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Flannery O’Connor
ISBN: 9789896230838
aí. “Tio”, disseme ele uma vez, “você pertence a uma raça
que já está quase extinta!” Pagaria de bom grado ao can
galheiro para me queimar de modo a poder espalhar as mi
nhas cinzas», disse o velho. «Ele não acredita na
Ressurreição. Não acredita no Dia do Juízo Final. Não
acredita no pão da vida...»
«Os mortos querem lá saber de pormenores», atalhou o
rapaz.
O velho agarrouo pela frente do fatomacaco, caçou
o de encontro à lateral do caixão e olhou irado para o
rosto pálido do rapaz. «O mundo foi feito para os mortos.
Pensa em quantos mortos há aqui», disselhe ele, e depois,
como se tivesse concebido a resposta para toda a insolên
cia que há na Terra, acrescentou: «O número de mortos
excede o dos vivos em milhões, e os mortos estão mortos
milhões de anos mais do que vivem os vivos», e largouo
com uma gargalhada.
O rapaz mostrara apenas através de uma ligeira tremura
que se deixara abalar pelo comentário e, passado um mi
nuto, dissera: «O professor é meu tio. É o único parente de
sangue com bom senso que tenho e ainda vive, e se eu
quisesse ir para junto dele, assim faria; num instante.»
O velho olhouo em silêncio durante o que pareceu um
minuto inteiro. Então despenhou as mãos abertas de
chapa nas bordas do caixão e bramiu: «Quem está desti
nado à peste, vá para a peste! Quem à espada, vá para a
espada! Quem ao fogo, vá para o fogo!» E a criança tre
meu visivelmente.
«Salveite para seres livre, fiel a ti mesmo!», gritara, «e
não um pedaço de informação dentro da cabeça dele! Se
morasses com ele, neste preciso momento serias informa
ção, estarias dentro da sua cabeça, e ainda para mais»,
acrescentou, «terias de ir à escola.»
18 FLANNERY O'CONNOR
Será que ainda não tens idade que chegue para teres
aprendido isso por ti? Será que tudo o que fazes, tudo o
que alguma vez fizeste, não te salta à vista como sendo
certo ou errado, e isto normalmente antes do solposto?
Alguma vez te safaste com alguma coisa? Nada disso, tão
pouco alguma vez julgaste que te safarias. Mais vale be
beres esse álcool todo, posto que já bebeste tanto. Uma vez
que se excede o limite da moderação, não há como voltar
atrás, e essa revolução que sentes descerte por dentro a
partir da crista do cérebro, disse ele, é a Mão de Deus a
darte a Sua bênção. Ele deute a tua liberdade. Aquele ve
lho era o rochedo que te estorvava a porta e Deus afastou
o a rolar. Ainda não o fez rolar para longe quanto baste,
claro. Tens de acabar a obra sozinho, mas encarregouse
do essencial. Louvado seja Ele.
Tarwater perdera toda a sensibilidade nas pernas.
Passou um pouco pelas brasas, com a cabeça pendurada
para um lado e a boca aberta, e o álcool a gotejar pouco a
pouco pela lateral do fatomacaco abaixo, no local onde o
cântaro se virara sobre o seu colo. Passado algum tempo,
restava apenas um pingo pegado ao gargalo da garrafa,
que se formava, enchia e caía, silencioso, cadenciado e da
cor do sol. O céu luminoso e homogéneo começou a escu
recer, engrossando de nuvens até que todas as sombras se
haviam confundido. Ele acordou com um repelão para a
frente, focando e desfocando os olhos em algo que parecia
um trapo queimado suspenso rente ao seu rosto.
Buford disselhe: «Isto não são maneiras de te compor
tares. O velho não merece isto. Não há descanso enquanto
os mortos não estão enterrados.» Encontravase de cóco
ras, com uma mão cerrada em torno do braço de Tarwater.
«Fui até além, à porta de casa, e vio para lá sentado à
mesa, nem sequer estava estendido numa padiola. Devia
O CÉU É DOS VIOLENTOS 47