Você está na página 1de 10

cena n.

19

EXPERIMENTALISMO E POLITIZAçãO NA DRAMATURGIA


BRASILEIRA DA DÉCADA DE 1960: DO SEMINÁRIO DE
DRAMATURGIA NO TEATRO DE ARENA À PEÇA MUTIRÃO
EM NOVO SOL

Paulo Bio Toledo


Doutorando do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e
Artes da USP (PPGAC ECA-USP)
Pesquisador do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (USP)

Paula Chagas Autran Ribeiro


Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Escola de Comunicações e
Artes da USP (PPGAC ECA-USP)
Pesquisadora do Laboratório de Investigação em Teatro e Sociedade (LITS)

Resumo Abstract

Seguindo a tradição iniciada com os Semi- According to the tradition begun with the
nários de Dramaturgia do Teatro de Arena, Nel- Seminários de Dramaturgia do Teatro de Are-
son Xavier escreveu Mutirão em Novo Sol em na (Playwriting Seminars of Teatro de Arena),
1961, em coautoria com Augusto Boal, sobre Nelson Xavier wrote Mutirão em Novo Sol in
uma revolta de lavradores ocorrida em 1959 1961, co-authored with Augusto Boal, about a
no interior de São Paulo. Tanto o Seminário do peasant’s rebellion that took place in 1959 in
Arena quanto a peça representam momentos a country town of São Paulo. Both the Semi-
decisivos da modernização e do engajamento nários de Dramaturgia and the play represent
do teatro no Brasil. Por meio da análise des- key moments on the modernization and on the
tes acontecimentos, o trabalho busca debater engagement of brazilian theatre. By analyzing
algumas das questões consideradas centrais these events, this academic paper seeks to
neste momento de inflexão do teatro nacional. debate some of the issues considered centrals
in this time of inflection of the national theatre.

Palavras-chave Keywords

Teatro de Arena; Seminário de dramaturgia; Teatro de Arena; Playwriting Seminars; CPC;


CPC; MCP; Nelson Xavier. MCP; Nelson Xavier.
cena n. 19

Seminários de Dramaturgia da escrita, experiência até então impensável


na linha de modernização do teatro brasileiro,
O Seminário de Dramaturgia do Teatro de que se tornava hegemônica a partir do modelo
Arena foi o primeiro projeto de estudo e produ- de maior desenvolvimento empresarial do Te-
ção sistemática de uma dramaturgia nacional atro Brasileiro de Comédia (TBC).O texto e a
moderna. Fundado em 1958,“funcionou com cena nasciam interligados, sendo seu tema –
regularidade semanal por aproximadamente e sua forma de representação – problematiza-
dois anos, com interrupções.” (GUIMARÃES, dos a um só tempo.
1978, p.67). Sua contribuição para uma mu- Além disso, o trabalho do dramaturgo se
dança nos caminhos da modernização do te- confundia com outras operações do teatro, po-
atro brasileiro é inestimável. Uma geração de dendo ser ele também ator, diretor e técnico
dramaturgos com atuação no teatro, no cine- de seus espetáculos e dos espetáculos dos
ma e na televisão foi influenciada pelos deba- outros integrantes do Seminário. Estava em
tes que ali ocorreram. Na forma de um encon- jogo, portanto, uma reelaboração da função do
tro semanal de leitura e debate sobre textos dramaturgo, que pensava, ao mesmo tempo, a
dos jovens autores, o Seminário nasceu de necessidade de uma consciência formativa e
uma evolução do curso de dramaturgia minis- metodológica.
trado nos anos anteriores por Augusto Boal e Em meio às discussões das peças e de
mantém vínculos profundos com a prática ar- suas montagens, foi empreendido no Seminá-
tística, política e pedagógica das encenações rio um amplo esforço de reflexão metodológica
produzidas no Teatro de Arena. sobre uma dramaturgia brasileira de orienta-
O Seminário não era restrito aos integrantes ção nacional e popular, que gerou a neces-
da companhia. Estudiosos convidados amplia- sidade de criar peças que refletissem o mo-
vam os temas discutidos pelos dramaturgos. mento histórico no qual estavam inseridos. A
Do Seminário saíram sete textos de autores teorização sobre a relação entre dramaturgia
nacionais – entre eles Chapetuba Futebol e a história atual surge no entrecruzamento
Clube, de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, da escrita da peça e sua efetivação no palco.
e Revolução na América do Sul, de Boal – e Para alcançar essa interação, que só pode se
também uma nova maneira de produção da dar no campo de uma crítica da teatralidade,
escrita dramática e de espetáculos teatrais. A tornou-se crucial o estudo detalhado de cada
grande novidade estava na forma compartilha- um de seus aspectos produtivos (o trabalho do
da com que o dramaturgo concebia seu texto, ator, a cenografia, a escrita etc.) de modo que
em meio a debates políticos, estéticos e artís- a perspectiva do processo de aprendizagem
ticos. Construía-se ali uma pedagogia drama- passasse a orientar o grupo em suas realiza-
túrgica sem precedentes no teatro do país. ções culturais.
O sentido geral da novidade histórica do O que se desenha a partir de então é um
Seminário de Dramaturgia se liga, assim, a deslocamento importante no que se refere ao
um deslocamento da função e do trabalho da modo convencional de encenar peças. Ao con-
dramaturgia (a partir de sua conexão radical trário dos diretores tradicionais, que criam os
com a prática) e de uma inédita coletivização movimentos do palco segundo “marcas”, após

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

os atores decorarem suas falas, Augusto Boal arte engajada social e politicamente, e para
põe em prática um tipo de ensaio em que o isso faz-se necessário repensar o conjunto de
processo teatral parte do estudo do material sua história.
feito em grupo. Com todas as contradições Em torno dos integrantes do Seminário pa-
ideológicas que o conceito envolve, o pensa- recia haver um consenso de que para se dis-
mento nacional-popular significava no Arena cutir teatro era agora necessário se discutir
daquele momento um impulso para uma prá- também a realidade nacional. Essa tomada de
tica conectada com as forças mais progres- posição vai além dos temas e influencia direta-
sistas da época, nos termos da pesquisadora mente a feitura das peças que serão discutidas.
Maria Silvia Betti: Radicaliza-se o projeto de um teatro engajado
socialmente, de sentido nacional-popular, que
Nesse período, a indústria de bens
culturais de massa era incipiente, e a
traz para dentro da sala de ensaio a discussão
ideia de um projeto de cultura nacio- política e a reflexão sobre o momento social.
nal-popular não havia, ainda, sido co- A ênfase dos debates, desde o início, estava
optada pelos meios de comunicação,
constituindo-se, portanto, em perspec- no conteúdo das peças analisadas e na visão
tiva de abertura para uma nova forma de mundo que elas encerravam. Essa neces-
de atuação no campo cultural. Diante
desse contexto, povo e nação, enten- sidade de problematizar assuntos amplos, que
didos como elementos conceituais envolviam conjuntura, acabará por aumentar
positivos e inovadores, trazem em si
a perspectiva da renovação da práxis a contradição entre o projeto ideológico e os
teatral e da integridade entre pensa- modelos formais, ainda predominantemente
mento e atuação. Fortalece-se, assim,
a referida visão crítica da história do te- de ordem dramática.
atro no Brasil, enquanto se desenvolve Quando percebem que seus interesses crí-
uma enriquecedora forma de atuação
política e cultural. (BETTI, 1997, p. 16) ticos encaminhavam o projeto para uma refle-
xão sobre uma teatralidade que transborda os
No Seminário de Dramaturgia os integran- limites do drama, os integrantes do Seminá-
tes do Teatro de Arena assumem, pela primei- rio se vêm obrigados a refletir sobre seus ca-
ra vez, um projeto estético totalizante, que une minhos formais num sentido novo. Enquanto
todas as áreas das realizações do grupo. Com essa contradição não estava clara, a equipe
esse direcionamento, a dramaturgia surge constatava que a novidade principal do traba-
como o lugar de organização mais geral dos lho do grupo era da ordem do conteúdo, como
trabalhos. Torna-se intensa a busca por uma bem aponta Vianinha numa reflexão sobre o
linguagem teatral genuinamente brasileira, período:
tanto na fala quanto na atuação, como a rea-
Enquanto as outras companhias, sem
lizada por algumas companhias de teatro po- muito para dizer de autêntico, comer-
pular. Torna-se imprescindível o engajamento, cializavam a sua forma, o Arena co-
mercializava seus conteúdos, usando
que vem ao encontro dessa necessidade de no público sua área mais urgente de
formação que não é apenas do grupo, mas indagações pelo mundo. Os problemas
que menos distância possuíam da re-
de um teatro que se pensa dentro do conjunto alidade social formam abordados. As
do teatro da cidade e do país. O dramaturgo mediações longínquas foram abolidas.
precisa ser um pesquisador, estudioso de uma (VIANINHA, 1983)

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

Como fica claro na citação, a estruturação Os integrantes do Arena tentavam com


do programa de estudos veio em sintonia com sua prática teatral desnudar as diferenças de
a prática, atendendo às possibilidades de au- classe e as fissuras sociais do país, também
tores “jovens de pouca idade sem experiência presentes no mundo da cultura, o que levaria
de vida” (BOAL, 2000, p.150). O mais impor- o próprio grupo a rachar diante de um apren-
tante era que todos de fato “estudaram, dis- dizado que impunha a todos uma reflexão so-
cutiram, escreveram” (BOAL, 1980, p.149). Na bre a função social do teatro. A radicalização
prática dos encontros do Seminário, a drama- da postura de Vianinha e de Chico de Assis
turgia era entendida como concreção de va- que os conduz ao CPC é, entretanto, uma con-
lores políticos e teorizantes. Cada texto era sequência de um trabalho anterior. Tanto das
analisado como um trabalho dialético, o que excursões com as peças nacionais que ence-
pedia, no mínimo, uma união à interpretação. nam por meio do Seminário, quanto do efei-
A prática do Seminário ia assim, muito além to modelar de uma peça radicalmente épica
da mera aquisição de técnica literária. O texto como Revolução na América do Sul, de Bo-
era um meio de estudos para o grupo. Os inte- al,que teve sua estreia em 1960. Guarnieri é
grantes permitiam-se levar ao palco peças que quem aponta o vínculo indissolúvel entre as
não tinham uma estrutura de obra acabada, pesquisas do Seminário e do CPC:
mas cujo tema ou personagem central interes-
sava do ponto de vista político. Não havia, nes- O Seminário pode ter sido, por exem-
plo, o primeiro espectro desta mis-
se sentido, uma fórmula de resultados pré-es- tura de tendências que vai aflorar no
tabelecida. A pesquisa se dava por tentativa e CPC. Muitas das posições discutidas
no Seminário passam a ser o centro
erro. de debates internos do CPC e muitas
O Seminário superava, assim, a mera apli- passam a ser a linha de ação do movi-
mento.(GUARNIERI, 1978)
cação das estudadas leis do drama, em favor
de uma perspectiva laboratorial. Os sete textos
A verdadeira dialética do Seminário haveria
produzidos a partir do Seminário aproximam-
de se realizar fora dele, num lugar em que o
se muito do universo de atuação, pois ou foram
conteúdo e a forma teatral uniam-se dialetica-
escritas para os atores ou por eles. Flávio Mi-
mente, em que a história deveria ser produzi-
gliaccio até então nunca havia escrito. Nelson
da de modo livre. O drama era, para isso, uma
Xavier e Milton Gonçalves tiveram seus estu-
técnica insuficiente. Abria-se de vez a neces-
dos ali analisados, ainda que não encenados.
sidade de uma encenação épico-dialética co-
Buscava-se uma atitude autoral do conjunto
nectada ao momento brasileiro. Se é verdade
da equipe. A grande descoberta do Seminário
que Brecht, com sua negatividade radical, não
era simples e rara: o trabalho do dramaturgo é
era um modelo fácil a ser adotado num país
sempre coletivo, mesmo que escreva em casa.
que há pouco realizava seus primeiros dra-
Mais do que o estudo da dialética aplicada ao
mas, eram também verdade que uma teatrali-
teatro, a contribuição modelar do Seminário
dade dialética e popular deveria ser inventada.
se forma a partir de sua mobilidade constante
Foram essas as coordenadas que o Seminário
entre aprendizagem e produção, entre teoria e
forneceu ao CPC, gerando uma nova pesquisa
prática, entre arte e história.
laboratorial nas ruas que seria interrompida

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

com o golpe de 1964.


Mutirão em Novo Sol
Por conta de seu caráter exemplar, o Seminá-
rio de Dramaturgia do Teatro de Arena aca-
bou sendo replicado em diferentes cidades do No momento dessa passagem entre os pro-
país, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre cessos de aprendizagem do Seminário e as
outras, tornando-se um modelo para todo es- experiências de democratização da cultura no
critor de teatro da década de 60. Em paralelo CPC e MCP, encontra-se uma peça decisiva
ao Seminário de Dramaturgia, os artistas do para todo o período. Trata-se de Mutirão em
Arena fazem viagens para conhecer de perto Novo Sol, peça escrita em 1961 por Nelson
a realidade nacional, escrevem textos teóricos Xavier em parceria com Augusto Boal ¹ (XA-
sobre essas experiências, e reposicionam o VIER, 2015). Embora esquecido por mais de
espectro de atuação possível de um grupo te- cinquenta anos, é um texto de importância se-
atral. Essa nova forma de organização artísti- minal nos processos de engajamento, popula-
ca e política acabará ensejando a criação do rização do teatro e experimentalismo artístico
CPC em 1960, e uma parceria profícua com que marcaram os anos anteriores ao Golpe
diferentes movimentos sociais, como o Mov- Militar de 1964. Com efeito, a peça contém
imento de Cultura Popular (MCP), de Recife tanto aquele espírito laboratorial dos Seminá-
e deixará um legado muito além dos palcos. rios como a vontade de ultrapassar a ideia de
Arena fazem viagens para conhecer de perto teatro e transformar-se em experiência radical
a realidade nacional, escrevem textos teóri- de politização da arte.
cos sobre essas experiências, e reposicionam Mutirão em Novo Sol foi motivo de ao me-
o espectro de atuação possível de um grupo nos três montagens históricas e mobilizou al-
teatral. Essa nova forma de organização artís- guns dos principais movimentos culturais do
tica e política acabará ensejando a criação do período, como o Teatro de Arena, o Centro
CPC em 1960, e uma parceria profícua com Popular de Cultura (CPC) de São Paulo, o Mo-
diferentes movimentos sociais, como o Movi- vimento de Cultura Popular (MCP) de Pernam-
mento de Cultura Popular (MCP), de Recife buco e, por fim, o importante CPC da Bahia,
e deixará um legado muito além dos palcos. onde uniu setores de teatro e cinema em um
Arena fazem viagens para conhecer de perto tipo ainda desconhecido de linguagem híbri-
a realidade nacional, escrevem textos teóri- da politizada. Os espetáculos atingiram milha-
cos sobre essas experiências, e reposicionam res de espectadores em um espaço curto de
o espectro de atuação possível de um grupo tempo, protagonizando significativos eventos
teatral. Essa nova forma de organização artís- como o I Congresso Nacional de Lavradores
tica e política acabará ensejando a criação do e Trabalhadores Agrícolas em Belo Horizonte
CPC em 1960, e uma parceria profícua com (SANTOS, 1962), temporada no Teatro Santa
diferentes movimentos sociais, como o Movi- Isabel em Recife (MENDONÇA, 1968, p. 154),
mento de Cultura Popular (MCP), de Recife e apresentação em Brasília a convite do presi-
deixará um legado muito além dos palcos. dente João Goulart (COELHO, 2002, p. 33) e

1 Também teve a colaboração de integrantes do Teatro de Arena de São Paulo da época, como Benedito Araújo, Hamilton
Trevisan e Modesto Carone.

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

representações para multidões de lavradores resistiam em sair. Estimulados por Jôfre e cor-
pobres de Pernambuco, Paraíba e Bahia. rendo risco de vida, muitos camponeses es-
A estrutura da peça é organizada a partir do colheram ficar e resistir. Em grandes grupos,
julgamento do lavrador Roque Santelmo Filho arrancavam sistematicamente o capim plan-
por “subversão” e “incitação à desordem” (XA- tado pelos jagunços do proprietário em suas
VIER, 2015). No banco dos réus, Roque narra quadras. A revolta, que ficou conhecida como
os eventos passados, que são apresentados “Arranca Capim”, ganhou destaque nacional,
em flashbacks e entremeados por comentá- e Jôfre tornou-se referência como agitador em
rios e debates no tempo do julgamento. Vemos um país que via crescer exponencialmente os
então todo o histórico da revolta coletiva de la conflitos no campo, apesar da alardeada mo-
vradores arrendatários expulsos da terra pelo dernização em marcha.
proprietário Coronel Porfírio. Após tentarem a Mutirão em Novo Sol é um acontecimento
inócua intervenção da lei, os camponeses, em decisivo para o processo de modernização do
um gesto espontâneo e coletivo, saqueiam o teatro no país – que ganhava um novo sentido
armazém, fundam uma União e decidem lutar com as experiências do Arena a partir de 1958
pela terra. Em resposta, a Polícia, o Exército, – e isso em vários aspectos. A começar pela
a Igreja e os burocratas do Estado se agluti- novidade temática da peça: os conflitos sociais
nam em torno do Coronel para manter a or- no campo. O ineditismo não é o ângulo rural
dem com violência. Por fim, a Justiça revela propriamente, afinal o interesse pitoresco da
sua parcialidade de classe e condena Roque cultura pelo explorado, pelo sertanejo etc. já é
até que ele interrompa a rebelião. A respos- antigo. A novidade é, antes, o pressentimento
ta é um gesto coral dos lavradores presentes de que ali, na luta pela terra, na exploração
que se levantam e entoam a canção do Arran- do trabalho no campo, na miséria extremada
ca capim, símbolo de sua resistência. Roque, se encontrava o principal ponto de tensão do
então, afirma a proporção coletiva, de classe, Brasil, e que, por conseguinte, dali nasceria o
que o evento ganhou: “Senhor Juiz, essa gen- futuro.
te não para nunca” (XAVIER, 2015, p. 79). A organização de obras a partir desta maté-
A figura de Roque é inspirada no líder cam- ria marginal passou a ser regra em quase toda
ponês Jôfre Correa Neto, que em 1959 prota- a produção artística engajada nestes anos. No
gonizou um enorme levante de lavradores nas campo do teatro, os principais grupos de es-
cidades de Jales e Santa Fé do Sul, interior querda, como o Teatro de Arena de São Paulo
de São Paulo (CHAIA, 1980; WELCH, 2010). e os grandes movimentos de democratização
Foi um movimento mais ou menos espontâneo da arte, como o Centro Popular de Cultura
de colonos expulsos sumariamente das terras (CPC) da UNE e o Movimento de Cultura Po-
arrendadas onde viviam e plantavam. O pro- pular (MCP) de Pernambuco centralizavam
prietário desejava criar gado de forma extensi- suas criações cada vez mais no interesse pe-
va ali e indiferente aos apelos dos lavradores, las margens agrárias do país. Diversas monta-
queimava casas e expulsava à bala os que gens sobre o conflito pela terra ou sobre a

² A montagem de Mutirão em Novo Sol no MCP teve o título alterado para Julgamento em Novo Sol devido ao termo mutirão não
ser utilizado no Nordeste.

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

exploração inacreditável do lavrador nas bei- experiências cinematográficas da montagem


ras do Brasil se sucediam nos anos anteriores da peça no CPC da Bahia a influência decisiva
ao golpe. para Deus e o diabo na terra do sol:
Sob a influência direta da montagem de Jul-
Em 1963, Orlando e Geraldo Sarno re-
gamento em Novo Sol² pelo MCP de Recife, alizam o filme Rebelião em Novo Sol,
Vianinha, criador e principal quadrodo CPC da com fotografia de Waldemar Lima, que
UNE escreveu as peças Quatro quadras de integrava um espetáculo de Francisco
de Assis sobre a reforma agrária. Mon-
terra (1963) e Os Azeredos mais os Benevi- tado em estilo eisensteniano-vertovia-
des (1964). Em 1964, o CPC inauguraria seu no, o filme influenciaria a epicidade de
Deus e o Diabo na Terra do Sol. (RO-
novo teatro popular na sede da UNE com uma CHA, 1982, p. 476)
encenação da peça Os Azeredos mais os Be-
nevides de Vianinha, com direção de Nelson Mesmo após a intervenção militar, a temá-
Xavier – convidado especialmente devido ao tica das margens em luta no sertão manteve-
sucesso de Julgamento em Novo Sol que via- se por alguns anos como fantasmagoria do
jou em turnê pelo Rio de Janeiro. No Teatro de espírito revolucionário (Cf. TOLEDO, 2015) –
Arena de São Paulo, O filho do cão, de Guar- sendo o maior exemplo, talvez, a interpretação
nieri, apresentado em 1964, pouco antes do de Maria Bethânia para a canção Carcará de
golpe, foi uma tentativa deliberada de desen- João do Vale, substituindo Nara Leão no Show
volver temática e formalmente alguns tópicos opinião em 1965³ .
de Mutirão (PEIXOTO, 1985, p. 56). Mesmo no Mutirão em Novo Sol é a peça que inau-
campo da modernização teatral não engajada, gura esse interesse na temática da arte en-
Antunes Filho estreou Vereda da salvação de gajada daqueles anos; não propriamente pela
Jorge Andrade no TBC em 1964 (que, por si- angulação rural, mas por tratar o tema pelo
nal, também virou filme no mesmo ano, com viés da luta de classes (VILLAS BÔAS, 2009,
direção de Anselmo Duarte, que já havia diri- p. 68-87). E tal interesse iniciado com a peça
gido O pagador de promessas em 1962). revela tanto uma desconfiança ao projeto na-
No campo do cinema, entre 1963 e 1964, Edu- cional-desenvolvimentista em marcha no país
ardo Coutinho estava embrenhado no sertão como uma atenção inédita para os conflitos de
de Pernambuco com equipe do CPC e do MCP classe internos. Algo que, se verdade, proble-
filmando Cabra marcado para morrer, sobre o matiza as caracterizações históricas dualistas
assassinato do líder camponês João Pedro sobre a cultura pré-1964, na maior parte das
Teixeira na Paraíba. E em 1964 estrearam vezes entendida como fiel depositária da ideo-
três filmes fundamentais do cinema brasileiro logia desenvolvimentista e/ou premida por ar-
que têm como ângulo principal os conflitos do roubos ingênuos de nacionalismo de esquer-
mundo rural brasileiro: Vidas secas, de Nelson da à sombra do Partido Comunista Brasileiro
Pereira dos Santos, Os fuzis, de Ruy Guerra , e (PCB).
Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Ro- A fração geográfica, social, histórica focali-
cha. No caso de Glauber, a influência de Muti- zada nas obras ganhava estatuto de imagem
rão em Novo Sol é direta. Ele próprio tributa às
3 A performance de Bethânia ficou eternizada em outro filme decisivo do período, O desafio de Paulo César Saraceni de 1965.

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

reduzida do país – seja sua face de barbárie das, debatidas, improvisadas e então escritas.
perpétua, seja o horizonte de transformação Algo que hoje parece natural foi um procedi-
que nossa sui generis luta de classes apresen- mento absolutamente novo no primeiro ano da
tava (ou escamoteava). Como sugere o mar- década de 1960. E seu desenvolvimento este-
cante verso reiterado em Deus e o diabo na ve ligado, sobretudo, a um processo de intensa
terra do sol: “o sertão vai virar mar/ o mar virar politização e questionamento dos paradigmas
sertão”. produtivos. A ideia de coletivo se desdobrou
A peça Mutirão em Novo Sol também é de- para o campo da criação – como já apontavam
cisiva historicamente na organização estrutu- os Seminários de Dramaturgia do Arena.
ral do texto, fundamentalmente sua inovadora Não é acaso, portanto, que montagens da
tentativa de composição épica da dramaturgia. peça entre 1961 e 1964 foram todas marcadas
A forma tribunal na peça remete ao teatro po- por um notável experimentalismo e tentativas
lítico soviético e alemão das décadas de 1920 de criar uma cena aberta e épica. A primeira
e 1930 e dá mostras da crescente influência delas foi organizada pelo CPC paulista, com
que a leitura de Brecht e, fundamentalmente, direção de Chico de Assis, para ser apresen-
de Erwin Piscator vinha exercendo nos jovens tada no histórico I Congresso Nacional de La-
artistas politizados do período. Piscator, logo vradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
após a Primeira Guerra Mundial, criou o Tea- (VERA, 1962, p. 95). O trabalho fundamen-
tro Tribunal (PISCATOR, 1968, p. 48-59), ins- tou-se em um tipo novo de trânsito entre pal-
pirado provavelmente em uma das modalida- co e plateia, diferente de toda trajetória ligada
des mais disseminadas de agitprop soviético à modernização do teatro no país; se tratou
(o agitsud), que eram as representações em de uma montagem aberta que ia se transfor-
massa de julgamentos nos primeiros anos mando a partir dos debates e apresentações.
após a Revolução. Além disso, os tribunais e Segundo Juca de Oliveira (2015)4 , em entre-
sua estrutura aparecem frequentemente nas vista aos pesquisadores do LITS: “Qualquer
peças de Brecht. Em Mutirão também o mo- mudança, qualquer reação do público […] re-
delo brechtiano de teatro épico começou a ser sultaria numa modificação imediata do texto”.
experimentado, com canções, coros, narra- É uma cena que marca uma nova concepção
tivas, quebras de ação, comentários etc., em de teatro político, desenvolvida para ser apre-
um tipo novo de composição dramatúrgica. sentada em espaços fora do ambiente teatral,
Por fim, o processo de escrita da peça realiza como sindicatos, congressos, encontros de
um gesto novo e decisivo no campo produtivo lavradores etc., e que propõe como elemento
do teatro. A começar pelos procedimentos co- central o trânsito vivo da cena com a plateia
letivos de composição – a partir de uma con- engajada. Ainda de acordo com Juca de Oli-
versa com Jôfre no Teatro de Arena, o grupo veira, tudo era pensado para que no momento
organiza uma série de improvisações e deba- das canções os camponeses participassem e
tes sobre o tema que, por sua vez, tornam-se cantassem junto, e, mesmo quando isso não
o material para a escrita. Cenas eram imagina- ocorria, eles “participavam de uma forma total,

4 Entrevista concedida a Paula Chagas Autran e Sara Mello Neiva, em São Paulo, 23 de junho de 2015.

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

absoluta”. nez do camponês sozinho no palco era


forte. (SENNA, 2008, p. 122-3)
Em 1962, Nelson Xavier montou o espetá-
culo com o Teatro de Cultura Popular (TCP)
A montagem híbrida e engajada foi algo
do Movimento de Cultura Popular (MCP) em
bastante inovador para a arte política do perí-
Pernambuco. Com o título de Julgamento em
odo e, no limite, problematiza os estereótipos
Novo Sol, a estreia foi no Teatro Santa Isabel
criados sobre o teatro participante produzido
em Recife para um público de quase cinco mil
entre 1961 e 1964 – muitas vezes desquali-
pessoas, seguida de uma temporada no an-
ficado como mera instrumentalização da arte
fiteatro do MCP no bairro periférico de Casa
em favor da política, portanto didático, simpló-
Amarela. O enorme elenco com mais de 50
rio e artisticamente menor. O “acontecimento”
atores foi composto por jovens ligados ao Mo-
Mutirão deve, portanto, ser visto como o con-
vimento – entre eles José Wilker em sua es-
junto entre dramaturgia com temática inovado-
treia no teatro –, e o espetáculo ficou marcado
ra e experimentalismo épico das encenações.
por uma cena moderna e épica, com coros e
O “esquecimento” de uma peça como Mu-
tentativas de composição experimental, como
tirão em Novo Sol dá provas da violência com
Germano Coelho recorda: “Havia cenas que
que a ditadura militar não apenas interrompeu
lembravam esculturas movidas apenas pelo
movimentos políticos e sociais, mas também,
jogo de luz, como nos trabalhos de Eisenstein”
nas palavras de Paulo Arantes, “apagou até a
(COELHO, 2002, p. 32).
memória de que um dia houve inconformismo
Ainda em 1962, em Salvador, Chico de Assis
de verdade no país” (ARANTES, 2010, p. 216).
dirigiu uma montagem inovadora que uniu os
Em dezembro de 2015, no lançamento da pu-
setores de teatro, música e cinema do CPC da
blicação atual da peça, em edição organizada
Bahia. O título do espetáculo foi Rebelião em
pelo Laboratório de Investigação em Teatro e
Novo Sol. Concomitantemente ao processo de
Sociedade (LITS), Nelson Xavier, muito emo-
criação, Orlando Senna e Geraldo Sarno, dois
cionado depois da leitura de cenas da obra,
jovens cineastas ligados ao CPC na época,
disse: “O Brasil viveu esse otimismo, a sen-
gravaram um filme documentário sobre as Li-
sação de que tudo poderia ser diferente, as
gas Camponesas da Bahia que era projetado
coisas eram vivas, depois veio o golpe e tudo
antes das apresentações. Também gravaram
terminou, eu nunca mais fui o mesmo, fiquei
uma série de cenas que eram projetadas ao
totalmente fragmentado, destruído”. De fato, a
longo da peça e que, por vezes, contracena-
interrupção abrupta provocada pelos militares
vam com os atores:
apagou um tempo em que a arte deixou de ser
Além do documentário com meia hora vista como instituição neutra e supra-histórica
de duração, que abria o espetáculo, e mobilizou recursos experimentais para de-
também fizemos cenas documentais
e ficcionais, soltas, para a composição senvolver uma nova relação com a sociedade.
multimídia. Por exemplo: em determi-
nado momento, na tela de cinema so-
bre o palco, um pistoleiro dispara um Referências
tiro e um ator no palco, um camponês,
é atingido. O contraste entre a imagem
gigante do pistoleiro na tela e a peque- ARANTES, P. E. 1964, o ano que não termi-

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960
cena n. 19

BETTI, M. S. Oduvaldo Vianna Filho. São Pau- ROCHA, G. Revolução do Cinema Novo. Rio
lo: EDUSP, 1997 de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1982.

BOAL, A.Hamlet e o filho do padeiro. Rio de SANTOS, J. O. Mutirão em Novo Sol no 1º


Janeiro: Editora Record, 2000. Congresso Nacional de Camponeses. Revista
Brasiliense, São Paulo, nº. 39, p. 173-175, jan./
______. Teatro do oprimido e outras poéticas fev. 1962.
políticas. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1980. SENNA, O. O homem da montanha. São Pau-
lo: Imprensa Oficial, 2008.
CHAIA, V. L. M. Os conflitos de arrendatários
em Santa Fé do Sul (1959-1969). 1980. Dis- TOLEDO, P. B. A ambivalência do protesto no
sertação de Mestrado – Universidade de São teatro e na canção no Brasil pós-1964. Sala
Paulo, São Paulo, 1980. Preta, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 180-190, jul.
2015. Disponível em: <http://www.revistas.usp.
COELHO, G. Paulo Freire e o Movimento de br/salapreta/article/view/96014>. Acesso em:
Cultura Popular. In: ROSAS, P. (Org.). Paulo 14 ago. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/
Freire: educação e transformação social. Re- issn.2238-3867.v15i1p180-190.
cife: Editora da UFPE, 2002.
VERA, N. O congresso camponês em Belo
GUIMARÃES, C.Seminário de Dramaturgia: Horizonte. Revista Brasiliense, São Paulo, n.
uma avaliação 17 anos depois. Revista Diony- 39, p. 94-99, jan./fev. 1962.
sos, Rio de Janeiro, nº 24, 1978.
VILLAS BÔAS, R. L. Teatro político e questão
MENDONÇA, L. Teatro é festa para o povo. agrária, 1955-1965: contradições, avanços
Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, e impasses de um momento decisivo. 2009.
Caderno Especial 2: Teatro e Realidade Brasi- Tese de Doutorado – Universidade de Brasília,
leira, p. 149-161, 1968. Brasília, 2009.

PEIXOTO, F. (Org.). Vianinha. Teatro, Televi- WELCH, C. A. Jôfre Corrêa Netto: capitão
são, Política. São Paulo: Editora Brasiliense. camponês (1921-2002). São Paulo: Expressão
1983. Popular, 2010.

______. Entrevista com Gianfrancesco Guar- XAVIER, N. Mutirão em Novo Sol. São Paulo:
nieri. In: ______. Teatro em movimento. São Expressão Popular, 2015.
Paulo: Hucitec, 1985.
Recebido em 07/12/2015.
PISCATOR, E. Teatro Político. Rio de Janeiro: Aprovado em 05/01/2016.
Civilização Brasileira, 1968.

Bio Toledo, Chagas Autran Ribeiro // Experimentalismo e Politização na Dramaturgia Brasileira da Década de 1960

Você também pode gostar