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cena n.

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EXPERIMENTALISMO E POLITIZAçãO NA DRAMATURGIA


BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1960: DO SEMINÁRIO DE
DRAMATURGIA NO TEATRO DE ARENA À PEÇA MUTIRÃO
EM NOVO SOL

Paulo Bio Toledo


Doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e
Artes da USP (PPGAC ECA-USP)
Pesquisador do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (USP)
E-mail: paulo.v.bio@gmail.com

Paula Chagas Autran Ribeiro


Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e
Artes da USP (PPGAC ECA-USP)
Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS)
E-mail: paulautranch@gmail.com

Resumo Abstract

Seguindo a tradição iniciada com os Semi- According to the tradition begun with the
nários de Dramaturgia do Teatro de Arena, Nel- Seminários de Dramaturgia do Teatro de Are-
son Xavier escreveu Mutirão em Novo Sol em na (Playwriting Seminars of Teatro de Arena),
1961, em coautoria com Augusto Boal, sobre Nelson Xavier wrote Mutirão em Novo Sol in
uma revolta de lavradores ocorrida em 1959 1961, co-authored with Augusto Boal, about a
no interior de São Paulo. Tanto o Seminário do peasant’s rebellion that took place in 1959 in
Arena quanto a peça representam momentos a country town of São Paulo. Both the Semi-
decisivos da modernização e do engajamento nários de Dramaturgia and the play represent
do teatro no Brasil. Por meio da análise des- key moments on the modernization and on the
tes acontecimentos, o trabalho busca debater engagement of brazilian theatre. By analyzing
algumas das questões consideradas centrais these events, this academic paper seeks to
neste momento de inflexão do teatro nacional. debate some of the issues considered centrals
in this time of inflection of the national theatre.

Palavras-chave Keywords

Teatro de Arena; Seminário de dramaturgia; Teatro de Arena; Playwriting Seminars; CPC;


CPC; MCP; Nelson Xavier. MCP; Nelson Xavier.
cena n. 19

Seminários de Dramaturgia da escrita, experiência até então impensável


na linha de modernização do teatro brasileiro,
O Seminário de Dramaturgia do Teatro de que se tornava hegemônica a partir do modelo
Arena foi o primeiro projeto de estudo e produ- de maior desenvolvimento empresarial do Te-
ção sistemática de uma dramaturgia nacional atro Brasileiro de Comédia (TBC). O texto e
moderna. Fundado em 1958,“funcionou com a cena nasciam interligados, sendo seu tema
regularidade semanal por aproximadamente – e sua forma de representação – problemati-
dois anos, com interrupções.” (GUIMARÃES, zados a um só tempo.
1978, p. 67). Sua contribuição para uma mu- Além disso, o trabalho do dramaturgo se
dança nos caminhos da modernização do te- confundia com outras operações do teatro, po-
atro brasileiro é inestimável. Uma geração de dendo ser ele também ator, diretor e técnico
dramaturgos com atuação no teatro, no cine- de seus espetáculos e dos espetáculos dos
ma e na televisão foi influenciada pelos deba- outros integrantes do Seminário. Estava em
tes que ali ocorreram. Na forma de um encon- jogo, portanto, uma reelaboração da função do
tro semanal de leitura e debate sobre textos dramaturgo, que pensava, ao mesmo tempo, a
dos jovens autores, o Seminário nasceu de necessidade de uma consciência formativa e
uma evolução do curso de dramaturgia minis- metodológica.
trado nos anos anteriores por Augusto Boal e Em meio às discussões das peças e de
mantém vínculos profundos com a prática ar- suas montagens, foi empreendido no Seminá-
tística, política e pedagógica das encenações rio um amplo esforço de reflexão metodológica
produzidas no Teatro de Arena. sobre uma dramaturgia brasileira de orienta-
O Seminário não era restrito aos integrantes ção nacional e popular, que gerou a neces-
da companhia. Estudiosos convidados amplia- sidade de criar peças que refletissem o mo-
vam os temas discutidos pelos dramaturgos. mento histórico no qual estavam inseridos. A
Do Seminário saíram sete textos de autores teorização sobre a relação entre dramaturgia
nacionais – entre eles Chapetuba Futebol e a história atual surge no entrecruzamento
Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, da escrita da peça e sua efetivação no palco.
e Revolução na América do Sul, de Boal – e Para alcançar essa interação, que só pode se
também uma nova maneira de produção da dar no campo de uma crítica da teatralidade,
escrita dramática e de espetáculos teatrais. A tornou-se crucial o estudo detalhado de cada
grande novidade estava na forma compartilha- um de seus aspectos produtivos (o trabalho do
da com que o dramaturgo concebia seu texto, ator, a cenografia, a escrita etc.) de modo que
em meio a debates políticos, estéticos e artís- a perspectiva do processo de aprendizagem
ticos. Construía-se ali uma pedagogia drama- passasse a orientar o grupo em suas realiza-
túrgica sem precedentes no teatro do país. ções culturais.
O sentido geral da novidade histórica do O que se desenha a partir de então é um
Seminário de Dramaturgia se liga, assim, a deslocamento importante no que se refere ao
um deslocamento da função e do trabalho da modo convencional de encenar peças. Ao con-
dramaturgia (a partir de sua conexão radical trário dos diretores tradicionais, que criam os
com a prática) e de uma inédita coletivização movimentos do palco segundo “marcas”, após

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os atores decorarem suas falas, Augusto Boal arte engajada social e politicamente, e para
põe em prática um tipo de ensaio em que o isso faz-se necessário repensar o conjunto de
processo teatral parte do estudo do material sua história.
feito em grupo. Com todas as contradições Em torno dos integrantes do Seminário pa-
ideológicas que o conceito envolve, o pensa- recia haver um consenso de que para se dis-
mento nacional-popular significava no Arena cutir teatro era agora necessário se discutir
daquele momento um impulso para uma prá- também a realidade nacional. Essa tomada de
tica conectada com as forças mais progres- posição vai além dos temas e influencia direta-
sistas da época, nos termos da pesquisadora mente a feitura das peças que serão discutidas.
Maria Silvia Betti: Radicaliza-se o projeto de um teatro engajado
socialmente, de sentido nacional-popular, que
Nesse período, a indústria de bens
culturais de massa era incipiente, e a
traz para dentro da sala de ensaio a discussão
ideia de um projeto de cultura nacio- política e a reflexão sobre o momento social.
nal-popular não havia, ainda, sido co- A ênfase dos debates, desde o início, estava
optada pelos meios de comunicação,
constituindo-se, portanto, em perspec- no conteúdo das peças analisadas e na visão
tiva de abertura para uma nova forma de mundo que elas encerravam. Essa neces-
de atuação no campo cultural. Diante
desse contexto, povo e nação, enten- sidade de problematizar assuntos amplos, que
didos como elementos conceituais envolviam conjuntura, acabará por aumentar
positivos e inovadores, trazem em si
a perspectiva da renovação da práxis a contradição entre o projeto ideológico e os
teatral e da integridade entre pensa- modelos formais, ainda predominantemente
mento e atuação. Fortalece-se, assim,
a referida visão crítica da história do te- de ordem dramática.
atro no Brasil, enquanto se desenvolve Quando percebem que seus interesses crí-
uma enriquecedora forma de atuação
política e cultural. (BETTI, 1997, p. 16) ticos encaminhavam o projeto para uma refle-
xão sobre uma teatralidade que transborda os
No Seminário de Dramaturgia os integran- limites do drama, os integrantes do Seminá-
tes do Teatro de Arena assumem, pela primei- rio se vêm obrigados a refletir sobre seus ca-
ra vez, um projeto estético totalizante, que une minhos formais num sentido novo. Enquanto
todas as áreas das realizações do grupo. Com essa contradição não estava clara, a equipe
esse direcionamento, a dramaturgia surge constatava que a novidade principal do traba-
como o lugar de organização mais geral dos lho do grupo era da ordem do conteúdo, como
trabalhos. Torna-se intensa a busca por uma bem aponta Vianinha numa reflexão sobre o
linguagem teatral genuinamente brasileira, período:
tanto na fala quanto na atuação, como a rea-
Enquanto as outras companhias, sem
lizada por algumas companhias de teatro po- muito para dizer de autêntico, comer-
pular. Torna-se imprescindível o engajamento, cializavam a sua forma, o Arena co-
mercializava seus conteúdos, usando
que vem ao encontro dessa necessidade de no público sua área mais urgente de
formação que não é apenas do grupo, mas indagações pelo mundo. Os problemas
que menos distância possuíam da re-
de um teatro que se pensa dentro do conjunto alidade social formam abordados. As
do teatro da cidade e do país. O dramaturgo mediações longínquas foram abolidas.
precisa ser um pesquisador, estudioso de uma (VIANINHA, 1983, p. 91)

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Como fica claro na citação, a estruturação Os integrantes do Arena tentavam com sua
do programa de estudos veio em sintonia com prática teatral desnudar as diferenças de clas-
a prática, atendendo às possibilidades de au- se e as fissuras sociais do país, também pre-
tores “jovens de pouca idade sem experiência sentes no mundo da cultura, o que levaria o
de vida” (BOAL, 2000, p. 150). O mais impor- próprio grupo a rachar diante de um aprendi-
tante era que todos de fato “estudaram, discu- zado que impunha a todos uma reflexão sobre
tiram, escreveram” (BOAL, 1980, p. 149). Na a função social do teatro. A radicalização da
prática dos encontros do Seminário, a drama- postura de Vianinha e de Chico de Assis que
turgia era entendida como concreção de va- os conduz ao CPC é, entretanto, uma conse-
lores políticos e teorizantes. Cada texto era quência de um trabalho anterior. Tanto das ex-
analisado como um trabalho dialético, o que cursões com as peças nacionais que encenam
pedia, no mínimo, uma união à interpretação. por meio do Seminário, quanto do efeito mo-
A prática do Seminário ia assim, muito além delar de uma peça radicalmente épica como
da mera aquisição de técnica literária. O texto Revolução na América do Sul, de Boal, que
era um meio de estudos para o grupo. Os inte- teve sua estreia em 1960. Guarnieri é quem
grantes permitiam-se levar ao palco peças que aponta o vínculo indissolúvel entre as pesqui-
não tinham uma estrutura de obra acabada, sas do Seminário e do CPC:
mas cujo tema ou personagem central interes-
sava do ponto de vista político. Não havia, nes- O Seminário pode ter sido, por exem-
plo, o primeiro espectro desta mistura
se sentido, uma fórmula de resultados pré-es- de tendências que vai aflorar no CPC.
tabelecida. A pesquisa se dava por tentativa e Muitas das posições discutidas no Se-
minário passam a ser o centro de deba-
erro. tes internos do CPC e muitas passam
O Seminário superava, assim, a mera apli- a ser a linha de ação do movimento.
(In: PEIXOTO, 1985, p. 106)
cação das estudadas leis do drama, em favor
de uma perspectiva laboratorial. Os sete textos
A verdadeira dialética do Seminário haveria
produzidos a partir do Seminário aproximam-
de se realizar fora dele, num lugar em que o
se muito do universo de atuação, pois ou foram
conteúdo e a forma teatral uniam-se dialetica-
escritas para os atores ou por eles. Flávio Mi-
mente, em que a história deveria ser produzi-
gliaccio até então nunca havia escrito. Nelson
da de modo livre. O drama era, para isso, uma
Xavier e Milton Gonçalves tiveram seus estu-
técnica insuficiente. Abria-se de vez a neces-
dos ali analisados, ainda que não encenados.
sidade de uma encenação épico-dialética co-
Buscava-se uma atitude autoral do conjunto
nectada ao momento brasileiro. Se é verdade
da equipe. A grande descoberta do Seminário
que Brecht, com sua negatividade radical, não
era simples e rara: o trabalho do dramaturgo é
era um modelo fácil a ser adotado num país
sempre coletivo, mesmo que escreva em casa.
que há pouco realizava seus primeiros dra-
Mais do que o estudo da dialética aplicada ao
mas, eram também verdade que uma teatrali-
teatro, a contribuição modelar do Seminário
dade dialética e popular deveria ser inventada.
se forma a partir de sua mobilidade constante
Foram essas as coordenadas que o Seminário
entre aprendizagem e produção, entre teoria e
forneceu ao CPC, gerando uma nova pesquisa
prática, entre arte e história.
laboratorial nas ruas que seria interrompida

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com o golpe de 1964. Mutirão em Novo Sol foi motivo de ao me-


Por conta de seu caráter exemplar, o Semi- nos três montagens históricas e mobilizou al-
nário de Dramaturgia do Teatro de Arena aca- guns dos principais movimentos culturais do
bou sendo replicado em diferentes cidades do período, como o Teatro de Arena, o Centro
país, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre Popular de Cultura (CPC) de São Paulo, o Mo-
outras, tornando-se um modelo para todo es- vimento de Cultura Popular (MCP) de Pernam-
critor de teatro da década de 60. Em paralelo buco e, por fim, o importante CPC da Bahia,
ao Seminário de Dramaturgia, os artistas do onde uniu setores de teatro e cinema em um
Arena fazem viagens para conhecer de perto tipo ainda desconhecido de linguagem híbri-
a realidade nacional, escrevem textos teóricos da politizada. Os espetáculos atingiram milha-
sobre essas experiências, e reposicionam o res de espectadores em um espaço curto de
espectro de atuação possível de um grupo te- tempo, protagonizando significativos eventos
atral. Essa nova forma de organização artísti- como o I Congresso Nacional de Lavradores
ca e política acabará ensejando a criação do e Trabalhadores Agrícolas em Belo Horizonte
CPC em 1960, e uma parceria profícua com (SANTOS, 1962), temporada no Teatro Santa
diferentes movimentos sociais, como o Mov- Isabel em Recife (MENDONÇA, 1968, p. 154),
imento de Cultura Popular (MCP), de Recife apresentação em Brasília a convite do presi-
e deixará um legado muito além dos palcos. dente João Goulart (COELHO, 2002, p. 33) e
de Recife e deixará um legado muito além dos representações para multidões de lavradores
palcos. pobres de Pernambuco, Paraíba e Bahia.
A estrutura da peça é organizada a partir do
Mutirão em Novo Sol julgamento do lavrador Roque Santelmo Filho
por “subversão” e “incitação à desordem” (XA-
No momento dessa passagem entre os pro- VIER, 2015). No banco dos réus, Roque narra
cessos de aprendizagem do Seminário e as os eventos passados, que são apresentados
experiências de democratização da cultura no em flashbacks e entremeados por comentá-
CPC e MCP, encontra-se uma peça decisiva rios e debates no tempo do julgamento. Vemos
para todo o período. Trata-se de Mutirão em então todo o histórico da revolta coletiva de la-
Novo Sol, peça escrita em 1961 por Nelson vradores arrendatários expulsos da terra pelo
Xavier em parceria com Augusto Boal ¹ (XA- proprietário Coronel Porfírio. Após tentarem a
VIER, 2015). Embora esquecido por mais de inócua intervenção da lei, os camponeses, em
cinquenta anos, é um texto de importância se- um gesto espontâneo e coletivo, saqueiam o
minal nos processos de engajamento, popula- armazém, fundam uma União e decidem lutar
rização do teatro e experimentalismo artístico pela terra. Em resposta, a Polícia, o Exército,
que marcaram os anos anteriores ao Golpe a Igreja e os burocratas do Estado se agluti-
Militar de 1964. Com efeito, a peça contém nam em torno do Coronel para manter a or-
tanto aquele espírito laboratorial dos Seminá- dem com violência. Por fim, a Justiça revela ua
rios como a vontade de ultrapassar a ideia de parcialidade de classe e condena Roque até

1 Também teve a colaboração de integrantes do Teatro de Arena de São Paulo da época, como Benedito Araújo, Hamilton
Trevisan e Modesto Carone.

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que ele interrompa a rebelião. A resposta é um antigo. A novidade é, antes, o pressentimento


gesto coral dos lavradores presentes que se de que ali, na luta pela terra, na exploração
levantam e entoam a canção do Arranca ca- do trabalho no campo, na miséria extremada
pim, símbolo de sua resistência. Roque, então, se encontrava o principal ponto de tensão do
afirma a proporção coletiva, de classe, que o Brasil, e que, por conseguinte, dali nasceria o
evento ganhou: “Senhor Juiz, essa gente não futuro.
para nunca” (XAVIER, 2015, p. 79). A organização de obras a partir desta maté-
A figura de Roque é inspirada no líder cam- ria marginal passou a ser regra em quase toda
ponês Jôfre Correa Neto, que em 1959 prota- a produção artística engajada nestes anos. No
gonizou um enorme levante de lavradores nas campo do teatro, os principais grupos de es-
cidades de Jales e Santa Fé do Sul, interior querda, como o Teatro de Arena de São Paulo
de São Paulo (CHAIA, 1980; WELCH, 2010). e os grandes movimentos de democratização
Foi um movimento mais ou menos espontâneo da arte, como o Centro Popular de Cultura
de colonos expulsos sumariamente das terras (CPC) da UNE e o Movimento de Cultura Po-
arrendadas onde viviam e plantavam. O pro- pular (MCP) de Pernambuco centralizavam
prietário desejava criar gado de forma extensi- suas criações cada vez mais no interesse pe-
va ali e indiferente aos apelos dos lavradores, las margens agrárias do país. Diversas mon-
queimava casas e expulsava à bala os que tagens sobre o conflito pela terra ou sobre a
resistiam em sair. Estimulados por Jôfre e cor- exploração inacreditável do lavrador nas bei-
rendo risco de vida, muitos camponeses es- ras do Brasil se sucediam nos anos anteriores
colheram ficar e resistir. Em grandes grupos, ao golpe.
arrancavam sistematicamente o capim plan- Sob a influência direta da montagem de Jul-
tado pelos jagunços do proprietário em suas gamento em Novo Sol² pelo MCP de Recife,
quadras. A revolta, que ficou conhecida como Vianinha, criador e principal quadrodo CPC da
“Arranca Capim”, ganhou destaque nacional, UNE escreveu as peças Quatro quadras de
e Jôfre tornou-se referência como agitador em terra (1963) e Os Azeredos mais os Benevi-
um país que via crescer exponencialmente os des (1964). Em 1964, o CPC inauguraria seu
conflitos no campo, apesar da alardeada mo- novo teatro popular na sede da UNE com uma
dernização em marcha. encenação da peça Os Azeredos mais os Be-
Mutirão em Novo Sol é um acontecimento nevides de Vianinha, com direção de Nelson
decisivo para o processo de modernização do Xavier – convidado especialmente devido ao
teatro no país – que ganhava um novo sentido sucesso de Julgamento em Novo Sol que via-
com as experiências do Arena a partir de 1958 jou em turnê pelo Rio de Janeiro. No Teatro de
– e isso em vários aspectos. A começar pela Arena de São Paulo, O filho do cão, de Guar-
novidade temática da peça: os conflitos sociais nieri, apresentado em 1964, pouco antes do
no campo. O ineditismo não é o ângulo rural golpe, foi uma tentativa deliberada de desen-
propriamente, afinal o interesse pitoresco da volver temática e formalmente alguns tópicos
cultura pelo explorado, pelo sertanejo etc. já é de Mutirão (PEIXOTO, 1985, p. 56).

² A montagem de Mutirão em Novo Sol no MCP teve o título alterado para Julgamento em Novo Sol devido ao termo mutirão não
ser utilizado no Nordeste.

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Mesmo no campo da modernização teatral opinião em 1965³ .


não engajada, Antunes Filho estreou Vereda Mutirão em Novo Sol é a peça que inau-
da salvação de Jorge Andrade no TBC em gura esse interesse na temática da arte en-
1964 (que, por sinal, também virou filme no gajada daqueles anos; não propriamente pela
mesmo ano, com direção de Anselmo Duarte, angulação rural, mas por tratar o tema pelo
que já havia dirigido O pagador de promessas viés da luta de classes (VILLAS BÔAS, 2009,
em 1962). p. 68-87). E tal interesse iniciado com a peça
No campo do cinema, entre 1963 e 1964, revela tanto uma desconfiança ao projeto na-
Eduardo Coutinho estava embrenhado no ser- cional-desenvolvimentista em marcha no país
tão de Pernambuco com equipe do CPC e do como uma atenção inédita para os conflitos de
MCP filmando Cabra marcado para morrer, classe internos. Algo que, se verdade, proble-
sobre o assassinato do líder camponês João matiza as caracterizações históricas dualistas
Pedro Teixeira na Paraíba. E em 1964 estrea- sobre a cultura pré-1964, na maior parte das
ram três filmes fundamentais do cinema brasi- vezes entendida como fiel depositária da ideo-
leiro que têm como ângulo principal os confli- logia desenvolvimentista e/ou premida por ar-
tos do mundo rural brasileiro: Vidas secas, de roubos ingênuos de nacionalismo de esquer-
Nelson Pereira dos Santos, Os fuzis, de Ruy da à sombra do Partido Comunista Brasileiro
Guerra , e Deus e o diabo na terra do sol, de (PCB).
Glauber Rocha. No caso de Glauber, a influ- A fração geográfica, social, histórica focali-
ência de Mutirão em Novo Sol é direta. Ele zada nas obras ganhava estatuto de imagem
próprio tributa às experiências cinematográfi- reduzida do país – seja sua face de barbárie
cas da montagem da peça no CPC da Bahia perpétua, seja o horizonte de transformação
a influência decisiva para Deus e o diabo na que nossa sui generis luta de classes apresen-
terra do sol: tava (ou escamoteava). Como sugere o mar-
cante verso reiterado em Deus e o diabo na
Em 1963, Orlando e Geraldo Sarno re-
alizam o filme Rebelião em Novo Sol,
terra do sol: “o sertão vai virar mar/ o mar virar
com fotografia de Waldemar Lima, que sertão”. A peça Mutirão em Novo Sol também
integrava um espetáculo de Francisco é decisiva historicamente na organização es-
de Assis sobre a reforma agrária. Mon-
tado em estilo eisensteniano-vertovia- trutural do texto, fundamentalmente sua ino-
no, o filme influenciaria a epicidade de vadora tentativa de composição épica da dra-
Deus e o Diabo na Terra do Sol. (RO-
CHA, 1982, p. 476) maturgia. A forma tribunal na peça remete ao
teatro político soviético e alemão das décadas
Mesmo após a intervenção militar, a temá- de 1920 e 1930 e dá mostras da crescente in-
tica das margens em luta no sertão manteve- fluência que a leitura de Brecht e, fundamen-
se por alguns anos como fantasmagoria do talmente, de Erwin Piscator vinha exercendo
espírito revolucionário (Cf. TOLEDO, 2015) – nos jovens artistas politizados do período. Pis-
sendo o maior exemplo, talvez, a interpretação cator, logo após a Primeira Guerra Mundial,
de Maria Bethânia para a canção Carcará de criou o Teatro Tribunal (PISCATOR, 1968, p.
João do Vale, substituindo Nara Leão no Show 48-59), inspirado provavelmente em uma das
3 A performance de Bethânia ficou eternizada em outro filme decisivo do período, O desafio de Paulo César Saraceni de 1965.

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modalidades mais disseminadas de agitprop co e plateia, diferente de toda trajetória ligada


soviético (o agitsud), que eram as representa- à modernização do teatro no país; tratou-se
ções em massa de julgamentos nos primeiros de uma montagem aberta que ia se transfor-
anos após a Revolução. Além disso, os tribu- mando a partir dos debates e apresentações.
nais e sua estrutura aparecem frequentemen- Segundo Juca de Oliveira (2015)4 , em entre-
te nas peças de Brecht. Em Mutirão também o vista aos pesquisadores do LITS: “Qualquer
modelo brechtiano de teatro épico começou a mudança, qualquer reação do público […] re-
ser experimentado, com canções, coros, nar- sultaria numa modificação imediata do texto”.
rativas, quebras de ação, comentários etc., em É uma cena que marca uma nova concepção
um tipo novo de composição dramatúrgica. de teatro político, desenvolvida para ser apre-
Por fim, o processo de escrita da peça re- sentada em espaços fora do ambiente teatral,
aliza um gesto novo e decisivo no campo como sindicatos, congressos, encontros de
produtivo do teatro. A começar pelos procedi- lavradores etc., e que propõe como elemento
mentos coletivos de composição – a partir de central o trânsito vivo da cena com a plateia
uma conversa com Jôfre no Teatro de Arena, engajada. Ainda de acordo com Juca de Oli-
o grupo organiza uma série de improvisações veira, tudo era pensado para que no momento
e debates sobre o tema que, por sua vez, tor- das canções os camponeses participassem e
nam-se o material para a escrita. Cenas eram cantassem junto, e, mesmo quando isso não
imaginadas, debatidas, improvisadas e então ocorria, eles “participavam de uma forma total,
escritas. Algo que hoje parece natural foi um absoluta”.
procedimento absolutamente novo no primeiro Em 1962, Nelson Xavier montou o espetá-
ano da década de 1960. E seu desenvolvimen- culo com o Teatro de Cultura Popular (TCP)
to esteve ligado, sobretudo, a um processo do Movimento de Cultura Popular (MCP) em
de intensa politização e questionamento dos Pernambuco. Com o título de Julgamento em
paradigmas produtivos. A ideia de coletivo se Novo Sol, a estreia foi no Teatro Santa Isabel
desdobrou para o campo da criação – como já em Recife para um público de quase cinco mil
apontavam os Seminários de Dramaturgia do pessoas, seguida de uma temporada no an-
Arena. fiteatro do MCP no bairro periférico de Casa
Não é acaso, portanto, que montagens da Amarela. O enorme elenco com mais de 50
peça entre 1961 e 1964 foram todas marcadas atores foi composto por jovens ligados ao Mo-
por um notável experimentalismo e tentativas vimento – entre eles José Wilker em sua es-
de criar uma cena aberta e épica. A primeira treia no teatro –, e o espetáculo ficou marcado
delas foi organizada pelo CPC paulista, com por uma cena moderna e épica, com coros e
direção de Chico de Assis, para ser apresen- tentativas de composição experimental, como
tada no histórico I Congresso Nacional de La- Germano Coelho recorda: “Havia cenas que
vradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil lembravam esculturas movidas apenas pelo
(VERA, 1962, p. 95). O trabalho fundamen- jogo de luz, como nos trabalhos de Eisenstein”
tou-se em um tipo novo de trânsito entre pal- (COELHO, 2002, p. 32).

4 Entrevista concedida a Paula Chagas Autran e Sara Mello Neiva, em São Paulo, 23 de junho de 2015.

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Ainda em 1962, em Salvador, Chico de As- de verdade no país” (ARANTES, 2010, p. 216).
sis dirigiu uma montagem inovadora que uniu Em dezembro de 2015, no lançamento da pu-
os setores de teatro, música e cinema do CPC blicação atual da peça, em edição organizada
da Bahia. O título do espetáculo foi Rebelião pelo Laboratório de Investigação em Teatro e
em Novo Sol. Concomitantemente ao proces- Sociedade (LITS), Nelson Xavier, muito emo-
so de criação, Orlando Senna e Geraldo Sar- cionado depois da leitura de cenas da obra,
no, dois jovens cineastas ligados ao CPC na disse: “O Brasil viveu esse otimismo, a sen-
época, gravaram um filme documentário sobre sação de que tudo poderia ser diferente, as
as Ligas Camponesas da Bahia que era proje- coisas eram vivas, depois veio o golpe e tudo
tado antes das apresentações. Também grava- terminou, eu nunca mais fui o mesmo, fiquei
ram uma série de cenas que eram projetadas totalmente fragmentado, destruído”. De fato, a
ao longo da peça e que, por vezes, contrace- interrupção abrupta provocada pelos militares
navam com os atores: apagou um tempo em que a arte deixou de ser
vista como instituição neutra e supra-histórica
Além do documentário com meia hora
de duração, que abria o espetáculo,
e mobilizou recursos experimentais para de-
também fizemos cenas documentais senvolver uma nova relação com a sociedade.
e ficcionais, soltas, para a composição
multimídia. Por exemplo: em determi-
nado momento, na tela de cinema so-
bre o palco, um pistoleiro dispara um Referências
tiro e um ator no palco, um camponês,
é atingido. O contraste entre a imagem
gigante do pistoleiro na tela e a peque- ARANTES, P. E. 1964, o ano que não termi-
nez do camponês sozinho no palco era
forte. (SENNA, 2008, p. 122-3) nou. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (orgs.). O que
resta da ditadura? São Paulo: Boitempo, 2010.
A montagem híbrida e engajada foi algo
bastante inovador para a arte política do perí- BETTI, M. S. Oduvaldo Vianna Filho. São Pau-
odo e, no limite, problematiza os estereótipos lo: EDUSP, 1997
criados sobre o teatro participante produzido
entre 1961 e 1964 – muitas vezes desquali- BOAL, A. Hamlet e o filho do padeiro. Rio de
ficado como mera instrumentalização da arte Janeiro: Editora Record, 2000.
em favor da política, portanto didático, simpló-
rio e artisticamente menor. O “acontecimento” ______. Teatro do oprimido e outras poéticas
Mutirão deve, portanto, ser visto como o con- políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização
junto entre dramaturgia com temática inovado- Brasileira, 1980.
ra e experimentalismo épico das encenações.
O “esquecimento” de uma peça como Mu- CHAIA, V. L. M. Os conflitos de arrendatários
tirão em Novo Sol dá provas da violência com em Santa Fé do Sul (1959-1969). 1980. Dis-
que a ditadura militar não apenas interrompeu sertação de Mestrado – Universidade de São
movimentos políticos e sociais, mas também, Paulo, São Paulo, 1980.
nas palavras de Paulo Arantes, “apagou até a
memória de que um dia houve inconformismo

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

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