprimir os sintomas” — é o que dife
rencia o método analítico dos outros procedimentos psicoterápicos — e sim
como “força de pulsão para superar as resistências” (p. 97).
O objetivo terapêutico da análise é "restaurar o eu, libertá-lo de seus
entraves, dar-lhe novamente o controle sobre o isso, que ele perdeu depois
de suas primeiríssimas repressões" (p. 62). Essa formulação antecipa o fa
moso adágio das Novas Conferências de introdução à psicanálise, em 1930: "Wo
Es tuar, soil Ich werden”, “Onde havia isso, eu deve advir”.
As implicações políticas
178
0 estatuto da psicanálise na sociedade
A psicanálise fará da sé
Freud mantém até o final, em sua pouca diplomacia, sua oposição a uma
psicanálise sob a cobertura médica. De Londres, em 5 de julho de 1938, em
uma carta a M. Schnier, ele escreve: “Eu não posso imaginar de onde pode
provir esse estúpido rumor referente à minha mudança de opinião sobre a
questão da análise praticada pelos não médicos. O fato é que eu jamais re
pudiei meus pontos de vista e que eu os sustento com maior vigor ainda que
antes, diante da evidente tendência que os americanos têm de transformar
a psicanálise em empregada faz-tudo da psiquiatria"8. É uma constante no
pensamento de Freud manter a autonomia intelectual e prática da psicaná
lise, o que ele enunciava já em 1911 a Jung, retomando por sua própria conta
a palavra de ordem de Garibaldi em favor da unidade italiana (Italia Jard da
sé): “A Spielrein quer subordinar o material psicológico a pontos de vista bio
lógicos; essa dependência deve ser rejeitada tanto quanto a dependência
filosófica, fisiológica, ou da anatomia do cérebro. A psicanálise fará da sé”5 6.
Em sua introdução a A questão da análise profana, J.-B. Pontalis observa
va, em 1985, que para Freud "a questão da análise profana é a questão da
própria análise”. Essa questão continua atual...
179
'■j
! Capítulo XIII
A “mitologia’’ que Freud organizará em Totem e tabu e que ele prossegue até
O homem Moisés e a religião monoteísta não deve ser entendida de modo pejo
rativo como um discurso ingênuo, mas essencialmente como uma visão do
mundo, que assegura ao homem um lugar no universo.
A mitologia freudiana
181
Compreender
3 Jean-Jacques Rousseau, CEuvres completes, Gallimard, tomo III, p. 132-133 (La Pléiade).
182
Mitologia, cultura e religioso
183
Compreender í|§}fl
Ora, uma ordem ética, com sua nulidade mítica, que não é habitada por
nenhuma força pulsional arcaica e infantil, é um puro vazio e nunca po
derá despertar no homem o que quer que seja da antiga força animal que
leva a ave migradora a atravessar o oceano, e sem a qual não se faz nenhum
dos irresistíveis movimentos de manadas. Imagino para a psicanálise uma
tarefa muito mais bela e mais vasta que desembocar em uma ordem ética.
Creio que é preciso dar tempo à psicanálise, infiltrar os povos a partir de
vários centros, reavivar no intelectual o sentido do simbólico e do mítico,
retransformar suavemente Cristo nesse deus-adivinho da vinha que ele era,
e canalizar desse modo as antigas forças pulsionais extáticas do cristianis
mo, tudo isso com o fim único de tomar o culto e o mito santo o que eles
eram: uma festa de alegria embriagada, em que o homem tem o direito de
ser animal no ethos e na santidade. Essa era a grande beleza e a função da
religião antiga, que, por Deus sabe que necessidades biológicas temporá
rias, tornou-se uma instituição de lamentação"6. Aqui aparece o retomo ao
paganismo e a Dionísio, o “deus-adivinho da vinha”.
Para Freud, que definiu a ética, em O homem Moisés e a religião monoteís-
ta, como a "limitação das pulsões”7, a ética reside no controle do arcaico pela
linguagem e pelo que ele chamará de "a ditadura da razão” em uma carta a
Einstein, de julho de 19328.
0 mundo grego
6 Ibid., p. 24.
J Op. cit., p. 219.
8 S. Freud, “Pourquoi la guerre?" (1933b), em OCPF X I X , p. 79.
184
Mitologia, cultura e religioso
185
Compreendar
186
Mitologia, cultura e religioso
187
Compreender
o parricídio por parte do filho não corresponderia a matar o pai e sim a não
mais alimentar o ancestral, sair do mundo da dívida e da culpa.
0 judeo-cristianismo
188
Mitologia, cultura e religioso
13 Gerhard von Rad, Théologie de I'AncienTestament, Genebra, Labor et Fides, 1972, 2 vols.
189
Compreender
dade faz, pois, com que surjam categorias do puro e do impuro, do sagrado
e do profano. Deus não é mais encontrável na relação humana, ele está
ausente dela, assim como ele se ausenta da esfera da sexualidade.
Uma nova categoria aparece, a do desejo, e do desejo necessariamente
ilimitado. Com efeito, nenhum objeto na cena da realidade pode satisfazer
um desejo que sempre ressurge. Freud já pressentira isso em uma carta
a Martha, de 23 de julho de 1882, na qual ele evoca as conseqüências da
destruição do templo de Jerusalém: “[...] os historiadores dizem que se Jeru
salém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos desaparecido, como
tantos outros povos antes e depois de nós. Foi somente após a destruição do
Templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde ser construído””.
Intuitivamente, sem formalizá-lo nem explicitá-lo, Freud privilegia o
tempo em vez do espaço, a história em vez do cosmos, a separação em vez
dessa vontade de constituir um só ou de ser uno, do mundo grego. E o corpo
freudiano, o corpo na psicanálise não é nada além disso. É um corpo que re
mete à história singular de um sujeito, é por isso que ele “sofre de reminis-
cências”. Não se trata aqui da reminiscência platônica que consiste em re
cordar um saber incriado e eterno, mas dessa reminiscência da construção
subjetiva de nossa história, sem vínculo direto com a inteligência divina. A
história é o inacabamento de si, enquanto o espaço é o refúgio para colocar-
se ao abrigo de si mesmo. A relação com o outro não é mais mediada por
uma transcendência, mas pela ilimitação da própria relação.
De acordo com essa perspectiva, poder-se-ia sustentar, em uma leitura
hegeliana das coisas, que o cristianismo não fez senão universalizar para
toda a humanidade a eleição judia pela qual Yahvé arrancou o povo judeu
da idolatria e das religiões orientais que vinculavam a sexualidade e o reli
gioso. É isso que São Paulo diz em sua Carta aos Gálatas (3,28): “Não há mais
judeu nem grego; já não há nem escravo nem homem livre, já não há o ho
mem e a mulher; pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”. Em outras pa
lavras, há uma única raça humana, a humanidade.
Deixamos a terra natal grega da verdade e passamos para o aleatório
da palavra e da Aliança, e portanto estamos fora de toda dinâmica autor-
referencial e fora de toda hipótese de fundamento. Isso diz respeito tanto
à economia, à teologia como à estética, na sociedade pós-modema. Há ao
mesmo tempo uma extrema liberdade, sem limites, no caráter ilimitado do 14
191
Compreender
192
Mitologia, cultura e religioso
O sentido da culpa
193
Compreender .
O obscuro sentimento de culpa tem, pois, de ser entendido como uma re
presentação, isto é, como um investimento. Toda representação, com efeito,
é um investimento, uma representação de uma realidade exterior, certa-
mente, mas transformada de tal modo que seja reconhecível pela psique na
cena interior. Ao mesmo tempo, o segundo sentido de uma representação
é uma forma de identificação com um voto de adulto, de grandes pessoas,
de grandes homens, que atribuem um lugar ao sujeito, quando ele se põe
à escuta da palavra, ou à escuta do pai, quando ele é obediente à palavra
do outro. Nesse momento, ele atribui a si mesmo um lugar que não provém
de si, mas do outro. Percebe-se aqui também que a identificação pode ser
identificação com o passado ou com o futuro. Todo o problema é então o de
saber como balizar o tempo, marca dessas identificações.
0 mal-estar na cultura
194
Mitologia, cultura e religioso
195
Compreender
196
Mitologia, cultura e religioso
25 S. Freud, Un Souuenir d’enfance âe Léonard de Vinci (1910c), Gallimard, 1987, p. 178, “Voca
tion de poète".
26 Hõlderlin, Mnémosyne, CEuure poétique complète, La Différence, 2005,p. 802-803.
197
Compreender
O desencantamento do mundo
Metapsicologia freudiana
27 Hõlderlin, Vocation de poète (segunda versão), in (Euure poétique complete, op. cit., p. 622-
623.
28 S. Freud, Le début du traitement (1913c), in La Technique psychanalytique, PUF, 1953, p. 101-
102.
198
Mitologia, cultura e religioso
199
Capítulo XIV
Ética e metafísica
201
Compreender
Com Kant, pode-se responder que existe uma ética separada de toda
visão do mundo. "É prático tudo o que é possível graças à liberdade”1, diz
ele na conclusão de sua Crítica da razão pura. Kant foi o primeiro moderno
a afirmar a autonomia do sujeito em relação ao mundo, em relação a uma
visão metafísica, e o primeiro a extrair as conseqüências disso: é prático
tudo o que o é por liberdade, tudo o que é possível graças à autonomia do
sujeito em relação às formas a priori da sensibilidade, o espaço e o tempo.
Para Kant, a ética é a faculdade de fazer existir uma liberdade transcenden
tal, isto é, uma causalidade da razão na determinação de uma vontade que
não seja patologicamente afetada pela ordem dos fenômenos na qual reina
a causalidade da natureza e da ciência, ao mesmo tempo em que ela está
desligada de toda visão do mundo.
Para Hegel, pelo contrário, não há moral sob uma forma separada, por
que a consciência, na Fenomenologia do espírito, esposa sucessivamente todas
as modalidades da cultura, todos os momentos da cultura. A consciência é,
pois, imersa em uma razão “astuciosa”, que coincide por fim com o saber
absoluto; ela nunca emerge dos momentos da cultura com os quais ela
tem contato e na qual ela se inscreve. Desse modo, Hegel em certa medida
anunciou que o saber absoluto, quando coincide com a sabedoria (a metafí
sica coincide então com a ética), nos faz entrar no fim da história, segundo
a interpretação de Kojève.
Poder-se-ia também atravessar a filosofia grega para mostrar que exis
tem posições fundamentadas e argumentadas em que a ética pode ou não
se autonomizar de uma visão do mundo e para recordar que no mundo
antigo não há liberdade. Nele, a moral não pode ser senão assentimento à
ordem do mundo, seguir o que é conveniente, o costume. Há, por um lado,
as ta kathékonta, as coisas que são convenientes, e, por outro lado, as ta ouk
teathéfeonta, as coisas que não são convenientes. A moral (ethike) reduz-se, no
fim das contas, ao ethos, o costume. É ético o que é consentimento à ordem
do mundo, ao costume, sem emergência do sujeito em relação ao cosmos,
à lei da cidade. Daí o conflito singular de Antígona que opõe outra lei, a da
consciência (syneidesis), à lei da cidade.
É esse mundo da coerência entre a metafísica, a ética e a religião que
Freud constata estar acabado com a condição do homem moderno e ao qual
ele responde com sua própria mitologia. Já em 1882 Freud expressa essa in-
202
Ética e visão do mundo
tuição em uma carta dirigida à sua noiva, Martha: "Os historiadores dirão que
se Jerusalém não tivesse sido destruída nós, judeus, teríamos desaparecido
como tantos outros povos antes de nós e depois de nós. Foi somente após
a destruição do templo visível que o invisível edifício do judaísmo pôde ser
construído”. Freud marca, já nessa época, a oposição entre a sujeição a um
cosmos do qual não se pode escapar e a dimensão da temporalidade, portan
to de um futuro que permite separar-se do mundo, da terra e da raça.
Emergência da lei
203
Compreender
204
Ética e visão do mundo
Espaço de enunciação
205
Compreender
Ética e método
206
Bibliografia
Obras de Freud
Edição inglesa: The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sig
mund Freud. 24 vols., com índice, Londres, The Hogarth Press, 1966-1974, edi
ção cronológica, modelo de edição e de notas críticas para a época, sob a
organização de James Strachey.
Edição francesa: CEuvres complètes (OCP.F). PUF, tradução, edição e notas crí
ticas sob a organização crítica de Jean Laplanche. 21 vols. previstos, 17 publi
cados em 2007 (indispensável, melhor estabelecimento crítico do texto que
o da Standard Edition).
207
Compreender
208
Bibliografia
Correspondência
209
Compreender
Documentos
210
Bibliografia
História da psicanálise
Dicionários
211
---......
índice onomástico
213
Compreender
Heráclito 201
Héritier, Françoise 183
Hobbes, Thomas 181
Hõlderlin, Friedrich 143, 181,186,197,
198
Ibsen, Henrik 86,136
Jones, Ernest 17,19, 113,120,178,179,
209, 210
Jung, Carl Gustav 12,14-16,18,21, 22, 72,
80, 85, 93, 94,142,179,181,183, 209
Kant, Emmanuel 163,164,167-169,172,
173,202
Kojève, Alexandre 166,184,185,202
Lacan, Jacques 54, 102,129,131,143,
159-161,172,204
Laplanche, Jean 142,207,211
Lawrence, Thomas Edward 139
Lévi-Strauss, Claude 17,182
Liébeault, Auguste 23,29,30,92
Mahony, Patrick 20, 22, 210
Mannoni, Octave 23,38,73,210
Messmer, Franz Anton 30,38,92
Michaux, Henri 81
Mijolla, Alain de 179, 210, 211
2'
Moebius, Paul-Julius 24, 41, 62
Montaigne, Michel de 73,163
Nietzsche, Friedrich 19,114,193
Oppenheim, Hermann 41, 51
Pascal, Blaise 73
Perrier, François 152,189
Platão 58,79,165,185
Pontalis.Jean-Bertrand 175,179,211
Racine, Jean 41
Rank, Otto 142
Rolland, Romain 194
Rousseau, Jean-Jacques 85, 89,122,123,
181,182
Sachs, Hanns 18
Santo Agostinho 67, 71, 79
Schneider, Michel 175,179
Ségur, Condessa de 121, 122
Shakespeare, William 107,115
Spinoza, Baruch 165
Stein, Conrad 136,138
Tomás de Aquino 167,173
Virgílio 204
Weber, Max 189,198
Zola, Émile 116