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O céu é dos violentos

Flannery O’Connor

O céu é dos violentos

Tradução do original inglês


Luís Coimbra
Título original: The violent bear it away

Autor: Flannery O'Connor


© 1955, 1960 por Flannery O'Connor
© renovado em 1988 por Regina O'Connor

Revisão: Isabel Ramos

ISBN: 9789896230838

Todos os direitos para publicação


em língua portuguesa reservados por:

© Cavalo de Ferro Editores, Lda.


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1100422 Lisboa

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com excepção de excertos breves
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Para Edward Francis O’Connor
18961941
«FROM THE DAYS OF JOHN THE BAPTIST
UNTIL NOW, THE KINGDOM OF HEAVEN SUFFERETH
VIOLENCE, AND THE VIOLENT BEAR IT AWAY.»
MATTHEW, 11:12

«DESDE OS DIAS DE JOÃO BAPTISTA ATÉ


AGORA , O REINO DOS CÉUS TEM SIDO OBJECTO
DE VIOLÊNCIA E OS VIOLENTOS APODERARAMSE
DELE À FORÇA ."
MATEUS, 11:12
UM
I

O tio de Francis Marion Tarwater estava morto há meio dia


apenas quando o rapaz ficou demasiado bêbado para aca
bar de abrir a sepultura e um negro chamado Buford
Munson, que ali viera pedir para lhe encherem um jarro,
teve de terminar o serviço e arrastar o cadáver para longe
da mesa posta para o pequenoalmoço, à qual se encon
trava ainda sentado, de modo a sepultálo condignamente
e de acordo com os preceitos cristãos, com o sinal do
Salvador à cabeceira e terra em cima quanta bastasse para
desencorajar os cães de desenterrem o defunto. Buford
aparecera cerca do meiodia e quando abalou pelo solpôr,
o rapaz, Tarwater, ainda não regressara do alambique.
O velho fora tioavô de Tarwater, ou pelo menos assim
dizia ser, e os dois haviam sempre vivido juntos, tanto
quanto a criança sabia. O seu tio disseralhe que tinha se
tenta anos de idade na altura em que o salvara e se encar
regara de criálo; contava oitenta e quatro na hora da sua
morte. Tarwater calculava portanto que ele próprio teria ca
torze anos. O seu tio ensinaralhe Contas, Leitura, Escrita,
e História a começar em Adão expulso do Jardim e se
guindo por aí abaixo, passando por todos os presidentes até
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Herbert Hoover, e avançando especulativamente até à


Segunda Vinda de Cristo e ao Dia do Juízo Final. Além de
lhe ter proporcionado uma boa educação, resgatarao do
seu único parente restante, o sobrinho do velho Tarwater,
um professor que não tinha filho próprio na altura e que
ria este rebento da falecida irmã para criálo de acordo com
os seus próprios ideais.
O velho estava em condições de saber que ideais eram
esses. Morara três meses em casa do sobrinho em nome da
quilo que na época julgara tratarse de Caridade, mas que
dizia ter posteriormente descoberto que não era Caridade
nem nada que se parecesse. Durante todo o tempo que mo
rara lá, o sobrinho dedicarase em segredo à realização de
um estudo sobre o velho. O sobrinho, que o acolhera em
nome da Caridade, estivera ao mesmo tempo a infiltrarse
lhe na alma por portas travessas, fazendolhe perguntas
que tinham mais do que um sentido, armandolhe ciladas
pelos quatro cantos da casa e observandoo a cair nas ar
madilhas, compilando por fim um estudo escrito sobre o
velho para publicação numa revista académica. O fedor do
seu mau comportamento chegara às portas do Céu e fora o
próprio Nosso Senhor quem salvara o tio. Enviaralhe uma
fúria de visões, disseralhe que fugisse com o pequeno ór
fão para os pontos mais esconsos das florestas do interior
e o criasse de forma a justificar a sua Redenção. O Senhor
asseguraralhe muita longevidade e ele raptara o bebé de
baixo do nariz do professor e levarao consigo para vive
rem na clareira de Powderhead, propriedade que era sua de
direito vitalício.
O velho, que dizia ser profeta, educara o rapaz para que
contasse receber ele próprio a chamada d’O Senhor e se
preparasse para o dia em que esta lhe chegasse aos ouvi
dos. Instruírao acerca dos males que se abatem sobre os
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profetas; deralhe a saber aqueles que emanam do mundo


terreno, que são insignificantes, bem como aqueles que
provêm d’O Senhor e purificam o profeta pelo fogo; pois
ele próprio fora purificado e purificado voltara a ser pelas
chamas. Fora ensinado pelo fogo.
Ouvira o chamamento na flor da idade e abalara rumo
à cidade para proclamar a destruição reservada para o
mundo que abandonara o seu Salvador. Proclamava no fu
ror da sua fúria que o mundo veria o sol rebentar em san
gue e chamas, e, enquanto ele bramia e por isso aguar
dava, o astro levantavase diariamente pela manhã, calmo
e contido, como se não só o mundo, mas também Deus
Nosso Senhor se tivesse escusado a ouvir a mensagem do
profeta. Nascia e tornava a pôrse, nascia e tornava pôrse
num mundo cujas cores alternavam entre verde e branco
e verde e branco e verde e branco uma vez mais. Nascia e
tornava a pôrse e ele desesperava pela atenção dos ouvi
dos d’O Senhor. Depois, numa manhã, viu para sua alegria
um dedo de fogo sair do astro e, antes que pudesse virar
se, antes que pudesse gritar, fora tocado por esse dedo e
a destruição pela qual esperara abaterase sobre o seu pró
prio cérebro e o seu próprio corpo. Fora o seu próprio san
gue a secar pelo fogo e não o sangue do mundo.
Tendo aprendido muito com os seus próprios erros, es
tava em condições de instruir Tarwater – quando o rapaz
se prestasse a darlhe ouvidos – sobre os factos incontor
náveis do serviço ao Senhor. O rapaz, que tinha ideias pró
prias, ouviao com a convicção impaciente de que nunca
cometeria quaisquer erros quando chegasse a sua hora e
por Deus fosse chamado.
Não foi essa a última vez que Deus castigou o velho
pelo fogo, mas tal não tornara a acontecer desde que res
gatara Tarwater das mãos do professor. Na ocasião em que
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o fez, a sua fúria de visões fora nítida. Soubera com cla


reza do que estava a salvar o menino, e era salválo e não
destruílo que intentava. Aprendera o suficiente para odiar
a destruição inevitável que viria, sem guardar qualquer
ódio ao que seria por ela destruído.
Rayber, o professor, não tardara a descobrir onde eles
estavam e viera até à clareira para recuperar o bebé. Vira
se obrigado a deixar o carro estacionado no caminho de
terra batida e a andar quilómetro e meio através dos bos
ques, num carreiro que ia surgindo e se sumindo, até al
cançar o milheiral com a cabana lúgubre de dois andares
plantada ao centro. Em vida, o velho fora amigo de re
lembrar para Tarwater o rubro rosto suado e picado do seu
sobrinho a boiar para cima e para baixo milho adentro, e
por trás dele, o chapéu florido corderosa de uma assis
tente social que trouxera à boleia consigo. Nesse ano o mi
lho estava plantado até pouco mais de um metro do al
pendre e, quando o sobrinho saiu do meio das folhas, o
velho surgiu à soleira, de caçadeira em riste, gritou que
meteria bala em qualquer pé que tocasse nos seus degraus
e os dois detiveramse frente a frente enquanto a assis
tente despontava do milheiral, eriçada como uma pavoa
perturbada no seu ninho. O velho dizia que, não fora a as
sistente social, o seu sobrinho não teria arriscado dar um
passo. Ambos os seus rostos vinham arranhados e a san
grar das sarças, e a blusa da assistente social trazia uma
vareta de amoreira pendurada na manga.
Bastoulhe soltar a respiração num sopro lento, como se
estivesse a desprenderse do último vestígio de paciência
no mundo, para que o sobrinho levantasse o pé e o plan
tasse no degrau onde o velho lhe deu um tiro na perna.
Relembrava para benefício do rapaz a expressão de inte
gridade ultrajada no semblante do sobrinho, ar que o enfu
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recera de tal modo que levantara um pouco mais a arma e


lhe dera outro tiro, arrancandolhe dessa feita um nico da
orelha direita. O segundo disparo lavoulhe a integridade
do rosto e deixouo branco e inexpressivo, revelando que
nada escondia por trás, revelando também, como o velho
por vezes admitia, o seu próprio fracasso, pois tentara e não
lograra, muito tempo atrás, salvar o seu sobrinho. Raptara
o quando era um menino com sete anos e levarao para o
fundo da floresta, baptizarao e instruírao sobre os factos
da sua Redenção, mas o efeito da instrução durara uns
poucos anos apenas; a seu tempo, a criança enveredara por
um rumo diverso. Havia momentos em que a possibilidade
de ter sido ele próprio a empurrar o seu sobrinho para esse
novo rumo pesava de tal forma no seio do velho que este
parava de contar a história a Tarwater, detinhase e fitava
em frente como se mergulhasse os olhos num abismo que
se houvesse aberto a seus pés.
Em tais momentos afastavase perdido nos bosques e
deixava Tarwater a sós na clareira, por vezes dias a fio, en
quanto se reconciliava violentamente com O Senhor, e
quando retornava, maltrapilho e esfomeado, trazia o as
pecto que o menino julgava que um profeta deveria ter.
Apresentavase como se acabasse de voltar de uma luta
corpo a corpo com um gatoselvagem, como se trouxesse
a cabeça ainda prenhe das visões que vislumbrara nos
olhos do animal, rodas de luz e feras estranhas com asas
de fogo gigantescas e quatro cabeças viradas para outros
tantos pontos do universo. Era nessas alturas que Tarwater
se convencia de que, quando fosse chamado, diria: «Aqui
estou, Senhor, ao Seu serviço!» Noutras alturas, em que
não via qualquer chama nos olhos do seu tio e este falava
apenas do suor e do fedor da cruz, de renascer de novo
para morrer, e de passar a eternidade a alimentarse do
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pão da vida, o rapaz deixava os seus pensamentos deriva


rem para outros temas.
Os pensamentos do velho nem sempre se deslocavam
com a mesma velocidade de andamento ao percorrerem
todos os pontos da história que contava. Às vezes, como
se não quisesse pensar no assunto, saltava apressado a
parte em que atirara sobre o sobrinho e precipitavase em
diante, contando como os outros dois, o sobrinho e a as
sistente social (que até no próprio nome – Bernice Bishop
– era cómica), tinham batido em debandada, desapare
cendo com um restolhar no meio do milho, e como a mu
lher da assistência social gritara: «Porque é que não me
avisou? Você já sabia que ele era maluco!», e como,
quando saíram pelo extremo oposto do milheiral, reparara
através da janela do andar de cima, para onde fora a cor
rer, que ela levava o ombro traçado à volta do sobrinho e
o sustinha na vertical enquanto este entrava no bosque ao
pécoxinho. Mais tarde veio a saber que se haviam casado,
embora ela tivesse o dobro da idade do parceiro e não
houvesse qualquer possibilidade de este lhe tirar mais do
que um filho do ventre. A mulher nunca deixara o marido
voltar àquele lugar.
E Deus, dizia o velho, protegera a única cria que o seu
sobrinho tirara do ventre da mulher de ser corrompida por
pais daquela laia. Protegeraa do único modo possível: a
criança nascera lerda. O velho fazia sempre uma pausa
aqui e deixava que o peso deste mistério descesse sobre a
cabeça de Tarwater. Fizera, desde que soubera da existên
cia dessa criança, diversas incursões à cidade para tentar
raptála de modo a poder baptizála, mas, de todas as ve
zes que lá fora, regressara sem êxito. O professor estava de
sobreaviso e o velho tinhase tornado demasiado gordo e
perro para dar um raptor desembaraçado.
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«Se, chegada a hora da minha morte», dissera a


Tarwater, «ainda não o tiver baptizado, sobra para ti. Será
a primeira missão que Deus te dará.»
O rapaz tinha muitas dúvidas de que a sua primeira
missão seria baptizar uma criança lerda. «Ai isso é que não
sobra», respondera ao tioavô. «Ele não quer que eu ate as
pontas que deixares soltas. Tem outras coisas em mente
para mim.» E com isto lembrouse de Moisés que fez bro
tar água de uma rocha, de Josué que fez parar o sol, de
Daniel que na cova amansou os leões com o olhar.
«Não faz parte das tuas competências pensar em nome
d’O Senhor», disselhe o tioavô. «Olha que o Juízo ainda
te baralha os ossos.»

Na manhã em que o velho faleceu, desceu ao résdochão


e preparou o pequenoalmoço, como de costume, e mor
reu antes de ter levado a primeira colherada à boca. O an
dar rasteiro da casa era todo ele cozinha, ampla e escura,
com um fogão a lenha numa extremidade e uma mesa de
pau chegada ao fogão. Havia sacos de ração e farinha em
pilhados pelos cantos, bem como ferrovelho, aparas de
madeira, cordas esgaçadas, escadotes e outros materiais
combustíveis espalhados por todos os locais onde
Tarwater os tivesse deixado cair. Haviam dormido na co
zinha até que, numa noite, um lincevermelho pulou ja
nela dentro e assustou o seu tio de tal modo que carregou
a cama para o andar de cima onde havia dois quartos va
gos. O velho profetizou nessa altura que a travessia dos
degraus lhe tiraria dez anos de vida. Na hora da sua
morte, sentouse para tomar o pequenoalmoço e soer
gueu a faca presa numa mão vermelha e quadrangular
que fez meio caminho até à boca, depois, com um ar de
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assombro absoluto, baixoua até pousar a mão na orla do


prato e virálo para o chão.
O velho parecia um toiro com uma cabeça atarracada,
directamente instalada entre os ombros, e olhos de prata
protuberantes que mais pareciam dois peixes em esforço
para escaparem de uma rede de fios vermelhos. Usava um
chapéu cor de argamassa com a aba revirada para cima em
derredor e, sobre a camisola interior, vestia um casaco cin
zento que outrora fora preto. Tarwater, sentado ao lado
oposto da mesa, viu cordas rubras aflorarem ao rosto do
tio enquanto um tremor lhe perpassava o corpo. Era como
um tremor de terra que lhe houvesse nascido no coração e
se tivesse espraiado em toda a volta e assomasse agora à
superfície. A sua boca torceuse súbita para baixo de um
dos lados e ele permaneceu tal qual como se encontrava,
perfeitamente equilibrado, com as costas a uns bons
quinze centímetros das costas da cadeira e a barriga tra
vada ao rés da aresta da mesa. Os olhos, de prata baça, es
tavam focados no rapaz que tinha por diante.
Tarwater sentiu o tremor transferirse e passar ao de
leve sobre si. Percebeu que o homem estava morto sem o
tocar e permaneceu sentado do lado oposto da mesa em
relação ao cadáver, terminando o matabicho com um tipo
de vergonha taciturna como se estivesse na presença de
uma nova personalidade e não lhe ocorresse nada para di
zer. Por fim, atirou em tom quezilento: «Aguenta os cava
los. Já te disse que tratava de tudo como deve ser.» A voz
parecialhe ser a de um desconhecido, como se a morte o
tivesse alterado a ele em vez de ao tioavô.
Levantouse e saiu com o seu prato pela porta dos fun
dos, depositouo no degrau mais baixo e dois galos pretos
de pernas altas romperam a correr pelo quintal e acabaram
com os restos que haviam ficado na loiça. Sentouse numa
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caixa comprida de madeira de pinho instalada no alpendre


traseiro e as suas mãos distraídas começaram a destrinçar
um pedaço de corda enquanto o seu rosto deprimido
olhava fixo para diante, para além da clareira, por cima
dos bosques que se multiplicavam em dobras cinzentas e
roxas até tocarem na fortaleza azulclara de árvores re
cortadas no céu vazio da manhã.
Powderhead não ficava simplesmente desligada da es
trada de terra batida, estava também afastada do caminho
para carroças e do carreiro pedestre, e os vizinhos mais
próximos, com tez de cor que não branca, ainda tinham de
marchar através do bosque, afastando ramos de ameixieira
à sua frente para ali chegarem. Em tempos houvera duas
casas no local; agora restava apenas uma com o defunto
proprietário lá dentro e o proprietário ainda vivo cá fora,
no alpendre, à espera de sepultar o outro. O rapaz sabia que
teria de enterrar o velho antes de poder começar fosse o
que fosse. Era como se tivesse de deitar terra sobre ele an
tes de o tio estar definitivamente morto. Essa ideia parecia
concederlhe alívio temporário de algo que o oprimia.
Semanas atrás, o velho começara a plantar um milhei
ral para o lado esquerdo do terreno e a sementeira esten
derase para além do limite da vedação e chegara quase
até uma das faces da casa. Os dois fios de arame farpado
cruzavam pelo meio da leira. Uma linha de nevoeiro, com
formas corcovadas, principiava a esgueirarse naquela di
recção à laia de um cão de caça branco pronto para raste
jar por baixo da cerca e gatinhar ao longo do quintal.
«Vou mudar aquela vedação de sítio», disse Tarwater.
«Não heide ter nenhuma vedação que seja minha atraves
sada no meio da leira.» A voz que dizia isto era alta e es
tranha e desagradável. Continuou a falarlhe dentro da sua
cabeça: tu não és dono disto. O proprietário é o professor.
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O proprietário sou eu, disse Tarwater, porque sou eu que


aqui estou e daqui ninguém me tira. Se algum professor
vier reivindicar a propriedade, matoo.
Talvez Nosso Senhor te avie, pensou. Caía um sossego
absoluto sobre todas as coisas e o rapaz sentiu o coração
inchar. Susteve a respiração como se estivesse prestes a es
cutar uma voz vinda dos céus. Passados momentos, ouviu
uma galinha arranhar a terra debaixo de si, por baixo do
alpendre. Passou o seu braço furioso por sob o nariz e gra
dualmente o seu rosto tornou a embranquecer.
Tinha vestido um fatomacaco desbotado e trazia um
chapéu cinzento enfiado por cima das orelhas como se
fosse um gorro. Seguia o costume do seu tio de nunca ti
rar o chapéu excepto na cama. Seguira sempre os costu
mes do seu tio até à data, mas: se eu quiser deslocar
aquela vedação antes de o enterrar, não haverá aqui vi
valma que me coloque entraves, pensou; não haverá aqui
voz que se levante.
Enterrao primeiro e arruma logo o assunto, disse a voz
alta e desagradável do desconhecido. Ele levantouse e foi
à procura da pá.
A caixa de madeira de pinho na qual se sentara era a
urna do seu tio, mas não fazia tenções de darlhe uso.
O velhote era demasiado pesado para um rapaz magricela
o içar para dentro de uma caixa, e, embora o velho
Tarwater a tivesse construído há muitos anos por sua pró
pria mão, dissera que, se não fosse praticável arrumálo lá
dentro quando chegasse a sua hora, então o sobrinho que
o pusesse simplesmente na cova como o encontrasse,
desde que garantisse que a cova fosse suficientemente
funda. Queria que tivesse três metros de profundidade, di
zia ele, não apenas dois e meio. Perdera muito tempo a
trabalhar o caixão e, quando terminara a obra, gravaralhe
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na tampa: MASON TARWATER, COM DEUS, trepara lá


para dentro, no local onde o pousara sobre o alpendre das
traseiras, e passara bastante tempo ali deitado, sem nada à
vista além da barriga que se erguia acima da borda como
um pão excessivamente levedado. O rapaz detiverase à
beira do caixão, a olhálo muito atento. «É assim que to
dos acabamos», disse o velho satisfeito, na sua voz de cas
calho que saía animada da urna.
«És demasiado grande para o caixão», comentou
Tarwater. «Vou ter de me sentar na tampa para te apertar
lá dentro, ou esperar que apodreças um bocadinho.»
«Não esperes», dissera o velho Tarwater. «Escuta. Se não
for praticável usar o caixão quando chegar a minha hora,
se não fores capaz de levantálo, ou coisa que o valha, en
fiame assim mesmo na cova. Só quero que seja funda.
Quero que tenha três metros de profundidade, não só dois
e meio, três. Na pior das hipóteses, podes fazerme rebolar
até lá. Heide rolar bem. Pega em duas pranchas e assenta
as nos degraus, põeme a rolar e cava onde o corpo for
parar, mas não me deixes rebolar para dentro do buraco
enquanto não estiver fundo que chegue. Travame com ti
jolos para eu não rolar lá para dentro e não deixes os cães
empurraremme por cima da borda enquanto a cova não
estiver acabada. É melhor atrelares os cães nalgum lado»,
dissera ele.
«Então e se morreres na cama?», perguntoulhe o rapaz.
«Como é que heide trazerte pela escada abaixo?»
«Não vou morrer na cama», asseverou o velho. «Assim
que ouvir chamar por mim, venho a correr para o résdo
chão. Ponhome tão perto da porta quanto puder. Se por
acaso ficar preso lá em cima, terás de fazerme rolar pela
escada abaixo, mais nada.»
«Meu Deus», disse a criança.
16 FLANNERY O'CONNOR

O velho sentouse direito no caixão e deixou cair o pu


nho na aresta do mesmo. «Escuta», disse então. «Nunca te
pedi grande coisa. Acolhite e crieite, salveite daquele
asno que mora lá na cidade e agora só te peço em troca
que, quando eu subir, me ponhas debaixo de terra onde os
mortos devem estar e me espetes uma cruz em cima para
mostrar que para ali estou. Não te peço que faças mais
nada por mim. Nem sequer te estou a pedir que vás cha
mar os pretos e tentes sepultarme junto ao meu papá no
jazigo. Até podia pedirte isso, mas não to peço. Estou a
fazer tudo o que posso para te facilitar a tarefa. Só te peço
que me ponhas na terra e armes uma cruz.»
«Já não é nada mau se te conseguir meter na terra», disse
Tarwater. «Heide ficar demasiado esbaforido para armar al
guma cruz. Não me vou incomodar com pormenores.»
«Pormenores!», sibilou o seu tio. «Hásde aprender o
que é um pormenor no dia em que essas cruzes forem reu
nidas! Enterrar os mortos como se impõe talvez seja a
única honra que prestarás na tua vida. Trouxete aqui para
te educar como Cristão, mais ainda que um Cristão, como
profeta!», bradou ele, «e o peso dessa responsabilidade só
a ti te compete!»
«Se não tiver força para dar conta do recado», disse a
criança, observandoo com um distanciamento cauteloso,
«informo o meu tio na cidade e ele pode vir cá tratar de ti.
Chamo o professor», disse em voz arrastada, reparando que
as picadas das bexigas já se haviam embranquecido de en
contro ao rosto roxo do seu tio. «Ele háde cuidar de ti.»
Os fios vermelhos que restringiam os olhos do velho
engrossaram. Agarrou ambas as bordas do caixão e fez
força para diante como que prestes a guiálo para fora do
alpendre. «Se o chamasses ele queimavame», rouquejou.
«Cremavame num forno e espalhava as minhas cinzas por
O CÉU É DOS VIOLENTOS 17

aí. “Tio”, disseme ele uma vez, “você pertence a uma raça
que já está quase extinta!” Pagaria de bom grado ao can
galheiro para me queimar de modo a poder espalhar as mi
nhas cinzas», disse o velho. «Ele não acredita na
Ressurreição. Não acredita no Dia do Juízo Final. Não
acredita no pão da vida...»
«Os mortos querem lá saber de pormenores», atalhou o
rapaz.
O velho agarrouo pela frente do fatomacaco, caçou
o de encontro à lateral do caixão e olhou irado para o
rosto pálido do rapaz. «O mundo foi feito para os mortos.
Pensa em quantos mortos há aqui», disselhe ele, e depois,
como se tivesse concebido a resposta para toda a insolên
cia que há na Terra, acrescentou: «O número de mortos
excede o dos vivos em milhões, e os mortos estão mortos
milhões de anos mais do que vivem os vivos», e largouo
com uma gargalhada.
O rapaz mostrara apenas através de uma ligeira tremura
que se deixara abalar pelo comentário e, passado um mi
nuto, dissera: «O professor é meu tio. É o único parente de
sangue com bom senso que tenho e ainda vive, e se eu
quisesse ir para junto dele, assim faria; num instante.»
O velho olhouo em silêncio durante o que pareceu um
minuto inteiro. Então despenhou as mãos abertas de
chapa nas bordas do caixão e bramiu: «Quem está desti
nado à peste, vá para a peste! Quem à espada, vá para a
espada! Quem ao fogo, vá para o fogo!» E a criança tre
meu visivelmente.
«Salveite para seres livre, fiel a ti mesmo!», gritara, «e
não um pedaço de informação dentro da cabeça dele! Se
morasses com ele, neste preciso momento serias informa
ção, estarias dentro da sua cabeça, e ainda para mais»,
acrescentou, «terias de ir à escola.»
18 FLANNERY O'CONNOR

O rapaz fez uma careta. O velho sempre lhe martelara


na cabeça a sorte que tinha por não ser mandado para a
escola. Fora vontade d’O Senhor garantir a pureza da sua
educação, preserválo para que se não contaminasse,
preserválo como Seu servo eleito, treinado por um pro
feta para bem profetizar. Enquanto as outras crianças da
sua idade eram arrebanhadas numa sala para recortarem
abóboras em papel de acordo com as instruções de uma
mulher, ele era deixado à solta para buscar sabedoria,
tendo por companheiros de espírito Abel e Henoc, Noé e
Job, Abraão e Moisés, os reis David e Salomão, bem
como todos os profetas desde Elias, que escapou à morte,
até João, cuja cabeça decepada inspirava terror servida
num prato. O rapaz sabia que escapar à escola era o si
nal mais seguro do seu estatuto de eleição.
O agente municipal responsável pela caça aos gazetei
ros só os visitara uma vez. O Senhor avisara o velhote de
que deveria contar com a vinda do agente e aconselhara
o quanto ao que fazer, e o velho Tarwater instruíra o ra
paz sobre o papel a desempenhar no dia em que, qual
emissário do diabo, o agente aparecesse. Quando chegou
a altura disso e viram o homem cortar caminho pela
leira, estavam prontos. A criança escondeuse atrás da
casa e o velho sentouse à espera nos degraus. Quando o
agente, um homem magro e careca com suspensórios
vermelhos, saiu do meio do milho e pisou a terra batida
do quintal, cumprimentou o velho Tarwater circunspec
tamente e deu início aos trabalhos que lhe competiam
como quem não quer a coisa. Sentouse nos degraus e fa
lou do mau tempo e da falta de saúde. Finalmente, per
dendo o olhar ao longe, por cima dos campos, disse: «O
senhor tem um menino, não tem?, que está em idade de
ir para a escola?»
O CÉU É DOS VIOLENTOS 19

«É um rico menino», respondeu o velho, «e não seria eu


a impedilo de ir se alguém se julgasse capaz de o ensinar.
Oh menino!», chamou. O rapaz não veio de imediato. «Oh
menino, anda cá!», gritou o velho.
Dentro de poucos minutos, Tarwater surgiu dobrando a
esquina da casa. Trazia os olhos abertos mas mal focados.
A cabeça rolavalhe ingovernável sobre os ombros descaí
dos e trazia a língua pendurada para fora da boca aberta.
«Não é lá muito esperto», disse o velho, «mas sem dú
vida que é um bom menino. Sabe vir quando o chama
mos.»
«Sim», disse o agente municipal, «pois bem, mas talvez
seja melhor deixálo em paz.»
«Não sei, até é capaz de se dar bem na escola», comen
tou o velho. «Já não tem nenhuma crise há coisa de dois
meses.»
«Suponho que seja melhor ficar em casa», disse o
agente. «Não gostaria de sujeitálo a esforços excessivos»,
posto o que começou a mudar de assunto. Dentro em
breve, despediuse e eles os dois observaramno satisfeitos
enquanto a sua figura minguante regressava pelo meio dos
campos e os suspensórios vermelhos se perdiam final
mente de vista.
Se o professor o tivesse apanhado a jeito, neste preci
so momento estaria na escola, não passando de mais um
entre muitos, indistinguível da manada, e, dentro da cabeça
do professor, estaria desmontado em peças e dividido em
números. «Era aí que ele me queria», dizia o velho, «e jul
gava que, assim que me pusesse naquela revista para pro
fessores, eu estaria praticamente dentro da sua cabeça.»
A casa do professor poucos pertences tinha dentro além de
livros e papéis. O velho não soubera quando fora para lá
morar que todo o ser vivo que passava através dos olhos do
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sobrinho e lhe entrava na cabeça era transformado pelo seu


cérebro num livro, ou um trabalho, ou uma tabela. O pro
fessor mostrara grande interesse no facto de o seu tio ser
profeta, eleito de Deus, e fizeralhe numerosas perguntas,
cujas respostas por vezes rabiscara num bloco de notas, com
os seus olhinhos pequeninos a acenderemse de quando em
vez como que iluminados por alguma descoberta.
O velho fantasiara que estava a fazer progressos quanto
a convencer novamente o sobrinho da sua Redenção, pois
este ao menos escutavao, embora não dissesse que acre
ditava no que ouvia. Parecia deliciarse com conversas so
bre os assuntos que interessavam ao seu tio. Interrogava
o minuciosamente acerca da sua juventude, que o velho
Tarwater praticamente esquecera. O velhote julgara que
esse interesse pelos seus antepassados daria frutos, mas o
que deu, o que deu realmente, porca miséria, foram pala
vras sem vida. O que deu foi fruto seco sem semente, in
capaz sequer de apodrecer, morto à nascença. De tempos a
tempos, o velho cuspia pelo canto da boca, como se fos
sem gotas de veneno, algumas frases idiotas retiradas da
peça do professor. A ira gravaralhas na memória, letra a
letra. «Esta fixação em ter sido chamado por Deus teve ori
gem na sua insegurança. Ele carecia da segurança de um
chamamento, portanto, chamouse a si mesmo.»
«Chameime a mim mesmo!», sibilava o velho, «ora en
tão, chameime a mim mesmo!» Isto enfureciao de tal
maneira que grande parte das vezes não era capaz de mais
nada senão reiterálo. «Chameime a mim mesmo. Eu cha
meime a mim mesmo. Eu, Mason Tarwater, chameime a
mim mesmo! Chameime a mim mesmo para ser fustigado
e amarrado. Chameime a mim mesmo para me cuspirem
em cima e fazerem pouco de mim. Chameime a mim
mesmo para ser ferido no meu orgulho. Chameime a mim
O CÉU É DOS VIOLENTOS 21

mesmo para ser dilacerado pelo olho de Deus. Ouve, ra


paz», costumava dizer, agarrando a criança pelas alças do
fatomacaco e sacudindoa lentamente, «até a misericór
dia de Deus nos queima.» Soltava então as alças e permi
tia que o rapaz caísse de costas sobre a cama de espinhos
que era aquela ideia, enquanto prosseguia os seus sibilos
e lamentações.
«Onde ele me queria era nas páginas daquela revista
para professores. Julgava que, quando me tivesse lá den
tro, estaria praticamente apanhado dentro da sua cabeça e
feito ao bife, e mais não se falaria do assunto, seria o fim
da picada. Pois bem, a picada não acabou aí! Aqui estou
eu sentado. E aí te sentas tu. Em liberdade. Não estamos
dentro da cabeça de ninguém!», e aí a voz fugialhe como
se fosse a parte mais livre do seu livre ser e caminhasse a
custo adiante do corpo pesado para se desprender. Havia
algo na alegria do seu tioavô que se apoderava de
Tarwater nesses instantes e o rapaz sentiase como se ti
vesse escapado de alguma prisão misteriosa. Sentiase até
capaz de cheirar a sua liberdade, perfumada de pinho,
vinda do âmago dos bosques, até que o velho retomava o
fio à narrativa: «Nasceste escravo e libertastete pelo bap
tismo, pela morte de Nosso Senhor, pela morte de Nosso
Senhor Jesus Cristo.»
E então a criança sentia uma sombra descer sorrateira
sobre o seu ser, um ressentimento morno que o enchia len
tamente por a sua liberdade estar forçosamente ligada a
Jesus e Jesus ser forçosamente O Senhor.
«Jesus é o pão da vida», dizia o velho.
O rapaz, desconcertado, desviava o olhar para longe so
bre o contorno azulescuro do arvoredo no horizonte por
onde o mundo se estendia, esconso e em sossego. No canto
mais sombrio, mais íntimo da sua alma, pendurado de per
22 FLANNERY O'CONNOR

nas para o ar qual morcego adormecido, estava a certeza


segura, inegável de que não era do pão da vida que tinha
fome. Teria a sarça ardido para Moisés, o sol parado para
Josué, os leões aberto alas perante Daniel apenas para pro
fetizarem o pão da vida? Jesus? Ele sentia uma desilusão
terrível face a essa conclusão, um pavor por talvez ser essa
a verdade. O velho dizia que, assim que morresse, se apres
saria para as margens do Lago da Galileia para comer os
pães e os peixes que O Senhor multiplicara.
«Para sempre?», perguntavalhe o rapaz horrorizado.
«Para sempre», respondia o velho.
O rapaz pressentia que era esse o cerne da loucura do
seu tioavô, essa fome, e o que secretamente temia era que
tal condição pudesse ser hereditária, que pudesse estarlhe
oculta no sangue e pudesse vir um dia a assaltálo por den
tro, e então seria desmanchado pela fome tal qual o velho,
possuidor de um estômago com fundo roto de maneira que
nada pudesse sarálo nem enchêlo excepto o pão da vida.
Tentava, quando possível, ultrapassar esses pensamen
tos, manter a visão nivelada em ponto de equilíbrio, para
não ver mais nada além do que tinha diante do rosto e
deixar os seus olhos pousarem na superfície do que ali se
encontrasse. Era como se receasse deixar a vista demorar
se por um instante mais do que o necessário para situar
alguma coisa – fosse uma pá, uma enxada, ou os quartos
traseiros de uma mula diante do seu arado, ou o sulco
avermelhado entre seus pés – não fosse a coisa levantar
se de súbito à sua frente, estranha e terrível, exigindo que
lhe desse um nome e que esse nome fosse justo para o ra
paz ser julgado de acordo com o nome que lhe desse. Fazia
tudo o que podia para evitar esta intimidade ameaçada da
criação. Quando lhe chegasse o chamamento d’O Senhor,
desejava que viesse em voz saída de um céu limpo e va
O CÉU É DOS VIOLENTOS 23

zio, do clarim de Deus TodoPoderoso, intocado por qual


quer mão ou sopro material. Esperava ver rodas de fogo
nos olhos de feras celestes. Contara que isto acontecesse
assim que o seu tioavô falecesse. Afastou rapidamente
essa ideia e foi buscar a pá. O professor ainda vive, pen
sou pelo caminho, mas é melhor que não venha cá nem
tente levarme desta propriedade, senão matoo. Maldito
sejas se fores para junto dele, disseralhe o seu tio. Salvei
te dele até à data e, se fores para lá a correr assim que eu
estiver debaixo de terra, não há nada que possa fazer
acerca do assunto.
A pá estava encostada à lateral da capoeira. «Nunca
mais ponho os pés na cidade», disse o rapaz em voz alta
de si para consigo. Nunca heide ir ter com ele. Nem ele
nem ninguém alguma vez me tirará deste sítio.
Decidiu abrir a cova aos pés da figueira porque o velho
faria bem aos figos. O terreno era arenoso em cima e de
argila compacta por baixo, e a pá produziu um barulho
metálico quando a enterrou na areia. Tinha noventa qui
los de mastodonte morto para enterrar, pensou, e parou
com um pé apoiado na pá, inclinado para a frente, de
olhos fitos no céu branco por entre as folhas da árvore.
Levaria o dia inteiro a abrir cova de dimensão suficiente
nesta rocha, e o professor cremaria o corpo num minuto.
Tarwater vira o professor uma vez, a uma distância de
aproximadamente seis metros, e vira o menino lerdo de
mais perto. O menino tinha alguns traços semelhantes aos
do velho Tarwater, excepto nos olhos que, sendo cinzentos
como os do velhote, eram porém límpidos, como se do ou
tro lado descessem fundo, muito fundo, até duas poças de
luz. Era claro ao olhar para ele que não tinha qualquer tino.
O velho ficara de tal modo abalado com as semelhanças e
dissemelhanças entre os dois que, na altura da visita que
24 FLANNERY O'CONNOR

lhe fez com Tarwater, se ficara apenas pela entrada, de


olhos fixos no pequeno e língua às voltas à porta da boca
como se ele próprio não tivesse senso. Fora essa a primeira
vez que vira a criança e nunca mais tinha sido capaz de es
quecêla. «Casouse com ela, só teve direito a um filho da
mulher e esse saiu sem tino», murmurava o velho às vezes.
«O Senhor poupouo e agora quer vêlo baptizado.»
«Então, se é assim, porque é que não despacha isso de
uma vez?», perguntavalhe o rapaz, pois queria que acon
tecesse qualquer coisa, queria ver o velhote em acção, que
ria que raptasse o menino e obrigasse o professor a darlhe
caça para poder mirar mais de perto o seu outro tio. «Qual
é o seu problema?», perguntavalhe. «Porque é que engo
nha tanto? Porque é que não se apressa a raptar o miúdo?»
«Sigo as instruções de Deus Nosso Senhor», respondia o
velho, «que age a Seu tempo. Não aceito ordens tuas.»
A névoa branca tinha vindo a desvanecerse pouco
a pouco no quintal e desaparecia no terreno baixo que
havia mais além, o ar quedavase limpo e desimpedido.
Os pensamentos do rapaz continuavam a repisar a casa do
professor. «Passei três meses lá», disseralhe o seu tioavô.
«Tenho vergonha disso. Fui traído durante três meses na
casa de um parente meu e se, quando morrer, quiseres en
tregarme a quem me traiu e ver o meu corpo arder, força!
Força, rapaz», gritara, com manchas no rosto, sentado no
caixão. «Faz como quiseres e deixao queimarme à von
tade, mas depois tem cuidado com o leão de Nosso Senhor.
Não te esqueças do leão de Nosso Senhor que está na tri
lha do falso profeta! Eu cresci com o fermento da fé que
ele não tem», disseralhe o velho, «e recusome a ser cre
mado! E quando eu subir, ficarás melhor aviado aqui so
zinho, nestes bosques, sem mais luz senão aquela que o sol
quiser deixar entrar, do que com ele na cidade.»
O CÉU É DOS VIOLENTOS 25

O rapaz continuou a cavar mas a sepultura teimava em


não ficar mais funda. «Os mortos são pobres», disse na voz
do desconhecido. Não há miséria maior que a dos mortos.
Ele vai ter de contentarse com a sorte que lhe calhar. Não
há ninguém para me maçar, pensou. Nunca mais voltará a
haver. Não há mãos que se levantem para me impedir de
fazer seja o que for; excepto a mão de Deus, e Ele ainda não
me disse nada. Ainda nem sequer deu pela minha presença.
Um cão cor de areia batia a cauda contra o chão por
perto e meia dúzia de galinhas pretas arranhavam a argila
crua que o rapaz ia revolvendo. O sol esgueirarase para
trás do recorte azul do arvoredo e, envolto numa névoa
amarelada, deslizava com vagar ao longo do céu. «Agora
posso fazer tudo o que me apetecer», disse o rapaz, ate
nuando a voz do desconhecido para ser capaz de suportá
la. Podia matar aquelas galinhas todas se me desse na te
lha, pensou, contemplando os galináceos pretos imprestá
veis que o seu tio tivera gosto em criar.
Ele tinha gosto numa série de parvoíces, disse o desco
nhecido. Na verdade, era infantil. Ora, aquele professor
nunca lhe fez mal nenhum. Vê tu bem, tudo o que ele fez
foi observálo e escrever o que viu e ouviu e pôlo num
jornal para ser lido por professores. Agora, que mal houve
nisso? Ora essa, nenhum. Quem quer saber do que lê um
professor? E o parvo do velho portouse como se tivesse
sido aniquilado na sua própria alma. Ora, não estava tão
acabado como se julgava, nem de perto nem de longe.
Ainda viveu mais catorze anos e criou um rapaz que o en
terrasse, de acordo com as suas preferências.
Enquanto Tarwater golpeava a terra com a pá, a voz do
desconhecido adquiriu matizes de fúria contida e não pa
rou de repetir: tens de enterrálo completamente à mão e
aquele professor queimavao num instante.
26 FLANNERY O'CONNOR

Depois de ter passado uma hora ou mais a cavar, a se


pultura tinha trinta centímetros de fundo apenas, fundo
que ainda ficava aquém das medidas do corpo. Sentouse
na borda da cova por momentos. O sol parecia uma bor
bulha branca empolada no céu.
Os mortos dão muito mais trabalho do que os vivos,
disse o desconhecido. Aquele professor não colocaria, nem
por um minuto, a hipótese de todos os corpos assinalados
com cruzes serem recolhidos no dia final. No resto do
mundo, as coisas fazemse de maneira diferente daquela
que te ensinaram.
«Já lá fui uma vez», resmungou Tarwater. «Não preciso
que ninguém me explique.»
O seu tio, dois ou três anos antes, fora reunirse com
advogados para tentar revogar os direitos sucessórios so
bre a propriedade de modo a que esta não passasse pelas
mãos do professor e seguisse directamente para as de
Tarwater. O rapaz sentarase à janela do gabinete do ad
vogado no décimo segundo andar e olhara para baixo,
para o abismo da rua enquanto o seu tio efectuava o ne
gócio. No caminho feito desde a estação ferroviária an
dara altivo no meio da massa de metal em movimento e
de betão sarapintada pelos olhos minúsculos das pessoas.
O brilho dos seus próprios olhos toldavase à sombra da
aba rija de um novo chapéu cinzento, que mais parecia
um telhado perfeitamente equilibrado rente aos alicerces
das orelhas. Antes do passeio, lera factos no almana
que e sabia da existência de 75.000 pessoas aqui que o
conheciam agora pela primeira vez. Apeteceulhe parar
pelo caminho e apertar a mão de cada uma delas, dizer
lhes que o seu nome era F. M. Tarwater e só viera ali
passar o dia para acompanhar o seu tio que tinha negó
cios a tratar com o advogado. A sua cabeça forase vol
O CÉU É DOS VIOLENTOS 27

tando brusca para trás na esteira de cada figura que pas


sava, até estas terem começado a passar em massa cer
rada em demasia e ter observado que os olhos delas não
se agarravam a si como se agarravam os olhos da gente
do campo. Diversas pessoas esbarraram contra ele, e esse
contacto, que deveria ter tecido um laço para toda a vida,
não tecia nada porque os brutamontes seguiam caminho
ao empurrão com as cabeças encolhidas e pedidos de des
culpa resmungados que até teria aceite caso tivessem es
perado por resposta.
Mais tarde percebera, de forma quase imprevista, que
este sítio era malvado – com as cabeças encolhidas, as pa
lavras mastigadas, a pressa no andamento. Viu num cla
rão de luz que estas pessoas se apressavam para longe de
Deus TodoPoderoso. Era para a cidade que vinham os
profetas e ele estava no meio da urbe. Estava aqui a des
frutar daquilo que deveria têlo repelido. Estreitou as pál
pebras com cautela e olhou para o seu tio que lá ia dando
às pernas mais à frente, sem maior preocupação com o ce
nário circundante do que um urso na floresta. «Que raça de
profeta és tu?», sibilou o rapaz.
O tio não lhe prestou atenção nenhuma, tãopouco parou.
«Dizes tu que és profeta!...», prosseguiu o rapaz numa
voz alta, áspera, que se projectava para longe.
O tio travou e deu meia volta. «Vim aqui para tratar de
negócios», disse brandamente.
«Sempre me disseste que eras profeta», comentou Tarwater.
«Agora vejo a espécie de profeta a que pertences. Elias ha
via de terte em muito boa conta.»
O seu tio espetou a cabeça para a frente e os olhos co
meçaram a saltarlhe das órbitas. «Vim tratar de negócios»,
disse ao rapaz. «Se já foste chamado pelo Senhor, então se
gue viagem e cumpre a missão que te compete.»
28 FLANNERY O'CONNOR

O rapaz empalideceu ligeiramente e o seu olhar des


viouse. «Não fui chamado. Ainda...», resmungou. «Tu é
que foste chamado.»
«E sei bem em que casos sou chamado e em quais não
sou», acrescentou o tio, tornou a virarse e deixou de lhe
prestar atenção.
À janela do advogado, o rapaz ajoelhouse e deixou o
seu rosto pendurarse para fora do caixilho, de pernas
para o ar acima da rua que corria, pintalgada, a deslizar
como um rio de lata lá em baixo, e viu os brilhos nela
pintados pelo sol que vogava pálido na palidez do céu,
demasiado distante para acender fosse o que fosse.
Quando recebesse o seu chamamento, nesse dia em que
aqui regressasse, semearia agitação pela cidade, voltaria a
ela com fogo nos olhos. Neste sítio é preciso fazerse algo
de especial para obrigálos a olharnos, pensou. Não vão
olhar para mim só porque aqui estou. Reconsiderou o seu
tio com renovada indignação. Quando vier para aqui de
vez, disse de si para consigo, farei qualquer coisa que
obrigue todos os olhares a colaremse em mim, e, incli
nado para diante, viu o seu chapéu novo cair no abismo
de mansinho, perdido e descuidado, namoriscado ao de
leve pela aragem a caminho de ser espalmado no rio de
lata lá em baixo. Levou as mãos à cabeça destapada e caiu
de volta ao interior da divisão.
O seu tio estava a discutir com o advogado, ambos iam
batendo na mesa que os separava, flectindo os joelhos e
dando golpes com os punhos no tampo ao mesmo tempo.
O advogado, homem alto de cabeça abobadada e nariz
aquilino, não parava de reiterar num guincho comedido:
«Mas não fui eu que redigi o testamento. Não fui eu que
escrevi a lei», e a voz de cascalho do tio ripostava num tom
desagradável: «Não posso deixar de fazer isto. O meu pai
O CÉU É DOS VIOLENTOS 29

não aceitaria que se deixasse um imbecil herdar a sua pro


priedade. Não era essa a sua intenção.»
«Foiseme o chapéu», disse Tarwater.
O advogado atirouse para trás contra as costas da ca
deira e aproximoua de Tarwater com um chio, viuo sem
interesse através dos seus olhos azuis pálidos e tornou a
deslocar a cadeira com outro chio para dizer ao tio: «Não
há nada a fazer. Isto é um desperdício do seu tempo e do
meu. Mais vale conformarse com este testamento.»
«Oiça», disse o velho Tarwater, «houve uma altura em
que julguei que estava arrumado, velho e doente e prestes
a morrer sem vintém, sem nada, aí, aceitei a hospitalidade
dele por ser o meu parente de sangue mais chegado e po
deria dizerse que era o seu dever acolherme, só que eu
pensei que fosse em nome da Caridade, pensei que...»
«Não posso fazer nada quanto ao que o senhor pensou
ou fez, nem quanto ao que o seu parente julgou ou fez»,
disse o advogado e fechou os olhos.
«O meu chapéu caiu», disse Tarwater.
«Não passo de um advogado», disse o advogado, dei
xando os seus olhos vagabundearem pelas fileiras de livros
de Direito cor de barro que fortificavam o gabinete.
«Já deve ter sido atropelado por um carro.»
«Oiça», disse o tio, «ele passou aquele tempo todo a es
tudarme para um artigo. Fezme testes em segredo, a
mim, sangue do seu sangue, esgueirouseme alma aden
tro por portas travessas e depois ainda me disse: “Tio, você
pertence a uma raça que já está quase extinta!” Quase ex
tinta!», respingou o velhote esganiçado, mal sendo capaz
de obrigar um fio de som que fosse a sairlhe da garganta.
«Está à vista que ainda não me extingui!»
O advogado tornou a fechar os olhos e esboçou meio
sorriso escondido dentro de uma bochecha.
30 FLANNERY O'CONNOR

«Vamos a outros advogados», rosnou o velho e depois


haviam saído e visitado mais três, sem paragens, e Tarwater
contara onze homens que talvez tivessem o seu chapéu na
cabeça ou talvez não. Finalmente, quando saíram do escri
tório do quarto advogado, sentaramse no parapeito da ja
nela da sede de um banco e o seu tio apalpou a algibeira à
procura de uns biscoitos que trouxera para oferecer um a
Tarwater. O velho desabotoou o casaco e permitiu que a sua
barriga se refastelasse para diante e lhe pousasse no colo
enquanto petiscava. O seu rosto mastigava cheio de ira; a
pele que se estendia entre as picadas das bexigas parecia
pular de um lado para o outro. Tarwater estava muito pá
lido e os seus olhos cintilavam com uma profundeza oca
peculiar. Tinha um velho lenço de trabalho atado à volta da
cabeça, com nós nos quatro cantos. Não observava os tran
seuntes que o observavam agora a ele. «Graças a Deus que
está tudo feito e podemos voltar para casa», resmungou.
«Ainda não fizemos o que temos para fazer», disse o ve
lho, e levantouse abruptamente e arrancou pela rua
abaixo.
«Meu Deus!», resmungou o rapaz, saltando para ir apa
nhálo. «Não nos podemos sentar por um minuto que seja?
Será que não tens tino nenhum? Dizemte todos a mesma
coisa. É só uma lei e não podes fazer nada contra ela.
Tenho senso que chegue para perceber isso; porque é que
tu não tens? Qual é o teu problema?»
O velho seguiu caminho em passos largos, com a ca
beça espetada para a frente como se estivesse a farejar um
inimigo.
«Para onde vamos?», perguntou Tarwater depois de te
rem saído das ruas do comércio e terem começado a pas
sar entre fileiras de casas cinzentas e bolbosas com alpen
dres fuliginosos que se projectavam sobre os passeios.
O CÉU É DOS VIOLENTOS 31

«Ouve», disse ele, dando uma palmada na anca do tio,


«nunca te pedi para me trazeres contigo.»
«Pouco te faltava para pedires», murmurou o velho.
«Agora aproveita para tirar a barriga de misérias.»
«Nunca te pedi que me tirasses a barriga de nada.
Nunca te pedi para vir, ponto final. Dei por mim aqui an
tes de ter sequer percebido que aqui era onde estamos.»
«Vê se te lembras», respondeu o velho, «vê se te lembras
que te disse para não te esqueceres, quando me pediste
para vir, que nunca tinhas gostado deste sítio quando cá
tinhas estado», e seguiram viagem, percorrendo passeios
uns atrás dos outros, passando por filas e mais filas de ca
sas salientes com portas entreabertas que deixavam cair
resquícios de luz seca sobre os corredores manchados que
lhes serviam de entrada. Finalmente desembocaram noutra
zona onde as casas eram limpas e atarracadas, quase idên
ticas entre si, cada uma com um quadrado de relva à
frente. Passados alguns quarteirões, Tarwater despejouse
no passeio e disse: «Não vou mais longe. Nem sequer sei
para onde estou a ir e mais longe é que não vou.» O seu
tio não parou nem olhou para trás. Dentro de segundos, o
rapaz levantouse de um salto e tornou a seguir atrás dele
em pânico, não fosse deixado para trás.
O velho não parou de forçar caminho em frente como
se o seu faro detectasse sangue, levandoo para cada vez
mais perto do esconderijo onde o inimigo ferido se encon
trava. Subitamente enveredou por um pequeno carreiro de
acesso a uma casa de tijolo pintada de amarelo desbotado,
e avançou rigidamente para a porta branca, com os om
bros pesados encolhidos como se estivesse para arrombá
la. Bateu na madeira da porta com o seu punho, igno
rando o batente de latão polido. Foi nesse instante que
Tarwater se apercebeu de onde estava e se postou hirto, de
32 FLANNERY O'CONNOR

olho fixo na porta. Sabia por algum instinto obscuro que


esta se iria abrir e revelaria o seu destino. Os olhos do seu
espírito viram o professor prestes a assomar à soleira, ma
gro e malvado, à espera de travar batalha com quem O
Senhor enviasse para conquistálo. O rapaz cerrou os den
tes para impedilos de baterem entre si. Abriuse a porta.
Um menino pequeno de faces rosadas pôsse de pé à
entrada, com a boca pendurada pelos cantos num sorriso
imbecil. Tinha cabelo branco e testa protuberante. Usava
óculos de aros metálicos e tinha olhos de prata pálida, à
imagem do velho, excepto que os do pequeno eram lím
pidos e vazios. Estava a mordiscar um caroço de maçã
oxidado.
O velho fixouo com o olhar, apartando os lábios len
tamente até ficar de boca escancarada. Apresentavase
como se estivesse a contemplar um mistério inenarrável. O
rapazito emitiu um ruído ininteligível e empurrou a porta
até ficar quase fechada, escondendose todo excepto um
olho tapado pela respectiva lente.
Subitamente uma tremenda indignação apoderouse
de Tarwater. Mirou o rosto pequeno que espreitava pela
frincha. Vasculhou os pensamentos furiosamente à pro
cura da palavra certa para atirar àquela cara. Por fim,
disse numa voz lenta e enfática: «Antes de tu apareceres,
já cá estava eu.»
O velho agarrouo pelo ombro e puxouo para trás. «O
pequeno não tem tino», disselhe. «Não vês que ele não
tem tino? Não percebe o que estás para aí a dizer.»
O rapaz ficou mais furioso do que nunca. Volveu de
rompante sobre os calcanhares para se ir embora.
«Espera», disselhe o tio e agarrouo. «Metete atrás
daquela sebe além e fica escondido. Vou entrar e baptizar
o miúdo.»
O CÉU É DOS VIOLENTOS 33

A boca de Tarwater escancarouse.


«Metete lá atrás como te mandei», disse o tio e deulhe
um empurrão rumo à sebe. Depois o velho retemperou os
seus ânimos. Virouse e tornou a dirigirse até à porta. No
preciso momento em que a alcançou, esta abriuse repen
tinamente e um jovem esguio com óculos pesados de aros
pretos pôsse à soleira, com a cabeça espetada para a
frente, os olhos a faiscarem para o velhote.
O velho Tarwater levantou um punho cerrado. «Nosso
Senhor Jesus Cristo envioume para baptizar esse me
nino!», gritou. «Deixa passar. Estou decidido a tratar disso!»
A cabeça de Tarwater levantouse de súbito por trás da
sebe. Esbaforido, examinou a figura do professor: o rosto
estreito e ossudo que se inclinava para trás a partir do
queixo saliente, o cabelo com entradas que despontava no
topo da testa alta, os olhos rodeados de vidro. A criança
de cabelos alvos tinhase agarrado à perna do pai e estava
ali pendurada. O professor empurrouo para trás, para
dentro de casa. Depois saiu para a rua e bateu com a porta
atrás de si e continuou a lançar faíscas para o velho, como
que a desafiálo a dar um passo.
«Aquele menino está mesmo a pedir para ser bapti
zado», disse o velho. «É precioso aos olhos d’O Senhor,
mesmo que seja um idiota!»
«Saia da minha propriedade», disse o sobrinho numa
voz tensa como se estivesse a mantêla serena à força. «Se
não sair, volto a mandar internálo no asilo, que é o seu
lugar.»
«Não podes tocar no servo de Deus!», bradou o velho.
«Ponhase a milhas!», berrou o sobrinho, perdendo o
controlo sobre a voz. «Em primeiro lugar, pergunte a Deus
por que razão fez dele um idiota, tio. Digalhe que quero
saber porquê!»
34 FLANNERY O'CONNOR

O coração do rapaz batia tão depressa que ele tinha


medo que lhe saísse do peito a galope e desaparecesse para
sempre. Já tinha tirado a cabeça e os ombros de trás do ar
busto.
«Não te cabe a ti perguntar!», gritou o velho. «Não te
cabe questionar os desígnios de Deus TodoPoderoso. Não
te cabe remoer Deus à força na tua cabeça para o cuspires
reduzido a um número!»
«Onde está o rapaz?», perguntou o sobrinho, olhando
em volta de súbito como se tivesse acabado de lembrarse
dele. «Onde está o rapaz que ia criar para ser profeta e pu
rificarme os olhos pelo fogo?», riu então.
Tarwater tornou a esconder a cabeça atrás do arbusto,
imediatamente desagradado com a gargalhada do profes
sor, que parecia reduzilo à menor das insignificâncias.
«O dia dele háde chegar», disse o velho. «Seja ele, seja
eu, um de nós háde baptizar esse menino. Se não for eu
em vida, será ele a seu tempo.»
«Nunca lhe háde pôr as mãos em cima», disse o pro
fessor. «Até podia borrifálo com água para o resto da
vida, que não deixaria de ser um idiota. Vai ter cinco anos
de idade para todo o sempre, eternamente inútil. Escute»,
acrescentou, e o rapaz ouviu a sua voz tensa baixar de tom
com um tipo de intensidade atenuada, paixão de força
igual e sentido oposto à que movia o velho, «ele nunca
será baptizado – só por uma questão de princípio, e nada
mais. Como gesto de dignidade humana, nunca será bap
tizado.»
«O tempo háde encontrar mão que o baptize», respon
deu o velho.
«O tempo háde encontrála», disse o sobrinho e abriu
a porta atrás de si, tornou a entrar em casa e bateu com
ela para a fechar.
O CÉU É DOS VIOLENTOS 35

O rapaz já se levantara de trás dos arbustos, com a ca


beça num torvelinho de excitação. Nunca mais tinha vol
tado àquele sítio, nunca tornara a ver o seu primo, nunca
tornara a ver o professor, e rezava a Deus, tal como disse
ao desconhecido que abria agora a sepultura a seu lado,
para que nunca voltasse a vêlo outra vez, embora, pes
soalmente, nada tivesse contra o homem e não lhe agra
dasse ser obrigado a matálo, mas se ele viesse até aqui,
para meter o nariz onde não era chamado excepto de
acordo com a lei, então, não teria alternativa senão essa.
Ouve, disselhe o desconhecido, porque haveria ele de
querer vir aqui tão longe, onde não existe nada?
Tarwater não respondeu. Não procurou o rosto do des
conhecido, mas já sabia que era anguloso e amável e sábio,
à sombra de um panamá rígido com abas largas que lhe tol
dava a cor dos olhos. Perdera a sua aversão à ideia daquela
voz. Só de vez em quando lhe soava à voz de um desco
nhecido. Começou a sentir que só agora começava a conhe
cerse a si mesmo, como se, durante a vida do seu tio, ti
vesse sido privado de se familiarizar consigo próprio. Não
estou a negar que o velho era boa pessoa, disse o seu novo
amigo, mas tal como disseste: não há miséria maior que a
dos mortos. Têm de aceitar a sorte que lhes calhar. A alma
dele já abandonou este mundo terreno e o seu corpo não se
sentirá beliscado, seja pelo fogo ou por outra coisa qualquer.
«Era no dia do Juízo Final que ele estava a pensar»,
murmurou Tarwater.
Ouve lá, disse o desconhecido, não te parece que qual
quer cruz que plantes em 1952 estará completamente apo
drecida quando chegar o dia do Juízo Final? Apodrecida e
desfeita em tanto pó quantas cinzas restariam dele se a
cinzas o reduzisses? E deixame perguntarte o seguinte: o
que fará Deus dos marinheiros afogados em altomar, que
36 FLANNERY O'CONNOR

os peixes já comeram, e com os peixes que os comeram, já


comidos por outros peixes, e esses por outros mais? Então
e das pessoas que ardem naturalmente em incêndios do
mésticos? Queimadas de uma ou de outra forma, ou perdi
das dentro de máquinas até serem feitas papa? E de todos
aqueles soldados que rebentam e de quem nem cinzas res
tam? Então, o que é feito de todos aqueles de quem nada
resta para se cremar ou enterrar?
Se eu o cremasse, disse Tarwater, não seria natural, se
ria propositado.
Ah, estou a ver, disse o desconhecido. Não é o
Julgamento dele que te preocupa. É o Julgamento que te
calhará a ti.
Isso são assuntos meus, disse Tarwater.
Não me estou a meter nos teus assuntos, disse o desco
nhecido. Isso não me diz respeito absolutamente nenhum.
Foste deixado aos teus próprios meios neste lugar desocu
pado. Para sempre só neste vazio, sem mais luz além daquela
que o sol anão quiser deixar entrar. Tanto quanto consigo
perceber, não tens importância nenhuma para ninguém.
«Fui redimido», murmurou Tarwater.
Tu fumas?, perguntou o desconhecido.
Fumo se quiser e não fumo se não me apetecer, atirou
Tarwater. Enterroo se for preciso e não enterro se não for.
Vai espreitar como ele está, para veres se caiu da ca
deira, sugeriu o seu amigo.
Tarwater deixou cair a pá dentro da cova e voltou a
casa. Abriu uma nesga na porta da frente e espetou a cara
na frincha. O seu tio tinha os olhos vítreos ligeiramente vi
rados para o lado, como se fosse um juiz concentrado nal
guma prova terrível. O rapaz fechou a porta à pressa e re
gressou para junto da sepultura, com frio apesar do suor
que lhe colava a camisa às costas. Retomou a escavação.
O CÉU É DOS VIOLENTOS 37

O professor era demasiado esperto para ele, mais nada,


disse logo o desconhecido. Lembraste bem que chegue de
como ele disse que o raptou quando o professor tinha sete
anos de idade. Foi à cidade e convenceuo a sair do seu
próprio quintal, trouxeo para aqui e baptizouo. E no que
deu isso? Em nada. O professor já não quer saber se foi ou
não foi baptizado. Não lhe faz qualquer diferença de uma
ou de outra forma. Tãopouco se importa se foi ou não
Redimido. Só passou quatro dias aqui; tu passaste catorze
anos, e agora terás de cá ficar para o resto da vida.
Está visto que ele sempre foi maluco, prosseguiu. Também
quis fazer um profeta daquele professor, mas o professor foi
demasiado esperto para ele. Conseguiu escaparlhe.
Teve alguém que viesse cá buscálo, disse Tarwater. O pai
dele veio cá e resgatouo. Ninguém veio para me buscar.
O próprio professor veio à tua procura, disse o desco
nhecido, e levou um tiro na perna e outro na orelha pelos
seus esforços.
Nessa altura, eu nem um ano tinha, disse Tarwater. Um
bebé não tem como se levantar e ir embora.
Agora já não és nenhum bebé, disse o seu amigo.
A sepultura não parecia ficar mais funda embora ele
continuasse a cavar. Olha para o grande profeta, troçou o
desconhecido, e vigiouo a coberto das sombras com que
o arvoredo mosqueava o chão. Deixame lá ouvirte pro
fetizar qualquer coisa. A verdade é que O Senhor não tem
andado a avaliarte. Na cabeça d’Ele ainda não entraste tu.
Tarwater virouse abruptamente e passou a cavar do
outro lado, e a voz continuou a falar atrás de si. Qualquer
um que queira ser profeta tem de ter para quem profetizar.
A não ser que só queiras dizer profecias para ti mesmo,
corrigiuse – ou baptizar aquela criança lerda, acrescentou
num tom carregado de sarcasmo.
38 FLANNERY O'CONNOR

A verdade, disse passado um minuto, a verdade é que


és tão esperto como, senão mais esperto ainda do que o tal
professor. Porque ele teve alguém – o papá e a mamã –
para lhe dizer que o velho era maluco, enquanto tu não ti
veste ninguém e, no entanto, calculaste isso sozinho. Claro
que demoraste mais tempo a fazêlo, mas chegaste à con
clusão certa: sabes que ele era um homem louco mesmo
quando não estava no manicómio, mesmo naqueles últi
mos anos de vida.
Caso contrário, se não foi exactamente louco, foi como
se o fosse de maneira diferente: não tinha mais que uma
só coisa na cabeça. Era um homem de ideias fixas. Jesus.
Jesus isto e Jesus aquilo. Não estarás tu, ao fim de catorze
anos a aturar as parvoíces dele, farto de Jesus até às pon
tas dos cabelos? Nosso Senhor e Salvador, suspirou o des
conhecido, se tu não estiveres farto dele, estou eu.
Após um intervalo prosseguiu. A meu ver, disse, podes
fazer uma de duas coisas. Só uma delas, não as duas.
Ninguém consegue fazer duas coisas ao mesmo tempo sem
ficar rebentado. Podes fazer uma coisa, ou podes optar
pelo seu oposto.
Jesus ou o diabo, disse o rapaz.
Não, não, não, disse o desconhecido, não existe diabo
nem nada que o valha. Posso dizerte isso com base na mi
nha experiência pessoal. Isso sei eu de certeza. Não tens de
escolher entre Jesus e o diabo. A escolha é entre Jesus e tu
mesmo.
Jesus ou eu mesmo, repetiu Tarwater. Pousou a pá para
descansar e pensou: ele dizia que o professor tinha vindo
para cá de bom grado. Dizia que lhe bastara ter ido até ao
quintal traseiro do professor quando ele por ali brincava e
terlhe dito: que tal se eu e tu fôssemos passar uma tem
porada no campo – precisas de renascer. Nosso Senhor
O CÉU É DOS VIOLENTOS 39

Jesus Cristo mandoume aqui para tratar disso. E o pro


fessor levantouse, pegou na mão dele sem dizer uma
única palavra e veio com o velho, e o tio dizia que, ao
longo dos quatro dias que aqui passou, o professor vivera
na esperança de que não viessem buscálo.
Bem, está visto o pouco senso que tem um menino de
sete anos, disse o desconhecido. Não se pode esperar mais
de uma criança. Mas ele aprendeu e fezse esperto assim
que voltou para a cidade; o papá disselhe que o velho era
maluco e que o filho não devia acreditar numa única pa
lavra do que o louco lhe ensinara.
Não foi assim que ele contou a história, disse Tarwater.
Ele disse que quando o professor tinha sete anos, tinha
bom senso, mas que o senso acabou por se esgotar. O pai
dele era um asno e não tinha condições para criar o filho,
e a mãe era uma galdéria. Fugiu daqui aos dezoito anos.
Demorou esse tempo todo a abalar?, disse o desconhe
cido em tom incrédulo. Credo, pelos vistos, ainda por cima,
era um bocado palerma.
O meu tioavô dizia que odiava ter de admitir que a sua
própria irmã era uma galdéria, mas tinha de dizêlo para
dizer a verdade, asseverou o rapaz.
Ora essa, tu próprio estás farto de saber que ele ficava
todo satisfeito por admitir que era uma galdéria, disse o
desconhecido. Passava a vida a admitir que alguém era um
asno ou uma galdéria. É só para isso que servem os profe
tas – para admitirem que os outros são asnos ou galdérias.
Seja como for, perguntou com matreirice, o que sabes tu
de galdérias? Desde quando é que alguma vez te cruzaste
com uma?
Não tenhas dúvidas que sei o que elas são, disse o rapaz.
A Bíblia estava cheia delas. Tarwater sabia o que elas
eram e o fim que, regra geral, lhes calhava, e tal como
40 FLANNERY O'CONNOR

Jezabel foi descoberta pelos cães, com um braço aqui e um


pé ali, assim dizia o seu tioavô que, por pouco, não acon
tecera o mesmo à mãe e à avó do rapaz. Essas duas, jun
tamente com o avô, tinham morrido num acidente de via
ção, deixando apenas o professor como elo sobrevivente
daquela família, além do próprio Tarwater, pois a sua mãe
(solteira e desavergonhada) não vivera mais do que o
tempo suficiente após o desastre para dar o seu filho à luz.
Ele nascera no palco do desastre.
O rapaz orgulhavase muito de ter nascido num desas
tre. Sempre sentira que isso destacava a sua existência da
vida ordinária dos demais, e depreendera desse facto que
os planos que Deus traçara para si eram especiais, pese
embora nada de consequente lhe tivesse acontecido até à
data. Muitas vezes, quando passeava pelos bosques e se
deparava com alguma sarça ligeiramente afastada das res
tantes, a respiração prendiaselhe na garganta e parava à
espera que a sarça rebentasse em chamas. Tal ainda não
acontecera.
O seu tio nunca se mostrara ciente da importância que
tinha a forma como o sobrinho nascera, apenas se impor
tava com o modo como renascera. Perguntavalhe muitas
vezes por que razão julgava que Deus o salvara do ventre
de uma galdéria e lhe permitira ver a luz do dia, e de se
guida indagava por que razão, tendoo já feito numa cir
cunstância, tinha tornado a fazêlo outra vez, permitindo
lhe que fosse baptizado pelo tioavô, participando assim
na morte de Cristo, e então, tendoo já feito em duas oca
siões, porque teria achado por bem salválo numa terceira,
permitindo que fosse resgatado pelo tioavô das garras do
professor, trazido para os confins da floresta e abençoado
com a oportunidade de ser criado de acordo com a ver
dade. Tinhalo feito porque, segundo dizia o seu tio,
O CÉU É DOS VIOLENTOS 41

O Senhor tinha a intenção de que ele fosse treinado para


profeta, pese embora fosse filho ilegítimo, e de que fosse
preparado para assumir o lugar do tioavô quando este fa
lecesse. O velho comparava a situação deles dois à de Elias
e Eliseu.
Está bem, cedeu o desconhecido, suponho que saibas o
que elas são. Mas há uma carrada de outras coisas que des
conheces. Força, segue as pisadas do velho à vontade. Põe
te no lugar de Eliseu na sucessão de Elias, como ele disse.
Mas deixame só perguntarte o seguinte: onde pára a voz
d’O Senhor? Eu ainda não a ouvi. Quem te chamou na ma
nhã de hoje? Ou na manhã de qualquer outro dia? Alguém
te disse o que fazer? Nesta manhã ainda nem sequer ou
viste o som de trovões na Natureza. Não se vê uma única
nuvem no céu. O teu problema, pelo que vejo, concluiu, é
que não tens senso para mais do que para fazeres fé em to
das as palavras que ele te disse.
O sol estavalhe directamente por cima, numa aparente
calmaria de morte, com a respiração suspensa, à espera
que passasse o meiodia. A cova tinha cerca de sessenta
centímetros de fundo. Agora não te esqueças, tem de ter
três metros de fundo, disse o desconhecido com uma gar
galhada. Os velhos são egoístas. Tens de contar com o pior
da parte deles. Com o pior da parte de toda a gente, acres
centou e deixou escapar um suspiro terminante que mais
pareceu uma rajada de areia levantada e despejada de sú
bito pelo vento.
Tarwater levantou o olhar e viu duas figuras cortarem
pelo meio do terreno, um homem e uma mulher de cor,
cada qual trazendo suspenso de um dedo um jarro de vi
nagre vazio. A mulher era alta e apresentava traços índios,
trazia posto um chapéu verde de abas largas contra o sol.
Dobrouse para passar sob a cerca sem se deter e seguiu
42 FLANNERY O'CONNOR

cruzando o quintal na direcção da cova; o homem empur


rou o arame para baixo, baloiçou uma perna para passála
por cima da cerca e seguir de perto as pisadas da mulher.
Mantinham os olhos fitos na cova e pararam à beira dela,
olhando as profundezas do chão revolto com expressões
satisfeitas e surpreendidas. O homem, chamado Buford, ti
nha um semblante encarquilhado, mais escuro do que o
seu chapéu. «O velho subiu», disse ele.
A mulher levantou a cabeça e rompeu num pranto
lento e sustido, penetrante e formal. Colocou o seu jarro
no chão e cruzou os braços, então ergueuos ao alto e tor
nou a carpir.
«Dizlhe que se cale com aquilo», atirou Tarwater. «Agora
quem manda aqui sou eu e não quero para aqui prantos de
preto.»
«Há duas noites que vejo o espírito dele», disse a mu
lher. «Foram duas noites seguidas que o vi e estava em de
sassossego.»
«Só está morto desde hoje de manhã», disse Tarwater.
«Se vocês querem que vos encha os jarros, dêemmos e ca
vem enquanto trato do recado.»
«Há muitos anos que ele vinha a predizer a sua morte»,
disse Buford. «Ela viuo em sonhos muitas noites de se
guida e o homem não estava sossegado. Eu conheciao
bem. Conheciao mesmo muito bem, para dizer a verdade.»
«Pobre docinho de rapaz», disse a mulher para Tarwater,
«o que vais tu fazer aqui, agora que estás sozinho neste sí
tio isolado?»
«Vou tratar dos meus assuntos», disse o rapaz, arran
candolhe o jarro dos dedos com um esticão. Abalou tão
depressa que por pouco não caiu. Afastouse em passos
convictos pelo terreno das traseiras, na direcção da orla do
arvoredo que cercava a clareira.
O CÉU É DOS VIOLENTOS 43

Os pássaros tinham fugido para os confins mais pro


fundos dos bosques por forma a escaparem ao sol do
meiodia e um tordo, escondido a alguma distância à sua
frente, soava as mesmas quatro notas uma e outra vez, pa
rando ao fim de cada toada para se fazer silêncio. Tarwater
começou a apressar o passo, depois principiou a galopar, e
num segundo desatou a correr como se fosse algum bicho
caçado, deslizando até ao fundo de ladeiras repletas de
agulhas de pinheiro e amparandose nos ramos das árvo
res para se impelir, ofegante, na subida de declives move
diços. Rompeu à força através de uma muralha de ma
dressilva e galgou por cima do leito arenoso de um regato
quase seco, e despenhouse contra a margem alta e argi
losa que constituía a parede traseira de uma gruta onde
o velho escondia as suas reservas de bebidas alcoólicas.
Tinhalas escondidas numa reentrância na margem, gruta
tapada com um pedregulho. Tarwater começou a debater
se com a pedra para a depor, enquanto o desconhecido
pairava sobre o seu ombro a arfar: ele era maluco! Ele era
maluco! Não há mais nada a dizer sobre o assunto, o ho
mem era maluco!
Tarwater conseguiu afastar o pedregulho, tirou do es
conderijo um cântaro preto e sentouse com ele encostado
à margem. Maluco!, sibilou o desconhecido, estatelando
se ao seu lado.
O sol despontou, colorido de um branco violento,
avançando passo a passo com secretismo por trás das
copas das árvores que se erguiam altaneiras em redor do
esconderijo.
Onde é que já se viu um homem, com setenta anos de
idade, trazer um bebé para os confins da floresta com o
intuito de criálo como deve ser?! Imagina que ele tinha
morrido quando tinhas quatro anos, em vez de catorze?
44 FLANNERY O'CONNOR

Nesse caso, terias sido capaz de carregar pasta de malte


até ao alambique e de te sustentares? Nunca ouvi falar de
nenhum miúdo de quatro anos que governasse um alam
bique.
Nunca na vida ouvi falar de tal coisa, prosseguiu. Para
ele não foste nada além de um objecto que pôde criar até
ter tamanho suficiente para sepultálo quando chegasse a
sua hora, e agora está morto, está livre de ti, mas tu ficaste
com cento e tal quilos dele para arrumar debaixo da terra.
E não julgues que ele não ficaria a ferver que nem um
forno a carvão se te visse beber uma gota de álcool, acres
centou. Embora ele próprio tivesse um fraquinho por isso.
Quando não conseguia suportar Deus por mais um ins
tante que fosse, embebedavase, fosse ou não fosse pro
feta. Ah! Talvez te dissesse que te faria mal, mas quisesse
com isso dizer que eras capaz de beber tanto que não fi
casses em condições de enterrálo. Dizia que te tinha tra
zido para estas bandas para te criar a preceito, e o preceito
dele era esse: deverias estar em condições, chegada a hora
de enterrálo, para que pudesse ter uma cruz a marcar o
sítio onde ficasse.
Ora, um profeta com um alambique! É o único profeta
de quem alguma vez ouvi falar que ganhava a vida com o
fabrico de bebidas alcoólicas.
Passado um minuto, disse num tom mais suave, en
quanto o rapaz bebia um longo trago do cântaro preto:
bem, suponho que uma pinga não te prejudique. Com mo
deração, nunca fez mal a ninguém.
Um braço ardente deslizou pela garganta de Tarwater
abaixo como se o diabo já estivesse a estender as mãos
para dentro dele para lhe dedilhar a alma. Semicerrou os
olhos contra o sol irado que se esgueirava atrás da linha
mais alta do arvoredo.
O CÉU É DOS VIOLENTOS 45

Vai com calma, disselhe o amigo. Lembraste daque


les cantores de gospel pretos que viste uma vez, todos
bêbedos, todos a cantarem, todos a dançarem à volta da
quele automóvel preto da Ford? Valhame Deus, não se
teriam sentido tão felizes, nem de perto nem de longe, por
estarem Redimidos se não fosse aquele álcool que tinham
no bucho. No teu lugar, não daria muita importância à
minha Redenção. Há quem leve tudo na vida com dema
siada seriedade.
Tarwater bebeu mais devagar. Só tinha estado bêbedo
uma vez antes e, nessa altura, o tio bateralhe com uma
ripa de madeira à conta disso, dizendolhe que o álcool
dissolveria as entranhas de uma criança, tendo sido esta
outra das suas mentiras, pois as entranhas do rapaz não se
haviam dissolvido.
Devias ter presente com toda a clareza, disse o bondoso
amigo, a maneira como ao longo de toda a tua vida foste in
trujado por aquele velho. Podias ter sido um finório urbano
de há catorze anos para cá. Em vez disso, foste privado de
qualquer companhia além da dele, tens morado num par
dieiro com dois andares no meio da careca deserta desta
Terra, a arrastarte atrás de uma mula e um arado desde os
sete anos de vida. E como é que sabes que a educação que
ele te deu foi fiel aos factos? Talvez te tenha ensinado um
sistema numérico que mais ninguém usa. Como é que sabes
se dois mais dois são quatro? Se quatro mais quatro são oito?
Talvez as outras pessoas não achem o mesmo. Como é que
sabes se houve algum Adão, ou se Jesus aliviou a tua situa
ção quando te redimiu? Como sabes tu se Ele chegou de
facto a redimirte? Não tens certeza nenhuma além da pala
vra daquele velho e, nesta altura, já se deveria ter tornado
óbvio que o homem era louco. E quanto ao Juízo Final, disse
o desconhecido, todos os dias são de Julgamento.
46 FLANNERY O'CONNOR

Será que ainda não tens idade que chegue para teres
aprendido isso por ti? Será que tudo o que fazes, tudo o
que alguma vez fizeste, não te salta à vista como sendo
certo ou errado, e isto normalmente antes do solposto?
Alguma vez te safaste com alguma coisa? Nada disso, tão
pouco alguma vez julgaste que te safarias. Mais vale be
beres esse álcool todo, posto que já bebeste tanto. Uma vez
que se excede o limite da moderação, não há como voltar
atrás, e essa revolução que sentes descerte por dentro a
partir da crista do cérebro, disse ele, é a Mão de Deus a
darte a Sua bênção. Ele deute a tua liberdade. Aquele ve
lho era o rochedo que te estorvava a porta e Deus afastou
o a rolar. Ainda não o fez rolar para longe quanto baste,
claro. Tens de acabar a obra sozinho, mas encarregouse
do essencial. Louvado seja Ele.
Tarwater perdera toda a sensibilidade nas pernas.
Passou um pouco pelas brasas, com a cabeça pendurada
para um lado e a boca aberta, e o álcool a gotejar pouco a
pouco pela lateral do fatomacaco abaixo, no local onde o
cântaro se virara sobre o seu colo. Passado algum tempo,
restava apenas um pingo pegado ao gargalo da garrafa,
que se formava, enchia e caía, silencioso, cadenciado e da
cor do sol. O céu luminoso e homogéneo começou a escu
recer, engrossando de nuvens até que todas as sombras se
haviam confundido. Ele acordou com um repelão para a
frente, focando e desfocando os olhos em algo que parecia
um trapo queimado suspenso rente ao seu rosto.
Buford disselhe: «Isto não são maneiras de te compor
tares. O velho não merece isto. Não há descanso enquanto
os mortos não estão enterrados.» Encontravase de cóco
ras, com uma mão cerrada em torno do braço de Tarwater.
«Fui até além, à porta de casa, e vio para lá sentado à
mesa, nem sequer estava estendido numa padiola. Devia
O CÉU É DOS VIOLENTOS 47

estar estendido e ter sal espalhado por cima do peito se


quiseres que se conserve até amanhã.»
O rapaz apertou a vista entre as pálpebras para manter
a imagem estável e, dentro de um segundo, conseguiu dis
tinguir dois olhinhos vermelhos e inchados.
«Ele merece descansar num túmulo que lhe sirva», disse
Buford. «Foi um homem profundo nesta vida, vivia mer
gulhado na miséria de Jesus.»
«Preto», disse a criança, dando à sua língua estranha in
tumescida, «tira as patas de cima.»
Buford levantou a mão. «Ele precisa de repouso», disse.
«Háde ficar bem repousado quando eu acabar o que te
nho a fazerlhe», disse Tarwater de modo vago. «Chispate
e deixame cá com os meus assuntos.»
«Ninguém te vai incomodar», disse Buford, pondose
em pé. Esperou um minuto, vergado, de olhos pousados na
figura inerte que jazia espraiada contra a margem. A ca
beça do rapaz estava inclinada para trás por sobre uma
raiz que despontava da ribanceira. Tinha a boca escanca
rada, e o chapéu virado para cima desenhava uma recta
que lhe cruzava a testa, ao rés dos olhos semiabertos que
nada viam. Os seus malares viamse salientes, estreitos e
esguios como os braços de uma cruz, e as covas que lhes
passavam por baixo tinham um aspecto ancestral como se
o esqueleto sob a pele da criança fosse tão antigo como o
mundo. «Ninguém te vai incomodar», resmungou o negro
abrindo caminho pelo meio da muralha de madressilva
sem tornar a olhar para trás. «O teu sarilho vai ser esse.»
Tarwater voltou a fechar os olhos.

Foi acordado por alguma ave noctívaga que respingava


por perto. O barulho que fazia não chegava a ser um guin
48 FLANNERY O'CONNOR

cho, não passava de um soluçar entrecortado como se o


pássaro tivesse de recordarse da sua razão de queixa an
tes de poder repetila. As nuvens deslocavamse convulsi
vas no céu negro e viase uma lua rosa, vacilante, que pa
recia ser sacudida cerca de meio metro para cima e depois
despejada, antes de ser novamente caçada para cima. Isto
deviase, tal como o rapaz não tardou a reparar, ao facto
de o céu estar a descer, veloz, caindo a pique para abafá
lo. A ave piou e levantou voo a tempo de fugir, e Tarwater
lançouse aos bordos para o meio do leito do regato e jo
gouse de gatas ao chão. A lua surgia reflectida como se
fosse uma chama pálida nas poucas manchas de água que
molhavam a areia. Ele arrancou de encontro à muralha de
madressilva e começou a rasgála do seu caminho, con
fundindo o doce aroma familiar com o peso que se abatia
sobre si. Quando se apanhou do outro lado, o chão negro
oscilou lentamente e tornou a deitálo por terra. O fulgor
de um relâmpago rosado iluminou os bosques e ele viu os
contornos pretos das árvores que se erguiam trespassando
o chão em toda a sua volta. A ave noctívaga tornou a piar
pousada na mata onde se havia instalado.
Ele levantouse e começou avançar na direcção da cla
reira, apalpando caminho árvore ante árvore, sentindo os
troncos muito frios e secos na pele das mãos. Ouviramse
trovões distantes e viuse o dardejar contínuo de relâmpa
gos mortiços que acendiam uma secção do bosque e então
mais outra. Finalmente viu a cabana plantada, preta e alta
e desolada, no centro da clareira, com a lua rosa a tremu
lar directamente por cima. Os seus olhos cintilaram como
minas de luz a descoberto ao passo que avançava sobre a
areia, arrastando a sua sombra decalcada atrás de si. Não
virou a cabeça para o lado do quintal onde começara a
abrir a cova. Parou na esquina mais distante da casa, aga
O CÉU É DOS VIOLENTOS 49

chouse junto ao chão e espreitou por baixo do edifício


para o lixo que ali se encontrava, entre as gaiolas das ga
linhas e barris e trapos velhos e caixotes. Trazia uma pe
quena caixa de fósforos de madeira no bolso.
Rastejou para debaixo da casa e começou a atear pe
quenos fogos, avivando o lume de um com a chama de
outro, e ganhando terreno a caminho do alpendre da
frente, deixando o fogo atrás de si consumir avidamente
as madeiras secas e as tábuas do sobrado da habitação.
Atravessou a parte da frente do quintal e rompeu pelo
meio do terreno lavrado sem olhar para trás até alcançar a
orla dos bosques que ficavam do lado oposto. Então es
preitou por cima do ombro e viu que a lua rosa caíra atra
vés do telhado da cabana e começava a rebentar e, aí, lar
gou a correr, impelido bosque dentro por dois olhos de
prata esbugalhados que cresciam num pasmo imenso no
centro do incêndio que deixava atrás de si. Conseguia ou
vir as chamas subirem na noite negra como se fossem um
cortejo triunfal.

Cerca da meianoite saiu para a autoestrada e apanhou


boleia com um caixeiroviajante que representava um fa
bricante, vendendo tubos de cobre por todo o sudoeste do
país, e que ofereceu ao rapaz silencioso o que dizia ser o
melhor conselho que poderia dar a qualquer jovem que es
tivesse à procura do seu lugar no mundo. Enquanto acele
ravam em frente sobre a estrada negra sem curvas, vigia
dos de ambos os flancos pelas muralhas escuras das
árvores, o vendedor disse que, segundo a sua experiência
pessoal, não se podia vender tubos de cobre a um homem
por quem não se tivesse estima. Era um tipo magro com
um rosto longilíneo que parecia terse gasto até adquirir as
50 FLANNERY O'CONNOR

depressões mais angulosas possíveis. Envergava um cha


péu cinzento e rígido com abas largas, da variedade utili
zada por homens de negócios que gostariam de parecerse
com cowboys. Disselhe que o amor era a única táctica que
funcionava em 95% das circunstâncias. Disse que, quando
ia vender um tubo a um homem, perguntava primeiro pela
saúde da sua esposa e como iam os seus filhos. Disse que
tinha um livro onde registava os nomes dos parentes dos
fregueses e as maleitas que os afligiam. Se a esposa de um
homem tivesse cancro, assentava o seu nome no livro e es
crevia cancro a seguir, e perguntava por ela de cada vez
que visitava a loja de ferragens do marido até ao dia da
sua morte; então, riscava a palavra cancro e escrevia
morta no seu lugar. «E eu cá dou graças a Deus quando ba
tem a bota», disse o vendedor; «é menos uma de quem te
nho que me lembrar.»
«Não devemos nada aos mortos», disse Tarwater em voz
alta, falando quase pela primeira vez desde que entrara no
carro.
«Nem eles a nós», disse o estranho. «E é assim que as
coisas deviam funcionar neste mundo – sem dívidas de
ninguém para com ninguém.»
«Escute», disse Tarwater de súbito, chegandose para a
frente, com o rosto próximo do párabrisas, «estamos a ir
na direcção errada. Estamos a voltar para donde viemos.
Está ali outra vez o incêndio. Está ali o incêndio de onde
saímos!»
No céu à frente deles viase uma ténue incandescência,
constante, e que não era produzida por relâmpagos.
«Aquele é o mesmo incêndio donde viemos!», disse o rapaz
em voz esganiçada.
«Deves estar mas é maluco, miúdo», respondeu o ven
dedor. «Aquilo ali é a cidade para onde vamos. Aquele cla
O CÉU É DOS VIOLENTOS 51

rão é das luzes da cidade. Calculo que esta seja a primeira


viagem que fazes a algum lado.»
«Está a andar ao contrário», disse a criança, «aquele é o
mesmo incêndio de antes.»
O estranho distorceu pronunciadamente a sua cara vin
cada. «Nunca andei ao contrário na minha vida», disse. «E
não vim de incêndio nenhum. Vim de Mobile. E sei para
onde vou. Qual é o teu problema?»
Tarwater sentouse de olhos fixos no clarão à sua
frente. «Estava a dormir», resmungou. «Só agora começo a
acordar.»
«Devias ter vindo a darme ouvidos», disse o vendedor.
«Tenho estado a contarte coisas que devias registar.»

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